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As Cidades e os Muros

Carlos Vogt
I

As cidades, em sua tendência progressiva ao gigantismo, são produto da revolução


industrial, em particular da chamada revolução científico-tecnológica, ocorrida na segunda metade
do século XIX e que configuraria o mundo, já na passagem para o século XX, tal qual hoje o
conhecemos: a eletricidade, os derivados do petróleo, os veículos a motor de combustão interna, as
indústrias químicas, os transportes urbanos, interurbanos e intercontinentais, o rádio, a fotografia, o
cinema, o fonógrafo, mais tarde, na década de 20, a televisão e os grandes parques de diversão e
lazer destinados ao entretenimento de uma população de trabalhadores, cada vez maior nas cidades,
vivendo das novas formas de trabalho próprias da economia industrial.
A consolidação dos princípios neoliberais da economia - cujo fundamento tecnológico viria
a ser dado pela microeletrônica e por suas amplas aplicações, inclusive no domínio das tecnologias
da informação, fundamentais para o processo de transnacionalização dos interesses do capital
financeiro, fenômeno que passou a ser conhecido como globalização - não fez senão, na chamada
era pós-industrial, acentuar e acelerar esse processo de migração e de concentração urbana.
De fato, estamos, pela primeira vez na história da humanidade, na iminência de vermos, nos
próximos anos deste início de século, a população das cidades superar a população do meio rural,
sendo que, em 2025, segundo projeções da ONU, essa inversão já mostrará um índice populacional
de 61% concentrado em espaços urbanos.
Em 1950, não havia no mundo mais do que 7 cidades com população superior a 5 milhões
de habitantes; hoje, são dezenas. Havia apenas 100 cidades com mais de 1 milhão de habitantes;
hoje, elas se multiplicaram a ponto de, em 2025, de acordo com a ONU, terem uma previsão de
527, e o que é pior, a grande maioria localizada em países subdesenvolvidos ou em
desenvolvimento.

II

Mas pior por quê?


Pela razão simples de que o que é grave em megacidades, como Nova Iorque, Londres,
Paris, Tóquio, que são também cidades globais, na nova conceituação do urbanismo
contemporâneo, torna-se mais grave em cidades como São Paulo, ou México, também globais e de
populações gigantescas, mas fora dos centros de concentração da riqueza e na franjas da periferia,
com concentração de vidas e dos problemas típicos do individualismo exacerbado desse mundo de
concorrência e competição perversas, cujo casal fundador, nos anos 1980, habitantes do paraíso
terreal anglo-saxão, era formado por Ronald Reagan, então presidente dos EUA e Margareth
Thatcher, então primeira-ministra da Grã-Bretanha.
Greed is good ("Ganância é bom")!
Quem não se lembra do slogan publicitário da política da dama de ferro, com aliteração,
função poética e demais apetrechos de linguagem, que deixariam o velho Jakobson, um dos pais da
lingüística moderna, orgulhoso de suas descobertas?
Pobreza crescente, desemprego, exclusão, violência, criminalidade, desespero, imobilidade
social, legados de desesperança de pais para filhos, de geração para geração, incapacidade de
intervenção do Estado na formulação e na orientação de políticas públicas fortes e eficazes nas
áreas sociais e culturais, por ter cedido às corporações empresariais o salvo-conduto permanente da
livre circulação de seus interesses focados no lucro, na circulação do capital financeiro e na
concentração da riqueza produzida, numa escala jamais vista.
O Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU, criado em 1990 e que traz indicadores
diversos, além dos econômicos, sobre o tema, apontava, em sua edição de 2000, uma fortuna de
1.113 trilhão de dólares, acumulado nas mãos de apenas 200 pessoas em todo o planeta. Este

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reduzido universo de distinguidos aumentou em apenas 100 bilhões de dólares sua fortuna de um
ano para o outro. Querem mais! Greed is good!
Por mais que aumente a riqueza no mundo, sua divisão diminui e o seu volume se concentra.
Basta considerar o fato de que, nos países periféricos emergentes, em desenvolvimento, ou que
eufemismo se queira usar para caracterizá-los relativamente aos países ricos, a renda total da soma
de toda sua população mal chega a 10% do acumulado sob o controle daqueles 200 poderosos.
Em São Paulo, por exemplo, onde convivem aspectos próprios das megacidades, entre eles o
da superpopulação e de qualidade de vida daí decorrente, com características de cidades globais
(centro de poder e de decisão regional e internacional, na geografia política traçada pela economia
mundializada), nessa cidade de quase 20 milhões de habitantes, em sua região metropolitana, o
desemprego, segundo dados do SEADE/DIEESE, do IBGE e da Secretaria do Desenvolvimento,
Trabalho e Solidariedade, da Prefeitura do Município, aumentou de 12,2% da população
economicamente ativa, em 1985, para 17,6%, em 2001. No mesmo período, o tempo de procura de
emprego subiu de 25 para 50 semanas, a renda média das pessoas ocupadas no setor formal e no
informal caiu 21,9%, entre 1995 e 2001, sendo que, só na capital, de 1991 para 2000, aumentaram
em 20% (de 492 mil para 589 mil) os chefes de família vivendo abaixo da linha de pobreza, e em
150% (de 124 mil para 311 mil), aqueles sem rendimento.
Mas a produção da riqueza, mesmo com os sobressaltos por que passou a economia
brasileira e os problemas estruturais que continua a apresentar, não deixou de crescer, ainda que
modestamente.
O que efetivamente não cresce é a sua divisão, o que nos distancia cada vez mais do Estado
de Bem Estar Social que tão bem caracterizou as utopias compensatórias das sociais-democracias,
sobretudo nos anos 60 e 70, embora cá pelo Pindorama e pela Latino-América, em geral,
vivêssemos o pesadelo político de sombrias ditaduras.

III

O crescimento descontrolado das cidades, a migração constante e maciça do campo para o


meio urbano, desacompanhada de planejamento e de políticas sociais consistentes e eficazes, tudo
isso, sobre o fundo perverso de uma distribuição de riqueza avarenta e mesquinha, reforça a
tendência que aponta para grandes aglomerações humanas com fossos internos e externos, urbanos,
metropolitanos, regionais e internacionais, traçando ilhas de desigualdades crescentes e distribuídas
por desertos áridos de terras erodidas, física, social e culturalmente: Nova Iorque é uma megacidade
e uma cidade global, com uma renda per capita de 12 mil e 420 dólares; Lagos, na Nigéria, cuja
renda per capita é de 68 dólares, deverá, em 2015, segundo projeções, ser a maior cidade do mundo
ocupando populacionalmente, o lugar que hoje pertence a São Paulo.
O Relatório de Desenvolvimento Humano da Organização das Nações Unidas traça bem o
mapa dessa erosão progressiva, desenhando, em números, o sentimento trágico da terra devastada,
do poema famoso de T.S. Eliot, com suas profecias do fim apocalíptico:

"Torres cadentes
Jerusalém Atenas Alexandria
Viena Londres
Irreal..."

Em 1820, a diferença de renda entre países ricos e países mais pobres era de 3 para 1; na
década de 1970, já era de 44 para 1 e hoje a renda é cerca de 80 vezes maior nos países
desenvolvidos.
Há continentes, quase que inteiros, como a África, em estado de desolação profunda e
tratados como resíduos da fatalidade triunfante do individualismo liberal.
As cidades tendem a aglomerar pobreza, dor, sofrimento e abandono.

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No Brasil, a geografia da fome muda o seu traçado e povoa de recortes dramáticos a vida
das populações urbanas, trazendo para o coração da riqueza do país as condições de miserabilidade
de seus filhos deserdados pela desesperança da estagnação social.
É este o sentido, por exemplo, da reportagem da revista Época (Ano IV, nº 197, de
25/02/2002, p. 86-91) sobre os novos pobres brasileiros e os espaços geográficos e sociais de sua
multiplicação nos grandes centros urbanos, como São Paulo.

IV

Os cenários não são promissores, mas as razões de sua existência tampouco são metafísicas
e intangíveis. Ao contrário, são bem concretas, reais e de materialidade histórica não duvidosa.
É possível, pois, conter a turbulência dessas águas pseudo-humanistas e pseudo-novo-
renascentistas que espalham erosão e devastam o planeta, o seu meio ambiente, a natureza, as suas
sociedades, a cultura, os seus habitantes, as suas populações, os seus indivíduos, o homem, a vida.
Tentativas se fazem, mas são ou paliativos para a pirotecnia da mídia e do espetáculo,
promovidos pelos próprios agentes concentradores para desconcentrar as massas de deserdados nas
grandes concentrações de pobreza em que vão se transformando as cidades, ou são sinceramente
ineficazes, quer pela grandeza do poder que pretendem atingir, quer pela organização incipiente e
ainda frágil que a surpresa da nova situação instala nos olhos assustados dos que não conseguem,
pelo inusitado, formular sequer as perguntas adequadas à condução de seus destinos dos de suas
famílias, sem falar das gerações futuras e de seus descendentes, para quem o legado de
desesperança e de imobilidade social é assinado no momento mesmo de seu batismo ou de seu
registro em cartório.
Há movimentos locais, regionais, nacionais e internacionais que buscam, pela criação de
redes, com nós de interesses comuns, fortalecer a resistência e a luta civil contra os abusos da
riqueza concentrada e contra a omissão dos Estados, minimizados em suas funções de agente
investidor do bem e da justiça social.
O Fórum Social de Porto Alegre é um deles e se o seu foco, muitas vezes, se desvia para o
anedótico e o espetaculoso, nem por isso perde em importância a afirmação dos intervalos de
humanização que é preciso continuar abrindo no sistema de homogênea indiferença com que a
economia globalizada e o individualismo neoliberal tendem a tratar a sociedade, a cultura e a
cidadania, diluindo-os na dimensão plana e rasa do consumo e da mercadoria.
Goebbels, o famigerado e sombrio ministro da propaganda e da informação de Hitler, dizia,
resumindo a prepotência da razão política nazista que pretendia dominar, no mundo, corações e
mentes: " - Quando ouço a palavra cultura, saco meu revólver".
Barbara Krueger, atualizando essa pérola histórica da sabedoria das nações, faz, em 1985,
uma paródia da brutalidade impositiva do ministro nazista, com a seguinte sacada:
" - Quando ouço a palavra cultura, saco meu talão de cheques".
A passagem que aqui se faz de um dito para o outro é a que percorre a longa distância entre
a afirmação autoritária da ditadura política, no primeiro caso, para a denúncia criativa e livre da
ditadura econômica que vai se instalando nos anos 80, com os governos Reagan - Tatcher,
principalmente, e depois se consolida pelo mundo todo com o fim da União Soviética, o fim da
Guerra Fria e, no campo do simbólico, mais do que em qualquer outro lugar do imaginário político
e social contemporâneo, com a queda do Muro de Berlim, que derrubado, fisicamente, não só
reunifica a Alemanha e consolida a hegemonia política dos EUA no mundo, como também espalha,
dos escombros, linhas divisórias, marcos, fossos, muros de segregação e exclusão social por toda
parte.
A cultura transformada em consumo engendra as condições para que o próprio
conhecimento se torne mercadoria e não é por acaso que expressões como "capital de
conhecimento" ou "sociedade do conhecimento" passem a designar conjuntos de saberes práticos e
tecnológicos que possam ser mesurados em termos de valor agregado e possam competir em termos
de produtos no mercado.

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V

É, pois, importante que haja uma nova ideologia libertária em relação à ditadura da
economia, a ser empreendida e levada adiante, se quisermos lutar pela utopia da cidade de nossa
infância, onde brilha nossa pátria e, como apontou Ernst Bloch, lugar onde ninguém jamais esteve.
Lutar por essa cidade invisível é saber, desde logo, como assinala Italo Calvino, a propósito
de uma de suas cidades contínuas, que o resultado é o seguinte: "Quanto mais Leônia expele, mais
coisas acumulam; as escamas do seu passado se solidificam numa couraça impossível de se tirar;
renovando-se todos os dias, a cidade conserva-se integralmente em sua única forma definitiva: a do
lixo de ontem que se junta ao lixo de anteontem e de todos os dias e anos e lustros. A imundície de
Leônia pouco a pouco invadiria o mundo se o imenso depósito de lixo não fosse comprido, do lado
de lá de sua cumeeira, por depósitos de lixo de outras cidades que também repelem para longe
montanhas de detritos. Talvez o mundo inteiro, além dos confins de Leônia, seja recoberto por
crateras de imundície, cada uma com uma metrópole no centro em ininterrupta erupção. Os confins
entre cidades desconhecidas e inimigas são bastiões infectados em que os detritos de uma e de outra
escoram-se reciprocamente, superam-se, misturam-se. Quanto mais cresce em altura, maior é a
ameaça de desmoronamento: basta que um vasilhame, um pneu velho, um garrafão de vinho se
precipitem do lado de Leônia e uma avalanche de sapatos desemparelhados, calendários de anos
decorridos e flores secas afunda a cidade no passado que em vão tentava repelir, misturado com o
das cidades limítrofes, finalmente eliminada - um cataclismo irá aplainar a sórdida cadeia
montanhosa, cancelar qualquer vestígio da metrópole sempre vestida de novo. Já nas cidades
vizinhas, estão prontos os rolos compressores para aplainar o solo, estender-se no novo território,
alargar-se, afastar os novos depósitos de lixo."
É preciso não fechar e manter vivos os caminhos que nos levam, pela memória, aos lugares
sagrados da experiência única e individual de nossa infância para não perdermos a força mágica que
nos solidariza com a natureza e com a sociedade.
Não podemos permitir que se destruam os santuários que, assim, surgiram, por esses
caminhos e que fazem ressurgir, como escreveu Cesare Pavese, "na memória do homem os lugares
da infância, aos quais se ligam acontecimentos que lhe emprestam o caráter único e que os
distinguem do resto do mundo por este selo mítico".

Que as cidades não sejam clausura da memória!

Atualizado em 10/03/2002
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