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Eis que naquela noite de insônia, o


brilho advindo do luar era ainda mais
intenso e eu observava de longe. Não era a
mesma lua que eu costumava observar em
silêncio todas as noites sentada na janela
do meu quarto. Um acontecimento raro que
acalorou todos os meus sentimentos e
sentidos me fez despertar para este livro.
Resplandecia ao céu, o astro guiado por
Artêmis, na cor carmim alaranjada,
iluminando de forma intrigante minha pele
branca, deixando-a corada. Os detentores
da ciência diziam que naquele dia, o céu
era protagonizado pela majestosa “super
lua de sangue".

Foi então, que admirando-a, me recordei


mais uma vez de você. O pensamento invadia
a minha mente nublada das madrugadas sem
sono, de forma tão repentina que se

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assemelhava ao raio de sentimentos que
foram brutalmente tolhidos ainda na
adolescência em que nos conhecíamos, era
aquela mesma sensação que me sucumbia e eu
precisava escrever sobre nós. E já não era
eu e você, o emaranhado de lembranças
tornaram-se “nós”. Nós que atam,
desatam... desatamos no caminho, atei
outros laços, mas toda noite, quando meu
olhar cruzava com o da lua, era tua saudade
que brutalmente rasgava meu peito entre as
lembranças do que não vivi. O singular tão
eu que se transformava em plural com você.
(...)

O ponto de início dessa história, é


marcado pelo momento em que eu havia
completado quatro anos de idade. Antes
disso, eu não me recordava de grandes
acontecimentos.

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Afinal, foi com essa idade, que parti
rumo a outro estado com minha família.
Fomos para a cidade de Porto Alegre em
busca de novas oportunidades e assim
passamos a viver no Rio Grande do Sul. Logo
meus pais abriram uma padaria no bairro
onde vivíamos, nossa rua estava sempre
cercada de pessoas, a casa em que morávamos
era alugada e feita de tijolos vazados, ao
fundo, no quintal, havia um balanço e a
casinha simples de madeira que meu avô
havia feito para nosso cachorro, o
espoleta Twinko.

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“Eu sei, este não é meu cachorro.”

Reavivar essas lembranças sempre me traz


uma nostalgia gostosa, é como se tivesse
vivido tudo isso ainda ontem. Lembro que
todas as manhãs, eu despertava logo cedo e
tomava o meu café da manhã. O leite sempre

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em temperatura natural e com duas colheres
de achocolatado, enquanto isso, meu pai
comia seu pão com manteiga e bebia seu café
com leite. Aquele leite que sempre tinha
uma nata por cima, jamais poderia esquecer
desse sórdido detalhe, afinal, graças a
essa visão de todos os dias, desenvolvi
uma espécie de trauma para vida toda. Nada
contra nata de leite, nem sou adepta da
prática de racismo reverso, sabe? É só que
eu não gostava da imagem mesmo, deve ser
algo inato da minha inconstância
sagitariana, eu sempre fechava os olhos
quando meu pai mexia com a colher e
levantava lentamente deixando a nata na
ponta, logo depois comia como se fosse
brigadeiro de colher, era um branco
espesso que não me agradava em nada.

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Já a minha mãe, quase nunca sentava a
mesa conosco, corria de um lado para outro
tentando arrumar tudo para que eu fosse
para a creche e meu pai para a padaria.
Ela me ajudava em minha preparação para
que eu me arrumasse devidamente, afinal a
creche é o nosso primeiro contato com o
mundo da moda contemporânea. Acho
inclusive que meu gosto afinado por
tendências nasceu ainda ali e eu tinha um
gosto um tanto quanto peculiar, à la última
moda em Milão, não combinava muito bem as
roupas e gostava de vestir uma peça por
cima da outra, quanto mais roupas, melhor.
Esse era o meu pensamento. Não dá para
dizer que eu não era original. Ela prendia
os meus cabelos com uma xuxinha de cada
lado, meu cabelo era meio liso meio
cacheado. Tudo pronto, e ela ou o meu pai
me levavam na bicicleta até minha escola.

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“Eu sei, isso também não é uma bicicleta.”

A creche não era meu lugar preferido,


não posso negar e os primeiros dias foram
bastante traumáticos, eu chorava
desesperada, me agarrava em meus pais e
não compreendia a necessidade de ficar
afastada deles, já que eu poderia
permanecer brincando atrás do balcão da
padaria enquanto comia maria mole na

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casquinha de sorvete. Sim, aquela mesma,
que vinha um balão pequeninho colorido em
cima.

Após alguns dias, eu começava a me


adaptar com a creche, mas o meu momento
preferido ainda era o mesmo: a hora da
saída. Ainda que meus pais demorassem e eu
fosse a última a deixar a creche. Quando
isso acontecia, eu ficava com a Tia Elaine.
Uma senhorinha legal de 60 anos com quem
eu adorava compartilhar as grandes
aventuras que haviam ocorrido na creche
enquanto meus pais não chegavam e ela não
ficava atrás, adorava lembrar da sua época
de escola. Ainda acho que muita coisa ela
inventava, a escola não podia ser tão legal
assim do jeito que ela narrava. Sério, que
escola é essa onde os zoados eram sempre
os meninos e nunca as meninas? Pois é, na

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escola ideal da Tia Elaine, era assim que
funcionava. E já que meus pais não podiam
sair da padaria no horário mais
movimentado do dia, eu sentava e
aguardava, sempre ouvindo as histórias que
não acreditava, mas fingia que sim.

Recordo que na creche, cheguei a fazer


alguns amigos. Mas, em especial, poderia
destacar a Bruna, ela foi a primeira pessoa
a interagir comigo. A menina usava um
penteado semelhante ao meu, mas o cabelo
dela era mais escuro e liso, nossas roupas
eram parecidas e eu até comecei a gostar
do jeito que minha mãe me vestia, o
diferencial dela estava em algumas
pulseiras de plástico colorido que pendiam
em seu braço, daquelas que sempre deixam
as marquinhas de circulação quando se
tira.

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Foi então que eu e Bruna começamos a ir
juntas para o refeitório. Eu quase não me
alimentava, não tinha tanto apreço por
comida, gostava mesmo de umas besteiras,
então muitas vezes eu pedia para que ela
comesse sem que ninguém visse que não era
eu quem estava comendo, mas as vezes eu
levava os meus biscoitos para a hora do
intervalo e dividia com ela, afinal ela
sempre me salvava, já que quem não comia
tudo era terrivelmente punido com 30
minutos de sermão da Diretora Mercedes. E
não queiram saber o quão torturante
poderiam ser esses 30 minutos.

Mas voltando ao que interessa, lembro


que meus salvadores biscoitinhos eram de
chocolate e eu gostava de separar o
biscoito do recheio, as vezes formava uma
bola gigante só com o recheio e deixava

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para comer por último. A Bruna pedia a
minha bolinha de recheio em alguns dias e
mesmo depois de tanto sacrifício comendo
apenas a parte dura do biscoito, eu dava
sem pensar duas vezes. Ou seja, minha
essência sempre foi altruísta mesmo e eu
particularmente acho que só por isso a
minha humilde pessoa deveria ser
canonizada, afinal, dividir a bola de
recheio é prova de amor das grandes.

Ainda na saga de aventuras com a Bruna,


lembro-me que nós sempre corríamos na hora
intervalo rumo a janela da nossa salinha e
verificávamos se nossos colchões estavam
próximos um do outro, para que pudéssemos
conversar na hora de dormir. O colchão da
Bruna tinha um lençol amarelo clarinho e o
meu, um lençol azul com alguns desenhos de
bicicletas e skates, uma clara referência

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a minha alma cult anos 80. Mentira, na
verdade, acho que meus pais esqueceram que
deveriam levar o lençol no primeiro dia de
creche e por isso o meu lençol era aquele,
cedido pelas tias mesmo. Mas, no fim,
aquilo não me incomodava, contanto que o
meu colchão estivesse ao lado do dela, o
que sempre acontecia. Eu também não me
sentia muito confortável em dormir. É que,
na verdade, bem lá no fundo, eu tinha muito
medo de adormecer pois acreditava que, se
eu dormisse, a fada do desenho do Pinóquio
faria meu nariz crescer por alguma mentira
que talvez eu pudesse ter contado alguma
vez e não me recordava.

A partir do momento em que assisti aquele


desenho, eu nunca mais menti. Eu
acreditava de verdade que a fada pudesse
vir a noite e fazer meu nariz e orelhas

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crescerem, bobagem, né? Mas não para minha
infância e parte da vida adulta também.
Logo, enquanto Bruna e todos os meus
coleguinhas dormiam, eu olhava ela dormir
e fazia carinho em seu braço, ela sempre
dormia mais rápido assim e eu não me
importava em ficar acordada, até gostava.

Os dias na creche se tornavam cada vez


mais agradáveis, comecei a ter novos
amigos, um deles era o Jonathan, Bruna
tinha ciúmes, já que comecei a dividir a
minha atenção e até minhas bolinhas de
recheio entre os dois, até porque sentia
que gostava de ambos da mesma maneira. Mas
no fundo, algo no Jonathan não me deixava
mais passar tanto tempo assim com Bruna.
Eu comecei a dormir na casa dele, como
fazia com ela. Contudo, nunca juntos,
pois, por algum motivo, eles não se

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relacionavam tão bem um com o outro. Após
dois anos de convivência, novas
descobertas, amigos e histórias, era hora
de me despedir da creche. A maioria dos
meus colegas iria para um colégio público
no mesmo bairro, e meus pais haviam
conseguido uma bolsa parcial em uma escola
particular que era próxima da padaria.
Isso reduziria bastante o meu percurso, já
que o caminho para ir e voltar das aulas
era um pouco extenso e cansativo. Jonathan
também havia conseguido uma vaga na mesma
escola em que eu estudaria, mas Bruna iria
para outro colégio mesmo. O colégio dela
era consideravelmente afastado de nossa
antiga creche, o que não facilitaria em
nada a nossa proximidade e,
consequentemente, a nossa amizade.

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Logo no início da minha estrada na nova
escola, fiz alguns novos amigos. Eles não
eram muitos, pois eu era uma aluna bolsista
e acabava me sentindo um pouco deslocada
naquele ambiente. O meu único amigo de
verdade ainda era o Jonathan, mas o meu
antigo amigo de fé contou com uma maior
facilidade em se adaptar e fez vários
amigos ainda na primeira semana. Isso
culminou para que eu acabasse solitária,
sentindo uma falta enorme da Bruna, falta
essa que nem cabia em meu peito, que por
vezes implodia e virava lágrima, mais uma
nova sensação que eu experimentei através
de Bruna. As vezes ficava sozinha no
banheiro, pois não gostava que me vissem
pela escola sem nenhum amigo. Eu não
possuía tanta facilidade em me relacionar
e não era capaz de desenvolver nenhum
assunto com as meninas do colégio, porque

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elas pareciam muito mais velhas do que eu
e isso me intimidava. O tempo passava e a
insegurança e o aperto no peito só
aumentavam. Parecia que eu nunca mais
teria uma amiga como a Bruna e aquela
situação era desesperadora. Contudo, eu
não conseguia contar aos meus pais, afinal
eles faziam um esforço descomunal para me
manter na escola, mesmo que pagassem
apenas vinte por cento do total de uma
mensalidade comum.

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“Eu sei, parecia que eu estava feliz
nessa foto”

Eu era uma boa aluna e acabei me


destacando tanto pela criatividade quanto
pela pontualidade na entrega de trabalhos

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e deveres. Graças a isso, conquistei
algumas novas amigas, as queridas Luisa e
Laura. Luisa era filha do diretor e também
era pouco popular entre nossos colegas,
muitos tinham até medo de se aproximarem
dela por este motivo. Começamos, então a
andar sempre juntas, eu, Luisa e Laura. O
trio “três L’s”. E permanecemos assim,
inseparáveis, até o momento em que tive
que me mudar de colégio, uma vez que meus
pais haviam conseguido uma vaga em um
colégio público que era próximo da minha
casa e eu não me sentia no direito de
negar, sabia que as nossas condições
financeiras não eram das mais favoráveis e
deveria respeitar essa decisão. Essa
inclusive é uma das características que eu
menos gosto em mim e até hoje luto para
dizima-la, eu simplesmente não sei dizer

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“não”, coisa que nem os bons anos de
terapia foram capazes de resolver.

Assim, tentei não demonstrar tristeza,


pois sabia que o que eles faziam era
somente para o bem de toda a nossa família.
Lá estava eu, novamente em uma escola
desconhecida. Eu estava na segunda série,
mas desta vez me identificava um pouco mais
com os meus colegas. Eles eram divertidos
e tínhamos vários assuntos em comum. Meus
novos amigos brincavam de pega-pega na
hora do recreio e recordo que em certo dia
criamos juntos uma brincadeira onde as
meninas pegavam os meninos e os meninos as
pegavam meninas. O objetivo era levar o
oponente até a prisão e se tratava de uma
competição de força e resistência. As
meninas não poderiam perder e eu me sentia
a grande responsável por este feito,

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lutava ferozmente para que não
conseguissem me levar presa e foi assim
que me apelidaram de “Pit Bull”.

Minha mais nova amiga Ana Lúcia, que


também defendia o time feminino com toda
garra que possuía, me lembrava a Bruna,
mas tinha cabelos ruivos e muitas
sardinhas. Eu até tentei algumas vezes
contar as suas sardas, mas ela não
permanecia quieta para que eu conseguisse
me concentrar. Bruna, continuava estudando
na escola perto de sua casa e meu contato
com ela foi se reduzindo cada vez mais.
Enquanto isso, Jonathan permanecia na
escola particular, mas nossos pais eram
muito amigos, então, ainda nos
encontrávamos com uma certa frequência.
Sem contar que os pais dele de vez em
quando apareciam na padaria no fim da tarde

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para comprar pãezinhos e assim
aproveitávamos para brincar e contar as
novidades que aconteciam conosco em nossas
escolas. Luisa e Laura ainda estavam na
escola de Jonathan, e sempre que era
possível meus pais me deixavam passar a
tarde na casa delas. Isso durou algum tempo
e até estudávamos juntas mesmo estando
agora em colégios diferentes.

(...)

Meu nome é Luana e tenho 27 anos. Ainda


criança, eu sempre dizia que seria atriz,
que moraria na cidade Rio de Janeiro e que
somente assim eu seria feliz. E bem, aqui
estou eu, sou atriz e moro no Rio de
Janeiro. Porém, o que sonhamos e o que
temos como meta quando crianças, nem
sempre será o bastante para que a nossa
história seja verdadeiramente feliz.

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Nós nem imaginamos quantos
obstáculos teremos que transpor pela vida
para chegar perto de algo que às vezes
parece tão inalcançável. Costumo dizer que
a realidade é algo que transcende o
inconsciente e de uma forma ou de outra
sempre nos oferece a oportunidade de nos
reinventar, essa premissa é o que
fortalece minha personalidade volúvel e
intensa. Essa é a minha história e de
muitas pessoas que me cercam, mas decidi
que agora, essa história será a nossa
história, pois aqui divido com vocês minha
vida privada numa ficção cheia de poesias,
encontros, paixões e significados.

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Depoimento do Leitor
Admito que é sempre delicioso
relembrar minhas descobertas, visto que
quase sempre minhas memórias vêm
acompanhadas de cheiros e sensações que
descrevem tudo que vivi durante esses
anos, mas confesso que na seara das
experiências que denotam conflitos
internos, esse resgaste é sempre um pouco
mais complicado.

Costumo dizer que minha sexualidade e


os conceitos que a definem nunca couberam
nessa espécie de caixa secreta que algum
dia precisa ser publicada e assumida. É
claro que até o inicio da minha
adolescência, os padrões estabelecidos por

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nossa sociedade heteronormativa moldavam
muito minha visão sobre tudo e uma nuvem
de condenação pessoal por ser “diferente”
ainda pairava por aqui, mas, com o passar
dos anos o aperfeiçoamento da minha
essência artística através do meu contato
direto com a escrita, cinema e afins
contribui bastante para que eu quebrasse
uma série de conceitos que foram
apreendidos até ali e não de fato
entendidos.

Esse processo de saída do “armário”


foi natural, meu primeiro beijo em uma
garota aconteceu aos 15 anos e em momento
algum me senti culpada por ter gostado,
até porque foi fruto de uma brincadeira
entre amigos da escola. Brincadeira essa
que virou costume, já que depois disso não
parei mais e desde então passei a me

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relacionar de forma afetiva e sexual com
mulheres, considero que meu contato real
com a liberdade só aconteceu depois dessa
aceitação. Me transformei em uma pessoa
mais autêntica, crente na vida e nas causas
do amor.

É fato que reconheço que sou


privilegiada por não ter vivido situações
negativas relacionadas a isso e devo isso
a minha mãe, que acima de tudo sempre foi
muito minha amiga e quando soube de tudo,
nunca me tratou de maneira violenta.
Sempre se colocou ao meu lado e tanto ela
quanto minha família sempre fizeram
questão de deixar claro que minha
orientação sexual não é passível de ser
vista com nenhuma estranheza, pois todos

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acreditam que o amor acontece de muitas
maneiras.

Utilizo desse privilégio para me


colocar ao dispor de quem ainda vive esse
conflito interno de forma muito
perturbadora, justamente por saber que
essa reação é causada pela forma como nosso
corpo social lida com a questão da
homoafetividade. O primeiro passo para
aceitação é justamente a convivência com a
normalização de pessoas que são
assumidamente LGBT’s ocupando espaços que
são de todos, por isso sempre me coloco em
locais onde posso dialogar e demonstrar
que somos plenamente capazes de ocupar
cargos de poder e a questão da sexualidade
deve ser vista como algo de cunho pessoal.
Por hoje, sigo na luta e crendo que um dia
toda essa opressão não passará de

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história, afinal ninguém vai poder querer
nos dizer como amar.

Ana.

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O tempo seguia passando e o em conjunto,
o relógio guiava meu crescimento pessoal,
talvez esse tenha sido o período mais
importante da minha vida, onde tomei a
coragem de pedir um presente que mudaria
para sempre minha vida.

Algum tempo antes de completar nove anos


de idade, pedi aos meus pais um presente
inusitado, recordo-me que na época não
gozávamos de uma situação financeira tão
favorável assim e eu sempre tive muita
noção de qual forma deveria expressar meus
desejos materiais. Então, decidi que
naquele ano meu pedido seria realmente
especial, por se tratar do maior de todos
os tempos, eis a chave da minha felicidade
infantil: um irmão, isso mesmo, eu queria
um irmão de presente e acabei sendo
bastante insistente após perceber que

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havia chances reais da realização desse
singelo desejo. Naquele mesmo período,
encontrava um pouco mais de facilidade ao
fazer novos amigos na escola, minha
timidez estava mais controlada e meu nível
de sociabilidade era maior.

O fato é que a vontade de compartilhar a


vida com os outros havia aumentado e o
maior exemplo dessa nova fase era
justamente o meu sonho de deixar de ser
filha única. Recordo que certa vez, com
todos sentados à mesa, encontrei o momento
perfeito para a feitura do grande pedido.
Lembro de estar sentada frente a frente
com minha mãe e meu pai se encontrava ao
meu lado, encabeçando a mesa. Rapidamente
soltei a frase em tom diplomático que
rapidamente iniciou o coro de gargalhadas
dos dois: - Então, como de costume,

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gostaria de fazer meu pedido anual e esse
ano ele é bem especial, decidi que quero
um irmão e vocês não podem negar isso, né?

Minha mãe sorriu tanto ao ponto de ficar


corada tal como o avental vermelho que
vestia, meu pai a acompanhou. O fato é que
ambos desconversaram e trataram tudo como
uma grande brincadeira. Ocorre que tempo
depois, cerca de três longos meses, eles
resolveram me chamar para uma conversa e
eu que sempre tive a sensibilidade muito
aguçada, descobria tudo antes do tempo,
não imaginava que ganharia meu presente
dois meses depois do meu aniversário. Os
dois choraram ao me contar a notícia de
que estavam grávidos e meu presente estava
a caminho, minha mãe se encontrava no
segundo mês de gestação e eu já estava

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ansiosa para que os próximos 7 meses
passassem o mais rápido possível.

Passados alguns meses, minha mãe já


estava com uma barriguinha saliente, a
gravidez evoluía bem e meus pais
resolveram então tomar outra decisão
importante, meu pai propôs que fizéssemos
uma mudança e fossemos morar em outro
estado, o roteiro: Santa Catarina, mais
especificamente a capital, Florianópolis.
Naquele momento o pânico tomou conta de
mim, visto que era extremamente complicado
ter que imaginar deixar a escola na qual
finalmente havia me adaptado, porém mais
uma vez não tomaria nenhuma atitude
contraria a decisão deles, principalmente
naquele momento. A mudança foi repentina e
dentro de alguns dias estávamos vivendo em
outro estado, agora em uma cidade de praia

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e eu experimentava o sabor da novidade mais
uma vez.

Nova escola, nova rotina, novos ares,


absolutamente tudo era diferente.
Inclusive a minha ida a escola. Lembro-me
de como foi difícil essa adaptação e mais
ainda, recordo-me de ter me desprendido de
forma tão brusca de toda uma vida de longos
anos em que vivi naquela cidade e talvez
eu fosse um tanto dramática já naquela
época da minha vida, porque me sentia a
mocinha de uma novela de época tendo que
abandonar a vida na cidade pequena para
tentar a vida em uma capital.

O fato é que tudo era diferente nessa


nova rotina, eu saía de casa por volta de
13h e chegava na escola somente ás 14:30,
vale ressaltar que a escola ficava a 15
minutos da minha casa, mas o ônibus escolar

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fazia a volta na cidade inteira e só depois
chegava ao destino final, esse trajeto era
um tédio sem fim. Aproveitava esse tempo
para ficar escrevendo sobre as
expectativas nutridas a respeito da vinda
do meu irmão, era muito tempo para
imaginar, até porque só retornava à casa
por volta das 21h.

Espero ter deixado claro que sou


dramática, certo? Então, o fato é que era
desesperador morar tão perto e ter que
fazer um caminho tão longo pois não havia
quem pudesse me levar até a escola e lembro
pouco desse período, mas recordo de ter
sido um tanto traumático porque meu pai
continuava cuidando na nossa padaria no
Rio Grande Sul por um período e minha mãe
dava suas aulas no centro da cidade,
pegando um ônibus todos os dias de manhã,

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enquanto isso, eu ficava em casa com minha
avó assistindo os programas que ela
gostava, e que eu aprendi a gostar. Eu só
tinha 9 anos e já estava aprendendo
receitas e tinha até vontade de colocá-las
em prática em cada almoço, talvez até
pudesse ter sido uma boa cozinheira se
tivesse continuado, mas isso não aconteceu
e acho que fica claro com o tempo, né?

Após mais alguns meses, minha mãe já


estava a ponto de dar luz ao meu irmão,
que recentemente havíamos descoberto o
sexo, cujo meus pais insistiram para que
eu escolhesse o nome. Poderia parecer um
pouco óbvia minha decisão, mas era a única
forma que talvez fizesse com que eu me
sentisse perto de novo de uma pessoa que
eu sentia uma falta descomunal todos os
dias. Escolhi para ele o nome de alguém

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que já tinha o lugar especial no meu
coração: Bruno. Nome esse que me trazia
sentimentos controversos, pois ao mesmo
tempo em que me trazia as melhores
lembranças da minha infância, me remetia a
uma saudade que não tinha mais grandes
expectativas de culminar, visto que agora
eu morava muito mais distante e não tinha
esperança nem mesmo de poder contar a ela
sobre a escolha do nome do meu irmão antes
que ele fosse batizado, o Bruno nasceu e
eu seguia sem contato com a Bruna.

O fato é que o dia que o Bruno nasceu


foi o dia mais feliz daquela minha curta
vida, até então. E não era exagero, pois
se tratava de um marco da minha vida de
filha única para não mais, a transição
aconteceu e eu adorava a ideia de não ser
mais sozinha.

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“Eu sei, esse é meu irmão.”

O Bruno nasceu em solo gaúcho, pois


alguns dias antes de minha mãe dar a luz,
voltamos ao Sul, além da dificuldade que
minha mãe passava com meu pai indo e vindo
de um estado ao outro, minhas crises de
asma em conjunto com o quadro ansioso que

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me perseguia haviam aumentado de forma
drástica. A adaptação aos novos horários
escolares, aos professores e até mesmo aos
meus colegas formaram um verdadeiro caos
em minha vida e eu havia criado um bloqueio
para não me relacionar ou me apegar a mais
ninguém, o medo de ter que partir e deixar
mais uma história para trás me impedia de
criar novos laços afetivos e me manteve
distante de qualquer faísca de relação que
pudesse surgir. Foram de fato os meses mais
complicados da minha infância, não havia
feito amigo algum naquele período, nem
mesmo no ônibus onde ficava por três longas
horas diárias, preferia olhava para
janela, pensar e escrever sobre aquela
longa existência de meus quase dez anos.
Portanto, diante de todo aquele quadro, a
volta para o Rio Grande Sul foi sem dúvida
a melhor das decisões tomada por eles e

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para mim a mais feliz, eu já não via a hora
de voltar aos meus amigos, professores.

Uma das primeiras pessoas que encontrei


assim que voltei para Porto Alegre, foi a
Bruna, queria que ela conhecesse o Bruno,
afinal, foi por causa dela o meu maior
desejo de ter um irmão, da falta que ela
fazia diariamente. Havia tanto tempo que a
gente não se encontrava, mas nossa ligação
astral ainda era vívida, pois tal como Sol
e Lua, sabíamos que apesar de ambos
brilharem e protagonizarem momentos
diferentes, a certeza do encontro ao
crepúsculo era real. E assim ocorreu
conosco, quando nos vimos, na tarde de
domingo nublado, tudo parecia
sentimentalmente igual, mas ela estava
mais alta, sua franja na altura dos olhos
e a pele bronzeada. Ela usava um batom

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rosa, uma roupa na cor lilás, e uma
sapatilha azul, era um conjuntinho lindo.
Ela estava sempre bem arrumada e seu
cheiro, era uma mistura de flores com pele.
A sensação que ela me causava e há tanto
tempo eu sentia falta, continuava a mesma,
o nosso abraço era ainda mais intenso e o
sorriso quase não cabia mais no rosto.

Lembro-me que o nosso corpo quase se


fundiu de uma maneira estranha, mas ao
mesmo tempo genuína, foi como se nós nunca
estivéssemos distantes e mesmo com a
saudade tão visível no abraço mais
apertado que eu já tinha dado em alguém,
eu não sabia descrever perfeitamente
aquela sensação, só tinha uma certeza:
somente por ela eu sentia aquilo, o
sentimento cujo o meu corpo não sabia
explicar, a sensação que fazia meu coração

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acelerar, minha mão suava e eu não tirava
o sorriso do rosto. Era quase uma vontade
de chorar de alegria, porque não mais cabia
e transbordava, como era bom ver ela ali
de novo e entender que nada tinha mudado,
pelo menos não em mim.

Após algum tempo, finalmente voltei a


estudar, lembro que na época havia uma
febre na cidade, o novo clube, onde as
pessoas viravam sócias e podiam usar todo
o espaço e eu acredito que boa parte da
minha adolescência e minhas maiores
descobertas aconteceram nesse pacato
lugar. Tinham campos de futebol, academia,
quadra poliesportiva e piscina, era para
passar o dia inteiro mesmo. O negócio dos
meus pais tinha melhorado e conseguimos
nos associar por um valor bastante justo
para o que o clube nos oferecia e eu fazia

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questão de aproveitar tudo que podia, cada
aula, cada tarde de sol com meus amigos da
escola.

Eu começava então a vivenciar os meus


primeiros romances de fato, aquela
sensação de estar realmente gostando de
alguém, o nervosismo ao ver chegar, ou uma
vontade insana de ir à escola, ao clube,
tudo porque aquela pessoa vai estar lá. Um
frio na barriga só de ouvir o nome, é
engraçado que quando somos mais novos,
parece que nosso mundo e nossa vida vai
acabar se não pudermos estar juntos de quem
amamos. A verdade é que a gente sempre
acaba depositando um tanto nessas nossas
relações e nos outros, e a gente acaba
colocando nossa vida nas mãos de uma outra
pessoa e ela nem se quer sabe disso e essa
responsabilidade pelo que você sente por

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ela não é dela, às vezes é uma idealização,
algo que você criou, sabe? Não? Nem eu,
mas calma! Eu ainda tenho dez anos nessa
parte da história e ainda vou entender
muita coisa. Nós vamos...

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Depoimento do Leitor
O que é dizer que se conhece, numa
sociedade que te julga por aparência e
padronização? Quem já nasceu livre, de ser
por dentro e por fora um só, sem se
contradizer, não vai entender o que eu
falo.

Minha vida nunca foi sem amor, muito


pelo contrário, sempre fui rodeada por ele
de todos os cantos. Com uma família
amorosa, unida e feliz, era esse ambiente
que eu conhecia. Até chegar a hora de
explorar o mundo em sociedade.

Desde cedo eu sentia que era diferente,


me questionava e não me entendi, ninguém
me explicou que não havia nada de errado

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em ser diferente e que fugir de quem você
é seria desnecessário, que o importante
era ser bom. Quando me apaixonei pela
primeira garota eu era tão nova e nem sabia
o que era isso, sei agora aso vinte e
poucos, eu queria estar do lado dela o
tempo todo, queria fazer parte da vida
dela, será possível? Porém, eu achava
errado e me enganava, tinha vergonha, não
sentia que me encaixava em lugar algum.
Foi assim por muitos anos...

Aos 15 anos me apaixonei novamente, por


uma garota. E foi ai que eu conheci o
preconceito.

Até então eu só ouvia falar e tinha medo


de sofrer, mas conheci. E o pior! Dentro
de casa.

Meu pai fechou o coração pra mim, não


aceitou e muito menos respeitou. Mas eu

46
não me vi sozinha, eu percebi que meu medo
não me deixou conhecer a fundo as pessoas
que eu mais amava, eu me deixei levar por
ele e não quis me expor, consequentemente
não enxerguei a minha volta.

Inocente eu era, ninguém se abalou com


a descoberta, a não ser meu pai... que era
exatamente como eu, tinha medo.

Quando eu me aceitei de verdade e me


permiti viver esse amor, poderia ter sido
muito mais difícil se eu não tivesse
pessoas que amo ao meu lado (eu tinha
muitas), mas o amor vem de todas as formas,
o medo pode vir vestido de preconceito,
mas o amor verdadeiro mostra SIM que não
importa o que você é por fora, mas sim por
dentro.

Hoje meu pai me aceita e me respeita,


mas não foi simples desde o começo.

47
Quem lê isso, sinta que o amor próprio
e a honestidade consigo mesma foi a única
coisa que me fez ser quem eu sou, minha
essência. Nunca ignore seus sentimentos
mais íntimos e o que diz seu coração, se
descobrir nunca é fácil, mas se amar é o
ato mais lindo e verdadeiro do mundo e só
assim saberemos que pertencemos, a nós
mesmas.

Uma leitora.

48
49
Ou talvez nem tanta calma assim, os meus
dias estavam cada vez mais agitados, esse
era o preço do amadurecimento: a
fugacidade da vida. De repente minha
rotina resumia-se à ir da escola para o
clube, do clube para a calçada na frente
de casa, da calçada para o dever de casa,
banho, lanche e cama. Com o tempo, tudo
passou a ser cada vez mais cansativo.
Imaginem só, uma pobre menina de quase 10
anos que se hoje aos seus 27 pudesse
imaginar que aquela rotina era
extremamente tranquila perto da que vive
hoje, jamais reclamaria.

Mas é assim mesmo, a gente vive cada fase


de uma forma tão intensa, achando que o
mundo vai acabar se não fizermos tudo que
queremos ou precisamos e as cobranças
aumentam, a pressão pela perfeição e

50
realização aumentam, pressão de nós
mesmos, da nossa família, amigos.
Inicialmente ocorre a pressão da escola e
do primeiro beijo, beijo de língua e não
aqueles selinhos que mais parecem dois
peixes tentando alcançar o beijo de novela
das 21h, cuja qual eu sempre fui proibida
de assistir pois o conteúdo era dito adulto
e eu era apenas uma criança que gostaria
de estar fazendo as novelas. Mas...
Voltando à terrível lenda urbana que versa
sobre a necessidade do primeiro beijo,
essas pressões que a gente sofre ao longo
da vida, o que elas de fato significam?
Somos constantemente bombardeados com essa
noção conservadora de que é preciso ser
bom em tudo o tempo todo que isso acaba
virando algo interno e a gente acaba se
cobrando para sempre, cada pessoa que um
dia nos coloca algum tipo de situação de

51
abuso, mesmo que de forma inconsciente,
pode marcar a nossa vida para sempre e por
mais que pareça besteira, o beijo de língua
poderia ter sido um trauma dos grandes se
eu não tivesse treinado muito antes.

Mas se vocês pensaram que eu ainda tinha


9 anos nesta época, se enganaram, toda essa
pressão durou algum tempo e eu sofria
muito, mas a verdade é que meu primeiro
beijo mesmo foi aos 11 anos, depois de um
bom tempo treinando movimentos circulares
com a cabeça no dorso da minha mão,
escondida no espelho do corredor de casa
quando meus pais não estavam por perto,
assistindo escondida a alguns casais
beijando nas novelas e filmes, eu
finalmente colocaria em prática. É, não
foi da maneira que eu esperava, afinal, a
gente idealiza cada conto de fadas, acha

52
que um príncipe vai aparecer num cavalo
branco a qualquer momento e te levar para
um castelo onde vocês serão felizes para
sempre. Mas de onde surgiu essa ideia se
eu nem gostava tanto assim dos filmes da
Disney? Acredito até que naquela época, eu
já sabia que gostava mais de princesas e
não falo de me sentir uma, eu gostava das
princesas que estudavam na mesma escola
que eu, que freqüentavam o clube nas tardes
ensolaradas nos banhos de piscina ou então
nos jogos dentro da quadra quando chovia
ou fazia frio. Enfim, o fato é que
diferente do que muita gente sonha, meu
primeiro beijo não foi nada romântico, não
foi tão ruim como a maioria das
experiências, mas também não dá para dizer
que foi romântico. Na minha escola
frequentemente aconteciam festinhas para a
comunidade e uma das atrações era a

53
discoteca, eu nem sei se ainda usam este
nome, mas na época era o ápice da
modernidade, eu presenciei alguns beijos e
confesso que sentia um pouco de inveja de
quem já sabia beijar na pratica, afinal eu
estava vivendo apenas de teorias, do que
os outros contavam de suas experiências e
da minha vasta pratica entre dorsos das
mãos e espelhos, inclusive poucas vezes
abri os olhos enquanto beijava
ardentemente o espelho, eu já sabia que
tinha que manter os olhos fechados durante
aquele momento, era pra dar um ar romântico
para a situação embaraçosa de enfiar a
minha língua na boca de outra pessoa e
ficar girando e virando a cabeça de um lado
para o outro.

Certo dia, estávamos nos arrumando para


o grande dia, minha mãe costumava fazer

54
bolo de cenoura com cobertura de chocolate
nas tardes do fim de semana, enquanto meu
pai cortava grama e colhia figos da árvore
para que minha mãe fizesse doce. Tínhamos
acabado de almoçar e minhas amigas
chegaram para comer o bolo e nos arrumarmos
para ir a discoteca, já não recordo direito
a roupa que vestia, só que era um vestido
de uma cor clara, mas não lembro nenhum
detalhe. Naquele dia eu tinha convidado a
Bruna para ir lá para casa e depois irmos,
mas a verdade é que eu não sabia se queria
mesmo que ela estivesse ali no dia em que
eu daria meu primeiro beijo. Já estava
quase na hora de sairmos e ela não chegava,
até que uma buzina em frente a casa me fez
sair correndo, era ela, os pais dela a
trouxeram quase na derradeira hora, eles
tinham essa mania e assim, ela quase nunca

55
chegava cedo e era sempre a primeira a ir
embora.

Ela estava linda, toda de preto num


estilo meio emo gótica com blusa e calça
preta rasgada, ela já nem aparentava ter a
mesma idade que eu. Saímos todas juntas
em direção ao colégio, chegando lá, nossos
pais se despediram de nós com um beijo e
desejaram que nos divertíssemos, sem nem
imaginar o quanto eu estava nervosa pela
situação que em breve se instalaria ali.

No fundo eu achava errado estar beijando


na boca tão nova, quase como uma culpa,
mas era o preço que se pagava. Eis que
entrando na parte onde eu encontraria o
pretendente que estava incumbido da tarefa
de tirar de vez o meu famoso BVL (sigla
usada para definir uma pessoa boca virgem
de língua), seu nome era Renato, ou

56
Renatinho como a maioria das pessoas na
escola o conheciam, e ainda que ele não
estudasse mais lá, era bastante popular no
clube e sempre muito simpático. Até hoje
me questiono porque ele quis tanto me
beijar, eu sempre fui bastante tímida e
não era a garota considerada mais
descolada e muito menos a mais madura, não
passava de uma criança que queria ser
grande a qualquer custo, como a maioria
das crianças ditas pré-adolescentes nessa
idade e talvez aquele fosse o maior passo
de todos para mim naquele momento, onde me
tornaria um pouco mais “mulher” após
passar por essa experiência.

Recordo dos olhares que a Bruna


distribuía sempre que esse era o assunto,
acredito que ela ainda estava um pouco
perdida em meio aquela situação e eu era a

57
única amiga que ela tinha de fato, mas nós
não falávamos muito sobre esse assunto e
quando falávamos era ainda com uma certa
repulsa pelo sexo oposto ao nosso, sempre
fomos muito defensoras e protetoras das
meninas, era como um clube da Luluzinha e
nenhum menino seria bem-vindo. Enfim, era
o momento mais esperado dos últimos dias
tensos em que vinha treinando para o grande
dia, parecia até que eu ganharia algum
premio por aquilo, quando o único prêmio
era provar para pessoas que na verdade eu
nem deveria querer provar nada, que eu era
capaz de fazer algo que todos os outros
gostariam que eu fizesse e talvez naquele
momento eu não soubesse ainda direito a
diferença entre fazer algo porque eu
realmente gostaria de fazer, ou ceder a
uma pressão coletiva que havia sido
instaurada ao meu redor, como uma cobrança

58
para que eu mostrasse do que era capaz,
para me reafirmar parte daquele grupo de
pessoas que eu acreditava serem bons
amigos de colégio e clube, mas calma, isso
também não foi nenhum grande trauma, pelo
menos não pra mim. Entrei e vi o Renatinho,
ele sempre usava boné pra trás e aquilo
era realmente um charme, acho que nunca vi
o cabelo dele de verdade, ele mascava um
chiclete e aquilo era um bom sinal,
aparentemente ele estava pronto pra me
beijar, mas eu desviei quando ele veio
falar comigo e corri pra perto das meninas
que estavam num cantinho mais isolado,
fiquei por lá um tempo, até que uma amiga,
a Joana - ela vocês ainda não conhecem e
a passagem dela é rápida nessa historia -
me puxou pra perto dele e ficamos os três
fingindo que estávamos dançando algo
quando na verdade sabíamos o que iria

59
acontecer, ela se afastou e finalmente ele
me puxou pela cintura, eu fiquei na ponta
dos pés, na época eu media 1,53 cm de
altura e ele era mais alto, bem mais alto,
tanto que ele teve que fazer uma leve
curvatura para alcançar minha boca, o que
tornava a situação um pouco estranha pra
mim e ele provavelmente fosse acostumado.
Parecia que tudo ao meu redor tinha parado,
a música, as pessoas e as luzes, como se o
tempo mesmo fosse diferente naquele
momento e até hoje não sei se eu realmente
estava encantada ou tinha sido um surto
interno de tanto nervoso que eu havia
sentido até ali. O beijo foi bom, pelo
menos pareceu para mim, jamais perguntaria
isso a ele. Quando terminamos, depois de
quase uma eternidade que deve ter durado
no máximo dez minutos, voltei para contar
a minhas amigas, eu estava me sentido tão

60
adulta e ao mesmo tempo tão confusa. Quando
cheguei, demorei para perceber que a Bruna
não estava mais ali, e quando percebi, já
era tarde. Logo me avisaram que ela tinha
ido embora, só que a gente tinha acabado
de chegar, ninguém soube me explicar
exatamente o motivo dela ter ido e nem como
ela foi, não fazia sentido algum, nossos
pais iam nos buscar bem mais tarde e estava
tudo combinado, a única coisa que ficou
clara num momento breve de lucidez em meio
ao turbilhão de pensamentos e sentimentos
antes que eu voltasse a dançar é que talvez
aquele tenha sido o início do nosso fim.

61
Depoimento do Leitor

Existe idade para descobrir o amor?

O amor por si própria, o amor por outra


pessoa...

Não existe. Afirmo que vivi 31 anos


fugindo de qualquer relacionamento
amoroso.

Eu hétero "convicta", que nunca


imaginei estar com outra mulher, apesar de
ter meu pensamento livre assim como a minha
forma de viver vida livre para amar
pessoas.

Ao menos eu achava que esse era o meu


pensamento.

62
Até que em 2018 em uma brincadeira com
uma amiga também hétero, surgiu um
sentimento, por hora estranho, que causou
uma confusão, e negado inúmeras vezes, até
eu sentir ciúmes dela e expor o que estava
sentindo.

E com isso levei um fora épico, porém,


uma semana depois ela também confessou o
que sentia.

Ambas estavam vivendo uma descoberta,


com medos, mas decidimos nos dar as mãos e
trilharmos esse caminho novo para, onde
não sabíamos aonde iríamos parar, mas com
a certeza de que estando uma com a outra
nada seria impossível.

Mas voltando a aceitação como um todo,


digo que hoje me aceito muito mais que
ontem e muito menos que amanhã.

63
Vai de pessoa para pessoa, cada uma tem
o seu tempo, você apenas tem que buscar
ser feliz em todos os momentos.

Tenho uma família que sempre me apoiou,


e que me ama incondicionalmente. E eu sei
que quando eu contar me apoiará.

Mas enquanto eu não falo sobre isso, eu


vivo um amor, digo que vivo o meu primeiro
amor de verdade, correspondido.

E o maior aprendizado disso tudo é não


desistir do amor, se aceitar
primeiramente, respeitar o seu tempo e o
tempo do outro.

E permita-se!

Ame-se!

E acredite em você!

Uma leitora.

64
65
Continuamos dançando até o fim daquela
tarde, sentia-me um tanto quanto
desconfortável e não entendia muito bem o
porquê, a verdade é que meu inconsciente
gritava a realidade, mas minha emoção
insistia em não enxergar algo que havia de
fato me magoado, pois mesmo que sem outras
intenções, ainda era uma pessoa que eu
acreditava amar. A verdade é que naquele
momento eu me sentia melhor estando
rodeada de todas as minhas amigas do que
em algum dos cantos daquela sala beijando
o Renatinho.

Passado algum tempo, retornei para minha


casa com a certeza da aprovação social cuja
não entendia porque tanto necessitava, era
a tal da maldita pressão da adolescência.
Essa sensação constante de precisar se
encaixar em algo, de se identificar com

66
algum grupo para que a sua solidão seja
disfarçada de alguma maneira, essa
esquizofrenia social que nos leva à
necessidade de preencher um vazio que nem
mesmo você é capaz de entender, ter que
necessariamente agradar aos outros para
sentir-se bem, mesmo sabendo que tal vazio
inexplicável está sempre além, apesar dos
aparentes e constantes esforços para
aniquila-lo. Isso ocorre porque preenche-
lo deve ser um exercício diário através de
coisas que nos façam bem, que nos tragam o
conforto da identificação pessoal, coisa
que não acontece quando se toma atitudes
pura e simplesmente para satisfazer
desejos alheios que também são
impulsionados por frustrações pessoais.
Enfim, tal percepção ainda era utópico
demais para uma reles garotinha que só

67
queria se auto-afirmar parte de um grupo
descolado na escola.

Depois do ocorrido, fiquei processando


tudo por alguns dias e demorei a entender
o quanto podia doer ver alguém que eu
gostava beijando uma outra pessoa, mesmo
que você ainda não saiba o que realmente
sente por aquela pessoa, mas lá no fundo
você sente muito e era exatamente essa
noção que fazia doer, eu não compreendia a
origem de tanta angustia, mas sabia que
ela estava ali, sempre me acompanhando.

Será que eu estava descobrindo que


aquela sensação não podia ser uma amizade
igual a que eu mantinha com todas as outras
pessoas que eu convivia? Por que eu tinha
tanta dificuldade em falar sobre outras
pessoas na frente dela? Por que ela nunca
falou sobre aquele assunto comigo? Sendo

68
que aquele era sempre o assunto
predominante em qualquer conversa que eu
tivera com todas as minhas amigas. Só que
logo o nosso assunto se tornou outro, ele
era confuso, sem clareza alguma dos
sentimentos que se misturavam de forma
violenta e faziam transbordar e saltar aos
olhos lagrimas daquela sensação, quantas
noites chorei sem saber o por quê?

Eu era tão nova e tão cheia de dúvidas,


eu tinha tão pouca idade para aquele tanto
de coisa que me confundia. Era hora de
tentar entender o que realmente se passava
ali, comigo, com ela, com aquele “nós”.

Foi quando eu encontrei algumas formas


de falar “eu te amo” sem conseguir de fato
proferir as mágicas três palavras, mesmo
sendo tudo que eu mais queria,
simplesmente não saía. Eu sabia qual era

69
sua comida favorita, e fazia questão que
minha mãe preparasse cada vez que você
fosse até nossa casa, era aquele macarrão
fininho conhecido como cabelinho de anjo,
com molho e carne, eu até acho que naquela
época se tornou a minha preferida também.
Eu sabia também sua cor favorita, a roupa
que você mais gostava de vestir, o perfume
que ela usava, o jeito como ela arrumava o
cabelo, a textura da pele quando eu tocava
mesmo da maneira mais inocente e ela sorria
e arrepiava como se eu estivesse fazendo
de propósito, mas não era, eu sabia cada
detalhe, eu a conhecia como quase ninguém,
e aquela era a maneira de eu dizer o quanto
a amava de uma forma diferente, o tempo
passava e essas sensações aumentavam, elas
já não eram mais tão confusas nem
esquisitas, eu tinha cada vez mais certeza
do que eu sentia, e era genuíno, puro e

70
tão delicado, era uma forma de amar que eu
não tinha visto nada parecido, eu só sabia
que sentia e aquilo me fazia bem, a
presença dela me fazia bem como a de
ninguém, e nossos encontros eram cada vez
mais frequentes, mais intensos, as
conversas mais adultas e soltas.

Bom, depois de todas essas situações


passadas, eu e Renatinho também nos
encontrávamos algumas vezes no clube, o
beijo era diferente, as mãos já não suavam
frio e eu nem tremia por dentro. Eu
acredito que depois de entender toda a
pressão que tinha sido posta sobre mim num
momento que era para ser no mínimo
especial, comecei a me dar conta que não
tinha feito aquilo exatamente por vontade
própria, como agora, toda vez que nos
encontrávamos eu fazia, eu ia, sem ninguém

71
olhando, sem ninguém me cobrando nada,
éramos apenas eu ele ali. Mas e quantas
vezes ao longo da minha curta vida eu havia
abdicado de desejos internos para suprir a
pressão externa que me rodeava, a verdade
é que ninguém vai estar na sua pele, no
seu corpo e sentindo o que você sente ai
dentro, ninguém pode te julgar por
absolutamente nada, só você pode entender
o que realmente está se passando com você,
e nada do que haviam dito deveria ter tanto
efeito sobre as minhas escolhas. Mas o
fato é que tem, parece que somos o tempo
inteiro levados a fazer algo, como uma onda
que nos derruba no mar quase nos afogando
mas a gente se salva sempre sozinho, e
parece que vai ser pra sempre dessa forma,
pessoas influenciando constantemente na
sua vida e em cada decisão, cada passo,
como se você não tivesse capacidade ou

72
maturidade para tomar alguma decisão por
sua própria vontade. Ai, vida. Tu é um
tanto quanto complicada, né?

Eu evitava ao máximo encontrar Renato e


Bruna no mesmo ambiente, ainda mais sendo
no clube, então, certa vez combinei de me
encontrar com ele num final de semana, eu
deveria ter treino mas tinha sido
cancelado, então marquei de nos
encontrarmos pra poder conversar e tentar
entender o que estava se passando, já fazia
alguns meses desde que nos beijamos pela
primeira vez, e desde então era frequente
que nos encontrássemos e acabássemos nos
beijando, e eu precisava mesmo saber o que
se passava, afinal, ele tinha sido meu
primeiro e último beijo, tudo bem, o único
mesmo.

73
Avisei meus pais que iria ao treino, não
tinha condição alguma de tão nova eu falar
que teria um date com um garoto, então,
mesmo depois de todos os meus traumas com
o Pinóquio, eu tive que contar uma pequena
mentira que não era tão mentira assim, eu
não tinha culpa de ter sido cancelado o
treino naquela semana, mas a única coisa
que não sabia, era que o clube havia ligado
para avisar meus pais que não teria treino,
mas sabe quando eu soube disso? Muitos
meses depois. Meus pais assim como eu, se
fizeram de desentendidos e ficaram ouvindo
eu contar minha primeira mentira que foi
bastante malsucedida.

Enfim, estava sentada na arquibancada


com ele, ficamos horas conversando e
acreditem, aquele foi o nosso único
encontro em que não nos beijamos, ficamos

74
de mãos dadas e conversando por longas
horas, trocando olhares, às vezes um
carinho e me deitava no seu ombro enquanto
ele me contava uma de suas histórias.
Saímos do clube de mãos dadas e quando
estávamos na segunda quadra em direção a
minha casa, meus pais buzinaram e
perguntaram se a gente queria uma carona,
nada poderia ter sido mais tenso e
constrangedor naquela ocasião, meu mundo
desabou dentro de mim de tanta vergonha
que senti. Soltei rapidamente as mãos do
Renato e aceitei a carona, afinal por que
eu não aceitaria? Só que para situação
ficar ainda mais embaraçosa, meus pais
sugeriram que ele entrasse no carro e o
deixássemos mais próximo de sua casa.
Naquele momento eu tremia, e a única coisa
que se passava na minha cabeça era que
agora meus pais achariam que eu estava

75
namorando, mas não, eu não queria, mas
porque então eu estava andando de mãos
dadas pela rua, de onde meus pais surgiram?
Como foi que eles estavam passando por ali
bem na hora? Isso era muito suspeito e
tinha cheiro de crime, meus pais estavam
sim me espionando, me seguindo, quanta
audácia, só porque sou filha deles eles
achavam que tinham esse direito?

76
Depoimento do Leitor
Uma madrugada de 2017, eu em uma das
minhas insônias intermináveis passeava
pelo YouTube e pronto, o próprio me
apresenta o capítulo 3 de “A MELHOR AMIGA
DA NOIVA”, eu como pessoa que valoriza a
amizade sem saber o assunto começo a ver,
pronto me apaixonei por duas atrizes
incríveis, e logo fui atrás de saber e ver
tudo que ambas já tinham feito.

Mas vamos ao dilema, eu hétero, casada,


que nunca tive dúvidas em relação a
sexualidade, mas também nunca tive
qualquer tipo de preconceito, estou amando
a série o assunto e tudo mais, como falar
para o meu marido? Infelizmente fui criada
em um lar extremamente intolerante ao

77
assunto, religiosamente disciplinada a
abominar os homossexuais, nunca os
abominei, pelo contrário comprei briga na
minha comunidade religiosa por tentar
manter por perto jovens "diferentes" ao
olhar religioso, mas até então na minha
família não falávamos sobre, e também não
tínhamos ninguém assumidamente
homossexual, por isso não tinha embate na
família. Mas voltando ao que dizer ao meu
marido, confesso que com pouquinho de
receio mesmo sendo muito parceiros em tudo
um outro. Apresentei a ele a web série e
também as atrizes que tanto amo, e ele da
mesma forma se encantou por elas, e hoje
somos padrinho e madrinha orgulhosos.

Agora volto ao como você, Natalie Kate


Smith de Almeida é importante na minha vida
e família, através de sua luz e trabalho,

78
fui preparada para ajudar a minha irmã a
se assumir diante de nossos pais, que a
amam, mas ainda não aceitam a
homossexualidade, hoje ela está feliz em
ser quem é, e eu ainda mais feliz em saber
quem sou e poder dizer que toda forma de
amar e AMOR.

O AMOR É LIVRE, O AMOR LIBERTA O AMOR


CONSTRÓI PONTES E DERRUBA MURALHAS.

Uma leitora.

79
80
Chegando enfim na nossa casa, corri para
o meu quarto para evitar qualquer pergunta
absolutamente desnecessária para mim, mas
fundamental para eles. E antes que eles
falassem em comida, disse que já havia
comido no clube e precisava estudar. Mas
eu sabia que não conseguiria fugir por
muito tempo. Resolvi tomar um banho. Ouvi
dizer em algum lugar que a água corrente
pelo corpo ajuda a pensar melhor. Tem
alguma coisa relacionado a circulação
sanguínea. Enfim! Nunca fui muito boa em
biologia mesmo. De qualquer forma, achei
que no banho conseguiria ensaiar algum
discurso que não soasse tão mentiroso.

Mas eu não estava feliz com isso. Não


queria mais mentir. Meus pais sempre foram
meus melhores amigos. Porém, por mais que
a gente saiba que não existe quem nos ame

81
mais no mundo, existe um medo conjunto de
falar a verdade para os pais, quando ela
tem um viés íntimo. Os pais criam
expectativa nos filhos. Mesmo que digam
que não! Eles querem que a gente cresça,
mas não querem que o mundo nos receba mal.
Só que a verdade é que ninguém cresce sem
uns bons tombos. E por mais que para mim a
notícia fosse suave, para eles poderia
soar com um furacão. Então foquei na
desculpa ou na mentira ou como prefiro
chamar: Na procrastinação de abrir minha
vida amorosa para meus pais.

Sai do banheiro, ainda de toalha, na


esperança de ter adquirido super-poderes e
ter me tornado invisível. Mas foi só eu
bater à porta que ambos me olharam
fixamente. Eu, automaticamente, sem
qualquer disfarce, abaixei a cabeça e

82
caminhei até eles. Me aproximei, olhei
para eles forçando um pouco mais meu
desespero e disse:

- Papi e Mami, não era nada do que vocês


estavam pensando. Eu e Renato somos amigos
e nada além disso, então por favor, não
alimentem qualquer tipo de expectativa em
relação a minha vida amorosa. Ela continua
pacata, sem vida, cinza e chuvosa. Uma
tragédia!

Depois do meu discurso brilhante, corri


mais uma vez para o meu quarto. Queria
cavar um buraco no chão que me levasse para
outro País. Não estava pronta para o
interrogatório que começaria em 3, 2 1...
A porta do meu quarto se abriu. Meus pais
entraram e sentaram na minha cama.

- Filha – disse meu pai com a voz serena –


você não precisa ficar nervosa para

83
dividir seus sentimentos com a gente. Não
existe ninguém no mundo que você possa mais
confiar do que em seus pais.

Na teoria, era muito bonito esse


discurso. Mas a verdade é que eu sempre me
questionei se eles entenderiam de fato o
que eu sentia, já que até eu mesma tinha
minhas dificuldades de compreender. Eu
acho que desde sempre fui uma pessoa
amorosamente complexa. Porque eu sentia
muito. Sentia uma força tão grande dentro
de mim que eu tinha certeza, que para
muitos se tornaria lúdico. E daí vinha
minha dificuldade de demostrar. Acho que o
primeiro amor, já nunca é levado muito a
sério. Pelos nossos pais menos ainda. Mas
ainda assim, me questionava se para os meus
pais já não seria o início de casamento e
filhos. Por isso eu precisava me entender

84
primeiro antes de abrir qualquer coisa
para eles.

Por conta de tudo isso, resolvi me


afastar do Renato. Procurei me isolar até
mesmo das lembranças que tinha com ele. E
isso eu era boa em fazer. Sabia virar a
chave quando necessário. E naquele
momento, mais do que nunca, precisava
abstrair das minhas construções amorosas
as possibilidades de Renato. Meus pais
também não tocaram mais no assunto e isso
me causou um grande alívio.

Como consequência do meu afastamento do


Renato, me aproximei ainda mais da Bruna.
Essa foi a melhor parte de todo o
transtorno anterior. Porque ela me fazia
tão bem. Era engraçado até, porque o dia
com ela se tornava produtivo. Como se uma
desse força à outra para fazer o que tinha

85
que fazer. E eu adorava quando nossos dias
começavam bem cedo e terminavam bem tarde
na minha ou na casa dela. E era melhor
ainda quando ficávamos embaixo do edredom,
assistindo comédias românticas, comendo o
melhor brigadeiro do mundo feito por nós e
imaginando nosso futuro. Tínhamos
conversas intermináveis, que rolavam a
madrugada. Dividíamos nossos medos, nossas
certezas, nossas angústias e muitas vezes
eu me perdia olhando seu jeito de se
expressar. Achava tão único o jeito como
ela levantava a mão levemente até o cabelo
para arrumar uma mecha insistente em cair.
Algumas curvas nas falas que ela usava,
transparecia uma mulher madura e coerente.
Porém, vestia um pijama colorido, com um
coração no meio, que não deixava perder
seu jeito de menina que tanto me encantou
quando nos conhecemos.

86
Quando a madrugada era na casa dela, eu
também usava um desses seus pijamas, e
confesso, que normalmente optava pelo mais
colorido e infantil ainda. Mas a melhor
parte era dividir uma cama de solteiro com
a Bruna. Tínhamos a opção de puxar a cama
debaixo e termos mais espaço para nossos
corpos, mas não teria a mesma graça. A
graça consistia em termos que nos encostar
durante toda a madrugada e aos poucos,
quando íamos nos soltando, incluir
carinhos mais claros uma na outra. Era como
um mantra. Abríamos a cama de baixo, eu me
deitava, colocava meus pés para cima e ela
aos poucos ia abaixando o braço dela até
encostar no meu. Poucos minutos depois eu
já estava em cima ou ela em baixo para
fazermos esse movimento mais
confortavelmente. Era meu momento
preferido. Ficar de frente para ela

87
conversando, recebendo carinho e olhando
nos seus olhos. Ou ficar de conchinha, as
vezes só escutando a respiração. Essa
última posição normalmente acontecia mais
no final da noite. Quando já não
conseguíamos mais manter nossos olhos
abertos, mas ainda assim não queríamos nos
desgrudar. Todos esses movimentos, apesar
de não parecer, não eram calculados. Eu e
a Bruna seguíamos nossa intuição em tudo
que fazíamos. Talvez por não termos
experiência ou por não sabermos definir
nossa relação e sentimento, simplesmente
deixávamos nossos instintos nos guiar. E
era tão inocente que esquecíamos que aos
olhos dos outros poderia não soar de mesma
maneira. Esquecíamos que a bolha que nos
enfiávamos era transparente. E por mais
que não nos impostássemos com o mundo, ele
existia.

88
Em uma das manhãs que eu despertava na
sua casa, senti alguém se aproximar de nós.
Eu ainda sonolenta não sabia identificar
se era algum fim de sonho ou realidade.
Abri os olhos e vi a mão do pai de Bruna
tocar a cabeça dela com a intenção de
despertar. Ela, mais ágil que eu, abriu os
olhos rapidamente e foi quando percebemos
a posição que estávamos. Logo tratarmos de
nos espreguiçar e fingir naturalidade com
toda a situação, porém por dentro,
queríamos morrer. Levantamos com a
intenção de fazer aquela cena sumir da
cabeça dele. Doce ilusão. Tenho certeza
que ele questionou aquilo durante dias até
se convencer de que não passava de uma
crise de sonambulismo duplo.

De qualquer forma, toda ou qualquer ação


pós nossas noites juntas era irrelevante.

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Eu passava o resto do dia leve, pensando
no nosso próximo momento. Pensava se
talvez ela tivesse a mesma percepção que
eu quanto nossa amizade. Eu vinha
refletindo mais sobre ela depois que eu e
o Renato nos afastamos. Mas a verdade, é
que naquele momento, fosse o que fosse
aquilo, era bom e só isso me importava!

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Depoimento do Leitor
Me descobri oficialmente (porque no
fundo a gente sabe bem antes) com 17 anos.
Foi menos de 1 ano entre eu dar meu
primeiro beijo em uma mulher e contar para
minha família. Desde lá, as descobertas
não pararam. A gente cria um mito de que
depois que falamos nossa sexualidade para
o mundo, temos que manter esse
posicionamento até o fim e nada mais pode
abalar nossa decisão. Essa é você e ponto!
Hoje vejo que essa é só uma característica
de você. Somos muitas coisas.

Quando já casada com minha atual esposa,


conheci a Natalie através de uma websérie,
percebi que tinha deixado muitos dos meus
sonhos e juventude de lado. Comecei a

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perceber que o mundo tem milhões de
possibilidades e elas devem ser
exploradas. Resolvi produzir mais. Me
descobri escritora, diretora, produtora,
fã, amiga de novos amigos, e acima de tudo,
sonhadora. Eu sempre falo que a Natalie é
extremamente generosa por despertar esse
tipo de sentimento nas pessoas. Isso é
poderoso demais. E é honesto dela. Acho
que como tudo que ela faz na vida, esse
livro é uma prova de que ela é um ser
extremamente transparente. Sorte de quem
tem ela na vida. Sorte a minha. Sorte a
dos fãs. Ter alguém para se inspirar na
vida é fundamental para uma caminhada mais
consistente. E ela sabe da
responsabilidade que carrega. Ser ídolo é
muito mais difícil que ser fã.

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Minha descoberta amorosa e sexual foi na
adolescência, mas sigo me descobrindo
todos os dias. E essa é a mágica da vida.
Devemos respeitar nossos instintos e
nossas vontades. Mas saber o limite do
outro também é crucial. Cada um tem um
tempo para essa descoberta. E pós
descoberta a aceitação de quem somos.
Nossos tempos nunca serão iguais. Por isso
é indispensável ferramentas para ajudar
nessas descobertas. E esse livro, sem
dúvida, é uma dessas ferramentas.

Uma leitora.

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