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doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2020.20190160
RESUMO
Como citar este artigo:
Objetivo: Analisar os meios de trabalho do enfermeiro utilizados na articulação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
Braga FS, Olschowsky A, Wetzel C, Silva
AB, Nunes CK, Botega MSX. Meios de
Método: Estudo qualitativo exploratório-descritivo, realizado na RAPS de uma Gerência Distrital de saúde de Porto Alegre. Utilizou-se
trabalho do enfermeiro na articulação da como técnica de coleta de dados a entrevista semiestruturada, realizada no período de outubro a dezembro de 2017. Os dados foram
rede de atenção psicossocial. Rev Gaúcha submetidos à análise temática sob referencial marxista do Processo de Trabalho.
Enferm. 2020;41(esp):e20190160. Resultados: A análise resultou em duas categorias temáticas: Gestão do Cuidado e Práticas de Cuidado. A primeira é composta por
doi: https://doi.org/10.1590/1983- dois meios de trabalho: coordenação de equipe e reuniões com os demais componentes do território. A segunda, envolve três meios
1447.2020.20190160 de trabalho: contatos telefônicos com serviços da RAPS; encaminhamentos do usuário na RAPS e apoio matricial.
Considerações finais: Tendo em vista a superação do modelo manicomial, os meios de trabalho dos enfermeiros são instrumentos
de produção de diálogos que visam ampliar o cuidado psicossocial.
Palavras-chave: Enfermeiras e enfermeiros. Trabalho. Cuidados de enfermagem. Saúde mental. Redes comunitárias.
ABSTRACT
Objective: To analyze nurses’ means of work used in the articulation of the Psychosocial Care Network (PCN)
Method: An exploratory-descriptive qualitative study conducted at the PCN of a District Health Management in Porto Alegre. The
data collection technique used was the semi-structured interview held from October to December 2017. Data was subjected to
thematic analysis under the Marxist theory of the Labor Process.
Results: The analysis resulted in two thematic categories: Care Management and Care Practices. The first consists of two means
of work: team coordination and meetings with the other components of the territory. The second involves three means of work:
telephone contacts with PCN services; user referrals in the PCN and matrix support.
Final considerations: In view of overcoming the asylum model, nurses’ means of work are instruments for producing dialogs aimed
at expanding psychosocial care.
Keywords: Nurses. Work. Nursing care. Mental health. Community networks.
RESUMEN
Objetivo: Analizar los medios de trabajo utilizados por los enfermeros en la articulación de la Red de Atención Psicosocial (RAPS).
Método: Estudio cualitativo, exploratorio y descriptivo realizado en la RAPS de un Distrito de Gestión de la Salud en Porto Alegre. La
técnica de recolección de datos utilizada fue la entrevista semiestructurada, de octubre a diciembre de 2017. Los datos se sometieron
a
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), al análisis temático bajo la teoría marxista del proceso de trabajo.
Escola de Enfermagem, Programa de Pós-Graduação Resultados: El análisis derivó en dos categorías temáticas: gestión de la atención y prácticas de atención. El primero consiste en
em Enfermagem. Porto Alegre, Rio Grande do Sul,
dos medios de trabajo: coordinación del equipo de trabajo y reuniones con los otros componentes del territorio. El segundo implica
Brasil
tres medios de trabajo: contactos telefónicos con servicios de la R APS; referencias de usuarios en la RAPS y soporte de matriz.
b
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
Escola de Enfermagem, Departamento de Assis-
Consideraciones finales: En vista de superar el modelo de los manicomios, los medios de trabajo de los enfermeros son
tência e Orientação Profissional. Porto Alegre, Rio instrumentos para producir diálogos destinados a expandir la atención psicosocial.
Grande do Sul, Brasil Palabras clave: Enfermeras y enfermeros. Trabajo. Atención de enfermería. Salud mental. Redes comunitarias.
Além de assistência, eu realizo coordenação. [...] eu tenho em saúde em um processo de trabalho dinâmico, não alie-
um turno mais administrativo, para poder responder e-mails nado, participativo e em acordo com as necessidades dos
e várias outras demandas que vem para essa questão de usuários. Sobre esse meio de trabalho, os enfermeiros relatam:
coordenação (E7).
Próxima reunião de conselho local, a gente vai colocar isso.
Este meio de trabalho, utilizado enquanto referência para A gente quer começar [um grupo] com a terceira idade (E5).
articulação da RAPS, é utilizado por nove enfermeiros dos 12
Reunião de colegiado é uma coisa que a gente participa
entrevistados. Os enfermeiros afirmam a necessidade e o de-
na gerência. É uma reunião grande ampliada que é junto
sejo de estarem juntos aos usuários produzindo estratégias de
com os serviços [da atenção básica], mas é mais um fórum
cuidado em atenção psicossocial, mesmo tendo dificuldades
que a gerência coordena, coisas nossas. Participam todos
na utilização do meio de trabalho coordenação de equipe.
os coordenadores de unidade da região (E2).
Tem algumas coordenadoras que preferem ficar só na ges- Participam os serviços especializados da saúde mental [na
tão, mas eu gosto do contato com o paciente (E3). reunião da RAPS]. Agora se avançou em algumas coisas,
tem o Hospital E., tem uma assistente social que participa.
Nas unidades a gente fica afogado nessa demanda espontâ-
Que é bem legal para organizar a saúde de um usuário.
nea de atender paciente, tantos pacientes que a gente acaba
Quando ele tem alta, muitas vezes, já direciona para os CAPS.
não conseguindo programar ações de coordenação (E4).
A FASC [Fundação de Assistência Social e Cidadania] teve
É bem difícil exercer a assistência e coordenação. Bem com- uns momentos que se afastou, agora está retomando [...]
plicado quando se é única enfermeira. Então, essa é a parte tem a participação do pessoal da política de saúde mental
que eu acho mais difícil. A parte burocrática nos toma muito também. Sempre tem a participação da política junto nas
tempo (E12). reuniões mensais. (E3).
Os depoimentos dos entrevistados apontam a dificul- O Serviço de Atendimento Familiar [da assistência social]
dade dos enfermeiros na realização das suas atividades de ajuda muito. E geralmente as meninas, elas são muito re-
cuidado direto (assistência) e indireto (coordenação) aos ceptivas, elas vêm na reunião de equipe, a gente discute
usuários da rede de serviços, ficando muitas vezes, focados alguns casos também (E8).
nas burocracias de seus cargos.
A dimensão gerencial, quando burocratizada, reduz o As reuniões com os demais componentes da RAPS é um
processo de trabalho do enfermeiro e o torna mecanicista. meio de trabalho estratégico para articulação e aproximação
Por esse olhar, por mais que os serviços de saúde ainda dos trabalhadores em espaços potentes de gerenciamento
estejam centrados em ações prescritivas, burocráticas e e cuidado integral aos usuários. Os enfermeiros relataram a
tecnicistas, a burocracia não deve prejudicar a gestão do participação na reunião de conselho local; reunião de equipe
cuidado, mas permitir ao enfermeiro gestor do cuidado o do serviço; reunião de coordenadores de serviços de saúde da
entendimento que é ator e propulsor de mudanças, e que GD (reunião de colegiado); e a reunião dos trabalhadores da
por meio de ações de gestão planejada desenvolvidas co- atenção psicossocial especializada das GD (reunião da RAPS).
letivamente, pode produzir cuidado conforme a realidade Observa-se na literatura que quanto maior a multipli-
de cada cenário de serviço(12). cidade de pessoas e serviços envolvidos, e mais complexa
Ao utilizar a coordenação de equipe como meio de tra- a intervenção para resolução de determinado problema,
balho, o enfermeiro produz um cuidado indireto, através da maior é o nível de coordenação envolvido para alcançar o
dimensão gerencial, com um potencial importante para a resultado esperado. Nas situações que envolvem a cronici-
articulação da RAPS, pois este se torna a referência para os dade e suas complexidades, exige-se o uso simultâneo de
demais componentes do território e pode efetivar um cui- uma diversidade de serviços e ações. A gestão não pode
dado de boa qualidade ao usuário que busca estes serviços. ser vislumbrada, desta forma, como algo estático, e sim,
Assim, qualifica-se a gestão do cuidado na rede de serviços de dinâmico e ajustado a cada especificidade, buscando a
saúde, promove-se um cuidado de saúde mental que atende construção de redes que cooperam, interagem e integram
as necessidades do usuário e fortalece o modo psicossocial. diferentes atores e serviços envolvidos(13).
As reuniões com demais componentes do território, O direcionamento da pauta da reunião, na tentativa de
como meio de trabalho da gestão do cuidado, são utilizadas afastar a burocratização, permite deliberações de possibilida-
pelos enfermeiros em um trabalho coletivo para melhoria da des de intervenção que serão realizadas com os usuários. Desta
comunicação entre os trabalhadores, produzindo o cuidado forma, para além de um encontro burocrático, as reuniões
devem ter a finalidade de aproximar os trabalhadores para a Daqui para lá [UPA], a gente também liga. Mas isso não é
discussão de casos de usuários específicos, o gerenciamento garantia de internação. Quando a gente liga? Quando a
da articulação da rede, atendendo as necessidades de cuidado gente liga precisando de uma internação (E10).
direto e indireto. Produz-se, igualmente, a interrelação dos
trabalhadores ao se conhecerem pessoalmente, buscando-se a Nota-se que a comunicação é uma tecnologia que está
eficiência dos atendimentos produzidos e o comprometimen- presente na utilização de diversos meios do processo de
to da equipe para considerar as subjetividades dos usuários. trabalho em enfermagem. O fortalecimento das relações
O diálogo nas reuniões é dispositivo de potência para com os demais pontos de atenção da rede de cuidado, o
articulação em rede, uma vez que esse meio de trabalho pos- estabelecimento de direcionamento e gerenciamento nos
sibilita aos trabalhadores trocarem reflexões que propiciam instrumentos de comunicação possibilita ao trabalhador
uma melhor gestão dos processos de cuidado. de saúde acompanhar o trajeto do usuário durante o seu
As reuniões trazem a ideia desse dinamismo grupal, fluxo na linha de cuidado. Por linha de cuidado, entende-se
pois é neste espaço de encontro, que une um conjunto de o trajeto do usuário por todos os serviços da rede que se
participantes entrelaçados por um objetivo comum, em articulam, se comunicam e lançam mão de tecnologias de
que cada trabalhador com suas diferenças, experiências e saúde para resolver suas demandas. É importante pontuar
singularidades individuais, possibilita uma aproximação aos que é necessária a co-responsabilização dos trabalhadores
problemas, reconhecimento de conflitos para então identifi- neste processo, para que o usuário não perca seu vínculo
car recursos potenciais ou criativos para propor alternativas com serviços de referência territorial.(atenção básica)(15).
e superar obstáculos(14). Os contatos telefônicos ocorrem com maior efetividade
As reuniões servem como um espaço de concepção e entre os serviços de saúde da atenção básica e atenção
aprendizagem desse grupo, proporcionando um espaço de psicossocial especializada, facilitando a construção dos
debate entre seus membros. Dessa forma, ao se reunirem processos de trabalho e cuidado aos usuários. Isso ocorre
periodicamente para debater atividades de trabalho, os porque esses serviços se encontram periodicamente atra-
trabalhadores da rede passam a se conhecer e se relacionar vés das reuniões de colegiado, na qual os trabalhadores
através de comunicação, buscando a realização de uma se sentem fortalecidos para construção da rede e sentem
tarefa: o cuidado. mais facilidade de realizar as ligações por conta das relações
Na categoria temática Práticas de Cuidado, observa-se estabelecidas presencialmente.
que os contatos telefônicos com serviços da RAPS são
[...] sabendo com quem eu estou falando [ao telefone], é
meios de trabalho que facilitam e agilizam a comunicação
muito mais fácil. A gente consegue circular melhor na rede
entre os serviços, influenciando positivamente no modo de
a partir de quando a gente se conhece (E2).
organização e fortalecimento da rede.
É possível analisar nos relatos que, pelas especificida- Para o CAPS ad a gente tem liberdade de ligar direto e marcar
des de cada componente de rede, a comunicação entre os um acolhimento para esse paciente lá (E7).
serviços realizadas por ligações telefônicas têm diferentes
intenções. Os enfermeiros da UPA, por exemplo, utilizam os Os contatos telefônicos são uma forma de comunicação
telefonemas, majoritariamente, como meio de trabalho para mais ágil, entre os enfermeiros dos diferentes pontos de
produzir a transferência dos usuários. Assim, realiza contato atenção, para dar e receber orientações sobre o cuidado a
telefônico somente com os familiares e trabalhadores da um usuário de saúde mental específico.
central de leitos e do SAMU.
A gente troca muitas coisas, ligam para falar daquele pa-
É o enfermeiro que tem que ficar ligando: liga para ambu- ciente que está esperando e não está bem. Então, eles sabem
lância para agendar remoção; liga para o familiar, pede que a gente dá o suporte. De alguma forma, acho que a
isso, pede aquilo, pede os documentos. Então, o enfermeiro gente conseguiu organizar uma rede. [E3]
já tem assistência e ainda tem todos os turnos, a [ligação
da] central de vagas [...] Aí pega essa informação e vai se Os contatos telefônicos também servem como um meio
discutir com a equipe (E1). de trabalho para realizar combinação do encaminhamento
de usuários de saúde mental para os serviços de atenção
A reciprocidade também acontece, os enfermeiros dos psicossocial especializada da rede.
demais serviços da RAPS só entram em contato com a UPA
em casos específicos ao tentar conseguir a internação de Se a gestante está com algum problema individual, pes-
um usuário. soal, passa para mim, eu faço um atendimento. Já ligo
diretamente para a saúde mental, já tento organizar, ela sai [Centro de Saúde] Modelo, por exemplo, a gente consegue
com encaminhamento da consulta. A gente já faz direto encaminhar para lá alguns pacientes também (E11).
assim, por exemplo, a gestante é uma prioridade. [E9]
Contudo é importante tensionar que esses encaminha-
O encaminhamento do usuário na RAPS, segundo mentos realizados para outros serviços da RAPS, para além
meio de trabalho da categoria prática de cuidado, é usado na da necessidade de oferta de um atendimento mais dinâmico
articulação em rede entre os serviços de saúde que atendem e resolutivo, há que se atentar para a lógica da transferência
de portas abertas (UPA, CAPSad, UBS e ESF). Sobre isso, os de responsabilidade, a qual propicia o fortalecimento dos en-
enfermeiros referem: caminhamentos desnecessários, pois quando se encaminha
o usuário para o outro receber/resolver, sem a preocupação
Os casos de álcool ou uso de drogas, a gente consegue o do acompanhamento, da continuidade do cuidado, reduz-
encaminhamento direto no CAPS ad (E6). -se a possibilidade de resolutividade, ocasionando ainda,
fragmentação do trabalho e desresponsabilização pelos
A gente orienta o local e eles vão, portas abertas, assim,
casos e usuários.
livre demanda. Eles chegam lá, mas a gente não chega a
Em relação à ampliação do acesso promovido pela aber-
ter nenhuma resposta do CAPS ad (E8).
tura das unidades em horário estendido pode perder a sua
Para a unidade básica, a gente encaminha, às vezes, com potencialidade se outros dispositivos não forem simultanea-
próprio encaminhamento de documento de referência. mente implantados, como mudanças no modelo de agenda-
Mas quando o paciente não usa medicação nenhuma, mento para priorizar a demanda espontânea, modelos que
geralmente, a gente só orienta que tem unidade básica estimulem a continuação do cuidado e evitar a propagação
perto da casa dele, que ele utilize (E10). da fragmentação no atendimento em diferentes serviços
nos quais os usuários não possuem vínculo.
O encaminhamento do usuário para outros serviços da Isso é observado na literatura, que aborda que a abertura
RAPS é um meio de trabalho utilizado para iniciar o processo de atendimento em saúde, baseado nos moldes curativos,
de articulação na busca da resolução de um problema do impede a corresponsabilização e o compartilhamento do
usuário. Assim, o encaminhamento ocorre através de uma cuidado, pois os trabalhadores da saúde estão acostumados
orientação do enfermeiro para atenção as suas demandas, a enviar o usuário para consulta com o especialista baseados
buscando promover a continuidade do cuidado ao usuário na concepção de sinais e sintomas que são apresentados(17).
produzido pelas equipes de saúde. É considerado como fator O terceiro meio de trabalho que integra a categoria temá-
de fortalecimento da RAPS, pois é através dele que inicia o tica Práticas do Cuidado trata-se do apoio matricial realizado
usuário na sua linha de cuidado. por meio da interconsulta, conforme relatam os enfermeiros:
A linha de cuidado segue uma ideia de trabalho em saúde
que deve partir do sujeito, que ao mesmo tempo é sujeito Tem algumas unidades que são nossas referências, então
corpo e que se amplia ao sujeito aprendiz, cidadão, social e eles vêm na terça-feira aqui para fazer o matriciamento e,
cultural. Desta forma, as ações de cuidado devem partir de cada muitas vezes, daqui a gente sai com alguma coisa para
realidade, situação de vida e saúde identificada, incorporando fazer dentro das unidades (E2).
a necessidade de novos serviços e atores para compor e tra-
Então, a gente sempre tem esses dois matriciamentos. Eu
balhar com a complexidade deste sujeito ativo e dinâmico(16).
sou enfermeiro responsável por matriciar todas as crianças
Neste sentido, o encaminhamento pode ajudar com que este
no EESCA e a enfermeira X é responsável por matriciar todos
sujeito tenha suas situações de saúde resolvidas, fazendo uma
os adultos no ESMA (E7).
caminhada pela rede, incorporando novos serviços, atores e
práticas de cuidado de acordo com suas necessidades. Mudou o fluxo, antes a gente levava direto para o EESCA,
Observa-se nos relatos que a abertura de horário estendido agora a gente faz o matriciamento com o NASF e o NASF
noturno ampliou o acesso da atenção primária e tem levado avalia. Dependendo, alguns casos eles nos apoiam, nos
os enfermeiros a encaminhar os usuários para essa unidade ajudam e chamam a família para conversar (E8).
quando a demanda de saúde mental não é emergencial, mas
precisa ser acolhida. Assim, ao realizar o encaminhamento, o O apoio matricial diz respeito à responsabilização compar-
enfermeiro contribui para a redução da demanda reprimida. tilhada do cuidado e da construção conjunta de intervenções,
saberes e fazeres nos diferentes níveis assistenciais. Esta pro-
O que a gente consegue resolver a gente resolve, senão, a posta de arranjo organizacional permite a articulação entre
gente encaminha para algum outro lugar. [...] E com as os serviços, a comunicação entre os diferentes trabalhadores
unidades que estão tendo turno estendido agora, como o mediados por princípios inter e/ou transdisciplinar(18).
A interconsulta, como uma ferramenta do apoio matricial O encontro dos trabalhadores oferece visibilidade para a
objetiva a assistência e a ação pedagógica entre serviços necessidade dessas ações conjuntas e, além disso, a reflexão
de saúde, equipes de trabalhadores e usuários. Este meio para enfrentar o sucateamento dos serviços especializados
de trabalho ultrapassou seu sentido inicial de consultoria, que funcionam com a porta fechada e o acolhimento com
pois compreende uma ação ampliada, que abrange tanto a agendamento, o que, por vezes, pode-se considerar uma
assistência ao usuário quanto a equipe e instituição. Quando redução da ferramenta para dificultar o encaminhamento
desenvolvida no âmbito multidisciplinar permite que casos dos usuários esses serviços.
complexos sejam discutidos de forma mais integral, pois Os meios de trabalho identificados no processo de traba-
envolve intervenção conjunta e diversos trabalhadores, bem lho dos enfermeiros (coordenação da equipe, reuniões com
como permite que se tenha uma visão ampliada dos casos os demais componentes do território, os contatos telefônicos
assistidos e uma maior assistência pelas equipes de saúde(19). com serviços da RAPS; os encaminhamentos do usuário na
Observa-se nas falas dos trabalhadores que o apoio for- RAPS e o apoio matricial), em parte, ainda reproduzem o
necido fortalece um trabalho coletivo e maior segurança no pensamento de buscar serviços especializados que não os
tema da saúde mental, no entanto, enfrenta suas resistências coloquem como corresponsáveis pelo cuidado do usuário de
na dificuldade de compreensão ampliada da saúde mental saúde mental em seu território, voltando-se a eles (serviços
e participação de todos os membros da equipe. especializados) para discussão de casos e intervenções, cor-
roborando com a desarticulação na RAPS e na manutenção
Quando a gente começou a propor que a gente iria discutir de um cuidado manicomial, focado na doença.
os casos, ver o que era, estar discutindo com a equipe, teve Em contrapartida, há potencialidades nos meios de traba-
muita resistência. Então, os médicos se recusavam a par- lho utilizados pelos enfermeiros que indicam um movimento
ticipar do matriciamento, ficava muitas vezes, como até para tentativa de comunicações em rede e o cuidado territo-
agora, é focado no enfermeiro. [...] Quem se envolve com rial, buscando efetivar um trabalho coletivo, contrapondo o
matriciamento são pessoas que tem, de alguma forma, modelo biomédico para a construção e o fortalecimento da
uma escuta mais diferenciada na saúde mental. Então, tem RAPS. Este movimento se dá pela utilização de tecnologias
profissionais que detestam, que não gostam dessa coisa relacionais como o diálogo, o apoio entre trabalhadores,
de saúde mental, mas esses não são os profissionais que a a tentativa de ampliar o debate da saúde mental na rede.
gente matricia (E3).
Os casos que a gente não consegue dar conta aqui na unidade, CONSIDERAÇÕES FINAIS
a gente leva para o matriciamento no CAPS [...]. Normalmente,
quem fazia essa discussão era o médico, mas no período Nesta pesquisa se analisou os meios de trabalho do
estamos sem médico. A gente já teve outras vezes sem. Eu enfermeiro utilizados na articulação da Rede de Atenção
normalmente posso combinar com eles e levar os casos (E11). Psicossocial: coordenação da equipe, reuniões com os de-
mais componentes do território, contatos telefônicos com
O apoio matricial por meio da interconsulta necessita serviços da RAPS; encaminhamentos do usuário na RAPS e
efetivamente da participação coletiva dos diversos trabalha- apoio matricial.
dores presentes da RAPS. A organização e seleção dos casos Reflete-se que existe uma busca pela mudança de mode-
de saúde mental que serão matriciados fica sob responsa- lo, sentida na necessidade prática dos enfermeiros, em que sai
bilidade do enfermeiro e do médico da atenção básica que de um foco manicomial, centrado na doença e na exclusão
dividem essa atividade para organizar o processo de traba- social, para um modo psicossocial, que propõe o cuidado
lho da equipe. As discussões de caso da saúde mental, por em liberdade e organizado em rede. No entanto, ainda que
meio das interconsultas, são mais efetivas quando realizadas exista esse movimento de mudança e potencialidades para
com apreciações interdisciplinares, pois é possível ampliar a a articulação da RAPS, os enfermeiros enfrentam dificuldades
pluralidade de experiências e conceitos de saúde, identificar em um trabalho que gere uma corresponsabilização com-
os recursos da rede e as necessidades e possibilidades na partilhada entre toda a rede pelo processo de cuidado do
construção da articulação. usuário e seu retorno ao território, bem como, abordagens
A radicalidade do apoio matricial tem promovido uma para além da doença e especialidades.
trincheira de resistência para os trabalhadores fortalecerem É importante ressaltar que o contexto político atual indica
novas formas de construção das redes em saúde, em contra- caminhos para sucateamento e retrocessos no modo da
posição a hegemonia de coordenações antidemocráticas e atenção psicossocial focado no sujeito e suas complexidades,
do modelo biomédico, produzindo a integração e comparti- contribuindo para persistência ao modelo tradicional de
lhamento do cuidado entre as equipes de saúde da rede(20). psiquiatria embasado por ações restritas a medicalização,
diagnósticos, sinais e sintomas. Diante disso, conclui-se que 6. Ministério da Saúde (BR). Portaria Nº 3.588, de 21 de dezembro de 2017: Altera
os enfermeiros e equipes, apesar das limitações, criam possi- as Portarias de Consolidação no 3 e nº 6, de 28 de setembro de 2017, para dispor
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