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Época – Fins do século XVIII

Regime - Brasil Colônia.

O Período Brasil-Colônia se estendeu desde 1500 até a vinda da família real portuguesa ao Brasil em 1808.

Em 22 de abril de 1500 a expedição liderada por Alvares Cabral avistou monte Pascoal, marcando oficialmente a chegada
dos portugueses ao Brasil.

Os primeiros 30 anos, de 1500-1530, são considerados como: período pré-colonial. Portugal tinha como prioridade
economica o comercio de especiarias com a ‘India e, limitaram sua participação no Brasil construindo feitorias no litoral
brasileiro e explorando o trabalho indígena para a derrubada de pau-brasil (cujo pigmento forte tinha alto valor para
tingimento de tecidos). O pau Brasil deu sinais de extinção devido `a exploração desmedida e levou ao fim o ciclo do pau
brasil.

Apos esses 30 anos, houve a necessidade de Portugal estabelecer um controle efetivo no Brasil: (i) 1o porque o comercio
de especiarias com a India estava decadente; e (ii) 2o pela ameaça de invasão do território brasileiro por outros povos,
especialmente os franceses. Como decisão, D João III ordenou em 1534 dividir o Brasil em 15 lotes de terras,
correspondentes a 14 capitanias hereditárias e entregues para capitães donatários - eram comerciantes e pessoas da
pequena nobreza que tinham o direito de explorar a terra por meio da carta de doação, em contrapartida, os deveres do
donatário perante à Coroa eram atribuídos pela Carta Foral.

Em 1548, com o objetivo de centralizar o controle português e tornar a colonia mais lucrativa, foi implementado o modelo
administrativo do Governo Geral, como forma de substituir e complementar o das capitanias hereditárias. A partir do
modelo administrativo do Governo Geral, estabeleceu-se o ciclo do açúcar, com o sistema de plantation, em que as
principais características envolviam: (i) sistema agrícola (cultivo de produtos tropicais); (ii) baseado em monocultura; (iii)
utilizando mão de obra escrava; (iv) produção para exportação; (v) mediante o estabelecimento de latifúndios; e (vi)
utilização de recursos técnicos. O Brasil de transformou no maior produtor de açúcar do mundo nos séculos XVI e XVII. O
açúcar tinha alto valor de mercado na Europa.

Em relação ao Brasil foi estabelecido o Pacto Colonial, que era um sistema de leis que determinava que o Brasil apenas
poderia fazer comércio com a metrópole e que não poderia abrir a produção para produtos concorrentes aos produzidos
por Portugueses. O Brasil vendia metais, produtos tropicais e subtropicais – com preços baixos - e, em troca, comprava
manufaturados e escravos –com preços mais altos -, o que assegurava lucro português em todas as transações e uma
balança comercial negativa ao Brasil permanente. O ciclo do açúcar – entre a metade do século XVI e o século XVII - foi um
dos períodos econ^omicos mais importantes no Brasil em que o açúcar foi considerado a primeira grande riqueza tropical
e, por muito tempo, a base da economia colonial.

Nesse momento, ‘e importante fazer a menção de que entre 1580 e 1640 Portugal foi incorporado ao Reino da Espanha, o
que gerou consequências para Portugal e para o Brasil. Como forma de se separar da Espanha, Portugal fez uma aliança
militar com a Inglaterra (e os países da Grande Aliança). Em troca, a Inglaterra estabeleceu alguns pactos comerciais que
colocaram Portugal em uma condição comercial dependente da Inglaterra por séculos. Estabeleceu-se o Tratado de
Methuen e algumas regras alfandegárias. Portugal não desenvolveria as infraestruturas industriais e, assim, Portugal
firmava sua dependência inexaurível à Inglaterra (visto que os produtos industrializados tinham um valor agregado
superior aos manufaturados vendidos e, assim, sua balança estava sempre negativa em relação aos ingleses, sem contar
que produtos ingleses entravam em Portugal com isenção de impostos e os portugueses na Inglaterra valendo 1/3 a
menos que os ingleses). Com a União Ibérica, o Brasil ficou menos assistido por Portugal e sofreu a invasão Holandesa no
nordeste, aprendendo a forma de produção de açúcar. O ciclo do açúcar atinge seu declínio no seculo XVIII, com o açúcar
brasileiro perdendo valor de mercado na Europa (no final do século anterior) e enfrentando a concorrência do açúcar
Holandês nas Antilhas.

O ciclo do ouro surgiu `a rebote dessas alianças comerciais falidas que Portugal firmou e se instaurou como forma de
compensar o desnível da balança comercial. De fato, por algumas décadas, deu conta de aliviar os efeitos colaterais desses
pactos. O ciclo do Ouro foi um período do século XVIII, em que a extração de ouro foi a atividade economica mais
importante do Brasil e teve início quando bandeirantes encontraram minas de ouro no estado de Minas Gerais, Mato
Grosso e Goiás. O primeiro achado foi chamado “ouro de aluvião”, por ser encontrado no vale dos rios. Essa descoberta
provocou uma grande migração para a região de minas.

Durante décadas, Portugal explorou e canalizou os recursos provenientes do ciclo do ouro. A metrópole sempre cobrava
impostos altíssimos sobre essa atividade, entre os quais: (i) o Quinto, uma taxa de 20% em cima de todo ouro que era
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retirado das minas; (ii) a Derrama – uma quota de cerca de 1500 quilos de ouro anual, como meta a ser atingida pela
colonia; (iii) a Capitação - imposto cobrado ao senhor por cada escravo que trabalhasse para ele. Mesmo com os altos
impostos cobrados por Portugal, a maior parte dos lucros e da exploração advinda do ciclo do ouro no Brasil destinava-se
– no final das contas - à Inglaterra, em virtude da dependência econômica de Portugal em relação à Inglaterra, advinda ao
longo da história e ratificada com o tratado de Methuen.

O ciclo do ouro atingiu seu ápice no decorrer do século XVIII, quando promoveu um crescimento excepcional do fluxo de
mercadorias e pessoas nas áreas exploradas, além de um bom desenvolvimento econômico.

Muitas cidades surgiram e outras tantas cresceram durante o ciclo do ouro, além várias atividades comerciais e
construções de instituições diversas. As cidades mineiras de Mariana, Tiradentes e Ouro Preto são exemplos disso. Esse
ciclo se concentrou na região Sudeste, sobretudo em Minas Gerais - dando novos contrastes à formação da sociedade
brasileira e espaço para novas ideias políticas. O ciclo do ouro foi responsável pela transferência do centro comercial
da região Nordeste, por causa do ciclo da cana de açúcar, para a região sul e região Sudeste, por causa da exploração de
minérios.

O ouro foi ficando cada vez mais escasso, a partir da segunda metade do século XVIII, mas apesar disso, Portugal
intensificou a cobrança de impostos. Como reação `as cobranças de impostos exorbitantes, `as punições e `a fiscalização
intensa da Coroa, a população revoltada se organizou em diferentes rebeliões nativistas e Rebeliões separatistas, das
quais destacaram-se, por exemplo: a Revolta de Beckman, a Inconfidência Mineira, a Guerra dos Emboabas, a Revolta de
Felipe dos Santos, a proibição Oficial da escravidão indígena a Conjuração Baiana, a Conjuração do Rio de Janeiro.

A crise do sistema colonial começou a agravar-se na segunda metade do século XVIII – ao mesmo tempo em que a
situação do mundo tornava-se convulsiva com a Revolução Industrial na Inglaterra, a Independência dos EUA e a
Revolução Francesa. Em 1808, a corte portuguesa deixou Portugal em direção ao Brasil dando início a um novo estágio de
sua história, tirando-a da condição de colônia e elevando-a à condição de Reino Unido, junto com Portugal de Algarves

Obs: Os 3 primeiros governadores gerais foram Tomé de Sousa, Duarte da Costa e Mem de Sá (governando o território de
1549 a 1572. Com Tomé de Sousa vieram os primeiros jesuítas para o Brasil, responsáveis pela catequização e pacificação
dos índios. /// Ao mesmo tempo da então capitania de São Paulo saíram os empreendimentos conhecidos como Bandeiras
e entradas que se caracterizavam pelo desbravamento do interior do país pelo o apresamento de índios e pela ampliação
de territórios. A formação da sociedade colonial passou a articular-se a partir desses elementos: economia açucareira,
sistema escravista e adentramento ao interior do Brasil. //// A união acabou em 1640 com a restauração do reino
português e a coroação de D João IV (início da dinastia dos bragança). /// Com objetivo de realizar a fiscalização das áreas
de mineração, com mais firmeza, a capital do Brasil Colônia foi transferida de Salvador – BA para o Rio de Janeiro – RJ.
Atividades econômicas como a agricultura e a pecuária também tiveram o desenvolvimento favorecido, por conta de todo
o processo de ocupação das terras das áreas ricas em minério.

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De 1500 a nos primeiros tempos, osas figuras clericais aqui eram escassas e os missionários estavam mais preocupados
em converter os índios do que assistir os colonos. No século XVIII, esse quadro muda, com a necessidade de prestar
assistência social aos colonos levou ao surgimento das Confrarias e das Irmandades. São elas, inclusive, as responsáveis
pela maior parte das igrejas no interior do Brasil.

Confrarias: são associações/grupos religiosos compostos por leigos (pessoas sem o conhecimento aprofundado do
catolicismo, que se reuniam para promover um culto a um santo), separando as pessoas em classes mas unindo-as na
mesma religião. A vida urbana que se instalou nas Minas, em decorrência da atividade mineradora, foi o que facilitou o
aparecimento dessas associações.
Surgiu na Europa, na Idade Média e espalhou-se nas colônias portuguesas.
Função: propagação da fé católica ao povo da colonia.
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Segundo Riolando Azzi, há 2 tipos de confrarias: (i) as irmandades; e (ii) as ordens terceiras.

As irmandades - derivam das antigas corporações de artes e ofícios. Além da função religiosa, também promovem ajuda
mútua a seus membros nas cidades; e

As ordens terceiras – são vinculadas à ordens religiosas medievais (como franciscanas, as carmelitas e as dominicanas).

Cada Confraria tinha seu próprio estatuto, que definia o compromisso com as normas de funcionamento da associação e
os direitos e deveres de seus membros. O estatuto deveria ser aprovado pelo Rei de Portugal, como grão-mestre da
ordem de Cristo.

As confrarias tinham autonomia para administrar seus bens que consistiam na arrecadação aos seus associados e herança
dos congregados.

As confrarias tinham um papel além do religioso. Seus membros criaram laços de solidariedade. Servem como ponto de
apoio em aglomerações urbanas em surgimento, instáveis e inseguras.

Confraria – situa-se no fim do século XVIII sob a atmosfera revoltosa da Inconfidência Mineira e outras revoluções
nacionalistas e separatistas. O texto conta a história da Marta que deseja enterrar seu filho e passa por 4 diferentes
confrarias buscando pertencimento para seu luto. Cada uma das 4 confrarias, no entanto, representa uma classe, uma
situação social e, portanto, interesses económicos, preconceitos, visões de mundo, ressentimentos e ambições
particulares.

Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmo (situa-se no século XVIII e XIX) - Ordem segregacionista constituída de
um pequeno grupo de gente bem nascida, de homens brancos selecionados pela riqueza, cor e costumes, representou o
esforço e a luta da manutenção de uma elite viva e conservadora. Na sua sede de escolher, esta pequena sociedade se
manteve `a distância de outras camadas sociais, tomando-se impermeável a elas, fechando-se em si em uma atitude
narcisista. Admitia homens e mulheres, mas a administração ficava a cargo dos homens; (iii) o controle e as decisões
estavam centradas em uma elite “a mesa administrativa” composta pelos seguintes membros: O prior, o sub-prior, o
secretário, o Tesoureiro, o Procurador/Zelador, os seis Definidores, o Vigário do Culto Divino, o Sacristão, o Enfermeiro e o
Comissário (sacerdote). Cada membro possuía uma função específica e o cargo de 1 ano. A mesa, uma vez definida, era
chamada de Consistório/Definitório e seus membros de Discretos.

Quanto a direção da Ordem:

O Prior era a maior autoridade da Ordem – sua presença era o de presidir, orientar os trabalhos da mesa e no caso de
empate das decisões, seu voto era de qualidade. Dava-se muita importância ao Prior e, uma vez que assumisse por 3 vezes
o cargo (mesmo que não consecutivamente) ganhava ainda mais privilégios.

O Sub-Prior assistia o Prior e quando necessário, por impedimento deste, substituía-o com todas as regalias e
responsabilidade.

O Secret’ario cuidava dos livros, redigia as atas, memórias, termos e correspondência;

O Tesoureiro cuidava dos cofres, da vida financeira da Ordem, conservando em dia as contas, despesas e a escrita.

O Procurador/Zelador era o irmão que representava a Ordem fora de seus limites internos, sempre que assim as
exigências o obrigassem. Em qualquer demanda, o irmão Procurador deveria estar presente defendendo o interesse da
Ordem.

Os definidores (que eram 6 membros) eram peca importante na organização de comando da Ordem. Constituíam o
“Corpo da Mesa e da Ordem”, uma espécie de Conselho Deliberativo, um corpo de acessoramento para decisões
importantes. Na ausência do Prior e do Sub-prior, eram os Definidores que assumiam. O local da reunião da mesa era
chamado de Definitórios, pois ali juntos definiam as ações da associação do Carmo.

O Comissario
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O Enfermeiro encarregado de visitar os Irmãos enfermos.

O Andador - (2 membros) era o síndico geral;

O Cobrador recolhia fundos para a vida da associação.

Quanto ao recrutamento dos associados:

“A primeira condição, ou requisito, que o irmão deve ter para entrar na Ordem 3a e’ o de ser limpo de sangue, sem
nenhuma raça de judeu, mouro, mulato, preto ou de qualquer outra nação”.

A sindicância era severa. As propostas deveriam satisfazer largos interrogatórios, para que os Informadores tudo
apurassem, apontando o nome dos pais, avós, candidatos, revelando as raízes familiares limpas de sangue e de qualquer
suspeita na fé. Era passível de anulação a aceitação de membro que não cumprisse os requisitos, compondo assim a lista
dos reprovados (para que estes, em tempo algum, fossem admitidos).

“A segunda condição era o de ser brancos puros, imaculados e cristãos.”

“A terceira condição era a da pureza dos bons costumes e de ser probo. O Estatuto pedia a declaração do estado civil,
onde era residente, onde nasceu.”

“A quarta era em relação aos costumes. O candidato deveria ser livre de toda e qualquer infâmia de delito, não ser
escandaloso, sem qualquer fama ruim u má suspeita e muito menos ter antecedente criminal. Deveria, portanto, o
membro ser de bom procedimento e de bons costumes. Qualquer fama de ladrão, bêbado, boemio, jogador público era
impedimento legítimo para ser Irmão do Carmo, que buscava na vida a virtude e a austeridade para servir a Deus e a
Nossa Senhora. Não poderia ser aceito quem tivesse oficio vil, nem mecânicos, nem que para desempenhá-lo precisasse
sujar as mãos – como por exemplo num açougue.”

“A quinta era a proibição era o de não se permitir a entrada de ex egressos de outras confrarias, seja por expulsão ou livre
vontade.”

“A sexta estabelecia-se a idade mínima de 40 anos, como forma de prezar pela maturidade, a responsabilidade e a solidez
profissional. Em idade inferior, se fazia necessária uma licença. Quanto `as mulheres, se fazia necessária autorização do
marido para as casadas ou dos pais para as solteiras. As mulheres.”

“A sétima era socioeconómica. Deveria ser homem de êxito, realizado, bem posto na vida. Na prática eram comerciantes
ricos, nobres e altos dignitários. Ela foi também a Ordem dos comendadores, Juízes, Desembargadores, viscondes,
Capitães-mores, Viscondes, Barões, Doutores, Sacerdotes, Capitães e Alferes, para que pudessem impor respeito e maior
autoridade.”

“A oitava era financeira. Todos pagavam uma taxa de entrada (variando de acordo com a idade do Irmão) `a Ordem como
associados e, depois, as anuidades, as esmolas comuns e inúmeras subscrições. Inclusive não se admitia na Ordem
pessoas com uma idade muito avançada, para que a Ordem não gastasse mais dinheiro no seu enterro do que a quantia
doada em vida, nas esmolas. Além da taxa de entrada e das esmolas anuais, cobravam-se joias para `aqueles que serviam
`a Mesa.”

Depois de toda a investigação o processo era apresentado `a mesa, que fazia minucioso julgamento.

Quanto `a vestimenta:
A veste era substituída pelo bentinho, trazendo a imagem e o emblema de Nossa Senhora do Carmo.

Quanto `as funções:

Assistencial;

Dar sepultura a todos os Irmãos; e

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Espiritual, através dos cultos religiosos, festas, procissões de enterro.

OBS: Importante ressaltar que pensava-se ver na Ordem do Carmo, que reunia altos dignitários da sociedade, uma
associação também política, contribuindo para decisões em várias oportunidades. Foi um engano. Examinou-se cada uma
das atas e documentos do arquivo registrados nos Livros de Termos e Deliberações da Mesa, `a procura de dados que
comprovassem a participação direta da Ordem nos acontecimentos políticos. Entretanto, nada foi encontrado. Que
comprove ter sido a Ordem, através do seu Definitório, um órgão de elaboração de planos e decisões políticas `a
semelhança das lojas e oficinas maçónicas, como mostra nossa historiografia.

Em Raízes do Brasil vemos que a religiosidade do Carmo era de superfície, atenta ao colorido das cerimonias, `a pompa
exterior, mas distante de uma verdadeira espiritualidade

Quanto `as principais festividades:

Celebração da festa de Nossa Senhora do Carmo, como padroeira

Comemorações feitas durante `as sextas de quaresma, em memoria dos Passos da Sagrada Paixão de Cristo; e

A Grande Procissão do enterro na sexta-feira maior.

Conclusões:

A Ordem Terceira do Carmo constituída de um pequeno grupo de gente bem nascida, de homens brancos, selecionados
pela riqueza, cor e costumes representou o esforço e a luta da manutenção de uma elite viva e conservadora. Esta
pequena sociedade se manteve `a distância de outras camadas sociais, tomando-se impermeável a elas, fechando-se em si
mesma numa atitude narcisista.

A Ordem do Carmo, como associação rica, sem a preocupação de estabelecer uma base patrimonial e com a contribuição
dos Irmãos, esbanjou luxo e, como boa empresa, soube oferecer bons empregos;

A Ordem do Carmo foi uma corporação de homens brancos e ricos, recrutados na elite sanjoanense, representando um
esforço na conservação dos bons costumes. Ser irmão do Carmo era uma realização social;

A vida religiosa da Ordem do Carmo ‘e um excelente exemplo do catolicismo brasileiro. Religiosidade de superfície, de
manifestações exteriores e de festas, onde transparecia enorme preocupação com a morte;

As reuniões da Mesa não deixam transpirar a ação da Ordem do Carmo como Órgão de deliberações políticas; e

A presente pesquisa tomou como base o Compromisso da Ordem do Carmo, o seu Estatuto – Actas leis e Estatutos da
Venerável Ordem 3a da penitencia da Sempre Virgem Maria do Monte Carmo.

ORDEM TERCEIRA DE NOSSA SENHORA DO MONTE DO CARMO

Ordem Terceira de Nossa Senhora

IRMÃO 1 - De quem é o pedido de empréstimo, irmão?


IRMÃO 2 - De João Viana.
IRMÃO 1 - É da nossa Ordem?
IRMÃO 2 - É.
IRMÃO 1 - Leia o documento.
IRMÃO 2 - (Lê) - Tendo notícia de que no cofre desta venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo estão
depositados seiscentos mil réis para serem...
IRMÃO 3 - É só o que temos no cofre?
IRMÃO 2 - Claro que não. Isto é o que ele precisa. (Olha ressentido para o irmão)... para serem emprestados a razão
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de juros de lei, e como o suplicante dá para fiadores irmãos desta mesma Ordem e além disso hipoteca à mesma
fiança todos os bens que possui...
IRMÃO 1 - E ele possui alguma coisa?
IRMÃO 2 - É pessoa de abono, irmão.
IRMÃO 1 - Aprovo.
IRMÃO 2 - Além dos títulos de dívida ele ainda oferta dezessete oitavas de ouro, para obra meritória de livre
vontade da Ordem.
IRMÃO 3 - Se nossos devedores fossem todos assim!
IRMÃO 2 - Que quer dizer, irmão?
IRMÃO 3 - Que o governo da capitania ainda não saldou a dívida conosco. E emprestamos quase todo o nosso
capital!
IRMÃO 1 (Altivo) - Temos no cofre da Ordem oito contos quatrocentos e noventa e três mil e oitenta e dois réis. E o
governador deu ouro em pó em caução!
IRMÃO 2 - Tratando-se do governador, não é o que importa. Precisamos estar bem com o rei.
IRMÃO 3 (Irônico) - Não devemos nos esquecer de que temos irmãos em luta com o poder real.
IRMÃO 1 (Evitando o assunto) - Irmão! Qual o caso que quer apresentar à Mesa? (A Mesa significava a administração da
Ordem que, por sua vez, (i) ficava a cargo dos homens; (ii) esses homens tinham que ter mais de 40 anos e terem passado
nos requisitos de admissão `a Ordem; (iii) deveriam ocupar cargos de autoridade e prestígio na sociedade, estampando
com maior credibilidade os quadros da Ordem; (iv) o controle e as decisões da Mesa estavam centradas em uma elite
composta pelos seguintes membros: O prior, o sub-prior, o secretário, o Tesoureiro, o Procurador/Zelador, os seis
Definidores, o Vigário do Culto Divino, o Sacristão, o Enfermeiro e o Comissário (sacerdote). Cada membro possuía uma
função específica e o cargo de 1 ano. A mesa, uma vez definida, era chamada de Consistório/Definitório e seus membros
de Discretos.
IRMÃO 4 - Manoel de Abreu, irmão.
IRMÃO 1 - Qual é o problema?
IRMÃO 4 - Infâmia de mulata.
IRMÃO 1 - Infâmia de mulata? Em nossa Ordem?
IRMÃO 3 - Enquanto a sindicância sobre o passado de nossos pretendentes não for bem feita, teremos sempre
problemas aborrecidos.
IRMÃO 2 (Ofendido) - Manoel de Abreu não pertence à nossa ordem, irmão.
IRMÃO 1 - Se não pertence, nada temos com isso. E se quer pertencer, responda que não pode ser aceito.
IRMÃO 4 - É que ele trabalhou a vida toda para nosso irmão Vicente de Almeida Magalhães!
IRMÃO 3- Vicente de Almeida Magalhães! Só podia ser. Até depois de morto é dificultoso à Ordem... Que o senhor o
tenha em santa paz.
IRMÃO 4 - Ao morrer, nosso irmão deixou a Manoel de Abreu tudo o que possuía, inclusive a s roupas.
IRMÃO 3 - Tudo? A um servo?
IRMÃO 4 - Em nossas últimas cerimônias religiosas, Manoel tem se apresentado com a opa da irmandade
(veste do ministro da eucaristia).
IRMÃO 3- É só explicar a ele que não pode usá-la.
IRMÃO 4 - Já expliquei. Para a procissão de hoje, já se apresentou de opa. Peço à Mesa que resolva.
IRMÃO 1 - Faça entrar. A compreensão é filha da boa explicação. Esse nosso irmão não é de muitas luzes
(esclarecimento).
IRMÃO 3 - Também, com as ideias que Vicente de Almeida Magalhães trouxe de suas viagens! Só falava na
Europa com sua imprensa de cem olhos, de cem bocas propagando a ilustração por todas as classes.
(Importante ressaltar que o século XVIII, o qual estamos tratando, marcou a história do mundo e ficou
conhecido como o século das luzes, ou o século da razão. Isso é porque é nesse século que o pensamento
iluminista se estabelece. Por iluminismo entende-se um movimento intelectual e filosófico centrado na
razão como principal fonte de autoridade. Defendendo-se ideias de liberdade, progresso, fraternidade,
governo constitucional, tolerância religiosa, estado laico, cientificismo. O período do Iluminismo vai de 1715
(com a morte de Luis XIV) e 1789 (início da Revolução Francesa). Uma variedade de movimentos do século
XIX, entre os quais: o positivismo, o liberalismo e o neoclassicismo têm herança intelectual no iluminismo).
Entre os principais expoentes do Iluminismo temos Voltaire, Rousseau, Adam Smith, Immanuel Kant, Denis
Diderot, David Hume, Beccaria. Ficou conhecido como o século das Revoluções.
IRMÃO 2 - Com a inquietação surda que anda por aí, se Vicente não tivesse falecido, as ideias dele em nossa Ordem
seriam... (No Brasil, a crise do sistema colonial começou a agravar-se na segunda metade do século XVIII – ao mesmo
tempo em que a situação do mundo tornava-se convulsiva com a Revolução Industrial na Inglaterra, a Independência
dos EUA e a Revolução Francesa, inspirada pelos ideais libertários e iluministas. No Brasil, a crise do ouro – que se
instaurava e aumentava a partir dos primeiros sinais de escassez do metal e, como uma contrapartida irracional, a
intensificação dos impostos cobrados por Portugal, somados `a punições e `a fiscalização intensa, a população
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revoltada se organizou em diferentes rebeliões nativistas e Rebeliões separatistas, das quais destacaram-se, por
exemplo: a Revolta de Beckman, a Inconfidência Mineira, a Guerra dos Emboabas, a Revolta de Felipe dos Santos, a
proibição Oficial da escravidão indígena a Conjuração Baiana, a Conjuração do Rio de Janeiro.

(Manoel entra, vestido com a opa da irmandade, ricamente bordada.)

MANOEL (Reverência) - Boa tarde, meus irmãos terceiros.


IRMÃO 1 - Seu nome é Manoel de Abreu?
MANOEL - Manoel de Abreu, sim senhor.
IRMÃO 1 - Foi servidor na casa de Vicente de Almeida Magalhães?
MANOEL - Não conheci outro lugar de trabalho em quarenta anos de vida.
IRMÃO 3 - É verdade que herdou tudo que pertencia a ele?
MANOEL - Tudo, sim senhor.
IRMÃO 3 - Então, usa opa só porque herdou?
MANOEL - O que a gente herda, a gente usa.
IRMÃO 1 - Para usá-la, precisa pertencer à Ordem.
MANOEL - Se herdei tudo que era dele, herdei também o lugar na Ordem.
IRMÃO 1 (Risos) - Para isto, precisa ser aprovado.
MANOEL - Sou branco e tenho dinheiro para os anuais (para pertencer `a Ordem Terceira de Nossa Senhora do
Monte do Carmo era necess’ario pagar impostos anuais, al’em de uma taxa de entrada)
IRMÃO 2 - Apesar disso, não pode pertencer à Ordem.
IRMÃO 1 - Tire a opa e acompanhe a procissão como qualquer devoto. Todos são importantes para Deus.
MANOEL - Não posso pertencer por quê?
IRMÃO 2 - Aceite o conselho e vá para a igreja.
MANOEL - Não saio daqui sem saber.
IRMÃO 1 - Não sabe que cada pretendente tem que provar pureza de sangue? (“A primeira condição, ou requisito, que o
irmão deve ter para entrar na Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo e’ o de ser limpo de sangue, sem
nenhuma raça de judeu, mouro, mulato, preto ou de qualquer outra nação”.
MANOEL - Sei. Não sou filho de nação que fura beiço.
IRMÃO 1 - Não podendo ter ascendente mouro, judeu, carijó, negro ou cabra, ou de uma infecta nação?
MANOEL - Que Deus Todo-Poderoso nos livre deles.
IRMÃO 3 - Sabe também que se qualquer pessoa provar que sua mulher tem, de quatro gerações para baixo, herança de
sangue impuro, é quanto basta para não ser admitido na ordem? E, tendo sido, para ser expulso? Era passível de anulação
a aceitação de membro que não cumprisse os requisitos, compondo assim a lista dos reprovados (para que estes, em
tempo algum, fossem admitidos).
MANOEL - Conheço os estatutos, posso professar. Já estão aqui as seis oitavas de ouro para a esmola (eram a taxa de
adesao para pertencer `a Ordem (variando de acordo com a idade do Irmao) e, depois, as anuidades, as tais esmolas
comuns - e inúmeras subscrições. Inclusive não se admitia na Ordem pessoas com uma idade muito avançada, para que a
Ordem não gastasse mais dinheiro no seu enterro do que a quantia doada em vida, nas esmolas. Além da taxa de entrada
e das esmolas anuais, cobravam-se joias para `aqueles que serviam `a Mesa.”
IRMÃO 1 - Você é acusado de infâmia de mulata! (marcas de infamia referia-se que o habilitando tinha defeitos de
sangue)
MANOEL - Clara? Minha mulher...?!
IRMÃO 2 - Descende de negros.
MANOEL - Não é verdade. Sou casado há vinte anos. Conheço sua gente. São da família Dias!
IRMÃO 2 - Assim rezam os papéis que vieram da Província onde ela nasceu.
IRMÃO 3 - Debaixo de pele branca, também corre sangue negro. Entregue a opa!
MANOEL - É minha e vou usar.
IRMÃO 1 - Procure compreender. Não queremos faltar com a caridade.
MANOEL - É minha. Minha mulher é branca. Ninguém pode me acusar desta infâmia. Eu herdei tudo. Tudo!
Sou rico como vocês. Tenho com que pagar o vigário, a cera, a cova, a mortalha e o caixão. Pertenço à
Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo...
IRMÃO 3 - Irmão, rasgue a opa!
MANOEL - Não! É minha... meus filhos são brancos...!

(NESTE INSTANTE, MARTA (Neste momento, vocês acabam de conhecer a Marta. Marta e’ um
personagem muito importante nas obras de Jorge de Andrade. Nesta peca, especificamente, ela
faz uma peregrinação por várias confrarias carregando o corpo do seu filho e ela deseja alguma
7
coisa). Marta dá nome ao título do ciclo de Jorge de Andrade: Marta a Árvore e o Relógio
composto por 10 peças entre as quais Confrarias e’ a primeira. Marta aparece como uma mulher
do povo, maternal, mas também maliciosa. Afetuosa, mas também estrategista. Realista, mas
também sonhadora. Sua vida atravessa as pecas do ciclo como uma mulher que abraça sua
força e sua miséria e luta com o que tem. Nem sempre a vida lhe responde com a justiça
pretendida, mas -ainda assim- toma suas decisões. Participa e escreve junto a sua história,
dando expressão ao espírito questionador, mas também de fe’ e esperança. SURGE À PORTA. O
IRMÃO RASGA A OPA; MANOEL AJOELHA-SE E JUNTA OS PEDAÇOS.)

IRMÃO 1 - Se consertar e vesti-la novamente, levaremos o caso à justiça. Há outras irmandades onde pode
ser admitido. Nem todas as portas estão fechadas a você. Pode sair.

(MANOEL ABRAÇA-SE À OPA E, PROFUNDAMENTE FERIDO. MARTA TIRA A OPA DAS MÃOS DE MANOEL,
DEIXANDO-A CAIR AO CHÃO.)

IRMÃO 3 - (Com desprezo) - Família Dias!


IRMÃO 1 - Precisamos proibir em nossos estatutos que as vestes da Ordem sejam... Quem é?
IRMÃO 4 - Não conheço. Nunca vi no Carmo.

(QUALQUER COISA NA EXPRESSÃO DE MARTA (FAZ COM QUE OS IRMÃOS RECUEM COM CERTO RECEIO)

IRMÃO 1 - Que deseja em nossa igreja? Quem é você?


MARTA - Meu nome é Marta. Acabo de chegar a esta cidade.
IRMÃO 3 - Por que nos olha assim? Está se sentindo mal?
MARTA - As ruas são íngremes... e há duas horas que carrego meu filho.
IRMÃO 1 - Seu filho está doente? (Silêncio) Não ouviu? Que tem seu filho?
MARTA - Morreu... a caminho daqui.
IRMÃO 3 - E o que deseja?
MARTA - Um lugar para enterrá-lo.
IRMÃO 4 - Pertence à Ordem Terceira do Carmo?
MARTA - Não. Nem meu filho pertencia.
IRMÃO 4 - Então, procure sua irmandade.
MARTA - Não pertencemos a nenhuma!
IRMÃOS (Entreolham-se, atônitos)
IRMÃO 3 - Como?! Não pertencem a nenhuma das confrarias?
MARTA – Não. (Expressão impenetrável) Mas creio em Cristo.
IRMÃO 3 - Como pode crer, se não pertence ao corpo da Santa Madre Igreja?
IRMÃO 4 (Desconfiado) - Por que justamente no cemitério de nossa confraria?
MARTA (Enigmática) - Por causa de Santa Quitéria. Não é a padroeira desta igreja? Diz a lenda que, martirizada,
carregou a própria cabeça decepada. Meu filho era a minha cabeça... e não o estou carregando?
IRMÃO 1 - Acho humanamente impossível, inacreditável, que alguém não pertença às irmandades devocionais!
MARTA (Com malícia fugidia) - Meu filho ia completar trinta anos. Pago os anuais de trinta anos em ouro do melhor
quilate. (Mostra a sacola) Aqui está.
IRMÃO 4 - Ninguém pode repousar em solo sagrado, sem cuidadosa sindicância. (A sindicância ‘e uma investigação
administrativa e era severa. As propostas deveriam satisfazer largos interrogatórios, para que os Informadores tudo
apurassem, apontando o nome dos pais, avós, candidatos, revelando as raízes familiares limpas de sangue e de qualquer
suspeita na fé).
IRMÃO 1 - Nem precisamos de seu ouro.
IRMÃO 4 - (Acentua-se a desconfiança) - Seu filho morreu do quê?
MARTA (Silêncio. Contrai-se ligeiramente)
IRMÃO 1 - Suicídio, não foi?
MARTA (Sorri de maneira estranha) - Morreu de amor. (Eleva a voz) Eu disse que morreu de amor!
IRMÃO 3 - Que doença é essa que ainda não chegou aqui?!
IRMÃO 4 (Rindo) - Amor que mata como a cólera! Deus nos livre dele.
IRMÃO 1- Não há amor maior do que a nossa devoção, mas não creio que alguém tenha morrido disto.
Conhecem alguém?
MARTA (Interrompe os risos) - Também não creio... (Controla-se) que aqui, alguém morra desse amor. Mas, pelo
que têm a Deus, dêem um lugar a meu filho. (Sondando) Em nome da caridade.
IRMÃO 1 - A caridade deve ser exercida, sabemos. Mas temos eu pensar nos irmãos que repousam
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aqui. Para evitar ofensa a esta santidade, precisaríamos conhecer a vida de seu filho.
IRMÃO 4 - Irmão! (Abaixa a voz) Não devíamos ouvir.
IRMÃO 1 - Por que não?
IRMÃO 4 - Não sei. Por um momento, tive a impressão de que ela pode nos fazer mal. Tem olhos que parecem não
ver gente!
IRMÃO 3 - Não passa de uma pobre mulher.
IRMÃO 1 - Tem olhos de quem chorou muito. O filho não está morto? Por que sorri?
MARTA - Pensava em meu filho. Filho é um mistério! Ninguém sabe que caminhos vai andar.
IRMÃO 3 - Ele andou em maus caminhos?
MARTA (Astuciosa) - Se há caminhos é porque alguém já passou. A gente também pode passar. Ele passou por
todos.
IRMÃO 3 - Há caminhos do demônio!
MARTA - Não conheci nenhum. Não há nada escondido em nosso passado. O passado é um emaranhado de trilhos
que se perde na memória, mas que todos podem percorrer. Em um deles meu filho nasceu, fazendo-me sofrer,
partindo meu corpo em torrões de dor... (esperando o efeito) quando sua cabeça passou entre minhas pernas.
IRMÃO 3 - Você não é um animal!
IRMÃO 1 - Maternidade é coisa sagrada! Não se fala assim!
MARTA (meio áspera) - Mas esta é a minha linguagem. Nesses trilhos ele cresceu, viveu e morreu... como um
homem deve ser.
IRMÃO 1 (Meio fascinado) - Conte-nos.
IRMÃOS (Entreolham-se, contrariados)
MARTA - Meu filho nasceu em vila distante daqui, onde, no princípio, não havia ouro, mas a terra dourava-se em
mantimentos.

(JOSÉ ENTRA )
MUTAÇÃO (Ao longo da peca, vamos nos deparar com trechos de Muta’cao. O autor utiliza-se do recurso das
mudancas na sequencia temporal dos fatos para inserir flaches de memória do eu lírico da história, no caso, a
Marta. Neste caso, em especial, trata-se de uma memória de Marta com seu filho).
MARTA - José! José! Você não ouve?
JOSÉ - Preciso de concentração mãe.
MARTA - Concentração! Por que não concentra em arado? Se está querendo movimentar o corpo, temos milho
para descascar.
JOSÉ - É assim que acontece com tudo: nasce, cresce, envelhece e morre .
MARTA - Quem não sabe que tudo nasce e morre? Onde aprendeu isto?
JOSÉ - Observando! Para que servem os olhos?
MARTA - Para seguir o sulco do arado, ver onde colocar sementes, o que está bom para colher... Entendeu?
JOSÉ - A senhora é sempre clara.
MARTA - Em vez de imitar plantas, faça algumas crescerem como seu pai.
JOSÉ - Cada um tem o seu sentido de plantar.
MARTA - Escute aqui, meu menino: o que pretende da vida, hein?
JOSÉ - Ver como é a próxima cidade, e a próxima, e a próxima! Correr mundo. Deve haver, nele, um lugar que é só de
seu filho.
MARTA (Despeitada) - Cidades são casas em volta de ruas.
JOSÉ - Onde mora gente.
MARTA - Aqui também. Que é que somos? Bichos?
JOSÉ - De vez em quando a senhora vira onça.
MARTA (Amarga) - Ruas, igrejas, muros, casas e gente trancada nelas. Isto é cidade.
JOSÉ - Pois gostaria de descobrir um meio de abrir as portas, ver como vivem, o que pensam, o que têm e o que
gostariam de ter.
MARTA - Comece por aqui. E uma boa maneira de conhecer as pessoas é trabalhando com elas.
JOSÉ - Papai é claro como a senhora.
MARTA - Pois gosto de gente é como seu pai: pensa na terra, na semente e na chuva. Gosta de pão na mesa e de
lençóis limpos. Se não, vira-se para o canto e dorme. Pronto! Não entendo quem só sabe falar.
JOSÉ - Um dia, vai me ver trabalhando. Fique descansada.
MARTA (Retesada) - Que sei eu de cidade! Passei pelas ruas de uma, para entrar no convento. Tornei a passar pelas
mesmas ruas, dez anos depois, quando saí para casar. Aprendi por caridade, casei para não virar freira – destino de
moça pobre – e aqui descobri o que é viver.
JOSÉ - Por que abandonaram a senhora lá?
MARTA - Todo mundo tinha morrido. Cidade para mim é isto: sons de passos e de vozes que passam e se distanciam,
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de sinos tocando sempre às mesmas horas...! (Com expressão finória) Ainda devem estar lá, as marcas de minhas
orelhas e unhas em uma das paredes.
JOSÉ - E aqui? Estamos, eu, a senhora e papai. Trancados também.
MARTA - Com todo este espaço?!
JOSÉ - Para mim é como se fosse uma parede. Também ouço através dela sons que não sei de onde vêm (de repente)
Mãe! O mundo não é somente nós.
MARTA - O meu é!
JOSÉ (Meio perdido) - Às vezes, sinto que todos nós temos que representar um papel.
MARTA (Atônita) - Que quer dizer com................representar um papel?
JOSÉ - Ser com perfeição o que a gente não é...............e é, ao mesmo tempo. Para mim, a senhora é mãe, mas para
meu pai, não é. Para a senhora e ele, sou filho mas para mim mesmo, quem sou?
MARTA - José..........o meu filho! De onde está tirando tudo isto?!
JOSÉ - Também não sei. Depois que descobrir, eu conto.

MUTAÇÃO

IRMÃO 1 - Em que convento esteve?


MARTA - Das franciscanas. Fui educada por elas para ser freira. (Intencional) Mas não quis ser.
IRMÃO 1 - Sem pais, pobre, que destino mais santo poderia querer do que ser esposa de Cristo?!
MARTA - Queria ser de um homem.
IRMÃO 3 - Você parece mulher ímpia!
MARTA - O senhor tem filhos?
IRMÃO 3 - Muitos.
MARTA - Como poderia tê-los se todas as mulheres fossem freiras?

(SEBASTIÃO APARECE)

MARTA (Evocando, carinhosa) - Quando Sebastião apareceu, levando a irmã para ser freira, pedi que se casasse
comigo. Dois meses depois, ele voltou para me levar. Nunca vi Sebastião parado. No trabalho da terra, ninguém o
igualava!

MUTAÇÃO

SEBASTIÃO - Por que me olha?


MARTA - Porque gosto.
SEBASTIÃO (Interrompe o trabalho) - Que foi, Marta?
MARTA - Gosto quando chega silencioso. Sinal de que tudo vai bem.
SEBASTIÃO (Continua o serviço) - E vai mesmo.
MARTA - Fiz pão. Quer?
SEBASTIÃO - Depois que acabar o serviço.
MARTA - Empilhe a lenha amanhã. Tenho bastante na cozinha.
SEBASTIÃO - Por que deixar para amanhã?
MARTA - Assim conversa comigo.
SEBASTIÃO - Conservamos enquanto empilho.
MARTA (Pausa) - Você precisa de alguém para ajudar.
SEBASTIÃO - Não há muito para fazer. Só esperar que venha mais chuva.
MARTA - José devia ir para a roça.
SEBASTIÃO - Meu pai era faiscador(garimpeiro). Eu gosto da terra. Deixe que ele descubra o que quer.
MARTA (Abraça Sebastião, encostando o rosto nas costas dele)
SEBASTIÃO (Terno) - Que está acontecendo, Marta?
MARTA - Não gosto de ver você trabalhando sozinho.
SEBASTIÃO - Mas é assim que trabalho. José quer conhecer cidades, viajar, sentir-se no mundo.
MARTA - O mundo está em toda parte.
SEBASTIÃO - Parece que o dele não está aqui. Não acha?
MARTA - Não sei. Não conheço outro.
SEBASTIÃO (Sorri) - Deixe o filho bater as asas.
MARTA - Por que deixar meu filho partir para um mundo que não conheço?
SEBASTIÃO - Já pensou o que seria, se eu estivesse até hoje à beira de um rio fuçando o lodo? E se ainda estivesse
no convento desfiando contas de rosário?
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MARTA - Deus me livre. (Pausa) Sinto por você.
SEBASTIÃO (Áspero) - Está sentindo pena de mim?
MARTA - Não.
SEBASTIÃO - Ainda bem... José acabará encontrando o que quer. Vamos! Vamos ver esse pão. (Puxa Marta) Que
foi?
MARTA - Sebastião! Abrace-me!
SEBASTIÃO - Que está acontecendo, Marta?!
MARTA - Tenho medo.
SEBASTIÃO - Medo de quê?
MARTA - Não sei. Chegou de repente.
SEBASTIÃO - A gente não deve ter medo. De nada! Estamos juntos, não estamos?
MARTA - É bom estar em suas mãos! (Beija a mão de Sebastião) Elas descobriram em mim o que eu não sabia
existir. Foi com elas que me conheci.

MUTAÇÃO

MARTA (Volta-se, com olhos marejados) - Há momentos que ficam incrustados na gente, como pedras. Quando vi
José com a trouxa, senti que meus dois homens iam me dividir para sempre!
SEBASTIÃO (Pausa) - Sabe o que vai fazer, filho?
JOSÉ - Ainda não.
SEBASTIÃO - E parte assim mesmo?
JOSÉ - Se não procuro, não posso encontrar.
MARTA - Para ter certeza, filho.
JOSÉ - Eu tenho. Preciso ir mãe. Compreenda!
MARTA - Pegou tudo que é seu?
JOSÉ (Puxa a trouxa) - Peguei.
MARTA - Não está levando pão, filho?
JOSÉ - Mãe, por favor...
MARTA - Não custa. Vou buscar. (Sai, tentando conter os soluços)
SEBASTIÃO - Não vai encontrar pão igual ao de sua mãe.
JOSÉ - Por isto mesmo. Se vou tentar a vida no mundo, quero o que ele tem para dar.
SEBASTIÃO - Faz bem. Mas sua mãe se sentirá melhor, levando o pão.
JOSÉ (Pausa) - Fui ver a roça, pai. Está muito bonita.
SEBASTIÃO - O tempo das águas tem sido bom.
JOSÉ - O senhor sabe plantar.
SEBASTIÃO (Conselho discreto) - O amor é importante no trabalho, filho. A gente precisa ter certeza do que procura
e não recuar diante de nada. Foi ao Morro Velho? No próximo ano vou plantar lá.
JOSÉ (Angustiado) - Estive em todos os lugares do sítio... procurando não sei o quê!
SEBASTIÃO - Eu vi. O que quer não está aqui, filho. Vá procurar! Se não encontrar... volte, quem sabe já...
JOSÉ - Não vou voltar mais, pai.
SEBASTIÃO - Eu sei. Não diga nada à sua mãe.
JOSÉ - Acho que ela já percebeu.
MARTA (Volta, disfarçando a emoção) - Ainda bem que fiz pão esta manhã.
JOSÉ (Tenta sorrir) - Tudo isto?!
MARTA - Pelo menos por uma semana sei que terá o que comer.
JOSÉ (Pausa difícil) - Até a vista, pai.
SEBASTIÃO - Desejo que encontre o que procura, filho.
JOSÉ - Mãe!
MARTA (Segura o rosto de José, obsessiva) - Este é o seu rosto. Aquele que vai ficar guardado aqui dentro para
sempre.
JOSÉ (Sorri) - O trabalho vai mudá-lo, não é assim?
SEBASTIÃO - Que trabalho?
JOSÉ (Tenta vencer a emoção) - Não sei. A mãe diz que o trabalho modifica a gente. (Afastando-se) Não vive
dizendo que o senhor tem cor de terra? E eu não brinco... que ela tem de trigo e de linho?

MUTAÇÃO

IRMÃO 1 - E seu marido se matou sozinho no trabalho?


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MARTA (Examina o altar e o teto, retesada) - Foram outras coisas que o mataram.
IRMÃO 3- Ele abandonou vocês para fazer o quê?
MARTA (COMEÇANDO O JOGO) - Primeiro trabalhou numa nau dos quintos (nau – a embarcacao – que
transportava anualmente o Quinto - imposto de 20% sobre o ouro e os diamantes extraídos em no Brasil e cobrados
por Portugal.

(Sondando) nos carregamentos do ouro que nos tiram e nos empobrecem.


IRMÃO 3 - Mais um pouco e teremos que suar ouro!
MARTA (SORRI, ACENTUANDO O JOGO) - O povo está suando há muito tempo. José correu mundo... e acabou
descobrindo o que havia dentro das casas: gente suando dízimos... em triste estado procurando com esperança
de encontrar, encontrando com a certeza de não usar. Foi assim que se preparou para o trabalho.
IRMÃO 4 (Irônico) - O trabalho que muda o rosto?
IRMÃO 2 - Que trabalho é este que não conhecemos por aqui?
MARTA (Sorri com astúcia) - Conhecem, sim.
IRMÃO 4 - Seu marido tinha cor de terra, você, de trigo... e ele?
MARTA (Esperando o efeito) - Tinha do homem... que nascia diariamente no corpo dele.
IRMÃO 2 - Que está dizendo?! Perdeu a razão?!
MARTA - Foi o demônio e Cristo. Não são dois rostos diferentes?
IRMÃOS (Entreolham-se, atônitos)
IRMÃO 1 - Você diz... Deus e o demônio no mesmo corpo?!
MARTA - Deus e o demônio, brancos e negros, crentes e ateus, mulheres e homens. Ninguém o igualava
em tragédias... ou em comédias!
IRMÃO 3 (Pausa tensa) - Seu filho foi ator?!
MARTA - De muitas personagens... no palco e fora dele!
IRMÃO 4 (Ri) - Afinal... apenas um ímpio, uma face do demônio! Mais uma boca de mulato que estropia verso. É
para que o servem estes bastardos.
IRMÃO 1 - Só mesmo quem nada conhece de premissas canônicas, pede solo sagrado para ator! Não sabe que infiéis,
suicidas e atores não podem ser enterrados em igrejas?
MARTA (Impassível) - Sei.
IRMÃO 1 - Que um homem que interpreta todo e qualquer papel, inclusive o do demônio tem afinidade estreita
com esses personagens?
MARTA - Também sei.
IRMÃO 3 - Quem se presta a representar certos papéis, auxilia a corromper costumes e até mesmo a pôr em
risco certas firmezas da fé e de nossas instituições.
IRMÃO 1 - Tire o corpo de seu filho da porta de nossa igreja. Vamos, irmãos! A Mãe Santíssima Nossa Senhora dos
Passos precisa sair para levar consolo ao povo nas ruas. (Erguem o andor)

MARTA (Diante da imagem) - Meu filho vai ter paz. O seu também. Vamos! Nesta noite escura, nossos passos vão
soar como gemidos de agonia e de parto. (Volta-se, odienta) Uma confraria cativa em gargalheiras de sangue, de
crença, de interesses, de leis, torna-se covil de tiranos. Não seria aqui que deixaria o corpo do meu filho. Os que
estão aqui, para que servem? Para o respeito só de vocês. Nada mais!
IRMÃO 1 - Então, por que veio em nossa igreja?
MARTA - Por que antes que o dia amanheça... vocês vão enterrá-lo.
IRMÃO 1 - Nós?! Os carmelitas?!
MARTA - Vocês também (Olha à sua volta) Não nesta mina de ouro.

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