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FABULAÇÕES

1
AVIZINHAR
Aline Motta / Aline Vila

AVIZINHAR
Real / Ana da Fonseca
Martins / Ana Maria
R. Gomes / Benjamin
Seroussi / Bernardo

FABULAÇÕES
Esteves / Carolina
Levis / Cezar Migliorin
/ Cida Moura / Déborah
Danowski / Dona Onete
/ Francy Baniwa / Gabriel
Martins / Gabriela Moulin
/ Gil Amâncio / Guilherme
Cunha / Helena Vieira /
Henrique Vieira / Ibã
Huni Kuin / Isabel Educativo
BDMG Cultural

2
Casimira Gasparino / 2021
004 Pulsação coletiva,
fabulação da vida
Gabriela Moulin

088 Tudo aquilo que


nos atravessa
Micrópolis

012 IMAGEM

048 LINGUAGEM

080 DIFERENÇA

114 COSMOS

148 NATUREZA

182 AMOR

218 RUA

252 CORPO

284 O que você quer


desaprender de verdade?
Mônica Hoff

294 Sobre os autores


“Onde cisca o vivo, imanta-se o rito de invenção da vida”
Luiz Rufino

Cultivar um interesse afetuoso, genuíno e permanente por


humanos e não humanos, pelas diversas epistemologias, pelas
políticas e estéticas, pelos sagrados e pelas ciências.
Esse é o tom daquilo que chamamos “educativo” nos
anos de 2020 e 2021, no BDMG Cultural. Estamos em Minas
Gerais, em anos de pandemia, mas queremos contar esta his-
tória para falar de possibilidades e de curas coletivas.
Onde você estiver, leitor, saiba que percorremos um ca-
minho fora de certezas monoculturais, longe dos desarranjos da
memória, na resistência às injustiças e aos preconceitos, para na-

FABULAÇÃO vegar na infinita pluralidade que emerge na dimensão lúdica da


vida, na inventividade do cotidiano, nos encontros ancestrais,
nos refúgios e numa ecologia dos sentidos e da imaginação.
PULSAÇÃO
COLETIVA,
Conversamos e refletimos em uma pulsação coletiva
que se deu à distância, mas que passa aqui para a forma de tex-
to com o intuito de permanecer. Permanência não de forma
estática, mas de forma dinâmica, atualizando-se sempre em
novas ideias, novos gestos, novas instituições, novos escritos.
Em novembro de 2021, na comunidade do Curtume,
DA VIDA no Vale do Jequitinhonha, Marli – mulher agricultora, borda-
deira, raizeira, jogadora de versos e cantadora – me disse: “can-
to porque a voz é que vai longe; e mais longe do que a voz só
o pensamento”.
Este livro é feito de muitos pensamentos para ir longe.
Histórias, cosmologias, reflexões e processos que nos fazem
acreditar que, ainda no mais triste ou adverso contexto, pode-
mos inventar novos caminhos para nos reestabelecermos, dia
após dia, como sujeitos de ações e criações.
E, nesse ponto, vale outra lembrança. O Museu Munici-
pal Tomé Portes del Rei, em São João del Rei, guarda bordados
pouco conhecidos de João Cândido, apelidado de Almirante
Negro, que foi uma das lideranças da insurreição ocorrida em
1910 e que ficou conhecida como Revolta da Chibata.
Bordados que viajaram recentemente desde as Minas
Gerais para serem expostos na 34ª Bienal de São Paulo.
A Revolta da Chibata aconteceu quando soldados da
Marinha brasileira assumiram o controle de encouraçados e
navios e apontaram os canhões em direção ao Rio de Janeiro,
exigindo o fim da chibata e de outros castigos até então aplica-

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dos aos marinheiros. No curto prazo, a revolta foi bem-sucedi- Porque tudo isso faz parte de um Brasil de passado, pre-
da, o governo concedeu uma anistia aos marinheiros amotina- sente e futuro. E tudo isso está na fala transcrita dos podcasts e
dos e proibiu as punições corporais a bordo. Em pouco tempo, nos textos especialmente escritos para este livro. Interlocuto-
porém, praticamente todos os seus líderes foram presos, puni- res sem igual a quem agradecemos profundamente.
dos ou mortos. E assim, termino minha carta ao leitor, desejando mais
Na masmorra da Ilha das Cobras, onde João Cândido diálogo, novidades ancestrais, fronteiras habitadas, fugas cria-
foi jogado na véspera de Natal de 1910, quase todos os seus tivas, sonhos reais, corpos cheios de saber e boas leituras.
companheiros de cela morreram asfixiados pelas exalações A poesia final – “O Mestre-Sala dos Mares”– é em home-
da cal usada nas paredes. Nos quase dois anos em que ficou nagem a Aldir Blanc (1946-2020) e todas as vítimas, como ele,
preso, Cândido costumava passar o tempo bordando, e pro- da pandemia de Covid-19; e ao Almirante Negro e todas as ví-
duziu, entre outros, os dois bordados apresentados no Brasil timas, como ele, do racismo.
de 2021, na 34ª Bienal.
Em um deles, a palavra “amôr” se estende até não caber
na faixa erguida por dois pássaros sobre um coração perfura-
do; no outro, dois braços vestidos com diferentes uniformes
“Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história não esquecemos jamais” .
– um de almirante e outro de marinheiro – sustentam juntos
o peso de uma âncora, entre as palavras “ordem” e “liberdade”. Um abraço,
João Cândido morreu na noite do dia 6 de dezembro de Gabriela Moulin Mendonça
1969, de câncer, no Hospital Getúlio Vargas, no Rio de Janei- Diretora-presidente do BDMG Cultural
ro. O marinheiro faleceu sem ouvir uma das mais belas home-
nagens que lhe foi feita, a música “O Mestre-Sala dos Mares”,
composta por Aldir Blanc e João Bosco nos anos 1970 e imorta-
lizada nas vozes de Elis Regina e do próprio João Bosco.
Na letra original, João Cândido era o Almirante Negro,
o Dragão do Mar, que guiava poderosos navios de guerra com
a dignidade de um mestre-sala. Mas a censura da Ditadura
Militar mudou a letra de “Almirante Negro” para “Navegante
Negro” para “não ofender a oficialidade da Marinha brasileira”.
Essa e outras muitas histórias não estão explícitas neste
livro, mas estão nele todo, contaminando de possibilidades e
lidando com a história brasileira no intuito de contribuir para
que educação e cultura façam sentido na diversidade dos mo-
dos de experiência e circulação de saberes.
Estamos falando de um lugar educativo que não traz
metodologias, mediações ou técnicas para “compreender”
a arte que se faz dentro de uma instituição cultural. Mas de
uma instituição que tentou e experimentou – em meio a er-
ros, acertos e riscos – articular vida, arte e conhecimento em
tudo que faz.
E, por fim, mas sempre conosco, desde o início, fica nossa
homenagem a 2021 como o ano do centenário do grande edu-
cador pernambucano Paulo Freire (1921-97).

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O que uma Rainha do Congo tem a dizer sobre política? Como
um jornalista científico pode compartilhar seus conhecimen-
tos com uma criança curiosa? O que uma ativista transfemi-
nista e uma liderança guarani têm em comum? Qual a impor-
tância de discutir história a partir de um arquivo fotográfico
das periferias brasileiras? Por que colocar lado a lado pensa-
dores quilombolas, filósofos queer, educadores indígenas, ati-
TUDO AQUILO
vistas da ciência, instituições de arte e artistas periféricos? E,
afinal, o que todas essas questões têm a ver com educação?
Entre 2020 e 2021, fomos confrontados com a necessi-
dade e o desejo de estimular a dimensão pública do BDMG
Cultural, participando da criação de um programa educativo
que, para além dos formatos convencionais de mediação cul-
tural, fosse praticado em diferentes escalas, realizado a muitas
ATRAVESSA mãos, e funcionasse como uma plataforma para conectar dife-
rentes modos de vida.
Para potencializar esse caráter de interesse público de-
sejado, partimos do princípio de que novas alianças eram fun-
damentais: alianças entre cultura e educação, alianças entre
diferentes linguagens, alianças a favor do respeito, da diver-
QUE NOS

sidade e do direito à imaginação, ao conhecimento e a novas


possibilidades de entendimento do mundo. Independente-
mente das atividades propostas, sabíamos da importância de
dialogar com múltiplos saberes e vozes, nos aproximando de
educadoras e educadores, que são grandes multiplicadores
de conhecimento, para ampliar imaginários e complexificar
repertórios. E assim surgiu uma série de oito ciclos compos-
tos por podcasts, oficinas e textos reflexivos, sempre com um
tema transversal que nos conduziu a cada ano – Vizinhanças,
em 2020; e Fabulações, em 2021.
“Em uma relação de vizinhança, você negocia o que é
comum, as aproximações e também as distâncias necessárias”,
aponta o educador Enrico Rocha.1 De um ponto de vista ge-
ográfico, uma vizinhança evoca a contiguidade das casas, das
ruas e das pessoas, uma proximidade espacial essencial para
a constituição da experiência coletiva. Mas também implica
em um gesto de aproximação: avizinhar-se é tentar tornar pos-
sível uma vida em comum, sem recusar os conflitos que essa
vida pressupõe. Se, a partir do tema Vizinhanças, buscamos esta-

1 ROCHA, Enrico. “Vizinhança”. In: RIBAS, C. et al. (Eds.). Vocabulário


político para processos estéticos. 2014. pp. 316-319.

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belecer gestos de aproximação, lugares de compartilhamento tam mergulhar no gesto de aprender com outras histórias que,
e possibilidades de coexistência, fomos compreendendo que como mais uma vez nos ensina Stengers, não são aquelas dos
tecer encontros improváveis era, também, um gesto de fabular contos de fadas, “em que tudo é possível para os corações pu-
novos devires diante da escassez imaginativa em que vivemos. ros, para as almas corajosas ou para as pessoas de boa vontade
O que fazer frente a desequilíbrios climáticos, processos reunidas, mas histórias que contam como situações podem
de destruição da biodiversidade e crescimento exponencial
da intolerância que repercutem em nossa vida ainda regulada
pela pandemia de Covid-19? Mais do que nunca, o agora parece
pensá-las juntos” 3 .
ser transformadas quando aqueles que as sofrem conseguem

reclamar a urgência de nossa atenção e nos revela a dificuldade Felipe Carnevalli, Marcela Rosenburg e Vítor Lagoeiro
de vislumbrar saídas. Entretanto, é justamente a incapacidade Micrópolis
de prevermos o que virá que nos demanda cravarmos os pés
no presente, e nutrirmos, no agora, aquilo que queremos com-
partilhar em nossos futuros. É preciso, sobretudo, “repovoar
o deserto devastado de nossa imaginação”, como nos explica
a filósofa da ciência Isabelle Stengers,2 especulando juntas e
juntos a possibilidade de contarmos novas histórias sobre nós
mesmos, sobre nosso tempo, sobre nossos processos de apren-
dizagem e sobre os tantos mundos que nosso mundo abriga.
Nas páginas a seguir, os oito ciclos temáticos tratados por
nós ao longo do programa educativo – Imagem, Linguagem,
Diferença, Cosmos, Natureza, Amor, Rua e Corpo – são apre-
sentados por meio das inúmeras vozes que fizeram parte de
nosso experimento de ensaiar confluências sem deixar de lado
as diferenças. Para cada capítulo, estimulamos pensadoras e
pensadores a compartilharem suas reflexões sobre os múltiplos
caminhos da aprendizagem, por meio de seus contextos e ima-
ginários. Tais textos abrem passagem para as transcrições dos
episódios de nosso podcast É Cultura?, que reuniu, ao longo de
dois anos, ativistas, artistas, filósofas(os), historiadoras(es), li-
deranças, educadoras(es), antropólogas(os), cineastas e muitas
outras pessoas comprometidas em fabular sobre tudo aquilo
que nos atravessa e nos faz aprender. Afinal, a rua nos ensina; o
amor nos molda; a imagem nos reflete; a diferença nos desloca; a
linguagem nos aproxima; a natureza nos enraíza; o cosmos nos
amplia; e o corpo nos constrói.
Esperamos que, neste modesto exercício de aproximar
mundos e tecer narrativas, as leitoras e os leitores se permi-

2 STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se 3 STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se
aproxima. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 170. aproxima. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 169-170.

12 13
014 Deixem essas

IMAGEM
crianças em paz
Cezar Migliorin

022 Pelos rastros


da história negra
Uma conversa entre
Aline Vila Real e Aline Motta

030 Memórias
da periferia
Uma conversa entre
Aline Vila Real e Guilherme Cunha

040 Cinema
de vizinhança
Uma conversa entre
Aline Vila Real e Gabriel Martins

14
A máquina cinema fricciona outras máquinas

Quando o cinema sai da sala, do escuro e do ingresso pago, ele


se multiplica em formas e dispositivos que as artes visuais
estão constantemente renovando: múltiplas telas, projetores
móveis, intervenções dos espectadores nas imagens e nos
sons, reorganizações do espaço e do tempo dos espectadores.
Entretanto, gostaria de pensar aqui na passagem do cinema
pela escola também como um cinema expandido, mas que se
expande naquilo que o cinema inventou de mais potente em
sua história: formas de ver e inventar o mundo.
O cinema na escola é, assim, menos um problema de
uma migração do cinema para um outro espaço do que uma
operação no interior do tempo e do espaço da escola. Quando
o cinema chega ao contexto escolar, o que ele traz – com sua
história, seus processos e filmes – é antes um modo de tornar o
mundo pensável que perturba o pensável do que não é cinema:
CRIANÇAS
nós mesmos, a escola. Antes de apresentar conteúdos, o modo
de ser-mundo do cinema provoca, intensifica e potencializa o
que a educação inventa. Para isso, a história do cinema possui
uma enorme generosidade de formas, meios e dispositivos,
acolhendo inventividades diversas pautadas pelo princípio da
igualdade das inteligências: qualquer um pode habitar o cine-
ma, seja ele espectador ou realizador.
DEIXEM

EM PAZ
Da generosidade igualitária do cinema
ESSAS

Um dia, na escola, o menino quieto, silencioso, calado, fre-


quente motivo de preocupação para pais e professores, pegou
Cezar Migliorin
a câmera e filmou a irmã dormindo durante seis horas. Não co-
nhecia Andy Warhol.
O outro, sem que ninguém o visse, prendeu a câmera
na roda da bicicleta e deu uma volta e meia no quarteirão. Foi
repreendido, baixou a cabeça e pensou em amarrar a câmera
em um elástico e deixá-la cair do alto do prédio. Não conhecia
Michael Snow.
A menina sentou na cama, enquadrou seu joelho com tal
proximidade que não podíamos ver ao certo de que parte do
corpo se tratava. Tirou seu diário da gaveta e o leu lentamente,
durante 40 minutos. Foi difícil. Mostrou só para a professora,
que preferiu não exibir para o resto da turma.

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-Você está se expondo demais! Entretanto, se não podemos indicar um caminho, se não
temos a chave para a liberdade do estudante na experiência
Não conhecia Sadie Benning. com as imagens, se não podemos hierarquizar uma relação e
O menino ligou e desligou a câmera muitas vezes en- fazê-los agir, pensar ou sentir, o que pode então o cinema na
quanto filmava o palhaço no circo, filmou pouquíssimos se- escola? Podemos partir da democracia, não como algo a ser
gundos de cada vez. Ele não conhecia Jonas Mekas. atingido, mas como uma prática imediatamente igualitária.
A outra juntou os amigos adolescentes e reencenou uma Um princípio e um fim em si mesmo em que a igualdade de
festa. Todos atuavam, mas tudo parecia muito real. Nunca competências seja colocada à prova na sua própria prática –
mostraram para ninguém. Não conheciam Larry Clark. algo nada simples.
A história do cinema traz a riqueza de acolher os proces-
sos criativos mais extravagantes. Circular por essa história é O que pode o outro?
transitar entre nomes de realizadores, países e correntes que
se cristalizam, mas é, antes de tudo, inventar para si, para aque- Recife, início de maio de 2014.
le que deseja o cinema como forma, criação e descoberta de
mundo, um tracejar momentâneo entre tantos gestos que, por Chegamos à escola com o mediador Caio Sales, a uma
vezes encobertos por histórias hegemônicas, se apresentam turma de alunos de 10 a 12 anos. Naquele dia, Caio e o profes-
ávidos de serem reinventados. sor Alberto programaram fazer uma atividade no Conjunto
Habitacional do Cordeiro, que fica ao lado da escola, onde a
Deixar os alunos em paz maioria dos alunos mora. Na chegada, uma turma agitada re-
cebeu o mediador com abraços e muito empolgada: “Quere-
Quando chegamos à escola com o cinema, não é para formar mos armar o tripé! Onde está a câmera?”, diziam os alunos. O
cineastas, não é para transformá-los em consumidores de ci- cinema já existia ali antes de qualquer filme. As ferramentas e
nema, não é para livrá-los das drogas, não é para apresentar um o medidor já criavam um desvio nos modos de estar na escola.
conteúdo funcionalizável. Se com o ensino de arte não temos Com a turma sentada, Caio disse: “Vamos fazer um pla-
um norte – nem a história, nem o mercado, nem a comunica- no. O que é um plano?” Rapidamente os alunos responderam:
ção, nem a revolução –­o que podemos pedir como resposta “O que se filma entre o ligar e o desligar da câmera”.
para estudantes quando chegamos com o cinema? Para a atividade, fomos para o Conjunto Habitacional, es-
A resposta é simples: de preferência, nada. paço construído para receber os moradores que foram despeja-
Talvez não possamos dizer o mesmo sobre o ensino de dos de suas precárias moradias em Brasília Teimosa. Logo que
física ou história, mas, se há uma dimensão propriamente po- chegamos ali, as crianças foram orientadas a não passarem da
lítica na presença do cinema na escola, hoje ela passa pela pos- lanchonete que fica logo na entrada do bairro. Eu fiquei respon-
sibilidade de um encontro entre inteligências e capacidades sável por um grupo de cinco meninas. Quando começamos a
igualmente potentes de estudantes e professores. E dizer que escolher o lugar para fazer o plano, duas ficaram muito inquie-
há uma igualdade impõe à relação a impossibilidade de uma tas, pedindo que fôssemos ao conjunto número 20. Elas diziam:
divisão entre aquele que sabe e aquele que não sabe. “Nós conhecemos tudo aqui, não faz sentido filmar apenas na
Deixar as crianças em paz significa quebrar uma linha entrada do conjunto”. Na hora, apenas aceitei as nossas pró-
reta entre as ações de educadores e as respostas de educandos. prias regras, as dos adultos. Disse que combinamos que iríamos
Há nesse gesto um verdadeiro silêncio, uma espera, uma falta filmar apenas na rua de entrada do Conjunto. Evidentemente
de intenções que mimetizam o cinema político pautado pela eu recolocava o lugar do professor como autoridade. O que a
possibilidade de estar à altura da experiência do outro sem que menina estava me dizendo era: aqui eu conheço, este lugar eu
o espectador seja uma "vítima" das imagens. domino. Minhas capacidades aqui dentro são enormes!

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Para esse exercício, estávamos os três, cada um com as não é verdadeiramente uma forma, mas um objeto ao mesmo
suas inteligências e capacidades naquele lugar. Caio e eu com tempo de passagem – de um objeto a outro, ele pode ser cabe-
a câmera – com o cinema –, o professor como uma referência lo, bolsa, foguete –, e um recipiente sem fim. Em Minas Gerais
para as meninas e os alunos como verdadeiros conhecedores costumam chamar de trem: nome para o que não tem nome,
daquele território. Nesse momento estava claro – ou melhor, coisa que remete a todas as coisas.
ficou claro depois para mim – que havíamos inventado efeti- Para as artes, para o cinema, o conhecimento em sala de
vamente uma cena de igualdade de capacidades. Infelizmente, aula depende de um mafuá que coloca em relação saberes, pa-
no calor da hora, a autoridade foi mais forte e não respeitamos lavras e tecnologias frequentemente em bagunça, desordem,
a possibilidade daquelas meninas compartilharem conosco o mas tal desordem é apenas um estado necessário para a não
conhecimento que elas têm sobre o território. hierarquização dos objetos, linhas e saberes. Quando fomos
para o Conjunto com as meninas, inventamos o mafuá e, ao
O mafuá mesmo tempo, tivemos dificuldade em vivê-lo plenamente. É
dessa tensão instável que novos acoplamentos inventivos, de
A igualdade de competências não significa a igualdade entre indivíduos e grupos, se fazem. Todo ser humano é um mafuá.
os sujeitos, em que todos podem as mesmas coisas. Ela é an- A sala de aula é virtualmente um mafuá.
tes a entrada de sujeitos, máquinas e tradições em um ema- A nós, trabalhadores das artes, fica a pergunta que indica
ranhado sem fora, em um aparente caos formado por objetos para onde deve ir nossa formação: temos corpo para o mafuá?
e sujeitos de muitas naturezas. Um mafuá, uma bagunça de
ordens momentâneas. Conhecer e livrar-se de si

- Deixei os óculos ao lado da torradeira. Montagem sur- Partir da igualdade de lugares em um determinado espaço so-
realista. O dicionário está embaixo da tela do computador. cial pressupõe uma política de não poder falar pelo outro ou
não poder fazê-lo pensar. Mas somos professores, somos mais
- Samambaia não é cabana, menino!, diz a mãe. velhos, estudamos mais... Não é isso que nos garante um lugar
de fala? Não. A palavra de ordem e o poder não cessam de bus-
- Tira essa cueca da cabeça! car títulos, pessoais e coletivos, que justifiquem as hierarquias
e coloquem ordem nesse mafuá, destruindo-o. Então, como é
- Quem mexeu na minha bagunça? possível falar em igualdade no espaço de educação entre indi-
víduos tão diferentes?
O mafuá está em toda parte, conectando o inconectável, Partir da igualdade e livrar-se do lugar do que ordena de
fazendo do encontro o princípio para o acontecimento. O ma- fora pressupõe um escorrer sobre si mesmo para que tudo que
fuá é a própria operação do pensamento; não um lugar, mas o temos e que nos pertence se torne um não-sei-o-quê comum.
que se constitui nas aparições quando algo é pensado, quando A igualdade é feita com a entrada de um indivíduo no mafuá
uma ordem qualquer se estabelece, quando uma forma se ma- que lhe pertence e não pertence – simultaneamente. O que te-
terializa. Mas ele é a forma e o disforme, a ordem e o caos: ele fa- mos – nós doutores, professores, mestres, velhos – não é um tí-
cilita pensar a potência inventiva de uma sala de aula – espaço tulo, mas um tempo e, nos melhores casos, uma força para de-
em que um acontecimento pode se dar – e a potência igualitá- saparecer nos fragmentos que nos constituem e que não nos
ria do encontro na escola com o cinema. Princípios básicos para pertencem. O que temos – horas de cadeira e teclados – pode
uma ação política que passam pela criação e pela igualdade. ser uma potência conectiva, já que temos mais livros e filmes
Na superfície do mafuá um não-sei-o-quê de possíveis para colocar na bagunça.
está sempre à espreita. Um mafuá pode ser um verdadeiro bo- O conhecimento é uma intensidade conectiva entre
lolô de onde sai de tudo, ele é um espaço infinito. Sua forma tempos, espaços e amigos.

20 21
Sim, deixá-los em paz

Podemos voltar à nossa primeira afirmação sobre o cinema na


escola: deixem essas crianças em paz.
Ao fazermos essa afirmação, estamos problematizando
nosso engajamento com a escola e com a educação em geral.
O que poderia soar como uma desresponsabilização é, pelo
contrário, um exercício dos mais exigentes e misteriosos para

entende o mundo?
os mestres, é fazer-se presente sem centralidade, trazendo
Você já assistiu a

forma como você


tudo de si sem que esse "tudo" lhe pertença. Um tudo que de-
algum filme que manda o tempo – a única coisa que efetivamente temos a dar

transformou a
para os estudantes.
No ambiente escolar, se o cinema não é um fim em si, se
ele é meio para um processo de formação e liberdade, permite
que os processos subjetivos, individuais e coletivos ajam, for-
jando nos filmes e exercícios a materialidade dessa invenção de
si e da comunidade. No contexto escolar, o lugar de atuação das
imagens é justamente no mafuá que atravessa a própria escola.
Enquanto a música do Pink Floyd fazia menção à disci-
plina e à formação para os trabalhos disciplinares, hoje as pa-
lavras de ordem são: crie, expresse-se, mobilize... As palavras
de ordem se tornaram esquizofrênicas: ordenam a desordem.
Pois o mafuá é o contrário. A desordem existe e é parte cons-
tituinte e necessária, mas não é de fora que uma ordem vai se
impor. O que chega de fora não ordena ou modula, mas entra
como possibilidade que potencializa as montagens – frequen-
temente silenciosas e perigosas – que constituem a própria
forma de conhecer e inventar o mundo.
Aprendemos isso com os cineastas.1

1 Uma primeira versão deste texto foi publicada no catálogo da edição de


2014 do Forumdoc.bh – Festival do Filme Documentário e Etnográfico
Fórum de Antropologia e Cinema, sob o título Deixem as crianças em paz:
o mafuá e o cinema na escola.

22 23
Pelos rastros

Aline propõe um rompimento com a verdade única das


“Quem é que registra a história oficial? Quem escolhe

da história

coletiva, ainda nebulosa, dos quase sempre violentos


artista Aline Motta diante do incômodo hiato em sua
aquilo que deve ou não ser contado?”, se pergunta a

trabalho Filha natural. Ao fabular sobre sua história

narrativas oficiais excludentes e opera uma história


cultural Aline Vila Real, a artista nos apresenta seu
linha genealógica. Em uma conversa com a gestora
negra
pessoal e cruzá-la com outras trajetórias de vida,

processos de formação das famílias brasileiras.


Uma conversa entre
Aline Vila Real e Aline Motta

Aline Aline, em seu trabalho você combina diferentes técnicas e prá-


Vila Real ticas, buscando refletir e narrar histórias submersas sobre sua
família, atravessadas por temas como genealogia, parentesco,
gênero, mestiçagem, deslocamentos afroatlânticos e os vio-
lentos processos das formações das famílias brasileiras. Gos-
taria que você falasse um pouco sobre seu trabalho, especial-
mente a obra Filha natural.

Aline Eu demorei muito tempo para me estruturar financeiramen-


Motta te. Gosto de começar por aí para estimular outras pessoas ne-
gras, como eu, a se dedicarem a trabalhos em artes visuais, por
mais elitista que isso possa parecer. Acho importante falar dis-
so quando retomo minha trajetória, por ser um estímulo para
que mais pessoas negras acessem esses espaços, com essas po-
éticas, narrativas e seus pontos de vista.
Quando eu comecei a me estruturar financeiramente e
emocionalmente para fazer um trabalho em artes visuais, eu
comecei a olhar para minha própria história e para minha pró-
pria família – o que foi um ponto de partida crucial para falar
sobre as coisas que eu queria falar de uma maneira coletiva. O
Filha natural é a continuidade de uma pesquisa genealógica so-
bre quem eram meus avós, bisavós e tataravós. Eu comecei a
me debruçar sobre o que eu tinha sobre minha família, que em
grande parte eram histórias orais que minha mãe e minha avó
contaram. O ponto de vista das mulheres foi, então, algo que
norteou o caminho do Filha natural, que vem de “filho natural”,

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termo usado pelos cartórios para denominar crianças que não
tinham sido registradas por pais casados. Um eufemismo para
filhos de mães solteiras.
Esse trabalho vem dessa pesquisa iniciada em 2016,
quando eu fui a Vassouras, no Vale do Paraíba, região rural do
Rio de Janeiro, de onde vem quatro gerações da minha famí-
lia. Eu encontrei um atestado de óbito de minha tataravó que
se chamava Francisca. Não tinha informações certas de que
era realmente ela, mas como o tempo histórico e o território
batiam, eu parti desse documento. Esse documento dizia que
a Francisca havia falecido em uma fazenda chamada Fazenda
de Ubá e, pesquisando sobre ela, descobri que tinha uma im-
portância histórica muito grande. Descobri muita documen-
tação sobre o local, além de duas fotografias: uma mostrava
uma escravizada e uma sinhazinha em uma varanda na casa
grande, e outra mostrava uns senhores sentados e, de pé, duas
escravizadas. Encontrei, então, o inventário dos donos da fa-
zenda e tentei cruzar as informações, o que constituiu a pri-
meira parte do trabalho.
Na segunda parte, tentei fazer uma conexão desse
passado com o presente, indo até Vassouras, onde conheci a
Cláudia Mamede, uma líder comunitária, jongueira,1 que tra-
balhava em um abrigo de crianças órfãs e foi recentemente
eleita como conselheira tutelar. Quando eu conheci a Cláudia,
foi um encontro muito especial, não só pela história de vida
dela, mas porque eu a achei muito parecida fisicamente com
a única fotografia que eu tenho da minha bisavó, Mariana – o
que me fez pensar que eu poderia estabelecer outras formas
de parentesco. Se ela se parece com a minha bisavó Mariana,
será, então, que ela é minha parente? Será que podemos esta-
belecer novos laços? De que forma podemos preencher essas
lacunas que a documentação não consegue preencher? Foi aí
que convidei a Cláudia para participar da obra Filha natural,
que se desdobra em muitas formas artísticas (instalação foto-
gráfica, livro, vídeo...).

Aline E através do vídeo e das fotografias, é possível perceber uma


Vila Real operação que você realiza com as imagens sobrepondo as tem-

1 De origem afro-brasileira, o jongo é uma dança essencialmente rural,


praticada ao som de tambores. Teve grande influência na formação do
samba carioca.

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poralidades, reposicionando os personagens da história, in- dia mora? Que lugares ela conseguiu acessar? E os donos da
cluindo as arquiteturas da casa grande e da senzala e propondo fazenda, como, ainda hoje, eles continuam mandando? Que
outras configurações para elas. Isso me leva para o campo da estruturas dessa relação continuam de pé? Aliás, em Vassou-
ficção, pensando na ficção como uma relação conduzida pela ras, enquanto a casa grande está perfeitamente preservada, a
imagem, e não a ficção como o contrário da verdade. Você pode arquitetura da senzala foi demolida. Então, é uma vizinhança
falar mais sobre isso? por oposição, não é uma vizinhança em que as trocas são feitas
de maneira horizontal.
Aline É um paradoxo porque, quanto mais ficcionalizamos, mais es-
Motta tamos falando a verdade. Parece que quanto mais levamos as Aline Considerando que cada espectador possui um universo de
coisas para o campo da ficção, mais verdadeiro isso fica. Essa Vila Real referenciais imagéticos, poéticos, históricos e sociais, gostaria
foi uma operação que eu fiz, de me deparar com essas imagens que você comentasse a possibilidade de cada pessoa construir
do século 19, com a conformação dessa família senhorial fo- uma relação sensível própria com a imagem do seu trabalho.
tografada com suas escravizadas, de pé (ou seja, à disposição
para a qualquer minuto poder servi-los), e fabular o que isso Aline Eu recebo alguns retornos de pessoas negras que acessaram
significa ainda nos dias de hoje. Trata-se de um pensamento Motta o trabalho, dizendo que ele provocou uma curiosidade em
sobre um passado que é muito presente, com uma maioria ne- buscar suas origens, esses fragmentos de história com seus
gra marginalizada, subalternizada, representada em fotogra- próprios avós. Entretanto, muitas vezes essas pessoas não
fias recentes de uma forma muito violenta, sem nenhum efei- querem falar porque são histórias muito difíceis, histórias
to prático de políticas públicas. Vemos, então, a perversidade de muita dor. Não querer contar essas histórias muitas vezes
dessa operação que persiste na iconografia, que continua sen- é um mecanismo de preservação de existência. Dizem: “Por
do realizada, disseminada e propagada, com ideias eugenistas, que você está perguntando isso?”, “Porque você quer saber
racistas e hierarquizantes. disso?”, “Não, agora a gente vai olhar para a frente”. Entretan-
O Filha natural fala muito sobre família, mas também to, acho que, quando falamos “o que passou, passou”, ficamos
fala muito sobre a arquitetura da casa grande e a arquitetura sem fundamento espiritual, algo que é a base para você poder
da senzala. No caso dessa fazenda em Vassouras, a casa grande caminhar. Muitas vezes, a história de luta dessa família foi o
está inteiramente preservada – ela tem 200 anos e a varanda que fez com que estivéssemos vivos hoje, porque não estava
continua impecável, idêntica ao que vemos na fotografia do previsto que estaríamos vivos. Historicamente houve polí-
século 19. A senzala era conformada em quadra, ou seja, ela fi- ticas eugenistas de branqueamento da população, então não
cava praticamente em frente à casa grande, para que o senhor era para nós termos sobrevivido. Mas sobrevivemos, por eles.
pudesse ver, da varanda, seus escravizados. É um jogo de olha- A maneira de honrar a história desses antepassados é, então,
res muito próximo, um mecanismo de vigília e de controle falar sobre essa história. No meu caso, tento contar isso atra-
desses corpos. vés da arte, de uma maneira que eu possa alcançar um grande
número de pessoas como eu.
Aline Aline, pensando nessas proximidades e distâncias entre a casa
Vila Real grande e a senzala, entre você e a Cláudia, como você relaciona Aline Corroborando com essa crença na arte como um espaço de
seu trabalho com o sentido de criação de vizinhanças? Vila Real possibilidades, eu gostaria de trazer aqui a fala de outra artis-
ta, a atriz Grace Passô, que, no dia 27 de março de 2020, Dia
Aline Por conta dessas operações que têm a ver com história, arqui- Mundial do Teatro, escreveu o seguinte post: “Obrigada tea-
Motta tetura, poesia e tantos outros campos e saberes, acho que o tro, por canalizar meu ódio para um lugar de pulsão de vida,
Filha natural cria uma vizinhança por oposição, por mostrar o alegria e amor. Através do teatro, eu entendi que a performan-
lugar das pessoas negras na sociedade ainda hoje em dia. Quais ce do mundo é muitas vezes cruel, e então é preciso fingir que
são os lugares que essas pessoas ocupam? Onde é que a Cláu- estamos interpretando quando, na verdade, estamos apenas

28 29
vivendo com a dignidade do erotismo, da liberdade, da inte-
ligência, da crítica, do delírio e de outras forças vibrantes.”
Queria, então, que você falasse sobre como a construção, a re-
cepção e o destino das imagens pode ser essa pulsão de vida,
de alegria e de amor.

Aline O trabalho da Grace me inspira exatamente nessa pulsão de


Motta vida, pulsão de caminho, no processo de lidar com esse lega-
do, que é lidar com essas imagens pensando que outro desti-
no podemos dar a elas. Eu acho que falta interpretarmos essas
imagens do século 19 a partir do nosso olhar. A pulsão de vida,
da qual Grace fala, que é também de amor, de alegria e de resis-
tência, passa por olhar para esse passado, para essas imagens, e
o que podemos fazer a partir do nosso olhar, da nossa perspec-
tiva. Temos no Brasil grandes historiadores brancos, homens,
e eles continuam publicando, continuam falando, continuam
protagonizando. E nós? Quantas mulheres negras vão alcan-
çar esse grau de respeitabilidade na nossa sociedade? Esse lu-
gar em que você é ouvida, você é publicada, você é vista? Eu

.
me sinto com essa vontade, de que mais pessoas como nós
possam falar sobre o Brasil

30 31
Memórias
gestora cultural Aline Vila Real e o curador Guilherme da periferia

Aglomerado da Serra – segunda maior favela do país,


formada por sete vilas e localizada na região Centro-
através do projeto “Retratistas do Morro. Reunindo,

Pimenta, o projeto ajuda a posicionar moradores do


Cunha, somos transportados ao universo imagético
das comunidades, vilas e favelas de Belo Horizonte
Quanto uma fotografia de família pode dizer sobre

Sul de Belo Horizonte – na história brasileira e sua


uma comunidade inteira? Nesta conversa entre a

fotográfico dos mestres João Mendes e Afonso


Uma conversa entre

restaurando e digitalizando um imenso acervo


Aline Vila Real e Guilherme Cunha

Aline Guilherme, você é o idealizador do projeto “Retratistas do


Vila Real Morro”,1 que preserva, cataloga, digitaliza e restaura fotogra-
fias, resgatando a trajetória dos mestres João Mendes e Afon-
so Pimenta, retratistas que, desde o final da década de 1960,
documentam o dia a dia dos moradores do Aglomerado da
Serra, em Belo Horizonte. Você poderia falar um pouco mais
sobre o projeto?

Guilherme O projeto “Retratistas do Morro” tem como objetivo contri-


Cunha buir para a construção de narrativas históricas conectadas à
história das imagens brasileiras a partir do ponto de vista de
fotógrafos tradicionais que atuaram nas vilas, favelas e comu-
nidades urbanas do país. O projeto é muito focado na produ-
ção fotográfica feita a partir da segunda metade do século 20,
essa história recente da fotografia brasileira que não contem-
plou toda a vasta produção dos fotógrafos que atuaram profis-
memória coletiva.

sionalmente nas favelas brasileiras. E ele é um desdobramento


de um primeiro projeto chamado “Memórias da Vila”, que teve
como objetivo promover o resgate da memória oral e visual no
Aglomerado da Serra, aqui em Belo Horizonte. Inicialmente,
produzimos um vídeo com fotografias e histórias dos morado-
res, a partir de uma demanda da própria comunidade.
E ali, durante a produção desse primeiro projeto, tive-
mos contato com um conjunto de imagens do acervo pessoal
de uma moradora da comunidade, a dona Ana Martins, que
muito gentilmente falou que queria nos apresentar os tesouros

1 Para conhecer mais sobre o projeto, acesse


<http://www.retratistasdomorro.guilhermecunha.art.br/>.

32
dela. Nos sentamos juntos, e ela tirou da bolsa um saquinho de
plástico azul, desses de supermercado, com um conjunto de 70
monóculos que mostravam o cotidiano da família dela, as pri-
meiras construções que ela fez na área do Cafezal (uma das vi-
las do Aglomerado da Serra) em 1970, o dia a dia das filhas, ou
seja, a memória afetiva dela, que foi registrada por um fotógrafo
profissional. Eu conto isso sempre porque é muito importante
para entendermos como esse processo de reconstrução do pen-
samento histórico é muito orgânico e cheio de surpresas.

Aline Guilherme, ouvindo você apresentar o projeto, não há dúvidas


Vila Real da forte conexão que ele tem com o fato de as imagens pode-
rem contribuir para a construção de vizinhanças. Você poderia
comentar alguns aspectos desse tema a partir do seu projeto?

Guilherme Essa pergunta é central para o projeto que, neste momento,


Cunha está focado no restauro, tanto o digital das imagens dos fotó-
grafos João Mendes e Afonso Pimenta, quanto o das narrativas
conectadas a essas imagens. O acervo deles não é algo docu-
mental com aquele distanciamento prático entre um modelo e
um profissional, mas é uma produção muito ligada à memória
afetiva e às amizades. Essas imagens nos mostram o fortaleci-
mento de uma relação que já existia entre amigos, entre vizi-
nhos, entre compadres, entre pessoas que estão próximas, que
se reconhecem, que se pertencem, que se respeitam, que se en-
tendem e se fortalecem a partir daquela identidade de territó-
rio. As imagens desses fotógrafos nos mostram a emergência
de um sentimento de vizinhança e de comunidade muito for-
tes, mas, ao mesmo tempo, nos abrem a possibilidade de parti-
cipar dessas relações profundas que eles teceram.
É muito interessante ver a reação do público diante des-
sas imagens, vê-los se reconhecendo nas fotos e reconhecen-
do seus eventos sociais, como jogos de futebol, construção de
barracão, velório, festas de 15 anos e aniversário. Se pensarmos
na vizinhança como uma dimensão de proximidade, de iden-
tificação do comum, daquele lugar também te pertencendo,
podemos dizer que essas imagens criam, então, vizinhanças e
provocam uma profunda aproximação de realidades: você se
reconhece no outro em vez de se distanciar do outro.

Aline Partindo da ideia de que as fotos registram momentos afeti-


Vila Real vos, familiares, marcantes na vida dessas pessoas, o projeto

34 35
acaba colocando em questão a relação entre a intimidade e a Guilherme Com certeza, e eu até diria que a imagem acontece no contato
exposição, no momento em que essas fotos são expostas para Cunha com o espectador. A imagem é algo orgânico, algo cognitivo,
um público mais amplo. Como, então, pensar nas possibilida- algo que influi na maneira como nos relacionamos pessoal, co-
des de leitura de uma fotografia quando ela se transfere des- letiva e socialmente.
se universo particular e se coloca como objeto de observação
para os espectadores em geral? Aline Escutando-o, estou rememorando alguns dos materiais que
Vila Real eu li sobre os “Retratistas do Morro”, especialmente sobre o
Guilherme Toda fotografia é uma entidade com camadas simbólicas, uma João Mendes e o Afonso Pimenta, e do momento de enamora-
Cunha engrenagem mental com sentidos profundos que vão se des- mento deles com a fotografia como algo simbólico dentro da
dobrando a partir do olhar. Ao observar a imagem, você a ati- comunidade onde eles também viviam. Em uma dessas entre-
va, projetando sua própria experiência naquele cenário. Nesse vistas, o Afonso diz que a grande referência profissional dele
contexto, eu costumo dizer que existem as imagens progra- é o João Mendes, com quem aprendeu que o fotógrafo nunca
madas e as imagens abertas. As programadas tentam raptar o deve se misturar aos convidados de uma festa. Lendo essa fra-
seu imaginário, quase em uma expectativa de indução do seu se, fiquei pensando em um sentido ético do trabalho de um
gesto, do seu desejo, que você atenda àquilo que ela te comu- fotógrafo, mas também acabei indo para caminhos de reflexão
nica. São imagens marketeiras, que querem te gerar o impulso sobre como uma distância necessária pode se fazer entre o fo-
a partir do que ela ordena, do que ela comanda. tógrafo e aquilo que ele fotografa. E gostaria que você comen-
Já as imagens abertas te conectam com a sua própria tasse sobre essas possíveis relações de distância e aproxima-
subjetividade, com as suas particularidades, mas no sentido ção para a construção dos elementos poéticos da fotografia.
daquilo que é a sua experiência de mundo – no sentido da for-
ma como você se compreende no mundo, e não no sentido Guilherme Eu acho que toda captação que fazemos de um outro ou de um
que ela quer que você tenha da imagem. Ou seja, uma provoca Cunha território pressupõe um grau de envolvimento. É importan-
a fruição e a outra a indução. Acho que essa pergunta é funda- te considerarmos o tanto que nos distanciamos em relação à
mental, porque não estamos mais no ponto de ter ingenuidade imagem do outro, cuidando para que a nossa própria vontade
diante das imagens. Elas carregam ideias, as ideias pressupõem não se sobreponha àquela cena, àquele acontecimento, àquela
algum tipo de valor, esses valores definem as prioridades, e as situação fotografada. Quando fotografamos alguém, devemos
prioridades organizam a sociedade até no campo de políticas sempre nos perguntar: essa é uma imagem do outro ou é uma
públicas. Esse esquema de ideia, valor, prioridade e organiza- imagem de mim mesmo? Como enxergamos aquele outro,
ção social também está no campo imagético. como queremos que a imagem dele se perpetue no tempo?
E uma coisa muito interessante é que muitas das vezes Tudo isso é fundamental.
nós invertemos a relação que temos com as imagens e imagi- No projeto “Retratistas do Morro, estamos tentando
namos que, ao olhar para elas, elas estão dentro de nós. Mas na observar as ideias que as palavras carregam, que dizem muito
verdade somos nós que nos colocamos dentro daquela imagem, também sobre esses distanciamentos. Então, em vez de falar
e passamos a reagir na nossa relação com o mundo a partir de em “pesquisa” propriamente dita, estamos usando a palavra
um conjunto de ideias que aquela imagem traz para nós. Ou “convivência”. E vendo as fotografias do João e do Afonso, per-
seja, de alguma forma, as imagens são também modeladoras de cebemos que as imagens feitas com o sentido profissional, es-
estruturas sociais. Temos, então, de parar com a ideia de que a tritamente mercadológico em que você medeia a produção da
imagem é plana. Ela é dimensional, tem dimensões de sentidos. imagem por um interesse financeiro, têm muito menos força
do que as imagens que são mediadas pelas relações afetivas. As
Aline O espectador é um elemento muito importante nesse proces- fotografias do João e do Afonso são assim, a relação afetiva, o
Vila Real so também, não é? Ele traz um repertório particular que entra convívio e a ideia de vizinhança na produção fotográfica deles,
em contato com essas imagens. de alguma forma, diminuem as distâncias entre o fotógrafo e

36 37
as pessoas fotografadas, aproximando as narrativas do fotó-
grafo do desejo de quem está sendo fotografado.

Aline Partindo da atuação dos mestres João Mendes e Afonso Pi-


Vila Real menta no Aglomerado da Serra, como você descreveria a con-
tribuição dessas obras artísticas na construção de uma ideia
de comunidade?

Guilherme Isso poderia se dar no refazimento da ideia de como a história


Cunha é construída e de quais experiências, entendimentos e valores
são contemplados nesse processo. Acho que o trabalho deles
nos faz questionar essa lógica histórica a partir de uma linha
sequencial que sempre coloca um fato em frente ao outro, um
fato como mais importante que o outro, gerando uma série de
apagamentos. Isso mostra o quão importante é trabalharmos a
construção de modelos de historicidade circulares, onde os di-
versos pontos de vista e as diversas produções imagéticas en-
contrem espaços de diálogo. Precisamos de modelos em que
as diversas narrativas que essas imagens carregam possam fa-
zer parte da narrativa histórica que define quem são as pesso-
as que produzem imagem no Brasil. Em outras palavras, acho
que o trabalho deles contribui para que repensemos os modos
como a história das imagens está sendo contada no Brasil.

Aline Como e também por quem essa história está sendo contada,
Vila Real quem são os agentes da contação dessas histórias. É preciso
tirar essas pessoas do lugar de espectadores passivos frente a
essa história.

Guilherme Exato, e é por isso que estamos repensando essa lógica por um
Cunha modelo esférico, de onde você consegue conectar várias refe-
rências, narrativas e territórios que, assim, são concomitante-
mente contemplados nesse espaço de cultura. A partir de um
modelo esférico do pensamento histórico, nós conseguimos
mudar os referenciais desse laço simbólico brasileiro.

Aline Esse exercício que você comenta sobre um olhar e um cuidado


Vila Real com as palavras é bastante importante. É muito importante ler
o material dos “Retratistas do Morro” e ver o reconhecimento
do João Mendes e do Afonso Pimenta como mestres. É impor-
tante nomeá-los como mestres porque é uma palavra que traz
muita informação consigo.

38 39
Guilherme A palavra define a diretriz e a forma do comportamento diante
Cunha do outro. A carga de sentido que você projeta no outro indica
a maneira como nos relacionamos. Então, a palavra define se
vai ser uma relação horizontal, vertical, se vai ser linear, se vai
ser esférica ou circular. Por isso, é muito importante começar-
mos a repensar esses valores, repensar a forma como entende-
mos o outro, como nos vemos no outro, e como o outro nos vê.
Trata-se de começarmos a quebrar essa lógica de referenciais

.
verticais e entender o valor da produção de sentido em cada
contexto histórico, cultural e social

40 41
Cinema de
Martins, da produtora Filmes de Plástico, compartilha
vizinhança
Por que não pensar em coisas estranhas vividas por

gestora cultural Aline Vila Real, o cineasta Gabriel

extraordinários, como grandes assaltos, ventanias


perspectiva outra sobre o dia a dia da periferia de
a ideia de tecer, através do cinema de ficção, uma
pessoas comuns? Nesta conversa conduzida pela

Contagem. Praças, quintais, padarias, calçadas


Uma conversa entre

e lajes são palco de acontecimentos por vezes

que levantam as pessoas do chão e viagens a


Aline Vila Real e Gabriel Martins

Aline Gabriel, você é um cineasta nascido em Belo Horizonte e radi-


Vila Real cado na periferia de Contagem. Junto com André Novaes, Mau-
rílio Martins e Thiago Macedo, você fundou a produtora Filmes
de Plástico,1 que, desde 2009, vem realizando filmes que mos-
tram muito o contexto da vizinhança onde todos vocês mora-
ram. Para começar, gostaria que você se apresentasse e falasse
sobre o trabalho da Filmes de Plástico, pensando sobretudo em
como as imagens podem contribuir para produzir vizinhanças.

Gabriel Nós começamos com a produtora Filmes de Plástico em 2009,


Martins mas eu já conhecia todos os meninos antes disso. A semente
da produtora foi plantada quando o Maurílio e eu nos conhe-
cemos no curso de cinema e descobrimos que morávamos na
mesma região – o Maurílio era do bairro Laguna e eu do Mila-
nez, ambos na divisa de Belo Horizonte com Contagem. É uma
região muito específica, porque está distante dos dois centros,
das duas cidades. E isso sempre foi uma questão muito forte
outros planetas.

para nós, de virmos de uma região periférica e termos os mes-


mos gostos em relação ao cinema. Depois nos juntamos ao An-
dré, que morava no bairro Amazonas (periferia de Contagem),
e potencializamos o encontro através da produtora.
Nós três nos juntamos, então, de uma forma muito afetiva
em relação ao fato de gostarmos dos nossos bairros, ao mesmo
tempo em que nos sentíamos “peixes fora d’água” em relação a
uma cena cultural: por mais que tentássemos fazer parte dela,
estávamos distantes geograficamente. Formamos a produtora

1 Vários filmes da produtora Filmes de Plástico estão disponíveis


gratuitamente em <https://www.youtube.com/c/FilmesdePlástico/videos>.

42
com essa identidade, embora nos primeiros filmes não estava ção a ocupar o bairro. Ali era cheio de lotes vagos e eles foram
claro que os bairros estariam à frente de nossa produção, como os pioneiros a comprar lotes e a construir. A minha infância ali
personagens. Em 2010, fizemos um curta-metragem chamado foi quase a experiência de uma infância em um sítio porque
Contagem e esse filme, que leva o nome da cidade, despertou não tinha urbanização (minha rua só foi ser asfaltada quando
uma ideia muito forte de território. Por mais que o filme em si eu era um pouco mais velho). Tinha, então, esse movimento
não falasse o tempo todo que era feito em Contagem, que era de pessoas que vinham de outros bairros, em muitos casos
feito na periferia, essa geografia estava lá como imagem. até de outras cidades, o que também reflete um pouco o que
Essa questão começou a bater forte, principalmente quan- acontece em Minas Gerais. Eu sinto que em Belo Horizonte e
do começamos a circular pelos festivais e sermos reconhecidos sua Região Metropolitana tem muita gente vinda do interior,
como a produtora de Contagem, que vinha da periferia e que de outras cidades. Nas nossas famílias tem gente que veio de
estava fazendo filmes nesses lugares, com as pessoas que mora- Oliveira, de Mariana, Teófilo Otoni… Esse fluxo migratório é
vam nesses espaços. Aos poucos, passamos a achar fundamental muito comum em Minas Gerais, as pessoas estão sempre se
pontuarmos o lugar de onde viemos e que, desde então, tem sido movimentando, principalmente por questões de trabalho.
uma fonte inesgotável de ideias para nossos filmes. No fim das Os personagens dos nossos filmes são, na verdade, exten-
contas, mais do que a defesa de um lugar de onde viemos e do sões da nossa família e do lugar de onde viemos, são pessoas tra-
qual temos orgulho – um lugar que não foi muito representado balhadoras que sempre tiveram, de certa forma, questões delica-
no cinema brasileiro da mesma forma que representamos – de- das em relação ao dinheiro. O dinheiro nunca foi algo fácil e, por
fendemos que esse território é uma fonte de ideias. É um lugar isso, essas famílias sempre tiveram que trabalhar duro. Quando
rico, com pessoas interessantes, as quais nós adoramos filmar. você fala de transformação, eu acho que tem a ver com o famo-
so correr atrás: correr atrás de um trabalho, correr atrás de uma
Aline Nas histórias que vocês apresentam nos filmes, percebemos que vida melhor, correr atrás de condições melhores. Tem a ver com
Vila Real se desenvolvem trajetórias de personagens em fluxo que mu- ser demitido, ter que procurar um trabalho, sem uma formação
dam de cidade, que precisam sair, que acabaram de chegar, que de curso superior – o que leva essas pessoas para o universo
não sabem se ficam; o que tem muito a ver com esses fluxos ur- do trabalho informal. E esse ambiente que decidimos filmar é
banos. E de algum modo essas trajetórias também se ligam pela símbolo disso, por ser periferia. Um exemplo que eu colocaria:
experiência que envolve o trabalho. As pessoas também mudam desde que começou a construção do Shopping Contagem, no
de trabalho, tentam criar outras formas de exercer o trabalho, bairro Cabral (bairro próximo da nossa periferia), houve uma
buscam outras alternativas. Enfim, vocês mostram outras for- grande migração de mão de obra haitiana. O nosso bairro hoje
mas de experiência, de convívio com os familiares, de afeto e de tem uma comunidade muito grande de haitianos, que vieram
questões existenciais desses personagens, mas sempre ligadas trabalhar e decidiram ficar. Eles moram no bairro, já têm filhos
a uma potência de transformação. Eu gostaria que você comen- que nasceram no bairro – inclusive, na praça que é cenário do
tasse esses aspectos a partir das obras da Filmes de Plástico, le- nosso filme No coração do mundo, há uma igreja de haitianos em
vando em conta essas relações entre trabalho e sociedade. que o culto é em crioulo. Tudo isso é curioso porque temos um
fluxo migratório totalmente contemporâneo, de pessoas que
Gabriel Eu acho que esses processos de transformação são muito ci- vieram a trabalho e que se instalam no bairro.
Martins nematográficos, são muito atraentes para uma narrativa de Hoje, estamos vivendo no Brasil uma profunda crise de
filme porque pontuam a ideia de arco dramático, que é onde desemprego, com uma taxa muito grande de empregos infor-
o personagem começa e onde ele termina. As transformações mais. Isso interfere muito nas identidades das periferias, e nós
fazem parte de contar uma história com começo, meio e fim. E, gostamos de retratar isso nos personagens porque é impossível
ao mesmo tempo, essas transformações têm muito a ver com dissociar essa relação de trabalho com a vida. É o que move as
a história desses bairros. Quando meus pais se mudaram para pessoas e é ao que elas se dedicam. O trabalho é muito impor-
o bairro Milanez, por exemplo, fizeram parte da primeira gera- tante e nós achamos fundamental refletir sobre esse lugar por-

44 45
que muitas vezes os personagens periféricos são vistos de uma
forma científica e distanciada, como se precisassem ser analisa-
dos, assim como um objeto de estudo. Quando trazemos os per-
sonagens para um lugar mais subjetivo, acho que conseguimos
ver mais complexidade dentro desse ritmo cotidiano, dentro
dessa sociedade que perdeu certo tato. É curioso que a Covid-19
tenha provocado um isolamento social físico, mas, mesmo com
as pessoas se encontrando, eu acho que esse isolamento social
já estava dado, de uma forma simbólica.

Aline Exatamente, e essas características territoriais trazem essas


Vila Real diferenças, porque esse fluxo migratório é o que está cravado
em nossa identidade brasileira. Isso faz parte da nossa história,
e o que eu vejo na Filmes de Plástico é justamente essa relação
com o trabalho, mas sem romantização. A história dos persona-
gens revela, como você diz, a subjetividade, as particularidades,
mas também apresenta possibilidades de diferentes mudan-
ças (mais ou menos radicais) dentro desse mesmo sistema de
trabalho. Vocês acabam apontando para alguma radicalidade
da ação desses personagens em um misto de consciência e re-
volta – que nós poderíamos exemplificar com um assalto a uma
mansão, que é o que acontece em No coração do mundo. É possível
ver nos filmes uma crítica sobre as relações de trabalho: já que
as pessoas trabalham porque precisam, por que não pensar uma
outra alternativa para poder resolver essa necessidade?

Gabriel Acima de tudo, o cinema que estamos tentando fazer é um ci-


Martins nema antimassificação, no sentido de ir contra qualquer pos-
sibilidade de generalizar determinados grupos: o povo, as pes-
soas negras, as pessoas periféricas, as mulheres, enfim. Todos
os grupos que tendem a ser massificados nas análises, tendem
a ser considerados como um grande povo que se movimenta
de forma igual. Nosso cinema vai contra isso. É importante
entendermos o que leva as pessoas a fazerem certas escolhas,
vermos o que está por trás de suas decisões, mesmo que não
concordemos com elas. A moral sobre a coisa vai de cada um,
mas precisamos ver de onde esses personagens estão vindo, o
que eles estão vendo, o que estão passando, o que estão sentin-
do e o que os fazem escolher os caminhos que tomam. É sim-
plesmente um gesto de empatia.
Eu acho que existe um esgotamento dos modelos eco-
nômicos, uma incapacidade do neoliberalismo em lidar com a

46 47
sociedade. Esses modelos colocam as pessoas em uma situação essas pessoas para fazer um filme, que não fossem elas repre-
limite, principalmente aquelas que já estão em desvantagem sentando a si mesmas, fazendo-as fabular e criar, foi algo incrí-
social, seja por uma formação que não conseguiram, seja por vel. Isso abriu minha mente para um preconceito que até eu
não terem emprego ou segurança acerca de sua vida financeira. tinha, inconscientemente, de que essas pessoas não poderiam
E essa vida financeira está atrelada a uma vida emocional tam- fazer isso, e que somente atores com uma grande formação
bém, porque se você está devendo o seu aluguel há meses, ou dramática poderiam fazer. Mas não, essas pessoas estavam lá,
você não tem dinheiro para pagar uma passagem de ônibus, isso fazendo uma coisa que não era esperada delas. Elas não esta-
é um problema psicológico, que vai refletir em outros campos vam em uma caixinha que a sociedade moldou para elas, es-
da sua vida e na forma como você se relaciona com o mundo. tavam fazendo um filme muito estranho, de uma linguagem
São poucas as pessoas que entendem como a falta de grana e a de estranha, e estavam entendendo completamente o que esta-
oportunidades colocam as pessoas nesse limite. E filmes como vam fazendo. Não estavam apenas seguindo as minhas ordens
No coração do mundo querem olhar para aqueles personagens es- como diretor, estavam opinando e inventando. De certa for-
cancarando, de certa forma, os vários lados deles. Não queremos ma, isso me fez refletir sobre como criamos muitas limitações
reproduzir a ideia de que esses personagens são simplesmente para a arte, e quando começamos a tensionar esse “pode ou
pessoas boas ou más, que cabem em caixinhas de qualidades, não pode”, chegamos a elementos muito potentes.
porque não queremos ficar alimentando o espectador com uma Quando lançamos uma ideia e pensamos em possibili-
colherzinha na boca. Queremos que as pessoas possam destrin- dades, nossa máxima é sempre dizer “por que não?”. Por que
char por conta própria o que é aquele universo. não colocar a mãe do André, também idosa, levitando em uma
O Maurílio fala muito nas entrevistas que nós não repre- ventania no quintal, como fizemos em nosso filme Quintal? Às
sentamos ninguém. Não representamos Contagem, não repre- vezes são ideias que, de início, parecem muito estranhas, mas,
sentamos o bairro, não representamos nem as nossas famílias. quando executamos, elas abrem portas para uma criatividade
Apresentamos essas pessoas para o mundo a partir de uma ótica infinita. Ainda temos muito a fazer no cinema brasileiro. No
subjetiva e pessoal nossa, mas que nunca deve ser delimitadora. nosso caso, pode ser que tenhamos trazido imagens que não
Não existe uma voz só, alguém pode chegar a Contagem e fazer são novas no mundo, mas para a região em que filmamos e
um filme de terror, ou uma comédia romântica. Nós nos interes- para as pessoas com quem filmamos é tudo muito novo, não
samos por esse tipo de apresentação (e não representação), mas é nada convencional. Eu sempre me interesso em fazer algo
isso não deve ser algo definidor. É apenas uma perspectiva. diferente, onde a fabulação mostra que nosso cotidiano tem
múltiplas possibilidades.
Aline Outro aspecto que eu queria comentar sobre a produção da
Vila Real Filmes de Plástico é um interesse na convivência do cotidiano Aline Em nosso cotidiano, a fabulação é uma chave para a continui-
e do eventual, na convivência entre o banal e algum elemento Vila Real dade da nossa sobrevivência, não apenas no campo poético,
estranho, dúbio, ou uma ação totalmente inesperada. Eu gos- mas também no campo prático.
taria que você comentasse sobre essas possibilidades de leitu-
ra do cotidiano também como espaço de estranhezas. Gabriel O bonito não precisa ser extraordinário ou grandioso. Eu sem-
Martins pre me lembro de uma frase que o André fala: na casa dos pais
Gabriel Quando eu rodei, em 2010, o filme Dona Sônia pediu uma arma dele tem uma gaiola que está pendurada sem passarinho, há
Martins pro seu vizinho Alcides, virou uma certa chave na minha cabeça. muitos anos. Nós sempre achamos essa gaiola muito bonita, e
É um filme com atores e atrizes do bairro, pessoas idosas da ele me disse que a imagem dessa gaiola, que todo dia ele vê, é
região. Esse foi o primeiro filme em que eles atuaram na vida, algo especial. Cada quintal, cada terreiro tem algo de especial.
e era um filme com uma certa linguagem teatral. Depois des- Nós gostamos de elogiar essas coisas que estão literalmente
cobri que Dona Ruth, a atriz principal, nunca tinha visto um ao nosso lado. Todo mundo tem vizinhos, todo mundo mora
filme no cinema e praticamente não assistia filmes. Colocar
.
em algum lugar que, se nos esforçarmos, conseguimos trans-
formár em algo especial
48 49
LINGUAGEM
050 Por que
aproximar
mundos?
Renata Marquez

056 Pedagogias
da arte
Uma conversa entre
Renata Marquez e Jonathas de Andrade

064 Preservar
os cantos
Uma conversa entre
Renata Marquez e Sueli Maxakali

072 Os diálogos
da ciência
Uma conversa entre
Renata Marquez e Bernardo Esteves

50
Em uma mesa, em uma sala de aula ou quem sabe debaixo de
uma grande mangueira no quintal, três pessoas conversam.
Elas falam a mesma língua, mas quando pronunciam uma
mesma palavra, ela pode significar coisas diferentes para cada
uma delas. Cada interlocutora tem as suas memórias, os seus
lugares de vida, as interações com os seus mundos. Escutan-
do-as conversar, podemos perceber a trama da diversidade.
Vivemos em um mundo de muitos mundos e precisamos dis-
cutir, urgentemente, formas coletivas de cuidar de todos eles.
Cuidar de todos os mundos, contudo, não pode significar
reduzi-los a um único mundo. Cuidar implica mantê-los vivos,
ativos, felizes. Pode abarcar trocas, mas também silêncios – as
APROXIMAR
traduções possíveis e também as traduções impossíveis. Ima-
ginemos que as três pessoas conversando trazem consigo, res-
pectivamente, três tipos de discurso – os saberes tradicionais,
as artes e a ciência ocidental.
O que podemos aprender sobre como cuidar dos mun-
MUNDOS?
dos existentes com o encontro destas três falas? Como transi-
tar entre estes três maravilhosos campos de invenção e sensi-
bilidade? Antes de nos dedicarmos a tentar responder a estas
POR QUE

perguntas, propomos breves considerações iniciais a partir de


cada tipo de discurso, uma vez que, para alguns leitores, eles
podem não soar tão familiares.

Os saberes tradicionais

A tradição inerente aos saberes tradicionais não é exclusividade


desta forma de conhecer; tanto a arte como a ciência têm tam-
Renata Marquez

bém suas tradições. Se alguém disser que os saberes tradicionais


assim se chamam porque não se modificam com o tempo – ao
contrário da arte e da ciência, para as quais a palavra inovação é
imperativo feroz e dominante –, não será um argumento total-
mente correto, e a resposta poderia ser sim e não.
Por um lado, podemos concordar com o argumento: sim,
trata-se de uma forma de conhecer baseada na ancestralidade
e na rememoração dos mais antigos, respeitados por serem
fonte inegável do conhecimento coletivo ancestral. Mas, por
outro lado, podemos discordar do argumento: não, pois se tra-
ta de uma forma de conhecer que sempre soube dialogar com
aquilo que era de fora, atenta a outros mundos e abrindo-se
para a transformação. Ou seja, os saberes tradicionais vêm

52
de um passado que não terminou de acabar e que age sobre e dinário e o ordinário – pode perder seu sentido e sua força de,
com o presente.1 Esta tem sido a sua forma de resistência ao respectivamente, qualificar a arte e desqualificar o artefato no
longo de séculos diante das investidas sofridas de extermínio ranking mercadológico da produção sensível. Se mudarmos o
e despossessão. foco da análise, deslocando o valor monetário para o valor co-
Isso é bem diferente da ideia de um saber tradicional que munitário, se propusermos outro ranking, o da sensibilidade
a modernidade considerou arcaico – antigo, obsoleto, ultrapas- partilhada, ensinada e aprendida nas escolas-mundo, pode-
sado – para que, assim, pudesse negar a potência da condição remos desaprender o significado violentamente uníssono da
política dos saberes tradicionais – populares, indígenas, ribei- palavra arte.3
rinhos, quilombolas e outros – como um conjunto de saberes
contemporâneos, ativos e partilhados no espaço-tempo atual. A ciência
Inventando o arcaico, as práticas ditas inovadoras e o horizon-
te inquestionado do progresso puderam se impor na fabrica- Este também maravilhoso mundo de invenção e sensibilida-
ção do mundo de um mundo só. de vem nos salvando de quase todos os tipos de males, não é?
Embora, em sua história, especificamente em sua temporada
As artes moderna que começa no século XV, a ciência tenha registrado,
também, um triste rastro epistemicida, que desqualificou outras
Longe de ser um luxo ou um privilégio dos poucos da elite, formas de conhecimento, como os saberes indígenas e os de
que a entende como algo extraordinário, a arte é, em sua base matriz africana, por exemplo. Conduzida pelo contexto polí-
sensível, constituinte da experiência humana. A dicotomia tico e econômico positivista, a ciência moderna ocidental con-
entre subjetividade e objetividade, que vinha separando arte quistou o privilégio de definir não só o que era ciência, mas,
e ciência, é uma das muitas falácias da modernidade, que tam- mais do que isso, o que era conhecimento válido. Todo o resto,
bém tratou de separar natureza e cultura para poder acreditar para ela, não era ciência: eram crenças, opiniões, magia, intui-
que dominaria a natureza – inverdade que nos é hoje uma ex- ção e subjetividades.4
periência flagrante, enquanto tentamos seguir vivendo em A palavra epistemologia merece também uma observa-
plena pandemia global e numa grave e quiçá irreversível crise ção, assim como a palavra estética: epistemologia, em vez de ser
climática planetária. sinônimo de “filosofia da ciência” – que aceita, sem pestanejar,
A estética, em vez de ser a “filosofia da arte” – campo que a ciência como única forma de conhecimento –, pode ser en-
vem excluindo os espectadores e os praticantes cotidianos para tendida como o estudo do conhecimento, em suas múltiplas
resguardar o lugar especializado dos experts (artistas, museólo- formas possíveis. Sendo assim, poderemos falar de uma epis-
gos, curadores, críticos, colecionadores) – pelo contrário, pode teme estética, de uma episteme ameríndia, de uma episteme
ser entendida como um modo sensível de traduzir, expressar quilombola, de uma episteme popular... Epistemes que sem-
e partilhar os fenômenos observados nos mundos que com- pre foram coexistentes à episteme científica.
põem o mundo. Afinal, como disse Edgar Morin, a arte ensina Se a ciência ocupava confortavelmente o lugar hegemô-
a viver (melhor) e aponta para a qualidade (poética) da vida.2 nico do conhecimento, o cenário hoje é diferente. No atual con-
Assim, outra dicotomia violenta cultivada pela moder- texto político, a ciência tem sido cotidianamente atacada e tem
nidade – a separação entre arte e artefato ou entre o extraor- destinado precioso tempo ao esforço de não deixar desmoro-

1 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Brasil, país do futuro do pretérito.


Manuscrito para a aula inaugural da PUC-Rio proferida no dia 14 de março 3 AZOULAY, Ariella Aïsha. Arte que destrói o mundo comum. Revista
de 2019. Disponível em: <https://issuu.com/n-1publications/docs/cordel_ PISEAGRAMA. Belo Horizonte, nº15, pp. 44-53, dez. de 2021. Disponível em:
brasilpreterito>. <www.piseagrama.org>.
2 MORIN, Edgar. Aprender a viver. In: A cabeça bem-feita: repensar a reforma, 4 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das
reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. linhas globais a uma ecologia de saberes. Eurozine. Viena, 14 de fev. de 2008.

54 55
nar os outrora criticados alicerces da razão e de zelar pela saúde Uma mesma palavra pode se referir a coisas distintas,
e pela vida. A ciência ocidental, assim como os saberes tradicio- dependendo do mundo no qual é proferida, nos ensinou Ma-
nais e as artes, interage com a sua época e se transforma, dialo- risol de la Cadena, refletindo sobre a palavra território.8 O que
gando com os acontecimentos dos mundos nos quais atua. significa território para uma comunidade tradicional? A terra
não pertence às pessoas, elas é que pertencem à terra, como ex-
Mundos nossos vizinhos plica o poeta e liderança quilombola piauiense Antônio Bispo
dos Santos.9 O que podemos aprender quando escutamos a ar-
Depois deste preâmbulo, vamos exercitar a complexidade do tista e liderança indígena mineira Sueli Maxakali pronunciar a
ato de perceber em vez de deixar passar desapercebido? Ver palavra cinema? A tecnologia cinematográfica é entendida, por
parecia ser algo simples, automático. Mas se confrontamos ela, como uma técnica a mais no inventário de estéticas ma-
duas palavras – ver e olhar – podemos refletir sobre sua crucial xakali, postas a serviço da narrativa ancestral. Cinema – koxuk
diferença. Se pensarmos que ver é uma atividade fisiológica na língua maxakali – é palavra que denomina também espírito.
enquanto olhar é um gesto criativo para fazer o mundo signifi- “Um dicionário começa quando já não dá o significado
car alguma coisa, notaremos que o gesto de olhar pode ser um das palavras, mas as suas tarefas”, dizia Georges Bataille.10 Qual
exercício potente para ajustar nossos sentidos e potencializar a tarefa das artes hoje? Qual a tarefa da ciência hoje? A tradição
nossa capacidade social de perceber e viver junto.5 da ciência em seus protocolos e métodos internacionalmente
No momento em que começamos a escutar o que antes compartilhados tenta aterrissar para conhecer junto com aquilo
nos parecia ruído e a acolher com o olhar aquilo que nunca ha- que julgava seus objetos de estudo.11 Afinal, o progresso não
víamos visto – mas que sempre esteve ali – somos desafiados é, como pensavam os dicionários do século passado, sinônimo
pela percepção de que há muitos mundos no que chamamos de desenvolvimento tecnológico. O progresso, pelo contrário,
de mundo; de que há muitos modos de viver e de conhecer; de pode se transformar em mecanismo do “bem viver” em vez do
que há muitas formas de sentir e de se expressar; e de que há viver-bem-a-qualquer-custo.12
muitas histórias dentro da história.6 De volta à mesa, à sala de aula ou à sombra da mangueira
“O que se diz está sempre sendo dito em outro lugar, em no quintal, entre traduções possíveis e traduções impossíveis,
muitos lugares”, escreveu Sylvia Molloy em seu livro de memó- tentamos calibrar o olhar e a escuta passeando pelas três epis-
rias Viver entre línguas.7 Como podemos imaginar esbarros, en- temes em conversa – os saberes tradicionais, as artes e a ciên-
contros e vidas em comum dentro de tantas histórias? A lingua- cia. Elas nos convidam a perceber os mundos nossos vizinhos
gem aparece como um vínculo em potencial. É potência porque, e nos convocam ao encontro e à aliança com eles, pois se trata
dependendo da maneira como a aplicamos, em vez de vínculo
pode ser risco, atuando também como abismo que separa em
vez de juntar.
mundos para que a vida siga prosperando .
de defender a viabilidade de um futuro e de cuidar bem dos

Há política no gesto tradutório. Quem escutar? Quem


deve ser percebido? Como se fazer entender? Como compre-
ender os outros? Como não repetir o esforço de tradução que
aniquila a diferença e busca equivalências a partir de uma das 8 DE LA CADENA, Marisol. Natureza incomum: histórias do antropo-cego.
línguas envolvidas, a mais poderosa? Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, nº 69, p. 95-117, abr. 2018.
9 SANTOS, Antônio Bispo. Somos da terra. Revista PISEAGRAMA. Belo
Horizonte, nº12, p. 44-51, ago. de 2018. Disponível em: <www.piseagrama.org>.
10 BATAILLE, Georges. Formless, Documents 1, Paris, 1929.

5 CALVINO, Italo. Palomar. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 11 LATOUR, Bruno. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno.
Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
6 Exculturas. Emerson Santos, 2014. Disponível em: <https://vimeo.
com/80643035>. 12 ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos.
São Paulo: Autonomia Literária e Elefante, 2016.
7 MOLLOY, Sylvia. Viver entre línguas. Belo Horizonte: Relicário, 2018.

56 57
Pedagogias

Essa e outras histórias estão presentes nos trabalhos


da arte
públicos e a falta de aprendizagem da Libras oficial,
comunidade de surdos-mudos desafia a dificuldade

do artista Jonathas de Andrade, que conversa com


a pesquisadora Renata Marquez sobre como a arte
e suas experiências de linguagem podem articular
criando sua própria linguagem para se comunicar.

de relações, pessoas e territórios invisibilizados


Em um povoado no sertão do Piauí, uma grande

processos pedagógicos que revelem a potência


de acesso à água, a escassez de investimentos
Uma conversa entre
Renata Marquez e Jonathas de Andrade

Renata Jonathas, você é um artista visual e fotógrafo que trabalha com


Marquez instalações, fotopesquisas e vídeos, abordando a dimensão so-
cial de uma série de urgências e desconfortos cotidianos. Como
nossa ideia é conversar sobre seu filme Jogos Dirigidos, de 2019,
você poderia se apresentar e falar um pouco desse trabalho?

Jonathas Eu sou artista, e trabalho com fotografia como uma ferramen-


de Andrade ta inicial para contar histórias que, muitas vezes, viram vídeos
e instalações. O projeto dos Jogos Dirigidos aconteceu em 2018
e foi finalizado em 2019. Ele foi realizado com a comunidade
de surdos de Várzea Queimada, um povoado no Piauí que, pela
falta de acesso à educação específica em Libras [Língua Brasi-
leira de Sinais], desenvolveu uma linguagem de sinais própria,
que é muito mimética, muito teatral. Quando eu cheguei, fi-
quei muito surpreso com a presença dos surdos e de como eles
eram integrados no povoado, porque na minha experiência ur-
bana, eu sempre vejo encontros de grupos de surdos no meio
pela cartografia.

de uma cidade absolutamente hostil, não feita para eles, e que,


muitas vezes, trata a surdez como uma grande diferença in-
transponível. Em Várzea Queimada isso era diferente porque
a presença dos surdos se dá em várias famílias, de forma que
mesmo aqueles que não são surdos conseguem se comunicar,
acolhem e entendem um pouco aquela gestualidade. Era mui-
to interessante ver como eles se aproximavam, cutucavam e
começavam a perguntar o que eu fazia, quem eu era, de onde
eu vinha. De repente, eu era surpreendido em uma conversa
com uma linguagem que eu desconhecia e isso era sensacio-
nal, porque eu me colocava no lugar de não saber uma língua
– e invertia um pouco aquela situação do surdo como alguém

58
excluído que eu estava acostumado a ver. Foi essa vitalidade e
essa alegria que me fascinaram, e eu propus para a comunida-
de, então, fazer um projeto ali.
Como minha mãe é pedagoga, tinha um livro que eu
sempre via na estante com o título Jogos Dirigidos, que propu-
nha dinâmicas em grupo e exercícios na sala de aula. Esse foi
o ponto de partida para eu propor em Várzea Queimada várias
dinâmicas de grupo e jogos. Minha ideia era ver como pode-
ríamos adaptar esse livro para aquela situação, e filmar como
essa gestualidade acontecia para transformar tudo isso em um
dicionário de gestos de Várzea Queimada. Chegando lá, dias
antes da equipe de filmagem e, na tentativa de explicar o que
era o filme, eu logo vi que a tradução não acontecia, que era ou-
tra lógica de pensamento, outra lógica de comunicação. Essa
foi a primeira derrapada maravilhosa do projeto porque des-
montou a minha primeira intenção, que era de propor um jogo
mais rígido de câmera e uns exercícios. Percebi que todos os
exercícios propostos pelo livro Jogos Dirigidos sempre usavam
um grito, uma música, uma fala ou palmas – o que para aquelas
pessoas surdas não faria sentido. Mantivemos, então, as dinâ-
micas, mas guiadas por um pedido de contarem uma história
inventada. Isso resultou em uma explosão de casos e de contos
a partir da vida deles. Existia uma urgência gigante de falar so-
bre a vida deles e sobre situações que eles viveram.
O projeto se transformou nisso: um conjunto de histó-
rias e casos contados pelos moradores em forma de gestos, com
a Marcilene, uma das moradoras, traduzindo e interpretando a
situação. Durante o processo, eu entendi que a coisa mais inte-
ressante era ela não estar presente o tempo todo traduzindo as
histórias, mas que o filme mesmo pudesse ser como um jogo
com o espectador. No fim, o filme ficou parecido com aqueles
vídeos didáticos de aprendizado de línguas, com uma cena se-
guida de uma revisão de vocabulário. Tempos depois, eu tive a
oportunidade de voltar lá para fazer uma exibição do filme na
igreja de Várzea Queimada, o que foi alucinante e maravilhoso.

Renata Todas essas combinações, reversões e descobertas que você


Marquez teve em campo, em seu envolvimento com essas pessoas,
aparecem muito fortes no seu relato. E na antropologia, por
exemplo, sabemos que não saber o que vamos encontrar é a
grande verdade do que chamamos de descoberta: quando va-
mos a campo munidos de um monte de estratégias, objetivos e

60 61
produtos, sempre somos surpreendidos com algo em que não outros grupos e em outros espaços. Nesse sentido, penso o seu
pensamos. É justamente aí que está a verdade do trabalho de trabalho como um projeto estético-político-pedagógico no
campo, que envolve pessoas e, muitas vezes, outros mundos. campo da arte. O que você pensa sobre isso?
No caso do seu trabalho, você se abriu para isso e deixou esse
jogo de forças acontecer, saindo um pouco do lugar hierárqui- Jonathas Eu sinto essa influência em vários dos meus trabalhos, como o
co que normalmente o artista ocupa diante dos demais partici- de Andrade ABC da cana, que é um abecedário feito com os trabalhadores de
pantes. Você pode falar mais sobre isso? corte de cana (onde eu propus que eles fizessem letras com um
pedaço de cana). Tem também o projeto “Educação para Adul-
Jonathas Entre um projeto e outro, nem sempre essa interação acon- tos”, feito com parte daquelas cartilhas inspiradas no método
de Andrade tece. O retorno para a comunidade foi algo que eu interpreto Paulo Freire, experimentadas e refeitas com um grupo de mu-
como um amadurecimento. Nos Jogos Dirigidos, a volta do pro- lheres analfabetas da Associação de Lavadoras de Casa Ama-
jeto e do filme para a comunidade foi algo que só imaginamos rela, que é um bairro em Recife. E agora os Jogos Dirigidos, que
experimentando e vivendo. Por mais que eu tentasse contro- também é um dicionário de palavras que, de algum jeito, com-
lar, sugerir ou pautar as situações, eu via que naquele contexto põem um panorama de sertão, de Brasil, de território – a própria
isso não funcionaria, o que desestabiliza e também atualiza a forma do vídeo flerta com o vídeo pedagógico de línguas. Pen-
maneira que eu vejo o lugar do artista. Nos Jogos Dirigidos, eu sando nesses três projetos, eu acabo tendo que reconhecer que
tive a sorte de a comunidade estar completamente à vontade, existe realmente esse interesse pelo didatismo, pela pedagogia
a presença da câmera não parecia constrangê-la de maneira ne- e pelas formas de educação. Não acho que eles lançam exata-
nhuma – ao contrário, parecia até potencializar uma esponta- mente um novo projeto de educação, mas propõem experiên-
neidade. Isso foi algo surpreendente. cias que sublinham as fragilidades do país quando se pensa em
educação. Para mim, usar esse jogo entre ficção e documental
Renata Porque o filme funciona também como um dispositivo para nos trabalhos é falar sobre a existência de um projeto político
Marquez mantê-los juntos, por isso eu acho que faz tanto sentido para de exclusão. Para falar de coisas tão dolorosas e fortes na vida
eles, não é? dessas pessoas e na história do nosso país, eu gosto sempre de
encontrar situações de potência (como a vitalidade e a autono-
Jonathas Com certeza, eu acho que a existência do filme consolida, de mia dos moradores de Várzea Queimada em criarem sua pró-
de Andrade alguma forma, a identidade da comunidade dos surdos – que pria língua na ausência de uma educação formal). Em uns pro-
de fato já existia e já era muito forte, mas a experiência de ter jetos, mais do que em outros, eu costumo usar a ambiguidade
um filme dedicado àquela contação de histórias pode ter sido como ferramenta para estimular a leitura plural dos projetos,
um estímulo para eles olharem para si próprios. Eu pude dis- porque acho que os projetos artísticos, as fotografias e os filmes
tribuir DVDs com o filme e, de vez em quando, recebo relatos devem promover debate, devem ter um potencial pedagógico
desse DVD sendo exibido nas casas, entre as pessoas, o que é neles mesmos. Um filme como Jogos Dirigidos tem que fazer
muito interessante. sentido para a comunidade, mas também para quem vai ver de
fora daquela comunidade, desafiando sua leitura de mundo.
Renata Fico pensando que a alfabetização pode ser um mecanismo de
Marquez emancipação, mas pode também ser usada como instrumento Renata Eu achei muito bom escutar as suas reflexões sobre uma prá-
de massificação e manutenção de um abismo social. As carti- Marquez tica tão coerente e, ao mesmo tempo, tão experimental, que
lhas de alfabetização empregadas pelos diferentes governos vai sendo repensada à medida que você vai fazendo novos
que já tivemos, oferecem, inclusive, um belo e histórico campo trabalhos. A pergunta que eu costumo lançar para qualquer
de discussão dessas questões. Em seus trabalhos, você resgata trabalho artístico é: “O que eu aprendo com esse trabalho?”
essas cartilhas antigas, que se mesclam às memórias pessoais, Estou pouco interessada no trabalho fechado em si, mas me
quando você as põe em ação para operar em outro tempo, com interesso pelo que ele me conta sobre o mundo. Nesse senti-

62 63
do, acho importante conversarmos sobre a relação que seus
trabalhos estabelecem entre linguagem e território, já que em
grande parte do que você faz, o território é fundamental para
que as questões sociais, os diversos mundos e suas linguagens
específicas sejam apresentados. Várzea Queimada é o territó-
rio dos Jogos Dirigidos, mas são vários outros cantos do país que
você decalca do mapa e tira de uma invisibilidade cartográfica,
do quase desconhecimento. Você faz com que esses lugares
apareçam, negociando a sua existência e a sua linguagem. Pos-
so dizer até que um novo mapa é desenhado, mas nesse mapa
o território é enraizado nas pessoas, e não o contrário, como
poderíamos acreditar no sobrevoo da geografia física, que nos
faz pensar que o espaço está sempre vazio. Posso dizer que
seus trabalhos canalizam outras vozes, outras imagens e ou-
tras reivindicações presentes nesses territórios, mostrando to-
dos esses jogos de força, como você disse. Você poderia, então,
pensar um pouco sobre esse viés cartográfico do seu trabalho?

Jonathas É curioso: em vários projetos eu parto dessa ideia de falar desde


de Andrade o Nordeste, que é de onde eu vim. Eu me formei nessa comple-
xidade das coisas que eu vivia em minha infância no interior
de Alagoas, e acho que uma grande questão para mim é o des-
concerto de ver como o mundo é organizado entre favorecidos
e desfavorecidos. Sempre me desconcertou esse jogo de forças
entre as pessoas, entre as regiões, entre as identidades, entre as
classes e entre as raças, e como isso é parte da minha história e
da história dessa região. Não só dessa região, porque isso é só
uma manifestação do que acontece em todo lado. Pensar, en-
tão, em uma situação que parece local, mas que na verdade fala
sobre questões universais é algo que sempre me atraiu.
Para mim, falar sobre esse local é quase como lançar mão
de um conto, de um causo, de uma situação que muitas ve-
zes parece particular, e que na verdade fala sobre um jogo de
forças visto em todo lugar. Falar do Nordeste é falar de Brasil,
mas é também falar de América Latina, de dominação, de um
intracolonialismo, de pós-colonialismo, dessas relações que
vibram sobre o eco de histórias de dominação. Mostrar esses
territórios é, para mim, me aproximar de lutas que são cons-
tantes, que estão sempre ecoando em momentos e situações
do passado. Eu sempre me pergunto de que forma um projeto
pode tocar uma pessoa, a partir do repertório dela. Isso é algo

.
que eu acho fascinante, tocar uma pessoa que está para além
do contexto específico daquela comunidade
64 65
Preservar

ancestral modo de vida do povo maxakali foi mantido,


os cantos

e liderança indígena Sueli Maxakali nos conta como o

perpetuado e fortalecido ao longo de séculos através


Em meio à violenta chegada dos invasores europeus

escolha importante: ou preservava seu território, ou

pesquisadora Renata Marquez, a educadora, artista


ao território brasileiro, o povo tikmũ’ũn – também

preservava sua linguagem. Nesta conversa com a


conhecido como Maxakali – precisou fazer uma
Uma conversa entre
Renata Marquez e Sueli Maxakali

Renata Sueli, você é fotógrafa, educadora e cineasta, e sua atuação


Marquez como artista, liderança e ativista da questão indígena emprega

da língua, dos cantos e das imagens.


e indaga muitas linguagens: o canto, o desenho, a fotografia, o
cinema e os adornos de embaúba e de miçanga. Em todas as
ocasiões em que tive o privilégio de trabalhar com você, perce-
bi o quão potente é a sensibilidade com a qual você narra, pre-
serva e difunde a cosmologia tikmũ’ũn, mais conhecida como
maxakali. Para começar, você poderia se apresentar e falar um
pouco dos Tikmũ’ũn para quem não conhece?

Sueli Meu nome é Sueli Maxakali e sou da Aldeia Verde, que fica no
Maxakali município de Ladainha, Minas Gerais. Quando os portugueses
chegaram aqui, colocaram o nome do nosso povo de “Maxaka-
li”, mas nosso nome de verdade é Tikmũ’ũn. Os portugueses
queriam que nosso povo acabasse, mas nós existimos até hoje.

Renata Vocês, Maxakali, são diplomatas entre mundos: vocês fazem o


Marquez trânsito entre os Tikmũ’ũn e os não indígenas, levando o modo
de ver e de agir indígena e negociando sua resistência continua-
da ao longo de mais de 500 anos. Como a linguagem do cinema,
que é uma forma recorrente de registrar o pensamento indígena,
pôde contribuir nessa luta e em aliança com os não indígenas?

Sueli Para nós, o cinema é essa forma mesmo de entender a imagem,


Maxakali cinema é koxuk (imagem). Na nossa língua, koxuk é, ao mesmo
tempo, imagem e cinema. O cinema é muito importante para
nós porque veio com a tecnologia para mostrar a realidade. Ele
veio para mostrar o mundo do nosso povo maxakali, os nossos
yãmiyxop (povos-espírito) e o nosso direito ao território. Nós

66
temos que entender que a terra também faz parte do nosso di-
reito. Ela está na Constituição e nós sabemos que ela é nossa
mãe porque é muito importante para nossa vida. Na nossa ter-
ra, as crianças têm mais liberdade, assim como os espíritos. Ali-
ás, koxuk também significa espírito, e é por isso que o cinema
tem uma importância muito grande para o nosso povo.
O cinema clareia nosso povo, faz com que não nos es-
queçamos dos antepassados. Nós não podemos perder em ne-
nhum momento essa conexão com os antepassados porque,
se perdermos algum pedacinho, estaremos perdendo a nossa
cultura. Por isso que estamos aqui, tendo a nossa luta na aldeia,
na cidade e na universidade. Estou escrevendo livros e estu-
dando para forçar a nossa cultura, forçar o nosso direito.

Renata Você falou do cinema, dos livros que tem publicado e de sua
Marquez atuação na universidade, que são ações desse trânsito entre
mundos que têm uma dupla importância: elas dialogam co-
nosco, mas também ajudam o povo maxakali a não esquecer os
antepassados. E é muito bonito saber que, na língua maxakali,
“cinema” e “espírito” são nomeados pela mesma palavra, koxuk.
Isso nos faz pensar, e nos convida a conhecer mais sobre os Ti-
kmũ’ũn por meio do cinema. No filme que você fez com seu
companheiro Isael Maxakali, Yãmiyhex, nós podemos acompa-
nhar o ritual das mulheres-espírito. O filme tem dois momen-
tos em que fica clara a presença da câmera no meio do ritual:
em um primeiro, você diz que está com medo de baterem na
câmera, e em um segundo momento alguém esbarra de fato na
sua câmera, que treme nas suas mãos. Como é filmar o ritual e
participar dele ao mesmo tempo, filmando de dentro?

Sueli No momento em que estamos no meio do ritual, sentimos que


Maxakali estamos presentes, acompanhando os pajés e os espíritos. Nós
participamos do ritual e a câmera também participa. Ali, nós
estamos junto com os espíritos fazendo koxuk.

Renata Outro ponto sobre o filme Yãmiyhex, que seria legal você con-
Marquez tar, é sobre relação entre cinema e segredo, sobre o que pode
ser filmado e o que não pode – e não deve – ser filmado.

Sueli O cinema também faz parte do segredo, do nosso ritual, e é pre-


Maxakali ciso saber o que pode ser filmado e o que não pode. Hoje, nós
temos um grande respeito por nossos pajés, e eles têm muito

68 69
respeito por nós, têm muita confiança em nós. O dia em que eu o canto que faz a cura. Hoje, temos resguardo, temos filmagens
desrespeitar os nossos pajés, eles não vão mais deixar eu filmar, que mostram algumas partes do que nossos antepassados dei-
mas enquanto eu estou defendendo meu ritual, defendendo a xaram para nós. A única coisa que nós perdemos foi a terra,
minha cultura, eu estou sendo correta com o meu pessoal. porque tivemos que fazer essa troca.
Eu sei que a filmagem mostra, sim, a nossa visão das mu-
lheres, e os homens têm a visão diferente da parte deles. Quan- Renata Alguns outros grupos indígenas, no enfrentamento com os
do o Isael filma os Tatakox (espíritos-lagarta), que ficam em Marquez não indígenas, pagaram um preço alto: a perda de grande parte
cima das folhas, ali só um homem poderia filmar – porque as das tradições e da língua originária. Com isso, alguns parentes
mulheres não podem ir àquele lugar. A mesma coisa dentro da de outros tempos têm se aproximado de vocês para recupera-
barraca do ritual. Se eu for tirar alguma foto, eu tenho que pedir rem o conhecimento que, para eles, se perdeu (mas para vocês
permissão para o pajé, porque ele tem que sair arrumado para está bem guardado nos cantos e nos rituais). Como tem sido o
receber as filmagens. É um respeito que nós temos que ter. reencontro com os Pataxó,1 da Bahia, em torno da língua origi-
nária que vocês têm em comum?
Renata A figura do pajé como aquele que guarda a sabedoria tikmũ’ũn
Marquez foi fundamental em toda a história do seu povo. E vocês vivem Sueli O pessoal pataxó é um povo que vem do nosso povo maxakali.
hoje em um território muito pequeno no norte de Minas Gerais, Maxakali Só que, devido a toda essa violência, houve separações durante
e contam que, desde que o Brasil foi invadido, entre perder a terra os séculos de invasão. Cada um deles foi para um lugar diferente,
e perder a língua, vocês preferiram perder a terra, para assim não mas nós somos o mesmo povo e temos quase a mesma língua.
desaparecer, para seguir existindo e mantendo o modo de vida, Ela pertence a nós e pertence a eles também. Hoje, nós estamos
que ficaria guardado no corpo tikmũ’ũn. Como foi essa história? resistindo fortes, com escola diferenciada, saúde diferenciada, e
as nossas forças estão junto com o povo pataxó. Os Pataxó têm a
Sueli Quando o nosso território foi tomado pelos não indígenas, ti- terra e nós temos a língua, que pertence à nossa alma. Os Pataxó
Maxakali nha um pajé que perdeu um filho. Mas o filho dele sempre vol- são também um povo de resistência, que teve essa força de ficar
tava, batendo nas travas da porta de sua casa: tok tok tok tok, até no território. Hoje, nós os ajudamos e eles também nos ajudam.
ele ouvir. Aí ele falava assim: “Meu pai, amanhã você vai embo-
ra para outro lugar, porque aqui vai vir o pessoal para matar vo- Renata E falando ainda do território da resistência, mas também do po-
cês”. Ele, então, saía fugindo porque o espírito do filho, o yãmiy Marquez der de reinvenção do povo Tikmũ’ũn, você gostaria de contar
kitok, avisava para ele sair da terra. Foi assim que nosso povo foi sobre o maior projeto em que vocês estão envolvidos hoje, que
perdendo o território para continuar vivendo, pela orientação é a criação da Aldeia-Escola-Floresta, um projeto que une pas-
do espírito yãmiy kitok. Quando as crianças morrem, elas viram sado e futuro, e cria laços entre os indígenas e os não indígenas?
espírito e nos ajudam. Nós consideramos que elas moram den-
tro do kuxex, da casa de reza. Sueli Nossa terra é muito pequena, e nós saímos da aldeia onde morá-
Tivemos, então, que escolher: ou perdíamos a terra ou Maxakali vamos para procurar um novo território onde tem um rio, para
perdíamos a língua e os cantos porque, se nós perdêssemos a podermos criar nossa escola. Nela, vamos ensinar nossos mais
língua, nós iríamos perder todos os cantos também. O canto jovens a serem mais fortes, fazendo e praticando nossos cantos
faz parte da nossa vida, do cotidiano, da cura. Nós não pode- e rituais. Também vamos ensinar os jovens não indígenas, para
mos, em nenhum momento, perder a nossa língua, porque ela conhecerem nossa cultura, aprenderem e pesquisarem. Por
é muito importante para a nossa vida. Foi então que decidimos
perder a terra, quando os pajés tiveram a decisão de sair cor-
1 Antes da chegada dos europeus ao território brasileiro, os Maxakali e
rendo, fugindo da violência contra nós, indígenas, e deixando
os Pataxó eram um só povo, falando a mesma língua e compartilhando
os não indígenas tomando a nossa terra. Hoje, a nossa terra é o mesmo modo de vida. Com os recorrentes ataques e fugas no período
muito pequena, mas nós ainda temos cura, temos preservado de colonização, parte do povo originário permaneceu na Bahia (hoje, os
Pataxó), e parte fugiu em direção a Minas Gerais (hoje, os Maxakali).

70 71
isso que pensamos em ter esse território, porque sabemos tam-
bém que não praticamos vários rituais porque não temos um
rio. E não dá para fazer ritual na torneira! É importante saber
que algumas coisas pertencem à água, e hoje a escola ainda não
ensina coisas que são da água, nem os mitos, nem os cantos.

Renata Os cantos dos Tikmũ’ũn evocam bichos que muitas vezes não
Marquez existem mais, porque a Mata Grande não existe no atual ter-
ritório que vocês ocupam, que foi desmatado pelas fazendas
monocultoras. Mas há muitos modos de guardar o conheci-
mento e, nesse sentido, os cantos são o modo que se mostrou

LINGUAGEM
bem eficaz para vocês. Como o canto, carregado e transmitido
pelos corpos, aproxima os mais velhos e os mais novos, crian-
do uma espécie de vizinhança com os bichos, com as curas e
com o conhecimento originário?

Sueli Nós não nos esquecemos, todos os bichos ficaram na nossa


Maxakali memória através dos cantos. As histórias, as caças, os mitos, os
assobios, tudo ficou registrado nas histórias dos cantos. Nós
não perdemos nenhum! Para todas as caças nós temos um can-
to. Todos os bichos, todos os peixes têm canto.

Renata Na exposição “Mundos Indígenas”, que esteve em cartaz no


Marquez Espaço do Conhecimento da UFMG, em Belo Horizonte, ti-
vemos a oportunidade de conhecer um pouco do mundo ti-
kmũ’ũn conduzidos pela proposta sua e do Isael como dois
dos curadores. Foi produzida para a exposição uma série de
máscaras de bichos (quati, porco-do-mato papagaio, peixe,
anta...) para que os visitantes pudessem vestir e, de certa ma-
neira, adentrar o mundo tikmũ’ũn. Você poderia falar do pro-
cesso criativo das máscaras que trazem, junto com os cantos, a
imagem de vizinhança radical entre esses seres?

Sueli As máscaras foram as meninas da aldeia que fizeram, e elas são


Maxakali muito importantes. Nós sentimos que estamos fazendo não
só uma máscara, mas um espírito também, porque a máscara
já faz parte dos yãmiyxop. Os espíritos estão junto, com as más-
caras. Para fazer essas máscaras, as mulheres tiram embaúba
no mato, raspam e fazem as linhas esfregando na perna para
enrolar. As cascas da madeira também são usadas para fazer
máscara. E é isso, todas as máscaras representam os bichos.

.
Nós temos canto, e todas essas máscaras representam caças
que têm canto
72 73
Os diálogos
Por que o álcool em gel tem bolhas que não se mexem?

da ciência
pesquisadora Renata Marquez, o jornalista Bernardo
Como uma lagartixa consegue andar pelas paredes?
Seria a Terra mesmo redonda? Poderiam as crianças

linguagem científica da vida cotidiana, em resposta


a um mundo onde tudo aquilo que era considerado
fazer ciência? Em uma conversa conduzida pela

Esteves fala da importância de aproximarmos a


Uma conversa entre
Renata Marquez e Bernardo Esteves

certeza científica começa a ser questionado.


Renata Bernardo, em seu podcast quinzenal A Terra é redonda, você cos-
Marquez tuma abordar o olhar da ciência sobre questões da atualidade,
como saúde, meio ambiente e tecnologia. E o mais incrível é
que, ao final de cada podcast, você acolhe a pergunta de uma
criança sobre coisas que parecem inexplicáveis: “como uma
lagartixa anda pelas paredes? E como ela muda sutilmente
de cor?”, “O que acontece quando duas nuvens esbarram no
céu?”. Para responder a essas questões, você sempre busca um
especialista, porque a ideia de que a ciência não é algo distante
da vida cotidiana é uma premissa para você, não é? Gostaria de
começar lhe pedindo para se apresentar e contar um pouco da
sua trajetória e da sua relação com a ciência.

Bernardo Eu sou belo-horizontino e estudei Comunicação Social na


Esteves UFMG. Ali, na biblioteca, havia vários livros de divulgação cien-
tífica nas estantes, mas nunca achei que fosse escrever sobre ci-
ência. Por acaso, apareceu um estágio para mim na sucursal da
revista Ciência Hoje, e fiquei um bom tempo da minha graduação
escrevendo reportagens sobre a ciência que era feita na UFMG,
na PUC e em centros de pesquisa mineiros. Depois que eu me
formei, a Ciência Hoje quis me contratar, e fui para o Rio de Ja-
neiro depois desse convite. Peguei o gosto por escrever sobre ci-
ência, me especializei nisso, e acabei indo fazer mestrado e dou-
torado em História da Ciência e Epistemologia, na UFRJ, como
uma forma de poder refletir melhor sobre esse tema sobre o
qual eu estava escrevendo. No mestrado, eu estudei o suple-
mento chamado Ciência para todos, que era vinculado ao diário
carioca A Manhã, que nasceu como um diário oficial do Estado

74
Novo de Vargas e tinha suplementos muito interessantes de com opiniões embasadas e solidamente fundamentadas, um
cultura e de ciência, entre os anos 1948 e 1953. espaço para reafirmar a voz da ciência, que anda fazendo tanta
Esse suplemento era assinado por jovens cientistas, pro- falta na esfera pública nestes tempos estranhos.
fessores e pesquisadores que estavam muito entusiasmados
com a ciência e tentavam repercutir para os leitores o gosto e o Renata Do canal A Terra é Redonda, você tem a chance de tornar visí-
fascínio por ela. Na minha vida profissional, eu passei por duas Marquez veis os rituais e os protocolos científicos de que você falava,
grandes etapas: primeiro, trabalhei por cerca de dez anos como os caminhos dos bastidores da ciência, que você acaba com-
editor do site da revista Ciência Hoje, e depois como repórter da partilhando ao conversar com uma série de agentes desses
revista piauí, onde tenho escrito reportagens de fôlego sobre rituais e protocolos. Eu percebo que, no seu podcast, há espaço
temas de ciência. E, mais recentemente, eu me tornei profes- para certa reflexão sobre as perspectivas de futuro também
sor de jornalismo científico na UFMG, uma volta às origens. da ciência. Eu falo disso porque, em minha trajetória como
pesquisadora, eu vejo uma relação grande entre arte e ciência:
Renata Não é à toa que você está aqui conosco nesta conversa, porque, ambos são enfoques pelos quais investigamos e entendemos
Marquez como você disse, esse trânsito entre a linguagem acadêmica e o mundo. E nesse esforço de entendimento do mundo temos,
a divulgação científica extra-acadêmica é algo que sempre te além desses dois elementos, os saberes tradicionais, que não
acompanhou. Pensando neste momento estranho que esta- operam na lógica moderna que justamente separa a arte da ci-
mos vivendo, eu queria chegar ao título do seu canal de podcast, ência. É um outro modo de ver, de sentir, de dizer e de explicar
“a Terra é redonda”. É um título que traz uma certa ironia, mas o mundo. No momento em que estamos, parece sintomático
antes de tudo é uma afirmação do óbvio, daquilo que parecia que, enquanto a ciência é atacada, a arte e os saberes tradicio-
que todo mundo já sabia. Como encarar uma certa reação ne- nais também estão sendo atacados. Como você vê essa vizi-
gativa das pessoas diante das evidências científicas que falam nhança e esse diálogo entre a ciência e esses outros saberes?
tanto da crise climática como da pandemia?
Bernardo As ciências e as artes são como irmãs gêmeas, são vertentes di-
Bernardo Sim, Renata, é quase constrangedor que nós nos vejamos nes- Esteves ferentes, mas complementares, dessa grande aventura intelec-
Esteves sa posição de lançar em 2020 um podcast chamado A Terra é re- tual humana no planeta. Na medida do possível, eu tento rom-
donda. É um título irônico, como você sublinhou, uma espécie per no meu trabalho com esse muro que muitos ainda mantêm
de resposta institucional da revista piauí a este momento tão erguido entre as ciências naturais e as humanidades, ou seja,
estranho que estamos vivendo, em que as verdades científicas entre as ciências e as artes. É relativamente comum uma visão
parecem acessórias para tantas pessoas. Muitos parecem esco- que enxerga a ciência como oposta ou como superior a outros
lher os fatos científicos conforme a sua conveniência, dizen- sistemas de conhecimento e outros tipos de saber. Essa visão
do: “Eu aceito isso, mas não aceito aquilo”. A ciência é sempre é profundamente equivocada. Não acho que devemos medir
dinâmica, as verdades são sempre transitórias, mas nos base- com as mesmas réguas diferentes sistemas de conhecimen-
amos em métodos e práticas que são comumente estabele- to – pelo contrário, deveríamos promover uma compreensão
cidos. Há, portanto, todo um ritual para você contestar uma da forma como a ciência opera e da forma como ela é um dos
verdade científica. Não podemos simplesmente ir para a tele- conceitos que explicam o mundo. Se entendermos isso, va-
visão ou para o YouTube dizer que a vacina não funciona, que mos compreender a sua força porque, é claro, vivemos em um
o aquecimento global não está acontecendo, que nada disso é mundo em que a ciência é uma força dominante. No fundo,
obra dos seres humanos – como estamos assistindo com essa mais do que dizer que a ciência é melhor ou mais poderosa do
pandemia: uma nova onda de contestação e negacionismo dos que outros tipos de saber, eu acho que nosso papel é entender
conhecimentos científicos solidamente estabelecidos. Por de onde a ciência tira essa força, de onde ela deriva essa capaci-
conta de tudo isso, nós entendemos que era importante criar dade que ela tem de explicar o mundo.
um espaço em que pudéssemos discutir a atualidade científica

76 77
Mas não devemos nunca perder de vista o fato de que a
ciência é um tipo de saber situado, particular, como também

que devemos medir com as mesmas réguas diferentes


são os saberes indígenas e os sistemas religiosos. Precisamos
resistir à tentação de enxergar a ciência como uma forma uni-

como a ciência opera e da forma como ela é um dos


Essa visão é profundamente equivocada. Não acho
versal de conhecimento que vai se impor sobre as outras. No
sistemas de conhecimento e outros tipos de saber.

deveríamos promover uma compreensão da forma


a ciência como oposta, ou como superior a outros
fundo, se a ciência explica tanta coisa, cabe a nós entender de
onde ela tira essa força de explicação do mundo (e é aí que en-
“É relativamente comum uma visão que enxerga

tra o papel do jornalismo científico). Certa vez, o imunologista


português Antônio Coutinho, falando com um público de jor-
nalistas de ciências, deixou o seguinte conselho: “Se eu fosse

sistemas de conhecimento – pelo contrário,


vocês, eu não me preocuparia tanto em transmitir o conteúdo
de uma notícia científica, porque cedo ou tarde esse conteú-
do vai parar nos livros de ciência. Eu daria uma atenção espe-
cial ao método, ou seja, a como os cientistas chegaram àquele
conhecimento”. Eu enxergo, então, meu papel não como o de
alguém que vai vender a ciência como impositivo por sua uni-
versalidade ou por seu poder esmagador sobre outras formas
conceitos que explicam o mundo.” de saber. Eu procuro mostrar e levar os leitores a entender de
onde a ciência tira a força do seu poder de explicar o mundo.

Renata Muito importante quando você fala que o método científi-


Marquez co precisa ser compartilhado com as pessoas, o que tem a ver
com a questão da linguagem. No momento atual, a ciência está
precisando gastar muita energia para reagir a essas armadilhas
políticas, como você já explicou e, nesse sentido, a questão da
linguagem fica mais do que nunca urgente. Pensando histo-
ricamente, a linguagem da ciência, assim como a da arte, tem
operado numa lógica muitas vezes elitista, arrogante e exclu-
dente, que se preocupa muito mais com o conteúdo (que é um
conteúdo muitas vezes difícil de traduzir para quem não está
habituado). Então, eu te pergunto: se há uma pedagogia da arte,
que é algo que eu percebo nas minhas pesquisas, você acha que
há também uma pedagogia da ciência em construção?

Bernardo Eu não sei se consigo responder de forma definitiva, mas o


Esteves que eu posso dizer é que certamente estamos diante de um
momento de crise de confiança na ciência, de um negacionis-
mo de tantos saberes e conhecimentos solidamente estabe-
lecidos há muito tempo. Diante disso, os cientistas são pe-
gos em um contrapé, e se veem obrigados a rediscutir o seu
lugar na sociedade e a encontrar novas formas de se conectar
com o público. E isso talvez repercuta em termos de lingua-

78 79
gem. Muitas vezes, a linguagem foi um refúgio onde alguns Em um dos nossos episódios, uma menina de cinco anos
cientistas podiam de alguma forma se diferenciar do resto. A diz que, durante a pandemia, ficava olhando para o frasco de
ciência é muito específica e não vamos fugir disso: à medida álcool em gel na casa dela, e queria saber por que o álcool tem
que os conhecimentos vão se especializando e ficando mais bolhas que não se mexem. Para responder a essa pergunta, nós
refinados, é inevitável que tenhamos palavras mais técnicas recorremos a um ultraespecialista, que conseguiu explicar em
e mais complicadas para descrever essa compreensão mais uma linguagem que eu tenho certeza que a menina entendeu,
refinada do mundo. Esse é um caminho inevitável, mas não sem recorrer ao conceito científico de “viscosidade”. E para fa-
necessariamente precisa continuar apartando os cientistas zer a ponte com a sua pergunta anterior sobre linguagem, eu
da sociedade. O fato de eles precisarem recorrer a termos e acho que ali pode estar a chave para que o cientista continue
linguagens mais específicas não significa que eles vão ficar dialogando entre seus pares com um vocabulário específico,
incomunicáveis com o resto da sociedade. Cabe aos cientis- mas também não perca de vista a capacidade conversar com
tas, portanto, pensar em uma forma de trazer esses debates o público sobre aqueles mesmos assuntos, em termos que se-
para a sociedade para que as pessoas entendam o que eles es- jam acessíveis. Porque, no momento em que o vínculo entre
tão perguntando, de que maneira eles estão tentando respon- os cientistas e a sociedade é cortado, a ciência fica exposta a
der a essas perguntas e que tipo de contribuição isso traz para todo o tipo de questionamento, a todo tipo de negacionismos
a sociedade. Temos, nessa crise de confiança na ciência, uma que vimos assistindo na esfera pública ultimamente.
oportunidade de passarmos a entendê-la, e mostrarmos para
a sociedade de onde vem a sua força. Renata Maravilhoso. Pensando, enfim, no entendimento da ciência
Marquez como esse lugar que comporta a subjetividade do pesquisador,
Renata Você falou muito do caminho sem volta das linguagens ul- e que obrigatoriamente não deixa de se vincular às questões
Marquez traespecializadas que, de fato, não vão ser abandonadas. Mas políticas e sociais do seu contexto, qual seria o papel do cien-
estamos falando também de como a ciência consegue criar in- tista hoje diante da recepção pública da ciência? Em outras
terfaces com outros campos e com a vida comum. No início da palavras, como podemos caracterizar o cientista do século 21?
nossa conversa, eu falei da inclusão preciosa das perguntas das
crianças em seu podcast, e acho que esse gesto abre a possibi- Bernardo Eu acho que o cientista do século 21 deve se reconectar com
lidade de construção de um diálogo possível entre a ciência e Esteves a sociedade, porque o que estamos vivendo agora é um sinto-
uma linguagem que é absolutamente espontânea. Você pode- ma dessa desconexão. Mais uma vez, acho fundamental que os
ria falar um pouco dessa ideia? pesquisadores saibam comunicar para o público de onde vem o
poder daquela explicação de mundo que eles geram. Isso passa
Bernardo Claro, Renata! Esse quadro se chama “A pergunta do seu filho” por entender a natureza das perguntas e a natureza do método
Esteves e aparece no fim de cada episódio. Primeiro, ele funciona como que foi aprimorado ao longo do tempo para responder a essas
uma espécie de alívio narrativo porque muitas vezes discuti- perguntas. A ciência envolve margens de erro, incertezas e ris-
mos temas densos, complicados e chatos. Independentemen- cos, dimensões que muitas vezes os cientistas preferem manter
te desse efeito narrativo, entretanto, esse quadro é uma busca à margem da sua comunicação com o público, por talvez enten-
nossa de dar visibilidade ao olhar das crianças, que muitas ve- derem que aquilo fragilizaria a visão do público em relação à
zes nos desarma. Nós aprendemos o tempo todo a domesticar ciência. Mas acho que é o contrário: quanto mais entendermos
o nosso olhar, e as crianças, sobretudo as mais novas, ainda não as limitações e as incertezas que estão associadas ao conheci-
internalizaram esse tipo de domesticação do olhar. Elas enxer- mento científico, mais vamos saber caracterizar e valorizar esse
gam coisas que muitas vezes nós não enxergamos. E acho que conhecimento – o que passa, sobretudo, por comunicação e por
a curiosidade das crianças talvez seja a mesma curiosidade que canais de diálogo. Temos que aproveitar essa pluralidade de ca-
morde os cientistas, uma curiosidade de potência infinita por-
que não está condicionada por fatores sociais. .
nais de que dispomos hoje para estimular esse tipo de comuni-
cação, que virá a reforçar a confiança perdida na ciência

80 81
DIFERENÇA
082 Aprendizagem e diferença;
aprendizagem faz diferença?
Ana Maria R. Gomes

090 O que é
ser normal?
Uma conversa entre
Tatiana Carvalho Costa e Helena Vieira

098 Comunidades
improváveis
Uma conversa entre
Tatiana Carvalho Costa e
Benjamin Seroussi

108 Hackear os
códigos coloniais
Uma conversa entre
Tatiana Carvalho Costa e Cida Moura

82
Falar do tema da diferença em suas possíveis relações com a
aprendizagem evoca infinitas possibilidades. Talvez, como

FAZ DIFERENÇA?
forma de provocar já de início alguns possíveis deslocamen-
APRENDIZAGEM

APRENDIZAGEM
tos, poderia trazer duas referências que muito me marcam e
me ajudam a pensar.
Uma delas é o biólogo, antropólogo e epistemólogo Gre-
gory Bateson, quando ele afirma que o ato primordial que pode
gerar conhecimento é “perceber uma diferença”, além da im-
portância de conhecermos “diferenças que fazem diferença”.1
E DIFERENÇA; À época em que comecei a me debruçar sobre os escri-
tos de Bateson, fui descobrindo que perceber as diferenças
tem uma importância vital. Marcou-me profundamente a
imagem do que ele chamou de uma anedota quase-científica,
com uma rã viva colocada em uma panela com água fria, que
poderia chegar a ser cozida se o progressivo aquecimento da
água fosse feito de tal forma a não permitir que o organismo da
rã percebesse a diferença de temperatura. Essa não percepção
da diferença faria com que a rã não reagisse para preservar a
própria vida – e se deixaria cozinhar na água quente sem pular!
Bateson provocava ainda em 1979: “A espécie humana estará
mudando seu próprio ambiente com a poluição crescendo
lentamente e apodrecendo sua mente com uma religião e uma
educação que se deterioram lentamente em tal panela?”
Retomando nos dias de hoje essas provocações, poderí-
amos dizer que o mundo sem a percepção das diferenças seria
Ana Maria R. Gomes um mundo aplainado, onde tudo se assemelharia em uma con-
tinuidade monótona e esterilizante, a ponto de não perceber-
mos que algo está colocando em risco nossas vidas.
Bateson – como biólogo, antropólogo e epistemólogo –
aborda os sistemas vivos e a própria noção de mente como sis-
temas que se integram automaticamente com seu ambiente.
E nos fala do processo de aprendizagem que se inicia quando
percebemos uma diferença e a ela reagimos, integrando-a em
nosso circuito. Esse ciclo seria incessante, pois um organismo
só deixa de aprender quando não está mais vivo.
De outro ponto de vista, como estudiosa da teoria da prá-
tica social, Jean Lave nos provoca a sair do lugar comum quando
retoma o conceito de comunidade de prática e afirma que: ao con-
trário de uma ideia simplista de um “grupo delimitado e homo-

1 BATESON, Gregory. Mente e Natureza. Rio de Janeiro: Livraria Francisco


Alves Editora S.A., 1986, p. 107.

84
gêneo de pessoas que fazem mais ou menos as mesmas coisas aprender algo, não devo me colocar junto com quem não sabe
e do mesmo modo”, uma comunidade é sempre composta por (ou sabe da mesma forma que eu). Estar em meio às diferen-
pessoas que participam de formas diferentes, assim como pro- ças é necessário para que todos possamos aprender. Vou então
duzem diferenças na própria prática na medida em que partici- buscar dialogar com essas ideias a partir da breve descrição et-
pam produzindo constantes mudanças nessa prática. “As possi- nográfica de duas cenas, entendidas aqui como “experimentos
bilidades de aprender residem exatamente nessas diferenças”.2 de experiência”4, em que essa tentativa se explicitou por uma
Lave ressalta que esse processo em constante mudança instigante diversidade de formas.
ocorre sempre de forma conflituosa, determinado pelo con- A primeira cena é do seminário Comendo como Gente,5 que
texto histórico, dentro do qual a prática pode inclusive ser or- ocorreu em 2015 com a presença pouco habitual de interlo-
ganizada de forma a impedir intencionalmente que as pessoas cutores indígenas e pesquisadoras recebidas por eles em suas
aprendam (como acontece em contextos de produção indus- respectivas aldeias. O convite para as pesquisadoras foi de
trial); ou, ainda que de forma aparentemente não intencional, proferir o próprio discurso acadêmico para seus pares, mas em
a prática pode ser organizada como um verdadeiro obstáculo presença dos/das interlocutores indígenas com quem a pes-
para quem necessita ou deseja aprender (como em muitos ca- quisa foi construída. Ou seja, agir em presença deles e delas e,
sos de organização dos sistemas escolares). Tal estruturação assim, permitir uma interação de todos com as práticas dos/as
das práticas acaba por bloquear o acesso aos aspectos e infor- antropólogos/as juntos com seus/suas parceiros/as indígenas.
mações que podem gerar aprendizagem a partir das “diferen- Neste seminário, caracterizado como “um encontro de
ças que fazem diferença”, nas palavras de Bateson. antropologia e educação”, a relação entre antropólogas e seus
Aprender seria então algo em contínua interação com as parceiros de pesquisa de campo – geralmente uma situação
diferenças, e que se produz entre diferentes praticantes. Am- muito íntima e experienciada de forma protegida, quase isolada
bos os autores, a partir de históricos de pesquisa bastante dis- – foi revisitada e, de certo modo, exposta e tornada visível dian-
tintos, nos conduzem a pensar que não se trata de negar ou se te de outros casos. Nas apresentações, se tornava bastante claro
debater “contra” a diferença (como se ela fosse um problema), que eram os/as conhecedores/as indígenas que “haviam edu-
mas de necessariamente se situar, ou perceber o fluxo de ação cado” os/as antropólogos/as, como algumas pesquisadoras ex-
que se constitui pelo vínculo ou conexão – a partir das diferen- plicitaram. Cada apresentação ocorreu em duplas, na frente de
ças – que nos permite aprender. outras duplas de antropólogos-as/conhecedores-as indígenas
A ideia seria então de buscar ampliar esse horizonte das – em todas as doze apresentações, com doze diferentes povos
nossas práticas de conhecimento, de forma que se torne cada vez indígenas. O evento produziu um forte envolvimento e reação
mais possível falar de igualdade, mas assumindo, com Isabelle de todas as participantes: para cada um/a, parecia que se descor-
Stengers, o que ela exige como a não equivalência entre as práti- tinavam novas e diferentes possibilidades a partir de desloca-
cas, pois uma prática não é nunca equivalente a nenhuma outra.3 mentos e desestabilizações que o experimento provocou.
Do ponto de vista dos/das indígenas, a grande novidade do
Entre educadores indígenas em formação e praticantes das encontro foi que, para praticamente todos eles/elas, tratava-se
ciências: experimentos de experiência da primeira vez em que ocorreu a possibilidade de observar as

O que pode soar como uma distante discussão concei-


tual tem, no entanto, implicações muito imediatas: se quero 4 PIASERE, Leonardo. L’etnografo imperfetto. Esperienza e cognizione in
antropologia. Roma: Laterza, 2002.
5 O título do seminário é o mesmo do conhecido livro de Aparecida Vilaça
2 No original, “Possibilities for learning lies in those differences”. LAVE, (1992), convidada para abrir o evento. Esta atividade fez parte do módulo
Jean. Learning and everyday life. Access, participation and changing practice. realizado no campus da UFMG do curso de Formação Intercultural
Cambridge: Cambridge University Press, 2019, p. 140. para Educadores Indígenas (Fiei) da Fac. Educação da UFMG. VILAÇA,
3 STENGERS, Isabelle. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Aparecida. Comendo como gente: formas do canibalismo Wari. Rio de Janeiro, RJ:
Estudos Brasileiros, Brasil, n. 69, abr. 2018, p. 447. Editora da UFRJ, 1992.

86 87
relações entre as diferentes antropólogas e seus/suas interlo- interação pareciam tropeçar em “obstáculos invisíveis” a cada
cutores parceiros/as indígenas. O aspecto apontado como mais resposta apresentada por Kopenawa.
significativo do encontro foi a possibilidade de ter acesso a situa- A uma certa altura, ao retomar diretamente o tema, Davi
ções e interações semelhantes àquelas que vivenciavam em suas afirmou categoricamente: “Economia é comida! Në ropë, në ropë a!
aldeias, mas que – por estarem organizadas em série e tornadas A economia que está na floresta, que está na parte da terra.”7 Fez
visíveis – teriam permitido que entendessem melhor como as uma pausa; e passou a falar da economia dos napë, não indígenas:
práticas de conhecimento são produzidas entre universidades e
aldeias indígenas, em relações com as antropólogas/os e outras Economia é pedra preciosa, é petróleo, minério, a terra, carvão.
pesquisadoras. Assistir a esse conjunto de duplas de “pesquisa- (...) Então, economia é muita coisa que vocês, napë, gostam de
doras(es) / parceiras(os) indígenas” em ação, proferindo seus usar. E estão querendo usar mais ainda, tirar mais ainda. (...) Isso
discursos especializados e interagindo diante do público, pro- é muito perigoso para nós. É muito ruim para nós, Yanomami e
duziu outro tipo de (auto)percepção, gerou um conhecimento outros indígenas. Essa é a economia que o napë já acostumou
mais articulado e multifacetado quanto à natureza mesma des- faz tempo. Isso ele não vai largar nunca. (...) Isso se chama desen-
sas relações e dessas práticas de conhecimento. volvimento. Desenvolvimento para desenvolver a cidade: loja,
A segunda cena traz o encontro que Davi Kopenawa Ya- mercadoria, fazer mais prédio, criar boi, Belo Monte, água para
nomami realizou em 2018 com um grupo de pesquisadores na colocar dentro da garrafa para vender. (...) Acho que para mim já
Faculdade de Economia da UFMG para discutir os temas pró- chega: já tem cidade pronta, já está tudo iluminado, já está tudo
prios da Economia e campos correlatos, como o planejamento ok. Agora, por que o governo não pensa em fazer roçado, alimen-
e o urbanismo.6 A partir de esforços de leitura de seus textos e tação, para o povo comer? Não, mas já vai fazer mais estrada e
acompanhamento das discussões sobre questões ligadas aos quebrando a pedra para fazer uma estrada de trem. Napë fica
Yanomami, buscávamos nos aproximar de seus conceitos, as- querendo mais. Eu não entendo isso. Esse não é meu costume, não.
sim como conhecer mais sobre as práticas dos xamãs, dos quais O meu costume, onde eu conheço, onde eu vivo, onde eu como, des-
o próprio Kopenawa se faz porta-voz. Tais ações se colocavam canso e sonho. Esse é meu lugar (Face/UFMG, set. 2018).8
também como uma proposta de formação das jovens gerações
– os jovens da universidade e os jovens yanomami – sobre te- As palavras de Davi Kopenawa ainda ressoam, sem ter
mas cruciais da contemporaneidade, temas que nos envolvem encontrado uma adequada interlocução – embora tenham pro-
a todos, indígenas e não indígenas, como a crise climática e a ex- vocado profundamente a audiência que seguia o encontro, a
pansão das cidades. ponto de alguém exclamar ao final: “É o Karl Marx da floresta!”.
Se, na cena anterior, houve uma certa inversão de posi-
ções, desta vez poderíamos dizer que a situação era quase que Desacelerar: interstícios e um estar-juntos experimental
canônica: um tema pertinente para uma faculdade onde se es-
tuda economia; e uma autoridade do conhecimento a quem se Nós sabemos, existem saberes, mas o idiota pede que não nos precipi-
solicitava estender suas análises ao campo da economia, central temos, que não nos sintamos autorizados a nos pensar detentores do
na organização das sociedades daqueles que Kopenawa chama significado daquilo que sabemos.
de “o povo da mercadoria”. Isabelle Stengers9
O encontro transcorreu de forma densa, marcado por
idas e vindas às perguntas enunciadas, quase todas centradas
7 Ver texto sobre në ropë no catálogo da exposição “Mundos
em aspectos e conceitos no campo da Economia. As formas de Indígenas”, disponível no site do Espaço do Conhecimento/UFMG,
assim como a visitação virtual da exposição: <https://www.ufmg.br/
espacodoconhecimento/mundosindigenas/>.
6 O encontro aconteceu em continuidade às atividades promovidas em 2013
e 2015 no IEAT/UFMG com Davi Kopenawa: e como proposta do grupo 8 Parte do texto transcrito do encontro, em processo de edição para publicação.
de pesquisa transdisciplinar “Das economias alternativas às alternativas à 9 STENGERS, Isabelle. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de
economia”, coordenado por Roberto Monte-Mór e Ana Maria R. Gomes. Estudos Brasileiros, Brasil, n. 69, abr. 2018, p. 444.

88 89
Passar por experimentos, provocar esse “estar-juntos ex-
perimental”10 com pessoas e povos que nos convocam a perce-
ber diferenças em relação às nossas práticas de conhecimento:
esse talvez seja o princípio que faz com que a participação dos
povos indígenas e de outros conhecedores tradicionais nas
atividades da universidade e das escolas de educação básica
seja de fundamental importância. O confronto entre diferen-
tes sistemas de pensamento – buscando apreendê-los nos ter-
mos de seus próprios conceitos e de suas práticas – é que seria
capaz de reposicionar todos esses sistemas. Diferenças que
Como você reage

alguém diferente
quando encontra
podem fazer diferença!
Seguindo o que já nos alertaram pesquisadoras como
Linda Tuhiwai Smith11 e Silvia Rivera Cusicanqui12 quanto à
necessidade de descolonizar práticas e metodologias, será im-
portante buscar apreender quais relações esses povos estão

de você?
tentando construir com as universidades e com nossas esco-
las, relações essas marcadas pela singularidade dos modos de
existência de cada povo e das experiências das comunidades
envolvidas. Se nós, de nossa parte, os interpelamos com nos-
sas propostas de pesquisa (e variações), qual seria a interpela-
ção própria que nos (contra)dirigem, e para as quais ainda não
temos sensibilidade de escuta e acolhimento?
Nesse sentido, busquei trazer algumas reflexões que nos
provocam a ter uma escuta ativa e mais sensível para as muitas
diferenças que atravessam nossos ambientes de vida e de tra-
balho, diferenças essas que fomos insistentemente treinados
a não perceber ou a operar “apesar” delas, e mesmo “a prescin-
dir” delas. Trata-se, ao contrário, de buscar aferir os possíveis
nexos que fazem com que práticas diferentes, assim como pra-
ticantes diferentes, se articulem para enfrentar temas e situa-
ções que dizem respeito e interessam a toda/os nós .

10 STENGERS, Isabelle. Beyond Conversation: The Risk of Peace. In:


KELLER, Catherine; DANIELL, Anne (Ed.). Process and Difference: Between
Cosmological and Poststructuralist Postmodernisms. Albany: SUNY Press,
2002. pp. 235-255.
11 SMITH, Linda Tuhiwai. Descolonizando metodologias: pesquisa e povos
indígenas. Curitiba: Ed. UFPR, 2018 239 pp.
12 RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre
prácticas y discursos descolonizadores - 1a ed. - Buenos Aires : Tinta Limón, 2010.

90 91
O que é ser

sobre as minorias, que lutam contra a exclusão por se


desviarem daquilo que é considerado como “normal”.
normal?
Se a diferença é sempre o oposto da normalidade, o

parcela da sociedade – são mecanismos de controle


que então é ser normal? Nesta conversa conduzida

social – definidos historicamente por uma pequena


escritora e ativista transfeminista Helena Vieira
propõe que os padrões de gênero, raça e classe Uma conversa entre
pela pesquisadora Tatiana Carvalho Costa, a

Tatiana Carvalho Costa e Helena Vieira

Tatiana Helena, eu gostaria de começar ouvindo-a falar sobre as for-


Carvalho mas de estar junto a partir de uma ideia de diferença. Eu parto
Costa aqui de uma noção de diferença que se contrapõe à normalida-
de, e que talvez se expresse performativamente diante dessa
norma. Quando eu falo sobre norma, eu me refiro a essa ideia
construída pelo Ocidente na modernidade de um sujeito uni-
versal, com marcadores específicos de raça, classe, gênero e
orientação sexual, ou seja, a ideia de que o normal se reduz ao
que é branco, masculino, cisgênero e hétero – e todo o resto é
tomado como “o outro” ou “o diferente” em relação a essa cen-
tralidade. Nós, por exemplo, somos outras: eu sou uma mulher
negra e lésbica, e você é uma travesti branca. A partir, então,
dessa noção de diferença, eu queria ouvi-la falar sobre a sua ex-
periência e sobre o que te constitui enquanto “outra”.

Helena Primeiramente, acho que discutir as possibilidades de coexis-


Vieira tência e de coabitação do mundo é um dos maiores desafios do
presente, porque temos sido constantemente incitados a uma
existência de dissolução dos laços comunitários e da ajuda co-
letiva em nome dos laços individuais e da autoajuda. Diante
dessa hiper individualização, produzir formas de estar junto é
algo muito importante.
Acho que a questão da diferença é importante para nós,
mas precisamos recolocá-la, porque a diferença é sempre pauta-
da a partir do ponto de vista da norma. Se você perceber, as ex-
periências dominantes, hegemônicas e normativas são sempre
colocadas como neutras – e o diferente são sempre os outros. E
esses outros são aqueles que levam em seu corpo ou em sua tra-
jetória os marcadores sociais da diferença, que são justamente

92
as marcas que estão acopladas em nosso corpo e nossa trajetó- regulação de quem pode viver e quem pode morrer – o que te-
ria, e que revelam que somos nós os diferentes ou destoantes. mos visto com cada vez mais frequência em relação aos corpos
O que eu acho interessante, porém, na ideia de diferença, negros, por exemplo. Pensando em uma perspectiva inversa a
não é marcar ainda mais os corpos subalternos, mas é a potência esse controle, me parece importante reconhecer a vida como
que a diferença tem em acusar a insuficiência da norma como potência. Como você pensa essa potência política da vida?
categoria universal. O filósofo Georges Canguilhem tem um li-
vro fantástico que se chama O normal e o patológico, onde ele diz Helena Por um lado, uma experiência dissidente, fora da norma, pode
que a diferença é uma questão aritmética, não é uma questão de Vieira ser muito bem útil à manutenção do poder quando ela insiste
existência. Imagine que estamos em uma sala com dez pessoas, nas formas de adequação, nos pedidos de reconhecimento, nas
das quais oito têm dois braços e duas têm um braço. Se a maio- tentativas de pertencer aos espaços da norma. Isso acontece
ria delas têm dois braços, vamos dizer que o normal é ter dois quando um corpo não quer destruir os mecanismos que pro-
braços, ou seja, o que antes era uma prevalência se converte em duzem o sentido de normal e anormal, mas quer ser normal. O
norma, e passa a funcionar produzindo formas de exotizar e ex- que significa que ele pode colaborar com a manutenção dessa
cluir as experiências minoritárias no mundo. Essa recolocação norma e com o reforço daquilo que é considerado anormal. Por
do debate sobre o que é norma e o que é diferença leva, portan- outro lado, quando esses corpos e experiências dissidentes se
to, a entender que tudo, absolutamente tudo, é diferença. Inclu- dão conta dos mecanismos de controle aos quais estão subme-
sive identidade é diferença, pensando sobretudo no processo tidos, eles trazem certo perigo para a norma. O perigo de um
de vir a ser mulher (não só para mim, mas para todas nós, cis ou corpo travesti, por exemplo, é justamente porque a existência
trans). Não existe um “eu me sinto mulher”, como se houvesse desse corpo move os desejos dos homens, e move os sentidos
um pertencimento coletivo a essa categoria feminina, o que do que é ser um homem ou uma mulher, o que desestabiliza as
existe é um “não somos homens”, uma oposição pela diferença. coerências construídas pela norma.
Nós precisamos perceber que não é a identidade que Um exemplo dessa desestabilização é a revelação do
produz agrupamento, mas o reconhecimento das diferenças. medo existencial que as pessoas têm de não conseguir mais en-
Nesses tempos em que vivemos, talvez devamos optar mais tender o que é um homem ou uma mulher, elas se sentem mui-
por formas de afinidade em vez de formas de identidade, o que tas vezes constrangidas de não conseguirem estabelecer um
significaria construir composições com outros sujeitos, com sentido para aquele corpo – justamente porque, em nossa socie-
outros corpos, que estejam mediadas por outros fatores orga- dade, temos um fetiche classificacionista e taxonômico e não
nizadores que não a identidade – poderíamos estar ligados, por conseguimos aceitar o disforme. Uma vez eu estava indo para a
exemplo, pela precariedade. O que conecta a mim, uma traves- universidade, no interior do Ceará, quando um homem me pu-
ti migrante que mora no Nordeste, a você, uma lésbica negra, xou pelo braço e disse: “Você me deixou aperreado porque não
a um trabalhador precarizado, ao motorista de aplicativo? É sei se você é homem ou mulher”. Ou seja, ele se deu o trabalho
justamente a precariedade existencial que nos conecta. Então, de me puxar pelo braço, me parando no meio do meu caminho,
talvez a precariedade seja algo que possa construir laços entre porque o fato de ele não saber se eu era homem ou mulher lhe
sujeitos que parecem tão radicalmente diferentes. causou um incômodo. Esse é um exemplo de como esses mo-
dos de vida diferentes, dissidentes, afirmam a incoerência dos
Tatiana A organização das formas de controle na sociedade passa mui- regimes de verdade. E quando aquilo que é considerado verda-
Carvalho to pela vigilância e pela regulação dos corpos, já que nessa pers- de está em risco, a própria realidade também se coloca em risco.
Costa pectiva, os corpos que não se encaixam na norma precisam ser Isso não acontece somente com os corpos trans e tra-
regulados ou, no limite, ser exterminados. O filósofo francês vestis, mas vale também para o corpo das mulheres em geral,
Michel Foucault vai chamar essas formas de regulação da vida principalmente das mulheres negras. O cabelo crespo sempre
pelos poderes instituídos de “biopolítica”, enquanto o filósofo foi combatido, por exemplo, porque esse corpo sempre foi tido
camaronês Achille Mbembe vai definir como “necropolítica” a como um corpo para ser subalternizado. Quando uma mulher

94 95
intelectual se afirma com seu cabelo crespo, o que ela escuta
são coisas do tipo: “Você não tem vergonha? Você não quer
alisar?” Esse orgulho das mulheres negras com relação ao seu
corpo não tem espaço na experiência normativa, porque ele

transformar a diferença em fragmentação. E como


bagunça as coerências que se organizam ali. É por isso que eu

fazer isso? Talvez seja importante pensarmos em


acho que a possibilidade de imaginar o futuro das formas de
“Não podemos abrir mão dessas especificidades

convivência precisa ser inspirada e observada desde as formas


em nome de uma igualdade inexistente, porque

de convivência estabelecidas por populações subalternas.


Eu gosto sempre de pegar um exemplo das travestis du-
precisamos justamente deslocar a lógica da

rante o período da ditadura militar brasileira. Durante a ditadu-


ra, elas inventaram o pajubá, que é a famosa língua das traves-
igualdade para a lógica da diferença, sem

tis. Ocó significa homem, picumã significa cabelo, aqué significa


dinheiro – e todas essas palavras precisam ser ditas com a en-
como construir formas de coabitação.” tonação certa. E o pajubá nasceu porque as travestis fugiam da
polícia da ditadura e se escondiam nos terreiros de umbanda
e candomblé, onde seu dialeto se misturava ao dialeto iorubá,
formando o pajubá. Ele nasce de um tipo de convivência entre
corpos subalternos que inventam uma nova linguagem a partir
da qual as travestis conversavam sem que a polícia entendesse.
É conversando em pajubá que elas viriam a montar estratégias
de fuga da polícia, a partir de uma resistência política que se in-
venta no encontro entre povos guetificados.

Tatiana Helena, a palavra “crise” tem tomado conta das discussões so-
Carvalho bre este momento de pandemia, de isolamento social e tam-
Costa bém de tensões na política institucional não só no Brasil, mas
em outros países do mundo. Além da palavra “crise”, também
penso na expressão “fim do mundo” que você comenta em
uma de suas falas, enfatizando a ideia de uma postura queer
contra o futuro. Parece-me que a ideia de futuro com a qual
você trabalha vai muito ao encontro da ideia de progresso da
modernidade, esse progresso que está escrito na bandeira do
Brasil, restrito a uma parcela da população e que coloca a evo-
lução histórica a serviço de uma destruição, de uma violência e
de um crescimento das desigualdades. Gostaria de ouvi-la, en-
tão, sobre essa ideia de fim, tanto de fim do mundo como fim
do futuro, e essa saída pela queeridade.

Helena Quando eu falo de um antifuturismo, eu estou falando de um


Vieira antifuturismo queer, que é discutido por um autor fantástico
chamado Lee Edelman, no seu livro No future que, em portu-
guês, significa “sem futuro”. Ele vai dizer que o futuro é uma

96 97
coisa de criança porque vem de uma obsessão moderna que Tatiana Partindo dessa ideia de adiantar o fim do mundo a partir da
instaura um sentido temporal linear, organizado em passa- Carvalho construção de laços que fujam dos sentidos da modernidade,
do, presente e futuro. Isso não funciona para as cosmovisões Costa como poderíamos pensar e provocar novas conexões entre di-
orientais, ameríndias ou aborígines. Se você pergunta a um ferentes formas de vida?
budista sobre a origem e o final da vida, ele dirá: gohyaku jinten-
go – o tempo é sem começo e sem fim. O que a modernidade Helena Essa é a questão do século! Eu perguntei a mesma coisa para a
faz é, então, instaurar um sentido temporal em que o futuro é Vieira filósofa Judith Butler em uma de nossas conversas e ela disse
sempre aquilo que está por vir e precisa sempre ser pensado que isso é um paradoxo. Porque como você vai construir for-
para garantir a continuidade da nossa espécie. Portanto, ele é mas de aliança e de estar junto a partir da identidade de cada
sempre um futuro heterossexual e reprodutivo, algo a ser per- um e cada uma? Nós não podemos abrir mão do fato de que
seguido durante toda a vida: eu trabalho para a aposentadoria você é uma mulher negra, eu sou uma mulher trans branca e
que virá, eu crio meus filhos para a velhice que virá, eu estudo um homem branco é um homem branco. Não podemos abrir
para a boa remuneração que virá. Existe sempre esse “que virá” mão dessas especificidades em nome de uma igualdade ine-
que, aliás, nunca chega porque o gozo imaginado para o futuro xistente, porque precisamos justamente deslocar a lógica da
nunca é experimentado de fato. igualdade para a lógica da diferença, sem transformar a diferen-
Sobre a questão queer, esse termo é originalmente uma ça em fragmentação. E como fazer isso? Talvez seja importante
ofensa em inglês (que significa baitola, viadinho, sapatão), e pensarmos em como construir formas de coabitação.
que os movimentos queer se apropriam e ressignificam como Acho que a primeira coisa é: produzir uma destruição dos
orgulho, como uma recusa às formas de idealização deste ideais românticos das formas das práticas de reconhecimento.
mundo heterocentrado. A ideia de família é um exemplo des- A modernidade estabelec que os laços que nós construímos en-
sa idealização – a família nuclear é uma família que, inclusive, tre as pessoas precisam ser românticos ou de amizade, mas eles
não existe, é mais um “que virá” que nunca acontece. Porque a envolvem sempre um sentimento próximo do amor, do prazer
família brasileira é quase sempre a mãe solteira e seus filhos, de estar junto. Precisamos ir para um modelo que seja parecido
que até hoje é considerada como um fracasso diante desse ide- com a “vila do Chaves”, em que possamos, inclusive, odiar estar
al construído. As experiências queer são fundamentalmente junto, que possamos brigar e que os conflitos sejam encarados
fracassadas em relação à norma, porque o filho gay é o fracas- não como um problema, mas como o tempero da coabitação,
so em relação à expectativa de netos por parte dos pais, a filha no sentido de que os conflitos podem ser resolvidos entre nós,
travesti é um fracasso de gênero, e a filha militante é outro fra- dentro dos laços específicos que nós constituímos.
casso no sentido político. A vida, nesse sentido, é feita de um É preciso também conhecer outros tipos de parentali-
conjunto de fracassos. dade. Quando a feminista nigeriana Oyèrónke Oyěwùmí fala,
O que eu tenho pensado a partir disso é que nós temos que por exemplo, sobre as formas de organização das famílias io-
deixar o futuro de lado e começarmos a pensar na possibilidade rubá, percebemos que elas não se organizam por gênero, mas
de existência neste pântano do presente. O pensador indígena por critérios de antiguidade e memória. As posições familiares
Ailton Krenak sempre fala que nós precisamos adiar o fim do são definidas pela idade e não pela relação sanguínea, nem pe-
mundo, mas nós precisamos, de fato, é adiantá-lo – com urgên- las relações de gênero. A mulher mais velha é necessariamente
cia! Porque este mundo é o mundo da modernidade e ele infe- superior ao homem, que não será o chefe da família por ser ho-
lizmente não chegará ao fim com essa pandemia. Existe uma ur- mem. Talvez precisemos olhar para essas experiências que, de
gência em deslocar esse conjunto de sentidos da modernidade, alguma forma, constituem o nosso passado, a nossa memória
como essa ideia de família, por exemplo. É por isso que eu tenho pré-moderna ou extramoderna, para permitir que encontros
pregado essa ética de uma parentalidade maior, que não esteja com essas experiências nos deformem. Neste momento, o que
mediada pela consanguinidade, mas que possa fazer com que eu
e você nos reconheçamos em algum momento como parentes. .
nós temos que fazer é deformar os sentidos das nossas certe-
zas, para que alguma outra forma emerja dali

98 99
Comunidades
Retiro, em São Paulo, funciona hoje como um centro

aprendemos como a ideia de “comum” tem sido uma


improváveis

processos de transformação social. Nesta conversa

junto apesar das diferenças, aceitando os conflitos


judeus, a Casa do Povo, localizada no bairro Bom

cultural que abriga uma diversidade enorme de

boa ferramenta para entendermos o que é estar


entre a pesquisadora Tatiana Carvalho Costa e
grupos, movimentos e coletivos engajados nos
Criada em 1946 como um memorial aos povos

o gestor da Casa do Povo Benjamin Seroussi,


Uma conversa entre

como potencial para inventar comunidades.


Tatiana Carvalho Costa e Benjamin Seroussi

Tatiana Benjamin, você é o gestor da Casa do Povo, uma instituição


Carvalho política e cultural de origem judaica no bairro Bom Retiro, em
Costa São Paulo, que reúne uma grande diversidade de comunida-
des. A Casa é um projeto que nasceu logo depois da Segunda
Guerra Mundial e, como vocês mesmos definem, é um monu-
mento vivo. No vídeo de apresentação da Casa, uma das con-
selheiras, a Hugueta Sendacz, conta de um congresso em Pa-
ris nos anos 1930 em que foram definidas algumas premissas
para a sobrevivência da cultura judaica: onde houvesse uma
comunidade judaica, deveria se formar um coral, uma esco-
la, um jornal e um grupo de teatro, para que a cultura não se
perdesse. Não por coincidência, essas áreas necessárias para
a preservação da cultura de um povo sempre foram atacadas
pela potência libertária que elas têm. A Casa do Povo se apre-
senta como esse lugar de resistência, não só restrita ao povo
e à cultura judaica, mas também se abrindo ao que me parece
ser um sentido mais amplo de comunidade. Eu gostaria, en-
tão, de ouvi-lo sobre como essas premissas do início da Casa
se manifestam hoje, e como elas podem nos ajudar a compre-
ender formas de resistir e de estar junto em um país onde as
diferenças têm sido tão problematizadas.

Benjamin A Casa é, de fato, um elemento dentro dessa comunidade mui-


Seroussi to diversa, que entende que ser judeu, ao longo do século 20,
sempre foi ser o estrangeiro, o último a chegar, o primeiro a
ter que sair, o imigrante, o outro. Mas se o judeu foi o outro do
século 20, um centro judaico tem que ser, hoje, aberto à alteri-
dade radical: isso é o que funda o meu entendimento da Casa
do Povo. Ela não sai do trilho quando se abre a outras comu-

100
nidades, ao contrário, ela acaba criando uma comunidade em
devir. Isso vem historicamente do entendimento de que ser
judeu ou judia não é ter uma identidade fechada, mas é ser hí-
brido. Por definição, ninguém pode ser apenas judeu (alguém
é sempre judeu francês, judeu brasileiro…), e é por isso que esse
centro deve também ser aberto à heterogeneidade.
E como a Casa faz comunidade no bairro em que está
instalada (o Bom Retiro), que é habitado por tantas outras co-
munidades? Nós não entendemos a cultura e o bairro como
uma espécie de bolo a ser dividido entre coreanos, bolivianos,
etc., essencializando cada identidade. Entendemos que as coi-
sas são fluidas, e esses encontros entre gerações diferentes,
pessoas diferentes, corpos diferentes e nacionalidades dife-
rentes é o que nos interessa na Casa do Povo. Certa vez, um
artista boliviano disse que a Casa estava em um estado de “bai-
xa energia”, porque o prédio estava descuidado. Segundo ele,
nós não cuidávamos bem dos mortos para os quais aquele edi-
fício havia sido erguido – os judeus assassinados nos campos
de concentração nazista durante a Segunda Guerra Mundial.
Para reverter esse quadro, ele propôs realizar uma chaya, ceri-
mônia boliviana feita para renovar os acordos com a Pacha-
mama, a Mãe Terra, que também tinha a ver com a renovação
dos laços com os antepassados. E foi muito lindo ver a vinda
de pessoas da comunidade boliviana para reafirmar os acordos
com os mortos que fundaram a Casa do Povo, criando um sen-
timento de comunidade não a partir de recortes que essencia-
lizam e dividem as pessoas em categorias, mas a partir de uma
continuidade e de interesses comuns entre diferentes.
Eu costumo citar um poema de um poeta francês cha-
mado René Char, que diz que somos herdeiros sem testamen-
to. Muitas vezes eu sinto isso na Casa do Povo: nós herdamos
referências culturais, mas raramente nos é dado o modo de
usar o testamento. Cabe a nós, então, reinventarmos o que nos
permite criar comunidades sem cair nessa espécie de fecha-
mento comunitário. Comunidade, para nós, é uma coisa aber-
ta, que existe a partir da memória e do presente. Para concluir,
eu traria aqui a noção de comum com a qual gostamos de tra-
balhar, que é uma forma de sair dessa dicotomia entre privado
e público. A Casa é um espaço privado, uma associação, mas
tem uma missão pública – e é por isso que usamos essa ideia
do comum. Vários lugares têm usado essa noção recentemen-
te, porque tem sido uma boa ferramenta para entender o que é

102 103
fazer comunidade, o que é estar junto no espaço comum, sem das com as quais nós trabalhamos. Além da programação que
que isso seja uma espécie de fechamento. nossa equipe de dez pessoas organiza, acolhemos cerca de 20
grupos ligados à arte, design, moda, ativismo urbano e grupos
Tatiana Eu acho muito bonita essa noção de comum e de uma comu- do bairro que também organizam atividades. Tem uma acade-
Carvalho nidade em devir, o que me faz pensar na ideia de relação. E eu mia de boxe autônoma e antifacista, uma associação pirata de
Costa faço essa conexão a partir do pensamento do poeta antilhano rádio boliviana, um coral de mulheres que cantam em iídiche,
Édouard Glissant, que aponta a força poética da relação e o um grupo de jovens coreanas feministas que entraram em
consequente papel do imaginário. E eu fico pensando no con- tensão com a própria família porque quebraram alguns tabus...
texto da Casa do Povo, que fica nesse bairro do Bom Retiro, Enfim, vários grupos que têm, inclusive, a chave da Casa, e
que tem uma história riquíssima de convivência de uma po- usam os espaços dela a partir de acordos relativamente (e pro-
pulação multicultural em uma cidade como São Paulo. Como, positalmente) frouxos. Isso acaba gerando o que nós costuma-
então, as práticas artísticas da Casa podem nos ensinar sobre mos chamar de “convivências improváveis”, que é, por exem-
essa ideia de relação, sobretudo nesse território múltiplo e plo, um grupo de mulheres trans em situação de rua descerem
complexo que é o Bom Retiro? para fazer um café enquanto um grupo de coral iídiche está ali
treinando. Esses encontros, obviamente, geram tensões, mas
Benjamin O Bom Retiro é fascinante, porque é um bairro cheio de con- também fazem nascer outros agenciamentos possíveis que in-
Seroussi tradições, de tensões e diferenças. Ele sofre das características ventam devires. Não gostamos de falar em futuro, porque essa
dos bairros centrais, que têm o Índice de Desenvolvimento ideia está muito ligada ao passado, a uma progressão. O termo
Humano relativamente baixo, com uma situação próxima das “devir” é interessante porque aponta que as coisas que estão
favelas e das periferias de São Paulo. Isso porque há uma forte aqui, no presente, têm um poder de imaginação fantástica e de
concentração de populações em situação de vulnerabilidade. articulações possíveis.
O Bom Retiro tem muitas populações em situação de rua por
várias razões, e tem também muitos usuários de crack, pela Tatiana Para finalizar, Benjamin, eu gostaria que você falasse sobre
Cracolândia que está próxima da Casa do Povo. Há também Carvalho essa ideia de vizinhança, essa espacialidade física e subjetiva,
pessoas em situação de prostituição, muitos imigrantes irregu- Costa no contexto da pandemia. Vocês têm atividades online agora,
lares bolivianos, paraguaios, e até trabalho escravo em alguns mas pela própria lógica da Casa e do território em que vocês
ateliês da indústria têxtil que funcionam clandestinamente no estão, vocês têm atuado também ao vivo, mesmo durante a
bairro. Tem a Favela do Moinho, tem a Comunidade do Gato, pandemia. Como vocês têm articulado esse trabalho, com as
tem ocupações muito bem estruturadas como a Mauá, a Pres- necessárias conexões que estruturam a Casa, durante esses
tes Maia, a Ipiranga; sem falar nos cortiços. Entretanto, logo ao tempos pandêmicos? O que vocês conseguem apontar de
lado, há também apartamentos de 200m², condomínios de três possibilidade para uma política da cultura, de uma maneira
mil reais, ocupados por uma classe média alta. No Bom Retiro, mais ampla?
você ouve pelo menos quatro línguas diferentes ao andar pela
calçada. Você vai ouvir pessoas do Paraguai que falam guarani, Benjamin Como você colocou, propusemos várias atividades online por-
você vai ouvir castelhano da população boliviana, você vai ou- Seroussi que é importante seguir trabalhando, oferecendo conteúdo e
vir iídiche, português… É um bairro fascinante, que apresenta possibilidades de trabalho aos artistas. Entretanto, isso rapi-
muitas questões que atravessam a cidade como um todo. damente nos pareceu um pouco descabido, quase indecen-
E a Casa do Povo está no meio disso tudo, lidando com te, como se aceitássemos que todas as pessoas têm tempo e
essas diferenças e entendendo que elas são na verdade um po- acesso à internet – o que é uma grande ilusão. Por esse motivo,
tencial incrível para o trabalho, apesar de muitas vezes serem achamos que tínhamos que abrir as portas, mas de modo a não
objeto de tensão. Essa relação e essa força poética que o Glis- expor a equipe. Nós abrimos, então, várias frentes e arrecada-
sant traz dialoga com essa ideia dessas comunidades indevi- mos recursos que foram distribuídos de maneira horizontal

104 105
com os grupos do bairro. Reunimos quase 100 voluntários e
voluntárias que produziram sabão com óleo doado pelos res-
taurantes coreanos, criamos uma cooperativa de costureiras
que produziram máscaras, e começamos um programa de
distribuição de cestas básicas. Como a Mayara Vivian, que co-
ordena o trabalho voluntário da Casa do Povo, costuma dizer,
nós não trabalhamos com a noção de assistencialismo, que é
uma espécie de muleta do capitalismo. Estamos trabalhando
com a ideia de uma contaminação comunitária, não no senti-
do coronavírus, mas no sentido de auto-organização. No iní-
cio eram voluntários oferecendo comida para as pessoas do
bairro, e hoje as próprias pessoas dali estão trabalhando para
oferecer comida a seus companheiros.
Essas relações são muito potentes e funcionam como zo-
nas de contato ou zonas de conflito – um conflito no sentido
positivo, que gera movimento. Estamos, então, neste momen-
to de reinvenção necessária, em uma situação que sempre foi
muito precária e frágil. A cultura no Brasil sempre foi frágil, mas
apresenta uma capacidade de invenção que pode articular no-
vos modos de fazer as coisas para além da própria cultura. No
fundo, tudo é cultura: a forma como acordamos, como come-
mos, como nos sentamos à mesa, como usamos a roupa, como

.
trabalhamos e como educamos nossos filhos e filhas. A cultura
tem muito a dizer, e eu espero que ela possa ser ouvida

106 107
Hackear os
diferentes, principalmente aos sujeitos negros. Nesta
códigos

outros imaginários mais preparados para lidar com


conversa, a pesquisadora Tatiana Carvalho Costa

refletir sobre como a presença de pessoas negras


coloniais

em espaços como a universidade tem a potência


se junta à professora e ativista Cida Moura para

de hackear os códigos coloniais e apontar para


Historicamente, muitos espaços físicos – mas
também os virtuais, aqueles de circulação de
informações – sempre foram inacessíveis aos

Uma conversa entre


Tatiana Carvalho Costa e Cida Moura

Tatiana Cida, você é professora na UFMG atuando nos programas de


Carvalho pós-graduação em Ciência da Informação e em Comunicação.
Costa É também ativista do movimento negro, e tem uma trajetória
linda que concilia a atuação nos movimentos sociais com o
pensamento acadêmico rigoroso, e ao mesmo tempo criativo.
Para começar, minha pergunta tem a ver com a circulação de in-
formações sobre a pandemia e seus desdobramentos. O vírus
veio da China, chegou ao Brasil por pessoas que viajaram pela
Europa, e a primeira pessoa a morrer aqui foi uma mulher ne-
gra, empregada doméstica. Desde o início, há muito preconcei-
to e uma profusão de informações – algumas delas falsas. O que
esse fluxo de informações nos diz sobre a ideia de diferença?

Cida Quando vivemos uma experiência como essa, pandêmica, o


Moura que ocorre é a ausência de um fluxo compartilhado de infor-
mações. Cada segmento tem um acesso estruturado de um de-
as diferenças.

terminado modo, para que as pessoas consigam acessar e bus-


car essas informações. Embora nós tenhamos uma sociedade
organizada em rede, com acesso à internet há muitos anos, o
que percebemos é que a construção de informações para os
públicos passa necessariamente por hierarquias de poder e de
saber. O que aconteceu em relação à pandemia foi uma série
de reações nossas em função da dinâmica do processo de cons-
trução de conhecimento e de informação acerca da Covid-19.
E, ao longo do período pandêmico, temos visto que as mortes
estão muito ligadas às estruturas sociopolíticas do país, já que

108
nem todo mundo tem acesso à prevenção ou mesmo a um
atendimento médico adequado.

esse reconhecimento não virá de quem esteve dentro


dessa bolha do que chamamos de privilégio branco.”
nos reconhecermos como sujeitos de conhecimento,
Tatiana Ainda pensando nesse contexto da pandemia, vivenciamos
Carvalho uma intensa percepção de presença virtual, com a formação de
para nós, não é para mulher, não é para negro, não
é para indígena, não é para quilombola, não é para
favelado. Então esse teste para tornar essa borda
Costa redes como a principal forma de nos comunicarmos. Além dis-
“A universidade não é para nós, a pesquisa não é

so, vivenciamos situações de trabalho, troca de conhecimento,


encontro com amigos, reuniões diversas, namoros e festas tam-
bém nesse regime. Como você avalia a percepção de presença
mais inclusiva é diário. Se não formos nós a e a própria ideia de vizinhança nesse contexto de virtualidade?

Cida Já há algum tempo essa noção de vizinhança vem sendo remo-


Moura delada ou impactada pelas tecnologias. Com a popularização
dos celulares, e depois dos smartphones, passamos a ter um
dispositivo que nos avizinha com outras pessoas, com os te-
mas, com as questões e com as nossas agendas e militâncias.
Isso impacta diretamente na noção do que é perto e do que é
longe e, no nosso caso brasileiro, do que é a saudade. Quando
nós tivemos o início da pandemia, e que nós tivemos, quase
que por força de lei, que realizar esse afastamento social, para
algumas pessoas isso não foi uma situação difícil, porque elas
já estavam mergulhadas nessas conexões digitais há muito
mais tempo. Para os jovens, isso foi mais tranquilo, mas, para
os mais velhos, os grupos sociais que nasceram em outro tem-
po e que estabelecem as suas interações por outras vias que
não apenas esses mecanismos digitais, houve muito sofri-
mento. Eu penso que, em função disso, as pessoas que já es-
tavam com as relações de vizinhança desgastadas, começaram
a reativar novas solidariedades, ou repactuar a solidariedade
com vizinhos ou com alguém da família. Eu comecei a receber
mensagens pelo WhatsApp, ou mesmo telefonemas, de amigos
que eu não via há muito tempo, com quem eu tinha perdido
um pouco o contato, e que apareceram para saber se estava
tudo bem comigo.
No caso das vizinhanças, quando esse pacto de amizade
é relacionado à questão do afastamento social e a do risco de
acometimento da doença, essas tecnologias passam a ganhar
uma outra característica que é exatamente a preocupação em
saber se o vizinho está realizando ou acompanhando todos os
protocolos de saúde que são determinados. Essa é uma situ-
ação que se exacerba com as tecnologias. Outra característica
interessante são as solidariedades que estabelecemos para

110 111
além das fronteiras nacionais. No meu caso, eu estabeleci uma preendendo muito bem. O processo de codificação tem uma
amizade, ao longo da pandemia, com pessoas de outros países, possibilidade de reduzir essas diferenças ou construir essa di-
é como se elas fossem mais vizinhas minhas do que a minha ferença como exótica. Esse é o primeiro processo.
própria vizinhança geográfica. A tecnologia tem essa potência O segundo processo é estabelecermos parcerias inter-
de afastar, mas também de aproximar. nas nos locais onde já somos poucos. Nós, que chegamos à uni-
versidade na condição de educadores e de pesquisadores, a pri-
Tatiana Cida, em alguns textos seus, você diz que os mecanismos que meira coisa que nos move é mantermos as solidariedades que
Carvalho coordenam o planeta são coloniais e, pelo que eu entendi, essa já havíamos cerzido fora da universidade, estabelecendo um
Costa ideia de mecanismos implica o que rege a produção e circula- contínuo de solidariedade dentro desse novo espaço. Isso é
ção de conhecimentos, e chega até as decisões de quem vive e muito importante, porque logo vamos perceber que o ambien-
de quem morre. E me parece que isso está conectado com a no- te não está organizado para nos receber, para lidar com as nos-
ção de necropolítica, do filósofo Achille Mbembe. Pensar em sas diferenças, com as nossas histórias, com os nossos corpos.
colonialidade é pensar em marcadores de hierarquia, como, E, por solidariedade ou por estrategismo, nós acabamos nos
por exemplo, a raça. Nós duas somos mulheres negras que ti- unindo. Posteriormente, vem o momento de criarmos oportu-
veram acesso ao universo acadêmico e, em um determinado nidades de alargar essa borda, de maneira que outras pessoas
momento da história, poderíamos ser consideradas exceção. possam chegar por uma construção, por uma militância inter-
Durante meu mestrado, no início dos anos 2000, eu li apenas na que nós realizamos. Criar essas possibilidades é um com-
um autor negro na Comunicação, que foi o Stuart Hall. E você promisso necessário. E, além disso, eu acho que é importante
era a única professora negra retinta que circulava pelo prédio. demarcar que nem sempre nós chegamos podendo tematizar
E agora, 15 anos depois, quando eu volto para o doutorado, diretamente as nossas questões, exatamente porque há uma
eu vejo um aumento da presença de intelectuais não brancos checagem, uma espécie de check list para ver se você tem mes-
como referência, e mais estudantes negras na pós-graduação. mo condição de estar ali.
Eu não tenho dúvida de que a presença de mulheres como E, a partir daí, há um cansaço que se estabelece, porque
você é determinante para que mulheres como eu e outras pes- isso não acontece de maneira tranquila. Nesse processo de
soas negras possamos nos ver mais como uma possibilidade incorporação desse código, vamos passando por infinitos de-
nesse universo acadêmico. Tem um artigo seu publicado no safios e confrontos que desejam que nós desistamos. A uni-
livro Vozes Negras e Comunicação em que você fala não só da pre- versidade não é para nós, a pesquisa não é para nós, não é para
sença da intelectualidade negra, mas também da potência des- mulher, não é para negro, não é para indígena, não é para qui-
sa intelectualidade, e você nomeia isso como uma possibilida- lombola, não é para favelado. Então esse teste para tornar essa
de de “hackear os códigos coloniais e servir utopias”. Eu queria borda mais inclusiva é diário. E, em um dado momento, nós
ouvir um pouco mais sobre isso. nos sentimos autorizados e começamos a produzir um conhe-
cimento que é contra-hegemônico, no sentido de percebermos
Cida Essa ideia de hackeamento do sistema tem muito a ver com o que, se não formos nós a nos reconhecermos como sujeitos de
Moura entendimento de que as populações não brancas precisam conhecimento, esse reconhecimento não virá de quem esteve
ter antes, durante e depois desses processos de inclusão uma dentro dessa bolha do que chamamos de privilégio branco.
grande tomada de consciência. Quando chegamos à univer-
sidade, há uma série de valores já estabelecidos. E, ainda que Tatiana Cida, para finalizar, gostaria de me referir a outra conversa sua
pese o processo de ações afirmativas no Brasil, nós ainda so- Carvalho com a professora Laura Guimarães, a organizadora do livro
mos minoria no contexto das universidades. Junto com a sen- Costa que mencionei. Ela citou uma coisa que também me chamou a
sação de desconforto por essa não presença está a sensação de atenção no seu texto: que, em vez de considerações finais, você
que os conhecimentos de onde viemos são codificados de ou- falou em “considerações sankofas”. Vou, então, imitar a Laura
tros modos, o que nos dá a sensação de que não estamos com- e pedir a você para fazer suas considerações sankofas dessa

112 113
nossa conversa, e também te pedir para explicar o significado
desse termo que é tão bonito e que está presente naquilo que
herdamos das culturas africanas.

para a inclusão de pessoas


Cida Eu vi essa expressão em uma dissertação de mestrado, em que

Como podemos contribuir

não brancas nos espaços


Moura a autora, em vez de falar de conclusão, nos convidava a conti-
nuar a busca por aquilo que ela tinha semeado ao longo dos ca-
pítulos. Essa expressão “sankofa” tem a ver com um ditado do

de aprendizagem por
povo Acã (grupo étnico que vive em Gana e na Costa do Mar-
fim), em que eles vão dizer da necessidade de, no processo de
caminhar, voltarmos sempre e pegarmos. Então “sankofa” lite-

onde circulamos?
ralmente é isso, “volte e pegue”. Pode ser algo que você volta e
pega porque é algo recém-semeado, mas pode ser algo muito
mais longevo do que uma tese ou uma dissertação, por exem-
plo. Eu achei isso muito bonito.
Minha “consideração sankofa” é assim: siga a sua trilha
de produção de conhecimento, mas não se esqueça dessa vizi-
nhança de origem, dessa marca de origem, desse conhecimen-
to de origem, e também não se esqueça de compartilhar esse
conhecimento com esses sujeitos. O “volte e pegue” é assim:
não solte a mão do seu. Da sua mãe, do seu vizinho, do seu avô,
daquele saber tradicional da sua comunidade, não solte, não!
Porque isso é o que vai fazer toda a diferença no nosso proces-
so de construção de solidariedades futuras, já que é essa ati-
tude do conhecimento que temos que acessar no dia a dia. O
que nos preenche efetivamente é essa solidariedade que vem
da nossa ancestralidade. Então eu diria ancestralidade, eu diria
saber tradicional, eu diria esse patrimônio material e imaterial

.
das nossas comunidades. Eu acho que isso é o nosso “sankofa”
de hoje: corra, mas pegue. Volte e pegue, urgentemente

114 115
116

COSMOS
Quando os cupins
ocupam a escola
Zoy Anastassakis

124 Confluências,
parcerias e parceradas
Uma conversa entre
Roberto Romero e Isabel Casimira

132 Fazer tela,


comprar terra
Uma conversa entre
Roberto Romero e Ibã Huni Kuin

140 Quem construiu


a Amazônia?
Uma conversa entre
Roberto Romero e Carolina Levis

116
Em sua origem grega, o termo “miasma” tem relação com im-
pureza, mancha. Ar corrompido, estragado. Ou, como descri-
to pelo médico Giovanni Maria Lancisi (1654-1720), o mias-
ma era composto de certas influências nocivas emanadas
dos charcos.1 Na passagem do século 18 para o 19, em meio à
cruzada contra os miasmas e pela purificação dos ambientes,
surge, então, uma forte preocupação com a qualidade da água
nas cidades. Fervuras, utilização de compostos clorados, acidi-
ficação e carbonização e, no limite, para a escala urbana, ater-
ramento: eis alguns dos recursos explorados para o controle
sanitário ambiental.
Entretanto, supostamente domesticadas pela ação hu-
mana, as águas da Lagoa do Boqueirão – que ficava próxima
aos Aquedutos da Lapa, no Rio de Janeiro, e que foi aterrada
em 1799 – que desaguavam no mar, insistem em ali perma-
OS CUPINS
necer. Com as chuvas de verão, o Parque e a Rua do Passeio,
para onde o mar se abre, ainda hoje são inundados pelas persis-
tentes águas enlameadas da lagoa, que, teimosamente, fazem

A ESCOLA questão de retornar ao seu lugar. Ao ressurgirem, avançam


pela entrada do terreno onde finalmente se instalou, em 1962,
QUANDO

a Escola Superior de Desenho Industrial do Rio de Janeiro


OCUPAM
(Esdi), local onde se passa a estória que aqui começo a contar.
Buscando um pouco de sol, reúno forças para me des-
vencilhar das águas lamacentas do Boqueirão e, enfim, descan-
sar, antes de iniciar a estória que agora começo a contar. Mas,
aturdida em meio à confusão do pensamento tentacular2 que
me trespassa, descuido daquela velha preocupação de contro-
Zoy Anastassakis
lar os equívocos,3 e me acomodo confortavelmente no espaço
da equivocação para ali, preguiçosamente, habitar.
Certamente, essa não é a estória da história de uma es-
cola brasileira de desenho industrial. Nem o relato de como,
nesse estranho lugar, urbanização, modernidade e industria-
lização se colocaram como aliadas dos homens brancos que

1 Lilian Al-Chueyr Pereira Martins; Roberto de A. Martins. Os miasmas


e a teoria microbiana das doenças “[Miasma and the Microbian Theory of
Diseases]”. Scientific American Brasil [Série História] (6), 2006, pp. 68-73.
2 Donna Haraway. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene
(Experimental Futures). Durham: Duke University Press, 2016.
3 Eduardo Viveiros de Castro. “Perspectival Anthropology and the Method
of Controlled Equivocation. Tipití. Journal of the Society for the Anthropology of
Lowland South America, volume 2, n. 1, Article 1, 2004. Disponível em: <https://
digitalcommons.trinity.edu/tipiti/vol2/iss1/1>.

118
aqui se instalaram, criando colônias de exploração. Essa é tão seres vivos distintos, encontros como esses nos contam sobre
somente uma tentativa de comunicar por diferenças, uma o que a filósofa Donna Haraway nomeia como symbiogenesis,
versão entre inúmeras versões que emanam em abundância ou sympoiesis – fazer-com.4 Com esses termos, ela discute pro-
desse lugar. Uma outra estória, que trata de miasmas, criaturas cessos que se desenrolam por meio de longos períodos de inti-
ctônicas, pensamento tentacular, metamorfoses, correspon- midade entre estranhos, “práticas de criaturas transformando-
dências, entrelaçamentos, interstícios, reabilitações, ressur- -se umas com as outras em cada nó de intra-ação na história da
gências, recomeços, reinvenções. Terra”,5 como ela escreve.
De volta ao começo, no início dos anos 1960, invoco um Recuperando o antropólogo Bronislaw Malinowski,
jovem alemão que, naquele momento, recém-formado em que descrevia a vida social como uma longa conversação, o so-
design, atravessa o Atlântico e, assim como eu e meus com- ciólogo Tim Ingold defende que “não há razão para que essas
panheiros, termina por se instalar naquela mesma escola si- conversações sejam limitadas aos seres humanos, ou mesmo
tuada à Rua do Passeio, 80. Cinquenta e sete anos depois, em aos seres vivos. Nem os humanos precisam estar no centro de-
julho de 2017, em discurso durante cerimônia realizada na las”.6 Tomando em conta seus argumentos, é preciso conside-
Esdi em sua homenagem, o designer Karl Heinz Bergmiller rar, então, que “as colaborações entre pessoas – e populações
comentou: “Na Esdi, as árvores contam a história. Eu fui plan- – situadas de forma diferente são tão cruciais, e ativadas por
tar. Eu me identifico com elas”. Com essa fala, ele faz menção meio delas, quanto aquelas entre humanos e animais”.7
a uma dezena de Ficus elastica e Terminalia catappa encontradas Mas como fazer para aprender a ouvir a sabedoria desses
no campus da primeira escola de ensino superior de desenho outros habitantes do mundo? Pensando sobre isso, Ingold põe
industrial no país, a Esdi, criada pelo governo do Estado do em relação as noções de correspondência e sustentabilidade.
Rio de Janeiro em 1962.
Instalada provisoriamente em um antigo conjunto de O problema em nossas relações com o mundo natural, então, é
pequenas edificações militares situado no centro histórico que esquecemos de como corresponder com os seres e as coisas de que ele
da cidade, a escola segue funcionando até hoje nas mesmas é constituído. Estivemos tão preocupados com a interação entre nós e os
dependências. Quando da reforma da área para que ali fosse outros que não conseguimos perceber como nós e eles seguimos juntos
sediada a nova escola, as tais árvores ainda não haviam sido no tempo corrente. Isso, certamente, é o que a sustentabilidade signifi-
plantadas. Alguns ex-alunos comentam que o plantio teria ca: não a perpetuação de uma forma completa ou estado estável, mas
acontecido entre o final dos anos 1960 e o início da década se- a capacidade de continuar, prosseguir, perdurar. Se interação é sobre
guinte, por iniciativa da então diretora, a engenheira, urbanis- alteração, correspondência é sobre conjunção. É sobre os modos pelos
ta e feminista Carmen Portinho (1903-2001). quais as vidas, em seus perpétuos desdobramentos e transformações,
Hoje, as copas dessas árvores alcançam grandes alturas, respondem umas às outras.8
e se espalham produzindo sombra em boa parte do campus.
Suas raízes aéreas reencontram o solo, formando troncos au- Assim, levando a sério a fala de Karl Heinz Bergmiller e
xiliares. Embaixo da terra, criam uma malha que se desdobra sua declaração de simpatia9 para com as árvores plantadas na
por todo o subsolo, forçando a estrutura das casas e suas pa-
redes. Uma dessas raízes chegou a escalar a cobertura de um
edifício vizinho, invadindo seu reservatório de água. Ao trilhar 4 Donna Haraway. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene
(Experimental Futures). Durham: Duke University Press, 2016, p. 5.
esse caminho, provocou rachaduras no piso do auditório onde
5 Donna Haraway. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene
aconteceram a homenagem ao professor Bergmiller e tantas (Experimental Futures). Durham: Duke University Press, 2016, p. 60.
outras aulas e conferências. Tradução da autora.
É sabido que a polinização dos fícus depende de uma 6 Tim Ingold. Correspondence. Op. cit., p. 32. Tradução da autora.
vespa específica que se desenvolveu em um longo processo de 7 Tim Ingold. Correspondence. Op. cit.,p. 16. Tradução da autora.
trocas com essa planta. Mais do que simples interações entre 8 Tim Ingold. Correspondence. Op. cit.,p. 41. Tradução da autora.
9 Tim Ingold. “On Human Correspondence”. Op. cit., p. 13.
120 121
Esdi, com essa estória, proponho uma aproximação com essa e os protozoários que são capazes de digerir os materiais celuló-
velha escola de desenho industrial por meio do relato dessas e sicos. A participação e o engajamento nesse sistema de alimen-
de algumas outras estranhas relações simpoiéticas que me foi tação coletiva é fundamental para os cupins na medida em que,
dado perceber entre os anos de 2016 e 2018, período em que durante a troca do exoesqueleto (ecside), a membrana onde se
a escola e a universidade à qual ela pertence se encontravam alojam os microrganismos simbiontes é perdida, o que causa a
intensamente ameaçadas em decorrência de uma crise políti- redução dessas trocas entre espécies, condição para a diversida-
ca, financeira e institucional que vem afetando não somente o de alimentar que resulta dessa intrincada relação simbiótica.
estado do Rio de Janeiro, mas o Brasil como um todo. Contudo, mais do que mera troca nutricional, deve-se
Na Esdi, os fícus não estabelecem relações simpoiéticas considerar que a trofalaxia é também um modo de comuni-
apenas com as vespas polinizadoras, mas, também, e de forma cação, que decorre da transmissão de mensagens químicas,
bastante intensa, com os cupins que, ao longo dos anos, toma- gota a gota. Quando as mandíbulas de dois cupins entram em
ram o campus. Por sobre as paredes, feitas de tijolo e concre- contato, uma pequena gota se desprende da boca de um deles
to – materiais que eles atacam sem necessariamente ingerir –, em direção à do outro. “Uma fração de segundo e o recado já
esses insetos sociais mastigadores construíram canais e estra- está dado”.11 Além da trofalaxia, há, entre os cupins, um outro
das, tecendo toda uma complexa malha viária que os levou até comportamento típico, grooming (limpeza), através do qual os
o seu verdadeiro alimento, a celulose. indivíduos lambem uns aos outros. Mais um desses modos de
Convivendo com microrganismos capazes de digerir ce- comunicação, esse é também um mecanismo de eliminação
lulose e outros compostos orgânicos, os cupins podem viver, de microrganismos e partículas estranhas que possam causar
literalmente, dentro da comida: seja no subsolo, nas árvores, doenças entre os membros da colônia.
janelas, portas ou nos tampos das mesas de trabalho em que os Mas não se esgota aí a especificidade do modo de vida
alunos da escola desenvolvem seus exercícios. Essa relação de dos cupins. Mais do que meros vegetarianos, essas criaturas
companheirismo entre cupins, bactérias e protozoários, alia- são também canibais.12 Afinal, eles consomem os restos te-
da à sua grande abundância nos ecossistemas, confere a esses gumentares de suas ecsides, podendo, também, canibalizar
insetos a possibilidade de atuar como superdecompositores10 indivíduos traumatizados, enfraquecidos ou destoantes do
que, ao mesmo tempo que contribuem para a aceleração do padrão populacional. Tal voracidade por matéria animal resul-
processo de decomposição dos materiais orgânicos, atuam na ta, ainda, no consumo de pequenos invasores, que adentram o
aeração do solo. ninho e acabam sendo mortos.
Após a ocupação da escola pelos cupins, algumas portas, Seus ninhos, construídos a partir de misturas de solo, fe-
janelas e tampos de mesa que ao primeiro exame pareceriam zes, saliva e partículas de madeira,13 podem conter de centenas
intactos, quando tocados e analisados com maior atenção, re- a milhares de indivíduos. Neles, também podem ser encontra-
velavam-se refeitos por dentro. No lugar da madeira, um novo dos muitos outros animais, incluindo cupins diversos, inquili-
material, produzido como resultado da trofalaxia a que os nos. Entre os termitófilos, animais que vivem juntamente com
cupins devem proceder para recuperar aqueles microrganis-
mos com os quais desenvolvem relações de companheirismo
que sustentam seus modos de vida. 11 R. M. Tinoco. “A sociedade anônima dos cupins”. Super interessante,
Por trofalaxia, entende-se o processo alimentar em que 31/10/2016. Disponível em: <https://super.abril.com.br/ciencia/a-socie-
um indivíduo disponibiliza para outro o que se encontra dentro dade-anonima-dos-cupins/>.
do seu próprio tubo digestivo, por via oral ou anal. Alimentan- 12 Felipe A. P. L. Costa. “Termitologia, a ciência dos cupins”. Entrevis-
ta. Observatório da Imprensa, ed. 788, 4/2014. Disponível em: <http://
do-se do material regurgitado ou excretado por outros mem- observatoriodaimprensa.com.br/mosaico/_ed788_termitologia_a_cien-
bros da colônia, os cupins se nutrem recuperando as bactérias cia_dos_cupins/>.
13 P. R. Castro Júnior. Dinâmica da água em campos de murundus do planalto dos
Parecis. Tese de doutorado (geografia física). Programa de pós- graduação em
10 Wikitermes. Disponível em: <http://termite.wikidot.com/>. geografia . São Paulo: Universidade de São Paulo, 2002.

122 123
os cupins dentro das galerias, e os termitariófilos, que apenas Essas questões importam porque uma universidade é
fazem uso do cupinzeiro sem se relacionar com seus habitan- feita de escolas, faculdades, institutos e departamentos, onde
tes, podem ser encontrados besouros, aranhas, lagartos, ratos, convivem alunos, professores e funcionários, mas, também,
pássaros, etc. cimento, madeira, metais, portas, janelas, telhados, mesas, ca-
Em meio a todas essas criaturas companheiras, vale des- deiras, computadores, fios, tubos, água, energia elétrica, terra,
tacar os protozoários que vivem dentro dos intestinos dos árvores, grama e, no caso da Esdi, ácaros, vespas, mosquitos,
cupins, e que, por sua vez, formam relações simbióticas com aranhas, lacraias, cachorros, gatos, cupins e todos os microrga-
diferentes tipos de bactérias. Sem elas, os cupins não sobrevi- nismos que com eles compartilham a vida.
veriam, uma vez que suas vidas são mutuamente constituídas Então, com Ingold e Haraway, é possível pensar também
por meio desses encontros e envolvimentos que os confor- a escola como um holobioma, composto de uma série de nós e
mam como entidades multipartidárias dinâmicas14 “que se juntas que formam uma malha delineada pelas linhas traçadas
mantêm juntas, se desenvolvem, se comunicam e formam te- por entidades multipartidárias dinâmicas.18 Nesse sentido,
cidos em camadas, como fazem os animais”.15 um lugar que está no mundo ao mesmo tempo que produz
Assim, para além de um mero interesse pela vida social mundos, e que, assim, nunca está pronto, definido, fechado.
das árvores e dos cupins e seus companheiros, com esta estó- Ao contrário, um ambiente em contínuo crescimento, que se
ria me proponho a pensar o que eles efetivamente fazem ao vi-
ver junto a nós, humanos, na Esdi. E, mais ainda, o que eles nos
propõem com a sua presença. Em contrapartida, como nós,
transforma o tempo todo em meio aos movimentos de seus
habitantes, vivendo juntos em diferença e em coabitação .
professores, alunos e funcionários, correspondemos16 a eles
e às simbioses arquitetônicas que eles conformam, enquanto
seguimos vivendo nossa vida escolar.
Com isso, colocam-se as seguintes questões: em que
medida nossa tomada de consciência da sua presença e os
subsequentes esforços realizados para impedi-los de continu-
ar devorando a escola nos contam sobre o que somos e o que
podemos vir a ser, bem como sobre os modos com que ensaia-
mos responder também ao que vem nos afetando na Esdi e,
de modo mais geral, na universidade pública no Brasil? O que
essa tomada de consciência nos dá a perceber sobre essa antiga
escola de desenho industrial e os modos com que ela vem res-
pondendo ao tempo e aos cuidados a ela dedicados por aque-
les que por ali têm passado ao longo dos últimos 58 anos? De
que modo essas habilidades de resposta17 ensaiadas na Esdi
nos sugerem outros modos de ser e fazer escola?

14 Donna Haraway. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene
(Experimental Futures). Durham: Duke University Press, 2016, p. 64.
15 Donna Haraway. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene
(Experimental Futures). Durham: Duke University Press, 2016, p. 65.
Tradução da autora.
16 Tim Ingold. The Life of Lines, op. cit.; “On Human Correspondence”, op.
cit.; Correspondence, op. cit. 18 Donna Haraway. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene
17 Donna Haraway. Op. cit. Tim Ingold, 2016, 2018. (Experimental Futures). Durham: Duke University Press, 2016, p. 64.

124 125
Confluências,

Congados do Estado de Minas Gerais, somos levados


parcerias e
das guardas de Congo e Moçambique Treze de Maio
Isabel Casimira Gasparino, a Belinha, Rainha Conga

entre pessoas, mas também com plantas, animais e,


O que a ancestralidade, a espiritualidade e o astral

ao universo dos reinados mineiros. Neles, as redes


parceradas
de Nossa Senhora do Rosário e da Federação dos
conversa entre o antropólogo Roberto Romero e

de colaboração e vizinhança não se dão apenas


podem nos ensinar sobre nossa história? Nesta

Uma conversa entre


Roberto Romero e Isabel Casimira

sobretudo, com espíritos ancestrais.


Roberto Salve Maria! Rainha Belinha, você é herdeira da coroa de sua
Romero avó e de sua mãe, e hoje ocupa o cargo de rainha das guardas
de Congo e Moçambique Treze de Maio, de Nossa Senhora do
Rosário e da Federação dos Congados do Estado de Minas Ge-
rais. Você é a terceira mulher a assumir a coroa do Reino Tre-
ze de Maio, que é um dos mais antigos aqui de Minas Gerais,
fundado em 1944. Eu queria pedir para você contar um pouco
da tradição do reinado aqui em Minas e da história do Reino
Treze de Maio, que faz parte também da história da sua família
e das rainhas sua avó, Dona Maria Casimira, e sua mãe, Dona
Isabel Casimira, de quem você herdou a coroa e o nome.

Isabel O Reinado de Nossa Senhora do Rosário é uma fé herdada


Casimira do nosso povo de África, que cultua e mantém a fé na Virgem
Santa Mangangá, na língua dos negros, que é a Nossa Senhora
do Rosário que veneramos com tanto amor e com tanta de-
voção. Em Belo Horizonte, há vários reinos: cada pessoa que
faz sua promessa, que tem dentro de si a herança africana do
Reino do Congo, que sabe que nós éramos elite em África e
que sabe que cada um de nós tem uma nação dentro de si, é
capaz de fundar seu reino, seja onde estiver. Cada um forma
seu reino onde está, recomeçando a história a partir de onde
mora com a sua particularidade. Cada qual tem o seu jeito de
fazer, mas a única coisa que é igual em todos é a fé. Temos fé
em Nossa Senhora e sabemos que ela vai estar sempre nos
amparando, guiando e iluminando.

126
Minha avó, Maria Casimira, preta velha, nasceu em 4 de
março de 1906, na cidade de Betim, no Bairro Angola. E a mi-
nha bisa, Conceição Moreira de Jesus, e o meu avô, João Pedro
Santana, frequentavam um Moçambique lá de Betim. Com
seis meses de nascida, em Betim, minha avó foi coroada. Quan-
do eles vieram para Belo Horizonte, minha avó já conhecia ou-
tras pessoas de Rosário, frequentava e participava de outros
reinos vizinhos, do entorno do bairro Concórdia: Santo André,
Concórdia e Aparecida. O tempo passou, até que ela fez uma
promessa de sete anos de bandeira, com comida, e pediu para
Nossa Senhora que seus descendentes tivessem melhor sor-
te que os antepassados. E foi daí que surgiu o reino Treze de
Maio. Com o passar dos sete anos de promessa, eles acharam
por bem continuar e queriam continuar. Como precisava ter
registro, e as mulheres não podiam registrar nada, vovó Ma-
ria emancipou o tio Efigênio, que era o filho mais velho dela,
e ele registrou. E esse ato, esse fato, esse feito, fez com que os
homens que governavam, que mandavam no reinado mineiro
de Belo Horizonte, se curvassem à astúcia de Maria Casimira,
passando a respeitá-la, porque sabiam que ela era uma mulher
muito inteligente e tinha cabeça de driblar o sistema.

Roberto O reino tem um calendário próprio com várias atividades que


Romero acontecem todos os anos, certo, Belinha? Mas, sem dúvida, a
grande festa é a festa do dia 13 de maio. Você pode nos contar
sobre a importância dessa grande festa, e como ela é um espa-
ço de confluência, de aliança e de vizinhança entre a comuni-
dade e a cidade, a igreja e o terreiro, a tradição e a universidade,
a missa e o carnaval?

Isabel O dia 13 de maio é o dia escolhido por minha avó para reve-
Casimira renciar a Princesa Isabel e a Lei Áurea. Muitas pessoas pensam
que não houve libertação dos escravizados, que é bobagem
falar de Princesa Isabel, mas, na realidade, no dia em que a lei
foi assinada, os negros que estavam no tronco, aquelas pessoas
que tanto lutaram e ouviram a história da proclamação da Lei
Áurea, acreditaram naquilo. Aquele sentimento ninguém tira
deles. E é muito fácil fechar os olhos e se remeter àquela época,
e sentir dentro do seu coração a delícia que deve ter sido aqui-
lo, o amor, a esperança de vida melhor para os que estavam ali
e para os seus descendentes. A nossa festa é, então, feita no dia
13 de maio em comemoração à proclamação da Lei Áurea, e

128 129
também em comemoração aos negros que foram cativos, que Roberto Belinha, a sua fala sobre “parcerada” diz muito sobre a impor-
sentiram a escravidão na carne. É uma homenagem a eles, por Romero tância de alguns elementos no reinado, como as sementes, as
terem conseguido passar por essa situação tão adversa. folhas, as imagens do altar, os tambores... Uma espécie de vizi-
Começamos no dia primeiro de maio, quando sai na rua nhança não só entre pessoas, mas com aquilo que é invisível
o Boi da Manta, ou Bumba-meu-boi, que passeia pela comuni- também. Você pode falar mais disso a partir do reinado?
dade na casa dos devotos, dos amigos, dos simpatizantes em
torno do nosso bairro e bairros vizinhos, contando que a nos- Isabel O nosso entorno é muito sagrado. Aqui em nossa casa, che-
sa festa se aproxima. Isso convida as pessoas a participarem, a Casimira gam muitas pessoas da vizinhança, pessoas que não conhece-
congregarem conosco essa fé maravilhosa, a virem provar do mos, mas que chegam aqui para ajudar, para serem ajudadas,
nosso almoço gostoso, da nossa comida espetacular, esplendo- para nos ajudar a ajudar. Além disso, essas plantas vizinhas são
rosa e sagrada. Quando o boi sai pelas ruas do Concórdia con- uma coisa muito linda porque, como moramos em uma cidade
tando e chamando as pessoas, ele já começa a fazer o seu cam- grande, as plantas vão ficando cada vez mais extintas, mais di-
po astral, porque o astro, o astral, o universo, já prepara para fíceis de serem cultivadas. Temos no nosso íntimo que, se eu
nós uma atmosfera propícia para uma boa festa. Isso mobiliza tenho uma planta sagrada na minha casa, ela também é sagra-
o bairro inteiro e os bairros vizinhos, e é uma coisa muito lin- da na casa do outro. Então, se eu tiver e o meu irmão precisar,
da, muito democrática. Tem avós, bisavós, mães e bisnetos que eu posso compartilhar. A partir desse pensamento, o nosso en-
acompanham o boi, e isso nos fortalece cada vez mais, pois é a torno, nosso cinturão verde de ervas e plantas sagradas vai es-
juventude que nos faz saber da continuidade do amanhã. tar sempre atualizado, sempre à disposição um do outro, por-
Contam as histórias que, quando os negros iam fugir da que quando um fraqueja, o outro sempre tem uma folhinha,
senzala, eles jogavam couro de boi por cima do corpo e entra- uma coisinha guardada, um banho, um chá, uma defumação
vam para a mata adentro. Aquele couro de boi, aos olhos do ou simplesmente um cheiro de ervas. Essa é uma herança do
senhor, era boi fugindo, andando para a mata. Esse couro ser- nosso pessoal, que é cultivar as plantas para que as energias do
via, então, como disfarce, além de cobrir e livrar de bichos, de universo passem por elas, assim como passam pela água, pelo
ataque de animais e do frio da mata à noite. Isso que eu conto ar, pelo rio, pelo mar, pelo céu, pelo universo, por dentro de nós.
é um fio, uma meada, uma história que puxa a outra, porque o Essas plantas fazem a nossa cura, são o nosso alimento – e são
que fazemos é sempre a continuidade da história. Tudo o que também o alimento do nosso entorno e da nossa vizinhança.
eu tenho feito é o que a Casimira fazia, é o que o tio Efigênio
fazia, o que a mamãe fazia, e eu aprendi a fazer. O que você cha- Roberto Belinha, recentemente você viveu uma experiência muito
ma de confluência eu chamo de parceria, a vovó chamava de Romero marcante quando você cruzou o Atlântico e viajou para Ango-
“parcerada”. A “parcerada” são pessoas que se reúnem em prol la, onde você dirigiu, com a sua amiga e parceira antropóloga
do desejo da gente, que estão juntas com você para realizar Júnia Torres, o filme A Rainha Nzinga chegou, um documentário
seu desejo, sua vontade, seu pedido. E por mais que seja uma belíssimo que registra essa viagem que também é uma via-
coisa religiosa, as pessoas te ajudam a levantar a sua bandei- gem à ancestralidade. Eu queria que você contasse um pouco
ra, a manter a sua fé, a cumprir sua promessa. Essa confluên- dessa experiência e dessa relação com a ancestralidade, no fil-
cia, então, se torna comum e antiga, pelo fato de ter começado me e além.
com Maria Casimira. No tempo de vó Maria, já vinham mui-
tos amigos aqui (antropólogos, historiadores, pesquisadores, Isabel Eu acredito que essa viagem à Angola foi desenhada no astral,
folcloristas…). Cada um, ao seu jeito, fez com que minha avó Casimira porque ela foi um marco nas nossas vidas onde aconteceram
pudesse caminhar, para que nos tornássemos a potência que coisas que nunca esperávamos acontecer. Fomos com a cara
somos hoje. Não uma potência de orgulho de ser melhor, mas a e a coragem para fazer um filme que foi se desenhando e se
potência de poder louvar com tanta força, com tanta fé, e fazer escrevendo na medida de cada passo que dávamos. As mes-
o que gostamos do fundo do coração. mas coisas que têm aqui, têm lá, eu achei isso muito lindo: vi

130 131
várias folhas, flores e frutas que se assemelham a coisas que
consideramos sagradas aqui no Brasil. E aquilo me fez ficar tão
radiante, tão feliz! A espiritualidade nos trata com muito cui-
dado, com muito carinho, ela nos rege e nos dirige. As coisas
vão acontecendo, você não precisa ficar preocupado em como
fazer, o que fazer, porque as coisas vão se apresentando ao lon-
go da nossa caminhada.
Quando eu estava atravessando o Atlântico, eu senti
uma dor esquisita no peito, e pensei: “Meu Deus, o que eu es-
tou sentindo? Por que isso?”. E aí fui tendo as respostas sobre o
que eu estava sentindo: era porque eu estava retornando para
casa, estava fazendo a viagem reversa, estava viajando sobre
o Atlântico em um navio aéreo. Meu povo veio para o Brasil
no navio tumbeiro – porque aquilo era uma verdadeira tumba
atravessando o Atlântico, tanto que muitos não chegaram. E
nessa travessia, veio trazendo o nosso povo e a história deles
e, junto com isso, a esperança e a incerteza do que estava por
vir. Quando eu olhei pela janela daquele avião, veio uma tem-
pestade do lado de fora, junto de uma turbulência que balan-
çava o avião. Eu perguntei para o meu subconsciente qual era
o sentido de um avião balançar tanto, e foi aí que eu escutei
o pessoal falando comigo que eles estavam fazendo a viagem
reversa, que estavam ali fazendo a minha escolta, que eles ti-
nham prometido só retornar a Angola quando eu voltasse.
Eles eram meus protetores que estavam comigo esse tempo
inteiro, com a minha família e meus ancestrais, tomando con-
ta, induzindo e ajudando – e eu não tinha noção disso. O que
eu senti foi que estava no navio aéreo, e isso é muito profundo,
muito sobrenatural, muito surreal. Eu sei dizer que a ancestra-
lidade é o que te dá força para você levantar da cama, para você
falar com seus filhos que tem jeito, que aquele momento vai
passar, que tudo na vida passa. Ela te dá força para dizer que
as coisas ruins passam, mas as coisas boas também passam, e
que cada problema que possa acontecer vai fazendo com que
se forme musculatura no nosso espírito, no nosso caráter, no
nosso fazer, no nosso entender. Isso é a espiritualidade, é a
ancestralidade que faz com que não percamos a esperança de
lutar até morrer. E o mais sagrado disso tudo é aprendermos a
lutar com os nossos avós, com os nossos tatas que vieram antes
de nossos avós, para passarmos o que aprendemos para nos-

.
sos herdeiros. A minha luta é essa: preparar quem vai ficar para
continuar lutando, se assim ele desejar

132 133
Fazer tela,

os cantos e as relações com outros seres não humanos


fundador do movimento, o artista e educador Ibã Huni
Nesta conversa com o antropólogo Roberto Romero, o
comprar terra
Kuin, do Acre, que, desde 2013, vem compartilhando
o trabalho do MAHKU, Movimento dos Artistas Huni
que não são feitas para ver, mas para sentir. Assim é

Kuin nos conta sobre a importância de manter vivos


Bichos que parecem gente, gente que parece bicho:
figuras e cores vibrantes se entrelaçam em pinturas

a cosmologia huni kuin a partir da prática artística.


Uma conversa entre
Roberto Romero e Ibã Huni Kuin

Roberto Ibã, você possui uma trajetória muito impressionante como


Romero educador, artista plástico, ativista e liderança huni kuin, além
de ter fundado, em 2013, o MAHKU, Movimento dos Artistas
Huni Kuin, que se dedica aos estudos dos cantos, desenhos e
pinturas do povo indígena Huni Kuin do Acre. Você poderia
contar um pouco da sua história e apresentar quem são os
Huni Kuin?

Ibã Huni Haux! Eu sou Ibã na minha língua, e Isaías Sales na língua por-
Kuin tuguesa. Eu moro na Aldeia Chico Curumim, no Rio Jordão,
Acre, e no meu território tem cerca de 3.700 pessoas em 32 al-
deias, que falam a língua tronco pano. Nessas aldeias tem lide-
rança, tem agente florestal, tem agente de saúde e professor.
Antigamente, nós vivíamos espalhados, caçando, cortando se-
através das pinturas.

ringa para produzir látex e fazendo roçado para os patrões se-


ringalistas. Antes, vivíamos do látex, mas hoje, estamos viven-
do com arte. A arte nos dá dinheiro para comprarmos sabão,
roupas e medicamentos, que nos ajudam a sobreviver. Agora
também somos agricultores e criamos animais domésticos,
como galinha, pato, gado, porco e ovelha. Nossas terras têm
114 mil hectares, mas esse território não cresce – quem cresce
é a nossa população. Entretanto, ainda temos nossos recursos
naturais preservados, porque aqui não tem madeireira, não
tem garimpeiro, nem fazendeiro.

Roberto Ibã, você costuma contar que foram os cantos e as histórias que
Romero você aprendeu com seu pai que despertaram a sua vontade de
pesquisá-los na universidade, e depois traduzi-los através das
imagens, do desenho, da pintura. Eu queria saber como você

134
passou da sua pesquisa, que gerou um livro sobre os cantos
Huni Kuin, para o mundo da arte e da pintura, que também é
atravessado pelos cantos e pelos rituais envolvendo o nixi pae,
que nós também conhecemos como ayahuasca.

Ibã Huni Quando eu entrei na universidade, eu fiquei pensando o que


Kuin eu iria fazer sobre os indígenas ali dentro, e decidi continuar
a pesquisa dos mais velhos sobre as músicas e a nossa língua.
Como eu já tinha a minha língua, eu queria continuar essa pes-
quisa, para que ela nunca mais acabasse, e pudesse ser passada
de geração em geração. E o que mais marca a nossa cultura é o
mito e a música, que falam aquilo que você não consegue falar.
Durante a pesquisa, eu fiz então um livro com todos os
cantos Huni Kuin, e distribuí por todas as regiões, para que
COSMOS aquilo que eu pesquisei não ficasse guardado como um segre-
do. Mas, como o livro estava escrito na minha língua, como eu
iria passar aqueles conhecimentos para os não indígenas? Foi
aí que eu resolvi desenhar as letras das músicas. Por exemplo,
um canto fala nai mapu yubukã, que era algo que muita gente não
sabia o que era. Então resolvi desenhar para todos entenderem:
nai é o céu, mapu é o pássaro e yubukã é a jiboia. E essas palavras
juntas fazem o som das cantorias da ayahuasca. Se você só ouve,
você não compreende, então foi por isso que resolvi desenhar
todas as músicas: para tornar o imaterial, material.

Roberto Muito bom, Ibã. E o nixi pae, que nós conhecemos como
Romero ayahuasca,1 também é uma fonte importante de sua criativi-
dade, porque é a partir da bebida e dos cantos que vocês têm
as dautibuya, as mirações ou visões que vocês depois tradu-
zem nas pinturas. Eu gostaria que você contasse um pouco
sobre esse processo de trabalho, quando você está pintando
ou desenhando.

Ibã Huni A ayahuasca se chama nixi pae: nixi é fio, e pae é encanto. Nós to-
Kuin mamos para curar, para limpar a energia, limpar do mau-olhado
e, para isso, é preciso ficar de dieta. As ervas da floresta ser-
vem para isso: cura a tonteira, cura o estresse, cura a depres-

1 A ayahuasca é uma bebida sagrada para os Huni Kuin, feita pela infusão
do Huni (Cipó, Banisteriopsis caapi) e a folhas de Kawa (Chacrona, Psychotria
viridis). Contam as histórias que essa medicina foi ensinada por uma jiboia
ancestral e seu uso remonta a tempos distantes onde os humanos, as
plantas e os seres encantados coexistiam.

136 137
são, e chama uma pessoa para ficar feliz. Quando você toma
ayahuasca, você começa a viajar, porque enquanto fazemos o
ritual, nós cantamos nossas músicas. Mas não é uma viagem
material, você viaja no pensamento, abrindo sua cabeça para
ver uma miração, a dautibuya. No início, nós cantamos uma
música que chama a luz da miração e da cura, e ela vai abrindo
tudo – ninguém segura mais! Depois você sente a força e, pela
miração, o que você quer descobrir você vai encontrar. Depois
da miração, você vai sentir a cura. E eu desenho todas essas
músicas e mirações: desenho a luz, o pássaro, o céu, a jiboia, o
peixe, a água, o vento, a floresta... eu desenho o que estou mi-
rando, enquanto estou escutando a música. Com esse ritual,
você vai viajar em vários lugares, só ouvindo. O sentimento
que nós pintamos é a cura, o sonho.
COSMOS Roberto E por falar nos desenhos e pinturas, txai, 2 eles são muito vivos,
Romero têm traços e cores fortes. Neles há muita gente, muitos bichos,
bichos que parecem gente, gente que parece bicho, e jiboias
passando e envolvendo a tela por todos os lados. Como essas
pinturas lhe ajudam a construir um caminho de conexão com
esses seres da floresta?

Ibã Huni Quando você começa a pintar, você sente que os bichos vão te
Kuin alimentando. E você sente forte, porque a água fica viva, a ji-
boia passa e o pássaro canta do seu lado. E tudo isso que você
sente pintando vem brilhando: um brilho e um movimento
infinitos, que nunca param. Todos esses traços que você vê é
uma conversa do espírito, na língua dele (a língua da jiboia). É
por isso que nossos desenhos são assim.

Roberto Ibã, em 2013 você criou o MAHKU, o coletivo de artistas huni


Romero kuin, que se tornou uma referência no campo das artes no Bra-
sil e no mundo. Os trabalhos do MAHKU já percorreram mui-
tas exposições em vários países. Como surgiu a ideia de criar o
MAHKU, e como tem sido esse caminho de um trabalho cole-
tivo com os artistas do grupo?

Ibã Huni Quando começo a dar aula de português, matemática ou ci-


Kuin ências, os alunos não querem. Mas quando é aula de desenho,

2 Txai é a forma com que um Huni Kuin se refere a seu cunhado,


significando também “amigo”.

138 139
todo mundo vem fazer. Um dia, eu pedi para os alunos pinta-
rem os animais que nós conhecemos, o jacaré, o tatu e o jabuti,
e os alunos desenharam tudo. Em 2013, juntei 14 alunos e pas-
samos em um edital, com um projeto de pintarmos os nossos
cantos. Começamos desenhando nai (céu), mapu (pássaro) e
yubukã (jiboia) e, no fim, fizemos 32 desenhos. Depois, eu cha-
mei os txai para criarem um site para nós, para divulgarmos o
trabalho para aqueles que não conheciam. Quando o trabalho
circulou, me perguntaram se eu tinha algum movimento. Eu
disse que só tinha a associação dos seringueiros e eles disse-
ram: “Mas vocês não são mais seringueiros, vocês são artistas.
Precisam criar outro nome”. Foi aí que começamos o movi-
mento do MAHKU.
Depois ficamos conhecidos em Paris, em São Paulo, em
COSMOS tudo quanto é lugar, e começamos a vender as pinturas para
manter a floresta em pé. Fazemos tela para comprarmos ter-
ra. Hoje nós estamos comprando terra e plantando ervas me-
dicinais e todas as outras riquezas da mata. Hoje, nós somos
MAHKU, não somos só Huni Kuin, não! A minha política é a
artística, não é política partidária.

Roberto Ibã, recentemente nós temos visto surgir vários artistas indí-
Romero genas recebendo destaque e reconhecimento nas artes, para
além das aldeias. Belo Horizonte recebeu em 2013 a exposição
Mira, que foi muito importante nesse processo e, recentemen-
te a Pinacoteca de São Paulo inaugurou sua primeira exposi-
ção indígena. Como você, que foi um dos que abriu esse cami-
nho, enxerga a importância da arte indígena aparecer nesses
espaços? Você acha que a arte pode ser um caminho para a vi-
sibilidade e a defesa dos modos de vida dos povos indígenas?

Ibã Huni Temos que abrir esse caminho, não só para indígena, mas para
Kuin todos os artistas. Este tempo está difícil, mas nós estamos nos
exprimindo, pedindo força de luz. A arte é a vida, txai, não estão
separadas, e nós estamos seguindo juntos. Não se faz nada so-

.
zinho, agora é fazer junto, para passarmos tudo para as novas
gerações. É isso, é assim que é a arte

140 141
Quem

Romero, a ambientalista e pesquisadora Carolina Levis


construiu a
Amazônia é uma floresta intocada e por isso deve ser

nossa floresta foi resultado da ação de povos que há

Amazônia. Em conversa com o antropólogo Roberto

nos conta sobre a importância de aprendermos com


revelam que toda a diversidade vegetal e animal de

os povos indígenas outras formas de uso, manejo e


milhares de anos vêm intervindo e domesticando a
preservada como tal. Entretanto, estudos recentes
Amazônia?
Ao longo de nossa vida, costumamos ouvir que a

Uma conversa entre


Roberto Romero e Carolina Levis

Roberto Para o bem e para o mal, muito tem se falado atualmente so-
Romero bre a Amazônia. Entretanto, sabemos que essas disputas nar-

conservação da vegetação nativa.


rativas em torno da região não são recentes e, inclusive, atu-
alizam muitos debates que alguns de nós gostaríamos que já
estivessem superados. Carolina, para começar nossa conversa,
eu gostaria, então, que você apresentasse o que é a Amazônia
e quais os efeitos da longa duração das atividades humanas na
composição da floresta tropical.

Carolina A Amazônia, na verdade, são muitas Amazônias. Se pensarmos


Levis em sua área, a Amazônia tem mais de 7 milhões de quilômetros
quadrados e abrange 60% do território brasileiro. Ela representa,
para o mundo, o maior bloco de floresta tropical bem conserva-
do, o que em termos globais significa que ela é fundamental para
regular o clima do planeta. Muito se fala, porém, da Amazônia
com relação à regulação e estabilização do clima, e se esquece,
por exemplo, que a Amazônia também é conhecida como um
dos principais centros de domesticação de plantas – um pro-
cesso que, inclusive, gerou os alimentos que temos hoje no dia
a dia. Foi na Amazônia que se originaram, há milhares de anos,
a mandioca, a pimenta murupi, a pupunha, o cacau e a castanha.
Os dados arqueológicos têm mostrado que os seres humanos
chegaram à Amazônia há pelo menos 12 mil anos e, desde a sua
chegada, há evidências de uso de muitas plantas da floresta.
Se pensarmos que há toda essa história milenar de ocu-
pação da Amazônia, quais seriam, então, os efeitos dessa in-

142
teração entre as pessoas e a floresta? Um dos efeitos nós cha- te uma base de dados com mais de 10 mil sítios arqueológicos
mamos de domesticação da floresta, que é um processo de mapeados na região amazônica, como os sítios de terra preta,
transformação pelas pessoas para tornar essa área mais produ- que na verdade eram as lixeiras dos povos indígenas que se
tiva e segura. Foi isso que os povos da floresta fizeram durante expandiram há 2.500 anos por toda a região. Esses grupos dei-
esses milênios: ela foi moldada pelos grupos que viviam ali, e xaram de ser nômades e passaram a viver de forma sedentária
que foram concentrando plantas e animais para suprir suas em muitos lugares na Amazônia, onde desenvolveram técnicas
necessidades. É por isso que, quando estudamos as florestas muito sofisticadas de gestão de resíduos que geraram esse solo,
na Amazônia, vemos que há antigas aldeias indígenas, há tam- um solo extremamente rico. Além disso, encontramos também
bém uma grande proporção de árvores frutíferas e medicinais. esses trabalhos de terra, chamados de geoglifos, que são anéis
Estamos falando de grandes extensões de açaizais e cacauais, escavados na terra de formato geométrico perfeito, às vezes
áreas com uma abundância de alimento, que estão associadas círculos, às vezes quadrados. Na verdade, esses geoglifos são a
a esse manejo milenar dos povos que vivem na Amazônia. prova de que os indígenas, antes da chegada dos portugueses
ao Brasil, eram grandes engenheiros, dominavam com precisão
Roberto Carolina, uma imagem muito antiga e até hoje muito evocada a geometria, e eram capazes de organizar muitas pessoas para
Romero é a de que a Floresta Amazônica seria um vazio demográfico. escavar e transportar toneladas de solo. Tudo isso indica que a
Nos anos 1970, inclusive, ficou muito conhecido aquele slogan Amazônia não era uma floresta intocada, mas uma região com
usado pela ditadura militar, de que a Amazônia era “uma terra uma história profunda, que envolve interações com centenas
sem homens para homens sem terra”. E nós sabemos os efeitos de povos, talvez milhares. E esse patrimônio cultural, esse co-
devastadores dessa concepção ainda muito enraizada no ima- nhecimento presente até hoje nos povos indígenas atuais, pre-
ginário nacional. Parece-me que o conjunto da sua pesquisa de- cisa ser reconhecido e conservado para as futuras gerações, por-
safia essa imagem da floresta enquanto uma terra intocada, vir- que ele traz soluções para muitas das questões que temos hoje.
gem ou despovoada. Você poderia nos contar mais sobre isso?
Roberto Eu acho fascinante todo esse outro panorama muito mais com-
Carolina Para pensarmos sobre essa imagem e esse slogan da terra sem Romero plexo que as pesquisas recentes revelam sobre a Amazônia e
Levis homens para homens sem terra, é importante resgatarmos um seus povos, com todas as suas interações com animais, plantas,
pouco mais da história da região para entendermos de onde minerais e espíritos. Pensando nisso, porém, eu me pergunto se
vem esse mito da natureza intocada. Esse mito está arraigado não há, talvez, uma ênfase demasiada humana nesses estudos,
no momento da chegada dos portugueses ao nosso territó- que acabam por colocar o humano e a ideia de domesticação
rio, mais de 500 anos atrás, junto com uma política colonial ainda à frente de um processo que parece muito resultado da in-
de abafar e exterminar os valores dos povos locais para poder teração de várias espécies. Eu gostaria de ouvi-la mais sobre es-
colonizar com outros valores o continente americano. Nesse sas interações e a sua importância na composição das florestas.
evento, a população nativa foi completamente dizimada: esti-
ma-se que 95% da população morreu nos primeiros séculos de Carolina Essa perspectiva indígena é muito interessante para a nossa
conquista europeia das Américas. Isso aconteceu entre 1500 e Levis conversa, porque inclusive ela se comunica muito com a pers-
1700, e quando os naturalistas, em 1800 e 1900, foram descre- pectiva das ciências biológicas. Os humanos, na verdade, são
ver a biodiversidade da região, eles escreveram sobre uma flo- apenas mais um elo nessa grande teia da vida, formada por
resta exuberante, sem cultura e sem arte, muito diferente do muitas espécies de animais, plantas, vírus e bactérias. Muitos
que eles tinham nas paisagens europeias. Os grupos indígenas pensam que são apenas os humanos que domesticam as plan-
que restaram de todo esse colapso demográfico eram conside- tas ou outros seres, mas precisamos lembrar que tanto os hu-
rados primitivos – e até hoje essas ideias se perpetuam. manos quanto os outros seres envolvidos nesse processo se
Mas as pesquisas arqueológicas recentes mostram que domesticam juntos. O que as plantas cultivadas estão fazen-
essa ideia da natureza intocada é uma falácia. Temos atualmen- do conosco? Será que não estamos também trabalhando para

144 145
manter essas plantas? Não é possível, portanto, distinguir essa
direção: todos estão evoluindo juntos. Nós estamos modifican-
do as plantas, assim como as plantas nos estão modificando.

E esse patrimônio cultural, esse conhecimento presente


Se pensarmos na floresta, por exemplo, veremos que os
humanos chegaram muito recentemente a essa teia de intera-

reconhecido e conservado para as futuras gerações,


uma região com uma história profunda, que envolve
interações com centenas de povos, talvez milhares. ções que se dão ali. A floresta já vem evoluindo há milhões de

porque ele traz soluções para muitas das questões


anos e os mamíferos (como, por exemplo, a anta e a cutia) já
estavam há muito tempo interagindo com várias frutas na flo-
“A Amazônia não era uma floresta intocada, mas

até hoje nos povos indígenas atuais, precisa ser resta, selecionando-as e ajudando-as a evoluir. Não é por acaso
que, quando olhamos para a dispersão das plantas na floresta,
vemos que elas dependem dos animais, dos mamíferos que
carregam as sementes pela região. Acho que, cada vez mais, te-
mos que ouvir e respeitar esses outros seres vivos, para poder-
mos criar uma chance de conviver com saúde no planeta. Essa
ideia de dominação humana no planeta não tem nos levado
para um caminho muito sustentável, mas para um futuro de
grandes crises. Dentro dessa teia da vida, isso significa que ire-
mos transformar nosso mundo em um mundo muito mais ho-
mogêneo, com menos possibilidades de interação, aprendiza-
gem e evolução com esses outros seres. Acho que temos muito
o que aprender com essa perspectiva indígena de respeito.

Roberto Perfeito, Carolina. E aproveitando a deixa, não há nenhuma dú-


Romero vida na comunidade científica de que o planeta está passando
por uma emergência climática provocada pela ação humana –
ou pelo menos por uma significativa parcela da humanidade
responsável pela queima em larga escala de combustíveis fós-
seis. Os geólogos decidiram, inclusive, nomear essa nova época
como Antropoceno, tamanha é a marca deixada pela humani-
dade desde a sua aparição no planeta. Segundo pesquisadores,
se o ritmo do desmatamento na Amazônia continuar como
que temos hoje.”

está, em breve ela atingirá um ponto de não retorno, e passará


a se savanizar. Ao mesmo tempo, pesquisas também apontam
que o reflorestamento de 30% do planeta seria suficiente para
frear o aquecimento global e impedir um colapso ecológico. As
suas pesquisas tocam nessas questões de diversos modos, e eu
gostaria que você falasse um pouco sobre as consequências de
uma savanização da Amazônia para a vida no planeta.

Carolina Sim, estamos vivendo hoje o Antropoceno, e isso significa que


Levis estamos esgotando os ecossistemas do planeta. Como vamos
viver sem eles no futuro? Ao meu ver, já perdemos tanto que

146 147
não podemos perder mais, só nos resta conservar. O primeiro Roberto Pensando agora nas possibilidades de reverter todo esse pro-
passo seria conservar o que ainda existe, e restaurar parte do Romero cesso, e pensando no que esses povos da Amazônia fizeram
que foi perdido, se possível. Não basta, entretanto, restaurar os durante séculos, eu acho que a sua pesquisa aponta para um
30% das florestas perdidas se continuarmos emitindo gases es- caminho de pensar o meio ambiente sem dissociá-lo da socie-
tufa nesta proporção, exponencialmente. Precisamos reduzir dade, ou seja, uma preocupação legitimamente socioambien-
as emissões e os altos padrões de consumo – se não o fizermos, tal. Eu acho que, nesse sentido, pensar maneiras de reversão
não vai ser possível frear essa mudança climática. Se o planeta desse processo deve passar inevitavelmente por um outro re-
continuar aquecendo, vamos pôr em risco elementos impor- lacionamento com esses povos detentores dessas tecnologias
tantes que estabilizam o clima, e um deles é a Amazônia. e que vivem nessas regiões, porque eles são os grandes produ-
Se o desmatamento continuar crescendo e o clima aque- tores de biodiversidade. Você pode falar um pouco sobre isso?
cendo, há chances de chegarmos nesse ponto de não retorno,
que vai mudar drasticamente a paisagem da Amazônia. Como Carolina Sem dúvidas, essa interação íntima que os povos da floresta
um ponto sem retorno é uma mudança bruta, o que teremos Levis têm com a biodiversidade, o conhecimento das técnicas e as fer-
seria o desaparecimento de parte das florestas, que iriam se ramentas para lidar com isso, é uma das chaves para um novo
savanizar. Elas se transformariam em um ambiente parecido futuro, porque é um conhecimento milenar que foi passado de
com as savanas, mas uma savana empobrecida, degradada, geração em geração sobre a maior riqueza que o Brasil tem, que
com poucas espécies. E quais seriam as consequências desse é a biodiversidade. Podemos começar pensando que a biodi-
cenário de expansão das áreas degradadas pela Amazônia? Po- versidade é também sóciobiodiversidade, porque várias dessas
demos pensar, primeiro, em uma mudança no regime de chu- plantas, como eu disse, passaram por um processo de relação
vas, que vai acarretar mais seca do que já estamos vivendo e vai com os humanos. Nesse processo, você tem uma geração de no-
comprometer as áreas agrícolas. Outro processo são os incên- vas plantas com, por exemplo, frutos maiores, mais interessan-
dios devastadores. Se pensarmos no capim invasor, que é mui- tes, com qualidades nutricionais melhores. Esse processo gerou
to inflamável, se expandindo pela Amazônia, espalhando fogo uma variedade enorme de plantas que não teríamos no nosso
rapidamente junto com as secas prolongadas, isso vai colocar cotidiano se não fosse o trabalho milenar desses povos.
em risco muitas espécies de animais – inclusive a nossa saúde. Outra questão importante é o fato desses povos estarem
Há também um aumento de casos de problemas respiratórios adaptados ao ambiente florestal e saberem conviver com o
por conta da fumaça, o que, com a pandemia de Covid-19, fica outro, algo de que nos esquecemos na nossa vida urbana, que
bem pior. É importante citar também a perda da biodiversi- está cheia de distrações e compromissos. Essa conexão com o
dade. O Brasil é um país que detém 10% da biodiversidade do que chamamos de natureza ainda está viva nos modos de vida
planeta, e poderia aproveitar muito. Recentemente, fizemos dessas populações, e podem inspirar não só nós aqui no Brasil,
um levantamento do número de espécies com utilidade hu- mas todo o mundo a resgatar o bem-estar. Alguns estudos di-
mana na Amazônia e catalogamos pelo menos 4.000 espécies, zem que as sociedades urbanas estão sentindo um déficit de
a maioria com fins medicinais. Isso significa que a floresta está natureza, que pode levar até a problemas de saúde, falta de ale-
repleta de remédios que podem ser perdidos mesmo antes da gria e depressão. E o que as populações tradicionais têm mui-
ciência conhecê-los. Além de tudo isso, junto ao processo de to a nos ensinar é como podemos resgatar, então, a alegria de
desmatamento há uma degradação do equilíbrio das intera- viver. Precisamos resgatar o que muitos indígenas chamam de
ções entre os seres vivos. O que fazemos leva várias espécies “Bem Viver”, que é essa convivência com a natureza que nos
que estavam existindo em equilíbrio (inclusive mamíferos cerca, que faz parte de nós, que, inclusive, está dentro de nós
que concentram uma grande diversidade de vírus como o co- (como as bactérias e os vírus), então, eu vejo um grande valor
ronavírus) a se desequilibrar e a se aproximar dos humanos. de inspiração que os povos da Amazônia têm a nos oferecer –
Isso leva a uma maior chance de surgirem vírus cada vez mais
mortais, que se aproximam cada vez mais de nós. .
e que precisamos reconhecer urgentemente para termos um
outro futuro neste planeta

148 149
NATUREZA
150 Ouvir a linguagem
do mundo
Francy Baniwa

156 O mito da
natureza inesgotável
Uma conversa entre
Roberto Romero e José Augusto Pádua

166 O mundo
sem nós
Uma conversa entre
Roberto Romero e Déborah Danowski

174 Aprender com


a natureza
Uma conversa entre
Roberto Romero e Liça Pataxoop

150
Da terra, os povos nascem. O povo baniwa nasceu da terra, e
até hoje existe esse lugar chamado de Hiipana, o “umbigo do
mundo”. Nesse lugar, que é uma cachoeira, tem uma vagina de
pedra de onde nasceu a humanidade – mais especificamente
o povo baniwa e seus clãs. Foi a partir dali que nosso povo se
espalhou para lugares distantes em diversas partes do mundo.
Por nascermos da terra, nós nos relacionamos com ela
como sendo nossa mãe. Qualquer mãe cuida dos filhos desde
o nascimento, cuida do crescimento, cuida da vida adulta, cui-
da até mesmo da velhice. Por isso, temos uma relação de mui-
to respeito com a terra – os que não têm mais esse respeito é
porque aprenderam com pessoas estrangeiras que chegaram
LINGUAGEM
aqui no Brasil, pois isto não é da nossa cultura nem da nossa
tradição milenar.
DO MUNDO Nós não caímos do céu, fomos tirados de um buraco, de
uma vagina, de uma pedra, da terra, do rio. Está no nosso san-
gue, na nossa alma, nos benzimentos. Nós somos floresta, e
sabemos da importância de nosso propósito de cuidar do lu-
gar onde estamos, e por isso sempre estamos em contato com
a terra, as plantas e os animais. Aqueles que criaram o mundo
o deixaram assim para continuarmos, mostrando dois cami-
nhos (o caminho certo e o caminho errado), para ver se cada
OUVIR A

um de nós tem uma cabeça boa para pensar. Nós escolhemos


o caminho certo, aceitando o desafio de sermos guardiões des-
te mundo, desta sabedoria, e de sempre afirmar essa conexão
com a floresta. Eu não me vejo – e nem meus parentes – sem
esse lugar, sem esse território.
Eu vivo na Terra Indígena Alto Rio Negro, no município
de São Gabriel da Cachoeira, na divisa entre Brasil, Colômbia
e Venezuela. Nasci, cresci e continuo vivendo na comunidade
Francy Baniwa

indígena, apesar de ter experimentado as escolas e os métodos


de ensino dos não indígenas. Dentro de uma escola indígena,
os professores são todos indígenas, conhecedores daquele
território, daquele mundo e daquelas explicações. Nas nossas
escolas, nós também estudamos geografia, ciências e história,
mas os professores, além de nos passarem o conhecimento
ocidental que está nos livros, trazem o olhar para o contexto
das aldeias. Nós estudamos a história do mundo, mas também
as histórias de origem que os mais velhos nos contam; estu-
damos relevo, mas também aprendemos sobre os limites do
território ancestral; aprendemos matemática, mas a partir dos
trançados das cestarias.

152
Estar nas escolas dos brancos, por sua vez, é desafiador, os filhos ficam embaixo das bananeiras. No meio desses pro-
pois você vê que o mundo é muito mais complexo e o con- cessos do dia a dia, nós vamos brincando, observando e apren-
teúdo muda totalmente. Quando eu cursei Sociologia, eu me dendo as técnicas, até chegar o momento de nós mesmos fa-
lembro de ler os grandes filósofos e comentar com o meu pai, zermos tudo isso.
maravilhada, sobre como eles estavam pensando tudo aquilo. Os aprendizados da minha vida foram todos dessa for-
Meu pai, então, dizia: “Eles pensam assim porque são gran- ma, e eu sempre digo que ser uma criança indígena e crescer
des pensadores, mas nós também somos, porque também já em uma comunidade é um privilégio, porque o ensinamento
pensávamos dessa forma há muito tempo.” Transitar entre da natureza se dá o tempo inteiro: brincando, mergulhando no
mundos através do aprendizado é desafiador, mas também rio, comendo, aprendendo as técnicas de cortar e salgar o pei-
nos proporciona uma troca riquíssima entre os autores oci- xe ou de compartilhar a caça. Essas experiências nós só temos
dentais e os conhecedores indígenas – porque nós também porque as colocamos em prática todos os dias. Nós aprende-
somos grandes filósofos. mos e fazemos um misto de coisas ao mesmo tempo, sempre
O nosso mundo indígena é uma biblioteca viva. É um relacionadas à floresta, ao rio e aos igarapés, o que nos faz pe-
mundo tão vivo que você não precisa duvidar para ter uma gar contato com nosso território. Parece até que nosso mundo
resposta, precisa apenas respeitá-lo do jeito que ele é. A flo- está em torno da floresta, porque nós dependemos dela para
resta é nossa mãe; uma montanha é nossa avó; um gafanhoto, ter nosso sustento. Entretanto, nós precisamos cuidar dela
em outro mundo, é o nosso avô pajé. Todos os peixes são hu- para que ela continue a nos oferecer frutas, remédios e energia
manos em outro mundo, e um galho de uma árvore pode se para a saúde mental, espiritual e física.
transformar se você fizer algo, porque ele é um ser. Aquilo que É impressionante tudo o que eu aprendi na minha vida
vocês, brancos, veem como coisas, nós vemos como seres vi- com a floresta e com os mais velhos. Tem pessoas que vão para
vos que podem reagir em determinados momentos. Todos os a cidade e, quando retornam, já não vão para a roça, já não co-
dias aprendemos algo com esses seres, e é por isso que preci- mem certos tipos de peixe, começam a querer ser aquilo que
samos conhecê-los muito bem. A floresta oferece muitos en- não são. Eu tenho orgulho em ser doutora, mas também tenho
sinamentos e descobertas, e precisamos sempre estar atentos orgulho de saber fazer beijú, farinha, ralar mandioca, capinar a
à sua linguagem. Ela existe para mostrar a importância dela roça e plantar com a minha mãe. Sou a prova viva de que nós
para as pessoas e, se você não a respeitar, ela reagirá com mui- não conseguimos ficar sem nosso peixe, nosso açaí e nosso
ta força. Ela se vinga, mas também te protege; ela se oferece, beijú. Posso ficar dez anos longe da aldeia, mas esses aprendi-
mas você precisa cuidar dela. Nós não conseguimos funcio- zados eu vou levar para o resto da vida, independentemente
nar sozinhos, dependemos de todos esses seres da floresta do lugar onde eu estiver. Sou apaixonada pela floresta e pela
– assim como eles dependem de nós. Estamos em constante roça, porque ali tem uma variedade enorme de manivas, as
conexão: nós nos vemos como um só corpo, nos vemos como flores são diversas, as folhas são diferentes, as raízes também.
floresta, nos vemos como lugares sagrados, nos vemos como Temos vários tipos de pimenta, cana, batatas e bananas. É um
animais em outros mundos. mundo muito rico de magia, uma verdadeira dádiva.
Neste nosso mundo de relação constante com a flores- Assim como eu transitei entre mundos para conhecer
ta, com os rios, com os igarapés e com as árvores, nós não vive- os saberes ocidentais, acho que as educadoras e os educado-
mos apenas de um aprendizado, mas de vários aprendizados, res não indígenas precisam estar abertos para conhecer esses
dentro e fora dos muros da escola. Nossas mães são donas de mundos outros das comunidades indígenas. O Brasil tem mui-
roças e nossos pais são caçadores e pescadores. Desde peque- tos povos diferentes, e as crianças precisam aprender que exis-
nos, já nascemos aprendendo a caçar, a capinar, a fazer beijú tem esses outros mundos, que existem outros conhecimentos,
e a plantar na roça. As crianças já vão acompanhando os pais que existe outro lugar, que existe essa riqueza toda ao redor de
nas trilhas, de dentro do waturá (o cesto onde eles carregam algumas comunidades indígenas. Os professores precisam dar
mandioca) e, enquanto eles capinam e arrancam mandioca, abertura para as crianças pesquisarem, conversarem, ouvirem

154 155
e aprenderem sobre o cotidiano desses povos. Precisam saber
da importância dessa relação, porque isso vai motivá-las a ter
curiosidade e abertura de aprender sobre esses outros mun-
dos – e de sentir a presença da natureza, conhecer a linguagem
da mata, saber da importância de ter a floresta em pé e os rios
limpos, porque isso fortalece a todos nós.
Quanto mais os professores estiverem abertos a apren-
der conosco, as crianças estarão em boas mãos, porque os mun-
dos indígenas têm muito a ensinar sobre o respeito, o cuidado
e a valorização das roças. Assim como fazem oficinas de arte,

você aprende com


por que não organizar oficinas sobre os tipos de armadilhas
De que maneira que usamos para caçar? Por que não nos convidar para com-
partilharmos nas escolas as narrativas dos mais velhos, as téc-
nicas de pesca, os filmes e as fotografias que produzimos? Os

seu entorno?
alunos e as alunas precisam sentir que existem esses outros
mundos, precisam aprender a gostar desses outros modos de
vida em que não existe teoria, mas sim uma prática. Precisam
saber que eles podem contar com a natureza, sentir a presen-
ça dela, e que, para isso, é necessário respeitar e saber ouvir a
linguagem do mundo. A natureza pode ouvir o pedido de cada
aluno e de cada professor, porque ela é um ser presente, vivo,
capaz de sentir as dores e as alegrias de cada pessoa. Convido
a todas e todos a conhecerem o mundo dessa biblioteca viva, e
a abraçarem a causa indígena que tem muito a ensinar e a con-
tribuir com a formação das crianças. Porque nós, pensadores

.
indígenas, com nossas experiências, estamos aqui para contri-
buir e compartilhar aquilo que sabemos

156 157
da invasão portuguesa? Nesta conversa conduzida pelo O mito da
natureza
Você já imaginou como era a paisagem no Brasil antes

antropólogo Roberto Romero, o historiador ambiental

aparentava ser inesgotável se mostra hoje ameaçado,

pensarmos e fabularmos novas histórias sobre nossa


em 1500 e que pareciam não ter fim. Mas aquilo que

e saber mais sobre essa trajetória é um bom jeito de


José Augusto Pádua nos conduz a um passeio pelas
abundantes matas que ocupavam nosso território
inesgotável
Uma conversa entre
Roberto Romero e José Augusto Pádua

Roberto Para começar nossa conversa, José Augusto, gostaria de lhe


Romero perguntar qual é a história por trás dessa palavra “natureza”,
que por si só é uma grande fabulação que criamos?

José Se nós examinarmos bem, “natureza” é uma palavra pequena,


Augusto em quatro sílabas, que dá conta do mundo e do universo. Ela
Pádua unifica a nossa experiência no mundo. Nós podemos olhar uma
nebulosa, uma galáxia e uma pulga e, se não houver um concei-
to que unifique, é muito difícil nós construirmos um entendi-
mento do mundo. Na tradição grega, quem definiu muito bem o
relação com a natureza.

conceito de natureza foi o filósofo Aristóteles, dizendo que na-


tureza é aquilo que existe por si mesmo e aquilo que possui em
si mesmo o princípio de seu movimento. Mas essa é uma defini-
ção que vem muito a partir do ser humano (dizemos que é uma
definição antropocêntrica, centrada no ser humano). Quando o
observador humano olha o mundo, ele vê que tem muitas coi-
sas que não são criações suas, o que significa que todas essas
coisas existem por si mesmas. E todas essas coisas possuem em
si mesmas o princípio do seu movimento, ou seja, um corpo de
algum animal, a rotação da Terra, a passagem das estações, não
somos nós que movimentamos e que criamos esse dinamismo.
A palavra “natureza” é, então, de uma abrangência e ele-
gância impressionantes, porque com ela você consegue falar
sobre todas as cem bilhões de galáxias que devem existir no
universo, que existem por si mesmas e possuem em si mes-
mas o princípio de seu movimento. Mas nosso corpo também

158
existe por si mesmo e possui em si mesmo o princípio de seu havia uma experiência do mundo tropical. Quando eles che-
movimento. Nós não mandamos nosso coração bater, e nem gam aqui no Brasil, entre os séculos 16 e 17, eles têm contato
nosso pulmão respirar. Esse movimento vem da natureza. É com uma natureza muito diferente, que é a natureza da flores-
por isso que eu digo que esse é um conceito tão poderoso e tão ta tropical. Eles já tinham tido um pouco dessa experiência na
frágil ao mesmo tempo, porque ele dá conta de muitas coisas, África, mas aqui ela veio com muita força, porque eram mais
ele ajuda a entender muitas coisas, mas ao mesmo tempo é es- de 138 milhões de hectares de floresta e de Mata Atlântica
candalosamente parcial. contínua. Quando você olhava, você via aquela floresta oni-
Quando nós temos uma visão mais ampla da ecologia do presente, incluindo os manguezais, as restingas, etc. E a ideia
planeta, percebemos que esse é um conceito que parte de um que eles tinham de paraíso, de perfeição, de mundo civilizado
desejo do ser humano de afirmar que o que nós fazemos não e abençoado por Deus era uma ideia muito mediterrânica, não
é natureza e todo o resto é natureza. Existe um filósofo inglês era uma ideia de abundância de floresta. Era uma ideia de bons
chamado C. S. Lewis que, em uma frase, destrói o sentido desse ares, águas limpas, uma certa vegetação de menor porte do que
conceito: “uma formiga, se desenvolvesse um pensamento filo- a floresta tropical. E quando eles chegam à floresta tropical,
sófico, diria que o formigueiro não é natureza, mas que a cidade, eles se espantam muito porque, ao mesmo tempo em que eles
feita pelos homens, é natureza”. Se acompanharmos a inteligên- viam abundância de vegetação e de vida animal (no caso es-
cia e a sutileza dessa afirmação, percebemos que ela desmonta pecífico do litoral onde começou a colonização do Brasil), eles
toda a pretensão e a arrogância antropocêntrica que está por não encontraram aqui coisas que eles encontraram no México
trás desse conceito de natureza. Porque se nós simplesmente ou no Peru, como por exemplo cidades de pedra, que davam
dizemos que aquilo que existe por si mesmo, que não é criação sentido à civilização. E a própria natureza de regiões como o
nossa, é natureza, então uma formiga poderia dizer a mesma México e o Peru não era a natureza de floresta tropical. Isso
coisa do ponto de vista dela. Ela olha um avião supersônico e diz dava uma sensação de selvageria, de medo, e gerava um certo
que “aquilo ali é natureza, pois não fui eu que criei. Mas o for- pavor. A floresta tropical é muito escura por dentro, cheia de
migueiro, criado por mim, não é natureza”. Ou seja, nós somos cipós e cheia de insetos.
um dos frutos possíveis da história da evolução da vida neste Por outro lado, eles também se depararam com aquelas
planeta. Tanto nós quanto as formigas e as baleias construímos fontes de águas limpas e puras da Mata Atlântica, e se interes-
o mundo através dos materiais que estão presentes no planeta. saram muito por algumas espécies de vegetais e de animais.
Cada um constrói o mundo e tudo isso faz parte desse grande Eu diria que essa ideia de paraíso está mais ligada ao maracujá,
movimento da vida, que podemos considerar no sentido mais ao caju, ao abacaxi, ao pau-brasil. Alguns elementos da nature-
amplo, menos antropocêntrico da ideia de natureza. za se destacavam e traziam essa ideia de uma coisa paradisía-
ca, de um sabor paradisíaco. Mas a selva em si foi vista de uma
Roberto E um dos momentos históricos que mais excitou essa imagi- forma diferente: talvez possamos argumentar historicamente
Romero nação ocidental sobre a ideia de “natureza” talvez tenha sido que eles valorizavam mais algumas árvores e alguns animais
a chegada dos europeus aqui nas Américas. É algo que nos do que a floresta em si. A floresta em si eles chegaram até a de-
atinge desde cedo na escola, quando estudamos os livros de preciar e a considerar como uma coisa inútil.
história e vemos aquelas ilustrações fantásticas dessa nature-
za exuberante que os europeus encontraram aqui. Como esse Roberto Esse impulso de tirar a floresta para colocar cana à vontade
contato com as Américas ajudou a construir esse imaginário Romero tinha muito a ver com uma fabulação de que aqui a natureza
de natureza que herdamos até hoje? nunca iria acabar, não é? Fico lembrando da famosa carta do
Pero Vaz de Caminha, que foi um dos primeiros documentos
José Aqueles que chamamos de europeus, ou seja, as sociedades no da chegada dos portugueses aqui, que falava justamente da
Augusto Mediterrâneo e ao norte dele, tinham ao longo da história uma abundância de mata e água no território todo. Ele falava o se-
Pádua experiência praticamente restrita ao mundo temperado: não guinte em um trecho da carta: “Águas são muitas; infindas. E

160 161
em tal maneira é graciosa, que, querendo-a aproveitar, dar-se-á
nela tudo, por bem das águas que tem”. Eu queria, então, José
Augusto, que você contasse um pouco sobre como se deu a
construção dessa fabulação de que a nossa natureza é infinita,

como eles foram concebendo e materializando formas


e como esse mito foi se atualizando ao longo da nossa história.

relacionaram com a biodiversidade desse território e


marcou profundamente toda a maneira como eles se José Quando os europeus chegam, eles têm o choque da abundância:
“Quando os europeus chegam, eles têm o choque

Augusto é muita terra, é muita água, são florestas infindas. Essa imagem
Pádua da abundância marcou profundamente toda a maneira como
da abundância: é muita terra, é muita água, são
florestas infindas. Essa imagem da abundância

eles se relacionaram com a biodiversidade desse território e


como eles foram concebendo e materializando formas de eco-
nomia e exploração. Quando eles descobrem, por exemplo, na-
quela diversidade de árvores da Mata Atlântica, uma árvore com
interesse econômico, que era prima biológica de outra árvore
que eles conheciam na Ásia e que dava essa tintura que tinha va-
lor comercial, eles ficaram impressionados. Queriam levar para a
Europa quantas madeiras de pau-brasil fossem possíveis.
Não havia uma sensação de cortar com cuidado pensan-
do na possibilidade de não ter muito. A sensação é de cortar por-
que sempre vai ter a quantidade de pau-brasil desejada nessa
abundância de floresta. Mas, quando eles descobrem que essas
terras tropicais, com a Mata Atlântica, seriam muito boas para a
cana-de-açúcar (que eles já plantavam nas ilhas do Atlântico, na
de economia e exploração.”

Ilha da Madeira), eles começam a pensar não mais na abundân-


cia da floresta enquanto tal, mas na abundância da floresta para
ser queimada. Eles tinham aquela sensação de poder queimar e
plantar o que quisessem no lugar, pois mesmo que a terra ficas-
se gasta, envelhecida e estragada (ou cansada como eles diziam),
supostamente sempre haveria mais floresta para queimar.
Apesar de eles terem a experiência de conservação de so-
los, a documentação mostra essa sensação de uma não necessi-
dade de conservar. “Eu queimo a floresta, as cinzas da floresta
alimentam os solos durante alguns anos e depois que os solos
estragam, eu queimo mais e vou ter um tempo infinito para po-
der queimar esse oceano de florestas aqui”. Esse mito da nature-
za inesgotável não aparece só no início, ali no século 16, quando
eles se encontram com a Mata Atlântica. Ele aparece em toda
a história do Brasil, e até hoje cria uma ilusão de que nós não
precisamos cuidar bem do território, porque a abundância de
recursos é tão grande que não há necessidade. Até hoje muita
gente ainda tem essa visão, de olhar a Floresta Amazônica como
ilimitada, que pode destruir porque vai ter sempre abundância

162 163
de recursos. Mas hoje isso é uma grande ilusão e o estudo da his- Já os bois, eles foram um instrumento de conquista colo-
tória ambiental mostra isso. Porque aquela Mata Atlântica que nial, e os europeus sabiam disso. Eles sabiam que os bois eram
parecia um oceano sem fim, hoje está fragmentada e reduzida bichos fortes, resistentes e grandes que procuravam pasto em
a 13% da cobertura que eles encontraram. Grande parte do que qualquer lugar onde tivessem ervas. E eles se reproduziam,
era aquela Mata Atlântica belíssima e abundante hoje são terras cresciam e expandiam por si mesmos. Quando chega em 1700,
estragadas, erodidas, cheias de voçoroca, de pecuária. Ou seja, alguns documentos mostram que deviam já existir mais de 3
aquele mito da natureza inesgotável que eles tinham sobre a milhões de cabeças de gado bovino na Bahia e em Pernambu-
Mata Atlântica, em 500 anos foi esgotado na prática. co. E em toda a América portuguesa existiam cerca de 300 mil
pessoas nas áreas de domínio colonial. Tinha muito mais gado
Roberto E é bom lembrarmos que os impactos no nosso território não bovino do que seres humanos. Então eu pergunto: quem colo-
Romero vieram só das queimadas para plantação de cana. Os portugue- nizou o território? Os portugueses ou os bois? O gado bovino
ses também trouxeram com eles uma variedade de espécies foi um tremendo instrumento de conquista. Muitos grupos
de plantas, galinhas, porcos, bois, vírus, bactérias, só pra citar indígenas se afastavam quando o gado bovino chegava. Em
alguns. Como esses agentes não humanos também contribuí- relação às doenças, temos que considerar que elas foram um
ram para essa história, José Augusto? fator fundamental para a conquista. Hoje em dia calculamos
que, da população que existia nessa região do planeta, nas atu-
José Quando se estuda a formação colonial do Brasil e a história da ais Américas deve ter sobrado em torno de 10%. Quer dizer,
Augusto construção da América portuguesa, é muito forte a imagem da houve uma mortandade de 90% da população nativa indíge-
Pádua transposição de formas sociais, de religião, de manifestações do na nessas regiões pela violência, pelas guerras, mas principal-
catolicismo, de formas de dominação, de instituições como a mente pelo choque epidemiológico.
escravidão e formas de governo. Pensamos muito nessas trans-
posições ao nível do humano, mas esse processo de colonização Roberto É fascinante e triste ao mesmo tempo falar dessas histórias
tem uma dimensão que vai muito além do ser humano. Exis- Romero não contadas da invasão biológica que produz toda essa des-
tiram aqui cavalos primitivos, elefantes primitivos, preguiças truição, e que recentemente vem, inclusive, sendo muito dis-
gigantes, mas há milênios eles entraram em extinção, por uma cutida pelo próprio movimento ambientalista. Muita gente
série de fatores que não tenho como resumir aqui. Mas quando acha que esses movimentos surgiram ali nas décadas de 1960 e
os portugueses chegam aqui, no que hoje é o Brasil, eles encon- 1970, mas podemos dizer que essas preocupações ambientais
tram muitos insetos, muitos primatas, muitos pássaros, além de também estiveram presentes em outros momentos da nossa
pacas e tatus – apenas animais pequenos. Não havia animais de história. Para trazer um exemplo, muitos veem hoje a Floresta
médio e grande portes, como os bois e os cavalos. da Tijuca, no Rio de Janeiro, e imaginam que ela estava ali des-
Naturalmente, eles carregam uma vida com eles, eles tra- de sempre, sem saber que aquela floresta é fruto de um proje-
zem o que o historiador ambiental Alfred Crosby chamou de to ambicioso de reflorestamento tocado a partir de 1861, após
uma “biota portátil”, uma espécie de arca de Noé, e introduzem uma grave crise de abastecimento de água na cidade.
aqui uma quantidade de plantas e animais que vão modificar
profundamente a ecologia dessas paisagens. Eu imagino o que José Todas essas disputas, conflitos, ideias e debates em torno do
seria esse território há 600 anos atrás sem bois, sem porcos, sem Augusto mundo da vida, dessa explosão dos problemas da vida na cena
galinhas, sem búfalos, sem cavalos, sem gripe, sem varíola, sem Pádua política envolvendo a questão das mudanças climáticas, do pe-
caxumba, sem catapora, sem cana-de-açúcar e sem coqueiros. rigo do inverno nuclear, da poluição, tudo isso veio crescendo
Nós pensamos no coqueiro da Bahia, mas o coqueiro foi trazi- justamente nas décadas de 1960 e 1970. E costumávamos usar
do. Não havia cocos, café, mangas e bananas. Há uma discussão esse registro, a ideia de que era uma questão nova que estava
se haveria uma variedade de banana nativa, mas quase todas as surgindo naquele momento, fruto da civilização urbana in-
espécies de banana que usamos aqui foram introduzidas. dustrial e da globalização. Mas quando começa a investigação

164 165
histórica, você vai vendo nos arquivos e documentos que essa sas matas, nessas amenas selvas que o cultivador do Brasil, com
discussão era muito forte e quente no passado. Mas qual era a um machado em uma mão e o tição em outra, ameaça de total
grande diferença? Era uma discussão entre intelectuais, entre incêndio e desolação. Uma agricultura bárbara, ao mesmo tem-
homens de ciência, entre alguns políticos e, no máximo, entre al- po muito dispendiosa, tem sido a causa desse geral abrasamen-
guns fazendeiros. Mas essa discussão não chegava à sociedade, to. O agricultor olha ao redor de si para duas ou mais léguas de
na opinião pública, nos jornais, nos clubes. Isso só vai acontecer matas como para um nada”. Olha que diagnóstico! Em 1799
para valer a partir de 1960 e 1970. A partir dessa época nasce a ele denunciava essa situação, em que o agricultor desprezava
discussão pública, nasce um movimento social em torno disso. a floresta e já estava queimando, transformando em cinzas e já
Na diplomacia, o assunto fica quente: temos a Conferência de olhando ao longe o horizonte para levar a destruição a outras
Estocolmo, em 1972, a Conferência do Rio de Janeiro, em 1992 partes da mata. Mas, ao mesmo tempo que eles criticavam a
e, na política, os Estados criam órgãos ambientais. devastação, eles apontavam caminhos alternativos. Eles se
No meu livro Um sopro de destruição, o período que eu es- perguntavam como seria possível cortar a madeira de um jeito
tudo é do final do 18 ao final do 19, e observo que nessa época mais cuidadoso, que poupasse as árvores e as florestas. E den-
a discussão era essencialmente acadêmica. Os cientistas escre- tro desses questionamentos, eles começam a falar, em meados
viam, debatiam com uma lucidez e até com um tom apocalíp- do século 19, na necessidade de reflorestar. O caso da Tijuca é
tico, de preocupação com o que estava acontecendo, mas que um dos poucos em que eles conseguiram passar da teoria à prá-
não chegava à sociedade civil, que era muito mais fechada e tica. Mas por que eles conseguiram isso? Porque havia um pro-
simples. Havia os escravizados, os indígenas, os pobres e livres, blema concreto que era a falta de água. O Rio de Janeiro, que era
os fazendeiros e os grandes comerciantes. Os fazendeiros, que a capital do país, recebia água dos pequenos rios que desciam
poderiam estar mais interessados nessa discussão (preocupa- das montanhas. E, como começa a haver um desflorestamen-
dos com a sustentabilidade de suas próprias propriedades), to lá em cima para produzir café e carvão vegetal, começa tam-
tinham pouquíssimo interesse. Raramente encontramos na bém a faltar água nos chafarizes aqui embaixo. O governo local
documentação um ou outro fazendeiro que se pergunta como percebe que tem um problema, e esses pesquisadores chegam
preservar a floresta. A maioria estava dominada pela rotina, em e falam: se reflorestarmos a floresta lá em cima, é possível re-
que se repete a mesma atitude dos antepassados. E o que era construir as nascentes, reconstituir o fluxo desses rios.
a rotina? A rotina era o mito da natureza inesgotável: destruir, Talvez a emergência climática que vivemos hoje pudesse
deixar a terra estragar e abrir mais floresta. ter sido freada se iniciativas como essa da Floresta da Tijuca ti-
Infelizmente, são muito poucas as experiências como as vessem sido mais comuns ao longo da nossa história, e é daí que
da Floresta da Tijuca, em que se sai da teoria para a prática. O vem a importância de conhecermos nossa história ambiental,
que eu vi nesse período foram formulações geniais que esses que eu entendo como um processo de construção, preservação
homens ilustrados escreviam para o Estado, tentando chegar e desconstrução de formas e seres ao longo do tempo. É uma
aos governos, às autoridades. Mas as autoridades também não definição de história muito mais ampla do que a da historio-
tinham uma força de ação sobre a economia, porque a econo- grafia centrada no ser humano. Nossa história está entrelaçada
mia era muito dependente desses grandes proprietários e co- com outras histórias (geológicas, animais, vegetais) porque, na
merciantes que preferiam seguir a rotina. A maneira como eles verdade, nós só existimos porque existe uma história cósmica e
formulavam esses pensamentos era impressionante. O natura- que está em movimento. Às vezes aparecem umas ideias meio
lista José Bonifácio de Andrada e Silva, em 1823, fala que o Bra- apocalípticas de chocar um asteroide, alguma pedra desse tipo
sil iria se transformar nos desertos da Líbia em dois séculos se que passa perto da Terra, e sabemos que há 60 milhões de anos
continuassem o desflorestamento da época. Em Minas Gerais, isso aconteceu e provocou a destruição dos dinossauros. Isso
por exemplo, temos um mineralogista chamado José Vieira significa que não tem como nossa história estar longe da histó-
Couto que estava ali na região de Ouro Preto em 1799, antes
do Bonifácio, e dizia: “Já é tempo de se atentar nessas precio- .
ria cósmica. A história cósmica pode tocar na história geológica,
na história biológica e, principalmente, na história humana

166 167
O mundo

o nosso conhecimento sobre o fim do mundo é capaz


fim lento, que iria acontecendo aos poucos, ou seria
sem nós

ajudar a imaginar e a pensar para além daquilo que


nessas horas antes do fim? O antropólogo Roberto
Você já tentou imaginar o fim do mundo? Seria um

Romero se junta à filósofa Déborah Danowski para


conversar sobre como a ficção científica pode nos
um fim repentino, explosivo? O que aconteceria
Uma conversa entre
Roberto Romero e Déborah Danowski

Roberto Muito se fala hoje, Déborah, sobre essa era que estamos viven-
Romero do, o Antropoceno, e também sobre como a crise climática, im-
pulsionada pela ação do homem desde a Revolução Industrial,
pode nos conduzir a um futuro catastrófico. Eu queria então
começar por essa pergunta: o que é, afinal, o Antropoceno?

Déborah A ideia de chamar a nossa época atual de Antropoceno é mar-


Danowski car aquilo que chega em lugar do Holoceno, que é o período
que corresponde aos últimos 10 mil anos que viu o surgimen-
to da civilização humana, da agricultura, da formação das ci-
dades, da linguagem escrita, das religiões – enfim, do floresci-
mento da civilização humana. Ao contrário dessa época, que
climaticamente falando era bastante homogênea e estável,
agora muitas condições e processos da Terra estão sendo pro-
fundamente alterados pelo impacto humano, principalmente
desde o início da industrialização.
O termo Antropoceno, dependendo da comunidade cien-
tífica que o discute, tem ganhado significados muito diferentes.
Quais as alterações esse termo marca e que estão ocorrendo de
de apreender.

forma cada vez mais acelerada? Primeiro, sem me preocupar


com a ordem, há um enorme aumento na erosão, no transporte
de sedimentos acarretado pelo processo de urbanização, pela
industrialização, agricultura, etc. Há perturbações muito fortes
e abruptas nos ciclos de elementos como carbono, nitrogênio,
fósforo e vários metais, além da entrada no sistema de novos
elementos, novos compostos químicos que não existiam antes,
ou seja, que foram criados artificialmente pelo homem. O aque-
cimento global, com toda a sua importância, é também um dos
fatores que caracterizam o Antropoceno. A elevação do nível

168
do mar, a propagação das zonas mortas, mudanças rápidas na por vir? Ensaio sobre os medos e os fins, que mistura antropologia,
biosfera, tanto no solo quanto no mar, em função da destruição filosofia, ficção e cultura pop para discutir como diversas áre-
dos habitats, em função da caça industrial e não industrial. E o as do conhecimento imaginam diferentes fins de mundo que,
debate fora da geologia já vai dizer respeito a outra coisa, sobre- por sua vez, resultam em diferentes possibilidades de futuro.
tudo ao fato de que esse nome, Antropoceno, parece recolocar E eu acho muito interessante como esse livro traz várias his-
o homem no centro do debate. E nesse sentido, o próprio con- tórias sobre o fim do mundo, fabuladas, inclusive, por diferen-
ceito de homem é muito problemático, como se “homem” pu- tes povos, e as colocam em pé de igualdade com as histórias
desse ser caracterizado de maneira completamente uniforme que a ciência moderna conta. Eu queria que você comentasse
para todos os humanos, todos os povos. Por esse fato, aparecem um pouco sobre como surgiu seu interesse em juntar todos
também outras propostas de nomes para essa nova era, como esses discursos.
Capitaloceno (de capitalismo), Plantationceno (de plantation),
Tanatoceno (de morte), Termoceno (por causa do aquecimento Déborah Eu me lembro de várias pessoas trazerem o tema das mudan-
no planeta)... É mais ou menos esse o panorama. Danowski ças climáticas, e nós ficávamos nos perguntando por que esta-
va todo mundo falando de fim de mundo, e por que havia es-
Roberto Pensando nesse panorama complexo que você acaba de des- ses filmes todos circulando sobre o fim do mundo. Ao mesmo
Romero crever, como é que nós podemos imaginar o futuro para o qual tempo, várias pessoas criticavam esse ponto de vista dizendo
o Antropoceno nos aponta? que era catastrofismo, que esses filmes de Hollywood eram
feitos para ganhar dinheiro, ou que isso é uma coisa de países
Déborah Digamos que as temperaturas aumentem de fato 4 graus, desenvolvidos, e que no Brasil tinham outras questões mais
Danowski como está previsto para o final do século; que o plástico seja importantes, como a pobreza. Ao mesmo tempo que era nítida
predominante nos oceanos, que haja mais plástico nos ocea- a recorrência cada vez maior desses temas que falavam de fim
nos do que animais e peixes. O que seria o mundo se tudo isso de mundo, tinha também um movimento contrário, de resis-
se confirmar? Os limites planetários são processos do “Sistema tência a se falar desse tipo de coisa. Não só no campo da direita,
Terra”, que é melhor nós não ultrapassarmos porque não sabe- mas também no campo da esquerda, partindo de pessoas que
mos qual o ponto em que eles vão romper todo o sistema. Você tinham passado a vida inteira combatendo a degradação eco-
está me perguntando como vai ser o mundo do futuro e, para lógica, defendendo o meio ambiente e estudando pós-colonia-
falar disso, vamos ter que entrar um pouco na ficção científica. lismo. Então, nós juntamos tudo e pensamos: vamos fazer um
Há vários estudos, por exemplo, que falam como vai ser até o livro falando sobre o fim do mundo. Porque quando você fala
final do século. Eles especulam que em 2050, 2060, a tempe- do fim do mundo, você necessariamente inclui esses discur-
ratura vai ter aumentado, os eventos climáticos terão aumen- sos não científicos , e fim do mundo pode querer dizer muita
tado – tanto as chuvas fortes quanto as secas prolongadas –, a coisa. Quando partimos dessa expressão, já vem embutido o
Amazônia provavelmente não vai aguentar o desmatamento, “mundo” e o “fim”, que podem querer dizer várias coisas dife-
junto com o aumento desses períodos de secas cada vez mais rentes: o mundo é sempre o mundo de determinados sujeitos,
fortes e incêndios: aqui no Brasil parece até que já estamos vi- determinados povos, e o fim do mundo pode ser um fim abso-
vendo nesse novo futuro. É realmente difícil especular sobre luto, pode ser um fim lento, pode ser visto como alguma coisa
isso, mas acho que as obras de ficção especulam melhor sobre positiva ou negativa. Então, partimos dessa expressão “fim do
essas questões do que eu poderia fazer. E muito do que passa mundo”, que nela própria já carregava, sem fazer essa distin-
nas nossas cabeças, pensando em como vai ser daqui a 10, 20, ção, todos esses discursos.
50 anos, tem claramente a contribuição dessas obras de ficção.
Roberto E como você acha que a ficção científica nos ajuda a construir
Roberto Sem dúvidas, Deborah. E, em 2014, ao lado do antropólogo Romero esse imaginário?
Romero Eduardo Viveiros de Castro, você publicou o livro Há mundo

170 171
Déborah As possibilidades para a imaginação do que pode acontecer
Danowski sem os recursos das ficções parecem poucas, porque o que
está acontecendo é grande demais. Volta e meia tem um dado
científico de algo que não tinha equivalente nos últimos 60
milhões de anos. A temperatura que nós estamos vivendo é
inédita, a concentração de dióxido de carbono na atmosfera

nos permite pensar para além daquilo que nosso


também. O fato é que alguns cientistas destacam que nós saí-

nós não conseguimos imaginar hoje. A ficção, e


certa forma, nos ajuda a pensar sobre o quanto

particularmente a ficção científica, é, portanto,


um campo de experimentação imaginativa, que
bomba em cima de nós, porque ela tornou real

mos da rota de alternância pela qual a Terra vem passando en-


tre as eras glaciais e interglaciais. Nós já mexemos no grande
aquilo que não conseguíamos imaginar e, de

ciclo do carbono, na distância entre esses dois tipos de situa-


ções de equilíbrio. E são coisas totalmente inéditas em relação
“Mais uma vez a pandemia caiu como uma

à civilização de maneira geral, ou seja, ela corresponde aos úl-


timos 10, 12 mil anos. Algumas delas são inéditas para o Homo
sapiens. Nós não temos a menor ideia de onde estamos nos me-

conhecimento é capaz de apreender.”


tendo, onde estamos entrando. É claro que os relatórios cien-
tíficos podem falar que teremos um aumento entre 2 e 5 graus
até o final do século. Mas, se o aumento for de 4 graus celsius
– sendo que no momento estamos em 1,2 graus de aumento
de temperatura em relação à época da Revolução Industrial –,
como representar o que isso significa?
Mais uma vez a pandemia caiu como uma bomba em
cima de nós, porque ela tornou real aquilo que não conse-
guíamos imaginar e, de certa forma, nos ajuda a pensar so-
bre o quanto nós não conseguimos imaginar hoje. A ficção, e
particularmente a ficção científica, é, portanto, um campo de
experimentação imaginativa, que nos permite pensar para
além daquilo que nosso conhecimento é capaz de apreender.
Eu não sei falar isso sem cair em um ideologismo, mas não fo-
mos feitos para imaginar esse tipo de coisa. Podemos até es-
pecular um mundo depois que a Terra explodir, depois que o
sol explodir, mas realmente não conseguimos imaginar esse
momento da explosão. Uma coisa é pensar em uma pandemia
que destrói tudo, como se pensava na época do pós-guerra que
poderia haver uma grande guerra nuclear, uma guerra nuclear
total que extinguisse toda a humanidade. Mas o que significa
nos imaginar e imaginar o mundo, sob uma guerra desse tipo?
A ficção científica surge, e já surgiu desde o início, como algo
fundamental para não só imaginarmos, mas pensarmos sobre
o tamanho das mudanças que estamos vivendo.

Roberto Eu fico pensando que, se por um lado, existem ficções que ima-
Romero ginam o fim do mundo, por outro, também há várias ficções

172 173
que negam a possibilidade desse fim. Que negam a emergên- Roberto Realmente, Deborah, eu acho mesmo importante prestarmos
cia climática e crises de toda ordem, como esta que estamos Romero atenção nesses acontecimentos e nesses paralelos. Porque,
atravessando. E já que estamos falando de fabulações e ficções, afinal, a conta vai chegar para nós e para as próximas gera-
eu queria que você comentasse um pouco sobre como você ções. Para finalizar, gostaria que você trouxesse também ou-
enxerga essa questão do negacionismo. tras histórias sobre o fim. Em outras palavras, um outro fim
de mundo é possível?
Déborah Eu comecei a pesquisar sobre o negacionismo já há algum tem-
Danowski po, e resolvi pesquisar de uma maneira um pouco mais séria, Déborah O fim enquanto degradação que estamos vivendo – degra-
sobretudo pelos meus encontros em debates e discussões com Danowski dação ecológica, degradação econômica, degradação política
pessoas que podiam aceitar várias coisas, mas negavam que – não significa que não vai haver gente vivendo no que vem
estivessem acontecendo as mudanças climáticas. É claro que com e após essa degradação. Me parecia injusto ficar insistin-
quando isso vem de pessoas que são pagas pela agroindústria, do nessa ideia do fim absoluto quando tem tantos povos que
ou pagas pelas grandes companhias de combustíveis fósseis já passaram por fins, não semelhantes, mas fins de mundo, e
para dizer esse tipo de coisa, é até fácil entender, porque tem outros tantos povos (e o nosso povo também) que estão pas-
muito dinheiro envolvido na contrapropaganda. Mas, quan- sando e vão passar por outros fins de mundo. É preciso adiar
do isso vem de pessoas normais, digamos assim, próximas de um tipo de fim do mundo, tomar nas nossas próprias mãos
nós, eu de fato não entendia. E como eu não sou cientista, você (embora isso seja muito utópico, pois não acredito em uma
não pode apelar para argumentos do tipo científico (embora espécie de revolução que mude tudo de uma vez por todas) e
eu tente ler artigos de divulgação científica, eu não posso re- dizer “não queremos acabar sendo mortos porque as grandes
correr a esse tipo de argumento). Por isso, me parecia que esse companhias de petróleo querem continuar, aproveitar as por-
assunto merecia um estudo mais aprofundado. A minha ideia tas abertas para passar os seus navios por ali, ou porque a gran-
foi, então, recuar o negacionismo. Porque o termo “negacionis- de agroindústria quer derrubar a Amazônia”. Não é isso que
mo” surgiu de um historiador francês para falar dos negacio- queremos. E pensando desse jeito, talvez se abram outras pos-
nistas do holocausto, que é esse grande crime, quase o paradig- sibilidades, não para negar um tipo de fim do mundo, porque
ma do crime e do genocídio de Estado. Mesmo com todas as de fato nós já passamos para uma outra época totalmente des-
provas e evidências que existem, havia, e ainda há, aqueles que conhecida, mas, para lidarmos com outras pessoas, talvez os
negam que tenha acontecido um genocídio de judeus e de ou- indígenas sobrando ali em uma montanha, como disse Russel
tros povos durante a Segunda Guerra sob o regime nazista ale- Means: “Depois que acabar o mundo de vocês, ainda vão so-
mão. Me pareceu que era importante frisar o parentesco desse brar indígenas, nem que seja um punhado. Seja no meio da flo-
negacionismo climático com o negacionismo do holocausto. resta ou no alto das montanhas, sempre vai ter gente vivendo
São as mesmas pessoas que negam o aquecimento global, que e fazendo coisas, descobrindo maneiras de viver.” É importan-
negam que o regime militar implantado no Brasil torturou e te falar em fim de mundo, mas é importante contar todas essas
matou uma quantidade que eu não sei nem repetir aqui, que
são terraplanistas, antivacina, fascistas… e por que isso tudo se
junta novamente? Porque têm acontecido eventos climáticos
saber não só viver bem, mas morrer bem .
histórias. É importante ter ideias para adiar o fim do mundo,

dos quais, quando presenciados, são chamados de holocausto.


Como exemplo eu posso citar não só os incêndios na Amazô-
nia provocados criminosamente, mas também aquele enorme
incêndio que aconteceu na Austrália, que as pessoas chama-
ram de holocausto não só pela quantidade de vegetação dizi-
mada, mas de vidas animais que foram dizimadas. Tudo isso
talvez possa caracterizar a nossa época.

174 175
Aprender com
Se ouvíssemos o que as matas, os rios, as montanhas e
os animais têm a nos dizer, talvez nos relacionássemos

vividos pelo seu povo pataxó podem ensinar o valor e


a natureza

conta sobre como as histórias das origens e dos fins

a importância de estarmos mais próximos da terra.


educadora e liderança indígena Liça Pataxoop nos
conduzida pelo antropólogo Roberto Romero, a
de outra forma com a natureza. Nesta conversa
Uma conversa entre
Roberto Romero e Liça Pataxoop

Roberto Com o avanço da emergência climática, das queimadas e dos


Romero desmatamentos, é impossível não pensarmos na iminência
do fim do mundo. Mas, se para muitos de nós, o fim do mun-
do é um evento imaginado no futuro, para outros tantos ele
já aconteceu ou está acontecendo. Imaginemos, por exemplo,
o caso dos povos indígenas que tiveram mais de 90% da sua
população exterminada desde a invasão dos europeus. Em
um certo sentido, é como se o mundo deles, ou pelo menos o
mundo como eles conheciam antes de nós, tivesse acabado
em 1500 e, desde então, nada voltou a ser como antes. Quando
tocamos nesse assunto, é difícil não lembrar do Ailton Krenak,
um dos mais importantes pensadores indígenas da atualidade
e que vive em Minas Gerais. Ailton publicou em 2019 um dos
livros mais vendidos do ano, o Ideias para adiar o fim do mundo,
mas já faz um tempo que ele vem alertando sobre as consequ-
ências da pegada desastrosa dos não indígenas sobre o planeta.
Em 2015, durante uma de suas falas, Ailton já nos lançava uma
importante provocação diante do nosso medo crescente do
fim do mundo:

Sinceramente, não entendo por que as pessoas querem adiar o fim


do mundo. Se todos os sinais que nós temos indicam que a gente
não conseguiu dar conta de cuidar desse jardim, se todas as últi-
mas notícias que temos é que estamos administrando muito mal
o negócio… Por que é que nós queremos adiá-lo? Poderíamos, pelo
menos, ter coragem de admitir o fim deste mundo, ver se somos
capazes de aprender alguma coisa e, se tivermos outras oportu-
nidades, ver como vamos nos portar num novo mundo, ou num
possível outro mundo.

176
É bastante desconcertante a tranquilidade do Ailton Roberto Eu queria aproveitar, Dona Liça, para voltarmos lá no começo
quando ele apresenta a ideia de que este nosso mundo preci- Romero do mundo, no Grande Tempo das Águas como vocês Pataxoop
sa acabar para que outro, talvez, possa começar. Mas, se para costumam dizer. Gostaria que você nos contasse como esse
muita gente, essa ideia pode parecer estranha, a verdade é que, mundo começou e como os Pataxoop surgiram.
para vários povos indígenas, como os próprios Krenak de onde
o Ailton vem, o mundo já acabou — ou quase acabou — outras Liça A formação do povo Pataxoop foi quando Yãmiyxoop nos trou-
vezes. Ouvimos isso nas histórias de outros povos também, Pataxoop xe para a Terra. É o Tempo Grande das Águas, e foi nele que nós
como os Guarani, os Yanomami ou os Araweté. Para os Ma- viemos. É o tempo do nascer, do crescer, do fortalecer, do viver,
xakali de Minas Gerais, por exemplo, um grande dilúvio já se da recuperação de vida. É um tempo que é de grande fartura, é
abateu uma vez sobre a Terra, inundando todo o mundo. E o tempo que o Pataxoop veio trazido pela irmã chuva. De cada
uma coisa curiosa é que esse mito de extinção que os Maxaka- pingo que caiu na terra foi nascendo um Pataxoop. Nós temos
li contam coincide justamente com um dos mitos de origem o nosso mito, as histórias de nossa vida, de nosso povo. Então,
deles, pois, daquele único homem que sobreviveu ao dilúvio, para eu falar e ensinar as crianças, eu tenho que vir para essas
surgiram os antepassados dos Maxakali atuais. O que tudo histórias, registradas no Tehêy.3 Eu ensino no Tehêy aquilo que
isso sugere é que a existência atual pode ser entendida como eu quero falar na oralidade e também nos espaços da prática.
um intervalo entre o fim mais recente e o fim mais próximo, É como eu sempre falo: o Tehêy é um material de pescaria
que está sempre na iminência de acontecer. das mulheres nas lagoas, nas beiradas dos rios. Mas esse das es-
A Dona Liça Pataxoop, junto a seu povo Pataxoop (que colas é o Tehêy de pescaria de conhecimento, que é um material
nós, não indígenas, conhecemos como Pataxó) da aldeia Muã didático que usamos para ensinar as crianças na escola. Aqui,
Mimatxi,1 também guarda na memória esses casos de inícios o Tehêy é como o livro, que guarda a sua fala ou a sua história
e fins. Dona Liça, eu queria começar pedindo para a senhora dentro de uma escrita em um papel. Mas aqui no Tehêy a minha
contar um pouco sobre você e os Pataxoop. escrita é imagem, usada para pescar o ensino e o aprendizado.
E dentro desse aprendizado que vai para a mente da gente, é
Liça Eu me chamo Dona Liça aqui na minha aldeia, e sou uma das li- como estudar as letras para você aprender uma leitura de vida,
Pataxoop deranças das mulheres. Sou professora dos territórios, mas não mas aqui você pesca a leitura dentro do Tehêy, que ensina crian-
tenho o estudo lá de fora. O meu estudo é o estudo da tradição ça, jovem e adulto.
mesmo, meu professor e minha professora são a Mãe Terra. Eu
sinto aqui dentro o fato de ter essa profissão de vida sobre a Roberto Eu queria aproveitar essa deixa dos ensinamentos indígenas
Mãe Terra, porque é a forma como eu falo. É o Yãmiyxoop2 que Romero para perguntar para você, Dona Liça, sobre suas práticas pe-
ensina. Nós temos Yãmiyxoop professor, Yãmiyxoop da medicina, dagógicas junto das crianças da aldeia. Como vocês vivem
que cuida de nós. Nós temos Yãmiyxoop que nos defende. e aprendem com a natureza, com as plantas, com os brejos
Eu me sinto muito feliz e muito bem por ter tudo, igual e com os bichos?
vocês têm aí na cidade. Eu tenho polícia, tenho advogado, te-
nho juiz... Tudo o que vocês têm de defesa da vida do ser huma- Liça A nossa escola é um pouco de cada espaço dentro do nosso
no eu tenho na natureza. Pataxoop território. Hoje, aqui em Muã Mimatxi, eu ensino as minhas
crianças através dos lugares que tem dentro do meu chão de
vida. Essa é a minha escola, ela faz parte do redor do meu ter-
1 O povo Pataxoop ocupa hoje alguns territórios entre o que nós chamamos
de Minas Gerais e o sul da Bahia. A aldeia Muã Mimatxi, onde mora Dona
Liça Pataxoop, fica em Itapecerica, Minas Gerais. 3 Tehêys são imagens desenhadas por Liça para contar as histórias dos
2 Yãmiyxoop são os povos-espírito da natureza e de todas as forças das matas, Pataxoop aos mais jovens. Tehêy é o nome também das redes de pesca
rios e animais que sempre acompanham os Pataxoop. Para eles, foram os usadas por eles. Segundo Liça, seus desenhos pescam conhecimentos.
Yãmiyxoop que antigamente vieram à terra e criaram a mata, as frutas, o mar e Os desenhos são produzidos a partir das narrativas orais, mas também
os rios, preparando tudo para a chegada dos Pataxoop ao mundo. inspiram e ajudam na contação dessas mesmas histórias na escola da aldeia.

178
ritório. Aqui nós aprendemos e ensinamos, em espaços que às
vezes não estão dentro de quatro paredes. Aqui você conversa
e ensina do mesmo jeito como você pesca no ambiente: você
vai olhando os espaços e os ensinos vão aparecendo. É como a
gente fala: nenhuma criança aqui suja a Mãe Terra, porque ela
não adoece ninguém, não machuca ninguém, não encarde nin-
guém. Tem gente que não pisa na terra, não senta nela, mas nós
botamos esses ensinos nas nossas crianças. Isso tudo é apren-
dizado de vida para não olharmos só para a gente, mas olhar-
mos a vida na natureza e os ensinos que têm lá, a vida que tem
lá. Lá fora eu vejo que tem gente falando que é descendente de
alemão, de não sei o que, e eu sou gente da natureza. Porque
os meus parentes são outros, eles vêm da natureza. Eu tenho
irmão na natureza, eu tenho avó, eu tenho os parentes todos lá.
Por isso que às vezes eu falo que não tenho medo da natureza,
eu tenho respeito, porque eu sei que eu sou parente dos seres
da natureza. Por isso que hoje estamos vendo as cobranças da
natureza em relação ao homem, porque estão desrespeitando
os parentes do outro.

Roberto Quando eu ouço essas histórias, eu sempre acho curioso como


Romero elas têm um paralelo impressionante com a história da chega-
da dos portugueses a esse lugar que hoje chamamos de Brasil,
bem no território dos Pataxoop, que foi o primeiro povo que
teve contato com os invasores. Foi a partir desse contato que a
nossa natureza passou a ser explorada e destruída. E tem uma
história Pataxop que é muito interessante para refletirmos so-
bre isso, que é a história da cobra Kayayun. Será que você pode-
ria contar essa história para nós?

Liça Quando o Cabral chegou aqui, a primeira coisa que ele olhou
Pataxoop foi a terra. Cabral era a própria Kayayun, que veio para comer a
natureza. Quando ela chegou, veio acabando com tudo, e dava
cada grito! Daqui para Belo Horizonte afora nós escutávamos
os esturros dela, indicando que ela estava chegando. A nature-
za saía correndo, fugindo, mas a Kayayun sempre vencia. Uma
vez, quando a natureza chegou à casa de Yãmiyxoop, ele estava
amolando uma espadinha. A natureza chegou chorando por-
que a Kayayun queria comê-la. Ela correu, correu, chegou lá à
casa de Yãmiyxoop, se encontrou com ele, e ele a mandou entrar
para dentro. A Kayayun gritou e, quando ela abriu a boca, foi
engolindo a casa, com Yãmiyxoop e tudo. Yãmiyxoop, lá de den-

180 181
tro, deu uma furada no bucho dela com a espadinha amolada,
e Kayayun ficou adormecida. E aí ela não comeu a natureza
não, só ficou com a boca aberta engolindo todo mundo! A na-
tureza viveu, porque escapou, e é por isso que ninguém con-
segue matar a natureza, porque Yãmiyxoop sempre a defende.
A Kayayun ficou adormecida, mas acabou com tudo. Foi igual
à nossa história, e por aí a gente tira o nosso ensino. Quando
Cabral foi chegando, foi acabando a mata, acabou o rio... Era
muita fartura quando nós chegamos a este nosso mundo.
Hoje, Kayayun já está um pouco acordada, lá no Mato Grosso,
onde estão destruindo. É assim, nas histórias que nós temos
guardadas dentro do miolo da nossa cabeça, vamos tirando os
ensinos de defesa nossa aqui, neste mundo de hoje.

Roberto É impressionante como podemos associar a destruição provoca-


Romero da pela cobra com a devastação conduzida pelos não indígenas,
que nos ameaça a todos com a possibilidade de um outro fim do
mundo. E eu penso que se nós, aqui na cidade, conhecêssemos
mais sobre as ameaças da cobra Kayayun, talvez começássemos
a nos relacionar com a natureza de outras formas. Mas, apesar
de toda essa destruição, nós sabemos que os povos indígenas
seguem resistindo e, por conta disso, eles têm muito a nos en-
sinar sobre como podemos lidar com os desafios atuais, neste
cenário de emergência climática que estamos vivendo e que pa-
rece anunciar o fim do mundo, pelo menos da forma como nós
o conhecemos. Então, Dona Liça, eu queria lhe perguntar: o que
será que nós podemos fazer para adormecer Kayayun?

Liça A Kayayun adormeceu, como eu falei, porque nós, Pataxoop,


Pataxoop conscientizamos a nossa mente e conscientizamos os nossos
jovens, as nossas crianças, para podermos viver neste mundo de
hoje. Porque eu tinha muita fartura, eu tinha muita mata, eu co-
mia muita fruta, muita caça, muitos passarinhos – e eu vivi dis-
so. E quem destruiu? Não fui eu. Por mim, estava tudo aí, água
limpa, rio limpo, montanha, tudo do jeito que Yãmiyxoop colocou
para nós. Aqui não tem cerca, porque a minha terra é coletiva. É
minha, do meu parente e da natureza. Se eu cercar, pode ser que
um bichinho do mato não venha para a minha terra, então eu a
deixo aberta, porque ela foi feita para a partilha de todo mun-
do. No meu pedacinho de chão eu quero mais animais, eu quero

.
mais fruta, mais planta e árvore. É isso que eu quero ver crescer
no meu pedaço de chão, e desejo isso no chão todo

182 183
184 O amor como ponte
para a aprendizagem
Silvane Silva

AMOR 190 Todas as


formas de amor
Uma conversa entre
Roberto Romero, Juliana Soares
e Ana Martins

198 Poder
da sedução
Uma conversa entre
Roberto Romero e Dona Onete

206 A dimensão
pública do amor
Uma conversa entre
Roberto Romero e Henrique Vieira

184
O amor na sala de aula estabelece uma base para o aprendizado
que acolhe e empodera todo mundo. Comecei a pensar sobre a re-
lação entre o amor e a luta para acabar com a dominação em um

APRENDIZAGEM
O AMOR COMO esforço para compreender os elementos que constituíram movi-
mentos bem sucedidos por justiça social no mundo. Ficou eviden-
te que o foco em uma ética do amor foi fator central no sucesso do

PONTE PARA A movimento. Em Tudo sobre o amor: novas perspectivas, de-


fini o amor como uma combinação de cuidado, comprometimen-
to, conhecimento, responsabilidade, respeito e confiança. Todos
esses fatores atuam de modo interdependente. Quando esses prin-
cípios básicos do amor formam a base da interação professor-es-
tudante, a busca mútua por conhecimento cria as condições para
um aprendizado ideal. Professores então aprendem enquanto
ensinam, e estudantes aprendem e compartilham conhecimento.1

Em 19 de setembro de 2021, comemoramos o centenário do


filósofo e educador Paulo Freire, considerado patrono da edu-
cação brasileira e reconhecido internacionalmente como um
grande pensador da educação escolar. Durante sua vida, rece-
beu 41 títulos de doutor honoris causa, concedidos por uni-
versidades como Harvard, Cambridge e Oxford. O grande re-
conhecimento pela obra de Paulo Freire se justifica por todo o
conjunto de ações e teorizações que realizou. Porém, um dos
acontecimentos que mais chamou a atenção nesse percurso foi
quando desenvolveu, juntamente com um grupo de professo-
res, um método de alfabetização na década de 1960. Por meio
dessa metodologia, 300 trabalhadores rurais da cidade de An-
gicos (RN) aprenderam a ler e escrever em apenas 45 dias. O
resultado dessa experiência pedagógica foi tão impressionante
que inspirou um Plano Nacional de Educação. No entanto, ele
não pôde ser concretizado por causa do Golpe de 1964.
A alfabetização de trabalhadores em grande escala, em
Silvane Silva

um curso que ensinava também direitos trabalhistas, em que


cada pessoa adulta que era alfabetizada se tornava apta a vo-
tar, foi vista por alguns como uma ameaça. Por causa disso,
Paulo Freire foi preso pela ditadura militar e, posteriormente,
exilado. Freire viveu 15 anos no exílio e espalhou sua peda-
gogia crítica pelo mundo. Uma pedagogia baseada no diálogo

1 HOOKS, bell. “Ensinamento 27: Amar novamente”. Em: Ensinando o


pensamento crítico: sabedoria prática. São Paulo: Editora Elefante, 2020.
pp. 239-244.

186
não hierárquico entre professoras(es) e estudantes. Para ele, estudantes como seres completos, com mente, corpo e espíri-
a educação deveria ser considerada como uma ferramenta to, hooks chama de “pedagogia engajada” uma educação holís-
de transformação social, como direito de todas as pessoas, tica que dá ênfase ao bem-estar, na qual os professores estão
especialmente daquelas que são excluídas socialmente. Pau- compromissados com um processo ativo “de autoatualização
lo Freire propôs uma educação que valorizasse a realidade que promova seu próprio bem-estar”.3
vivida pelas(os) estudantes numa relação respeitosa entre o O pensamento ocidental moderno realizou a cisão entre
currículo e a comunidade escolar. Uma proposta de educa- corpo e mente, entre a razão e a emoção, como bem exempli-
ção libertadora e que possibilita a autonomia de pensamento fica a conhecida frase: “Penso, logo existo”, do filósofo Descar-
das(os) educandas(os). tes. Nas cosmovisões dos povos africanos e indígenas, antes da
A pensadora feminista negra estadunidense bell hooks, colonização, não havia essa separação. Nós existimos porque
em sua trilogia do ensino: Ensinando a transgredir: a educação pensamos, mas também porque cantamos, dançamos, senti-
como prática da liberdade (2013), Ensinando Comunidade: uma peda- mos e nos expressamos por meio de nossas corporalidades e
gogia da esperança (2021) e Ensinando Pensamento Crítico: sabedo- das nossas emoções.
ria prática (2020), reflete sobre sua experiência de mais de 30 Como ensinou bell hooks:
anos como professora. Em diversos momentos de sua obra,
apresenta a importância que a pedagogia de Freire teve em Antes de palavras serem ditas em sala de aula, nós nos encontra-
sua vida. hooks enfatiza que “a lição que aprendeu vendo Pau- mos como corpos. Lemos uns aos outros pelo olhar. Como pro-
lo Freire incorporar na prática aquilo que descreveu na teoria fessores, somos o ponto focal do olhar coletivo antes de palavras
foi profunda” e a “tocou do jeito que nenhum escrito poderia serem ditas. Nossos estudantes olham para nós e imaginam o
tocar” e a “deu coragem” de seguir como professora na acade- que nosso corpo tem a dizer sobre quem somos e como vivemos
mia, apesar de todas as dificuldades enfrentadas. Ela conta que no mundo. Nós também enxergamos nossos estudantes como pre-
o contato com a obra de Freire a fez continuar acreditando que senças corporais. Ainda que toda formação como professores nos
era possível manter uma prática de proximidade e respeito pe- incentive a agir como se não tivéssemos corpo, a verdade de nosso
las(os) estudantes, bem diferente daquela que se costuma vi- corpo dialoga conosco. Ser acontece a partir do corpo. E, se escu-
venciar na academia, onde o distanciamento entre professores tarmos nosso corpo dentro da sala de aula e fora dela, aprendere-
e estudantes é incentivado e visto como o correto. mos mais formas de nos relacionarmos uns com os outros.4
Paulo Freire disse em uma entrevista que “gostaria de
ser lembrado como um sujeito que amou profundamente o Seguindo nessa mesma direção, a professora Azoilda
mundo e as pessoas, os bichos, as árvores, as águas, a vida”.2 É Loretto da Trindade realizou diversos estudos sobre educa-
precisamente essa ética do amor que aproximou bell hooks de ção, nos quais enfatizou a importância das afetividades para
Freire. Ela reconhecia nele não apenas um pensador teórico, o aprendizado, especialmente quando se trata da Educação
mas alguém que praticou o que escreveu durante toda a vida – Básica, de crianças e jovens. Pedagoga e psicóloga, Azoilda
justamente o que bell hooks também procura fazer. chamou a atenção para a importância da ação docente como
Assim como Freire, bell hooks também acredita que é possibilitadora e promotora de relações afetivas ricas, respei-
preciso ver a sala de aula como um espaço comunitário, no tosas e “cuidantes” na prática do cotidiano escolar. Destacou
qual há um esforço coletivo para criar e manter uma “comuni- ainda o quanto as memórias dos tempos escolares são impor-
dade de aprendizado”, com entusiasmo pelas ideias e com von-
tade de aprender. Compreendendo tanto professores quanto
3 HOOKS, bell. “Eros, erotismo e o processo pedagógico”. Em: Ensinando
a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes,
2 FREIRE, Paulo. Trecho de entrevista. Instituto Paulo Freire. 2017. pp. 253-264.
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=J170pf5e5No > 4 HOOKS, bell. “Ensinamento 26: o toque”. Em: Ensinando o pensamento
Acesso em 30.nov.21. crítico: Sabedoria prática. São Paulo: Editora Elefante, 2020. pp. 230-237.

188 189
tantes nas nossas trajetórias de vida. Tendo em vista que elas Portanto, as contribuições trazidas por Paulo Freire, bell
podem ser tanto traumáticas e castradoras: de discriminação, hooks, Azoilda Trindade e Luana Tolentino e tantas(os) ou-
xingamentos e agressões; quanto podem ser memórias positi- tras(os) educadoras(es) comprometidas(os) com a ética do
vas e empoderadoras como um toque, um sorriso, um abraço, amor podem nos permitir fabular uma educação que possibi-
um elogio. Eis aí “o ponto de força” que o lugar de educadora e lite a todos acreditar na formação de seres humanos mais amo-
educador possui, pois trata-se de responsabilidade ética, teóri- rosos, menos competitivos, mais comunitários, menos indivi-
ca, política e afetiva. Ou seja, de comprometimento com uma dualistas, com mais compaixão e empatia, menos indiferença
educação democrática e acolhedora.5 e apatia. Que o amor seja ponte para a construção de uma “pe-
É importante demarcar aqui que não desejo romantizar dagogia da esperança”, que nos possibilite caminhar rumo a
a educação escolar, muito menos a profissão de professor(a). uma sociedade mais justa. Freire nos ensinou que esperançar
Trabalhei durante 15 anos na rede pública do Estado de São é verbo, é renovação de uma utopia que nos permite acreditar
Paulo. Portanto, conheço de perto a falta de investimentos na que, em toda situação de opressão, nós podemos criar possibi-
escola pública e o desrespeito advindo de parte da população
para com as(os) educadoras(es). Não desejo que as(os) profis-
sionais da educação sejam heroínas e heróis para cumprirem
lidades de libertação.
Sem esperança não há educação .
seu trabalho. É sempre bom lembrar e negritar que quando fa-
lamos de amor não estamos falando de amor romântico, estilo
“hollywoodiano”, mas de amor como ética que leva à educação
como prática da liberdade, como nos foi apresentado por Pau-
lo Freire e bell hooks. É o amor como ação, vinculado à respon-
sabilidade e ao comprometimento, e não apenas entendido
como um sentimento.
A educadora Luana Tolentino, em Outra educação é possível,
apresenta relatos de sua atuação na escola pública, apontando
os desafios e as suas conquistas e alegrias. Narra diversos mala-
barismos que precisou fazer para conseguir ofertar uma educa-
ção “viva e participativa” aos estudantes, visando possibilitar
“outras formas de ver a vida e o mundo”. Em sua jornada como
professora da escola pública, procura desenvolver uma educa-
ção holística para conseguir sentir a si própria revigorada na
luta pela construção de práticas que têm como finalidade a pro-
moção de “um ambiente em que prevaleça o reconhecimento
mútuo”. Luana afirma que sua busca é por “caminhos que pro-
porcionem formas de aprender que contemplem o nosso cor-
po, a nossa mente e o nosso intelecto.” São práticas de como re-
alizar alguns minutos de meditação no início da aula, para que
as turmas “agitadas” e inicialmente “difíceis” pudessem ter um
melhor rendimento, para citar um exemplo.

5 TRINDADE, Azoilda. “Em busca da cidadania plena: fragmentos de


um discurso sobre afetividade”. Em: BRANDÃO, Ana Paula (coord.). A cor
da cultura - saberes e fazeres, v.1. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho,
2006. pp.101-112.
190 191
Todas as

Soares, elas nos ajudam a reconhecer e a compreender


sobre amor em todo lugar, mas, ainda assim, é comum formas
onipresente na cultura? Nós vemos, lemos e ouvimos

as várias formas de amor que permeiam nossas vidas


psicólogas e psicodramatistas Ana Martins e Juliana
sentirmos que o mundo precisa de mais amor. Nesta
conversa do antropólogo Roberto Romero com as
de amor
Você já reparou como o amor é um tema quase

Uma conversa entre


Roberto Romero, Juliana Soares e Ana Martins

Roberto É difícil não reconhecer que o ódio tem marcado muito o nos-
Romero so mundo atual e é assustador como ele consegue mobilizar
tanta gente, viralizar tantas notícias, interromper tantas vidas
e impedir que pessoas se conheçam e compartilhem o mundo.
São muitos os casos de relações tóxicas e abusivas que exis-
tem, não só entre os seres humanos, mas também entre nós e
a própria natureza. Mas será que o ódio é uma resposta que vai
nos fazer chegar a algum lugar? Será que pensar o amor como
uma ética que paute as nossas relações e a política não poderia
nos ajudar a fabular outros mundos? Aliás, será que pessoas di-
ferentes estão falando a mesma coisa quando falam de amor?
Apesar de ouvirmos falar muito de amor em nossas cul-
turas, nós paramos muito pouco para pensar na própria pa-
íntimas e coletivas.

lavra, como se assumíssemos que “amor” só quer dizer uma


coisa. Eu queria, então, começar por essa palavra: o que pode
querer dizer amor?

Ana Em nosso encontro como amigas, também tentávamos en-


Martins tender o que essa palavra significa. E começamos nossa inves-
tigação das nossas próprias histórias. Nas nossas conversas e
nos estudos que fazíamos, fomos compreendendo que o amor
é algo muito complexo como conceito, mas ao mesmo tempo
é algo tão íntimo que não paramos para pensar sobre ele. E
como o funcionamento do amor tem a ver com o próprio fun-
cionamento do autoconhecimento, começamos a compreen-
der, nas nossas histórias, que o conceito de amor vinha muito

192
marcado pelas nossas histórias pessoais, pelas famílias em que Ana O que me fascinou muito na contação de histórias é exata-
nascemos, e pelas expectativas do mundo com relação ao que Martins mente mergulhar nas narrativas e compreender o que elas
é ser feliz e ter sucesso nesse lugar de amor. têm para contar para mim. Acho que elas carregam uma série
de ensinamentos: as histórias de tradição oral são muito ricas.
Juliana Como somos psicólogas clínicas, escutamos muito as pesso- E levando a escuta dessas histórias para o ambiente terapêuti-
Soares as falando de amor: das suas buscas amorosas, do seu êxtase e co, fui compreendendo como vamos aprendendo a falar, com-
das suas dores de amor, o que nos fez pensar que o amor está preendendo como é a língua do outro, dos pacientes. E fazer o
muito atribuído a um sentimento. Nós sentimos o amor. Mas exercício de levar isso para a vida pessoal é um desafio, porque,
como a Ana estava colocando, o amor é muito mais complexo na relação amorosa, o que eu preciso fazer é olhar para o outro e
do que isso: amar é um verbo, tem a ver com ação, com atitude. entender que ele é um mundo completamente novo. E o amor
O que começamos a observar é que, muitas vezes, quando as é essa ação, esse afeto, que nos lembra da prontidão necessária,
pessoas dizem “eu quero amar”, “eu quero estar em um relacio- nos lembra de que aquele mundo que está na nossa frente –
namento amoroso”, o que elas normalmente querem é receber que é aquela pessoa – é desconhecido. Então, para amá-la, eu
amor, admiração, estar no conforto de uma relação muito gos- preciso compreender quem ela é, eu preciso escutar, eu preci-
tosa. Mas é difícil, porque amar é posicionamento, é atitude, é so entender que eu não sei, que eu tenho um limite de escuta.
dia a dia, é poder e querer estar junto quando as coisas estão Se eu vou com esse cuidado e se eu me coloco dessa maneira,
menos fáceis e menos fluidas. tenho mais chances de entender-me com aquela pessoa. Acho
que as histórias oferecem isso também: parar, escutar e com-
Ana Nós temos a expectativa de que o amor seja uma grande ce- preender cada um dos personagens, para eu poder aproveitar e
Martins lebração, quase como se fosse um evento único. Fomos com- poder também oferecer algo da minha história. Eu acho que na
preendendo, nas escutas sobre as dificuldades e os encontros medida em que eu reconheço a história do outro e a valorizo,
e desencontros amorosos, que amar tem muito o exercício do eu começo a reconhecer e valorizar a minha também.
desconforto, o que às vezes não está muito associado ao amor.
Mas o amor é muitas vezes desconfortável, porque eu vou me Juliana Eu e a Ana gostamos de usar a metáfora de que cada um de nós
revelar, eu vou me colocar em um lugar perigoso, de dizer “eu Soares tem um dicionário amoroso, com verbetes e significados, que
te amo”, de dizer “eu preciso de você”, de oferecer ao outro o vai sendo construído na nossa história de vida de uma manei-
que eu tenho. É um exercício de entrega. Fomos, então, ob- ra muito natural e inconsciente. Um dicionário que vem de
servando como é importante criar um espaço para se falar do uma história muito íntima, das nossas primeiras vivências
amor, e para se falar do amor como um processo real, mais do amorosas, da nossa família, de nós, enquanto bebês, sendo
que uma celebração ideal. amadas e amados. Como recebemos e vivenciamos esse amor?
Participando de uma família em que as pessoas se amam. Ali,
Roberto Ouvindo vocês falando, eu fico pensando que o amor é falado, já vamos tendo vários entendimentos que vão nos mostrando
Romero cantado, pintado, encenado, mas talvez antes de tudo isso ele o que é o amor. E é claro que essa família, essa nossa vivência
é sentido. É um sentimento que as pessoas compartilham e muito individual, está inserida em uma cultura, que também
muitas vezes têm uma vontade muito grande de externar, de tem seus códigos de conduta e de ética sobre o que é o amor.
expor, de contar, mas é na fala que vamos traçando essa pos- Temos, então, nossas narrativas sociais sobre o amor, que são
sibilidade de entender o que o outro quer dizer quando fala compartilhadas por nós culturalmente. Por isso, eu acho mui-
em amor. Eu acho que isso tem muito a ver tanto com as ex- to importante levar em conta o que é de um contexto mais
periências de vocês duas como terapeutas, mas também da individual, da história de vida da pessoa, junto do que é sócio-
Ana como contadora de histórias. Eu queria, então, que vocês -histórico-cultural também, aquilo que vivemos juntos.
falassem um pouco sobre essa importância das histórias e das
narrativas do amor. Roberto Ouvindo vocês eu me lembro daquela ideia da escritora nige-
Romero riana Chimamanda Adichie sobre “o perigo da história úni-
194 195
ca”. Ela falava isso em relação ao perigo de contar-se histórias
segundo um único ponto de vista, que geralmente é o do ho-
mem branco, cis, hétero, europeu. Eu acho que esse perigo da
“O amor é uma potência de transformação social, tem
a ver com enxergar e reconhecer o outro. Reconhecer “história única” pode ser uma ideia muito útil também para
falarmos das histórias de amor, porque me parece que grande

sentimento e uma ação de potência transformadora


a minha história e a história do outro. O amor é um

transforma a minha vida, ele transforma o mundo.”


parte da angústia e da dor que essas histórias envolvem tem a
ver com o fato de que costumamos medir as nossas próprias
histórias de amor a partir dessa história única, que é uma his-
tória com final sempre feliz, uma história em que os protago-
socialmente, porque ao mesmo tempo que ele nistas só podem ser um homem e uma mulher, uma história
que não pode ter um fim. Enfim, essa história que também
chamamos de “amor romântico”.

Juliana Esse ideal de amor romântico é algo que compartilhamos cul-


Soares turalmente e que tem todas essas características que você co-
locou, além daquelas do amor da minha vida, da alma gêmea,
a ideia de que eu estou aqui sofrendo de amor na minha vida,
mas quando eu encontrar aquela pessoa, minha vida vai fazer
sentido. É como um pré-requisito para a felicidade, que tira
a autonomia das pessoas porque pressupõe estarem juntos
para estarem felizes. Essa é uma história de amor construída
no tempo, construída através da história da nossa civilização,
mas não é a única história possível.

Ana O amor é uma potência de transformação social, tem a ver com


Martins enxergar e reconhecer o outro. Reconhecer a minha história e
a história do outro. O amor é um sentimento e uma ação de
potência transformadora socialmente, porque ao mesmo tem-
po que ele transforma a minha vida, ele transforma o mundo.
Criar, então, uma história única e dizer “só desse jeito é amor” é
uma maneira de manter as pessoas miseráveis. Elas se sentem
miseráveis porque não vão atingir aquele ideal, não vão sen-
tir que têm esse perfil, seja porque não amam um homem, ou
porque não amam uma mulher, ou ainda porque não têm essa
cor, não têm o corpo dessa maneira. E se as pessoas se sentem
miseráveis, elas não têm nada para dar.

Juliana Normalmente, as histórias de amor que escutamos estão todas


Soares reproduzidas nos contos de fadas (com os quais temos conta-
to desde criança), nos filmes que assistimos e nas músicas que
escutamos. Se pensarmos nas histórias mais tradicionais e clás-
sicas dos contos de fadas, normalmente haverá uma diferença

196 197
muito marcada de gênero. Isso é uma reprodução das nossas que a Ana falou antes, dessa face desconfortável do amor – e não
relações de machismo e fortalece essas relações, nas quais ob- querermos nos aprofundar muito nas relações.
servamos que há um gênero que é mais forte que o outro – isso
vale para gênero, para raça, para classe social. Eu penso que uma Ana Essa experiência dos aplicativos oferece uma variedade grande,
saída para vivermos o amor de forma mais saudável, inclusive Martins mas uma relação só acontece com o gesto de escolher, mesmo
socialmente, é olharmos, validarmos e respeitarmos todas as quando as coisas não são ideias. Porque significa conhecer o
formas de amor. Amor é amor, e é importante validar e abrir o outro em vários espaços afetivos diferentes, conhecer o outro
nosso leque, abrir o nosso cardápio sobre o que é amor, ampliar o quando as coisas estão bem e quando as coisas não estão bem.
nosso dicionário amoroso. Essa é uma saída viável e importante. Precisamos de tempo para construir uma relação com alguém
e conhecer essa pessoa. Se eu vivo nessa cultura onde eu tenho
Roberto Por falar em ampliar o nosso dicionário amoroso, eu queria várias opções, é igualmente fácil entrar nessa onda do cancela-
Romero tocar em um ponto que tem transformado muito as nossas mento. É muito fácil fechar a janela. É muito fácil eu não gos-
histórias de amor, especialmente agora nestes tempos de pan- tar do que você disse e eu cancelar você. Eu tiro você do meu
demia, de distanciamento, que é toda a novidade trazida pela WhatsApp, eu paro de segui-lo no Instagram, eu não quero saber
era digital. Hoje temos toda uma nova coleção de termos para mais de você. Eu o silencio. Eu fico eliminando desconfortos e
falar dos nossos relacionamentos amorosos, como crush, date, na medida em que os elimino, o que eu tenho são relações cada
biscoito, nudes… Os aplicativos de relacionamento transforma- vez mais superficiais. E o amor tem a ver com aprofundamento.
ram completamente as nossas formas de interação e paquera,
trazendo novas possibilidades, novas angústias e novos peri- Roberto Como podemos pensar o amor como uma ética, como uma
gos. Eu queria saber como vocês vêem tudo isso. Romero forma de relação não só entre duas ou mais pessoas, mas en-
quanto uma forma de estar no mundo?
Juliana É importante dizer que essa é uma realidade posta. Gostemos
Soares ou não, ela faz parte da nossa vida. Inclusive, tanto eu quanto a Ana Acho que, pensando em uma dimensão mais ampla, cuidar do
Ana somos casadas com pessoas que conhecemos em aplicati- Martins outro é cuidar de mim. Cuidar bem do lixo, cuidar bem da mi-
vos de paquera. Existem dificuldades e existem maravilhas nes- nha casa e cuidar bem das pessoas que estão à minha volta é
sa evolução da tecnologia, por exemplo, o fato de você poder co- cuidar de mim. Porque se eu não cuidar bem desse encontro,
nhecer as pessoas com muito mais facilidade. O que eu percebo dessa fronteira, em algum momento vai chegar a minha vez. E
é que como eu estou interagindo com uma pessoa pela telinha, nessas experiências de relacionamento que são muito tóxicas,
fica difícil lembrar que do outro lado da tela tem, de fato, uma é claramente uma reprodução de opressão que a pessoa vai re-
pessoa, com todos os seus sentimentos. As pessoas acabam ten- petindo. Precisamos de espaços que falem sobre isso, que pri-
do essa relação muito mais fugaz com as outras, muito mais ob- vilegiem o respeito nas relações, mas sobretudo há a necessi-
jetiva, que coloca o outro nesse lugar de objeto mesmo. Outra dade também de a pessoa querer mudar. Algumas pessoas não
coisa que eu acho interessante, e que é muito particular deste vão mudar, e cabe a nós a tarefa de criar espaços para auxiliar
tempo que estamos vivendo, é aquele Fomo. Uma expressão quem está em um relacionamento muito vulnerável poder
que já está bem popularizada, o Fear of Missing Out, ou “medo de sair dessa relação o mais rápido possível.
perder alguma oportunidade”. Isso fica muito presente nos rela-
cionamentos virtuais, aquela ideia de que, se eu investir muito Juliana Toda nossa forma de relações, seja no campo afetivo sexual ou
aqui em uma pessoa, eu posso estar perdendo a oportunidade Soares no social, com a natureza e com o mundo de uma maneira geral,
de estar com diversas outras. Afinal, tem um monte de gente está muito pautada por dinâmicas de desequilíbrio de poder, em
por aí, é só abrir o meu celular que tem um monte de carinhas que tem sempre um mais forte que oprime o mais fraco. Uma
e perfis. Isso acaba trazendo uma tentação muito grande para das soluções poderia ser, portanto, tentar construir uma ética
fugirmos da construção, fugirmos da intimidade, fugirmos do
.
em que eu veja o outro na sua alteridade, na sua humanidade. É
tudo questão de empatia, de compreensão, de amor
198 199
Poder da
sedução

poder e nos mistérios da sedução através de suas


docas de Belém do Pará perfumadas pela mistura
de cheiros e sabores do mercado Ver-o-Peso,
Uma conversa entre
Passando pelas águas do rio Maiauatá até as

antropólogo Roberto Romero, nos embala no Roberto Romero e Dona Onete


a cantora Dona Onete, em conversa com o

Roberto É quase impossível fabular sobre o amor e não pensar em


Romero música – afinal, não só falamos muito de amor no nosso dia a
dia, mas, sobretudo, cantamos sobre o amor. É muito curioso
pensar que o amor seja esse tema tão privilegiado na música.
Desde a nossa infância até a vida adulta, vamos sempre ou-
vir o amor aparecer em várias das canções que escutamos e é
bom lembrar que isso não acontece só na língua portuguesa.
Encontramos canções de amor em várias tradições culturais:
elas estão presentes, por exemplo, em alguns cantos indíge-
nas, como é o caso dos cantos Tolo, entoados pelas mulheres
do povo kuikuro no Alto Xingu. Nesses cantos, vozes femini-
nas celebram amores, amados e amantes em histórias que fa-
lam sobre saudade, falta, fuga e ciúmes, temas muito parecidos
com os que ouvimos em outras partes do mundo.
Dona Onete, você é cantora e compositora, nasceu e vive
no Pará e já rodou o mundo levando consigo todo o vocabulá-
canções de amor.

rio e o calor do amor brejeiro, chamegado, sensual, amazônico


e ribeirinho. Para começar a conversa, eu queria que você fa-
lasse um pouco desse universo para onde você nos transporta
através das suas músicas e também sobre o próprio amor. Por
que ele está sempre presente nas suas letras e canções?

Dona Eu não sei cantar outra coisa, porque toda a minha música tem
Onete uma história no meio – que, por mais que eu não tenha vivido,
outras pessoas viveram. Com uma história que me contam, eu
invento tanta coisa! Tudo para mim é motivo de cantar e de fa-
zer. Vocês podem notar que o que eu ando fazendo é sempre
com chamego, é sempre com uma coisa gostosa, um conselho.
Eu sou demais conselheira nas minhas coisas. Por mais que eu

200
tenha ficado um pouco sem juízo algum tempo atrás, agora o ju-
ízo eu estou colocando na cabeça dos outros. Eu vou cantando
sempre o amor, porque fui envolvida desde criança com muitas
histórias bonitas, histórias de carochinha, acreditando em mui-
ta coisa. E se você acreditar, quando você crescer, seu coração se
tornará amoroso. Criança que não ouviu uma história, que não
ouviu um conto bonito, que não ama os animais, se transforma
em quê quando crescer? Torna-se aquela pessoa que não enten-
de nada do mundo. Mas a pessoa que foi criada com amor de
avó, com amor de mãe, com amor de tio, com amor de família,
é outra pessoa. Eu me criei sem mãe desde os 10 anos de idade,
e não conheci meu pai, que morreu muito cedo, mas fui amada
por muitos dos meus parentes. Venci muitas barreiras, e esse é
o coração que eu tenho: Dona Onete navegando pelas maresias,
pela maré baixa, maré cheia, maré de lanço... por aí eu vou embo-
ra. Eu sou uma canoazinha que vai a qualquer lugar.

Roberto E é através dessa canoazinha que nos transportamos pelo rit-


Romero mo do carimbó chamegado que a senhora ajudou a popularizar
em todo o país, que somos conduzidos por vários rios do Pará e
por várias figuras que habitam o imaginário popular ribeirinho
em toda a Amazônia. Eu não poderia conversar com a senhora
sem falar do boto e das histórias que envolvem esse persona-
gem sedutor tão famoso em toda a região, que a senhora eterni-
zou na sua canção “Boto namorador”. Inclusive a senhora cos-
tuma dizer que começou a cantar na beira do rio para os botos.
A senhora pode contar mais sobre essa figura do boto e algu-
mas de suas histórias ali nas águas do Maiauatá e tantas outras?

Dona Eu tenho a impressão de que o boto é um personagem muito


Onete forte da história do Pará e da Amazônia. Sabe-se que não era o
boto que fazia certas coisas: quem engravidava as mulheres e
as mocinhas eram os filhos dos patrões. E quando a mocinha
aparecia gestante, o pai dela procurava o pai de o homem que
engravidou, que dizia: “Foi o boto! Ela foi lavar roupa no rio e
não podia, porque ela estava menstruada.” Aí pronto, a culpa
ficava no nosso boto, coitado, que não tinha nada a ver com a
história. Mas eu admito que ele é atravessador de algumas coi-
sas, como quando andamos de canoa e alguém sente que estão
mexendo nela. É sempre o boto!
Essa música, “Boto namorador”, eu fiz sem pretensão ne-
nhuma, e cantei pela primeira vez quando fui visitar os botos do
rio onde eu morava (o rio das Flores em Igarapé-Miri), que é o
202 203
rio dos meus encantos. Nessa época, eu prometi que nem que eu Roberto É por ali que você acha carrapatinho, agarradinho, chega-te a
tivesse 90 anos, eu iria namorar com o boto. Mas eu fui embora Romero mim, chora nos meus pés, pega não me larga, faz querer quem
para Belém, e nunca mais tive contato com eles. Tempos depois, não me quer e, claro, o chá do tamaquaré. Queria que você fa-
em 2013, eu voltei para Igarapé-Miri com a Carla Joner, para lasse um pouco para nós sobre esse chá.
gravar uma cena do documentário Visceral Brasil - as veias abertas
da música. Quando entramos no barco para ir a Igarapé-Miri, no Dona Eu estava contando para a minha neta que, quando eu deixei
dito rio dos botos, qual é a nossa surpresa: eu cantando em um Onete o meu marido, com 43 anos, uma senhora me chamou e dis-
barco e três botos boiando! Tinha um boto malhado (que quase se para mim: “Moça, venha cá”. Ela era a Dona Cheirosa, mãe
derrubou minha filha), um tucuxi e um boto cor-de-rosa, que da Cheirosinha do mercado, e ela disse assim para mim: “Você
nem tinha por lá. Aí eu canto: “é boto namorador nas águas do vai voltar para casa hoje?” Eu disse: “Vou, eu moro em Igarapé-
Maiauatá”, porque eles eram donos dali. Quando eu era crian- -Miri”, e contei a história do término para ela. Ela disse: “Minha
ça, contava-se que eles dançavam nas festas. Chegavam todos filha, por que não vieste aqui comigo? Eu teria feito uma coisa
de branco e dançavam a noite inteira. Quando chegava uma de- que seu marido não te largaria nunca.” E eu já estava em uma
terminada hora, eles sumiam. Aí ficava aquele comentário: “de outra história, mas perguntei como ela faria aquilo. Ela me
onde vem aquele moço? De onde é?” E as mulheres apaixona- mostrou uma redinha de crochê tecida em vermelho e branco,
das. E era assim, eu vi muita lenda, muita coisa. e um calanguinho dormindo dentro, embalado. Eu perguntei
o que era, e ela disse que era o famoso tamaquaré. Ela me mos-
Roberto A senhora era a própria sereia cantando e dançando com os bo- trou em pó, me mostrou que botava na água e tudo. Eu disse:
Romero tos. Mas eu queria propor agora que desembarcássemos dos “Ah, minha amiga, agora eu já larguei mesmo, estou em outra,
rios da Amazônia para a senhora guiar-nos em um passeio pelas estou bem”. Mas não tem quem vá ao Ver-o-Peso e não leve um
docas de Belém do Pará. Para quem não conhece, é ali que fica o vidrinho, um cheiro daqueles. E o chá de tamaquaré, eu não sei
Ver-o-Peso, o famoso Veropa, que é simplesmente a maior feira se dará certo, mas pelo que eu vejo, acho que dá.
ao ar livre de toda a América Latina. E a senhora, como boa pa-
raense, parece ter um caso de amor com aquele mercado, que Roberto Na dúvida é melhor usar, não é Dona Onete? Eu queria falar
aparece em algumas de suas músicas como “Feitiço caboclo” e Romero agora sobre uma música sua que recentemente me deixou
“No meio do pitiú”. É ali mesmo, no meio daquele tanto de gen- emocionado, que é a “Sonhos de adolescentes”. Nela, a senho-
te, daquela mistura de cheiros e sabores, que encontramos as ra descreve os sonhos de dois jovens apaixonados e continua:
famosas bancas de cheiro e suas erveiras que são especialistas
em diversos banhos, perfumes e chás que são uma verdadeira Mas veio a dura realidade
sensação no Pará. Eu queria, então, que a senhora contasse um mostrou que tudo é diferente
pouco sobre isso para quem não conhece. esmagaram nossos sentimentos
mataram os sonhos da gente.
Dona O Ver-o-Peso ficou no meio da cidade, foi construído na Belle
Onete Époque, e todas as suas partes e peças vieram de fora (o ferro Essa frase, ouvida hoje, me bateu de um jeito diferente, porque
veio da Inglaterra, por exemplo). Mas o povo caboclo deixou eu imagino a senhora, que dedicou a sua vida à educação e tam-
ele do jeito que é, para ser de caboclo. Hoje o Ver-o-Peso está bém ao ensino da história em um país que trata tão mal a sua
chique, mas antes não era assim. Quando eu era criança, pare- história, as suas raízes e a sua memória. Você sonhou com um
cia com a Lapa do Rio de Janeiro. Até um certo pedaço do mer- outro país e agora também vê esse país e o mundo tomando
cado nós podíamos ir com nosso pai, mas de um certo pedaço rumos muito diferentes. Eu queria te perguntar, lembrando
nós não passávamos. Hoje em dia passa todo mundo, ele foi se aquela frase cantada por Elis Regina: “O que foi feito de tudo
sofisticando – está, inclusive, um pouco sofisticado demais. Se que a gente sonhou?”, como o amor pode nos devolver essa ca-
você não for daqui do Pará e vem visitá-lo, tem que começar pacidade de sonhar?
pelas banquinhas de cheiro, pelas nossas plantinhas cheirosas.
204 205
Dona Eu tenho que dizer para você que o nosso sonho só acaba quan-
Onete do a gente se for. Não é proibido sonharmos, é a única coisa que
não se proíbe. Porque está aqui, é seu coração com a sua cabeça.

cultura é o que você pisa, é o que você come, é o que


Se você sonha, continue sonhando, porque é a única coisa que
você tem de seu. Eu era muito sonhadora e acreditei nos meus
o monumento pode ser até válido, mas como vida,
sonhos. Desde o período em que eu me casei, que eu fiquei ali
“Minha cultura não é monumento. Como história,

com meu marido, eu continuei estudando. Mesmo meu mari-


do não querendo, eu estudava para não ser aculturada por tudo.
Mas minha cultura não é monumento. Como história, o monu-
mento pode ser até válido, mas como vida, cultura é o que você
pisa, é o que você come, é o que você é, é o que você valoriza na
você é, é o que você valoriza na sua terra.”

sua terra. Você pode estudar onde quiser, mas é aquela a sua his-
tória, a sua base. E o que vale para nós é a base que nossos pais
nos deram, é a base que nossos avós nos deram.

Roberto Para finalizar, Dona Onete, eu queria que a senhora falasse so-
Romero bre a palavra “amor”, esse sentimento, essa força que o amor
tem para nos curar, nos tornar pessoas melhores.

Dona O amor é o melhor remédio. Colocar-se no lugar do outro é o


Onete maior dos remédios. O perdão (se você tiver condições de per-
doar, porque nem todo mundo tem) é a melhor medicação, é
o melhor tônico. Com tudo o que estamos passando no Bra-
sil, as pessoas não estão acreditando que vamos vencer essa
situação. Mas eu creio que vamos sair dessa. Se não concor-
darem comigo, tudo bem, quem não quiser acompanhar, que
não acompanhe. Mas nós vamos caminhar, não é? A vacina vai
chegar para todo mundo, se Deus quiser. A consciência vai ser
outra, e eu espero que seja outra. Espero que o meu Brasil um
dia possa sorrir de felicidade. Viva a liberdade, e que possamos
sempre dizer as coisas, ouvir as coisas, falar as coisas. E para fi-
nalizar, vou deixar aqui uma história de amor:

Meu curió cantador


cantava na minha janela
para uma curiola bonita

fazia alvorada pra ela


mas um dia da gaiola
a curiosa se soltou
voou, voou, voou, voou .
206 207
A dimensão
vincular o amor à quebra de mecanismos de opressão
fala, a partir da tradição bíblica, da importância de pública do
amor
o amor pode ser uma construção ética cotidiana,
e injustiça. Mais que um sentimento individual,
Roberto Romero, o pastor Henrique Vieira nos
Em uma conversa conduzida pelo antropólogo

Uma conversa entre


Roberto Romero e Henrique Vieira

Roberto Para além de algo que sentimos ou de um tema que influencia


Romero a nossa cultura, o amor também pode ser lido como uma ética
capaz de pautar as nossas relações e a política. A historiadora
Silvane Silva escreve, em um de seus textos, que no momen-
to histórico atual, “no qual mais uma vez os discursos de ódio
mobilizam multidões e acionam esse afeto como categoria po-
lítica, talvez seja oportuno nos lembramos que o amor cons-
trói vínculos, traz confiança, equilíbrio, solidariedade, saúde
mental e cura”.1
É interessante pensarmos como essa ética amorosa que
coletiva e permanente.

a Silvane propõe também está muito presente nos conceitos


que deram origem a muitas das religiões que existem no mun-
do. Seja no cristianismo, no judaísmo, no islamismo, no budis-
mo, no candomblé, é o amor que acaba surgindo como uma
proposta comum para a forma como nos relacionamos com as
pessoas e com o mundo, independentemente das diferenças
que existem entre nós.
Apesar de a ética amorosa ser um tema muito impor-
tante na constituição das religiões, sabemos que, na prática, o
amor nem sempre é tão presente assim. Quando pensamos em
crimes de ódio, racismo, homofobia e intolerância, que estão
infelizmente ainda muito presentes no mundo, percebemos

1 Texto “O amor como antídoto”, escrito em 2021 por Silvane Silva para o
Programa Educativo do BDMG Cultural. Leia em: <https://bdmgcultural.
mg.gov.br/educativo-publicacoes/o-amor-como-antidoto/>.

208
que muitas vezes esse ódio é invocado em nome de Deus – o Henrique O amor não é um produto, não é uma mercadoria, o amor é um
que não é de hoje! Há resquícios desse tipo de investida des- Vieira fazer. E como todo fazer, demanda tempo, demanda amadu-
de pelo menos 1095, ano em que tiveram início as Cruzadas, recimento, demanda perseverança, demanda envolvimento.
que foram expedições militares organizadas por católicos da Eu gosto de pensar o amor como o percurso da própria vida,
Europa Ocidental. Foram quase duzentos anos de luta contra justamente para tirar o amor desse lugar do espetáculo mo-
os islâmicos sob o pretexto de reconquistar lugares que eram mentâneo, do “viveram felizes para sempre” no final do filme,
sagrados para os cristãos, sobretudo na Palestina. Tudo isso ao dessa romantização do amor. O amor como caminho tem mui-
custo de milhares de vidas. E eu acho que é muito importante to a ver com essa ideia de uma construção ética permanente.
nos perguntarmos por que existe essa discrepância toda entre Todos os dias acordar e ter decisões relacionadas à defesa da
o que as religiões pregam e o que alguns grupos de fiéis prati- vida, da dignidade humana, da causa dos oprimidos, daqueles
cam. Pastor Henrique, eu gostaria de começar discutindo a pa- e daquelas que sofrem em uma sociedade profundamente in-
lavra “amor”. No que exatamente você pensa quando falamos justa, desigual, patriarcal, racista. O amor não é um sentimen-
em amor? to acabado, é uma construção ética cotidiana que exige uma
atualização permanente desta decisão como forma de vida. É
Henrique Eu penso no amor sobretudo como uma atitude, uma deci- acordar todos os dias e decidir eticamente viver o amor como
Vieira são de vida, uma forma de vida e uma consciência de vida. Eu essa dimensão pública, essa dimensão política, essa dimensão
penso o amor como algo que se materializa em atitudes que comunitária, essa dimensão coletiva.
viabilizam a expansão da vida, que viabilizam que as pessoas
possam realizar as suas individualidades, que viabilizam o am- Roberto Caminhando um pouco para o Evangelho, eu fiquei pensando
biente histórico e social de justiça, de igualdade, de liberdade, Romero que a própria trajetória de Jesus Cristo pode ser pensada como
em que a humanidade possa ter as possibilidades plenas de uma longa caminhada. Jesus foi, sobretudo, um profeta viajan-
desenvolver o seu maior potencial. Tem uma pensadora que te que fez sua vida ao longo das caminhadas e dos encontros. E
eu admiro muito, a bell hooks, que fala dessa dimensão ética- o amor aparece e atravessa o texto bíblico em vários momen-
-política-relacional do amor. O amor é aquilo que, na relação tos. É muito conhecida por exemplo aquela frase que está em
entre os seres humanos, possibilita que possamos expandir a João, no novo testamento, que diz “Deus é Amor”. Eu queria
nossa vida, que possamos potencializar a nossa vida. Eu penso, lhe perguntar como poderíamos ler o Evangelho e a própria
portanto, o amor nessa esfera ética-política-relacional, vincu- vida de Jesus a partir dessa noção de amor.
lada a atitudes que possibilitam que as pessoas sejam valoriza-
das e que as pessoas possam desenvolver o maior potencial de Henrique O amor no Evangelho é encarnado, é materializado, é histó-
suas próprias vidas. Na minha relação com você, por exemplo, Vieira rico, é político, é ético, é emancipador da vida. Mais uma vez,
o amor seria aquilo que possibilitaria o melhor de mim nessa encontramos o amor em movimento, o amor em percurso, o
relação e o melhor de você nessa relação. amor em decisões éticas. Ver o Evangelho a partir do amor é
ver esse amor concreto que se revela em especial e priorita-
Roberto Acho maravilhoso você citar a bell hooks, e acho muito interes- riamente no compromisso de Jesus com os famintos, no com-
Romero sante essa definição do amor como algo que se constrói, como promisso de Jesus com os pobres, no compromisso de Jesus
um percurso. Ou, como você mesmo define em seus livros, um com os miseráveis, no compromisso de Jesus com as pessoas
caminho. Essa noção de caminho me parece ter uma impor- marginalizadas, no compromisso de Jesus com as pessoas mo-
tância grande na sua prática, a começar pela própria igreja que ralmente excluídas, socialmente postas de lado. É interessan-
você ajudou a fundar, chamada justamente de Igreja Batista te pensar que a universalidade do amor não significa alguma
do Caminho. Eu queria que você comentasse um pouco mais coisa abstrata, neutra e imparcial diante das injustiças. O amor,
a respeito do caminho, ou da caminhada, como essa possível na tradição bíblica, está sempre vinculado à quebra de meca-
definição do amor. nismos de opressão e de injustiça. Eu vou pegar, por exemplo,

210 211
o canto de Maria, quando ela fica sabendo que está gestando ideia de que o ser humano foi feito à imagem e semelhança de
a esperança, o Salvador, o Messias. No canto de Maria, ela diz Deus para dominar as demais espécies, e muita gente ainda
que “Deus veio despedir de mãos vazias os ricos e encher de propaga essa interpretação que coloca o ser humano acima de
bens os mais pobres”. Olha que curioso, há aí uma conflitivi- todos os demais seres. Essa ideia é bem perigosa, não é pastor?
dade. Os ricos deixam de ser ricos para que os pobres possam
se alimentar. Estou chamando a atenção para esse caráter do Henrique Perfeitamente. O Gênesis não é um chamado para o domínio,
amor que é um caráter, digamos assim, conflitivo. O amor não Vieira é um chamado para a zeladoria, é um chamado para o cuidado,
vem mascarar injustiças, o amor não vem silenciar revoltas. é um chamado para a coparticipação na obra criadora de Deus.
Muitas vezes, pelo contrário: quando eu olho a vida de Jesus, Quando o ser humano é chamado a dar nome a tudo que exis-
eu vejo uma posição ética em favor dos oprimidos como base te, que é a ideia da metáfora do Gênesis, o ser humano é cha-
para a experiência do amor. É um amor que nos conscientiza, mado a participar, com Deus, do cuidado com tudo que exis-
que nos mobiliza, que nos faz chorar a dor do mundo porque te, do cuidado com a natureza, do cuidado com a criação. Eu
vemos na dor do mundo nosso próprio mundo de dor. gosto de pensar que a Bíblia começa com o jardim e termina
em Apocalipse, com uma cidade atravessada por um rio – ou
Ouvindo-o sobre isso, eu fico pensando que o amor não é só seja, a imagem de que a construção humana pode e deve ser
um sentimento que experimentamos individualmente por associada ao conjunto da natureza. A questão é que o capitalis-
uma pessoa, ou por um grupo de pessoas próximas, mas pode mo é um modelo econômico que divorcia a economia da Mãe
ser também uma construção coletiva – que talvez seja o que a Terra. O amor, dentro de uma subjetividade capitalista, vira
bell hooks esteja chamando de uma ética amorosa, concorda? romance, vira calsazinho, vira casamento, vira família. Família
aqui no seu sentido mais privado, não no seu sentido do afeto,
Henrique Perfeitamente. Eu acho que, para além de uma decisão indivi- da comunhão, da adesão a viver com o outro. Mas quando des-
Vieira dual, fica uma pergunta para nós: o que é pensar o modelo de privatizamos o sentido do amor, quando resgatamos o amor
sociedade baseado no amor? Por isso que eu estou insistindo como comunhão com tudo que existe, criticamos inclusive
que o amor me leva para além de atitudes individuais, mas essa característica ocidental de supervalorização do ser hu-
para construções coletivas de ética amorosa. Eu vejo uma éti- mano em abstrato. Importa-me valorizar os seres humanos na
ca amorosa na luta dos sem-terra, na busca por reforma agrária. concretude da vida. E me importa valorizar os seres humanos
Eu vejo ética amorosa na luta dos sem-teto pelo direito à mo- como parte da natureza.
radia nas cidades. Eu vejo ética amorosa na luta do povo negro,
querendo quebrar os grilhões do racismo. Eu vejo ética amoro- Roberto Sim, isso é mesmo muito importante. E voltando à releitura do
sa na luta dos povos indígenas, querendo demarcar e proteger Romero próprio Evangelho, eu acho muito interessante essa distinção
as suas terras, sua memória e sua cultura. Porque são constru- que você faz entre as noções de espiritualidade e religião. Se
ções coletivas que estão denunciando realidades sem amor. eu entendo bem, você reivindica um lugar para essa espiritu-
Realidades que oprimem, que aniquilam, que maltratam, que alidade que justamente ultrapassa e antecede os limites das
limitam a potencialidade da vida. próprias religiões, das doutrinas, dos templos, não é? E há uma
tendência a confundir demais uma coisa com a outra. Eu que-
Roberto Essa série de lutas que você menciona, como a luta dos indíge- ria ouvi-lo falar um pouco mais sobre isso.
Romero nas pela terra, me faz pensar em uma ética amorosa que parece
extrapolar os limites do próprio ser humano. Seria talvez uma Henrique A espiritualidade é tão antiga quanto a humanidade. A espi-
ética com relação aos outros seres, que é um dos principais pas- Vieira ritualidade é quase intrínseca à experiência humana, é quase
sos para se pensar uma outra forma de relacionamento amoro- como a arte, é uma expressão humana diante da potência e da
so com tudo aquilo que reunimos sob o nome de “natureza”. fragilidade da vida. O ser humano não só vive, o ser humano
No próprio Gênesis, que é o primeiro livro da Bíblia, tem essa sabe que vive. E ao saber que vive, o ser humano se dá conta

212 213
da potência frágil que é a experiência da vida. Eu gosto de uma
imagem para expressar essa condição humana: “viver é cami-

cidades. Eu vejo ética amorosa na luta do povo negro,


nhar à beira do abismo”. É uma fragilidade, nós somos reféns

ética amorosa na luta dos povos indígenas, querendo


na busca por reforma agrária. Eu vejo ética amorosa de contingências, de imprevisibilidades, de aleatoriedades
bizarras – fora as injustiças e as violências históricas que nós

demarcar e proteger as suas terras, sua memória e


“Eu vejo uma ética amorosa na luta dos sem-terra,

sua cultura. Porque são construções coletivas que


querendo quebrar os grilhões do racismo. Eu vejo
mesmos, como sociedade, construímos. Mas a vida é marcada
por limites impressionantes. A espiritualidade é quando o ser
na luta dos sem-teto pelo direito à moradia nas
humano se dá conta de que viver é essa experiência potente e
frágil. E faz perguntas, e faz buscas, e faz movimentos para pre-
encher a vida de significado. A espiritualidade é esse impulso
do coração humano na busca pela plenitude da vida.

estão denunciando realidades sem amor.”


Já a religião é uma espécie de organização da espirituali-
dade em uma liturgia, em um código comportamental, em uma
determinada forma de conceber o mundo e a humanidade. A
religião, em certo sentido, é uma força de coesão social. Diante
disso, nós podemos ter experiências religiosas que alimentam
a espiritualidade, que dão fôlego, que dão espaço para a espi-
ritualidade desenvolver-se. E curiosamente nós podemos ter
experiências religiosas que sufocam a espiritualidade, que se-
questram o potencial inventivo, criativo e criador e aberto da
espiritualidade. Trata-se do extremismo religioso, que é uma
forma de sufocar a espiritualidade na vivência da religião.

Roberto Ouvindo-o falar sobre isso, eu me lembro do Antônio Bispo


Romero dos Santos, um mestre e liderança quilombola do Piauí, que
faz uma divisão muito interessante entre o que ele chama de
cosmologias monoteístas (que creem em um Deus único) e
as politeístas (que cultuam vários deuses e deusas). Ele com-
para o monoteísmo à própria organização da vida, da política,
da economia, dos afetos, que seria dos regimes centralizados
de poder. Ou seja, até mesmo a monocultura, a monogamia e
o próprio colonialismo, para ele, são indissociáveis dessa cos-
movisão mono. E as religiões cristãs são monoteístas, com um
embate histórico em relação às religiões politeístas, desde a sua
estruturação enquanto religião até os dias de hoje. Diante dis-
so, eu fico curioso para ouvi-lo sobre esse tema, porque eu sinto
que nas suas falas existe um certo esforço em inserir o pluralis-
mo e a multiplicidade na própria cosmovisão monoteísta.

Henrique Dentro da perspectiva monoteísta cristã, Deus não é uno. Ali-


Vieira ás, Deus não é binário, o que dá vários dispositivos para pen-
sarmos pluralidade, diversidade, não binariedade da vida. Na

214 215
perspectiva monoteísta cristã, Deus é trinitário, Deus é em ligião, baseada na solidariedade e na comunidade, que parecem
si plural, Deus é em si diverso. É aquele que ama, o amado e dois elementos importantes também dessas experiências. Será
o amor. Se fosse uno, seria de fato um dispositivo para lógicas que você poderia comentar mais sobre isso?
centralizadoras autoritárias, autocentradas e supressoras da
diversidade. Se fosse binário, seria apenas uma oposição, um Henrique Isso é bastante complexo. Primeiro é importante dizer que
versus o outro, um diferente do outro. Talvez um contrário em Vieira o campo evangélico é extremamente plural e diverso, o que
oposição ao outro. Mas olha que interessante, Deus não é uno, nos livra de reducionismos e generalizações que não ajudam
totalitário. Não é binário, um versus o outro, um diferente do a estabelecer diálogo e incidir na sociedade. A segunda obser-
outro. Deus é trinitário, tem uma terceira pessoa que abre o ci- vação é que o campo evangélico é majoritariamente popular,
clo. E ao abrir o ciclo, engloba, inclui, acolhe, diversifica, colore. composto por mulheres, negros, moradores das periferias e
Portanto, o monoteísmo critão que eu reivindico é o do Deus favelas do Brasil. Pessoas empobrecidas e injustiçadas que lu-
plural. É o do Deus que carrega em si a marca da pluralidade e tam cotidianamente para sobreviver em um país brutalmente
da diversidade. Não é que, de Deus, emana a diversidade. Deus desigual e violento. A terceira observação que eu quero fazer
é, em si, comunidade. Deus é, em si, deuses. Talvez do ponto é que existe um conservadorismo predominante no campo
de vista da teologia cristã mais ortodoxa, essa minha última evangélico, principalmente em determinadas pautas. Esse
frase não seja cabível. Mas eu me permito elaborar para além conservadorismo, entretanto, não é exclusivo do campo evan-
da ortodoxia. Uma outra dualidade que pode ser quebrada pela gélico. Tem gente que acha que se você tirar o campo evangé-
perspectiva trinitária é a dualidade homem e mulher. Olha que lico do Brasil, nós teremos uma revolução. Inevitavelmente e
interessante: abre espaço para pensarmos para além daquilo infelizmente, não. O conservadorismo é um fenômeno muito
que é construído hegemonicamente como homem e daquilo amplo na história do Brasil, muito antigo, muito estruturante
que é construído hegemonicamente como mulher. Tem pa- da nossa história, do nosso passado colonial, de toda a lógica
péis, possibilidades, identidades de experiência que estão para colonizadora até hoje. É um equívoco, portanto, você igualar o
além dessas duas formulações. Olha que potente e subversivo conservadorismo com o campo evangélico no Brasil. A quarta
o caráter trinitário de Deus. observação é que existe, tal qual você colocou na sua pergun-
ta, um segmento evangélico com muito poder: político, eco-
Roberto Perfeito pastor. E agora eu queria que fôssemos em direção a nômico e midiático, com grande capacidade de reverberação
Romero um terreno um pouco mais político e histórico. Nas últimas dé- das suas ideias na televisão aberta, nas rádios. Isso tem um
cadas, no Brasil, nós acompanhamos um crescimento expres- potencial de massificação de uma ideia que é impressionante.
sivo da população que se autoidentifica como evangélica. Há Então a quarta observação é que, de fato, existe um ultracon-
inclusive previsões de que o país pode ter uma maioria evan- servadorismo evangélico crescente no Brasil, por dentro das
gélica até metade deste século. E eu tenho a sensação de que o estruturas de poder, e que este ultraconservadorismo significa
fenômeno ainda é pouco ou até mal compreendido em um país um risco para a democracia, um risco para a laicidade tão frá-
de tradição católica, sobretudo. Existe, por parte da população, gil do Estado, um risco e violência para mulheres, negros, re-
um preconceito muito grande em relação aos evangélicos, e ligiões de matrizes africanas e por aí vai. A quinta observação
eu receio que isso até favoreça o crescimento das correntes que eu quero fazer é que dentro do campo evangélico também
fundamentalistas que você tanto condena, na medida em que tem segmentos progressistas organizados. É importante iden-
se assume que elas são as únicas que existem, talvez porque tificar que existe a Frente de Evangélicos pelo Estado de Di-
sejam também as que fazem mais barulho. E você é uma das reito e pela Democracia, que existe o Coletivo Esperançar de
principais vozes evangélicas hoje contra o fundamentalismo, Evangélicos e Direitos Humanos, que existe a Fepla — Frente
e já falou inclusive que nós deveríamos prestar mais atenção Evangélica pela Legalização do Aborto, que existe a EIG —
a esse fenômeno, principalmente ao neopentecostal, tentando Evangélicas pela Igualdade de Gênero, que existe a Coalizão
encontrar nele também a semente de uma outra imagem da re- Evangélica pelo Clima, debatendo e defendendo o meio am-

216 217
biente, que existe o MNE — Movimento Negro Evangélico. hoje um livro, Deus dos oprimidos, que fala sobre teologia negra
Ou seja, existem segmentos progressistas organizados dentro e sobre o céu, que muita gente vê como mecanismo de escape,
desse campo evangélico multiforme, plural e popular. como mecanismo alienatório. Para o povo negro, o céu sempre
O que eu estou defendendo aqui é que generalizar não é foi um elemento de revolução. É como se você dissesse: “Olha,
o caminho, e o que temos que perceber – esta é minha última na Terra eu sou oprimido pela minha cor, pela minha ancestra-
observação – é que na base da experiência evangélica tem tam- lidade, pela minha cultura, mas no céu a justiça vai triunfar. No
bém comunidade. Tem pessoas anônimas nessa sociedade, céu a igualdade vai prevalecer. No céu a liberdade eu vou can-
pessoas que pegam o trem às cinco horas da manhã, que pegam tar”. Esse “no céu” não é escape, é empoderamento. Se no céu
ônibus lotado, que abaixam a cabeça para o patrão opressor. eu vou viver com dignidade, então eu quero trazer essa digni-
Pessoas que são esquecidas pela sociedade e que nessas igre- dade para a Terra. Se no céu eu vou viver com justiça, então eu
jas encontram algum grau de prosperidade individual, algum quero proclamar essa justiça agora. Se no céu eu vou viver com
grau de empoderamento pessoal. Então existem mecanismos igualdade, eu quero ser igual a meus irmãos e irmãs hoje. Eu
de empoderamento, de sociabilidade, de comunidade, que nós estou apenas dando um exemplo da perspectiva do céu para o
precisamos perceber nessa experiência evangélica popular. povo negro, dentro da teologia negra, como um elemento de
Acho que esse conjunto de observações que eu fiz nos ajuda encantamento da vida que empodera para a luta. Poderia falar
a termos uma noção da complexidade desse fenômeno. O que das festas de terreiro, mesmo não sendo a minha religião. Mas
nos cabe? Denunciar e enfrentar o extremismo religioso evan- será que as festas populares e os batuques nos terreiros não
gélico, mas estabelecer diálogo com a base evangélica, porque têm um elemento de subversão e celebração? Apesar da dor,
se trata de gente trabalhadora, que luta para sobreviver, e que apesar da injustiça, apesar da violência, nós celebramos, nós
não pode ser só rotulada e descartada por causa dos conserva- festejamos, nós cantamos, nós batucamos. Eu acredito que a
dorismos que carrega. religião, quando não capturada pelo extremismo, pelo fanatis-
mo, pelo conservadorismo, pode ser um elemento de encan-
Roberto Isso faz um gancho para nossa última pergunta, que é justa- tamento da rua, de encantamento dos encontros, de encan-
Romero mente sobre o papel que a religião teve em vários movimentos tamento da vida, de florescimento da mente, de abertura de
libertários e progressistas da história, como os movimentos horizontes, de não conformismo com o pragmatismo da vida.
por direitos civis nos Estados Unidos e a resistência à ditadura Acredito muito nisso.
militar no Brasil, por meio das Comunidades Eclesiais de Base, E gostaria de terminar com uma citação do Eduardo Ga-
por exemplo. Parece que há uma urgência em retomar e dis- leano quando ele fala que em um bar lá em Madri ele viu uma
putar essa arena pública, o espaço comum, mas sem esvaziar placa em que estava escrito “É proibido cantar”. E no aeropor-
completamente esses espaços da experiência religiosa, que to do Rio ele viu uma placa em que estava escrito “É proibido
eu acho que tem um pouco a ver com esse convite que você brincar com os carrinhos de bagagem”. Ou seja, ainda tem pes-
nos faz para dialogar com essas camadas evangélicas popula- soas que cantam e ainda tem pessoas que brincam. Eu acredito
res. Eu imagino que todas essas questões atravessam muito que esse é o encantamento que nós precisamos, de quem ain-
as suas preocupações e, para encerrar, gostaria de ouvi-lo mais da desobedece ordens frívolas e frias e canta, e batuca, e brin-
um pouco sobre como podemos construir o comum também ca, e abre nos encontros da vida o encanto de estar vivo. Já que
a partir da religião. estamos intrinsecamente na beira do abismo, que na beira do
abismo possamos produzir batuque, canto, poesia, brincadeira
Henrique
Vieira
Eu acho que não tem como pensar a humanidade sem a ex-
periência religiosa. A experiência religiosa pode ser alienan-
te, mas pode ser também comunitária, pode ser também em-
tica-relacional-histórica da fábula do amor .
e tornar a vida melhor para todo mundo por meio da ética polí-

poderadora, pode ser também revolucionária, como tantas e


tantas vezes já foi e também ainda é na história. Estava lendo

218 219
220 No olho
da rua
Luiz Rufino

RUA 226 Da arte urbana


à arte pública
Uma conversa entre
Roberto Romero e Janaína Macruz

234 As histórias
que as ruas contam
Uma conversa entre
Roberto Romero e Luiz Antonio Simas

244 Música de rua


Uma conversa entre
Roberto Romero e Luciana Xavier

220
Qual o destino dos que correm o mundo, mas não se encaixam
nos padrões dominantes? Sabemos que, a pretexto do chama-
do desenvolvimento, muitos modos de vida foram legados à
condição de desvios. Esses desviados são presenças incômo-
das que borram o tom de um modelo que se ergue e se expan-
de contrário às diferenças. Olho da rua, nome na praça, mulher da
pista, boca do lixo, barão da ralé, doutor de esquina, povo da rua, são
muitas as maneiras de nomear os praticantes desses tempos
e espaços. A rua risca, para uns, o desejo de calçamento do pro-
gresso, mas, para outros, ela agasalha a miséria1 de um mundo
que se ergue insistindo em negar saberes paridos, nutridos e
criados nas frestas.
Existe quem diga que a rua ensina mais que a escola.
Enquanto educador que semeia cismas em relação à questão
dos conhecimentos e suas políticas, percebo como não é ade-
quado, quando se trata de experiências, querer medi-las com
um único padrão. Nesse sentido, busco sempre me lançar à
sutileza do que pode residir nos percursos e, principalmente,
no que acontece quando diferentes itinerários se cruzam. Ao
longo do tempo, foram nos acostumando a encarar as coisas
com a crença na certeza dos caminhos retos. A consequência
tem sido que temos esquecido que dobrar uma esquina é saber
praticado por seres que geralmente são lidos como de caráter
duvidoso. Entretanto, esse povo da rua pintado feito o diabo
DA RUA
inscreve nas dobras dos cotidianos infinitas formas de fazer.
São essas maneiras que encaram com a mesma face as durezas
de estar lançando-se em um mundo radicalizado pela violên-
cia e que ao mesmo tempo guardam a sofisticação de inventar
OLHO

formas de trato da vida para inventariá-las como continuidade.


As palavras que escolho para dar vida a este texto baixam
para cantar a rua e seus saberes que pulsam nos fazeres de seus
praticantes. Se os nomes das ruas dizem acerca de uma história
que quer ser contada como sendo o maioral, aquilo que as ruas
Luiz Rufino

comem, bebem, brincam, disputam, testemunham e choram


diz sobre como o embate da vida acontece por aqui nas dobras
NO

e esquinas do tempo. A rua guarda mais que histórias que de-


vem ser lidas à contrapelo do projeto civilizatório, nos forne-
ce algo a mais que disponibilidade conceitual para encarar os
dilemas de uma sociedade que serpenteia entre o que por ela

1 RIO, João do. A alma encantadora das ruas. [Ed.Especial]. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2012.

222
vagueia e a proteção das “casas de família” e “homens de bem”. A fisicalidade da rua é apenas um dado em relação à com-
A rua invoca e assenta gramáticas que nos convocam a ler o plexidade do que está compreendido em sua espiritualidade,
Brasil a partir de um giro. Este giro é também gira, rodopio, ou seja, sua dimensão metafísica. Por isso, para falar de sabe-
arrebate dos corpos e vozes que imantam a força do ir e vir res comuns a todo e qualquer vivente, invoco a categoria povo
dos comuns. Sujeitos comuns, trabalhadores de toda estirpe de rua, que aqui baixa também para se referir às manifestações
que na condição de povo de rua carregam o fardo dos estigmas que exaltam traços identitários de populações historicamen-
forjados na caldeira de um mundo que tem na intersecção en- te produzidas como marginais, que são aqui deslocadas para
tre raça, gênero e classe a métrica produtora de exclusão, pri- operarem na tessitura de outros sentidos. Afinal, a rua só é
vilégio e poder. escola, faculdade, tempo e espaço de múltiplos saberes, por-
É importante lembrarmos que a categoria povo de rua que ali se imbricam corpos que a praticam e dão o arremate de
assente nas experiências dos terreiros brasileiros, que são co- seus sentidos.
mumente vinculadas à ideia de seres diabólicos, imorais e im- Malandros, prostitutas, cafetões, ladrões de toda estirpe,
prudentes, acentuando como é frágil o estatuto de santidade assassinos, excomungados, bêbados, eternos caminhantes, fu-
que aqui foi plantado como uma das promessas de redenção gitivos, achacadores de otários, toda a sorte de miseráveis que,
civilizatória. Por isso que, em uma terra onde ninguém é san- em seus corpos e práticas, forjam um repertório infinito de sa-
to, tipos comuns como malandros, pivetes, prostitutas, deso- ídas sagazes e modos de ser e praticar a rua. Arquivos corporais
cupados, seres de vida errônea e tantos outros em condição que codificam e enunciam nas práticas uma contracultura do
vacilante são, nas tramas, ambivalências e impurezas do caos civilismo dominante. São sujeitos comuns, praticantes mu-
cotidiano invocadas como textualidades divinas. nidos de saberes que desferem golpes imprevisíveis, oportu-
Como canta o verso de um desses santos da rua, ela é de nos, produtores de ações rebeldes que inventam os cotidianos
quem nasce, se cria e morre nela, digamos também que é da- como possibilidade de sobrevivência.
queles que a fazem de tempo e espaço de passagem, rito de in- A noção de povo de rua aparece aqui então como um com-
venção do mundo. A rua é chão das histórias e sapiências dos plexo que aponta diferentes características da rua e seus mo-
que cruzam a vida, a reinventando nas brechas e na escassez. dos de fazer. A rua emerge como um texto inacabado, compos-
Eis a rua e seus zeladores, os tipos que nascem, se criam e por to de inúmeras formas de inscrições e autorias. Dessa forma, a
lá se encantam. Eis os que a fazem como lugar de passagem, eis rua, mirada a partir do saber de seu povo, compreende-se como
os sujeitos que a praticam, eis os poderes que por ali se lançam um vasto campo em que operam diferentes maneiras de uso
para ganhar corpo no povo de rua. de seus espaços. Esses usos remetem, assim, a uma forma es-
A rua nos ensina, é escola, faculdade inalienável. A rua pecífica de modos de fazer. Essa perspectiva sobre a rua revela
nos diz sobre o que é o caminho para além da retidão castrado- a dimensão poética e de encantamento do tempo e espaço en-
ra do desenvolvimento, que não é envolvente às diferenças. quanto instância inventiva das práticas. Assim, diferencia-se
O caminho como inscrição da errância transborda o entendi- do caráter desencantado da produção de cidades simulacro,
mento da rua como lugar de trajetórias determinadas, rasura que regulam e criminalizam as invenções cotidianas sob a ins-
a pretensão da rua como um lugar desencarnado de sentidos tância da ordem, que, por sua vez, é regida a partir de orienta-
imateriais que a codificam como um signo complexo. Dessa ções ideológicas edificadas nos ditames da gramática colonial.
maneira, adentrar a rua a partir do encantamento que a as- Nas ruas, esquinas e encruzilhadas da cidade, os corpos,
senta, nos permite ir além de sua concretude, dos ritos do ir subalternizados frente ao dilema colonial, praticam os espaços,
e vir cotidianos, dos caminhantes, daqueles que a praticam e gingam, golpeiam, sobrevivem. Gargalhadas padilhadas,2 dri-
conferem à rua a condição de tempo e espaço inventivo, por bles de corpo malandreados, nuvens de fumaça baforadas das
onde se riscam e alinhavam múltiplos saberes expressos nas
práticas cotidianas.
2 RUFINO, Luiz; SIMAS, Luiz Antonio. Fogo no Mato: a ciência encantada das
macumbas. 1. Ed. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.

224 225
bocas daqueles que se imantam na rua como os zeladores do tempos de vivacidade onde o rito cotidiano de inventá-la é o
lugar, corpos enviesados, maltrapilhos, mulambos. Corre, corre significado maior. Não basta dizermos que na rua há múltiplos
as ruas para girar o corpo, as palavras e correr gira! Existem in- saberes, é preciso reconhecer seus textos, autorias e margear
finitas maneiras de fazer, os modos astuciosos de proceder na os diálogos que os seus praticantes fazem com os mais dife-
rua riscam os pontos de textos que gritam nos cotidianos, mas rentes contextos. No Brasil ainda prevalecem maneiras de en-
ainda pouco ouvidos por aqueles que pensam a rua meramen- cará-la como cursos de um mundo maniqueísta, desigual e que
te em sua funcionalidade e não em sua dimensão ritual. flerta com ela, que submetem seus praticantes e textualidades
A rua incorpora outros sentidos, encarna uma alma pró- ao rigor de um modelo herdeiro da dominação colonial. A rua
pria, desobediente, traquina e sem amarras morais. A muscu- é mais, é tempo e espaço de múltiplos saberes, aprendizagens
latura da rua, ora tensa, enrijecida, vigiada, escapa para perfor- e passagens daqueles que podem reposicionar a vida de forma
mar as invenções nas frestas, modos esses enunciados a partir
de outros arranjos, só possíveis na ginga, no riso, no drible, no
andar de viés. A rua, mirada a partir da inteligência dos que a
.
mais justa, já que todo caminho, por mais que possa se reivin-
dicar como tal, não pode ser de via única

praticam, revela as contradições, ambivalências, negociações,


jogos, como também a fragilidade das ambições dos que ten-
tam a transformar em algo único. Haverá quem diga que a rua
é um lugar violento, inóspito, contaminado e marginal, lá cada
um estaria lançado à sua própria sorte. A palavra “rua torna-se
adjetivo que sopra pragas, condenações ou, no extremo das
ausências, é a única possibilidade, a cartada que joga com os
elementos da imprevisibilidade em um jogo de tudo ou nada.
A rua e as suas derivações, inscritas nos ideais coloniais
de civilidade do Ocidente europeu, padece do assombramen-
to do expurgo, da assepsia, do embelezamento, da ordem, da
higienização, da formalidade, da repressão e das ausências de
criatividade. Não à toa, a invenção das ruas, esquinas e encru-
zilhadas como tempos e espaços praticados ressoa como ver-
dadeira astúcia, contragolpe aos regimes de desencantamento
do mundo, produzidos pela continuidade das forças que tem
na colonização sua matriz geradora.
A rua, que tem dono que a guarda e a dinamiza, é o tem-
po e espaço onde se cruzam as diferenças que bailam nas con-
tradições, nas ambivalências e nos inacabamentos do mundo.
Ir à rua, ganhar a rua, rodopiar no meio da rua diz muito sobre
as dimensões sensíveis da vida que estão em disputa a todo
momento. A rua, na inscrição de seu povo, é a da desobediên-
cia do caminhante, da gargalhada que destrona, das sapiên-
cias do corpo, da palavra cruzada, da astúcia, da transgressão,
da antidisciplina.
Dessa maneira, podemos encarar as ruas como espaços
funcionais onde a vida por ali passa reduzida a algo meramen-
te utilitário, ou podemos senti-la e praticá-la como espaços e

226 227
Da arte urbana

bandeiras e esculturas realizadas nas fachadas e ruas


projeções e intervenções. Nesta conversa conduzida

arte pública de Minas Gerais, continuou provocando


CURA - Circuito Urbano de Arte, o maior festival de
à arte pública
fachadas dos edifícios se transformaram em duas

importantes debates públicos através de murais,


cultural Janaína Macruz nos conta sobre como o
Em tempos de isolamento social, as janelas e as

pelo antropólogo Roberto Romero, a produtora


população com o mundo, por meio de músicas,
das principais plataformas de comunicação da
Uma conversa entre
Roberto Romero e Janaína Macruz

Roberto Já faz um tempo que tivemos que abandonar uma série de ati-
Romero vidades que antes eram bastante presentes em nossas vidas, e
não é novidade para ninguém que a cultura foi uma das áreas
mais atingidas por tudo isso que estamos vivendo. Mas, ape-
sar de o isolamento social ter suspendido quase todas as pro-
gramações culturais presenciais, houve um festival em Belo
Horizonte que conseguiu acontecer, com toda segurança, no
meio da pandemia. Eu estou falando do CURA — o Circuito
Urbano de Arte — que é o maior festival de arte pública de Mi-
nas Gerais, organizado por três mulheres inspiradoras: a Pris-
cila Amoni, a Juliana Flores e a Janaína Macruz, com a qual eu
vou conversar aqui. O CURA convoca artistas das mais diver-
sas origens e linguagens para pintar murais gigantescos em
empenas, que são aquelas fachadas sem janelas que formam
paredões sem graça na paisagem da cidade. E aqui, em Belo
de Belo Horizonte.

Horizonte, para quem não conhece, existe a rua Sapucaí, de


onde é possível ver as obras do festival enquanto elas ainda
estão sendo feitas. Dessa mesma rua, é possível ver o mural
mais alto pintado por uma artista mulher na América Latina,
que tem simplesmente 56 metros de altura e é também resul-
tado de uma das edições do CURA. Janaína, eu queria começar
a nossa conversa pedindo para você contar um pouco sobre o
festival, a sua criação e a sua proposta artística.

Janaína O CURA é um projeto que nasceu de três amigas, em 2015, que


Macruz estavam envolvidas com a cena de arte urbana e queriam fazer
um festival. Já tinha muitas empenas pintadas em São Paulo,
mas em Belo Horizonte ainda não havia, e não tínhamos ideia
da dificuldade que era pintar uma empena. Quando inscre-

228
vemos o projeto desse festival em 2015, na Lei Municipal de Roberto É muito perceptível como a passagem do CURA transformou
Incentivo à Cultura, tivemos várias ideias de ocupação da rua. Romero a forma de ocupação daquele espaço, que continua até os dias
Mas depois que o projeto foi aprovado e a verba foi captada, de hoje, tornando-se um ponto de referência e de encontro na
entendemos que a realidade era muito diferente do que pen- cidade. E percebemos também que nesse meio tempo houve
sávamos. Nós queríamos fazer 12 empenas e o dinheiro não algumas transformações na própria curadoria do festival, que
dava praticamente para fazer nem a metade disso. Mesmo as- passou a abrigar outros trabalhos de artes visuais, inclusive
sim, adaptamos o projeto, diminuímos o número de empenas esculturas e instalações, como a obra Serpentes, do artista in-
de 12 para 4, e fizemos uma junção de coletivos para fazer as dígena Jaider Esbell, que foi um marco na edição de 2020 do
coisas acontecerem. A primeira edição do CURA só foi possí- festival. Eu queria ouvir mais sobre essas novidades e o que
vel, então, por causa dos amigos e das parcerias com coletivos elas projetam para o futuro do festival, se vocês pensam em
culturais da cidade como a Família de Rua, a Alcova Libertina, expandir essas formas de interação com outras artes urbanas,
a Benfeitoria e a Área de Serviço. Hoje, nossa equipe de produ- outras formas de ocupação do espaço para além das empenas
ção conta com cerca de 40 pessoas, e na época fizemos o CURA que estavam na ideia original.
com apenas 6 pessoas. Foi mesmo aquele famoso milagre de
todo início de projeto. Janaína Quando começamos, estávamos bem focadas na arte urbana,
Macruz e depois entendemos que queríamos trabalhar com arte públi-
Roberto Desde o princípio, uma característica muito forte do CURA ca, que expande um pouco a discussão. Arte pública se trata de
Romero foi essa conexão entre os trabalhos dos artistas convidados e qualquer tipo de obra que esteja na rua, que não tem essa barrei-
o público. O festival ocupa inicialmente a rua Sapucaí, e trans- ra física de um museu, mesmo que o acesso a ele seja gratuito.
forma a rua em um mirante onde diariamente acontecem di- A obra está ali para todos verem. Esse tipo de arte transforma
versas atividades culturais, além dos próprios trabalhos (e quem está passando por ali. Sabemos que no centro da cidade
enquanto os próprios trabalhos estão sendo feitos). A grande passam cerca de 1 milhão de pessoas, e essas obras públicas
maioria das pessoas de Belo Horizonte tem essa experiência despertam vários sentimentos. Nós resolvemos expandir en-
de passar e ver as obras sendo feitas ali, encontrando um ami- tendendo que o CURA não deveria ser apenas as empenas, não
go no fim da tarde, acompanhando esse processo. Eu queria deveria ser somente arte urbana e muralismo, mas que deveria
que você comentasse um pouco essa ocupação do espaço pú- se tratar de arte pública. Trouxemos, então, essas instalações:
blico e da rua promovida pelo festival, e a importância disso uma escultura inflável em forma de serpente do Jaider Esbell
para vocês. no viaduto Santa Tereza, e um conjunto de bandeiras na facha-
da do edifício da antiga Escola de Engenharia da UFMG – que
Janaína Para além da pintura das empenas, nós pensamos muito em teve tudo a ver com a pandemia, porque era através das janelas
Macruz como o público iria sentir esse festival durante os seus 13 dias. dos edifícios que a população mundial estava conseguindo fa-
Primeiro, resolvemos escolher um ponto de referência de onde lar com o mundo. E foi muito interessante transformar esses
todas as empenas pudessem ser vistas – no caso, a rua Sapucaí. espaços por onde a população transita diariamente.
Resolvemos também trazer uma vivência para esse público
nesse lugar. Propusemos, então, oficinas, debates e shows de Roberto Janaína, eu a conheço de outros carnavais, e é óbvio que eu
música, enquanto o público ficava acompanhando esse pro- Romero vejo uma conexão muito forte entre a proposta do CURA e
cesso de pintura. Acho que Belo Horizonte tem muito forte tudo aquilo que vivenciamos na cidade nessa década de 2010
na memória a década de 2010, que foi um marco de ocupação (a Praia da Estação, o carnaval de rua, o Movimento Luiz Estre-
do espaço público, e o CURA vem desse contexto. Colocamos la, entre tantos outros). Eu gostaria que você falasse um pouco
cadeiras de praia na rua Sapucaí para que as pessoas pudessem dessa relação com esses movimentos, da importância e da in-
ficar ali, vivendo aquele espaço público, enxergando-o e sen- fluência deles para a criação do CURA.
tindo-o de outra forma.

230 231
Janaína Na verdade, somos todos filhos da Praia da Estação.1 É claro
Macruz que, antes da praia, já estávamos ocupando a cidade de certa
forma, mas de maneira segmentada. Mas a partir de 2010 veio o
carnaval, e acho que foi aí que a Praia conseguiu juntar todos os
segmentos da cultura com os movimentos sociais. Isso virou
uma bomba, uma explosão de purpurina, e a cidade se transfor-
mou em uma pulsão de criatividade. Tinha Gaymada (campe-
onato de queimada nas praças), Escorrega (tobogãs infláveis
com sabão), Mundialito de Rolimã (campeonato de carrinhos
de rolimã), e o CURA é filho dessa geração, é mais um coletivo
propondo um projeto na cidade. Eu sinto muito essa questão
da autoestima de Belo Horizonte. Quando eu era jovem e esta-
va na universidade, todos achavam Belo Horizonte uma cidade
chata, e queríamos sair daqui. Mas hoje em dia você vê muita
gente falando “eu amo BH”. Nós amamos BH, e o CURA ama
BH. Nós transformamos mesmo a autoestima da cidade.

Roberto Janaína, ocupar o espaço público com arte é um ato político. E


Romero nos últimos anos, conforme o festival coloria algumas facha-
das do centro, vimos também surgir uma reação contra alguns
trabalhos artísticos realizados no contexto do festival. Temos
alguns casos emblemáticos, como, por exemplo, o mural do
artista Robinho Santana, na avenida Afonso Pena, acusado de
apologia ao crime porque convidou artistas pixadores para a
composição da empena. Outro caso envolveu a artista Criola,
que foi alvo de uma queixa de um único morador do prédio
onde foi feita a empena, e que acusou a obra, que estampa o
corpo de uma mulher negra, de “gosto duvidoso”. Temos vis-
to avançar na Câmara Municipal projetos de criminalização
de artistas urbanos, recorrendo àquela dicotomia entre pixo e
arte/graffiti. E não por acaso, os dois artistas, o Robinho Santa-
na e a Criola, são negros. Então eu queria que você nos contas-
se como andam esses processos, como foi o enfrentamento a
essa reação, em que pé estão essas investigações e o que tudo
isso nos diz sobre essa relação da arte com a política.

1 A Praia da Estação surgiu em 2010 como uma reação a um decreto da


Prefeitura Municipal de Belo Horizonte que proibia a realização de eventos
de qualquer natureza na Praça da Estação, um dos pontos turísticos mais
antigos da capital mineira. Desde então, o movimento ocupa a área da praça
com cadeiras de praia, boias, guarda-sóis e caminhões pipa, que transfor-
mam o local em uma verdadeira praia. O movimento foi um dos grandes
impulsionadores da volta do carnaval de rua de Belo Horizonte.

232 233
Janaína Primeiro é interessante falar que quando você trabalha com propôs uma textura gigante de pichação, muito maior do que
Macruz arte pública, tudo vira maior, porque você está contando com a a do Robinho Santana, e não se falou um “a” sobre o assun-
opinião pública. As coisas que acontecem no CURA têm muita to. Uma artista branca, argentina, e não se falou nada sobre
visibilidade. Sobre essa história dos pixadores, estamos acom- a textura da obra que está escancarada e virou ícone de Belo
panhando 3 artistas que participaram do CURA e que estão Horizonte. E sobre o trabalho dos artistas negros, os proble-
presos, e nós estamos tentando tirá-los da cadeia. São jovens, mas aparecem de forma muito rápida. Não é coincidência, nós
são pais, são da periferia e em plena pandemia foram levados sabemos que não é.
por causa de pichação. Mas essa história do pixo é complexa
mesmo, porque se discute há um tempo se é arte ou se não é, e Roberto Não é nenhuma coincidência, e isso inclusive se conecta com
nós obviamente defendemos que é arte sim. Mas o pixo é uma Romero a história de perseguição a artistas negros (no movimento mu-
contravenção, e segundo a legislação, ele é passível de pena sical, por exemplo, com o funk e o rap). Espero que, pelo me-
leve. Mas há uma confusão muito grande da sociedade, e essa nos, em um espaço como o CURA, que tem essa visibilidade
nova lei que você citou nada mais é do que uma vontade de le- e que tem essa abertura para a cidade e para o público, essas
gislar em cima da estética. Eles estão legislando se a caligrafia questões possam ser debatidas abertamente com a sociedade.
urbana do pixo é arte ou não é arte, e essa não é a questão (a
questão é se é autorizado ou não é). A partir do momento em Janaína Você falou agora da questão do debate, e nós gostamos mui-
que não é autorizado, qual a pena colocada pelo Estado para Macruz to de trazer para o festival as questões que estão latentes na
a pessoa que fez isso? Está certo querer que uma pessoa que cidade para serem debatidas, para o público entender, escutar
“suja” (porque é isso que se ouve por aí) o muro tenha que ficar e discutir. Isso aconteceu, por exemplo, com a entrada de artis-
presa por três anos? A arte não deve ser legislável. tas indígenas no CURA.
Essa foi uma questão que enfrentamos fortemente nes-
te ano de 2021, porque o CURA foi acusado de apologia ao Roberto O interessante dessa proposta foi que esses artistas indígenas
crime por chamar esses meninos para participarem. Essa tam- Romero nunca tinham feito uma empena, como a Daiara Tukano, que
bém é uma outra história, porque a partir do momento em pintou a Selva Mãe do Rio Menino, a primeira empena do mundo
que um festival de arte convida uma pessoa para estar dentro pintada por uma artista indígena. Tem algo de formação de ar-
da programação enquanto artista, é a polícia militar que vai tistas nesse formato do festival que eu acho incrível.
dizer que ele não é artista? Dentro do festival, ele é um artis-
ta sim. Ele está sendo pago, e foi convidado enquanto artista. Janaína Nós já queríamos trazer artistas indígenas, mas precisamos ter
O caso da Criola ainda segue tramitando, nós conseguimos Macruz um amadurecimento enquanto festival para darmos condição
ganhar a imprensa e a mídia com um abaixo-assinado que a a um artista que nunca pintou um mural daquele tamanho
Criola lançou e, com isso, a juíza está segurando o processo. conseguir realizar a obra. É diferente de um artista que já faz
Porque, no limite, o que impusemos para ela foi o seguinte: empenas, que você larga ali e vai ficar tudo bem. Nesses casos,
independentemente das regras, da legislação que o morador
está defendendo ou não, se ela der o processo favorável a esse
morador, ela falará que é para ser apagada uma obra de uma
gam realizar aquilo que propuseram. É uma troca incrível .
há toda uma estrutura por trás, para que esses artistas consi-

artista negra. E não é coincidência todas essas ligações com


a negritude dos artistas. Tivemos um problema com a artista
Luna no bairro Lagoinha também, tendo que mudar a empe-
na de última hora porque o pessoal do prédio achou que o tur-
bante na cabeça da personagem dela era uma coisa religiosa. A
Luna é negra, a Criola é negra, o Robinho Santana também é
negro. A Milu Correch, que fez a primeira empena do CURA,

234 235
As histórias
conversa conduzida pelo antropólogo Roberto Romero,

quitandas, terreiros e rodas de samba fabulam a vida e


pelas encruzilhadas da nano-história onde botequins,
que as ruas
o historiador e escritor Luiz Antonio Simas nos guia
contam
feirantes, os sambistas e os caboclos, pois nesta
Chamem os erês, as rezadeiras, os foliões, as

Uma conversa entre


Roberto Romero e Luiz Antonio Simas

Roberto Quando estudamos os livros de História, quase não vemos fa-


Romero lar sobre os botequins de esquina, as rodas de samba, os terrei-
ros, as quitandas e as biroscas. Entretanto, muitos dos grandes
eventos da História podem ter começado por ai, no cotidiano
das ruas, e o interesse e o prazer que você, Simas, sente pelos
fatos históricos, foram justamente despertados pela memória
das ruas do Rio de Janeiro no período pós-abolição (que se ini-
cia em 1888). Era uma cidade efervescente que testemunhava
o início da popularização do samba, do futebol, das macumbas
e das rezadeiras, além da repressão aos grupos de capoeiras e
das rebeliões contra grandes reformas urbanas: uma cidade
que abrigava corpos de festa e de luta. Cada uma à sua ma-
neira, diversas cidades do Brasil também são resultado desse
encantam as ruas.

caldo que atravessaram gerações e continuam se atualizando


até hoje, fazendo da rua esse lugar de encontros tão especial. E
para começar, eu queria iniciar falando de Exu, esse orixá que
é senhor das ruas e dono das encruzilhadas. Gostaria que você
nos falasse, Simas, sobre quem é – ou melhor, quem são – Exu, e
qual a relação desses orixás com a rua.

Luiz A rigor é difícil definir Exu, porque Exu é um movimento cons-


Antonio tante, Exu é o dínamo, Exu é o inapreensível. Exu opera, portan-
Simas to, na imprevisibilidade, é uma energia que opera no surpreen-
dente, naquilo que não é apreensível cartesianamente. É muito
complicado expressar o que seria Exu, já que ele está presente
inclusive na materialidade das ruas. Exu está presente na esqui-

236
na, na encruzilhada, no botequim, no terreiro, no estádio de fute-
bol e na praça em que as crianças brincam. Fundamentalmente,

botequim, no terreiro, no estádio de futebol e na praça


em que as crianças brincam. Fundamentalmente, Exu é
Exu é esse orixá, essa energia, esse fragmento inapreensível pela

esse orixá, essa energia, esse fragmento inapreensível


pela razão cartesiana, e se manifesta nas construções
razão cartesiana, e se manifesta nas construções incessantes de
sentido de mundo na rua. Eu gosto muito de dizer que Exu, a ri-
“Exu está presente na esquina, na encruzilhada, no

gor, é um sistema de organização do mundo. Eu não diria que na

incessantes de sentido de mundo na rua. Eu gosto


encruzilhada você tem a energia de Exu, a própria encruzilhada

muito de dizer que Exu, a rigor, é um sistema de


é Exu. Exu é a possibilidade de vida, é isso que estamos vivendo
o tempo inteiro, é a palavra que eu estou dizendo, é a saliva que
está saindo da minha boca, é você me perguntando... Tudo isso
é Exu. É um princípio organizador do mundo.

Roberto Laroiê! E, Simas, você cresceu no terreiro, é neto de mãe de


Romero santo e costuma dizer que foi civilizado nessa tradição. Ao
mesmo tempo, você se formou como historiador e passou a se
dedicar ao que você gosta de chamar de uma “nano-história”,
que seria, para lembrar o enredo da Mangueira, “a história que
a História não conta”. Eu queria que você falasse sobre a sua
formação como historiador e como a sua relação com o ofício
foi se transformando ao longo do tempo.

Luiz É curiosa essa história, porque quando eu fui fazer o meu ves-
Antonio tibular, eu não tinha a menor convicção sobre o que eu deveria
Simas fazer dentro de um curso universitário. Acabei, então, fazendo
História, muito mais pela convicção que eu tinha do que eu
organização do mundo.”

não queria ser. Entrei, portanto, em uma faculdade de História,


mas sem grandes expectativas. E dentro da faculdade, acabei
me apaixonando sobretudo pela história da rua. Isso para mim
é muito claro, foi muito evidente que o que despertou o meu
prazer e minha curiosidade para estudar História foi quando eu
comecei a conhecer a história da Revolta da Vacina, e a ligação
entre essa revolta e a cidade do Rio de Janeiro. Aquele Rio de
Janeiro do pós-abolição, da codificação do samba, do início do
processo de popularização do futebol, da repressão às maltas
de capoeira, das macumbas cariocas, da rebelião contra a vacina
obrigatória, contra o Bota-Abaixo do Pereira Passos. Aquilo, de
certa maneira, se apresentou para mim como algo que eu queria
compreender. Eu nunca tive um interesse especial pela grande
História, pela história que se passa nos campos de batalha, nos
grandes gabinetes, nos palácios, nas grandes disputas. A minha
formação como historiador é uma formação que vai muito pelo
caminho de tentar conferir historicidade àqueles processos

238 239
históricos e àquelas pessoas que aparentemente não têm. E, por exemplo, contando a história de uma quitanda, de uma bi-
ao mesmo tempo, a minha perspectiva de história cruza muito rosca ou de uma rezadeira do Morro do Jacarezinho com uma
com a literatura. Ela cruza muito com a crônica e com essa pers- linguagem e um arcabouço cheio de aparatos conceituais. Fica-
pectiva literária. Eu gosto de cruzar esses terrenos diversos da ria forçado demais.
história, da literatura, da poesia, da música e da cultura popular.
Roberto Aproveitando ainda essa questão da escrita, quem você tem
Roberto Maravilha, e era justamente sobre sua escrita que eu gostaria de Romero em mente quando escreve?
Romero lhe perguntar na sequência. Porque como escritor, a sua relação
com a história, assim como com a escrita, é também muito par- Luiz Quem anda de trem. Eu quero escrever livros para que as pesso-
ticular. Parece que há em seu texto um esforço muito evidente Antonio as os leiam no trem. Você pega O corpo encantado das ruas, o Coisas
de aproximar-se dessa marca da oralidade, que é uma marca da Simas nossas, o Ode a Mauro Shampoo, e são livros feitos para que as pes-
tradição na qual você foi civilizado. E lendo seus textos, eu fre- soas os leiam no trem. Aquele que você leva, abre no trem e lê
quentemente tenho a sensação de estar conversando com um uma crônica rápida. Eu gosto de ser lido pela turma que está na
velho conhecido no botequim, já que você também mencionou rua. Durante três anos, eu escrevi para um jornal muito popular
o botequim e menciona, no livro O corpo encantado das ruas, a im- do Rio de Janeiro, o Dia, e era ótimo, porque eu ia para a feira e o
portância desse espaço do balcão do botequim como um lugar quitandeiro me reconhecia, e isso era uma beleza. Depois eu fui
de transmissão de conhecimento, de conversa, de história. escrever para O Globo, que dava um certo cartaz, mas ninguém
mais me conhecia! Os caras me ignoravam totalmente. Mas a
Luiz Essa pergunta que você me faz sobre a escrita é curiosa, porque época em que eu escrevia no Dia era ótima.
Antonio eu tenho uma dissertação de mestrado defendida. Depois, mi-
Simas nha opção foi ir para o campo da Educação, foi de não fazer o Roberto É incrível ter essa sensação desse Rio antigo, desse trânsito das
doutorado – eu confesso que gostei muito de fazer o mestrado, Romero ruas, das pessoas passando, de quem está na feira com o jornal
mas não gostei de escrever a dissertação. Porque a escrita da dis- impresso na mão. E há também no seu texto uma musicalidade
sertação foi uma escrita muito dura, foi uma escrita muito de muito forte e incontornável, já que você também é ogã, músico
pedra, uma escrita que teve que dialogar com um campo con- e compositor. E lendo O corpo encantado das ruas, é maravilhoso
ceitual que é importante, evidentemente, mas com o qual eu passar por todos os ritmos que você evoca. Mais do que só uma
não tive prazer. Eu sempre gostei mais de conversar (e isso pa- referência à música, há um esforço em trazer a música como
rece até uma heresia em se tratando de uma conversa com um uma forma de elaboração e expressão do pensamento, formu-
escritor), mas eu sempre gostei mais de conversar do que exa- lada nas tradições culturais de matriz africana. Eu queria, então,
tamente de ler. Eu sou um leitor, eu leio bastante, sempre que ouvi-lo sobre essa relação com a música no seu trabalho, em par-
tenho oportunidade estou lendo, mas sempre troquei um bom ticular na sua vida, e nas afrorreligiões de maneira mais ampla.
livro por uma boa conversa. Isso eu tenho que lhe confessar. De
certa forma, a linguagem coloquial para mim sempre foi uma Luiz Eu sou um sujeito que escuta mais o mundo do que o vê. A mi-
coisa muito natural. É a linguagem com a qual eu convivo, com Antonio nha relação com o mundo se dá mais pelo ouvido do que pela
a qual eu falo com a minha família desde garoto. Essa coloquia- Simas visão. Eu cresci em um ambiente em que a música está muito
lidade para mim não é nada que demande grandes esforços – e presente, que é o ambiente do terreiro. Você conta histórias
eu estou longe de ser um esteta da palavra. A minha literatura através da música, você evoca o mistério através da música,
é, então, propositalmente suja, propositalmente rasurada. Eu você se diverte através da música, você brinca através da mú-
falo de temas que são, de certa maneira, encantados, como a rua, sica, você reza através da música. A musicalidade sempre este-
a macumba e o samba. E eu acredito que a temática que você ve muito presente na minha vida, e na minha família também,
aborda tem que se relacionar diretamente com a prosa que você que sempre esteve ligada ao samba e ao carnaval. Minha mãe
vai escolher para abordar essa temática. Eu não me imaginaria, é pernambucana, meu tio falecido (que era meu padrinho) era

240 241
pernambucano, minha tia também. Meu tio foi presidente de
bloco, teve ala em escola de samba. Sempre foi uma vida muito
ligada à música. E na minha casa é curioso: eu cresci em uma
Brasil que eu estudo. E na perspectiva do terreiro, ela

entendendo que terreiro é qualquer espaço praticado


casa sem livros. Na minha casa não tinha livros, não era uma fa-

na dimensão do encantamento do mundo, que pode


mília letrada – o primeiro que terminou o Ensino Médio para

tempo todo. A rua, muitas vezes, é entendida como


não faz muito sentido, porque a rua é terreirizada o entrar em uma universidade fui eu –, então o livro não era uma

um espaço estendido da própria ideia de terreiro,


referência. Em compensação, havia muitos discos.
“Essa oposição entre casa e rua não dá conta do

ser o chão, a esquina, a praça, a praia, o corpo.”


Em relação às sabedorias africanas, como recentemente
Nei Lopes e eu escrevemos em nosso livro Filosofias africanas:
uma introdução, a música acompanha todos os momentos da
vida. Você tem música para nascer, você tem música para casar,
você tem música para sair na porrada, você tem música para
morrer, você tem música para entrar na adolescência e para
trabalhar. A música está o tempo todo presente na sua vida,
ela interage muito com você. E isso repercute na minha escri-
ta. Eu tenho sim uma preocupação de ter um texto ritmado, e
isso vem da minha infância, vem do ambiente com o qual eu
convivi, e vem do fato de eu escutar música o tempo todo, o dia
inteiro. Acho que isso se reflete nos meus textos.

Roberto E tem algo na sua escrita e na sua fala que provoca muito uma
Romero certa história e uma certa tradição sociológica ou antropológi-
ca mais canônica. Vemos que há nessa tradição do pensamen-
to social brasileiro uma oposição muito sedimentada entre a
casa e a rua (esse é até o título de um livro famoso, do Roberto
DaMatta). E acho que, de certa forma, o terreiro desestabiliza
um pouco essa oposição entre público e privado, e fico curioso
para ouvi-lo a esse respeito. Como essa oposição funcionaria
se substituíssemos esse lugar da casa pelo terreiro, e o que as
comunidades de terreiro poderiam nos ensinar sobre essa re-
lação com o espaço público?

Luiz Eu acho que essa oposição entre a casa e a rua, que já é um


Antonio clássico, é muito burguesa, é um olhar lançado pela burguesia
Simas brasileira. Na verdade, essa ideia diz muito sobre a burguesia
brasileira ou sobre uma pequena classe média urbana, apenas.
Vou lhe dar um exemplo: existem muitos trabalhos que falam
da Primeira República, da virada do século 19 para o século 20.
Naquele contexto, é muito comum que se diga que havia uma
oposição muito grande entre a casa e a rua, entre o público e o
privado, entre a rua como o espaço masculino e a casa como o
espaço feminino. Mas isso depende muito: se a casa é um espa-

242 243
ço feminino, de que mulher você está falando? Se você for falar, que a festa também tem tudo a ver com a morte ou com a cons-
por exemplo, das mulheres ligadas às tradições afro-brasileiras ciência de uma vida breve, uma consciência profunda que está
e aos terreiros, o espaço delas era a casa, mas também era a rua expressa na festa e na alegria.
o tempo inteiro. Se você estudar as grandes tias do samba, verá
que elas estão todas na rua. A Tia Ciata,1 por exemplo, tinha um Luiz Eu insisto sempre na ideia de que a festa não acontece porque
tabuleiro de doces na esquina da rua 7 de Setembro com a Uru- Antonio a vida é boa, mas pela razão inversa. A festa em geral acontece
guaiana, no Rio de Janeiro. A Tia Prisciliana de Santo Amaro da Simas porque a vida não é boa (até porque se fosse, você não precisaria
Purificação, que era mãe de João da Baiana; a Tia Amélia, mãe de festa nenhuma). Sobretudo nas sociedades industriais a par-
de Donga; a Tia Carmem do Xibuca; todas essas mulheres ne- tir do avanço do capitalismo e da industrialização, a festa ganha
gras dos matriarcados de terreiro estavam o tempo inteiro na outro sentido, se torna uma instância de reconstrução da ideia
rua, porque fundamentalmente estavam ligadas à culinária do de ser coletivo. Porque vivemos em um mundo muito marcado
dendê. Elas viviam de colocar a barraca na rua, de participar da pela individualização, pelo tempo do relógio, pela lógica pro-
Festa da Penha, de vender comida e guloseimas. Essa oposição dutiva, e vivemos experiências de despertencimento o tempo
entre casa e rua, portanto, não dá conta do Brasil que eu estudo. todo. E a festa adquire uma função inclusive de organização
E na perspectiva do terreiro, ela não faz muito sentido, porque a social, de reconstrução dessa ideia de comunidade que eu acho
rua é terreirizada o tempo todo. A rua, muitas vezes, é entendida extremamente relevante. Quando eu falo de festa, eu não falo
como um espaço estendido da própria ideia de terreiro, enten- de eventos, mas de festas que organicamente estão inscritas na
dendo que terreiro é qualquer espaço praticado na dimensão tradição, na experiência cotidiana, que passa de mãe para filho,
do encantamento do mundo, que pode ser o chão, a esquina, a de pai para filha, de avô para neto. Existe, então, uma dimensão
praça, a praia, o corpo. Se pensamos em terreiro, essa dicotomia na festa que ocupa o espaço de reconstrução do sentido coleti-
tem que ser problematizada, até porque as dicotomias são mui- vo do ser, importante em um mundo em que, como diria Paulo
to caras a uma certa inflexão, a um certo pensamento bem oci- Freire, temos cada vez mais comunicado e menos comunidade.
dentalizante. A dicotomia entre o corpo e o espírito, a dicotomia Além disso, a festa traz a urgência da nossa experiência
entre a mente e a intuição, a dicotomia entre a razão e a espiri- que é muito curta, que é quase inexplicável, e que não tem sen-
tualidade, a dicotomia entre a salvação e o pecado. Mas quando tido nenhum. Isso, evidentemente, não quer dizer que eu ache
você pensa em saberes outros, nada disso tem muita pertinên- que, no meio da pandemia, nós temos que fazer festa, temos
cia. O sagrado e o profano, por exemplo, não são dicotômicos de que nos aglomerar. Acho realmente que só deveríamos ter um
forma nenhuma: você sacraliza o profano e profana o sagrado o carnaval de rua em condições sanitárias que sejam exequíveis
tempo inteiro. Você está sacralizando muitas vezes a rua e está para que as pessoas brinquem com segurança. Quando eu falo
profanando a sua casa, ou você está sacralizando a casa e profa- da importância da festa, não é no sentido de uma maluquice
nando a rua. É dessas experiências que nós vamos sendo feitos. completa de você se entregar à morte, não é aquela ideia do
“carpe diem porque vou morrer daqui a duas horas”, pelo con-
Roberto E, Simas, para caminhar para a conclusão da nossa conversa, eu trário. É no sentido de afirmação da vida contra a morte que
Romero queria falar de carnaval. Estamos caminhando para o segundo nos espreita o tempo todo. Nós trabalhamos muito com a ideia
ano de pandemia, não sabemos ainda o que esperar, o que vai de que o carnaval vem do italiano carnevalli, a festa da carne, a
ser do carnaval no ano que vem. Mas, ao mesmo tempo, muita despedida da carne, mas o filósofo russo Mikhail Bakhtin, por
gente ralha quando tocamos nesse assunto, dizendo que “não exemplo, buscava uma etimologia germânica para isso, falan-
é hora de falar de carnaval”, e você sempre rebate lembrando do de val, que é a morte. Ele propõe que carnevalli seria “a festa
dos deuses que já não existem”, a celebração dos deuses mor-
tos. Eu acho essa ideia muito bonita, porque no carnaval nós
1 Tia Ciata tornou-se a grande dama das comunidades negras no Brasil
pós-abolição, e uma das principais incentivadoras do samba depois de abrir celebramos ou aquilo que efetivamente somos, ou aquilo que
as portas de sua casa para reuniões de sambistas pioneiros quando a prática
ainda era proibida por lei. realmente muito amplos .
não somos, mas gostaríamos de ser. Os sentidos da festa são

244 245
Música

Luciana Xavier discutem sobre como a relação entre a


de rua
Do samba ao funk, do soul ao hip hop, é inegável que

rua, a música e a festa popular foi capaz de produzir


as ruas têm um papel fundamental na construção de
gêneros musicais negros no Brasil. Nesta conversa,

estéticas que desafiam o racismo e a desigualdade


o antropólogo Roberto Romero e a pesquisadora
Uma conversa entre
Roberto Romero e Luciana Xavier

Roberto Eu acho incrível olharmos para a história da música popular


Romero brasileira e encontrarmos nela a história das ruas e vice-versa,
já que aqui no Brasil uma coisa simplesmente não existe sem a
outra. E você, Luciana, se dedica a pesquisar justamente como
a rua, o terreiro e a festa popular foram fundamentais para a
criação da música popular negra no Brasil, desde os quilombos
até os bailes funk dos dias de hoje. Para começar, eu gostaria
então que você nos contasse um pouco da sua trajetória e de
como a música se tornou o seu tema de pesquisa.

Luciana Na verdade, eu sou muito fã de música, e essa é uma questão


Xavier recorrente entre as pessoas que pesquisam gêneros musicais,
que acabam transformando aquilo de que gostam em material
de pesquisa e tema de produção de conhecimento. Eu sempre
social em nosso país.

usei a música como uma possibilidade de construir outros uni-


versos e outras realidades para a minha vida, já que, quando eu
ouvia música, eu virava uma coisa melhor do que eu achava
que era. E quando eu começo a lidar, em meu cotidiano e na gra-
duação, com questões raciais, eu passo a perceber como a mú-
sica negra e os músicos negros sempre acionaram ideias sobre
raça e impulsos políticos contra o racismo. Isso despertou um
interesse muito grande em pensar a música como um espaço
de representação e de fazer política. Eu costumo falar que eu
não pesquiso a música em si, mas muito o que as pessoas fazem
com essas músicas, e esse é um caminho que eu tenho seguido
na minha trajetória de pesquisa.

Roberto Perfeito, Luciana! E, sem dúvidas, há uma conexão muito es-


Romero pecial entre as diversas músicas negras e o espaço público de

246
modo mais amplo. Eu queria, então, que você nos apresentasse É também importante pensarmos que a rua potencializa
um pouco a diversidade das músicas negras no Brasil, a partir o lugar de criação coletiva dessas músicas iniciais. Há uma sé-
desta conexão com a rua. rie de gêneros musicais negros que vieram de África e que são
criações coletivas – uma categorização interessante para pen-
Luciana Basicamente as músicas populares brasileiras contemporâne- sarmos a diferença entre a música popular e a música comer-
Xavier as, principalmente as músicas negras, são músicas de rua: elas cial ou erudita. O fato de nomear um autor, pensar em direitos
não vêm de gravadoras ou de movimentos musicais de artistas autorais, é uma ideia moderna, que surge no Romantismo para
que se reúnem em apartamentos para criar (como foi o caso da as artes em geral. Entretanto, antes as produções eram coleti-
bossa nova), mas são músicas que surgem da rua. São músicas vas, todo mundo participava, e as músicas eram produzidas
que estão em circulação na rua, principalmente na esfera pú- pela comunidade para a comunidade, em um momento de di-
blica que opera como lugar de encontro de sujeitos marginali- versão e festa. Nesse contexto, é interessante pensarmos como
zados, de trabalhadores, de pobres, de pessoas que eram escra- as ruas possibilitavam o contato para pessoas diferentes dialo-
vizadas, de pessoas libertas, de fugitivos, de imigrantes. Nesse garem e criarem, ainda que eu não esteja descartando o fato de
contexto, falo especialmente do ponto de vista do Rio de Ja- que o Rio de Janeiro é uma cidade profundamente segregada.
neiro, que no início da República era a capital do país e detinha A música operava como um espaço de fuga, uma rachadura,
uma concentração enorme de produções musicais. Naquele especialmente nesse sistema absolutamente segregado, de
período, entre o final da escravidão e o pós-abolição, o Rio era desigualdade entre grupos raciais e sociais. As pessoas se en-
uma cidade em efervescência, mesclando diferentes referên- contravam para cantar, para comer, para compor, para fazer as
cias culturais – inclusive sonoridades que vinham do exterior, festas de rua (incluindo o carnaval), operando, ao mesmo tem-
como a polca e o jazz. E como essas músicas circulavam jun- po em que a cidade crescia, a continuidade dessa vida coletiva
to com o desenvolvimento de produções musicais populares de rua nas produções culturais.
que cresciam com a própria cidade, é fundamental pensarmos
que o urbano está muito ligado à produção desses gêneros Ouvindo-a, eu me lembrei de uma frase do escritor Luiz Anto-
musicais nesse contexto cosmopolita. O samba e outros gêne- nio Simas que diz que “o samba surge da roda, e não a roda do
ros negros correlatos da época como o maxixe, a marchinha e o samba”, que me remeteu a esse universo da criação coletiva e
choro apontam justamente para esse caráter cosmopolita, de da relação de como a própria música surge desses encontros
mistura e de encontro de diferentes sujeitos e classes sociais. nesse contínuo entre o quintal, a casa e a rua. E você, em um
Claro que a elite se apropriaria dessas produções musicais em curso recente, comentava, a partir de uma reflexão sobre a di-
um momento posterior, mas havia trabalhadores médios, pro- áspora, como o corpo foi tudo o que as africanas e os africanos
fissionais liberais, jornalistas e artistas que também estavam sequestrados e escravizados neste lado do Atlântico trouxe-
ali mantendo um contato com esses grupos marginalizados ram consigo, além dessa conexão muito forte do corpo com a
negros que produziam essas músicas. música e com as ruas. É óbvio que, com o corpo, vinham tam-
A rua e a festa popular de rua acabam funcionando como bém toda a memória, as palavras, as sonoridades, os ritmos, as
um contínuo entre a rua e a casa popular, a festa de quintal e o percussões. Eu queria ouvi-la sobre essa relação entre corpo e
baile de família (aquela coisa dos agregados, do núcleo familiar música, em especial nas músicas negras, e sobre a importância
expandido), principalmente no que se refere às casas das tias da música na construção das identidades afrodiaspóricas.
baianas que haviam migrado para o Rio de Janeiro. Podemos
falar especialmente da casa da Tia Ciata, mas também de outras Luciana Eu acho interessante essa perspectiva, porque realmente es-
mulheres negras que eram lideranças, que eram mães de santo, Xavier sas pessoas só tinham seus corpos quando foram sequestra-
mas também estavam ali oferecendo suas residências para es- das dos seus territórios e levadas para as Américas. Elas só
sas produções culturais que estavam sendo criadas e potencia- tinham suas mãos, suas vozes e suas memórias, recursos que
lizadas naquele espaço de encontro e de experimentação. se mantiveram no contexto da escravidão. E foi justamente

248 249
esse patrimônio que possibilitou a essas pessoas se reinventa-
rem, resistirem, sobreviverem, criarem novos mundos usando
seus corpos como plataformas para a produção de outras re-
presentações, de outras vidas, de outros modos de transmitir
informação. O afeto é essa linguagem não verbal: nós somos
afetados e afetamos os outros pelo nosso corpo, pela maneira
como nos colocamos no mundo e criamos outros mundos. E
pensando efetivamente nessas manifestações (no candomblé,
na capoeira, no baile, na música negra, no samba, no funk), eu
chamo esse conjunto heterogêneo de políticas de estilo que
a música popular estavam apresentando uma alternativa de ação político-cultu-
Podem a festa e
ral, de afirmação identitária, de acesso à cidadania, de se pensar

de rua ser uma


forma de fazer
outras formas de apresentação desses corpos negros nesses
espaços de manifestação cultural da diferença. Afinal, um ritu-
al, uma festa no terreiro de candomblé, uma roda de samba ou
o passinho do funk no meio do baile são formas de apresentar

política?
outras dramatizações de linguagens e outras formas de perfor-
mar essas identidades negras. É importante falar de identida-
de no plural, porque a negritude nunca é uma só.
Essas apresentações e performances públicas naquele
espaço do encontro, da festa, da rua e da música são maneiras
estratégicas – mas também espontâneas e criativas – de propor
outras formas de construirmos uma autoconsciência racial. Há
alguns pensadores, vertentes e grupos que acham que a festa, a
dança e a música não são tão importantes dentro da ação polí-
tica, mas eu entendo que essa ritualização, esse gesto diferen-
ciado de um passinho de dança, esse uso de um turbante ou de
um tipo de cabelo são ferramentas sensíveis que têm o poder
de ultrapassar as barreiras impostas pelo racismo e pela desi-
gualdade, humanizando essas pessoas e apresentando outras
formas de se estar no mundo. Entendo que essas produções
estéticas negras têm uma estratégia política dentro de si, que
se manifesta dentro do campo da cultura – não sem conflito e
sem tensão, pois há uma série de problemas nesses jogos, justa-
mente porque eles estão produzindo outras referências, outras
negociações, outras formas de luta e de resistência.

Roberto Aproveitando essa deixa da festa como ato político, acho que
Romero uma das principais evidências desse caráter eminentemen-
te político da festa, da dança e do encontro seja justamente a
perseguição que sempre sofreram esses movimentos musi-
cais culturais, que também são atravessados pela violência da

250 251
própria apropriação desses elementos das músicas negras por 1970 do Rio de Janeiro. Havia um olhar proibitivo da ditadura
artistas brancos (que na história oficial da MPB, ganharam um sobre essas festas, que eram enormes (algumas chegavam a um
reconhecimento e uma remuneração evidentemente muito público de 30 mil pessoas), com lançamento de disco e show
maior do que muitos dos ícones das músicas negras). Eu queria de artistas. E esse tanto de pessoas pretas juntas obviamente
que você comentasse sobre como trabalhos e pesquisas como representava um perigo para a polícia e para a repressão naque-
a sua ajudam a revisar essa história. le momento. Havia uma ideia presente em alguns agentes da
ditadura militar de que os bailes black estariam sendo financia-
Luciana É muito triste pensar que pouca coisa mudou desde quando dos pelos Panteras Negras norte-americanos, e que as pessoas
Xavier os sambistas eram reprimidos e iam presos porque estavam queriam transformar essas festas em células para uma revolta
na rua com o violão no ombro, hábito tipificado como crime racial no Rio de Janeiro nos anos 1970. As escolas de samba
de vadiagem, até a repressão que acontece em relação ao funk, também sofriam repressão desde antes dessa época, mas tam-
às favelas e às periferias. Vemos repressão não só contra o funk bém era comum a polícia invadir quadras de escola de samba
no Rio, mas contra o brega funk em Recife, ou o pagode baiano para prender pessoas negras que estavam na quadra.
em Salvador. Há uma série de manifestações populares negras
que seguem sendo reprimidas: muda o produto e a produção Roberto Luciana, eu queria ouvi-la mais sobre os movimentos mais
musical, mas a repressão permanece mascarada por outros ter- Romero contemporâneos nas cenas musicais negras no país, e como
mos. Isso acontece porque o elemento negro está sendo reco- eles atualizam e inventam novas performances estéticas e po-
nhecido, nessas etapas da nossa história, como algo perigoso. líticas, configurando outros espaços de resistência e de trans-
Ao serem vistas com suspeição pelas autoridades, pelas elites formação das ruas.
e pela imprensa em geral, as manifestações populares negras
acabam sendo associadas à violência, ao perigo e à criminalida- Luciana Na última década, várias cidades do Brasil têm sido palco para
de. A Festa da Igreja da Penha, no Rio de Janeiro, é um exemplo Xavier o surgimento de diversas festas negras, em sua maioria de rua,
disso: até o começo do século 20, era uma celebração católica porque além de não ter cobrança de ingresso, são movimentos
conduzida por portugueses e descendentes (uma elite branca que democratizam e ocupam aquele espaço. Outra caracterís-
e religiosa local) em uma região da Zona Norte da cidade. A par- tica importante desses eventos de música negra é que estão o
tir do momento em que as pessoas negras, expulsas das regiões tempo inteiro dialogando com o circuito de produção musical
centrais da cidade e empurradas para os morros, ocupam a re- pop internacional, o mainstream, mas também com todo um
gião, elas obviamente ocupam também os espaços tradicionais universo de musicalidades periféricas (tanto do Brasil, quan-
de celebração religiosa, como aconteceu com a Festa da Igreja to de países como os Estados Unidos, a Angola e a Nigéria).
da Penha. Nesse momento, a festa também acaba passando por Por esse motivo, essas festas acabam funcionando como um
um processo de repressão, porque ela se torna um espaço de filtro para símbolos alternativos ligados à circulação de músi-
manifestação da cultura popular negra da época. Os sambistas cas contemporâneas, sem abrirem mão de referências com o
estavam compondo para a festa, os capoeiristas organizavam passado, que têm sido muito interessantes para essas outras
rodas no evento, as vendedoras negras de comida de rua iam performances de negritude. Ainda que sejam efêmeras, essas
vender seus quitutes, e acaba havendo ali um processo de mis- festas têm um potencial de provocar rasuras nas visões hege-
tura religiosa com o próprio candomblé, que era muito mal vis- mônicas sobre raça e sobre gênero, promovendo outras estéti-
to na época. O evento começa a ser proibido, há uma repressão cas e outros gostos, configurando outros territórios, ocupando
dos batuques que animavam o evento, e aos poucos essa popu- outros espaços da cidade e possibilitando um lugar de existên-
lação negra começa a se afastar daquilo, especialmente com o cia e de visibilidade para essas identidades que eram negadas,
crescimento do carnaval e dos desfiles das escolas de samba. o que torna essas produções de diferentes repertórios sobre
É também interessante ver como isso se mantém pre- nós mesmos relevantes. Essas festas possibilitam outras for-
sente principalmente no contexto dos bailes black dos anos
.
mas de estar presente, de viver e de estar inscrito na cidade,
construindo uma cidadania transcultural
252 253
254 Enugbarijó: a boca
que tudo come

CORPO
Gil Amâncio

260 O corpo
ancestral
Uma conversa entre
Roberto Romero e Rui Moreira

268 Corpo-processo
Uma conversa entre
Roberto Romero e Sandra Benites

276 Meu corpo


é território
Uma conversa entre
Roberto Romero e João Paulo Barreto

254
O brincar e o vento

Meu filho Tomas era pequeno e devia ter uns 3 anos de idade.
Ele estava encostado no muro do quintal aqui de casa com
uma amiguinha, a Janine. Ela e ele estavam olhando para o
quintal. De repente, o vento sopra e levanta um plástico preto
que estava pendurado no varal, e eles começam a gritar, correr
e passar debaixo do plástico. O vento sopra novamente, e eles
passam outra vez debaixo do plástico, correndo e gritando –
ENUGBARIJÓ:
uma brincadeira que só começa a existir quando o vento os
chama para brincar. A brincadeira dura até o momento em que
A BOCA QUE o vento resolve ir embora. Essa cena sempre me vem à memó-

TUDO COME ria quando penso em educação.


São situações como essa que nos mostram o aprendiza-
do de um conhecimento a partir do corpo. Tudo começa com
perguntas que as crianças fazem ao entrar em contato com
uma força invisível, que vem da natureza ou do próprio corpo.
Como é possível aquele plástico levantar? Como eu entro em
contato com essa força que o levanta? Que horas ela vem, e com
qual intensidade? Para responder a essas perguntas, é preciso
entrar em contato com a natureza, com o vento, e para as crian-
ças isso acontece brincando. Conhecer o vento é importante
também para empinar um papagaio: primeiro é preciso saber
em que momento do ano o vento vem brincar com o papagaio,
depois é preciso saber de onde vem o vento, pois é contra ele
que devemos correr para que a brincadeira funcione.
Existem, então, muitos segredos que eu preciso saber
sobre o vento para que eu possa construir coisas que ganhem
vida pelo contato com ele (o papagaio, a bolinha de sabão, o ca-
tavento…). E, para as crianças, o modo de conhecer o vento é
brincando com ele. Se observarmos bem, as crianças têm brin-
cadeiras para conhecer todos os elementos da natureza, para
Gil Amâncio

todas as épocas do ano, para todas as expressões artísticas, to-


dos os sentimentos. As crianças sempre estiveram no pulsar
das coisas do mundo, no movimento, nos sons, na plasticidade
– e por isso nós temos muito a aprender com elas sobre como
conhecer o mundo a partir do corpo.
Antigamente, me preocupava muito em saber como se
ensina, pois eu queria aprender os melhores métodos para en-
sinar. Hoje, estou mais interessado em como se aprende, sobre-
tudo a partir de dois campos de pesquisa: a cultura da infância,
que é como as crianças apreendem o mundo, se expressam e

256
criam; e as culturas afrodiaspóricas. E cada vez mais, vejo que é uma atitude diante do mundo, é uma maneira de habitar o
essas culturas têm muitas coisas em comum quando estuda- mundo. É o fundamento do modo como as crianças se expres-
mos suas práticas educativas. A começar pelo fato de que, nes- sam e apreendem o mundo. A mesma coisa acontece com a
sas culturas, as práticas educativas são baseadas em processos cultura afrodiaspórica, em que a palavra brincar é também mui-
seculares e orgânicos de transmissão de conhecimento, e não to utilizada. Muitos dos mestres e mestras da cultura afro-bra-
em métodos estruturados numa temporalidade linear, com re- sileira se referem ao seu fazer como brincar. Eles dizem que
gras hierárquicas e monoculturais. brincam o maracatu, brincam o candomblé, brincam o samba.
E além do brincar, eles usam um outro termo que encontra-
Enugbarijó mos nas cantigas de capoeira, samba, candomblé e reinado que
é a palavra vadiar – ficar à toa, matutar (como dizemos em Mi-
Os processos de aprendizagem nas culturas afrodiaspóricas nas Gerais). O ato de estar parado com um canivete na mão, es-
e da infância acontecem em três momentos simultâneos: o cavando um pedaço de pau, é uma forma de distrair a cabeça e
primeiro é o de comer. Eu vou comer o mundo com os meus pensar no mundo, sentir o mundo. Vadiar é pensar, e é por isso
olhos, com meus ouvidos, com meu tato, meu paladar, minha que a primeira lei após a abolição da escravatura no Brasil foi,
sexualidade, meu movimento. Depois que eu como o mundo, justamente, a Lei da Vadiagem, que proibia a população negra
ele fica dentro do meu corpo e, para que eu possa organizá-lo de ficar à toa – e, portanto, de refletir sobre o mundo e adquirir
internamente, eu começo a imitar e experimentar aqueles ges- consciência de suas injustiças. Dessa forma, é brincando e va-
tos, sons, sensações, movimentos em meu corpo e nos espaços diando que se conhece o mundo e que se expressa o conheci-
– e, assim, vou processando aquilo que eu comi. E, por fim, o mento que, por sua vez, é transmitido a partir do corpo.
último movimento, o de vomitar, é como eu devolvo, à minha
maneira, a minha experiência de polipercepção do mundo. Nas O tempo
culturas afrodiaspóricas que vieram da Nigéria, esse processo
tem o nome de Enugbarijó, ou “a boca que tudo come”, que é um No sistema de educação ocidental, o aprendizado é voltado
dos nomes de Exu. para o futuro, nunca para o agora. Já nas culturas afrodiaspó-
Em nossas escolas, a relação do aprender está ligada ricas, o conhecimento é para hoje. Nas práticas educativas dos
apenas ao ouvido e à visão, pois acreditamos que quanto me- terreiros não se espera o futuro, é no agora que ele é construído.
nos se movimenta o corpo, mais se tem condições de apren- Se uma guarda de reinado fosse adotar esse sistema ocidental,
der. Sentados, nós escutamos e copiamos, e o aprendizado é suas crianças poderiam, por exemplo, ser inscritas em uma es-
medido pela nossa capacidade de reproduzir aquilo que nos cola de música onde elas aprenderiam canto, harmonia, ritmos
foi ensinado. e melodia. E, quando elas finalmente aprendessem a tocar o
Para as culturas da infância e afrodiaspóricas, o que im- tambor, estariam prontas para participar da guarda.
porta não é a cópia, mas o que fazemos com o que aprendemos. Mas, para o reinado, não basta aprender a técnica para
Para essas culturas, o conhecimento está sendo construído cantar afinado ou saber fazer a divisão certa do ritmo. O mú-
constantemente em um processo de desfazimento e criação sico precisa também aprender o sentido cultural da ação, en-
que envolve o corpo como um todo – um corpo que não acei- tender a relação de cada toque com o que está acontecendo no
ta ser um mero reprodutor de um conhecimento canonizado, momento da festa.
mas que brinca e vadia nas coisas. Se olharmos atentamente para uma guarda de reinado,
veremos a presença de tambores pequenos, médios e grandes
O brincar e o vadiar sendo tocados por crianças, jovens e adultos ao mesmo tempo.
O acesso das crianças aos tambores pequenos durante o cor-
Estamos acostumados a entender a brincadeira como uma tejo e a festa possibilitam que elas vivenciem o Enugbarijó em
forma, um produto, e não como um procedimento. O brincar toda sua complexidade. Pois é ali, durante a festa, que elas vão

258 259
construindo seu jeito de ser congadeira ou congadeiro: apren- as coisas de suas funções pré-determinadas. Nós libertamos
dem com os mais velhos a tocar, cantar e dançar; além de cantar a vassoura de sua única função de varrer, libertamos a panela
quando chegam a uma casa, e como devem beijar a bandeira e de seu papel convencional de cozinhar, libertamos inclusive o
saudar a rainha. corpo de suas prisões impostas a todo o tempo por uma socie-
dade orientada por pensamentos racistas, homofóbicos e so-
Nesses territórios de festas e cortejos, a brincadeira e a cialmente injustos.
vadiagem são fundamentais, pois o conhecimento se fortale-
ce no coletivo, criando um campo de forças que se presentifi- Reinventar o mundo
cam ali, durante a festa. Nesses mesmos espaços e momentos,
as individualidades não aparecem no sentido individualista, Hoje, como artista e educador, pesquiso tanto a cultura da in-
mas como singularidades. Afinal, não existe apenas um jeito fância quanto as culturas afrodiaspóricas, porque ambas nos
de tocar o tambor. apontam caminhos para usarmos nossos corpos como veícu-
los de transformação dos processos de aprendizagem e cria-
Histórias da criação do mundo ção. E, se quisermos trazer o corpo para dentro da educação, é
necessário justamente quebrar as barreiras dos espaços insti-
Todo esse conhecimento vem de uma cosmopercepção do mun- tucionais de ensino. As salas de aula não foram pensadas para
do, que é muito diferente de uma cosmovisão eurocristã, como a experiência de um corpo livre, não foram projetadas para a
bem disse o pensador quilombola Antônio Bispo dos Santos. brincadeira, a cantiga, o tambor. Quando eu falo das apren-
A cosmovisão eurocristã pensa a criação do mundo como algo dizagens com o corpo e a partir do corpo nessas culturas, eu
concluído por Deus em sete dias, perfeito e intocável. Quando preciso falar também de repensar a escola, repensar o bairro,
os humanos quiseram fazer alguma alteração nessa criação, repensar a cidade, porque a cultura do corpo é a cultura da rua.
eles foram castigados e banidos desse mundo perfeito. Nós não podemos tirar as crianças da rua, porque é ali que a
Já na cosmopercepção das culturas afrodiaspóricas, a brincadeira acontece, na convivência. Se tirarmos uma criança
narrativa da criação do mundo é outra. Uma história do povo de sua vivência na rua e a colocarmos, durante oito horas, tran-
bambara, que vive no oeste africano, conta que Deus começou cada em uma sala de aula, sem liberdade, como a experiência
a criação e nos deixou a tarefa de continuá-la, o que significa do corpo vai acontecer?
que, para o povo bambara, o mundo não está pronto e precisa Infelizmente, temos uma grande dificuldade em com-
ser constantemente construído. preender o quanto o corpo precisa estar em contato com o
Para mim, quem melhor representa esse espírito cria- quintal, o varal, a vassoura, a festa e o jogo para aprender.
dor de mundos possíveis são justamente as crianças que, logo Pense em três meninos de oito anos querendo jogar
que começam a andar, tiram tudo do lugar, mexem em tudo. bola, mas precisam de quatro (dois de um lado e dois de ou-
Por que elas fazem isso? Porque está tudo errado! É preciso tro). Há, porém, um menino de seis anos querendo jogar tam-
mudar o mundo para que o corpo da criança passe a habitá-lo. bém, mas quem ficar com ele no mesmo time, claramente tem
Para nós, um cabo de vassoura serve para varrer, mas para uma uma desvantagem, porque os outros são maiores e têm mais
criança, pode ser cavalo, espada ou escora de cabana. Nas mãos chances de ganhar. Mas o importante para eles não é ganhar,
de uma criança, uma panela vira instrumento musical, vira ca- é jogar. Então, o que eles fazem? Eles transformam o peque-
pacete de super-herói, vira um barco que ela usa para viajar. O no de seis anos em “café com leite”, passaporte com o qual ele
que temos que aprender com as crianças – e que generosamen- pode ficar dentro do gol, fazer gol com a mão, jogar do jeito
te elas nos ensinam o tempo inteiro – é como nos tornarmos que ele quiser. Dessa forma, os meninos equilibram as forças
seres criadores, livres. Nós falamos que ser livre é fazermos o e fazem aquilo que mais querem fazer: jogar bola, experimen-
que quisermos, mas na cultura da infância e nas culturas afro-
diaspóricas, liberdade é uma potência pela qual libertamos .
tar com o corpo, aprender com o outro e, consequentemente,
reinventar o mundo

260 261
O corpo
ancestral
gestos — aspectos que o tornam responsável pelo
feito de memórias, vivências, histórias, palavras e

Rui Moreira aborda os cruzamentos entre corpo,


tempo e pelos legados da ancestralidade. Nesta
O corpo é feito de vísceras, pele, osso, reações
químicas e descargas elétricas. Mas é também

o bailarino, coreógrafo e investigador cultural


conversa com o antropólogo Roberto Romero,
Uma conversa entre
Roberto Romero e Rui Moreira

Roberto Rui, para começar a nossa conversa, gostaria de pedir que você
Romero se apresentasse e contasse um pouco da sua trajetória como
bailarino e coreógrafo, e também das suas pesquisas sobre as
relações entre corpo, arte, ancestralidade e conhecimento nas
culturas afrodiaspóricas.

Rui Laroiê! Meu nome é Rui Moreira dos Santos, e eu gosto de fa-
Moreira lar o meu nome inteiro porque, dessa forma, eu trago todos os
meus ancestrais. Eu nasci em São Paulo e, no ano de 1984, fui
para Belo Horizonte dançar no Grupo Corpo. E esse ingresso
no Grupo Corpo foi um evento muito importante, porque eu
cheguei para dançar um espetáculo afro-brasileiro e para ser o
primeiro homem de melanina acentuada, que já se considera-
arte e ancestralidade.

va um negro, a dançar Maria Maria, que é uma história de uma


negra do norte de Minas Gerais, de onde veio meu pai. Para me
apresentar, eu preciso falar dessas coincidências, que não são
coincidências, mas traços da espiralidade que a minha forma
de ver o mundo ratifica.
Eu sou pai de três filhos que nasceram em Belo Horizon-
te, avô de uma neta que também nasceu em Belo Horizonte, e
essa cidade é o berço das construções do meu imaginário, das
minhas criações, de uma identidade enquanto artista da dança
que marca toda a minha trajetória — bem acomodada e acari-
ciada pelos meus ancestrais, que moram nos reinados. Essas
coisas podem parecer coincidências, mas são, na verdade, as
tramas potentes da vida.

Roberto Ouvindo algumas entrevistas suas, Rui, eu notei que você


Romero sempre costuma começar pela sua casa, pela sua família e por

262
como as danças e os bailes marcaram profundamente a sua
infância e a sua adolescência. Conversando também com a
pesquisadora Luciana Xavier e o escritor Luiz Antônio Simas,
ambos tocaram nessa experiência da música e das casas, espe-
cialmente no contexto das famílias negras, do samba que se faz
na roda do quintal de casa e que se resvala na rua, nos terreiros.
Eu queria pedir que você comentasse como a dança e a música
“da casa das pessoas”, para usar uma expressão sua, atravessou
a sua vida e o seu trabalho como artista.

Rui Tudo começa em casa. O poeta Ricardo Aleixo diz ainda mais:
Moreira “tudo começa e acaba na cabeça”, entendendo a cabeça como
esse lugar, essa casa de Ojalá, onde todos nós nos formamos.
Parece-me que a nossa casa primeira tem esse símbolo da casa
de Ojalá, que é onde fazemos a nossa cabeça e dali saímos para
o mundo. E em uma casa de homens e mulheres de pele preta
e de uma juventude atuantemente negra, não tinha como não
ter uma cabeça feita para essa relação primordial da gênese
humana, que é a expressão de festa, essa expressão da come-
moração. Sempre que havia discórdia na minha casa, que era
uma casa de homens e mulheres de pele preta, ela era desfeita
através de um evento, sempre muito ligado à música, à dança,
ao canto – e à comida, que era fruto de uma espiritualidade.
Outra coisa que Belo Horizonte me deu foi o encontro
com o artista Gil Amâncio. Quando me encontrei com ele, eu
estava vivendo um processo de aculturamento enquanto artis-
ta cênico, enquanto quem tinha saído da dança de casa e tinha
se encontrado e se encantado com o universo da cena, deixando
um pouco de lado aquilo que aprendeu em casa. E meu encon-
tro com o Gil promoveu uma recuperação muito potente dessa
casa, através de uma chamada para a negritude. Isso foi genial,
porque por meio desse encontro, nós acentuamos juntos uma
pesquisa em pequenas sonoridades. É daí que nasce aquilo que
depois veio a ser chamado de Seraquê?, formado por mim, pelo
Gil Amâncio e pelo Guda Coelho, ligado à ancestralidade como
mote para a nossa produção artística.

Roberto Você começou a falar da Seraquê?, essa companhia que vocês


Romero fundaram em Belo Horizonte no início dos anos 1990. A traje-
tória da Seraquê? é marcada também pela trilogia Ês quis/Q’eu
isse/Cum ês, que são três espetáculos que, juntos, compõem
essa frase – que parece uma outra língua, e de fato é. Esse inte-

264 265
resse por essas expressões da língua remete àquilo que a an- Roberto Aproveitando que você falou dos jovens, eu fiquei curioso
tropóloga Lélia Gonzalez chamou de pretuguês, esse português Romero para saber como você acompanha essa cena jovem em tor-
que é totalmente moldado pelas línguas faladas pelos povos no das artes. Aqui em Belo Horizonte eu penso na experiên-
africanos trazidos para este lado do Atlântico, em especial as cia da SegundaPRETA1 e outros espaços que se reconectam
línguas da família bantu e a língua iorubá. Você também des- com essa ancestralidade e que propõem, inspirados por Bea-
taca muito a influência de intelectuais como Nei Lopes ou a triz Nascimento, o conceito de aquilombamento. Como você
própria Leda Maria Martins, com a ideia de tempo espiralar, e acompanha os movimentos dessa juventude negra que agora
no seu trabalho esses pensadores também ganham corpo. Eu aparece com outra cara em relação à juventude dos anos 1990?
queria ouvi-lo mais sobre a influência e o impacto desses au-
tores, dessas reflexões, desses pensamentos negros que agora Rui É interessante essa pergunta, porque às vezes pensamos que
finalmente têm ganhado a devida repercussão no cenário in- Moreira o ancestral é aquele que é mais velho, e nos esquecemos de
telectual brasileiro. que o mais novo também é ancestral. Eu digo que aquele que
veio depois de mim chega a ser mais velho do que eu, porque
Rui Ês quis/Q’eu isse/Cum ês é engraçado, soa como música, e o Brasil ele carrega uma ancestralidade, um conjunto de vivências e
Moreira é um país de musicalidades distintas. Em cada região do país histórias que o tornam tão responsável pelo tempo e pelos
identificamos uma maneira musical de compreender ou de se legados quanto qualquer um de nós. É genial observarmos,
comunicar com a população. Ês quis/Q’eu isse/Cum ês nasceu de por exemplo, a potência da juventude na intenção e no movi-
uma vontade muito intensificada de estar mais próximo dos mento de romper com processos hegemônicos, uma necessi-
mistérios dos reinados. Nem tudo é para ser contado: há mis- dade de quebra daquilo que antes era interditado. E é muito
térios que existem para ser guardados, e são os instrumentos potente que tenhamos esse impacto em Belo Horizonte de
de transição da própria existência de uma cultura. Encontra- maneira mais acentuada, pelos tambores, hip hop e outros gê-
-se realmente um idioma próprio quando se frequenta esses neros negros. Nós temos muitos problemas, mas já consegui-
festejos, porque me parece que são palavras da ancestralidade mos vislumbrar a ideia de que as questões do povo negro não
que vão brotando e sendo repassadas de geração a geração. Se são única e exclusicamente questões do povo negro, mas sim
dentro desse universo das festas e dos festejos alguém tiver questões da nação, que todos nós construímos. A juventude
a vontade de falar muito rápido, talvez aquele que não esteja mostra isso com muita potência.
acostumado não vai entender, vai achar que é código, vai achar
que aquilo que está acontecendo é uma outra dimensão. E é Roberto Para finalizar, eu pensei naquela letra da cantora Luedji Luna,
realmente uma outra dimensão, uma dimensão que traz esse Romero que é uma dessas talentosas jovens da música brasileira, que
aspecto bantu que Nei Lopes explicita em sua literatura e que diz o seguinte:
Leda Martins faz da sua literatura, guardando os mistérios. Eu
costumo dizer que a escrita da Leda é pluriversal, mas a hege- Eu sou um corpo, um ser, um corpo só
monia branca às vezes consegue apenas compreender o que é Tem cor, tem corte
universal. Não consegue desvelar os universos que estão ali. E a história do meu lugar, ô
São várias camadas nas quais é importante mergulhar- Eu sou a minha própria embarcação
mos para entendermos a dimensão do ambiente no qual nós Sou minha própria sorte
estamos envolvidos. O Brasil, apesar de ser uma nação hegemo- Je suis ici, ainda que não queiram, não
nicamente negra, vivia, antes do período de globalização, um
distanciamento da contemporaneidade presente nas culturas
negras do planeta. É muito importante que consigamos fazer
com que os jovens entendam a possibilidade de eles não perde-
rem a sua identidade para fazerem parte do tempo presente. 1 SegundaPRETA é um movimento belorizontino que recebe semanalmen-
te uma série de trabalhos de artes cênicas feita por artistas negras e negros.

266 267
A Luciana Xavier, uma pesquisadora das músicas negras no
Brasil e com a qual nós conversamos, destacava que na diáspo-
ra e na chegada dos povos escravizados a este lado do Atlântico,
o que eles trouxeram foi, justamente, o corpo – a partir de um
processo de extrema violência da escravização do corpo como
mão de obra. Mas esses corpos também trouxeram memória, e
a partir deles se fez um país que, apesar de ignorar a influência
desses corpos e dessas memórias, é hegemonicamente preto,
como você afirmou. A partir dessa expressão “corpo no mun-
do”, eu queria lhe perguntar: o que pode um corpo no mundo?
Como esse corpo aprende no mundo e com o mundo? E o que
pode também ser um corpo?

Rui Hoje mesmo eu discutia com amigos um aspecto científico


Moreira que é a relação entre corpo e pedagogia, e essa pluralidade
das pedagogias. São possibilidades de eu lidar com um corpo
simbólico, com um corpo que é fruto do meio, um corpo-am-
biente. Mas antes desse corpo simbólico, existe um corpo que
é somaticamente corpóreo, que é feito de vísceras, de pele, de
osso, que tem um mecanismo muito potente que nos faz en-
tender as palavras, traduzir informações. Um corpo que é um
complexo de reações químicas, de descargas elétricas, que nos
faz exercitar isso que chamamos de vida. Essa relação corpó-
rea é de um grau de fragilidade muito alto: se o corpo cair de
uma grande altura, ele deixará de funcionar; se ele for perfura-
do, ele deixará de funcionar; se ele for subjugado fisicamente,
da forma que for, ele se alterará. E, por outro lado, esse mesmo
corpo que pode sofrer essas graves rupturas tem um grau de
sensibilidade alucinante para projetar, desejar, amar, construir
e transformar. Esse aspecto simbólico em cotejo com esse as-
pecto corpóreo-material é aquilo que visualizamos e que nos
é dado como faculdade do perceber. Isso é o que eu posso falar

.
de corpo, sem traduzir o que é o corpo, mas dizendo tudo que
ele é capaz, e tudo que é capaz de atravessá-lo

268 269
Corpo-

reconhecer e a lidar com as diferenças entre os vários


processo
professora, pesquisadora e curadora Sandra Benites
sobre como a cosmovisão guarani pode nos ajudar a
Na cosmovisão guarani, corpo e gênero não nascem
prontos. São um conjunto de processos que vão se
transformando ao longo da vida. Neste encontro,
o antropólogo Roberto Romero conversa com a
Uma conversa entre
Roberto Romero e Sandra Benites

Roberto Você já parou para pensar sobre como cada corpo, com suas
Romero especificidades, suas cores, suas formas e suas experiências
de vida transforma o modo como um indivíduo se relaciona
corpos que compartilham o mundo.
com o que está ao redor? É muito importante que conheçamos
as origens e as formas de ver o mundo dos diferentes corpos
que fazem do Brasil um lugar tão diverso. E, para desvendar
algumas dessas questões sobre as diferenças de cada corpo,
conversamos com a Sandra Benites, mulher indígena guarani
que vive entre a floresta, a aldeia, a cidade, o museu, a escola e a
universidade. Sandra, “corpo” é uma palavra que muitas vezes
costumamos usar e naturalizar como se significasse a mesma
coisa para todas as pessoas, mas sabemos que não é bem assim.
Eu gostaria de começar lhe perguntando qual palavra vocês
traduzem como corpo e quais são os sentidos dessa palavra na
vivência guarani?

Sandra Nós, Guarani, temos uma outra forma de traduzir essa ideia,
Benites que é o teko, que tem a ver com corpo, que nós chamamos de
tete. O teko seria a forma de ser, a forma de estar no mundo, a for-
ma de ver o mundo. Vamos pensar em um pedaço de barro que
pode ser moldado de várias formas: o barro é o tete e as formas
são o teko. Para nós, Guarani, o corpo surge a partir do momen-
to em que nascemos, mas o nosso ser é outro, é o nhe’ẽ, que é o
nosso espírito. O corpo está ligado, na verdade, com os lugares
onde existe nhe’ẽ, lugares que têm vida. Antes de se transformar
em corpo, nós somos espírito, somos nhe’ẽ.
Quando nós, mulheres, estamos perto de engravidar, nós
sonhamos. Aetchara’u quer dizer sonhar. Essa futura mãe pode
sonhar com o espírito, com o nhe’ẽ, que aparece sob a forma de

270
um pássaro, uma pessoa, ou várias outras formas, para ser carre-
gado por essa mãe. Então, antes de o espírito assentar, a mãe co-
meça a sonhar com ele. A partir desse momento, o pai e a mãe já
começam a se organizar para saber como vai receber esse nhe’ẽ.
Nós sempre nos organizamos para o espírito moguãhē porã, quer
dizer, fazer chegar bem. A ideia é sempre trabalhar em equipe

relação com o mundo


ou em grupo para que esses espíritos cheguem bem, antes de

se considerássemos
o nosso corpo como
Como seria a nossa

parte da natureza?
assentarem no corpo.
A partir do momento em que o espírito nasce, que se
transforma no próprio tete, ele vira criança, mitã ou kyringue. Es-
sas duas palavras significam “seres pequenos”. Para nós, Gua-
rani, também não existe ela e ele, igual em português. Nós não
temos esse termo de gênero, porque, para nós, o corpo é um
processo. Eu não teria condições de definir esse corpo como
algo pronto, porque é um processo em suas relações. O corpo é
apenas a base do espírito, do nhe’ẽ.

Roberto Belíssima essa sua indefinição, Sandra. E nós percebemos que


Romero entre os povos indígenas, não só os Guarani, os cuidados com
o corpo são também muito diferentes comparados aos dos
não indígenas em todas as etapas da vida. Desde a gestação,
como você lembrou, até a morte. Eu queria ouvi-la mais sobre
esses cuidados com os corpos que atravessam as fases da vida,
e também sobre como preparar o mundo para esses corpos e
suas diferenças.

Sandra O cuidar do outro também é o meu bem-estar, e eu acho que


Benites essa relação é o nosso desafio enquanto humanos. Nós temos
essa dificuldade e esse desafio de termos um cuidado com o
outro e de nos relacionarmos com ele respeitando suas dife-
renças. Como eu sou professora, eu vejo que a educação es-
colar, por exemplo, é muito de fora, é pensada pelos juruá, os
não indígenas. Já a educação indígena é totalmente diferente:
a educação guarani tem o seu processo, suas normas próprias,
seus rituais, suas relações, seus sentimentos, mas a educação
escolar que vem de fora, muitas vezes, não entende que esse
outro tem sua norma própria e sua forma de vida própria. Ela
vem já impondo uma série de regras. Eu acredito que esses di-
ferentes corpos não entram no sistema que já está padroniza-
do e organizado de uma forma muito dura, como se fosse um
muro feito de pedra difícil de quebrar. Não existe diálogo, não
existe sentimento.

272 273
Outro exemplo é o sistema acadêmico. Eu não caibo em Mas eu queria voltar a um ponto que você comentou
determinados lugares porque eu sou uma mulher guarani e, sobre gênero. Você disse que na língua guarani não há essa
para nós, Guarani, existem regras para quando a mulher está marcação entre ele e ela. E essa discussão é importante, por-
menstruada, por exemplo. É um momento de ficarmos no si- que falar sobre corpo é inevitavelmente falar sobre gênero. Eu
lêncio, de cuidarmos do nosso corpo, de recebermos cuidado queria que você elaborasse um pouco mais sobre isso, porque
das famílias nesse período em que ficamos mais vulneráveis. você desenvolve muito essa perspectiva de um corpo-mulher-
É um momento em que ficamos em casa. Quando eu chego a -mundo-guarani. E eu queria saber também como você per-
uma universidade, por exemplo, é como se eu não me encon- cebe essa questão do gênero, porque muitas vezes eu tenho a
trasse ali. Eu não me vejo naquele espaço, porque ninguém sensação de que a própria sociedade juruá, quando discute as
fala sobre a mulher, muito menos sobre a menstruação, mui- diferenças de gênero, tenta também apagá-las, ou seja, a igual-
to menos sobre a diversidade, muito menos sobre esse corpo dade pode cometer o risco de ignorar as diferenças. E você fala
que vem de outro lugar. Quando eu chego nesses espaços, eu muito sobre a importância de reconhecer as diferenças de cada
vejo muito sofrimento: é como se eu fosse forçada a me tor- corpo e de cada experiência.
nar resistente, mas deixando meus costumes e meu sistema
de lado para que eu possa continuar estudando, como eu fiz. Sandra Nós entendemos que a própria Terra é um corpo feminino e,
Se você tem trabalho para entregar, ou se você tem prova para Benites segundo a minha avó, o espírito seria a figura masculina. O
fazer, o sistema acadêmico não quer saber se você está bem ou gênero, nesse processo, vai então transformando-se, no meu
mal emocionalmente, ou se a mulher está ou não menstruada. entendimento. Para nós, mulheres guarani, quando vem a pri-
Isso é uma violência que temos que enfrentar para podermos meira menstruação, as meninas têm que ficar em casa e rece-
estar nesses espaços e nos enquadrarmos nesse sistema. Eu ber o cuidado dos pais e dos familiares mais próximos – como
estou falando enquanto mulher, mas existem outros diversos se o primeiro sangramento fosse um ritual pelo qual nós te-
corpos que não cabem nesses espaços por algum motivo, por mos que nos fortalecer para lidarmos com este mundo, que é
algum sistema imposto. o nosso sangue. Nesse período, as meninas têm que tomar ba-
Hoje, eu vejo que eu estou entre. Eu estou entre a aldeia nho com erva, ter remédio para tomar e a alimentação é rigo-
e a cidade, eu não sou nem da cidade, nem da aldeia. Aliás, cla- rosamente cuidada. Elas não podem comer coisas gordurosas,
ro que eu sou da aldeia, porque eu carrego comigo o sistema salgadas, nem doces, e também não podem sair ao sol quente e
da aldeia, mas eu tive que quebrá-lo um pouco para entrar na nem ao vento durante esse período. Nesse tempo, elas apren-
cidade, e hoje eu vejo como se eu fosse uma ponte mesmo en- dem a trançar, a fazer colar, a fazer algo que é muito importante
tre esses lugares. Isso também é um conflito, mas é uma coisa para nós, o tembiapo, que o juruá chama de arte. Nesse período,
boa para mim, para eu poder dialogar e compreender o outro. as meninas desenvolvem a habilidade de fazer algo que seja
A questão é que, quando você está entre, você precisa ter cui- belo, como os colares, o adjaka e outras coisas pequenas, para
dado para não invadir a fronteira do outro. Eu diria que a fron- que elas não fiquem paradas, e movimentem a mão. Isso seria
teira não é o espaço, a fronteira é a própria diferença, é o outro. o tembiapo, que tem a ver com a mão. Po é mão e tembiapo quer
dizer coisa de fazer com a mão. Eu acredito que seja nesse perí-
Roberto São muito fortes essas imagens que você traz, Sandra. Quando odo que nós transformamos o nosso corpo como mulher.
Romero eu li em sua dissertação esse seu comentário sobre as suas pri- Por outro lado, os meninos iniciam o ritual quando come-
meiras visitas à cidade, me chamou atenção justamente esse çam a engrossar a voz. O ritual dos meninos é diferente daque-
fato de que aquele parecia ser um mundo sem mulheres. E eu le das meninas. Ele geralmente dura dois anos, é um longo pra-
acho que essa imagem de um mundo sem mulheres tem a ver zo, porque as atividades deles são diferentes. Eles vão aprender
também com a perspectiva de como as crianças circulam neste outra forma de relacionar-se com os elementos da Terra: apren-
mundo, que não tem nada feito para elas em geral, no tamanho dem a caçar, a construir casa, a plantar, a levantar cedo. É nesse
delas, para recebê-las. período que eles aprendem também a dialogar com Idja, que é

274 275
o guardião das coisas: das pedras, dos rios, das nascentes, das
árvores e dos animais a serem caçados. Eles aprendem a fazer

ele não é algo pronto, é um processo, um aprendizado.”


o ritual, que é um pedido feito antes de eles irem para a busca

homem. Eu não estou falando aqui de corpo biológico,

ele e ela é um processo. Nós é que fazemos o gênero:


desses materiais. Então, eles aprendem o que é uma sabedoria
“Para nós, Guarani, sempre existiram equívocos. Nós

importante. Eu acredito que essa ideia de não existir


todos. Para isso acontecer, precisamos compreender
dos homens, e para isso precisam escutar muito. Eles têm que
somos seres imperfeitos e por isso precisamos criar
ser muito irari, estarem atentos. É dessa forma que eles vão pro-

estou falando do ser-movimento, de saber o que é


duzir seu corpo como ser masculino. E o que significa ser mas-
outros caminhos para buscarmos o bem-estar de
culino? O que significa kuimba’e ete? Para nós, Guarani, kuimba’e
quer dizer homem. E kuimba’e ete quer dizer homem verdadeiro.
o que significa ser mulher e o que significa ser Mas não estamos falando de gênero em si, estamos falando do
teko. Ser homem, para nós, é ter cuidado, paciência e controle do
seu próprio sangue. Para nós, Guarani, sempre existiram equí-
vocos. Nós somos seres imperfeitos e por isso precisamos criar
outros caminhos para buscarmos o bem-estar de todos. Para
isso acontecer, precisamos compreender o que significa ser
mulher e o que significa ser homem. Eu não estou falando aqui
CORPO
de corpo biológico, estou falando do ser-movimento, de saber
o que é importante. Eu acredito que essa ideia de não existir ele
e ela é um processo. Nós é que fazemos o gênero: ele não é algo
pronto, é um processo, um aprendizado.

Roberto Maravilhoso, Sandra. E eu acho que a própria noção que você


Romero traz do corpo como um processo é muito inspiradora, porque
muitos dos problemas de gênero que nós, não indígenas, vive-
mos, têm a ver com a ideia de que o corpo não é um processo,
de que o corpo é dado, que nós nascemos com ele e pronto.
E para concluir, Sandra, você está agora como curadora
adjunta do Masp, o Museu de Arte de São Paulo, preparando
uma exposição de arte indígena para 2022 e eu queria lhe per-
guntar, à luz da nossa conversa sobre corpo, qual vai ser o lugar
do corpo nessa exposição que você está ajudando a preparar?
Pergunto isso porque na arte juruá geralmente se separa muito
o corpo do objeto. Se valoriza o objeto, mas o corpo demorou
muito na história da arte juruá a entrar nos museus e nos espa-
ços da forma como as performances trouxeram.

Sandra O lugar do corpo, na verdade, é a própria narrativa da ore ypy,


Benites das nossas origens. Quando eu falo de narrativa, eu não estou
falando da narrativa da forma como o juruá conta, eu estou fa-
lando da forma como os indígenas falam, como um processo
educativo, como um processo de ser das relações entre seres
humanos e não humanos. É esse corpo que eu quero trazer .
276 277
Meu corpo
vice-versa. Nesta conversa entre o antropólogo Roberto
terrestre. Cuidar do território é, portanto, cuidar de si e
No modo de pensar do povo tukano, o corpo é formado

é território

somos guiados pelas relações de cuidado e saúde em


Romero e o antropólogo tukano João Paulo Barreto,
pelos mesmos elementos que compõem o mundo

Uma conversa entre


Roberto Romero e João Paulo Barreto

Roberto João Paulo, ninguém melhor do que você poderia falar de cor-
Romero po, já que você foi o primeiro indígena a defender uma tese de
doutorado no departamento de Antropologia da Universida-
de Federal do Amazonas em fevereiro de 2021. A tese é intitu-
lada Kumuã na kahtiroti-ukuse: uma “teoria” sobre o corpo e o conheci-
mento prático dos especialistas indígenas do Alto Rio Negro. O corpo,
como o nome indica, é um tema central no seu trabalho e a sua
relação ao corpo e à Mãe Terra.

tese é um verdadeiro tratado, me parece, da filosofia do corpo


segundo os especialistas indígenas da região. Todo o primeiro
capítulo da sua tese, por exemplo, aborda o que você traduziu
como “a constituição do corpo”, Mahsã ûpup pati, segundo os
Yepa Mahsã. Eu queria que você nos apresentasse brevemen-
te esse “conceito filosófico yepa mahsã”, como você mesmo
diz, de ûpup, que também é traduzido como “corpo”.

João Paulo O meu interesse em investigar e minimamente sistematizar


Barreto o nosso conhecimento partiu de um contato muito triste que
aconteceu com a minha família, quando em 2009 a minha so-
brinha precisou de cuidados médicos depois de uma picada de
cobra aqui em Manaus. Ela foi internada no hospital e a pri-
meira medida que os médicos quiseram tomar foi o amputa-
mento do seu pé. Nós entramos em desespero, mas tivemos
a coragem de propor para a equipe médica que pudéssemos
fazer um tratamento conjunto, que unisse a biomedicina com
a nossa medicina. Quando tentamos conversar com os médi-
cos, intermediados pelo Ministério Público Federal, houve
um fato marcante na minha vida. Nessa reunião, o médico
perguntou ao meu pai por que ele não queria que o pé da sua
neta fosse amputado naquele momento, e o meu pai – que não

278
sabe falar muito bem português – começou a responder à sua João Paulo No caso da minha sobrinha, graças a Deus, conseguimos mo-
maneira. O médico, visivelmente chateado, levantou, bateu na Barreto bilizar todas as instituições, inclusive a mídia e, nesse proces-
mesa e disse: “Eu estudei oito anos. Eu sou médico, e eu sei que so, tivemos a oportunidade de um outro grupo médico ser
a sua neta está correndo risco. Se eu não amputar o pé dela, ela chamado para conversar. E foi simples: o médico perguntou
vai morrer daqui a três dias. Com todo o respeito, o senhor não como meu pai e os médicos cuidariam dela, e o meu pai expli-
tem noção do que está falando, porque você não teve nenhum cou para ele que seria na base de bahsesse e uso de plantas medi-
dia de estudo”. Depois de dizer isso, ele levantou e foi embora. cinais. Bahsesse é essa habilidade que nossos especialistas têm
Nesse momento, sentimos na pele o que é ser discriminado de evocar elementos, substâncias e qualidades curativas, ou
por esse conhecimento dito “ciência”, que foi manifestado por qualidades que abrandam a dor, ou que curam doenças. Esses
aquele senhor, naquele momento. Foi essa relação assimétrica elementos estão contidos nos vegetais, nos minerais e nos ani-
que se produziu ao longo da história. mais. O médico, então, perguntou como seria isso, se era para
Não é que sejamos contra a amputação, mas pensáva- passar no local da ferida, para tomar ou para passar no corpo.
mos que ela deveria ser o último recurso. Daí partiu o meu in- Meu pai disse que podia ser tanto para passar no local
teresse em investigar sobre os nossos conceitos, porque quan- do ferimento, quanto para ela tomar. E aí o médico disse: “Eu
do o médico falou aquilo, eu pude ver que ele tinha muito bem só recomendo que neste momento, que a situação está mui-
desenhada na mente dele a noção que ele tinha sobre nós, po- to grave, vocês não passem esse bahsesse no local da picada
vos indígenas. Tanto é que, em outro momento, ele também para não infeccionar. Mas se for para tomar, ou passar em ou-
se manifestou, dizendo que não iria permitir a entrada de um tra parte do corpo, não tem problema”. E assim resolvemos a
pajé cantando, pulando, tocando maracá, fazendo fumaça, to- questão. Esse acordo foi fundamental para a recuperação da
cando tambor, para fazer “ritual de cura”. Ou seja, ele estava minha sobrinha, que não precisou amputar o pé e hoje está
simplesmente confessando compactuar com a visão que a so- bem, está em nossa comunidade e joga futebol. Tudo isso nos
ciedade tem sobre os povos indígenas, que é uma construção enriqueceu e nos motivou a lutar e a promover um debate em
feita ao longo do contato histórico. E esse conhecimento dito torno dessas questões.
“ciência” tem sempre visto os nossos conhecimentos como Para nós, o corpo é, de fato, o ponto principal para enten-
não conhecimento, como não ciência. dermos as nossas conexões e os nossos cuidados e relações
E a partir disso, eu comecei a perceber que, para desmisti- com a saúde. Primeiro porque o corpo é fundamentalmente
ficar esse imaginário, era necessário trazer os nossos conceitos constituído de seis elementos: água, terra, floresta, animal, ar
para o debate público. Daí vem o meu interesse em trazer para o e calor. Esses elementos constituem o corpo e, portanto, o cor-
debate esse conceito e a noção de corpo, de pessoa, que é justa- po é um microcosmo, ou seja, é síntese de todos os elementos
mente a minha tese. E o meu campo de pesquisa foi o Centro de que constituem o mundo terrestre e o cosmos. Esse conceito
Medicina Indígena, onde é praticada a nossa medicina. é importante para construirmos relações com tudo o que está
ao nosso entorno e cuidar da saúde. O que significa para nós
Roberto Eu acho muito interessante o que você está dizendo, porque cuidar do corpo? Cuidar do corpo é exatamente um trabalho
Romero essa cena é uma daquelas cenas etnográficas que desperta um de equalização desses elementos que o constituem. Qualquer
problema aos olhos de um pesquisador, que foi o que acon- desequilíbrio desses elementos do corpo pode desenvolver
teceu com você naquele momento. E geralmente me parece desconfortos ou até mesmo doenças. E na medida em que eu
também que a nossa antropologia do corpo ocidental tendeu também me desconecto do meu território, eu vou sofrer, por-
a julgar o corpo como uma coisa só, algo que não varia. E jus- que o meu corpo é corpo-território.
tamente por isso essa disputa costuma ser tão violenta nesses
contextos em que não estamos falando exatamente da mesma Roberto Eu acho incrível quando você fala que a sua tese é uma et-
coisa que nós traduzimos como “corpo”. Romero nografia do Centro de Medicina Indígena que você ajudou a
criar em Manaus, que é uma experiência totalmente inova-

280 281
dora e ensina muito sobre as possibilidades de contato entre
os saberes ancestrais, os especialistas dos saberes yepa mahsã e
também dos saberes científicos, ou seja, como é possível um

me desconecto do meu território, eu vou sofrer, porque


elementos do corpo pode desenvolver desconfortos ou
acordo como o que aconteceu naquele episódio da sua sobri-
“O que significa para nós cuidar do corpo? Cuidar do
nha. Um acordo entre a biomedicina e a medicina que, na falta

até mesmo doenças. E na medida em que eu também


corpo é exatamente um trabalho de equalização dos
elementos que o constituem – água, terra, floresta, de uma expressão melhor, nós chamamos de tradicional. E eu
digo isso porque a biomedicina também é uma medicina tradi-
animal, ar e calor. Qualquer desequilíbrio desses cional dos não indígenas, e a dificuldade é dos não indígenas se
verem em perspectiva com outras tradições de conhecimento.
Eu queria que você contasse um pouco sobre a experiência do
Centro de Medicina Indígena da Amazônia.

João Paulo Nós criamos o centro em 2017, oito anos depois do episódio
Barreto da minha sobrinha, e tivemos todo esse tempo para amadure-
cer a ideia. Quando usamos esse termo “medicina”, alguns dos
meus professores e colegas, que são médicos, foram contra e
diziam: “Mas toma cuidado com esse termo ‘medicina’, porque
é um termo muito apropriado pela biomedicina e você pode
sofrer consequências, ser processado pelo Conselho Nacional
de Medicina”. E eu dizia para eles que eu achava isso muito
o meu corpo é corpo-território.”

curioso, pois eu posso dizer com garantia que, conforme dados


científicos da arqueologia, nós, povos indígenas, já estamos
aqui neste território há 14 mil anos. Há 14 mil anos nós esta-
mos manejando a terra, a floresta, o cosmos, os rios; desenvol-
vendo tecnologias, arquitetura, cerâmica, alimentação e, além
de tudo isso, vivendo com a nossa medicina. E agora os bran-
cos, que chegaram há somente 521 anos, querem me dizer que
eu não tenho medicina? Isso é muito contraditório.
A partir daí, nós conseguimos entender as consequên-
cias desse discurso. Nós, povos indígenas, sempre fomos obri-
gados a negar os nossos conhecimentos, obrigados a negar a
nossa cultura, obrigados a negar a nossa língua, obrigados a
negar os nossos territórios, obrigados a negar os nossos espe-
cialistas. Daí vem essa noção de alguns colegas e profissionais
falarem essas coisas e continuarem a nos obrigar a negar as
coisas. Eu precisei explicar para eles que nós estamos pegan-
do o termo “medicina” em seu sentido amplo, que nada mais é
que a arte de cura.
Por isso, é importante falarmos sobre medicina indíge-
na, que opera com outras lógicas. É isso que estamos mostran-
do aqui no Centro de Medicina Indígena, onde meu pai atende
as pessoas a partir dos nossos conceitos de doença, corpo e pes-

282 283
soa, e a partir dos conhecimentos sobre as plantas medicinais. Da mesma forma, o corpo da mulher também tem toda a capa-
Portanto, aqui no Centro de Medicina Indígena nós atende- cidade de gerar a vida e, portanto, nós temos a prática de cui-
mos a partir de duas técnicas terapêuticas nossas, o bahsesse e dar muito desse corpo. Então nós só temos duas condições de
o uso de plantas medicinais. Nós já atendemos cerca de 4.900 gerar vida: sob a condição de Terra e sob a condição de mulher.
pessoas em três anos de atividade, sendo que, em 2020, fica- E essas condições têm que ser bem cuidadas, e é por isso que o
mos fechados devido à pandemia. E dessas pessoas, a maioria território é muito importante.
absoluta é de não indígenas. Quase todos os casos deram certo Mais importante é essa mediação. Discutir as mudanças
e, por isso, para nós, é tão importante compreender os nossos climáticas é discutir os conhecimentos indígenas, não é discu-
conceitos para podermos cuidar das pessoas. Eu quero des- tir a preservação do meio ambiente. É discutir o nosso modelo
mistificar essa ideia de que o meu pai é curandeiro. Meu pai de conhecimento e como ele opera para manter o equilíbrio da
não é curandeiro, meu pai não é feiticeiro, meu pai não é mági- Terra. É por isso que eu costumo dizer que não adianta gritar
co. Ele está cuidando das pessoas a partir dos nossos conceitos. que a árvore tem vida ou que o território não pode ser desma-
Eu quero deixar muito bem claro que nós não somos contra a tado se não for levar a sério os conhecimentos indígenas e seus
biomedicina. Aqui, eu estou dizendo que os dois modelos de operadores, que são justamente os especialistas indígenas que
conhecimento precisam aprender a dialogar. fazem a mediação dessas relações. Eu fico triste quando es-
sas pessoas que discutem mudanças climáticas não chamam
Roberto João, essa conexão que você fazia e que muitos outros pen- nossos especialistas.
Romero sadores indígenas fazem entre corpo e território também traz Outro perigo é que a Terra guarda doenças. Dentro dela,
ensinamentos importantes para situações como as que esta- existem casas de doenças. Quando desmatamos uma determi-
mos atravessando agora em relação às mudanças climáticas, às nada área, por exemplo, automaticamente nós vamos ter surto
ameaças e aos perigos dessa nova época que estamos vivendo, de malária, pois as casas que guardam aquela doença são des-
que alguns chamam de Antropoceno. E tem uma comparação truídas. E então a doença passa a se manifestar. Portanto, é ne-
muito forte que eu vejo entre a ideia de “doença”, ou seja, o cor- cessário fazer bahsesse de controle disso para evitar o desequilí-
po doente, e a Terra doente. Nós lemos em livros como A queda brio. E é essa prática que nós estamos discutindo. Podemos até
do céu, de Davi Kopenawa, ou em falas de pessoas como Isael e diminuir o desmatamento e a poluição, mas as doenças vão
Sueli Maxakali, que recentemente escreveram sobre como “o
vento está doente, a Terra está doente, o Sol está doente”. Ou
seja, essa imagem da doença como descrição desse período
tamento, precisamos aprender a dialogar .
continuar surgindo. Não é simplesmente controlar o desma-

que nós estamos atravessando. Eu queria ouvi-lo um pouco a


respeito dessas conexões.

João Paulo Eu vou colocar duas questões aqui. Primeiro, a noção de corpo
Barreto que nós temos sobre o mundo terrestre. O formato da Terra
é de útero e não de uma bola redonda. Ao pensarmos a Terra
como um útero, estamos dizendo que o mundo é corpo de mu-
lher, e é por isso que nós a chamamos de Mãe Terra. Isso por-
que ela tem todos os elementos necessários para gerar vida. Só
ela tem essas condições e, portanto, precisa ser cuidada como
corpo de mulher. Antes de europeus ou colonizadores chega-
rem, nós tínhamos a prática de cuidar, e em cada ciclo do ano
fazer pati bahsesse, que é um bahsesse para equalizar todas as co-
nexões desses elementos que constituem o mundo terrestre.

284 285
Que a arte seja uma importante ferramenta de aprendizagem,
isso nós já sabemos. Que ela tenha a capacidade de conter os
demais campos do conhecimento de uma maneira que eles
não podem contê-la, também. Que ela seja um campo em eter-
no campo, portanto para o qual toda e qualquer definição sem-
pre será um erro, tampouco é novidade. Que organizar-se seja

DESAPRENDER
uma forma de aprender e que ela tenha muito a ver com isso,
também não nos é estranho. Que ela esteja onde aparente-
mente não está e que isso provoque deslocamentos importan-

DE VERDADE?
tes na educação, menos ainda. Que ela seja um potente estado,
lugar, forma e ferramenta que nos possibilita desaprender o
que está posto, este sim parece ser um exercício em vias de.
Mas é, realmente, possível desaprender? Como os pro-
VOCÊ QUER
cessos de desaprendizagem se desenvolvem? É possível de-
senvolver metodologias de desaprendizagem ou toda me-
todologia é necessariamente orientada para uma produção
positivista de conhecimento? Como desaprender o naturali-
zado? Como ir além do que está posto?

***

Como podemos (nos) imaginar politicamente sem cair nos


modos de subjetividade engendrados e cristalizados pelo “re-
gime colonial-racializante-capitalístico”?1 Como, depois de
uma pandemia, não reproduzir a lógica de vida que nos levou
até ela? É possível construir razão a partir “do coração, dos pul-
mões e do fígado”?2 O que há entre a renúncia e a coragem?
O QUE

Como ser menos eloquentes e mais musculares, articulades,


fotossintéticas? Como operar a partir de uma biodisponibilidade
poética sublingual? Como podemos ainda ser humanes sem in-
sistir em saber o que já sabemos? O que isso tem a ver com nos-
sas práticas e o que temos que desaprender de verdade?
Mônica Hoff

Como, afinal, podemos ensinar o que não sabemos?


Como podemos aprender a desaprender? E depois disso, como
ensinamos a desaprender? Por fim, como inventamos juntes o
que queremos aprender realmente?

1 Ver ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição – notas para uma vida não cafetinada.
São Paulo: n-1, 2018.
2 Ver CUSICANQUI, Silvia Rivera. Un mundo ch’ixi es posible. Ensayos desde un
presente en crisis. Buenos Aires, Tinta Limón, 2018.

286
De acordo com o neurocientista Sidarta Ribeiro, 3 quan-
do imaginamos estar fazendo algo, ativamos as mesmas partes
do cérebro que usamos para fazer tais coisas e também para
sonhá-las. Com isso, podemos pensar que o sonho onírico (de
olhos fechados), a imaginação (de olhos abertos) e a ação pro-
priamente dita estão intimamente interligados, e que imagi-
nar, além de um exercício prático, é um ato.
O que você aprendeu

forma de pensar e os
***

estruturaram a sua
“Imaginar corajosamente!”, 4 nos recomenda Ailton Krenak

de sentir e agir?
aprendizagens ao sugerir uma utopia selvagem que aposte em uma plurali-
dade imprevista e que nos ajude a sonhar outros mundos para
e como estas
além da ficção-mundo ocidental – desinventando estruturas,

seus modos
desdomesticando a vida, descoisificando os vínculos, criando
“táticas de des-captura”. 5
Ou, frente ao regime de impossibilidades, a possibilida-
de de existir de outras formas – como um “inédito viável”,6 tal
qual defendia Paulo Freire, isto é, como um processo não co-
nhecido mas, de alguma forma, desejado, que quando aconte-
ce já não é mais ele mesmo, senão a sua concretização no que
antes tinha de inviável.
Desaprender, portanto, nos exige construir outras for-
mas de imaginar, elaborar outros métodos, outras imagens,
outras ações, sonhar diferente – trata-se de um processo que
recusa as pedagogias do poder e suas políticas patriarcais de
progresso, e nessa recusa assume o abismo e constrói uma
episteme outra, que se trama no/com/ao vivo. Aprender cobra
nossa disponibilidade. Desaprender (o que está posto) custa
nossa coragem.

***

3 Sidarta Ribeiro no seminário “Ni apocalipsis ni paraiso”, realizado na


segunda edição do Programa Materia Abierta, México, 2021. Ver https://
materiaabierta.com
4 Ailton Krenak em sua participação no Programa Roda Viva,
em 19/04/2021. Disponível em https://www.youtube.com/
watch?v=BtpbCuPKTq4
5 Ver BONA, Dénètem Touan. Cosmopoéticas do refúgio. Florianópolis: Cultura
e Barbárie, 2020.
6 Ver FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

288 289
290
Se você pudesse
escolher algo
aprendido para
desaprender,
o que seria?

Como você imagina


desaprender o que
já aprendeu?
291
Quando ensinamos o que não sabemos e inventamos juntes o
que queremos aprender, desaprendemos estruturalmente.
Quando compreendemos que investigação (o que bus-
camos) e criação (o que inventamos) podem ser a mesma coi-
sa, desaprendemos epistemologicamente.
Quando geramos hipóteses impossíveis (só) para poder
imaginá-las possíveis, desaprendemos normativamente.
Quando entendemos que a linearidade do tempo é uma
forma de controle e também uma ficção, desaprendemos a vi-

quer desaprender,
ver uma vida pré-determinada.

que ensinar o que


Quando habitamos a fricção e o desconforto como me-
Se você tivesse dida ética de transformação do que está posto, desaprende-
mos como princípio ativo de luta.
Quando entendemos que aprendizagem é sinônimo de

como faria?
coletividade e coletividade é sinônimo de instabilidade, con-
flito, dissenso, cuidado, carinho e institucionalidades que ain-
da não existem, desaprendemos uma certa ideia de progresso
– linear, meritocrático, patriarcal.
Quando deixamos de insistir em saber o que já sabemos,
desaprendemos espiritualmente.
Quando habitamos o paradoxo como lugar de trans-for-
mação, desaprendemos como exercício prático.
Quando compreendemos que o futuro, além de uma
construção problemática, é também uma fuga, desaprende-
mos cosmogonicamente.
Quando entendemos que “sonhar é criar horizontes de
possibilidade e sonhar coletivamente, assumir a luta pela cons-
trução de condições das possibilidades”,7 tal qual defende Freire,
nos corresponsabilizamos e desaprendemos conjuntamente.
Quando optamos “pelas táticas furtivas de resistên-
cia”, ou por resistir em modo menor, desaprendemos colo-
8

nial e capitalisticamente.

***

Desaprender não é um exercício simples, implica des-cami-


nhar, ou fazer des-andar uma série de normas, regras, formas
e conhecimentos sistemática e historicamente construídos e

7 Idem.
8 Ver BONA, Dénètem Touan. Cosmopoéticas do refúgio. Florianópolis: Cultura
e Barbárie, 2020.

292 293
naturalizados. Portanto, nos solicita des-fazer, ou des-sonhar,
uma certa ficção-mundo para podermos imaginar outras con-
formações de vida possíveis. Desaprender requer, sobretudo,
disponibilidade para aprender de novo e diferente, e também
para recusas impostergáveis – significa reconhecer opressões,
desejos e responsabilidades.
Trata-se de uma espécie de contrapedagogia em público,
em que as formas de pensar, sentir e agir se renovam e se revi-
sam ao mesmo tempo – como medida social mas também como

desaprendizagem,
ritual político-estético individual. Tem a ver com habitar nos-

como a chamaria?
sas experiências diárias, reconhecer nelas regimes de opressão
Por fim, se você

um nome a esta
tivesse que dar instaurados historicamente, e reinventar este lugar. Significa
abandonar certas cadeiras, deixar determinados palcos, recusar
certos cenários e jogos e, assim, não negociar o inegociável. 9
Significa também entender que toda conquista deixa
suas dívidas. Que quando parecer construção, pode ser que
já seja ruína. Que nem tudo será adiado até uma nova ordem
mundial. Que a noção de parente nunca se referiu à proprieda-
de. Que o rio nunca se tratou de água engarrafada. Que a mon-
tanha nunca passou por cima do trem. Que a terra é uma lin-
guagem. Que o progresso é a invenção da falta e, o suficiente,
uma verdade que nunca se materializou. Que a monocultura
está nas letras. Que não é mais possível chamar de crise o que
não tem nome. Que o sonho será sempre um recurso para o
descontrole da linguagem. Que negociar sobrevivência nun-
ca foi sobre estar vives. Que se civilizar nunca foi um destino.
Que na estética da empatia tudo o que é de verdade também
é de mentira. Que a humanidade continuará pedindo perdão.
Que é na curva que a água encharca. Que é da merda que nasce
a vida. Que é assim, sem juízo final. Porque pode não ser o fim
do mundo, mas também pode ser o fim de nada.
Desaprender é um basta – necessário e irrevogável .

9 In Rolnik, 2018, pp. 195-197.

294 295
Aline Artista fluminense que combina diferentes técnicas e práticas
Motta artísticas como fotografia, vídeo, instalação, performance,
arte sonora, colagem, impressos e materiais têxteis. Em seu
trabalho, busca refletir e narrar histórias submersas sobre sua
família, atravessadas por temas como genealogia, parentesco,
gênero, mestiçagem e deslocamentos afroatlânticos.

Aline Formada em Comunicação Social com especialização em


Vila Real Imagens e Culturas Midiáticas pela UFMG. Foi integrante e
coordenadora de produção do Grupo Espanca!, foi uma das
idealizadoras da mostra Polifônica Negra e participou, dentre
outros, dos projetos Coletivo Negras Autoras, Cia. Será Quê?
de dança, e banda Black Sonora. Atualmente é Diretora de
Promoção das Artes da Fundação Municipal de Cultura.

Ana da Psicóloga pela UFMG, mestre pela Universidade de São


Fonseca Paulo (USP) e psicodramatista pelo Instituto Mineiro de
Martins Psicodrama Jacob Levy Moreno (IMPSI), onde atualmente
SOBRE OS

leciona sobre Mitodrama. É contadora de histórias e realiza,


AUTORES
junto com outras mulheres, o podcast Histórias com café.

Ana Maria Possui graduação em Pedagogia pelo Instituto de Educação de


R. Gomes Minas Gerais, doutorado em Educação pela Universidade de
Bolonha e pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ). É professora
na Faculdade de Educação da UFMG e pesquisa antropologia
e educação, educação indígena, cultura escolar, cultura e
escolarização, aprendizagem e cultura.

Benjamin É mestre em Sociologia e em Gestão Cultural, curador, editor


Seroussi e gestor cultural. Atualmente, é diretor executivo da Casa do
Povo em São Paulo. Foi diretor de programação do Centro
da Cultura Judaica, curador-chefe do projeto Vila Itororó
Canteiro Aberto e coordenador de “COINCIDÊNCIA,
intercâmbios culturais entre Suíça e países da América do Sul”.

Bernardo Jornalista e repórter da revista Piauí, onde escreve sobre


Esteves ciência, saúde, meio ambiente e tecnologia. Apresenta o podcast
quinzenal A terra é redonda, abordando o olhar da ciência sobre
questões da atualidade. É autor do livro Domingo é dia de ciência
– história de um suplemento dos anos pós-guerra, publicado em 2006
pela Azougue Editora.

296
Carolina Formada em Ciências Biológicas pela UFRJ e doutora em Gabriel Formado em Cinema pela Escola Livre de Cinema e em
Levis Ecologia com dupla titulação pelo Instituto Nacional de Martins Comunicação Social pela UNA. Junto com André Novais,
Pesquisas da Amazônia (INPA, Brasil) e a Wageningen Maurílio Martins e Thiago Macêdo, fundou a produtora Filmes
University Research (WUR, Holanda). Com sua tese, ganhou de Plástico que, desde 2009, vem realizando filmes ambientados
o Prêmio Jovem Cientista – CNPq (2018) e o Grande Prêmio nos bairros periféricos da Região Metropolitana de Belo
CAPES de Tese (2019) na área das Ciências da Vida. Horizonte e protagonizados por seus moradores e moradoras.

Cezar Professor de Cinema e membro do Programa de Pós- Gabriela Diretora-presidente do BDMG Cultural e mestranda em
Migliorin Graduação em Comunicação na Universidade Federal Moulin Arquitetura e Urbanismo pela UFMG. Jornalista de formação
Fluminense. Coordenador do Projeto Nacional de Cinema, e pós-graduada em Relações Públicas pela USP, atua há
Educação e Direitos Humanos: Inventar com a Diferença. mais de 20 anos na confluência entre educação, cultura e
Publicou os livros Ensaios no Real: O documentário brasileiro hoje desenvolvimento territorial, junto a investidores sociais
(2010), Inevitavelmente cinema: educação, política e mafuá (2015) e privados e públicos e na intersecção com políticas públicas.
Cinema de Brincar (2019).
Gil Artista e educador que habita as encruzilhadas do Atlântico
Cida Professora titular da UFMG, mestre em Educação pela mesma Amâncio negro. Criou projetos como o FAN - Festival Arte Negra,
Moura instituição, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC- Companhia SeráQue?, Sociedade Lira Eletrônica Black Maria,
SP e pós-doutora em Semiótica Cognitiva e Novas Mídias Coletivo Black Horizonte e Coletivo de Cinema Coisa de Preto.
pela Maison de Sciences de l’Homme, em Paris. Coordena o É coordenador, juntamente com a professora Shirley Miranda,
Museu virtual – Saberes Plurais e o Laboratório de Culturas e do grupo de pesquisa “Ciberterreiro” na FAE/UFMG.
Humanidades digitais na UFMG.
Guilherme Artista visual, pesquisador e idealizador do projeto Retratistas
Déborah Professora da Pós-Graduação em Filosofia da PUC-Rio e Cunha do Morro, cujo objetivo é contribuir para a construção de uma
Danowski tem publicado diversos estudos sobre a crise climática, entre narrativa histórica das imagens brasileiras conectada ao ponto
os quais O hiperrealismo das mudanças climáticas e as várias faces de vista de fotógrafos tradicionais que atuaram nas vilas, favelas
do negacionismo (2012); Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e comunidades urbanas do país, a partir da metade do século 20.
e os fins (com Eduardo Viveiros de Castro, 2017); e o cordel
Negacionismos (2018). Helena Pesquisadora, dramaturga, transfeminista e escritora. Foi
Vieira colunista da Revista Fórum e contribuiu com diversos meios
Dona Compositora e cantora paraense, é conhecida como “Rainha de comunicação como o Huffpost Brasil, Revista Galileu,
Onete do Carimbó”. Cativa o público pela originalidade de sua poesia, Revista Cult e Folha de São Paulo. Foi co-autora dos livros
combinada com uma estética musical dançante e romântica. História do Movimento LGBT (2018), Explosão Feminista (2018), Tem
Através de suas músicas, interfere na predominância masculina Saída? Ensaios Críticos sobre o Brasil (2017), e Ninguém Solta a Mão de
que impera no carimbó, além de romper o tabu sobre a vida Ninguém: Um manifesto de resistência (2019).
sexual dos idosos.
Henrique Teólogo, pastor, ator, pesquisador da Arte do Palhaço, professor,
Francy Antropóloga e indígena do povo baniwa. Possui formação Vieira cientista social, historiador e escritor. Pastoreia a Igreja Batista
Baniwa em Sociologia (licenciatura plena) pela Universidade Federal do Caminho em Niterói e Rio de Janeiro. Integra o Coletivo
do Amazonas (UFAM), Mestrado em Antropologia Social Esperançar, que reúne evangélicos na relação entre Evangelho,
do Museu Nacional na Universidade Federal do Rio de Direitos Humanos e respeito à diversidade. É autor do livro O
Janeiro e é Doutoranda em Antropologia Social pelo Museu amor como revolução (2019), da editora Objetiva.
Nacional (UFRJ).

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Ibã Huni Educador, artista plástico, ativista, liderança e txana, mestre Juliana Psicóloga pela UFMG e psicodramatista pelo Instituto
Kuin dos cantos na tradição do povo huni kuin. É mestre pela dos Santos Mineiro de Psicodrama Jacob Levy Moreno (IMPSI), onde
Universidade Federal do Acre e doutorando na Universidade Soares hoje é professora da pós-graduação. É estudiosa do amor em
Estadual do Rio de Janeiro. Em 2013, fundou o MAHKU, suas muitas manifestações, promovendo o workshop “Era uma
Movimento dos Artistas Huni Kuin, que se dedica aos estudos vez o Amor” (2015/2016) e a jornada sobre relacionamentos
dos cantos, desenhos e pinturas do povo indígena huni kuin. “Encontros & Desencontros” (2020).

Isabel Rainha Conga das Guardas de Congo e Moçambique Treze de Liça Educadora, artista e liderança da aldeia Muã Mimatxi, em
Casimira Maio de Nossa Senhora do Rosário e da Federação dos Congados Pataxoop Itapecerica, Minas Gerais. Em seu processo educativo, utiliza
Gasparino do Estado de Minas Gerais. É co-diretora do filme A Rainha os Tehêys, desenhos-narrativas através dos quais as crianças da
Nzinga Chegou (2018) e pesquisadora convidada do programa de aldeia aprendem a ler com as imagens e a conhecer os valores
Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG. da vida e da natureza que fazem parte da cultura e do território
do seu povo, os Pataxoop.
Janaína Produtora cultural, já esteve envolvida em diversos momentos-
Macruz chave de Belo Horizonte, como a cena de música autoral e Luciana Professora em Planejamento Territorial da Universidade
o reflorescimento do carnaval local. Junto a um coletivo de Xavier Federal do ABC e doutora em Comunicação Social pela
mulheres, é idealizadora e diretora artística do CURA - Circuito Universidade Federal Fluminense, onde ganhou o prêmio
Urbano de Arte, um marco definitivo na paisagem da cidade. Compós 2017 de melhor tese de doutorado em Comunicação
do Brasil. Atua nas áreas de estudos étnico-raciais, música
João Indígena do povo yepa mahsã (tukano) nascido na aldeia São popular, estudos culturais, gênero, mídia e comunicação.
Paulo Domingos, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM).
Barreto Foi o primeiro indígena a defender uma tese de doutorado na Luiz Escritor, professor, historiador e compositor. É autor e coautor
Universidade Federal do Amazonas, é fundador do Centro de Antonio de vinte livros e mais de uma centena de ensaios e artigos
Medicina Indígena Bahserikowi, membro do SPA - Science Simas publicados sobre carnavais, folguedos populares, macumbas,
Panel for the Amazon e da Academia Brasileira de Ciência. futebol e culturas de rua. Ganhou o Prêmio Jabuti de Livro de
Não Ficção do ano de 2016 e foi finalista do mesmo prêmio,
Jonathas Artista visual e fotógrafo. Trabalha com instalações, em 2018 e 2020, na categoria crônica.
de Andrade fotopesquisas e vídeos abordando a dimensão social de uma
série de urgências e desconfortos cotidianos. É um artista Luiz Escritor, pedagogo e professor da Universidade do Estado do
pesquisador, interessado em articular a arte com outros Rufino Rio de Janeiro (UERJ). Tem cinco livros publicados, dentre
campos do conhecimento por meio da criação de diversas eles Pedagogia das Encruzilhadas (2019), além de dezenas de
narrativas espaço-temporais. artigos sobre culturas brasileiras, educação, religiosidades,
diáspora africana, filosofias e crítica ao colonialismo.
José Possui pós-doutorado pela University of Oxford (Inglaterra)
Augusto e é professor do Instituto de História da Universidade Federal Micrópolis Formado por Felipe Carnevalli, Marcela Rosenburg e Vítor
Pádua do Rio de Janeiro, onde coordena o Laboratório de História e Lagoeiro, Micrópolis é um grupo de arquitetos que atua nos
Natureza. Foi Presidente da Associação Brasileira de Pesquisa cruzamentos entre espaço, design e educação. Colaborador
e PósGraduação em Ambiente e Sociedade – ANPPAS do programa educativo do BDMG Cultural em 2020 e 2021,
(2010/2015) e integrou a equipe de criação do Museu do o coletivo se dedica a projetos e ações em pequena escala,
Amanhã, do qual é membro do conselho científico. capazes de fazer emergir particularidades e imaginários locais
que apontam para novas possibilidades de envolvimento e
transformação coletiva do espaço.

300 301
Mônica Artista, curadora e pesquisadora. Trabalha com mediação Sueli Fotógrafa, cineasta e professora do Programa de Formação
Hoff cultural, curadoria educativa e programas públicos. Sua Maxakali Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG. Atua como
pesquisa se desenvolve dentro da relação entre o espectador artista, liderança e ativista da questão indígena, utilizando
e as exposições, propondo ações em que o público seja um em seu trabalho várias linguagens como o canto, o desenho, a
participante ativo na construção do pensamento sobre a arte. fotografia, o cinema e os adornos de miçanga.

Renata Professora da Escola de Arquitetura e Design da UFMG e Tatiana Pesquisadora, professora no Centro Universitário UNA e
Marquez coeditora da revista Piseagrama. Com doutorado em Geografia Carvalho doutoranda em Comunicação Social pela UFMG. Coordena
e pós-doutorado em Antropologia, pesquisa práticas Costa o projeto de extensão universitária PRETANÇA – Afro-
curatoriais, teoria e crítica na interface entre arte, arquitetura, brasilidades e Direitos Humanos e integra os grupos de
geografia e antropologia. pesquisa CORAGEM – Comunicação, Raça e Gênero; Poéticas
da Experiência; e NUH – Núcleo de Direitos Humanos e
Roberto Etnólogo, doutor em Antropologia Social pelo Museu Cidadania LGBT.
Romero Nacional (UFRJ) e membro do Núcleo de Antropologia
Simétrica (NanSi). É membro da Associação Filmes de Quintal Zoy Designer e antropóloga pelo Museu Nacional (UFRJ). É
e um dos organizadores do forumdoc.bh – festival do filme Anastassakis professora adjunta da Escola Superior de Desenho Industrial
documentário e etnográfico de Belo Horizonte. Co-dirigiu (ESDI-UERJ), onde coordena o Laboratório de Design e
o filme Nūhū yãgmū yõg hãm: essa terra é nossa! (Isael Maxakali, Antropologia (LaDA). Coordena o Programa de Estudos em
Sueli Maxakali, Carolina Canguçu, Roberto Romero, 2020). Humusidades e publicou, dentre outros, Triunfos e Impasses: Lina
Bo Bardi, Aloísio Magalhães e o design no Brasil (2014) e Refazendo
Rui Bailarino, coreógrafo e investigador cultural. Nascido em São tudo: confabulações em meio aos cupins na universidade (2020).
Moreira Paulo, se mudou para Belo Horizonte para dançar no Grupo
Corpo em 1984. Ao lado de Gil Amâncio e Guda Coelho,
formou a companhia de dança Seraquê? e iniciou um ciclo
curatorial e de direção artística do FAN - Festival Internacional
de Arte Negra em Belo Horizonte.

Sandra Professora de Ensino Fundamental, mestra em Antropologia


Benites Social pelo Museu Nacional (UFRJ) e doutoranda pela
mesma instituição. Atua, hoje, como curadora adjunta de arte
Brasileira no Museu de Arte de São Paulo (MASP).

Silvane Doutora em História Social pela PUC SP, professora e


Silva pesquisadora nas temáticas história e cultura afro-brasileira,
educação para as relações étnico-raciais, educação para a
igualdade de gênero e educação escolar quilombola. É co-
organizadora do livro Narrativas Quilombolas: dialogar, conhecer,
comunicar (Imprensa Oficial, 2017), e escreveu o prefácio da
edição brasileira de Tudo sobre o amor: Novas perspectivas, de bell
hooks (2021).

302 303
BDMG CULTURAL Masterclass LIVRO EDUCATIVO
Letícia Letrux, Gabriela Leandro BDMG CULTURAL
Gabriela Moulin Pereira (Gaia), Bárbara Wagner e
Diretora–presidente Benjamin de Burca Realização Página 44: Cena do filme No coração
BDMG Cultural do mundo, Filmes de Plástico
Larissa D’Arc Textos críticos
Diretora-financeira Micrópolis, Renata Marquez, Organização Páginas 58 e 62: Cenas do filme
Selma de Jesus Oliveira, Marcela Gabriela Moulin, Felipe Jogos Dirigidos, Jonathas de Andrade
Elizabeth dos Santos
Bertelli, Julie Dorrico, Silvane Carnevalli, Marcela Rosenburg
Coordenadora de Música Páginas 66 e 70: Yãmiy/homem-
Silva, Gláucia Carneiro e e Vítor Lagoeiro
espírito, fotografias de Sueli Maxakali
Érico Grossi Ricardo Aleixo Coordenação editorial
Coordenador de Artes Visuais Páginas 100 e 104: Casa do Povo,
Podcast É Cultura? Gabriela Moulin, Felipe
fotografias de André Penteado
Francisco de Carvalho Carnevalli, Marcela Rosenburg
Interlocução e Vítor Lagoeiro
Coordenador de Projetos Páginas 126 e 130: Festa Treze de
Gabriela Moulin, Roberto
e Patrocínios Maio, fotografias de Priscila Musa
Romero, Tatiana Carvalho Costa, Projeto gráfico e diagramação
Paula Lobato Aline Vila Real e Renata Marquez Felipe Carnevalli, Marcela Páginas 134, 136 e 138: Yube Inu,
Acervos Produção Rosenburg e Vítor Lagoeiro Yube Shanu, série de desenhos
Belisa Murta, Felipe Carnevalli, (coord.) de MAHKU
Maria Aparecida Paulino Marcela Rosenburg e Paula Lobato, Rafael Amato
Administrativo Vítor Lagoeiro Páginas 178 e 180: Tehêys O
Produção gráfica Grande Tempo das Águas e Kayayun,
Paulo Proença Roteiro Felipe Carnevalli, Marcela desenhos de Liça Pataxoop
Comunicação Bárbara Monteiro, Belisa Murta, Rosenburg e Vítor Lagoeiro
Felipe Carnevalli, Marcela Página 200: Ver-o-Peso, fotografia de
Rafael Amato Imagem da capa
Rosenburg, Roberto Romero e Agência Belém
Designer Gráfico Roque Antônio Soares
Vítor Lagoeiro Página 230: CURA, fotografias de
Jéssica Wrarne (Roquinho)
Edição e desenho de áudio Priscila Musa
Estagiária - jurídico Revisão de textos
Vítor Brandão e Lucas Leone Páginas 262 e 266: Insólito,
Lucas Zanatta Bianca Magela Melo
Preparação de locução e Mariana Di Salvio fotografias de Guto Muniz
Estagiário - arquitetura
Bárbara Monteiro
Antônio de Paiva Impressão ISBN
Estagiário - comunicação Transcrição Gráfica Formato 978-65-87282-07-7
Rosane Lucas de Oliveira, Alice de
Agradecimentos
Oliveira, Vítor Lagoeiro e 2021
PROGRAMA EDUCATIVO Bruna Brandão, Bruna Piantino,
Felipe Carnevalli
BDMG CULTURAL Glaura Cardoso Vale, Júnia
Tradução em Libras Torres, Roberto Romero e
Coordenação Rosane Lucas de Oliveira Wellington Cançado
Gabriela Moulin, Belisa Murta,
Felipe Carnevalli, Marcela Comunicação Créditos das imagens
Rosenburg e Vítor Lagoeiro Paulo Proença Páginas 24 e 28: Cenas do filme
Oficinas Design Filha Natural, Aline Motta
Coletivo Mofo, Flávia Péret, Rafael Amato Páginas 32, 36 e 38: Aglomerado
Dayane Tropicaos, Coletivo da Serra, fotografias de Afonso
Às Margens e Stela Barbieri Pimenta, Retratistas do Morro
304 305
Catalogação na Publicação (CIP)
Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário
Tiago Carneiro – CRB-6/3279
Jonathas de Andrade /
José Augusto Pádua /
A959

Avizinhar Fabulações / organizado por Gabriela


Juliana dos Santos Soares
/ Liça Pataxoop / Luciana
Moulin, Felipe Carnevalli, Marcela Rosenburg, Vítor
Lagoeiro. – Belo Horizonte: BDMG Cultural, 2021.

Xavier / Luiz Antonio


304 p. : il.

ISBN 978-65-87282-07-7

1. Cultura e educação - Podcast. 2. Moulin, Gabriela. 3.


Simas / Luiz Rufino /
Carnevalli, Felipe. 4. Rosenburg, Marcela. 5. Lagoeiro,
Vítor. I. Título. Micrópolis / Mônica Hoff /


CDD: 306
CDU: 304 Renata Marquez /
Roberto Romero /
Rui Moreira / Sandra
Benites/ Silvane Silva /
Sueli Maxakali / Tatiana
Carvalho Costa / Zoy
Anastassakis

307
Cultivar um interesse afetuoso, genuíno e
permanente por humanos e não humanos,
pelas diversas epistemologias, pelas políticas
e estéticas, pelos sagrados e pelas ciências.
Esse é o tom daquilo que chamamos
“educativo” nos anos de 2020 e 2021, no
BDMG Cultural. Estamos em Minas Gerais,
em anos de pandemia, mas queremos contar
esta história para falar de possibilidades e de
curas coletivas.
Percorremos um caminho fora de certezas
monoculturais, longe dos desarranjos da
memória, na resistência às injustiças e
aos preconceitos, para navegar na infinita
pluralidade que emerge na dimensão lúdica
da vida, na inventividade do cotidiano, nos
encontros ancestrais, nos refúgios e numa
ecologia dos sentidos e da imaginação.
Conversamos e refletimos em uma
pulsação coletiva que se deu à distância,
mas que passa aqui para a forma de texto
com o intuito de permanecer na fala transcrita
dos podcasts e nos textos especialmente
escritos para este livro.

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