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Mestrando em Ciência da religião pela UFJF. Graduado em Psicologia. Linha de pesquisa: Simbologia
religiosa. E-mail: marcel_symbols23@hotmail.com.
Sapere aude – Belo Horizonte, v. 7 – n. 12, p. 531-540, Jan./Jun. 2016 – ISSN: 2177-6342
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Marcel Henrique Rodrigues
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Comunicação: Melancolia I de Dürer: uma análise heideggeriana
Heidegger afirma que a noção de que ser e ente são distintos, entretanto, não são
separados. A preocupação central de Heidegger é com a questão do ser, anterior a qualquer
ciência. É justamente nessa busca pelo ser, anterior a qualquer ente, que o estudioso alemão
chega à questão do Dasein, interpretado como ser-aí do homem que nós somos. É necessário,
neste momento, que exploremos o conceito de Dasein proposto por Heidegger. Quanto à
tradução do Dasein, temos:
Através da existência humana Heidegger procura uma abertura até o ser. Para
apresentar uma prova de que tal caminho é possível, recorre a uma nova linguagem.
Daí o conceito de Dasein, que é resultante de dois elementos, uma palavra composta
(Da-sein), “da” que significa “ai” e “sein” que significa “ser”. Portanto Da-sein
significa a existência e o ser-que-está-aí, ou ainda como outros interpretam:
presença. Ou seja, a análise do Dasein é análise da existência e do ser. (DUARTE;
NAVES, 2011, p. 64).
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infinitude de Deus, do caráter eterno de Deus, ao passo que Heidegger abandona esta
perspectiva teológica e pensa a angústia apenas como fenômeno existencial da
finitude humana. (WERLE, 2003, p. 104-105).
Essa noção de angústia, além de ser um dos temas centrais em Heidegger, também
deve receber a devida centralidade nesta discussão, pois é na melancolia, proposta na gravura
de Dürer, assinalada na figura dos anjos, que podemos propor um paralelo entre a angústia
existencial, defendida por Heidegger e a melancolia, esboçada por Dürer.
Richir (2013, p. 477) que estudou a relação entre a melancolia e a angústia, comenta
sobre o Dasein e sua noção de abertura. Com efeito, o ser humano é um ser aberto às
possibilidades de existir, uma vez que ele é livre para decidir como deseja construir a sua
existência. Assim, a existência oferece várias possibilidades de ser, ou seja, somos seres de
abertura, podemos dar sentido a nossas vidas através dessas possibilidades. O Dasein está
aberto, ele pode construir a sua existência. É nessa abertura de diversas possibilidades de ser
que o Dasein pode entediar-se, sendo essa uma característica da melancolia, chegando mesmo
a uma noção de angústia.
Essa abertura de possibilidades parece que está nítida na gravura que estamos
analisando. Vemos duas figuras, semelhantes a dois anjos, cercados por utensílios de precisão
Matemática, o que pode nos indicar a noção de Ciência exata e, em segundo plano,
assinalamos a existência de alguns símbolos místico-religiosos, como o “quadrado mágico” e
o sol se pondo. Desse modo, é possível supor que há duas possibilidades para o ser construir e
fornecer sentido para a sua existência: de um lado temos o sentido científico e de outro, o
sentido religioso.
Essa nova hermenêutica para a gravura pode fazer sentido se analisarmos o contexto
do início do século XVI, período em que a gravura foi entalhada. Nesse período a Ciência
começa a ganhar autonomia e se desvencilhar, mesmo que lentamente, das amarras do
religioso.
É possível dizer que, grosso modo, existem mais utensílios de cunho matemático-
exato, daí uma referência ao científico do que símbolos propriamente religiosos. Seria então
esta gravura uma referência à superação da religião em favor do científico? Se a resposta
fosse positiva, estaríamos, na linguagem de Heidegger, afirmando que a possibilidade de
existência do Dasein estaria se pautando em argumentos de cunho científico, ou seja, a
questão pelo sentido do ser estaria contida dentro da própria Ciência. Mas aqui surge uma
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nova pergunta: se o universo da Ciência fornece respostas para as questões existenciais para
as duas figuras angelicais, por que ainda estão esboçando sinais de insatisfação e de tédio?
Podemos responder a essa questão dentro da própria abertura do Dasein, que sempre
colocará o seu ser em questão.
Se as Ciências exatas fornecem sentido para o Dasein, como tem demonstrado a
gravura e sendo o mesmo marcado pela existência e aberto a inúmeras possibilidades, as
Ciências exatas podem não responder a todas as questões existenciais das duas figuras
angelicais. Assim, elas esboçam características de tédio ou, em termos da filosofia de
Heidegger, de angústia.
Ademais, devemos notar que as figuras são angelicais, sendo então símbolos religiosos
e, ao que tudo indica, podem simbolizar, através de uma alegoria, o próprio espírito do
homem do século XVI, que se encontrava influenciado pelas reformas religiosas e pelas
revoluções científicas do seu tempo.
Neste momento é possível afirmar que, em termos hermenêuticos, ao estudar a
mencionada gravura de Dürer na linha da filosofia de Heidegger, estamos esboçando o que
seria a psicologia do homem europeu do início do século XVI. Assim, a melancolia seria, em
outros termos, a angústia que perpassava a mentalidade do homem da época que, ao buscar
respostas pelo seu ser, deparava-se com respostas circunscritas ora no campo religioso, ora no
campo do científico, privando o Dasein de sua característica essencial, a liberdade.
Duarte e Naves (2011, p. 71) articulam a ideia de liberdade do Dasein. Essa liberdade
só é possível graças as possibilidade de abertura do próprio Dasein. Ele pode escolher como
deseja existir, por isso, é livre.
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Nesse ponto de vista, é possível mencionar que tanto as respostas fornecidas pelas
Ciências bem como pela religião, são insuficientes para aplacar a melancolia que toma conta
do estado de ânimo das figuras aladas. As respostas fornecidas para a questão da existência do
Dasein, tanto pelo campo religioso, como o campo científico, limitam as possibilidades do ser
em duas áreas do conhecimento. Desse modo, o homem que é um ser de possibilidades,
aberto a novas experiências, se angustia frente à limitação de respostas, ou possibilidades,
fornecidas, no caso, pela Ciência e pela religião.
Como menciona Duarte e Naves (2011, p. 71), o homem se angustia simplesmente por
ter seu Dasein lançado no mundo. De fato, o homem que é lançado no mundo encontra uma
teia de possibilidades para ocupar com o Dasein e fugir da angústia existencial, porém, em
certo momento de sua vida, o homem questionará pelo sentido de sua existência, o sentido do
seu ser e, se situando em um mundo de possibilidades, como as possiblidades científicas,
religiosas e artísticas, elegerá a possibilidade que melhor responda suas questões. Mas, não
raro, essas possibilidades são limitadas e não corresponde à totalidade de abertura do ser.
Assim sendo, a angústia, o elemento mais autêntico da existência humana, toma conta do
espírito do indivíduo, que pode vir carregada com características de medo.
Entre temor e angústia, portanto, existe uma diferença precisamente no fato de que a
angústia é mais ampla que o temor. Como já assinalamos, o temor é direcionado a
um ente determinado da nossa existência; já o objeto da angústia não tem um objeto
determinado. Na angústia, enquanto disposição fundamental, não se sabe, diante de
que nos angustiamos, ela passa a apresentar-se na medida em que em meio às
ocupações do cotidiano, sobrevém certo tédio. E nenhum ente é possível encontrar
apoio para nos tirar tal desconforto, pelo contrário uma vez que há procura por
conforto, o Dasein lança-se desenfreadamente no contato com as coisas, quando a
angústia se intensifica. O Dasein sente-se cada vez mais estranho na angústia.
(DUARTE E NAVES, 2011, p. 73).
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A noção da não existência de um objeto claro que instala a angústia, o não saber os
motivos pelos quais se angustia, também está presente em Melancolia I. Com efeito, essa
noção da inexistência do objeto pelo qual se angustia, pode ser compreendida pelo próprio
cenário em que as duas figuras angélicas estão inseridas. Esse cenário marcado pela desordem
dos instrumentos de precisão geométrica. Tal desordem, ao que tudo indica, ocorreu pelo
intenso uso dos instrumentos, que não lograram resultados satisfatórios que respondessem as
questões existenciais promovidas pelo Dasein.
É essa angústia, sem objeto claro pelo qual se angustia, que o homem se depara com as
questões sobre o valor positivo da angústia, sobre liberdade, autenticidade e inautenticidade.
Na angústia, o Dasein se percebe cada vez mais estranho, sua existência se confronta
com o ser-para-a-morte e ao mesmo tempo em que se angustia, ele percebe que é um ser de
abertura, um ser livre que pode escolher os caminhos que pode trilhar e buscar o sentido para
seu Dasein, o seu ser-aí. Nesse sentido, encontramos, com lembram Duarte e Naves (2011 p.
72), o lado positivo do fenômeno da angústia, pois é frente à angústia que o sujeito busca,
através da liberdade que lhe compete, novas possibilidades para dar sentido ao seu Dasein.
No momento em que o homem percebe a grande gama de interpretações que o mundo
e a sociedade possibilitam, ele se dispõe a dar sentido ao ser. Aqui, segundo Heidegger (2012,
§27), submergem duas condições: a de autenticidade e inautenticidade. Werle classifica a
inautenticidade nas seguintes palavras: “a existência inautêntica, ou seja, o homem no
cotidiano se mantém numa situação de encobrimento de seu ser, possui uma interpretação
errônea de sua própria existência, que se mantém para ele encoberta” (WERLE, 2003, p. 100).
Em outras palavras, enquanto o Dasein está preocupado com os entes, ele acaba por assumir
opiniões, sentenças e “verdades” preestabelecidas pela sociedade, deixando de lado a sua
autenticidade, que possibilitaria a si-próprio responder e refletir sobre seu próprio sentido do
ser. O homem, não raras vezes, deixa de viver de maneira autêntica para viver a
inautenticidade do mundo com suas respostas preestabelecidas.
Como menciona Werle (2003 p. 102), viver na inautenticidade é assumir o sentido do
outro, é o preocupar com o outro deixando de viver e esquecendo-se do verdadeiro sentido de
sua própria existência.
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século XX, havendo, portanto, a necessidade de equilíbrio através do diálogo, como proposto
por Barbour (2004 p. 221) entre Ciência e religião que, ainda no século XXI, se encontram e
convergem em respostas pelas questões existenciais que submergem do âmago do ser
humano.
Com essa finalização, podemos apontar que a mensagem deixada em Melancolia I não
apenas circunscreve-se ao período do século XVI, pelo contrário, permanece com significado
bastante atualizado e que se encaixa perfeitamente no cenário do século XXI.
REFERÊNCIAS
BARBOUR, Ian. Quando a ciência encontra a religião. São Paulo: Cultrix, 2004.
RICHIR, Marc. La melancolía de los filósofos. Revista Eikasia. 47, 2013. Disponível em:
www. revistadefilosofia.com/47-24.pdf . Acesso em: 03 jan. 2016.
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