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4 A vida pulsante das periferias Juliana Borges Rebeca Ramos Pinturas da série O que as cores tém «dizer, 2018-2020 Campinho da rua Muniz Gordilho, 2020 , Rebeca Ramos O cliché de “senzala” nao cola mais em quilombos urbanos que, sem pedir permissao, afirmam modos préprios de viver, ver, sentir, encarar desafios e construir solugées originais e potentes Nunca fui timida, fui silenciada. MONIQUE BVELLE, empresiria e escritora Olixo vai falar. E numa boa. LELIA GONZALEZ, antropéloga e intelectual brasileira Quando se pensa em “periferia”, o que vem a cabega, no senso comum, é uma imagem de violéncia, dor e auséncia. Logo se imaginam criancas sem pai pelas ruas de terra batida ou de asfalto esburacado e sem manutencio, em terrenos baldios e Vielas escuras, numa vida marcada pelo “sem”- como se “nao ter” fosse a tinica definicao possivel. Se no tem rua asfaltada, nio deve ter bons modos, Se nao tem escola, nao tem “educa- ¢40”, Se nao tem, nio tem, ince (Instituto Brasileiro de Geogratiae Estatistica), Desiqualdades sociais por cor 04 raga no Brasil Rio de laneiro: 88, 2019, 2.Esse é um tipo de definicao das sociedades trabalhado por Boaventura de ‘Sousa Santos ao refletir sobre a democracia, Rua dos Eucaliptos, 2020 7] ae Que vivem no asfalto ou do outro lado da ponte Periferias sao lidas como uma projegao de negatividad. ia esimples. Mas como nés nos vemos? Sera que somos rates séncia? Sera que somos os “sem”? Ou sera que esse sen que vocé vé é apenas uma projecio de suas proprias negatividades? Em varias produgées do pensamento feminista negro e de estudos decoloniais, a discussio sobre o significado do outro € um ponto importantissimo para compreendermos as com- plexidades das opressoes e desigualdades. A criagio do outro tem como consequéncia a projegao de auséneias, cria padrdes de inferioridade e superioridade, cria primitivos e civilizados, cria os violentos os “de bem” e todo esse sistema binario que hierarquiza, que define o outro pela auséncia de algo, consti- tuindo no imaginario dinamicas violentas sobre os que devem ser temidos ¢, portanto, controlados. © medo de pessoas periféricas, porque vistas como peri- gosas, principalmente se negras - e negros compoem 75% da populagdo pobre do pais! -, esta tio naturalizado, incutido, que tomou a subjetividade daqueles que sentem possuir al- go que periféricos “nao tém”. Esse medo alimenta, por sua vez, posicionamentos de autopreservacao em que se pode mobi- lizar tudo, inclusive a barbarie, para que as mudangas sejam limitadas ao minimo. E essa logica que faz. com que sociedades institucionalmente democraticas, como a nossa, sejam social- mente autoritarias.? O que sio, entao, periferias? Nao ditia que, a partir de mi- nha experiéncia, tudo € 0 inverso da ideia de auséncia. Obvia- mente, como falamos aqui de onde escrevo, seria um grande “adianto” ter metrd, ruas mais iluminadas, varricao e coleta de lixo cotidiana, pracas preservadas, escolas vistas como inves- timento, e no como um mero depésito de gente para passat o tempo. Se perguntarem para um morador de periferiase ele sairia de sua “quebrada”, muitas podem ser as respostas, mas elas sem duvida passarao por melhorar o local onde se vive, garantir as condigdes para uma vida com dignidade. ‘A ideia do que sao as periferias mudou com 0 tempo. De definigio geografica e territorial, como a delimitagio de um espaco distante do centro, as periferias —e sempre See ° plural - também passaram a significar um modo de vives 7 ver, de sentir, de encarar e construir coisas. Minha infincia ° marcada pelas tentativas sistemticas de minha familia, funda: i Jonge das “armadilhas” mentalmente matriarcal, de me manterlonge das ‘armadi 2 Reuse mostra que wlidaiedade fale este moradnes de favelag™ Beda Bras, 26.06.2020, Dspomivel mi atencabrasilebccom bedneiug «ag, Masa frase recorrente teimaya emt ser soprada nog do bairro, MM* nevoce pode até sair da ‘perifa’, mas a ‘perigs meus ouvidos! ga ver. mais, eu compreendia que, além de nao sai eee jo das periferias envolvia “ser”, “exister um territ6rio, como uma Bae ara a filha da trancadeira e neta da lavadeira Nao foi faci propria existéncia seria um “eu entre ou- perceber que “™ ¥sa categoria de Maria Lugones, a intelec. tros”, Para al argentina. No colégio particular garantido are 7 bairro em que eu chegava depois de atravessar Ponte, sempre fuia perifrica Ais, a “neqrinha peice, E, quando eu voltava para o bairro € encontrava meus amigos, eueraa“filhinha de vovo”. Tive que aprender com os conflitos constantes 0 que significava ser € estar no mundo, passando também pela negagio do meu lugar, até compreender que ele fazia tio parte de mim, era tao constituidor do meu jeito de ver, que s6 poderia ser uma poténcia positiva, uma aptidao para observar o mundo de maltiplos modos. A condicao de ser ¥ outro do outro”, articulada de modo vasto por intelectuais como bell hooks, Patricia Hill Collins e Grada Kilomba, passa- ria entaoa ser ponto de exploragao e positividade de como eu lidaria com o mundo e o analisaria. A identidade politica das periferias é fruto de um cons- tante processo de tensdes e de articulacdes diante de adversi- dades que so contornadas com criatividade, pela “viragio”, por tecnologias de sobrevivéncia e resisténcia. E importante discutir as periferias levando em conta 0 reconhecimento desse territorio também como lugar de “fazimentos”, de for- mulacio, de inteligéncias e de protagonismos. Nao se trata de romantizagao, mas da Percepcao de que as periferias e as pessoas que nelas vivem sao tao complexas e diversas quanto qualquer um que se pode considerar “outro”. Ha tantos so- nhos quanto se pode imaginar por vielas e becos, ha tantos ressignificados quanto se pode projetar entre barracos e casas dealvenaria. _ Oconjunto de adversidades e precariedades vividas impul- Stona o surgimento de teias e redes comunitarias e de solida- a exemplo dessa dindmica 60 combate a covide19. Favela apontan a las pelo Instituto Locomotiva e pelo ae nee a i que as classes pe E doarame er pion, um = 5 cece AeBdurantea pandemia. E, a que y as classes a e B, parte dos 25% mais ricos do sentid idade politica. 4-Instituto Trata Brasil, Ranking do saneamento. S40 Paulo: Instituto Trata Brasil, 2018. 8, pedi Ou seja: seg cionalmente, Para o enfrentamer ‘nto da pandemia, tantement es : to lavar as maos cons- vitaraglomeracoe: , L guntas importantes: como g oon teeTam per. dlois cOmodos habitadas por nove ge ememtoem cass de Reus ad Es Por nove pessoas? Como manter a bie € basic a meee ee racionamentos no tem acessoa esgoto, Oabastecimentodedgua ae . jento de agua no chegaa ' todos, aleangando apenas 83,6% da populagio« Coletivos e organizagées que, assim como eu, aprenderam © senso de comunidade pelas proprias dinamicas periféricas So sustentagdes fundamentais para milhares de familias. A Agéncia Solano Trindade, no Campo Limpo, Zona Sul de Sio Paulo, foi um dos primeiros coworking de periferias, e desde 2012 trabalha com varias iniciativas, como o Armazém Orga- nicamente, que vende organicos de produtores da regio, ea Cozinha da Tia Nice, que oferece refeigdes com orginicos ¢ op- ; Ges vegetarianas e veganas. Juntos, os projetos apoiam mais de 300 empreendimentos periféricos. A agéncia foi batizada em homenagem a Solano Trindade, poeta que me havia sido apresentado muito antes pela minha tia-av6, que recitou para mim océlebre poema “Tem gente com fome” e me presenteou com 0 livro Cantares ao meu povo quando completei 1s anos. No Rio de Janeiro, sao atuantes os coletivos Papo Reto € Voz das Comunidades, do Complexo do Alemao. O primeiro atua nas dreas de comunicagao e tecnologia; 0 segundo, a partir de itario que ganhou proporgdes muitoalém da ‘elas? democratizagao ; zacio que se espraia pela comuni a ciativas, como arrecadagao constante de alimen! ‘ sn ee de negocios das favelas para as favelas ete, ay ee snte durante a pandemia, esses sio alguns dos milhsiv me éricos que ja vinham realizando trabalhos idades. incentivo name de coletivos perilé importantissimos em suas comunit Diversos sio 08 “afrontamentos” que se deli diano e fortalecem redes,comoa teia formae, para que“espieas eriangas deout asmulheres dg Essa é, por exemplo, uma meméria fresea de mj De quando minha mite, minha av6 ou minhas tn sair para trabalharas quatro da manhii, me cobertore me deixavam com a vizinha, para a escolacom seu filho de manha. Ao final do da, elas buses, vam nessa mesma vizinha, para voltarmos juntas Para cae que aescola nao era em periodo integral. Ainda hoje quando caminho pelas ruas do bairro em que cresci, sou cumprimen- tada pelo nome por diversos vizinhos, pelos quais mitre Tes. peito, como se fossem de uma familia estendida, Nessas mesmas periferias, acontecem festivais de cultura earte, encontros de gamers, sambas € forrds 208 sibados, pa- tedées de funk as sextas, cultos religiosos as tercas, quintas ¢ domingos. Todo tipo de comércio é aberto, e funciona em, horatios variados. E onde vocé encontra o “sushi do Bueto”, restaurantes veganos, acai entregue em casa. Onde acontecem foruns de tecnologia. Onde produtores de organicos se orga- nizam e uma série de positividades sao reafirmadas todos os dias. Nao foi em outro lugar que aprendi a amar a literatura, onde eu me encantava Por cordel e me divertia com as his- torias do Sitio do Pica-pau Amarelo. O Poeta itabirano Carlos Drummond de Andrade me foi apresentado em umaescolade bairro nobre, mas foi num sarau, como o da Cooperifa, que sua Poesia sorriu para mim pela primeira vez, Ali, num botecio iNeiam ne COM Uma, tinham gig enrolavam ern ye We Elamelevacs, S, escaddes e descampados, conheci poesia i que “O cio sem plumas” era uma metiifora po- Neto e que nao precisaria mais ‘emer figuras de linguagem, porisso que, sem Constrangimento algum, pereebo as pe Metias come quilombos urbanos, e nie como senzalas. Si0e regal €M discursos ¢ tecnologias, ns qe os + tambéan Ae Sinise diante de tamanhos abismos on . bates soci mismo com a Propria vida, em intensos de Hologic “© politicos. O fato conc veto é que periferias Favela Encontras e Despedidas, 2020 Ci Ossiveis e n¢ aris rem apresentadase disutidas quand flames de renin As demandas e a negagao de direitos existem e precisam sen denunciadas ¢ analisadas,politicas precisam ser formuladas, as desigualdades, combatidas. Mas, hoje, escolhi falar dos so- hos e do que foi concretizado, dos sor i s0s, do reciproco, de minha mae trangando me us Cabelos na sala de casa a0 som de Barth, Wind & Fire enquanto minha tia preparava oalmogo eatendiaa vizinha que nos trazia um pedaco de bolo. De meus amigos me ehamando para brincar. Hoje escolhi falar de como a periferia tambem mobilizoue moldow o que de positivo tenho em mim. Ao escolherminhas duas epigr: ', remetoa essa historia que insiste em invisibili- zavas inventividades e positividades das periferias brasileiras, ‘uma historia que ainda nos tem como pessoas marcadas pelas auséncias, como personagens-objetos planificados, quando 0 que existe na verdade é muita inteligéncia e producao de no- vos possiveis, muitas vozes que decidiram, jé ha muito tempo, nao mais pedir permissao para falar. Elas simplesmente rom- pem osiléncio, se apresentam fazedoras, vores tao profundas complexas quanto se possa imaginar, vozes que dizem cada vez maisa que vieram. E numa boa. Juliana Borges (1982) esritora cesta politica criminal Consutora do N= cleo de Enfrentamento, Monitoramentoe Memoria deCombte 3 Vickencae iniciativa Negra por uma Nova Politica sobre Drogas. Fe ‘oas-sr e conselheira da Iniciativa bre Dre Fe rministaantipunitivista eantiproibicionsta¢ autora dos livros Encarceraents tim masea (Polen) e Pisies: expels de nbs Todavia)- Publicou na erro #359 tensaio"A quem interessa lar as prisdes?”.Filha de Claudia enetade Cria da periferia paulistana. Nascida em Sio Paulo, a ar ica 5 (1999) reflete sobre lo, a artista plastica Rebeca Ramos (19% i : fevias ¢ favelas. territorios e imaginarios urbanos nas peri

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