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02 TEORIA DO ESTADO Cotejando Sociologia e Cigncia do Direito, disse Hubert com ra- que a Ciéncia do Direito busca nos fatos juridicos a letra e a Socio logia Juridica o espitito, o qual se deve entender, segundo 0 mesmo autor, da maneira como 0 fez Montesquieu, a saber, como relagio en- tte as leis © a mentalidade coletiva.* O objeto da Cigncia do Direito comega com o enunciado da lei, a0 passo que a Sociologia Juridica, precisamente por fazer a vincula- io essencial entre 0 fato juridico e os demais fatos sociais, procede antes a uma indagagio genética da norma, para descobrir, na matéria viva da experiéncia social, os elementos geradores do direito. O jurista se contenta com a aplicagao da lei, depois de uma opera- ‘io Logica em que reduz 0 caso concreto a uma norma extraida dos cédigos ou da jurisprudéncia. O sociélogo-jurista levanta o problema da maior ou menor eficdcia da lei, medindo o grau da sua adequagao a realidade, pela aceitago ou recusa que encontra na conseiéncia social. A Ciéneia do Direito e a Sociologia Juridica, embora constituam duas ordens distintas de investigagao, se situam no plano do sein, do existencial, como direito dos fatos (Sociologia Juridica), contrapostos, Por conseguinte, a Filosofia do Direito, que se ocupa do quid jus e nto do quid juris, como dizia Kant, do sollen ideal, ou seja, do que deveria ser € niio do solfen normativo, positivo, o que deve ser, aderente & Cién- cia do Direito, ao sein, & existencialidade da lei. Comil e Sinzheimer, em cujo trabalho se acha implicita a formu- lagio anterior, empregam expressdes altamente adequadas com que te sumir 0 aspecto discriminatério das trés disciplinas. Tanto que afirmam que na Sociologia Juridica se estuda “a ordem juridica que se inscreve definitivamente na realidade da vida social”; na Ciéncia do Dircito, a “ordem juridica que deve existir segundo normas positivas” e na Filo- sofia do Direito, “a ordem juridica que deveria existir, segundo normas juridicas ideais”,“ em suma, o diteito que é, 0 direito que deve ser e direito que deveria ser. 65. René Hubert, ob cit, p. 54 (66. Comil-Sincheimer, em “Comptes Rendus”, Archives, cit, pp. 209 e 210. 28 UM NOVO CONCEITO DE DEMOCRACIA DIRETA 1. A democracia, um direito fundamental da quarta geragao?. 2. A descrenga da Sociedade no funcionamento do aparelho representa- tivo, 3. Os veiculos da democracta direta inrodicidos pela Const- tuigdo de 1988. 4. Que & a democracia diveta?. 5. A esséncia da ‘democraciadireta entre os gregas. 6. Um novo conceta de democra- ia diveta.7.A compatbilidade da democracia direta com formas re- ‘presentatvas remanescentes. 8. Analogias do concelto de democra- ia direta com 0 conceito de partido inico. 9. A democracia direta ‘estabelece, em termos absolutes, o primado do controle popular s0- Ine 0 Poder 10. A democracia direta ndo se confide com os seus ‘meios instrumentais ou suas téenicas. II. As possiblidades consttu- cionais de introdugto ela democracia direta no Brasil. 12. Conclu- ses sobre a demacracia enquanto direito natural do género humano, 13. A democracia direta enquanto base de legitimagdo da normativi- dade eriada por via hermenéutica. 14. Com a democracia, elevada & ‘categoria de direito fundamental, preparavse 0 adverto de wm tercel ro Estado de Direto 1. A democracia, um direito fundamental da quarta geracao? ‘A democracia no fim do século XX, mais do que um sistema de governo, uma modalidade de Estado, um regime politico ou uma for- ‘ma de vida, tende a se converter, ou jf se converteu, no mais novo di- dos povos ¢ dos cidadaos. E direito de qualidade distinta, direito que eu diria da quarta geragao. 1. Autores ha que estabelecem com extremo rigor e af metodolégico distin- entre direitos humanos e direitos fundamentais, De tal sorte que, segundo eles, 404 TEORIA DO ESTADO Direitos da primeira geracdo, no consenso dos publicistas, foram 0 direitos individuais; direitos da segunda geragao, os direitos econd micos, sociais e culturais; e, de tiltimo, na idade da tecnologia, direitos a terceira geragdo, aqueles que entendem com a paz, o desenvolvimen- 10, 0 interesse dos consumidores, a qualidade de vida e a liberdade de informagdo. Trés geragdes regidas ou inspiradas sucessiva e cumulat vamente pelos prineipios da liberdade, da igualdade e da solidariedade, A juridicidade da democracia jé comega a se exteriorizar positivas ‘mente em termos de manifesta transparéncia nos atos coletivos de ine tervengio da ONU (Organizagao das Nagdes Unidas), na formagao de uma gendarmerie ou de um exército que atue ou possa atuar universal- mente em nome da paz em situagdes concretas de crise, conforme tem ocortido na Africa ¢ na ex-lugoslavia; paz cujo sentido politico nao pode ser outro sendo o de sua identidade com o valor demoeracia, De tal sorte que a democracia é o principio contemporaneo median- te-0 qual se confere legitimidade a todas as formas possiveis de convi véncia; poder-se-ia até dizer o Ginico prinefpio legitimante da cidadania, e da intemacionalidade. Foi principio filosétfico nas revolugies; & jur dico nas elaboragdes pacificas de cada sistema de governo que deve reger os cidados ou dirigir os Estados nas suas relagdes muituas, Do ponto de vista intemo, a democracia faz. legitimo o direito de resisténcia; do ponto de vista externo conte licitude & intervengtio mili ‘ar de uma ordem supranacional paulatinamente esbogada e efetivada, 6s primeiros independem de estarem ou nao positivados, a0 passo que os segundos: vyéma ser aqueles que num determinado ordenamento juridico so formulades como tais pelo legislador; inserem-se no texto normative bisico ou constam de suas res- pectivas declaragtes de direitos Desse ponto de vista, os diteitos humanos se tomnam equivalentes aos dieitos afurais, enquanto 0s direitos fundamentais so eertos direitos positives, de grau mais elevado, atribuidos pelo Estado aos seus cidadios, Caminhou notoriamente rnesse sentido, como se sabe, o constitucionalismo de Weirmar. Todavia, parece-nos (que & indiferente usar as expresses “direitos humanos” e “direitos fundamentais”, desde que seu emprezo contemple invariavelmente a qualidade superlativa desses direitos na hierarquia juriiea, Outro ponto assinatado eom freqincia na tensitica curiosa dos direitos fun- ‘damentais, declinados como categorias temporais e dimensionais (considerem-se (0s termas geragdo e dimensdio), & que, colocados numa referéncia temporal, como _Beraedo de direitos, no se exclem nem se extinguem: ao conttétio, permanecem & se acumulam, opulentando com a liberdade, a igualdade e a justiga a ordem juri cea que 0s estabeleceu, Disso poder, talvez, resultar justifieada a preferéncia de alguns publicstas pelo voedibulo dimensdo em vez de geragdo, para designar as sucessivas camadas de aparigdo dos direitos humans ou fundamentais. tod naire UM NOVO CONCEITO DE DEMOCRACIA DIRETA 495 Em nome dessa ordem, a intervengdo busca apear do poder as ditaduras do absolutismo e banir os regimes infensos & democracia e por isso pro- clamados fora da lei, a lei que hé de governar os povos e as nagées. ‘A democracia € principio, ¢ os principios tém sua normatividade, tanto conceitual como positivamente, j4 definida e reconhecida em al- gumas ordens constitucionais, Transformado num direito fundamental, o mais fundamental dos direitos politicos, direito, tornamos a repetir, de quarta geragio, para assinalar 0 teor de novidade de sua aplicagio compulsiva, a democra- cia j4 no é unicamente o direito natural das declaragdes universais, Politicas ¢ filos6ficas, dos séculos revolucionérios, mas o direito posi- tivo das Constituigdes e dos tratados, de observancia necessitia, por conseguinte, tanto na vida interna como externa dos Estados, ‘Compie, assim, esse dircito a indole nova da eivilizagao politica que, desde j, marca 0 advento do terceito milénio. Sendo, de necessi- dade, um diteito fundamental ~ ¢ esta & a premissa da qual partimos € que tem por argumento mais persuasivo a impossibilidade fitica da igualdade ¢ da justiga fora de tal esfera de compreensio ~ no padece diivida que, para positivi-lo em cada ordenamento juridico, faz-se mi ter indispensavelmente estabelecé-lo debaixo da forma de democracia diretg. Uma democracia concebida também substantivamente, valora- tivamente, erigida em principio cardeal inspirador de toda a organiza io participativa da cidadania, com liberdade, consenso e pluralism. E nessa direedo, guiadas por essa biissola, que nossas reflexGes cami- nhardo em seguida, buscando justificar tacitamente as conclusdes ex- postas acerca da democracia enquanto direito fundamental da quarta geragio, Direito somente possivel, a0 nosso ver, se instituirmos na or dem interna novo conceito de democracia direta 2. A deserenca da Sociedade no funcionamento do aparetho representative 0 divércio, no Brasil, entre as formas clissicas de representacio € a realidade cada vez mais hostil, frustrada pelo emprego pouco satis- fatério dessas formas, fez recrescer a crise do sistema politico e insti- tucional, cise que envolve tanto os partidos politicos como as duas Casas do Congresso Nacional. ‘asta distincia separa, pois, 0 idealismo programatico da Consti- tuigdo das concretizagdes purificadoras ¢ legitimantes da aco politi colocadas ror inteiro no reino da utopia. 496 TEORIADO ESTADO Os fracassos da Quarta Reptiblica provocaram em todo o Pais uma considerdvel deserenga da Sociedade no aparelho representativo tradi ional. O emprego deste, a0 longo de quatro repiiblicas, por mais de um século, nio eliminou as oligarquias, néo transferiu ao povo 0 co- mando e a direcio dos negécios piblicos, nao fortaleceu nem legiti- ‘mou nem tampouco fez. genuina a presenga dos partidos no exercicio do poder. Ao contririo, tomou mais asperas e agudas as contradigdes partidérias em matéria de participacio governativa eficaz. Do mesmo ppasso fez, também, do poder pessoal, da hegemonia executiva e da rede de interesses poderosos e privilegiados, a esséncia de toda uma politi- ca guiada no interesse préprio de minorias refratérias & prevaléncia da vontade social e sem respaldo de opiniio junto das camadas majorité- rias da Sociedade. 3. Os veiculos da democracia direta introduzidos pela Constituicao de 1988 Houve um ponto formal, porém, onde a Constituigo da Quarta Repiiblica avangou além das expectativas. E avangou como nenhuma outra em toda a histéria constitucional do Brasil republicano e federa- tivo: o das provisdes da democracia direta A iniciativa constituinte do povo por ensejo da elabora ta contribuiu grandemente para legitimar a fungao daquela assembléia, que logrou ao mesmo passo assegurar a continuidade dessa participa- a0 pelas possibilidades formais de fazé-la exequivel, conforme se in- fere do teor do art. 14 da Constituigao. Do ponto de vista formal ja foram abertas, camo se vé, no consti- tucionalismo bra ante, as portas ao ingresso € & introdugio no sistema participativo de meios bastante avangados de democracia dire- ta, Hé na Constituicao mesma pressupostos cuja eficicia aplicativa vai depender largamente do sentido e da direedo que 0 processo politico venha a tomar em termos de harmonia e correspondéncia do Poder com a cidadania, Caso 0 jogo das forgas politicas se incline para afiangar o plura lismo ¢ a abertura cada vez maior do sistema, um grande futuro de le- gitimidade constitucional poderd estar reservado a0 Brasil no fim do século XX e prinefpios do terceiro milénio, De uma democracia repre- sentativa de fachada e jé carcomida para uma nova incipiente demo- cracia de participagao, eis a meta convergente de toda essa comunhio de esforgos politicos da cidadania, dirigidos a uma legitimidade mais s6lida das insttuigdes UM NOVO CONCEITO DE DEMOCRACIA DIRETA a7 sociais emer sm, vindas da parte mais profunda da Soci jando por impor ao sistema politico renovagao e eficécia A opeio plebiscitiria da cliusula transitéria da Constituigdo (art 2¢ do Ato das Disposigdes Constitucionais Transitérias) se cumpriu em 21 de abril de 1993. 4. Que éa democracia direta? Respeitante & democracia direta um problema de ordem teérica ainda se acha por resolver: que é a democracia dizeta? No caso brasileiro, em face da pregagdo encetada, a pergunta se faz sempre de modo reiterado. O auditério questiona e a resposta rara- mente satisfaz, As dificuldades derivam das diividas acerca da aplica- 0 e concretizagao desse novo modelo politico. ceticismo envolve sobretudo a fidelidade a propria expresso democracia direta, a qual inculca de imediato a imagem grafica de uma constante, direta e indefessa militancia popular, com a cidadania per- petuamente arregimentada para exarar resposta soberana a cada ato de- cisério de exercicio do poder, legitimando num plebiscito de todos os dias (imagem de Renan) resolugoes, leis e decisGes govemativas, smelhante concepedo de democracia direta ¢ total, onde se exer- ‘com em gtau absoluto e extremo as prerrogativas da autoridade, pode- ria, contudo, entre nés, suscitar mais diivida, temor e indiferenga do ‘que, em verdade, compreensio, apoio e persuasio, Com efeito, teorizar um quadro dessa espécie indubitavelmente deve guardar plena fidelidade de comrespondéncia com o exemplo clis- sico ¢ célebre da democracia ateniense em suas melhores ocasides de expressio ¢ exereicio de legitimidade do poder. Mas se artedaria, por inteiro, das possibilidades reais e conere do meio politico ¢ social de nosso tempo, porquanto a execugdo de tal modelo logo sucumbe a obstéculos talvez menos materiais ¢ tecnolégi- cos de aplicabilidade do que propriamente psicolégicos, gerados por fadiga civica advinda da monotonia provocada pelo excesso de convo- ieGes plebiscitérias de natureza decisOria. Quem porventura ainda duvida que, na era do computador, dos eos eletrdnicos de comunicagao, da revolugdo da informatica, se possa apurar ¢ captar diretamente, mediante operagies de plebiscito ou referendum, sem limites de freqiiéncia e reprodugao, e sempre isen- tas de intermediagdo representativa, as manifestagdes da vontade po- pular em seu mas subido grau de fidelidade, certeza e seguranga? 198 TEORIA DO ESTADO 5. Aesséncia da democracia direta entre os gregos ( coneeito de democracia direta nao pode ser concebido assim em termos absolutos, conforme o modelo clissico da Grécia nos faz ineul- ‘car sempre; mas em termos relativos, compativeis com a natureza das estruturas sociais e politicas de nossa época. Tais estruturas sabidamen- te ni correspondem as da antiga pdlis grega. 0 Estado modemo contempordneo é 0 Estado territorial, o Estado- nagdio, aquele cuja superficie abrange, niio raro, milhdes de quiléme- {ros quadrados com efetivos populacionais orgados em milhdes de se- res humanos. Demais disso, milhdes de pessoas se qualificam ao exer~ cicio do suftigio, ou seja, & participagdo politica, & militincia eleitoral. Tudo completamente distinto das estruturas sociais do antigo Es- tado-cidade, da Grécia classica, onde a cidadania inteira poderia ser congregada e auscultada na dgora, no recinto de uma praga publica, para deliberar viva voce sobre todos os assuntos de Governo; um Estado, en- fim, onde, parodiando a eélebre imagem de Lincoln sobre a democracia, todo cidadio vivia integralmente da polis, para a pdlis e pela polis, ‘© homem politico da Grécia, por sua condigto de homem livre, se desatara, por inteiro, dos lagos profissionais de trabalho com que pro- ver a propria subsisténcia. Cabia ao brago escravo naquela sociedade de privilégios executar todas as tarefas econdmicas essenciais de pro- dugio. O ser livre, 0 cidadiio, a0 contrério do que ocorre em nosso tem- po, ficava desse modo capacitado a consagrar cada hora, cada minuto, cada fragio de sua vida ais reflexdes, meditagdes ¢ analises do fenomeno politico que the envolvia a existéncia e do qual, sem poder separar-se, pendia a seguranga de sua liberdade.» "2F==" ® A esta altura da eivilizagao e dos progressos cientificos nilo hi, porém, um s6 argumento referente a obsticulos técnicos ¢ materiais que, de modo persuasivo, se possa contrapor e argiir para ter por impos- sivel ou invilida a aplicagio da democracia direta ao Estado contempo- riineo. © que se pretende formular por caracteristico dessa democracia ‘em nossa época nda ¢ algo que, de necessidade, tenha de reproduzir a9 ‘pé da letra, ou com a transparéncia de um espelho, a democracia dos ‘gregos, onde tudo se resolvia por meio direto na assembléia de cida- dios presentes & dgora 6 Um novo conceito de demoeracia direta ‘Aqui reformulamos posigdes nossas, de natureza doutrinéria, que até ha pouco cuidvamos sustentiveis e das quais agora nos arreda- UM NOVO CONCEITO DE DEMOCRACIA DIRETA 499 mos, por se nos afigurarem equivocadas. Assim, por exemplo, quando ‘equiparévamos a democracia direta de nossa época a uma versiio idén- tica e rigorosa daquela que imperou na Grécia e que teve por fase maior de brilho ¢ esplendor a democracia ateniense, nomeadamente durante o século de Péticles. Dessa rigidez. conceittal doravante nos apartamos, em busca de ‘concepcio mais branda e flexivel, que nos consinta, sem abandonar € saerificar & propria tese da democracia direta, colocé-la com objetivi- dade em termos relativos, ou seja, compatibilizé-la até mesmo com for- ‘mas representativas remanescentes, cuja continuidade ou persisténcia nao descaracteriza nem aniquila de modo algum 0 modelo proposto.. Democracia direta no quer dizer, por conseguinte, formas de representagao sejam_banidas, exorcizad: ‘sem o que mio haveria essa democracia, Nada disso. (© importante e essencial, absolutamente nir hoje a identidade da democracia direta, & que o povo tenha ao seu imediato dispor, para o desempenho de uma desembaragada efetiva participagio, os instrumentos de controle da mesma. Sem isso a parti- cipacdo sera sempre ilusGria, e 0 é nas chamadas democracias repre- | sentativas do Terceiro Mundo, onde aqueles instrumentos compéem, | nio raro, 0 biombo atras do qual se ocultam as mais obndxias ditadu-) ras sociais de confisco da liberdade humana, - ‘Tanto a0 campo institucional propriamente dito como também a ‘mais alta e responsivel esfera governativa, ha de estender-se esse con- trole, em cujo raio de abrangéncia ficam, por conseguinte, todos os ramos da administrago. De tal sorte que se nio possa, em momento algum, contestar ou abalar a legitimidade dos atos capitais de exercicio da autoridede piblica ‘Ai temos a presenga de uma assegurada e eficaz. participagio dire- ta do povo em dominio decis6rio, que no seja meramente formal ou adjetivo, mas incontrastavelmente provido de substincia e conteido. Por ai passaré reconhecida e sem refutagdo a soberania do povo em toda a sua majestade e plenitude A compatibilidade da democracia direta ‘com formas representativas remanescentes Uma democracia desse quilate ¢ teor, em que cada lei e cada ato administrativo de superior interesse piblico ficam sujeitos a iniciativa ¢ a sang do povo dirigente, fari que alguns institutos sobreviventes £ 500 TEORIA DO ESTADO do sistema representativo assumam ainda, no contexto do regimen, uma funcdo itil, mas meramente auxiliar, instrument velmente de segundo ou terceiro grau, Nesse caso, se houver ainda mandatos parlamentares, seu exerci- cio no poderd esquivar-se jamais a um controle popular absoluto, tra- duzido inequivocamente na completa imperatividade do respectivo ‘mandato popular. Sujeita-se assim o agente infiel e transgressor da von« tade do povo a destituigio pelos mecanismos peculiares a essa forma de democracia Enfim, democracia direta é o povo investido na amplitude real de ‘seu poder de soberania, alcancando, pela expresso desimpedida de sua vontade regulativa, 0 controle final de todo o proceso politico, S80 povo, constituido, por conseguinte, em arbitro supremo, confere legi- timidade a todos os pactos ¢ acomodagdes dos grandes interesses sociais conflitantes da sociedade complexa e pluralista. O povo-ficgao dos or- denamentos representativos cede lugar ao povo-realidade e coneregio da democracia direta. Deixa de existir, a partir dai, a dualidade governantes-governados, do estilo tradicional, para emergir a unidade do corpo politico, com to- dos 0s governados sendo 20 mesmo passo governantes, Tudo isso por ‘obra da realidade ¢ nao da ficgao. A essa unidade congenial aspirava sabiamente Rousseau com o principio da volonté générale e a averstio vontade particular, ou, de modo mais especifico, a vontade decisoria do representante, aquela na qual se aliena a vontade soberana do ho- mem livre, cuja liberdade politica se perde, pasando da condigao de cidadiio para a de stidito, na mais torpe das alienag io de Genebra, segundo 0 cida- 86 debaixo do controle dos mecanismos de consulta popular, de operatividade sempre disponivel perante questdes controvertidas ou outras que no o sejam, mas aparethadas de elevado grau de releva cia, onde a decisio soberana do povo se faz insubstituivel para conferir | legitimidade & ag2o governativa, é que o funcionamento das Casas le- sislativas poderé ainda sobreviver com a finalidade complementar ou | subsididiria de adequagao efetiva 4 vontade popular. Sua permanéncia, nesses termos essenciais, néio contradita a demo- cracia direta nem a descaracteriza enquanto modalidade nova e diferente de sistema politico. Os parlamentos serio ai verdadeiras ¢ legitimas Casas do povo, porque neles 0 povo tem presenga e ingresso soberano. Cada ato de deliberagio e produgdo legislativa de maior importincia iio se efetivari sem a certeza de que 0 elemento popular poder ser UM NOVO CONCEITO DE DEMOCRACIA DIRETA sot sempre ¢ eficazmente 0 juiz que ha de sentenciar a aprovagao ou der rogagiio das decisdes tomadas. Todos os grandes atos da vida politica serdo assim referendados pelo povo em iiltima instincia Em outras palavras, para formular 0 conceito de democracia dire- ta no ¢ absolutamente indispensavel o requisito prévio de el compleia das formas representativas. A eventual coexist com mecanismos tais como a iniciativa popular, o plebiscito, 0 referen- dium, 0 veto ¢ 0 dieito de revogagao nio destréi, nao distorce, nao d caractetiza, nio invalida a democracia direta, Demosracia direta no quer dizer © povo, todos os dias, todas as horas, em todas as.ocasies, pessoalmente se reunindo ou sendo con- sultado para fazer leis, baixar decretos, expedir regulamentos, nomear, demitir, administrar ou exercitar toda aquela massa de poderes e fun. «es sem as quais a maquina do poder c do governo fica paralisada ou atravaneada 8. Analogias do conceito de democracia direta como conceito de partido iinico Com efeito, é de lembrar que ocorreram equivocos semelhantes ja no propio sistema politico brasileiro durante o periodo ditatorial. Nao apenas com a democracia, mas também com a organizagao partidaria, Havia dois partidos em funcionamento: 0 do Governo e 0 da Opo- sigtio; o do Governo era a ARENA e 0 da Oposigao, ou pseudo-opos gio, 0 MDB. Este queria ser Oposi¢ao mas no era; ¢ nio o era pela absoluta impossibilidade de ultrapassar obsticulos ao livre exercicio de sua fangtio politica desenvolvida em espago estreitamente consenti- do, vigiado e controlado. Em 1969, no auge da ditadura militar, o Presidente da Repiblica governava a Nagdo com os poderes excepeionais do Ato Institucional 1. 5 e de Emenda n, 1, outorgada por uma Junta Militar. A Junta assumira 0 Poder apés o afastamento, por doeng: neral Costa e Silva, Nessa ocasifo estampamos um ensaio intitulado “A Crise Politica Brasileira”, onde sustentévamos a tese de que o cha- mado sistema bipartidério, instaurado no Pais pelo Marechal Castello Branco depois da derrubada do Presidente Joao Goulart em 1964, niio correspondia a verdade politica e axiomatica desse sistema porque, em sua aplicagao, s6 0 partido da ditadura se qualificava como forga de sustentago dos militares no poder para eleger o Presidente da Repi- blica por via de eleicao indireta, 502 ‘TEORIA DO ESTADO Todas as pretenses oposicionistas de acesso a Presidéncia da Repiiblica tinham pela frente um dique intranspontvel; uma situagao fi tica de arbitrio privilegiava um s6 partido, nfo havendo lugar nem opor- tunidade para fazer vigorar o principio da sucessio alternativa dos Pre- sidentes, como é da esséncia de um regimen de natureza democratica € representativa. Descrevendo essa impossibilidade de altemancia de poder, chegé ‘vamos a seguinte conclusio, extraida da materialidade partidéria ob- servada no Pais: imperava no Brasil um sistema de partido ‘nico! Enganava-se pois, ot era enganado, quem supunha que bastavam dois, tr8s ou quatro partidos, funcionando num determinado sistema politico, para desde ja poder caracterizé-lo como sistema pluripartidé- rio. A indole, a natureza ou 0 espirito que define determinada estrutura partidéria no reside numa operagao de reconhecimento aritmético, es- tatistico ou quantitativo, ou seja, em verificar e estabelecer se existe tum, dois ou trés partidos, para de imediato qualificar de unipartidario, bipartidério ou multipartidério o sistema vigente de organizago pa daria. ‘A qualificagdo ow identificagaio do sistema de partido tinico, con- forme entdo asseverivamos ~ e 0 fizemos pela vez primeira em 1969, num simpésio intemacional promovido no Rio de Janeiro, sob os 2 picios da Universidade Candido Mendes -, depende tio-somente dessa averiguagio exclusiva: a existéncia ou nao da possibilidade de todos 1s partidos galgarem 0 poder. Se um s6 partido tiver com inteira e ab- soluta exclusividade essa via de acesso, a expensas de outro ou dos demais (bipartidarismo ou multipartidarismo de fachada), sacrificado ficard, por inteiro, 0 princfpio de altemancia do poder, nao havendo nesse caso como falar em sistema bipartidrio ou multipartidario, E no ha, porque a realidade refuta frontalmente essa asserciio, Tal, em rigor, acont 20 anos de ditadura mili i ¢ se testemunhava as claras no Brasil dos ar. $6 a cegueira politica dos incautos ou a astuta dos ciimplices se iludia com o bipartidarismo alardeado pelos politicos do regimen. Esse bipartidarismo, todavia, se proclamava, com freqiiéncia, consolidade, mercé do funcionamento da ARENA, reputada entio, com ironia e sarcasmo, “o maior partido politico do Oci- dente”, ¢ do MDB (Movimento Democritico Brasileiro), simplesmente oposigdo consentida ¢ limitada, que desempenhava simbolicamente seu papel nas fronteiras do consentimento outorgado. Em realidade via-se esse partido alvo de mutilagées freqlentes em seus quadros, sobretudo ha sua representagiio ao Congreso Nacional. Tais mutilagdes ocorriam UM NOVO CONCEITO DE DEMOCRACIA DIRETA 503 com a cassagdo de mandatos parlamentares daqueles que, por uma atua- o oposicionista mais vigorosa, ¢ levada a sério, se mostravam incé modos aos objetivos e interesses do Governo autoritério, amparado nas armas contra a yontade da Nagao. Buscava a ditadura militar por todos os meios possiveis de arbi- trio manter-se perpetuamente no poder, & sombra do pretexto de pro- ‘mover uma chamada revolugdo permanente. En suma, é posstvel inferir desse quadro um postulado tedrico de caracterizagao do sistema de partido tinico: ele nido quer dizer necessa- riamente que num determinado sistema haja um s6 partido na moldura da sociedade politica; mas que um partido apenas tem a exclusiva ¢ Xinica possibilidade de acesso ao poder. Ou, em outros termos, elimina- daa via alternativa de acesso ao poder, pouco importa que exista ape- nas um ou mais de um partido no sistema; ele serd sempre, pela essén- cia e natureza, sistema de partido iinico. 9. A democracia direta estabelece, em termos absolutos, 0 primado do controle popular sobre o Poder ‘Omesmo fascinio funciona e tem aplicagao com respeito & demo- cracia em geral e & democracia direta em particular. Com relagfo & de- ‘mocracia em geral seu conceito nao se vincula a uma determinada ¢ specifica forma de Estado (Estado liberal, Estado social e Estado so- cialista) mas pode animar e vivificar com seu espitito qualquer dessas modalidades de corpo politico institucional; o substantive democracia se adjetivando, portanto, como democracia liberal, social ou socialist. Houve confusdio historia e conceitual da eritica totalitiria ¢ ideo- logica durante as décadas de 30 e 40, quando contemplava unicamente a figura conceitual da democracia do liberalismo ent&o dominante para demonstrar o seu irremedidvel dectinio. Debaixo da tempestade ideolégica proveniente do conflito entre 0 trabatho ¢ o capital, primeiro profetizava-se, depois se decretava 0 fim €.a faéncia das democracias do Ocidente, bem como 0 perecimento histérico dessa forma politica de governo e de organizagao social, quando, em verdade, o que perecera ou viera abaixo — os fatos ulterio- res & Segunda Grande Guerra Mundial comprovaram isto ~ nilo fora, em verdade, a democracia, como juravam e proclamavam abertamente «0s seus inimigos, mas, tio-somente, uma de suas variantes no contexto a hisibria sot TEORIA DO ESTADO Comprovou-se assim o erro de vaticinio dos ditadores em seus discursos as massas sublevadas € seus apelos & comogiio revolucioe Com respeito & democracia direta, prosseguimos, algo andlogo também ocorre. Poderiamos fazer um sistema politico contemporaneo funcionar com os mesmos instrumentos de formago da vontade estar tal ou da vontade governativa soberana existentes na pdlis grega, a sae ber: a consulta direta ao povo, para este deliberar soberanamente sobre todas as matérias de natureza piiblica (¢ isto hoje também ja é possivel no Estado contemporiineo mediante adogio dos meios informéticos de comunicagio de massas), €, no entanto, por mais paradoxal que isto venha a ser, 6 por ilusdo configuraria a existéncia ou presenga de uma democracia direta A democracia existe, apenas, conforme se infere de toda essa fore mulagio, se a vontade do povo tiver, sim, absoluto dominio e controle das faculdades governativas. Ou seja, democracia direta, por essa via conceitual, significa em primeiro lugar o primado do controle popular em todos 0s niveis, graus e instincias basicas onde se exerce a autori- dade de quem governa, E ébvio que por via de utilizagdo de técnicas de sufrigio ou mani- festagdo de vontade, como a iniciativa popular, o plebiscito, 0 referen- dum, 0 veto etc., 0 povo estara mais perto da democracia direta, a um. asso talvez de sua plenitude. Mas isto somente ocorre se forgas ou correntes politicas de intermediacio, a servigo de distintos grupos so- ciais de interesses adversos ao bem comum, nao descaracterizarem 0 sistema; se tal vier a acontecer, ainda que a consulta seja imediata, no haverd, em verdade, demoeracia direta 10. A democracia direta nao se confunde com os seus meios instrumentais ou suas técnicas nea, assim, fase qualitativa io em que ela jé no se confunde com os seus préprios meios instrumentais, mas assenta fundamentalmente na pureza com que 0 ovo possa exprimir sua vontade a a genuinidade da democracia direta e constitui 0 timo, abonador de sua autonomia conceitual. Pouco importa, Portanto, que sobre-restem ou até mesmo coexistam com a democracia direta formas institucionais representativas, a saber, os parlamentos ¢ assembléias legislativas, se estas ficarem reduzidas a instrumentos ou UM NOVO CONCEITO DE DEMOCRACIA DIRETA 305 ‘mecanismos auxiliares de funcionamento do regimen, sujeit pleto controle popular, que sobre elas tera sempre absoluta jurisdigao politic O grau de intensidade e profundidade desse controle mede também oaleance da vontade popular e estabelece a possibilidade de recolhé-la diuturnamente sem a interposigdo distoreiva de vontades estranhas; 6, cenfim, a captagdo da vontade do povo enquanto vontade efetivamente soberana, isenta da interferéncia contaminadora derivada de interesses tupais ou particularistas, desprovidos de lagos coneretos que os pren- dam ao bem comum ¢ & execugao e prevaléncia do legitimo interesse piiblico, 0 que determina a natureza da democracia direta. A verticali- dade da penetracZo e a horizontalidade da expansio dessa democracia em todos os dominios ¢ esferas essenciais da Sociedade fazem valet assim, sem contraste, uma cidadania hegem6nica, virtualmente senho- ra de seus destinas, 20 mesmo passo que capacitada a chefiar o Estado, conduzir a administracao e exercitar o poder em toda a sua latitude, em ‘ordem a eliminar qualquer contradigao entre os principios da legalida- de e da legitimidade. UL, As possibilidades constitucionais de introdugao da democracia direta no Brasil Nio basta, por conseguinte, empregar as técnicas de consulta po- pular imediata para se ter uma democracia direta; esta nao se confunde com 0 formalismo nem tampouco com a materialidade de suas técni cas. Mas postula, por elemento capital e decisivo de sua formulagio ¢ reconhzcimento em bases conceituais, a legitimidade fundamental e substancial do processo politico, a alma, para niio dizermos o espirito essencialmente democritico, que anima com o sopro da aquiescéncia popular os atos bisicos da piiblica administrago e as leis que estruturam. a organizagdo dos poderes, distribuem as competéncias, estabelecem as garantias dos direitos e fazem, por via de conseqiiéncia, inviolivel a dignidade da pessoa humana, sagrando os direitos da participacao po- Iitica do povo em termos eficazes e genuinos principio democritico logra seu apogeu nessa modalidade de democzacia direta. Ai o que importa, em iiltima andlise, ndo so as for- mas ~ embora se lhes reconhega a extrema relevancia instrumental — mas 0 espirito que as anima e compde a realidade da ordem governati- va em sua relagdo com os valores da justiga e da liberdade, € com 0 primado dos direitos fundamentais. 506 ‘TEORIA DO ESTADO principio democritico, enquanto prinefpio constitucional expli- cito de direito positivo, inclinado a uma forma eventual ¢ futura de de- mocracia direta, j@ entra no ordenamento da Carta Magna brasileira de 1988; ¢ pelo caminho das reformas e mudangas poder ser, de futuro, consideravelmente alargado ¢ aperfeigoado. © ponto de partida positivado em termos constitucionais consta do pardgrafo tinico do artigo 1*, que reza: “Todo 0 poder emana do ovo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituigao”, Recebe esse artigo reforgo e meios de complementacao para fazé- lo normativamente eficaz no artigo 14, incisos I, II € III, onde se diz que “a soberania popular seré exercida pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e nos termos da lei, mediante plebiscito, refe- rendo ¢ iniciativa popular”. Daqui poder-se-ia inferir que toda matéria constitucional vincula~ da a interesses da soberania popular ~ como tal se devem entender também os da propria soberania nacional ~ somente podera ser legisla- da, vilida e constitucionalmente, se submetida a plebiscito, referendum ¢ iniciativa popular. Adotada essa interpretagao — e ela se nos afigura corretissima — 0 potencial de aplicabilidade dos meios de uma democracia direta teré aumentado enormemente, tomando uma dimensdo da mais alta expres- sio pragmatica e positiva, porquanto abre, em assuntos fundamentais, ‘0 caminho, jé de todo desimpedido, ao pleno exercicio ¢ emprego dos instrumentos e priticas dessa democracia, 0 descrédito do principio representative no Brasil atual testifica tdo-somente a crise de um sistema de representagio divorciado do sen- timento nacional, em razio de alojar nas assembléias legislativas e nas duas Casas do Congresso uma classe politica sem ética, de cujas entra- ‘has nasceram liderangas corruptas, constantemente apartadas dos mais clevados interesses nacionais e sem nenhuma afinidade com os senti- ‘mentos generalizados nas camadas sociais esmagadas ¢ empobrecidas, pela inflacdo. Enquanto a violéncia toma conta do Pais, a impunidade provoca um pénico social que faz temer pela sorte das instituigdes. prinefpio representativo, mortalmente ferido de ilegitimidade em todas as épocas do Brasil republicano, sé tem servido para perpetuar 0 dominio inarredavel das oligarquias. Os membros politicos das classes dominantes trocam de partidos sem trocarem jamais de idéias e compor- tamento; permanecem retrégradas e acendem jé nos pordes da sociedade subdesenvolvida, nas favelas dos grandes conglomerados urbanos, as UM NOVO CONCETTO DE DEMOCRACIA DIRETA so7 chamas de uma rebeligo, sintomatica do apartheid politico, social, ei- vil e gengrifico imperante na presente sociedade brasileira. Ms hi nesse Pais uma parcela de forgas nacionais arregimentadas ‘em entidades da sociedade civil, congregando sacerdotes, estudantes, funcionsrios da classe média ¢ trabalhadores sindicalizados, dispostos, a batalkar por um novo pacto de participagao que transfira amanha das oligarquias para a Sociedade o controle do Poder. E ai que reside o futuro do principio democritico no Brasil. B por ai que passa 0 canal que conduz.& democracia direta. A marcha ji co- megou e ha preniincio de que ao alvorecer do Terceiro Milenio se pos- sa, eventualmente, concretizar na mais vasta, populosa € poderosa re- puiblica da América Latina um modelo especial de democracia direta, Cujo objetivo maior seja erradicar 0 atraso, 0 subdesenvolvimento, 6 analfabetismo, a miséria absoluta de 60 millhdes de seres humanos, a desiguzldade de renda, a concentragao privilegiada da riqueza e sobre- tudo os desequilibrios regionais, que até hoje tém feito do Brasil, num pseudo-regimen republicano e federativo, menos uma Nagao do que uum vastissimo Império. 12. Conelusdes sobre a democracia cenquanto direito natural do género humano Volvendo as consideragdes basicas de nossa introdugio ao tema ora versado, cabe-nos resumi-las e finalizé-las com os mesmos concei- tos jt expendidos. ‘Um dos mais célebres revolucionarios de fins do século XVIII dis- se que a declaracio de direitos é a Constituigao de todos 03 povos; hoje se pode dizer aqui, com o mesmo calor, que a democracia € o direito natural do género humano. Tendo por conteiido a liberdade e a igualdade, segundo uma con- ‘cepgio integral de justica politica, o direito & democracia, apandgio de toda a humanidade, é portanto, direito da quarta geragao, do mesmo ‘modo que 0 desenvolvimento, por sua remissio concreta ¢ material aos povos do Terceiro Mundo, é direito da terceira geragio. Com efeito, tomando por base a titularidade, os direitos humanos da primeira gera- io pertencem ao individuo, os da segunda ao grupo, 08 da terceira a comunidade, povo ou nagio e os da quarta a0 género humano, Em rigor, na era da tecnologia e da globalizagtio da ordem econé- mica eda convivéncia humana, no hé direito de natureza politica mais, importante do que a democracia, que deve se 508 TEORIA DO ESTADO fundamental da quarta gerago ou dimen: mos? 1, conforme jai assinala- justamente por ser enunciada como direito fundamental, isto sig- nifica que ela principia a ter ingresso na ordem juridica positiva, a con- cretizar-se em ambito internacional, a possuir um substrato de eficécia e concretude derivado de sua penetracio na consciéneia dos povos € dos cidadios, donde hi de passar ao texto das constituigdes e & letra dos tratados. Em suma, a norma democracia, tendo por titular o género huma no, € por conseguinte direito internacional positivo em nossos dias. © por que se transforma, a cada passo, numa conduta obrigatéria im- posta aos Estados pelas Nagdes Unidas, para varrer do poder, de forma legitima, os sistemas autocriticos e absolutistas que, perpetrando ge- nocidios e provocando ameagas letais & paz universal, se fazem incom pativeis com a dignidade do ser humano. 13. A democracia direta enquanto base de legitimagiio da normatividade eriada por via hermenéutica Onde esta o liame entre a democracia direta e a democracia em geral, compreendida como um direito fundamental, um direito da na- Go, da sociedade e, sobretudo, da cidadania? Acha-se menos na doutrina, que ainda est por nascer, do que na realidade, onde desde muito assume contornos imperatives, oriundos fiticas cujo advento obriga a uma produgiio torrencial de atos normativos indispensiveis a reger relagdes cada vez mais comple- xas de organizacio demoeritica do poder numa sociedade politi te estruturada, © exame dessas relagdes, sujeitas a proceso regulamentador ou complementar, pde a nu o atraso legislativo e a incapacidade normativa do sistema clissico de representaglio para responder, por via consensual, 2. Em nosso entendimento, a geragdo ou dimensio dos direitos humanos lo- ma caracterizagdo classificatéria mais perfeita se nos afastarmos da elissica duali- dade: direitos de defesa (Abveehrrechte)e direitos de participagio (Teihabereche), cenos ativermos, de preferéncia, a outro crtério, a saber, o da extensfo referencial de sua titularidade, pasando primeiro pelo individu pela sociedade ou comunidade propriamente dita até chevar, de dt Jnumano, Faz-se mister, todavia, assinalar que os direitos fundamentais da primeira _geragio conservam seu cariter de direitos de defesa 20 passo que os da segunda, terceira quarta, por sua vez, no perdem a indole de direitos de participag30. UMINOVO CONCEITO DE DEMOCRACIA DIRETA 509 de modo imediato e satisfatério, as agudas exigéncias perfiladas em Ambito executivo. ‘A velocidade ¢ o volume de atos normativos configuram a do aparelho representativo tradicional, revelando, ao mesmo passo, a impoténcia de sua fungdo legitimante; fungao mal preenchida, ¢ osten- sivamerte visivel, diante da presenca imperial do poder executivo, 0 qual, a expensas do legislativo, cumpre tarefas e atribui estranhcs & esfera tradicional da competéncia que, em regra, Ihe & re- servada, ‘A “medida proviséria”, do regime constitucional brasileiro, paten- teia com a praxe desvirtuadora decortente de sua reedigio sucessiva, no tan:o a duplicidade legislativa, caracteristica da introdugio desse novo instituto, sendo a hegemonia concedida ao executivo; hegemonia derivad: do papel retardatério que o legislativo desde muito desempe- nha provocando um problema crucial de caréncia de legitimidade. Esse problema se agrava, de ordinario, em raza do comportamen- to, realisticamente sem freios e sem limites, do poder presidencial, Se nio é possivel salvar o legislador clissico, salve-se a0 menos a legitimidade democritica, plebiscitando vs ates do poder. De altimo, ‘quem menos faz.a lei é 0 legislador, e como a norma cada vez mais emerge da obra dos intérpretes, e nio propriamente dos textos formais, avulta, por via hermenéutica, a fungi governativa, tanto expressa como implicita, das magistraturas judicantes e executivas. Em razio, pois, de imperativos de legitimidade no preenchimento dos espagos normativos disputados pelo judiciirio e executivo, a di cérdia surda, hoje existente, entre esses dois poderes tende a ser muito maior do que aquela habitualmente observada no eixo da dualidade clissica: executivo e legislative. CO conlfito, outrora tio frequente entre tais poderes, se mitigou pela perda de funcionalidade dos parlamentos € pela formagdo expansiva de um direito que promana doutras fontes — fontes sem chivida alterna- tivas ~e cuja aplicagio privilegiada é pleiteada, na ordem fitica ¢ exis- ncial, por dois poderes de incompardvel importincia e dimenstio: 0 do administrador € 0 do juiz. ‘Mas ambos tém por calcanhar-de-aquiles aquele titulo de egitim: dade que 0 legislativo possui e em grande parte jf perdeu, € que el na transferéncia de fungdes, ainda nao adquiriram, e unicamente pode- Fo aleangé-lo caso intervenha aqui, de forma direta ¢ imediata, a von- tade do povo. si0 TEORIA DO ESTADO ‘Como se vé, 0 futuro da norma pertence, por conseguinte, a0 povo da democracia direta e no a0 povo ausente do sistema representativo; este ja foi substituido e ninguém se da conta dessa mudanga que cava ‘um abismo de legitimacao e faz a crise estalar por todas as dobras do ordenamento juridico. Fora da hermenéutica nao ha Direito nem Cién- ia do Direito; tampouco ha Constituigao ou Direito Constitucional. Mas hermenéutica com legitimidade, sé num sistema de democracia direta, onde 0 povo, em iiltima instancia, seja constituido sujeito efeti- vo de todos os poderes decisérios de controle supremo. 14. Com a democracia, elevada d categoria de direito fundamental, prepara-se o advento de um terceiro Estado de Direito A democracia, em seu novo grau de evolugo conceitual, segundo nos parece, deixa de ser tao-somente forma de governo ou regra de or inizago e estabelecimento do poder numa sociedade, para se trans: formar num prine‘pio juridico que serve de base a0 advento da mais, nova figura de Estado de Direito ~ 0 Estado de Direito da terceira di- mensio, para onde se avanga nas regiGes da doutrina, Toma-se assim imperioso 0 reconhecimento da democracia como alicerce desse distinto modelo de Estado. Pelo prisma histérico, ja & possivel, em conexiio com os prineipios da liberdade, da igualdade, da Justiga e da democracia ~ principios estes aqui tomados & maneira de tegorias juridicas, e dotados, por conseguinte, de incontrastivel for- a normativa ~ distinguir trés camadas sucessivas de Estado de Direi- to, conforme passaremos, em seguida, a expor. Definem elas 0 percurso doutrindrio da propria democracia em seus esforgos por instaurar uma forma de convivéncia politica elevada a0 mais alto grau de legitimidade e assentada sobre um respeito super- lativo a dignidade da pessoa humana, convertida em pedestal ético do constitucionalismo na travessia do segundo ao terceiro milénio. Para alcangarmos entendimento mais preciso acerca do que seja a vinculagdo culminante da democracia, enquanto direito da quarta gera- $0, com 0 novo modelo de Estado de Direito ao qual serve de funda- ‘mento, faz-se mister primeiro fixar os tragos caracteristicos de Estado de Diteito nas duas versdes que dele se conhecem até agora, O primeiro Estado de Direito emerge do constitucionalismo for- mal do século XIX com a seu conceito de liberdade ~ resisténcia ou liberdade ~ defesa (Abwehrrecht), de inspiragdo jusnaturalista. Forjado na ideologia das declaragdes abstratas de direitos, € produto das trans- UM NOVO CONCEITO DE DEMOCRACIA DIRETA su formagies politicas transcorridas na Srbita continental européia onde o individualismo da burguesia soterrou 0 absolutismo das monarquias de direito divino ¢ dissolveu 0 corporativismo do ancien régime, os quais cimentavam uma sociedade abragada a privilégios e discriminagoes feuds. A filosofia da revoluedo & substituida pela ideotogia da neutrali- dade ¢ da conservagao de estruturas sociais estiticas. Cristalizado nos Cédigos € positivado nas Constituigdes, aquele principio liberal-bur- ‘gués de organizagiio juridica da sociedade tinha o Estado por antitese € negativum, germinando uma concepeao origindria de Estado de Direi- to cuja esséncia consistia em ser apenas o guardido nominal de direitos fundamentais, mas direitos de teor unicamente individualista, O dualismo Sociedade Estado, para nao dizermos sua completa separacio, marcou ostensivamente tal concepeao de Estado de Diteito. AS Constituigdes sancionavam entdo, juridicamente, 0 modelo da So- ciedade de individuos, sempre autnoma, despolitizada, mecanicista, siidita de uma classe, em face do Estado rodeado de limites, nio-inter- vencionista, feito de abstengdes ou preso a um s6 fim: o de proteger formalmente os direitos fundamentais, ignorando-Ihe todavia a materia- lidade subjacente. Nesse Estado a democracia ¢ minima, o suffdgio restrito, a liber dade concebida em bases de estrito subjetivismo. Disso resulta que na sua versio politica, ele & o proprio Estado liberal caracterizado juridi- camente pela observancia e supremacia do prinefpio que o fez nascer: © principio da legalidade. Com efeito, no Estado de Diteito da primeira dimensio, a saber, 0 eralismo, legalidade e legitimidade, depois de se adequarem como ma social burgués, coincidem no fundamentos formais do poder (o que é legal & le- é legal). A Sociedade ai prevalece sobre o itimo e 0 que stado, O desprestigio deste, a atmosfera de suspeigao ¢ desconfianga que erce, inculca sem diivida nas esferas da Ciéneia Juridica a hegemo: ° nia do direito privado sobre o direito publico. Nessa visio os Cédigos, 4 primeira andlise, sio mais importantes do que as Constituigses, até mesmo no ensino juridico, e a metodologia interpretativa do Direito, ‘ou seja, a hermenéutica, se move ainda segundo os canones da escola de Savigny, ‘A democracia indireta ou representativa assinala politicamente a fase estreante do Estado de Direito. Com ela os parlamentos chegam 2 TEORIA DO ESTADO ‘20 seu apogeu enquanto instrumento de legitimagao para o formalismo no exercicio do poder: em suas tribunas hé mais confronto académico de idéias do que conflito de interesses, hd mais harmonia do que turbu- lencia, e uma s6 classe detém 0 poder, faz-a lei e governa. O principio liberal, recém-triunfante, reina absoluto e a democracia simplesmente balbucia, Com o segundo Estado de Direito ocorre a substituigdio da teoria formal dos direitos fandamentais por uma teoria material, que prociama neles a presenca de componentes objetives e institucionais, arredando- se assim da concepedo unifuncional, segundo a qual os sobreditos di- reitos tinham exclusivamente por fim promover a defesa da liberdade contra o Estado, Se 0 Bstado liberal fora gémeo do primeiro Estado de Direito, 0 Estado social é a geminagao desse segundo Estado de Direito, cuja nota ‘mais caracteristica reside na reconciliagao da Sociedade com o Estado, Proveio ele da crise entre a legalidade e a legitimidade, crise derivada da gradativa ascensio do quarto estado (a classe trabalhadora) na luta pelo poder. quanto 0 terceira estado (a burguesia) pugnava pela manuten- G40 do statu quo (0 do Estado liberal), 0 quarto estado invocava a legi- timidade nascente, e em razo disso queria a mudanca institucional, a ‘mudanea do regime, jé niio se contentando tio-somente com o sistema alternativo de governo. Dessa porfia de classes, brotou o Estado social, com a prevale- de uma concepgio da materialidade dos direitos fundamentais, Surgiu, assim, o advento do Estado de Direito da segunda dimensio, onde a garantia dos direitos fundamentais jé no consiste, como no pri- meito, em afirmar direitos piblicos subjetives. Mas consiste em fazer do legislador, segundo assinalou Grimm, 0 agente de uma normativi- dade positiva em favor da consolidagao da liberdade, em contraste por- tanto com o legislador negativo das chamadas reservas de lei, confor- me era da indole do Estado liberal Das relagdes negativas entre Estado ¢ Sociedade, tipicas do perio- do anterior, transita-se para relagdes positivas; de uma concepcio for- mal de liberdade para uma concepcao material; de um abstencionismo ogmético do Estado para um intervencionismo quase sem limites; da Unifuncionalidade do Estado-guardiso para a multifuncionalidade do Estado prestador de servigas; do direito-resisténcia para o direito-parti- cipagio; da cegueira perante os pressupostos materiais da liberdade Pata a visio completa e realista daqueles poderes sociais ou categorias cénci UM NOVO CONCEITO DE DEMOCRACIA DIRETA sis intermedisrias que, infensas ou reffatirias & liberdade, podem todavia ocasionar gravissimas lesdes aos direitos fundamentais. Nesse segundo Estado de Direito a democracia pelas vias repre- sentativas j no se confina supremacia de uma classe. Tendo por pressuposto 0 sufrigio universal, perde ela 0 teor formal que a reves- , abrindo 0 raio de sua abrangéncia participativa a todos os estados, ‘ou seja, a todas as classes. Essa abertura em verdade traz 0 fermento da dissolugio ¢ da crise do sistema representativo em suas bases elis- icas, a saber, prepara a introdugao do principio democratico na socie~ dade contemporinea com um contetido de cidadania e uma forga nova de concretude, que tm reflexos importantissimos na reforma da velha concereao dos direitos fundamentais e de sua hermenéutica tradicio- nal, conforme intentaremos demonstra Com efeito, a concepgtio material dos direitos fandamentais rea~ bilita o Estado e 0 consagra como agente e protetor desses direitos, conferindo-Ihe aquela dignidade da qual liberalismo o privara. Esta- beleceu assim, segundo a feliz terminologia de Jellinek, um status po- sitivus om face do status negativus da teoria decaida. Substituiu o duais- mo Estado-individuo ou Estado-suciedade de individuos pelo monismo corporificado na unidade intrinseca da santissima trindade constituida de Estado, pessoa humana e sociedade, entendida aqui a sociedade como sociedade de sociedades. Alargando, a0 mesmo passo, as fungdes dos direitos fundamen- tais, dantes totalmente subjetivos, a nova concepgao material Ihes ou- torga dimensio de objetividade de tamanha latitude que cles deixam de ser, segundo pondera notivel publicista alemio, um veto ao Estado, ‘que fere a liberdade, e se tomnam, no seu dizer, um mandato, que a So- ciedade confere ao Estado para promover a propria liberdade. Desse ‘modo, acrescenta, 0 elemento subjetivo da liberdade cede lugar neles 0s componentes objetivos, institucionais, valorativos ¢ funcionais. Disso resulta um considerdvel alargamento das fungdes dos direitos fundamentais, que ja nao se circunserevem meramente aos direitos de defesa (Abwehrrecitt), mas passam a adquitir quatro novas fungdes: pri- meito, « fungo axiolégica ou fungo normativa, com que elegem, dis- pdem e decidem sobre valores (wertentscheidende Grundsatznormen), segundo, a fungio institucional, que os transforma em garantias insti- tucionais (institwionelle Gewahrieistungen); a seguir, a fungao partici pativa (Teithaberechte), que afianga a participagao da eidadania na for- ‘mago da vontade estatal ¢, de iltimo, a fungao postulativa ou fungio reivindicante (Anschpruchgrundlage). su TEORIA DO ESTADO A reforma da hermenéutica tradicional acompanha de perto as ne- cessidades impostas por uma distinta compreensio dos direitos funda- mentais tocante as suas fungbes. ‘A“‘velha hermenéutica” de Savigny, de inspiragiio romanista e jus- privatista, partia da legalidade dos Cédigos e se afeigoava ao Direito Privado, enquanto a “nova hermenéutica” parte da legitimidade das mstituigées ¢ se afeigoa ao Direito Publico.’ A primeira servia a0 Direito de uma Sociedade simples, a segunda ao Direito de uma Socie- dade extremamente complexa; aquela herme flexibilidade; ali um Direito em repouso, aqui um Direito da mudanga, do movimento, do dinamismo; um Direito que impés, de tiltimo, a in- trodugo de novos métodos na compreensto, aplicagao e eriagao de re- gras normativas. Os quatro métodos de Savigny —o gramatical, 0 légico, o histérico € 0 sistemitico -, aos quais se juntou depois o teleol6gico de Jhering, compunham a espinha dorsal da hermenéutica clissica, que manteve, até a primeira metade do século XX, primazia absoluta, Os abalos por ela padecidos derivaram da aparigGo da “nova he ‘menéutica”, que levou a cabo uma impressionante renovagio meto- dolégica na interpretagiio do Direito. Obra de juristas alemies, como alids foi em grande parte a velha hermenéutica, ela principia com a Té- pica de Viehweg, passa pelo contributo de Konrad Hesse e atinge seu ponto culminante com a obra bisica e monumental de Friedrich Miil- ler Da “nova hermenéutica”, interessa-nos tlo-somente frisar, de pas- sagem, seus desdobramentos no campo da interpretagio e dos direitos fundamentais, Criou ela trés novos métodos, assim classificados, segundo a ter- minologia de Backenfrde: 0 método tépico ou casuistico dirigido para © problema (Viehweg, Horst e Haberle), o método cientifico-realista que corresponde ao antigo método cientifico-espiritual (Smend) e 0 ‘método hermenéutico-coneretista (Friedrich Miller e Konrad Hesse).* 3. Dieter Grimm, Die Zukunft der Verfassung, Frankfurt a. M., 1991, pp. 221 4, Dieter Grimm, Recht und Staat der birgerlichen Gesellschaft, Frankfurt a M., 1987, pp. 192 a 210 e Die Zukunfi der Verfassurg, Frankfurt a. M., 1991, pp. 27.475 6 221 a 240. 5. Emst-Wolfgang Bdckenférde, “Die Methoden der Verfassungsinterpre Bestandaufahme und Kritik", NIW, Heft 46, pp. 2.091 a 2.097. UM NOVO CONCEITO DE DEMOCRACIA DIRETA sis iinico método contemporineo de interpretagio constitucional que ainda se prende a velha hermenéutica e que foi durante a década de 1960 severamente combatido na Alemanha, 60 “classico-hermenéu- tico” de Forsthoff, assim batizado por Bockenfirde. ‘A multifuncionalidade dos direitos fundamentais, os métodos ma- teriais ¢ concretistas da hermenéutica contemporanea, o principio da proporcionalidade enquanto corretivo ao arbitrio do Estado contra a pes- soa humana, a constitucionalizagao ou juspublicizacdo dos prineipios gerais de Direito sao pressupostes instrumentais de capital importin € aplicegio indeclinavel para caracterizar a democracia nesta idade em que 0 principio democritico ja nfio pode deixar de ser proclamado ¢ reconhecido como um direito fundamental. Da democracia assim con- cebida se infere a formacio de uma terceira modalidade de Estado de Direito, que outra coisa nfo é sendo o Estado social, conduzido no aperfeicoamento de suas instituigées ao mais alto grau de juridicidade. 0 Estado de Direito da terceira dimensio — derradeiro capitulo dessa evolugio — concretiza enfim a liberdade na realidade social e é 40 mesmo passo, a democracia que se substantivou com o primado dos direitos fundamentais, E de assinalar, contudo, que a democracia-direito fundamental ten- de vocacionalmente a estabelecer-se por via direta; mas para tanto se faz misier que 0 povo seja também o povo concreto e no o povo abstra- to, ¢ detenha a titularidade de todas os poderes essenciais que o habili- tem a exercitar um controle supremo sobre 0 gaverno e as instituigdes. Mas s6 ha democracia qualificada como direito fundamental, de- mocracia, portanto, de um Estado de Direito da terceira dimensio, que ja n0s reportamos, se forem obedecidos determinados pressupos- t05; Se 0 povo puder realmente fruir alguns direitos fundamentais, como o direita & comunicacZo, o direito a livre informagio ou se as vias poli- ticas forem substituidas pelas vias judiciais ou jurisdicionais no que tange as garantias de concretizacZo e protecdo dos direitos fundamen- tais da terceira geraclo. Entre esses direitos se inserem os direitos da solidariedade arrola- dos por Karel Vasak, a saber, o direito ao desenvolvimento — este teori- zado por E.-R. Mbaya — 0 diteito & paz, 0 direito ao meio ambiente (os direitos ecolégicos) ¢ 0 direito de propriedade sobre o patriménio co- mum do género humano, a “heranga geral da humanidade” (0 direito dos oceanos, por exemplo, res communis omnium)* 6. Veja-se a aula inaugural do Curso do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, intitulada “Em prol dos direitos humanos éa terceira geragd0: os direi- 516 TEORIA DO ESTADO Outro pressuposto bisico, sem o qual nio existe essa democracia, igual oportunidade de todos & educagao bem como o livre acesso 10 exercicio das profissdes, Enfim, dentre 08 grandes obsticulos levantados & concretizagio da democracia direta e ao reconktcimento do prineipio demoeritico como direito fundamental em termos de legitimidade, figura a infor- magdo. Se esta for manipulada por monopdlios ou oligopélios privat tas no haverd democracia. Desvirtuado ficara todo 0 processo gerador de opinido e decisdes de natureza governativa. ruinte, ser instru mentos de poder dos grandes conglomerados empresariais, A lesdio aos direitos fundamentais tanto pode partir do Estado como de terceiros, (Drittwirkung). O confronto do cidadio com o Estado se destoca ni raro para um novo polo de antagonismo no interior da Sociedade me: ma: 0 do homem versus grupo, plo sobre o qual os direitos fundamen- tais devem ter eficdcia. Se nao tiverem, a vontade democritica jamais, se constitui, salvo como fraude, mito ou quando muito norma progra- mitica de Constituigées vazadas no papel € no subjetivismo bem tencionado dos legisladores constituintes. Nito seri, porém, a vontade do povo, porque ela, até mesmo qua do se concretiza por meios materiais, sem os quais nfo se efetiva nem se faz exeqiivel, fica sujeita a naufrigio, impulsionada pela correnteza dos interesses adversos, e inibidores, derivados dos piores egoismos sociais. Se esses problemas no forem solvidos, se essas ameagas nio forem conjuradas, nem a democracia se elevard & categoria de direito fundamental, alids 0 primeiro dos direitos fundamentais ~ porque é di- reito fundamental do género humano mum determinado sistema de po- der ~ nem 0 terceiro Estado de Direito vingard na composigio de nosso cordenamento juridico, Em rigor, a imas proposigdes podem agora ser formuladas, a par- tir das quais sera possivel, resumindo e recapitulando toda a exposigio precedente, chegar a um novo conceito de democracia direta, compatt- vel com os progressos tedricos da ciéncia politica contemporanea neste Pais, tos da solidariedade”, proferida por Karel Vasak, em Estrasburgo, a2 de jutho de 1979. Depois de muita relutincia e debates, as Napdes Unidas aprovaram em 1986 ‘a “Declaragdo do Direito a0 Desenvolvimento”, por 133 votos contra 11, ha 12 abstengdes. Sobre o direito ao desenvolvimento é de fundamental interesse © texto de Ftienne-R. Mbaya, Menschenrechte im Nord-Sid Verhalinis, escrito em Colénia, na Alemanha, e que nos foi gentilmente fornecide pelo Autor UM NOVO CONCEITO DE DEMOCRACIA DIRETA 317 m primeiro lugar, a democracia direta nao deve ser estimada uni- camente pelas vias formais da utilizagao exclusiva de técnicas plebis- citérias, implicando, em conseqiiéncia, um veto absoluto a0 uso de for- ‘mas representativas, por incompatibilidade essencial com esse sistema de organizagao e exercicio do poder. Afistado assim o formalismo puro, de carter instrumental, ¢ ad- mitidas formas representativas remanescentes na democracia direta, urge concebé-la também primacialmente pelo prisma da materialidade, ou seja, do contefido com que ela se define. Desse conteiido fazem parte dois componentes: um politico e ou- {ro juridico. Componente politico é o controle final e supremo do povo ‘em todas as instancias de exercicio do poder; componente juridico é 0 princip.o democritico erigido & categoria de direito fundamental ~ hoje na douttina, amanhat na pritica Em suma, 0 terceiro Estado de Direito outra coisa nao significa senfio o Estado social da democracia direta, em que a democracia se concebe, ao mesmo passo, como um direito fundamental da quarta ge~ ragio. Nesse ponto, explicitando mais as conclusées, afigura-s. tar a razio toda com Kelsen ao escrever certa vez num ensaio célebre ‘que a éemocracia & uma progressio para a liberdade.’ Nés preferimos dizer, fazendo uma averiguacio positiva e formulando pensamento mais especifico: progresséo para o Estado de Direito, da primeira, da segunda ¢ da terceira dimensdes, a que respectivamente correspondem as verses historicas de Estado liberal, Estado social e, de ultimo, Es- tado social da democracia, Com efeito, nesse sentido caminha, em sua derradcira manifestagio de aperfeicoamento e legitimidade, o sistema politico das sociedades vocacionadas para a legitima democracia dire- ta, que nfio pode ser outra senio aquela indissoluvelmente associad ‘a0 conveito de democracia como o mais novo e fundamental direito da pessoa humana, direito sintese, cuja esséncia consiste em compendiar, ‘numa unio inviolivel, a justiga, a liberdade e a igualdade. 7.Hans Kelsen, Vom Wesen und Wert der Demokratie, 2 ed., Tuebingen, 1929,

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