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PET História UFC - 2019
Cadernos de pesquisa PET
v.1, 2019
A FOME
História & Memória
© 2021 Copyright by PET HISTÓRIA UFC
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Diagramação eletrônica
Ravelle Gadelha
Revisão
Ana Karolina Freire de Oliveira
André Ribeiro Totti
Antonio Maurício Martins Neto
Francisco Guilherme Neves Dantas de Melo
José Cleuton Barbosa Junior
Mariana Pinheiro de Oliveira
Capa
Pedro Morais - @pedromoraisart
Impressão e acabamento
Expressão Gráfica e Editora
Rua João Cordeiro, 1285 - Aldeota - Fortaleza - Ceará
CEP: 60110-300 - Tel.: (085) 3464-2222
E-mail: arte@expressaografica.com.br
Ficha Catalográfica
Bibliotecária: Perpétua Socorro Tavares Guimarães
-CRB 3 801-98
__________________________________________________________
Programa de Educação Tutorial de História- PET-UFC
A fome: história e memória / PET HISTÓRIA-UFC .- Fortaleza: Expressão
Gráfica
e Editora, 2021.
128 p.
ISBN: 978-65-5556-448-8
1. História 2. Fome – Brasil I. Título.
CDD: 900
_________________________________________________________
Sumário
Fome: história e memória ......................................................................... 04
A fome dos “bárbaros”: literatura e seca .................................................. 07
André Ribeiro Totti
Francisco Guilherme Neves Dantas de Melo
Lucas Estélio Pereira de Assis
Matheus Gerard de Sousa Mesquita
4
ecossistemas que era preciso destruir para dar lugar ao agro-sis-
tema (...)”. Tamanha crueldade transformou terras prosperas
e férteis em vidas famintas. Infelizmente essa tem sido a nossa
história (MBEMBE, 2017, p. 23).
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Esperamos que a publicação que ora apresentamos, contribua para a
reflexão sobre a fome no mundo com a certeza de que é preciso comer para
poder sonhar.
Kênia Sousa Rios (tutora)
Régis Lopes (co-tutor.)
BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras escolhidas. vol. 1).
MBEMBE, Achille. Políticas da Inimizade. Tradução: Marta Lança. Lisboa:
Antígona, 2017.
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A fome dos “bárbaros”:
literatura e seca
André Ribeiro Totti1
Francisco Guilherme Neves Dantas de Melo2
Lucas Estélio Pereira de Assis3
Matheus Gerard de Sousa Mesquita4
INTRODUÇÃO
D esde meados do século XIX, o sertão tem sido retratado pela literatura.
Diante do impacto causado pela seca de 1877, a seca se tornou um
problema nacional e passou a ser tematizada pela ficção. Dos romances natu-
ralistas até os modernistas, a seca foi tema recorrente na escrita dos letrados.
Neste artigo, serão analisadas algumas das ficções que compõem a “literatura
das secas”. Segundo Durval Muniz (ALBUQUERQUE, 2017), essa literatura
veicula imagens sobre a seca do Nordeste, oscilando entre a composição literária
e o estudo histórico, com pretensão de “figurar o que seria a realidade” (ibid.
p. 229) e instruir valores morais.
Acerca das fontes históricas utilizadas, foram analisados os seguintes
romances: “Os Retirantes” (1879) de José do Patrocínio; “A Fome” (1890)
de Rodolfo Teófilo; “O Quinze” (1930) de Rachel de Queiroz. Foi também
analisado o poema “Morte e Vida Severina” (1956), escrito por João Cabral
de Melo Neto.
Os autores em questão, quando narraram a seca, se posicionaram diante
da realidade ficcionada, constituíram, portanto, representações (CHARTIER,
2002) sobre o mundo social. Em suas narrativas, apresentam os personagens
que sofreram o drama social causado pela estiagem. Enquanto discursos
veiculadores das relações de poder, as narrativas literárias representaram
retirantes, escravos, padres e governantes. Neste artigo, iremos analisar aqueles
personagens que aparecem como “bárbaros”.
1 Graduando do curso de Licenciatura em História-UFC. Bolsista PET-SESU.
2 Graduando do curso de Licenciatura em História-UFC. Bolsista PET-SESU.
3 Graduando do curso de Licenciatura em História-UFC. Bolsista PET-SESU.
4 Graduando do curso de Licenciatura em História-UFC. Bolsista PET-SESU.
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Mas o que seriam os “bárbaros”? Segundo Francis Wolff (2004), uma
sociedade se diz civilizada para valorizar sua cultura em detrimento de outra, por
conseguinte a civilização é a cultura que se considera mais elevada, enquanto a
barbárie aparece naqueles indivíduos, etnias e sociedades cuja cultura “parece
estranha aos valores ao mesmo tempo mais elevados e mais evoluídos” (Ibid. p. 25).
Nesse sentido, há, na literatura analisada, a figuração daqueles que seriam
os “bárbaros”: por um lado, o escravizado que aparece bárbaro por sua natureza
enquanto negro; por outro lado, o sertanejo retirante que se torna bárbaro ao
sofrer o flagelo da seca. Embora o escravizado apareça somente em “A Fome”
(TEÓFILO, 2001), o retirante é figura central nos demais livros. No que se
refere ao retirante, seu estatuto de “bárbaro” na literatura não é uniforme, pois,
para os romances naturalistas, ele se torna bárbaro por sua condição famélica,
na medida em que perverte as relações familiares e a si mesmo, enquanto para
a ficção modernista, embora o retirante assuma o lugar social do bárbaro na
narrativa, a crítica dirigida é em relação ao próprio estatuto de ser bárbaro.
Segundo Costa (2020), vários romances dessa literatura acabam por
reiterar uma série de estereótipos que produzem estigma sobre os sertanejos
retirantes, de modo a operar violência simbólica sobre eles, colocando-os
como seres humanos inferiores. Para os romances analisados neste artigo, essa
afirmação pode ser aplicada a alguns. Com efeito, romances naturalistas como
“A Fome” e “Os Retirantes” colocam os retirantes como seres bestializados
pela fome, afinal “haviam perdido o senso íntimo e deixavam-se dominar
pelas necessidades da animalidade” (TEÓFILO, Op. Cit., p. 47). Entretanto, a
partir do modernismo da década de 30, ocorre uma inversão: o retirante ganha
protagonismo, e a crítica deixa de ser moral para se tornar eminentemente
política. É este o caso do romance “O Quinze” e do poema “Morte e Vida
Severina”. Porém, antes de iniciar a análise dessas ficções, cabe ainda destacar
alguns aspectos concernentes àquilo que estamos chamando de “barbárie”.
Destarte, pretendemos associar a ideia de “barbárie” à questão racial,
por isso consideramos necessário retomar Achille Mbembe (2014), para quem
a crueldade colonial dividiu, classificou e hierarquizou as raças, constituindo
“o Outro não como semelhante a si mesmo, mas como objeto intrinsecamente
ameaçador” (Ibid., p. 26). Neste raciocínio, o homem branco europeu operou
um regime de separação, pois compreendeu as humanidades não europeias –
negros, indígenas, mestiços – como racialmente inferiores. Diante do contexto,
o autor considera o racismo como um processo de fabulação, pois cria uma
diferença imaginária entre os homens com fins de dominação e controle.
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Para que possa ser compreendida a apresentação do escravizado em “A
Fome”, é indispensável associar a construção de um simulacro que faz do negro
uma figura “pré-humana incapaz de superar a sua animalidade” (Ibid., p. 39),
pois o negro é situado na narrativa a partir da construção desse simulacro.
Sendo assim, o tratamento dado ao escravizado na narrativa é diferenciado,
na medida em que a existência do escravizado é situada somente em relação à
escravidão, porquanto sua barbárie é inerente à sua natureza enquanto homem
negro, afinal sua humanidade supostamente é diferente daquela dos demais.
No que se refere aos retirantes, é possível relacionar as representações
literárias com os três aspectos que Francis Wolff atribui ao significado de
barbárie. O primeiro deles se refere a um estágio arcaico de sociabilização em
que os costumes não são refinados nem polidos, de modo que constantemente o
indivíduo do campo aparece como atrasado em relação ao indivíduo da cidade.
O segundo sentido se refere a um estágio cultural arcaico que não contempla
a parte espiritual da vida, ou seja, os saberes científicos e as artes eruditas. Os
bárbaros então só reconhecem valor útil na satisfação das necessidades vitais.
O terceiro sentido se refere a um estado de decadência moral em que a barbárie
resulta da dessocialização e da desculturação, de maneira que ela representa a
perda de valores humanitários como a compaixão, o amor e a bondade, a partir
do ponto em que o homem se torna selvagem e desumano.
Com efeito, esses três sentidos da barbárie podem ser associados à
forma como a literatura naturalista apresenta os sertanejos retirantes, pois
estes representam o atraso do sertão em oposição ao progresso da cidade, bem
como a perda dos costumes familiares (primeiro sentido). Também representam
uma forma de vida que somente visa à satisfação das necessidades vitais, no
caso, suprir a fome (segundo sentido). Por fim, os retirantes são apresentados
como uma forma de vida selvagem que se degenerou moralmente ao ponto de
cometer as maiores atrocidades (terceiro sentido).
Entretanto, conforme já foi dito, a literatura analisada não apresenta de
maneira uniforme a figura do retirante. Para compreendermos essas diferenças,
é necessário situar os diferentes contextos de produção de cada escola literária.
Importa retomar, portanto, a reflexão de Roger Chartier (2011), no sentido de
que as representações literárias não são a duplicação verossímil do corpo social,
mas, sim, discursos que se estabelecem numa “negociação” com essa mesma
sociedade, de maneira que o importante seja perceber as práticas sociais que
direcionam as representações e as intenções por trás de tais discursos.
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Sobre os romances naturalistas, é importante considerar que eles são
romances que objetivaram retratar a realidade “tal como ela é”, pois propuseram
apresentar teses sobre o funcionamento da sociedade e da mente humana
(ALMEIDA, 2007). Neste sentido, Rodolfo Teófilo e José do Patrocínio apre-
sentaram romances-teses sobre a decadência moral diante do flagelo da seca,
em que teceram críticas tanto aos retirantes quanto aos governantes. Ambos
foram testemunhas oculares da seca de 1877 e tiveram pretensão de verdade
ao representá-la. Patrocínio era jornalista da Corte (Rio de Janeiro Imperial) e
viajou ao Ceará para relatar ao Império os acontecimentos da seca que viravam
notícia nos periódicos (NEVES, 2007). Teófilo escreve sobre a seca com o intuito
de deixar uma memória crítica para as gerações futuras, conforme afirmou
Isac Ferreira Neto (2006).
Quanto ao Romance de 30, Teoberto Landim (2006) destaca que são
romances de denúncia social, pois a escrita desses romances “conduz à valo-
rização do povo e sua vida, sob as mais variadas formas: o dos sertões, o das
cidades e o dos subúrbios” (Ibid., p. 247). Rachel de Queiroz, inserida neste
contexto, tece críticas à oposição entre sertão e cidade. No que se refere ao
retirante pobre, ela dá protagonismo a um deles e expõe a diferença sobre como
o flagelo atinge determinados sujeitos tendo em vista a desigualdade social.
João Cabral de Melo Neto, segundo Ricardo Carvalho (2009), retoma a tradição
de 30 ao escrever Morte e Vida Severina, pois denuncia o drama do retirante e
critica as desigualdades sociais que permeiam a condição do sertanejo pobre.
Diante da pretensão de expor a construção de duas figuras apresentadas
como bárbaras – de um lado, o escravizado, do outro, o retirante –, o artigo
foi dividido em algumas seções. Num primeiro momento, será analisada a
construção da figura do escravizado no romance “A Fome”. No tópico seguinte,
será abordado como os romances naturalistas apresentaram a fome como
fator de degeneração da família. Logo após, será exposto como se constroem
representações estigmatizantes sobre os retirantes. Em seguida, serão destacadas
as críticas dos literatos às políticas estatais de controle aos retirantes. Por fim,
será abordada a crítica social realizada por João Cabral de Melo Neto, de modo
a criticar o próprio estatuto de civilização e barbárie.
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venda do escravizado, “considerado quase como pessoa da família” (TEÓFILO,
Op. Cit. p. 95). Mas essa relação senhor/escravizado, ainda que fosse próxima,
como o autor traz e enfatiza em outros detalhes, se delimita muito rapidamente:
o cativo, sabidamente reserva financeira para esse período, finda vendido em
prol daqueles que eram família (de fato, e não “quase”).
Esse ponto mais explícito da cisão entre essas condições não é o único:
em um romance que trata do impacto da seca na necessidade alimentar básica
de suas vítimas, (como visível no próprio nome), é de se notar a quase nula
menção à fome, ou mesmo alimentação, entre os escravizados.
Antes mesmo da venda dos últimos escravizados, marco da decadência
e retirada de Freitas, adiado, em parte, por sua escrupulosa relação com os
cativos, já abundam as descrições da pobreza e da dificuldade alimentar dos
senhores; dos escravizados, ficamos sabendo apenas que tiveram “a ração [...]
reduzida a um terço” (Ibid., p. 23).
Podemos daí, inferir que, mesmo na anterior fartura, racionava-se a
alimentação dos escravizados; a má nutrição, talvez a fome, para os senhores,
principiava, e, para os cativos, agrava-se. Ainda assim, a fome entre os negros
cativos não aparece nomeada, se não implicitamente. Principalmente: essa fome
não gera nem o drama puxado à épico da família de Freitas, nem o extremo
dantesco e ameaçador dos demais retirantes.
Isso por que esses corpos já possuíam uma instituição cerceadora e
disciplinadora que os obrigava a uma ordem desejada: a escravidão em si,
que pelo menos na narrativa de Teófilo, é bastante para tê-los quase passivos
a suas condições (excetuada a fuga de alguns logo de início), ao que remete a
cena dos cinco escravizados de Freitas rumando para a própria venda com as
macas às costas (Ibid., p. 27).
É essa escravidão que delimita as particularidades de narrativa e os even-
tos que os cercam. Como “gado humano”, sua alimentação é da alçada de seus
proprietários, o que explica a rarefeita, por talvez desnecessária, descrição da
alimentação, que mesmo na seca não precisariam buscar: vinha já previamente
racionada. São como escravizados que têm a saúde avaliada para mensuração
de seus valores de venda, os corpos minuciosamente auscultados e apalpados, e
são julgados perfeitamente sãos, mesmo que, como vocifera o traficante Prisco,
tenham vindo de “uma terra onde só comiam mucunã” (p. 109); a mesma fome
que ameaçava a saúde de seus proprietários, não os depreciava como mercadoria
vendável, denotando outro critério de comparação.
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Gravitam em torno disso os demais dramas pessoais desses personagens,
especialmente de Felipa e sua filha Bernardina. É de Felipa a única enfermidade
em um corpo escravizado, causada, não é surpresa, pela crueldade da escravi-
dão, e única na obra sem causa direta com a seca: uma neurose.
Por fim, apesar da mesma Felipa, em suas falas e cenas no livro, ser
veículo das ideias abolicionistas de Teófilo (NETO, 2006), essa conformidade
em pensar esses indivíduos tão reduzidos a essa condição, que gera todas as
citadas anomalias em relação aos demais corpos dentro da obra, tendo em vista
as concepções do autor sobre raça e sua ligação com a propensão ao crime e
à bestialidade (ALENCAR, 2013), é importante observar a terceira e última
menção à alimentação em um personagem negro: o caso do Punaré.
Assim como alguns outros poucos homens negros em que se demora
alguma descrição, ele é dito nos termos da força bruta, da “feia catadura” e do
“olhar feroz”. Pior: do crime abominável, e do qual não se arrepende, de devorar
uma criança, “com mel de abelhas”, não só no auge da fome, mas “por espaço
de três dias” (TEÓFILO, Op. cit., p.339). Tudo muito brutal, e partindo de um
negro livre, na única vez em que um personagem descrito como negro alega
sentir fome.
Nisso talvez resida a chave de compreensão de todos os pontos percor-
ridos até aqui: a aviltante situação a qual com relativa passividade os negros se
sujeitavam, disciplinados à fome e tutorados por seus senhores, representava
um arcaísmo social que deveria cair, como militou ativamente o autor, e como
já havia caído na época da publicação do romance; mas, embora correta e
necessária, lançaria a abolição à sociedade esses corpos negros, propensos ao
crime e de moral torpe, e agora “desatrelados” de todo o sistema que os reprimia.
Ainda mais, iriam, no caso dos provenientes de zona rural, engrossar o número
de flagelados e retirantes, majoritariamente já constituídos por mestiços,
indígenas e negros, e não tendo a índole racialmente superior de um Manoel
Freitas, seriam outros Punarés, decaídos a suas instintivas, violentas fomes.
Toda essa imagética descritiva, então, constitui condutivos argumentos
que, juntamente às vigorosas críticas à má gestão governamental do período
de seca, apontavam para a necessária criação de mecanismos eficientes de
controle dessa população, mais do que aqueles existentes focados no uso dos
corpos para algum trabalho público, mas em algum combate mais efetivo ao
efeito da seca antes de chegar a situações tão extremas.
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2. FAMÍLIA E DISCIPLINAMENTO
Um dos elementos sempre presentes na literatura das secas é a família.
Ainda que tema muitas vezes central nas mais variadas obras literárias e outras
artes, ela carrega um papel específico dentro dessas narrativas, que não deve
ser analisado isoladamente. É um receptáculo natural da moral em seu estado
mais frágil, evocando do público empatia e revolta contra seus agressores, assim
como é um meio indisputável para as relações de poder.
Não escolhemos abordar esse tema por acaso. Nos tempos de fome
apresentados pelos romances naturalistas, a fragilização da família significa,
sobretudo, uma perda e uma decadência moral sinalizada pela perversão dos
papéis familiares. Partindo para a análise desse tema dentro das obras literárias e
articulando-a com Foucault, podemos perceber que essa relação vai muito além
de uma denúncia ética sobre os males das secas. Analisaremos aqui como os
saberes e discursos sobre a família são formados e articulados através dos corpos
de seus membros e daqueles que fogem de uma estrutura familiar burguesa.
Podemos perceber melhor esse efeito ao analisarmos os personagens
escravizados. Quando não são apenas elementos da paisagem, esses indivíduos
não são pensados como membros de uma família, seja a de seus donos, seja a
de um núcleo propriamente deles. Uma exceção é o caso de Felipa, cuja loucura
decorre, em parte, da perda da filha. Como colocado no tópico anterior, em
“A Fome” (TEÓFILO, Op. cit.) há uma ideia de relação “quase familiar” entre
senhor e escravizado, mas a forma senhor-propriedade prevalece. Se pensarmos
a partir do moralismo em torno das relações consideradas familiares, com pai
e mãe casados e com filhos legítimos, entre a santidade do casamento e um o
imaginário de promiscuidade na senzala, podemos supor o porquê da ausência
do tema da família escrava nessa literatura. Era parte de um imaginário que já
não percebia e negava características familiares aos negros escravizados.
Em “Da Senzala à Colônia”, Emília Viotti da Costa discute a questão
da família escravizada tanto nos censos como na historiografia. Segundo a
autora, a senzala foi constantemente acusada de promiscuidade, de forma que a
historiadora trabalha a possibilidade de dinâmicas familiares entre escravizados
que não seriam suportadas pelo modelo padrão de bigamia, privilegiado nos
discursos. Ao contrário, os escravizados estabeleceriam diferentes relações com
a castidade e com os casamentos, como a concubinagem, por exemplo (COSTA,
1998). Como o tema da família é intrínseco ao da moral, e os escravizados
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(dentro de um imaginário) fugiriam dela, aí estaria uma explicação para a
ausência da família escrava na literatura das secas que trata o século XIX.
Afinal, os temas abordados nessas obras não são gratuitos e limitados a
sensibilizar seu público. Aqui não podemos também deixar de pensar Foucault.
Os corpos como alvos de produção de saberes não poderiam ficar ilesos dos
discursos produzidos pelos autores. Quando pensamos nesses objetos, sobre-
tudo na sua relação com o imaginário burguês de família (ainda presente),
estamos lidando com mecanismos e estratégias de poder que as elites procuram
(re) estabelecer sobre os sertanejos que saíram de controle. Retomando mais
uma vez o tópico anterior, a escravidão já era uma forma de controle. Portanto
as questões privilegiadas na literatura visavam as pessoas livres, sob um meca-
nismo de controle menos evidente e que então estava em crise: a família.
Os pais, provedores e fortes por excelência, são acometidos pela fraqueza,
pela impotência e pela impossibilidade de sustentar seus dependentes. Esposas
e mães perdem sua natureza materna e zelosa, e obviamente seus destinos
se confundem com os dos filhos: o leite seca, são incapazes de cuidar das
próprias crias e veem-se obrigadas a abandonar sua prole à sina da morte ou
do desgarramento. Ou então perderem, ainda, sua virtude e entregarem-se
à prostituição, seja para cuidarem da família que lhes resta, seja apenas de si
mesmas. Em “O Quinze”, após uma mulher “se atrever” a andar a cavalo no sol
quente, é dito: “Mulher lá é gente para andar no mato!” (QUEIROZ, 2012, p. 65).
Ao final do livro, Conceição indaga seu destino e conclui: “Afinal, o verdadeiro
destino de toda mulher é acalentar uma criança no peito...” (Ibid., p. 81). Até
o exemplo de familiaridade entre escravizados (TEÓFILO) surge entre duas
mulheres, mãe e filha. A humanização das escravizadas se dá, em parte, pela
maternidade. Em “A Fome”, um personagem, ao criticar as frentes de trabalho,
acaba trazendo conclusões em relação aos papéis de gênero:
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Fome” e “Os Retirantes” objetivaram realizar críticas à sociedade, e, por isso,
denunciaram a degeneração moral que, segundo eles, ocorreu diante da seca,
já que esta, por sua vez, implicou em situações de fome extrema. Ao mesmo
tempo, os autores criticaram a corrupção daqueles que estão em situações de
poder e se aproveitam da perversão dos retirantes. É posta, então, uma relação
direta entre a fome e a perversão, pois a fome dos retirantes supostamente
incide na dissolução da honra e dos bons costumes. Os seguintes trechos fazem
referência a essa associação:
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estágio, precisamente aquele do desespero famélico, eles perdem a polidez dos
costumes familiares (primeiro sentido), degeneram-se moralmente e podem
cometer atrocidades contra seus semelhantes (terceiro sentido).
Segundo Neves (Op. cit.), a ideia de que as relações familiares são distor-
cidas pela fome parte, ainda, de uma idealização da vida familiar, em que a
“harmonia” do campo é distinguida das “desavenças” da cidade. Aparece, então,
a honra feminina como um ponto fundamental (Ibid., p. 182). Por conseguinte
a crítica da prostituição é feita de maneira recorrente por meio da idealização
da castidade feminina,.
Nas narrativas de “A Fome” e “Os Retirantes” é feita a mesma distinção:
por um lado, há a personagem que representa a castidade feminina idealizada,
e, por outro lado, há a personagem que se entrega à “perdição”. Em “A Fome”, a
distinção castidade/perdição é feita com Carolina e Vitorina. Carolina aparece
como representação da moça honrada e casta, enquanto Vitorina, apesar de
ter sido alvo dos mais atrozes abusos, aparece como símbolo da perdição. Em
“Os Retirantes”, a oposição castidade/perdição é feita através de Irena e Eulália,
respectivamente. O caso de Eulália e Irena é bastante ilustrativo, uma vez que
ambas passaram por situações de miséria, porém uma delas não cedeu na sua
honra casta, enquanto a outra se prostituiu para dar o sustento para a família.
Desse modo, quando se fala de Irena, é dito que “do seu todo de mendiga
exalava-se um perfume celestial de honestidade heroica, que enchia todo o aposento
de um extremo recato virginal” (PATROCÍNIO, Op. cit., p. 204). Enquanto Eulália,
sentindo-se no dever de sustentar sua família, compara suas opções:
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considerados abastados antes da seca e os retirantes pobres. Os protagonistas se
encontram no primeiro caso e são testemunhas da bestialização dos que antes da
seca já eram miseráveis. As prostitutas e os delinquentes pertencem ao segundo
grupo. Ainda é necessário atentar para a condição racial, especialmente em
Teófilo, e para o tratamento distinto dado ao negro livre e ao negro escravizado
na obra: são os primeiros que, livres das correntes que controlam sua selvageria,
comem a carne de uma criança com mel, por três dias (TEÓFILO, Op. cit.,
p. 339). O desmantelamento da família é degradante, mas a realidade é pior
para aqueles que não têm uma estrutura familiar nos moldes burgueses: a
prostituição, a mendicância e a morte assolam estes primeiro.
Podemos articular essa representação da família (e dos sem família)
com os ideais civilizatórios de uma minoria fortalezense, iniciados na segunda
metade do século XIX e que vão de encontro às levas de flagelados. A soma
das aspirações urbanas com as mudanças causadas pelas secas e as acentuações
graves de atitudes dissidentes anteriores como aumento na prostituição, no
número de órfãos entre outros, contribuiu para que se repensasse e criticasse
a família tradicional no campo. Assim, a antítese barbárie x civilidade se dá
também através dos moldes familiares.
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“‘contaminando’ a cidade com sua miséria explícita, suas doenças, seus ‘vícios’,
sua fome, seus crimes e sua ofensiva ameaça à civilização” (Ibid., p. 25). A partir
de então, foram incorporadas mudanças ao imaginário social, na medida em
que se configuraram novas estruturas de sentimentos em relação à pobreza
urbana (NEVES, 2005). Concomitantemente, foi difundida uma série de saberes
sobre os retirantes com o intuito de amenizar os efeitos da seca e controlar
os retirantes (NEVES, 1995). Esses saberes esboçam relações entre a miséria,
característica da condição famélica dos retirantes, e a degradação moral, que
supostamente incide na perversão e na ocorrência de crimes, de modo que:
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notoriedade são os protagonistas, todos descendentes de famílias abastadas,
de maneira que esses personagens passam por conflitos existenciais entre a
honra e a decadência moral. Os outros retirantes – sertanejos pobres, diga-se
de passagem – não tem face nem história, já aparecem desde o início como
degenerados. Somente “O Quinze”, escrito por Rachel de Queiroz, difere neste
quesito. Pois, se em Teófilo e em Patrocínio o retirante pobre não tem nome
nem personalidade, em Rachel de Queiroz um retirante pobre é protagonista
(Chico Bento), e o preconceito dirigido ao retirante é questionado, o que revela
a mudança característica do Romance de 30.
Há de se considerar, então, que o romance de Teófilo, ao misturar traços
do romantismo e do naturalismo, compõe dois níveis narrativos, cada qual
referente às condições de classe específicas atribuídas aos personagens: por
um lado, propõe uma estética romântica para a narrativa sobre os retirantes
originários de famílias abastadas, em que a honra e a moralidade são idealiza-
das; por outro lado, propõe uma estética naturalista para o trato narrativo dos
retirantes pobres, de modo que o grotesco e a animalização são constantemente
postos em evidência. (MARQUES, 2016)
Desse modo, a estrutura do romance acaba por incorporar distinções de
índole e caráter relativas às questões de classe, a partir das quais se distingue
a moralidade de pobres e ricos. Observamos que o protagonista de “A Fome”,
Manuel de Freitas, oriundo de família abastada, repudia a mendicância e a
obtenção de víveres através da esmola. Concomitantemente, Freitas coloca o
trabalho como único meio digno para suprir a fome. O mesmo, porém, não
acontece em relação aos retirantes pobres, já que são narrados pelo autor como
se não somente aceitassem a esmola, mas como se implorassem por ela.
Os romances naturalistas retratam a seca como uma natureza hostil que
é indiferente aos desejos dos homens, pois transforma o sertanejo em retirante
e o deixa exposto às mais cruéis privações materiais características do estado
famélico. Diante do desespero pela falta da alimentação, ele supostamente libera
seus instintos animais, resultando no desmoronamento dos valores morais
que constituem a ordem da propriedade privada e da preservação familiar.
(COSTA, 2020) É postulada, portanto, uma relação direta entre a condição
famélica e a degradação moral. Tal relação é observável em muitas seções dos
livros, aparece frequentemente nas descrições dos retirantes, em que estes são
representados não como seres humanos, mas como seres bestiais. Adiante,
serão expostas algumas dessas seções. Da seguinte maneira são descritas as
multidões de retirantes que vagam pelos sertões à procura de chegar à capital:
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O préstito dos famintos era agora considerável. Naquela imensa
procissão viam-se indivíduos de todas as idades. Acossados pela
fome, seguiam caminho da Fortaleza, a reclamar a assistência
pública. Indivíduos de todas as castas se confundiam ali. Haviam
perdido o senso íntimo e deixavam-se dominar pelas necessida-
des da animalidade. (TEÓFILO, Op. Cit., p. 47)
20
que eram conduzidas aos celeiros. Quando um punhado maior
de legumes perdia-se no chão, se lançavam sobre as sementes
com uma gula de sumo, disputando o maior número de grãos.
Nessa luta acotovelavam-se, esmurravam-se. Às vezes acontecia
afundar das aduelas dos barris de mel, que do porto eram levados
ao comércio, e o liquido vazando caia e se misturava com o lixo
das ruas; os famintos agrupavam-se e lambiam as pedras meladas
até deixarem-nas completamente enxutas! (Ibid.)
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seus filhos sob o pretexto de matar sua fome e a do outro filho. No momento
anterior ao ato do crime, é descrito que ela foi abandonada pela família e
encontrava-se num estado de desespero famélico junto dos seus dois filhos.
O autor descreve que o ato do crime foi perpassado pelo remorso, porém, em
determinado momento, a personagem chega a um ultimato: “salva-te matando,
porque a morte é a única solução que te resta” (Ibid., p. 96). O crime é descrito
da seguinte maneira:
22
4. CONTROLE SOCIAL AOS RETIRANTES
No último tópico foi analisado como as representações literárias trataram
os retirantes como indivíduos perigosos e propensos a se tornarem malfeitores.
Neste tópico, a pretensão é expor como essas representações se relacionam com
as práticas que objetivaram controlar os retirantes. A tarefa, entretanto, não é
simples. Pois os autores teceram duras críticas a essas práticas, ao mesmo tempo
em que representaram os retirantes como degenerados. O dilema da questão
incide no fato de que os autores criticaram as políticas estatais, mas veicularam
representações que talvez justificassem essas mesmas políticas. Diante da
situação, consideramos necessário situar as relações de poder envolvidas no
lugar de produção dos discursos.
Segundo a pesquisa de Frederico Neves (2005), durante a seca de 1877, o
impacto causado pela chegada de milhares de retirantes em Fortaleza modificou
a estrutura de sentimentos que os habitantes da cidade tinham em relação aos
sertanejos pobres, de modo que os sentimentos em relação a eles passaram a
ser de repugnância e de pavor. Teófilo reproduz esses sentimentos de pavor em
“A Fome”, no momento em que Manuel de Freitas, ao observar “o cortejo da
miséria que desfilava pelas ruas de Fortaleza, quase esmorecera. Uma multidão
de criaturas de todas as idades e de todos os sexos, trôpegas, escaveiradas,
seminuas, enchia a cidade, a pedir esmolas” (TEÓFILO, Op. cit. p. 160).
Com efeito, diante do sentimento de pânico instaurado na cidade, cons-
tituem-se uma série de saberes sobre os corpos dos retirantes. Esses saberes
os consideram perigosos, seja no sentido do conceito de “Classes Perigosas”
(CHALHOUB, Op. cit.), seja no quesito de que a fome dos retirantes é entendida
como “um campo propício para o desenvolvimento de perversões éticas de todo
tipo” (NEVES, 1995, p. 99). Até agora, no decorrer do artigo, foram expostos
em que medida os saberes constituídos sobre os retirantes, a partir da seca
de 1877, os trataram como bárbaros. Deste modo, os romances naturalistas
aqui analisados acabam por reiterar os saberes circundantes na época, pois
consideram que a condição famélica dos retirantes incide na perversão e na
degradação moral, conforme vimos no tópico anterior.
Durante o período compreendido entre 1877 e 1932, esses saberes engen-
draram uma série de práticas que tiveram como fim controlar os retirantes e
preservar a ordem da cidade. Eles atingiram sua culminância nos campos de
concentração de 1915, quando operaram o poder disciplinar com o intuito
23
de isolar os retirantes do resto da cidade. O ápice dessa prática, porém, só foi
durante a seca de 1932, quando os campos funcionaram como dispositivos
disciplinares que impuseram controle aos corpos e aos hábitos dos retirantes.
(NEVES, Op. cit.)
Durante a seca de 1877-1880, porém, esses saberes ainda não tinham tal
grau de aperfeiçoamento no controle aos retirantes, de modo que o controle foi
feito a partir de duas maneiras: por um lado, através do assistencialismo pater-
nalista que organizou distribuição de alimentos a partir dos abarracamentos;
por outro lado, por meio das frentes de trabalho que coagiram os retirantes
ao trabalho em troca do socorro público. (NEVES, 2003b). Ambas as medidas
aparecem nas ficções das secas.
No que se refere às frentes de trabalho, a sociedade da época compreendia
o trabalho como “um meio de livrar o povo da ociosidade” (NEVES, 2003,
pp. 182), pois a ociosidade era compreendida como geradora de vícios e de
perturbações à ordem pública. O trabalho realizado pelos retirantes foi então
aproveitado em prol das reformas urbanas de fortaleza, já que os retirantes
significavam uma mão de obra barata. Sobre isso, Neves conclui que:
24
abandona a concepção de que o ócio é gerador do vício e da perversão, pois
rejeita contundentemente a ideia de esmola, ao passo que considera o trabalho
o único meio legítimo para obter alimento, conforme foi exposto no tópico
anterior. Neste sentido, Teófilo critica as frentes de trabalho, mas não difere
delas na compreensão sobre o ócio e o trabalho.
As outras políticas de controle aos retirantes foram os abarracamentos e
os campos de Concentração. É importante, porém, indicar quais são as diferen-
ças entre eles. Com efeito, há uma linha de continuidade que os une (NEVES,
1995), já que ambos constituem saberes sobre os retirantes e são práticas
de restrição à circulação dos retirantes na cidade, ao mesmo tempo em que
distribuíram o socorro público. Entretanto, enquanto os abarracamentos foram
distribuídos de maneira difusa na cidade, por terem sido organizados diante
de uma conjuntura inesperada, os campos de concentração representaram, de
maneira decisiva, “a vitória dos saberes médico-urbanísticos” (Ibid. p. 101) sobre
a gestão do espaço urbano, no que se refere às políticas de combate às secas.
Desse modo, os campos de concentração foram dispositivos de isolamento que
operaram o poder disciplinar na medida em que buscaram concentrar e vigiar
a suposta barbárie dos retirantes.
Sobre os abarracamentos, a crítica de José do Patrocínio a eles acontece
a partir de duas vias: por um lado, ele critica a corrupção dos comissários
responsáveis por organizá-los; por outro lado, ele coloca esses lugares como
aqueles em que ficam os degenerados, ou seja, os bárbaros. Segundo ele, “O
abarracamento tinha capacidade para mais de uma dezena de milhar em
vastíssimos telheiros, sob os quais viviam os retirantes numa promiscuidade
de animais” (PATROCÍNIO, Op. cit., p. 171).
Rachel de Queiroz, por sua vez, critica o abandono do Estado em relação
aos retirantes. Contudo a impressão da personagem Conceição sobre o Campo
de Concentração é bastante semelhante às descrições de Patrocínio:
25
Fome” exprime, sobre os abarracamentos, um juízo de valor: “-Se eu morrer
prefere, com os filhos, acabar-te de miséria a ir para um abarracamento”
(TEÓFILO, Op. cit., p. 160).
Porém, cabe ainda destacar, os abarracamentos e os campos de concentra-
ção não foram somente os espaços onde ficava isolada a barbárie, foram também
os locais onde morriam os bárbaros. Afinal, “era mais fácil morrer no campo do
que fora dele!” (NEVES 1995, p. 100). No seguinte trecho, Rachel de Queiroz
critica as altas taxas de mortalidade presentes no Campo de Concentração:
26
Portanto, ao mesmo tempo em que se afirma uma vida qualificada, se exclui
a vida nua da política.
No que se refere ao drama dos retirantes e ao medo que os cidadãos
supostamente civilizados de Fortaleza tinham em relação aos retirantes, é obser-
vável que a preservação da vida qualificada de Fortaleza implica na exclusão
dos retirantes que passam a ficar contidos nos campos e nos abarracamentos,
portanto, abandonados à morte. Tal relação de abandono é explícita nas palavras
críticas de Rodolfo Teófilo. Após milhares de retirantes morrerem durante os
surtos da fome e da varíola, é dito: “Morreu gente como formiga e não fez falta!”
(TEÓFILO, Op. cit., p. 279)
Concluímos, então, que os três autores (Teófilo, Queiroz e Patrocínio)
criticaram o abandono do Estado aos retirantes, pois este abandono, segundo
eles, resultou na morte de muitos retirantes. Neste sentido, as críticas feitas pelos
autores se assemelham muito à reflexão de Mbembe sobre a necropolítica, pois
se esta implica que “por um lado, se reduza o valor da vida e, por outro, se crie
o hábito da perda” (MBEMBE, Op. cit. p. 65), com efeito, os autores criticaram
o fato de relação semelhante ter sido estabelecida com os retirantes.
Entretanto uma sociedade que se diz civilizada, mas comete, ao mesmo
tempo, violência contra o outro, de modo a destituí-lo de sua humanidade, não seria
ela tão bárbara quanto aquela que critica? Afinal, conforme vimos neste tópico, é
concebida que uma forma de humanidade deve ser excluída para que outra possa
prevalecer. Não seria esta exclusão tão violenta quanto a suposta barbárie atribuída
aos retirantes? O próximo tópico busca responder a essas questões.
27
contra a ideia de que o retirante é bárbaro, pois tem como tema principal a
trajetória de Severino, tomado no início da poesia como um qualquer.
Nesse trecho é muito madura a ideia de João Cabral de Melo Neto, autor
da obra, que afirma que o retirante não tem a mínima intenção de destruir
ou saquear a cidade em que pretende chegar. Neste sentido, o autor toma
posição contrária às outras obras que trabalharam o retirante como agres-
sivo e animalizado.
Embora o tema da barbárie apareça somente nas entrelinhas da poesia
de Melo Neto, antes de nos atermos ao texto, é necessário entendermos como
se configura um ato de barbárie e como o um bárbaro muitas vezes fábrica o
outro como bárbaro. O autor Francis Wolff trabalha o conceito de “barbárie”
a partir de três sentidos. Sobre o primeiro, ele afirma o seguinte:
28
Para sua surpresa, além da comida já domada, tinha um elemento
novo e assustador: O GARFO. Segundo Muriçoca, Cassiano nunca
tinha visto um objeto daqueles: medonho, perigoso. Não sabia que,
para comer como um soldado, precisava de tudo aquilo na mesa.
Nem ele, nem seus amigos estavam certos do que deveriam fazer
com o utensílio que mais parecia a arma do diabo; e ainda mais
assustador, afinal, tinha quatro dentes. (Ibid., p. 100).
29
E não tardaram a aparecer
Os defuntos que ainda hoje
Vão chegar (ou partir, não sei).
(MELO NETO, Op. cit., p. 93)
É a gente retirante
Que vem do Sertão de longe
Desenrolam todo o barbante
E chega aqui na jante
E que então ao chegar
Não tem mais o que esperar
Não podem continuar
Pois tem pela frente o mar
Não tenho de trabalhar
E muito menos onde morar
E da maneira que está
Não vão ter onde de se enterrar
(Ibid., p. 97)
30
Novamente é citado que não há trabalho na cidade para o retirante,
logo ele apenas polui as ruas e becos da cidade com a sua presença, sendo um
bárbaro, mas não aquele bárbaro que conhecemos das aulas de história, não o
bárbaro agressivo, germânico, que invadiu Roma. Aqui, é o bárbaro que tem
em toda sua feitura a violência aos olhos ditos “civilizados”.
Eu também, antigamente
Fui do subúrbio dos indigentes
Eu uma coisa notei
Que jamais entenderei:
Essa gente do sertão
Que desce para o litoral, sem razão,
Fica vivendo no meio da lama,
Comendo siris que apanha:
Pois bem: quando sua morte chega
Temos de enterrá-lo em terra seca
(Ibid., p. 97)
CONCLUSÃO
No decorrer do artigo, foram expostas duas figuras que representam
a barbárie na medida em que foram consideradas opostas à civilização. São
essas duas figuras o negro escravizado e o retirante pobre. O escravizado, com
efeito, é entendido como sub-humano a partir de um paradigma racial que o
considera inferior ao homem branco, de modo que recebe todos os sentidos
atribuídos à alcunha de homem “Negro”, tal qual pensou Achille Mbembe
(2014.). O retirante, por sua vez, se torna bárbaro devido a sua condição famé-
lica, pois sua fome supostamente incide na degradação moral e na perversão
dos valores familiares.
31
Com o intuito de conter os “bárbaros” e preservar a “civilização”, a
sociedade, por um lado, operou a escravidão para os negros, e, por outro,
destinou abarracamentos e campos de concentração para os retirantes pobres.
Entretanto, apesar de tal sociedade se dizer “civilizada”, não seria ela “bárbara”?
Na medida em que age de maneira violenta contra o outro, de maneira a não
considerar sua humanidade?
A partir desse questionamento, foi feita a reflexão do último tópico,
em que foi abordado o livro “Morte e Vida Severina”. Pensar desta maneira é
retomar a reflexão de Francis Wolff (Op. cit.), pois ele mesmo critica a ideia de
civilização, já que considera a violência contra o outro um traço da barbárie.
Neste sentido, portanto, mesmo que uma sociedade diga a si mesmo que é
“civilizada”, por causa dos seus supostos refinamentos culturais e sociais, ela
pode ser considerada “bárbara” se não tolerar a diversidade e violentar o outro
por ser diferente.
Nesse raciocínio, mesmo que a sociedade fortalezense aspirasse sua
modernização e considerasse os retirantes como “bárbaros, quando essa socie-
dade estigmatiza os retirantes e os isola nos abarracamentos e nos campos de
concentração, deixando-os abandonados à morte, ela acaba por ser tão bárbara
quanto os alvos de sua crítica, pois não os tolera e os violenta.
Os romances naturalistas, embora tenham tido, em muitos momentos, o
intuito de criticar a corrupção do governo e a crueldade da escravidão, eles acabam
por reiterar os pressupostos que consideram os escravizados e os retirantes pobres
como bárbaros, pois reiteram o escravizado como uma figura sub-humana por
sua condição racial, e, sobre aos retirantes, eles os representam como degenerados
e perigosos. Os únicos livros analisados que destoam desses pressupostos são
os livros de Rachel de Queiroz e de João Cabral de Melo Neto, pois, enquanto
romances naturalistas consideram os retirantes a expressão da barbárie, Queiroz
e Melo Neto não estigmatizam os retirantes, pois suas críticas são dirigidas de
modo a questionar o próprio estatuto de barbárie atribuído ao retirante.
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34
Os “loucos da fome”:
estratégias biopolíticas,
táticas anti-disciplinares e
criação do imaginário sobre
fome e loucura
Antonio Maurício Martins Neto1
Carolina de Fátima Linhares Augusto2
INTRODUÇÃO
35
estigmatização/violência contra pessoas consideradas loucas seguem sendo
produzidas em massa pelo sistema social. Entretanto basta que essas pessoas
sejam encarceradas e escondidas, para que suas existências sejam esquecidas
e para que volte a vida ao normal.
Desse modo, a partir de fontes hemerográficas e orais, desenvolvemos
uma reflexão sobre os “loucos da fome” (GUIBU, 1998b. Folha de São Paulo,
31/05/1998) e sobre a assistência pública em Saúde Mental destinada a eles
(principalmente a partir da Casa de Saúde Santa Teresa), entendendo a
produção social desses sujeitos e a produção dos problemas sociais que eles
encarnam a partir da ordem classista e da norma social. Em suma, buscamos
analisar, inspirados nos trabalhos de Michel Foucault, a rede de disciplina que
construiu a noção de “loucos da fome” e que acabou por enquadrá-los. Não
obstante, investigamos a “rede de antidisciplina”, destacada por Michel de
Certeau (CERTEAU, 1986), pela qual os sujeitos enquadrados como “loucos
da fome” jogam suas “táticas” contra o poder disciplinar numa tentativa de
resistirem a ele, apesar de não poderem dele escapar.
A matéria jornalística, publicada na Folha de São Paulo em 31 de maio
de 1998, trouxe reportagens feitas por Fábio Guibu, correspondente da Folha
em Ouricuri - PE, Alexandre Belém, Fabiana Pereira e Elaine Kawagoe. Foram
elas as seguintes:
• “Seca e fome acirram distúrbios mentais: Procura por hospitais psiquiá-
tricos aumenta entre 20% e 30%; maioria de doentes são trabalhadores rurais”
(GUIBU, 1998a);
• “‘Fico querendo me vingar do mundo’: Fome leva mulher a tentar comer
gilete” (GUIBU, 1998b);
• “Agricultor teme que seus filhos sejam ‘contagiados’ por loucura”
(BELÉM, 1998);
• “Seca atinge 10 milhões” feita por Agência Folha” (Folha de São Paulo,
31/05/1998);
• “Dieta ‘monótona’ pode provocar demência. Desnutrição, como a sofrida
por flagelados do Nordeste, pode causar distúrbios e afetar a próxima geração”
(KAWAGOE; PEREIRA; 1998).
A partir dessa matéria, desenvolvemos uma problemática histórica a
respeito da suposta relação de causa e consequência entre “fome” e “loucura/
doença mental” que a reportagem sugeriu. Em um primeiro momento, no
36
tópico “A tríade seca-fome-sertão e a ‘doença mental’: como a modernidade e
o saber científico moldam imaginários?”, debatemos o que a institucionalidade
normatizadora moderna tem a ver com a construção de um imaginário que
toma a seca, a fome e o sertão como sinônimos, associando-os com a noção
médica de “doença mental”.
Diante do entendimento das relações de força presentes na construção
da tríade “seca-fome-sertão” juntamente com a noção de “doença mental”,
pudemos esboçar nossa tese principal: “Os ‘loucos da fome’: a construção
histórica da relação fome e loucura”. Neste tópico, procuramos entender como
saberes específicos construíram um imaginário sobre esses sujeitos (“loucos da
fome”). Conduzimos essa reflexão a partir das fontes hemerográficas já citadas,
e, junto a elas, fontes orais produzidas por nós através de entrevistas feitas com
algumas pessoas, todas residentes no Crato, que tiveram suas vidas de alguma
forma entrelaçadas com a já citada Casa de Saúde Santa Teresa. Essa instituição
figura com destaque na reportagem de Guibu e, concomitantemente, na nossa
análise. Ela foi a primeira instituição que funcionou como hospital psiquiátrico
na cidade, fundada em 1970 e fechada em 2015 (CUNHA, 2013).
No último tópico: “A assistência governamental aos ‘loucos da fome’:
internamentos, disciplina e produção de consensos”, também através das fontes
hemerográficas e orais, conduzimos um debate partindo dessa instituição espe-
cífica, tentando entender os sentidos do poder governamental3 nas políticas
assistenciais que se destinaram a esses “loucos da fome”.
37
nesse órgão, reuniu conhecimentos pretensamente científicos acerca do lugar
sertão e do sertanejo, a fim de modernizar a região interiorana, aproximando-a
da cidade. Em “O progresso descobre o sertão”, o historiador Kleiton de Sousa
Moraes (MORAES, 2018) analisa os primeiros anos de funcionamento do órgão,
entendendo que se tratou da exploração e da construção do sertão legitimada
institucionalmente. A IOCS reuniu cientistas de várias partes do mundo e
organizou missões de mapeamento do sertão, cujos relatos foram destrinchados
no trabalho em questão, a fim de explicitar como o imaginário tanto sobre o
sertão quanto sobre o sertanejo foi germinado ali pelos exploradores.
Nesse sentido, percebemos a intenção de um projeto de urbanização de
tal espacialidade, uma vez que, em discurso estatal, só assim se poderia criar
uma nação científica e moderna. É inegável o fenômeno da modernidade como
estruturante na missão de “civilizar” o sertão (tanto o espaço sertanejo como
os comportamentos dos sertanejos) a fim de produzir uma nova ordem, uma
nova nação, calcada no progresso. É igualmente seguro afirmar que, apesar
dos esforços da IOCS, os discursos sobre o território não foram homogêneos,
mesmo entre os cientistas do órgão, pois, ainda que o objetivo em comum fosse
o de “civilizar” o espaço em termos europeus, não existiu consenso acerca de
como se relacionam os sertanejos com seu ambiente, isto é, a influência de um
sobre o outro. Tampouco existiu consenso sobre o que seria o sertanejo, dado
que a ideia também foi uma construção. Contudo a instituição foi fundamental
na tarefa de disseminar a relação histórica entre sertão e fome, por conta da
seca, tornando os três elementos quase sinônimos, o que não é de todo verdade.
Josué de Castro, em “A Geografia da Fome” (CASTRO, 1984), nos eviden-
cia como foi naturalizada essa relação entre sertão, fome e seca. Ao mapear
as áreas da fome no Brasil e tratar o sertão nordestino como lugar de fome
“epidêmica”, o autor argumentou que a seca não é o fenômeno único ou mesmo
determinante da fome no Nordeste. A seguinte seção expressa este argumento:
38
problema da fome às questões naturais e geográficas, é possível encaminhar
uma percepção da fome como um problema social que ainda não se resolveu,
pois a criação da IOCS, ainda em 1909, se deu pensando no progresso da nação.
Diante disso, é visível que o embalo da modernidade esteve influindo nas
perspectivas criadas sobre o sertão nordestino e o próprio sertanejo. Em vias de
institucionalidade, o poder estatal moderno ainda adota políticas de exclusão e
de estigmatização ao ser social que foge do padrão comportamental instituído
pela ideologia do progresso, da nação e da civilização. A estrutura de exclusão,
moldada a partir dessas políticas, costura a pretensa nosologia psiquiátrica com o
estado psíquico dos flagelados pela fome, enquadrando esses indivíduos a partir
de uma mesma matriz filosófica disciplinar: a moderna, com foco no “saber
oficial”, valorizando padrões de comportamento e civilidade. É nesse momento
que a fome e a loucura são enlaçadas, produzindo um “tipo social”, como nos diz
Josué de Castro: os “loucos da fome”, que problematizaremos posteriormente.
Se a tríade sertão-seca-fome não é natural e pôde ser exposta a partir
de suas relações de poder, também é necessário fazer o mesmo exercício com
a loucura e com a noção de “doença mental”, pois elas também são históricas.
Afinal, as diferentes crenças, costumes, experiências e as formas de relaciona-
mento entre pessoas e grupos sociais acabam por elaborar diferentes visões de
mundo e, concomitantemente, do que se entende por loucura. Dessa forma,
as concepções de loucura não são as mesmas ao longo do tempo e do espaço.
É por isso que, quando analisamos a ideia de loucura embasada na noção de
“doença mental”, investigando os saberes, discursos e poderes envolvidos na
formulação dessas classificações psicopatológicas, consideramos que ela é uma
construção histórica específica e estritamente vinculada a valores morais da
nossa sociedade moderna (OLIVEIRA, 2016).
Essa construção ocorreu inicialmente a partir de fins do século XVIII, a
priori na Europa ocidental, e, em décadas e séculos posteriores, ela foi empreen-
dida em outros continentes no processo denominado Institucionalização da
loucura, quando esse termo foi definido como “doença mental”, noção embasada
principalmente pela Psiquiatria que se constituiu como ciência na mesma época.
Essa ciência psiquiátrica se fez na mesma medida em que fomentou um corpo
teórico e nosológico sobre as novas “doenças”, com foco na classificação de dife-
rentes patologias, as quais eram catalogadas na medida em que eram definidas
discursivamente, reconhecidas entre os pares e “comprovadas” empiricamente
através de experimentos com os “doentes”. Estas operações definiram a chamada
39
“Psiquiatria clássica”, alicerçada em três bases: 1) esse aporte teórico, legitimado
a partir da noção de discurso verdadeiro, 2) o poder jurídico, o qual confirma
o “saber oficial” da Psiquiatria e 3) a Instituição asilar regida internamente
segundo as regras do poder médico (FOUCAULT, 2006; OLIVEIRA, 2016).
Contudo não podemos entender em profundidade esse mecanismo da
Psiquiatria somente a partir da Instituição asilar, nem somente a partir do
discurso teórico, pois “é a partir do funcionamento desse poder disciplinar
que se deve compreender o mecanismo da psiquiatria” (FOUCAULT, 2006,
p. 52). Essa disciplina tem como objeto a virtualidade dos comportamentos
das pessoas, de modo que pretende, a partir do controle dirigido aos seus
corpos, organizá-los sob uma norma cujo objetivo é a produtividade geral da
sociedade no trabalho para produção de riquezas e, assim, a reprodução da
ordem social classista do mundo capitalista. Essa norma provém de alguma
instituição regulada por profissionais com saberes especializados, portanto ela
pode ser norma policial, psiquiátrica, jurídica, governamental ou educacional.
Como Machado de Assis tão bem ficcionou em “O Alienista”, a própria noção de
desrazão foi instituída e inventada pelo pensamento de uma razão exacerbada,
própria de algumas ciências como a Psiquiatria (ASSIS, 2017).
Esse poder disciplinar, disseminado nos séculos XVII e XVIII, gene-
ralizou-se no século XIX e tornou-se a forma geral do poder político/poder
individual. Foi a partir dele que se fomentou a noção contemporânea de
indivíduo, pois nele o poder político passou a investir diretamente nos corpos
humanos: “o corpo, seus gestos, seu lugar, suas mudanças, sua força, seu tempo
de vida, seus discursos [...]” (FOUCAULT, 2006, p. 69). Tudo isso foi feito (e
ainda o é) a partir de um conjunto de Instituições e saberes que tudo registraram
(para tudo saber) sobre os indivíduos, utilizando esses conhecimentos para
melhor geri-los e dominá-los.
Retomando a ideia de desnaturalização da tríade seca-fome-sertão,
podemos ver que nela também existem semelhanças sobre como o poder é
utilizado para criação da norma/ordem. No caso da IOCS, não se tratou de
uma Instituição disciplinar (espaço físico fechado), mas, sim, de uma Instituição
estatística, igualmente importante para os objetivos do poder instituído, pois ela
foi um instrumento técnico fundamental para que o Governo gerenciasse, de
modo racional e planejado, a população daquela territorialidade, na tentativa
de construir uma nação “moderna” e “civilizada”, já que esses métodos foram
os executados para formar as nações “civilizadas” da Europa ocidental.
40
Dessa forma, acumulando o conhecimento sobre a população e seu meio,
registrando o relevo, a vegetação e os “costumes” do sertanejo, esquematizando
as psicopatologias dos “doentes mentais”, formulando qual o “tipo social” do
sertanejo e qual a sua “constituição biotipológica”, essas Instituições disciplinares
e estatísticas constroem uma “individualização esquemática e centralizada”
(FOUCAULT, 2006, p. 61) sobre a população, que é fundamentalmente útil
aos governos para gerir o comportamento desses corpos (FOUCAULT, 2019).
É na intenção de gerir o problema da fome e o problema dos sofrimentos
psíquicos que o Estado respalda e promove essas instituições e saberes (discipli-
nares e estatísticos) sobre a população, fazendo tudo convergir para a “ordem” e
para a produtividade geral da sociedade. É a partir dessa estratégia que se constrói
o que chamamos de Modernidade Biopolítica. Trata-se de gerir esses problemas e
não de solucioná-los, uma vez que são questões advindas da norma social injusta
e desigual, de modo que a sua solução, portanto, passaria por mudar tal estrutura
social. Dessa forma, o biopoder instituído estabelece suas fronteiras úteis, seja o
espaço do sertão, seja o “tipo” do homem sertanejo, seja o “doente mental”. Essas
fronteiras delimitam o problema, o isolam, não o solucionam e ainda produzem
o consenso de que o Estado está trabalhando para saná-lo.
41
estiagem como estopim para o “surto”, fruto da condição na qual viveram os
agricultores da região do Cariri. Como exemplo, a outra entrevista do colunista,
com a agricultora Maria Cleonice nos revela esse “estado de insanidade” do
faminto, ao passo que explicita a clareza na fala da agricultora:
Pela fala da entrevistada, fica perceptível para nós que ela própria
conhece seu lugar social, aquele que foi a ela atribuído, e entende que seu
espaço de ação produz resistência expressa na sua fala, algo que debateremos
mais adiante a partir de Michel de Certeau. No entanto, é importante perceber a
força que se fez para fabricar uma representação dessas pessoas como “criaturas
ameaçadoras”, “fora do controle”, uma vez que esse estereótipo justificou social e
institucionalmente o isolamento de tais sujeitos na Casa de Saúde. Os “loucos da
fome” em questão foram, frequentemente, agricultores na cidade do Crato - CE,
que, durante os anos 1990, sofreram com a pela seca da região, responsável por
infligir a fome aos sertanejos.
A “epidemia dos loucos da fome”, durante o ano de 1998, foi o momento
de internações compulsórias no hospital em questão. Entrevistamos Genilson4,
um técnico-enfermeiro que trabalhou na Casa de Saúde Santa Teresa durante
os internamentos pela seca. Ele trabalhou por um grande período na insti-
tuição: ingressou no ano de 1990 e saiu em 2015 devido ao fechamento do
hospital. Entre esses anos houve um período no qual ele se demitiu, por causa
de desentendimentos com uma nova diretoria do hospital, por volta de 2006,
mas voltou em meados de 2008. Ele nos relatou o seguinte:
4 Nome fictício para garantir o anonimato do entrevistado, nas normas do Termo de autorização
para uso de conteúdo da entrevista, conforme o Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
Federal do Ceará.
42
Genilson: Era rotina mesmo, assim, os doentes sempre já tinham
aquele… a família já tinha aquele costume [...] Aí o que era, eles
só tinham lá pra ir né, não era só do Ceará… Pernambuco, Bahia
tudo trazia pra ele. (MONTEIRO, 2019)
43
esmiuçadamente as possíveis e pretensas fases do estado psíquico abalado pela
fome. Interessa-nos perceber como os comportamentos são enquadrados. A
exemplo, o autor trabalhou uma fonte interessante sobre um marinheiro flagelado
pela fome, calcando o termo “hidrofobia da fome” (CASTRO, 1984, p. 235). Ao
citar os depoimentos da obra de Jean de Léry, publicada em 1558, Josué trouxe
casos nos quais a fome aparentemente provocou um “desatino” narrado de forma
muito semelhante, mais de três séculos depois, nas reportagens sobre a seca no
município do Crato, sertão nordestino, em 1998.
44
a relação fome-loucura, o que buscamos investigar está para além de uma
confirmação científica de que, de fato, há uma loucura enquanto consequência
da fome.
Na realidade, teses médicas, biológicas e até sociológicas acerca de tal
associação são, antes de tudo, suposições, dados pretensamente científicos
calcados na psiquiatria disciplinar e moderna. Sabendo disso, claro, não deixa-
mos de enxergar a ligação social que existe entre os objetos “fome” e “loucura”,
entretanto fazemos ressalvas em tratá-los na lógica “causa-consequência”, algo
importante de ser debatido, o que será feito mais adiante. O que, de fato, Josué
nos confirmou é que existe um discurso médico produzido historicamente que
relaciona esses elementos, ao invés da ideia de que a fome provocaria a loucura.
Foi por isso que o trouxemos aqui. Reconhecemos e explicitamos que o autor
trabalha dentro de uma lógica nosológica a qual não reivindicamos e que, ao
contrário, pretendemos problematizar. Isso, pois Josué também se referiu aos
“loucos da fome” utilizando diagnósticos psiquiátricos como a “psicose”, uma
percepção que temos aqui o objetivo de confrontar.
Essa reflexão feita por Josué foi perpetuada pelos psiquiatras da Casa de
Saúde Santa Teresa, em 1998, quando entenderam haver uma ligação intrínseca
entre sofrimentos psíquicos e famélicos, dentro de um quadro de diagnóstico
disciplinar. De acordo com o médico Ridalvo Rocha, entrevistado na coluna
de Fábio: “[...] a seca não provoca a loucura, mas contribui para que alterações
como a violência e a confusão mental se manifestem em pessoas predispostas
a apresentar esses problemas”(GUIBU, 1998a). A justificativa médica para
uma suposta loucura da fome partiu da falta de vitaminas do complexo B
que “evoluem” para um “estado de demência que pode ser confundido com a
loucura”, segundo nos disseram as correspondentes Fabiana Pereira e Elaine
Kawagoe da coluna “Dieta ‘monótona’ pode provocar demência: Desnutrição,
como a sofrida por flagelados do Nordeste, pode causar distúrbios e afetar
a próxima geração”(KAWAGOE; PEREIRA, 1998. Folha de São Paulo,
31/05/1998), também da Folha de São Paulo. Ao pensar a fome e a loucura
como problemas de cunho biológico, muito se perde da sua dimensão social,
algo para que nos alertou Josué de Castro. A loucura, a demência, o desatino ou
quaisquer outras demarcações psiquiátricas que se queiram fazer não dão conta
de mensurar como o sofrimento psíquico caminha junto com sofrimento físico.
Fugindo da lógica de que um sofrimento acarreta outro, o que, na verdade,
pretendemos pautar é que a fome e a loucura são sofrimentos que avançam
45
juntos dentro de uma esfera social de pobreza, pois ela, articulada em termos
biopolíticos, aprisiona os corpos na angústia física e mental, fazendo só o
mínimo para torná-los produtivos.
Um mecanismo importante na construção desse discurso e dessa política
é a noção do imaginário sobre o “louco da fome”. A noção produzida e social-
mente disseminada de que esses indivíduos flagelados são perigosos, raivosos
e até mesmo primitivos é fundamental no esforço de naturalizar tal relação e
de entendê-la como unidimensional, como dois sofrimentos que se fundem
em um só e que produzem esse ser desviante da norma. Ao observar a coluna
“Agricultor teme que seus filhos sejam ‘contagiados’ por loucura” (BELÉM, 1998.
Folha de São Paulo, 31/05/1998 ), nos deparamos com o relato de Raimundo
Miguel da Silva, agricultor e pai de Maria Cleonice, que afirma ter medo de
que seus outros cinco filhos fossem “contagiados pela ‘doença da loucura’”. O
temor do “contágio” nos revela a suposta dimensão “epidêmica” dos “loucos
da fome”, dando o teor de que o sofrimento psíquico é, de fato, uma “doença”
que pode ser “contraída”. Além disso, na entrevista anteriormente citada com o
ex-técnico-enfermeiro do hospital, o discurso da loucura como consequência
da fome foi reproduzido:
46
de Maria Cleonice, é fundamental perceber como os supostos “loucos” trans-
formaram esse discurso do poder disciplinar (mostrado por Foucault). Assim
podemos enxergar que essas pessoas não são passivas mesmo em condições
degradantes. Quando reafirmou a sua conduta agressiva e seu ato de tentar comer
gilete, a agricultora Maria Cleonice articulou a fala para expressar sua revolta e
denunciar a sua situação (que não era somente dela). Ou seja, construiu uma
“tática” que manipula o discurso do poder e da disciplina, para instituir contra
eles uma “antidisciplina” (resistência) (CERTEAU, 1986). Esse exemplo nos ajuda
a perceber como os indivíduos apropriam os discursos sobre eles mesmos e, a
partir disso, tornam-se sujeitos da ação, e não apenas corpos frágeis.
Não é à toa, dito isso, que a fala que indica “comer gilete” não é trazida
de forma impensada pela agricultora, e sim considerando o poder de impacto
que a ação tem. A exemplo disso, a música “Pau-de-arara (Comedor de Gilete)”
(LYRA; MORAES; 1965), lançada em 1965, já discorreu sobre como a fome
leva ao ato de “comer gilete”:
47
Como visto, a canção apresenta esse ato, que na fala de Maria Cleonice
é desesperado, como alternativa para ganhar dinheiro nas praias do Rio de
Janeiro. Os sujeitos na posição em que são colocados (como loucos e famintos)
dispõem das combinatórias de operação escondidas pela premissa de serem
“dominados”. Observando a música e o enunciado reproduzido pela agricultora,
percebemos a tática de denúncia notificada pelos autores do discurso “comedor
de gilete”. Ao afirmar que a fome os fez agir de tal forma, os sujeitos da ação
conseguem atenção (por espanto ou rasa comoção), conseguem espaço para
delatar. Para além disso, a música diz:
48
Na coluna “Seca e fome acirram distúrbios mentais: Procura por hospitais
psiquiátricos aumenta entre 20% e 30%; maioria de doentes são trabalhadores
rurais” (GUIBU, 1998a), a complexidade da situação nos diz muito sobre o
imaginário das diferentes pessoas que rondaram o problema (os moradores e
usuários do sistema de Saúde Mental, o jornalista, os profissionais em Saúde
Mental, etc.) e também sobre como o Poder Público atuou na situação. Ao
fazer uma descrição dos “loucos da seca” como consequência da “crise social”
e da “miséria” predominante na territorialidade em questão, o jornalista Fábio
Guibu utilizou de diferentes testemunhos para endossar essa ideia. Uma ideia
exposta no seguinte trecho nos salta aos olhos:
49
funciona como uma estratégia do poder governamental, pois opera com a
seguinte lógica: a assistência adequada aos “loucos da fome/seca” é o seu inter-
namento dentro da Instituição Total (GOFFMAN, 2001), sob a autoridade e o
“tratamento” dos profissionais psiquiatras.
Podemos entender a Casa de Saúde Santa Teresa como um dispositivo
de segurança a partir da noção formulada por Foucault6, pois ela figurou na
situação como um mecanismo fundamental para que esse biopoder, o poder
psiquiátrico, interviesse na população de modo a manter a ordem classista/
norma social. Assim, o poder público atuou na situação propondo uma solução
supostamente “técnica” e de ordem médica (legitimada socialmente) para esse
problema social. Dessa forma, o poder público atua sobre a questão que é gerada
por uma realidade de exploração e de distribuição desigual de recursos e meios
produtivos, e o faz sem a real intenção de diminuir as desigualdades sociais,
agindo de forma a evitar que as pessoas percebam isso e contestem a própria
ordem produtiva, indo além da mera identificação do problema como “social”.
Ao mesmo tempo em que confinou os desviantes e “desequilibrados” (ou
“loucos da fome”), escondendo-os da sociedade, esse poder lhes forneceu um
tipo de assistência que não era efetivamente terapêutica, mas, sim, disciplinar
e punitiva. Assim, por baixo dos panos, os dispositivos de segurança mantive-
ram a ordem da sociedade de mercado, enquanto, na superfície, o Governo, a
partir do saber/poder psiquiátrico, mostrou algum tipo de ação para o “bem
estar” da população. Michel Foucault sintetiza como é a operação na qual esses
dispositivos de segurança servem ao poder/Governo instituído:
6 Novamente utilizamos aqui essa noção a partir do que Michel Foucault esboça no capítulo
“Sobre a governamentalidade” na obra Microfísica do Poder.
50
Ora, a modalidade de assistência não é a única existente e é preciso
desnaturalizá-la. Essa forma de tratamento é reconhecida como autoritária e
excludente, pois trata o sofrimento mental7 a partir da estrutura de exclusão que
já explicamos aqui. Essa denúncia é enunciada por um amplo movimento de
crítica à Psiquiatria disciplinar, que apontou, no funcionamento da instituição,
para a violência exercida por esse poder médico e para os efeitos de desco-
nhecimento que esse discurso nosológico e psicopatológico produzia sobre os
sofrimentos mentais. Esses movimentos de crítica existem em diversas correntes
de atuação profissional (como Psiquiatria de Setor, Psiquiatria Comunitária,
Psicoterapia etc.) e até em movimentos sociais (como a Luta Antimanicomial),
construídos em várias partes do mundo desde a década de 1950. Eles possuem
um consenso geral, ainda que tenham suas diferentes correntes: é o consenso de
que a assistência ao sofrimento mental só é efetiva e ética se pautada no cuidado
comunitário junto à família (e não mais focado em um profissional psiquiatra)
e em liberdade (e não mais centrado em internações nas Instituições Totais)8.
Examinando a assistência disciplinar e hospitalocêntrica aos “loucos
da fome” numa perspectiva histórica, podemos entendê-la para além de algo
inocente e supostamente técnico e isento, identificando-a como reprodutora
da norma disciplinar e da ordem capitalista que normalizam a desigualdade
sócio-espacial de recursos e de acesso a uma alimentação nutritiva. Contudo,
todas essas perspectivas críticas não gozam da mesma legitimidade perante a
sociedade, mesmo que partam também do campo científico da Saúde Mental, e,
obviamente, a crítica à Psiquiatria disciplinar na historicidade dos anos 1990 (e
em certa medida, ainda hoje) é uma contracorrente em nível de senso comum
e também no próprio campo da Saúde Mental. Já os gestores das políticas em
Saúde Mental, alinhados ao poder instituído, comungam com o tipo de assistên-
cia da Psiquiatria disciplinar que constitui-se como hegemônica na sociedade.9
7 A própria noção do termo “sofrimento mental”, utilizada pelos críticos da Psiquiatria disciplinar,
expressa a opção de entender o sofrimento psíquico a partir da experiência da pessoa com seu
existir no mundo, enxergando ela como agente autônomo; isso em oposição à noção de “doença
mental”, referente ao ser humano como um organismo isolado do social, com “mau” funcio-
namento químico ou mecânico e desprovido de qualquer consciência. Ver: SZASZ, Thomas.
Ideologia e doença mental. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
8 Para uma conceituação das Instituições totais e suas características ver: GOFFMAN, Erving.
Op. cit.
9 Uma mudança nessas posições e na efetivação das políticas públicas foi notória a partir de
uma nova conjuntura aberta em 2001 nas políticas de Saúde Mental. Com o movimento de Luta
Antimanicomial que provocou na Lei da Reforma Psiquiátrica (lei 10.216 de 2001) a política em
51
Podemos observar essa legitimação, da qual gozam os dispositivos de
segurança, entre as pessoas atendidas e um ex-profissional da Casa de Saúde
Santa Teresa na cidade do Crato, na década de 1990. Realizamos entrevistas com
algumas pessoas que tiveram suas vidas entrelaçadas pela instituição entre os
anos 1990 e 2000. O primeiro deles foi um “paciente” da instituição, internado
em vários momentos; o chamaremos de Douglas. Outra entrevistada foi a mãe
do paciente, que a chamaremos de Rogéria. Além deles, entrevistamos também
o já citado Genilson, ex-técnico-enfermeiro do hospital. A partir das entre-
vistas realizadas, podemos sublinhar vários traços da legitimidade produzida
pelo poder governamental e pelo poder psiquiátrico em favor da assistência
disciplinar na territorialidade e temporalidade em questão.
A tônica dessas entrevistas é dada pelas lembranças que os entrevista-
dos possuem a respeito do passado “do Santa Teresa” (como eles chamam a
Instituição), já que a instituição foi fechada no ano de 2015. Genilson e Rogéria
expressaram memórias e opiniões sobre o fechamento:
52
de assistência que começava a ser implementado10. Já a familiar do paciente, a
entrevistada Rogéria, disse o seguinte sobre o fechamento:
53
que precisa dum internamento a gente vê o sofrimento, tem gente
que tem que amarrar o paciente em casa, porque não tinha como
controlar aquele paciente, o paciente totalmente desorientado,
agressivo… aí às vezes, trancava, fazia um quartinho, uma
grade, um cadeado, aí dava comida por uma janelinha e tinha
que ser assim.
[...]
Entrevistadores: Nesse decorrer dos anos 2000, com cada vez
menos verbas, você acha que em alguma medida a proposta
da Reforma Psiquiátrica, de fechamento dos leitos, mas de
fortalecimento de outros instrumentos na Rede Psicossocial,
você acha que isso foi colocado em prática?
Genilson: A ideia era essa, fechar o “Manicômio” como eles
chamam né, aquela “prisão” que eles dizem e tratar no CAPS né.
É importante esse convívio no CAPS, os profissionais, grupos,
visitas às casas dos pacientes, mas agora tem a questão que não
comporta o surto. As famílias não sabem o que fazer, tem umas
que não tem como pagar, as clínicas melhores é tudo pago, não
tem uma grátis. Aí aqui só pode passar até oito dias, aí tem
paciente que não melhora nesse período, tem uns que dum dia
pro outro tá melhor, mas tem outros que é quinze, vinte dias,
até um mês.
Entrevistadores: Então o senhor enxergava uma importância do
Hospital aqui na região?
Genilson: É, a gente que vê assim o sofrimento das famílias,
quem trabalha convive com as famílias que vão visitar. Você
recebe um internamento, você vai colher uma história, o médico
colhe, o assistente social, o psicólogo, tudo, você conversa com a
família, você vê assim a gravidade né… Você olhando por outro
lado, não precisa (MONTEIRO, Op. Cit.).
54
Rogéria: O tratamento lá era muito bom, os enfermeiros muito
bons, uma equipe médica muito boa, que lamentavelmente
esse hospital teve que fechar, foi lamentável. Porque ele era
providencial pra quem tem esse tipo de problema. [...] Porque
tem tipo de crise que não tem como você ficar com o paciente
em casa, não tem condição…
Entrevistadores: Por isso que a senhora acha que o fechamento
do hospital…
Rogéria: Prejudicou muito!
Entrevistadores: Como foi o processo? A senhora lembra?
Rogéria: Mulher eu não lembro bem não, eu sei que eu batalhei,
eu botei muita coisa no Facebook, e fiz muita campanha no
Facebook contra o fechamento, fiz muito. Nós fizemos abaixo-
-assinado, fizemos tudo que pude (MARTINS, Op. Cit.).
55
independente da ausência ou não de algum tipo de violência física, o Hospital
Psiquiátrico continua sendo um espaço de deterioração do “eu” (GOFFMAN,
2001) dos internados, em que há uma produção disciplinar em série de subje-
tividades sujeitadas e de corpos dóceis. A estrutura de exclusão não deixa de
ser uma violência, apesar da ausência de violência física dolosa.
Já o próprio Douglas, embora tenha considerado o Santa Teresa como
“bom”, não chegou a opinar sobre o fechamento, afirmando o seguinte
quando indagado:
56
Douglas: Na época, tinha vez que tinha 300 pessoas internadas
entre homem e mulher [...] e quando foi pra 2005, 2006 foi
baixando pra 200, 180 por aí. E outra coisa, lá a qualidade da
comida era melhor nos anos de 97… até 2005 a comida era boa,
quando foi fechando pra 2010, 2012, aí a comida era mais fraca.”
(Grifo nosso). (MARTINS, Op. Cit.).
Douglas não era de uma família que sofria com a insegurança alimentar,
como era o caso de Maria Cleonice. Apesar disso, a comida apareceu, na sua
fala, como algo importante na sua memória sobre o Santa Teresa, pois destaca
a boa qualidade da comida oferecida pelo hospital, pelo menos entre os anos de
1997 até 2012. Após cruzarmos as duas fontes e atentarmos para a fala de Maria
Cleonice, podemos inferir que, quando ela foi internada “no Santa Teresa”, ela
teve acesso a uma “boa comida”, já que Douglas relatou que naquela época (1997
em diante) a comida era de boa qualidade. Portanto poderia haver uma relação
da sua atitude (supostamente surtos) com o acesso à “boa comida”. Contudo
não podemos afirmar isso como uma assertiva, uma vez que reside aí o limite
que as fontes nos impõem, já que Cleonice não fala mais nada além de “Já fui
internada no Crato porque as pessoas pensam que eu sou louca, mas eu não
sou. Só sou revoltada, muito revoltada” (GUIBU, 1998b).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No esforço de trazer o tema da fome pela chave da história da loucura,
pudemos tatear a vastidão de possibilidades historiográficas sobre essa relação
aparentemente peculiar. Sabendo disso, não tivemos aqui a intenção de dar o
debate como encerrado ou concluído, muito pelo contrário. A possibilidade
de investigar a relação fome-loucura nos abriu caminhos para discutir ambos
os elementos que compuseram nosso objeto por diversos olhares, perspecti-
vas e recortes.
No presente artigo, ao escolhermos a modernidade como peça central,
costurando a fome e loucura, nós o fizemos com a intenção de debater a
partir de conceitos e categorias que, para fins desse trabalho, acreditamos que
cumpriram bem o papel de apresentar o “tipo social” dos “loucos da fome”
enquanto instrumento político dentro de um projeto de governo. Não é à
toa que, ao problematizar a tríade seca-fome-sertão, as noções empregadas
pela prática moderna de classificação do homem e do espaço vieram à tona
e, mais ainda, que tenha sido uma forma tão parecida com a de esquematizar
57
um quadro acerca do que foi (e de certo modo ainda é) a loucura para esses
mesmos “homens do progresso”. O que debatemos aqui foi exatamente essa
semelhança de tratamento que parte de uma mesma matriz filosófica, que age
pela higienização, pela produtividade e pela manutenção do status quo.
Ao avançarmos nos debates, além de percebermos como o lugar social
atribuído ao faminto caminhou junto com aquele atribuído ao louco, também
percebemos como os espaços físicos se assemelham. Seja no campo de concen-
tração para os retirantes da seca, seja no hospital de alienados para “loucos
dementes”, a estrutura de exclusão fez-se presente, pois, para além do nome
que se deu, a ordem biopolítica regeu tais instituições. Pudemos perfeitamente
constatar isso ao nos depararmos exatamente com a união desses dois espaços
em um só: a Casa de Saúde Santa Teresa no final da década de 90. É nesse
sentido, portanto, que enxergamos um empenho, por parte do Estado, em
instituir uma forma nova, mas não inédita, de tratar dos famintos.
FONTES
1) Jornais
BELÉM, Alexandre. Agricultor teme que seus filhos sejam “contagiados” por loucura.
Folha de São Paulo, da Agência Folha, em Ouricuri (PE), 31/05/1998. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc31059825.htm>. Acesso em: 28/02/2021.
GUIBU, Fábio. Seca e fome acirram distúrbios mentais: Procura por hospitais psiquiá-
tricos aumenta entre 20% e 30%; maioria de doentes são trabalhadores rurais. Folha de
São Paulo, da Agência Folha, em Ouricuri (PE), 31/05/1998a. Disponível em: <https://
www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc31059821.htm>. Acesso em: 28/02/2021.
GUIBU, Fábio. LOUCURAS DA FOME: Fome leva mulher a tentar comer gilete.
Folha de São Paulo, da Agência Folha, em Ouricuri (PE), 31/05/1998b. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc31059822.htm>. Acesso em: 28/02/2021.
KAWAGOE, Elaine; PEREIRA, Fabiana. Dieta “monótona” pode provocar demência.
Folha de São Paulo, da Agência Folha, em Ouricuri (PE), 31/05/1998. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc31059823.htm>. Acesso em: 28/02/2021.
SECA ATINGE 10 MILHÕES. Folha de São Paulo, da Agência Folha, em Ouricuri (PE),
31/05/1998. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc31059824.
htm>. Acesso em: 28/02/2021.
2) Entrevistas
MARTINS, Douglas Gomes. Entrevista. [nov. 2019]. Entrevistadores: Antonio Maurício
Martins Neto e Carolina de Fátima Linhares Augusto. Crato, 2019. 1 arquivo .mp3
(33 min.).
58
MARTINS, Rogéria Gomes. Entrevista. [nov. 2019]. Entrevistadores: Antonio Maurício
Martins Neto e Carolina de Fátima Linhares Augusto. Crato, 2019. 1 arquivo .mp3
(33 min.).
3) Música
LYRA, Carlos; MORAES, Vinícius. Intérprete: Ary Toledo. Pau-de-arara (Comedor
de Gilete). São Paulo: Fermata: 1965. (5min).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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da Região Nordeste. In:____. Nos destinos da fronteira: história, espaços e identidade
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Edições Antares, 1984.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 22ª edição. Petrópolis:
Vozes, 1986.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 10ª edição. Rio de Janeiro / São Paulo:
Paz e Terra, 2019.
59
MORAES, Kleiton de Sousa. O Progresso descobre o sertão - A inspetoria de Obras
Contra as Secas (1909-1918). 1. ed. Alameda Editorial, 2018.
OLIVEIRA, Cláudia Freitas de. A loucura como problema histórico. In: MELO, Willian
J. LIMA, Zilda Maria, MUNIZ, Altemar da Costa (orgs.) História, Memória, Cultura
e Oralidades. Fortaleza, Ed. UECE, 2016.
PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre
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SZASZ, Thomas. Ideologia e doença mental. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
TEÓFILO, Rodolfo. A fome. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002.
60
Um ninho controverso: de como
substitutos do leite materno
provocaram o aumento dos
índices de desnutrição infantil
no Brasil (1940-60)
João Alesson Vidal da Silva1
Maria Daniella Alves Ramos2
61
produtos industrializados destinados às mães e aos seus filhos. Dessa forma,
estes são formulados, desenvolvidos e produzidos artificialmente, contrário
ao leite proveniente da amamentação, que é biologicamente natural. Assim,
observa-se que esse fenômeno tem sua própria historicidade, atrelado a fatores
que possibilitaram o desenvolvimento em massa desses produtos: a crescente
modernização e industrialização em partes do mundo (principalmente no país
de origem da transnacional, Suécia) e a concepção de modernidade renovada
(o tempo e o trabalho feminino) criando, portanto, a necessidade de consumir
esses produtos artificiais.
A utilização em larga escala de alimentos substitutos do leite materno
durante o século XX, especificamente entre as décadas de 40 e 60 no Brasil,
combinado com outros fatores sociais, como por exemplo, a pobreza e a baixa
escolaridade, resultaram no aumento dos índices de desnutrição infantil. Essas
problemáticas ocorreram, sobretudo, devido à massificação dos SLM pelas
companhias em território brasileiro a partir da Segunda Guerra Mundial, pois as
empresas alimentícias expandiram o mercado para os países subdesenvolvidos
devido à consolidação das baixas taxas de natalidade nos países europeus e
norte-americanos.
As principais transnacionais vincularam-se com o Estado brasileiro e a
classe médica, para adquirir legitimação e desenvolver uma ampla construção
imagética em torno das suas propagandas. Por exemplo, na década de 1940 é
visto na revista O Cruzeiro (RJ) a seguinte matéria:
62
O clássico leite Ninho foi desenvolvido posteriormente com as técnicas de
evaporação, a Nestlé o transformou em o carro-chefe da empresa. Afinal, “nós
fazemos Ninho com o mesmo carinho, cuidado e dedicação que você faria”5.
Portanto, mais do que um produto alimentício, os substitutos do leite
materno são consolidados no imaginário como símbolo da modernidade e
membro da extensão familiar. A sua utilização massificada provoca altas taxas
de desnutrição infantil, especialmente em países da América Latina e da África,
além da submissão dos corpos femininos aos padrões de dona de casa moderna.
O ninho mata seus filhotes, afinal.
AS MOVIMENTAÇÕES HISTÓRICAS
EM TORNO DA AMAMENTAÇÃO
Partindo do pressuposto de que a amamentação materna é um híbrido
de natureza e cultura (DE ALMEIDA, NOVAK, 2004), esse ato, além de exclu-
sivamente biológico e natural, é também social e cultural, sofrendo influências
de diferentes grupos sociais ao longo da história. Em território brasileiro, como
analisa a historiadora Mary Del Priore no seu livro “Ao Sul do Corpo” (DEL
PRIORE, 1995), as condições femininas no período colonial são perpassadas
pelos discursos institucionais, médicos e religiosos, mobilizados para construir
e impor processos normativos aos corpos femininos coloniais. A maternidade
foi o elemento que deveria nortear as diferentes vivências femininas, consti-
tuindo-se como a identidade universal das mulheres.
Para complementar essa imagem, a amamentação foi considerada como
um dever moral e ato de amor, pois acreditava-se que o leite materno formava
moralmente a criança. A mãe idealizada era uma mulher-receptáculo, seus seios
deveriam cumprir funções estritamente biológicas e alimentares. Del Priore
utiliza fontes eclesiásticas, processos de divórcio e textos médico científicos dos
séculos XVII e XVIII, devido a repetição em torno do tema e ao realizar uma
leitura a contrapelo, pode-se inferir que a realidade era contrária aos esforços
empregados por essas instituições. As idealizações acerca dos corpos femini-
nos não foram integralmente postas em prática, percebendo-se resistências
e subversões a essas imposições. Em 1683, o pregador Antônio das Chagas
esconjurava as mulheres que “untavam os seios com fel e coisas amargosas”.6
o leite condensado moça satisfazendo completamente todos esses requisitos (...)”. (Diário de
Pernambuco. 23/10/1938, p. 2).
5 Frase encontrada no site da Nestlé Ninho. Disponível em: <https://www.ninho.com.br/>.
Acesso em: 23 de julho de 2020.
6 Escola de penitência e flagelo dos viciosos costumes, p.392. apud DEL PRIORE, 1995, p.252.
63
Revela-se, assim, mães que se negavam a essa imposição, ademais, exis-
tiam as amas de leite, na sua maioria negras escravizadas, que suprimiram essa
demanda da amamentação. Dessa forma, no Brasil, uma colônia escravocrata, o
assunto amamentação é complexo, pois se de um lado observamos uma quan-
tidade de mulheres que podiam recusar a prática de amamentação, por outro,
diversas outras eram obrigadas a fazê-la. Com isso, podemos realizar um recorte
de classe, raça e gênero, em que mulheres negras exerciam a função social de
amas de leite na amamentação de crianças das famílias brancas abastadas, seja
pela recusa ou pela impossibilidade física das mães, até o século XIX.
A prática da ama de leite é atravessada por violências, sendo a maior
delas a negação de cuidar da sua própria prole, acarretando altos índices de
mortalidade infantil na população negra, pois para que aconteça a amamentação
tem que existir um outro recém-nascido, no qual será preterido em função da
criança branca. De acordo com a historiadora Sandra Maria Giacommi, citada
por Robson Silva (SILVA, 2016):
64
introdução dos SLM no país. Com as mudanças estruturais e socioeconômicas
ocorridas a partir da segunda metade do século XIX: o crescimento dos centros
urbanos e a proibição do tráfico negreiro em 1850, as relações escravistas
adquiriram novas circunstâncias, como o surgimento das escravizadas de ganho
na capital paulista, essas dispunham de uma maior autonomia, circulação e
diversidade de serviços, ainda que permanecesse escravizadas (SILVA, 2016).
As amas de leite eram uma atividade econômica importante nas cidades,
sendo muito comum observar a oferta ou a procura de seus serviços em anún-
cios nos jornais, pois era uma fonte de renda lucrativa para o senhor. Assim,
“a venda e aluguel de escravas como amas de leite atendia a uma demanda das
famílias em que as mulheres brancas não queriam amamentar seus filhos, seja
por modismo ou incapacidade física” (SILVA, 2016, p.306). Observa-se nos
anúncios as características exigidas das pelas amas de leite: estarem saudáveis,
sem vícios e com abundância de leite, e o mais importante, não terem filhos.
Esses atributos refletem a ideia de que o leite materno transfere a moral da
mulher para a criança, por isso, a desconfiança em torno da conduta moral
das mulheres escravizadas.
Contudo, apesar da sua importância histórica e social para a alimentação
infantil, a prática das amas de leite começa a ser questionada pelos médicos nas
últimas décadas do século XIX. Neste momento observa-se o florescimento
da Medicina Social e suas especialidades, como a pediatria e a puericultura.
Com a institucionalização médica e a incorporação das ideias evolucionistas e
social-evolucionistas, o debate sobre a sociedade e o seu funcionamento estava
em plena ascensão, principalmente em torno da mortalidade infantil, na qual
antes era considerada uma fatalidade divina, neste momento passa, então, a ser
entendida como um fenômeno social e questão de saúde pública.
Médicos, sanitaristas e pediatras culpabilizavam as práticas arcaicas
de criação e alimentação infantil, nas quais a ama de leite era o fator mais
pernicioso, devido à transmissão de doenças pela falta de higiene (SILVA, 2016).
A partir disso, os médicos passaram a exigir maior controle na qualidade dos
leites e comportamentos, segundo padrões higiênicos por parte das amas, daí a
importância de estabelecer uma instituição reguladora dos seus serviços, como
mostra Silva: a província de São Paulo elabora a Regulação n. 62 de 21 de abril
de 1886 para tal fim. Levando em conta o discurso médico sanitarista, que tem
como base o racismo, essas passaram a ser denominadas pejorativamente como
mercenárias, degradando-as à condição de viciosa pelas suas condutas, por
65
abandonarem seus filhos pelo dinheiro do aluguel, afinal, poucos conseguiam
compreender o drama íntimo e o sacrifício diante dessa atitude.
Foi durante a década de 1870 que as amas de leite negras passaram a ser
ameaçadas. Observa-se uma soma de fatores para tal: a entrada de mulheres
imigrantes brancas que passaram a exercer a função, o discurso depreciativo
por parte dos médicos e o surgimento da Farinha Láctea Nestlé. Somado a isso,
era retomado o culto à mãe ideal, dessa vez trajada na “mãe higiênica” que, por
meio de manuais publicados, eram educadas quanto ao trato com os filhos,
alimentação, saúde, higiene, exercícios, brincadeiras e a relação entre pais e
filhos (KOUTSOUKOS, 2009). A introdução de alimentos industrializados
para a nutrição infantil proporciona uma alimentação mais prática e adequada,
substituindo gradativamente o leite das amas. Como observado nos anúncios
da Farinha Láctea Nestlé importada para o país, publicados no Diário de
Pernambuco7 em 1876:
7 O recorte espacial da pesquisa será concentrado na cidade do Recife, pois, devido às atuais
dificuldades de encontrar as fontes necessárias, as que conseguimos identificar como interessantes
e proveitosas para o prosseguimento do estudo são concentradas na capital pernambucana.
Além disso, a cidade foi uma das primeiras na qual a Nestlé - Companhia Industrial e Comercial
Brasileira de Produtos Alimentares - iniciou suas atividades de vendas, sendo um local estratégico
para o consumo dos produtos e a sua distribuição para regiões próximas (REA, 1990).
66
concedida em França. (...) O parecer tão elogioso da junta central
de hygiene pública do Rio de Janeiro, e de tantas notabilidades
medicas da Europa, acaba pois de ser confirmada da maneira
a mais notável. (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 3 de julho de
1876, p. 6-7).
67
p.17) que, como pôde ser observado, na prática, é algo ilusório. Inclusive,
é necessário destacar a sua relação com a noção de modernidade vigente,
fomentada por “estar muito próximo da ideia de um progresso inevitável que
resultaria numa evolução” (RAMOS, 2011, p.18).
O Brasil revela-se um terreno fértil para este processo modernizador
devido ao seu momento histórico na década de 1950, marcado pelos planos de
governos nacionais-desenvolvimentistas - tanto o de Vargas como o de JK - que
se aliaram ao capital estrangeiro para promover a industrialização no país,
provocando uma tensão entre o tradicional e o moderno, que por fim, teori-
camente, superaria a imagem agrária e atrasada que existia até então. Contudo,
como é analisado amplamente pelos pesquisadores, tais planos econômicos
eram intrinsecamente contraditórios, desiguais em seu cerne, pois essa gama
de investimentos foi distribuída desigualmente dentro do país, centralizados,
sobretudo, na região Sudeste. Porém, mesmo com a industrialização e a urba-
nização dessa parte do país, seus contrastes ainda eram gritantes, observados
no aumento exponencial das periferias e no acentuamento das desigualdades
sociais nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo.
Esses planos buscavam o controle e a incorporação da sociedade a partir
das ideias de modernização e igualdade sustentadas pelo consumo, afinal, como
esses projetos nacionalistas não alcançavam a todos, a lógica do consumo era
empregada com a finalidade de materializar a igualdade e a liberdade demo-
crática, “uma igualdade mensurável diante do consumo de objetos que seriam
os símbolos de felicidade e do bem-estar dos novos tempos”. (RAMOS, 2011,
p.18). Dessa maneira, a intensificação e a variedade de propagandas espalhadas
nos jornais da época concretizam, com suas imagens e slogans, o êxito do
modo de vida capitalista calcado no consumismo. Os produtos abundantes
davam a impressão de igualdade diante dos objetos, devido à sua finalidade,
como também pelo status que o consumo destes conferem e em relação ao seu
valor de signo8.
8 O conceito “valor de signo” é formulado pelo sociólogo francês Jean Baudrillard, no livro “A
sociedade de consumo”. Como um dos principais críticos acerca de tal sociedade, segundo o
autor, a partir da segunda metade do século XX, é estabelecido o tempo dos objetos, uma nova
Era, na qual a moral da sociedade contemporânea é o consumo. A própria sociedade do consumo
se consome, porque o mito criado e amplamente disseminado acerca das liberdades e igualdades
deve ser consumido destrutivamente. O valor de signo corresponde ao poder simbólico que
emana dos objetos, é a significação atribuída ao ato de consumir esses, nunca é o consumo do
produto em si, extrapola o material físico e sua finalidade, chegando a uma espécie de milagre,
que é o principal responsável pelo desejo de consumir.
68
O Brasil adentrava nessa vertigem do consumo, observa-se a procissão
de produtos industrializados, nas mudanças de hábitos, nas transformações
urbanas, na aceleração do tempo. Para o funcionamento deste sistema utili-
zava-se da linguagem, que por seu intermédio, toda a sociedade se comunica
e fala, veiculando símbolos e significados, por fim, incorporando a estrutura
do consumo. Além disso, o lugar do consumo é a vida cotidiana, o sistema de
interpretação constitui-se como um simulacro do mundo, “alimentando-se
das imagens e dos signos multiplicados da vertigem da realidade e da história”
(BAUDRILLARD, 1995, p.25), existindo uma ligação orgânica e profunda entre
a esfera do cotidiano e as comunicações de massa. Dessa maneira, a ordem do
consumo vive de signos e ao abrigo dos signos, com as suas manipulações e
sua própria lógica de significados.
É interessante a crônica “Carta a uma senhora” de Carlos Drummond
de Andrade para refletir sobre esse período;
69
experiências e sensibilidades foram sendo construídas, como um maior culto
ao corpo, especialmente o feminino, tal qual à imagem de Narciso.
10 Utilizaremos ao longo do estudo as palavras leite em pó e leite enlatado como sinônimos, pois
esse alimento industrializado é o objeto da nossa pesquisa. Contudo, centralizamos a análise
das fontes em torno do leite em pó Ninho da Nestlé, mesmo existindo SLM de outras empresas
alimentícias, como o leite Klim, da Bonder, que foi adquirido pela Nestlé em 1998. O foco no
Ninho é que, devido às atuais adversidades, as suas fontes foram as mais acessíveis, além de que,
é um produto reconhecido pelos brasileiros, um dos produtos mais publicizados e presentes no
cotidiano do período. Além desse, existem outros substitutos do leite materno em produção
pela Nestlé nesse período, como, por exemplo, o achocolatado Nescau, Nestogeno, Lactogeno,
Pelargon, Prodieton, Eledon “Simples”, Eledon “Composto”, Semilko e Molico, os cereais, Mucilon,
Farinha Láctea Nestlé, Neston e Neston “Proteinado”.
70
trabalho e garantiria a seu bebê uma boa nutrição e crescimento
(KALIL, 2015, p.66).
71
femininas magras, com roupas e cortes de cabelo que seguiam a tendência do
momento. Com tais atividades, a mãe pode “reassumir eficientemente os seus
deveres para com o lar e assumi-los para com o bebê” (NESTLÉ, 1968, p. 4). As
cartilhas distribuídas eram um importante instrumento educativo para as mães
de primeira viagem e, principalmente, para aquelas com baixa escolaridade,
pois ao observarem as figuras bem explicativas, as fotografias de bebês robustos
e os pequenos textos, facilmente entendíveis, adentravam no imaginário das
mães com a noção de progresso e modernidade (RAMOS, 2011).
Além de dona de casa e de gerar a força produtiva para o capital
(FEDERICI, 2017), nesse período, passa-se a exigir um corpo-objeto de culto
narcisista, ou seja, uma “nova ética em relação ao corpo” (BAUDRILLARD,
1995, p.139). Com isso, observa-se não só a pressão social para que a mulher
exerça as figuras materna e de dona de casa, como também, a pressão estética
em torno do corpo feminino. Como escreve Baudrillard;
72
sempre em partes privilegiadas, a das notícias, nas quais têm um maior número
de leitores, consequentemente, de possíveis consumidores. Como pode ser
observado na seguinte imagem selecionada:
73
Figura 2: Propaganda Leite Ninho
(Diário de Pernambuco, 28/01/1959, p. 10)
74
pelo status hierárquico da classe médica, como elementos de referência para a
sociedade, é um componente que fortalece demasiadamente a confiança nos
substitutos do leite materno. Vide os exemplos abaixo:
75
associadas ao resultado da união entre os médicos especialistas, com suas
indicações adaptadas ao “organismo do seu filhinho”, e a empresa alimentícia.
Além disso, verifica-se, durante todo o período das décadas de 1940
a 1960, o patrocínio de diversos encontros, promoção de cursos, revistas
médicas patrocinadas ou as da própria empresa, como os Anais da Nestlé, que
publicavam as atualizações médicas - tendo como exemplo o “Curso Nestlé
de atualização em pediatria”12 e o Prêmio Nestlé para Pediatria e Puericultura.
Nitidamente, tais ações favoreciam a troca de experiências e conhecimento entre
os profissionais, inclusive, contando com o patrocínio da companhia, como
também, fomentava o desenvolvimento da área da saúde no país. Contudo,
não é possível negar que, como uma empresa capitalista, a Nestlé aproveitava
esses momentos para obter o retorno de seus investimentos e manter sua
hegemonia alimentícia.
O diálogo do governo brasileiro com as empresas alimentícias mostrava-
-se um negócio lucrativo para ambas as partes. O governo Vargas, na década de
40, por exemplo, criou o Departamento Nacional da Criança e os respectivos
Estaduais, consolidando o acordo definitivo entre a iniciativa pública com a
privada13, com intensa distribuição de latas de leite e fomentando a valorização
da mamadeira, consagrando o seguinte lema: “Com a primeira mamadeira, se
forma um cidadão”. De acordo com Kalil:
76
(COSTA, 1999, p. 51). Por outro, voltando-se para as famílias
pobres com foco nas ‘campanhas de moralização e higiene da
coletividade’ (COSTA, 1999, p. 51-52). Com o surgimento desse
processo que denominou de ‘estatização do indivíduo’, operado
intensamente pelas normas de saúde impostas no período,
o autor explica como se deu a transformação dos hábitos
e condutas que se repetiam na tradição familiar da nação e,
principalmente, a reformulação do papel da mulher na família, a
partir daquele momento convertida ao amor filial e transformada
no que denominou de ‘mãe higiênica’ (COSTA, 1999, p. 255);
(KALIL, 2015, p. 59).
Como uma faca de dois gumes, tal medida facilita a abertura de mercados
consumidores para os produtos industrializados, como também, patrocina o
assistencialismo governamental de Vargas, como escreve Ramos:
77
da Criança fará a distribuição de mamadeiras ás crianças
matriculadas nos Serviços de Higiene Infantil e a Cia. Nestlé
distribuirá, prêmios em dinheiro, as crianças mais assíduas
aqueles Serviços (...). (Diário de Pernambuco, 17/10/1956, p. 16).
OS PROBLEMAS NO NINHO
78
Após décadas dessa “necessidade” induzida, em 1974 a ONG britânica
War or Want14 publicou uma pequena cartilha baseada nas suas investiga-
ções sobre a venda desenfreada de leite em pó no “Terceiro Mundo”. Com
ampla repercussão na década de 1970, essa cartilha foi um instrumento de
denúncia, juntamente com as várias discussões que esse assunto estava provo-
cando mundialmente. Posteriormente, resultaram nas leis internacionais de
propagandas e promoção do aleitamento materno. Acusava-se as indústrias
alimentícias, com seu marketing agressivo15, de promotoras de uma urbanização
e modernização desiguais; as consequentes problemáticas sociais, acarretaram
na desnutrição e morte de crianças nos países que no período eram denomi-
nados de “Terceiro Mundo”. A combinação de empresas capitalistas agressivas,
governos coniventes, a forte desigualdade social e a miséria populacional, é o
motor deste cataclisma.
79
como igualdade. Havia dois fenômenos possíveis na cidade do Recife: o primeiro
era das famílias abastadas que alimentavam suas crianças com os leites em pó
em condições higiênicas adequadas, se porventura, o bebê sofresse de alguma
diarreia ou infecção tinham os meios para acessar produtos industrializados
para solucionar o problema (praticamente uma compra casada). Por exemplo,
na cartilha “A maior das maravilhas...meu filho” da Nestlé tem a menção ao
“Arobon”, um produto adocicado para o tratamento das diarreias, como pode
ser observado no seguinte excerto:
80
acima descritos, deixando seus organismos fragilizados e
expostos, estes leites industrializados precisavam ser diluídos.
Necessitando de água para diluir as fórmulas lácteas, mas sem
acesso à água limpa e vivendo em precárias condições sanitárias,
só havia uma saída à maioria dos habitantes pobres do Recife: a
água suja que os circundava. Esta água, que se transformava em
leite nas mamadeiras de milhares de crianças, levava à diarreia
em face da contaminação por germes patogênicos. Ademais, sem
fogão e muitas vezes sem panelas adequadas para esterilizar as
mamadeiras, o resultado era duplamente impactante (RAMOS,
2011, p. 92-3).
81
a) graus variados de desnutrição atingem 30,7% das crianças
brasileiras com idade entre 0 e 5 anos, ou mais de 5 milhões de
crianças, em números absolutos; no Nordeste, a desnutrição
alcança 56,6% das crianças nessa faixa etária;
a) a mortalidade infantil, em 1989, atingiu 64 de cada 1000
crianças nascidas vivas, antes de completarem 1 ano de idade;
a desnutrição foi a causa primária da maioria dessas mortes,
tornando essas crianças mais vulneráveis a doenças. (CPI da
Fome, p. 12 / 21).16
82
publicidade das indústrias alimentares, que encontrava apoio nos planos do
governo brasileiro, resultaram nesse cenário alarmante, como escreve Ramos:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Refletindo sobre o tema abordado ao longo deste texto, constata-se os
aspectos contraditórios da sociedade de consumo, na qual a cultura de massa,
naturalizada em torno desses símbolos fabricados de “progresso e modernidade”,
provoca inúmeros impactos e problemas sociais. O trabalho do historiador, de
desnaturalização, revela o movimento dos processos sociais, culturais e histó-
ricos. A amamentação materna, mais do que uma ação meramente biológica
e natural, mostra-se como um fenômeno social e cultural, um “híbrido de
natureza e cultura”, passível de transformações e disputa frente aos discursos
médicos e institucionais.
O uso abusivo dos substitutos do leite materno, amplamente patrocinado
pelas políticas públicas de distribuição de SLM e a ausência de estímulos à
promoção da amamentação, resulta em altos índices de desnutrição infantil.
Essa combinação contribuiu para fragilizar a credibilidade do aleitamento
materno e aumentar a venda de produtos industrializados. Além disso, afeta
83
diretamente o público feminino e sua relação com próprio corpo, pois as
propagandas afetaram, sobremaneira o emocional e psicológico de diversas
mulheres, usando a justificam de que os SLM existem para aquelas que não
conseguem amamentar, porém percebe-se a veiculação de imagens que suge-
riam a insuficiência do aleitamento materno.
Nos anos 1980, no Brasil, é possível perceber o início do movimento
de promoção do aleitamento materno nas agendas de saúde pública com
o Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno (PNIAM), em
1981, as ações fundamentadas para resgatar a prática da amamentação (DE
ALMEIDA, NOVAK, 2004). Tal mobilização constituiu um dos fatores de
maior destaque no cenário da promoção do aleitamento materno no Brasil,
articulando esforços dos mais diferentes segmentos da sociedade brasileira e
de instituições governamentais, como: órgãos de governo, sociedades de classe,
organizações não-governamentais, empresas privadas, veículos de comunica-
ção de massa e associações comunitárias compostas pela representação dos
seguintes órgãos e instituições:
84
etc. O incentivo por parte do Estado e dos profissionais de saúde deve partir da
importância desse ato para a saúde feminina e ao desenvolvimento humano,
como também, da escolha da mãe, afinal, não é somente uma condição “natu-
ralmente biológica”, mas também tem suas movimentações socioculturais.
FONTES
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16/11/1940, P. 49.
Diário de Pernambuco
- 1876: 07/03/1876, P. 5
- 1934: 03/05/1934, P. 2
- 1938: 23/10/1938. P. 2
- 1953: 15/03/1953, P. 5
- 1958: 15/10/1958, P. 10
Obras Literárias:
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de Janeiro, v. 24, supl. 2, p. s235-s246, 2008.
87
Fome, ditadura militar e pastoral
da criança: um estudo sobre a
questão famélica no Brasil
Pedro Gilson de Oliveira Paula Filho1
INTRODUÇÃO
O Brasil é um país rico para praticamente qualquer plantio. Fora
que passar fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal,
não come bem, aí eu concordo. Agora, passar fome, não. Você
não vê gente, mesmo pobre, pelas ruas, com físico esquelético,
como a gente vê em alguns outros países pelo mundo (Carta
Capital, 19/07/2019).
88
É sabido que a questão famélica no Brasil é assunto bem antigo. Muito
já se foi escrito nas páginas literárias e acadêmicas, em diversos campos do
conhecimento. Porém, neste artigo, iremos nos deter na temporalidade que
compreende os anos da Ditadura Militar (1964-1985), com enfoque principal no
final da década de 1970, momento em que a questão da fome atinge seu ápice no
país, e posteriormente, quando ganha maior visibilidade, tanto governamental
quanto social. Além disso, buscaremos, também, compreender como o debate
acerca da fome deu-se após o processo de redemocratização, nos primeiros
anos da Nova República. Ainda, irei me deter na análise da Pastoral da Criança,
organismo eclesial criado em 1983, buscando compreender as motivações para o
surgimento da mesma, bem como a sua atuação no combate ao cenário famélico
da nação, na diminuição da mortalidade infantil, e no saudável desenvolvimento
de crianças de 0 a 6 anos.
89
gradativamente expulsos das terras em que habitavam. Consequência direta
disso foi o aumento da migração dessa população mais pobre do campo para
a cidade. A desordenada ocupação do espaço urbano promoveu, então, o
inchaço habitacional e o aumento do número de favelas. Os trabalhadores
que permaneciam no campo continuavam sendo superexplorados e, por vezes,
sofriam de inúmeros problemas de saúde, principalmente a desnutrição. Sobre
esse cenário, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), através de
um documento dirigido à Igreja do Brasil, em 19843, nos diz:
90
“Na década de 1970 três grandes eventos, cada um deles com sua
própria dinâmica, mas interligados, provocaram ondas de choque na economia
mundial e no Brasil. Em primeiro lugar, o aumento do preço do petróleo entre
1973 e 1974 afetou profundamente o Brasil, que era um grande consumidor
dessa commodity [...] Posteriormente, outra crise no Oriente Médio levou a
um segundo choque de preços entre 1978 e 1980, provocado pela Revolução
Islâmica no Irã (fevereiro de 1979) e pelo início da Guerra Irã-Iraque (setembro
de 1980) [...] O terceiro choque da década foi o aumento da taxa de juros
devido à mudança da política monetária norte- americana.” (PRADO, 2018;
LEOPOLDI, 2018, p. 79-80)
Podemos analisar que os fatores descritos acima nos apresentam uma
completa contradição na política econômica e na imagem dos governos mili-
tares. Somando-se a isso, o já mencionado rápido e desgovernado inchaço do
espaço urbano facilitou com que o estado de insalubridade estivesse presente
na maioria das habitações brasileiras. A falta de água, de esgotos e o tratamento
dos mesmos facilitou o aparecimento de diarreias, parasitoses, infecções respi-
ratórias e alergias. Em consequência disso, houve um aumento considerável
de mortes em famílias que detinham menores rendas salariais, sobretudo de
crianças com até 5 anos. De acordo com o Professor Flávio Shieck Valente (apud
ALVIM, 2016), em 1979 havia pelo menos duzentas mil crianças morrendo de
fome anualmente no Brasil.
O historiador Jorge Ferreira, em capítulo acerca da transição da Ditadura
Militar para a Nova República, nos apresenta que, em 1984:
91
A falta de emprego vai destruindo a estabilidade das famílias
e ameaçando-lhes a própria sobrevivência. O desemprego, o
subemprego, a fome, a mortalidade infantil, a marginalização,
as favelas, os menores abandonados, o analfabetismo, a pros-
tituição, a violência, a morte prematura são as consequências
imediatas e visíveis desse processo que se origina no campo e
culmina nos grandes centros urbanos. (CNBB, 1984)
92
o entendimento de diversas questões da Igreja Católica no Brasil. Já em 1955 é
criado o Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), reunindo os bispos
de todos os países da América Latina. Além disso, havia no país uma onda de
movimentos grevistas na cidade e no campo, o que possibilitou, por exemplo,
a criação das Ligas Camponesas4, a partir de 1955. No Vaticano, é em 1959,
durante o pontificado de João XXIII, que a Igreja começa a pensar a realização
do Concílio Vaticano II que, definitivamente, iria transformar a liturgia e a
pastoral Católica. Acontecido entre os anos de 1962 e 1965 e passando pelos
pontificados de João XXIII e Paulo VI, a reunião mundial dos bispos produziu
uma vasta literatura que tornou “a cultura católica muito mais permeável às
ciências sociais modernas e a estas questões” (COELHO, 2006, p. 29).
Impulsionados pelo Concílio Vaticano II, os bispos da América Latina,
através do CELAM, reúnem-se em 1968, na conhecida Conferência de Medellín,
na Colômbia, buscando ler o Concílio à luz da realidade latino-americana. É lá
onde a evangélica opção preferencial pelos pobres e o tripé de leitura bíblica “ver,
julgar e agir”5, proposto em 1961 pelo papa João XXIII em sua encíclica Mater
et Magistra, são assumidos pelos bispos como proposta pastoral de construção
da fé do cristãos latino-americanos. Os bispos voltam a se reunir em 1979,
em Puebla, no México, e lá “o episcopado brasileiro teve grande importância
na manutenção de uma linha social comprometida com a transformação da
sociedade” (COELHO, 2006, p. 39).
Também nesse período, os Bispos do Brasil estavam impulsionados
pelas ideias da Teologia da Libertação6, em voga na América Latina desde o
final da década de 1950, e que ganhava força com os acontecimentos sociais
4 Surgidas na década de 1950, as Ligas Camponesas eram um movimento de luta pela reforma
agrária no Brasil. A Igreja Católica contribuiu significativamente com o movimento ao declarar
apoio a reforma agrária. Dando uma maior visibilidade para as reivindicações dos trabalhadores.
Vale ressaltar que o movimento foi duramente reprimido durante os anos da Ditadura Militar
(1964-1985)
5 O método de leitura bíblica “ver, julgar e agir” é utilizado pela Igreja Católica no Brasil até os dias
atuais. Esse método convida os cristãos a observarem a realidade em que vivem, destacando fatos e
acontecimentos do cotidiano, para a partir disso julgá-los à luz da leitura bíblica proposta. Assim,
os cristãos são impulsionados a agir na sociedade, buscando promover ações que transformem
a realidade, visando a construção do Reino de Deus na terra. Atualmente, foi acrescentado ao
método os passos avaliar e celebrar. Esse caminho de leitura e interpretação bíblica é utilizado
nas atividades desenvolvidas pela Pastoral da Criança, como poderemos ver no próximo tópico
deste artigo. Além disso, o método é utilizado nas Campanhas da Fraternidade, promovidas
anualmente pela CNBB.
6 De acordo com Catão (1986) a Teologia da Libertação surge na América Latina em 1966 e
tem como objetivo responder aos problemas sociais do continente à luz da doutrina cristã,
contribuindo assim para a transformação social da região.
93
e políticos no processo histórico da Guerra Fria, das Ditaduras na América
Latina e de todos os acontecimentos dentro da própria Igreja Católica, como já
mencionado acima; “O movimento de ascensão do cristianismo de libertação
trouxe a CNBB para o centro da disputa política, seja na vida social e política
ou na vida inter-eclesial.” (COELHO, 2006, p. 40.)
Durante as década de 1970 e 1980, a CNBB, dentro de seus limites
pastorais, lança diversos documentos, estudos e pronunciamentos a favor da
cidadania e da redemocratização e denunciando a fome, a desigual distribuição
das terras, o trabalho, as migrações, a miséria, a violência, o desenvolvimento
desigual das regiões do país, dentre outros aspectos de importância social.7 É
justamente nesse processo histórico de profundo olhar para as causas sociais,
que é possível vislumbrar a criação da Pastoral da Criança, em 1983. Afinal:
94
Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, quando o mesmo participava de um encontro
acerca da miséria, em Genebra, na Suíça. Grant sugeriu a Arns que a Igreja
poderia reverter a situação da mortalidade infantil no Brasil. O Arcebispo,
através de diálogo com sua irmã, Zilda Arns, médica pediatra e sanitarista,
buscou pensar ações para o combate da alta mortalidade infantil no país.
Sobre a Pastoral, o seu site institucional a define como “uma organiza-
ção comunitária de atuação nacional e internacional, que tem o seu trabalho
baseado na solidariedade humana e na partilha do saber” (Pastoral da Criança,
2020). A Pastoral, fundada oficialmente em 1983, no município de Florestópolis
(PR), é ainda hoje, desde sua fundação, um organismo da CNBB. Seu grande
objetivo é o de ir ao encontro de famílias, em sua grande maioria em situação de
vulnerabilidade social, e através do diálogo entre líderes (agentes da Pastoral) e
essas famílias, busca-se ajudar no saudável desenvolvimento físico e psicossocial
de crianças de 0 a 6 anos, idade em que é possível prevenir diversos problemas
no desenvolvimento infantil. Vale ressaltar, que a Pastoral da Criança está ligada
diretamente a um organismo cristão católico, mas a profissão da fé católica
não é um pré-requisito para que as famílias sejam assistidas pela Pastoral,
configurando-se, também, como uma organização de atividade ecumênica.
A cidade de Florestópolis (PR), não foi escolhida para ser a gênese da
Pastoral por acaso. Em entrevista à Revista Estudos Avançados em 2003, Zilda
Arns afirma que em 1983, a taxa de mortalidade infantil da cidade paranaense
era de 127 crianças por mil. A médica iniciou o trabalho a partir da elaboração
de materiais educativos, de própria autoria, em linguagem popular, contendo
orientações alimentares para o desenvolvimento saudável das crianças e também
das mães que se encontravam em período de gestação. Assim, afirma:
95
materiais educativos a Pastoral pôde capacitar diversas pessoas que se colo-
cavam à disposição para ir ao encontro de inúmeras famílias que viviam nos
grandes bolsões de pobreza das cidades, ou mesmo nas comunidades pobres dos
interiores brasileiros. É necessário mencionar ainda que os líderes da Pastoral,
antes de iniciarem as visitas às famílias, recebiam livro com as orientações que
deveriam ser repassadas, e também tabelas e gráficos para serem preenchidos
com os dados das crianças. Esse material permitia o acompanhamento do
desenvolvimento das crianças assistidas.
O trabalho conjunto dos líderes previamente treinados e informados,
junto da recepção das famílias, foi chão fecundo para o desenvolvimento de
pequenas ações, mas que seriam essenciais para o combate à fome e a mortali-
dade infantil. Todos os meses os agentes da Pastoral visitavam as famílias que
acompanhavam, e faziam seu trabalho de diálogo e de orientações sanitárias,
como, por exemplo, a divulgação de alternativas alimentares simples, como a
receita do soro caseiro. Nos afirma Antônio Romildes do Nascimento, coor-
denador da Pastoral da Criança no Estado do Ceará, em entrevista realizada
no início de 20208, que essa simples mistura de água, sal e açúcar foi capaz de
salvar a vida de muitas crianças, pois a solução reestabelecia as quantidades
nutricionais necessárias para a hidratação do corpo infantil.
Além disso, os agentes, durante as visitas, informavam e acompanhavam
as mulheres gestantes, dando-lhes orientações básicas do pré-natal como a
conscientização para a amamentação. A falta dessa atividade humana natural,
por sua vez, aumentava a chance do aparecimento de diarreias e consequente
desidratação nas crianças. Havia também as orientações com relação às vacinas
que as crianças deveriam receber em seus primeiros anos de vida.
Faz-se necessário mencionar que, mensalmente, as famílias de uma deter-
minada comunidade assistida pela Pastoral da Criança encontravam-se em um
local de fácil acesso para uma reunião denominada “Celebração da Vida”. Neste
dia, todos os líderes reúnem-se para pesar e medir as crianças, identificando
se estavam desnutridas, com o peso correto, ou mesmo acima do peso ideal.
Essa identificação era feita através de uma planilha que possuía em seu centro
8 As entrevistas mencionadas neste artigo foram realizadas nas datas de 11/02/2020 e 18/02/2020
pelo autor deste artigo, na sede da Pastoral da Criança da Arquidiocese de Fortaleza, sendo a
primeira realizada com representante da Pastoral da Criança na Arquidiocese de Fortaleza,
Ideuza, e a segunda com Antônio Romildes do Nascimento, coordenador da mesma Pastoral à
nível regional (CNBB - Regional Nordeste 1 - Ceará)
96
uma linha atravessando toda a página. Se a criança estivesse abaixo dessa linha
significava que estava em situação de desnutrição. Atualmente, os líderes se
utilizam de pequenos cartões, ou mesmo de aplicativo, para essa identificação.
9 Programa semanal de rádio, produzido pela Pastoral da Criança, com duração de 15 minutos e
retransmitidos por centenas de emissoras em todo o Brasil. Nesses programas, há sempre presente
entrevistas de mães, de líderes, de especialistas da área nutricional e de segurança alimentar,
de líderes religiosos e da própria Zilda Arns. Há uma pedagogia muito simples e popular nos
programas. Informações são dadas, alternando-as com as entrevistas e pequenas “historinhas”
que buscavam narrar os fatos vivenciados pelos líderes. Ao final dos mesmos havia sempre um
espaço para uma reflexão bíblica. Os programas gravados desde o ano de 2001 estão disponíveis
no site da Pastoral, em: https://www.pastoraldacrianca.org.br/radio.
97
da Criança que tava tirando muita criança da desnutrição. Até
muita gente assim pensou que o caso da Juliana não tinha mais
jeito. Porque a criança no estado que ela tava, não caminhava.
E com essa massa a Juliana voltou a caminhar. E hoje tá uma
criança saudável e qualquer pessoa pode vir conferir o nosso
trabalho que foi feito com a multimistura pra ver o efeito que ela
deu nessa criança chamada Juliana. (PROGRAMA DE RÁDIO
VIVA A VIDA, 2001)
98
alcançados pela Pastoral da Criança no combate à fome, com o uso da MM.”
(VELHO e VELHO, 2002, p. 152). Por fim, VELHO e VELHO, concluem que:
99
questões da saúde e da criança. Há o sentimento de justiça e de
direitos do povo, também sem consciência de classe. Mas não há
o envolvimento com o movimento sindical nem dos movimentos
populares como ocorreu nos anos 70 e 80. É uma nova forma de
se relacionar.” (REIMBERG, 2009, p. 46.)
100
públicas estejam sendo, de fato, desenvolvidas. Extrapolando o período princi-
pal, estabelecido para o debate central do artigo, constatamos que os governos
petistas de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff impulsionaram o
debate ao direito à alimentação no País. A criação de programas sociais de
distribuição de renda e combate à fome, como o Fome Zero e o Bolsa Família,
que inclusive buscaram apoio e cooperação na Pastoral da Criança, contribuiu
para o combate à fome no País. A criação e a atuação eficaz desses programas
sociais e governamentais, e a sua relação com o serviço da Pastoral podem,
inclusive, servir de inspiração para a continuação dessa pesquisa em um
outro momento.
Vale mencionar ainda que esse debate acerca da questão famélica na
nação não está finalizado. Como já mencionado no início deste artigo, a
ameaça constante do retorno do Brasil ao Mapa da Fome nos faz estar atentos
às questões do tempo presente e a contínua luta para a erradicação da fome, da
desnutrição e da mortalidade infantil. Desde 2017, o parco aumento do salário
mínimo nacional (abaixo do nível da inflação), somado a contínua carestia
dos produtos básicos de alimentação, como carne, feijão e arroz, acrescido
do aumento do dólar e do barateamento do real, volta a ameaçar o direito
à alimentação da população, sobretudo da grande maioria pobre da nação.
Enquanto o país gradativamente aumenta suas exportações, a concorrência por
alimentos dentro do Brasil também cresce, ocasionando sua subida de preço.
O lançamento da nova nota de R$ 200,00 é também prova da desvalorização
da moeda brasileira.
Pode-se ainda acrescentar nessa reflexão que o incentivo feito por parte do
governo ao agronegócio e o baixo incentivo fiscal dado a programas de agricultura
familiar contribuem significativamente para o quadro famélico no país. Enquanto
a produção de alimentos está concentrada nas mãos de poucos latifundiários, e
em sua maioria está voltada para a exportação, os trabalhadores do campo, por
vezes, não possuem terras próprias nem para produzir e nem para morar, tendo
de, muitas vezes, ficar subordinados aos desejos de patrões violentos e autoritários.
Os interesses dos grandes latifundiários, por sua vez, são defendidos por uma
bancada ruralista que possui muita força política nas casas legislativas. Além
disso, a grande mídia faz um incentivo diário, e em horário nobre, à política
capitalista e excludente do agronegócio, o que dificulta aos consumidores dessas
informações refletir sobre as lutas que são travadas no campo e os direitos dos
trabalhadores rurais. Assim, imageticamente, os consumidores acabam tendo um
101
olhar mais bondoso para o agronegócio, e esconde-se nele a luta pela Reforma
Agrária e pelo direito à terra, à alimentação, e de produzir para o sustento familiar.
A pesquisadora Ana Manoela Chã (2018) nos revela:
FONTES
PASTORAL DA CRIANÇA. Guia do líder da Pastoral da Criança: para países de
língua portuguesa. Pastoral da Criança, 16ª ed. Curitiba, 2016
. Programa de rádio Viva a Vida
. Revista Pastoral da Criança
Jornais
DESNUTRIÇÃO. Para ministério, a farinha que a Pastoral do Menor afirma ter adotado
com êxito não tem valor nutritivo. Saúde não reconhece a multimistura. Folha de
102
São Paulo, 08/10/2000. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/
ff0810200009.htm#:~:text=O%20Minist%C3%A9rio%20da%20Sa%C3%BAde%20
tamb%C3%A9m,farinha%22%2C%20afirma%20Denise%20Coitinho. Acesso em 28
de dezembro de 2020.
O dia em que Roger Moore veio a Fortaleza. O Povo online, 23/05/2017. Disponível
em: https://blogs.opovo.com.br/jocelioleal/2017/05/23/o-dia-em-que-roger-moore-
-veio-fortaleza/. Acesso em 24 de setembro de 2020.
Passar fome no Brasil é uma grande mentira”, diz Bolsonaro. Carta Capital, 2019.
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/passar-fome-no-brasil-e-u-
ma-grande-mentira-diz-bolsonaro/. Acesso em 20 de março de 2020.
BIBLIOGRAFIA
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BÍBLIA. Português. In: Bíblia Sagrada: Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1990.
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coletiva, Rio de janeiro, v. 15, n. 4, p. 2085-2093, 2010.
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de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
CATÃO, Francisco A. C. O que é teologia da libertação. São Paulo. Ed. Nova Cultiral:
Ed. Brasiliense, 1986 – Coleção Primeiros Passos. 100p.
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para a construção da hegemonia. 1.ed. – São Paulo: Expressão Popular, 2018. 207 p.
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do Campo, 2006.
103
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FERREIRA, Jorge. O presidente acidental: José Sarney e a transição democrática. In: O
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PRADO, Luiz Carlos Delorme; LEOPOLDI, Maria. O fim do desenvolvimentismo: o
governo Sarney e a transição do modelo econômico brasileiro. In: O tempo da Nova
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REIMBERG, Cristiane Oliveira. Comunicação, Educação e Saúde: a ação da Pastoral
da Criança para a cidadania na Arquidiocese de São Paulo. Dissertação (Mestrado).
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação. Área de concentração:
Interfaces Sociais da Comunicação – Escola de Comunicação e Artes da Universidade
de São Paulo. São Paulo, 2009.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. 1ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019.
VELHO, Lea e VELHO, Paulo. A controvérsia sobre o uso de alimentação ‘alternativa’
no combate à subnutrição no Brasil. História, Ciências, Saúde, Rio de Janeiro, vol.
9(1):125-57, jan.-abr. 2002.
104
A luta para garantir um direito:
disputas em torno
do combate à fome.
Ana Karolina Freire Oliveira1
Antonio Douglas Brito da Silva2
Larissa de Oliveira Maia3
INTRODUÇÃO
105
suas repercussões na questão da fome, utilizando como espaço de conflitos a
região da Chapada do Apodi, no Ceará.
O primeiro tópico busca analisar as disputas a partir das noções de segu-
rança e soberania alimentar, entendendo que interesses antagônicos mobilizam
nomenclaturas diferentes acerca das condições de produção, comercialização e
consumo dos alimentos. Na segunda parte, pretendemos elucidar os embates
em torno das diferentes concepções de agricultura, a partir do agronegócio e da
agricultura familiar. Por último, procuramos entender como, historicamente,
o Estado brasileiro favoreceu o agronegócio sob o discurso de que este é um
setor primordial nas movimentações econômicas do país.
106
elevaram os índices de produtividade. Entretanto, os números relativos à fome
no mundo não diminuíram, fazendo com que esta ideia fosse cada vez mais
questionada, de modo que a segurança alimentar passou a ser colocada numa
esfera mais individual de acesso e consumo de alimentos, dependendo agora
da capacidade de compra e do valor nutricional dos alimentos.
Por outro lado, a noção de soberania alimentar surge a partir da organiza-
ção dos movimentos sociais de camponeses e pequenos produtores. Desafiando
as pretensões internacionalistas de padronização alimentar, a proposta coloca
em evidência as condições locais de produção e comercialização dos alimentos.
Nesse sentido, é possível perceber uma insatisfação frente aos grandes projetos
de combate à fome, nos quais negligenciam o investimento na agricultura fami-
liar ao mesmo tempo que financiam empreendimentos de grandes produtores.
Este aspecto denúncia as contradições do modelo capitalista, evidente em países
como o Brasil, o país é líder nos índices de exportação de produtos primárias,
enquanto um número considerável de brasileiros vive sem o pleno acesso à
alimentação. Além disso, a afirmação da soberania alimentar está diretamente
associada à qualidade do produto consumido, apresentando uma preocupação
com o lugar, a forma e seus produtores, mostrando intransigência ao uso de
agentes químicos utilizados para acelerar a produção, por entender que essas
substâncias são prejudiciais à saúde e ao bem-estar da população.
Os dois fragmentos a seguir falam das noções de segurança e soberania
alimentar, respectivamente. O primeiro se trata da Declaración de Roma: sobre
la seguridad alimentaria mundial y plan de acción, documento elaborado pela
Cúpula Mundial de Alimentação em Roma no ano de 1996, onde dirigentes
de diversos países se reuniram para discutir o problema da fome mundial.
O segundo foi retirado da Declaración de Tlaxcala, elaborada a partir da
Conferência Internacional da Via Campesina, que ocorreu no mesmo ano de
1996, no México, reunindo camponeses e agricultores de todos os continentes,
participaram 69 organizações e movimentos sociais de 37 países.
107
desafiar de forma colectiva sus condiciones. Nos une el rechazo
a las condiciones económicas y políticas que destruyen nuestras
formas de sustento, nuestras comunidades, nuestras culturales
y nuestro ambiente natural. Estamos determinados a crear una
económica rural basada en el respeto a nosotros mismos y a la
tierra, sobre la base de la soberanía alimentaría, y de un comercio
justo. (Via campesina, 1996, sp)
108
Em contrapartida, o segundo fragmento apresenta uma posição crítica as
políticas econômicas internacionais. A Via Campesina afirma que a soberania
alimentar é uma condição prévia para que se garanta a genuína segurança
alimentar, esta ideia desafia as discussões internacionais acerca da segurança
alimentar, pois segundo a visão dos movimentos sociais estas mobilizações para
criar um conceito a fim de dimensionar a situação da fome no mundo, não
leva em consideração as reais condições de produção, quem é o produtor e a
qualidade dos alimentos. Nesse sentido, a fala da moradora do acampamento Zé
Maria do Tomé, Antônia Luzia de Oliveira Costa, é interessante para a melhor
compreensão deste argumento:
109
Por fim, é importante destacar que a noção de soberania alimentar
dos movimentos sociais não está atrelada a uma visão de mundo ufanista
que pretende exaltar os valores nacionais e criar fronteiras ideológicas e
socioculturais em relação ao mundo. A soberania alimentar faz parte de uma
agenda de lutas contra a fome e direito à alimentação, contempla camponeses
e movimentos sociais de todo o mundo que se contrapõem e denunciam as
contradições de uma política econômica internacional incentivadora da super-
produção, mas desinteressada em resolver a violência, a concentração fundiária
e os conflitos territoriais dos países produtores. O Lugar de reivindicação da
soberania alimentar é o lugar político que se opõe a injustiça alimentar, que é
crítico de um comércio internacionalista que deseja padronizar e industrializar
a alimentação, com interesses de grupos econômicos e políticos bem definidos
que nunca foram capazes de resolver o problema da fome global.
110
Nesse sentido, alguns dados são relevantes. Segundo os décimos segun-
dos relatórios da CONAB (Companhia Nacional de Abastecimento) relativos a
cada safra, estima-se que a safra 2016/2017 produziu 238,7 milhões de toneladas
de grãos; em 2017/2018, a produção foi de 227,7 milhões de toneladas de
grãos; em 2018/2019, a estimativa sobe 242,1 milhões de toneladas de grãos;
e em 2019/2020, estima-se que a safra foi de 257,8 milhões de toneladas de
grãos, sendo os últimos 3 anos com quebra de recordes de produção. O Brasil,
segundo a EMBRAPA e a FARSUL (Federação de Agricultura do Estado),
foi o produtor de “comida suficiente para estimados 1,6 bilhão de pessoas”
(JORNAL DO COMÉRCIO, 15/10/2020), ou seja, produzindo 6 vezes mais do
que sua necessidade (BLOG EMBRAPA SOJA, 21/09/2020). Por que, então,
entre os anos de 2017 e 2019, 43,1 milhões de brasileiros sofriam em situação
de insegurança alimentar (PORTAL DE NOTÍCIAS DO UOL, 13/07/2020)
e em 2018, 5,2 milhões de brasileiros sofriam com a fome, segundo a FAO
(OBSERVATÓRIO DO TERCEIRO SETOR, 29/04/2019)?
Tais dados se contrapõem fortemente ao discurso político e midiático
desenvolvido pela concepção de agricultura moderna do agronegócio, imple-
mentado a partir das noções de alta produtividade agrícolas da “Revolução
Verde”. É necessário indagar se o agronegócio possui realmente o intuito de
alimentar a população brasileira ou até mesmo ser um dos agentes na luta pelo
combate à fome, seja em âmbito nacional ou internacional. Cabe apontar que a
concepção de agricultura deste setor é focada no mercado externo, exportando
soja, carnes, café, cana de açúcar, entre outros produtos para países como China,
Estados Unidos, Japão e Países Baixos, e majoritariamente direcionada para
as indústrias com o processamento desses cultivos em outros produtos, como
industrialização de alimentos e produção de combustíveis. Vastas extensões
de terras de um só proprietário, hectares e mais hectares monocultores
acompanhados de máquinas agrícolas, agrotóxicos e muito poder econômico
e político. Os grupos de ruralistas do Brasil se fartam com benesses políticas e
implementam a largos passos projetos de enriquecimento que culminam em
destruição ambiental, aprofundamento das desigualdades sociais e aumento
da pobreza no país.
Este fenômeno nacional não difere do que se experiencia na Chapada
do Apodi, no Ceará, mais especificamente estudada aqui, na Comunidade
do Tomé. Grandes empresas se instalaram na região ao longo dos anos 2000,
expulsando pequenos produtores e inviabilizando a permanência de quem
111
conseguiu inicialmente manter suas terras, estabelecendo uma prática de produ-
ção agrícola devastadora para o meio ambiente, esgotando o solo e as reservas
aquíferas presentes, fazendo uso excessivo de agrotóxicos que prejudicam a
saúde de trabalhadores e da população em geral.
A concepção agrícola do agronegócio é pautada em uma superprodução,
quanto mais e em menos tempo se produz, mais se vende e mais lucros são
revestidos para a empresa. Neste processo social e ambientalmente devastador, é
instituído um regime de trabalho exaustivo, sem suporte ou descanso adequado,
com longas cargas horárias e com fortes pressões para a manutenção de um
acelerado ritmo de trabalho. Realidade bastante experienciada pelo senhor
Raimundo Félix nas empresas localizadas na Chapada do Apodi:
Depois desse trabalho, no qual ela ficou durante 3 meses, ela foi para
uma outra empresa, também localizada na Chapada e a realidade era ainda
pior: “A gente trabalhava no galpão e aí a gente chegava de 8 da manhã e ia até
(...) 1 hora, 2 horas da manhã do outro dia (...) então a gente dormia muito
pouco, também não suportei, porque era muito pesado.” (COSTA, Op. Cit.).
No que concerne ao meio ambiente, o agronegócio empreende a destruição
de inúmeros hectares de terras, geralmente ateando fogo e dizimando a flora e
a fauna deste território. Só na chegada dessas empresas, a degradação ambiental
112
é imensurável, o solo perde seus nutrientes, ficando cada vez menos fértil, e
centenas de espécies morrem e/ou perdem seu habitat. O feroz desequilíbrio
ambiental foi iniciado. Após isso, é iniciada a plantação em monocultura, ou
seja, esses milhares de hectares darão espaço para um só tipo de produto. Com
isso, o solo está sendo desgastado, pois uma mesma planta consome sempre os
mesmos nutrientes incansáveis vezes, sem tempo para o solo se recompor, até
que ele se esgota e fica infértil. Com relação à água para o cultivo no agronegó-
cio, dois problemas ganham destaque: a contaminação das águas pelo uso dos
venenos, aumentando os níveis de intoxicação das pessoas, da fauna e da flora
nas proximidades, e a excessiva demanda desse recurso natural, o que pode levar
ao esgotamento das águas subterrâneas ou diminuição dos volumes dos rios.
Esse foi um dos problemas sofridos pelas comunidades da Chapada do
Apodi, como relatou Seu Raimundo Félix, “o problema da água, quem secou as
nossas águas aqui foram as empresas. Porque puxava de baixo até acabar. Secou tudo
mesmo” (SILVA, Op. Cit.).. Após o esgotamento das águas subterrâneas, algumas
empresas, como a Del Monte, abandonaram suas atividades nas terras da Chapada,
deixando as comunidades, predominantemente formada por agricultores, sem
condições de continuar com seus trabalhos e suas formas de sobrevivência.
Além disso, vastas extensões de um só cultivo facilitam a presença e
proliferação de pragas e é neste momento que os agrotóxicos entram e os crimes
socioambientais se tornam cada vez mais evidentes e alarmantes. A aplicação
dos mais diversos tipos de veneno é responsável pela contaminação do solo,
da água, do ar, do alimento que está sendo produzido, pela intoxicação dos
trabalhadores - que não estão adequadamente preparados para o manuseio
dessas substâncias tóxicas e com equipamentos de proteção que reduza esse
contato direto - e das comunidades vizinhas, onde os resíduos tóxicos chegam
diariamente. Assim, a saúde e a vida das pessoas são colocadas em risco,
aumentando a incidência de doenças como câncer e má formação de bebês,
por exemplo.
Luzia relata sobre como os trabalhos nas empresas provocam riscos à
saúde dos trabalhadores, situação essa agravada pela falta de equipamentos de
proteção individual:
113
melão para mim, eu peguei com a mão e machuquei a mão (...)
aí acabei saindo da empresa com 3 meses.
(...) O veneno (...) a gente tinha muito contato. A gente usava
luva, uma luvinha de pano, que aí passava tudo, (...) as blusas
também eram blusas comuns, (...) finas, calça fina, roupa normal
da gente mesmo (...). O que eles (a empresa) ofereciam era essa
luva, bota e chapéu (...). E tinha um óculos que a gente usava,
mas aí quando colocava, a gente não enxergava quase nada
(COSTA, Op. Cit.).
114
noções fazem contraponto às tais práticas, principalmente partindo da luta
pelo combate à fome. Neste sentido, é fundamental perceber a importância
da agricultura familiar, cujos princípios de cultivo vão na direção contrária à
concepção de agricultura do agronegócio. A agricultura familiar consiste em um
sistema de produção alimentar em menor escala, dedicado para a subsistência
e, quando se tem excedente, ele é voltado para o abastecimento interno das
cidades ou regiões. Praticada por pequenos agricultores e suas famílias, mas
também gerando empregos nas comunidades, e desenvolvida em pequenas
posses de terras onde são cultivados variados tipos de alimentos, esta concepção
de agricultura é um dos agentes de combate à fome e à extrema pobreza. Ao se
desenvolver e incentivar a agricultura familiar, geram-se possibilidades de exis-
tência e sobrevivência para as famílias, tendo em vista que se produz alimentos
que vão diretamente para o consumo diário das pessoas, que não passam por
processamentos e industrialização desses produtos e que proporciona uma
renda para essas famílias.
Próximo à agricultura familiar, encontra-se a prática da agroecologia,
uma concepção de produção agrícola “se aproximem ao máximo dos ecossis-
temas naturais” (FAIDEN, 2005), ou seja, que estabeleça com a natureza uma
relação respeitosa e responsável de preservação, cuidados e sustentabilidade.
A agroecologia se baseia em uma redução até a anulação do uso de produtos
químicos e agrotóxicos nos cultivos, em um sistema de policulturas, zelando
pela diversidade de espécies, tanto na fauna como na flora, e pela manutenção
das boas condições e do uso adequado e consciente dos recursos naturais,
cuidando da água e do solo e buscando provocar os mínimos desequilíbrios
ambientais possíveis. Para isso, a agroecologia demanda dos conhecimentos
tradicionais para a produção de alimentos, ao mesmo tempo que não dispensa
novas técnicas de produção e preservação ambiental. Essa concepção de agri-
cultura sustentável e ambientalmente comprometida também traz a perspectiva
de um plantio para subsistência e, quando se tem excedentes, para o mercado
local, se distanciando uma noção agroexportadora.
No Acampamento José Maria, localizado na Chapada do Apodi e cercado
por empresas do agronegócio, busca-se desenvolver, juntamente com o modelo
de agricultura familiar, as noções de produção e de lutas agroecológicas. Mônica,
moradora do acampamento, nos fala das experiências e dos desafios de sua
comunidade na luta por uma agricultura sustentável, livre de agrotóxicos e
contra as práticas do agronegócio:
115
Nós também abraçamos a causa da agroecologia mesmo sabendo
que é bem difícil (...), principalmente porque a gente tá cercado
do agronegócio (...), mas a gente tenta sim, bastante, diariamente
e fica incentivando as outras pessoas a não usar nenhum tipo de
veneno, de agroquímico (...). A gente fica tentando, tentando, mas
tem gente que tem a cabeça meio pesada ainda, que ainda teima
(...), mesmo aqui dentro. (...) O agronegócio entrou na cabeça das
pessoas e pra tirar é difícil. Porque as pessoas que moram aqui,
produzem, todas já produziram lá fora trabalhando nas empresas
e eram só o que faziam e que viam (OLIVEIRA, 2020).
116
Precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse
momento de tranquilidade no aspecto de cobertura da imprensa,
porque só fala de COVID e ir passando a boiada e mudando todo
o regramento e simplificando normas. De IPHAN, de ministério
da Agricultura, de ministério do Meio Ambiente, de ministério
disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços
pra dar de baciada a simplificação, é de regulatório que nós
precisamos, em todos os aspectos (BRASIL DE FATO, 2018)”.
117
que Ricardo Salles, com o apoio do governo, utiliza o aparelho do Estado em
benefício do agronegócio.
Algumas medidas foram realizadas com esse objetivo. A diminuição
das distâncias para que ocorra a pulverização aérea de agrotóxicos em relação
a captação de água para abastecimento de populações e da distância para
povoações, por exemplo. As distâncias mínimas para que ocorra as dispersões
de agrotóxicos em relação aos exemplos citados são, respectivamente, 500
metros e 250 metros.
Diante dessa medida, é importante pontuar que essa ação já trouxe
problemas sérios para o município de Limoeiro do Norte, no Ceará. A Faculdade
de Medicina, da Universidade Federal do Ceará, relacionou casos de bebês que
estavam nascendo com malformação e/ou desenvolvendo puberdade precoce
com o uso abusivo de agrotóxicos na região, que também era realizado por
meio de pulverização aérea.
A autorização que regulariza propriedades rurais em terras indígenas
e, assim, permite a exploração e comercialização de terras indígenas que não
foram homologadas evidenciam também o apoio ao setor do agronegócio, que
pode expandir suas áreas de exploração sem sofrer problemas com a lei. Além
disso, um caso que deixa bem claro a política do governo em desrespeito às
práticas de combate a ações ambientais ilegais foi a demissão, realizada por
Ricardo Salles, do diretor de proteção ambiental do Ibama, Olivaldi Azevedo,
após repercutir uma ação do Ibama contra garimpeiros que estavam concen-
trados em terras indígenas no Pará (Brasil de Fato, 09/06/2020). Ou seja, o
funcionário foi demitido por realizar, de modo correto, seu trabalho.
É importante, também, discorrer sobre a verdade falada por Bolsonaro
em relação ao agronegócio, que ele “continua pujante”. De fato, a importância
desse setor na política econômica do Brasil continua crescendo de modo consi-
derável.5 No entanto, é necessário questionar como o agronegócio conseguiu se
tornar essa potência na economia brasileira, que, em muitos casos, não é passível
nem mesmo de críticas e nem da possibilidade de se buscar alternativas mais
sustentáveis para a plantação de alimentos, tendo em vista os diversos problemas
que os métodos utilizados pelo agronegócio causam ao meio ambiente.
Infelizmente, o apoio ao agronegócio não é uma característica exclu-
siva do governo Bolsonaro. Diversas políticas ao longo de outros governos
5 Em 2020, o percentual participativo do agronegócio no PIB brasileiro era de 21,1% e em 2021
está previsto uma alta de 3% na participação desse setor no PIB.
118
beneficiaram esse setor e colocaram outros processos de produção de alimentos,
como a agricultura familiar, para as margens.
Mais conhecido por sua política de privatizações de estatais de grande
porte no Brasil, o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) também
desempenhou políticas agrárias que são importantes para o entendimento
do boom que teve o agronegócio. Apesar de ter tentado criar uma imagem
de governo que avançou em relação às questões de diminuir as desigualdades
existentes no tocante a distribuição de terras por meio de uma considerável
política de assentamentos, não demorou muito para que alguns estudos eviden-
ciassem a farsa desse projeto. “... apesar da magnitude quantitativa, não passou
disso; a política agrária do governo não deu condições estruturais para que as
famílias, maioria desempregados oriundo das cidades, pudessem se instalar e
produzir nas terras” (MESSIAS, 2017, p. 27). Além disso, a conquista de diversos
espaços de terra só foi possível devido à política de ocupação desenvolvida
pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), como meio de
reivindicar o direito de acesso a um lugar para viver com dignidade.
Pode-se, assim, perceber a existência de conflitos entre parte da sociedade
e o Governo Federal. Mediante a isso, o Estado, diante da presença de inúmeras
contradições, como a concentração de grandes quantidades de terra sob a
guarda de uma única pessoa e milhões de pessoas sem nenhum pedaço de terra
para poder viver, age para manter a ordem da sociedade capitalista e a defesa da
propriedade privada. Dessa forma, para algumas famílias, o governo brasileiro
não se responsabilizou em garantir as condições reais para que pudessem
realizar seus trabalhos na terra e a violência foi o meio utilizado para anunciar
que a pauta da distribuição de terras não era essencial naquele governo.
Nesse período (1995-1996), dois casos ficaram internacionalmente
conhecidos e levaram o Brasil a responderem na Comissão Interamericana dos
Direitos Humanos (CIDH) e da Organização dos Estados Americanos (OEA)
por violação do direito à vida e dos direitos humanos. Foram o Massacre de
Corumbiara, em Rondônia, e o Massacre do Eldorado dos Carajás, no Pará.
Em 1995, a Fazenda Santa Elina, que possuía cerca de 22 mil hectares,
localizada no estado de Rondônia, foi ocupada por pessoas que não possuíam
terra para morar e trabalhar. Dias depois da ocupação, uma reintegração de
posse foi aceita pela Justiça do Estado a pedido do dono da fazenda. Diante disso,
um primeiro grupo de policiais foi tentar retirar as famílias que ocupavam a
119
fazenda, mas não teve nenhum resultado. Posteriormente, o governo do Estado,
que era representado por Valdir Raupp, do PMDB, enviou alguns técnicos
para que fosse conseguido alguma negociação junto com as/os ocupantes para
realizarem a saída do local. No entanto, um dos líderes do movimento, Cícero
Pereira Leite Neto, disse que “foram discutidas algumas reivindicações que
seriam levadas por essa equipe a Porto Velho. Não voltaram com a resposta”
(ESTEVAM, MARQUES, 2015). Dessa forma, as famílias decidiram por perma-
necer. Assim, como resposta, a Justiça determinou que um número maior de
policiais fosse destinado para realizar a desocupação do local.
Na primeira tentativa da polícia de realizar a reintegração de posse,
Cícero Pereira argumentou que:
120
investimento em infraestrutura de transporte; direcionamento
para a pesquisa agropecuária de maneira alinhada com as
multinacionais do setor; afrouxamento do mercado de terras;
alteração na política cambial de modo a tornar o agronegócio
brasileiro competitivo no mercado internacional; e crédito rural
atrelado a programas de “modernização” do campo (MESSIAS,
2017, p. 28, apud DELGADO, 2012).
121
não iriam ocorrer, pois apontar o agronegócio como uma possibilidade para o
campo é afirmar a continuidade de um modelo que traz consigo a destruição
do meio ambiente, problemas sociais e mortes, principalmente, de lideranças
de movimentos que lutam pelo direito ao acesso à terra e, consequentemente,
contra o modelo exploratório do agronegócio.
É possível perceber, a partir dessas ações, a criação de um ambiente em
que não houvesse inimigos, que não fosse construídos antagonismos, que fosse
possível existir diálogo entre dois setores opostos. Ou seja, estava evidente a
criação de uma das principais características dos governos do PT, a conciliação
de classes. Ou seja, diferente dos outros governos aqui citados, como o de
FHC e o de Bolsonaro, que agiram e agem, respectivamente, para satisfazer
os interesses dos grandes empresários, do agronegócio, de pessoas ligadas ao
mercado financeiro, entre outras, enquanto os interesses da maioria da popu-
lação trabalhadora vão sendo, a cada dia, destruídos, os governos de Lula e
Dilma realizaram uma política para tentar agradar e satisfazer os interesses
de ambos os lados.
É inegável, principalmente no governo Lula, o avanço na realização de
políticas públicas em favor da agricultura familiar. No entanto, não podemos
jamais esquecer que em um sistema capitalista os grandes beneficiados serão
sempre os mais ricos. Assim, embora as famílias do campo tenham conseguido
algumas conquistas, o agronegócio foi o grande beneficiário das políticas
desenvolvidas ao longo dos governos do presidente e da presidenta.
A criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar (PRONAF), do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do
Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAC) foram importantes para
o desenvolvimento e melhoria de vida das famílias do campo e, também, para
o problema da insegurança alimentar, que ainda se fazia presente no país,
com milhões de pessoas vivendo sob a ameaça da fome. No entanto, essas
ações não tocavam nas estruturas responsáveis pelos problemas existentes no
campo e, também, não contribuíam para a realização da principal demanda
dos movimentos sociais e das famílias sem-terra, que era a reforma agrária.
Algumas movimentações foram realizadas, mesmo que sob pressão
dos movimentos e organizações ligadas ao campo, para o cumprimento das
promessas realizadas em campanha, mas que faziam parte de toda a trajetória
do partido, como o II Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). No entanto,
122
após a realização desses eventos só ficava mais claro que a reforma agrária repre-
sentaria uma pauta que não seria levada a sério, como deveria, pelo governo.
Da mesma forma, a violência continuaria como uma característica marcante
daqueles e daquelas que lutam pelo fim da desigualdade da concentração de
terras e da realização da reforma agrária no Brasil. “Foram 305 lideranças de
movimentos e organizações sociais ligadas ao campesinato, que tiveram suas
vidas ceifadas nos conflitos territoriais de norte a sul do país, entre 2003 e 2010”
(COSME, 2016, p. 322).
Desse modo, fica evidente que a alternância de governos, mesmo os de
políticas totalmente opostas, não foi suficiente para a priorização do modelo de
agricultura que realmente contribuiu para o desenvolvimento nacional e que é
o principal responsável por colocar os alimentos nas mesas dos brasileiros e das
brasileiras, no caso, a agricultura familiar. Diante disso, precisamos reconhecer
e afirmar as dificuldades, os limites e as impossibilidades de qualquer política
que seja realizada em prol dos trabalhadores e das trabalhadoras dentro do
sistema capitalista. Este, que foi construído e que continua sendo estruturado
para satisfazer os interesses dos grandes empresários. Assim, precisamos ser
firmes e lúcidos para dizer que o caminho para a realização da reforma agrária
no Brasil, a superação do problema da fome, o fim das grandes concentrações
de terra nas mãos de algumas poucas pessoas e de todos os outros problemas
de opressão que afetam e afligem todas as pessoas trabalhadoras desse país é
apenas um, e se dá por meio da Revolução Socialista.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este texto tentou evidenciar as disputas em torno da questão alimentar.
Fica evidente que grupos antagônicos acionam diferentes estratégias para comu-
nicar e agir em torno de seus interesses políticos, econômicos e sociais. O debate
em torno das noções de segurança e soberania alimentar tentou demarcar as
concepções divergentes a respeito do que significa o direito à alimentação.
No mesmo sentido, é nítido os antagonismos em torno das noções de
agricultura entre pequenos produtores, que praticam uma agricultura fami-
liar com foco na subsistência e abastecimento de mercados locais, e grandes
empreendimentos do agronegócio, que visam a comercialização internacional
de alimentos baseado na monocultura e degradação do meio ambiente e a
saúde das populações.
123
Ao longo das últimas décadas o agronegócio se firmou como um setor
decisivo no incremento da economia brasileira, sendo dessa forma, historica-
mente favorecido pelas políticas públicas nacionais. As mudanças de governos e
de distintos projetos políticos para o país não foram suficientes para popularizar
os prejuízos provenientes do agronegócio e sua decisiva contribuição no esca-
moteamento do combate à fome.
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brasileira de grãos. v. 5, Safra 2017/18 - Décimo segundo levantamento, Brasília, p.
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100 fls. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Centro de Educação, Comunicação
e Artes, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2017.
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A fome: História & Memória foi composto em Minion Pro e impresso sobre
OFLD75 e CSLD250 pela Expressão Gráfica e Editora em abril de 2022.
Nos anos de 2018 e 2019, os integrantes do Programa de
Educação Tutorial de História da Universidade Federal do Ceará
escolheram o tema da fome como objeto da pesquisa coletiva. Esta
publicação é, portanto, o resultado coletivo da pesquisa e da escrita
dos bolsistas do PET História/UFC e se apresenta a partir de te-
mas como: as narrativas sobre a fome na literatura, os efeitos da
fome na saúde mental, a indústria do leite em pó e a campanha pela
substituição do leite materno, as lutas de combate à fome no Brasil
pelos movimentos do campo e o projeto de combate à fome im-
plementado pela Pastoral da Criança. Foram reflexões construídas
pelo debate bibliográfico, pesquisa em arquivos digitais e em campo
e o incentivo à produção escrita, entendidos como momentos fun-
damentais na formação dos discentes.
9 786555 564488