Fátima Sarsfield Cabral é psicóloga e psicanalista. Trabalha, desde 1973, no Centro
de Saúde Mental Infantil e Juvenil do Porto, faz psicoterapia analítica e psicanálise a adultos e crianças. Estagiou em Paris sob a orientação do psicanalista Serge Lebovici. É membro titular e didata da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e membro titular da Sociedade Portuguesa de Psicodrama Psicanalítico de Grupo. É autora de diversos artigos sobre psicanálise e do livro Pensar a Emoção.
Pergunta – Qual a área de intervenção do psicólogo clínico?
Fátima S. Cabral – O psicólogo clínico intervém especialmente na área da saúde mental, englobando a prevenção, a intervenção ou o tratamento, a investigação e o ensino. As suas funções dependem fundamentalmente do tipo e do grau de aprofundamento da sua formação – formação que me parece dever ser contínua – e do facto de trabalhar sozinho ou numa equipa e do equilíbrio e dinâmica que se estabelecem nessa equipa. Mais concretamente, podemos dizer que a sua intervenção começa pela observação – a chamada observação psicológica. Esta observação é muito especial porque se trata de observar pessoas. Para esta observação, o psicólogo socorre-se muitas vezes de instrumentos – os chamados testes – que, por um lado, se podem ajudar muito no diagnóstico psicológico (por ex., aperceber-se das dificuldades específicas que uma criança pode ter na aprendizagem, apesar de ter um bom desenvolvimento intelectual), por outro, podem ser um entrave ou constituírem uma defesa ao estabelecimento de uma relação mais profunda que se constrói lentamente e sem “truques”. Portanto, ao estudo psicológico do indivíduo ou dos grupos, segue-se naturalmente a elaboração do diagnóstico psicológico – que deveria ser discutido e completado com o de outros técnicos da equipa (médicos, assistentes sociais, educadores, terapeutas) –, diagnóstico fundamental para a prevenção ou para a escolha do tratamento mais adequado à situação. O psicólogo clínico pode ainda fazer o aconselhamento psicológico individual, conjugal, familiar ou de grupo, intervir psicologicamente e fazer psicoterapia. Mas eu penso que os psicólogos, assim como todos os técnicos médicos ou não médicos, deveriam sempre continuar a sua formação após a licenciatura – que forçosamente dá uma formação muito geral – e escolher especializar-se numa ou noutra corrente de intervenção ou terapia que se adapte melhor à sua personalidade, percurso de vida e opções teóricas. Neste momento, em Portugal, são as várias sociedades clínicas que fazem essas formações, que passam quase sempre por o psicólogo sofrer – com aspas ou sem elas – a terapia que pretende aprender a fazer aos outros: Terapia familiar, comportamental, cognitivista, psicodrama, psicanálise, etc. P. – Que métodos e técnicas são mais usados na sua prática? F. S. C. – A prática, os métodos e técnicas que o psicólogo clínico utiliza dependem sempre da sua experiência e formação. Geralmente, começa-se pela observação, por conversar livremente com as pessoas, tentando estabelecer uma relação que permita a abertura e a confiança da criança ou do adulto em nós. Com as crianças, a observação do jogo simbólico, da maneira como utiliza os brinquedos, do desenho e da pintura livres são meios fundamentais para determinar o seu desenvolvimento e para compreender o que se passa no seu íntimo, já que raramente conseguem exprimir pela fala aquilo que sentem ou temem ou que as faz sofrer. Mas há também testes estandardizados e inquéritos que nos dão uma medida estatística – e como tal relativa e cega perante situações específicas – do nível de desenvolvimento intelectual ou de dificuldades mais específicas e que perturbam a aprendizagem, como as dificuldades na organização grafoperceptiva e na integração da lateralidade; outros ainda, como os projetivos – Família, Pata Preta, CAT, Fábulas de Duss, por exemplo –, podem-nos ajudar a obter mais rapidamente certos dados, certas fantasias, que podem mesmo ser inconscientes para a criança e que nos permitem intervir no alvo do problema. Um exemplo muito comum é a criança projetar nas figuras de animais o ciúme perante o nascimento de um irmão, sem, no entanto, jamais ter exprimido isso, de tal modo que os pais nunca o teriam notado. Isto faz-me pensar em como é importante que o psicólogo clínico não deixe de ligar os vários dados que obtém através desta observação que, apenas metodologicamente, é feita por zonas aparentemente compartimentadas – inteligência, afetividade, etc. A psicologia clínica tem evoluído muito e, hoje, dá-se uma enorme importância ao desenvolvimento e à relação precoces, pois, como dizia João dos Santos, é no berço que o bebé começa a aprender a ler, e muitos dos problemas futuros começam aí. Por isso, a área da relação precoce e do apoio à gravidez começa a ser uma das mais frutuosas para a intervenção do psicólogo. Entretanto, a minha prática foi-se modificando à medida que eu ia aprofundando a minha formação e os meus conhecimentos – e espero que assim continue... Bem, o que aconteceu foi que a corrente psicanalítica sempre foi a que me pareceu mais profunda, ligando a razão e a emoção e a que permitia compreender melhor o mundo interno. E, passado pouco tempo de terminar o meu curso e de começar a trabalhar no Centro de Saúde Mental Infantil do Porto, comecei a minha própria psicanálise e depois a formação para ser psicanalista de adultos e crianças. Considero que esta foi – para mim – a formação essencial, apesar de também ter feito formação em psicodrama e terapia familiar. Portanto, apesar de ainda utilizar – só com crianças – os testes psicológicos na observação para um diagnóstico rápido, uso sobretudo o método clínico, no sentido em que Piaget o utilizou, ou seja, para tentar compreender o funcionamento psíquico, não separando a inteligência do afeto e estes do ambiente familiar e escolar. Utilizo cada vez menos instrumentos, sendo o principal a análise daquilo que vou sentindo na relação entre mim e a criança, adulto ou grupo. Evidentemente que isto pressupõe uma atitude de grande disponibilidade para receber as projeções que o outro ou os outros não suportam ou desconhecem e depositam no terapeuta, e uma formação contínua, supervisão ou discussão em pequenos grupos de trabalho, que ajudem a destrinçar as fantasias que pertencem ao terapeuta – um outro ser humano, talvez mais fortalecido e interiormente mais livre e disponível pela sua própria análise – e que o ajudem a pensar para poder devolver de uma forma mitigada aquilo que foi projetado, de maneira a poder ser digerido pela criança, adulto ou família, possibilitando-lhes o crescimento e a conquista da autonomia e da criatividade. P. – Quais as problemáticas da sociedade contemporânea que justificam a intervenção do psicólogo clínico? F. S. C. – Essa pergunta faz-me sorrir porque pus-me a imaginar uma sociedade que não precisasse de psicólogos... Se calhar só o nome, as técnicas e os conhecimentos é que são modernos… Sempre houve feiticeiros, curandeiros, bruxas, diretores espirituais, etc., etc., para ajudar o ser humano a suportar o sofrimento provocado pela sua condição de ter dentro de si algo que o aparenta aos deuses – um mundo infinito de fantasia – e de se saber condenado à morte e à separação. De qualquer maneira, o que se verifica é que quanto mais complexa é a sociedade maiores tensões existem, maior é a competição desenfreada, a violência e a exclusão. E não é por acaso que tanto se fala na falta de comunicação que existe na nossa sociedade, a par da enorme sofisticação dos meios de comunicação social que, paradoxalmente, parecem isolar cada vez mais o ser humano, tentando “normalizá- lo” e afastando tudo o que é diferente. A psicologia e os psicólogos têm aqui um enorme campo de ação, tanto na prevenção como na intervenção junto do indivíduo e dos grupos. P. – Que questões éticas se colocam na sua ação como psicóloga? F. S. C. – Há bocado falávamos da relação do psicólogo clínico como uma relação com o mais íntimo das pessoas. Evidentemente que isso põe imediatamente questões éticas e não só pela importância do segredo profissional. Este levanta muitas questões sobretudo quando se trabalha com crianças que nos são enviadas pela escola e os professores querem saber o que se passa para perceber melhor o aluno. Mas há sempre o risco – se se passarem certas informações – de a criança ser estigmatizada. Há uns estudos muito interessantes que mostram que, se se diz aos professores que certos alunos têm mais capacidades que outros – sem ser verdade –, isso vai influenciar significativamente – e inconscientemente – o seu interesse pelos que pensa serem os melhores, de tal modo que as suas capacidades aumentam significativamente. Considero extremamente importante a atitude do psicólogo cujo trabalho é o de aceitar o outro como ele é, respeitá-lo e ao seu sofrimento, compreendê-lo, enquanto, simultaneamente, vai favorecendo a sua autonomia e capacidades criativas. Muitas vezes as pessoas estão muito fragilizadas e é extremamente fácil manipulá-las. Mesmo que um terapeuta não dê conselhos, o paciente apercebe-se muitas vezes daquilo que agrada ou não ao terapeuta, se este não for tolerante. Muitas críticas que se fazem às terapias é o de elas tentarem adaptar as pessoas, tornando-as conformistas e dependentes. Mas o objetivo de uma terapia – para mim – só pode ser o de ajudar o outro a ser o que é, a fortalecer-se para saber escolher o caminho que quer seguir e a tolerar melhor as diferenças, a separação e o sofrimento que sempre acontece na vida real. Ouvi muitas vezes as pessoas manifestarem o seu medo das terapias por poderem ficar dependentes do terapeuta; é verdade que há um período em que o terapeuta é fundamental e a pessoa se sente afetivamente dependente dele; mas esta dependência acontece porque já existia ou porque a pessoa necessitava dela para se tornar mais segura e finalmente autónoma. P. – Conte-nos um caso significativo da sua experiência profissional. F. S. C. – É difícil escolher… Acho sempre muito interessante ver como o trabalho com os pais, ou muitas vezes só com a mãe, pode alterar tanto o comportamento dos filhos, pode fazer desaparecer a impossibilidade de dormir só, ou a enurese, ou as crises de raiva. Mais uma vez isto nos mostra como a criança pode ser o sintoma do que não vai bem na família ou com um dos pais, da própria dificuldade de separação destes dos filhos, da dificuldade em os deixar crescer ou da violência das projeções em certas famílias. Um caso muito bonito que tenho neste momento é o de uma criança que, embora com perto de 5 anos, tinha um comportamento semelhante ao de uma de 2, pronunciando apenas alguns sons, sem, no entanto, ser autista nem me parecer débil mental. Parecia-me mais que o seu desenvolvimento tinha parado – talvez na altura do nascimento de um irmão. O que mais me tocava era a nostalgia do seu olhar, o facto de nunca sorrir e a angústia da separação. Ao fim de seis meses de psicanálise, com três sessões por semana, em que o jogo principal e repetitivo tem sido o de se esconder para eu a procurar, a sua transformação é enorme: alegre, brincalhona, terna e também capaz de mostrar a sua agressividade, já diz frases completas e interessa-se por livros e histórias. Claro que a sua terapia está longe de terminar e que nem sempre é assim tão rápido o desbloqueamento de uma situação. Mas uma das terapias que mais gosto de fazer – e que resultou de uma profunda reflexão, feita por um pequeno grupo de técnicos com formação analítica, sobre a importância da expressão criativa através do jogo e da pintura livres, da dinâmica de grupo, do período de latência e da técnica psicanalítica – é a dos grupos de psicoterapia analítica com crianças entre os 6 e os 11 anos. Nestes grupos, não mistos, os rapazes ou as raparigas mais novos (6/8 anos) podem exprimir os seus medos, fantasias ou desejos através de jogos, histórias ou teatros, e os mais velhos (9/11 anos) através da pintura livre. Mas, para além da expressão através do jogo e da pintura, é dada grande importância à palavra e à interpretação do que é dito de uma forma ou de outra. Todo o grupo é tomado como a expressão do mundo interno, em que há partes mais maduras, outras mais “abebezadas”, outras medrosas, outras deprimidas, outras invejosas ou ciumentas, etc., etc., que, como num sonho, são o espelho do que se passa no teatro interno de cada indivíduo. O facto de serem grupos só de rapazes ou de raparigas reforça e ajuda muito à consolidação da identidade sexual neste período da latência. Além disso, os pais destas crianças (sobretudo as mães) têm, à mesma hora do grupo dos filhos e com outro terapeuta, uma reunião para discutirem problemas que têm com os filhos mas que, rapidamente, se transforma numa terapia de grupo. Verificámos muito depressa quanto as mudanças nos filhos e nos pais estavam interligadas e como as transformações se davam mais rapidamente… A grande maioria destas crianças aparece-nos com dificuldades escolares, medos, inibições, mutismos e outros sintomas; ao fim de algum tempo de terapia – e, às vezes, com grande espanto dos pais e professores, “porque só estavam ali a brincar e não a estudar” –, começam a ter um novo interesse pela vida, a ter menos medo de crescer e a tolerar melhor a dor mental inerente às perdas consequentes, a ter um bom rendimento, a ser capazes de se afirmar e a ser mais criativas.