O que é lógica?
\ André Porto
1 Podemos ter uma visão muito ampla do que seriam as “trocas linguísticas”, incluindo, como
faz o Tractatus, não apenas as linguagens verbais, mas também qualquer forma de compartilhamento
de pensamentos, de intercâmbio.
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(isto é, conteúdo comunicável) com as condições de verdade (FREGE, 1964,
p. 90). Ela reaparece claramente, já nos cadernos preparatórios de Wittgens-
tein para o Tractatus: “O que sabemos quando compreendemos uma propo-
sição é isto: sabemos o que é o caso se a proposição é verdadeira, e o que é o
caso se ela for falsa. Mas não sabemos (necessariamente) se ela é verdadeira
ou falsa” (WITTGENSTEIN, 2004, p. 98).
A ideia sugerida por Frege e por Wittgenstein pode ser elucidada com um
exemplo. Tomemos uma frase de um outro idioma, como por exemplo, a
sentença inglesa “It rains!”. Segundo essa abordagem, aquela expressão tem
o sentido que tem (semelhante à frase portuguesa “Chove!”) por sua conexão
com certas situações no mundo (situações envolvendo a queda de pingos d’água
do céu…). Assim, por exemplo, a despeito de que a frase inglesa tenha um
pronome (é o tal “it” que “rains”) e a portuguesa não, o que determina o
sentido destas frases nas duas línguas é sua conexão com situações chuvosas, não
sua estrutura gramatical. Em termos fregianos, o sentido de “It rains!” são
suas condições de verdade, isto é, as condições (situações) que tornariam aquela
sentença verdadeira (condições de chuva) e condições que a tornariam falsa
(desertos, por exemplo).
Todo o ato de signiicação envolveria uma escolha, e assim um comprome-
timento. Eu escolho a opção “Chove!” (por oposição a “Não chove, não!”). Com
isso, eu me comprometo com certas situações (molhadas). Se o mundo for do
jeito que airmei, estarei dizendo a verdade. Caso contrário, estarei dizendo
uma falsidade. A ideia de Wittgenstein e Frege é a de identiicar essa escolha
como encarnando o sentido daquele proferimento.
A lógica é extraída da
essência da linguagem
Falamos sobre pensamento, sobre verdade e sobre sentido, mas ainda estamos
longe da lógica. Como extrair uma resposta para a pergunta “O que é lógica?”
da qual vínhamos falando, ainal? quando chegaremos inalmente na lógica?
Comecemos por uma situação ilustrativa. Imaginemos um tribunal, uma
corte onde está sendo julgado um caso, digamos, de assassinato. A imagem
de um tribunal é particularmente adequada para nossos propósitos porque,
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bebê!” Os vários tipos de conjunções adversativas que listamos acima, além
de se comprometerem com a verdade de ambos os componentes, expressam
vários tipos de surpresa pela coincidência dos dois eventos.
Do ponto de vista da lógica, no entanto, o que interessa são nossos com-
promissos frente às condições de verdade. E, em termos desses compromissos, “A,
porém B”, “A e B”, “A, ainda que B”, “A, mas B”, “A, apesar de que B” são todos
equivalentes. Nos termos de Frege, todas essas frases têm o mesmo sentido,
mas não exatamente o mesmo signiicado. Assim, se fôssemos “traduzir” essas
frases do português para o “logiquês”, verteríamos todas elas por um único
conectivo, a conjunção: “A ∧ B”2.
Em lógica não estamos interessados em exprimir surpresa, ênfase, nada
disso. Como acontece em um tribunal, em lógica estamos interessados ape-
nas nos fatos.
Eu considero [em minha linguagem lógica] apenas aquilo que inluencia suas
consequências possíveis [isto é, as condições de verdade]. Tudo que é necessário
para a inferência correta é completamente expresso, mas o que não é necessário
não é, em geral, indicado; nada é deixado subentendido (FREGE, 1967, p. 12).
3 O logiquês não seria uma língua adequada, por exemplo, para se contar piadas: normalmente
elas dependem, para sua graça, de que certos conteúdos sejam deixados implícitos. Mas, por outro
lado, nem Frege, nem Wittgenstein, jamais pensaram na lógica como uma linguagem mais “perfeita”
para todos os usos. Lançando mão agora da metáfora do microscópio (de Frege), poderíamos pensar o
seguinte: um microscópio, como a lógica, nos dá uma visão “mais completa” da realidade. Porém,
imagine a situação de procurar o banheiro no inal do corredor usando apenas a visão de um
microscópio!
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produzir proposições cada vez mais complexas, a partir de frases airmativas
mais simples. Neste texto, não teremos tempo para averiguar o sentido (isto é,
as condições de verdade) de cada um desses conectivos (de qualquer forma,
eles estão claramente determinados pelas conhecidas tabelas de verdade). Pre-
cisamos ir adiante: devemos romper a barreira das proposições, encontrando
suas estruturas internas, a parte da lógica conhecida como “lógica dos predicados”.
Tomemos uma frase simples: “Paulo ama Maria”. Aqui, como não poderia
deixar de ser, mais uma vez usaremos como princípio-guia a ideia de condições de
verdade. Podemos mesmo voltar a invocar a imagem do testemunho de Pedro:
com o quê exatamente ele se comprometeria ao airmar “Paulo ama Maria”?
quais seriam suas “condições de perjúrio”, neste caso? Mais uma vez estamos
interessados no problema de como julgar a verdade (ou falsidade) daquela frase.
Para poder julgar a verdade de um proferimento, precisamos, é claro, pri-
meiro entender precisamente seu sentido. Assim, em nosso caso, temos de
saber inicialmente quem é o tal “Paulo”, e a tal “Maria”, mencionados por
Pedro. Há muitas “Marias” e “Paulos” no mundo. Mas o testemunho de
Pedro, certamente, envolvia um casal particular. Como diria a lógica, é de um
par “(paulo, maria)” especíico que estamos tratando; é desse casal que estamos
predicando a relação de “amor”. Estamos airmando que o primeiro componen-
te, “o Paulo”, ama o segundo componente, “a Maria”. E, aqui, a ordem é clara-
mente relevante: o que Pedro airmou (e com o quê ele se comprometeu) é
que Paulo ama Maria, e não vice-versa, que Maria retribui o amor de Paulo.
Repassando nosso exemplo em termos mais gerais, diríamos que, para
entendermos o sentido de um proferimento (isto é, suas condições de verda-
de), devemos poder responder a duas perguntas lógicas fundamentais: A primeira
pergunta é: “Sobre o que estamos falando?”. Ela nos determinará o sujeito
lógico da frase. No caso de Pedro, estamos falando de Paulo e de Maria, nessa
ordem. Note-se aqui que o sujeito lógico não deve ser confundido com o sujeito
gramatical. O sujeito gramatical da frase seria apenas “Paulo”. Gramaticalmen-
te, “Maria” seria seu objeto direto. Mas em lógica, a noção de sujeito engloba
todos os indivíduos que estão envolvidos nas condições de verdade da frase. Ora, para
poder julgar a verdade da frase, precisamos saber não somente de que “Paulo”
estamos falando, mas também de que “Maria”4.
4 Na literatura, essa passagem da noção de sujeito gramatical para sujeito lógico é geralmente
chamada de “visão funcional” da linguagem.
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Seguindo a convenção das minúsculas e maiúsculas, poderíamos representar
sua estrutura lógica como: C(j).
voltando à comparação entre a concepção gramatical e lógica. Notamos
que a concepção gramatical se prende à estrutura sintática das frases. No pro-
ferimento “Chove!”, não ocorre nenhum pronome, nenhuma expressão que
se reira a jardim algum. Daí dizermos que, nessa frase, não haveria sujeito
gramatical. Mas, do ponto de vista lógico, o sujeito de uma frase não precisa
ser entendido necessariamente como um componente sintático de uma frase.
O sujeito lógico tem uma função muito mais importante a desempenhar,
essencial para o estabelecimento das condições de verdade, ou seja, do sentido,
de uma airmação. é ele quem determina sobre o que estamos falando, quer
esteja sintaticamente presente em uma frase ou não. é a esse sujeito que
devemos nos dirigir para estabelecermos a verdade ou falsidade do proferi-
mento. Assim, para a lógica, uma frase sem sujeito (lógico) seria uma frase
onde estaríamos airmando algo “não se sabe o quê”. Uma frase assim não
teria condições deinidas de verdade. Resumindo: em contraste com a gramática,
para a lógica, uma frase sem sujeito lógico não poderia ter sentido!
6 Em português, essas frase normalmente envolvem o uso de plural, como em “As baleias são
mamíferos”.
7 São dois os quantiicadores na lógica usual: o quantiicador universal, “∀” e o quantiicador
existencial, “∃”.
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Concordando com tantos manuais de lógica, encontramos, no inal, até
mesmo a conhecida noção de argumentação. Mas isso, apenas no inal. Pois
no início, como no Tractatus de Wittgenstein, o que encontramos é uma visão
da essência universal de qualquer linguagem. Não precisamos tomar essa
visão como sendo a única possível, ou mesmo a única correta. Mas sua im-
portância para a ilosoia permanece.