Você está na página 1de 5

A SOLUÇÃO

,..,
APARENTE:
CONSIDERAÇOES SOBRE O PARADIGMA
~
INDICIARIO
Laéria BeserraFontenele

RESUMO

Pretende-se problematizar a demarcação entre o que pode ser considerado racional e irracional, no debate
contemporâneo sobre o pós-modernismo. Constata-se a existência de um deslocamento discursivo a esse respeito
em relação ao debate ocorrido no modernismo. Considera-se a repercussão disso para o tratamento teórico-
metodológico da questão nas Ciências Humanas. Objetiva-se discutir a proposta do paradigma indiciário, for-
mulada por Ginsburg, como alternativa aos inconvenientes da contraposição entre racional e irracional. Con-
clui-se que a proposta de Ginsburg soluciona oproblema de forma apenas aparente.
Palavras-Chave: pós-modernismo-paradigma indiciário-Ginsburg.

The apparent solution: Considerations about the "indicia" paradigm

ABSTRACT

This paper treats tbe demarcation of rational and irrational thought in the modern debate about post-
modernismo It evidences the existence of a discursive displacement in what concerns that subject. It considers the
repercussion of these conclusions for tbe theoretic and methodological treatment of the question in the field of
Human Sciences. The main goal ofthe article is to discuss the "indicia paradigm" based upon Ginsburg, while
an alterna tive to the inconvenience caused by the oppositepositions of rational and irrational thought. It concludes
that Ginsburg's proposal brings only a partial solution for this matt
Key words: post-modernism - "indicia" paradigm - Ginsburg.

Se houvesse obra absoluta,


nenhuma outra seria necessária.
Kothe

• Psicanalista. Professora adjunta do Departamento de Psicologia da UFC. Doutora em Sociologia

9
Revista de Psicologia. Fortaleza. VI7(l/2) V18(l /2) p.9-13 jan./dez. 1999/2000
o problema da demarcação entre o que pode ser sim como suas pretensões prescritivas, e incide so-
considerado racional e irracional, no debate contempo- bre a posição da verdade, relocalizando-a. O centro
râneo sobre o pós-modernismo, tem sido deslocado das da legimitação do saber, que lhe era conferido por
posições clássicas assumidas na modernidade através de meio do consenso, dá lugar, como bem o demons-
estratégias discursivas silogísticas que tecem os estudos e tra Lyotard (1990), ao dissenrirnento. A sua dedu-
reflexões sem fronteiras - verdadeiros micro-relatos ção é deslocada pelas normas que haverão de reger
aglutinados numa antiforma - acerca da irrupção do os processos argumentativos dos pequenos relaros.
capitalismo tardio e da cultura pós-moderna, em que o Tais questões não têm a pretensão de ser exaus-
cultural, o político, o social, o econômico, o tivas, apenas a de fazer moldura e permitir enqua-
metodológico, o estético, o epistemológico, dentre ou- drar a questão básica da qual ocupar-nos-emos aqui:
tros, perdem suas especificidades e fronteiras formais para a de situar a perspectiva exposta por Ginsburg (1989)
compor um corpo mutante, onde rudo é necessário para acerca do paradigma indiciário em relação à visão
configurar a antiforma das metanarrativas clássicas. Se pós-moderna da querela racional/irracional. O es-
rudo que era sólido se desmanchava no ar, - conforme tatuto das pistas indiciárias pode ser assimilado pela
aforismo de Marx - já não há nenhuma solidez, uma perspectiva pós-moderna?
vez que agora é de superfícies, imagens e simulacros o De início, tentaremos apontar o que cobre,
de que se trata. recobre ou deixa de cobrir o paradigma indiciário a
Dentre estas estratégias discursivas, gosta- partir de Ginsburg, para, em seguida, ocuparmo-
ríamos de ressaltar dois aspectos relevantes à ques- nos daquelas indagações, antes expressas.
tão que aqui introduzimos. O primeiro deles é a Com o texto Sinais. Raizes de um paradigma
afirmação de que a cultura teria sido transmudada indiciário, Ginsburg objetiva, a grosso modo, de-
"numa sociedade do simulacro na qual o real se monstrar como o paradigma indiciário (inaugura-
transformou numa porção de pseudo-acorireci- do, formalmente, por Morelli, para a distinção dos
mentes" (Montang, 1993, p.127). A segunda, a quadros originais de suas cópias através de porme-
ser conjugada com a primeira, a de que, confor- nores comumente negligenciáveis, que funciona-
me Baudrillard (Citado por Montana, 1993, riam como demarcadores do estilo do autor e não
p.127), "o real já não é real". da escola a que pertenceria) poderia contribuir para
Sabemos que boa parte da discussão acerca da "sair dos incômodos da contraposição entre
racionalidade na modernidade era tributária da pro- racionalismo e irracionalismo" (Ginsburg,1989,
posição "o real é racional, o racional é real" p.143). Este ensaio descreve e analisa as sutilezas e a
Se desconstruirrnos as duas "fórmulas" e apli- validade do método na consecução de seus objetivos,
carmos uma à outra, poderemos obter: assim como as críticas que incidiram sobre ele.
- o real já não é real, portanto o real é dele O fio condutor das argumentações é, a prin-
mesmo diferido, já que o real que aparece em pri- cípio, o de que o conhecedor de arte converte-se
meiro lugar, na enunciação, distingue-se do segun- num detetive à procura do autor de um crime, bus-
do, sendo, ainda, a sua negação; cando, para sua decifração, os indícios mais despre-
- aquilo, vulgarmente, contraposto ao real é zíveis e imperceptíveis ao narrador.
o irreal, o ilusório. A novela de detetive passa a ser havida como
Donde: se o real é dele mesmo diferido, com- um modelo do paradigma indiciário. Morelli equipa-
porta o ilusório, que passa a ser constitutivo do real ra-se a Sherlock Holmes, assim como. em seguida,
e não o que a ele se contrapõe. conferida a Freud essa analogia. Este, inques-
Se aplicada à formula "o real é racional, o ra- tionavelrnente, teria, em O • 10ises de Michelangelo
cional é real", temos a seguinte conseqüência: o real (1914), reconhecido a li ação entre o método
não é idêntico ao racional. A identidade entre o real morelliano e a tecnica da P icanálise. O estatuto das
e o racional diferencia-se pela inclusão de um outro pistas teriam a mes a - n. - no método morelliano,
traço: o ilusório; - e não podermos mais falar em na novela de e .""\.IT UI Conan Doyle e na
dualidade, mas em identidade diferida. Psicanálise d F mo - modelo do paradigma
O racional, uma vez irreal, desestabiliza e al- indiciário. . herlock Holmes, as-
tera a problemática da posirividade das ciências, as- sim como a Freud essa analo-

10
Revista de Psicologia, Fortaleza. \ '.1- 1'-
BCH-PERIO
gia. Este, inquestionavelmenre, teria, em O Moisés de permeadas pela diacronia não poderiam evitar {;?iCos
Michelangelo (1914), reconhecido a ligação entre o se voltarem para o paradigma indiciário, descar-
método morelliano e a técnica da Psicanálise. O estatu- tando, assim, o galileano.
[Q das pistas teriam a mesma função no método O desfecho do ensaio é preparado pela defesa
morelliano, na novela de detetive de Arrhur Conan de que a trama densa que compõe os fios de um
Doyle e na Psicanálise de Freud; - mesmo se conside- tapete seria homóloga à realidade que se apresenta
radas as diferenças entre os tipos de indícios com os ao pesquisador. A densidade e a complexidade da
quais lidavam: signos pictóricos, indícios criminais e pesquisa teriam a sua adequação no paradigma
formações do inconsciente, respectivamente. indiciário: propõe, desse modo, a interpretação de
Feita essa analogia, segue-se uma outra: os sinais, signos como saída metodológica e, com isso,
três eram médicos; - o que faz com que Cinsburg um exercício de caráter herrnenêutico.
reconheça aí as raÍzes desses procedimentos na A desmontagem desse paradigma, uma vez
semiologia médica. Por último, fechando o en- realizada, demonstra-lhe a utilização na elabora-
quadre argumentativo, propõe uma paternidade ção de formas de controle social. Tal consrataçâo
mais antiga ao paradigma indiciário: a prática da não é desdobrada e não parece, ao autor, sufici-
caça, por milênios, pelos homens. Preocupado, ente para negar a relevância da utilização de si-
assim, com as origens do paradigma na tradição nais. Reafirma, assim, o papel do paradigma
da caça, ele a demarca. As narrativas de caçadores indiciário, como instrumento capaz de "dissolver
teriam sido responsáveis pela transmissão de tal as névoas da ideologia que, cada vez mais, obscu-
paradigma. recem uma estrutura social como a do capitalis-
A arte divinatória, praticada por diversas cul- mo maduro", (Cinsburg, 1989, p.117) pois, "se a
turas ao longo da História, demonstraria o seu per- realidade é opaca, existem zonas privilegiadas -
curso, até que ele encontrasse um algoz: o modelo sinais, indícios - que permitem decifrá-Ia" (op.
de conhecimento elaborado por Platâo, - sendo este cit., p.117).
responsabilizado pela posição marginal em que se A interrogação acerca da validade do paradigma
manteria, desde então, o paradigma indiciário. indiciário finaliza o texto, obtendo como desdobra-
Calileu, ao propor um modelo de ciência sob mento a defesa de um "rigor flexível", a despeito dos
a égide de um modelo quantitativo, que negligen- critérios científicos propostos por Calileu. Os elemen-
ciaria os casos individuais e as particularidades, tos considerados imponderáveis não mais seriam con-
entre outros aspectos, também haveria contribuí- siderados irracionais; e, para este tipo de exigência de
do, segundo o autor, para fixar a posição implícita rigor, o acesso a eles é que se daria por meios não usu-
da vigência do paradigma indiciário. Todas essas ais, no entanto, legítimos, para que dessem conta dos
questões funcionam no texto para afirmar a im- aspectos qualitativos, que assumiriam posição de des-
portância do particular, do individual, no taque no contexto das ciências do homem.
paradigma indiciário para que possamos revisitar Quanto à síntese argumentativa do texto de
o problema da racionalidade. Cinsburg, destacaremos, em primeiro lugar, o ele-
A tradição científica, a partir de Calileu, teria mento que se refere à adoção da novela de detetive
sido negligente quanto à importância desse aspecto, como modelo do paradigma indiciário. Se o autor,
assumindo a defesa de que seria o particular da or- em ambos os casos, enfatiza a utilização de indícios
dem do irracional. A análise sobre a importância dos e sua importância para a concepção de uma
indícios é a crítica ao modelo anti-antropocêntrico e racionalidade que porte o flexível, deixa, no entan-
anri-antropornórfico, proposto por Calileu, bem to, de levar em conta aspectos centrais da narrativa
como a demonstração de sua inadequação à História de detetive, indispensáveis à sua tessitura e impor-
e às Ciências Humanas em geral. tantes para a desmontagem do modelo por ele pro-
Realiza Cinsburg uma análise de como a posto. Em sua visão, pesquisador e detetive são me-
questão da perrinência do individual foi traba- ros decifradores de textos, quando, em verdade, são
lhada a partir de Calileu, culminando na discus- - os dois - partes integrantes dele. Urge, então, a
são entre Ciências da Natureza e Ciências da pergunta: qual a função dos indícios para o detetive
Cultura, para demonstrar que as disciplinas e a que ela se acha ligada?

11
Revista de Psicologia. Fortaleza. V.17(l/2) V.IS(l /2) p.9-13 jan./dez. 1999/2000
e considerarmos os pontos-chave desse gênero damente, urbana, aparece como agente civilizatório
de narrativa - a novela de detetive - observaremos, com em meio à civilização. Imune aos acontecimentos,
Kothe, (1994) os seguintes traços construtores da nar- segue até o final da narrativa sem ser afetado por
rativa e o que é armado para o desfrute do leitor: nada a não ser pelo seu compromisso para com a
O detetive clássico é apresentado aos leito- verdade. Não seria este um dos critérios de
res como metáfora do ponto de interrogação am- legirimação da investigação científica no projeto
bulante. Indagação que representa a busca de ne- galileano? ão seria a mesma isenção do cientista
xos expli car ivos, onde aparentemente eles não na sua mera esquematização?
existam, para vir a decifrar enigmas e estabelecer Perguntamo-nos, pois, se Ginsburg, ao
uma verdade. Ele se transforma num "cérebro am- recolocar o problema da razão, não afirmaria apenas
bulante" (Korhe, 1994, p. 107). Apresenta-se ao a importância do particular para a demarcação do
leitor como desprovido de sentimentos, numa evi- racional. Não promoveria ele apenas um desloca-
dente contraposição à paixão. Sua única paixão mento tático, deixando de descentrar o essencial da
possível, a do detetive, é a da razão enquanto me- problemática, a saber, a própria dicotomia e não as
diadora da justiça. A função da qual ele se reveste formas de rearranjá-la?
na narrativa é a de redenção da razão, e seus ins- Uma outra marca textual é a neurralização
trumentos são os indícios. Seu exercício é pura- das diferenças co nrextuais do papel dos indícios
mente hermenêutico: uma pergunta, a apresenta- nos citados autores. A analogia de Morelli e
ção dos fatos, e busca de indícios, a construção da Freud com o detetive Holmes obscurece as
verdade - e esta, inequívoca. singularidades que dão destinos diferentes a este
O detetive acha-se em meio a um contexto trabalho dito indiciário. Assim, parece-nos que
em que há uma demarcação rígida entre o bem e o Morelli está mais para personagem da novela
mal. Em nome do bem, o mal será castigado. Todos policial do que para detetive. Sua preocupação
são agentes do mal, pois, aí, a princípio, todos são básica é com o problema da propriedade; seu
suspeitos. Os indícios são mediadores da possibili- método permite definir os elementos que possam
dade de separação do joio do trigo - uma vez assegurar, inequivocadamente, a autoria da obra
explicitados, promovem um final no qual tudo se de arte. O desfecho de seus cuidados é a
encaixa, tudo acaba bem. A razão instaura o bem e contraposição entre o original e a cópia. Freud,
possibilita a punição do mal. por seu turno, utiliza os indícios como marcas
A narrativa de detetive encarna a estruturação de aberturas do inconsciente, e o seu exercício
do delírio paranóico tão útil à ciência moderna. Esta é o de anti-hermeneuta. A interpretação das
estrutura é o estado normal desse gênero: manifestações do inconsciente não resulta na
... precisa-se suspeitar de todos; especial- coroação de uma verdade inequívoca a que o
mente daqueles que parecem os mais santinhos; detetive objetiva.
somente a suspeita universal é princípio de rea- O detetive dissolve o sujeito leitor,
lidade, permitindo uma eventual sobrevivência convertendo-o em comparsa através de recursos
ante os ataques súbitos vindo do ignoto. (Kothe imaginários, é aquele o instrumento do saber; o
1994, p. 138). psicanalista não encarna tal saber - o que permite
Suspeitar dos "mais santinhos" ou das pistas ao analisante tornar-se sujeito de seu discurso na
consideradas irrelevantes, triviais ou expostas (como confrontação com seu desejo. Este, dentre muitos
em A carta roubada, de Poe) não é suficiente para outros aspectos, não permitem que o paradigma
que o detetive seja excluído do projeto iluminista indiciário possua analogia com o psicanalítico.
de cientificidade. Apesar do interesse do detetive pelo Se Morelli e Freud os utilizam e os consideram
irracional, sua verdadeira crença é no iluminismo relevantes, este é o único traço em comum. Seria
em sua possibilidade plena: o irracional ilumina, o mesmo que, por exemplo, considerarmos
também, o racional. Bachelard e Fo ucau lr análogos, apenas por
O detetive, enquanto arqueólogo do mal, não compartilharem da de -e a do pressuposto de que
questiona os valores que representa. Ele, ao contrá- a evolução do conhe i e to científico não admite
rio, reafirma tais valores. Como personagem, marca- a figura do pre o _

12
Revista de Psicologia. Fortaleza. V,I7( 1/2) VI8(l 2) p -
Não pretendemos nos alongar na discussão pecto não menos dicotômico: o da qualidade
acerca desse aspecto, tão-somente o ressaltamos para versus quantidade; o da ciência do homem ou da
mostrar-lhe os limites, e por ele permitir-nos uma natureza; o da validez ou invalidez. A defesa do
analogia ainda mais extrema: a de vermos em todo rigor flexível simplesmente suaviza tais oposições;
processo de utilização de indícios as raízes caçadores agora, o pesquisador poderia divertir-se com sua
da humanidade. lúdica inteligência e, com esse ato, aceitar o ine-
O retorno do problema das origens parece- fável e poder dorninã-lo. Convenhamos que não
nos claro, bem como nos mostra o anseio inútil de deixa de ser uma saída, mas na medida em que
demarcação do começo absoluto para o modelo em não dissolve, a rigor, o que propôs - apenas ins-
questão. Em que o problema da origem pode asse- taura a repetição.
gurar-nos a saída da incômoda dicotomia entre ra-
cional e irracional? Em termos da lógica argu-
mentativa, estabelecer a relevância da diacronia em REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
detrimento da sincronia resulta apenas na proposi-
ção de uma nova dicotomia. BAUDRILLARD, J. A transparência do mal. Cam-
Datar a origem de um percurso permite-nos pinas, São Paulo: Papirus, 1990.
deparar algozes para paradigma indiciário; Platão e GINSBURG, C. Mitos, emblemas, sinais. Morfologia
Galileu. Seria, também, a história de virirnadores e
e História. São Paulo: Companhia das Letras,
vítimas? Deixa-nos isto implícita a impossibilidade
1989.
da teia argumentativa não conseguir extirpar do seu
KOTHE, F. A narrativa trivial. Brasília: Editora
seio a por demais trivial, oposição entre o bem e o
Universidade de Brasília, 1994.
mal, positivo e negativo. Se considerarmos as for-
mas atuais de manifestação dessas problemáticas, não LYOTARD, J. F. O pós-moderno. Rio de Janeiro:
nos parece haver ruptura com a duplicidade circu- José Olympio, 1990.
lar que a ele, Ginsburg, assoma incômoda. Ver-nos- MONTANG, W O que está em jogo no debate pós-
íamos apenas diante de uma solução aparente? moderno? In: KAPLAN, A. (org.), O mal-estar
A pergunta final de Ginsburg sobre a vali- .no pós-modernismo. Teorias epráticas. Rio de Ja-
dade do paradigma analisado faz retomar um as- neiro: Jorge Zahar Editor, 1993.

13
Revista de Psicologia. Fortaleza, VI7(l/2) V18(l /2) p.9-13 jan./dez. 1999/2000

Você também pode gostar