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O HOMEM E A NATUREb\

A tese brilhantemente exposta no presente


livro é simples: embora a Ciência seja
legítima em si mesma, o papel e a função da
Ciência tornaram-se ilegítimos e até
perigosos, em virtude tda falta de uma forma
superior de conhecimento em que a
ciência possa ser integrada e da destruição do
valor sagrado e espiritual da Natureza.
Para remediar essa trágica situação, cumpre
reviver o conhecimento metafísico
pertinente à Natureza, devolvendo-se a esta
sua qualidade sagrada. Como fazê-lo?
Reinvestigando a História e a Filosofia da
Ciênc:a em relação à teologia cristã e à
filosofia tradicional da Natureza que existiram
durante a maior parte da História européia
e ocidental. A própria doutrina cristã
, deve ser ampliada para incluir uma doutrina
-·- - espiritual da
., que se apóie no significado
· Mãe ~atu!eza - e isso com a ajuda das
tradições metafísicas e religiosas orientais, onde
tais doutrinas ainda estão vivas.
Este fecundo e provocante livro foi escrito
por um dos maiores pensadore_s islâmicos
do mundo, muito antes de a "ecologia" se
tomar uma palavra em moda. :S um tour dE
force espilitual que explora as idéias sobre
as relações entre o Homem e a Natureza
no Taoísmo, Hinduísmo, Cristianismo e
Islamismo. Com profundo discernimento e
intuição, o Professor SEYYED HossEIN NASR
analisa a crise espiritual do século XX e
(Continuo na 2." aba).
(Continuação da J.• ~)

realça a importância· de uma conscientização


I das ori_gei1S da Natureza e do Homem,
habilitando o leitor não só a elucidar e
compreender as causas do nosso atual dilema,
mas também a redescobrir o rumo de
uma harmonia que corre o risco de
irremediável perda.
O irresistível apelo a uma abord.yem mais
espiritual da Natureza é formulado através
de um penetrante ataque às condições
atuais da Civilização Ocidental, mas é um
ataque em que o autor demonstra
/
profundo conhecimento dos escritos científicos
ocidentais. Suas críticas são bem
documentadas e, como se diz na Introdução,
o livro reflete a tarefa de "atuar como
crítico oriental do Ocidente, revertendo assim
o que os orientalistas vêm fazendo há

I mais de um século a respeito das culturas


e religiões orientais".
Trata-se, enfim, de um l'ivro altamente
recomendável para quantos se interessam e
preocupam com a atual crise do homem e
da civilização ocidentais, suas causas,
suas conseqüências sombrias e as soluções
radicais que ainda seria tempo de implantar •


SEYYED HOSSEIN NASR é Diretor da
Academia Imperial Iraniana de Filosofia e
Professor de Filosofia da Universidade
de Teerã, e autor de numerosos livros já
traduzidos em vários países europeus e nos
Estados Unidos. ·

ZAHAR EDITORES
a cultura a serviço do progresso social
RIO DE JANEIRO
VIVER ATRAVÉS DO ZEN
D.T. Suzuki

I Viver de acordo com os métodos de Zen é viver paradoxalmente,


superando as noções e os limites dos opostos, nas
contradições, nas repetições e nas exclamações, no silêncio
e na ação direta, no desejo de comunicar o incomunicável.
O segredo não é segredo quando o possuímos; ele se revela
a todo o ser dotado de consciência. "Pois não há nada
oculto que não seja algum dia revelado, e nada escondido
que não venha a ser conhecido". Eis a mensagem
fascinante deste livro, onde o leitor ·certamente irá encontrar.
.
fartos motivos de reflexão e .deleite espiritual.

O ZEN-BUDISMO
Christmas Humphreys
No presente livro, o autor, um dos mais lidos e respeitados
analistas e divulgadores dos ensinamentos de Bodhi-Dharma
no Ocidente, expõe com impecável clareza todos os
i aspectos do processo de Zen, tornando bastante compreensível
I um sistema de v:da freqüentemente desvirtuado por ·
i• maus intérpretes, mais interessados em explorar o
sensacionalismo e a "moda meditativa" que lavra episodicamente
em certos setores da sociedade que se caracterizam
pelo excesso de tempo ocioso.

O YOGA
Tara Michael
A autora, seguindo a linha de trabalho adotada por
indologistas de renome que tratar~_!ll em profundidade a
filosofia indiana, procura apresentar-nos um quadro sucinto,
mas completo, do que-- vem a ser o Yoga tradicional.
O cuidado em ilustrar sua obra com passagens das escrituras
sagradas da lndia e com citações de autores e mestres
(gurus) "modernos'' de reconhecida autoridade faz deste
livro uma chave para a compreensão global do Yoga em suas
dimensões mística, espiritual, social e cultural.

ZAHAR

~ . A cultura a se1Viço do progresso social

EDITORES
O HOME M E A NATUR EZA
ESP!RITO E MATÉRIA

Budismo Tibetano: a Chave para o Caminho do Meio, renzin


Gyatso
O Zen-Budismo, Christmas Humphreys
O Yoga, r ara Michael
O Homem e a Natureza, Seyyed Hossein Nasr
O Caminho do Buda, H. Saddhatissa
A Vida do Buda, H. Saddhatissa
• Viver Através do Zen, D. r. Suzuki
sevved Hossein Nasr
Diretor da Imperial lranian Acarlrmv of Pt1ilosophy

o Homem
e a Natureza
Tradução de
RAuL BEZERRA PEDREmA FILHO

RIO DE JANEIRO
Título original:
M an and N ature

Traduzido da primeira edição inglesa, publicada em 1968 por


GElORGE ALLEN & UNWIN LTD., de Londres, Inglaterra, na série
MANDALA BOOKS

Copyright © 1968 by George Allen & Unwin Ltd.

capa de
JANE

1977

Direitos para a língua po1'tuguesa adquiridos por


ZAHAR EDITORES
Caixa Postal 207, ZC-00, Rio
que se reservam a propriedade desta versão

Impresso no Brasil
A. MARCO PALLIS
íNDICE

Prefácio à Edição }!,Jandaia Books 9


Introdução 13
I O Problema 17
II As Causas Intelectuais e Históricas 50
I li Alguns Princípios Metafísicos Pertinentes à Na tu reza 79
IV Certas Aplicações à Situação Contemporânea 111
PREFÁCIO À EDIÇÃO MANDALA BOOKS

Uma década se passou desde que este livro foi escrito.


Durante esse período, a consciência da grande crise eco-
lógica, que foi prevista neste trabalho, subitamente desper-
tou na mente do homem ocidental. Na América, em certas
partes da Europa e também no Japão foram dedicados
dias especiais à salvação da Terra. Florestas foram derru-
badas para produzir o papel necessário para se escrever
a respeito dos vários aspectos da crise ecológica. E, por
fim, em 1972, em Estocolmo, teve lugar uma importante
conferência internacional, resultando na criação de um
órgão especial para estudar e aplicar meios de preservação
do meio ambiente.
Não há dúvida de que as várias dimens.ões dos proble-
mas que a crise ecológica está colocando diante do homem
tornaram-se muito mais bem conhecidas durante este pe-
ríodo e de que se criou entre as pessoas uma maior con-
cientização no que diz respeito aos malefícios causados pe-
lo homem moderno em sua lida com o ambiente natural, do
qual depende de forma tão direta. Essa nova preocupação
é observada no número de livros e revistas agora dedi-
cados a esse assunto; nos currículos criados em várias
universidades, especialmente nos Estados Unidos e norte
da Europa, para ensinar e treinar especialistas para enfren-
tar os problemas do meio ambiente, na fundação de ór-
gãos nacionais e internacionais para supervisionar a utili-
zação do meio ambiente; em grupos como o Clube de
Roma, que foi estabelecido para aproximar os mais des-
tacados cientistas e "pensadores", a fim de que ponderem
sobre o futuro do homem; e mesmo nas tentativas de se
criar um novo tipo de tecnologia, chamada "branda",
lO 0 HOMEM E A NATUREZA

"intermediária" ou "limitada", para atenuar os efeitos das


indústrias pesadas sobre o meio ambiente. Mas apesar de
todos estes movimentos, a gravidade da crise ecológica e
o perigo iminente que constitui para a vida humana per-
manecem irredutíveis. De certa forma, todos estes esforços
parecem não ter alcançado o âmago do problema, pois
com a menor das pressões econômicas externas, como
esta provocada pela crise de energia nos dois últimos anos,
são sempre as leis recentemente promulgadas sobre o meio
ambiente que são modificadas, em lugar da modificação
dos modos de vida, que são os principais responsáveis
pelas crises que o homem está enfrentando nos dias de
hoje. E por esta razão que talvez este livro ainda tenha
uma mensagem para aqueles que continuam interessados
na busca de uma solução real para as difíceis condições
do homem moderno, especialmente quando refletidas em
sua totai desarmonia com o ambiente natural.
Nas páginas que se seguem, procuramos descobrir as
raízes da crise ecológica através do exame da história da
ciência no Ocidente, e buscando mesmo atribuir um novo
papel a esta disciplina acadêmica. Na década que passou,
algum esforço foi feito neste sentido, mas de dimensão
insignificante, tendo-se em vista a urgência e atualidade
do problema. Durante os distúrbios estudantis nas univer-
sidades americanas, pelo menos um grupo de estudantes
invadiu o departamento de história da ciência de uma
destacada universidade, exigindo especificamente um novo
papel para esta disciplina, que não seria o de descrever
os principais "avanços" da ciência, mas o de explicar como
o desenvolvimento e aplicação da ciência ocidental puse-
ram o homem em uma situação tão desesperadora. Con-
tudo, no cômputo geral, não é observável em lugar algum
uma transformação de objetivo e direção em grande es-
cala por parte desta disciplina, e o interesse dos estu-
dantes em investigar a história da ciência para descobrir
outras ciências da natureza e pesquisar meios de encon-
trar um caminho que nos tire do lodo dos dias atuais
geralmente ultrapassa o interesse dos professores que lhes
ensinam. Isto ainda é o normal, apesar de notáveis exce-
ções.
Propusemos também, no original, a redescoberta das
çºsmologias tradicionais das culturas orientais como meio
de obter uma nova--vfsão do universo natural e seu signi-
PREFÁCIO À EDIÇÃO MANDALA BOOKS 11

ficado. Isto também ocorreu, em escala notável, nos anos


quese passaram, mas nem sempre de forma significativa
ou saudável; Surgiram excelentes traduções e exposições
novas de fontes tradicionais autênticas, referindo-se ao
simbolismo das formas naturais e das várias cosmologias
tradicionais. Mas, no cômputo geral, a enxurrada de mate-
rial sobre estes assuntos entrou na arena da vida do ho-
mem moderno trajada com as vestes do QGJJltis_mo e con-
duzindo a onda dos movimentos pseudo-religiosos, aos
quais se associa grande parte deste-tipo de material. Parece
que, novamente com certas exceções dignas de nota ( ob-
servadas nos escritos de homens como Huston Smith,
Theodore Roszak e Jacob Needleman, no Estados Unidos,
e Keith Critchlow, Gilbert Durand e Elémire Zolla, na
Europa - homens que procuraram redescobrir as ciên-
cias tradicionais a partir da perspectiva tradicional), há
agora um extremo antagonismo do tipo mais perigoso. Nas
universidades, os departamentos de filosofia e, em grande
parte, o ensino de "humanidades" continuam imersos no
universo fechado da lógica desprovida de transcendência,
enquanto o "inconformismo" ou "contracultura" está bus-
cando transcendência, mas é impermeável à lógica que
emana do Intelecto interior e também à revelação, que é
igualmente uma manifestação do Intelecto Universal ou
Lagos. Como é notável aquela visão contida no recente e
majestoso trabalho de Frithjof Schuon, Logic and Trans-
cendence, na qual, a partir da perspectiva tradicional, se
desdobra um panorama universal onde tanto a lógica
quanto a transcendência :recebem o devido tratamento.
Por fim, nas páginas que se seguem, afirmamos clara-
mente que a crise ecológica é apenas uma exteriorização
de um mal-estar interno e que não pode ser resolvida sem
um renascimento espiritual do homem ocidental. Este tema
foi intensamente abordado por Theodore Roszak em seu
livro Where the Wasteland Ends e ocasionalmente em ou-
tros trabalhos, mas não fosse pelos expoentes das doutri-
nas tradicionais como Frithjof Schuon, Titus Burckhardt,
Marco Pallis e Martin Lings, cujos trabalhos são citados
com freqüência neste livro, as forças para uma genuína
renovação dentro das tradições religiosas no Ocidente não
teriam avançado de forma apreciável. Na realidade, foram
as forças que desejam repetir os erros do modernismo,
dentro da própria estrutura das doutrinas e ritos religio~
12 0 HOMEM E A NATUREZA

~os, que ganharam ascendência, forçando as pessoas de


pensamento elaborado a buscar em outras paragens os
ensinamentos tradicionais genuínos.
Temos ainda esperança de que, enquanto aumenta a
crise criada pelo esquecimento por parte do homem de
quem ele realmente é, e na medida em que caem, um por
um, os ídolos de sua própria confecção, ele comece uma
verdadeira reforma de si mesmo, que sempre significa um
renascimento espiritual, e através deste renascimento al-
cance uma nova harmonia com o universo da natureza
que se estende a sua volta. De outra forma, é inútil
esperar uma harmonia com esta grande teQfania, que é a
natureza virgem, enquanto permanecermos em esqueci-
mento e indiferentes à Origem dessa teofania, tanto além
da natureza quanto no âmago da existência do homem.
Que as páginas que se seguem sejam um modesto auxílio
em chamar a atenção para as raízes dos problemas cujos
sinais externos muitos já distinguem, raízes que se inserem
profundamente no coração endurecido e na mente oblite-
rada do homem moderno, cujo destino, não obstante, o
chama a realizar seu papel de vice-gerente de Deus na
terra e protetor da ordem natural, e de testemunha da
verdade de que Omnis natura Deo lognitus ("A natureza
toda fala de Deus") .1

SEYYED HOSSEIN N ASR


Teerã
Maio de 1975 d.C.
Jumada 'l-awwal 1395 A. H.

L Hugo de São Victor, Eruditio Didascalica, 6. 5 p. 176, 1. 805.


Introdução

Os capítulos deste livro baseiam-se em quatro conferên-


cias proferidas na Universidade de Chicago durante o mês
de maio de 1966, fazendo parte de uma série de conferên-
cias anuais que têm lugar nessa Universidade sob o patro-
cínio da Fundação Rockefeller. O objetivo destas confe-
rências é investigar, no mais amplo sentido, os problemas
colocados à paz e à própria vida humana pelas várias apli-
cações da ciência moderna.
O próprio fato de tais conferências terem lugar anual-
mente atesta a apreensão existente hoje em dia, em mui-
tos círculos, ante os malefícios causados pela tecnologia e
ante a ameaça desta e da ciência à paz. Investigam-se as
causas da desordem atual, cuja existência é tão óbvia,
que poucos ainda podem pretender ignorá-la. Mas apenas
raramente as causas subjacentes e essenciais têm sido
trazidas à fuz, talvez, em parte, porque se se tornassem
conhecidas teria de ocorrer uma mudança radical na pró-
pria forma de pensar de muitos daqueles que percebem
os efeitos maléficos dessas causas. E poucos estão dis-
postos a aceitar ou a submeter-se a esta modificação.
Hoje todo mundo fala do perigo da guerra, da super-
população ou da poluíção do ar e da água. Mas geralmente
essas mesmas pessoas que se apercebem destes problemas
óbvios falam da necessidade de um posterior "desenvolvi-
mento", ou da guerra contra a "miséria humana" que
nasce das condições impostas pela própria existência ter-
restre. Em outras palavras, desejam remover os proble-
mas causados pela destruição do equilíbrio entre o homem
e a natureza através de uma maior conquista e dominação
desta última. Poucos gostariam de admitir que os mais
14 O HoMDI E A NATUREZ A

graves problem as técnicos e sociais que a humani àade en-


frenta nos dias de hoje não vêm do tão falado "subdes en-
volvime nto", mas sim do "superd esenvol vimento " Poucos
desejam olhar de frente a realidad e e aceitar o fato de que
não há possibil idade de paz na sociedad e humana enquan-
tO a atitude para com a naturez a e todo o ambien te na-
tural basear-s e na agressão e na guerra. Além do mais,
talvez nem todos perceba m que, a fim de se consegu ir
esta paz com a naturez a, tem de haver paz com a ordem
espiritu al. Para se estar em paz com a Terra tem-se de
estar em paz com o Céu.
Não há uma maneira de o homem defende r sua quali-
dade de humano sem ser arrastad o por suas própria s in-·
ven~ões e maquina ções a uma condiçã o infra-hu mana,
a
não ser perman ecendo fiel à imagem do homem como um.
reflexo de algo que transcen de o merame nte humano . A
paz na sociedad e do homem e a preserva ção dos valores
humano s são impossí veis sem paz com as ordens natural
e espiritu al e respeito pelas realidad es supra-h umanas imu-
táveis, que são a origem de tudo que se chama "valores
humano s"
A tese apresen tada neste livro é simples mente a se--
guinte: embora a ciência seja legítima por si só, o papel
e a função desta e sua aplicaçã o se tornara m ilegítim os e
mesmo perigoso s devido à falta de uma forma mais ele-
vada de conheci mento, no qual a ciência pudesse ser inte-
grada, e à destruiç ão dos valores sagrado s e espiritu ais
da natureza . Para remedia r esta situação o conheci mento
metafísi co pertinen te à naturez a tem de ser revivido e a
qualida de sagrada da mesma ser-lhe novame nte conferid a.
Para consecu ção deste fim, a históriª- .e_a_iilo sofia da ciên-
cia têm de ser reinvest igadas em relação à _teologia crístã
e--à filosofia tradicio nal da naturez a que existi.ram durante
grande parte da história européi a. A própria doutrin a
cristã deveria ser ampliad a para incluir uma doutrin a que
diga respeito ao significa do espiritu al da naturez a, e isto
com o auxílio das tradiçõe s metafísi cas e religiosa s do
Oriente, onde tais doutrina s ainda estão vivas. Estas tra-
dições não seriam tanto a origem de um novo conheci -
mento, mas um auxílio à anamne se, à lembran ça de ensi-
nament os do Cristian ismo, esqueci dos agora em sua grande
maioria . O resultad o seria conferir -se, mais uma vez, uma
qualida de sagrada à natureza , fornece ndo uma nova base
INTRODUÇÃO 15

para as ciências, sem negar seu valor ou legitimidade den-


tro de seu próprio domínio. Seria a própria antítese do
movimento corrente nos dias de hoje sob o nome de "teo-
logia secular". Não significaria secularizar a teologia, mas
conferir um significado sagrado e teológico àquilo que o
homem moderno considera ser o mais secular de todos
os domínios, a saber, a ciência.
Quando fomos convidados a dar estas conferências,
em 1966, a escolha de nosso nome deveu-se especialmente
ao fato de sermos seguidores de religião e cultura não-
ocidentais, contudo um tanto atualizados com a ciência
moderna e sua história e filosofia. Ao aceitarmos esta ta-
refa talvez audaciosa de agir como um crítico oriental do
Ocidente, assim \invertendo o que os orientalistas fizeram
durante mais de um século com relação a todas as cultu-
ras e religiões orientais~ sentimos que era imperativo ir
além das fronteiras da ciência moderna, ou mesmo das
disciplinas da história e filosofia da ciência, para penetrar
a fundo em questão de ordem metafísica e teológica. E
mais, ao conduzirmos o programa acima delineado tivemos
também de ir além dos confins da civilização ocidental,
entrando no vasto domínio daquilo que hoje se chama
religião comparativa. A realização de todo este trabalho
foi animada pela esperança de se encontrar novamente
uma base sagrada para a própria ciência.
Levar a cabo tão vasto programa requer conhecimen-
to de muitas disciplinas e acesso às fontes em muitas lín-
guas. De modo algum alegamos possuir o conhecimento
de todos esses domínios, nem de todas as línguas perti-
nentes. Por esta razão, como também devido ao tempo
limitado a nossa disposição para preparação destas con-
ferências, fizemos uso freqüente de fontes s~cundárias. Na
verdade, a maioria das notas, excluindo as que servem
como referência, tem em vista servir de suporte aos nos-
sos argumentos e não de prova de erudição. A tese apre-
sentada é essencialmente metafísica e filosófica e deve ser
considerada por si só, sem levar em conta se todas as
notas de rodapé necessárias são fornecidas ou não. Nas
notas, procuramos não esgotar as fontes que dão subsidias
a nossa posição, nem tampouco fornecer todas as provas
acadêmicas necessárias para convencer o leitor cético~ mas
sim fornecer certas evidências e assinalar o caminho para
que outros possam se lançar a uma posterior investiga-
16 0 HOMEM E A NATUREZA

ção. Estes ensaios não pretendem ser exaustivos, mas são


wna modesta introdução a wn tipo de investigação ao
qual ainda não se procedeu em extensão apreciável. Para
se fazer justiça plena a todos os temas aqm tratados,
seriam necessários muitos volumes e a colaboração de
muitos estudiosos trabalhando em um campo que com-
preende diversas disciplinas acadêmicas, incluindo a his-
tória da ciência, filosofia da ciência e religião compara-
tiva. Desejamos apenas que as idéias aqul apresentadas
venham a estimular algum raciocínio em uma direção
construtiva para a solução de wn problema que é, a um
só tempo, vital e urgente, e que não sejam postas de lado
pelos pretensos críticos devido à falta de completa evidên-
cia histórica e acadêmica, um papel que estes ensaios não
tiveram em vista exercer.
Concluindo, desejamos agradecer à Divinity School,
ao Departamento de Ciências Biológicas e ao Centro de
Estudos do Orienté Médio da Universidade de Chicago,
que atuaram como anfitriões destas conferências, ao Deão
Jerald Brauer e, em particular, ao Professor John Rust,
da mesma Universidade, por sua assistência e gentileza em
tornar possíveis tanto as conferências como sua publicação.

SEYYED HOSSEIN NAS R.


Teerã
Dezembro de 1967
Ramadã, 1387
CAPITULO I

O Problema

Ultimamente, numerosos estudos têm sido feitos com res-


peito à crise causada pela ciência moderna e suas aplica-
ções, mas poucos investigaram as cau~~~l'ofundas, his-
tóricas e intelectuais, que são responsáveis poresfe estado
de coisas. Quando convidados a dar uma série de confe-
dências nesta universidade sobre o sentido do combate e
luta pela preservação da dignidade humana, sob condi-
ções que ameaçam a própria existência do homem, sen-
timos que seria mais próprio tratar antes dos princípios
e causas que das contingências e efeitos, um dos quais é
o problema da ação moral nos níveis social e humano,
juntamente com· a possível conse-qüência de uma guerra
que a tecnologia e ciência moderna tornaram total. Espe-
ramos, portanto, definir o problema que resultou do con-
fronto do homem e da natureza, nos dias atuais, buscando
a Seguir as causassubjacentes que provocaram esta con-
dição, e citar os princípios cuja negação tornaram tão
grave a crise moderna.
Hoje, quase todo mundo que vive nos centros urbani-
zados do Ocidente sente intuitivamente a falta de alguma
coisa na vida. Isto deve-se diretamente à criação de um
ambiente artificial de onde a natureza foi excluída ao
limite máximo possível. Mesmo o homem relisoigo, em
tais circunstâncias, perdeu a noção do significado lógico
da natureza. 2 Os domínios da natureza tornaram-se uma
2 "A liturgia cósmica, o mistério da participação da natureza no
drama cristológico tornaram-se inacessíveis aos cristãos que vivem
18 O HoMEM E A NATUREZA

"coisa" desprovida de sentido e, ao mesmo tempo, o


vazio criado pelo desaparecimento deste aspecto vital da
natureza humana continua a viver no íntimo da alma
dos homens, manifestando-se de várias maneiras, algu-
mas vezes violenta e desesperadamente. Além do mais,
mesmo este tipo de existência secularizada e urbanizada
está ameaçado pela própria dominação da natureza que o
tornou possível, de forma que a crise causada pelo con-
fronto do homem e da natureza e a aplicação das moder-
nas ciências da natureza à tecnologia tornaram-se uma
questão que preocupa a todos.a
A despeito de todo estardalhaço oficial sobre a inces-
sante e crescente dominação da natureza e sobre o tão
falado progresso, que é considerado o concomitante eco-
nômico desta dominação, muitos se apercebem, no íntimo,
de que os castelos que estão construindo repousam sobre
a areia e que há um desequilíbrio entre o homem e a
natureza que ameaça toda a vitória do primeiro sobre
a segunda.
Os perigos gerados pelo domínio do homem sobre a
natureza são muito bem conhecidos para necessitar elu-
cidação. A natureza tornou-se dessacralizada para o ho-
mem moderno, embora este mesmo processo tenha sido
levado à sua conclusão lógica apenas no caso de uma
pequena minoria.4 Além disso, a natureza passou a ser
"~

em uma cidade moderna. A experiência religiosa não está mais


"aberta" ao cosmo. Em uma última análise, é uma experiência estri-
tamente privada; a salvação é um problema que diz respeito ao homem
e seu deus; na melhor das hipóteses, o homem reconhece que é res-
ponsável não somente ante Deus, mas também ante a história. Nestas
relações homem-Deus-história, porém, não há lugar para o cosmo.
IPartindo disto, poder-se-ia concluir que, mesmo para um cristão au-
têntico, o mundo já não é sentido como obra de Deus." M. Eliade,
The Sacred and the Profane, the Nature of Religion: Nova York,
1959. p. 179.
3 Muitas críticas surgiram durante as duas ou três décadas passa-
das, por parte de naturalistas, filósofos, cientistas sociais, arquitetos
e homens de outras profissões, com respeito ao perigo da dominação
do próprio homem sobre a natureza. Os escritos de Lewis Mumford
e Joseph Wood Krutch representam dois tipos bem conhecidos, mas
muito diferentes, desta classe de literatura, onde de certa forma ecoam
em condições bem alteradas questões que preocupavam William Morris
e John Ruskin há um século atrás.
4 "A experiência de uma natureza radicalmente dessacralizada é uma
descoberta recente; além disso, é uma experiência accessível apenas
0 PROBLEMA

considerada algo para ser utilizado e desfrutado ao limite


máximo possível. Em lugar de ser a esposa de quem o
homem se beneficia, mas por quem é também responsá-
vel, para o homem moderno a natureza passou a ser uma
prostituta - para servir sem que se tenha qualquer sen-
tido de obrigação e responsabilidade para com ela. A difi-
culdade é que a condição de prostituta da natureza está
evoluindo tanto, a ponto de fazer com que não se possa
mais dela desfrutar. E, na verdade, é por isso que muitos
começam a se preocupar com a situação da natureza.
É precisamente a "dominação da natureza" que causou
o problema da superpopulação, a falta de "espaço para
respirar", a coagulação e congestão da vida na cidade, a
exaustão de todos os tipos de recursos naturais, a _Qestrut-
ção da beleza natural, a extinção dos organismos vivos do
meio ambiente pela máquina e seus produtos, o aumento
anormal de doenças mentais, e mil e uma outras dificul-
dades, algumas das quais parecem ser totalmente insupe-
ráveis.5 E por fim é esta mesma "dominação da natureza"
que, limitada à sua parte externa e aliada ao consenti-
mento de total liberdade à natureza animal do homem,
tornou tão crítico o problema da guerra, que parece ine-
vitável, mas que entretanto precisa ser evitada, principal-
mente devido a sua natureza total e quase "cósmica" con-.
seguida pela tecnologia moderna.
Este sentimento de dominação da natureza e uma con-
cepção materialista da mesma por parte do homem estão,

a uma minoria nas sociedades modernas, especialmente aos cientista~.


Para outros, a natureza ainda exibe um encanto, uma majestade se-
creta onde é possível decifrar traços de antigos valores religiosos."
Eliade, op. cit., p. 151.
5 "Em um certo sentido externo; poder-se-ia dizer que o mal social
e político do Ocidente é a mecanização, posto que é a máquina qu::
de forma mais direta engendra os grandes males de que o mundo de
hoje está padecendo. A máquina, g·eralmente falando, caracteriza-:;c
pelo uso de ferro, fogo, e forças invisíveis. Falar;® a respeito d~
uma sábia utilização de máquinas, de seu serviço ao espírito humano,
é positivamente quimérico. Está na P"Ópria natureza de mecanizaçã'l
reduzir os homens à escravidão e devorá-los inteiramente, deixando-lhe.s
nada de humano, nada acima do nível animal, nada acima do nível
coletivo. O reinado da máquina seguiu-se ao do ferro, ou, antl'o:,
deu-lhe a mais sinistra expressão. O homem, que criou a máquina,
acaba por tornar-se a sua criatura." F. Schuon, Spiritual Perspccfiv·
and Human Facts (trad. de D. M. Mathcson): Londres, 1953, p. 21.
20 O HoMBI E A NATUREZA

ainda por cima, combinadas à concupiscência e a um sen-


timento de avareza que tornaram ainda maiores as exi-
gências ao meio ambiente.6 Incitado pelo sonho ilusório
do progresso econômico, considerado um fim em si mes-
mo, desenvolve-se a noção do poder ilimitado do homem
e suas possibilidades, juntamente com a crença, bem de-
senvolvida principalmente nos Estados Unidos, de possi-
bilidades incontidas e ilimitadas de todas as coisas, como
se o mundo das formas não fosse finito e contido pelos
próprios limites dessas formas.7
O homem quer dominar a natureza não só por moti-
vos econômicos, mas também por uma "mística" que é
um resíduo direto do tempo em que tinha uma relação
i espiritual com a natureza. O homem não escala mais as
montanhas espirituais, ou pelo menos raramente o faz.
Quer agora conquistar todos os picos de montanhas.8 De-
seja destituir a montanha de toda sua majestade ao sobr3-
pujá-la, com preferência pela linha de ascensão mais difí-
cll. Quando a experiência de subir aos céus, simbolizada
no Cristianismo pela experiência espiritual da Divina Co-
média e no Islam pela ascensão noturna (al-mi'râj)
do profeta Maomé (sobre quem haja paz), não está mais
à disposição do homem, resta então a ânsia de voar pelo
espaço e conquistar os céus. Em toda parte há o desejo
de conquistar a natureza, mas nesse processo o valor do
próprio conquistador, o homem, é destruído, e mesmo
sua própria existência, ameaçada.

6 "O que precisa, entretanto, ser entendido é que a felicidade de-


pende da aceitação preliminar de inúmeros fatos intragáveis. O mais
importante destes fatos é o conhecimento prático, distinto de qualquer
teoria, daquilo que traz a felicidade. Este conhecimento é particular-
mente difícil de chegar até nós, do Ocidente, condicionados que esta-
mos a fazer grandes demandas ao nosso meio ambiente e a alimentar
a ilusão de que elevar os padrões de vida equivale a alimentar o es-
pírito humano." Dom A. Graham, Zen Catholicism, a Suge8tion: Nova
York, 1963, p. 38. O mesmo se aplica, hoje, a todos aqueles afetados
pela psicose do progresso, qualquer que seja o continente em que
vivam.
7 Ver J. Sittler, The Ecology of Faith: Filadélfia, 1961, p. 22. O
mesmo autor escreve (p. 23): "Na íntegra, a experiência dos povos
dos Estados Unidos criou e nutriu uma visão do mundo que se opõe
da forma mais intensa possível à visão do mundo da Bíblia".
a A respeito desta questão, ver a análise magistral de M. Pallis em
seu livro The Way and the Mountain: Londres, 1960, Capítulo I.
0 PROBLEMA 21

Em lugar de o homem decidir o valor da ciência e


tecnologia, são estas criações suas que tornaram o critério
de valor e dignidade do mesmo.9 Praticamente, o único
protesto que se ouve é o dos conservacionistas e outros
amantes da natureza. A voz destes, embora de muito valor,
não é totalmente ouvida porque seus argumentos são com
freqüência considerados mais sentimentais que intelec-
tuais. Teólogos e filósofos de renome têm, na maioria das
vezes, permanecido em silêncio ou se curvado ante a aura
científica prevalecente nos dias de hoje, para evitar ofen-
dê-la. Apenas raramente uma voz ou outra se elevou para
mostrar que a crença corrente da dominação da natureza
é usurpação, do ponto de vista religioso, do papel do ho-
mem como tutor e guardião da natureza_ito
As próprias ciências da natureza, que são por um lado
o resultado e por outro a _ç_a).l~a da presente crise do con-
fronto desta com o homem, tornaram-se seculanzadas
através de um processo gradativo que examinaremos mais
tarde. E este conhecimento secularizado, divorciado da vl-
são de Deus na natureza, tornou-se aceito como a única
forma legítima de ciência.l 1 Além disso, devido à distância

9 " não é mais o intelecto humano, mas as máquinas - ou a


física, ou a química, ou a biologia - que decidem o que é homem.
o que é a inteligência, o que é a verdade. Sob estas condições a
mente do homem depende cada vez mais do "clima" produzido por
suas próprias criações. . . São, portanto, a ciência e as máquinas que
por sua vez criam o homem e, se pudermos arriscar semelhante ex-
pressão, elas também "criam Deus", porque a lacuna assim deixada
pela deposição de Deus não pode permanecer vazia, a realidade de
Deus e suas marcas no espírito humano requerem um usurpador da
divindade, um falso absoluto que possa preencher a insignificância
de uma inteligência destituída de sua substância." F. Schuon, Under-
standing lslarn (trad. de D. M. Matheson): Londres, 1963, pp. 32-3.
"Valores que hoje aceitamos como permanentes e com freqüência
evidentes por si mesmos surgiram do Renascimento e da Revolução
Científica. As artes e as ciências modificaram os valores ela Idade
Média. " J. Bronowski, Science and Human Values: Nova York,
1965, p. 51.
lO "0 homem abusou de sua autoridade no mundo de Deus. Empregou
seu conhecimento científico para explorar a natureza em lugar de
usá-la sabiamente de acordo com a Vontade de Deus." G. D. Yarnold,
The Spiritual Crisis of the Scientific Age: Nova York, 1959, p. 168.
11 "A ciência moderna está bem equipada para fornecer certos tipos
de informação, mas nega a si mesma a possibilidade de interpretar
essa informação; a tarefa de assim proceder é por conseguinte dei-
22 0 HOMEM E A NATUREZA

gu~ separa o cientista do leigo, criou-se uma grand,e dis-


torçã"º e discrepância entre as teorias científicas e sua
vulgarização, na qual se baseiam, com muita frequência,
as SUJ?OStas implicações teológicas e filosóficas destas teo-
rj-ª~·-~2"
De modo geral, pode-se dizer que o problema diz res-
peito tanto às ciências quanto aos meios empregados
para se fazer com que estas sejam entendidas, interpreta-
das e aplicadas. Há crises nos domínios tanto da com-
! p_reei_l§_ª-Q quanto nos da J~.plicação. O poder de raciocínio
conferido ao homem, sua ratio, que é como a projeção ou
prolongamento subjetivo do intelecto ou intellectus, dívor-
ciado de seu princípio, transformou-se em algo como um
ácido que corrói ao escorrer pelas fibras que compõem
a ordem cósmica, ameaçando destruir a si mesmo neste
processo. Há um desequilíbrio, que por pouco não é total.
entre o homem moderno e a natureza, como ficou compro-
vado por quase todas as manifestações da civilização mo-
derna, que busca antes oferecer um desafio à natureza que
cooperar com ela.
i Que se destruiu a harmonia entre homem e natureza
' é um fato que a maioria das pessoas admite. Mas nem
todos percebem que este desequilíbrio deve-se à destruição

xada ao balanço das opiniões, individuais ou coletivas, bem informadas


ou ignorantes. Seu erro fundamental reside, portanto, em sua reivin-
dicação de ser ela a própria ciência, a única ciência possível, a única
ciência que há." Lord Northbourne, "Pictures of the Universe", To-
murrow, outono de 1964, p. 275.
" antes da separação da ciência e da aceitação dela como
único meio válido de apreensão da natureza, a visão de Deus na na-
tureza parecia ser a via normal de entender o mundo, tampouco pode-
ria ter sido ela considerada uma experiência excepcional." F. Sher-
wood Taylor, The Fourfold Vision: Londres, 1945, p. 91.
12 Este fato tem sido afirmado com freqüência pelos próprios cien-
tistas. Por exemplo, com respeito à -n!á_ interpre_ta~ãu_ po1@1ar da
teoria d~ 1:ela_!_ividade, R. Oppenheimer escreve: "Os filósofos e divul-
gadores que to-maram equivocadamente a relatividade pela doutrina
do relativismo interpretaram os grandes trabalhos de Einstein como
Re eles reduzissem a objetividade, firmeza, e consonância à lei do
mundo físico, enquanto está claro que Einstein viu em suas teoriag
da relatividade uma posterior confirmação da visão de Espinoza de
que é a mais elevada função do homem conhecer e compreender n
mundo objetivo e suas leis". R. Oppenheimer, Science and the Common
Understanding: Londres, 1945, pp. 2-3.
Ü PROBLEMA 23

da harmonia entre o homem e Deus.l3 Isto envolve uma


relação que diz respeito a todo conhecimento. E, de fato,
as próprias ciências modernas são o fruto de um conjunto
de fatores que, longe de estarem limitados aos domínios
da natureza, estão relacionados com toda herança religiosa
e intelectual do homem ocidental. Por isso, ou freqüente-
mente como uma reação a isso, as ciências modernas pas-
saram a existir. É essa a razão por que se faz necessário
começar nossa análise ocupando-nos primeiramente das
ciências naturais e dos pontos-de-vista que dizem respeito
ao significado filosófico e teológico das mesmas e, a seguir,
das limitações a elas inerentes e que são responsáveis
pela crise que a aplicação e aceitação da visão do mundo
destas ciências trouxeram ao homem moderno.
Jamais deve ser esquecido que para o homem não mo-
derno - seja ele do passado ou contemporâneo - o pró-
prio conteúdo do Universo tem um aspecto sagrado. O
cosmo fala ao homem, e todos os seus fenômenos contêm
significado. São símbolos de um grau elevado de reall-
_çlacfe que os domínios do cosmo, a um só tempo, ocultam
e revelam. A própria estrutura do cosmo. contém uma men-
sagem espiritual pan1- o homem-;- sendo por conseguinte
uma revelação vinda da mesma origem que a própria reli-
gião1.i4 Ambas são manifestações do Intelecto Universal,
o Lagos, e o próprio cosmo é parte integrante desse Uni-
verso pleno de significado, onde o homem vive e morre.I 5
A fim de que as ciências modernas da natureza pas-
sassem a existir, a substância do cosmo teve, primeiro, de
ser esvaziada de seu caráter sagrado e tornar-se profana.
A própria visão que a ciência moderna tem do universo,
l3 "L'équilibre du monde et des créatures dépend de l'équilibre entre
l'homme et Di6u, dane de notre connaissance et notre volonté à l'égard
de l' A bsolu. A vant de demander ce qui doit f aire l' homme, il faut
savoir ce qu'il est." F. Schuon, "Le commandement suprême", Études
Traditionnelles, setembro-outubro, 1965, p. 199.
14 Poder-se-ia dizer que a própria estrutura do cosmo mantém vive i
a memória do ser celestial supremo. É como se os deuses tivessem
criado o mundo de tal forma que não pudesse refletir senão sua exis-1
tência; dado que nenhum mundo é possível sem vcrticalidade, e essa'
dimensão é por si só suficiente para evocar a transcendência." M. Elia-
de, op. cit., p. 129.
a "Para o homem religioso, a natureza nunca é apenas "natural";
está sempre carregada de valor religioso. Isto se explica facilmente,
dado que o cosmo é uma criação divina; saído das mãos de Deus, o
mundo está impregnado de uma qualidade sagrada." Ibid., p. 116.
24 O HoMEM E A NATUREZA

especialmente como é propagada por sua vulgarização, con-


tribuiu para esta secularização da natureza e substâncias
naturais. ÜL~Jmbolos, na natureza, tornaram-se fatos,
entidades em si mesmas que estão totalmente divorciadas
de outras esferas de realidade. O cosmo, que fora trans-
parente até então, tornou-se opaco e desprovido de espiri-
tualidade - pelo menos para aqueles que estão totalmente
imersos na visão científica da natureza -, não obstante
alguns cientistas, individualmente, pensassem de outra
forma. As ciências tradicionais, como a alquimia, que pode
ser comparada à celebração de uma missa cósmica, fica-
ram reduzidas a uma química em que as substâncias per-
deram todo seu caráter sacramental. Neste processo, as
giências da natureza perderam sua inteligibilidade simbó-
lica, fato que é em alto grau diretamente responsável pela
crise que a visão do mundo científico moderno e suas
aplicações trouxeram como resultado. 1s
O caráter q1,1antitativQ da ciência modern~ tem que ser
assinalado, em particular, porque existe como uma ten-
dência geral que tem por ideal a redução de toda qualidade
em favor da quantidade e de tudo que é essencial, no
sentido metafísico, em favor do material e substancial.17
O sufocante ambiente material criado pela industrializa-
ção e mecanização, que é sentido por todos que vivem nos
grandes centros urbanos de hoje, é uma conseqüência da
natureza puramente material e quantitativa das ciências,
cujas aplicações tornaram possível essa industrialização.
Além disso, devido à falta de uma visão total de natureza
cienjJ{!ca do mundo, em que as ciências modernas pudes-
sem ser-Integradas, o próprio aspecto simbólico do número
e da quantidade é esquecido. A teoria pitagórico-platônica
dos números passou a assemelhar-se, como aconteceu com
outras tantas ciências tradicionais, a uma história da caro-
chinha.
As ciências quantitativas da natureza, que ainda por
cima têm a possibilidade, nas devidas circunstâncias, de
16 ". . . nosso conhecimento (dos fenômenos cósmicos) tem de sPr
tanto simbolicamente verdadeiro quanto fisicamente adequado; no se-
gundo caso, tem de reter para nós uma inteligibilidade, dado que sem
isto toda a ciência é inútil e nociva." F. Schuon, Light on the Ancicnt
World8 (trad. de Lord Northbourne): Londres, 1965, p. 105.
17 Para uma análise profunda desta questão em todos os seus as-
pectos, ver R. Guénon, The Reign of Quantity and the Signs of the
Times (tJ·ad. de Lord Northbourne) : Londres, 1953.
0 PROBLHfA 25

ser uma ciência legítima, vêm a ser, na realidade, as um-


cas ciências válidas e aceitáveis da natureza. Qualquer
outro conhecimento das ordens cósmica e natural é desti-
tuído da condição de ciência e relegado à categoria de
sentimentalismo ou superstição. É como se a ciência ti-
vesse imposto como condição, para sua aceitação, a rejei-
ção do conhecimento sobre as raízes _!ia própria existência,
embora multa-s -cfenfistas, indivld.ualmente, não partilhem
deste ponto de vista.IB O impacto total da ciência moderna
na mentalidade dos homens tem sido fornecer-lhes um
conhecimento dos fenômenos das coisas, contanifo que es-
tejam dispostos a esquecer o conhecimento da ~ub_s_tl1n­
cia, que é o fundamento de 'todas as coisas. E é esta limi-
tàÇão que ameaça as mais imperiosas circunstâncias para
o homem como ser integral.l9
A própria aparência restritiva associada à ciência mo-
derna torna impossível o conhecimento da cosmologia, em
seu verdadeiro sentido, segundo os moldes da visão atual
do mundo científico. A cosmologia é uma ciência que trata
de todas as ordens de n~alidade formal, da qual a ordem
material é apenas um aspecto. É uma ciência sagrada que
se destina a ligar-se à revelação e à doutrina metafísica,
em cujo seio, por si só, torna-se eficaz e plena de signi-
ficado. Hoje não há uma cosmologia moderna, e a utili-
zação da palavra é na realidade a usurpação de um termo
cujo significado original foi esquecido. 2o Uma cosmologia

lR "A ciência moderna, portanto, pede-nos para sacrificarmos boa


parte daquilo que nos brinda a realidade do mundo, oferecendo-nos
em troca esquemas matemáticos cuja única vantagem é auxiliar-nos
a 111anipular _a matéria em seu próprio plano, o da quantidade."
T. Burckhardt, "Cosmology and Modern Science", Tomorrow, verão
de 1964, p. 186.
19 "Poder-se-ia também demonstrar que a ciênci11, embora neutra
em si mesma - dado que fatos são fatos - é nada menos que uma
semente de corrupção e aniquilamento nas mãos do homem, que em
geral não tem conhecimento suficiente da natureza subjacente da
Existência para ser capaz de integrar - e portanto neutralizar - os
fatos da ciência em uma visão total do mundo." Schuon, op. cit., p. 38.
2o ". • • toda cosmologia genuína está ligada a uma relação divina,
mesmo que o objeto considerado e o modo de sua expressão estejam
situados aparentemente fora da mensagem que esta revelação trans-
mite.
Tal é o caso, por exemplo, da cosmologia cristã, cuja origem se
apresenta à primeira vista um tanto heterogênea, dado que se refere
26 0 HOMEM E A NATUREZA

que se baseia unicamente no nível material e corpóreo da


existência, ainda que este nível se estenda às galáxias, e
que além disso se baseia em conjecturas individuais que
se modificam dia a dia, não é uma cosmologia verdadeira.
É uma visão generalizada de uma química e de uma física
terrestres, e como foi assinalado por certos teólogos e filó-
sofos cristãos, é realmente desprovida de qualquer sentido
teológico direto, a não ser que seja por mero acaso.2 I Além
disso, está baseada em uma física material que tende a
uma análise e divisão da matéria sempre crescentes, com
o ideal de alcançar a matéria "final" na base do universo;
entretanto, apenas um ideal, que jamais poderá ser atin-
gido por causa da ambigüidade e ininteligibilidade ineren-
tes à natureza da matéria e à linha divisória do caos que
separa a matéria formal daquela "matéria pura" que os
filósofos medievais denominaram materia prima. 22
O desaparecimento no Ocidente de uma cosmologia
verdadeira deve-se em geral à negligência para com a me-
tafísica e, mais particularmente, ao esqu~cirnentQ das hie-
rarquias do ser e do c:onhecimento. Os múltiplos -iiíveis de
realidade são reduzidos a um único domínio psicofísico,
como se a terceira dimensão fosse subitamente retirada
de nossa visão no ato de contemplarmos uma paisagem.
Como resultado, não só a cosmologia ficou reduzida às
ciências específicas das substâncias materiais, mas, em
um sentido mais geral, a tendência de reduzir o mais ele-
vado ao mais baixo e inversamente tentar obter o superior
a partir do inferior tornou-se amplamente predominante.
Na realidade, com a destruição de toda noção de hierar-
ggia desapareceram a-relação entre os graus de conheci-
mento e a correspondência entre os vários níveis de reali-
dade, nos quais se baseavam as ciências primitivas e me-

por um lado, aos relatos_l:líblicos Q_a_criação, mesmo quando se baseia,


por outro lado, na herança doa cosmólogos gregos." T. Burckhardt,
"Cosmology and :M:odern Science", Tomorrow, verão de 1964, p. 182.
21 Ver por exemplo E. C. Mascai, Christian Theology and Natural
Science: Londres, 1956, Capítulo IV.
22 "A ciência moderna- jamais alcançará aquela matéria que se en-
contra na base deste mundo. Mas entre o mundq_ qualit!!.tiyamente
diferenciado e a matéria não diferenciada acha-se algo como que uma
zona intermediária; o caos. Os temíveis perigos que acompanham a
fissão atômica são nada mais nada menos do que um mostrador indi-
cando a fronteira do caos e da dissolução." T. Burckhardt, "Cosmo-
logy and Modern Science", p. 190.
0 PROBLBIA 27

dievais, fazendo com que estas parecessem superstição (no


sentido etimológico da palavra) e com algo cujo princípio
ou base foi destruído ou esquecido.
A metafísica, igualmente, foi reduzida à filosofia racio-
nalista e esta filosofia tornou-se, gradativamente, auxiliar
das ciências matemáticas e naturais, ao ponto de algumas
escolas modernas considerarem que o único papel da filo-
sofia seja a elucidação de métodos e o esclarecimento das
coerências lógicas das ciências. A função crítica indepen-
dente que a razão deve exercer sõore a ciência, que é cria-
ção sua, desapareceu, de forma que este jovem rebento da
mente do homem tornou-se o juiz dos valores humanos e
o critério da verdade. Neste processo de redução, em que
o próprio papel crítico e independente da filosofia cedeu
lugar aos editos da ciência moderna, muitas vezes foi es-
quecido que a própria revolução científica do século de-
zessete baseou-se em uma determinada posição filosófica.
Ela não é a ciência da natureza, mas uma ciência que faz
certas suposições, como a respeito da natureza da reali-
dade, do tempo, do espaço, da matéria etc.23 Mas, uma
vez que essas suposições tenham sido feitas, e que uma
ciência tenha passado a existir baseada nessas mesmas
suposições, estas foram comodamente esquecidas, passan-
do os resultados desta ciência a ser o fator determinante
quan~-o à verdadeira natureza da realidade.24 É por isso
que se faz necessário ocuparmo-nos, embora ligeiramente,
da visão dos modernos cientistas e filósofos da ciência
com respeito à importância da ciência moderna, especial-
mente a física, na determinação do significado da natureza
total das coisas. Quer gostemos, quer não, são precisa- 1
mente estas visões que determinam a maior parte da con-1
cepção moderna da natureza aceita pelo público em geral,!

!!~ Este fato. evidentemente. foi pE'rcebido por certos historiadores


da ciêTlcia e filosofia, como E. A. Burtt f'm seu livro Metophy.~ical
Foundations o f Modem Ph11sical Se iene e: Londres, 1925; e A. Koyré
em seus muitos trabalhos mag-istrais sobre o Renascimento e a ciência
rlo século dezessete. Mas este fato é freqüentemente esquecido por um
graT'de número de filósofos e historiadores da ciência.
24 "Qualquer um familiarizado com o escrito e a fala contemporâneos
sRbe que as pessoas estão mais dispostas a aceitar a física como ver-
dade e a empregá-Ia para construir uma "filosofia" do que a inves-
tigar os métodos da física, suas pressuposições e as bases filosóficas
deRtas." E. F. Caldin, The Power and Limits of Science, a Philosophi-
cal Study: Londres, 1949, p. 42.
28 o H0:\1E:\I E A NATUREZA

e são, por isso, elementos importantes no problema geral


do confronto homem e natureza.
Sem nos atermos aos detalhes que dizem respeito às
diferentes escolas de filosofia da ciência, tarefa para qual
outros estão bem melhor preparados que nós e que foi,
na verdade, conduzida de forma completa em diversDs tra..
balhos recentes,25 é necessário descrever algumas das ten-
dências que pertencem mais diretamente à nossa discus-
são. Dentre estas escolas, talvez a de maior influência,
certamente nos países de língua inglesa, tenha sido o posi-
tivismo lógico, nascido a partir do círculo de Viena, de
R. Carnap; P. Frank, H. Reichenbach e outros.26 Buscando
remover o último espectro de significado metafísico da
ciência moderna, os seguidores desta escola acreditam que
não compete à ciência descobrir a natureza das coisas ou
de alguns aspectos do real, mas sim estabelecer ligações
entre os sinais matemáticos e físicos (que eles chamam
símbolos), que podem ser elaborados por meio dos senti-
dos externos e instrumentos científicos, em relação àquela
experiência que a nós se apresenta como o mundo exte-
rior.
Embora esta escola tenha sido instrumental ao codi-
ficar e esclarecer algumas definições e pricediment.os lógi-
cos da ciência moderna, a física em particular, ela tam-
bém destituiu a ciência do elemento mais importante que
a Idade Média lhe legou, a saber. a busca do real. Ao con-
trário dos astrônomos e matemáticos -gregos, para quem
o papel das ciências matemáticas era conceber modelos
conceituais "que resguardassem os fenômenos", os cien-
tistas islamitas, depois seguidos pelos latinos, acreditavam
que, mesmo nos domínios das ciências matemáticas, a fun-
ção da ciência era descobrir um aspecto do real. Aplica-
ram o realismo da biologia e da física aristotélicas aos
domínios da ciência matemática mais exata da época, a
saber, a astronomia, e converteram o sistema epicfclico de
Ptolomeu, a partir de configurações matemáticas, em es-
2 5 Ver por exemplo. M. White, The A.qe of Analysis: Nova York,
1955; A. W. Levi. Phifosoph11 and the Modem World: Bloomington,
1959: Ch. Gillispie, The Edge of 0b?'ectivit1J: Princeton, 19M, e
A. Danto e S. Morgenbesscr (orgs.), Philo.çophy of Science: Nova
York, 1960.
28 A respeito do Círculo de Viena e da escola do positivismo. ver
P. Frank, M odern Science and its Philosophy: Cambridge, 1950, e
Levi, op. cit.
0 PROBLEMA 29

feras cristalinas que compunham uma parte da textura


real do Universo.
Em uma obra posterior de Ptolomeu faz-se evidente-
mente alusão à natureza cristalina dos céus, embora fos-
sem os matemáticos islamitas, seguidos depois pelos cien-
tistas latinos, que universalizaram esta indicação e torna-
ram-na princípio de toda ciência para buscar conhecimen-
to daquele domínio da realidade que lhe diz respeito. Esta
atitude era de tal importância que, apesar da revolta do
século dezessete, especialmente contra o aristotelismo, a
crença de que a ciência busca descobrir a natureza da
realidade física sobreviveu desde Galileu e Newton até os
tempos modernos. Tem-se também de acrescentar que os
positivistas, que alegam estarem retornando ao ponto de
vista dos matemáticos e astrônomos gregos contra o rea-
lismo dos peripatéticos, esqueceram-se do fato de que os
matemáticos gregos também estavam buscando um conhe-
cimento do real. Para eles, entretanto, a realidade nao
estava nos fenômenos, mas nas relações matemáticas, que
possuíam por si mesmas uma categoria ontológica graças
à filosofia pitagórica, da qual seus pensamentos estavam
impregnados.
A interpretação positivista da ciência é, na realidade,
uma meta para desontologizá-la completamente - nao
pela transferência da categoria ontológica do domínio fí-
sico para o universo pitagórico-platônico dos arquétipos
ligados à matemática, mas pela negação total de sua sig-
nificação ontológica. É com justiça que um crítico da
escola positivista como J. Maritain a acuse de confundir
uma análise empirista das coisas com a análise ontológica
desta mesma escola, acrescentando que a física moderna
"desontologiza as coisas" .21 Igualmente, certos filósofos da

27 Ver seu ensaio, "Science, Philosophy and Faith", em Science, Phi-


posophy and Religion, a Symposium: Nova York, 1941, p. 166. A res-
peito da Escola de Viena ele escreve: "O et'J'o essencial desta escola
é confundir aquilo que é verdade (com certas restrições) sobre a
ciência dos fenômenos com aquilo que é verdade de toda ciência e em
todo conhecimento em geral, de todo saber científico. É aplicar uni-
versalmente a todo conhecimento humano aquilo que é válido apenas
para uma de suas esferas específicas. Isto conduz a uma negação
absoluta da metafísica e à arrogante pretensão de negar que as su-
posições metafísicas tenham algum sentido". Pp. 169-70. P. l<'rank
descreve esta atitude como "A superstição positivista a respeito da
ciência positiva." P. 170.
30 O HoMEM :E A NATUREZA

dência, destacando-se E. Mayerson, insistiram no aspecto


ontológico que toda ciência deve necessariamente pos-
suir.28
Muito parecida com a atitude positivista é a atitude
dos ,operacionalistas, associada quase sempre, no domínio
da física, ao nome de P. Bridgman. Fundamentada na idéia
de desdém pela visão unüicada do mundo e por uma meto-
dologia monolítica para a ciência, esta escola limita
toda significação, em ciência, a operações que podem de-
finir seus conceitos. A operação em si, com mais razão
que o real, é a matriz suprema do conhecimento cientí-
fico. Há na filosofia operacional uma nuança do universo
pluralístico de William James, a saber, o desdém por uma
visão filosófica e metodológica para a ciência, caracterís-
tica da mentalidade anglo-saxônica em geral, quando com-
parada com a mentalidade do continente europeu. Pode-
mos recordar o famoso dito: "A ciência é o que os cien-
tistas fazem" Há diferentes domínios de investigação ca-
rentes de uma teoria unificada e universal;29 "Antes um
multiverso que um Universo", para citar a frase de R.
Oppenheimer.
Uma outra escola, que também tem afinidades com
o ponto de vista positivista em sua negação de uma liga-
ção entre os conceitos da ciência e o real, é algumas vezes
chamada de J.<)_gic~_não-realista. Dentre seus membros, os
mais destacados são H. Poincaré e P. Duhem, ambos ma-
temáticos e físicos de renome. Duhem é ainda um emi-
nente historiador da ciência,3o e da mesma forma, em de-

211 Ver Pi'pccialmente seu De l'Explication dans le.~ science.~. 2 vols.:


Paris, 1921.
20 Esta tendência de falar-se de "universos de investigação" P. a
oposição a qualquer "hipótese unificada do mundo" derivada das ciên-
cias são também enfatizadas por J. B. Conant em seu livro Modern
Sci!mce and Modem Man: Nova York, 1952, especialmente pp. 84 e ss.
Quanto à filosofia "operacional" da ciência, ver. P. Bridgman,
Loaic of Modern Physics: Nova Y01·k, 1927.
ao Vide H. Poincaré, Science and Hypothesis: Nova York, 1952, es-
pecialmente os Capítulos IX e X; e o seu La Valeur de la science:
Paris, 1948. Também, P. Duhem, "Essai sur la notion de théorie phy-
sique de Platon à Galilée", A nnales de philosophie chrétienne: Paris,
1908; Origines de la statique, 2 vols.: Paris, 1905-6; e The Aint and
Structure of P.~ycal Theory (trad. de P. Wierner): Princeton, 195·1.
Embora alguns tenham interpretado a posição de Mach como
alegando que esta trata antes de conceitos que de fatos objetivos, os
Jlositivistas alegam que a principal mensagem de seus mais impor-
0 PROBLEMA 31

terminado sentido, também o é E. Maeh, físico e filósofo


e historiador da ciência. A questão quanto a se outras
formas de conhecimento podem atingir o terreno da reali-
dade é aqui irrelevante, pois os diferentes membros desta
escola sustentaram diferentes pontos de vista sobre o as-
sunto. Onde todos concordam é que os conceitos derivados
da intelecção, e que constituem as leis e o conteúdo in-
questionáveis da ciência moderna, não são aspectos desco-
bertos da realidade com aparência ontológica. São antes
conceitos mentais irredutíveis e convenções subjetivas de
natureza lingüística estabelecidos pelos cientistas, de forma
que possam, por sua vez, estabelecer uma linguagem para
se comunicarem uns com os outros. Portanto, a ciência é
concebida mais como conhecimento de noções subjetivas
do que como conhecimento de uma realidade objetiva.31
Há outros, como E. Cassirer, seguido por H. Morge-
nau, que aceitam os conceitos irredutíveis da ciência e os
empregam, mas unicamente como conceitos reguladores.
Para eles estes conceitos são aceitos "como se" existissem,
mas possuem apenas uma categoria reguladora.32 Este
grupo, que foi denominado meokantista, precisamente de-
vido a sua aceitação da categoria als ob dos conceitos, um
ponto de vista que depois de Kantséria sistematizado por
Vaihinger, tem portanto de ser considerado não-realista
e contrário a conceder à ciência o poder de compreender
a natureza das coisas.

iantes trabalhos Beih-iige zu.r Anal-yse der Empfindllngcn e Die Ml'-


chanik in ihrer Entw:ckelung é 1·emover todos os traços de metafísica.
da ciência e, por conseguinte, unificá-la, uma unificação da ciência
através da eliminação da metafísica! É de se admirar de como é I
possível confundir unidade com uniformidade e tentar unificar qual-/
quer domínio da multiplicidade sem um princípio que transcenda essa\
multiplicidade. A respeito de Mach vide C. B. Weinberg, Mach's Em-
pirio-Pragmatism in Physical Science: Nova York, 1937.
31 Como o colocou Poincaré, "Tout ce qui n'est pas pensée est le pur-
néant". La Valeur de la science, p. 276. Esta é uma indicação clara
do subjetivismo tão característico de pensamento moderno, porque a
"pensée" aqui em questão não está de forma alguma ligada ao Intc-
lcc.to objetivo, mas é puramente subjetiva e modificável, como a pró-
pna natureza externa do homem.
32 Ver E. Cassirer, The Problem of Knowledge (trad. de W. Woglom
e C. Hendel): New Havcn, 1950; Substance and Function, La Salle,
1923; e H. Morgenau, The Nature of Physical Reality: Nova York,
1950. .
32 0 HOMEM E A NATUREZA

Há ainda o grupo dos realistas lógicos, oposto aos dois


·acima, para o qual os conceitos derivados por meio do
intelecto têm uma categoria logicamente realista; referem-
'se a um o'Q.ieto_Qntológico de conhecimento. Neste grupo
podem sermencionados A. Grünebaum e F. S. C. Northrop,
-ambos enfatizando a correspondência entre os conceitos
da física matemática e o real.33 Northrop em particular
procura mostrar que tanto o universo newtoniano-kan-
tista da física matemática quanto a visão qualitativa da
natureza enfatizada por Goethe, que ele chama de visão
·histórica natural, e cujo conhecimento é antes imediato
'e estético que absoluto e matemático, são fundamental-
tnente reais.34 O mundo é antes ordem ou cosmos que
caos, aquele que está vivo como organismo e, ao mesmo
tempo, é governado pela lei.35 Mas, nesta escola, novamen-
te é enfatizado que o conhecimento derivado das ciências
é a via que nos conduz a um conhecimento definitivo das
coisas. Não há hierarquia de conhecimento, apenas um
conhecimento do domínio corporal que determina o co-
nhecimento como tal.
Entre os próprios cientistas, especialmente os físicos,
houve muitos que perceberam que a ciência, por estar limi-
tada às relações quantitativas, não pode nunca obter um
conhecimento da natureza básica e da raiz das coisas, mas
está condenada a mover-se sempre dentro dos limites do
tnundo fechado e subjetivo das "leituras de mostradores"
e conceitos matemáticos. Esta visão, popularizada espe-
cialmente por A. Eddington36 e, sob outro ângulo, por J.

33 F. S. C. Northrop, The Meeting of East and West: Nova York,


1946; e Man, Nature and God, a Quest for Life's Meaning: Nova
York, 1962.
34 "Um dos resultados mais importantes da filosofia da ciência na-
tural de nossos próprios dias é sua demonstração de que o conheci-
mento sensual e esteticamente imediato da história natural que Goeth,~
enfatizou e o conhecimento matemático da natureza, teoricamente de-
signado e experimentalmente verificado, que Newton e Kant enfatiza-
ram, são ambos igualmente definitivos, irredutíveis e reais." Man,
Nature and God, pp. 153-4.
A respeito das visões de Kant e Goethe relativas à natureza, ver
E. Cassirer, Rousseau-Kant-Goethe: Princeton, 1945.
3~ "A na tu reza é um organismo universalmente regido por leis. É
um cosmo, não um caos ... " Man, Nature and God, p. 229.
3e Ver J. Jeans, Physic.q and Philosophy: Cambridge, 1942; e The
New Background of Science: Nova York, 1933; A. Eddington, The Phi-
Josophy of Physical Science: Nova York, 1958, e especialmente seu
0 PRODLEi\IA 33

Jeans, foi utilizada em grande escala por não-cientistas


para mostrar as limitatJões da ciência ou o caráter "ideal"
do mundo. Mais uma vez, entretanto, esta visão não serviu
ao propósito de definir o domínio do conhecimento cien-
tífico dentro de uma hierarquia universal de conhecimen-
to. Não obstante, a tese de Eddington, de que a ciência,
devido a seus métodos, é seletiva e limitada a um "conhe-
cimento subjetivamente selecionado", é certamente signi-
ficativa; contudo, trata apenas de um aspecto da realidade,
e não do seu todo, na questão da relação entre ciência,
filosofia e religião. É um ponto de vista que, embora de
maneira bem diferente, foi também exposto por A. \Vhi-
tehead. Sua filosofia processo da natureza também bus-
cou exibir a riqueza de uma realidade de que a ciência
trata apenas em parte.37
Outros cientistas insistiram que, ao contrário de ser
uma busca metodológica unificada, a ciência está tão inex-
tricavelmente atada à história e à prática da ciência que
suas premissas não podem ser formuladas independente-
mente.38 É uma atividade total, e não há possibilidade de
se falar de uma filosofia e método da ciência distintos e
explícitos. Da mesma forma, alguns cientistas insistem
que a física ou outras ciências não podem provar ou refu-
tar qualquer tese filosófica específica, quer seja materia-
lista, quer idealista, e que não se devem buscar implicações

The Nabo· e of the Physical W orld: Cambridge, 1932, que provavel-


mente influenciou mais amplamente do que qualquer outro trabalh0
deste tipo escrito por um cientista moderno.
Certos físicos, ao contrário de Eddington, dirigiram-se à própria
física em busca de provas da existência e natureza de Deus. Ver por
exemplo E. Whittaker, Space and Spirit, Theories of the Universe and
the A rguments for the Existence of God: Londres, 1946.
37 Ver especialmente A. N. Whitehead, Process and Reality: Nova
York, 1929; The Concepts o f Nature: Cambridge, 1920; e Science and
the Modern World: Nova York, 1948.
Whitehead censura a pobreza da concepção científica da natureza
que exclui as realidades da religião e da arte e busca construir uma
visão totalmente abrangente da natureza. "Assim, a ciência da natu-
reza coloca-se em oposição às pressuposições do humanismo. Onde se
tenta alguma conciliação, a coisa com freqüência toma a forma de
uma espécie de misticismo. Mas em geral não há conciliação", Natu-re
and Life: Chicago, 1934, p. 4.
38 " As premissas da ciência não podem ser explicitamente for-
muladas, e podem ser encontradas, autenticamente manifestadas, ape-
nas na prática da ciência, da forma como é mantida pela tradição da
mesma." M. Polayni, Science, Faith and Society: Chicago, 1964, p. 85.
34 0 HoMEM E A NATUREZA

de pontos de vista e teorias científicas.39 Desnecessário di-


zer, esta perspectiva não é totalmente aceita, principal-
mente pelos não-cientistas, vulgarizadores da ciência que,
quase sempre, vêem mais implicações gerais nas teorias
científicas que os próprios cientistas.
Em contraste com este grupo, certos cientistas viram
as mais profundas implicações nas teorias da ciência mo-
derna, seja ela mecânica da relatividade ou quântica, se-
jam as teorias corpusculares da luz ou o princípio de
indeterminação.40 Com demasiada freqüência, a significa-
ção de uma determinada descoberta científica é trazida a
um nível muito acima dos confins do domínio da própria
física, como se as restrições auto-impostas da ciência mo-
derna, pelas quais sua escolha limita-se ao aspecto quan-

39 "De forma que a ciência, seja antiga ou moderna, não pode jamais,
sem contradizer-se, provar uma tese idcalística e pcrmitit·-se a se1
uma base para se atacar um ponto de vista empírico-realista. Pcnsn-
dores idealistas têm que procurar outros meios d2 realizar sua noh"(
missão. Mas, por outro lado, a ciência não p'lde também se!· utiliznda
para erigir uma tese materialista." P. J. Chaudhury, The Philosophy
of Science: Calcutá, 1955.
40 Um renomado físico moderno, Vv. Heisenberg, csc1·cve: "Assim
como os corpos elementares regulares da filosofia de Platão, as pa!·-
tículas elementares da física moderna são definidas pelas condiçÕc'.
matemáticas de simetria; não são eternas e invariáveis c, portanto.
dificilmente o que se poderia chamar de "real" no verdadci ro scntich
da palavra. Antes, são simples representações dessas estruturas ma-
temáticas fundamentais às quais se chega nas tentativas de se subdi-
vidir progressivamente a matéria; representam o conteúdo das lei~
fundamentais da natureza. Para a ciência natural moderna não há
mais, de início, o objeto material, mas a forma, simetria matemática.
E dado que a simetria matemática é, em última análise, um conteúdo
intelectual, poderíamos dizer, nas palavras do Fausto de Goethe; "No
início era o verbo, o lagos". Conhecer este lagos em todos os seus de-
talhes particulares e com clareza total, com respeito à estrutura fun-
damental da matéria, é tarefa dos físicos atômicos dos dias atuais. . "
W. Heisenberg, M. Born, E. Schrodinger, P. Anger, On Modern Phu-
sics: Nova York, 1961, p. 19. Embora esta afirmação seja até certo
ponto verdadeira no que diz serem todas leis naturais e a compreensão
inteligível do conteúdo destas provenientes do próprio lagos, está cer-
tamente confundindo o ~reflexo': com a próp1·ia 'coisa ao identificar 0
conteúdo intelectual da_simetria matemática com o próprio logo.~. O
significado desta simetria -existe e é sentido pelos físicos, mas somente
a metafísica pode mostrar que ela é uma aplicação de um princípio
mais universal. Sem a metafísica, incide-se novamente no erro de
reduzir o mais elevado ao mais baixo, o Verbo à inteligibilidade mate-
mática da forma dos objetos materiais.
0 PROBLEMA 35

titativo das coisas, fossem não existentes. Faz-se com que


a teoria da relatividade implique que não haja nada
absoluto, como se toda realidade fosse apenas movimento
físico. Faz-se com que o princípio de indeterminação signi-
fique a liberdade da vontade humana, ou a perda de um
nexo de causalidade entre as coisas. A própria hipótese da
evolução, um fruto da filosofia do século dezenove, torna-
se um dogma da biologia, apresentado ao mundo como
uma verdade axiomática e, além disso, uma moda mental
que invade todos os domínios, de forma que nada é estu-
dado em essência, mas apenas sua evolução ou história.
Nesta questão os não-cientistas foram, de fato, muito
mais longe que os próprios cientistas, especialmente em
biologia e na questão da evolução. Algumas vezes, para
uma determinada verdade religiosa ou filosófica, apresen-
tam-se as provas mais superficiais, como se a única prova
aceitável fossem as teorias científicas recentemente des-
cobertas. Quantas vezes se tem ouvido, em salas de aula
e dos púlpitos, que a física, através do princípio de inde-
terminação, "permite" ao homem ser livre, como se o que
há de menor pudesse determinar o grandioso, ou como
se a liberdade humana pudesse ser determinada externa-
mente por uma ciência que está contida na própria cons-
ciência do homem.
Tem-se de acrescentar que muitos físicos estão seria-
mente interessados em problemas filosóficos e religiosos,
muitas vezes mais do que aqueles que lidam com ciências
sociais e psicológicas. Além disso, alguns físicos, ao ten-
tarem encontrar soluções para os dilemas a eles impostos
pela física moderna, voltaram-se para as doutrinas orien-
tais - geralmente com genuíno interesse, mas raramente
com a atitude intelectual necessária para a apreensão da
total significação das mesmas. Dentre os mais seriamente
interessados neste campo pode-se mencionar R. Oppenhei-
mer e E. Schrodinger. O último, que muito tem escrito
sobre a filosofia da física moderna, em seu especial inte-
resse no problema da multiplicidade de consciências que
partilham do universo, voltou-se para as doutrinas hindus
em busca de uma solução. Para explicar esta multiplici-
dade, ele crê que um dentre dois milagres tenha de ser
verdade, ou a existência de um mundo externo real, ou
a aceitação de que todas as coisas e todas as consciências
36 0 HOMEI\1 E A NATUREZA

sejam aspectos de uma única realidade, o Uno. 4 1 O mundo


QJJ.e_Di!O diz__r~sp_ejto a __''mi_m" f rn,aya, a consciência ql1e
@ "eu" A metafísica oriental acrescentaria, a esta altura,
que não se trata de uma questão de escolher entre os dois
milagres. Ambos são verdades, mas cada um em seu pró-
prio nível. O milagre da existência, em si, é o maior de
todos os milagres, para aqueles que vivem no domínio das
coisas existentes, enquanto do ponto de vista do Uno, o
Absoluto, não há "existência de outros" ou "separação".
ITodas as coisas são uma, não material e substancialmenteb
f

mas interna e essencialmente. Mais uma vez é a questão


de se perceber os níveis de realidade e a hierarquia dos
diferentes domínios de existir.
Tampouco os cientistas foram totalmente negligentes
a respeito dos problemas teológicos e religiosos causndos
pela vulgarização da visão científica e a negação de suas
limitações inerentes. Uns poucos, como C. F. Weizsacker,
estiveram mesmo ocupados com o ceticismo gerado pela
ciência moderna e tentaram tratar de forma expressiva 03
confrontos da teologia com a ciência moderna. 42 Neste do-
mínio, estes escritos são algumas vezes mais sérios e perti-
nentes que algumas das obras de teólogos profissionais.
Este último grupo negou de forma singular a questão da
natureza e, quando a considerou, freqüentemente foi le-
vado a problemas irrelevantes ou secundários. Autores re-
ligiosos freqüentemente demonstraram, ainda por cima,

41 A respeito da douhina da id~ntidadc, que ofci·f'ce tanto um con-


teúdo ético mais elevado quanto um consolo mais profundo que o
materialismo, E. Schrcdinger escreve: "O materialismo nada oferf'ce;
embora haja muitas pessoas que se convençam de que a idéia que a
astronomia nos fo1·nece de miJ"Íades de sóis, talvez com planetas ina-
bitados, e de uma multiplicidade de galáxias, cada uma com miríadr~s
de sóis, e finalmente de um universo provavelmente finito, nos pr•1-
porciona urna espécie d:: visão ética e religiosamente consolado r l,
transmitida aos nossos sentidos pelo panorama indescritível do céu
estrelado numa noite clara. Para mim, pessoalmente, tudo isso é
maya, não obstante, sob urna -forma muito interessante, 0xibindo leis
de grande regularidade. Isto tem pouco a ver com minha he•·anç:t
eterna (para me expressar de forma absolutamcntP mediPv:ctl) ".
E. Schrcdinger, My Vie1V o.f the Wor!d: Cambridge, 19G4, p. 107.
42 "O ceticismo foi o privilégio de uns !Joucos homens de sabrr f!Ue
sobreviveram porque erguia-se então a sua volta um mundo de fé
inabalável. Hoje, o ceticismo se infiltl"Ou nas massas e abalou os
alicerces de sua ordem de vida. Agora, são os homens de saber que
estão assustados." C. F. \Veizsãcker, The History of Nature: Chicago,
1949, p. 177.
0 PROBLEMA 37

uma sensação de inferioridade e medo ante a ciência mo-


derna, o que conduziu a uma submissão e aceitação ainda
maiores das visões científicas, com o objetivo de apazi-
guar o oponente.43 Entretanto, uns poucos cientistas abor-
daram o problema sem estas limitações e, portanto, foram
capazes de tecer comentários pertinentes.44
Para resumir o apanhado de opiniões correntes sobre
a filosofia da ciência, pode-se dizer que em sua maior parte
a filosofia e, na verdade, o uso geral da própria inteli-
gência foram entregues à ciência. Há evidentemente as
escolas européias do existencialismo e da fenomenologia,
que entretanto tiveram pequeno efeito sobre o movimento
científico.45 A interpretação fenomenológica da ciência teve
até agora pequena influência. O existencialismo, em es-
sência, elimina as relações do homem com a natureM. e
pouco se interessa com as questões científicas. No meio
deste apanhado geral, há aqueles que buscam demonstrar
as _limitações da ciência, e outros que exploram com ge-
nuíno interesse os problemas do confronto entre ciência,
filosofia e religião. Mas, através deste complexo panorama
geral, 1o único fator que está presente em quase toda parte
é a falta de um conhecimento metafísico, de uma scientia
sacra que por si só possa determinar os graus da reali-
dade e da ciêncíã: S-omente este conhecimento pode revelar
4~ "Praticamente todas as tentativas que se fizeram para constn1it·
um acesso sobre o vazio existente entre a teologia e as ciências parti-
ram da teologia." Yarnold, The Spiritual Crisis of the Scientific Age,
pp. 54-5.
44 O tipo de trabalho de cientistas a que aqui nos referimos é exem-
plificado por C. F. von Wcizsãcker, The Relevance of Science: Lon-
dres. 1964.
Ver também os escritos do botânico A. Arber, especialmente The
Manifold and the One: Londres, 1957, que contém uma extensa biblio-
grafia sobre a concepção tradicional da natureza.
45 AparecPram certos trabalhos de fz>nomenologistas que dizem re,;-
peito à ciência, mas que até agora não receberam muita atenção dos
própl'ios cir>ntistas. Ver por exemplo E. Stroker, Philosophi.qche Un-
ters1!chungen zum Ramn: Frankfurt am Main, 1965, sob1·e a noçãiJ
de espaço quando pertinente à filosofia, à física e à matemática. Ver
também M. Schcler, Man',q Place in Nature (trad. de H. Meyerhoff):
Boston, 1961, a última obra de Scheler, onde a visão unificada do
homem c o mundo a sua volta, característica da fenomenologia, é
exposta.
Para um rE>sumo da interação da fenomenologia e ciência, espe-
cialmente quando diz respeito à posição do homem, no mundo ver
A. Tymieniecka, Phenomenolo.Q?I and Science in Contemporary Éuro-
pean Thought: Nova York, 1962.
38 O HoMEM E A NATUREZA

a significação, simbólica e espiritual, das próprias teorias


e descobertas científicas cada vez mais complexas que, na
ausência deste conhecimento, parecem fatos consumados,
opacos e à margem de uma ordem mais elevada de ver-
dades.46
Na medida em que estamos interessados no aspecto
espiritual do confronto entre homem e natureza, é tam-
oém importante discutirmos brevemente os pontos de vista
dos teólogos e pensadores cristãos sobre este assunto, além
dos pontos de vista dos filósofos da ciência acima citados.
É preciso que se diga, de início, que houve uma estranha
negação deste domínio entre teólogos cristãos, principal-
mente os protestantes. A maioria das tendências teológicas
de destaque trataram do homem e da história e concen-
traram-se antes na questão da redenção do homem como
um indivíduo isolado que na redenção de todas as coisas.
A teologia de P. Tillich está centrada no problema de
supremo interesse na área da existência que inclui o sa-
grado e o profano, voltando-se mais para o papel existen-
cial do homem na história e sua posição mais como um
ser isolado ante Deus que como uma parte da cifªÇão e
no interior do próprio cosmos, considerado como hiero-
fania. Ainda mais afastados desta questão encontram-se
teólogos como K. Barth e E. Brunner, que ergueram uma
muralha de ferro em torno do universo da natureza.47
Acreditam que a natureza nada pode ensinar ao homem a
46 "Assim, o quadro do universo apresentado pela ciência moderna
torna-se cada vez mais complexo, obscuro e longínquo com relação
ao quadro natural. Não obstante, independente de qualquc1· questão
quanto a sua relativa validade, ele existe como fator influente no pen-
samento contemporâneo; assim sendo, ele é parte de nós mesmos e parte
do universo. Sua causa final, portanto, não pode ser outra que a
causa final de todas as coisas, e como todas as coisas, incluindo o
quadro natural, o quadro científico pode ser visto como um simbolo de
sua causa, quer dizer, como um reflexo parcial dessa causa sobre o pla-
no das aparências. Mas quando se considera apenas sua forma exterio-
rizada, essa forma transforma-se num véu quase impenetrável, ocul-
tando as causas; contudo, caso seu significado simbólico possa ser
descoberto, o mesmo pode revelar a causa." Lord Northbourne, "Pictu-
res of the Universe", p. 275.
47 'C'm dos seguidores desta escola, K. Heim, mostrou algum inte-
resse em ciência, como se vê em seu livro Christian Faith and Natural
Science: Nova York, 1953. Mas os problemas mais profundos envol-
vidos não foram pesquisados a fundo, especialmente quando diziam
respeito à questão do significado simbólico dos fenômenos naturais
e seu sentido religioso.
0 PROBLEMA 39

respeito de Deus e, portanto, não é de interesse teológico


ou espiritual.48 Da mesma forma, para os desmitificadores
como R. Bultmann, ao invés de penetrarem no significado
interno do mito, como símbolo de uma realidade trans-
cendente que diz respeito à relação entre o homem e Deus,
na históril1_como no cosmos, negam também o significado
espiritual da natureza, reduzindo-a à categoria de um ce-
nário artificial e desprovido de sentido para a vida do
homem moderno.
Não obstante, há uns poucos que perceberam a im-
portância da natureza como base para a vida religiosa e
de umar~ia r~UgJo_sa__ da natureza como elemento na
vida integral de um cristão.49)Compreenderam a necessi-
dade de acreditar que a criação exibe a marca do Criador
a fim de poderem ter uma fé sólida na própria religião. 50
Já passou o dia em que se acreditava, pelo menos em
muitos centros acadêmicos de destaque 1 que a ciência, em
sua marcha progressiva, destruiria as muralhas da teolo-
gia, cujos princípios imutáveis apresentam-se, do pomo
de vista de um dinamismo sentimental, como dogma rígido
e empedernido.51 Há cientistas que compreendem e res-
peitam a importância da disciplina teológica, enquanto
certos teólogos cristãos têm afirmado que a visão científi-
ca moderna, devido a seu rompimento com a hermética
concepção mecanicista da física clássica, é mais compatível
com o ponto de vista cristão.52 Este argumento tem sido de
4R Pode-se assinalar, de passagem, que certamente não é acidental
o fato de a teologia barthiana mostrar desinteresse pelo estudo tantv
da natureza quanto da religião comparativa. Tanto o cosmo como as
outras religiões aparecem como um domínio "natural" à parte do do-
mínio da graça, do qual a teologia cristã deve se ocu~ar.
49 Ver, por exemplo, J. Oman, The Nature and the Supernatural~
Cambridge, 1936.
r.o "Somente uma crença inabalável de que 'as coisas que são feitas'
a despeito da Queda e suas conseqüências, realmente manifestam ~
verdadeira natureza de seu Fazedor pode fornecer algum fundamento
para uma fé razoável." C. E. Raven, Natural Religion and Christian
Theology: Cambridge, 1953, p. 137.
"1 Referimo-nos aqui ao ponto de vista tão característico dos escritos
da passagem do século, tal como A Histor11 of the TVarfarc of Science
and Theology in Christendom, de A. D. White, 2 vols.: Nova York
1960. '
"2 "Mas é imediatamente evidente que a descrição geral da estrutura
do universo, como apresentada pela ciência nos dias atuais é muito
mais simpática à hipótese teísta, como a temos considerad;, do que
eram as teorias científicas prevalecentes nos séculos dezoito e rleze-
nove." ,V. Temple, Nature, Man and God: Nova York, 1949, p. 474.
40 0 HO.\fEl\1 E A NATUREZA

fato veiculado em tantos setores, que as pessoas começa-


ram a se esquecer de que a visão secularizada da ciência
moderna, uma vez retirada das mãos dos cientistas pro-
fissionais e apresentada ao público, constitui um grande
obstáculo à compreensão religiosa das coisas.
Apesar de, num determinado sentido, a própria des-
truição de uma concepção monolítica e mecanicista do
mundo ter dado um certo "espaço" para outras opiniões
"respirarem", a atual popularização das teorias científicas
e da tecnologia privou ainda mais o homem de um con-
tato direto com a natureza e de uma concepção religiosa
do universo. O "Pai nosso que está no céu" torna-se in-
compreensível a uma pessoa que a sociedade industriali-
zada privou da autoridade patriarcal de um chefe de
família e àquele para quem o céu perdeu o significado
religioso e deixou de estar em qualquer "lugar", graças
aos vôos dos cosmonautas. Apenas com respeito à relação
teórica entre ciência e religião é que se pode dizer, de certa
forma, que a visão científica moderna é menos compatí-
vel com o Cristianismo que as visões dos séculos XVIII
e XIX.
Sem esquecer o caráter transitório das teorias cientí-
ficas, outros escritores cristãos alertaram contra a háoil
e muito simples harmonia entre religião e ciência, em que
se fazem comparações superficiais entre os dois domínios.
Com demasiada freqüência apresentam-se os princípios e
crenças da religião, que são transcendentes e imutáveis,
como estando em conformidade com os últimos achados
da ciência, mais uma vez seguindo a famosa tendência_ de
reduzir o mais grandioso 1:to mais__lnfenor.s3 ÃTein do mais,
no momento em que este processo--a-e- -colocar a teologia
em conformidade com as teorüls C1el1tíficas correntes é
cumprido e a religião se . faz"razóável" para parecer
"científica", as próprias teorias científicas já saíram de
moda. Neste domínio, pode-se dizer na pior das hipóteses
que no seio de um grupo pequeno, porém significativo, há
uma reação contra a atitude simplista que prevaleceu em
certos períodos do século XIX, embora ao nível das

5 :l "Não posso pensar em nenhum desserviço maior que pudesse ser


feito à religião cristã do que limitá-la com argumentos baseados em
confusões verbais ou com visões científicas que são meramente tem-
porárias." Mascall, Christian Theology and Natural Science, p. 166.
0 PROBLEMA 41

massas haja um refúgio muito maior na religião, ante o


que se apresenta como científico, que em qualquer época
anterior.
Todavia, outros escritores enfatizaram a íntima rela-
cão entre Cristianismo e ciência ao assimilarem que mui-
tas das ~uposições fundamentais da ciênci~ como a. cren-
ça na ordenação do mundo, a inteligibilidad,e do umverso
natural e a confiabiltd_ade_ da razão humana, dependem
àavísao religiosa e, mais especificamente, cristã de um
mundo criado por Deus, onde o Verbo se fez carne.54 Al-
guns relacionaram o problema da unidade e multiplicidade
na natureza à Trindade do Cristianismo,s5 enquanto outros
insistiram que somente o Cristianismo, em um sentido
positivo, tornou possível a ciência.56 Mas, em todos estes
casos, é de se admirar a validade total desta afirmação,
se tomarmos em consideração a existência das ciências da
natureza em outras civilizações (especialmente a islamita).
Estas ciências insistem antes na unidade que na trin-
dade. Além disso, temos de considerar o estrago causado
pela ciência moderna e suas aplicações no seio do próprio
universo do Cristianismo.
De forma mais específica, a relação entre sujeito e
objeto, como sustenta a ciência moderna, é tida no cris-
tianismo como derivada da relação entre o espírito e a
carne.57 A ordem do Universo é identificada com a Mente

54 Ver Smethurst, Modern Science and Christian Beliej, pp. 17-18.


"Somente a fé católico-cristã total pode fornecer tanto as crenças
teológicas c filosóficas necessárias que se requer para justificar o
estudo da natureza do universo pelo método científico, como também
o ímpeto e a inspiração que impelirão o homem a levar a caho este
estudo." lbid., p. 20.
55 Ver por exemplo R. G. Collingwood, Essay on Metaphysics: Ox-
ford, 1940, p. 227.
5G "Estou convencido de que só o Cristianismo tornou possíveis tanto
a ciência positiva quanto as técnicas." N. Berdyaev, The M eaning of
History: Londres, 1935, p. 113.
57 Ver \V. Temple, Natzwe, Man and God, p. 478, onde o autor acres-
centa que o cristianismo é capaz de dominar a matéria, precisamente
porque, em contraste com outras religiões como, por exemplo, o hin-
duísmo, é o cristianismo "a mais declaradamente materialista de todas
as grandes religiões".
"Creio que a distância que existe, na mente do homem moderno,
entre o sujeito e o objeto é um legado direto da distância do cristia-
nismo para com o mundo." von "\Veizsacker, The History o/ Natw·e,
p. 190.
42 0 HOMEM E A NATUREZA

Divina,5a e o cientista é considerado como aquele que está


descobrindo, em suas pesquisas científicas, a mente de
Deus.59 O próprio método científico foi chamado de um
método cristão de se descobrir a mente de Deus. 60
É de interesse mais central a nosso problema a ten-
tativa de alguns teólogos que foram de encontro ao curso
das tendências gerais modernas da teologia para trazer à
vida, mais uma vez, o caráter sacramental de toda criação
e devolver às coisas a natureza sagrada de que as formas
recentes de pensamentos as privou. A importância do uni-
verso criado como um sacramento que revela a dimensão
da-vida religiosa foi reafirmada por este grupo,61 e foi logo
assinalada a verdade esquecida de que, do ponto de vista
cristão, a encarnação implica a natureza sacramental das
coisas materiais, sem de forma alguma destruir o nexo
causal entre as coisas.62 Reafirmou-se que a única relação
·€ntre o espiritual e o material, que pode em um sentido
profundo ser chamada cristã,sa é aquela em que o aspecto
exterior e material das coisas atua como um veículo para
a graça interior e espiritual que reside em todas as coisas,

"~ Este ponto <1' v sta é especialmente desenvolvi elo por G. F. Stout
em seu livro God and N aturr: Cambridge, 1952.
r>n Ver por exemplo Yarnold, The Spii·itual Crisis of the Scientific
A,qe, pp. 54 e ss.
no "Assim, o método científico deve ser visto como um métod0 que
os cristãos empregam para obtc1· uma melhor compreensão da sah~d·l­
ria ele Deus e das maravilhns d~ Sua Criação ... " Smethurst, Modern
Scir•ncc and Christian Belief, p. 71.
61 Vem-nos à memória a expressão de Oliver Chase: "Para a huma-
nidade há dois únicos sacramentos que revelam o significado e trans-
mitem a experiência da realidade: são eles o Universo criado e a
pessoa de Jesus Cristo" (citado por Raven, Natural Religion and Chris-
tian Theology, p. 105). Isto é reminiscente dos primeiros teólogos pro-
testantes americanos, como Jonathan Edwards, que se ocupavam do
sentido teológico da natureza.
62 Ver A. N. Whitehead, Science and the Modern Wo1'id, Capítulo L
63 "Não simplesmente a relação de motivo e conseqüência, nem de
causa e efeito, nem de pens,mento e expressão, nem de propósito e
instrumento, tampouco de fim e meios; mas é tudo isso de uma só
vez. Precisamos arranjar-lhe um outro nome; e há em algumas tra-
dições religiosas um elemento que, segundo a crença dos adeptos dessas
tradições, se relaciona tão intimamente com aquilo que desejamos. que
podemos de forma mais apropriada chamar esta concepção da relação
do eterno com a história, do espírito com a matéria, de concepção sa-
cramentaL" Temple, Naf11re, Man and God, pp. 481-2.
0 PROBLEMA 43

pela virtude de serem elas criadas por Deus. 64 Para que


Deus seja o Criador e também eternamente Ele mesmo,
Sua criação tem de ser sacramental tanto para Suas cria-
turas quanto para Ele próprio.65
Nos escritos deste pequeno grupo de teólogos, que
dedicaram alguma atenção à questão da relação do ho-
mem com a natureza, o aspecto revelado de todo o Uni-
verso foi trazido à baila. Se a criação não fosse de certa
forma revelada, não haveria revelação possível.66 Por .con-
seguinte, toda criação tem de algum modo que partilhar
do ato de redenção, da mesma forma que toda criatura é
afetada pela corrupção e pecado do homem, como foi
declarado por S. Paulo na Epístola aos Romanos (Capítulo
VIII). A salvação plena do homem é possível quando não
somente o próprio homem, mas todas as criaturas estive-
rem redimidas.G7
Este ponto de vista acima proposto, que poderia ter
a mais profunda significação na relação do homem com a.
natureza, foi, no entanto pouquíssimas vezes compreen-
dido e aceito. Mesmo aqueles que se dedicaram mais a.
uma teologia sacramental falharam, na maioria dos casos,
em aplicá-la ao universo da natureza. Como resultado,
aqueles que ainda sentem e compreendem o significado
do sagrado, ao menos nos ritos religiosos, falharam em
estendê-lo ao reino da natureza. A visão sacramental ou
simbólica da natureza - caso compreendamos os símbolos

6·1 At1·avés dos sacramentos, "O sinal •xtemo e visível é um ~


!!_ecPssário para transmissão da graça interna e espiritual" lbiil
p. 482.
u;; "Sua criação é sac1·amental de Si mesmo às Suas criaturas; mas
ao realizar efetivamente essa função torna-se sacramental de Si para
Si mesmo - o meio por onde Ele é eternamente aquilo que eterna-
m.ente Ele é." lbid., p. 495.
66 "0 próprio mundo, que é a proferição auto-exprimível do Verbo
Divino, transforma-se em uma verdadeira revelação, onde o que re-
sulta não é a verdade a respeito de Deus, mas o próprio Deus." lbid.,
p. 493.
"Ou todas as oconênc;as são, até certo grau, revelações de Deus,
ou, por outro lado, não há absolutamente tal revelação; dado que as
condições da possibilidade de qualquer revelação exigem que nada hou-
vesse que não fosse revelação. Somente se Deus se revela no nascer·
do sol pode Ele revelar-se no nascimento de um filho do homem a
partir da morte"; ibid., p. 306.
1;1 "O teatro da rer!enção é o teatro da criação." J. Sittler, The Ecn-
logy of Faith, p. 25.
44 0 HOMEM E A NATUREZA

em seu verdadeiro sentido - em grande parte não fOl


propagada pelas escolas modernas de teologia cristã. Na
realidade, no inverso está a verdade. Na medida em que o
ponto de ênfase predominante foi a redenção do indivíduo
e o desinteresse pela "redenção da criação", a maior parte
do pensamento religioso moderno ajudou a secularizar a
natureza e dobrou-se para se entregar aos ditames da
ciência no domínio natural.
Ao se discutir os pontos de vista de autores cristãos
sobre as ciências da natureza, não se pode deixar de men-
cionar a escola do neotomismo.. que desafiou a reivindica-
ção de totalidade e exclusividade dos métodos científico3
e aplicou-lhes critérios lógicos rigorosos. 68 O princípio mais
importante da posição neotomista foi mostrar que a ciên-
cia é limitada por seus métodos, não se podendo aplicá-la
a uma solução de problemas metafísicos. Não é possível
utilizar-se os mesmos métodos e proceder-se da mesma
maneira nos domínios da ciência e da metafísica. Dado
que, para citar S. Tomás, "É um pecado contra a inteli-
gência querer proceder de maneira idêntica em domínios
tipicamente diferentes - físico, matemático e metafísico
- do conhecimento especulativo".6 9
O conhecimento do Universo em seu todo não é da
competência da ciência,7o mas da metafísica. Além disso,
os prfncípios da metafísica permanecem independentes das
ciências e não podem de forma alguma ser refutados por
elas. 71 É preciso perceber as diferentes formas de conheci-
mento e- colóeá=Ias dentro de seus próprios limites. Na rea-
lidade, o resultado mais importante da visão neotomista
não foi tanto fornecer uma nova interpretação espiritual
cs Ver por exemplo os escritos de J. Maritain, J. 'Veisheml c A. G.
Van Melsen, especialmente deste último The Philosophy of Na fure:
Pittsburg, 1961; também V. E. Smith (ed.), The Logic of Sciencc:
Nova York, 1963, contendo ensaios de M. Adler, J. A. Weishdpl e
outros sobre a filosofia neotomista da ciência e da natureza.
69 Citado por J. Maritain em seu ensaio "Science, Philosophy and
Faith", em Science, Philosophy and Religion, a Symposimn, p. 171.
70 "Mas a descrição de tod" o c"smo, "m sua complexidade total, é
uma tarefa que não compete p1·opriamente à ctencíá.-..- F. R. S.
Thompson, Science a,nd Common Sense: Londres, 1937, p. 54.
71 " em princípio, teses de natureza genuinamente metafísica não
estão sujeitas à verificação pelos sentidos, de forma que mesmo inú-
meras pesquisas experimentais jamais poderão desalojá-las de sua
posição." H. J. Koren, An Introduction to the Philosophy of Nature:
Pittsburg, 1960, p. 181.
0 PROBLEI\IA 45

da natureza e devolver-lhe seu caráter sagrado e simbólico,


mas sim fornecer à ciência uma filosofia da natureza e
mostrar, através de argumentos filosóficos, -as
limitaç()es
existentes na abordagem científíca. Foi para salvaguardar
a independência da teologia e da metafísica das ciênc1as
experimentais.n Quaisquer que sejam seus defeitos, por
ser muito racionalista e não simbólica e metafísica o sufi-
ciente no verdadeiro sentido, esta escola pelo menos afir-
mou e declarou uma simples verdade que está sendo es-
quecida cada vez mais nos dias atuais, a saber, que a
faculdade crítica da inteligência e da razão não pode ser
subjugada aos achados de uma ciência experimental, que
esta mesma razão tornou possível.
Se lançarmos uma rápida olhadela sobre todo o pano-
rama da relação entre ciência, fUosofia e teologia, como
o fizemos de maneira parca e sumária, ficaremos imedia-
tamente cônscios da falta de uma área comum entre estes
três domínios. A doutrina metafísica, ou aquela gnose que
por si só pode ser a área de encontro de ciência e religião,
foi esquecida, e como resultado a hierarquia do conheci-
mento se fragmentou em uma massa confusa onde os
segmentos não estão mais unidos organicamente. Ao passo
que a filosofia ou capitulou e se rendeu à ciência, ou reagiu
totalmente contra ela, a teologia ou se recusou a consi-
derar o domínio da natureza e suas ciências ou, por sua
vez, adotou passo a passo os achados e métodos das ciên-
cias, com o objetivo de criar uma síntese. Isto sucedeu
quase sempre de forma tão superficial quanto transitória.
Além disso, um desentendimento entre as ciências moder-
nas da natureza e o conhecimento da ordem natural, que
é de significação teológica e espiritual, conduziu a intermi-
náveis controvérsias e incompreensões.73
Por esta mesma razão e também a despeito de toda
atividade das ciências naturais não há nos dias correntes
uma filosofia da natureza. Enquanto a ciência medieval da

72 Isto pode ser encontrado principalmente nos escritos de um deg-


tacado porta-voz desta escola, J. Maritain. Ver em especial seu livro
Philosophy of Nature: Nova York, 1947, e The Degrees of Knowledge
(trad. de B. Wall e M. Adamson) Nova York, 1938.
7:1 "Na verdade, nossas controvérsias surgiram em um ponto bem
distante do desentendimento entre a ordem da natureza e o campo
da ciência." Ravcn, Natural Religion and Christian Theology, I, Scien-
ce and Religion, p. 6.
46 Ü 1-Jü:\IDI E A NATUREZA

física, que foi realmente uma filosofia da natureza, se tor-


nou uma ciência dentre outras ciências naturais, nada
tomou o seu lugar como sustentáculo de todas as ciências
específicas da natureza. Embora a necessidade de uma
filosofia da natureza seja sentida mesmo por alguns físicos
(e muitos se voltam para a história da ciência a fim,
exatamente, de receber inspiração para métodos e filo-
sofias que poderiam ser de auxílio à ciência moderna) •
não existe ainda uma filosofia aceita da natureza, a des-
peito das filosofias propostas por muitos pensadores mo-
dernos como Whitehead e Maritain.74
Pode-se dizer, com pesar ainda maior, que não há
uma teologia da natureza que possa fornecer satisfatoria-
mente uma ponte espiritual entre o homem e a natureza.
Alguns perceberam a necessidade de harmonizar a teolog_ia
cristã, e a filosofia natural a fim de gerar uma teologia da
natureza, 75 mas-tal tarefa--não foi realizada, e nem poderia
ser diferente, até que a teologia seja compreendida à luz
intelectual dos primitivos padres da Igreja, os metafísicos
cristãos da Idade Média, tais como Erigena e Eckhart, ou
no sentido da teosofia de Jacob Boehme. Enquanto a teJ-
logia for compreendida como uma defesa. rg,çio_I}al dos_prin~
I cípios da fé, não haverá possibilidade de uma verdadeira

teologia da natureza, não haverá meio de penetrar no


significado interno dos fenômenos naturais e de torná-los
espiritualmente transparentes. Somente o intelecto pode
penetrar a fundo; a razão pode apenas explicar. --
Esta ausência de sentido da transparência das coisas,
da intimidade com a natureza como um cosmo Q\le trans-
mite ao homem um significado que lhe diz respeito, deve-se
év1dehtemente à perda do espírito contemplativo e simbo-
lista que vê antes símbolos que,fatos. O quase desapareci-
mento da gnose, cotno entendida em seu verdadeiro sen-
tido, um conhecimento unitivo e iluminador, sua substi-

74 Deixando de lado Whitehead e sua escola e uns poucos filósofos


como Collingwood, que mostraram interesse na natureza, nenhuma ou-
tra escola filosófica foi tão insistente na necessidade de uma filosofia
da natureza e em tentar proporcionar uma semelhante filosofia ba-
seada no tomismo. A fenomenologia também proporciona em si mesma
uma filosofia da natureza-;-masnenhuma dessas escolas encontrou am-
pla ou total aceitação.
75 Ver, por exemplo, Yarnold, The Spiritual Crisis of the Scientific
Age, p. 23.
0 PROBLEMA 47

tuição por uw misticismo sentimental e a gradativa nega-


ção das teologias apofática e metafísica em favor de uma
teologia racional são~- todos, efeitos do mesmo evento
que se produziu no âmago da alma humana. Em grande
parte, a visão simbólica das coisas está esquecida no Oci-
dente, sobrevivendo apenas entre os povos de regi'ões dis-
tantes,7B enquanto a maioria dos homens modernos vive
em um mundo de fenômenos dessacralizados, cujo único
significado é ou as relações quantitativas expressas em
fórmulas matemáticas que satisfazem a mente científica
ou a utilidade material destas para o homem considerado
como um animal de duas pernas sem um destino que
ultrapasse sua existência terrena. Mas para o homem como
ser imortal, estas relaç•ões quantitativas não contêm ne-
nhuma mensagem direta. Ou antes, pode-se dizer que elas
ainda contêm a mensagem, mas já não existe a faculdade
apropriada para decifrá-la.
Parece haver neste deslocamento do contemplativo ao
passional, da mentalidade factual à simbolista, uma queda
que, no sentido espiritual, corresponde à queda original
do homem. Do mesmo modo que a queda de Adão do Pa-
raíso implica que a criação, que fora até então ino-
cente, amistosa e também interior, tornou-se conseqüente-
mente hostil e exteriorizada, assim a mudança de atitude
ocorrida entre o homem pré-moderno e o homem moderno
em relação à natureza tem como conseqüência um estado
mais avançado nesta alienação. A relação eu-você é des-
truída para se tornar eu-ele, sendo que nenhuma dose do
uso pejorativo de termos como "primitivo", "anímico" ou
"panteístico" pode fazer com que se esqueça a perda acar-
retada nesta mudança de atitude. Nesta nova queda, o
homem perdeu um paraíso como uma compensação por
ter descoberto uma nova terra plena de riquezas aparen-
tes, senão ilusórias.77 Perdeu o paraíso de um mundo de

76 "O sentimento da santidade da natureza sobrevive hoje em dia


na Europa, principalmente nas populações rurais, dado que entre elas
ainda existe um Cristianismo vivido como liturgia cósmica." Eliade,
The Sacred anel the Profane . .. , p. 178. ,
77 "Esta transição do objetivismo ao subjetivismo reflete e repete,
a sua maneira, a queda de Adão e a perda do Paraíso. Ao pe1·der a
perspectiva simbolista e contemplativa, fundamentada tanto na inteli-
gência impessoal quanto na transparência metafísica das coisas, o
homem ganhou as riquezas ilusórias do ego; o mundo de imagens di-
48 0 HOMEM E A NATUREZA

sentido simbólico para descobrir uma terra de fatos que


consegue observar e manipular à vontade. Mas neste novo
papel de uma "divindade sobre a terra", que não mais
reflete seu arquétipo transcendente, está em grande pe-
rigo de ser devorado por esta mesma terra, sobre a qual
parece exercer completo domínio, a menos que seja capaz
de readquirir uma visão do paraíso que perdeu.
Pois enquanto isso a concepção totalmente quantita-
tiva da natureza, que graças à tecnologia começou a domi-
nar toda a vida, vai gradativamente exibindo fendas em
suas paredes. Alguns mostram-se exultantes perante este
fato, acreditando que é a ocasião de uma reafirmação da
visão espiritual das coisas. Mas, na realidade, quase sem-
pre as fendas são preenchidas pelos mais negativos "resí-
duos físicos", e as práticas das "ciências ocultas", que
uma vez desligadas da graça de uma espiritualidade viva
tornam-se a mais insidiosa das influências e muito mais
perigosas que o materialismo. 7s São antes a água que dis-
solve do que a terra que solidifica. Entretanto, não são
as "águas superiores", mas as "águas inferiores", para uti-
lizarmos o muito significativo simbolismo da Bíblia. Não
é por mero acaso que; na maioria dos círculos pseudo-es-
piritualistas1 se transforme grande parte da síntese entre
ciência e religião em uma "nova ordem espiritual", como
se o homem pudesse criar, por seus próprios meios, uma
escada que conduzisse ao céu ou, para falarmos em termos
cristãos, como se pudesse unir-se à natureza de Cristo sem
que a própria natureza de Cristo se tornasse homem.
O que se faz necessário é que se preencham as fendas
na parede da ciência com a luz que vem do alto, e não com
a escuridão que vem de baixo. A ciência tem de ser inte-
grada em uma metafísica que venha do alto, de forma
que seus fatos indiscutíveis também possam ganhar uma

vinas tornou-se um mundo de palavras. Em todos os casos desta esp~­


cie, o céu - ou um céu - se fecha acima de nós sem notarmos o
fato e, em compensação, descobrimos uma terra há muito desprezada,
ou assim nos parece, uma terra natal que recebe seus filhos de braços
abertos e nos quer fazer esquecer todos os paraísos perdidos. "
Schuon, Light on Ancient Worlds, p. 29. Ver também Eliade, op. cit.,
p. 213.
78 A respeito deste assunto, ver Guénon, The Reign of Quantity.
especialmente o Capítulo XXV, "Fissures in the Great Wall".
0 PROBLEMA 49'

significação espiritual.79 E, por ser imperativa, a necessi-


dade de tal integração é sentida em diversos pontos do
globo,so sendo que muitas pessoas dotadas de certo grau
de perspicácia olham para além da perigosa síntese psico-
física de hoje em dia, à qual é comumente adicionado um
tempero de "filosofia" pseudo-oriental. Uma síntese verda-
deira permaneceria fiel aos mais profundos princípios da
revelação cristã e às mais rigorosas exigências da inteli-
gência. Esta tarefa só pode ser cumprida pela _redeª~Q­
berta do significado espiritual da natureza. Esta própria
descoberta depende da lembrança dos aspectos mais inte-
lectuais e metafísicos da tradição cristã, que hoje se en-
contra esquecida em tantos círculos, juntamente com a-
consciência das causas históricas e intelectuais que cria-
ram c?Iresente impasse.- É por isso que temos de nos vol-
tar primeiramente para a consideração de certas fases da
história da ciência e da filosofia no Ocidente, na medida
em que esta se relaciona com a tradição cristã, antes de
iniciarmos a discussão dos princípios metafísicos e cosmo-
lógicos nesta tradição e nas do Oriente, que podem atuar
como ajuda à memória daqueles que partilham da visão
cristã do mundo.

f! i' (' ;/ i
~; (~j-·.fJ.,
79 "Sugeri que a explicação científica 'vinda de baixo' tem de ~et'
suplementada por alguma coisa bem mais ampla e profunda: a inter-
pretação vinda de cima. Até que assim se proceda, nossa autoridadP.
sobre a verdade essencial cristã será débil e freqüentemente ineficaz."
Yarnold, The SpiTitual CTisis of the Scientific Age, p. 7.
so "A divisão de trabalho na aquisição de conhecimento, embora gere
novas ciências, já é um reconhecimento da unidade e integridade de
todo conhecimento e um desafio a expô-lo. Esta é uma abordagem bem
mais diferente do que tentar colocar juntos, como partes de um todo,
os resultados específicos das ciências específicas oü, utilizando os re-
sultados de uma delas, moldar os assuntos das demais. A natureza,
e não o talento do homem, concede ao conhecimento seu caráter inte-
gral. Isto sugere uma ciência da natureza que não é física, nem quí-
mica, ou coisa parecida, tampouco ciências sociais e similares. '"
F. J. E. Woodbridge, An Essay on NatuTe: Nova York, 1940, p. 58.
CAPITULO II

As Causas Intelectuais e Históricas

Grande parte da culpa pelo abandono de outras concep-


ções de ciênci_a e pelo fracasso em apreender-se a ver-
dadeira significação das cosmologias primitivas e medie-
vais e de oi.itrai ciências da natureza recai sobre a maneira
pela qual estas ciências são estudadas nos dias atuais.
A investigação da história da ciência, que durante este
século se tornou uma importante disciplina acadêmica,
concentrou-se mais em glorificar a ciência moderna ou
em buscar suas raízes históricas que em fazer um estude
em profundidade das concepções da natureza em diferen-
tes civilizações e períodos da história ou em penetrar na
significação das ciências primitivas e medievais. Neste
campo, a maioria dos estudiosos voltou a atenção exclusi-
vamente para aqueles elementos e fatores das ciências pri-
mitivas e medievais, e mesmo da ciência renascentista, que
se assemelham, antecipam ou que influenciaram a ciência
rnoderna.B1 Na realidade, esta última foi levada em conta
pela maioria dos historiadores da ciência como a única
forma legítima e possível da ciência da natureza, e todas
as outras ciências cosmológicas foram consideradas cu
antevisões desta forma de ciência ou divergências que pu-
seram obstáculos à ciência moderna. O uso da palavra
81 "Os historiadores da ciência, até recentemente, cometeram o mes-
mo erro que os historiadores da Igreja primitiva dos séculos quatro
e cinco; escreveram como se os acontecimentos de importância do pe-
ríodo antecedente fossem aqueles que previram e promoveram direta-
mente a ortodoxia corrente em seus próprios dias." Raven, Natural
Religion and Christian Theology, I, p. 7.
As CAUSAS INTELECTUAIS E HISTÓRICAS 51

"ciência", em inglês, é especialmente significativo e indi-


cativo do ponto de vista em questão.82
No entanto, não menosprezamos a importância dos
estudos feitos neste domínio da história da ciência, onde.
através da abordagem histórica, se descobrem as raízes de
uma determinada ciência e sua formação passada. O tra-
balho pioneiro de homens como Berthelot, Mach, Duhem,
Sarton, Tannery, Thorndike e outros contribui imensa-
mente para nossa compreensão da atividade científica de
outras eras. Mas, poucos dentre estes podem ajudar a re-
solver o problema da crise moderna do confronto homem
e natureza. Isto porque em lugar de se tornarem juízes
independentes das ciências primitivas e medievais e de
exercerem o papel de observadores objetivos, ou mesmo de
críticos, da ciência moderna, estes autores adotaram com-
pletamente o ponto de vista de que a única forma possível
e legítima de ciência é a moderna.
Nas fileiras profissionais dos historiadores da ciência,
especificamente antes dos anos cinqüenta, houve um sin.
guiar abandono do significado simbólico das ciências pri-
mitivas e medievais e, no exame dos textos mais primiti-
vos, uma tendência a ler significados e conceitos próprios
à ciência moderna. Muitos escreveram a respeito dos con-1
ceitos de matéria e movimento do mundo antigo, como se
naqueles dias as pessoas sustentassem os mesmos pontos
de vista sobre o universo físico que o dos tempos atuais.
Os filósofos pré-socráticos foram aclamados como precur-
sores da física moderna, como se a água de Tales fosse a
água da química moderna; e os babilônicos foram consi-
derados como os primeiros astrônomos no sentido mo-
derno, embora a significação religiosa de suas observa-
ções astronômicas esteja completamente esquecida. Não há
dúvida de que a matemática dos babilônios seja um capí-
tudo brilhante na história da matemática, mas exitamos
quanto a ser "cientificamente" correto falar da ciência ba-
bilônica, como se seu único significado fosse aquele pelo

·'~ Embora ciência em ing-lês devesse logicamente significar a scientin


do latim ou Hli.ssenschajt do alemão, esta palavra veio a adquirir um
significado muito rest1·ito na maioria dos luga1·es, deixando a língua
inglesa sem um termo ge1·al correspondente a TVissenschaft ou a scirn-
tia. Recentemente, em certos círculos, reinstaurou-sc o significarlu
mais profundo de "ciêncb", mas este significado mais universal cst:\
longe ele ser aceito e empregado de forma ampla.
52 o Hm.1E:II E A NATUREZA

qual os matemáticos modernos a compreendem. A signi-


ficação simbólica dos sete planetas, seu deslocamento e sua
re1aÇão com o domínio terrestre é, para aqueles que a
entendem, tão exata quanto aquela parte da ciência babi-
lÔnica que é tratada como "ciência exata" através de pa-
drões a ela impostos pelos estudiosos modernos, que sus-
tentam uma visão totalmente estranha à dos babilônios.
Por outro lado, poderíamos questionar se a ciência
lslamita é apenas aquele elemento que contribuiu para o
surgimento da ciência moderna; ou, quando falamos de
ciência medieval, se deveríamos nos concentrar somente
naqueles teólogos e filósofos dos séculos XIII e XIV
como Ockham, Oresme, Buridan, Grosseteste e outros, que
anteciparam as obras de matemática e física de Bene-
detti, Galileu e outros fundadores da ciência moderna. A
existência de interesse em dinâmica e mecânica entre os
últimos nominalistas medievais é de justa importância,
mas com a mesma certeza podemos também declarar que
isto não é a ciência medieval em sua íntegra, e sim a mera
visão de historiadores modernos da ciência em relação
ao que esta era, na realidade. Se desejamos utilizar a his-
tória da ciência de forma benéfica, para resolver os graves
problemas gerados pela ciência moderna e suas aplica-
ções, não podemos nos satisfazer apenas com o método
corrente de se estudar esta disciplina. Temos também de
estudar as ciências da natureza de outras civilizações e
épocas, independente da contribuição que estas oferecem
ou não à ciência moderna. Temos de considerar estas ciên-
cias como visões independentes da natureza, algumas das
quais podem ser de considerável valia na solução dos pro-
blemas contemporâneossa e podem servir de base para a
crítica de certos aspectos da ciência moderna. Portanto,
é sob esta luz que nos voltamos paraa.--h:l.stória da ciência,
na esperança de descobrir as causas intelectuais e históri-
cas da presente situação.

83 Felizmente, nos últimos anos, alguns historiadores da ciência vol-


taram sua atenção para o estudo da ciência antiga e medieval no
aspecto em que esta se relaciona à visão total do mundo po1· parte
das culturas daqueles tempos, em lugar de vê-la como prelúdios me-
ramente históricos da ciência moderna. Devido à falta de conheci-
mento metafísico e ao desinteresse pela ciência do simbolismo, esta
abordagem não foi amplamente divulgada.
As CAUSAS lNTHECTUAIS E HISTÓRICAS 53

A base histórica tanto da própria ciência quanto da~


filosofia e teologia gregas e cristãs é de importância para
qualquer discussão nos dias atuais, porque o indivíduo,
como também a cultura em que ele vive, inevitavelmente
trazem em seu íntimo as raízes profundas de seu passado.
O presente confronto homem e natureza, e todos os pro-
blemas filosóficos, teológicos e científicos a ele associados,
trazem em suas próprias essências elementos ligados à
civilização cristã,s4 como também à civilização da Antigüi-
dade que o Cristianismo veio substituir. Então, com o
propósito de descobrir as causas profundas dos problemas
atuais, somos forçados a retornar ao princípio e a consi-
derar as causas intelectuais e históricas que ainda existem
hoje em dia.
Os antigos gregos possuíam uma cosmologia semelhan-
te à de outros povos arianos da Antigüidade. Os elementos,
a própria natureza, ainda eram habitados pelos deusss. A
matéria estava viva com o espírito, e as substâncias espi-
rituais e corpóreas i1ãO tinham até então se tornado dis-
tintas. O surgimento da filosofia e da ciência no século VI
a.C. não foi bem a descoberta de um novo domínio, mas
uma tentativa de preencher o vazio criado pelo fato de os
deuses do Olimpo terem abandonado sua moradia ter-
rena. As idéias básicas de phusis, dike, nomos e coisas se-
melhantes, que são fundamentais para a ciência e filosofia
grega, são todos termos de significação religiosa e que
gradativamente foram esvaziados de sua substância espirL
tual.85 Os filósofos pré-socráticos, longe de serem os pri-
meiros exemplos dos naturalistas e cientistas modernos,
ainda estavam buscando a substância universal e que é a
um só tempo espiritual e corpórea, podendo eles muito
bem ser legitimamente comparados aos cosmologistas hin-
dus da escola do Samkhya. A água de Tales não é aquilo
que flui nos rios e riachos, e sim o substrato psíquico-es-
piritual e princípio do universo físico.
R4 É p1·atic~mente cle~nccess<'írio reafirmar, com0 tantos eruditos mfJ-
dernos insistem, no íntimo nexo entre ciência e pensamento cristã•J.
Alguns levam em consideração relações positivas, e outros, as rcaçõ~o;
cnt:'c os doi:o. Vc:· por exemplo Smdhu•·st, l.lndcrn Scicncc (!i!rl Chri.~­
tian Belief; J. MacMun-ay, Rcason and Emntion: Londres. 1933,
J. Baillie, Natural Sciencc and the Spirit.ual I~ife: Londi·es, 1951; c
S. F. Mason, Main Current8 of Scientific Thought: Nova York, 1956.
85 Ver F. Cornford, Principium .~apientia.e: Cambridge, 1952; c
W. Jaeger, Theology of the Ecirly Greek Philosophers: Oxford, 1947.
54 0 HOMEM E A NATUREZA

Com o aumento gradativo da decadência da religião


olímpica grega, a própria substância da natureza tornou-
se cada vez mais divorciada de sua significação espiritual,
e a cosmologia e a física encaminharam-se para o natura-
lismo e empirismo. Da mesma forma que a partir da di-
mensão órfico-dionisíaca da religião grega se desenvolveu
a escola pitagórico-platônica de filosofia e matemática,
assim, a partir do conjunto dos conceitos religiosos olím-
picos, esvaziados de seu significado, surgiram uma física
e uma filosofia natural que procuram preencher o vazio e
fornecer uma explicação coerente para um mundo não
mais habitado pelos deuses.s6 O deslocamento geral foi da
interpretação simbólica da natureza para o naturalismo,
da metafísica contemplativa para a filosofia racionalista.
I Com o surgimento de Aristóteles, teve início a filosofia
i tal como é entendida no Ocidente, tendo fim a outra tal
como é entendida no Oriente.s 7 Após Aristóteles, o racio-
nalismo tal como é expresso nas escolas estóica, epicurista
e outras subseqüentes, tornou-se preponderante no Impé-
rio Romano, um racionalismo que, entretanto, pouco con-
tribuiu de forma direta para as ciências naturais,ss dando
pouca importância à significação metafísica e teológica das
ciências. Foi neste ponto que a _meta,física neoplatônica, a
matemática neopitagóricg, e o ]1erm~_g_ se desenvolve-
ram, e onde o estudo das ciências matemáticas e naturais
foi em geral conduzido segundo os moldes de uma metafí-
sica que estava consciente da natureza simbólica e trans-

b6 Ver Cornford, From Religion to PhiloHophy: Nova York, 19S8;


também G. DiSantil!ana, Foundation of Scientific Thonght: Chicago,
1961.
87 Ver F. Schuon, Light on the Ancient lVorlds, p. 64.
~ 8 É evidente que o estoicismo teve muita importância durante a Re-
nascença e século XVII como arma contra o aristotelismo, contri-
buindo bastante para o suq.!:'imento da física do século XVII, como
foi mostrado por S. Sambursky em Physics of the Stoics: Nova York,
1959. Mas, não obstante, não se pode negar que as realizações cien-
tificas dos estóicos, epicuristas e escolas posteriores semelhantes, que
se disseminaram no Império Romano, dificilmente se comparam com
as de Aristóteles ou as da escola de Alexandria em geral.
É também interessante notar que após o próprio Aristóteles, sua
escola, entre outras coisas, passou do estudo do aspecto orgânico da
natureza, como é testemunhado nos trabalhos biológicos de Aristóteleo:
e na botânica de Teofrasto, ao interesse em mecânica e máquinas sim-
ples, como se vê na Mecânica pseudo-aristotélica.
AS CAUSAS INTELECTUAIS E HISTÓRICAS 55

parente das coisas. É significativo o fato de que a base


imediata da civilização ocidental, em seu aspecto externo
e formal, seja romana, enquanto a do Islame, recebida
da herança grego-helênica, vem principalmente de Ale-
xandria. O Cristianismo, quando foi chamado a salvar an-
tes uma civilização que umas poucas almas, se viu face a
um mundo onde o naturalismo, o empirismo e o raciona-
lismo grassavam de forma incontrolável, onde o conheci-
mento de ordem humana tornara-se divinizado e onde uma
excessiva atração pela natureza se apresentava aos olhos
do Cristianismo como uma blasfêmia que cegava aos ho-
mens a visão de Deus.
O Cristianismo, por conseguinte, reagiu contra este
naturalismo ao ressaltar a fronteira entre o sobrenatural
e o natural e ao tornar esta distinção tão estrita, a ponto
de destituir a natureza do espírito interior que emana de
todas as coisas. Para salvar a alma dos homens, naquela
atmosfera específica em que o Cristianismo se encontrou,
este teve de esquecer e negar ou, na melhor das hipóteses,
menosprezar a significação teológica e espiritual da natu-
reza. Por este motivo, o estudo da natureza a partir de um
ponto de vista teológico não ocupou um papel central no
Cristianismo ocidental.B9
Para preservar uma teologia correta, o Cristianismo
tornou-se adversário da "religião cósmica" dos gregos, a
ponto de alguns teólogos chamarem a natureza de massa
perditionis. No diálogo entre o cristão e o grego, onde am-
bas as partes estavam expressando um aspecto da ver-
dade, porém cada um uma meia-verdade, o cristão ressal-
tava a natureza de Deus, a alma humana e a salvação,
enquanto o grego enfatizava a qualidade "divina" do
cosmo e a categoria "sobrenatural" da própria inteligên-
cia que torna o homem capaz de conhecer o universo. 90

89 Ver Bavink, "The Natural Sciences", em Introduction to the Scien-


tifíc Philosophy of Today: Nova York, 1932, onde o autor escreve
que exceto por uns poucos teutões, S. Francisco de Assis, os místicos
alemães e Lutero, o Cristianismo negou o estudo da natureza exterior
ao ser humano. Ver especialmente p. 576.
9° Com referência ao debate e diálogo entre o cristão e o helenístico,
Schuon escreve: " ... uma meia verdade que tende a salvaguardar a
transcendência de Deus às expensas da inteligibilidade metafísica do
mundo é menos errônea que uma meia verdade que tende a salvaguar-
O HoMEM E A NATUREZA

Contra esta cosmologia o Cristianismo colocou sua teolo-


gia, e contra esta ênfase sobre o conhecimento salientou
a via do amor: Para superar o perigo do racionalismo
divorciado da gnose, fez do conhecimento o serviçal da
fé, ignorando a essência sobrenatural da inteligência da
natureza no íntimo do homem. Somente desta forma o
Cristianismo foi capaz de salvar a civilização e infundir
uma nova vida espiritual em um mundo decadente; mas
este processo deu lugHr a uma alienação em relação à
natureza que deixou sua marca na subseqüente história do
Cristianismo. Esta é uma das raízes profundas da presente
crise do homem moderno em seu confronto com a natu-
reza.
O caráter do Cristianismo antes como uma via de
amor que como de conhecimento necessita de um desta-
que especial. Ao encarar o homem antes como uma von-
tade que como uma inteligência, o Cristianismo ressaltou
o impulso da fé e do amor em detrimento do conhecimen-
to e da certeza. O conhecimento iluminador ou gnose 91 exis-
tiu no Cristianismo, mas sobretudo na periferia, especial-
mente quando diz respeito ao Cristianismo ocidental. O
conhecimento derivado da inteligência sem o auxílio da
fé veio a ser considerado como "conhecimento segundo a
carne", em conformidade com a concepção cristão do ho-
mem como vontade essencialmente pervertida e cuja ferida
tem de ser curada através do rito do batismo. Não havia
aquela ênfase sobre a essência sobrenatural da inteligên-
cia e nem sobre essa gnose ou conhecimento iluminador
que, a um só tempo, é origem e área de encontro da fé e
da razão. O gnóstico grego viu na capacidade de conhecer,
natural ao homem, um meio de atingir a própria Verdade
Absoluta. Pode-se ainda acrescentar que, de forma seme-
lhante, o Islam, segundo a estrutura do monoteísmo
abraâmico, fez da gnose sua parte central e deu ênfase
não tanto à vontade do homem, cuja ferida tinha de ser

dar a natureza divina do mundo às expensas da inteligibilidade ele


Deus". Light on the Ancient lVo1·lds, p. 60.
Sobre a luta entre a teologia cristã primitiva e a "religião cós-
mica" dos gregos, ver J. Pépin, Théologie cosmique et théologie chré-
tienne: Paris, 1964.
u t Evidentemente, entendemos por gnose aquele conhecimento unitivo
que salva e ilumina, que é inseparável do amor, e nao o gnosticismo
que foi banido como heresia pelos conselhos cristãos.
As CAUSAS bnn.ECTVAIS r: HisTÓRICAs 57

curada, e sim à inteligência, que tinha apenas de ser lem-


brada através da revelação de sua essência sobrenatural.
Em todo caso, devido a seu caráter de via de amor e
à base excessivamente naturalista em que foi chamado
para preencher o vazio espiritual criado pela decadência
das religiões greco-romanas, o Cristianismo traçou um ri-
goroso limite entre o sobrenatural e o natural, ou entre a
graça e a natureza. A teologia oficial deixou o problema
da natureza como domínio da vida religiosa fora de
seus interesses principais, especialmente após a formu-
lação dos credos e a exteriorização da via esotérica que é
o Cristianismo; isto inevitavelmente aconteceu, dado que
após seus primeiros dias o Cristianismo foi chamado para
salvar não somente uns poucos escolhidos, mas toda uma
civilização que estava ficando de lado. O elemento gnóstico
continuou a existir, mas apenas como um desenvolvimen-
to paralelo que periodicamente, através da história do
Cristianismo, manifestou-se sob diferentes formas. Este foi
o único elemento que permitiu ao Cristianismo desenvolver
na Idade Média uma cosmologia própria e adaptar às
suaE> necessidades as formas de cosmologia e ciências da
natureza que estivessem em concordância com sua pers-
pectiva.
A relação entre os princípios metafísicos e teológicos
de uma tradição religiosa como o Cristianismo e as ciên-
cias cosmológicas precisa ficar bem esclarecida. As ciên-
cias cosmológicas ou se baseiam em fontes metafísicas da
própria religião, ou são extraídas destas fontes, ou são ado- 1

tadas a partir de uma tradição alheia, porém integrada à


perspectiva da tradição em questão. As ciências cosmoló-
gicas tradicionais - toda aquela série de ciências que li-
dam com figuras, números, formas, cores e correspondên-
cia entre as várias ordens de realidade - só podem ser
compreendidas e ter sua significação simbólica descoberta
à luz de uma espiritualidade viva. Sem a luz de uma tra-
dição viva com sua metafísica e teologia próprias, as ciên-
cias cosmológicas se tornam opacas e ininteligíveis. Vistas
sob esta luz, estas ciências se tornam como cristais relu-
zentes que iluminam os múltiplos fenômenos do Universo
e os faz inteligíveis e transparentes. 92 Foi desta forma que
Sobre esta questão, ve1· T. Burckhardt, "Naturc de la pC'rspective
cosmologique", Études traditionnelles, vol. 49, 1958, pp. 216-19; e, no
contexto do Islam, S. H. Nasr, An Introduction to Islamic Cosmol(j-
58 0 HOMEM E A NATUREZA

tanto o Islam quanto o Cristianismo integraram a cos-


mologia hermética a suas dimensões esotéricas e lhe deram
nova vida e significado.
A origem ambivalente da cosmologia cristã é sentida
no fato de, neste caso, tanto os conceitos cosmológicos bí-
blicos ou hebreus quanto os dos gregos se encontrarem
lado a lado. Há a cosmogonia bíblica baseada na cnação
ex-nihilo e num drama que acontece no tempo. Há ainda
as cosmologias gregas que se acontecem no "espaço", sem
considerar a modificação temporal e secular, aquela onde
o tempo é cíclico e o mundo se apresenta sem um início
temporal. O Cristianismo adotou elementos de uma e ou-
tra destas visões cosmológicas, e as longas disputas
entre teólogos e filósofos quanto à criação e eternidade
do mundo e quanto à natureza do tempo e do espaço re-
fletem esta origem dual da cosmologia dentro da perspec-
tiva cristã. Esta absorção dos elementos greco-helênicos
pela civilização cristã ocidental, tanto de forma direta nos
primórdios da era cristã quanto sob a forma modificada
que lhes deu o Islam durante a Idade Média; é que
tornou possível as artes e ciências no período medieval,
também servindo de base para a revolução científica. Por-
tanto, devemos sempre nos lembrar tanto do caráter das
ciências do mundo grego, da forma que estas vieram a ser
conhecidas em épocas posteriores, quanto da atitude e
reação do próprio Cristianismo em face desta herança. Am-
bos são de fundamental importância na atitude do homem
ocidental para com a natureza em todos os períodos sub-
seqüentes da história do Ocidente, incluindo o contempo-
râneo.
A medida que o Cristianismo cresceu de religião de
uns poucos à força espiritual vital da humanidade e come-
çou a moldar uma civilização que era distintamente cristã,
teve de desenvolver tanto sua própria arte e cosmologia
quanto as ciências do mundo natural.93 Se teologicamente

gical Doctrines: Cambridge (E. U.A.), 1964, especialmente a intro-


dução.
93 A cosmologia tradicional é bastante semelhante à arte sagrada
que escolhe, dentre as muitas formas do mundo da multiplicidade, um
certo número destas, as quais molda e transmuta de forma a torná-las
um símbolo transparente e inteligível do gênio espiritual da tradição
J'P!igiosa. em questão. Ver T. Burckhardt, "Nature de la perspective
cosmolog1que".
As CAUSAS I~TEI.ECTUAIS E HISTÓRICAS 59

o Cristianismo enfatizava uma rejeição da "vida deste


mundo" e uma busca de um reino que não se encontrava
neste mundo, em sua visão total das coisas teve também
de possuir o meio de equiparar as técnicas dos artesãos
com a atividade cristã e o mundo em que o homem cristão
vivia com o Universo cristão. E obteve sucesso nestas duas
medidas, ao criar tanto uma tradição artesanal capaz de
construir as catedrais medievais, que são modelos micro-
cósmicos do cosmo cristão, quanto uma ciência total do
Universo visível que descrevia este como um Universo
cristão. Quando o homem se encontra no interior de uma
catedral medieval, se sente como se estivesse no centro do
mundo.94 Isto pôde ser conseguido unicamente através da
relação entre a arte sagrada e a cosmologia que existiram
no Cristianismo medieval como também em outras tradi-
ções. A catedral evoca o cosmo, sendo sua réplica no plano
humano, do mesmo modo que a cidade medieval com suas
muralhas e portões é um modelo do limitado Universo me-
dieval.95
A ciência dos objetos naturais e as técnicas de pro-
duzir coisas, ou arte no seu sentido mais universal, de-
senvolveram-se juntas na nova civilização cristã, ambas se
integrando como um conhecimento oculto e secreto às
dimensões esotéricas do Cristianismo. O conhecimento po-
pular baseava-se na sobrevivência de obras tais como a
Historia Naturalis, de Plínio, e em outras posteriores en-
ciclopédias populares, nos escritos de Isidoro de Sevilha,
Gregório, Beda e autores medievais do mesmo porte, e em
elementos da cosmologia platônica como os derivados do
Timaeus e citados com freqüência nos escritos de alguns
dos Pais, assim como por escritores mais populares. Não
obstante, os mais profundos elementos do conhecimento
cristão da natureza e coisas naturais se encontrassem em
sociedades secretas, fraternidades e associações ligadas ao
aspecto esotérico do Cristianismo. Quer não formuladas,
como no seio da fraternidade maçom, quer articuladas,
como no caso da associação secreta dos Fedeli d'amore

~· 1Ver "A0sthetics and Svmholism in Art and Nature" na obra de


F. Schuon, Spiritual Persp~ctirc and Human Fact.~, pp. 24 c ss.
"" Não foi por acaso que as muralhas das cidades européias comf'-
çaram a ser demolidas ao mesmo tempo em que a teoria heliocêntrica
d0struía a idéia do mundo como um cosmos ou "ordem", destituído da
fronteira finita do Universo.
60 0 HOMH1 E A NATUREZA

a qual Dante pertencia, as ciências da natureza e a cosmo-


logia ligadas aos aspectos da civilização cristã medieval
representam os aspectos mais profundos do processo de
cristianização.
A fim de atingir este objetivo, o Cristianismo integrou
em suas dimensrões mais profundas elementos das ~iên­
cias cosmológicas hermético-pitagóricas. A ciência pitagó-
rica da harmonia, dos números, formas geométricas e co-
res impregnou a ciência e arte da Idade Média. Assim,
muitas das catedrais, das quais Chartres é um exemplo
notável, são uma síntese da arte e da ciência medievais,
onde o elemento da harmonia é o princípio orientador. As
proporções de muitas destas estruturas sagradas são como
notas musicais em pedra.96
Quanto ao hermetismó, este forneceu ao Cristianismo
uma ciência sagrada dos objetos materiais. Os materiais
elementais do mundo natural transformaram-se em tantos
blocos edificadores que conduziram a alma da escuridão
da materia prima à luminosidade do mundo inteligível. A
perspectiva hermética e alquímica, que sob uma forma ar-
ticulada se introduziu no Cristianismo através de fontes
islamitas, estendeu a concepção sacramental presente na
missa cristã a toda a natureza. Por meio desta, o artesão
foi capaz de transformar a substância do mundo corpóreo
a sua volta, de forma tal que essa substância pudesse pos-
suir e transmitir, respectivamente, uma eficácia e uma
significação espirituais.97
Quando nos deparamos com a Idade Média vemos,
por um lado, uma história natural popular imbuída cada
vez mais dos valores cristãos de ordem ética como se re-
fletem nos livros medievais sobre animais e, por outro lado,
06 Ver o apêndice de E. Levy na obra de O. von Simpson, The Gothíc
Cathedral: Nova York, 1956; também T. Burckhardt, Chartre8 und
die Geburt der KafhPdrale, Lausanne e Friburgo, 1962. H. Keyser em
muitos estudos como AkroaBÍ8, die Lehere von Harmonike der lVelt:
Stuttgart, 1947, rcdescobriu para o mundo moderno esta esquecicb.
ciência tradicional da harmonia, que é tão importante quanto um prin-
cípio integrador das artes e das ciências. O trivium c quadrivi?,m, as
próprias artes e ciências medievais, procedem da divisão sétupla pita-
górica da escala musical.
97V cr M. Aniane, "Notes sur l'alchimie, 'yoga' cosmolog-ique de la
chrétienté médiévale", em Yoga, science de l'homme intégral: Paris,
1953, pp. 243-73; também T. Burckhardt, Die Alchimie, Sinn und W clt-
r, "ld: Osten, 1960; c S. H. Nasr, "The Alchemical Tradition" em Scicn-
cc and Cívilization in Islam: Cambridge (E.U.A.), 1968.
As CAUSAS INTELECTUAIS E HisTóRICAs 61

uma ciência da natureza intimamente associada às frater-


nidades dos artífices. Nesta última, enfatizou-se primei-
ramente um conhecimento operativo da natureza, enquan.
to o conhecimento teórico permaneceu em grande parte
sem ser escrito ou formulado. Ocasionalmente, seria for-
necida uma expressão intelectual desta ciência religiosa
das coisas e do cosmo como um todo. Esta nós encontra-
mos nas obras de Dante e um pouco antes na escola de
Chartres.
O tipo de ciência da natureza que é profundamente
cristã, tanto em seus objetivos como em suas pressupo-
sigões, está no entanto mais associada à dimensão contem-
plativa e metafísica do Cristianismo do que à teológica.
Na verdade, a perspectiva cosmológica só pode ser inte-
grada à dimensão metafísica de uma tradição, e não ao as-
pecto teológico assim como este termo é comumente en-
tendido. A teologia é muito racionalista e dirigida ao ho-
mem para se ocupar da essência espiritual e do simbolis-
mo dos fenômenos cósmicos, a menos que entendamos por
este termo a teologia apofática e contemplativa que é mais
metafísica que racionalista e filosófica. E portanto, com
certas exceções como no caso de Erigena ou da escola
de Chartres, nos círculos teológicos houve pouco interesse
pela visão simbólica e contemplativa da natureza. Foi dei-
xada a São Francisco de Assis a tarefa de expressar, no
seio da espiritualidade cristã, as mais profundas percep-
ções da qualidade sagrada da natureza. Uns poucos cien-
tistas e filósofos da Europa do norte, como Roger Bacon,
combinavam a observação da natureza com uma filosofia
mística baseada na iluminação, mas isto foi mais uma
exceção que uma regra. Mesmo os franciscanos que vie-
ram depois, como o grande teólogo S. Boaventura, que
expressou a necessidade de uma sapientia como base para
scienma, não estavam especificamente interessados no es-
tudo da natureza.
No século 011ze uma nova forma de ensinamento pro-
veniente do mundo islâmico introduziu-se no mundo do
Cristianismo medieval primitivo, então dominado pela teo-
logia augustiniana, a angelologia dionisíaca e a cosmologia
cristã extraídas dos elementos platônicos, pitagóricos e
herméticos. Além da expansão de certas ciências ocultas
como a alquimia, e mesmo do contato esotérico entre o
Islam e a Cristandade através da Ordem do Templo e de
62 0 HO:VIE\1 E A NATUREZA

outras organizações secretas,9a o principal resultado desta


aproximação foi a familiarização com a filosofia e a ciên-
cia peripatéticas, na forma que estas foram desenvolvidas
pelos muçulmanos durante muitos séculos.
Aqui, não nos cumpre saber como transcorreu esta
transmissão, tampouco nos interessa as diferentes ciências
que através deste processo vieram a ser conhecidas no
mundo latino. Desejamos antes nos voltar para o efeito
deste novo desenvolvimento na visão geral da natureza. Os
muçulmanos por muitos séculos. desenvolveram a ciência
e a filosofia peripatéticas, assim como a matemática, mas
ao mesmo tempo a dimensão gnóstica e iluminativa asso-
ciada ao sufismo manteve-se viva desde o início e prosse-
guiu como a força vital interna desta tradição. 99 De fato,
o Islam voltou-se, cada vez mais, para esta direção du-
rante sua história posterior.
No Ocidente, entretanto, a tradução de obras árabes
em latim, que causaram uma mudança intelectual impor-
tante entre os séculos onze e treze, gradativamene resul-
ou na aristotelização da teologia cristã. O racionalismo
veio substituir a primitiva teologia augustiniana baseada
na iluminação, e a visão contemplativa da natureza foi
progressivamente posta de lado, assim como a dimensão
gnóstica e metafísica do Cristianismo ficou sufocada para
sempre em um ambiente cada vez mais racionalista.
Um exemplo disto é a carreira da filosofia de Ibn
Sina - em latim Avicena - o maior dos peripatéticos
muçulmanos no Ocidente. Até hoje, Avicena continuou
exercendo influência na vida intelectual do Islame. O últi-
mo revivificador da filosofia peripatética, Ibn Rushd ou
Averroes, entretanto, exerceu muito menos influência so-
bre seus correligionários. No Ocidente, um Averroes um
tanto mal compreendido tornou-se, durante o século treze,
o mestre dos averroístas latinos que estavam associados
ao ensinamento pré-cristão. Não obstante, Avicena jamais
ganhou suficientes discípulos no Ocidente para ter ao me-

!IR V0r H. Probst-Birabcn, Les Mystercs dcs tcmpliers: Nice, 1947;


também P. Ponsoye, Islnm et lc Graal: Paris, 1957.
99 Quanto à relação entre as ciências, filosofia e a dimensão gnóstica
e sufista dentro do Islam, ver S. H. Nas r, Thrcc Muslim Sages: Cam-
bridge (E.U.A.), 1964; An Introdnction to Islamic Cosmological Doctri-
nes c Scicnce and Civilization in Islam.
As CAUSAS INTELECTUAIS E HISTÓRICAS 63

nos a honra de dar nome a uma escola, a do "avicenismo


latino" .1oo
O aristotelismo de Averroes era muito mais puro e
radical que o de outros filósofos muçulmanos, enquanto
Avicena combinara esta filosofia com os princípios do Is-
lam, desenvolvendo mesmo, no fim da vida, uma "Filo-
sofia Oriental" baseada na iluminaçãoJOl A interpretação
de Averroes, no Ocidente, como um filósofo ainda mais
racionalista do que realmente era, e a ausência de uma
aceitação sistemática de Avicena são os melhores indi-
cadores do movimento em direção ao racionalismo no
mundo cristão. Esta inclinação é trazida à luz principal-
mente quando se compara a situação no Ocidente com a
vida intelectual de sua civilização irmã, a islâmica, duran-
te este mesmo período. O resultado desta modificação tor-
nar-se-ia evidente após um intervalo de relativo equilíbrio.
A carreira da cosmologia aviceniana é de especial per-
tinência a este desenvolvimento. Para Avicena, a cosmo-
logia estava intimamente associada à angelologia.l 0Z O Uni-
verso estava povoado de forças angelicais, uma visão que
estava perfeitamente bem de acordo com a concepção re-
ligiosa do mundo. O agente espiritual na forma do anjo
era um aspecto integraJ · e verdadeiro da realidade cósmi-
ca. No entanto, quando se difundiu no Ocidente, a cosmo-
logia aviceniana, embora aceita grosso modo, foi criticada.
por homens como Guilherme de Auvergne, que queriam
banir os anjos do Universo. Ao negar as almas avicenia-
nas das esferas, estes eruditos já tinham até certo ponto
secularizado o Universo e preparado este para a revoluçao
copérnica.l 03 De fato, esta revolução só podia ter ocorrido
em um cosmo de onde se removeram os significados sim-
bólicos e espiritual: um cosmo que se tornara mero fato
extraído do seio da metafísica e passara a ser o assunto de
um ciência puramente física.
Apesar de o século XIII ter sido a época de ouro do
escolasticismo e de ter produzido a síntese de S. Tomás,
e de ter tido uns poucos homens como Alberto Magno, Ro-

1 00Ver Three Muslim Sage.~, Capítulo I.


101 Ver An Introduction to Islamic Cosmological Doctrines, pp. 185-91.
102 Ver Corbin, Aviccnna and the Visionary Recital, seção II; tam-
bém S. H. Nasr, Three Muslim Sages, pp. 28-31.
103 Corbin, op. cit., pp. 101 e ss.
64 o HOME\I ~E A NATURt'Z.-\

ger Bacon e Robert Grosse teste que, segundo a matriz da


filosofia cristã, estavam Intensamente interessados nas
ciências da natureza, o próprio domínio do racionalismo
durante este período logo destruiu o equilíbrio estabeleci-
do neste século. A balança inclinou-se para a outra dire-
ção, e no século XIV deu margem a um ataque contra
a razão e a um ceticismo que marcou o fim da Idade Mé-
dia. Dois movimentos diferentes, porém complementares,
podem ser observados nesta época. O primeiro é a destrui-
ção das organizações esotéricas, no seio da cristandade,
tais como a Ordem do Templo. O res_ultado foi que o ele-
mento gnóstico e metafísico, que até aquele momento es-
tava constantemente presente, começou a dispersar-se e
gradativamente a desaparecer, ao menos como força vital
ativa no quadro intelectual do Ocidente cristão.l 04 O segun-
do foi a fundamentação do racionalismo por meio de seu
próprio peso e a introdução de uma negação do poder da
razão para atingir a verdade. Se místicos como Meister
Eckhart buscaram transcender a razão partindo de c1ma,
os teólogos nominalistas rejeitaram a filosofia racional
(poder-se-ia dizer partindo de baixo), ao recusarem à ra-
zão a própria possibilidade de conhecer o universal.
Todo o debate sobre os universais, que remonta a Abe-
lardo, tornou-se nesta época a arma favorita para se ata-
car a razão e mostrar as incoerências de suas conclusoes.
Occam e os occamistas criaram uma atmosfera de dúvida
filosófica que tentaram manter com uma teologia nomi-
nalista destinada a desempenhar o papel de-filosofia. Oc-
cam~criou um t~lo_gismo que destruiu a certeza da tilo-
sofia medieval e conduziu ao ceticismo filosófico.tos Entre-
tanto, ao enfatizar causas universais específicas e criticar
a filosofia e ciência peripatéticas, Occam e seus seguidores
como Oresme e Nicolau de Autrecourt. fizeram importantes
descobertas em mecânica e dinâmica,' descobertas que for-
mam a base da revolução do século XVII no campo
da física. Contudo, é importante observar que este interes-
se pelas ciências da natureza estava de mãos dadas com
a dúvida filosófica e um distanciamento da metafísica. Por
esta foi substituída uma teologia nominalista. Quando o

1 <H Ver R. Guénon, Aperçu sur l'ésotcrisme chrétien: Paris, 1954.


10 ~ E. Gilson, The Unity of Philosophical Experience: Londres, 1938.
IJp. 62 e ss.
As CAusAs INTELECTUAIS E HisTóRICAs 65

elemento da fé ficou enfraquecido, este desenvolvimento


científico foi deixado sem qualquer elemento de certeza fi-
losófica. Tornou-se, sim, vinculado à dúvida e ao ceticismo.
A Idade Média chegou ao fim num clima onde a visao
simbólica e contemplativa da natureza fora, em grande
parte, substituída por uma visão racionalista, e isto, por
sua vez, conduziu ao ceticismo filosófico, através do cri-
ticismo dos teólogos nominalistas. Enquanto que, com a
destruição dos elementos gnóstico e metafísico dentro do
Cristianismo, as ciências cosmológicas se tornaram opa-
cas e incompreensíveis e o próprio cosmo foi gradativa-
mente secularizado. E mais: dentro dos círculos cristãos
em geral, nem os dominicanos nem os franciscanos mos-
traram especial interesse pelo estudo da natureza. 106 Os
alicerces estavam portanto preparados para aquela revo-
lução que pôs fim à civilização cristã integral do período
medieval e criou uma atmosfera onde as ciências da na-
tureza passaram a ser cultivadas alheias à visão cristã
do mundo e onde o cosmo gradativamente cessou de ser
cristão.
Com a Renascença, o homem europeu perdia o paraíso
da idade da fé para ganhar em contrapartida uma nova
terra da natureza e formas naturais para a qual agora
voltava sua atenção. Embora fosse uma natureza que pas-
sou ser cada vez menos o reflexo de uma realidade celes-
tial. O homem renascentista deixou de ser o homem ambi-
valente da Idade Média, meio anjo, meio homem, dividido
entre o céu e a terra. Transformou-se, antes, em um ho-
mem inteiro; mas, a partir de então, uma criatura total-
mente presa à terra.I07 Obteve sua liberdade às expensas
de perder a possibilidade de transcender suas limitações
te:q~str~s. Para ele, agora, a liberdade passava a ser antes
quantitativa e horizontal que qualitativa e vertical, e nes-
te espírito prosseguiu a conquistar a terra, com esta con-
quista abrindo novos horizontes na geografia e na história
natural. No entanto, ainda existia um significado religioso

106 "O f<1to de nem os franciscanos nem os dominicanos terPrn conse-


guido estnhe!Pcer urna consideração séria pPio estudo da natU"Pza no
seio da Ig,eia durante o século em que a Cristandade medieval atingiu
seu esplendrw tornou inPvitávcis as sub!PVa<'Õr>s e revoltas da Renas-
cença e da Reforma." Raven, Science and Rfl/igion, p. 72.
107 Ver F. Chuon. Light on the Ancient Worlds, Capítulo II, "In
the Wake of the Fali".
66 0 HOMEM E A NATUREZA

na vida selvagem e na natureza -fltle- procedera da tractiçao


cristã. 108
Esta nova concepção de um homem preso à terra, que
está intimamente ligada ao humanismo e ao antropomor-
fismo deste período, coincidiu coin-a destruição e gradual
desaparecimento do que restava das organizações inicia-
ticas e esotéricas da Idade Média. A Renascença foi teste-
munha da destruição de organizaçôes como a Sociedade
Rosacruz, enquanto ao mesmo tempo começou a apare-
cer toda sorte de escritos associados às organizações e so-
ciedades secretas, tais como as obras herméticas e caba--
lísticas. O vasto número destas obras durante este período
deve-se entretanto, antes e acima de tudo, à destruiçao
dos depositários deste tipo de conhecimento, facilitando as-
sim sua profanação e vulgarização. Em segundo lugar,
deve-se a uma tentativa por parte de alguns pensadores
para descobrir uma tradição religiosa primordial anterior
ao Cristianismo, de modo que se voltaram para tudo que
se falasse dos antigos mistériosJ09
Além disso, quando passamos os olhos sobre as ciên--
cias da Renascença, vemos que apesar das novas desco-
bertas em geografia e história natural e de certos avan-
ços na matemática, o esquema é o mesmo que o da Idade
Média. A ciência da Renascença é seguidora da do período
medieval, a despeito de sua ênfase sobre o naturalismo.
Isto porque o que se vê ganhar destaque desta vez são as
ciências ocultas e cosmológicas do período medieval, que
agora se tornam conhecidas e são elaboradas publicamen-
te, embora algumas vezes de forma confusa e destorcida.
Agrippa, Paracelso, Basil Valentine, Meier, Bodin e muitas
outras figuras pertencem mais à tradição antiga e merue-
val da ciência que à moderna. Embora as escolas hermé-
tic~s e mágicas da Renascença tivessem um papel tão sig-
nificaiivo-n-a cilaÇãO--cta ciêncfa moderna quanto a escola
físico-matemática, mais freqüentemente estudada e asso-
ciada ao nome de Galileu, prestou-se muito pouca atenção

10 8 Ver G. Wíllíams, Wilderness and Paradise in Christian Thought.


Capítulo III.
109 Para a análise deste aspecto da questão no que diz respeito ao
hermetismo, ver M. Elíade, "The quest for the 'Origin' of Religion".
History of Religions, vol. IV, n.o I, verão de 1964, pp. 156 e ss.
As CAUSAS INTELECTUAIS E HISTÓRICAS 67

a este aspecto de capital importância por motivo de um


julgamento a priori do que é ciência. 11 o
No entanto, como era de se esperar em um período de
eclipse do conhecimento metafísico e mesmo de dúvida fi-
losófica, ciências como a alquimia tornaram-se ainda mais
incompreensíveis, opacas e confusas, até que gradativa-
mente deixaram de ser ciência como tal, passando a ser
preocupação de ocultistas e curiosos. Paracelso ainda se
achava no centro do palco científico de seus dias. Na épO-
ca, Fludd e Kepler estavam trocando informações; a tra-
dição hermético-alquímica que Fludd defendia perdeu a
batalha, e o que era considerado ciência passou às mãos
de Kepler e seus afins.
Esta perda de discernimento metafísico e de consciên-
cia em relação ao significado simbólico das ciências cos-
mológicas é também sentida na rápida transformação da
cosmologia em cosmografia, um passar do conteúdo à for-
ma. As numerosas cosmografias da Renascença não tratam
mais do conteúdo e significado do cosmo, e sim de sua for-
ma e descrição externa, apesar de ainda descreverem o
mosmo medievêi.m Tudo que restou foi o corpo sem seu
espírito e significado interiores. Destas cosmografias à des-
truição do quadro cósmico; a distância não é senão de um
único passo, que é dado com a revolução copernicana.
A revolução copernicana gerou todas as convulsões es-
pirituais e religiosas que seus oponentes previram que
iriam ocorrer, exatamente porque esta chegou num tem-
po em que por toda a parte reinava a dúvida espiritual,
sendo que um humanismo já com mais de um século de
idade destituíra o homem de seu posto de "imagem divi-
na" sobre a terra. A tese de que o Sol estava no centro
do sistema solar não era nova em si mesma, dado que isto
era sabido por certos filósofos e astrônomos gregos, isla-
mitas e indianos. Mas a colocação desta tese durante a
Renascença, sem uma nova visão espiritual das coisas que
a acompanhasse, poderia somente significar um desloca-
mento do homem no cosmo.

110 Apenas um pequeno número de eruditos como W. Pagel e recen-


temente A. Debus e F. Yates estudaram e tornaram conhecida a imensa
influência da tradição paracelsiana e alquímica da Renascença sobre
as ciências do século XVII.
111 Ver T. Burckhardt, "Cosmology and Modern Science", pp. 183-4.
68 0 HOMEM E A NATUREZA

A teologia e a formulação externa da religião come-


çam com o homem e suas necessidades como ser imor-
tal. A metafísica e o aspecto esotérico da tradição tratam
da natureza das coisas como tais. A astronomia ptolomai-
co-aristotélica corresponde à estrutura de aparência mais
imediata do cosmo e ao profundo simbolismo que as es-
feras concêntricas apresentam ao homem, como os aspec-
tos visíveis dos múltiplos estados de existência. Neste es-
quema, o homem está sob um ponto de vista no centro do
Universo, em virtude de sua natureza teomórfica, e está
sob outro ponto de vista em seu nível mais baixo de exis-
tência, a partir do qual tem de ascender ao divino. A as-
censão através do cosmo, como vemos de forma tão clara
na Divina Comédia, também corresponde à ascensão da al-
ma através das etapas de purificação e de conhecimento.
Corresponde necessariamente à própria existência. A cos-
mologia medieval teve portanto a vantagem de apresen-
tar ao homem o cosmo visível como um símbolo concreto
de uma realidade metafísica que em qualquer hipótese se
mantem verdadeira, independentemente dos símbolos uti-
lizados para transmiti-la. Também em virtude de perma-
necer fiel à aparência imediata das coisas, assim como es-
tas se apresentam ao homem, a astronomia ptolomaico-
aristotélica correspondia mais a uma verdade teülógica e
exotérica, embora ao mesmo tempo permanecesse como
um símbolo mais poderoso de uma realidade metafísica.
O sistema heliocêntrico também possui seu simbülis-
mo espiritual. Ao colocar a origem da luz no centro, um
argumento ao qual o próprio Copérnico se referiu na in-
trodução de seu livro De revolutionibus orbium co:c;Zestium,
esta astronomia simboliza claramente a centralidade do
Intelecto Universal, para quem o Sol, o divino Apolo, é o
símbolo mais direto. Além disso, ao remover as barrei-
ras do cosmo e apresentar ao homem a vastidão do es-
paço cósmico, que simboliza a imensidade do Ser Divino
e a insignificância do homem ante esta realidade, esta vi-
são corresponde mais à perspectiva esotérica baseada na
natureza total das coisas que na perspectiva exotérica e
teológica, que se ocupa das necessidades do homem para
que ele seja salvo. Mas a esta astronomia não se acompa-
nhou uma nova visão espiritual, mesmo quando um ho-
mem como Nicolau de Cusa apontou a profunda significa-
ção do "universo infinito", "cujo centro está em toda par-
As CAUSAS hTELECTUAIS E HISTÓRICAS 69

te e cuja circunferência, em parte alguma" .112 D ejei~o to-


tal da nova astronomia foi como a profanação de uma
forma esotérica de- conhecimento.l 13 um tanto semelhante:
a nossas observações no caso das ciências alquímicas e ca-
balísticas. Ela apresentou uma novayisão do . Universo fí-
si_c_Q, também sem fornecer uma interpretação espiritual
para o mesmo. A transformação do limitado em "universo
infinito" também teve, por conseguinte, as mais profundas
repercussões religiosas na alma dos homens, estando es-
treitamente entrelaçada a todo desenvolvimento religioso
e filosófico da Renascença e do século dezessete.l 14
A primeira vista, pode parecer que ao remover o ho-
mem do centro do Universo a revolução copernicana se di-
rigira contra o humanismo predominante na época. Isto
é apenas um feito aparente; seu efeito mais profundo foi
auxiliar o espírito geral humanístico e prometéico da Re-
nascença./Na cosmologia medieval, o homem fora coloca-
do no centro do Universo, não como um homem puramen-
te terrestre e preso a este planeta, mas como a "imagem de
Deus". Sua centralidade devia-se não às qualidades antro-
pomórficas, mas às teomórficas. Ao removê-lo do centro
das coisas, a nova astronomia não conferiu ao homem a
dimensão transcendente de sua natureza;ao contrário, afir-
mou a perda da natureza teomórfica, em virtude da qual
fora colocado no centro. Logo, menosprezou a posição do
homem no esquema das coisas, apenas na superfície, mas

112 Já um século antes de Copérnico, Nicolau de Cusa em sua obra


De docta ignoTantía referiu-se à terra como uma estrela e acreditava
em um universo ilimitado, cuja significaçüo metafísica e esotérica ele
apontou mais de uma vez. Ver R. Klibansky, "Cope;·nic et Nicolas de
Cuse", em L,éonard da Vinci et l'expeTience scientijiqne dn XVI' siecl•3:
Paris, 1953.
113 "O p•·óprio sistema heliocêntrico admite um simbolismo óbvio,
dado que o mesmo identifica a origem da luz com o centro do mund0.
Sua redescohe•ta por Copérnico são p1·oduziu, entretanto, uma nova
visão espiritual do mundo; pelo contrário, foi compa1·ável à perigosa
popularizacão de uma verdade esotérica. O sistema heliocêntrico não
encont>·a paralelo na experiência subjetiva das pessoas, nele o ho-·
mem não tinha um lugar físico; em vez de ajudar a mente humana a
ir além de si mesma e a considerar as coisas em te1·mos da imensidade
do cosmo, este sistema apenas encoraja um prometeanismo materialís-
tico oue. longe de ser super ·humano, acaba por ser subumano."
Burckhardt, "Cosmology and Modern Science", pp. 184-5.
114 Ver A. Koyré, FTom the Closed lV01·/d to the lnfínite UniveT.~e:
Nova York, 1958. -
70 o I-IOME :\1 E A NATU REZA

a um níve l mais profu ndo auxil iou a tendê ncia ao


pom orfis mo e a revo lta prom etéic a cont ra a voz do antro -
Com a destr uição do conj unto imut ável dos céu.
que são os juíze s tanto do conh ecim ento como princ da
íp~os,

de, e o apar ecim ento de um hom em pura ment e virtu -


que se torno u a medi da de toda s as coisa s, teve terre stre,
civil izaçã o ocid ental uma tendê ncia de cami nhar início na
tivis mo ao subje tivis mo, que pross egue até hoje. do obje-
estav am mais prese ntes uma meta físic a e uma cosm Já nao
para julga r a verd ade ou falsid ade do que os home ologi a
ziam , mas os próp rios pens amen tos dos home ns, ns àl-
époc~,.- torna vam -se os crité rios
a cada
de verd ade ou falsid ade.
A Rena scen ça, emb ora aind a segu indo as ciênc ias
da Idad e Méd ia, emit iu uma nova conc epção do form ais
que daí em dian te torno u antro pomó rfica , em umhome m
senti do, toda form a de conh ecim ento inclu indo a certo
Tran sform ou na próp ria verd ade a visão que o ciênc ia.
caído ", para utiliz ar a term inolo gia crist ã, tinha das"hom em
e remo veu o mais que pôde todo crité rio de conh co:sas
intel ectua l. Daí em diant e, ciênc ia foi apen as aquilecim ento
men tal pude sse apre ende r e expli car. Não pôde prest o que o
à funç ão de trans cend er o próp rio ment al atrav ar-se
der de simb olism o. és do po-
A próp ria revo lução cient ífica cheg ou, não
cenç a, mas dura nte o sécul o XVII , quan do na o
Rena s-
já se torn ara secu lariz ado, a relig ião enfra quec
cosm o
mora dos conf litos inter nos, a meta físic a e a gnosida por de-
verd adei ro senti do quas e esqu ecida s, e o signi e em seu
símb olos aban dona do, o que se pode obse rvar na ficad arte
o dos
perío do. Cheg ou tamb ém após mais de dois sécul deste
os
ticis mo filos ófico , do qual os filóso fos tenta ram escap ce-de
read quir ir acess o à certe za. Desc artes foi o herd ar e
hum anist as crist ãos do final da Idad e Médi a e Rena dos eiro
ça, de hom ens como Petra rca, Gehr ard Groo t e Eras scen-
tamb ém de todo o grup o de filósofos da Rena scenç mo, e
Telés io, Cam pane lla e Adri ano de Corn eta. Estes a como
duvi dara m do pode r da filoso fia para alcan çar certe últim os
bre os princ ípios derra deiro s e, em contr apart ida, za so-
taram em gera l para a ética e a mora lidad e. Desc se vol-
tamb ém foi acim a de tudo o herd eiro do cetic ismo artes
so nos Ensa ios de Mon taign e, ao qual seu Disco expre s-
mais de um aspe cto é uma respo sta.n s urs sob
11 c; Ver E. Gilson , The Unity of Phüos ophic al Exper
ience, p. 127.
As CAUSAS INTELECTUAIS E 1-IISTÓRICAS 71

A fim de alcançar a certeza no conhecimento atraves


de seu famoso método, Descartes teve de reduzir a rica
diversidade da realidade externa à quantidade pura, e a
filosofia à matemática. Sua abordagem era um matema-
ticismo, para empregar um termo de Gilson,ll6 e daí em
diante o matematicismo cartesiano tornou-se um elemen-
to permanente da visão científica do mundo. A física que
Descartes construiu através de seu método foi rejeitada
por Newton. Sua zoologia, onde buscou reduzir os animrus
a máquinas, foi violentamente atacada por Henry More e
John Ray. Mas seu matematicismo, a tentativa de reduzir
a realidade à pura quantidade com a qual se podia entao
lidar de forma puramente matemática, tornou-se o funda-
mento da física matemática e, inconscientemente, de mui-
tas outras ciências que desesperadamente procuram en-
contrar relações quantitativas entre as coisas, ao despre-
zar o aspecto qualitativo destas. A distinção feita por Gali-
leu, no Discorsi, entre as qualidades primárias e secundá-
rias é uma afirmação da redução cartesiana da realidade
à quantidade, apesar de Galileu ter tido êxito em criar
uma física onde Descartes falhou.
O gênio de Newton foi capaz de criar uma síntese a
partir das obras de Descartes, Galileu e Kepler, e de apre-
sentar um quadro do mundo que ele, um homem religioso,
sentiu ser uma confirmação da ordem espiritual do Uni-
verso. Na realidade, os fundamentos do pensamento de
Newton, ligados a figuras como Isaac Burrows e os platô-
nicos de Cambridge, estavam longe de estar divorciados
do interesse no significado metafísico do tempo, espaço e
movimento. Não obstante, a visão newtoniana do mundo
conduziu à tão conhecida concepção mecanicista do Uni-
verso, totalmente alheia à interpretação global e orgâ-
nica das coisas. O resultado foi que após o século XVII
ciência e religião se divorciaram totalmente. Newton foi
um dos primeiros a perceber os efeitos teológicos adversos
de suas descobertas. Não podemos esquecer os esforços
que ele despendeu e tantas páginas que escreveu sobre as
ciências alquímicas e cabalísticas de seus dias .. Talvez
para ele a nova física, com -seu eminente sucesso #o
nível
matemático-físico, fosse apenas uma ciência das coisas
materiais. Para aqueles que o seguiram esta tornou-se a
ciência, o único conhecimento legítimo do mundo objetivo.
llG Gilson, ibid., Capítulo V.
72 0 HOMEM E A NATUREZA

Também no século XVII, o último passo na secula-


rização do cosmo ficou por conta dos filósofos e cientis-
tas. Na Renascença, os elementos da filosofia tradiciOnal
ainda sobreviveram. A anatomia da existência consistia
não somente dos mundos físicos e puramente inteligíveis,
mas também do mundo intermediário entre matéria e es-
pírito puro, o "mun__d_g__imaginal" (mundus imaginalis). En-
tretanto, isto não precisa ser considerado de maneira al-
guma irreal ou destinado a corresponder ao significado
moderno de "imaginário". Um tal mundo intermediário era
o princípio imediato da natureza, e através do mesmo se
tornou possível a ciência simbólica da natureza. Entre os
pensadores cristãos (contudo distantes do centro da or-
todoxia teológica), mesmo após a Renascença um homem
como Swedenborg pôde escrever um comentário herme-
nêutica sobre a Bíblia, que foi também a exposição de
uma ciência simbólica da natureza, e pôde fiar-se neste
mundo intermediário como o ponto de encontro das for-
mas espirituais e materiaisJ17 Os platônicos de Cambrid-
ge, especialmente Henry More, foram no entanto os últi-
mos filósofos europeus a falar deste domínio da realida-
de, da mesma forma que Leibnitz foi o último grande filó-
sofo ocidental a falar dos anjos.
A partir de então a operação cirúrgica cartesiana, na
qual espírito e matéria ficaram totalmente separados, do-
minou o pensamento científico e filosófico. O domínio da
ciência foi a matéria) que era uma simples "coisa" com-
pletamente divorciada de qualquer aspecto ontológico que
não fosse a pura quantidade. Embora houvesse protestos
aqui e ali, especialmente entre os pensadores ingleses e
germânicos, esta visão tornou-se o mesmo fator que de-
terminou a relação entre homem e natureza, científica e
filosoficamente. Assim, o racionalismo do século XVII
é a base inconsciente de todos os pensamentos cien-
tíficos posteriores até os dias atuais. Quaisquer que sejam
as descobertas que se fazem nas ciências e quaisquer que
sejam as modificações que se criam nas concepções de
tempo, espaço, matéria e movimento, a base do raciona-
lismo do século XVII persiste. Por esta mesma ra-
zão, outras interpretações da natureza, especialmente a

117 Ver H. Corbin, H ennéneutique spirituelle comparée (I. Sweden-


borg-II. Gnose ismaélienne), Eranos Jahrbuch, Zurique, 1965.
As CAUSAS INTELECTUAIS E HISTÓRICAS 73

simbólica, jamais foram seriamente consideradas e aceitas.


No século XVII, o hermetismo ainda continuou de
forma acentuada, especialmente na Inglaterra. Houve
também Jacob Boehme, o notável mestre sapateiro e teó-
sofo, na Alemanha, cujo próprio aparecimento nesta épo-
ca é muito significativo, e que influenciou profundamen-
te a escola da Naturphilosophie, que reagiu tão severa.
mente contra a filosofia mecanicista predominante. Estes
desenvolvimentos são importantes para mostrar a conti-
nuidade em certos círculos, especialmente da Europa do
norte, de uma concepção espiritual da natureza. Estas es-
colas ainda permaneceram periféricas na medida em que
se considera sua influência sobre a ciência moderna. O
centro do palco continua a ser ocupado pela ciência e
filosofia mecanicistas.
Durante o século XVIII, embora teoricamente a ciên~
cia prosseguisse por linhas estabelecidas no século de-
zessete, seu efeito filosófico era mais pronunciado. A filo-
sofia de Descartes foi levada a sua conclusão lógica pelos.
empiristas, por Hume e por Kant, que demonstraram a
incapacidade de a razão puramente humana alcançar o·
conhecimento da essência das coisas, abrindo assim as por-
tas para as filosofias irracionais que se seguiram a partir
de seu advento. Através dos "enciclopedistas", Rousseau e
Voltaire, tornou-se popular uma filosofia sem uma di-
mensão transcendente, e a verdade foi reduzida à utilida-
de.lls Se o século XVII ainda considerou os problemas
ao nível de sua veracidade ou falsidade teóricas, a questào
agora passou a ser a utilidade do conhecimento para o ho-
mem, que agora se tornara um nada, apenas uma criatu-
ra da terra, sem outro fim senão o de explorar e dominar

llS "Com Voltaire, Rousseau e Kant, a não-inteligência burguesa se


auto-eleva ao nível de "doutrina" e passa a ficar entrincheirada no
"pensamento" europeu, dando surgimento, através da Revolução Fran-
cesa, à ciência positivista, à indústria e à "cultura" quantitativa. Daí
em diante, a hipertrofia mental do homem "aculturado" prolonga a
ausência de penetração intelectual; todo sentimento pelo absoluto e
pelos princípios é sufocado em um empirismo vulgar, ao qual é enxer-
tado um pseudomisticismo com tendências "positivistas" ou "huma-
nistas". É provável que algumas pessoas venham a nos reprovar pela
falta àe reverência, mas gostaríamos de saber onde está a reverência
dos filósofos que vergonhosamente retalham a filosofia de séculos e
séculos." F. Schuon, Language of the Self (trad. de M. Pallis e D. M._
Matheson) Madrasta, 1959, p. 8, nota I.
74 0 Hü\IBI E A NATUREZA

as riquezas deste planeta. Esta inclinação prática e utili-


tária, cristalizada pela Revolução Francesa, acentuou o
efeito da nova ciência mecanicista, ao dirigir mais atençao
às ciências empíricas e buscando destruir qualquer vestí-
gio de uma visão contemplativa em relação à naturez;:j,
que ainda restasse.l1 9 Com a ajuda da nova ciência, a únicá
incumbência deixada ao homem foi conquistar e dominar
a natureza e satisfazer suas necessidades como um animal
relativamente dotado de razão e pensamento analíticos.
A concepção materialista da natureza não passou S<:;m
ser desafiada no transcorrer do século XIX, especial-
mente na arte e literatura, onde o movimento romântico
procurou restabelecer um vínculo mais íntimo com a na-
tureza e com o espírito que a habitava. Os poetas filosó-
ficos românticos, como Novalis, dedicaram-se acima de
tudo ao tema da natureza e sua significação para o homem.
Um dos mais destacados dentre estes, Wordsworth, escre-
veu na Excursão (Livro IX):

"A cada Forma de existência é atribuído"


Assim pausadamente falava o venerável Sábio
"Um princípio ativo: embora fora do alcance
Dos sentidos e da observação, ele subsiste
Em todas as coisas, em todas as naturezas: nas
estrelas
Do céu de pleno azul, as nuvens que se
dissipam;
Na flor e na árvore, em cada um dos seixos
Que cobrem o leito dos riachos, as rochas
sólidas,
O orvalho, o ar invisível.

11 9 "À época da Revolução do fim do século dezoito, a terra tornou-se


definitiva e exclusivamente a meta do homem; o "Ser Supremo" era
meramente um "consolo" e, como tal, alvo do ridículo; a multiplicidade
aparentemente infinita das coisas sobre a terra exigiu uma infinidade
de atividades, que forjaram um pretexto para rejeitar a contempla-
ção ... , o homem estava finalmente livre para ocupar-se, do lado de
cá da transcendência, com a descoberta do mundo terrestre e com a
exploração de suas riquezas; por fim, estava livre de símbolos, livre!
da transparência metafísica; nada mais havia senão o agl'adável e
o desagradável, o útil e o inútil, daí o desenvolvimento anárquico e
irresponsável das ciências experimentais." Schuon, Light on the An-
cient W orlds, p. 30.
As CAusAs l~TELECTUAIS E HisTÓRICAs 75

Tudo que existe tem propriedades que se


estendem
Para além de si, propagando o bem,
Uma simples bênção, ou mesclada de mal;
Espírito que desconhece recanto isolado,
Abismo, ou solidão; de elo a elo
Circula, a alma de todos os mundos.
Esta é a liberdade do universo."

Da mesma forma, um homem como John Ruskin víu


a natureza como algo divinolzo e falou do "poder espiri-
tual do ar, das rochas e das águas" .121
A atitude romântica face à natureza foi no entanto
mais sentimental que intelectual. Wordsworth fala da
"passividade sábia" e Keats da "capacidade negativa" Esta
atitude passiva não podia fabricar e moldar conhecimen-
to. Qualquer que tenha sido o serviço prestado pelo mo-
vimento romântico ao redescobrir a arte medieval ou a
beleza da natureza virgem não conseguiu afetar o curso
da ciência, nem acrescentar uma nova dimensão ao con~
teúdo da mesma, uma dimensão por meio da qual o ho~
mem fosse capaz de compreender aqueles aspectos da
natureza que a ciência do século XVII e sua sucessora
deixaram de considerar.
Quanto à filosofia do século XIX, a ciência ren-
deu-se à possibilidade de conhecer as coisas sob seu aspec-
to imutável e, com Hegel, ficou presa ao processo e à
modificação. Fizeram com que o próprio Absoluto entras-
se na corrente do processo dialético que foi equiparado
11 uma nova lógica do processo e do vir-a-ser. A visão de
uma realidade estática e imutável foi completamente es-
quecida em um universo onde, já há algum tempo, a reali-
dade supra-sensível perdera sua condição objetiva e onto-
lógica. As intuições de homens como Schelling ou Franz
von Baader pouco puderam fazer para desviar o curso dos
acontecimentos de um posterior mergulho no mundo do
mero vir-a-ser e da modificação.

12o "Ruskin via o universo material com vivacidade e clareza sobre-


naturais, acreditando que o que via era divino." J. Rosenberg, The
Darkening Glass, a Portrait of Ruskin's Genius: Nova York, 1961,
pp. 4-5.
1~1 lbid., p. 7.
76 b Ho:.rnr E A NATUREZA

Quanto à ciência, o maior acontecimento ocorreu no


campo da biologia, onde a teoria da evolução reflete ma!.;
o Z_eitgeist do que uma teoria científica. Em um mundo
onde os "múltiplos estados de existência" perderam seu
.sentido, onde não há base metafísica e filosófica para per-
mitir ao homem interpretar o surgimento de diferentes es-
pécies sobre a terra como muitos e sucessivos "sonhos da
Alma do Mundo", onde se retirou da criação as mãos do
Criador através da propagação do deí§mo, neste lugar
não poderia mesmo haver outra explicação para a multi-
plicidade das espécies que não fosse a evolução temporal.
A "corrente da existência" vertical tornara-se temporal e
horizontal, 122 quaisquer que fossem os absurdos que esta
visão pudesse implicar, metafísica e teologicamente. O re-
sultado desta teoria, além de causar intermináveis dispu.
tas entre os popularizadores da evolução e os teólogos, ge-
rou uma posterior alienação do homem em relação à na-
tureza, ao remover do mundo vital a forma ou essência
imutáveis das coisas, que por si só pode ser contemplada
intelectualmente e pode tornar-se o objeto do conheci-
mento e da visão metafísicos. Ela também perdoou todn
sorte de excessos na usurpação do direito de outras for-
mas de vida, em nome da "sobrevivência do mais apto"
A teoria da evolução não fornece uma visão orgãnica
para as ciências, mas fornece ao homem um meio de re.
duzir o mais elevado ao mais baixo, uma fórmula mágica
para se aplicar a tudo, a fim de explicar as coisas sem a
necessidade de ter acesso a quaisquer princípios ou causas
mais elevadas. Esta teoria também caminhou de maos
dadas com um historicismo predominante que é uma pa-
róciia da filosofia cristã da história mas que, não obstante,
poderia suceder apenas no mundo cristão onde a própria
verdade tornara-se encarnada no tempo e na história. A
reação sempre ocorre contra uma afirmação e uma açao
existentes.
Com o colapso da física clássica, no final do século
XVIII, não houve uma força espiritual pronta a reinter-
pretar a nova ciência e integrá-la a uma nova perspecti-
va mais universal. Alguns viram neste colapso uma possi-
bilidade de reafirmar outros pontos de vista que a concep.
122 Sobre a cadeia da exist~ncia e sua relação com a teoria da evo-
lução, ver O. Lovejoy, The Great Chain of Being: Cambridge (E.U.A.),
1933.
As CAUSAS INTELECTUAIS E HISTÓRICAS 77

ção mecanicista monolítica do Universo previamente obs-


tara. De um lado, o colapso significou a reinterpretaçao
da ciência, que destruiu até mesmo a possibilidade de um
futuro contato com o mundo macrocósmico e com o sim-
bolismo imediato das coisas. (Isto pode ser observado no
caso da mudança da geometria euclidiana para as de Rie-
mann e Lobachevski.) Por outro lado, significou a aber.
tura de uma passagem a toda sorte de movimentos pseu-
do-espiritualistas e de ciências ocultas, que se enxertaram
nas mais novas teorias da física, mas que em geral são ou
resíduos degenerados de ciências cosmológicas mais anti-
gas, não mais compreensíveis) ou invenções s:mp:esm:nte p3-
rigosas e perniciosas. Dos setores genuinamente religio~
sos o colapso da física clássica não provocou uma res~
posta vigorosa que pudesse conduzir a uma síntese signi-
ficativa. A resposta teológica foi em grande parte um
fraco eco que freqüentemente adotou idéias abandona-
das da própria ciência e algumas vezes, como no caso de
Theilhard de Chardin, buscou uma síntese que, metafisi-
camente, é um absurdo e, teologicamente, uma heresia.m
Foi esta longa história, da qual alguns destaques fo-
ram aqui assinalados, que finalmente conduziu à presente
crise no encontro entre homem e natureza. Como assina-
lado no Capítulo I, somente através de uma redescoberta
da verdadeira metafísica, especialmente das doutrinas sa-
pienciais do Cristianismo e do renascimento dessa tradiçao
no seio da Cristandade, a qual fez justiça à relação entre
homem e natureza, é que se pode novamente assegurar
uma hierarquia do conhecimento e restabelecer uma ciên-
cia simbólica da natureza que efetivamente complemeil-
tará as ciências quantitativas de hoje. Somente desta for-
ma pode ser criado um equilíbrio, um equilíbrio do qual
o desenvolvimento destes últimos séculos foi-se descar-
123 "O teilhardismo, como sintoma de nosso tempo, é comparável a
uma daquelas fissuras que se devem à própria solidificação da caixa
craniana, que não se abrem em direção ao alto, em direção ao céu
da unidade verdadeira e transcendente, mas para baixo, em direção
ao domínio do psiquismo inferior: enfadada de sua própria visão in-
coerente do mundo, a mente materialista se deixa levar a uma e!Jl·
briagucz ps.:::udo-espiritual, da qual esta fé - ou este matcriaiismo
sublimado - que acabamos de descrever marca uma fase de especial
significação." Burckhardt, "Cosmology and Modcrn Science", Tomor-
row, outono de 1964, p. 315.
78 0 HOMEM E A NATUREZA

tando, com velocidade sempre crescente, até chegar hoje


ao desequilíbrio e falta de harmonia entre homem e na-
tureza e que ameaça destruir a ambos de uma só vez. As-
sim, temos de nos voltar para a discussão da metafísica e
para a tradição do estudo espiritual da natureza no selo
do Cristianismo.

I
CAPÍTULO 1II

Alguns Princípios M etafísícos Pertinentes a Natureza

Até aqui vimes com freqüência mencionando a meta-


física. Agora é hora de definir o que pretendemos com esta
forma tão importante de conhecimento, cujo desapareci-
mento é o responsável mais direto pelo nosso dilema atual.
Metafísica é a ciência do Real, da origem e do fim das coi-
sas, do Absohito e-,-à sua luz, do relativo. É uma ciência
tão estrita e exata quanto a matemática e com a mesma
clareza e certeza, mas só pode ser alcançada através da
~ção intelectu_al e não simplesmente através do racio-
cínio. Difere assim da filosofia como esta é habitualmen-
te entendida. 124 É antes uma theoria da realidade cuja rea-
lização significa santidade e perfeição espiritual, e por-
tanto sQ__ pode ser alcançada no contexto de uma tradiçao
revelada. A intuição metafísica pode ocorrer em qualquer
parte - pois "o espírito desponta onde lhe apraz" - mas
a realização efetiva da verdade metafísica e sua aplicaçao
à vida humana só podem ser alcançadas dentro de uma
tradição revelada que confere eficácia a certos símbolos
e ritos, nos quais a metafísica tem de fiar-se para sua
realização.
Esta ciência suprema do Real, que sob certa luz é o
mesmo que gnose, é a única ciência que pode distinguir
entre o Absoluto e o relativo, aparência e realidade. É so-

124 "Uma doutrina metafísica é a corporificação na mente de uma


verdade universal. Um sistema filosófico é uma tentativa racional de
resolver certas questões que formulamos a nós mesmos." Ver F. Schuon,
Spiritual Perspectives and Human Facts, p. IL
80 0 HOMEM E A NATUREZA

mente à sua luz que o homem pode distinguir entre níveis


de realidade e condições de existência e ser capaz de- ver
cada coisa em seu lugar no esquema total das mesmas.
Além disso, essa ciência, assim como a dimensão esotéri-
ca, existe dentro de toda tradição ortodoxa e integral, es-
tando unida a um método espiritual totalmente derivado
das origens da tradição em questã.o.
Nas tradições do Oriente, a metafísica manteve-se vi-
va até hoje, e a despeito da diferença de fundamentos há
uma unidade doutrina! que justifica o uso do termo "Me-
tafísica Oriental",l25 embora a metafísica não conheça
Oriente ou Ocidente. No Ocidente também teve lugar a
autêntica metafísica da mais elevada ordem, entre os grl::!-
gos, nos escritos pitagórico-platônicos e especialmente com
Plotino; Elm todos estes casos a metafísica é a exposiçao
doutrina! que foi o fruto de uma via espiritual atuante.
~~·No Cristianismo igualmente encontra-se a metafísica
nos escritos de alguns dos primeiros fundadores da teolo-
gia cristã, como Clemente e Orígenes, Irineu, Gregório de
Nicéia e Gregório Nazianzeno, com Erigena, Dante e Ec-
khart e novamente com Jacob Boehme. Entre os escrito-
res ortodoxos há uma exposição metafísica ainda mais
aberta e completa do que aquela que se encontra entre
os autores latinos. Mas mesmo a teologia oficial da igreja
latina, especialmente a escola augustiniana, contém me-
tafísica, que no entanto é muito mais oculta e indireta.
Na filosofia ocidental, contudo, desde Aristóteles, a
infeliz prática de considerar a metafísica como um ramo
da filosofia veio a se estabelecer de forma que esta, com o
aparecimento da dúvida filosófica, também ficou desacre-
ditada. Neste domínio, o racionalismo da filosofia grega
posterior fortificou a tendência, dentro da teologia crista
oficial, a enfatizar antes a verdade e o amor que a inteli-
gência e o conhecimento sapienciais. Estes dois fator'."s
combinaram-se para fazer da metafísica e da gnose um as-
pecto periférico da vida intelectual do homem ocidental,
especialmente a partir do fim da Idade Média e da Re-
nascença. O que é comumente chamado metafísica na filo-
sofia pós-medieval, em grande parte, nada é senão uma ex-
tensão da filosofia racionalista e, na melhor das hipóteses,

125 Sobre metafísica oriental, ver R. Guénon, La Métaphysiqne orie?L-


tale: Paris, 1951.
PRINCÍPIOS METAFÍSICOS PERTINENTES À NATUREZA 8l

um pálido reflexo da verdadeira metafísica. A então cha,


mada metafísica, que filósofos como Heidegger critica-
ram e consideraram como falida, não é a doutrina meta-
física que temos em mente. A metafísica, ligada a uma
filosofia que é a um só tempo perene e universal, não co-
nhece princípio nem fim. É o cerne da philosophia peren-
nis a que Leibnitz se referiu.
Na medida em que a perda do conhecimento metaf!-
sico é responsável pela perda da harmonia entre homem e
natureza e do papel das ciências da natureza no esquema
total do conhecimento, e pelo fato de que este conheci-
mento foi quase esquecido no Ocidente enquanto conti-
nuou a sobreviver nas tradiç'ões do Oriente, é para estas
tradições orientais que devemos nos voltar a fim de redes-
cobrir a significação metafísica da natureza e reviver esta
tradição metafísica no seio do Cristianismo. Se o Oriente
está aprendendo por compulsão e necessidade as técnicas
ocidentais de dominação sobre a natureza, é com a meta-
física oriental que se deve aprender como impedir esta
dominação de tornar-se mero auto-aniquilamento.
Voltando-nos primeiramente para o Extremo Orien-
te, vemos na tradição chinesa, especialmente no Taoísmo e
também no Neoconfucionismo, uma devoção à natureza e
uma compreensão de sua significação metafísica, o que é
da maior importância. Esta mesma atitude reverente face
à natureza, junto a um forte sentido de sirnbolismo e uma
consciência da lucidez do cosmo e de sua transparência
ante as realidades metafísicas, é encontrada no Japão. O
Xintoísmo fortificou enormemente esta atitude. É por
isso que na arte do Extremo Oriente, especialmente nas
tradições taoístas e zen, as pinturas de cenas da naturezJ.
são verdadeiros ícones. Não evocam simplesmente um pra-
zer sentimental no observador, mas transmitem graça, e
são veículos de comunhão com a realidade transcendental.
No Taoísmo, há sempre a consciência da presença da
dimensão transcendente, simbolizada pelo vazio tão domi-
nante nas pinturas de paisagens. Mas esse vazio não é o não-
ser no sentido negativo, mas o Não-Ser que transcende mes-
mo o Ser e é escuro devido apenas a um excesso de luz. :8
como a divina escuridão a que se refere Dionísio Aeropagi-
ta, ou a vastidão da Divindade ( die. wüsste Gottheit) de
Mestre Eckhart. É por isso que o Não-Ser ou Vazio é tam-
bém o princípio do Ser, e através do Ser o princípio de to-
:82 0 HOMEM E A NATUREZA

das as coisas. Assim lemos no texto sagrado do Taoísmo,


!J Tao Te-Ching:
"Todas as coisas sob o Céu são produtos do Ser, mas o
próprio Ser é o produto do Não-Ser." 126 Nesta simples de-
claração está contido o princípio de toda metafísica, ao sa-
lientar a estrutura hierárquica da realidade e a dependên-
cia de tudo que é relativo ao Absoluto e ao Infinito, sir:tll:>O_-:-
lizado pelo Vazio ou Não-Ser, que é livre e sem limites. Da
mesma forma, um tanto mais elaboradamente, Chuang-Tzu
afirma o mesmo princípio, quando escreve:
"No Solene Começo (de todas as coisas) nada havia
em toda vacuidade do espaço; nada havia que se pudesse
dar nome. Foi então neste estado que brotou a primeira
existência - a primeira existência, mas ainda sem forma
corpórea. A partir destas coisas pôde então ser produzido
(recebendo) o que chamamos sua característica própria.
Aquilo que não tinha forma corpórea foi dividido, e então,
,sem intermissão, houve o que chamamos processo de con-
ferição. (Os dois processos) continuando em operação pro-
duziram as coisas. Ao completarem-se as coisas, foram en-
tão produzidas as linhas delimitadoras de cada uma, o que
.chamamos forma corpórea. Essa forma era o corpo, pre-
servando em si o espírito, e cada uma tinha suas manifes-
tações peculiares, o que chamamos sua Natureza. Quando a
Natureza for cultivada, a forma retornará a sua caracterís-
tica própria; e quando esta for atingida, encontrar-se-á a
mesma condição que a do início".l 27
Na medida em que o Céu, no sentido metafísico e em
seu emprego característico chinês, vem da Origem e da Ter-
ra, também em sua significação metafísica, a partir do Céu,
o homem tem de viver neste mundo com uma total consciên-
cia da hierarquia. Pois como diz o Tao Te,..Chinq: "Os cami-
nhos do homem são condicionados pelos caminhos da terra,
os da terra pelos do céu, os do céu pelos do Tao, e o Tao
veio a ser por si mesmo." 12B O céu é port-ª!11()_ UilL:refle~o do
126 L. Gi!Ps, The Sayings of Lao Tzu: Londres, 1950, p. 22. A res-
peito das doutrinas metafísicas chinesas em geral, ver Matgioi, La Vaie
métaphysique: Paris, 1959; e M. Granet, La Pensée chinoise: Paris,
1934.
127 The Sacred Books of China, The Texts of Taoism (trad. de
J. Legge), vol. I: Nova York, 1962, pp. 315-16.
128 J. N eedham, Science and Civilization in China, v oi. 11: Caro-
bridge, 1956, p. 50. Needham interpreta este provérbio como uma
prova da crença no naturalismo científico e faz até uma comparação
?RINCÍPI05 ~VÍETAFÍS!C:OS PERTINENTES À NATUREZA 83

Princip;o Supremo, e a terra, o reflexo dQ céu. A Terra do


Taoísmo não é 'a natureza profana que se apresenta como
gravidade oposta à graça, mas é uma imagem de um protó-
tipo divino, cuja contemplação conduz ao alto, em direção
àquela realidade para a qual "céu" é a expressão tradicio-
nal. Por esta razão também o mundo pode ser conhecido,
num sentido metafísico e não empírico, através de sua Cau-
sa e Princípio.
"O Mundo tem uma Causa Primeira que pode ser vis-
ta como a Mãe do Mundo. Quando se encontra a Mãe, pode-
se conhecer o Filho. Conhecendo o Filho e sem perder de
vista a Mãe, até o final de seus dias, ele não sofrerá dano
algum. "129
Essa ciência é segura e sem perigo, a qual percebe a ma-
nifestação sem perder de vista o Princípio.
É de cardeal importância observar que o Tao é tanto o
Princípio, o meio de atingi-lo, como ainda a ordem das coi-
sas. É, na realidade, a ordem da natureza,1ao "se lembrarmo-
nos de que tudo que o Taoísmo infere por natureza. O Tao.
o Princípici!que é também a ordem e a harmonia de todas as
coisas, está presente em toda parte, em tudo que seja gran-
de ou pequeno. "0-Tao não se esgota naquilo que é o mais
grandioso, tampouco nunca está ausente do que é mais ín-
fimo; e, por conseguinte, pode ser encontrado completo e di-
fuso em todas as coisas."131 "Para se viver em paz e harmo-
nia com a natureza ou com a Terra, tem-se de viver em har-
monia com o Céu e, a fim de realizar esta meta, tem-se de
viver de acordo com o Tao e em conformidade com o mes-
mo, o Tao que impregna tod~'as coisas e também transeen-
de todas as coisas.132

com Lucrécio. Mas há um mundo de diferença entre o "naturalismo"'


helenístico-romano e o "naturalismo" de outras tradições, em que a
substância da natureza não se tornou profana, mas age como um meio.
de transmitir graça.
129 The Sayings of L~o Tzu, p. 23.
130 Needham, op. cit., pp. 36 e ss.
131 The Sacred Books of China, The Texts of Taoism, Parte I, p. 342.
132 Chuang-Tzu referindo-se aos sábios esc1·eve: "(tais homens) por
sua quietude tornam-se sábios; e por seus movimentos, reis. Nada
fazendo, são eles honrados; em sua límpida simplicidade, ninguém
neste mundo pode com eles disputar (a glória da) excelência. A clara
compreensão da virtude do Céu e da Terra é o que se chama 'A Grande
Raiz' e 'A Grande Origem' - aqueles que a têm estão em harmonia
84 0 HOMEM E A NATUREZA

A natureza, como resultado direto doTao e de suas lei~,


apresenta-se em oposição às trivialidades dos artefatos hu-
manos e à artificialidade da qual o homem se cerca. Po1s
como diz Chuang-Tzu ,"o que é da Natureza é interno. O qua
é do homem é externo. Que bois e cavalos tenham quatro
patas é coisa da Natureza. Que se deva pôr um cabresto na
cabeça do cavalo ou uma argola atravessando as narinas do
boi é coisa do homem."l33 É por isso que o objetivo do ho-
mem espiritual é contemplar a natureza e com ela tornar-se
uno, tornar-se "natural". Não se almeja isto num sentido
panteísta ou naturalista, mas num sentido metafísico, de for-
ma qu~tornar-se natural signifique submeter-se totalmente
ao Tao que, a um SÓ tempo, é transcendente e o princípio da
natureza. O objetivo do sábio é estar em harmonia com a
natureza, pois, através desta harmonia chega-se à harmo-
nia com os homens, sendo esta mesma harmonia o reflexa
da harmonia com o céu. Chuang-Tzu escteve: "Qualquer um
que veja claramente a excelência de toda a natureza pode
ser chamado Cepo de Deus ou Pilar de Deus, porque está em
harmonia com a natureza. Qualquer um que esteja em paz
com o mundo está em harmonia com seu próximo e conten-
te com os homens. Aquele que está em harmonia com a na-
tureza está contente com a natureza" .1 34
Estar contente com a natureza, precisando bem, signifi-
ca antes aceitar seus ritmos que procurar dominá-los e sub-
jugá-los. A natureza não deve ser julgada de acordo com sua
utilidade para o homem, tampouco o homem terreno deve
tornar-se a medida de todas as coisas. Não há antropomor-
fismo associado à relação do homem com a naturezaJ35 O
homem deve aceitar e seguir a natureza das coisas e procu-
rar não perturbar a Natureza por meios artificiaisJ36 A açao
perfeita é agir sem agir, sem interesse próprio e apego ou,
em outras palavras, de acordo com a natureza que age li-

com o Céu, assim produzindo todas as medidas equânimes no mundo


- , eles sâo aqueles que estão em harmonia com os homens." lbid.,
p. 332.
13 3 Citado em A History of Chinese Phi/osophy de Fung Yu-Lan
(trad. de D. Bodde), vol. I: Princeton, 1952, p. 224.
13 1 The Sayings of Chuang Chou (trad. de J. War2) Nova York,
1963, p. 88.
1 :l5 Ver Needham op. cit., pp. 49 e ss.
!30 lbid., p. 51. '
PRINCÍPIO<; METAFÍSICOS PERTINENTES À NATUREZA 85

vremente e sem cobiça, avareza ou outros motivos incon-


fessados. Há, de fato, no Taoísmo uma Qposição à aplicação
das ciências da natureza para o bem-estar puramente ma-
terial do homem, como se vê na famosa estória registrada
nas palavras de Chuang-Tzu:
"Hwang-Ti estava no trono há dezenove anos, e seus or-
denanças estavam em operação por todo reino, quando ou-
viu que Kwang Khang-tze (um sábio taoísta) estava viven-
do no cume do Khung-Thung, e foi vê-lo. 'Eu ouvi', disse
ele, 'que vós, senhor, adquiristeís profundo conhecimento
do perfeito Tao. Ouso perguntar-vos o que nele é essencial.
Desejo escolher as sutis influências do céu e da terra, e com
elas auxiliar (o crescimento de) os cinco cereais para (me-
lhor) alimentar o povo. Desejo também dirigir (a operação
de) o Yin e o Yang, a fim de assegurar o conforto de todos
os seres vivos. Como devo proceder para a consecução des-
tes objetivos?' Kwang Khang-tze respondeu: 'O que dese-
jas é saber a respeito da substância original de todas as coi-
sas; aquilo cujcf direção desejas ter é essa substância em
sua forma fragmentada e dividida. Segundo o seu modo de
governar o mundo, os vapores das nuvens, antes de se a-
gregarem, desceriam em forma de chuva; as ervas e as ár-
vores perderiam suas folhas antes delas amarelarem; e a
luz do sol e da lua apressariam a extinção da vida. Sua
mente é a de um adulador com palavras plausíveis - não
está apta a que eu possa falar-lhe do perfeito Tao." 137
É preciso ser lembrado que esta mesma civilização cht-
nesa, onde se cultivou essa visão contemplativa da nature-
za, e onde houve até mesmo oposição à aplicação das ciên-
cias da natureza, desenvolveu a física, a matemática, a as-
tronomia e a história natural e, além disso, ficou conheci-
da através de toda sua história por seu gênio e proezàs
tecnológicos. É preciso, ainda, lembrar que a maioria dos
primitivos alquimistas, geólogos e farmacologistas da China
eram taoístas; 138 e que a polarização do Céu e da Terra e

!37 The Sacred Books of China; The Texts of Taoism, Parte I.


pp. 297-8.
l38 Este ponto foi enfatizado em muitas obras de N eedham: "Está
portanto co1·po,·ificado no nome comum hoje empregado para um templo
tao~sta [kunn] a significação primitiva da observação da Natureza,
e d~sde qne ~'m SPUS nrimó,·dios mágica, adivinhação e ciência es-
tavam insepaníveis, não podemos estar surpresos pelo fato de que
seja ent,·c os taoístas que temos de procurar as raízes do pensamen~o
86 0 HOMEM E A NATUREZA

a significação religiosa da natureza persistiram até quando


a tradição chinesa manteve-se forte. A significação metafísi-
ca da natureza como exposta no Taoísmo, e também no Bu-
dismo, mesmo contribuindo para o desenvolv1mento de ciên-
cias da natureza, permaneceu como uma balança que pre-
servara a hierarquia do conhecimento e impedia a nature-
za de tornar-se profana.
Os chineses até desenvolveram um sistema astronômi-
co, o Hsuan yeh, que como a astronomia pós-copernicana
baseava-se em uma concepção ilimitada de espaço e tem-
po, tendo sido mesmo utilizada pelos proponentes do siste-
ma copernicano na Europa contra a astronomia ptolomaica.
Mas na China este "cosmo aberto" foi mais uma vez assO-
ciado a uma explicação metafísica, jamais sendo-lhe permi-
tido destruir a harmonia entre homem e natureza, que é
tão fundamental às tradições do Extremo Oriente.
No Japão, igualmente, encontramos as concep;;ões taots-
ta e também budista da natureza, provenientes da Chi-
na, integradas à religião xintoísta local e na qual mais uma
vez, como em todos os ramos da tradição xamânica, há uma
ênfase especial sobre a significação da natureza em sen-
tido cultista.139 No seio de um povo com uma notável sen-
sibilidade artística desenvolveu-se o mais íntimo contato
com a natureza; dos jardins de pedras e pinturas de pai-
sagens aos arranjos de flores, tudo se baseia no conheci-
mento das correspondências cósmicas, geografia sagrada,
no simbolismo das direções, formas e cores. Métodos es-
pirituais tornaram-se fiéis aliados da contemplação introS-
pectiva da natureza e da intimidade com seus ritmos e
formas. A ávida procura de objetos japoneses no Ociden-

científico chinês." "The Pattern of Nature-Mysticism and Empiricism


in the Philosophy of Science, Third Century B. C. China, Tenth
Century A.D. Arabia, and Seventeenth Century A.D. Europe", in
Scierwe, Medicine and History, Essays in Honor of Charles Singp.r
(ed. E. Ashworth Underwood): Londres, 1953, p. 361.
139 "Na Ásia, o que é propriamente chamado xamanismo é encontrado
não apenas na Sibéria, mas também no Tibete (sob a forma do
Bün-po) e na Mongólia, Manchúria e Coréia. A tradição pré-budista
chinesa, com seus ramos confucionista e taoísta, está ligada à mesma
família tradicional, e o mesmo se aplica ao Japão, onde o xamanismo
deu surgimento à tradição especificamente japonesa do Shinto. É
característica de todas estas doutrinas uma oposi_çii,o ~O]!lpJg!!J,en~_r_
entre Céu e Terra e um culto da Natureza ... " Schuon, Light on th~
Ancient Worlds, p. 72.
PRI:--ICÍPiOS METAFÍSICOS PERTINLNTES À NATUREZA 87

te, nos últimos anos, é em muitos casos o sinal de uma


nostalgia oculta para novamente encontrar a paz com a
natureza e escapar da feiúra do ambiente criado pela
tecnologia moderna. Em sua especial devoção pela natu-
reza como via; de graça e sustentação espiritual, as tra-
dições do EXtremo Oriente em sua metafísica, ciência e
arte têm uma mensagem da maior importância para o
mundo moderno, onde o confronto homem e natureza qua-
se sempre se baseia na guerra, raramente na paz, esta paz
tão avidamente buscada e tão dificilmente encontrada.
Quando passamos à tradição hindu, também encon-
tramos uma elaborada doutrina metafísica que diz respei-
to à natureza, paralelamente ao desenvolvimento de mui-
tas ciências no seio do hinduísmo, algumas das quais in-
fluenciaram de fato a ciência ocidental através do Islam.
Quando dirigimos nosso pensamento para a tradição hin-
du, nossa atenção volta-se geralmente para ad outrina ve-
dantina de Atman e maya, o mundo sendo considerado não
como realidade absoluta, mas como um véu que encobre
o Eu Supremo. Uma interpretação simplista desta visão,
especialmente a que prevalece entre os modernos pseudo-
vedantinos, concluiria que o mundo sendo maya, geral-
mente traduzida como ilusão, pouco importa se a pessoa
vive na natureza virgem ou no mais feio dos centros ur-
banos, se se encontra rodeada de arte sagrada ou cerca-
da do pior dos lixos produzidos pela máquina.
Esta visão, porém, é o pior possível dos equívocos. :8
maya pura e simples. O que o Hinduísmo declara, como
todas as outras doutrinas orientais, é a necessidade de se
ccnseguir liberar-se do cosmo, que é maya. Entretanto maya
não é apenas ilusão, que é seu aspecto negativo, mas tam-
bém o jogo divino ou arte.l40 Ela encobre o Eu Supremo, a
Realidade Absoluta, mas também a revela e a exibe. Do pon-
to de vista de Atman ou Brahman, o Universo é irreal; so-
mente o próprio Absoluto é real, no sentido absoluto. Para
aquele que vive em maya, a realidade relativa em que se
encontra é, no mínimo, tão real quanto seu próprio eu em-
píriQo; e além disso pode ser de ajuda na obtenção da libe-
ração. Embora para o sábio o cosmo seja uma prisão, tam-

1 40 Esta é de fato a forma pela qual o incomparável erudito do


Hinduísmo, da metafísica oriental e da arte em geral, A. K. Cooma-
raswamy, traduziu a palavra maya.
88 0 HOMEM E A NATUREZA

bém é possível transcendê-la por meio do conhecimento de:


sua estrutura e mesmo com seu auxílio. É por isso que o
Hinduísm-o~ como uma tradição integral, desenvolveu elabo-
radas ciências cosmológicas e naturais, e mesmo técrucas
espirituais intimamente ligadas ao uso da energia latente na
natureza. Não obstante, toda ciência, física, matemática e
alquímica, como também as propriamente religiosas e es-
pirituais, estão ligadas à matriz total do Hinduísmo e em
certos casos do Budismo, e aos princípios metafísicos que
dominam toda a tradição.l41
Dentre as seis darshanas ou escolas intelectuais do Hin-
duísmo, nenhuma etão- analítica e presa ao mundo corpó-
reo quanto a Vaisesika. Esta escola ocupa-se do mundo fí-
sico e mantém uma visão inteiramente atomista, começando·
com os cinco elementos ou bhutas a partir dos quais se for-
mam os corpos. À primeira vista, mais parece um sistema.
afim da física atomista e mecanicista que se desenvolveu
no Ocidente no fim da Antigüidade e novamente no século·
dezessete, e que era geralmente de sentimento anti-religio-
so.142 Mas no Hinduísmo, como no Budismo, desenvolveu-se·
um atomismo combinado com uma visão espiritual do Uni-
verso. O sistema Va·isesika baseia-se no conhecimento das:
seis categorias ou padarthas, que são: substância, atributo
ou qualidade, açãg, generªlidac],e, individu::~,lidade e inerên-
çla. A substância em si é de nove espécies : terra, água, fo-
go, ar, éter, tempo, espaço, mente e espírito. O conhecimen-
to do mundo físico, ou fundamentalmente destas seis cate-
gorias, é o correto conhecimento (ttattvajiíàpna), um co-
nhecímento que só pode ser obtido através da pureza inte-
rior e com a ajuda do dharma ou graça, pois é necessário
lembrar que, no sistema Nyaya-Vaisesika, acima dos seis_

141 Do imenso número de obras sobre o Hinduísmo nas línguas eu-


ropéias, bem poucas compreenderam o ponto d2 vista caractedstico
hindu ou expressaram a visão da próp1·ia tradição. Quanto às dou-
trinas metafísicas do Hinduísmo e a estrutura desta tradição, ver
R. Guénon, Introduction to the Study of the Hindn Doctrines (trad.
de M. Pallis): Londres, 1945; R. Guénon, Man and His Becoming,
accm·ding to the Vedanta (trad. de R. Nicholson) Lond1·cs, 1945;
F. Schuon, The Language of the Self; e as muitas obras de A. K.
Cooamaraswamy, especialmente Hinduism and Buddhism: Nova York
(s.d.). Ver também as exposições lúcidas de M. Eliade e H. Zimmer.
142 Há evidentemente exceções como aquelas do século XVII qu~
falavam do atomismo de Moisés e relacionadas à visão atomista do
próprio profeta hebreu.
PRINCÍPIOS METAFÍSICOS PERTINENTES À NATUREZA 89

padarthas encontra-se Isvara, a Divindade Pessoal, que é a


causa do mundo.
Um sistema assim tão analítico e tão atentamente ocu-
pado com coisas naturais como o Vaisesika, tem como me-
ta a liberação da alma do mundo atomístico, ao qual ela
é atraída pelo falso conhecimento.l 43 De fato, no começo
-de um dos principais tratados desta escola, o Padarthad-
harmasangraha, diz: "Um tratado que se ocupa das pro-
priedades das coisas jamais poderá conduzir à mais eleva-
da bem-aventurança, assim como palavras nada fazem além
de denotar os significados verbais" A tal objeção dá-se
a resposta: "Um conhecimento da verdadeira natureza das
seis categorias - substância, qualidade, ação, generalida-
de, individualidade e inerência - através de suas seme-
lhanças - é o meio de realizar a mais elevada bem-aven-
turança".144 ·. f · 1
O conhecimento do mundb exterior é fundamental-
mente o conhecimento do próprio indivíduo, e mesmo uma
ciência cosmológico-analítica e natural não está divorcia-
da da ,enteléql.lJª humana no sentido mais elevado, a sa-
ber, a liberação de toda limitação. Isto não é absoluta-
mente antropomorfismo. Pelo contrário, é a única forma
de conhecimento através da qual o homem pode escapar
às limitações de seu próprio ego. A respeito do fundador
tradicional do sistema Vaisesika, Kanada, foi dito: "Ele
(Kanada) realizou o conhecimento dos princípios (tatt-
vas), da ausência de paixão e do domínio de si. Em seu
'íntimo refletiu e concluiu que o conhecimento dos prin-
dpios dos seis padarthas (atributos), por meio de suas
·semelhanças e diferenças, é a única via real para se alcan-
143 "A sujeição ao mundo se deve ao falso conhecimento que con-
'siste em pensar que meu próprio eu é aquilo que não é eu-mesmo,
:a sabe1·, os sentidos do corpo, ·':1nanas, sentimento e conhecimento;
uma vez que s1:> obtenha o conhecimento dos seis padarthas, e com<J
·diz o Nyaya, das provas dos objetos do conhecimento c das outras
·categorias lógicas da inferência, o falso conhecimento é dé•stru'ch."
·s. Dasgupta, A History of Indian Philosophy, vol. I: Cambridge,
1922, p. 365.
144 PadarthadhMmasangraha de Praçastapada (trad. de M. G. Jha \,
Allahabad, 1916, p. 13.
Este mesmo texto diz: "Também aqui a declaração de que o
conhecimento da semelhança etc. é o recurso da mais elevada bcatitude
implica que tal beatitude é gerada por um verdadeiro conhecimento
das próprias categorias; como se não pudesse haver conhecimento da
dita semelhança etc. independente das categorias." p. 15.
90 0 HOMEM E A NATUREZA

çar a auto-realização; e que esta via poderia ser facll-


mente atingida pelos discípulos através do dharma (me-
rito ou valor) da renúncia." 145 Assim, o conhecimento da
natureza está inextricavelmente sujeito às leis esp1rüua1s
e morais e à pureza daquele que busca alcançar este có-
nhecimento. É como se o Hinduísmo, como tantas outras
tradições, intuitivamente sentisse que o único l!leiosegl!-
rQ de penetrar nos mistérios da natureza e desenvolver a
:fi:síca, no sentido universal deste termo, é tornar-se san-
to e buscar uma vida santificada. 1

Cutro dos dar§_ll_a_na~, o Samkhya, que contém uma Cas


mais elaboradas cosmologias e filosoflas naturais dentre
todas as tradições, começa igualmente com o problema
do triplo §Qfrimento presente na alma e os meios ae re-
mover este sof:i:Í:mento, como está claramente asssvera-
do no início do Samkhya Karika. 146 Os três tipos de sofri-
mento, que são º-lla.t~:r-ªLe_jntrínseçq como as doenças,
o natural e extrínseco) como qualquer sofrimento causa-
do por uma origem externa e, por fim, o' sofrimento di-
vino ou sobrenatural causado por fatores espirituais, se>
podem ser superados- por um conhecimento analítico do:s
três princípios desta escola, a saber, a substância ou na-
tureza primeira (prakriti), a matéria manifestada que
está em estado de fluxo (vyakti) e, finalmente, o Espírito
que não gera nem é gerado (Purusa).
O sistema Samkhya busca remover da alma o sofri-
mento e a aflição através do conhecimento discrimina-
tivo, etimologicamente Samkhya significando discrimina-
ção.l47 Este sistema começa com Prakriti, a substânc,a ma-

145 The Sacred Buoks uf the Hindus (org;. por B. D. Basu), vol. VI,
The Vaisesika Sutms of Kanada (trad. de Nandalal Sinha): Allahabad,
1923, p. 2.
146 "Do efeito danoso da tripla espécie de dor (surge) um desejo
de conhecer a forma de 1·emovê-la (a dor). Se das visíveis (formas
de removê-la), este (desejo) parecesse supét'fluo, não o seria, pois
estas formas não são nem absolutamente completas, nem duradouras."
The Samkhya Karika of Iswar Krishna (trad. de J. Davies): Calcutá,
1957, p. 6.
Fizemos algum uso para esta análise do Sam.khya 1 da obra persa
de D. Shayegan, que se encontra no prelo (Tehran Univ. Press).
A respeito do sistema Samkhya, ver A. B. Kheit, Samkhya System:
Calcutá, 1949, e B. N. Seal (VraJendranatha-Sila), Positive Sciences
of the Ancient Hindus: Londres, 1915.
147 "A forma de erradicar a raiz da aflição é portanto o guestionn.-
Jl1entopráti(!O da filosofia Samkhya." Dasgrupta, op. cit., p. 26D. ~ ~
PRINCÍPIOS METAFÍSICOS PERTINENTES À NATUREZA 91

terna principal do Universo ou natureza em seu sentido


mais vasto, de onde, através da ação das três tendências
cósmicJJ.S_ ou gU7]JJS, a saber, satwa, rajas e tamas, ou bon-
dade, (paixão e /obscu_r_i_Q.ªd_e, ou as tendências ascendente~
~J!.P-ªnsiv-ae- descen-dente, todo o domínio cósmico étrazi-
do à existência. Há vinte e cinco tattvas ou princípios cujo
conhecimento forma a base do sistema Samkhya. _Arltes
de tudo há a _guádrupla divisão das coisas em: produto-
ra, que é Prakriti; aquilo-que produz e é produzid91 como
o intelecto ou Buddhi; aquilo ql1e é apenas produzid,d,
como os sentidos e os elementos; e, finalmente, aquilo que
não produz nem é produzido, isto é, Purusa, o Espírito Uni-
versal, que se coloca aciriüi e é distinto de Prakriti e todos
os seus produtos.I4s
Além disso, existe a divisão mais detalhada em tattvas.
Através da ação dos gunas, que estão presentes em todos
os níveis da realidade cósmica, gera-se primeiro o Buddhi ou
intelecto, e deste o princípio do Égoísmo, ou Ahankara'l D:s-
te último, por sua vez, procedem os cirico elegJ._?nj;Q~ sutis
(tanmatra), que são os princípios dos e~ementos grosseiro;;,
corpóreos. A partir também de Ahankara emergem os onze
sentidos1 que consistem de: os cinco órgãos dos sentidos, os
cinco órgãos da ação e a faculdade receptiva e discrimi-
nativa (manas). Dos elementos sutis são produzidos os
elementos grosseilos (mahabuta). Acima dftodo este à.o-
mínio acha-se o Purusa e o objetivo de todas as ciências da
natureza é precisamente que a alma se desvencilhe dos
sentidos da percepção, com os quais, por engano, se iden-
tifica através da ação de manas e ahankara.
O próprio Universo, que emerge do seio da Prakriti ou
Natureza, é formado de tal modo que permite ao homem
contemplá-lo no sentido metafísico e também por con-
seqüência obter do mesmo sua separação ou catarse.149
Além disso, uma vez que o espírito obtenha conhecimen-
to da natureza, ela mesma o auxilia nesta separação e re-
tira-se de cena. Como lemos no Samkhya-Karika: "Como
uma dançarina que tendo-se exibido no palco pára de dan-
148 Esta quádrupla divisão tem uma surpreendente semelhança con
a De divisione naturae, de Erigena.
149 "É para que a alma seja capaz de contemplar a Natureza e
tornar-se totalmente separada da mesma que a união de ambas é
feita, como a do coxo e o cego, e através dessa (união) o universo
é formado." The Samkhya Karika, p. 34.
92 O HoMEt-.I E A NATUREZA

çar, assim a natureza (Prakriti) cessa (de produzir) quan-


do se torna evidente à alma." 150 Portanto, no sistema Sam-
khya como no Vaisesika, o conhecimento ela natureza con.-
duz à catarse da alma e a sua liberação. Além disso, a
própria Natureza é de ajuda neste processo de realizaçao,
auxiliando o espírito que se arma do conhecimento dis-
criminativo.
Este tema da confiança na natureza para a tarefa da
realização espiritual é levado a sua plena conclusão nas
práticas atribuídas ao Tantra Yoga. No tantrismo, a Sakti
ou princípio feminino torna-se a encarnação de toda força
e poder existentes no Universo, e através da utilização deste
mesmo poder o iogue, como que cavalgando as ondas do
mar, procura ultrapassar a natureza e o oceano da mani-
festação cósmica. No tantrismo há uma elaborada corres-
pondência entre o homem e o cosmo, a própria coluna ver-
tebral é chamada oWeru'>do corpo humano.151 De fato, na
via tântrica ou sadhana, o corpo ou a carne do homem e o
cosmo vivente são os elementos- -funâ.amentais.152 o Uni-
verso-é o "corpo do Senhor",153 e ao morrer e enterrar-se
em seu seio, nos braços da natureza no papel da Divina
Mãe, o iogue encontra sua liberação. A morte e a ressurrei-
ção do iogue é muito semelhante ao salve et coagula dos,
alquimistas cristãos medievais e, de fato, o tantrismo tor-
nou-se associado à alquimia na índia, apresentando doutri-
nas extremamente parecidas com as dos herméticos oci-
dentais, que também morreram no princípio maternal a
fim de serem ressuscitados no espírito e que buscavam o
"corpo glorioso" assim como os iogues buscavam o "corpo
diamantino" (vajrayana). O tantrismo em sua conexao

150 lbid., p. 67. O comentário Tattva-Kanmudi além disso acrescenta:


"Como um servo competente que assegura o bem-estar de sru senhot·
incompetente, por motivos puramente não egoístas, sem qualquer be-
nefício para si mesmo; assim também a Natureza, dotada dos três
Atributos, beneficia o Espírito sem receber em tmca nenhum bem
para si mesma. Assim os motivos puros e não egoístas da Na tu reza
são estabelecidos." Tattva-Kaumudi de Vachaspati i\Iisra (trad. d(}
G. Jha) Bombaim, 1896, p. 104.
15! Ver Sir J. \Voodruffe, Introtuction to Tantra Sastra: Madrasta,
1956, pp. 34-5.
152 Ver M. Eliade, Yoga, hnmortality and Freedom: Nova York,
1958, p. 204.
153 Ver Sir J. Woodruffe, The World as Power: Madrasta, 1957,
p. 3.
PRINCÍPIOS METAFÍSICOS PERTINENTES À NATUREZA 93

com a alquimia apresenta uma interpretação simbólica


bastante profunda da natureza, estreitamente ligada a uma
via espiritual. Devido a seu estreito paralellsmo com a tra.
dição alquímica cristã, o tantrismo é um meio bastante
efetivo de relembrar idéias e doutrinas há muito esqueci-
das e perdidas no Ocidente.
A civilização indiana também desenvolveu um gran-
de número de ciências que foram completamente integra.
das à estrutura da tradição. Os Ve.dangas, consistindo das
seis ciências\ da fonética ( siksa); do ritual ( kalpa) ; da gra-
mática (vyakarana); da eti!llQlogia (nirukta); da }!létri_cª-
(chandas) e da astronomia (jyotisa), surgiram ao final do
período bramânico como-Ciências inspiradas ( smrti) ' como
comentários e complementos dos Vedas divinamente reve-
lados (sruti) .154 O próprio Vedanga significa literalmente
"membro do Veda" e subentende que estas ciências sejam
uma extensão do corpo principal da tradição contida nos
Vedas. Abaixo destas ciências encontram-se o Upaveda (Ve-
da secundário), consistindo de m~dicinª- (Ayur-veda); ~iên­
cia militar (Dhanur-veda); música (Gandharvaveda) e
física e mecânica (Sthapatya-veda). Estas ciências são
consideradas como uma aplicação dos princípios contidos
nos Vedas em domínios específicosJ55 Mesmo os elemen-
tos tomados de fontes babilônicas, gregas e iranianas fo.
ram integrados a esta estrutura tradicional.
Além do mais, as ciências da EJ:itm_ética ( vyaka-gani-
ta), álgebra (bijaganita) e g§_QI!!etria (rekha-ganita), que
influenciaram tão consideravelmente as ciências mulçu.
mana e ocidental, estavam estreitamente ligadas aos prin-
cípios do Hinduísmo e também do Budismo, como vemos
na relação entre o indefinido da álgebra e o Infinito meta..
físico, ou entre o número zero, utilizado pela primeira vez
na aritmética indian_a>- e a_dol!trina _metafístca do ·vazio
(shunya) :156 Assim, em todos os níveis, havia um víncufo
íntricado e inextrincável entre as ciências e os princípios

15 4 Ver Cultural Heritage of India, vol. I: Calcutá, 1958, pp. 264-2


(capítulo sobre os Vedangas por V. M. Apte).
155 A respeito dos Upavedas, ver R. Guénon, Introduction to tha
Study of the Hindu Doctrines, Capítulo VIII.
156 Sobre a relação entre o zero e o centro da roda cósmica, c
também quanto ao vazio, ver A. K. Coomaraswamy, "Kha and Other
Words Denoting 'Zero', in Connection with the Metaphysics of Space",
Bull. School of Oriental Studies, vol. VII, 1934, pp. 487-97.
'94 O Ho:.IDI E ,\ NATUREZA

metafísicos da tradição. Nenhuma ciência jamais foi cul-


tivada fora do mundo intelectual da tradição, e a natureza
tampouco jamais foi profanada e transformada em assun-
to de estudo puramente secular.
Ao voltarmo-nos para o Islam, encontramos uma tra-
dição religiosa mais afim do Cristianismo em suas formu-
lações teológicas, embora possuindo em seu âmago uma
gnose ou sapientia semelhante às doutrinas metafís1cas de
outras tradições orientais. Neste domínlo, como em tantos
outros, o Islam é o "povo do meio", o ummah wasatah
a que o Alcorão se refere, em sentido tanto geográfi-
co quanto metafísico. Por esta razão, a estrutura intelec-
tual do Islam e suas doutrinas e ciências cosmológicas da
natureza podem ser da maior ajuda no despertar de cer-
tas possiblidades dormentes no seio do Cristianismo.157
Encontra-se no Islame uma elaborada hierarquia do
conhecimento integrada pelo princípio de unidade (al-taw-
hid) que atravessa como um eixo todas as modalidades
de conhecimento e também de existência. Há ciências ju-
rí::icas, scciais e teológicas; e há as gnósticas e metafísicas,
todas derivadas em seus princípios da origem da revela-
ção, que é o Alcorão. Desenvolveram-se então, na civiliza-
ção islamita, elaboradas ciências filosóficas, naturais e ma-
temáticas que passaram a integrar a visão islamita e que
foram totalmente muçulmanizadas. A cada nível de co-
nhecimento a naturezà) é vista sob uma luz específica. Para
os juristas e teólogos ( mutakallimun) ela é a ]:Jll.Se para a
ação humana. Para o filósofo e cientistas é um dq_mi1110
patâ-ser analisado e compreendido. Ao nível metafísico e
gnóstico é o gbJeJo da contemplação e o espelho que re-
flete as realidades supra-sensíveis.l 5B
Além disso, durante toda história islamita houve
uma íntima conexão entre gnose, ou a dimensão metafísi-
ca da tradição, e o estudo da natureza, como também a
encontramos no Taoísmo chinês. A grande maioria dos ci-

157 A respeito das doutrinas cosmológicas do Islame, ver S. H. Nau,


An Introduction to Islamic Cosmological Doctrincs. Enquanto que para
as próprias ciências islamitas, ver S. H. Nas r, Scicnce and Civilization
in Islmn.
1 58 Ver S. H. Nasr, Islamic Studies: Beirute, 1966, Capítulo V,
"The Meaning of N ature in Various Intellectual Perspectives in
Islam" e Capítulo XIII, "Contemplation and Nature in the Perspec-
tive of Sufism".
PRINCÍPIOS METAFÍSICOS PERTINENTES À NATUREZA 95

entistas muçulmanos como Avicena, Qutb al-Din Shirazi e


Baha' al-Din 'Amili eram ou sufis praticantes ou estavam
intelectualmente ligados às escolas gnósticas iluministas.
No Islam como na China, a observação da natureza e
mesmo a experimentação mantiveram-se em grande parte
ao lado do elemento gnóstico e místico da tradição, en-
quanto o pensamento lógico e racionalista geralmente per.
mr.neceu alheio à verdadeira observação da natureza. Nun-
ca ocorreu o alinhamento encontrado na ciência do sécu-
lo dezessete, a saber, um casamento entre racionalismo e
empirismo; que no entanto estavam agora totalmente di-
vorciados daquela i>-é:iPerimentação· que foi central para o
homem do passado, a saber, a experimentação consigo
mesmo através de uma disciplina -espidtual.159
No IslãmeJ o elo inseparável entre homem e natureza,
e também entre as ciências da natureza e a religião, pode
ser encontrado no próprio Alcorão, o Livro Divino que é
o Log_os ou Verbo de Deus. Como tal, é também a origem
da revelação que é a base da religião e dessa ___:revelação
m_acrocósmi_ça que é o Universo. É tanfõ- o Alcorão-re-gis-
trado (al-Qur'an al-tadwini) quanto o "Alcorão da criação"
(al-Qur'an al-takwini) que contêm as idéias ou arquéti-
pos de todas as coisas. É por isso que o termo utilizado
para significar os YErr150S do Alcorão ou ayah também sig-
nifica os eventos que têm-lugar na alma dos homens e
nos fenômenos da natureza.I6o
Para o homem, a Revelação é inseparável da revela-
ção cósmica que também -e um livro de Deus, apesar de o
íntimo conhecimento da natureza depender do conheci-
mento do significado secreto do texto sagrado, ou interpre-

l59 Mesmo na Renascença, muitos dos observadores e experimenta·


dores, longe de serem racionalistas, 'estavam tomados pela Cabala,
Rosacruz, ou outras escolas místicas desse período, como foi de-
monstrado por W. Pagcl em seu "Religious Motives in the Medica!
Biology of the Seventeenth Century", Buli. Histo1·y of 1ll cd: i na, 1935,
vol. li, n. 0 2, pp. 97-128; n.o 3, pp. 213-31; n.o 4, pp. 265-312. En-
quanto que para o caso do Taoísmo, ver Needham, Scíence and Civi-
lization in China, vol. 11, pp. 91 e ss., em acréscimo ao seu artigo
já citado.
160 O Alcorão de fato diz: "Iremos mostrar-lhes nossos prodígios
além dos horizontes e dentro deles mesmos, até que lhes sejam mani-
festados que essa é a grande Verdade". (XLI; 53) (tradução de
Pickthall); ver Nasr, An lntroduction to lslamic Cosmological Doc-
trines, p. 6.
96 o HOMEJ\I E A NATUREZA

tação hermenêutica, (ta'wil) .1s1 A chave para o significado


secreto das coisas reside em ta'wil, em penetrar,
partindo do significado exterior (zahir), no significado in-
terior (batin) do Alcorão, um processo que é exatamente o
contrário do criticismo mais elevado de hoje. A busca às raí-
flES do conhecimento do significado esotérico de um texto
sagrado é também encontrada em Filo e em certos autores
medievais cristãos, como Hugo de São Vítor e Joaquim de
Flora. Fora da corrente principal da ortodoxia é encontra-
da, após a Renascença, em escritores como Swedenborg. É
precisamente esta tradição, no entanto, que se extingue no
Ocidente, com a obliteração das doutrinas metafísicas, dei-
xando o texto sagrado opaco e impossibilitado de responder
às questões impostas pelas ciências naturais. Deixados uni-
camente com o significado externo da Sagrada Escritura,
os últimos teólogos cristãos não puderam encontrar ou-
tro refúgio, a não ser um fundamentalismo cuja patética
fuga ante a ciência do século XIX ainda está fresca na
memória. ~
f
Ao se recusar separar completamente o homem da
natureza, o Islame preservou uma visão integral do Univer-
so e vê nas artérias das ordens cósmica e natural o fluxo
da graça divina ou barakah. O homem busca o transcen-
dente e o sobrenatural, mas não contra o pano de fundo de
uma natureza profana que se opõe à graça e ao sobrenatu-
ral. Do íntimo da natureza o homem busca transcendê-la,
e ela própria pode ser um auxílio neste processo, desde que
este possa aprender a contemplá-la, não como um domínio
independente da realidade, mas como um espelho que re-
flete uma realidade mais elevada, um vasto panorama de
símbolos que falam ao homem e têm significado para o
rnesmo. 162

1 61 Ver H. Corbin (com a colaboração de S. H. Nasr e O. Yahya),


Histoire de la philosophie islamique: Paris, 1964, pp. 13-30; e H. Cor-
bin, "L'intériorisation du sens en hc>rménPutique soufie iranienne",
Eranos Jabrhuch, XXVI: Zurique, 1958. Ver também S. H. Nasr,
ldeals anti Realities of lslam: Londres, 1966, Capítulo 11.
162 "Tampouco há qualquer coisa que seja mais do que uma sombra.
Na verdade, se um mundo superior não lançasse sombras, os mundos
inferiores desapareceriam de uma só vez, posto que cada mundo em
criação não é mais que uma trama de sombras inteiramente depen-
dente dos arquétipos do mundo que se encontra acima. Assim, o fato
mais destacado e mais verdadeiro sobre qualquer forma é que esta
·é um símbolo, de forma que ao contemplar algo a fim de que se
PRINCÍPIOS META FÍSICOS PERTINENTES À NA TU REZA 97

O propósito do aparecimento do homem neste mun-


do é, segundo o Islam, de ganhar total conhecimento das
coisas, tornar-se o Homem Universal (al-insan al-kamil),
o espelho que reflete todos os Nomes e Qualidades Divi-
nos.lsa Antes de sua queda o homem estava no estado edê-
nico, o Homem Primordial (al-insan al-qadim); após sua
queda perdeu este estado, mas pela virtude de encontrar-se
como o ser central em um Universo que pode conhecer
completamente, ele pode TraTem do estado em que se en-
contrava antes da queda para se tornar o Homem Univer-
sal. Portanto, se tirar vantagem da oportunidade que a vi-
da lhe concedeu, com a ajuda do cosmo ele pode deixá-la
com mais do que tinha antes da queda.
O propósito e objetivo da criação é, na realidade, que
Deus venha a Se "conhecer" através de Seu perfeito ins-
trumento de conhecimento que é o Homem Universal. o
homem portanto ocupa uma posição específica neste mun-
do. Está no eixo e centro do milieu cósmico, a um só tempo
mestre e zelador da natureza. Ao lhe ser ensinado os no-
mes de todas as coisas, obtém domínio sobre elas, mas
este poder só lhe é dado porque ele é o representante ( kha-
lifah) de Deus na terra e o instrumento de Sua Vontade.
Ao homem é dado o direito de dominar a natureza ape-
nas em virtude de sua aparência teomórfica, não como um
rebelde contra o céu.
O homem é de fato o veículo da graça para a nature-
za; através de sua ativa participação no mundo espiritual
ele lança luz no mundo da natureza. Ele é a boca atr2.-
vés da qual a natureza respira e vive. Devido à íntima li-
gação entre o homem e a natureza, o estado interior deste
se reflete na ordem externa. 164 Se não houver mais con-
recorde suas realidades mais elevadas, o viajante está considerando
esta coisa Pm seu aspecto universal, que por si só explica sua exis-
tência." Abu Bakr Siraj Ed-Din, The Book o/ Ce1·tainty: Londre.:;,
1952, p. 50.
163 Sobre esta doutrina capital, VPr al-Jili, De l'hommc universel
(trad. de T. Burkhardt): Lyon, 1953; e T. Burckhardt, An Intrt~­
ductinn to Suji Dnctrine (trad. de D. M. Matheson): Lahore, 1959.
164 "Ao se considerar aquilo que a religião ensina, é essencial lem-
brar que o mundo externo é um reflexo da alma do homem ... " T h e
Book o/ Certainty, p. 32. "O estado do mundo exterior-não corres-
ponde meramente ao estado geral da alma dos homens; num cert.:>
sentido também depende desse estado, posto que o próprio homem é
o pontífice do mundo exterior. Assim, a corrupção do homem necessa·
riamente afeta o todo ... " lbid., p. 33.
98 O HoMEM E A NATUREZA

templativos e santos, a natureza tornar-se-á desprovida da


luz que a ilumina e do ar que a mantém viva. Isto expli-
ca porque, quando o ser interno do homem torna-se es-
curidão e caos, a natureza também, da harmonia e da be-
leza, passa ao desequilíbrio e à desordemJG5 O homem
vê na natureza aquilo que ele próprio é, e só penetra no
significado secreto da mesma com a condição de ser '::a-
paz de penetrar nos mais profundos recônditos de seu pró-
prio ser e de deixar de residir meramente na perifena
deste. Os homens que vivem apenas na superfície do .;er
podem estudar a natureza como algo a ser manipulado e
dominado. Mas somente aquele que se voltou para a di-
mensão interna de seu ser pode ver a natureza como un1
símbolo, como uma realidade transparente, podendo che-
gar a conhecê-la e compreendê-la no verdadeiro sentido.
No Islam, devido a esta mesma concepção do homem
e da natureza, esta jamais foi considerada como profana,
e tampouco as ciências da natureza, consideradas como
natura naturata, jamais foram estudadas sem a lembran-
ça da natura naturans. A presença da doutrina metafísi-
ca e da hierarquia do conhecimento permitiram ao Isll1-
me desenvolver muitas ciências que exerceram enorme in-
fluência sobre a ciência ocidental sem que estas destruís-
sem o edifício intelectual do Islam. Um homem como Avi-
cena pode ser físico e filósofo peripatético, e ainda expor
sua "Filosofia Oriental", que buscava o conhecimento atra-
vés da iluminação.l6 6 Um Nasir al-Din Tusi pôde ser o
mais destacado matemático e astrônomo de seus dias, o
ressuscitador da filosofia peripatética, o autor da mais co-
nhecida obra sobre teologia Shi'ite e de um tratado im-
gualável sobre sufismo. Seu discípulo Qutb al-Din Shiro-
zi pôde ser a primeira pessoa a explicar corretamente a
causa do arco-íris e a escrever o mais célebre comentário
sobre a Teosofia da Luz do Oriente (Hikmat al-ishraq),
de Suhrawardi. Os exemplos podem se multiplicar, mas

165 Um mulçumano tradicionalista veria na desolação e na feiúra


da sociedade industl'ial moderna e no ambiente que esta criou um
reflexo externo das trevas na alma dos homens que criaram esta or-
dem e que vivem segundo a mesma.
166 Ver H. Corbin, Avicenna and the Visionary Recital (trad. de
W. Trask), Nova York, 1961; e S. H. Nasr, Three Muslún Sages, Ca-
pítulo I; A n lntroduction to I slamic Cosmological Doctrines.
pp. 177 e ss.
PRINCÍPiOS METAFÍSICOS PERTINENTES À NATUREZA 99

estes são suficientes para demonstrar o princípio da hie-


rarquia do conhecimento e a presença de uma dimensão
metafísica dentro do Islame que satisfez as necessidades
intelectuais dos homens, de forma que jamais buscaram
satisfazer sua sede de causalidade) fora da religião, como
acinteceria no Ocidente durante a Renascença.
Na verdade, poder-se-ia dizer que principal razão de
a ciência nunca ter florescido na China ou no Islam é
precisamente devido à presença da doutrina metafísica e
a uma estrutura religiosa tradicional que se recusou a fa-
zer da natureza uma coisa profana. Tampouco o "buro-
cracismo oriental" de Needham167 nem qualquer outra ex-
plicação social e econômica são suficientes para explicar
por que a revolução científica, como se vê no Ocidente,
não se desenvolveu em nenhuma outra parte. A razão mais
fundamental é que nem no Islam, nem na índia, nem no
Extremo Oriente, a substância e o conteúdo da nature7..a
foram tão esvaziados de um caráter sacramental e espi-
ritual, nem a dimensão intelectual destas tradições foi tao
enfraquecida a ponto de permitir que uma ciência da na-
tureza puramente secular e uma filosofia secular se de-
senvolvessem fora da matriz da ortodoxia intelectual tra-
dicional.168 O Islam, que se assemelha ao Cristianismo sob
tantos aspectos, é um exemplo perfeito desta verdade, e o
fato de a ciência moderna não ter se desenvolvido em seu
meio não é sinal de decadência, como alguns alegaram,
mas da recusa por parte do Islam de considerar qual-
quer forma de conhecimento como uma forma puramente
secular e divorciada daquilo que ele considera como a m2-
ta final da existência humana.
Antes de passarmos à tradição cristã é impossível dei-
xar de mencionar brevemente o caso dos índios america-
nos, cuja visão em relação à natureza é uma mensagem
preciosa para o mundo moderno. Os índios, especialmente
os das planícies, não desenvolveram uma metafísica arti-
culada, mas não obstante possuem as mais profundas dou-

167 Ver J. Needham, "Science and Society in East and \Vest", Cen-
taurus; v oi. 10, n.o 3, 1964, pp. 174-97.
168 Por ortodoxia não queremos dizer simplesmente seguir a inter-
pretação exotérica e literal de uma religião, mas j)Ossuir a __~
:<:orreta ( orthos-doxia) aos níveis tanto exotérico_gua-nf<Lesotéü~. Ver
F~oil, ''Orthodoxy and fritellectuality", em Language o/ the Self:
Madrasta, 1959, pp. 1-14.
100 0 HOMEM E A NATUREZA

trinas metafísicas expressas nos símbolos mais concreto::.


e prímordiais.1s9 O índio, que é até certo ponto um mono-
teísta primordial, via na natureza virgem, nas florestas, ár-
vores, rios e no céu, nos pássaros e búfalos símbolos dire-
tos do mundo espiritual. Com o forte espírito simbolista do
qual foi dotado, via em toda parte imagens de realidaa.es
celestiais. Para ele, como para outros nômades, a nature-
za era sagrada e havia um absoluto desprezo pelas artifr-
cialidades da vida sedentária. A natureza virgem foi para o
índio a catedral onde viveu e prestou culto. Sua luta de-
sesperada contra o homem branco não era apenas por es-
paço vital, mas também por um santuário. Sua civilizaçao
era tão diferente da do mundo moderno, e também tão dia-
metralmente oposta a esta que após viver por milhares de
anos na natureza ele a deixou em condições tão perfeitas
que hoje essa área em que ele viveu mereceu ser transfor-
mada num parque nacional a fim de impedir que fosse sa-
queada. Quando se observam as trilhas do índio no alto
das Montanhas Rochosas, trilhas que ele cruzou durante
milênios sem perturbar o meio ambiente a sua volta, se
sente quão intensamente foi o índio quem realmente se
deslocava com suavidade sobre a terra. Por isso, se não hou-
ver outras raZJões, a herança do índio americano contém
uma mensagem muito preciosa para o mundo moderno.
Se chegasse o dia em que o Cristianismo, em lugar de
tentar converter os seguidores das religiões orientais, ten-
tasse também compreendê-los e iniciasse com eles um diá-
logo intelectual,l70 então a metafísica oriental, que é tam-
bém em essência a philosophia perennis, assim como as
doutrinas cosmológicas das tradições orientais (às quais
se poderia também referir como cosmologia perennis) ,111
poderia agir como motivo e ocasião para a recuperação

169 A respeito dos ensinamentos metafísicos dos índios, ver J. Brown.


The Sacred Pipe: N orman, 1953; também F. Schuon, "The Shamanism
of North Amcrican Indians", em Light on the Ancient World, pp. 72-8.
170 Quanto ao mundo islamita, com poucas exceções, não houve con-
tato intelectual com o Cristianismo desde a Idade Média.
171 A respeito desta cosmologia perene, ver. T. Burckhardt, Cosmo-
logie Perennis, Kairo.s, vol. VI, n. 0 2, 1964, pp. 18-32.
Isto não quer dizer, evidentemente, que não haja diferenças no.
papel e significado da natureza nas várias tradições citadas. Mas há
suficiente concordância sobre os princípios e sobre a significação me-
tafísica da natureza para assegurar o emprego do termo "cosmologia
perennis".
PRINCÍPIOS METAFÍSICOS PERTINENTES À NATUREZA 101

dos elementos esquecidos da tradição cristã. Estes pocte-


riam aJudar na restauração de uma visão espiritual da na-
tureza que seria capaz de fornecer o fundamento para as
ciências. Igualmente se revíssemos a história do Cristianis-
mo sob a luz da metafísica oriental e dos princípios cos-
mológicos, alguns dos quais foram acima mencionados,
descobnríamos uma tradição do estudo da natureza qm~
poderia atuar como base para uma nova apreciação teoló-
gica da visão cristã da natureza. É -à luz destas doutrinas
que nos-voltamos pa:ra alguns representantes desta trad.l-
ção na história do Cristianismo.
No Velho Testamento há certas referências à particJ-
pação da natureza na visão religiosa da vida, como na visão
de Oséias em que Deus fez um pacto com os animais sel-
vagens e com as plantas a fim de garantir a paz, ou quando
Noé foi ordenado a preservar todos os animais, quer fos-
sem limpos, quer sujos, isto é, sem levar em conta sua utl-
lidade em relação ao homem.172 Igualmente, a natureza vir-
gem ou mundo selvagem é concebida como lugar de jul-
gamento e punição, assim como de refúgio e contempla-
ção, ou como o reflexo do paraíso. Este enfoque e '}Sta
tradição da visão contemplativa da natureza ina sobrevi-
ver mais tarde no Judaismo, tanto na escola cabalística
quanto na _Hassidim. Quanto ao Novo Testamento, a mor-
te e ressurreição de Cristo é acompanhada de um declínio
e rejuvenescimento da natureza, salientando o caráter có~~­
mico do Cristo. São Paulo também acreditava que toda a
criação toma parte da redenção.
No Ocidente, entretanto, como uma reação ao paga-
nismo, a Igreja primitiva tornou-se totalmente isolada e
distinta do mundo a sua volta. Mesmo os termos paraíso
e vastidão, no sentido positivo, tornaram-se ligados unica-
mente à Igreja e, posteriormente, ao mosteiro e à univer-
sidade como instituições distintas.l73 Gradualmente, na
Igreja ocidental, o caráter seletivo da salvação passou a ser
mais salientado, e a natureza virgem e a vastidão passaram
172 Williams, Wilderness and Paradise in Christian Thought, intro-
dução, p. x.
173 "O termo correspondente a paraíso, no sentido do Jardim do
Grande Rei do Universo, aplicar-se-á provisoriamente, no devido tem-
po, à Igreja, a seguir mais exclusivamente somente ao mosteiro dis·
ciplinado, depois à escola que crescia fora da Igreja e do mosteiro, 3
saber, a universidade medieval, e por fim, no Novo Mundo, ao semi·
nário teológico como berço de missionários e ministros." lbid., p. 6.
·102

a ser interpretadas antes como um domínio de operações


bélicas e combate que como um domínio de paz e contem-
plação. Mesmo a expansão egográfica da Renascença e a
conquista do Novo Mundo foram levadas a cabo com este
motivo em mente,174 Na Igreja Oriental, entretanto, a vi-
são contemplativa da natureza foi enfatizada e tornada
muito mais central. A natureza foi considerada como o su-
porte para a vida espiritual e manteve-se a crença de que
toda a natureza toma parte na salvação (apokatastaS'is pan-
ton) e de que o Universo é renovado e reconstruído pelo
Cristo em sua segunda vinda.
Dentre os padres antigos também os gregos como On-
.genes, Irineu, Máximo, o Confessor, e Gregório de Nicela,
que foram tão influentes na formação da teologia ortodo-
xa, desenvolveram uma teologia da natureza. Orígenes e
Irineu são particularmente importantes, dado que apllca-
ram a doutrina do Logos não apenas ao homem e sua re-
ligião, mas também à íntegra da natureza e a todas as
criaturas. Seus seguidores, de forma semelhante, mostra-
ram mais simpatia por uma visão espiritual da nature-
.za.175 No entanto, os padres latinos, na maioria das ve-
zes, não mostraram grande interesse pela natureza, ao
ponto de o mais famoso dentre estes, Santo Agostinho, na
Cidade de Deus, considerar a natureza como caída, ainda
não redimida. 176
Com a expansão do Cristianismo no norte da :b.:uroi.Ja,
novos grupos étnicos entraram para a comunidad2 cns-
tú. que, longe de ser conspurcada pelo paganismo do mun-
do mediterrâneo, possuía um aguçado discernimento em
relação ao valor espiritual da natureza. Entre os anglo-
saxões e os celtas houve uma forte conscientização da har-
monia entre homem e natureza,177 Os monges celtas per-
seguiam a theoria ou visão do cosmo como uma teofania

lH Este desenvolvimento foi integralmente traçado em Wilden-wss


nnd Paradise, de \Villiams.
1 oG BasJiio de N co- Cesaréia, um origenista, escreve em seu Hexaemc-
ron: "Uma simples folha de relva é suficiente para ocupar toda a
vossa mente ao contemplares o talento que o produziu", e faz prele-
c,:ucs sobre a natureza como o produto da mão de Deus. Ver Raven,
Nàtural Religion anrl Christian Theology I, Seienee and Religion,
p. 47, onde é citado este dito.
17 G Quanto à atitude de Santo Agostinho c da Igreja primitiva, como
também do Cristianismo posterior face à natureza, ver Ravcn, op. c,t,
177 Williams, Paradise and Wilderness, pp. 46 e ss.
PRINCÍPIOS METAFÍSICOS Pl'RTINENTES À NATUREZA 103

div~na e puseram-se em peregrinações na esperança de des-


cobrir a harmonia com a criação de Deus. Parte da me-
lhor poesia da natureza no Ocidente é fruto da busca es-
pirituaCdestes monges.l7s
Coube a um homem do norte, Johannes Scotus Eri-
gena, a tarefa de fornecer a primeira formulação metafísi-
ca completa da natureza na Idade Média latina. O 12rudito
irlandês do século nove, que escreveu comentários so-
bre a Bíblia onde procurou revelar seu significado secre-
to, como também sobre Dionísio Aeropagita, é mais conhe-
cido por sua obra De Divisione naturae, que se ocupa de
Deus, da criação e do retorno à criação de Deus. Alguns
teólogos e filósofos, que não compreendem uma doutrina
metafísica e cosmológica da natureza, estão prontos a
acusar Clllalquer doutrina desta espécie de ser panteísta,
mas Edígena estava plenamente consciente da Origem
Transcendente do Universo. Contudo, para ele todas as
coisas do Universo provêm de Deus e são criadas atraves
de Cristo.I7 9 A pr;meira frase de abertura das Escrituras,
"No começo Deus fez o céu e a terra", de fato signit:ca.
para Erigena a criação de todas as causas primordiais em
Cristo.tso
Erigena, seguindo Gregório de Nicéia, defendeu uma
concepção da natureza segundo a qual a matéria antes dC:!
ser uma quantidade opaca.; é uma combinação /de quall-

17 s "A peregrinação do 1nongc i 1·landês, portanto, não foi n1eramente


a busca incansável de um co1·ação romântico insatisfeito, foi sim um
tributo profundo e existencial às realidades percebidas na própria
estrutura do mundo, do homem e de seu ser: uma compreensão do
diálogo on_!ológico e espiritual entre o homem c a criação, onde as ~'C:t­
Iidaclcs espirituais e c0;·pó1·eas se unem e se entrelaçam C011".J as ilu
minuras manuscritas do Livro de Kells. . Melhor talvez que os gTcgos,
alguns monges celtas alcançaram a pu reza dessa theoria physikc qu<"
vê Deus não nas essências ou logoi das coisas, mas em um cosmo hie-
rofante: daí então a maravilhosa poesia vernacular da natureza dos
eremitas célticos dos séculos VI e VII." T. Merton, "From Pilgrimagc
to Crusade", Tomorrow, pl'imavera de 1965, p. 94.
179 Erigena seguiu a visão de Clemente de Alexandria, que declarou:
"O Filho não é certamente um, como um; tampouco muitos, como par-
tes; mas um, como todas as coisas; pois d'Ele partem todas as coisas;
e Ele é a concentração de todos os poderes agrupados e unidos em um.
só." Stromata, IV, 635-9, citado em Johannes Scotus Erigena, a Study
in Medieval Philosophy, de H. Bett: Cambridge, 1925, p. 32.
l RO /bid., p. 40.
104 O HoMEM E A NATUREZA

dades incorpóreas,1s1 enquanto a forma é tudo que dá exis-


tência a corpos materiais e relaciona este domínio aos
planos mais elevados de existência. No mundo matenal,
como também através de todos os domínios da criação, a
Trindade está presente; a essentia do Pai como fonte da
existência, a sapientia do Filho como fonte de sabedoria
e a vita do Espírito como a vida de todas as coisas do
Universo. E assim o homem também tem uma natureza
trina compreendendo o intelecto (naus), a razão (lagos)
e o sentido (dianoia).
O homem encontra-se de fato entre as criações espi-
ritual e material e partilha a natureza de ambas. Nele está
contida toda a criação em um sentido antes essencial que
material ou substancial.1B2 O homem é criado à imagam
de Deus, embora como um animal, de forma que por um
lado reflete-se nele o mundo espiritual, e, por outro, o mun-
do animal. Seu destino está inextricavelmente ligado a
ambos os mundos, espiritual e material. É por isso que
a apokatatasis ou reintegração final significa a passagem
da natureza espiritualizada para Deus e a reintegração de
todas as coisas, incluindo animais e árvores.
A luz desta concepção espiritual da natureza, Erigena
possuía uma visão fortemente simbólica da natureza. Mes-
mo em sua astronomia, que sob certos aspectos se pare-
ce com o esquema de Tycho Brahe, ele confere um papel
mais proeminente ao Sol, devido à natureza simbólica do
mesmo como a origem de toda existência e vitalidade,
como a causa universal eficiente no ciclo do mundo.lBJ Ele
181 "O espaço de um pcmto não é o espaço p~rccbido pelos s2ntid::>s,
mas um espaço interpí·etado pelo intelecto. Assim, um ponto é incor-
póreo e a origem das linhas; a linha é incorpórea e a origem das
superfícies; uma superfície é incorpórea e a origem da solidez, c ;l
solidez é a peifeição da natureza. A matéria, poí· conseguinte, é na
realidade uma combinação de qtlªliclades incorpóreas. É a-- forma qu2-
ccnstitui e contém todos os corpos materiais, e forma é incorpórea."
lbid., p. 46.
182 "Como o homem é o ponto médio entre os extremos do espiritual
c do corpóreo, uma união única da alma e corpo, é natural supor-se
que cada criatu:·a, vis:vel c invisível, de um ext1·emo a outro, seja
criada no homem, e qu~ todas estejam reunidas e reconciliadas no
mesmo." lbid., p. 58.
183 A respeito de sua astronomia, ver E. von Erhardt - Siebold e
R. von Erhardt, The Astronomy of Johannes Scotus Erigena: Balti-
more, 1940; e Cosmology in the "Annotations in Marcianum": Baltimo-
re, 1940.
PRINCÍPIOS METAFÍSICOS PERTINENTES À NATUREZA lOS

também exp'.Je uma doutrina dos esta_dQê__9_Q_~~r e a in-


ter-relação entre níveis na hierarquia da existência. Esta
inter-relação parece-se multo com as doutrinas metafísi-
cas universais do Oriente.184
Outro exemplo eminente da visão cristã contemplati-
va da natureza é Santa Hildegarda de Bingen, a visioná-
ria cuja exposição da estrutura do cosmo combina-se com
as notáveis miniaturas que remontam à própria santa.185
Em seus trabalhos o casamento entre ciência e arte, tao
característico da Idade Média, pode ser visto claramente.
Observamos uma cosmologia e uma cosmografia cristas
expostas através da sacra do Cristianismo,186 expressas em
cores e formas simbólicas que só podem ser transmitidas
através do veículo da arte tradicional.
Santa Hildegarda teve uma visão do Universo seme-
lhante à de Hugo de São Vítor, em que a natureza en-
contra-se totalmente no domínio do Espírito, manifestan-
do-se em todos os frutos da natureza. Em sua visão é
levada pelo Espírito a proferir estas notáveis palavras:
"Eu sou a força suprema e ardente que emite todas.
as centelhas da vida. A morte não faz parte de mim, em-
bora eu a aceite, e em consequência sou provida de sa-
bedoria bem como de asas. Sou aquela essência viva e
ardente da substância divina que jorra na beleza dos
campos. Eu brilho na água, eu queimo no sol, na lua e
nas estrelas. É minha aquela força misteriosa de vento
invisível. Eu sustento a alento tudo que vive. Respiro no
verde, e na flores, e quando as águas fluem como coisas
vivas, sou eu. Ergo as colunas que sustentam toda a ter-
ra. . Sou a força que reside nos ventos, de mim eles se
originam, e assim como um homem consegue mover-se

184 Ver G. B. Burch, Early Medieval Philosophy: Nova York, 1951;


e "The Christian N on-Dualism of Scotus Erigena", Philosophical Quar-
terly, vol. 26, 1954, pp. 209-14, onde se fazem certas comparações, do
ponto de vista mais filosófico que propriamente metafísico.
18 5 As obras científicas de Sta. Hildegarda estão contidas em Scivias
e Liber divinorum opermn simplicis nominis, cujo manuscrito de Lucca
contém as belas iluminuras.
1 86 Há um vínculo estreito entre cosmologia e arte sacra no aspecto
em que ambas selecionam da multitude de formas certos elementos que
refletem um determinado caráter religioso e étnico. Ver T. Burck-
hal dt, Von Wesen H eiliger Kunst in den Welt Religionen, 1955. Pa.ra
a cosmografia cristã em sua relação com arte, ver J. Baltrusaitis.
Cosmographie chrétienne d:tns l'art du moyen-âge: Paris, 1939.
106 Ü I-lo:,IE\1 E A NATUREZA

porque respira, assim o fogo não queima a não ser com


o ar por mim soprado. Tudo isto vive porque estou em
tudo isto e sou a vida. Sou a sabedoria. É minha a emis-
são do verbo proferido através do qual todas as coisas
foram feitas. Eu impregno todas as coisas para que não
pereçam. Eu sou a vida." 18 7 Aqui está uma visão da na-
tureza ainda sagrada e espiritual, antes de se tornar pro-
fana.
Se Erigena expôs uma doutrina metafísica da natu-
reza e Santa Hildegarda uma visão de um cosmo cristao
.expresso em termos do simbolismo e iconografia cristãos,
Roger Bacon, também c-omo riüstico, foi -um
cientista e
um experimentador. Foi freqüentemente aclamado como
precursor da ciência moderna, e juntamente com Rober
Grosseteste, o criador do método experimentauss O que
geralmente se esquece é que Roger Bacon foi também um
iluminista e pitagórico que tentou desenvolver as ciências
da natureza segundo a matriz do conhecimento sobrena-
tural, concebendo a própria matemática num sentido
s~lico. Realizou experimentos não apenas com a natu-
reza, mas também com o Espírito Santo no íntimo de si
mesmo. 189 Possuía uma visão da hierarquia do conheci-
mento muito semelhante à do muçulmano Avicena, a quem

1 87 C. Sing·e1·, Stwlies in the History and M etlwd of Science: Oxford,


vol. I. 1917, "The Scientific Views and Visions of Saint Hildegard",
33.
No fim da vida, Sta. Hildegarda escreveu: "E ag.1nt que tenho
mais de setenta anos, neu espírito segundo a vontade ele Deus as-
cende às alturas, visando o céu mais elevado c a mais longínqua pelí-
cula de <H, espraiando-se entre os diferentes povos a regiões que S(~
estendem para muito além de mim, de onde posso contemplar as
nuvens cambiantes e as mutações de todas as coisas criadas; pois a
tudo isso eu vejo não com olhos ou ouvidos externos, nem o crio das
cogitações de meu coração ... , mas no interior de meu espírito, crm
os olhos abertos, de forma que jamais sofri qualquer pavor quando
elas me abandonam." lbid., p. 55.
188 Ver A. Crombie, Robert Grosseteste and the Origins of Experi-
mental Science: Oxford, 1955.
1 89 Rcfe1·indo-se a Roger Bacon, A. E. Taylor escreve: "No fundo
não há diferença entre os conhecimentos natural e sobrenatural. Sua
importante teoria é que j;.Qdo_i!Q!lhecimento exato é ex_nerimental, mas
a experimentação_d~ __duas_espécies~ e-xperimentação feita com a natu-
reza externa, a fonte da certeza· na ciência natural, e convivência
experimental com a obra do Espírito Santo no interior da •tlma, a
fonte do conhecimento das coisas celestes que culmina na visão de
Deus." Ezwopcan Civilization, vol. III: Londres, 1935, p. 87.
PRINCÍPIOS METAFÍSICOS PERTINENTES À NATUREZA 107

tanto admirava. Desenvolveu as ciências matemáticas e


naturais dentro da comunidade intelectual cristã. E uma
infelicidade que seu exemplo não tenha sido seguido. Tl-
vesse ele tido sucessores, talvez o desenvolvimento da
ciência durante a Renascença e o século XVII jamais
tivesse ocorrido totalmente fora da comunidade cristã, e o
cisma na civilização ocidental entre ciência e religião te-
ria sido evitado.1 90 O fato deJ ~ após Roger Bacon, o
que veio a ser considerado como ciência ter sido desen-
volvido por teólogos racionalistas e nominalistas, em lu-
gar de "iluministas" e esoteristas como Bacon, apenas ten-
deu para um inevitável divórcio entre ciência e religião.
Também encontramos em São Francisco de Assis uma
admirável figura que faz lembrar a possibilidade de uma
atitude reverente em relação à natureza dentro da aura
da vida cristã santificada. Sua vida entre os pássaros e
os animais, com os quais se comunicava, foi um exemplo
concreto da crença cristã de que através do sagrado o
homem pode estabelecer um relacionamento com a natu-
reza. Isto é um retorno às condições de antes da queda,
com seu subseqüente rompimento da harmonia entre ho-
mem e natureza_19I
No Cântico ao Sol e em muitos outros sermões, são
Francisco exibe uma visão contemplativa e desinteressada
da natureza, além de qualquer utilitarismo humano. Em
sua conversa com os animais e mesmo com os elementos
como o fogo, ao qual dirigia a palavra enquanto estava
sendo cauterizado, ele ilustra a profunda relação e intimi-
dade que o homem santo alcança com a natureza em vir-
tude de tornar-se identificado com o Espírito que sopra
no interior da mesma.
De forma semelhante, em Dante vemos um eminente
exemplo da integração de todo conhecimento, científico,
filosófico e teológico, à estrutura total do Cristianismo.

1 90 F. Picanet escreve que se a trajetória de R. Bacon fosse seguida,


"não have1·ia luga1· para uma Renascença totalmente separada do Ca-
tolicismo nem para uma luta aberta e ruptura total entt·e teologia,
filosofia e ciência". Citado por C. Raven, Science and Religiou, p. 87.
191 "Quaisquer que tivessem sido os verdadeiros episódios, é significa-
tivo que tanto os santos quanto os hagiógrafos sentissem que somente
através da recupe1·ação da prístina santidade o homem poderia des-
fazer a ferocidade trazida ao- mundo pela sua desobediência primor-
dial no primeiro Paraísé>." Williams, Wi/derness anel Parad:·se. p. 42~
108 O HoMEM E A NATUREZA

Uma síntese cujo significado mais elevado é revelado ape-


nas àqueles que conseguem descortinar o sig_I1JficªdQ ana-
gógico oculto na Divina Comédia. O cosmo é um cosmo
crTsfão, as sete artes liberais correspondem aos tantos ní-
veis de existência que a alma tem de realizar, e o vôo do
cume do monte do purgatório simboliza a partida da alma
do pináculo da perfeição humana, ou dos ·~Mistérios In-
.ferior~ª-", para estados verdadeiramente transumanos e
·que pertencem aos "Grandes Mistérios".1112 A Divina Co-
média contém nesta catedral de intelectualidade crista
doutrinas metafísicas e cosmológicas de inesgotável valor,
não devido ao simbolismo da astronomia aristotélica que
emprega, mas devido à delineação da estrutura da reali-
dade tanto externamente quanto no íntimo da alma dos
homens. Isto permanece verdadeiro independentemente do
simbo-ismo utilizado para expres,á-i.a. Tem-se realmente
de atravessar o cosmo, ou os níveis de existência, para
compreender que a força que invade todas as coisas é o
"amor que move o Sol e as estrelas."
Contemporâneos de Dante, e seguindo-o durante al-
guns séculos. foram os alquimistas cristãos que integra-
ram as doutrinas hermético-alquími~as de origem alex'3.n-
drina, na forma em que foram posteriormente desenvol-
vidas pelos muçulmanos, à perspectiva do Cristianismo.
Com homens como Nicolau Flamel, que era um cristão
santo e devoto, e Basil Valentine, a ligação das doutrinas
ai químicas com o Cristiani~mo não pôde mais ser nega ia.
No3 escritos destes alquimistas encontramos, de forma mui-
to significativa, uma vasta doutrina da natureza impreg-
nada com o espírito cristão.
A alquimia não é uma química prema1l!_ra nem tam-
pouco uma psicologia no sentido moderno, embora ambas
Ml. dtias estejam presentesnos -escritos-alquímicos.193 Al-
quimia é uma ciência simbólica das formas naturais ba-
seada na correspondência entre diferentes planos de rea-
lidade e fazendo uso do simbolismo mineral e metálico
para expor uma ciência espiritual da alma. Para a alqui-
mia, a natureza é sagrada, e o alquimista é o guardião da

192 Ver R. Guénon, L'Esotérisme de Dante: Paris, s.d.


19 3 Qualquer que tenha sido o serviço prestado pelas obras de C. G.
Jung em tornar a alquimia mais conhecida, elas são inadequadas no
que limitam a alquimia a uma psicologia destituída de origem espi-
ritual e transcendente para os símbolos que surgem à psique humana.
PRINCÍPIOS METAFÍSICOS PERTINENTES À NATUREZA 109

natureza considerada como teofania e reflexo das realida-


des Espirituais.l94 Uma química puramente profana só pôde
ter lugar quando as substâncias da alquimia tornaram-se
completamente esvaziadas de sua qualidade sagrada. Por
esta mesma razão, uma redescoberta da visão alquímica
da natureza, sem de forma alguma negar as ciências quí-
micas que lidam com substâncias sob outro ponto de vis-
ta, poderia restabelecer o caráter espiritual e simbólico
das formas, cores e processos que o homem encontra atra-
vés de toda sua vida no mundo tangível.
Apesar de1 após a Idade Média! a tradição cristã do es-
tudo da natureza baseado em uma doutrina metafísica ser
mais difícil de observar, ela, não obstante, prosseguiu até
o século XIX. Homens como John Ray e outros his-
toriadores naturais cristãos ainda seguiram para os cam-
pos em busca dos vestígios de Deus, os vestigio Dei. Na
Alemanha, o alquimista e teósofo Jacob Boehme, um dos
últimos gnósticos cristãos, continuou a tradição alquimica
do estudo da natureza. Falou das forças internas da na-
tureza e da natureza primordial em sua pureza prístina,
ainda presente aqui e agora, mas que os homens não po-
dem ver devido à inquietação e à escuridão no íntimo de
sua alma e que os torna desatentos para com a mesma.I 95
Ele convocou os homens a procurar readiquirir uma visao
dessa natureza pura e primordial. Após Boehme, Goethe em
seu Farbenlehre prosseguiria com o interesse pelo simbo-
lismo das cores e da harmonia inerente à natureza, em-
bora os seguidores da Naturphilosophie travassem uma
batalha perdida contra a concepção mecanicista da natu-
reza. Mas a essa altura. nem mesmo esta batalha era mais
travada a partir do Cristianismo oficial.
A longa tradição da visão espiritual da natureza, jun-
tamente com as doutrinas metafísicas em que se baseia,
tem de ser novamente revivida no seio do Cristianismo,
se o confronto do homem com a natureza não resultar em
completo desastre. Teólogos e filósofos foram em grande
parte os responsáveis, ou no mínimo contribuíram du-
194 Burckhardt, De Alchemie. Sinn und Weltbild, onde são forneci-
dos exemplos de alquimistas cristãos; ver também M. Eliade, Thll
Forge and the Crucible: Nova York, 1956.
195 A respeito de Boehme, ver A. Koyré, La Philosophie ds Jacob
Boehme: Paris, 1928; e a seção dedicada a Boehme em Hermes, 3, in-
verno, 1964-65.
110 0 HOMEM E A NATUREZA

rante os últimos séculos para tornar a natureza profana,


preparando assim o palco para o início do processo de pro-
fanação através da revolução industrial e--das infindáveis
aplicações das ciências modernas. Foram portanto respcm-
sáveis também pelo restabelecimento de uma atitude mais
saudável e integral para com a natureza. Muitos pensado-
res e teólogos religiosos modernos puseram de lado a
questão da natureza e consideraram a salvação do homem
com total desinteresse pelo resto da criação de Deus. Na
presente situação, no entanto, a existência humana nesta
terra, para não mencionar a salvação final do homem, tor-
nou-se uma matéria incerta. Devido a este empedernido
desinteresse pelos direitos da natureza e de outras criatu-
ras vivas, para aquelas que estão realmente interessadas
pelo estado do homem é o grande momento de se voltar
para esta grande tradição do estudo da natureza dentro do
Cristianismo e de procurar restaurar as doutrinas meta-
físicas deste com a ajuda da metafísica oriental. Somente
o restabelecimento de uma concepção espiritual da natu-
reza que se baseie em doutrinas intelectuais e metafísicas
podem ajudar a neutralizar a destruição produzida pelas
aplicações da ciência moderna e a integrar esta própria
ciência a uma perspectiva mais universaL
CAPÍTULO IV

Certas Aplicações a Stt uação Contemporânea

Se houve1:~ma redescoberta da metafísica e~ restabele-


cimento, no Ocidente, de uma tradição metaf1sica llgada
aos métodos espirituais adequados ~ dentro da comum-
dade cristã, então poder-se-á anelarfoelo rejuvenescimen-
to tanto da teologia quanto da filosofiaie pelo nascimento
de um critério para iulgar e regular as ciências. À luz des-
ta restauração; a teologia poderia expandir-se de forma
a abarcar também uma teologia da natureza. A filosofia,
em lugar de ser uma nota de pé de página para os frutos
da ciência experimental, poderia readquirir sua indepen-
dência e tornar-se a um só tempo o juiz e o crítico dos
métodos e hipóteses da ciência. E mais, as próprias dou-
trinas metafísicas poderiam agir como o eixo imutável em
torno do qual girassem todos os esforços intelectuais e
cujas aplicações a diferentes domínios determinassem o
caminho a ser seguido em cada uma.
O primeiro resultado da aplicação dos princípios em
-questão seria a criação de padrões por meio dos quais se
julgassem os resultados e implicações das diferentes ciên-
cias - não para lhes dar ordens, mas para indicar os limi-
tes em que cada uma opera e o s1gnificado que suas des-
cobertas possuem fora desses limites. Em resumo, seria a
criação de meios para criticar a ciência e suas aplicações,
de forma criativa e proveitosa. É deveras curioso que no
mundo moderno onde tudo é criticado e questionado, on-
de há críticos d~ arte, de literatura, de política, de filoso-
112 O HoMEM E A NATUREZA

fia e mesmo de religião, não há críticos da _eiência.196


Mesmo que críticos eventuais sejam encontrados, estes sao
excluídos da respeitável comunidade acadêmica e erudita,
@ modo algum desfrutando do mesmo status de um cri-
tico literário ou de arte.
Alguns poderiam dizer que enquanto arte e literatura,
ou mesmo política e religião, são uma questão de escolha
e gosto pessoal, a ciência é validada por suas aplicações
positivas que ninguém pode negar ou criticar. Mas esta
objeção é falsa não somente no aspecto em que despreza
as normas e princípios objetivos da religião, da arte e de
outros domínios não científicos, mas também desvirtuam
completamente a estrutura teórica da ciência e de suas
aplicações práticas na tecnologia e engenharia. Os inven-
tores da máquina a vapor do século dezenove valeram-se
de uma teoria física que hoje se considera cientificamen-
te falsa® De fato, a maioria dos inventores até bem
pouco tempo ignorava grande parte da ciência de seus
dias e aplicaram teorias que provaram ser falsas. Além
disso, mesmo hoje em dia uma teoria física ou química
pode se modificar, enquanto sua aplicação permanece in-
tocada. O sucesso çi!!__ciência a.l!].icada não é razão portanto
para a aceitação da_jnfalibiligade das teorias çientífica_s
_§nvolvidas. Deveria haver uma crític~ inteligente e cons-
ciente da ciência e suas implicações, \tanto para aqueles
que estão envolvidos nas ciências\quanto, acima de tudo,
para aqueles que são os receptores das versões populari-
zadas das teorias científicas. A filosofia da ciência tentou
em certos casos salientar a ausência de coerência lógica
em algumas definições e métodos científicos. Mas tendo-se
rendido aos frutos dos métodos experimentais e analíticos,
ela mesma não pode ser um juiz imparcial da ciência mo-
derna.
A restauração de uma doutrina metafísica completa
poderia ainda servir à função sumamente importante de
delinear mais uma vez os níveis e estágios da realidade e
de apresentar a anatomia do ser em seus múltiplos graus
e estados. Com Descartes, a realidade na filosofia ociden-

196 "Il y a des critiques littéraires et des critiques d'art. Pourquo~


n'y aurait-il pas des critiques scientifiques?" M. Ollivier, Physique-
moderne et réalité: Paris, 1962, p. 58.
197 lbid., p. 9.
CERTAS APLICAÇÕES À SITUAÇÃO CONTEMPORÂNEA 113

tal ficou reduzida a mente e matéria, e através da última


geração de filósofos, como Malebranche, Spinoza e mesmo
Leibnitz, este empobrecimento da realidade tornou-se um
fato aceito e serve de base à ciência, especialmente à físi-
ca matemática, até os dias de hoje. O longo debate entre
idP-alistas e realistas não passa de uma tentativa de res-
ponder a umá questão que, do ponto de vista metafísico,
está mal situada para que com ela se dê início a este mes-
mo debate.
Neste contexto da redução da realidade a duas subs-
tâncias totalmente distintas e separadas, a natureza ficou
compulsoriamente reduzida à quantidade, e o próprio mi-
crocosmo humano perdeu sua estrutura tripartida de es-
pírito ( spiritus), alma (anima) e corpo (corpus) para
~passar a seruma mente misteriosamente ligada a um cor-
po com o qual não tem pontos em comum. Igualmente,
tudo o que pertence aos domínios psíquicos e espirituais
foi banido da natureza.
Uma redescoberta da anatomia do ser que coloque
cada modalidade de existêncüt\a çorpórea\a psíqu!c_ª~e a
espiritual, em seu lugar, para mencionar as divisões mais
fundamentais, também pode servir para esclarecer certos
fenômenos que a ciência moderna é forçada a rejeitar, mas
em que a sociedade como um todo mostra grande interesse.
Como por exemplo os fenômenos ligados à substância su-
til ou psíquica que têm um componente cósmico e taní-
bém humano. A multiplicidade dos fenôme-iió.S- -ligados a
esta ordem é deixada aos ocultistas que lidam e jogam
com ela. Ao serem banidos da visão oficial científica do
mundo, estes fenômenos de modo alugm foram forçados a
desaparecer da vida e da sociedade do homem. A exclusão
destes do domínio da realidade aceita pela ciência simul-
taneamente empobreceu a concepção corrente da ciêncra
total das coisas e conduziu ao desenvolvimento de prátí-
cas perigosas por parte de toda sorte de organizações ocul-
tistas que simplesmente aumentam de número di.ã"a:""dia.
Poder-se-ia dizer que g_l').omem moderno não vivenciou a
substância psíquica no íntimo da natureza na mesma me-
dida que o homem de outras épocas, devido a uma dife-
rença de sua própria organização como também à cons-
tituição do ambiente a sua volta. No entanto, até o ponto
em que ele teve experiências desta espécie, elas são rele-
gadas a uma categoria cuja negação pelos círculos cien-
114 0 HoMn1 E A NATUREZA
i~
tíficos oficiais de maneira alguma as torna menos real ou
seu efeito sobre a sociedade menos sentido. O surto expo-
nencial de sociedades e publicações ligadas ao esp![itismo
e coisas semelhantes, na era supostamente mais científica
l da história humana, deveria ser pelo menos motivo de
reflexão.
Igualmente, a delineação dos graus da realidade po-
deria novamente elucidar e esclarecer as ciências tradi-
cionais como alquimia, astrologia etc., cuja verdadeira
significação reside em seu sentido simbólico e na corres.,.
pondência entre diferentes níveis de realidade. A perda
deste conhecimento metafísico fez com que estas ciências
parecessem superstições contrárias tanto à razão quanto
à experiência. Por outro lado, a rejeição destas pela visão
científica oficial não as fez desaparecer de modo algum.
A cada ano há um número assombroso de obras publica-
das sobre as mesmas, e nesta verdadeira cidadela do ra-
cionalismo que é a França) todos os anos são publicadas
mais obras sobre ciências ocultas do que sobre muitos
ramos da ciência moderna. Com total desconsideração pelo
significado simbólico destas ciências - cujo v~_rdageiro
sentido há muito se perdeu - este enorme interesse ape-
nas alimenta a superstição no verdadeiro sentido da pala-
vra, aumentando a confusão do pensamento. Somente um
conhecimento metafísico dos graus de realidade e as cor-
respondências que nestes se baseiam podem novamente co-
locar estas ciências em suas perspectivas próprias e neu-
tralizar o mal que é gerado por uma má compreensáo
de seus ensinamentos}9s
Est_a, função da metafísica está estreitamente relacio-
nada-a seu papel como base para uma filosofia da natu-
reza onde as ciências modernas pudessem ser integradas.
Já aludimos à falta hoje em dia de uma filosofia abran-
gente da natureza e, precisamente, à necessidade de uma
tal filosofia. Uma tradição intelectual revltalizada baseada
em um conhecimento metafísico real poderia primeira-
mente libertar a filosofia da escravidão total aos sentidos,
ao fruto da experimentação e ao empirismo; em segundo

I98 No que toca o verdadeiro significado das ciências ocultas c es-


piritismo, ver R. Guénon, L'Erreur s]2irite: Paris, 1923; também o seu
Symboles fondamentaux ele la-sCíence sacrée: Paris, 1962.
CERTAS APLICAÇÕES À SITUAÇ.Ã.O CONTEMPORÂNEA 115

lugar, poderia ajudar na criação de uma filosofia da natu-.


reza que delineria a anatomia da natureza e das diferen-
tes ciências que pudessem ser a elas associadas.
Isto não significa a imposição, vinda de cima, de uma_
restrição sobre uma determinada ciência, nem uma mu-
dança de método, digamos, da química de indução para
a de dedução. Significa antes a criação de uma visão total
da natureza que poderia lançar os achados de uma deter-
minada ciência, como a física ou a química, num amplo
esquema de conhecimento, relacionando as descobertas de-
cada ciência ao conhecimento como um todo. Hoje, toda
sorte de conclusões filosóficas são feitas tendo-se em vista
teorias e descobertas físicas ou astronômicas, freqüente-
mente com total desprezo pelas limitaç.'IÕes e suposições
feitas originalmente pelos cientistas. Com Kant, a física
tornou-se origem da filosofia e então desenvolveu-se um
fisicismo .muito semelhante ao primitivo matematicismo
de Descartes. Com uma verdadeira filosofia da natureza
haveria uma matriz independente onde as implicações das
diferentes ciências poderiam ser testadas e tentadas, e seu
significado ficaria conhecido_ se_m as abe!'l'ª-®es que com
tanta freqüência acompanham as interpretações filosófi-
cas das teorias científicas de hoje.
A doutrina metafísica poderia também auxiliar na re-
descoberta da natureza virgemJ ao remover os grilhões
opressores que o racionalismo colocou à visão que o ho"
mem tem da natureza. Há uma necessidade de redescobnr
a natureza virgem como fonte de verdade e beleza no sen-
tido i11telectuaT'mais estrito, e não meramente no sentido.
sentimental? A natureza tem de ser vista como uma afir~
maÇão e um auxílio à- Vida espiritual, e mesmo como um
y~ícuJod_e graç~, em vez~ realidade escura e opaca como,
veio a ser considerada~ '!1em novamente de tornar-se.

l99 "A Na tu reza selvagem está de acordo com a pobreza sagrada e


_!;_a_mbén1com--ali10CêliC!a espiritual; é um livro aberto contendo um
ensinamento inesgotável de verdade e beleza. É no meio ele seus pró-
prios artifícios que o homem se torna corrupto, são estes que o fazem
ganancioso e ineverent2; junto à Natureza virgem, que não conhece
agitação nem fa)s:dade, o homem teve· a esperança de p21·manecer
contemplativo como a pt·ópria Natureza. E é a Natureza, virtual-
mente divina em sua totalidade, que terá a ~lavra final." Schuon,_
Light on the Ancient W orlds, p. 84.
116 Ü HOMEM E A NATUREZA

um meio de lembrança do Paraíso e do estado de felici-


dade que o homem naturalmente busc~
A redescoberta da natureza virgem não significa um
salto do homem individualista e prometéico em direção à
natureza. Enquanto estiver em estado de rebelião contra o
Céu o homem traz consigo suas próprias limitações, mes-
mo quando se volta para a natureza. Estas limitações ve-
lam ao homem a mensagem espiritual da natureza de
forma que não tira proveito da mesma. É assim que o cida-
dão urbano moderno, em busca da natureza virgem: ·leva
éonsigo aqueles mesmos elementos que destroem a natu-
reza, desta forma destruindo a própria coisa que está bus-
,cando. ~ampouco a redescoberta da natureza é, do ponto
de vista teológico, uma volta ao paganismo. Há uma acen-
tuada diferença entre\o paganismo do mundo mediterrâ-
neo, esta idolatria de coisas criadas que o Cristianismo
combateu\e o "naturismo" do povo da Europa do norte,
para quem a natureza possuía uma significação simbólica
e espiritual. A redescoberta da natureza com o auxílio dos
princípios tradicionais significaria/a r~unificação do sig-
n~!!cado simbólico das formas )naturaisJe- odésenvolvimen:.
to de uma simpatia (sym-pathia) pela natureza, que nada
tem a ver com o paganismo e i<:!2latria primitivos ou com a
revolta individualista modern~ Si_ggHicaria a reintegra-
.ção do homem ao seu lar no cosmd.@:)

·2oo "A Natureza imaculada é a um só tempo um vestígio do Pa-


raíso Terrestre e uma prefiguração do Paraíso Celeste ... " Schuon,
op. cit., p. 143.
201 "O Cristianismo, tendo de reagir contra um espírito inteiramente
"pagão" (no sentido bíblico), fez ao mesmo tempo com que desapa-
recessem - como sempre acontece nesses casos - valores que não
mereceram a acusação de paganismo. Tendo de se opor, entre os me-
diterrâneos, a um naturalisil)Q__filosófico e "ch!io", ao mesmo tempo
suprimiu, entre os nórdicos, um "naturismo" de caráter espiritual. A
tecnologia moderna é o resultado - muitÕlndireto sem dúvida - de
uma perspectiva que, tendo banido da natureza os deuses e os gênios,
e tendo também, por este mesmo fato, a tornado profana, acabou por
permitir que ela fosse "profanada" no sentido mais brutal da palavra.
O ocidental prometéico - mas não todo ocidental - é afetado por
uma espec1e de desprezo inato pela natureza; para ele a natureza é
uma propriedade a ser aproveitada ou explorada, ou mesmo um ini-
migo a conquistar." F. Schuon, "The Symbolist Outlook", Tornorrow,
inverno, 1966, pp. 54-5.
202 Ver W. J. Ong. "Religion, Scholarship and the Restitution of
Man", Daedalus, XCI, primavera, 1962, onde ele fala da necessidade
CERTAS APLICAÇÕES À SITUAÇÃO CONTEMPORÂNEA 117

Uma tal atitude poderia ainda auxiliar a cultivar um


sentimento de amor pela natureza que é a própria antítese
da atitude preponderante do homem moderno no papel
de conquistador e inimigo da natureza. Pou~g-~rcebell1
que) pelo próprio fato de ~ :r1_51.tureza ser finita 1 não se pode
fazer recuar suas fronteiras indefinidamente. O homem
a
simplesmente não pode continuar Eonquistar indefinida-
mente a natureza sem esperar desta uma reação para res-
tabelecer o equilíbrio destruído por ele mesmo. Uma per-
cepção espiritual da natureza poderia melhorar, pelo me:
nos um pouco, esta atitude existente e o pérTgo a ela ine-
rente, fornecendo um remédio para a grave doença de que
sofre o mundo moderno. Este sofrimento é produzido pela
aplicação excessiva da tecnologia e o impacto da guerra,
que se unem em sua inimizade e agressão contra a natu-
reza. O amargo fruto desta atitude puramente antagoms-
ta ante a natureza é hoje tão evidente que poucos podem
se dar ao luxo de menosprezar qualquer meio que possa
fornecer uma solução para o problema.
No tocante às ciêpcias modernas çla nat~re~a\uma
c.iência metafísica enraizada no intelecto), r~velação,~ uma
filosofia da natureza baseada nesta podenam fornecer a
ciiüca e a avaliação das descobertas e hipóteses científl-
.cas.-As duas seriam complementares na medida em que
as ciências -modernas lidassem com o conhecimento deta-
lhado e/a metafísica com o conhecimento derradeiro das
coisas. Áo mesmo tempo a metafísica, sendo independente
da ciência, poderia examinar suaffi-...P_ ressuposições e agir
como seu crítico e juiz imparciai~
A natureza é, no todo, mais rica que o conhecimento
a que a física chega através de seus métodos quantitativos

de reunir "o interior ao exterior, para recolocar o homem em seu lar


no cosmo"; pp. 428-9. -~-
2~um certo sentido, metafísica e ciência são complementares.
-A metafísica não trata do comportamento detalhado da natureza':\a
ciência não trata da interpretação final do conhecimento natural.
Ambas são neccssári~ para uma visão sintética do mundo. Mas a
relação é unilateral ;;1 a ciência não pode ter início sem adotar um
princípio metafísico, J'nquanto a metafísica não pressupõe qualquer
princípio metafísico para a validade de suas conclusões. \Uma das
funções da metafísica é examinar os dados para as pressuposições
da ciência,\essim como uma função da lógica é deixar às claras
estas pressuposições. Mas isto não esgota a metafísica ... " Caldin,
The Power and Limits of Science, A Philosophical Study, p. 117.
C• R t.... y· ~' s .~_,, ___ , ~ Ç,':,._ '-"-
118 Ü HOMEM E A NATUREZA

e que são selet~s tanto em seus dados quanto na in·..;er-


pretação deste~ A física é uma ciência da natureza limi-
tada pelas próprias seleQões que faz da realidade externa,
bem semelhante ao ictiólogo 9.!:lf_usa_uma e uena red
de pesca, exemplo que Eddington tornou bem conhecid
Igualmente, o próprio fato de suas conclusões se basea-
rem em experimentos implica que sua validade mantém-
se apenas dentro das condições destes experimentos@ A
física então, como as outras ciências da natureza, é uma
ciência específica das coisas, legítima dentro de suas pró-
prias suposições e limitações, mas não é a única ciência
válida do mundo natural. apenas uma ciência possível
da natureza, dentre outra~ A física nos dá um certo co;..
nhecimento do mundo físico, mas não todo o conhecimen-
to de que se necessita, especialmente na medida-em que

~ "A física é limitada pelo seu próprio método, e não se pode


esperar que ela forneça uma explicação total da experiência: ela
não pode ocupar-s~ dCJs fundamentos do pensamento c da acf<o ra-
cionais. \omite consi'le,·ações de qualidades, déformas. de ag~ntes e
causalidade. Conseqüentemente o coTITiecimento da"""llãtm·ez:-~ fo-::r'iccido
por 'Süãs intcrp<·etaçõ~s teóricas é muito limitado; mas estas JimitacõPs
não geram conseqüências fora da física. Uma filosofia, cnti'.o, -não
podo basear-se somente na física; isto não só teria de deixa,. sem
explicação as suposicõ?s h:1sic:l.s da fl. ica, corno ~cria de u~n n1can~~:.~
absurdamente limitado." Caldin. op. cit .. pp. 47-8.
"O que deve sei' evidente. de inwdiato. é que a ciência (l:l física
absorveu C"rtas quantidades mensuráveis de uma realirlad'" mais rica
em seu todo c ocunou-sc df'stas somente à Pxclusãn de tt1d0 n m~,;s
que é de interesse." Yamold, The Spiritual Crisi. nf lhe Sci~ntif"
A,qe, p. 28.
Ver também M<1scalL Christi n Tlwolnri?J and Nat11ra/ Scienc~.
Cap. li; e Smethurst, Mnd"rn Scicnce Clnd Christian Rrhef, Cap. V.
205 Eddington conta a história do ictiologista que utiliza Pm certo
tipo de red~ de pnqca e que chega à conclusão de que todos os pêiX'""
do mar são do mesmo tamanho. Ver Eddington, The Philosnphy
of Physieal Science, p. 16.
~os "0 fato de a experiência ser fabricada impõe uma estrita limi-
tação às conclusões gerais. Estas são válidas no contexto da expe-
riência e do experimentador." Yarnold, op. cit., pp. 16-17 .
.:2! "Vimos porém que a ciência se ocupa apenas de uma partf' da-
quilo que podemos perceber; assim, o conhecimento do mund-:J r.atural
que poderia ser obtido pelo uso de todas as nossas faculdad('s, e qu':!
nos levaria ao convívio com este mundo, excede e transcende Pnorme-
mente aauilo que pode ser conseguido pela utilização do método cien-
tífico. Temos de estabelecer o ideal de uma sapientia natw~a!i'l, uma
sabedoria a respeito da natureza para a qual a nossa atu<>.l .ocientia
ou conhecimento seja uma contribuição vál;da." Sh~nvood Taylor~ 1

The Fourfold Vision, p. 84.


Cun \S APLICAÇÕES .f. SITUAÇÃo CoNTHIPORÂNEA 119

D.iz respeito à relação integral entrehomem e naturez!).@


.As próprias qualidades, formas e haE!!!onias que a física
deixa de lado deVido a seuponto de vista quantitativo,
muito longe de serem acidentais ou desprezíveis, são os
aspectos mais estreitamente ligados à raiz ontológica das
coisas. É por isso que a aplicação de uma ciência que des-
preza estes elementos provoca desequilíbrio e gera desor-
dem e feiúra, especialmente num mundo onde não exis-
tem outras ciências da natureza e não há sabedoria ou
sapientia que possa colocar as ciências quantitativas da
natureza em seus devidos lugares no esquema total do
conhecimento.
Devido à ausência desta ciência total esquece-se tam-
bém que qs fenômenos participam de r11uit.9s níveis có~:
micos e sua realidade não se esgota num único nível ele
existência, o último de todos, ()-Il1aterial®Da mesma for-
ma "que -\um tecido vivo pode tornar-se objeto de estudo
da biologia, da química e da física ou\ uma montanha
assunto da geologia, da geofísica eda geomorfologia, assim
cada fenômenàs~_pr_estaaoestudo sob Cil.Iérentes pontos
de vista e em diferentes
. - - -- .... --- ··-- ~---· --- ,.&1
planos-
cfeexísfênC!a~Por estam-
-------------- ----- -···
zão não há uma única ciência da natureza, mas sim dife-
rentes quadros e visões do mundo, cada um válido até o
ponto em que pode descrever um determinado aspecto da
-------- ~~
~ "Entãr> .i!. _<j_ênciª-_ c! a fisjca não é uma descrição ad~quada \.da
naturpza; é Um retrato feito por Um observador -de. Um dPte,·mmaan
ponto de vista c com limitação definida em sua visão. Ele seleciona
os elementos, semelhante ao que faz um artista. Ciência é uma cons-
~rução, feita ao se sintetizar infor~~çõ_e§ §~Ie_<:ionadas; n_i'[Q.~__l!_nm
visi'io intac_ta_A:t_~tureza. É certo que nos dá alguma compreensão I
daordrm c!as opPraeõrs da natureza, mas não uma compreensão total.
Além disso, desp>·eza intei>·amente a relação da natureza com o homem
e com a causa primeira. Com a ciência natural não podemos aprendc1·
para que serve a natu>·eza material, como e por que ela existe, o
por qu2 tPm algumas le~A beleza da natureza em seu sentido
mais amplo não poderia. então, ser captada só através da ciência.
Além das minuciosas investigações da ciência e da unificação destas
efetuadas pela ciência teórica, p>·ecisamos compreender a relação da
natureza para com o homem e Deus ... Necessitamos de uma sabe-
doria que transcenda a ciência se quisermos ter uma visão completa
da naturPza. A ciência por si só não nos fornece as concepções d~
que necessitamos para um conhecimento completo da natureza. . "
Caldin, op. cit., pp. 130-1.
~ "O mais insignificante fenômeno participa de diversas continui-
dades ou d;meJ1f'Õns cósmicas, incomensuráveis umas em relação às
outras. " Rurckh<trdt, "Cosmology and Modern Science", Tomorrow.
outono, 19G4, p. 308.
120 O HoMEM E A NATUREZA

realidade cósmica. Não é verdadei ro dizer-se que o Sol é


apenas gás incandesc ente, embora isto seja um aspecto
da realidade . É também tão verdadeir o quanto dizer-se que
o Sol é o símbolo do princípio inteligen te do Universo , sen-
do que este elemento é um aspecto de sua realidade on-
tológica tanto quanto as caracterí sticas físicas descober tas
pela astronom ia moderna .
Vista sob a perspecti va da ciência total da natureza,
a aparênci a imediata desta com a terra sólida embaixo,
o céu azul em cima e o Sol movendo -se regularrr:J.ente atr:a-
vés do firmamen to, as cosmolog ias aristotéli ca e medie-
val baseadas na aparênci a das coisas assim como as visõe.:;
newtonia nas e relativist as do mundo são, todas, sob um
dado ponto de vista, verdadeir as. Matemat icamente fa-
lando\a teoria da relativida de é mais geral e eJÇata, .,a físi-
ca newtonia na um caso especial desta primeira \ a cosmo-
logia e a física medievai s apenas um esboço qualitativ a-
mente estimado . Mas o aspecto matemáti co das coisas nao
é tudo. Só diz respeito- à dimensão quantitat iva destas, nao
tratado qualitativ o que liga ontologic amente cada ser
a sua origem. É por isso-que cada quadro do mundo 1 ao se
tornar mais exato matemati camente} torna-se também me-
nos direto simbolica mente e ainda mais afastado do co-
nhecimen to metafísic o que o aspecto imediato da natureza
transmite através de seu simbolis m<@No entanto, é sem-
pre preciso lembrar que o sucesso de qualquer teoria es-
pecífica em explicar matemat icamente os fenômeno s, nao
importa quão exatamen te, de modo algum invalida a sig-
nificação simbólica de outras descriçõe s do mundo que se
baseiam ou nas aparência s diretas das coisas ou nas dou-
trinas ontológic as que refletem princípio s metaflsic os.
Como na crítica das filosofias e conclusõe s gerais ba-
seadas na física, poder-se- ia salientar a exclusivi dade c::Jn-
cedida à lógica matemát ica como se esta fosse a única for-
ma de lógica. O que é matemat icamente satisfatór io é con-
siderado como sendo verdadeir o, mesmo que viole os prin-
cípios da inteligên cia e a lógica ligada à faculdade imagi-
nativa. Mas não há razão, seja qual for, para limitar todas
as faculdade s intelectu ais à lógica matemát ica e fechar os
olhos às exigência s do resto. Grande parte da filosofia mo-
210 Ver Lorde Northbourn e, "Pictures of The Universe", Tomorrow,
outono, 1964, pp. 267-78. -
f' _,_L 'v-.~~,--., --v-..:_- ;.._' ~ v y c\ ,cL, t_,') ....(
CERTAS APLICAÇÕES À SITUAÇÃO CONTEMPORÂNEA 121

derna, que se fia na física, e tantas generalizações dentro


da própria física baseiam-se neste ma~~mªticismo incons-
c~que a filosofia cartesiana conferiu à física matemá-
tica e que se tornou acentuado na ciência contemporânea.
Tanto nos domínios da microfísica quanto nos da astrofí-
sica desfez-se o contato direto com a realidade objetiva,
ficando apenas um modelo matemático abstrato como 11
meio de analisar-sea estrutura da matéria.
A concepção da matéria baseada unicamente em cri-
térios matemáticos, mesmo no domínio da física moderna,
conduz a certas conclusões que filosófica e metafisicamen-
te p~:ecem incongruentes e, em certos casos, contraditó-
rias. \Uma físjeajJIJig.l,l'fle:pte matemática talvez seja capaz
de se· permitir ao privilégio de permanecer indiferente a
tais assuntos,\mas para uma ciftncia total da natur~a,
especialmente para as generalizações da visão do mundo
segundo a física, estas questões são de grande significação.
Por exemplo, fala-se com freqüência dos campos de força
ou das ondas que possuem energia e têm características
específicas, mas que se movimentam em um vácuo. Mate-
maticamente, tal modelo talvez seja, hoje, um modelo
conveniente para base de cálculos, mas fisicamente não
se pode aceitar um vazio total apresentando caractens-
ticas. Um vazio não é nada, e o que não existe nada pode
mostrar@ Da mesma forma; a- descontinuidade ápresen-
tada-na matéria ao nível subatõmico, com toda a signifi-
cação que tem a constante de Planck, não invalida um
substrato de continuidade exigido por tantos outros fenô-
menos naturais, especialmente a oluz. A natureza ambiva-
lente da luz, se indica alguma coisa, é uma substância
suojacente- contínua, que a cosmologia chama de éter, e
que também exibe um aspecto descontínuo em virtude de
sua existência indistinta. Hoje, o debate sobre este domí-
nio, se olharmos os princípios envolvidos, não é muito
diferente daquele dos seguidores do hilemorfismo e do
atomismo na Idade Média e na Antigüidade-.- .
--Igualmente, na teoria Q.a relatividade fala-se/ da velo-
cidade absoluta da luz e/ da subordinação da estrutura
tempo-espaço a esta. Por mais que\as transformações de
Lorenz e~s generalizações de Einstein a respeito da teoria
211 A respeito desta e de outras contradições nas teorias da física
moderna, ver M. Olivier, Physique moderne et réali~é.
122 O HoiiiEM E A NxruREZA

da relatividade possam ~er matematicamente satisfatórias,


não é possível aceitar-se ~s concepções de tempo e espaço,
\a noção de simultaneidade e outros aspectos desta teoria
'como sendo exclusivos e esgotando a natureza da reali-
dade física como tal. O espaço euclideano de onde come-
çamos continua a possuir ·sua validade e realidade, nao
apenas como uma aproximação ou caso especial de geo-
metrias não euclidianas, mas independente destas. Da
mesma forma, con.c~pçi)~~de tempo e espaço baseadas em
nossa apreensão imediata das-mesmas sao válidas não ape-
nas aproximadamente, mas exata e completamente. A es-
trutura abstrata tempo-espaço é que é a extensão destas
cóncepÇiões; afingíaa ao se levar a cabo um treinamento
específico do pensamento baseado em certas pressuposi-
ções sobre a natureza da realidade física. Em todos estes.
casos a metafísica e uma filosofia independente da natu-
reza não invalidariam teorias físicas, mas mostrariam com
exatidão o que estas significam. Assinalariam a realidade
destes elementos do mundo físico que os modelos alta-
mente abstratos e matemáticos da física moderv-a deixa-
_ram de lado. E mais, assinalariam o fato de que \a mecâ-
nica quântica~ a teoria da relatividade\ e a físiç<l 0as· par-
tículas tratam \;em dúvida de um aspecto do mundo físico"
mas acrescentariam que o quadro derivado destas não é
o quadro da realidade física, mas apenas de seu aspecto
mais quantitativo e material. Além disso, quando esta
análise quantitativa é levada a seu limite conduz à des::Jr-
dem e à dissolução, chegando perto do que os filósÕfÕs
medievais chamavam ma teria prima. A de~?ordem e a dis-
solução que acompanham a explosão de aparatos termo-
nucleares indicam a mesma conclusão.
"' A metafísica distinguiria cuidadosamente entre :(atos
diligentemente reunidos por cientistas e hipóteses, muitas
não provadas, que são utilizadas para integrarestes fatos
a algum padrão significativo. Uma ciência total e comple-
ta das coisas seria capaz de julgar estas hipóteses e suas
implicações. Permaneceria como um padrão modelo c~
tra o qual a ciência moderna seria comparada e julgadal.e.:V
21 2 Sobre a ciência "perfeita" e sua comparação com a ciência mo-
derna, ver F. Brunner, Science et 1·éalité, Paris, 1954, onde ele es-
creve: "La science pa1-jaite, si elle ex1ste, n'est pas, comme la science
moderne, une démarche de raison indivicluclle, liée au:c donnéeii de
l'expérimentation et du calcul. Relative\ à l'originc,\ à l'étre et \à la
CERTAS APLICAÇÕES À SITUAÇÃO CONTEMPORÂNEA 123

Criticaria as vulgarizações da ciência e as filosofias po-


pulares nelas baseadas, assim como as contradições entre
as próprias ciências. Além disso, isto seria levado a cabo
não apenas na física, mas em todas as ciências como bio-
logia e psicologia onde, até mais do que na física, as con-
jecturas são exibidas como fatos cientificamente provados.
A i)slcologiae -pâfteaeseusmaleficios e fragllidades
não nos diz respeito, embora erros na interpretação jun-
guiana das ciências e símgQlos tradicionais precisem ser
definitivamente assinalado~No domínio da blologia, en-
tretanto, dificilmente pode-se evitar mencionar a teoria da
evolução que entrou em moda neste século e dommou
quase -todos os ramos do conhecimento, da astronomia à
própria história. Habituamo-nos a falar a respeito da evo-
lução das galáxias assim como desta ou daquela tribo ou
sociedade. De fato, raramente uma teoria ligada a uma
ciência específica tivera tão ampl~ aceitação, talvez por-
que a própria teoria da evolução, ao mvés de ser uma
teoria científica que se popularizara, tenha começado
como uma tendência geral que se introduziu no domínio
da biologia. Por esta mesma razão, rapidamente ganhou
aceitação, mais comQ_l1Il}_fl_Qgma g_ue como uma hipóte~e
científica vantajosa.
Do_p_o-nto de vista metafísico, a realidade de uma es-
pécie- não se--esgota por suas mamfestações puramente
materiais. Como outras coisas, a espécie é uma "idéla''
cuja mar-ca no domínio material não confina nem esgota
sua realidade essencial que permanece independente da
matéria. Uma espécie não poderia evoluir em outra por-
que cada espécie é uma realidade independente, quallta-
/in absolue des choses, sa prop:·iété est d'être tout entie1·e suspendue
à la connaissance du Principe ele /'univers" (pp. 8-9).
~l:l " •• para Jung, o "inconsciente coldivo" situa-se "em___l:/Jlixo'',
ao nível do instin~cológico: é importante ter-se isto em mente
dado que o termo "incnnsciente coletivo" em si poderia comport:n·
um significado mais amplo c, de algum modo, mais espiritual, corr.o
parece sugerir certas adaptações feitas por ele, especialmente su~
utilizHção - ou, na realidade, sua usurpação- do termo 'arquétipc' .. ''
Burckhardt, "Cosmology and Moaern Science", Tomorrow, inverno,
1965, p. 27. "Jung ab;·iu uma brecha em certas estruturas l'str·ita-
mente materialistas da ciência moderna; mas isto não tem utilidade
para ninguém, sem exagero - quem dera pudéssemos nos regozijar
com isto - , pois as influências que se infiltram por esta brecha vêm
do_ psiquismo inferior e n.ão do Espírito, que por si só é a verdad~
e o unico capaz de nos salvar." lbid., p. 55.
124 0 HOMEM E A NATUREZA

tivamente diferente de outra. Como é verdadeiro para o


domínio da qualidade em geral, cada qualidade é uma
realidade independente mesmo que materialmente produ-
zida por outras, como está exemplificado no caso das co-
res, onde uma cor produzida pela mistura de outras duas
é em si mesma uma qualidade nova e independente. No
tocante às espécies, do ponto de vista metafísico, estas são
em última análise tantas "idéias" na Mente Divina que, em
um determinado momento cosmico, deixaram suas impres-
sões no mundo tangível e retêm sua realidade em outros
planos de existência - quaisquer que sejam seus cursos
e histórias no domínio corporal. Acima de tudo, a meta-
física e também a lógica não podem aceitar a possibilida-
âe(fo mais elevado 'emergir do mais baixo, a menos que lá
. já estivesse, de uma forma ou de outra. A consciência ou
o espírito não pode evoluir da matéria, a menos que já
estivesse presenfê-nâ-mesma;exatamente como não se po-
deria levantar fisicamente um objeto contra um campo
gravitacional, a não ser que já houvesse uma reserva de
energia no autor do movimento.
Além disso, do ponto de vista metafísico, o e!_~ito j~­
mais pode ser dissociado de sua causa. O mundo jamais
poderia ser totalmente afastado de seu Criador, e não há
uma razão lógica ou filosófica, seja qual for, para rejei-
tar a possibilidade da criação contínua ou de uma série
de criações, como todas as doutrinas tradicionais têm sus-
tentadQ. A compreensão da metafísica poderia no mínimo
esclarecer o fato freqüentemente esquecido de que a plau-
sibilidade da teoria da evolução baseia-se em diversos fa-
tores não científicos peitencente_s_ ao clima íiiosó!ico gerâl
.da Europa dos séculos XVIII . e _XIX, tais como a
1Crença no progresso/cl_~ísmoquea:fasta da criação as mãos

do Criador, e a reétução da realidade aos dois níveis de


mente e matéria. Somente com tais crenças a teoria da
evolução poderia aparecer como "racional" e como a mais
fácil de ser aceita num mundo\que perdeu completamente
a visão dos múltiplos nív.eis do ser" que reduziu a natu-
reza a um mundo totalmente corpóreo, totalmente à parte
de qualquer outra ordem de existência.
A luz desta visão, bió!.Q.[os e geólogos passaram a
iapoiar a teoria da evoluçã~ normalmente recusando-se
214 Um dos grandes biólogos franceses escreve: "Bref, on naus de-
mande ici un acte de foi, et c'est bien en effet sous la fonne d'une
CERTAS APLICAÇÕES À SITUAÇÃO CONTEMPORÂNEA 125

mesmo a submetê-la a um escrutínio metodológico e cien-


tífico ou a permitir que ela s~a questionada como qual-
quer outra hipótese científic@'\Na maioria dos livros es-
critos sobre o assunto os fatos são arranjados de forma
a apresentar a evolução como um fato estabelecido. Ra-
ramente cientistas respeitados que se opuseram à evolu-
ção tiveram seus pontos de vista apresentados, porque a
evolução veio a ganhar status nos círculos biológicos e geo-
lógicos, bem diferente do que ~ observa com qualquer
outra ciência.
Mas a oposição à teoria da evolução prossegue nas
linhas científicas e, na verdade, tem aumentado nos últi-
mos anos. Não foram somente1 os naturalistas e biólogos
do século XIX, como Louis 1Agassiz, que se opuseram
à evolução darwiniana, mas também alguns cientis~as con-
tempo~âneos como/ Bounpure,j Bertrand-Sernet,/ Collins,
Clarkf Caullery(Lemoinef Dewar,/Grant-Watson e muitos
outros@ Todos os argumentos apresentados por estes ho-
mens são antes de natureza científica que de natureza teo-
lógica ou metafísica. Há, antes de mais nada, a declara-
ção feita por Lemoine e outros de que a evidência paleon-

vérité révelée que chacun de nous a reçu jadis la notion d'cvolution".


L. Bounoure, Déterminisme et [inalité dQI~b_le loi ele _[a v.ie: Paris,
1957. Ver também Recherche d'une doctrine de la vie, Paris, 1964,
para uma crítica biológica da evolução e alguns de seus defensores.
1.!.2.. "O conceito de Evolução orgânica é altamente apreciado pelos
biólogos, para muitos dos quais é um objeto de devoção genuinamente
religiosa, porque o vêem como um ~o integrador supremo. Esta
é provavelmente a razão por que o severo-álbcismomooáolôgico em-
pregado em outros departamentos da biologia não foi ainda chamado
a um confronto com a especulação evolutiva." Thompson, Science and
Common Sense, p. 229.
Lembramo-nos certa vez numa aula de estratigrafia quando fizemos
ao professor uma pergunta que parecia criticar o postulado da evo-
lução, tendo ele respondido prontamente: "Não fazemos mais per-
guntas sobre a evolução. Simplesmente a aceitamos e a seg-uimos" .
.z.liL Muito il'eqüentemente as obras de tais autores foram delibe:ada-
mente desprezadas ou suprimidas. Um exemplo disto é a obra de
D. Dewar entitulada Transformist Illusion, Murfreesboro, 1957, que
reuniu um grande volume de evidências paleontológicas e biológicas
contra a evolução. O autor, que fora em sua juventude um evolu-
cionista, escreveu muitas monografias existentes em bibliotecas de
zoologia e biologia comparativas por toda a parte. Mas sua última
obra, The Transformist Illusion, teve de ser publicada em Murfrees-
boro, Tennessee (!) e não é fácil de se achar nas bibliotecas q11e
têm todas as suas obras anteriores. Dificilmente há algum outro
campo da ciência onde predominem tais práticas obscurantistas.
126 O Hol\IE'\I E A N.-\TUREZA

tológica em que os evolucionistas basearam seus argumen-


tos na verdade contradiz a evolução217 e que o argumento
é circular.21s O registro geológico mostra bruscas explo-
sões de novas espécies que alguns evolucionistas procura-
rHm explicar através da teoria do "quanta de evolução"
(taquigênese), ou da "supressão sistemática das origens"
proposta por Teilhard de Chardin. Mas nenhuml::t destas
teorias resiste à crítica científica; permanecendo a dificul-
dade de que, contrariamente à teoria evolucionista, cada
nova espécie faz seu ingresso no palco da vida de forma
muito repentina e sobre uma região extensiva. 219 Tampou-
co o fato de que há uma gradação de fauna no registro
geológico prova a evolução de uma forma a outra, dado
que cada fauna surge repentinamente com todas suas ca-
racterísticas essenciais.22o
Os grandes tipos da zoologia foram mostrados pelos
cientistas como sendo independentes uns dos outros e sem
uma posição específica no registro paleontológico.221 Os
poucos casos onde o verdadeiro processo de transforma-
ção foi descrito pelos biólogos mostraram-se combinados
21 7 Lemoine, um geólogo francês, no papel de editor de um volume
da Enciclopédia Francesa sobre "Organismos Vivos", após rever ar-
tigos de diferentes colaboradores a respeito das provas paleontológicas
da evolução, escreve: "A partir destes fatos, conclui-se que a teoria
da evolução é impossível. Na realidade, a despeito das aparências,
ninguém mais acredita nela; fala-se da evolução, sem lhe dar qual-
quer importância para d~notar uma cterta ligação - mais evo]u;da,
ou menos evoluída no sentido de mais perfeita, menos perfeita, porqu~
é linguagem convencional, admitida e quase obrigatória no mundcJ
científico. A evolução é uma espécie de dogma em que; os padrP.s
não mais acreditam, mas que mantêm para sua gente." Citado por
Dewar em Transfonni.st Illusion, p. 262.
218 "De là vient que l'évolutionisme re]Jose tout entier s1o· une vas'e.
pétition de princi]Je: les fatis ]Jaléontologiques sont t~tilisés pour
prouver l'évolution et, à la /ois, trouvent lenr explication dans cette
théorie inventée pour eux. C'est un rnagnifique exe111pl•.? de circulu3
vitiosus." Bounoure, Déterrninisrne et finalité, pp. 80-1.
219 Para a crítica destas teorias que procuram fornecer uma resposta
para a explosão de novas formas, ver Bounoure, op. cit., pp. 65 e ss.
220 "Qu'il y ait eu, au cours des âges, une certaine gradation des
formes, cela est ce1·tain, mais ne prouve nullement un rapport de
desccndence entre les differents groupes, dont chacun, au contraíre.
surgit brusquement, de novo, avec tous ses caracteres essentiels."
Bounoure, op. cit., pp. 57-8.
221 "La rnajeure partie des types fondamentaux du re,qne animal se
presentent à naus sans aucun lien au point de vue paléontnlogique."
C. Depéret, Les Transformations du monde animal: Paris, 1907, p. 76.
CERTAS APLICAÇÕES À SITUAÇÃO CONTEMPORÂNEA 127

a obstáculos que os fazem parecer miraculosos, o que por


si só já diz tud0.222 As árvores genealógicas da biologia
traçadas pela primeira vez por Haeckel, e hoje os princi-
pais esteios populares dos livros sobre biologia, mostram
contradições evidentes, estando baseadas mais em fan-
tasia que em prova científica. Estes e muitos outros ar-
gumentos são apresentados por uma minoria de biólogos
e geólogos cuja voz é impedida de ser plenamente ouvida
pelo clima mental corrente.
Em toda a questão da teoria evolucionista e suas im-
plicações não é feita uma distinção clara entre os elemen-
tos objetivos e subjetivos. Tomada como um dogma, a
evolução se apresenta sem considerar os casos biológicos
que não podem ser explicados por ela.223 Igualmente, a
oposição da hipótese evolutiva à lei de entr_~pia e as im-
plicações que a primeira tem à luz da crença mantida por
outras ciências a respeito do declínio gradual de todo o
universo tangível são raramente enratizadas nas apresen-
tações gerais da evolução) que se tenta apresentar como
sendo a mais lógica e científica. Mais importante de tudo:
poucos se preocupam em mencionar que no mundo em que
vivemos não há absolutamente evolução observada.2 24 Tam-
pouco tiveram sucesso as experiências feitas para for-
necer um caso de transformação, em laboratório, de uma
espécie em outra. 225 E mais: há espécies que sobreviveram
desde a primeira idade geológica sem evoluir de forma al-
guma. Se quisermos fazer uma verdadeira afirmação cien-
tífica a respeito do mundo vivo a nossa volta teríamos de
dizer que a natureza apresenta-nos de fato espécies que

222 Ver Dcwar, The Transformist lllusion, Capítulo XVII, "Some


Transformations Postulatcd by thc Doctrine of Evolution".
2 23 Ver os vários estudos de E. L. Grant-Watson como Nature Aboun-
ding: Londres, 1941; Enigmas of Natw·al History: Lond1·es (s.d.);
e The Myste;-y of Physieal Lifc: Londres, 1964, onde estes casos são
estudados. O autor, nestas obras, busca estudar a "sabedoria da na-
tureza" .ao voltar-se para casos específicos onde esta "sabedoria" está
manifestada de forma mais direta.
224 "Quoi qu'il en soit, dans le monde actuel, naus ne constatons
aucun signe d'évolution; celle-ci parait exclue du monde vivant que
naus avons sous les ye11x et dont nons faisons partie." Bounoure,
Déterminisme et finalité, p. 51.
225 M. Caullery, L e Probleme de l'évolution: Paris, 1931, p. 401;
Bounoure, op. cit., pp. 50-1.
128 O HoMEM E A NATUREZA

são constantes e imutáveis, mas que ocasionalmente su-


cumbem e desaparecem.226
Se aqui repetimos estas críticas científicas à evolu-
ção, não é para abrir um debate biológico, mas para fazer
distinção entre os fatos científicos e as suposições filosó-
ficas que lhes são subjacentes. Uma redescoberta da meta-
física viria bem a calhar neste caso porque removeria este
obstáculo filosófico e permitiria a discussão e o debate dos
fatos biológicos e geológicos, como nas outras ciências,
sem basear-se na evolução como um dogma que não pode
ser desafiado. E mais: evitaria o abuso da teoria evoluciO-
nista em outros campos, uma prática muito dissemi-
nada, a ponto de mesmo opiniões filosóficas contra-
ditórias socorrerem a teoria da evolução como sua justifi-
cativa "científica" .221 Isto é de particular importância no
tocante ao confronto do homem com a natureza, porque
pseudofilosofias desta espécie podem causar os maiores
prejuízos à harmonia entre estes, ao apresentar o homem
como o inevitável vencedor de uma longa batalha, tendo
portanto o direito de conquistar e dominar todas as coisas,
ou ao destruir a significação espiritual de uma natureza
que depende precisamente do fato de refletir uma realidã-
de permanente e que existe além de si mesma.
As pseudofilosofias tornam-se ainda mais perigosas
quando começam a incorporar elementos religiosos e a
se apresentar como síntese de ciência e religião, ou de
religião baseada em fatos científicos, o que na realidade
não passa de :hipóteses sustentadas por uma determinada
atitude filosófica. O caso de Teilhard de Chardin, a mais
recente aventura deste tipo, é um exemplo perfeito de
pseudometafísica ligada à teoria da evolução, sustentan-
do-se nos próprios antípodas e sendo a antítese da visão
espiritual que discutimos nos capítulos anteriores.

226 "E/les [ especes] n'ont devant elles qu'une alterna tive: ou se main-
tenir inchangées, ou s'éteindre." Caullery, op. cit., pp. 84-5.
227 "Le succes de la théorie évolutioniste, c'est le succes des per-
sonnes faciles, il n' est point de bio-philosophie qui ne recoure à cette
fille complaisante: elle sert le matérialisme de Haeckel et de Lyssenko,
le lyrisme éperdu de Saint-Seine, l'anti-hasard de Cuénot, le spiritua-
lisme de Le Roy et de Leconte de Nouy, l'orthodoxie religieuse des
prétes, moines et princes de grand' clergie. Il existe aujourd'hui nn
scientisme clérical dont l'ardent empressement est manifeste pour l'évo-
lution: chez celle-ci se reconcilient les passionés de l'athéisme et les
croyants de stricte obédience." Bounoure, op. cit., p. 78.
CERTAS APLICAÇÕES À SITUAÇÃO CONTEMPORÂNEA 129

O que se necessita desesperadamente tanto na biolo-


gia como na física é uma filosofia da natureza que não
pode ser novamente abstraída da própria biologia e muito
menos da física. O debate entre ~logia e mecanicismo
reflete bem claramente uma visão inerte da nautreza ex-
traída da física e imposta às ciências da vida. Por esta ra-
zão muitos biólogos renomados se rebelaram contra a
tese mecanicista e expuseram a importância da teleologia
em todos os processos da vida.228 Em outras questões da
biologia também são encontradas dificuldades porque as
suposições filosóficas são as de um mundo visto pelos
olhos da física. Não houve até então uma N.losofia da bio-
logia que fizesse justiça ao tema desta ciência, menos ain-
da do que no caso da física. 229 E na biologia, mais ainda
que nas ciências que tratam de quantidade, há necessi-
dade de uma visão da realidade onde qualidades e formas
de vida. tenham um status antes ontológico que acidental.
Tal visão só pode encontrar sua justificativa no âmago
desta ciência suprema da realidade que é a metafisica.
As doutrinas metafísicas podem também auxiliar na
eliminação de JmplicaÇ'ões falsas nas teorias biológicas,
especialmente as da teoria da evolução. Hoje em todo o
mundo, especialmente no Oriente, onde ainda há socieda-
des que se mantêm fiéis a seus princípios religiosos e à
estrutura socJal que neles se baseia, o homem é solicitado
a evoluir e modificar-se simplesmente porque a evolução
está na natureza-das coisas e é inevitável. Uma avaliação
mais objetiva dos achados da biologia insistiria em que
desde que o homem vive na terra1 ele em nada evoluiu;
tampouco seu ambiente natural de forma alguma se mo-
dificou. As mesmas plantas e animais ainda nascem, cres-
cem, definham, morrem e se regeneram, a não ser no
caso das espécies desafortunadas que o homem moderno ex-
tinguiu, crendo ser ele próprio parte do processo de evo-
lução. Poder-se-ia de fato afirmar que apesar de o surgi-
mento, alteração e declínio das sociedades humanas ser
uma verdade inevitável, o único fator que não evoluiu du-
rante todo este processo foi a própria natureza. A pre-

228 Um destacado biólogo como D'Arcy Thomson é um exemplo.


229 Sobre os problemas que dizem respeito à filosofia da biologia,
ver E. W. F. Tomlin, Living and Knowing: Londres, 1955, part~s
dois c tlês.
130 0 HOMEM E A NATUREZA

tensa evolução progressiva da humanidade, longe de ser a


conseqüência inevitável dos processos cósmico e natural,
é completamen te oposta à vida imediata e contemporâ-
nea do ambiente natural em que vive o homem, um am-
biente cujo movimento é antes cíclico!que evolutivo-é-q ue
através da modificação cíclica reproduz as mesmas for-
m~permanentes.2ao Talvez uma das razões pelas quais o
homem moderno, que acredita no progresso e na evolução,
tenha chegado a uma grave crise em seu confronto com a
natureza é que suas crenças evolucionista s, com tudo que
elas implicam religiosa, política, social e economicame nte,
não coadunam com a vida naquele domínio da realidade
que o cerca mas que ele não criou, a saber, a natureza vir-
gem e todas as formas de vida que florescem em seu seio.
A aplicação de princípios metafísicos a outras ciências
como química, geologia, astronomia ou à própria mate-
mática2;H poderia ser continuada seguindo-se as linhas
brevemente mencionadas, fornecendo assim tanto uma
matriz global quanto um critério para julgar entre hipó-
teses e fatos, e entre as descobertas científicas e suas tao
faladas implicações filosóficas. Os exemplos citados nesta
breve exposição a respeito da física e da biologia são, no
entanto, suficientes para indicar o princípio que temos em
mente. Em cada caso, o conhecimento metafísico não pro-
cede de uma ciência experimental , mas coloca-se como
uma ciência universal que fornece a base geral para cada
ciência e que traz à luz a significação universal e simbó-
li~__ QªS descoberta_s de cada uma destas, um piõcesso que
as próprias ciências não podem levar a cabo em virtude da
restrição auto-imposta de lidar apenas com fatos e gene-
ralizações ou construções mentais baseadas nestes, e não
com a significação simbólica dos fatos e fenômenos.
Neste domínio; a metafísica pode também prestar ou-
tro serviço de grande valor, a saber, trazer à luz a verda-
deira significação das ciências tradicionais da natureza

230 Esta declaração não pretendeu, de modo algum, se opor à soli-


dificação e coagulação graduais do ambiente cósmico ass('guradas pelas
doutrinas tradicionais, especialmente as doutrinas hindus dos ciclos
cósmicos.
2 31 No tocante à matem:Hica, pode ser encontrado em R. Guénon,
Les Principes du calcul infinitésúnial, Paris, 1946, um exemplo de
como os princípios metafísicos podem ser aplicados e de com0 a sig!li-
ficação metafísica de um ramo da matemática pode ser clucidada.
CERTAS APT.ICAÇÜF À SITU.\CÃO CO\'TEI\.IPORÂNEA
> '\
131

que perderam seu sentido devido à perda do conhecimento


metafísico. Somente uma redescoberta da doutrina dos
múltiplos estados do ser, das correspondências cósmicas
e da ciência do--simbolismo pode novamente revelar o
significado de ciências como alquimia e astrologia. /Não
há validade na afirmação de que o homem moderno nao
consegue mais ver Deus no sol e no céu, exceto se se quer
dizer com isso que o homem fechou os olhos a este as-
pecto das coisas. Pelo contrário, a estrutura da realidade
não mudou. Somente mudou a vhão do homem-em relaca::J
à -realictade./1 >

Não importa quão profundamente se penetra nas pro-


funciezas do espaço cósmico ou no coração do átomo, a
estrutura da realidade ensinada pelas doutrinas meta-
físicas, e as ciências cosmolégicr- ~ tradicionais que são as
exten!'.-.Ses destas doutrinas, permanecem inalteradas e
não afetadas. Todas as extensões do conhecimento cienti-
fico moderno são horizontais_;,no domínio da existência
corporal e material, mesmo que se trate de uma questao
galática, e assim não afeta nem um pouco os outros pla-
nos de existência. Além disso, este mesmo /co_nh~ciln~nt.o_
ampliado das coisas materiais carece do conhecimento
cosmológico sintético fornecido pelas ciências tradicionais
do cosmos. A inteligência do homem é feita de tal modo
que ele pode vir a conhecer com precisão o Infinito e o
Absoluto, não o indefinido e o relativo. O conhecimento
que se ocupa unicamente das coisas materiais está na ver-
dade lidando com o indefinido, ou no mínimo com seu
aspecto quantitativo, cop1 o que os hindus chamam de o
labirinto cósmico ou maya) e os budistas, de samsara.
Apesarae1egítima como todas as outras, esta forma de
ciência só pode permanecer saudável quando cultivada se-
gundo os moldes de uma ciência que esteja centrada no
Absoluto e no Infinito, podendo portanto, em virtude de
seu centro imutável, localizar e definir a periferia e o re-
lativo com os quais lidam as ciências modernas. Nesta
tarefa, as ciências cosmológicas revitalizadas, readquirin-
do sua significância através do conhecimento metafísico,
poderiam ter um papel vital como um elo entre as ciên-
cias modernas e as doutrinas puramente metafísicas, como
uma ponte entre o moderno conhecimento científico da
natureza e a gnose que trata de realidades que se encon-
tram além de todas as manifestações cósmicas.
132 0 HOMEM E A NATUREZA

Uma tal revitaliza ção das ciências tradicion ais requer


no entanto uma redescob erta do verdadeir o significad o
do simbolism o e a educação do homem moderno para que
compree nda a linguage m do simbolism o da mesma forma
que é ensinado a dominar as linguagen s da lógica ou da
matemáti ca. Este século foi testemun ha da redescob erta
da significaç ão do mito e do símbolo,232 mas este evento
até o momento teve pequena influênci a sobre a teologia,
a ciência ou mesmo sobre a arte. O homem moderno ra-
~amente compreen de o significad o -dos -süribQI_~, e
devido a esta falta de conhecim ento discrimin ativo está
sujeito a confundi r formas e sinais de origem diabólica
com símbolos cuja fonte é transcend ental e luminosa .
Grande parte da poesia e da pintura que é chamada sim-
bólica e a busca junguian a da origem dos símbolos num
inconscie nte coletivo, que é como que o arquivo de bes-
teiras de uma determin ada cultura ou grupo étnico, pres-
tam testemun ho a este fato.
Simbolis mo, no significado essencial do termo que te-
mos em mente, diz respeito ao processo de sacralizaç ão do
cosmo. É através do símbolo que o homem é capaz de en-
contrar sentido no ambiente cósmico que o cerca. 2 33 É o
símbolo que revela a realidade objetiva como coisa sagra-
da; na verdade tudo que é realidade objetiva é sagrado e
simboliza uma realidade que está além desta primeira.2J<~

232 Os escritos de autores tradicionai s como R. Guénon, A. K. Coo-


maraswam y, F. Schuon e T. Burckhard t assim como as conhecidas
figuras acadêmicas de H. Zimmer e M. Eliade são de especial signi-
ficação neste domínio.
2 33 "O símbolo religioso traduz uma situação humana em tc>rmo"
cosmológico s e vice-versa; mais precisamen te, revela a _c.anJ;inuic!f!_Cie
~~13 estruturas_ da_gxistên cia _humana e as cg_sn:üc<t~ Isto- qucJ:-
dizer qUe O homem não Se sente -i'isolado' 'nocosmo, mas que Pie
se "abre" para um mundo que, graças a um símbolo, se m0stra
"familiar". Por outro lado, os valores cosmológico s dos símbolos o
capacitam a deixar de la<io a subjetivida de de uma situaçã0 e a r(~­
conhecer _a objetividad e de suas e:l(J;lliriê.~_essoais." M. Eliad-\
''Meüiodolo gical Remarks-ó nfhe Study of Religious Symbolism ", em
M. Eliade e J. Kitagawa (orgs.) The History of Religions - E.~srt';s·
1"n Methodolog y: Chicago, 1959, p. 103.
234 "Os símbolos religiosos são capazes de revelar uma modalid,ld·-:
do real ou uma estrutura do mundo que não é evidente ao nível dn:
experiência imediata ... "
"Para os primitivos, os símbolos são sempre religiosos porqu~
visam alguma coisa real ou uma estnrtnra do mundo. Posto CP1
em níveis arcaicos de cultura o real - isto é, o poderoso, o signifí-
CERTAS APLICAÇÕES À SITUAÇÃO CONTEMPORÂNEA 133

Somente a Origem, ou o Um, é inteiramente real e total-


mente Ela mesma, e não o símbolo de alguma coisa que
não seja Ela mesma. Todo o resto é símbolo de um esta-
do de existência que o transcende. Pode-se dizer que mes-
mo o vazio e o niilismo sentidos pelo homem moderno é
um símbolo, um símbolo do aspecto transcendente de Deus
que, após conferir todas as qualidades, também as toma
de volta para Si mesmo. O próprio profano simboliza uma
realidade religiosa, da mesma forma que "Satã é o imi-
tador de Deus". Não obstante, deve-se já ser possuidor do
conhecimento do simbolismo e dos princípios que este en-
volve a fim de discernir em cada situação o significado
simbólico inerente à mesma.
Na verdade, compreender inteiramente o significado
do simbolismo, do sentido simbólico das formas, cores e
formas, de tudo que nos cerca, é uma_fonna d~ ver_p_§Js
em toda parte. É portanto uma forma de tornar todas as
coisas sagradas. Por esta mesma razão isto requer discri-
minação e conformidade ao Ser Puro que é a origem de
todos os símbolos.235 Necessitamos de uma educação no
mais profundo sentido da palavra, uma reorientação do
homem de forma que se torne consciente da natureza
transparente do mundo que o cerca e da dimensão trans-
cendente que está presente em toda situação cósmica.
Instruir homens a compreender símbolos desta manei-
ra não significa uma negação do aspecto factual das coi-
sas. Pelo contrário, significa uma revelação do conheci-
mento de um outro aspecto das coisas que é ainda

cativo, o existente - é equivalente ao sagrado." Eliade, op. cit.,


pp. 98-9.
~a:; "A ciência dos símbolos - não simplesmente um conhecimento
de símbolos tradicionais - procede das significações qualitativas das
substâncias, formas, direções espaciais. . . e outras propriedades ou
estágios das coisas; não estamos tratando aqui de apreciações subje-
tivas, dado que as qualidades cósmicas são ordenadas tanto em relação
ao Ser quanto de acordo com uma hierarquia mais real que indi-
vidual; elas independem então de nossos gostos, ou melhor, elas os
determinam até o ponto em que ~eSJ:!l_()~ esj;amos ,submissos ao
Se1~; concordamos com as qualidades até o ponto em que nós mesmos
somos "qualitativos". O simbolismo, quer ele resida na natureza; que',
seja afirmado na arte sagrada, também corresponde a uma maneira
de "ver Deus em toda parte", com a condição de que esta visão seja
_e_§p_Q!l1imea graças a um conhecimento familiar dos princípios de onde
procede a ciência dos símbolos ... " F. Schuon, Gnosis Divine Wisdom
(trad. de G. E. H. Palmer): Londres, 1959, p. 110.
13-f o HOl\IE :\1 E A NATU REZA

à raiz exist enci al


mais real e mais estre itam ente ligad o
o aspe cto quan ti-
dest as do que às qual idad es sens íveis e a. Para se en-
tativ o do qual a ciên cia mod erna se ocup
árvo re com o símb olo dos múlt iplos
sina r a sign ifica ção da o símb olo cto
estad os de exist ênci a, ou da mon tanh a com
intel igíve l Cio
cosm o, ou o sol com o o símb olo do prin cípiodesc ober tas da
ecia m as
Univ erso , de form a algu ma se depr
para a natu -
botâ nica , da geol ogia ou da astro nom ia. Mas do, e se o con-
reza ser nova men te poss uido ra de sign ifica stres e cala-
desa
fron to hom em-n ature za é para evita r os conh ecim ento _
mida des que a ame açam hoje em dia, este
entad ()J_ não com o fanta ~ia poé-
simb_ótico tem de ser apres onto lógic a, das
tica, mas com o uma ciên cia ligad a à raiz
re ou da man tanh a
coisa s. A natu reza simb ólica da árvo casc a da ár-
ser quan to a
é uma part e tão íntim a de seu _l_o
gran ito da mon tanh a. L.fm_ §ímbo
vore ou as roch as de
to o é a çª_s~_Q,
verd adei ro é tão criaq o pelo hom em quan ciên cia da_?
de- uma
ou o gTan ito. É som ente a esta luz, a ecnn errto 61€m -
form as_n atur ais que com plem enta o conh
a ciên cia dos símb olos pode ter um
tífico mod erno , que lar no Um-
seu
pape l vital na reint egra ção do hom em ao a!lxi iar
ém pode
verso . Além disso , esta ciên cia tamb espe cífic as que
amp liar a com pree nsão daqu eles símb olos iões, s::.n:lnc::m,
o Cris tiani smo, com o toda s as outr as relig
as alma s intel i-
símb olos cujo esqu ecim ento forço u muit me::.tcs ;"o~.:t dl.
gent es a busc ar resp osta s às ques tões pr,
Igre ja. ; n;et:< il-
Cont udo, uma outr a aplic ação dos pr:.1cíp;o.c conh e-
dom ínio do
sicos não diz assim tanto resp eito ao
à aplic ação da
cime nto, mas sim ao da ação . Díz resp eito na gu2r ra.
seja na tecno logia , quer
ciên cia mod erna quer que por fim
eles
Na verd ade, a ansi edad e de muit os daqu ão do hom em
se torn aram inter essa dos na ques tão da relaç
te, brot a não de cons idera ções
com a natu reza , gera lmen s horr ores
obse rvaç ão dos inac redit ávei
teóri cas, mas da erna torn aram
da guer ra que as aplic açõe s da ciên cia mod tes têm pros se-
poss íveis . Nest e dom ínio, infin dáve is deba freq üênc ia
acon tece com bast ante
guim ento e, com o
se enco ntra ne-
neste s dias, cria- se uma situa ção onde não o terre no não
ue
nhum a resp osta prec isa, exat ame nte porq
foi prep arad o de man eira adeq uada . s vale a pena
Algu ns acre ditam que há cois as pela s quai
m a vida terre na
luta r e mesm o mor rer, e outr os P(3.r aque
CERTAS APLIC\~'ÕES À SITU.\ÇÃO CONTEMPORÂNEA 135

do homem é o fim último, não acreditando portanto que


-v-allia-ape-na colocar em risco esta existência sob qu_alquer
pretexto, mesmo que o preço seja a perda da ctrgmdade
que faz o homem antes humano que animal. E mals:
quando não se considera a questão imediata desta alter-
nativa que concerne à guerra, o foco da atenção normal-
mente se volta para a extensão pacífica da tecnologia que
é tida como erradicadora de toda a miséria da terra, mas
que geralmente traz consigo problemas maiores que aque-
les que conseguiu resolver. Em todas estas questões de
natureza política, social e econômica, os princípios meta-
físicos podem também lançar alguma luz, não ao forne-
cer uma solução indolor a uma determinada dificuldade,
onde tem~se de aceitar a ([eação l dg_ uma ação çometida,
mas ao revelar as causas pfin~lpâis qiiegeraram uma si-
tuaçào específica. Estes princípios podem acima de tudo
dissipar a ilusão acerca da existência desse ser puramente
econômico cujo progresso material é tido como a meta de
toda organização social e política. Podem também ajudar
a corrigir alguns dos erros de outras ciências relaciona-
das ao homem e à sociedade que ainda copiam cegamente
os métodos da física do século dezessete e estudam o
homem sem saber o que ele realmente é. Podem ainda es-
tipular fronteiras à aplicação da tecnologia c, na r:alidaClé:;,
à inexorável propensão de satisfazer os desejos a;-1lm.éu·
do homem, e até mesmo criar, quando possível, novos de-
sejos e necessidades.
No Ocidente, da mesma forma que o surgimento de
uma ciência da natureza puramente material e quantita-
tiva se deve a causas profundamente enraizadas e a cer-·
tas limitações nas formulaçiíes teológicas do Cristianismo
latino, que no momento do enfraquecimento da fé condu-
ziu ao divórcio entre ciência e religião, assim a aplicaçao
irrestrita e ilimitada da ciência moderna na forma de tec-
nologia subordina-se ao fato de o Cristianismo ser uma
religião sem uma Lei Sagrada ou, como diriam os mu-
çulmanos, sem um Shari'ah.23G
Este fato talvez não seja evidente para um cristão que
vê sua religião como a norma com a qual as outras reli-
~=w Sobl'c o caráter e!"pr.•cial do C1·istiani!"mo como uma via espiritual
sem uma lei. em comp2raç:'io com o ,Judaísmo e o Islam. Vl'l"
F. Schuon, Tlw Tmn,ccnde11t Unit!f of Re/igions (trad. de P. Town
sand) Londl'es, 1948, Cap:tulos VI c VIL
i36 o HOML\1 E A NATUREZA

gwes, mas isto se torna óbvio se se faz uma comparação


com as outras religiões monoteístas que procedem da "ár-
vore abraâmica", a saber, o .J_udaísmo e o Islam. To-
das as duas têm uma Lei Sagrªda,. a talmúdiCa- e a- alco-
râmica, que são inseparáveis da revelação de cada reli-
gião. De fato, em ambos os casos a vontade de Deus é
vista como manifestada em leis concretas que teorica-
mente governam todos os aspectos da vida humana e sao
o _plano_ de uma sociedade _humana perfeitl:t. A vida polí-
tica, social e econômica do homem é governada pelas ins-
tituições divinas contidas na Lei Sagrada.
Por outro lado, o Cristiap._!§_rr:to, em conformidade com
seu caráter esotériCo') chegou como uma via espirituaL sem
uma Lei Sagrada. êristo trouxe um caminho que não era
deste mundo e um conjunto de ensinamentos espirituais
elevados que só pode- ser plenamente" seguido por uma SQ-
ciedade de santos. Quando se tornou a religião de uma
civÜizaçao, o Cristianismo incorporou à sua estrutura a
lei romana e mesmo a lei comum, e enquanto durou a uni-
dade da cristandade medieval conferiu-se à lei uma sanção
divina, como vemos nas discussões teológicas de São To-
más a respeito da lei divina e natural. Mas permaneceu
o fato de que as leis que governavam a vida política, so-
cial e econômica dos homens não gozavam da mesma
autoridade direta da revelação que os ensinamentos de
Cristo, que dizem respeito a princípios espirituais gerais
tais como a necessidade de ser misericordioso. É um para-
doxo da moderna história ocidental que todo sistema po-
lítico-econômico, mesmo aqueles que são os mais secula-
res e fnticristãos, faz da caridade a virtude suprema, mes-
mo que seja apenas caridade para com o homem visto
como um animal. Mesmo no marxismo a virtude suprema
é a caridade, que neste caso tornou-se uma paródia da
misericórdia dos santos.
A falta de uma Lei Sagrada no Cristianismo não só
tornou mais fáceis as sublevações sociais, mas também
facilitou a dilaceração da natureza através de sua explo-
ração irrestrita e ilimitada. O desenvolvimento da eco-
nomia como uma disciplina independente, cujo objeto é
o homem considerado unicamente como um ser com ne-
cessidades materiais, é o resultado de uma situação em
que não há instrução religiosa direta sobre quais são os
direitos e obrigações do homem ante a natureza e Deus.
CERTAS APLICAÇÕES À SITUAÇÃO CONTEMPORÂNEA 137

É evidente que a teologia cristã influenciou atitudes so-


ciais e econômicas através dos tempos. O debate sobre ã
fé e as obras de Deus ou a glorificação do trabalho entre
os puritanos da Nova Inglaterra são muito bem conheci-
dos. Mas as visões teológicas não são a mesma coisa que
a lei revelada. O próprio fato de não haver dentro do
Cristianismo uma instrução detalhada a respeito da es-
trutura social e práticas econômicas conduziu, com o en-
fraquecimento do Cristianismo no Ocidente, através de
práticas econômicas e aplicações da tecnologia, a uma
acumulação de riqueza que não conhece fronteiras e li-
mites. Conduziu também à criação de uma civilizaçao
moderna que se estendeu a outros continentes e gerou si-
tuações políticas e militares em que se teve de fazer, com
freqüência, a escolha entre a aniquilação e o sacrificio
desses valores que conferem dignidade à vida humana.
Uma redescoberta do conhecimento metafísico e uma
revitalização de uma teologia e filosofia da natureza pode-
riam estabelecer um limite à aplicação da ciência e tec-
nologia. No passado o homem teve de ser salvo da natu-
reza. Hoje a natureza tem de ser salva do homem, tanto
na paz quanto na guerra.237 Muitos trabalham sob a ilu-
_são de que somente a guerra é o mal
eque seãpenas esta
pudesse ser evitada o homem poderia avançar pacifica-
mente para criar um paraíso sobre a terra. O que se es-
quece é que em ambos os estados, de guerra e de paz, o
homem está levando a cabo uma guerra incessante con-
tra a natureza. O estado de guerra oficial nada mais é
que a erupção ocasional de uma atividade que tem lugar
o tempo todo no interior da alma dos homens, na socie- 1
\

dade humana e contra a natureza. Não passa de um sonho


quimérico ficar esperando a paz baseada num estado de
guerra intensa contra a natureza e no desequilíbrio com
o ambiente cósmico. Somente a completa ignorância do
que significa a relação do homem com a natureza poderia
23 7 "Por causa da verdadeira totalidade e centralidade do homem,
ele tem a função quase divina de zelar pelo mundo da natureza.
Urna vez que seu papel seja ignorado ou desvirtuado, ele corre o
risco de ver a natureza lhe mostrar. no final, quem é na realidade o
conquistador e quem é o conquistado. Poder-se-ia também dizer que
no passado o homem teve de se proteger das forças da na tu >·p:r.n,
enquanto hoje é a natureza que tem de ser protegida d'l ameac·1
do homem." J. E. Brown, "The Spiritual Legacy of thc Ameri
Indian", Tomorrow, outono, 1964, p. 302.
P8 0 Ho:>.rE\1 E A NATURE ZA

permit ir que tais visões fossem acolhidas. Quer se poluam


as reserva s de água num único bomba rdeio, quer se faça
isso durant e o período de vinte anos, essenci alment e é a
mesma coisa; a única diferen ça é uma questão de t::-mpo.
O resulta do final não difere nos dois casos, porque nos
dois casos o homem está conduz indo uma guerra contra
a naturez a.
Talvez a respos ta a esta ardent e questão de como
evitar a guerra e também de como preserv ar a dignida de
human a em face da ameaça de guerra total esteja em ca-
minhar para a paz com a n1!_1Y.r§za. Mas o desenvolvimen-
to deste acordo pacífico, por sua vez, depend e da rede.s-
coberta da significação espiritu al da naturez a. Com a
ajuda de princíp ios metafís icos e um novo desper tar do
interes se pela tradiçã o no seio do Cristia nismo que tinha
uma visão espiritu al da naturez a, pode ser desenvolvido e
realme nte precisa ser desenvolvido um amor pela nature za
basead o na ciência de sua realida de simból ica e ontológi-
ca.23B Assim, pode ser criada uma harmon iosa relação para
todos aquele s que são capaze s de compre ender e apreen der
este conhec imento metafís ico que conduz ao amor e res-
peito pela naturez a.
Eviden tement e, a viabilid ade de se aplicar o progra -
ma propos to nestes capítul os e a questão da possibili-
dade de propos tas deste tipo serem algum dia levadas a
cabo num mundo q.ae- que não parece querer modifi car
até que os aconte ciment os o levem a isto são em si mes-
mas um assunto a se conside rar, sem dúvida uma mate-
ria import ante mas que não podem os tratar aqui. Nossa
2 :Js"Este destrona mento da natureza , ou esta cisão entre o homem
e a terra - um reflexo da cisão entre o homem--e o Céu __:_ p1·oduziu
dia,
frutos tão amargos que não seria difícil mostrar como, hoje em
m cte•·na da natureza constitu i um viático de p1·;md 1·a
a mensage
ordem. Alguns talvez façam objeção ao fato de que o Ocidente s ·mprc
~OUbC - especialm ente nos Séculos dezoito e dezenove - COnlO
l'etomar
se
a natUl·eza vit·gcm, mas isto está fora de questão, já que não
o
trata aqui de um "naturis mo" que possa ser descrito como romântic
e "deísta" ou até ateísta. Não é uma questão de projetar um indivi-
-
dualismo super-sa turado e desiludid o numa natureza dessacra lizada
pelo
isto ~e1:ia um ato de profanaç ão como qualquer outro - mas,
uma
contrano , de encontra t· novamen te na natureza , nas bases de
en>
perspect iva tradicion al, a substânc ia divina que lhe é inerente ;
, em toda parte", e nada ver à pa1te de
outras _pal~vras "ver Deus
pá-
Sua nusteno sa presença ." F. Schuon, "The Symboli st Outlook " ,
~~5~.
CERTAS APLICAÇÕES À SITUAÇÃo CoNTEMPORÂNEA 139

tareía foi, antes, fazer esta análise a respeito das causas


da crise no confronto do homem com a natureza e propor
meios pelos quais esta crise possa ser atenuada. Resta
saber se algumas sugestões de natureza espiritual e in-
telectual serão ouvidas por um mundo que voltou seus
ouvidos ao som e à fúria de sua própria confecção e que
se torna surdo a todas as outras vozes. A própria tenta-
tiva de se pensar neste importante problema e fornecer
uma resposta é sem dúvida de grande valia, posto qu~
procurar descobrir a verdade em qualquer assunto é o
mais construtivo de todos os atos.
Ao final, o que podemos dizer com toda certeza e
que não há possibilidade de paz entre os homens, a me-
nos que haja paz e harmonia com a natureza. E a fim
de se ter paz e harmonia com a natureza tem-se de estar
em harmonia e equilíbrio com o Céu, e por último com
a Fonte e Origem de todas as coisas.239 Aquele que está
em paz com Deus também o está com Sua criação, tanto
com a natureza quanto com o homem.

J. ~ rL.vL;- c ~v.~~
2 'I , z,- - .í-<h >v .~ /-i

23 9 "A clara compreensão da virtude do Céu e da Terra é aquilo


que se chama 'A Grande Raiz' e 'A Grande Origem'_; aqueles que
a têm estão em harmonia com o Céu, e assim produzem todas as
medidas equânimes no mundo; são aqueles que estão em harmonia
com os homens." The Sacred Books of China, The Texts of TaoisM
(trad. de J. Lcgge), vol. I, p. 332.
COMPOSTO E IMPRESSO POR
TAVARES & TRISTÃO- GRA-
FICA E EDITORA DE LIVROS
LTDA., À RUA 20 DE ABRIL,
28, SALA 1.108, RIO DE JA-
NEIRO, R.J., PARA
ZAHAR EDITORES

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