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publicação da Pós-Graduação

em Comunicação e Cultura
v. 10, n. 2, julho-dezembro de 2007

3
Revista ECO-PÓS é uma publicação semestral da Pós-Graduação em
Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da UFRJ, dedicada à análise
do papel da comunicação e da cultura no mundo contemporâneo.

Av. Pasteur, 250 - Campus da Praia Vermelha


22290-240 - Urca - Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Coordenador da Pós-Graduação da ECO/UFRJ: Micael Herschmann


Editores: Ana Paula Goulart Ribeiro e Suzy dos Santos

Conselho Científico:
Angela Prysthon, Brasil - Anibal Ford, Argentina - Antônio Albino Rubim, Brasil -
Antônio Fatorelli, Brasil - Antônio Fausto Neto, Brasil - Antonio Gutiérrez, Espanha -
Arlindo Machado, Brasil - Carlos Alberto M. Pereira, Brasil - Denilson Lopes, Brasil -
Denis de Moraes, Brasil - Enrique Bustamante, Espanha - Fernando Andacht, Uruguai -
Fernando Contreras, Espanha - George Yúdice, EUA - Henri-Pierre Jeudy, França - José
Rabello, Portugal - Lorraine Leu, Inglaterra - Luciano Arcella, Itália - Nízia Villaça,
Brasil - Sergio Dayrell Porto, Brasil - Stuart Hall, Inglaterra

Design da capa: Paula Wienskoski


Design do miolo: Maria Cecília Castro
Revisão: Elizabeth Lissovsky
Logotipo da Pós-Graduação: Márcia Cabral

Apoio: Núcleo de Imprensa - ECO


Data de circulação deste número: 05 de dezembro de 2007
Tiragem: Aproximadamente 1.000 exemplares

Essa Revista é comercializada na sua versão impressa e eletrônica pela E-Papers


(www.e-papers.com.br) e distribuída no Brasil e no exterior.
Revista indexada pelo Qualis/CAPES.

Revista ECO-PÓS / UFRJ - Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Escola


de Comunicação - Vol.10, n.2 (2007) - Rio de Janeiro: ECO/UFRJ 2007 -

Publicação semestral

ISSN 0104-6160
326 p.

1. Comunicação - Periódicos. 2. Cultura - Periódicos.


I. Brasil, Universidade Federal do Rio de Janeiro
CDD 302.2

4
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v. 10, n. 2, jul-dez 2007

6
editorial .................................................................................................... 09
nota de conjuntura
. Gaelle Rony – Turquia: um teste para a Europa. Identidades européias
e identificações nos discursos midiáticos turcos, belgas e franceses.................. 13

dossiê – Comunicação & Melodrama


. Maurício de Bragança – Melodrama:
notas sobre a tradição/tradução de uma linguagem revisitada .......................... 29
. Paula Guimarães Simões e Vera França – Telenovelas, telespectadores
e representações do amor ...................................................................... 48
. Ana Lúcia Enne – O sensacionalismo como processo cultural .................... 70
. Claúdia Mogadouro – A telenovela brasileira: uma nação imaginada .............. 85
. Mariana Baltar Freire – Engajamento afetivo e as performances
da memória em Um Passaporte Húngaro ................................................... 96
. Márcia Franz Amaral – Oh, meu Deus!
Manchetes e singularidades na matriz jornalística melodramática .................... 113
. Marina Caminha – O mundo cotidiano de Retrato Falado:
diálogos com a telenovela ................................................................................................. 128
. Clara Fernandes Meirelles – Melodrama, gênero dramatúrgico
e linguagem televisiva ......................................................................................................... 146

entrevista – Pesquisando a telenovela no Brasil


. Maria Immacolata Vassalo Lopes .................................................................................. 162
perspectivas
. Juan Calvi – A indústria da música na Espanha e a “pirataria musical” ............. 169
. Alexandre Sebastião Ferrari Soares – O discurso jornalístico e seus rituais......... 181
. Marianna Taborda – De consumidor a co-produtor: o potencial
das redes sociais .................................................................................................................... 197
. Henrique Codato – O desejo como lei: uma análise do cinema de Pedro Almodóvar.... 212
. Carolina Dantas de Figueiredo – Poder e Comunicação: um breve debate
sobre a questão do poder nos meios de comunicação de massa ................................ 233
. Cláudio Clécio Vidal Eufrausino – O drama dos personagens de X-men
como um novo caminho para compreender a noção jamesoniana
de identidade esquizofrênica ............................................................................................. 248
. Fernanda Cupolillo Miana de Faria – “Que a justiça seja feita”:
a dinâmica do esforço X recompensa no Caldeirão do Huck ................................ 264

portfólio
. Projeto Obitel e ficção televisiva no espaço ibero-americano ............................. 280
resenhas
. Igor Sacramento – O telejornal de Bart e Lisa Simpson
(TRAVANCAS, Isabel. Juventude e televisão.) .......................................................... 293
. Alzira Alves de Abreu – O jornalismo carioca em debate (RIBEIRO, Ana Paula
Goulart. Imprensa e historia no Rio de Janeiro dos anos 50.) ............................................. 299
. Ecio P. Salles – Reinventando a cidade
(HERSCHMANN, Micael. Lapa, cidade da música.) ................................................. 301
. Tatiana Galvão – Efervescência cultural na Espanha pós-franquista
(FOURCE, Héctor. El futuro ya está aqui.) ................................................................... 305
resumos / abstracts ................................................................................... 310
7
8
O melodrama, nos últimos anos, tem sido objeto de muitos estudos na
área da comunicação. Com diferentes significados, o conceito é aplicado a gêneros e
formas artísticas diversas, como literatura clássica, romance policial, folhetim, cinema,
telenovela e mesmo jornalismo e documentário. Desde o trabalho fundador de Peter
Brooks, The Melodramatic Imagination (1974), têm se multiplicado os estudos que
buscam entender o melodrama para além de sua aplicação canônica, como uma espécie
de regime de expressividade que atravessa inúmeras manifestações culturais. Esta
edição da revista ECO-Pós procurou agrupar uma amostra representativa deste
horizonte analítico através de um leque diversificado de autores, instituições e
perspectivas.
O dossiê Comunicação e Melodrama é composto por oito artigos. O
primeiro deles, de Maurício de Bragança, busca refletir sobre as tradições do melodrama
a partir de uma revisão da literatura que trata do conceito. Em seguida, o texto de
Paula Guimarães e Vera França analisa a representação do amor em telenovelas da
Rede Globo. A teledramaturgia é também objeto de mais três trabalhos desta edição.
Claudia Mogadouro contextualiza as análises sobre ficção televisiva no Brasil e na
América Latina para se referir a este objeto como crucial na construção cultural da
nacionalidade. Marina Caminha trabalha a expansão das fronteiras do formato das
telenovelas através da análise dos elementos compositivos do quadro Retrato Falado,
exibido no Fantástico. E, por fim, Clara Fernandes Meirelles investiga o modo como
o melodrama atualizou-se em diferentes formatos narrativos e contextos socioculturais,
mantendo-se vivo como matriz da produção televisiva.
Os textos seguintes centram-se no ambiente jornalístico. O ensaio de
Ana Lúcia Enne busca delimitar o sensacionalismo frente às matrizes culturais
fundamentais que o corporificam. Já a análise de Márcia Franz Amaral busca resgatar
o conceito de melodrama para verificar sua presença como recurso de popularização
dos veículos jornalísticos impressos. Por fim, coube à Mariana Baltar abordar o
universo cinematográfico através do filme Um Passaporte Húngaro. A autora reflete
sobre um tipo de vínculo afetivo que se estabelece a partir das performances da
memória, sobretudo através dos testemunhos, presentes no documentário.
Um volume específico sobre melodrama seria incompleto se deixasse
de mencionar o trabalho do Núcleo de Pesquisa de Telenovela, da Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Além do Dossiê, que traz o artigo
de Cláudia Mogadouro, membro da equipe do NPT, o Núcleo aparece em duas outras
seções desta ECO-Pós: na entrevista com a figura fundamental deste universo, a
professora Maria Immacolata Vassalo de Lopes, e no Portfólio, seção em que é

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apresentado o Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva (Obitel), rede
vinculada ao NPT e formada por pesquisadores especialistas em teledramaturgia de
oito países da América e da Península Ibérica.
A diversidade de olhares mantém-se em Perspectivas. A seção se inicia
com um artigo do professor espanhol Juan Calvi sobre o fenômeno da pirataria musical
e seu impacto econômico, social e cultural na indústria musical espanhola e segue
com o trabalho de Alexandre S. Ferrari Soares, que explicita a naturalização das
construções mitológicas em torno da objetividade, neutralidade e imparcialidade
jornalística através dos textos presentes em diferentes suportes (revistas semanais,
jornais impressos e televisivos). Posteriormente, Marianna Taborda procura verificar
as novas alternativas presentes nas redes sociais digitais, bem como a influência
destas ferramentas no comportamento social.
Dois trabalhos se centram no ambiente da ficção: o de Henrique Cordato,
sobre o cinema de Pedro Almodóvar, e o de Cláudio Clésio Eufrasino, sobre as
personagens de X-Men. Uma profunda revisão bibliográfica sobre a questão do poder
nos meios de comunicação é o que pretende o artigo de Carolina Dantas de Figueiredo.
Fechando este volume, Fernanda Cupolillo M. de Faria retoma a discussão de melodrama
para abordar o a construção de personalidade pelo apresentador do show de auditório
Caldeirão do Huck.
A Nota de Conjuntura desta edição aborda a possível adesão da Turquia
à União Européia como pano de fundo para a observação dos processos discursivos
e procedimentos de identificações acerca da constituição do europeísmo e do não-
europeísmo no debate midiático. A partir de entrevistas com jornalistas opinativos, de
editoriais e crônicas na França, Bélgica e Turquia, Gaelle Rony apresenta a luta de
identificações que perpassam e reconstituem a identidade européia bem como as relações
desta com “o outro”, aqui representado pela Turquia.

Ana Paula Goulart Ribeiro e Suzy dos Santos


editores

Editorial
10
ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.9-11 11
12
Turquia: um teste para a Europa.
Identidades européias e identificações
nos discursos midiáticos turcos,
belgas e franceses
Gaelle Rony

A Turquia introduziu a sua candidatura de membro associado


em 31 de julho de 1959 diante da Comunidade Européia do Tratado de Roma,
fundada em 1957. Ela ainda não é membro efetivo da Unidade Européia (U.E.).
A questão da adesão da Turquia à U.E. atravessou a história da construção
européia, e dissemina hoje conflitos e polêmicas. De fato, ela coloca em
jogo a definição da identidade européia: não somente a identidade de uma
Europa constitucional e política, mas a identidade vivida, construída dos
europeus. A Turquia deve entrar na U.E.? Responder, quando se é turco,
francês ou belga, é dizer o que significa ser europeu, quem o é, e por quê.
Este artigo trata dos debates midiáticos sobre a adesão da Turquia à E.U., na
medida em que é um “trabalho de confrontação simbólica”, no qual as
interações entre agentes sociais fazem e desfazem as identificações dos eu-
ropeus e dos não-europeus (Windisch, 2002:227). Essa imbricação entre
processos discursivos e negociações de identificação foi analisada, de um
lado, nas entrevistas efetuadas com jornalistas líderes de opinião sobre o
assunto Europa/Turquia, 1 e, de outro, nos editoriais e nas crônicas políticas
dos jornais Le Monde e Le Parisien (para a França), Le Soir e La Libre
Belgique (para a Bélgica), Zaman e Hürriyet (para a Turquia), 2 durante as
cúpulas européias, que tiveram por objeto a ampliação da U.E., de Luxemburgo
em dezembro de 1997, de Helsinki em dezembro de 1999 e de Bruxelas em
2004. 3 Como veremos, o objeto da luta de identificações se condensa, em
última análise, em uma necessidade de reconhecimento de uma auto-identifi-
cação: ser europeu. Na incerteza quanto ao sentido e ao valor da identidade
européia, a reativação e a composição da fronteira Turquia/Europa agem como
um recurso identitário. Essa linha de interpretação permite compreender o
que constitui toda declaração sobre a Turquia, como aquela do Papa Bento
XVI, em junho de 2007, daí em diante favorável à aproximação da Turquia e
da U.E., ou aquela mais reticente do presidente francês Sarkozy, em agosto
de 2007.

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Adotamos uma postura construtivista, poderíamos dizer até ra-
dical, em que o agente social constrói o conhecimento do mundo e o próprio
mundo através da linguagem e das suas ações. 4 Além disso, esta pesquisa
está centrada no paradigma da comunicação política. Lembremos que esta –
que não se reduz ao estudo dos discursos dos políticos – visa ler, a partir
dos seus funcionamentos discursivos, uma atualidade política. Ela se vincu-
la à dimensão complexa e cotidiana desta última. Enquanto método indutivo
e interdisciplinar, ela parte da análise das motivações dos agentes sociais e
das significações que estes fazem da sua realidade. O paradigma da comuni-
cação política permite se confrontar com a realidade vivida, coisa inalcançável
através de um quadro de pensamento mecânico, preestabelecido.

INTERAÇÕES U.E.-TURQUIA
Um tal ângulo de aproximação pode surpreender. O pedido de
adesão da Turquia à U.E. é geralmente abordado como uma longa seqüência
de cálculos de poder, de interesses econômicos e geoestratégicos. As rela-
ções diplomáticas são então reconstruídas em uma visão linear da história,
na qual a Turquia caminharia para a Europa como quem avança para o pro-
gresso. Além disso, elas são estudadas a partir das motivações da Turquia de
se ancorar na Europa, mas pouco a partir daquelas da U.E. Nessa perspecti-
va, a entrada da Turquia na U.E. dependeria somente da sua boa vontade em
resolver o conflito com o Chipre, da sua capacidade em atender às condi-
ções de Copenhague 5 e, mais amplamente, em satisfazer um desenvolvimento
político e econômico elevado. Ora, se esses últimos fatores parecem ser
necessários para compreender por que a Turquia não aderiu ainda efetiva-
mente à U.E.; eles não são suficientes. De fato, esse tipo de explicação tira
a força dos discursos que agem em filigrana nas relações turco-européias, e
a reduz, na melhor das hipóteses, a uma função de representação. Entretan-
to, não são tanto as percepções mutuais da Turquia e da Europa que podem
explicar a história turco-européia, mas as relações que elas induzem. A esse
respeito, os discursos, como dizia Todorov, “são também os motores da
história” (Todorov, 1989:14). No nosso enfoque de estudo, os discursos
estatais e institucionais são sintomáticos do seguinte princípio de interação: 6
1) boas relações entre os dois agentes: pedido por parte da Turquia de se
aproximar da U.E. e sinais de encorajamento ou de aprovação da parte desta
última; 2) fase de esperança por parte da Turquia de se ancorar definitiva-
mente à Europa; 3) recuo da U.E. em relação às expectativas da Turquia

14 Gaelle Rony – Turquia: um teste para a Europa. Identidades européias e identificações


nos discursos midiáticos turcos, belgas e franceses
(isto se traduz por condições adicionadas à adesão da Turquia à U.E., por
um sim, mas); 4) decepção por parte da Turquia (que também não mantém
os seus engajamentos); 5) período de tensões, ou até de ruptura de relações.
Um outro ciclo é retomado quando o agente Europa empreende reanimar o
desejo de Europa da Turquia ou torná-lo mais uma vez possível. Durante
esse ciclo esquemático, a U.E. tenta manter a Turquia nem tão longe nem
tão perto da Europa, ou seja, nem dentro nem fora dela, porque precisa da
Turquia por razões sobretudo geoestratégicas. Quanto à Turquia, ela quer
responder ao mesmo tempo a seu desejo de ocidentalização, que a Europa
encarna, e à sua necessidade de reforço nacional, que passa pela soberania e
o nacionalismo do Estado turco.
A história das relações Turquia-U.E., desde a Segunda Guerra
Mundial até os dias de hoje, pode ser examinada em quatro grandes ciclos:
1) um ciclo em torno do tratado de Ancara, em 1962, que dá à Turquia um
estatuto intermediário entre membro e Estado não-membro da U.E., e que
vai da adesão ao bloco Oeste no final dos anos 1940 até a ruptura das rela-
ções turco-européias no começo dos anos 1980; 2) um ciclo em torno da
solicitação de adesão da Turquia à Europa, enquanto membro-pleno em 1987;
3) um ciclo em torno do tratado da União Aduaneira, em 1995, última fase
do tratado de Ancara, que termina com a cúpula de Luxemburgo, em 1997,
onde as negociações de adesão se abrem a todos os países candidatos, exceto
a Turquia; 4) um último ciclo, enfim, vai da aceitação da Turquia como
candidata na cúpula de Helsinki, em 1999 até dezembro de 2002: os chefes
de Estado da U.E. deixam para mais tarde a sua decisão quanto à abertura
das negociações de adesão com a Turquia, relembrando que o respeito aos
critérios de Copenhague é uma condição para essa abertura. A população
turca ainda vê ali uma vaga promessa da U.E., ou até mesmo uma retirada
dos seus engajamentos. O período mais recente vê o acesso ao poder, em
2003, e a reeleição, em 2007, do islamita Recep Tayyip Erdogan. 7 Paradoxal-
mente, a derrota das elites kemalistas, que preconizavam a ocidentalização
da Turquia, parece acentuar as chances turcas de aceder à U.E. Erdogan é,
de fato, menos dependente da exigência nacionalista face à qual as elites
kemalistas se encontravam presas, vendo em toda crítica da U.E. uma tenta-
tiva de sabotar o Estado turco. Ele parece, assim, facilitar o diálogo com a
U.E. Em 2004, a U.E. pôs como data de abertura das negociações de adesão
da Turquia o dia 3 de outubro de 2005. O debate acerca dessa decisão con-
siste em saber se ela acarreta com certeza a adesão. Em todo caso, é certo

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que ela marca uma etapa importante nas relações turco-européias: a Turquia
esperava isso há muito tempo, e o fato que a data não estava fixada repre-
sentava aos seus olhos uma negação da sua aceitação como país candidato.
Do lado da U.E., alguns viam nisso uma aceitação com ressalvas; outros,
um meio de acalmar a Turquia minimizando os riscos do crescimento do
fundamentalismo, ou ainda uma maneira de empurrá-la à democratização sem
ter que aceitá-la como membro. Esses desentendimentos entre a Turquia e a
U.E. poderiam fazer acreditar no início de um novo ciclo, ainda mais que as
últimas controvérsias sobre o Chipre paralisaram as negociações de adesão
entre os dois parceiros, no fim de 2006, que, contudo, foram retomadas
lentamente em junho de 2007.

LUTA POR RECONHECIMENTO


Os discursos midiáticos acompanham as relações diplomáticas
entre a U.E. e a Turquia, mas, sobretudo, são o motor dos debates sobre a
legitimidade da entrada da Turquia na U.E. Esses discursos, na França, na
Bélgica e na Turquia, são atravessados por certo tipo de interações: uma luta
para identificar e reconhecer os europeus. Essa hipótese se apóia sobre vá-
rias premissas. Primeiramente, a definição da identidade européia, amplamente
essencialista quando emerge explicitamente nos discursos, foi considerada,
no plano epistemológico, não como uma categoria de análise (no sentido que
determinaria a priori um pesquisador para explicar um fenômeno), mas uma
categoria de identificação (no sentido vivido que ela adquire para os agentes
sociais). Em seguida, o processo identitário europeu passa por discursos
cujo objeto explícito não é a identidade européia, como, por exemplo, os
debates sobre a inclusão da Turquia. De fato, segundo Flahault (1987:50),
“toda palavra, por seu valor referencial e informativo, se formula a partir de
um ‘quem sou eu para ti, quem tu és para mim’”. Além do mais, para com-
preender o conflito de identificações que atravessa os discursos, não basta
afirmar que a Turquia é o Outro da Europa e que, toda identidade sendo feita
na alteridade (Todorov, 1998), a Turquia participa para a formação de uma
identidade européia. O Outro sempre escapa (dizer que o Outro é Outro,
ainda é não dizer nada) e o etnocentrismo é a condição de todo olhar sobre
ele (idem). Desde então, se evidencia indispensável cercar o que marca o
etnocentrismo europeu ao qual alguns se referem para explicar a atitude da
U.E. em relação à Turquia. Seria um certo orientalismo (Said, 1997) o medo
do mundo muçulmano ou, ainda, um particularismo que se institui como

16 Gaelle Rony – Turquia: um teste para a Europa. Identidades européias e identificações


nos discursos midiáticos turcos, belgas e franceses
universal? É preciso igualmente não confundir a idéia do Outro com aquela
do Outro da Europa, e se perguntar como uma identificação coletiva se cons-
trói quando a Europa ocupa o lugar de Outro. Nesse aspecto, uma primeira
análise revelou que a Turquia não é automaticamente designada, tanto pelos
enunciadores dos atuais países membros da U.E. quanto pelos turcos, como
o Outro da Europa. Paralelamente, nos seus discursos, inclusive nos turcos,
as representações da Europa e dos europeus são relativamente estáveis e
divididas: a Europa é amplamente assimilada à terra da modernidade, do de-
senvolvimento econômico, da democracia e dos Direitos Humanos. Se nos
ativermos à lógica, a identificação do não-europeu deveria provir dessa ima-
gem dominante, por jogo de oposições. Mas não é o que acontece no vivido
e no dito pelos agentes sociais. O que significa então essa disjunção entre
consenso em torno das representações da Europa e desacordo quanto ao
não-europeu?
Ela é o indício de uma corrida ao reconhecimento de uma auto-
identificação, aquela do europeu, em uma situação em que, paradoxalmente,
essa identificação não está fixada. De fato, não se pode esquecer que cada
enunciador presente, turco, belga, francês, se diz europeu, e quer por bem
ser reconhecido como tal. Supõe-se então que os enunciadores, estimulados
pelas discussões sobre uma Turquia européia, utilizam certas representa-
ções da Europa, socialmente aceitas, para se afirmarem europeus diante de
outros. Ou melhor, cada agente social endossa uma imagem da Europa em
função da capacidade que ela terá em atrair o reconhecimento da identidade
que ele se dá. Em última instância, o processo identitário que alimenta os
debates sobre a Turquia e a U.E. tem por objeto a auto-identificação dos
europeus (o eu), e menos a identificação dos não-europeus (os Outros).
Obviamente, um não anda separado do outro nos debates. Não obstante,
para os enunciadores que se querem europeus, enquanto essa identificação é
ainda flutuante, o risco de não-reconhecimento (o eu não te reconheço tal
como gostarias de ser reconhecido) é muito mais pungente.

INSTRUMENTOS TEÓRICOS
Como somente a análise das representações não dá exatamente
conta da luta por reconhecimento observada nos discursos midiáticos, o
nosso quadro teórico se apóia também sobre o uso, em interação, dessas
representações. Ele se formou assim em torno de duas noções que nós de-
signamos de critérios de pertencimento e critérios de reconhecimento.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.12-27 17


Os critérios de pertencimento são princípios de identificação dos
europeus e dos não-europeus que o agente social seleciona entre as repre-
sentações sociais disponíveis sobre a Europa. Barth, em perspectiva
construtivista e interacionista, define a identidade de um grupo como “um
processo contínuo de dicotomia entre membros e outsiders, pedindo para
ser expressa e validada na interação social”(apud Poutignat e Streiff-Fenart,
1995). O que faz uma identidade coletiva é a maneira pela qual um grupo
preserva não uma substância cultural, mas as suas fronteiras, e melhor ain-
da, os critérios dessas fronteiras. Aliás, as fronteiras de que tratamos aqui
não coincidem sempre com as fronteiras políticas, oficiais. O grupo redefine,
em permanência, as suas regras para distinguir insiders e outsiders, em fun-
ção da situação na qual ele se encontra. Para fazê-lo, ele escolhe certas
características da sua cultura e as edifica em critérios de identificação. Exa-
minar plenamente a corrida ao reconhecimento remete, então, a compreender
quais são os critérios pertinentes de pertencimento à Europa, para cada agente
social. Por exemplo, quando um enunciador argumenta contra uma Turquia
na U.E., ele o faz segundo um critério religioso e cultural (uma Europa cris-
tã), ou aquele do poder político (uma Europa pequena, porém mais forte)?
Contudo, um enunciador não adere a um só critério de
pertencimento. Pois o que lhe importa é também ser reconhecido como eu-
ropeu. Certamente, em função do princípio de separação que lhe parece válido.
Mas parece que a necessidade de reconhecimento por si vem antes dessa
preocupação. Nenhum sujeito, segundo Flahault, escapa a isso, pois a sua
identidade depende disso. “Cada sujeito existe somente se ele é reconhecido
como existente, e ele só atrai esse reconhecimento se produz o sinal espera-
do” (1987:58). Os critérios de reconhecimento emergem então no contexto,
no debate, no face a face com aquele(s) a quem o enunciador pede para ser
reconhecido. Esses critérios são usados pelo enunciador para fazer validar a
identificação que ele se dá, aquela de europeu. Eles são um pouco como uma
senha de acesso, que pode desencadear, se ela for correta, o reconhecimen-
to. Eles são escolhidos em função dos efeitos emocionais que são suscetíveis
de provocar.
É, então, aos participantes do debate que um enunciador lança
um sinal de reconhecimento. Estes são considerados enquanto membros do
que Gallisot chama de uma comunidade de referência e/ou uma comunidade
de pertencimento. A identificação de pertencimento, segundo Gallisot,
corresponde ao círculo de relações primeiras da vida cotidiana (um bairro,

18 Gaelle Rony – Turquia: um teste para a Europa. Identidades européias e identificações


nos discursos midiáticos turcos, belgas e franceses
uma família, um país etc.). A identificação por referência invoca uma comu-
nidade, mais imaginária, ideal, à qual o agente social aspira e na qual ele se
projeta. Esses dois procedimentos de identificação enriquecem considera-
velmente a compreensão dos debates sobre a Turquia e a U.E. Eles explicam,
por exemplo, por que a Turquia pode se dizer, sem que haja contradição, ao
mesmo tempo européia (em função da sua utopia sobre a Europa), e não-
européia (em função da sua identificação de pertencimento).
Em que o discurso midiático permite a corrida ao reconheci-
mento? No que as suas características ativam a produção de critérios de
reconhecimento e pertencimento. Destaquemos que este foco de análise se
afasta dos modelos racionalistas e mecânicos, nos quais as mídias são pen-
sadas como os desencadeadores de uma identidade européia. 8 Primeiramente,
porque ele é um discurso social específico e um receptáculo de discursos
sociais difusos (Delforce, 1998), o discurso midiático carrega imagens, so-
cialmente pertinentes, da Europa, da Turquia, dos europeus e dos
não-europeus. Ele, portanto, oferece aos leitores, uma escolha de critérios
de pertencimento. Em seguida, como lembram Amossy e Maingueneau, todo
discurso se elabora em uma interação, em uma relação com o outro, que este
seja “virtual”, como nos textos, ou não (Amossy, 2000). Desta feita, ele
estimula o jogo de critérios de reconhecimento. Um editorial, por exemplo, é
um diálogo divergente entre a instituição midiática e os leitores, mas também
entre membros de uma comunidade imaginária (política, nacional etc.).

ESTRATÉGIAS SOB TENSÕES


Ao longo da sua participação no debate sobre a adesão da Tur-
quia à U.E., os enunciadores desenvolvem estratégias para serem
reconhecidos como europeus em função de três tensões sociais e políticas:
as relações de forças simbólicas que lhes atribuem um lugar em relação uns
aos outros, a necessidade de preservar os termos da sua auto-identificação e
a carga afetiva que traz essas duas primeiras lógicas.

PODER DE IDENTIFICAÇÃO
Primeiramente, os agentes sociais belgas, franceses e turcos não
dispõem todos das mesmas possibilidades na luta pelo reconhecimento. A
sua margem de ação depende do seu “poder de identificação”, da sua “auto-
ridade para nomear e para se nomear” (Cuched, 1996:86). De fato, para
Bourdieu, um grupo em posição de dominação controla, impõe os valores e

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.12-27 19


as definições legítimas do mundo, 9 dele mesmo (sua auto-identificação) e
dos outros. Inversamente, um grupo dominado terá tendência a se submeter
à identidade que lhe é dada. 10 Ele a assimilará ou a rejeitará sem jamais poder
se desfazer dela por completo. A partir dessa perspectiva, dois sistemas de
relações se desenham nos discursos estudados. No primeiro, grupos intra-
Europa ou grupos intra-Turquia disputam entre eles o monopólio de critérios
de pertencimento. O segundo é, dessa vez, uma relação assimétrica entre a
Turquia e a Europa, na qual o enunciador turco depende do poder de identi-
ficação dos europeus.
A luta para fixar os princípios legítimos de identificação dos
europeus se passa, sobretudo, entre diferentes grupos do mesmo espaço
nacional. Estes se delimitam pela sua convicção do que deveria ser a Europa.
Nos artigos franceses e belgas, uma competição opõe o enunciador, porta-
voz de uma comunidade de referência, e os partidários de comunidades de
referência alternativas (por exemplo, Europa potência vs Europa ampliada,
Europa política vs Europa enquanto mercado livre etc.). Da mesma forma,
durante entrevistas, os entrevistados defendem uma visão da Europa e da
Turquia, em função dos contra-argumentos que eles supõem ser aqueles de
seus adversários. Os grupos debatem ou brigam entre eles para dominar e
para impor os critérios de pertencimento à Europa. Nesses conflitos, o lugar
da Turquia (fora ou dentro da U.E.) pesa pouco em si. Se ela está em jogo na
discussão, é porque ela permite favorecer, ou não, utopias européias. Por
exemplo, os jornalistas franceses e belgas aspiram, em maioria, a uma Euro-
pa de potência, cujos critérios de pertencimento são um elevado
desenvolvimento econômico e político, a partilha da cultura cristã, e, sobre-
tudo, a participação em uma supremacia. Eles invocam então uma Europa
sem Turquia, ameaça para os atuais detentores do poder político e do poder
de identificação (já que somente os já europeus dizem quem, entre os candi-
datos à adesão, pode ser recebido). Nos debates, para ganhar a validade
dessa fronteira, eles se colocam em posição de autoridade em relação àque-
les que não compartilham essa visão da Europa, lembrando o seu
pertencimento aos países fundadores da U.E., destacando a sua paixão pela
Europa. Ao mesmo tempo, eles parecem esperar dos outros um ato de sub-
missão, o que ao mesmo tempo é uma estratégia de luta e o sinal de um
pedido de reconhecimento.
Voltemos à relação de forças simbólicas que une, dessa vez, os
turcos e a U.E. Os turcos são dependentes do poder de identificação euro-

20 Gaelle Rony – Turquia: um teste para a Europa. Identidades européias e identificações


nos discursos midiáticos turcos, belgas e franceses
peu. De fato, o seu contrato identitário nacional, desde a revolução cultural
de 1923, feita por Ataturk, se pensa através de uma comunidade de referên-
cia, a Europa, que encarna o que eles queriam se tornar (uma terra de
modernidade, de civilização e dos Direitos do Homem). Em conseqüência, a
Turquia precisa de um sinal de aceitação da U.E., para poder aceder real-
mente a ela mesma. “Aquele a quem eu peço que me reconheça, se eu peço a
ele e não a outro, é porque ele me parece encarnar melhor que um outro o
critério, o sinal em relação ao qual eu situo o meu eu, e, por conseguinte, segun-
do o qual eu desejo ser reconhecido” (Flauhault, 1987:65). Para atrair o
reconhecimento dos europeus, os turcos demonstram, antes de mais nada, a
sua submissão à autoridade simbólica desses últimos. Eles retomam por conta
própria os discursos que os europeus mantêm acerca da Europa. Esta se
distinguiria assim pela sua qualidade de modelo inegável, de terra de exceção
cultural, histórica. Os jornalistas turcos também definem a Europa pela sua
especificidade religiosa, que seria a cristandade, mesmo se isso não permite
argumentar em favor da entrada da Turquia na U.E. Por que eles reforçam
imagens da Europa logicamente excludentes para a Turquia? No momento
que eles o fazem, e além do conteúdo cognitivo dessas representações, eles
reconhecem a autoridade da Europa para se nomear ela mesma e denominar
os outros. Aqui, estamos diante não de uma submissão passiva, mas de um
ato de consentimento, ou até mesmo um ato de sedução. Em outros termos,
os turcos dizem à Europa: “se eu te reconheço tal como tu queres ser reco-
nhecido, tu acabarás me reconhecendo também, e isso além da identidade
que te dás e da identidade que me dás hoje”. Além do mais, e de maneira menos
freqüente, para ganhar o reconhecimento, os enunciadores turcos identificam a
Turquia tal como o faz a Europa: como um país atrasado politicamente e econo-
micamente. Isso denota uma “aceitação (resignada ou provocante, submissa ou
revoltada etc.) da definição dominante da sua identidade” (Boudieu, 1980:69). Se
eles insistem sobre os progressos da Turquia, é para dar “a imagem menos dis-
tante de si possível e da identidade legítima” (idem, ibidem), e para não esgotar
toda possibilidade de reconhecimento. Observemos que alguns procuram se des-
fazer da imagem negativa que a U.E. lhes atribui, retribuindo o elogio, dizendo: a
Turquia respeitaria mais os Direitos do Homem do que alguns Estados membros
da U.E.; a religião muçulmana seria mais aberta às outras crenças do que a
religião cristã etc. Ainda que os julgamentos de valor se invertam, a escala
de medida continua européia, mostrando ali também a submissão ao poder
de identificação europeu.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.12-27 21


UMA ALTERIDADE ESTRATÉGICA
Relações de força simbólicas condicionam o modo como os agen-
tes sociais, franceses, belgas e turcos lutam para serem reconhecidos como
europeus. Entretanto, a própria discussão sobre a adesão da Turquia à U.E. 11
orienta as suas estratégias, notadamente quando, aos seus olhos, ela desliza
na direção de um risco de não-reconhecimento. A percepção desse perigo
provém de uma reavaliação ou dos eventos políticos ou da atitude do outro
enunciador na interação 12 . Confrontados com a perda do reconhecimento
que eles acreditam iminente, os enunciadores visam a proteger o fundamen-
to da sua auto-identificação: a designação que eles fazem do Outro. O Outro
deve continuar a ser aquele que eles conhecem, aquele que lhes atribui uma
identidade que lhes convém. Ele deve permanecer um recurso identitário,
uma “alteridade estratégica” (Badie, 1996:237). É assim que podemos com-
preender, como veremos daqui a pouco, os processos de dicotomização entre
insiders e outsiders presentes nos discursos estudados.
Diante das reticências européias, os enunciadores turcos distin-
guem a U.E., que se torna então o Outro da Turquia, da sua comunidade de
referência, Europa. Para evitar que o seu princípio de identificação (“nós
somos turcos se nos tornamos europeus”) se anule, para ne pas perdre la
face, eles fazem da Europa não mais uma condição identitária, mas um re-
curso identitário. O que remete a dizer: “se nós somos como os europeus,
então seremos realmente turcos”. Por exemplo, para Zaman, jornal de orien-
tação islâmica moderada, sustentar a adesão à U.E. é contrariar a repressão
do governo turco em sentido oposto dos muçulmanos, e lutar em definitivo
pelo seu grupo de pertencimento (aquele dos muçulmanos). Eles propõem
aos seus leitores a equação seguinte: adesão à U.E. = proteção das liberdades
e dos direitos fundamentais = liberdade de praticar e de expressar a fé mu-
çulmana. A Europa, em virtude de sua imagem de terra de liberdade e de
respeito dos direitos fundamentais, é então aqui instrumentalizada em um
contexto interno de tensões identitárias.
País fora da família européia, longe dos padrões da democracia
européia, especial, diferente, muçulmano, a Turquia fornece características
que os jornalistas franceses e belgas recompõem para afastá-la da comuni-
dade européia com a qual eles se identificam. Recurso identitário,
argumentativo, a Turquia lhes é necessária. Ela lhes permite conservar
intactos os termos da sua auto-identificação, sem os quais eles se sentiriam
perdidos. Assim, quando a sua visão da Europa é questionada por outros

22 Gaelle Rony – Turquia: um teste para a Europa. Identidades européias e identificações


nos discursos midiáticos turcos, belgas e franceses
projetos de Europa possíveis, eles reafirmam a alteridade da Turquia e blo-
queiam todo novo olhar que emerge sobre ela. Os jornalistas evitam que a
Turquia possa parecer um outro Eu (diferente, porém igual aos países euro-
peus). As descrições avaliativas dos enunciadores levam a essencializar a
sua dimensão religiosa e cultural, a fazer dela um Outro absoluto. Nos arti-
gos analisados, se a Turquia é designada como um Outro da Europa (ela é
apresentada como membro indesejável ou sintoma de uma Europa em perdi-
ção), ela o é menos em relação à comunidade de pertencimento Europa do
que em relação a diferentes comunidades de referência Europa. Ela encarna
então uma espécie de alteridade relativa a um projeto de uma certa Europa.
Mas a alteridade relativa responde também a uma necessidade identitária.
Por exemplo, os jornalistas belgas consideraram a Turquia para sustentar a
sua comunidade de referência, uma Europa aberta e significativa, como um
fator de risco em 1997 e em 1999, e depois como um elemento positivo em
2004, quando a imagem de uma Turquia muçulmana se encaixa perfeitamen-
te naquela de uma Europa multicultural e pacífica.

LÓGICA EMOTIVA
Além das relações de força simbólicas e os riscos que nascem
da discussão, a luta pelo reconhecimento reage a uma força emotiva intensa,
e isso de várias maneiras. Primeiramente, observamos a emoção dos entre-
vistados turcos quando eles respondiam à questão “vocês se sentem
europeus?” (e não à questão “vocês são europeus?”), ou quando eles lem-
bravam os valores que eles atribuem à Europa (a cultura, os Direitos
Humanos, por exemplo). Essa emoção pode ser compreendida como o sinal
do poder de atração dessas referências, simplesmente do seu poder, e como
o desejo, da parte dos entrevistados, de fazer parte disso. Aliás, não é um
acaso se, na Turquia, dizer “isso é europeu” significa dizer “isso é excelen-
te”. Em segundo lugar, é pela pertinência emocional da sua argumentação
que vários enunciadores procuram convencer os outros da sua opinião so-
bre a entrada da Turquia na U.E. Um jornalista concluirá a sua descrição dos
candidatos à adesão pela frase: tudo isso é básico, mas é mesmo assim verda-
deiro, hein; como se o seu discurso se justificasse antes de tudo pela emoção
que ele provocava. Além do mais, o critério cultural e religioso de
pertencimento à Europa, retomado sobretudo a partir da cúpula de Bruxelas
em 2004, parece ter aumentado de poder graças a um contexto internacional
que lhe é propício, e porque, desde então, ele permitia, talvez mais do que

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.12-27 23


um outro, uma mobilização afetiva, uma partilha do sensível. Além de um
efeito de conjuntura, podemos ver ali a marca contemporânea da construção
do político. A lógica emocional permite também compreender o que pode
parecer como uma dupla escala de valores, de critérios, para identificar a
Europa e a Turquia. Assim não há laços de causa e efeito na maneira de
identificar uma e outra, mas uma pertinência afetiva que vale para cada uma
delas. Por exemplo, um jornalista identificava a Turquia segundo o seu atra-
so econômico e recusava a sua entrada na U.E., que ele identificava, no
entanto, pelo seu multiculturalismo. De outro lado, a Turquia pode ser às
vezes designada segundo a sua cultura muçulmana para justificar porque ela
continua fora da Europa, enquanto que, ao mesmo tempo, a Europa é
identificada pela sua potência, e não pela sua característica cristã.
A dinâmica afetiva que irriga o tema da adesão da Turquia na
U.E. destaca também que um verdadeiro encontro com o Outro é inevitavel-
mente imprevisível. Pois, em uma interação, como lembram as relações
turco-européias, ninguém pode agir no lugar do outro sem que ele seja atin-
gido no seu lugar. Não se trata somente de mudar o seu olhar sobre o Outro.
Trata-se mais ainda de se deixar aproximar por este, expor uma identidade
que acreditávamos possuir, de se arriscar a um intermédio e a todas os des-
locamentos possíveis.

GAELLE RONY é professora visitante do curso de Pós-graduação da ECO/UFRJ.

24 Gaelle Rony – Turquia: um teste para a Europa. Identidades européias e identificações


nos discursos midiáticos turcos, belgas e franceses
NOTAS
1 Escolhemos entrevistar jornalistas do Le Monde e Libération, para a
França, de La Libre Belgique e do Soir, para a Bélgica, de Milliyet, de Hürriyet, de
Sabah, de Zaman, de Cumhurriyet, de Radikal, para a Turquia.
2 Esses periódicos representam, enquanto discurso social específico e
recebedor desses discursos, zonas políticas e ideológicas distintas e primordiais do
espaço público nacional.
3 Essas cúpulas, que delimitam nosso corpo de imprensa escrita, trataram
da ampliação da U.E. em geral, e de uma eventual ampliação da U.E. à Turquia em
particular.
4 Como diz Todorov, “... os discursos são, eles também, eventos, motores
da história, e não somente representações. (...) [As idéias] tornam os atos possíveis;
em seguida elas permitem que elas sejam aceitas: são atos decisivos” (1989:14).
5 Esses critérios, definidos em 1993, encobrem três aspectos. Os critérios
de tipo político exigem que o país candidato goze de instituições estáveis e
democráticas, respeite os Direitos do Homem, respeite e proteja as minorias. Os
critérios de tipo econômico correspondem à existência de uma economia de mercado
e à capacidade de poder fazer frente à concorrência e ao mercado da União. Enfim, o
candidato deve ser capaz de manter as responsabilidades de membro, o que implica
em aderir aos objetivos políticos, econômicos e monetários da União.
6 Acerca dessa questão, ver, por exemplo: Önis (2000); Diez e Buzan
(1999).
7 Em 3 de novembro de 2002, o AKP, herdeiro do partido islamita RP,
dissolvido em 1998, ganha as eleições legislativas. É em março do seguinte ano que
seu líder é encarregado de formar um governo.
8 Ou eles trabalhariam na criação de um espaço público europeu e que
permitiria então automaticamente uma identidade européia, ou provocariam uma forte
adesão à Europa ao informar cada vez mais e melhor sobre a Europa (apesar dos
diversos fracassos das instituições européias da política de informação e de
comunicação).
9 Um grupo dominante dispõe de um capital simbólico forte e do controle
dos critérios da sua autoridade, da sua visão do mundo e das suas identificações. A
posição de dominação de um grupo provém, como em todo campo, da “luta pelo
poder” e da “luta pela legitimidade”. Esse último tipo de luta, ao qual voltaremos, visa

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.12-27 25


à definição dos critérios que fazem a autoridade dos dominantes. O primeiro tipo de
luta, a luta pelo poder, visa à “apropriação de um capital específico”. Esse capital,
mesmo se ele é preciso a cada campo, concentra-se sempre em dois grandes conjuntos:
o capital econômico e o capital simbólico. Mais ainda, diz Bourdieu, todo capital
econômico, para ter valor, deve ser traduzível, transformável em capital simbólico.
Esse último é o reconhecimento que um indivíduo/grupo recebe de um grupo, “ou
seja, uma espécie de adiantamento, de desconto, que somente a crença do grupo pode
dar àqueles que lhe dão mais garantias materiais e simbólicas” (Mounier, 2001: 87-
88, citando Bourdieu).
10 Lembremos que, no processo de representações e de relações que é a
identidade, duas identificações estão em obra: a auto-identificação, a identificação que
um agente faz dele mesmo e a identificação que o outro lhe reenvia, lhe designa, e que
nem sempre corresponde com a sua própria imagem, a hetero-identificação.
11 Como lembra Windisch no seu estudo sobre os discursos políticos
acerca da imigração: “a comunicação política não consiste simplesmente em um
nivelamento entre posições políticas opostas sobre um dado problema político; a
discussão faz evoluir tanto as posições presentes, quanto as relações de força da
própria natureza do objeto em discussão” (2002).
12 Aquilo que Van Dijk (2001) chama de context model e l’event model.
Acerca dessa questão, ver pp. 108-113.

26 Gaelle Rony – Turquia: um teste para a Europa. Identidades européias e identificações


nos discursos midiáticos turcos, belgas e franceses
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Comunicação & Melodrama

28
Melodrama: notas sobre a tradição/tradução
de uma linguagem revisitada
Maurício de Bragança

O melodrama é identificado, por alguns autores, como uma espécie de


estratégia de leitura da vida, de uma narrativa cotidiana; um gênero que aborda o
relato a partir de uma perspectiva especificamente comum. O melodrama não está
longe de ainda ser considerado por uma parte da crítica uma forma enraizada de
gostos questionáveis e desejo por emoções baratas, marcado por um emocionalismo
excessivo, situado entre o cômico e o trágico. Neste “drama do excesso”, as situações
parecem ter, numa primeira leitura, muito pouco a ver com a aparente realidade e
muito mais proximidade com um drama interior de consciência caracterizado por um
conflito ético que se coloca a partir da dualidade maniqueísta bem x mal.
Os estudos que surgiram sobre o melodrama a partir dos anos 1970,
nos quais se insere o trabalho de Peter Brooks (1995), tendem a afastar-se desta
abordagem simplista que o vê apenas como um recurso de manipulação de linguagem
com o objetivo de conquistar a emoção da platéia, optando aproximar-se do gênero a
fim de problematizar seus significados e dotar-lhe de características sociais
historicamente projetadas. Tal recuperação do estudo do melodrama vem reforçar um
movimento mais amplo do crescimento de interesse pelas formas da cultura popular,
representada na literatura pelos romances policiais, de ficção científica, os romances
sentimentais, refletidos também no estudo de gêneros cinematográficos relacionados
aos espetáculos de entretenimento para os grandes públicos. Além disso, os estudos
sobre o melodrama, seja no cinema ou na literatura, vieram reequacionar os debates
em torno das teorias de gênero (gender), já que a produção destes textos ganhou
dimensão histórica na análise de uma recepção por um público majoritariamente
feminino, perspectiva hoje também parcialmente questionada. Análises marxistas aliadas
às análises feministas e psicanalíticas perceberam o potencial crítico do melodrama,
principalmente no que diz respeito à crítica à família e à sociedade americana do pós-
guerra presente nos filmes de melodrama hollywoodiano de Douglas Sirk, Sam Wood,
Vincent Minelli, dentre outros. Assim, os estudos mais recentes sobre o melodrama
não se detêm no desenvolvimento do gênero exclusivamente, mas procuram abordá-
lo como um sistema ficcional de produção de sentido, traduzido num campo de força
semântico, no qual determinados elementos e características próprias operam sentidos
que se desvelam quando tocados pelo gesto interpretativo.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 29-47 29


A principal tese defendida por Brooks (idem) é a de que o melodrama é
a forma narrativa da era pós-sagrada, na qual a polarização de forças
hiperdramatizadas e traduzidas na teatralização do gestual configura e localiza as
escolhas dos diversos modos de ser sociais a partir de um sistema de crenças
transcendentais, enfatizando a dimensão ética do gênero. Isso é operacionalizado, na
narrativa, por meio do que o autor chama de moral occult, domínio de valores
operativos ainda encobertos que o drama, visando sua elevação, tenta fazer presentes
no dia-a-dia, na dimensão da “vida comum”. A estratégia narrativa melodramática,
que faz uso do excesso e de certa “estética do exagero”, propicia um desvelamento
do estrato mais íntimo da situação apresentada. Assim, os códigos do excesso parecem
dimensionar uma perspectiva para além da narrativa, dotando-a de significados de
existência ao pressionar a superfície da realidade do texto a fim de preenchê-la de
sentidos que estão além das aparências.
The narrative voice, with its grandiose questions and hypotheses,
leads us in a movement through and beyond the surface of things
to what lies behind, to the spiritual reality which is the true scene
of the highly colored drama to be played out in the novel. (...) The
novel is constantly tensed to catch this essential drama, to go beyond
the surface of the real to the truer, hidden reality, to open up the
world of spirit1 (idem:2).
Existe, pois, um desejo de tudo expressar como característica
fundamental do modo melodramático de representar a vida, ligado a uma estética do
exagero que deposita sobre o mundo uma carga simbólica fortemente vinculada à
mise-en-scène. O gesto interpretativo de fazer esta leitura do mundo descrito pelos
códigos do melodrama deve ser pautado pelo esforço de perfurar a superfície e
interrogar as aparências. A realidade é representada tanto pela cena montada do drama
quanto pela máscara que se projeta num outro drama que se esconde misteriosamente,
sob uma moral suspeita, a qual deve ser aludida e revelada. Esse é um conceito-
chave para os estudos de Brooks sobre o melodrama: a moral occult, que está ligada
a um domínio das forças espirituais não claramente disponíveis a partir da realidade
aparente, mas que se acreditariam operantes nesta realidade e às quais devem ser
descobertas, registradas e articuladas para além das dualidades maniqueístas (idem:20).
Assim se efetua uma espécie de transação entre estes dois planos: a pressão exercida
neste contexto primário indicado pela superfície que expressa o mundo “real/aparente”
é feita de forma que os gestos acabam por revelar os sentidos ocultos, e nesse
processo transferem-se tais sentidos de um contexto a outro, criando uma idéia de
um “segundo drama” no qual o texto não toca diretamente e que não pode ser
expressado por palavras.

30 Maurício de Bragança – Melodrama: notas sobre a tradição/tradução de uma linguagem revisitada


The heightening and hyperbole, the polarized conflict, the menace
and suspense of the representations may be made necessary by the
effort to perceive and image the spiritual in a world voided of its
traditional Sacred, where the body of the ethical has become a sort of
deus absconditus which must be sought for, postulated, brought into
man’s existence through the play of the spiritualist imagination 2
(idem:11).
Ao se pensar o melodrama em um contexto mais amplo, é necessário
refletir também sobre a função social da lágrima na cultura ocidental como signo de
redenção moral, como exacerbação de um comportamento que não se filia a uma
contenção domesticada das emoções, o que contraria o modelo de comportamento
imposto e desejado por uma classe burguesa, cujo padrão almejado de conduta se
baseia em um racionalismo (Gubern, 1974; Vincent-Buffault, 1988).
Para Aristóteles (1988), a tragédia está vinculada à idéia de pranto,
articulada entre os sentimentos de piedade e temor: piedade ao herói e temor pelo
vilão. A relação entre estes sentimentos e estas personagens confere uma organicidade
ao texto que garante os códigos de identificação entre obra e público, através do
sentimento de autocompaixão. O culto moderno à razão tem a tendência de desprezar
a emoção e a autocompaixão implícita na caracterização codificada das personagens
do melodrama, também por vincular este tipo de sentimento à mulher, numa construção
de gênero que problematiza o âmbito do feminino como instância inferior. A lágrima e
a emoção fariam parte, então, do universo feminino e, portanto, contribuiriam para a
desvalorização do gênero melodrama (Bentley, 1987).
Os furores das emoções apaixonadas, as torrentes de lágrimas vertidas
nas alcovas, os suspiros dilacerantes lançados na solidão, em meio à
animação da natureza, só podem ser compreendidos à luz do
autocontrole, que (...) interioriza-se ainda mais no modelo burguês.
(...) a exaltação que faz derramar lágrimas e a moderação que as retém
curiosamente fazem parte de um mesmo movimento, de uma mesma
economia imaginária, que redefine o registro do íntimo e com ele do
público (Vincent-Buffault, 1988:143).
É importante ressaltar ainda que o melodrama trabalha com dispositivos
de encenação, baseados nos modelos de excesso e hiperdimensionamento do gesto,
que incluem o espectador no circuito instalado pela cena. Tais dispositivos garantem
a revelação da intimidade de forma a configurar uma “geometria do olhar”, como se
refere Ismail Xavier (2003) a este circuito que instaura a cena numa interface com o
mundo diegético apresentado. Ou seja, nas tensões morais cotejadas pelo gênero
nunca se perde a dimensão da espetacularidade da cena na qual o olhar do outro é um
elemento sempre presente. O que importa, por exemplo, não é o mal praticado a seco,

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 29-47 31


mas a encenação do mal, o “teatro do mal”, numa relação consentida entre vítima e
algoz (idem).
Pensando sobre estes dispositivos que articulam a composição do binômio
fundamental para o melodrama, o olhar e a cena, Xavier sugere que tais narrativas se
constroem para além do teatro, da composição literária, do cinema, remontando-se às
regras de representação consolidadas ao longo do século XVIII formadoras das
interações e dos jogos de poder na vida comum. Isto está relacionado aos diferentes
dispositivos que formam a “impressão de realidade” postulada pela cena ilusionista e
a composição do “ponto de vista” (não apenas nos espetáculos visuais como o teatro
e o cinema, mas também na literatura). Esta “geometria do olhar” que compõe a cena
apresenta elementos diegéticos (o espaço, o tempo, o enredo, as personagens) que
atuam sob um “olhar simbólico da lei” operado pela moral do melodrama. Tanto
Brooks como Xavier concordam que esta entronização do olhar e a teatralização do
cotidiano referem-se às experiências da sociedade moderna.
O surgimento do melodrama está relacionado a um processo de
“dessacralização do mundo”, situado entre o fim da tragédia e o crescimento do
Romantismo, especialmente na França, mas também na Alemanha e na Inglaterra. O
fim do século XVII desconstruiu o sentido do trágico como um rito comunal de
sacrifício, quando uma nova dramatização ganhou corpo, identificando-se com uma
imaginação moderna, que viria ocupar este espaço. O crescimento da burguesia
possibilitou a privatização e “dessocialização” da arte e conferiu ao romance suas
características de gênero moderno (Brooks, 1995).
Para Xavier (2003), tanto o melodrama como a tragédia apóiam-se nos
dramas familiares, conflitos entre direitos de linhagem de sangue e comunidade e
cadeias de vingança. A diferença entre eles residiria, porém, na articulação entre o
público e o privado no interior de sua lógica própria. Na cultura burguesa, contexto
social próprio ao melodrama, a mobilização em torno dos dramas decorrentes dos
laços naturais advém de sentimentos universais, ou considerados universais, cuja
dignidade não está necessariamente refletida na esfera pública. A tragédia, por sua
vez, apresenta suas tensões e problematizações apoiadas nas projeções do herói cuja
envergadura se confunde com a da sociedade como um todo.
O melodrama propõe uma cuidadosa atenção ao drama do que é comum
na vida, um “retrato dos infortúnios que nos rodeiam” sem, no entanto, traduzir-se
em uma recomendação de um realismo naturalista. Ao contrário, as emoções elevam-
se, em um gesto dramático, às crises morais e às peripécias da vida. Em seu interior,
articulam-se as verdades simples da vida e dos relacionamentos, onde a nitidez de um
sentido moral quase transcendental assume os gestos cotidianos. “We may legitimately

32 Maurício de Bragança – Melodrama: notas sobre a tradição/tradução de uma linguagem revisitada


claim that melodrama becomes the principal mode for uncovering, demonstrating,
and making operative the essential moral universe in a post-sacred era”3 (Brooks,
1995:15). Desta forma, o melodrama assume, a partir da dessacralização operada
desde o fim do século XVII, e confirmada pela Revolução Francesa no final do século
XVIII, uma tentativa de ressacralizar o mundo a partir de outras abordagens, não
mais sob o signo do trágico. Essa ruptura com o Sagrado tradicional e suas instituições
representativas – a Igreja e a Monarquia, fundamentalmente – operada pela Revolução
Francesa, veio acompanhada de um processo de dissolução de uma sociedade
tradicional que sustentava o Antigo Regime e teve como conseqüência a invalidação
de formas literárias, como a tragédia, que se articulavam com aquela sociedade. Neste
contexto, a Revolução se projeta como um momento no qual os referentes éticos do
mundo anterior foram colocados sob suspeita e, neste sentido, o melodrama se propõe
a uma readequação e rearticulação de uma moralidade oculta.
The Revolution can be seen as the convulsive last act in a process of
desacralization that was set in motion at the Renaissance, passed through
the momentary compromise of Christian humanism, and gathered
momentum during the Enlightenment – a process in which the
explanatory and cohesive force of sacred myth lost its power, and its
political and social representations lost their legitimacy. In the course
of this process, tragedy, which depends on the communal partaking
of the sacred body – as in the mass – became impossible. The crucial
moment of passage could no doubt be located somewhere in the
seventeenth century4 (idem:15-16).

Por ter sua origem moderna vinculada às manifestações das camadas


populares, que se identificavam com a catarse do homem comum projetada por este
tipo de narrativa, o melodrama sempre foi um gênero de má reputação, considerado
menor por uma elite ilustrada (Bentley, 1987). O melodrama do século XVIII
caracterizava-se pela clássica fórmula maniqueísta promovida pelo embate entre o
vício e a virtude, na qual o primeiro deveria ser punido ao fim da narrativa. Desta
forma promoviam-se os valores sociais do amor romântico,5 da domesticidade, do
respeito social, da dominação masculina e da pureza feminina (Cawelti, 1991). Através
da fórmula do melodrama, percebemos seu sentido de ordenamento social, o que
possibilita descortinar a moral vigente e o que a sociedade espera afirmar como padrão
de valores.
A proletarização da sociedade trouxe o imperativo do realismo à literatura,
o que acentuou a polarização entre a burguesia e as classes trabalhadoras. A modernidade
projetada pelo fim do século XIX e início do século XX trouxe consigo o gérmen de
um espírito racionalista, cientificista, visão historicamente defendida pelo naturalismo

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na literatura, em que havia a contenção do tom como modelo estético, dissociando-se
da “estética do exagero” presente nas obras filiadas ao melodrama vitoriano. A “retórica
do excesso” converteu-se na antípoda do naturalismo (Bentley, 1985). Na percepção
excludente de uma elite, o exagero fazia parte de um olhar ingênuo e infantil. Na
verdade, esta leitura do melodrama expunha o preconceito que um olhar “adulto”,
cientificamente domesticado, repousava sobre o mesmo (idem). A retórica do excesso,
na qual tudo tendia ao esbanjamento, desde a encenação de efeitos visuais e sonoros
até a estrutura dramática de sentimentos exacerbados, era uma vitória contra a repressão,
contra uma certa economia da ordem, da poupança e da retenção cultivada por qualquer
“espírito culto”.
Até 1791, os teatros de segunda categoria na França eram impedidos de
encenar dramas dialogados, e essas medidas eram controladas através de fortes
regulamentos do governo. O monopólio da palavra era exercido pelos teatros de
primeira grandeza (como o Ópera e o Théâtre-Français), e eram estes que tinham o
direito de, inclusive, censurar os textos que seriam encenados nos teatros secundários,
quando a palavra assumia um lugar para além de uma mera função narrativa. Os
teatros populares deviam, então, lançar mão de encenações através de elementos não-
verbais, como a música, a dança, o gestual, expressões faciais, posturas corporais, o
figurino, o cenário, já que, lançados ao impedimento da palavra verbalizada, cabia a
estes espetáculos populares o exercício da pantomima como recurso daquilo que
Brooks identifica como uma “aesthetic of mutenness”. As histórias aproveitavam o
conhecimento do espectador de contos populares e acontecimentos correntes, com
utilização de avisos e cartelas para indicar informações fundamentais6 (ainda que,
provavelmente, a grande maioria destes espectadores fosse iletrada) (Brooks, 1995;
Elsaesser, 1991; Singer, 2001a; Hays e Nikolopoulou, 1999).
A pantomima, desde seu início, era acompanhada pela música e, pouco
a pouco, foi se tornando mais elaborada, ao incorporar peças de diálogos. Após a
liberação do repertório para os teatros de segunda categoria pela Assembléia Nacional
burguesa, houve um rico florescimento de espetáculos de todos os tipos, especialmente
daqueles conhecidos como pantomimes dialoguées, pantomimes historiques e
mimodrames, aproximando-se cada vez mais dos melodramas. A Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada em 1789, criou um novo cenário
democrático-liberal no qual se afirmavam novos princípios sociais em oposição a
antigos valores aristocráticos. O melodrama soube refletir como nenhum outro gênero
naquele momento os embates de uma consciência burguesa emancipada moral e
emocionalmente contra as forças remanescentes do Antigo Regime, utilizando-se de
uma forma popular que apresentava forte potencial político e ideológico. “Melodrama

34 Maurício de Bragança – Melodrama: notas sobre a tradição/tradução de uma linguagem revisitada


was a cultural expression of the populist ideology of liberal democracy, even if the
bourgeois champions of that ideology did not have populist aesthetic sensibilities”7
(Singer, 2001a:132), mostrando-se então como um indicativo de um verdadeiro
fortalecimento do poder popular após a Revolução Francesa.
Seu período clássico situa-se a partir de 1800, com os textos de
Pixerécourt,8 nos espetáculos populares de feira ao ar livre, de caráter coletivo, muitas
vezes constituindo-se a única referência literária para um público analfabeto. Este
público não buscava palavras, mas ações e grandes paixões. É nesta época que se
forja a base do melodrama tal qual o conhecemos hoje, com seus gestuais exagerados,
em que a música sublinha, comenta ou antecipa a ação, formando um público de
massa, que vai acompanhar, com todas as ressignificações históricas ocorridas, o
desenvolvimento deste gênero. A importância da mise-en-scène, neste gênero, em
contraposição ao texto-palavra, sugere um “exagero” próprio do melodrama (exagero
que transcende o gestual e incorre na própria narrativa).

The desire to express all seems a fundamental characteristic of the


melodramatic mode. Nothing is spared because nothing is left unsaid;
the characters stand on stage and utter the unspeakable, give voice to
their deepest feelings, dramatize through their heightened and polarized
words and gesture the whole lesson of their relationship9 (Brooks,
1995:4).

Esta característica narrativa que transforma o melodrama no espetáculo


do excesso e do exagero por excelência demarca a hiperbolização dos elementos
melodramáticos que carregam uma alta carga emocional e ética, com significações
simbólicas profundas. Desta maneira, o mundo representado pelo melodrama se utiliza
de uma retórica através da qual o aparente drama do banal e do trivial se traduz num
verdadeiro drama moral cósmico, acionando mecanismos de encenação que abarquem
uma idéia de teatro total, desenvolvido em vários planos. O estilo histriônico de
representação aponta para uma relação do ator com a emoção postulado por um
princípio no qual tudo é suscetível a uma completa externalização. Estabelece-se
assim “uma forma de mimese como lugar de excelência da potencialização do olhar e
da cena, da busca da ‘impressão de realidade’ que tanto empenhou o teatro burguês
em seu projeto ilusionista” (Xavier, 2003:16-17).
Assim, a representação melodramática poderia construir um discurso
cujo sentido estaria pautado por uma idéia de inscrição da realidade. O melodrama
serviria não somente como forma de apresentar uma sociedade encoberta pela
grandiosidade gestual, como também articularia o próprio discurso em prol do
descortinamento de uma realidade social apresentada por uma metáfora, que também

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 29-47 35


estaria a serviço da representação melodramática. A aproximação ao “real” teria um
olhar sedimentado pelo melodrama, não só como estratégia de construção discursiva,
mas como a própria abordagem em si. Sobre a relação entre melodrama e realidade,
diz-nos Vargas Llosa:
Falo de uma certa distorção ou exacerbação do sentimento, de
perversão do gosto entronizado em cada época, dessa heresia,
contraponto, deterioração (popular, burguesa, e aristocrática), que os
modelos estabelecidos pelas elites, como padrões estéticos, lingüísticos,
sociais e eróticos, sofrem em cada sociedade; falo da mecanização e
aviltamento de que, na vida cotidiana, padecem as emoções, as idéias,
as relações humanas; falo da inserção, por obra da ingenuidade, da
ignorância, da preguiça e da rotina, do cômico no sério, do grotesco
no trágico, do absurdo no lógico, do impuro no puro, do feio no belo.
(...) o elemento melodramático me comove, porque o melodrama está
mais perto do real que o drama, a tragicomédia, que a comédia ou a
tragédia. (Vargas Llosa10 apud Meyer, 1996:384-385).
O exagero deste gestual carrega o peso hiperbólico de significados que
estão além da configuração literal. Todo o gestual deste mundo representado parece
ser configurado de tal forma que temos a impressão de que sucumbirá ao peso dos
sentidos nele colocados. Essa carga de significações caracteriza uma abordagem
que comumente se identifica como um estilo melodramático de exposição das
situações. Tudo isso faz parte do que Brooks classifica de “retórica do excesso”.
Neste contexto, o melodrama parece buscar uma realidade transcendental, uma vitória
sobre a imobilidade das coisas, uma expressão de espiritualidade diante de uma
existência dessignificada e dessacralizada (Landy, 1991). O excesso é utilizado como
estratégia de aproximação à “verdade”, a qual é escondida pela “realidade” apresentada
na narrativa.
Essa representação visual e essa ação têm importância fundamental na
mise-en-scène dos espetáculos de melodrama, diferentemente do teatro clássico
francês, no qual a palavra dita, verbalmente articulada, marca o drama. Aqui também
se anuncia a importância da “geometria do olhar” que garante a eficácia do efeito
ilusionista na confirmação desta “quarta parede” do teatro do século XVIII: a
composição de uma espécie de tableau como um espaço contido em si mesmo,
simulando um mundo autônomo num acordo tático com a platéia – a simulada
indiferença ao olhar do espectador e a completa consciência deste olhar que orienta
a construção do quadro da cena.
Indiferença ao olhar (simulada) e exibição (de fato); viver da convenção
da quarta parede e, no entanto, saber onde está o olhar para o qual tudo
se faz. Essa astúcia da representação – ou esse paradoxo para usar o

36 Maurício de Bragança – Melodrama: notas sobre a tradição/tradução de uma linguagem revisitada


vocabulário de Diderot quando aplicado à condição do ator – compõe
o solo do efeito ilusionista. Este se mostra algo mais do que uma questão
de geometria. A absorção é uma aparência de absorção; e a exterioridade
do olhar é apenas uma condição para toda uma gama de interesses e
investimentos de desejo a partir dos quais outra dialética tem lugar: de
um lado, a maquinação do prazer do olhar, o voyeurismo, o fascínio da
imagem (que se exibe); de outro, a lição de moral, o conteúdo
proclamado da mensagem, as sublimações e a contenção puritana nas
fórmulas narrativas (Xavier, 2003:19).

Essa suposta autonomia da composição da cena, sob a construção


marcada pela arquitetura de olhares, garante um efeito ilusionista que apóia os sentidos
em jogo com base na idéia de verossimilhança. A composição visual da cena nos
limites consolidados pela quarta parede permite – por meio da posição e expressão
dos atores, da cenografia, figurino, efeitos especiais (sonoros e visuais) etc. – a
construção do tableau, o campo de articulação dos significados visualmente
representados num intento de tornar claros, e sob o efeito de um impacto que provoque
uma stupéfaction générale, os sinais que denotem o pensamento primordial do
melodrama (Brooks, 1995:48). Em geral, estes quadros se formam no fim das cenas
e dos atos, quando há o momento de clímax, e a fala é silenciada e a ação narrativa é
suspensa, através de um impasse dramático que impede a reação imediata das
personagens, com o intuito de oferecer uma representação visual fixa da situação
apresentada.11 O Traité du mélodrame descreve com muita precisão a utilização do
recurso do tableau como mise-en-scène:
At the end of each act, one must take care to bring all the characters
together in a group, and to place each of them in the attitude that
corresponds to the situation of his soul. For example: pain will place a
hand on its forehead; despair will tear out its hair, and joy will kick a
leg in the air. This general perspective is designated as Tableau. One
can sense how agreeable it is for the spectator to take in at a glance the
psychological and moral condition of each character 12 (Traité du
mélodrame apud Brooks, 1995:61-62).

Assim, através desta encenação que se congelava no tableau, os


espetáculos de melodrama indicavam uma busca contundente de uma expressividade
capaz de estampar na fixidez da cena montada tudo aquilo que se percebia calcado na
superfície do mundo – marcado pelo gesto, a expressão do rosto esculpido em careta,
o corpo distorcido numa marca revelatória – e que se articulava com uma verdade
ulterior desprendida pelas peripécias do enredo, pelas reviravoltas da ação, pelas pistas
falsas espalhadas pela narrativa, num jogo mirabolante ao qual o olhar do espectador
é convidado a preencher a cena de sentido, sempre concebido de forma latente. A

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 29-47 37


descrição da superfície que se apresenta não irá, por si só, dar acesso ao mundo
interior de significados, mas possibilita expor os muitos processos de investigação
dos significados do mundo, demonstrando como essa superfície pode ser perfurada
e apresentar os significados que estão subterraneamente depositados.
O cinema de melodrama mexicano das anos 1930, 1940 e 1950, por
exemplo, trabalhou inúmeras imagens em tableau que, inclusive, se converteram em
imagens-emblemas do discurso fílmico, quase todas relacionadas aos espaços sociais
construídos para a mulher no interior daquele universo valorativo. Assim, imagens
como a mulher atrás das grades ou jogadas aos pés de homens povoaram as narrativas
destes filmes, configurando diversos tableaux inúmeras vezes repetidos no vasto
repertório daquelas décadas. Para além da narrativa stricto sensu do filme em que se
inseriam, estas imagens circulavam pela cinematografia e na composição de outros
produtos da indústria cultural, como as letras de bolero, e forjavam um imaginário
sobre o lugar que a mulher deveria ocupar naquela sociedade.13
O teor ilusionista do espetáculo presente no melodrama e na pantomima
marcou o sistema de expectativas do teatro no século XIX, apoiado na visualidade e
não na excelência de um texto poético. Na transposição desta quarta parede para o
cinema, a gramática do cinema clássico narrativo garante “um lugar para o espectador
fora do circuito dos olhares que se instala dentro da cena”, embora o efeito ilusionista
do cinema também crie no espectador uma sensação de “estar dentro da cena” –
com a utilização do campo e do contracampo, por exemplo – criando um “duplo
sentido da cena, de aparente absorção em si mesma e real exibicionismo” (Xavier,
2003:18).
Esse efeito ilusionista tem seu registro de validade confirmado num
pacto que se estabelece entre a mise-en-scène e o espectador, no qual se baseia uma
idéia de verossimilhança própria deste cinema clássico narrativo. Esse ilusionismo
converte-se, então, num princípio de representação que se estabelece na conformação
de um conflito de forças expressas pelos olhares em jogo. São esses olhares,
articuladores do projeto clássico narrativo no cinema, que acabam, segundo Xavier,
por pautar nossa relação com o mundo representado, esse mundo-objeto que nos
parece autônomo e sobre o qual adotamos uma postura de naturalização, afastando-
nos dos questionamentos que poderiam mediar nosso olhar sobre a estrutura de
funcionamento deste corpo.
Vale na imaginação melodramática a idéia da expressão direta dos
sentimentos na superfície do corpo, seja pelo gesto ou fisionomia que
sublinha uma reação ou uma intenção da personagem, seja pela simples
marca (de nascença ou adquirida) que assinala traços de caráter. (...) o

38 Maurício de Bragança – Melodrama: notas sobre a tradição/tradução de uma linguagem revisitada


mundo visível, embora passível de equívocos sem os quais não haveria
o drama, é um espelho da moral que termina por triunfar, fazendo
valer sua verdade (idem:94).
Nesta articulação de sentidos, o som, a música em particular, adquire
um papel fundamental para a construção do espetáculo ilusionista, encorpando
dramaticamente o mundo e modulando a ação e a intenção das personagens. O som
confere dimensão de profundidade à imagem, criando no espetáculo um diálogo entre
os elementos cênicos relacionados diretamente aos significados visuais da mise-en-
scène. Segundo Thomas Elsaesser (1991), a música no melodrama apresenta tanto
um papel funcional (de significação estrutural) quanto temático (pertencente a um
contexto de expressão) na construção de sentidos, afirmando sua função sintática, e
é usada para criar certos estados do ser – tristeza, violência, surpresa, suspense,
felicidade, horror, desespero.
In its dictionary sense, melodrama is a dramatic narrative in which
musical accompaniment marks the emotional effects. This is still
perhaps the most useful definition, because it allows melodramatic
elements to be seen as constituents of a system of punctuation, giving
expressive colour and chromatic contrast to the storyline, by
orchestrating the emotional ups and downs of the intrigue. The
advantage of this approach is that it formulates the problems of
melodrama as problems of style and articulation14 (idem: 74).
As transformações sociais trazidas pelo século XIX impuseram uma
maior complexificação temática das obras de melodrama, inserindo questões políticas
e sociais nos espetáculos que seriam encenados para as classes trabalhadoras. Assim,
o melodrama exerceu um papel fundamental naquele século, ainda que repudiado e
subestimado por uma crítica conservadora, que lhe conferia um status ilegítimo
destinado a suas “insensíveis platéias de selvagens iletrados”.15 Tais críticas indicam
que o melodrama ocupou um espaço crucial no qual as exigências culturais, políticas
e econômicas do século XIX colocavam-se e transformavam-se em discursos públicos
sobre questões de dimensões específicas do individual, enfatizando os sentimentos
privados e interiorizados, numa articulação entre moralidade e consciência (Hays e
Nikolopoulou, 1999).
O apogeu deste tipo de melodrama coincidiu com o período de intensa
crise social e ideológica que se refletiu em todo o século XIX. Os elementos
melodramáticos e as personagens freqüentes neste tipo de narrativa, como o vilão de
ascendência nobre e a mocinha proveniente das classes populares que é sexualmente
perseguida, indicam questões de conflito político e ideológico, enfatizando a luta de
uma consciência burguesa contra os privilégios aristocráticos provenientes de uma

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 29-47 39


sociedade religiosamente ordenada que mantém os abusos de uma autoridade
absolutista. Desta forma eram personalizados os conflitos ideológicos aliados à
interpretação metafórica dos conflitos de classe (Elsaesser, 1991).
O desenvolvimento do melodrama veio incorporar um público que, de
certa forma, foi responsável pelo equilíbrio entre satisfazer as exigências estilísticas
do gênero e a demanda por um sentido mais próximo da realidade. Era a emergência
do que ficou conhecido na metade do século XIX como o “melodrama social”, que
teve na literatura de Charles Dickens sua maior expressão.
O surgimento deste capitalismo moderno trouxe consigo um espírito
de modernidade, vivido de forma difícil e complexa. As camadas populares se sentiam
desamparadas neste mundo pós-sagrado, desencantadas por uma ambigüidade moral
e certa vulnerabilidade material. A desorganização moral, cultural e socioeconômica
se refletia também na emergência de um liberalismo popular (e “populista”) no qual
as massas entravam em cena no jogo da modernidade. O melodrama, como um
gênero das classes trabalhadoras, evocava de certa forma a vulnerabilidade e a
insegurança características desta transição para uma cultura de mercado própria da
primeira metade do século XIX e que se intensificaria no transcorrer daquele século,
quando ruíam uma certa estabilidade e a simplicidade de uma fé religiosa tradicional
e patriarcal.
Se, por um lado, o melodrama se servia de um modelo individual
programado pela aspereza de uma vida material acionada pelos códigos de um
capitalismo moderno, por outro, assumia uma função de ressacralização dos vértices
morais daquela sociedade, parecendo oferecer uma fé compensatória que
reprogramasse uma força moral cósmica elevada que desse conta das vicissitudes
dessa vida moderna. É neste sentido que a idéia de “imaginação melodramática”
formulada por Brooks se coloca intimamente ligada à idéia de “imaginação moderna”,
num esforço de significação de um pensamento e de um romance modernos. O
melodrama pertence, então, com suas críticas e revisões contemporâneas, a um
repertório crítico e cultural que percebe o “modo melodramático” como uma
“inescapable dimension of modern consciousness”16 (Brooks, 1995: viii).
Cabe aqui refletirmos a respeito das vinculações entre melodrama e
modernidade, fundamentais nas discussões acerca da espectatorialidade, do popular
e da visualidade próprios da sociedade moderna. Nesta abordagem, a modernidade
está implicada não só com a idéia de mudanças tecnológicas e sociais relacionadas
ao crescimento populacional, com a instauração de um capitalismo industrial, com a
urbanização e com a explosão de uma cultura de consumo de massa, mas também
com as mudanças de novas experiências de espectatorialidade relacionadas ao registro

40 Maurício de Bragança – Melodrama: notas sobre a tradição/tradução de uma linguagem revisitada


de novas formas de subjetividades, fundamentalmente distintas do momento anterior
(Singer, 2001b).
A cidade moderna promoveu um desenvolvimento de hiperestímulos
decorrentes de novos critérios de tempo e espacialidade que afetavam a percepção de
ordem visual e auditiva numa carga de ansiedade proveniente de atos reflexos e impulsos
nervosos. As cidades eram tomadas por multidões que tinham que aprender a lidar
com as marcas dos novos tempos, como a substituição dos antigos carros puxados a
cavalo pelos automóveis e bondes elétricos, por exemplo. Os acontecimentos urbanos,
decorrentes desta nova subjetividade vivida a partir de uma nova relação com o tempo
e com espaço, traziam consigo um sentimento de insegurança e vulnerabilidade jamais
experimentado anteriormente ou, ao menos, de uma forma extremamente diferente. A
cidade moderna parecia ameaçadora na sua produção de hiperestímulos relacionados
ao medo e à violência. É neste contexto que surge uma cultura do sensacionalismo
destinada a um consumo em massa relacionado não somente a uma “simples
manifestação da curiosidade mórbida e oportunismo econômico, mas também a uma
hiperconsciência especificamente histórica da vulnerabilidade física no ambiente
moderno” (idem:127).
Não podemos deixar de apontar o desenvolvimento da indústria editorial
e a popularização da imprensa, que contribuíram para o desenvolvimento de um tipo
de abordagem do fato jornalístico de forma romanceada, o fait divers, “uma notícia
extraordinária, transmitida em forma romanceada, num registro melodramático, que
vai fazer concorrência ao folhetim e muitas vezes suplantá-lo nas tiragens” (Meyer,
1996:98). Essa excitação marca uma nova espectatorialidade relacionada à difusão de
um sensacionalismo que está presente na “imprensa marrom”, nos programas de
divertimento em massa e também em uma nova abordagem dos melodramas teatrais,
agora repletos de recursos que enfatizavam a visualidade da ação violenta, os
espetáculos de catástrofe e de riscos físicos.17 Não é à toa que Victor Hugo escreve,
no prefácio de Ruy Blas, publicado em 1838, que a tragédia apela ao coração, a
comédia à mente e o melodrama aos olhos. O escritor francês, um dos mais engenhosos
na articulação da imaginação melodramática, percebia que a arte do melodrama se
aproximava visceralmente às situações encenadas, à utilização de uma linguagem que
trabalhasse sob o domínio das impressões visuais, exacerbando a dimensão do patético
e do efeito de excitação pelo afastamento do texto, da palavra proferida verbalmente.
A modernidade anunciada e vivenciada já apresentava o império do sentimento vinculado
ao império do espetáculo.
O melodrama faz crescer a importância da mise-en-scène. No interior
dessa lógica, adereços, mobiliário, também a troca de ambientes, as

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irrupções violentas, o movimento intenso são aspectos que ganham
destaque. Devem cooperar na concretização da história, para que o
realismo da cena intensifique as emoções suscitadas. (...) Destinam-se
também a sensibilizar camadas da platéia menos habituadas às
convenções teatrais. Para este grupo que apenas começa a se tornar
assíduo às casas de espetáculos, mercê da revolução social em curso,
dizem muito pouco as sutilezas de linguagem de que se alimentava o
fino gosto da aristocracia (Huppes, 2000:104-105).
A inserção do sensacionalismo também se relaciona ao elemento
catalizador do envolvimento emocional e detonador do pathos junto ao público. Isso
garante também, segundo Singer (2001a), uma aproximação do melodrama a um
sentido de realismo. Ainda que o melodrama apresente características não-realistas,
ao menos não no sentido naturalista, a verdade que se apresenta encoberta pelo
espetáculo encenado está impregnada de um sentido de realidade. Essa mise-en-scène
excessivamente carregada pela espetacularização de forma sensacionalista, e que muitas
vezes lança mão de recursos narrativos não-aristotélicos de causa e efeito, com ênfase
em coincidências improváveis, resoluções deus ex machina e artifícios marcados pela
implausibilidade, podem superar a princípio a experiência comum stricto sensu. Os
eventos, porém, a ela relacionados trazem uma forte carga de corporeidade, de risco,
de perigo iminente, de vulnerabilidade, que estava muito intimamente implicada na
vida das classes mais populares e, portanto, muito próximos a um sentido de realismo
articulado a estratégias de reconhecimento e engajamento (idem: 46-53).
Estes recentes estudos sobre o melodrama inspiram-nos a recolocá-lo
nas discussões atuais, assumindo um outro local de representação. Sob esta perspectiva
contemporânea, o melodrama oferece a carga de artificialidade e desnaturalização
necessária para se encontrarem adesões em meio a novas circunstâncias sociais,
num momento em que a teatralidade e a noção de performance são emblemas de uma
espetacularização dos discursos. Assim, o que antes parecia indicar um mero local de
entretenimento politicamente inconseqüente e plenamente integrado à indústria cultural,
sem oferecer conflitos, redimensiona-se e ganha um vulto político capaz de acionar
as discussões sociais necessárias para apontar as fissuras e contradições das sociedades
contemporâneas.

MAURÍCIO DE BRAGANÇA é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal


Fluminense (UFF) e professor de História da América do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
(IFCS)/Universidade Federal do Rio de Janeiro.

42 Maurício de Bragança – Melodrama: notas sobre a tradição/tradução de uma linguagem revisitada


NOTAS

1 As traduções do inglês presentes neste artigo são de minha autoria: “A


voz narrativa, com suas proposições e hipóteses grandiosas, leva-nos em um movimento
através e para além da superfície das coisas, até o que repousa por trás, para a
realidade espiritual que é o cenário verdadeiro do drama excessivamente colorido a
ser encenado no romance. O romance é constantemente tensionado para captar esse
drama essencial, para ir além da superfície do real à verdadeira e escondida realidade,
para expor o mundo do espírito.”

2 “A hipérbole, o conflito polarizado, a ameaça e o suspense das


representações ocorrem necessariamente através do esforço de perceber o espiritual
num mundo esvaziado de seu Sagrado tradicional, onde o corpo do que é ético se
transforma num tipo de deus absconditus que deve ser apreciado, postulado, trazido
para a existência do homem através do exercício da imaginação do espírito.”

3 “Podemos legitimamente afirmar que o melodrama se torna o principal


modo para descobrir, demonstrar e fazer operante o universo moral essencial na era
pós-sagrada.”

4 “A Revolução pode ser vista como o último ato convulsivo no processo


de dessacralização que se deu a partir do Renascimento, passado pelo compromisso
transitório de um humanismo cristão, e acolhido durante o Iluminismo – um processo
no qual a força explicativa e coesiva do mito sagrado perdeu sua força, e suas
representações políticas e sociais perderam sua legitimidade. No curso deste processo,
a tragédia, que depende de um compartilhamento comum do corpo sagrado – como
na missa – tornou-se impossível. O momento crucial de passagem poderia sem dúvida
ser localizado por volta do século XVII.”

5 O mito do amor romântico, que compreende a linguagem passional do


amor cortês e o papel definido para homens e mulheres neste modelo de relação
amorosa, foi historicamente construído por volta do século XII e define, dentre outras
coisas, uma série de princípios éticos e estéticos que orientariam as relações de gênero.
Dois modelos paradigmáticos deste amor romântico estão representados na
Correspondência de Abelardo e Heloísa e em Tristão e Isolda. Para uma maior discussão
acerca da construção histórica do amor romântico a partir dos textos que se produziram
refletindo este modelo, consultar Bloch (1995).

6 Este procedimento também reflete uma estratégia presente no


primeiro cinema.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 29-47 43


7 “O melodrama foi uma expressão cultural da ideologia populista da
democracia liberal, mesmo que os defensores burgueses daquela ideologia não tivessem
sensibilidades estéticas populistas.”

8 Pixerécourt foi considerado o “pai do melodrama”, tendo seu ápice de


produção nas primeiras décadas do século XIX, quando foi extremamente popular na
França, tendo tido até 30 mil apresentações de suas obras. Costumava dizer que
escrevia para aqueles que não sabiam ler (Vincent-Buffault, 1988).

9 “O desejo de expressar tudo parece ser uma característica fundamental


do modo melodramático. Nada é dispensado porque nada deixa de ser mencionado;
as personagens encontram-se no palco e exprimem o indizível, dão voz aos seus
sentimentos mais profundos, dramatizam suas palavras elevadas e polarizadas e
encenam a lição inteira de seus relacionamentos.”

10 VARGAS LLOSA, Mario. A orgia perpétua: Flaubert e mme. Bovary.


Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979 (p. 20-21).

11 É muito comum que as telenovelas utilizem este tipo de artifício,


marcando o último momento antes da interrupção comercial, quando a ação é suspensa
e os atores congelam numa atônita paralisia.

12 “Ao fim de cada ato, deve-se cuidar para manter todas as personagens
juntas num grupo, e localizar cada uma delas no gesto que corresponda à situação de
seu espírito. Por exemplo: o sofrimento se localizará na sua mão sobre a testa, o
desespero a fará puxar seu cabelo, e a felicidade a fará lançar a perna no ar. Esta
perspectiva geral é designada como Tableau. Pode-se perceber o quão confortador é
para o espectador pegar de imediato a condição psicológica e moral de cada
personagem.”

13 É importante registrar a experiência de Luis Buñuel na utilização dos


tableaux no interior de seus melodramas realizados no México. A transparência e a
verossimilhança do cinema clássico-narrativo são subvertidas em seus filmes, nos
quais a ambigüidade se instala como possibilidade de escapar de uma moral maniqueísta.
O estranhamento provocado pelo seu cinema, inclusive quando trabalhava com o
repertório do melodrama e com o star-system do cinema mexicano, de certa forma
esvaziava o pathos próprio do melodrama, substutuindo-o por um olhar cínico que
expunha o efeito de representação presente na catarse melodramática. Neste sentido,
a clássica imagem tableau da família reunida em torno da mesa de jantar que está no
início e no fim de seu filme Susana (carne y demonio), de 1950, apresenta toda uma

44 Maurício de Bragança – Melodrama: notas sobre a tradição/tradução de uma linguagem revisitada


carga de ironia que destrói de forma categórica o discurso moralista que sustentava
tal encenação no repertório canônico. Da mesma forma, Arturo Ripstein, cujo cinema
traz uma forte influência de Buñuel, costuma também dialogar com os modelos do
melodrama mexicano, desautorizando seu conteúdo moralista e instaurando um
desconcertante olhar que transgride os sentidos clássicos das imagens tableaux. Como
exemplos maiores, citamos aqui o filme El castillo da la pureza, de 1972, e El lugar sin
límites, de 1977. No primeiro, Ripstein revisita os melodramas familiares da época de
ouro do cinema mexicano para discutir o autoritarismo e a intransigência presentes na
concepção da família/Estado, movido ainda pelo trauma causado pelo massacre de
Tlatelolco, operado pelo governo mexicano contra os estudantes em outubro de 1968.
Na adaptação da obra de José Donoso para o cinema, roterizada por Manuel Puig, é o
cinema de cabaretera dos anos 1940 e 1950 e o cinema de ficheras dos anos 1970 que
oferecem o modelo estético e narrativo para que o diretor pudesse discutir a intolerância
e a violência presentes no texto de Donoso.

14 “No seu sentido dicionarizado, o melodrama é uma narrativa dramática


na qual o acompanhamento musical marca os efeitos emocionais. Talvez esta ainda
seja a definição mais útil, porque permite que os elementos melodramáticos sejam
vistos como constituintes de um sistema de pontuação, proporcionando cor expressiva
e contraste cromático ao enredo, através da orquestração dos altos e baixos emocionais
da intriga. A vantagem desta abordagem é que ela formula os problemas do melodrama
como problemas de estilo e articulação.”

15 Há muita conexão entre uma platéia popular formada basicamente por


operários e artesãos e os espetáculos de melodrama apresentados, freqüentemente
caracterizados por uma literatura radical da época. “In terms of the early melodrama
in England, the claim for a linkage between the melodrama and the political and social
conditions of the world in which it emerged seems quite unproblematic.(...)
Furthermore, there is no doubt that early artisan spectators of melodrama, the same
folks who also took part in the ‘making of the English working class’, were the
readers and, on occasion, the creators of the radical literature of the time.” [Em
termos do antigo melodrama na Inglaterra, a demanda por uma ligação entre melodrama
e as condições políticas e sociais do mundo no qual ele emergia parece não haver
problemas. (...) Além disso, não há dúvida que os antigos artesãos espectadores do
melodrama, os mesmos que também tomaram parte na “formação da classe operária
inglesa”, eram os leitores e, ocasionalmente, os criadores da literatura radical do
momento] (Hays e Nikolopoulou, 1999:viii).

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 29-47 45


16 “Inescapável dimensão da consciência moderna.”

17 É desta época a proliferação de espetáculos populares do tipo “globo da


morte”, com números arriscados envolvendo aparatos tecnológicos, ou parques de
diversão com montanhas-russas, por exemplo. Uma imagem típica dos enredos de
melodrama da virada do século XIX para o XX e que sintetiza este “sentimento social
de vulnerabilidade” é a da mocinha amarrada ao trilho de trem ou presa a uma prancha
prestes a ter seu corpo cortado por uma serra elétrica gigantesca ou ainda alguma
engenhoca que ameaça estraçalhar o corpo da heroína e que tem seu funcionamento
marcado por um aparato cronometrado. Essa relação entre melodrama/
sensacionalismo/tecnologia foi muito bem trabalhada pelos filmes de Griffith e ainda
tem sua reatualização no cinema contemporâneo através de superproduções como
Titanic (James Cameron, 1997), por exemplo, só para citar um caso de assombroso
sucesso mais recente.

46 Maurício de Bragança – Melodrama: notas sobre a tradição/tradução de uma linguagem revisitada


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 29-47 47


Telenovelas, telespectadores
e representações do amor
Paula Guimarães Simões
Vera França

A proposta deste artigo é analisar representações do amor em algumas


telenovelas brasileiras exibidas recentemente pela Rede Globo, bem como o
posicionamento e interlocução estabelecida entre telespectadores e tais narrativas
ficcionais.1 O objetivo é delinear um universo simbólico sobre o valor do amor,
construído na interlocução entre telenovela e vida social, entre ficção e realidade. Os
sentidos configurados nessa relação são atuantes na permanente atualização do ethos
contemporâneo, ou seja, do conjunto de referências que orientam a vida dos sujeitos,
dentre as quais o amor ocupa um lugar central.
Dessa forma, o texto traz uma discussão sobre a constituição do ethos
e da própria vida social, bem como o papel dos discursos da mídia (e da telenovela)
nessa configuração. Em seguida, há uma apresentação sobre a relação entre ficção e
realidade, que se realiza a partir da construção de representações. Dentre estas,
destacam-se aqui as construídas em torno do valor do amor. Por fim, traz-se uma
análise empírica de experiências amorosas construídas em telenovelas brasileiras
contemporâneas e de posicionamentos do público telespectador em relação ao tema
analisado, a fim de traçar um quadro acerca do amor na interlocução entre telenovela
e vida social.

A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO ETHOS


A vida social está em constante processo de (re) construção. Ela não é
algo dado e preestabelecido oferecido aos sujeitos, mas é permanentemente constituída
e transformada pela ação e interação destes no mundo. É a experiência humana que
funda a realidade social, constituindo discursivamente o universo de valores, referências
e normas que orientam a vida dos indivíduos. É importante compreender esse processo
para melhor delinear a relação entre telenovela e vida social.
O processo de “construção social da realidade” (Berger e Luckmann,
2000) é realizado por sujeitos em constante interação e comunicação com outros. É
nesse espaço de ação conjunta que eles constroem suas experiências e o próprio
mundo. Dessa forma, a experiência deve ser entendida não apenas como um estar
vivo no mundo, mas como um (inter)agir — do homem com o mundo, com os
outros e consigo mesmo. Significa um trabalho de apreensão e leitura da realidade,

48 Paula Guimarães Simões e Vera França – Telenovelas, telespectadores e representações do amor


que ocorre em duas dimensões: uma dimensão sensível — apreensão pela percepção
— e uma dimensão simbólica — apreensão pelos sentidos construídos. Esse trabalho
é realizado no espaço de ação e intervenção dos homens, nesse mundo partilhado
intersubjetivamente, na realidade da vida cotidiana.
Essa construção da vida social é efetivada através da linguagem. Esta é
a “mediação fundamental” para a realização do homem com os outros no mundo
(Herrero, 1982:77). Conforme França, a linguagem se refere
ao conteúdo expresso sob uma certa forma. Na linguagem, vamos
alcançar, através dos atos de discurso, a produção de uma materialidade
simbólica, o movimento de investimento do sentido, ato voluntário e
humano de produção de símbolos, articulação e troca de palavras
(1998:47).
É a linguagem que marca o ser do homem em sociedade. Através dela,
o indivíduo pode acessar a subjetividade do outro e tornar acessível sua própria
subjetividade.2 Como afirma Adriano Rodrigues, “é na e pela linguagem que a
experiência se constitui, se revela ou se desvenda o sentido que a enforma” (1990:32).
A linguagem tem, portanto, um papel constituidor da experiência humana.
No decorrer desse processo de construção das experiências e da
realidade social, a própria cultura vai sendo constituída. Esta pode ser entendida como
“um corpo complexo de normas, símbolos, mitos e imagens que penetram o indivíduo
em sua intimidade, estruturam os instintos, orientam as emoções” (Morin, 1997:15).
Refere-se a um universo simbólico em permanente construção, que penetra nos homens,
estrutura e orienta suas ações no mundo; ou seja, a cultura está intimamente relacionada
à vida prática, à existência concreta dos homens. Ela, portanto, é constituída pela
produção de sentidos instaurada tanto por textos e representações mais amplos quanto
pelos sujeitos em suas práticas cotidianas.
O ambiente cultural de uma sociedade, marcado pela fluidez e pelos
pluralismos, é permeado por valores, referências e costumes que norteiam a vida dos
sujeitos. Esse universo de sentidos constituidor da cultura está situado em um espaço
determinado, disposto para a ação e a realização humanas — no ethos. A palavra ethos
vem do grego e refere-se a habitar, designando tanto a própria morada como as
condições, as normas e os modos de atuação rotineiros dos sujeitos nesse lugar
específico (Sodré, 2001:153-154). Como aponta Sodré, o ethos compreende costumes,
hábitos, regras e valores que constituem e regulam o sentido comum em uma sociedade.
A partir disso, é possível afirmar que o ethos das sociedades
contemporâneas é constituído por um conjunto de valores, normas, referências,
modos de atuar, hábitos, que orientam a ação dos sujeitos. Esse universo não é

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 48-69 49


estável e fixo; ele é constantemente modificado e atualizado a partir de aproximações
e afastamentos, reconhecimentos e estranhamentos no quadro mais amplo de valores
que o constitui. Afinal,
[...] não há ethos sem um ambiente cognitivo que o dinamize, sem
uma unidade dinâmica de identificações de grupo, que é seu modo de
relação com a singularidade própria, isto é, a cultura: aí atuam as formas
simbólicas que historicamente orientam o conhecimento, a sensibilidade
e as ações dos indivíduos (idem:154, tradução nossa).3
Assim, as referências que compõem o ethos contemporâneo orientam a
ação humana, que, por sua vez, atualiza as referências existentes em um movimento
dinâmico, que configura novos valores e provoca deslocamentos. Nesse movimento
constituidor do ambiente cultural de uma sociedade, o papel dos discursos é
fundamental, pois é na prática discursiva que as normas e referências ganham
existência sensível. O discurso pode ser entendido como uma materialidade simbólica
produzida no espaço da interlocução entre os sujeitos e inscrita em contextos; é a
linguagem colocada em ação pelos interlocutores.4 Os discursos são produtos de —
e sempre se dirigem a — interlocutores; eles não existem em si, mas ganham existência
material no ato da enunciação.
Conforme Bakhtin, “A palavra dirige-se a um interlocutor” (1992: 112,
grifo do autor); “mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído
pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor” (idem, ibidem).
A enunciação, portanto, está ligada a essa dinâmica de interação estabelecida entre os
sujeitos. Como sustenta Bakhtin, a enunciação não é um fato individual, mas sim um
produto da interação social. 5 Os discursos são construídos e transformados
continuamente na relação entre os homens.
Os enunciados construídos nas interações entre os sujeitos sociais trazem
as marcas dos valores e das referências que perpassam a sociedade em que estão
inscritos. Afinal, o ato de enunciação “é sempre pressuposto no produto que dele
resulta, o enunciado, ou seja, a enunciação nunca é explicitada, mas deixa no enunciado
as suas marcas” (Balogh, 2002:70). Ao mesmo tempo em que utilizam o universo
simbólico existente, os indivíduos renovam e atualizam-no, a partir do contexto social
e da situação interlocutiva que se delineia no ato da enunciação.
Assim, os diversos discursos produzidos em uma cultura — tanto os
construídos pelo sujeitos da vida cotidiana quanto os produzidos pela mídia — trazem
as marcas da sociedade e do contexto em que estão inscritos e ajudam a configurar e
reconfigurar o universo cultural, o ethos dessa mesma sociedade. É preciso
compreender melhor esse diálogo que se estabelece entre cultura e sociedade, a fim

50 Paula Guimarães Simões e Vera França – Telenovelas, telespectadores e representações do amor


de elucidar tanto a natureza dos discursos e os sentidos por eles instaurados quanto
os elementos que constituem o contexto social em que se inscrevem: “[...] situar os
textos culturais em seu contexto social implica traçar as articulações pelas quais as
sociedades produzem cultura e o modo como a cultura, por sua vez, conforma a
sociedade por meio de sua influência sobre indivíduos e grupos” (Kellner, 2001:39).
A análise e a interpretação dos discursos que permeiam e constroem a
realidade social podem ajudar a apreender a estrutura e a dinâmica de uma sociedade,
bem como os valores e as referências que a atravessam. As diferentes formas
simbólicas6 devem ser estudadas “em relação a contextos e processos historicamente
específicos e socialmente estruturados dentro dos quais, e por meio dos quais, essas
formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas” (Thompson, 1999:181).
A partir disso, é possível elucidar não apenas aspectos estruturais internos dos
fenômenos culturais, mas também características significativas da própria vida social.
Isso significa que a compreensão dos diferentes bens simbólicos que edificam uma
cultura
pode ajudar-nos a entender nossa sociedade contemporânea. Ou seja,
entender o porquê da popularidade de certas produções pode elucidar
o meio social em que elas nascem e circulam, podendo, portanto, levar-
nos a perceber o que está acontecendo nas sociedades e nas culturas
contemporâneas (Kellner, 2001:14).
Em todo esse movimento dinâmico e circular — de construção das
experiências, da realidade social, dos discursos, dos valores, das referências, das
formas simbólicas, da cultura, do ethos —, a mídia ocupa um lugar de destaque.
Segundo Adriano Rodrigues, os media ou os dispositivos midiáticos são “constitutivos
dos quadros éticos da experiência, formando o horizonte do sentido das diferentes
esferas da experiência moderna, constituindo o sistema de valores que tornam
pertinentes os discursos e as acções” (1994:79).
Assim, os meios de comunicação configuram-se como um importante
espaço de constituição de um universo de representações que aponta para a sociedade
em que estão inscritos. As imagens e os espetáculos veiculados pela cultura da mídia7
colaboram na construção do “tecido da vida cotidiana, dominando o tempo de lazer,
modelando opiniões políticas e comportamentos sociais e fornecendo o material com
que as pessoas forjam sua identidade” (Kellner, 2001: 9).
A mídia disponibiliza diferentes materiais simbólicos, discutindo assuntos
e preocupações da sociedade em que está inscrita, oferecendo modelos de identificação,
padrões de comportamento e hierarquias de valores, que são apropriados e incorporados
pelos sujeitos no decorrer dos processos de leitura dos diversos produtos. É preciso

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reconhecer que a cultura da mídia colabora na conformação de visões de mundo, de
opiniões, de valores e comportamentos, ressaltando que sua contribuição se cruza
com a subjetividade e a inscrição sociocultural dos sujeitos no processo de conformação.
O reconhecimento desse papel da mídia na configuração do ethos
contemporâneo sinaliza para o fato de que a investigação sobre os produtos culturais
de uma sociedade pode ajudar a evidenciar os valores e as referências que a compõem.
Ou seja, os bens culturais podem ser lidos “como contexto social a nos dizer algumas
coisas sobre a sociedade contemporânea” (idem: 307) — sociedade esta em que os
meios eletrônicos, principalmente a televisão, ocupam um lugar fundamental em sua
própria constituição social. Recuperando discussão empreendida por Stuart Hall, Mauro
Porto aponta que
nas sociedades contemporâneas, caracterizadas pelo desenvolvimento
de uma poderosa indústria cultural, os mídia eletrônicos —
particularmente a TV — tornaram-se os agentes principais na
construção do consenso e disseminação de representações sobre a
realidade. As formas pelas quais a realidade é representada nos mídia
desempenham um papel constitutivo na vida política e social e não são
meros reflexos “a posteriori” dos eventos, em um processo dinâmico
estabelecido através de “Cenários de Representação” (1995: 59).
A televisão é, portanto, um meio de comunicação de massa fundamental
para evidenciar o diálogo entre a sociedade e a cultura. Veículo privilegiado para a
informação e o divertimento do público, a TV pode ser vista como um elemento que
contribui para a integração nacional, a constituição do laço social e da identidade
nacional (Wolton, 1996:19). A televisão exibe hábitos e valores que perpassam a
sociedade, mas, ao mesmo tempo, “mostra e analisa os hábitos e costumes que está
ajudando a desfazer, transformar e criar” (Pignatari, 1984: 60). Esse meio de
comunicação não apenas reproduz costumes e valores da sociedade, mas também
colabora na reconfiguração desse universo simbólico que constitui a realidade social.
Como aponta Romano, a televisão “tem sido uma das mais importantes referências de
valores e hábitos ‘modernos’ para os telespectadores” (1998: 79).
Dentre os formatos exibidos na programação televisiva brasileira, um
deles tornou-se um dos principais produtos da cultura nacional: a telenovela. Esse
gênero ficcional vem abordando em suas narrativas aspectos vinculados a temáticas
sociais, culturais e políticas da realidade social do país. Assim como os demais produtos
da cultura da mídia, a telenovela brasileira ajuda a evidenciar os valores que constroem
a sociedade. Através da inscrição destes nas ações e falas das personagens, a telenovela
não apenas os reproduz, mas configura um movimento que constantemente atualiza o
ethos contemporâneo.

52 Paula Guimarães Simões e Vera França – Telenovelas, telespectadores e representações do amor


A telenovela ocupa, assim, um importante lugar na cultura e na sociedade
brasileiras. Ela constrói um cotidiano na tela em estreita relação com a realidade social
em que se situa, trazendo para a construção das personagens as preocupações, os
valores e os temas que perpassam o cotidiano dos telespectadores. “A telenovela é um
universo onde circulam, reelaborados, a partir das normas da ficção, aquilo que está
acontecendo na sociedade, os problemas, os valores [...]” (Baccega, 1998: 9). É da
própria vida social que emergem os temas a serem debatidos e atualizados nas obras
ficcionais, configurando um movimento circular entre a telenovela e a sociedade.
Assim, a telenovela instaura uma interação que coloca em relação todos
os elementos que a configuram: os discursos que emergem com a narrativa
telenovelística, os sujeitos que os constroem — autores, diretores, enfim, os
realizadores (Souza, 2003: 4) — e os indivíduos que a apreendem — os telespectadores.
É importante ressaltar que todo esse processo ocorre em um contexto: a realidade
social brasileira. A partir dele, emergem os temas a serem trabalhados na ficção, que,
por sua vez, retornam para a vida social.
É justamente essa estreita relação entre a telenovela e a sociedade —
entre ficção e realidade — que vem sendo apontada por pesquisadores como a marca
específica da telenovela brasileira. Esses dois âmbitos de produção simbólica constroem
representações que participam da configuração do ethos contemporâneo. Antes de
proceder à análise de algumas dessas construções, é importante compreender o modo
como esses mundos — o real e o ficcional — são constituídos. Além disso, apreender
a forma como eles se relacionam através de um movimento permanente de construção
de representações, de produção de sentidos.

A NATUREZA DAS REPRESENTAÇÕES


As obras de ficção podem ser entendidas como histórias imaginárias,
que não correspondem inteiramente à realidade em que seus leitores estão situados
(Eco, 1999). Entretanto, segundo Umberto Eco, isso não significa que o leitor deva
pensar que a ficção apresenta falsidades e mentiras. Nas palavras do autor,
a norma básica para se lidar com uma obra de ficção é a seguinte: o
leitor precisa aceitar tacitamente um acordo ficcional, que Coleridge
chamou de “suspensão da descrença”. O leitor tem que saber que o
que está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso
deve pensar que o escritor está contando mentiras (idem:81).
Conforme Eco, a ficção não pode ser entendida como apresentação de
ilusões, já que ela toma o real como pano de fundo. Os criadores das obras se apropriam
de elementos da realidade na construção dos universos ficcionais: na caracterização

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 48-69 53


das personagens, na realização das ações e na configuração dos sentimentos que irão
perpassar a estrutura da narrativa ficcional. Daí a verossimilhança que caracteriza
muitas obras de ficção.
Entretanto, ainda que tome o real como pano de fundo, a ficção apresenta
regras próprias na constituição de seus mundos possíveis. São essas regras que
estabelecem critérios de confiança do leitor em relação à obra. Quando se refere à
noção de verdade nas estruturas ficcionais, Eco diz que “as afirmações ficcionais são
verdadeiras dentro da estrutura do mundo possível de determinada história” (idem:94).
Ou seja, ao assinar o acordo ficcional, os leitores passam a aceitar como confiáveis
as informações contidas na obra que se referem à construção daquele mundo possível
pelo autor. “A obra de ficção nos encerra nas fronteiras de seu mundo e, de uma
forma ou de outra, nos faz levá-la a sério” (idem:84).
Para Eco, a ficção deve ser entendida como um bosque, que nos faz
percorrer os caminhos dos mundos possíveis por ela construídos. Algumas narrativas
ficcionais — mais organizadas — apresentam um campo simbólico mais cristalizado,
remetendo os leitores a trilhas mais definidas, a um universo de sentidos mais fixo.
Todavia, existem outras obras que podem abrir seu universo de sentido para outros
bosques, levando os leitores a explorar outras trilhas, a percorrer “a floresta infinita
da cultura universal e da intertextualidade” (idem:116). Alguns bosques ficcionais —
mais emaranhados e retorcidos — permitem a construção de outras trilhas pelos
leitores, ou seja, têm a capacidade de remetê-los a diferentes campos de sentido, de
levá-los a ressignificar o universo simbólico no que diz respeito à obra ficcional e à
sua experiência concreta na vida social.
Em relação à constituição do mundo real, que a ficção toma como pano
de fundo, é preciso destacar que ele está em constante processo de construção. A
vida social é móvel, plural, produzida pela intervenção dos homens. O mundo real é,
pois, o “mundo de nossa experiência” (idem:83), construído e transformado
continuamente pelos sujeitos na vida cotidiana.
Diversos são os materiais simbólicos a que os indivíduos têm acesso
e que participam do processo de constituição social da realidade. Dentre esses
materiais também estão as obras de ficção. Assim, as narrativas ficcionais podem
ser entendidas como instrumentos que, produzindo sentidos através da construção
de representações, colaboram na organização da experiência humana e na
construção da própria vida social.
É preciso deixar claro que a ficção não é um espelho da realidade. Em
primeiro lugar, porque não existe uma realidade una e estável, à espera de uma
representação igualmente una e estável a ser construída pela ficção. A realidade é

54 Paula Guimarães Simões e Vera França – Telenovelas, telespectadores e representações do amor


plural e não pode ser reduzida a uma mera representação. Esta não dá conta de trazer
toda a complexidade da vida social. Rodrigues destaca que a representação ficcional
é feita à semelhança da realidade social; entretanto, jamais é possível “representar-se
ficcionalmente de maneira cabal a multiplicidade das perspectivas, a infinidade dos
horizontes, a complexidade dos processos e dos procedimentos que constituem a
experiência da vida quotidiana” (1994:91).
Além disso, na medida em que as narrativas ficcionais tomam a realidade
como ponto de partida na construção de seus mundos possíveis, estes revelam alguns
aspectos e características de um real situado em um tempo e lugar específicos. A
partir disso, é possível afirmar que as obras ficcionais constroem representações que
se referem a ou dialogam com a realidade em que estão inscritas, mas não podem ser
entendidas como espelhos do real.
Dessa forma, é possível situar ficção e realidade como integrantes do
constante movimento de produção de sentidos na sociedade, da realização e da
experiência humanas, enfim, da própria construção da vida social. A ficção toma a
realidade como pano de fundo; a realidade, por sua vez, incorpora elementos ficcionais
em sua construção, delineando uma configuração móvel e dinâmica do universo de
sentidos produzido nesse processo. Ou seja, esse movimento que faz dialogar ficção
e realidade é realizado através das representações.
As representações são construídas a partir do enquadramento de certos
aspectos do universo de imagens;8 resultam de processos coletivos de produção de
significado, e são partilhadas socialmente. Elas podem ser entendidas como universos
de sentido encarnados nos processos de enunciação, ou seja, nos signos.9 Se “o signo
é um entrelugar” (Pinto, 2002:10, grifo do autor), uma entidade móvel e relacional,
que se constrói e se modifica permanentemente nos processos de semiose, então, é
possível afirmar que as representações nele inscritas, mesmo se guardam certa
estabilidade (o que lhes possibilita comunicar), também são entidades móveis, que
instauram um movimento dinâmico de produção de sentidos na interlocução. As
representações são, pois, universos simbólicos que emergem nos atos de enunciação
e ganham existência material ao serem encarnadas em discursos.
Esses universos de sentido têm um papel fundamental na constituição
da experiência humana. Como aponta Woodward, “a representação inclui as práticas
de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são
produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos
pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos”
(2000:17). Ou seja, os universos simbólicos que emergem através das representa-
ções — tanto as produzidas nas obras ficcionais como as construídas na realidade

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 48-69 55


concreta — participam da constituição dos sujeitos e da vida social.
Assim, as representações estão presentes na configuração da sociedade,
e os sentidos por elas produzidos — encarnados nos discursos — remetem para a
realidade em que estão inscritas. Ao mesmo tempo, elas se referem à construção dos
atores sociais e sua atividade de produção de sentidos na vida cotidiana. É nesse
movimento que as representações se constroem, mediadas pela linguagem colocada
em ação pelos sujeitos sociais.
As representações assim constituídas apresentam naturezas distintas.
Algumas são mais fixas e cristalizadas, constroem estereótipos, que são representações
que limitam os sentidos. Elas se referem a um universo mais fechado e configurado,
que suscita mais o reconhecimento de elementos pré-concebidos do que o
estranhamento que poderia promover a abertura para outros universos simbólicos.
Esse tipo de representação procura enquadrar os sentidos em pólos dicotômicos como
o bem e o mal, o herói e o vilão, o certo e o errado.
Em contrapartida, existem outros tipos de representações que não se limi-
tam aos estereótipos, não remetem a um único campo de sentido. Por não serem tão
fixas, organizadas e cristalizadas, essas representações podem alargar os universos sim-
bólicos, permitir re-significações e remeter os sujeitos para além dos caminhos enquadrados
no que foi representado. Nas representações que apresentam essa natureza mais móvel,
os pólos se diluem em matizes que ultrapassam o engessamento de pares antitéticos.
Essas representações de naturezas distintas estão presentes no diálogo
entre ficção e realidade. As narrativas ficcionais constroem representações recortando
certos aspectos do real, e, com isso, estabelecem uma ponte com a vida social. Esta
penetra no universo ficcional, que, entretanto, é autônomo ao conduzir os leitores
pelos caminhos construídos nas diferentes narrativas. Nessa interlocução entre as
representações construídas pela ficção e aquelas construídas no domínio concreto da
experiência, podem ocorrer tanto convergências como divergências na negociação
simbólica que aí se processa.
É importante, também, ao olhar para o universo de representações,
apreender não apenas o que está representado, o aspecto de realidade encarnado em
um material simbólico. É essencial tentar captar o movimento que inaugura a
representação. Significa atentar para o processo de produção de sentidos instaurado a
partir da construção das representações, do momento em que estas ganham existência
sensível aos momentos de ressignificação pelos sujeitos. Atentar, enfim, para os vários
campos de sentido para os quais as representações podem remeter.
Todo esse movimento dinâmico de conformação das representações é
integrante do processo de construção social da realidade, de configuração do ethos

56 Paula Guimarães Simões e Vera França – Telenovelas, telespectadores e representações do amor


contemporâneo e pode ser captado através dos discursos. É, portanto, através dos
discursos instaurados pelas telenovelas que se podem captar representações que fazem
dialogar ficção e realidade na constituição dessas narrativas ficcionais, assim como
todo o movimento que as constitui.
A telenovela constrói representações que resgatam elementos da realidade
e procuram conformar visões de mundo.10 Esse gênero ficcional, em muitos casos,
apresenta representações mais cristalizadas, fixas, enquadradas, que conformam visões
de mundo dominantes e remetem os telespectadores a um único campo de sentido.
São representações que apresentam estereótipos e limitam o universo simbólico do
que é representado. Segundo Tilburg, “os dramas íntimos e intersubjetivos, quando
são dados a ver, são freqüentemente apresentados de forma estereotipada pela
telenovela. Não raro, classes sociais, funções sociais, normas, valores, costumes,
entre outros, são “reduzidos” a dilemas binários entre forças opostas” (1975:505).
Entretanto, há outros momentos, em que as telenovelas constroem
representações de natureza distinta, que podem alargar os campos de sentido e
promover uma abertura para novos processos de significação. Ou seja, elas podem
apresentar universos simbólicos em que certos dilemas binários se diluem na
constituição das narrativas. Com isso, elas podem alargar a experiência humana,
possibilitando ao público enveredar por outros bosques e trilhas, para além do que
está representado no mundo possível daquele universo ficcional.
Ao olhar para o universo de representações nas telenovelas —
particularmente às que se referem ao amor11 —, é fundamental tentar perceber esse
movimento que o constitui. Avaliar em que medida as telenovelas, por um lado,
conformam idéias e visões sobre a temática do amor, servindo como instrumento de
reforço de certos aspectos da realidade; e, por outro, em que medida elas podem
evocar diferentes campos de sentido. Avaliar, ainda, a forma como as representações
construídas por diferentes telenovelas se cruzam com os sentidos que emergem da
vida social, fomentando, através dessas interseções, a configuração de outros sentidos.
Em síntese: a análise dessas representações supõe captar esse movimento que faz
dialogar ficção e realidade, telenovela e vida social, na permanente constituição do
ethos contemporâneo.

O AMOR E ALGUMAS DE SUAS


REPRESENTAÇÕES NAS TELENOVELAS
O recorte empírico de nosso estudo compreendeu três telenovelas
brasileiras que foram exibidas pela Rede Globo entre 2002 e 2003, bem como um
conjunto de leituras que essas novelas – e particularmente as representações do amor

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aí construídas – suscitou junto aos telespectadores, permitindo-nos analisar o processo
como um todo enquanto um momento do diálogo entre televisão e sociedade.
Entendendo a telenovela como uma narrativa que colabora na constituição
do tecido da vida cotidiana e do quadro de valores que orienta a vida dos indivíduos,
procuramos apreender, a partir da construção das personagens, alguns elementos que
delineiam o amor na sociedade hodierna. A análise demonstrou que as representações
desse valor que emergem a partir dos casais analisados apresentam semelhanças e
diferenças na forma de tratamento do amor.
Em Sabor da paixão (Ana Maria Moretzsohn, 2002-2003, 18h),12 o
triângulo amoroso central, formado por Diana, Alexandre e Nelson, exibe uma
representação freqüente nas novelas: a trajetória de uma heroína clássica que enfrenta
vários empecilhos até alcançar a realização plena do amor ao lado do homem escolhido.
Essa novela constrói uma representação que procura enquadrar os sentidos sobre o
amor em dois pólos opostos: o bom e o mau, o certo e o errado. O amor que sustenta
o relacionamento de Diana e Alexandre situa-se no pólo do bem: é bonito, forte,
verdadeiro, capaz de trazer felicidade e merece ser realizado. Esse modelo de amor,
que permeia a relação da heroína e do mocinho na novela, alcança a plenitude no fim
da narrativa. Em contrapartida, o sentimento que Nelson sente por Diana é colocado
no lado do mau: é um sentimento “torto”, doentio, não merece ser concretizado. Esse
tipo de amor está relacionado à personalidade doentia do vilão e só pode ter como
desdobramento algum tipo de punição, como a prisão do mesmo.
Ao encaixar os tipos de amor em um lugar valorizado ou em um lugar
condenável, Sabor da paixão constrói uma representação dominante que pretende
dizer o que é certo e o que é errado em matéria de amor. Visa, ainda, a conquistar a
identificação dos telespectadores com o casal cujo elo é sustentado pelo “amor bom”,
ao qual todos os sujeitos aspiram a viver na experiência concreta.
Em O beijo do vampiro (Antônio Calmon, 2002-2003, 19h),13 é possível
perceber que há mudanças na forma de construir as relações amorosas, exibindo
traços da vivência do amor na sociedade contemporânea. A protagonista Lívia não
encarna uma heroína clássica que luta por seu grande e único amor durante toda a
novela. A trajetória dela exibe a possibilidade de fazer escolhas, de tentar vivenciar o
amor e até mesmo de cometer erros ao realizar as opções amorosas.
Nessa narrativa, assim como em Sabor da paixão, há uma divisão binária
do amor. O sentimento de Bóris por Lívia é um sentimento ruim: o vampiro é um vilão
na história, o qual foi capaz até mesmo de matar para tentar conquistar sua amada.
No início da novela, o sentimento dele é contraposto ao amor que sustenta a relação
entre Lívia e seu marido (Beto). Após a morte deste, o amor de Bóris passa a ser

58 Paula Guimarães Simões e Vera França – Telenovelas, telespectadores e representações do amor


contraposto ao de outro homem (Rodrigo) por Lívia, caracterizado como bonito e
verdadeiro. Mas este homem, Rodrigo, é corrompido pelo mal, o amor por Lívia
passa a ser visto como ruim e contraposto ao sentimento de Augusto pela protagonista.
O amor do promotor por Lívia é, desde o início, configurado como bom: é bonito,
verdadeiro, não prejudica os outros e é capaz de trazer felicidade.
Ainda que o sentimento de Rodrigo por Lívia transite de um pólo a
outro, a novela procura encaixar os tipos de amor em pólos dicotômicos: o amor do
herói e o amor do vilão, o bom e o mau, o certo e o errado. O beijo do vampiro
constrói, assim, uma representação mais fixa sobre o amor, na medida em que encaixa
os tipos desse sentimento em um lugar valorizado ou em um lugar condenável. Essa
novela coroa o “amor bom” que sustenta a relação entre Augusto e Lívia com um
happy end para o casal, que aguarda a chegada de gêmeos para completar a família,
já composta por seis filhos. Há, ainda, a punição para o mal: Bóris é destruído na
batalha final entre vampiros e humanos. Rodrigo, como transitou entre os pólos do
bem e do mal, é punido ao ficar sem o amor de Lívia.
Mulheres apaixonadas (Manoel Carlos, 2003, 21h)14 apresenta uma
protagonista que difere, em muitos aspectos, das demais aqui analisadas. Assim como
a trajetória de Lívia está em sintonia com transformações na vivência do amor em
nossa sociedade, o percurso de Helena exibe a liberdade para realizar escolhas em sua
experiência amorosa e certa indefinição de seus sentimentos verdadeiros em relação a
dois homens (César e Téo). Entretanto, ao contrário da protagonista de O beijo do
vampiro, Helena é uma anti-heroína: não vê uma articulação tão forte entre amor e
fidelidade, deseja se apaixonar pelo homem errado e quer sentir a insegurança no
relacionamento, em certos momentos. Essas escolhas e posturas de Helena contrariam
os desejos das outras protagonistas aqui analisadas e também de muitas mulheres na
realidade social.
No triângulo amoroso central dessa novela, formado por Helena, Téo e
César, os pólos parecem se diluir em matizes que ultrapassam o engessamento de
pares antitéticos em relação ao amor. Nem Téo nem César encarnam o vilão na
narrativa, e o amor que eles sentem por Helena pode ser visto como bom ou ruim,
dependendo do ponto de vista do público. Ou seja, a representação do amor construída
em torno dessas personagens apresenta uma natureza mais móvel, na medida em que
não classifica esse valor em pólos opostos.
Na atualização que Mulheres apaixonadas faz ao construir sua
protagonista e as relações amorosas por ela vividas, é possível perceber um
deslocamento na representação assim constituída: não há a presença de uma heroína
clássica, cheia de virtudes, que escolhe um bom moço para viver ao seu lado para

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sempre. A anti-heroína Helena faz a escolha por um garanhão e não há promessas de
amor eterno. Não há um happy end como os das outras narrativas aqui analisadas: o
final sugere que Téo encontrou uma nova companheira, mas ele não esqueceu a ex-
esposa; Helena e César até se casam, mas o médico continua temendo uma nova
traição da esposa, que o abandonara anos antes para ficar justamente com Téo. Assim,
na representação do amor que emerge com esse triângulo, é possível falar de um
deslocamento, de uma natureza mais móvel que configura os sentidos, na medida em
que não há uma divisão binária do amor.
No processo de apreensão dessas representações do amor pelo público,
também é possível falar de convergências e divergências na construção de campos
de sentido sobre esse valor. Os telespectadores podem aceitar ou recusar os sentidos
que as telenovelas procuram instaurar; há todo um processo de negociação simbólica,
no qual ocorrem tanto legitimações ou cristalizações como deslocamentos ou
deslizamentos de sentidos sobre o amor.

POSICIONAMENTOS DO PÚBLICO EM RELAÇÃO AO AMOR


A experiência do amor na vida social não acontece da mesma maneira
para todos os sujeitos, que podem apresentar valores e desejos diferentemente evi-
denciados na construção de uma relação amorosa. Isso pode ser percebido a partir de
falas dos telespectadores em relação às histórias de amor construídas pelas telenove-
las. Estas promovem identificações e convidam a posicionamentos, incitando os sujeitos
a falar sobre os sentidos instaurados por essas narrativas ficcionais e, com isso, a tematizar
a forma como gostariam de vivenciar o amor em suas experiências concretas.
Nos limites deste artigo, não conseguiríamos aprofundar a análise das
manifestações dos telespectadores em relação ao amor e à maneira como ele é
representado nas telenovelas. 15 À guisa de ilustração, destacaremos alguns
posicionamentos em relação a uma trama específica: a de Helena e seus amores, em
Mulheres apaixonadas.
Alguns telespectadores aprovaram o romance entre Helena e César,
afirmando que o vínculo entre eles é sustentado por um amor de verdade16 ou que a
protagonista está certa em viver esse grande amor, e seu final feliz ao lado de César
deve ser coroado com uma gravidez no fim da narrativa.17 Um outro discurso também
aprova a escolha de Helena por César, defendendo que a liberdade deve perpassar a
construção dos relacionamentos: “a Helena é mais uma dessas mulheres que estão
loucas para curtir a vida sem compromisso nenhum, e acho que depois de uma certa
idade, com realização profissional e insatisfação pessoal, todo mundo pode optar por
ser livre e aproveitar”.18

60 Paula Guimarães Simões e Vera França – Telenovelas, telespectadores e representações do amor


A postura de Helena foi, entretanto, muito criticada por outros
telespectadores. Ela não pode “achar que ser infiel é uma virtude”. 19 Outra
telespectadora questiona: “porque Helena acusa sempre Téo pelo seu casamento não
ter dado certo se foi ela quem deixou César para ficar com Téo, como César mesmo
disse? Então ela nunca amou Téo? Por que foi feliz se brincou tanto com o sentimento
do outro?”.20 Com essa fala, emerge a possibilidade de fazer escolhas na construção
dos relacionamentos, mas é preciso assumir as conseqüências: Helena não tem o
direito de culpar Téo por sua infelicidade, já que a escolha pelo músico foi dela. Em
outras manifestações emerge uma torcida para que Helena seja traída como uma
punição para seu comportamento.21
O comportamento de César também foi criticado. Ele é visto como um
“galinha”, um garanhão que não merece o amor de Helena. 23 Segundo outra
22

telespectadora, uma mulher com auto-estima, decência e inteligência não deseja nem
merece se envolver com um homem garanhão como César, a não ser que goste de
sofrer — o que é o caso de muitas mulheres que gostam de estar sempre na posição
de vítima: “apesar de não gostar muito da Helena, torço para que ela seja feliz, mas
nem mesmo ela merece o César [...]. quero também que o Téo seja muito feliz com
ou sem a Helena. Um amor como o que ele sente por ela é muito difícil de encontrar”.24
Ao criticar o comportamento de César e tematizar o amor que Téo sente por Helena
como uma busca difícil de ser realizada, a telespectadora Ruth contesta a escolha da
protagonista por um homem que “não presta”. Emerge com a fala dela o desejo de
construir uma relação amorosa com um homem bom — como Téo — colocando fim
à difícil busca de realização plena do amor.
Essa valorização do amor de Téo é compartilhada por outra
telespectadora. Na visão de Ana, é “o amor que todas nós mulheres procuramos”.25
Com a fala dela, Téo emerge como o “bom moço” da história: ele “tem inúmeras
virtudes que nós mulheres procuramos e dificilmente encontramos nos homens” e
deve “encontrar uma mulher que mereça o seu amor”. Mais uma vez, o amor que o
músico sente configura um sentimento “bom” e desejável pelas pessoas. A forma de
realizar o amor manifestada por Ana e Ruth contraria o modo como Helena deseja
vivenciá-lo. Afinal, a protagonista de Mulheres apaixonadas decidiu abandonar todas
as “virtudes” de Téo para se casar com o “canalha” do César.
A telespectadora Rita critica as atitudes e o papel adotado tanto por
César como por Téo nos relacionamentos. Para ela, o destino do músico é ficar com
os restos do garanhão César, em uma novela em que “todo mundo dorme com todo
mundo, é um troca-troca a toda hora”.26 Em outra manifestação,27 além da crítica a
César por ser um garanhão, aparece também uma crítica a Téo. Diferentemente do

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que acontece em outros discursos, o músico não aparece como o bom moço,
cheio de virtudes e vítima das traições de Helena. Essa telespectadora critica o
machismo e o comportamento “galinha” de César e a covardia e a falta de atitude
de Téo.
O que se pode perceber nas manifestações apresentadas é que diferentes
sentidos são produzidos pelos telespectadores em relação a uma história de amor
ficcional. Os discursos telenovelísticos interpelam os sujeitos a assumir (ou não)
certas posições, a ocupar um certo lugar em relação a diferentes temas. Nesse processo
de interpelação, o público é convidado a se identificar, a aprovar ou negar
representações. Entretanto, esse processo não ocorre livre de embates: emergem
posicionamentos contrários, que constroem um permanente processo de negociação
de sentidos. Os sentidos produzidos pelos telespectadores configuram certas
representações do amor, que não são necessariamente equivalentes e coincidentes
aos modelos apresentados pelas telenovelas.
A proposta deste artigo foi analisar representações do amor em algumas
telenovelas brasileiras contemporâneas, bem como alguns sentidos sobre esse valor
que emergem com as falas dos telespectadores. O objetivo era delinear um universo
de representações acerca desse valor, construído na interlocução entre ficção e
realidade, que participa da edificação do ethos contemporâneo.
A análise dos três triângulos amorosos revela a convergência da maioria
das relações em um campo de sentido sobre o amor que pretende classificar esse
valor em pares antagônicos: o amor bom e o amor ruim, o amor certo e o amor
errado, o amor do mocinho e o amor do bandido. No entanto, é possível falar de um
ruído, uma divergência em uma dessas representações: a construída em torno dos
amores de Helena, em Mulheres apaixonadas. Aqui, há um deslizamento de sentidos
sobre o amor, em que as fronteiras que separam o bom e o mau amor parecem estar
diluídas. Essa representação apresenta uma natureza mais móvel e ambígua, que
convoca mais o público para dizer qual é o melhor amor.
Na interlocução entre telenovela e público, é possível perceber que
alguns telespectadores aprovam a representação construída em torno da protagonista
de Mulheres apaixonadas. Com isso, endossam a abertura das telenovelas para outras
formas de vida, ou seja, para representações diferentes das que costumam ser
apresentadas por essas narrativas ficcionais. Contudo, há telespectadores que criticam
a postura de Helena, suas escolhas amorosas e insatisfações. Ao negar os sentidos
instaurados a partir dessa personagem, essas pessoas parecem manifestar o desejo
de reiterar um outro tipo de representação: da heroína clássica, fiel, que escolhe um
bom moço para viver ao seu lado para sempre.

62 Paula Guimarães Simões e Vera França – Telenovelas, telespectadores e representações do amor


A análise evidenciou, assim, a forma como o amor se faz presente na
relação entre ficção e realidade, e como a interlocução estabelecida entre televisão e
telespectadores passa pelo terrreno das vivências e do posicionamento dos sujeitos,
o que significa dizer: representações se constroem no embate entre diferentes atores
que participam dos processos de produção simbólica, e essa dinâmica faz parte da
construção da vida social contemporânea e do quadro de valores que a constitui. A
maneira como o amor é narrado por esse gênero ficcional é apropriada e (re)significada
pelos sujeitos na tematização das diferentes histórias.
Enfim, a reflexão aqui desenvolvida evidenciou que deslocamentos de
sentidos ocorrem também na interlocução estabelecida entre telenovelas e sociedade.
Esta nem sempre está de acordo com os valores que permeiam as relações amorosas
ficcionais. Na negociação simbólica que ocorre nessa interlocução, telenovela e vida
social se cruzam na constituição do ethos que permeia a sociedade contemporânea.

PAULA GUIMARÃES SIMÕES é mestre em Comunicação Social pela UFMG e professora do


Centro Universitário UNA.
VERA FRANÇA é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMG e
pesquisadora do CNPq.

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NOTAS

1 Este trabalho expõe a pesquisa e as conclusões apresentadas na dissertação


de mestrado Mulheres apaixonadas e outras histórias: amor, telenovela e vida social,
de Paula Guimarães Simões, orientada por Vera França.
2 A subjetividade é aqui entendida, a partir de Woodward, como “a
compreensão que temos sobre o nosso eu. O termo envolve os pensamentos e as
emoções conscientes e inconscientes que constituem nossas concepções sobre ‘quem
nós somos’. A subjetividade envolve nossos sentimentos e pensamentos mais pessoais.
Entretanto, nós vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a linguagem
e a cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos e no qual nós
adotamos uma identidade” (2000:55).
3 “[...] no hay ethos sin un ambiente cognitivo que lo dinamice, sin una
unidad dinámica de identificaciones de grupo, que es su modo de relación con la
singularidad propia, esto es, la cultura; ahí actúan las formas simbólicas que
históricamente orientan el conocimiento, la sensibilidad y las acciones de los individuos.”
4 Essa perspectiva de entendimento do discurso como linguagem em
ação é sustentada por autores vinculados à Análise do Discurso. Segundo Charaudeau,
o discurso é um jogo de comunicação em que se deve “levar em conta simultaneamente
um espaço externo e um espaço interno de construção do sentido — o que nos leva às
dimensões situacional e lingüística da significação discursiva” (1996:8). Ou seja, é
preciso atentar tanto para a dimensão interna do texto quanto para toda situação
interlocutiva que o instaura (Cf. Pinto, 1999; Spink, 2000; Gill, 2003).
5 Bakhtin enfatiza a interação verbal na constituição da própria língua: “a
verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas
lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico
de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da
enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade
fundamental da língua” (idem:123, grifo do autor).
6 A expressão formas simbólicas é utilizada por Thompson em um sentido
geral para se referir “a uma ampla variedade de fenômenos significativos, desde ações,
gestos e rituais até manifestações verbais, textos, programas de televisão e obras de
arte” (1999:183).
7 Douglas Kellner utiliza essa expressão para designar os bens simbólicos
produzidos pelos meios de comunicação: “a expressão ‘cultura da mídia’ tem a
vantagem de designar tanto a natureza quanto a forma das produções da indústria
cultural (ou seja, a cultura) e seu modo de produção e distribuição (ou seja, tecnologias
e indústrias da mídia). Com isso, evitam-se termos ideológicos como ‘cultura de
massa’ e ‘cultura popular’ e se chama a atenção para o circuito de produção, distribuição
e recepção por meio do qual a cultura da mídia é produzida, distribuída e consumida.
Essa expressão derruba as barreiras artificiais entre os campos dos estudos de cultura,
mídia e comunicações e chama a atenção para a interconexão entre cultura e meios de
comunicações na constituição da cultura da mídia, desfazendo assim distinções

64 Paula Guimarães Simões e Vera França – Telenovelas, telespectadores e representações do amor


reificadas entre ‘cultura’ e ‘comunicação’” (2001: 52).
8 A distinção entre representações e imagens é desenvolvida por Bergson.
César Guimarães explica esse modo peculiar de Bergson conceber a representação
das imagens: “diante desse universo em que as imagens agem umas sobre as outras e
reagem em todos os seus pontos [...], a passagem à imagem representada dá-se
através de uma operação de isolamento ou enquadramento” (1997: 90).
9 Signos são “entidades que englobam ao mesmo tempo as enunciações
(chamadas de signos), os enunciados (chamados de objetos) e as interpretações
(chamadas de interpretantes), na medida em que o sentido é sempre um devir” (Pinto,
2002: 8).
10 Como aponta Minayo, as representações dizem respeito a idéias, imagens,
concepções e visões de mundo que os atores sociais têm sobre a realidade (1999:
173) — ainda que esta não possa ser reduzida à concepção que os atores fazem dela.
11 O amor é uma “noção ambígua e difícil” (Giddens, 2002: 88), mas
vários autores vêm tentando defini-la. Neste trabalho, o amor é entendido como um
valor que coloca o eu e o outro em relação. É um valor na medida em que “aponta
para aquilo que devemos ter, ser ou desejar” (Costa, 1999: 161). Ao analisar frações
do discurso amoroso, isto é, as figuras que colocam o enamorado em ação, Barthes
enfatiza a tese do amor como um valor. Segundo ele, “ao contrário de tudo e contra
tudo, o sujeito afirma o amor como valor. Apesar das dificuldades da minha história,
apesar das perturbações, das dúvidas, dos desesperos, apesar da vontade de me livrar
disso, não paro de afirmar em mim mesmo o amor como um valor” (2000: 34).
Assim, o amor é aqui tratado como um valor, essencial na constituição da experiência
dos sujeitos e na edificação do ethos contemporâneo. Para uma discussão mais
aprofundada sobre o amor como um valor, Cf. Simões, 2004.
12 Sabor da paixão narra a história da família Coelho, composta por Miguel
Maria (Lima Duarte), sua esposa Cecília (Cássia Kiss), a mãe desta, Hermínia (Aracy
Balabanian), as filhas do casal, Diana (Letícia Spiller), Laiza (Liliana Castro) e Teca
(Fernanda Souza), e a neta Madona (Marcela Barroso), filha de Laiza. Diana, a heroína
da novela, é noiva de Nelson (Marcelo Serrado) desde os 18 anos, mas o noivado
entra em crise quando ela conhece Alexandre Paixão (Luigi Baricelli). Após a morte de
Miguel, Diana e Cecília assumem a liderança da família. A primogênita luta por uma
herança da família — um terreno em Portugal — e tem que enfrentar a mãe de
Alexandre, Zenilda Paixão (Arlete Salles), que ocupou a terra dos Coelho indevidamente.
13 O beijo do vampiro relata a trajetória de Lívia (Flávia Alessandra),
reencarnação da princesa medieval Cecília. Ela é casada com Beto (Thiago Lacerda),
reencarnação do noivo de Cecília, destruído pelo vampiro Bóris (Tarcísio Meira) antes de
sua união com a princesa. O casal vive no Rio de Janeiro com os filhos Zeca (Kayky
Brito), Tetê (Renata Nascimento) e Juninho (Guilherme Vieira), até que Beto morre em
um acidente de avião, após perder todos os bens da família. Bóris é o responsável por
tudo isso, já que deseja conquistar sua amada Cecília-Lívia e reaver seu legítimo herdeiro.
Zeca, na verdade, é filho do Senhor dos Vampiros, que trocou os bebês na maternidade
para que Lívia o criasse. A heroína da trama tem que assumir a responsabilidade pelo

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sustento da família e muda-se com os filhos para Maramores, onde mora sua mãe Zoroastra
(Glória Menezes). Além de Bóris, também lutam pelo amor de Lívia o promotor Augusto
(Marco Ricca) e o arquiteto Rodrigo (Alexandre Borges).
14 Mulheres apaixonadas narra a história de Helena (Christiane Torloni),
que, depois de 15 anos de união com o músico Téo (Tony Ramos), começa a questionar
se é feliz em seu casamento. Ela vive um relacionamento estável com o marido, mas
sem muita paixão. Eles têm um filho adotivo, Lucas (Victor Hugo). Helena é diretora
da Escola Ribeiro Alves (ERA), pertencente a seu marido e a sua cunhada Lorena
(Suzana Vieira). As irmãs da protagonista, Hilda (Maria Padilha) e Heloísa (Giulia
Gam), são grandes amigas, com quem Helena compartilha suas angústias. Téo é
saxofonista de uma banda de jazz e tem uma filha, Luciana (Camila Pitanga), fruto de
seu relacionamento passado com a cantora de sua banda, Pérola (Elisa Lucinda). As
dúvidas de Helena em relação à continuidade de seu casamento são aprofundadas
quando ela reencontra um antigo namorado, César (José Mayer).
15 O recorte da pesquisa coletou diversas manifestações do público em
revistas, jornais e em um fórum de discussão na internet (http://globoforum.globo.com/
). Para uma análise mais aprofundada desses posicionamentos, ver Simões, 2004.
16 Tião, em 30/06/2003. Disponível em http://globoforum.globo.com,
acessado em 29/07/2003.
17 Paulo, em 07/10/2003. Disponível em http://globoforum.globo.com,
acessado em 11/10/2003.
18 Vida, em 07/10/2003. Disponível em http://globoforum.globo.com,
acessado em 11/10/2003.
19 Vava, em 06/10/2003. Disponível em http://globoforum.globo.com,
acessado em 11/10/2003.
20 Eliz, em 10/10/2003. Disponível em http://globoforum.globo.com,
acessado em 11/10/2003.
21 KK_DF e Lady Di, em 07/10/2003. Disponível em http://
globoforum.globo.com, acessado em 11/10/2003.
22 Eu, em 04/07/2003. Disponível em http://globoforum.globo.com,
acessado em 29/07/2003.
23 KK, em 04/07/2003. Disponível em http://globoforum.globo.com,
acessado em 29/07/2003.
24 Ruth, em 19/09/2003. Disponível em http://globoforum.globo.com,
acessado em 11/10/2003.
25 Ana, em 03/10/2003. Disponível em http://globoforum.globo.com,
acessado em 11/10/2003.
26 Rita, em 09/10/2003. Disponível em http://globoforum.globo.com,
acessado em 11/10/2003.
27 Taílma, em 09/10/2003. Disponível em http://globoforum.globo.com,
acessado em 11/10/2003.

66 Paula Guimarães Simões e Vera França – Telenovelas, telespectadores e representações do amor


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ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 48-69 69


O sensacionalismo como processo cultural
Ana Lucia S. Enne

O sensacionalismo, em suas diversas manifestações no universo


midiático, nos parece, sem dúvida, um lugar fundamental para percebermos a existência
de longos processos de mediações culturais. Neste sentido, apresenta-se como um
objeto rico para análise sobre o fluxo narrativo do sensacional e a construção do
imaginário na modernidade ocidental, bem como suas reapropriações no decorrer da
contemporaneidade. No entanto, é ainda um campo insuficientemente explorado, ou
pela ausência de uma quantidade expressiva de trabalhos (pois os poucos existentes
vêm sendo apresentados de forma esparsa), ou pela presença opressiva do preconceito
que, muitas vezes, acompanha o processo de formação do gosto de classe, em que
estratégias de distinção tendem a relegar o sensacionalismo à vala do mau gosto e, por
conseqüência, do mau objeto reflexivo.
Temos desenvolvido pesquisas recentes sobre jornalismo sensacionalista,
focando especialmente um caso acontecido no início dos anos 1980, envolvendo a
personagem “Mão Branca” e sua construção narrativa nos principais jornais do Rio de
Janeiro (Enne e Diniz, 2005). Tais reflexões fazem parte de um projeto maior, sobre o
jornalismo sensacionalista,1 no qual pretendemos mapear seu processo histórico e suas
matrizes culturais possíveis, bem como discutir a forma pela qual, no século XX, a
narrativa sensacionalista passou a ser designada como um gênero isolado, sem conexões
históricas, e relacionada depreciativamente a um segmento social.2 O presente artigo
tem por finalidade apresentar algumas dessas matrizes em sua relação com o
sensacionalismo da imprensa contemporânea, a partir de uma visão que busca entender
este último como um processo histórico, formado a partir de fluxos do imaginário,
envolvendo um intrínseco jogo entre representações e mediações, e não como um
fenômeno isolado, reminiscência ilustrativa de um “mau gosto de classe” ou pura estratégia
de dominação mercadológica. Como todo processo histórico, este é feito de idas e vindas,
envolvendo o “duplo movimento de conter e resistir” (Hall, 2003: 249), e nos permitindo
uma entrada para o campo da cultura “enquanto trama, entrelaçamento de submissões e
resistências, impugnações e cumplicidades” (Martín-Barbero, 1997:266).

ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE


A IMPRENSA SENSACIONALISTA CONTEMPORÂNEA
Em suas análises sobre jornais sensacionalistas, autores como Antonio
Serra (1986), Danilo Angrimani (1995), Ana Rosa Ferreira Dias (1996) e Rosa Nívea

70 Ana Lucia S. Enne – O sensacionalismo como processo cultural


Pedroso (2001), para citar somente alguns dos mais referenciados, além de
apresentarem suas explicações teóricas para o sensacionalismo (com as quais nem
sempre concordamos, mas que não discutiremos aqui por este artigo não comportar
essa problematização), discorrem sobre algumas das características dos objetos
empíricos que investigam, no que tange à construção narrativa, ao universo temático
e às estratégias de diagramação dos jornais estudados. De forma geral, podemos citar
as seguintes observações como sendo recorrentes e comuns aos trabalhos desses
autores, quando se referem aos jornais sensacionalistas:
a) a ênfase em temas criminais ou extraordinários, enfocando
preferencialmente o corpo em suas dimensões escatológica e sexual;
b) a presença de marcas da oralidade na construção do texto, implicando
em uma relação de cotidianidade com o leitor;
c) a percepção de uma série de marcas sensoriais espalhadas pelo texto,
como a utilização de verbos e expressões corporais (arma “fumegante”, voz “gélida”,
“tremer” de terror etc.), bem como a utilização da prosopopéia como figura de
linguagem fundamental para dar vida aos objetos em cena;
d) a utilização de estratégias editoriais para evidenciar o apelo sensacional:
manchetes “garrafais”, muitas vezes seguidas por subtítulos jocosos ou impactantes;
presença constante de ilustrações, como fotos com detalhes do crime ou tragédia,
imagens lacrimosas, histórias em quadrinhos reconstruindo a história do
acontecimento etc.;
e) na construção narrativa, a recorrência de uma estrutura simplificadora
e maniqueísta;
f) relação entre o jornal sensacionalista e seu consumo por camadas de
menor poder aquisitivo, que, por diversas razões, seriam manipuladas e acreditariam
estar consumindo uma imprensa “popular” (conceito ao qual voltaremos no fim deste
artigo) quando, no fundo, estariam consumindo um jornalismo comercial feito para
vender e alienar.

Neste artigo, abordaremos a relação entre os cinco primeiros itens e as


marcas perceptíveis que podemos encontrar acerca dos mesmos em algumas das
matrizes culturais do século XIX que pretendemos analisar, deixando para outro
momento a exploração do conteúdo da letra (f). Evidentemente, não nos interessa
retirar, dessa discussão, o peso das estratégias mercadológicas na construção da
imprensa sensacionalista. Neste artigo, no entanto, não trataremos desse ponto por
dois motivos: primeiramente, porque não é esse o nosso foco, ao menos aqui; em
segundo lugar, porque achamos importante lembrar que esse deve ser um dos fatores

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 70-84 71


a serem pensados quando estudamos o sensacionalismo midiático, não o único e, em
nossa opinião, não o mais importante. Neste artigo queremos apresentar outras
possibilidades. Mas, com certeza, em nosso trabalho de maior fôlego, resultado final
da pesquisa que estamos desenvolvendo, contemplaremos, com o devido
reconhecimento, o complexo jogo econômico e político que o sensacionalismo envolve.
Por agora, o que queremos apresentar é um mostruário de matrizes
possíveis para o jornalismo sensacionalista do século XX. Se acreditamos que tal
objeto só pode ser entendido como processo, queremos investigar sua formação a
partir dessas e de outras matrizes, para posteriormente tentar perceber suas
reapropriações e usos dentro de outros cenários e demandas culturais. Estamos partindo
da hipótese de que, nessas matrizes, poderemos encontrar similaridades com algumas
das características dos jornais sensacionais listadas anteriormente, ou ainda traços
que implicam numa ruptura com parte das mesmas.

ALGUMAS MATRIZES POSSÍVEIS PARA


O SENSACIONALISMO NA IMPRENSA CONTEMPORÂNEA
No processo de formação da modernidade ocidental, o fluxo ininterrupto
de apropriações e reapropriações culturais permitiu o aparecimento de diversas
manifestações culturais, geradas a partir de outras e que contribuíram para o
“fazimento” (como dizia Darcy Ribeiro) de outras mais. Acreditamos que o
sensacionalismo da imprensa contemporânea esteja imerso neste leque de matrizes,
delas bebendo e também delas se desfazendo, criando novas texturas, conferindo
sentidos múltiplos, na perspectiva dialógica e polifônica das práticas discursivas
(Bakhtin, 1983).
Assim, acreditamos que as práticas sensacionalistas da imprensa
contemporânea são herdeiras (mas não passivas, e sim novas formas de construção
e mediação) de algumas matrizes culturais da modernidade ocidental. Aqui,
destacaremos as que consideramos mais pertinentes para este artigo, todas relacionadas
ao período que engloba o fim do século XVIII e o decorrer do século XIX: a
pornografia, o melodrama, o folhetim, a literatura fantástica e de horror e o romance
policial.3
A escolha por essa periodização se justifica porque, cronologicamente,
no mundo ocidental, é o momento de adensamento das condições que possibilitaram
a consolidação da modernidade (Simmel, 1973; Singer, 2001). A invenção da eletricidade
permitiu o desenvolvimento de novas técnicas de produção, transporte e comunicação.
A ampliação do processo industrial favoreceu o crescimento urbano, com a
metropolização do estilo de vida, o surgimento de novos tipos e situações sociais e

72 Ana Lucia S. Enne – O sensacionalismo como processo cultural


psíquicas. Mudanças políticas e econômicas, pós-Revolução Francesa, consolidam a
idéia de república, de esfera pública e de direitos igualitários, em uma sociedade de
classes na qual a burguesia concretiza sua ascensão e novos atores são colocados em
cena, em especial a classe operária em seu processo de formação. É, portanto, um
momento fundamental no processo da Modernidade ocidental. Neste cenário, as
tecnologias de comunicação, em especial as impressas, desempenham papel
proeminente.4
Lynn Hunt (1999) e Robert Darnton (1998) apontam para o papel da
pornografia neste processo de consolidação das formas de impressão como agências
fundamentais no jogo de transformações políticas e culturais. Hunt irá descrever
como a pornografia, em uma reapropriação de algumas das estratégias do realismo
grotesco (Bakhtin, 1987), irá rebaixar, no sentido rabelaisiano, o corpo político, que
será exposto à crítica e ao ridículo. A filosofia pornográfica, de que falam os autores,
irá desempenhar um papel importante na crítica aos pilares da ordem monárquica, em
especial à aristocracia e ao clero. A exploração do sexo como recurso desestabilizador
da ordem, como transgressão, é entendida, nesse caso, como revolucionária. Apesar
de perseguida oficialmente, a filosofia pornográfica do período, que depois será levada
ao extremo do escatológico e da perversão com o marquês de Sade, teria sido uma
manifestação literária de protesto, com grande repercussão tanto em termos de tiragens
(eram os “best-sellers proibidos”) quanto em termos de influência no campo político.
Mais ainda, como conclui Hunt, é o momento da invenção da pornografia enquanto
gênero, que, com a democratização advinda com os ideais republicanos, na visão da
autora, tenderia a perder seu ímpeto revolucionário, sendo apropriada pelo mercado e
transformada em gênero para a venda e consumo hedonista.
Se Bakhtin percebe o realismo grotesco como uma artimanha das classes
subalternas para flexibilizarem a seriedade e engessamento da cultura oficial, Hunt e
Darnton enxergam na pornografia panfletária do século XIX também uma estratégia
de luta, preconizada, primeiramente, enquanto prática pelos libertinos do século XVIII,
membros da aristocracia que se recusaram a aderir a um modo de vida burguês e
viram no sexo e no vício formas de identidade cultural que conferiam lugar às suas
visões de mundo, e, posteriormente, por detratores dessa mesma conduta libertina,
que iriam utilizar os panfletos satíricos e a literatura de filosofia pornográfica para
expor publicamente a vida desregrada e pervertida da nobreza e da Igreja católica.
Assim, tanto em um contexto (França medieval) quanto no outro (França moderna),
os autores percebem que os usos do rebaixamento sexual, da escatologia e da
pornografia são entendidos como estratégias na luta de classes, são signos ideológicos,
no sentido proposto por Bakthin. No entanto, para todos os autores citados, não se

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 70-84 73


trata de uma manifestação pura de uma classe em relação à outra: tanto o realismo
grotesco quanto a pornografia são processados na circularidade cultural, envolvendo
ambivalências, polifonias e dialogias. São, portanto, práticas culturais que implicam
no reconhecimento do outro, como discutiremos mais adiante.
Algumas das características desses panfletos pornográficos nos
interessam especificamente. Em primeiro lugar, a relação do sensorial com a crítica
social. Ou melhor, a convergência entre um discurso que apela ao emocional e sua
imbricação com o viés político racionalista de construção de uma nova sociedade,
menos “hipócrita” e mais igualitária. Percebemos, nos exemplos citados por Hunt e
Darnton, uma convergência entre propósitos racionais e sensoriais que, posteriormente,
tanto o racionalismo cientificista triunfante do século XIX, paradigma vencedor entre
os muitos que disputaram a construção do Iluminismo (e a pornografia é um exemplo
dessa disputa), quanto o jornalismo comercial e defensor da objetividade do século
XX tentaram apagar ou camuflar, apresentando-se como arautos da razão em
detrimento da emoção, da objetividade em detrimento do passional. Na literatura
pornográfica do século XVIII, política e sexo caminham juntos; filosofia e escatologia
estão lado a lado; não há uma separação possível entre mundos percebidos como
constitutivos do ser humano. Em segundo lugar, a quebra de limites e protocolos
entre fronteiras da literatura (a filosofia, campo da “seriedade”, conjugada com o
sexo explícito, recurso da vulgarização) e das classes sociais, pois, como demonstram
Hunt e Darnton, filosofia e pornografia transitam por classes distintas em um processo
inegável de circularidade, gerando múltiplas formas de recepção e apropriação.
A dimensão da circularidade também nos interessa quando vamos pensar
o melodrama que, em sua origem como gênero da dramaturgia na França do século
XVIII, já herdeiro da Commedia Del’Arte e de outras formas de manifestação cultural,
foi objeto de consumo tanto de camadas abastadas quanto de classes subalternas, e
teve em sua composição elementos híbridos, que vão conferir ao gênero um lugar
fundamental enquanto matriz para reapropriações posteriores diversas. Nos interessa
aqui, a partir dos trabalhos de Jesús Martín-Barbero (1997) e Peter Brooks (1995),
pensar na existência de uma imaginação melodramática, que permitiu sua mutifacetada
incorporação a outros gêneros e formatos. Destacamos, como pontos que nos
interessam para pensar o melodrama como matriz para o sensacionalismo na imprensa,
algumas de suas características fundamentais: a marca do excesso (a nosso ver,
fundamental em todas as matrizes que estamos discutindo), tanto na forma narrativa
quanto na caracterização das personagens e situações; a estrutura maniqueísta, como
bem indicou Martín-Barbero, marcada por sensações de medo, de ternura e de ira,
entremeadas pelo risível, encenado pela figura do bobo, elemento-chave para a quebra

74 Ana Lucia S. Enne – O sensacionalismo como processo cultural


da tensão (vale lembrar que, em muitos dos jornais sensacionalistas, a exploração de
elementos risíveis é freqüente, através principalmente das frases ambíguas que
constituem a manchete, os subtítulos e, por vezes, a própria narrativa); a existência
de uma pedagogia moral, que implica no reconhecimento dos lugares sociais, das
virtudes e penalidades para sua corrupção, muitas vezes relacionada ao universo do
privado que, via dramatização, é colocado para apreciação e julgamento público; e,
como já demonstramos anteriormente (Enne e Baltar, 2006), uma pedagogia das
próprias sensações, indicando momentos e lugares corretos para a exacerbação e a
vivência explícita das emoções, em oposição ao riso recolhido e às lágrimas furtivas
que são exigidas na contenção que é a marca do ethos burguês.
O melodrama é matriz fundamental para outro gênero que se consolida
no século XIX, o folhetim. Publicado no rodapé dos jornais, elemento essencial para
a consolidação dos periódicos como comerciais e diários, o folhetim herda, do
melodrama, as características antes descritas. E incorpora outras, advindas de matrizes
diversas, como o gótico e o fantástico, sobre os quais falaremos antes de mergulhar
mais detalhadamente no folhetim.
As querelas entre iluministas e românticos, que irão marcar parte dos
séculos XVIII e XIX, são, sem dúvida, fundamentais para a compreensão da formação
do gênero gótico na literatura da Europa ocidental, em especial na Inglaterra e na
França. Na concepção de Gavin Baddeley (2005), “o gótico está diretamente relacionado
ao ethos romântico, entendido como uma resistência à negação do sentimento e das
emoções por parte do racionalismo burguês”. Do gótico, já reapropriadas de outras
matrizes (como as narrativas dos contos de fada, os pliegos espanhóis e canards
franceses, os livros de morte e os panfletos extraordinários), viriam duas das sensações
fundamentais para a constituição de diversos gêneros posteriores: o terror e o horror.5
O que nos interessa realçar, neste momento, é o quanto essas duas sensações estão
associadas a uma estratégia de resistência ao modelo asséptico da burguesia
desencantada e racional, e serão exploradas por diversos nomes da literatura do século
XIX, hoje consagrados. É, portanto, um gênero de apreciação de camadas sociais
diversas, e que posteriormente, graças a estratégias de distinção, será associado
primordialmente ao mau gosto das classes inferiores e aos baixos instintos.
Em nossa pesquisa, temos nos debruçado de forma significativa sobre
contos e novelas de terror e horror do século XIX, no sentido de buscarmos algumas
referências para as práticas sensacionalistas da imprensa contemporânea. De forma
genérica, estão lá: as marcas do excesso, a utilização da personificação e das descrições
sensoriais, a estrutura maniqueísta e o apelo ao escatológico, ao sexual e ao grotesco.
Na concepção de Baddeley, há uma intrínseca relação entre o gótico e suas dimensões

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 70-84 75


de horror e terror com os domínios da morte e do sexo, o que, em certo sentido,
aproxima o gótico do pornográfico (como paradigma, marquês de Sade).
“Mistérios e vinganças”. Estas são, para Marlyse Meyer (1996), os traços
do folhetim em sua primeira fase na França, em meados do século XIX. A influência
do romance gótico é perceptível, mas não aquele de Byron e Sade, que flertam com
o escatológico e a sedução transgressora e pornográfica. A matriz gótica fundamental,
na afirmação do folhetim em sua fase inicial, são os romances de Anne Radcliffe,
best-seller das tramas de terror em fins do século XVIII na Inglaterra, com suas
histórias ambientadas em castelos medievais, repletas de torres, fossos, fantasmas,
vilões perversos e virgens sacrificadas.6 Podemos perceber, neste sentido, que, nesta
primeira fase, o folhetim tende a operar como um importante instrumento moral,
marcando e identificando posições de classe e gênero, evitando aportes mais
transgressores e funcionando como um eficaz instrumento para gerar fidelização do
público (a partir da publicação em série) e promover a consolidação do jornalismo
comercial.
Mas a própria Meyer nos oferece pistas para desconfiarmos dessa
interpretação acerca do folhetim como um instrumento predominantemente de
dominação comercial, política e econômica. Ao abordar o caso Eugène Sue, algumas
novas possibilidades de interpretação entram em cena. Sue teria passado de “dandy a
socialista”, conforme indica a autora, em sua trajetória como autor consagrado de
folhetins. Publica Os mistérios de Paris, em 1842, com estrutura maniqueísta, fundindo
características do romance romântico/gótico com o melodrama e tendo como
personagem central o povo de Paris. Para isso, irá circular pelos bairros escusos e
travar contato com as camadas subalternas. Na introdução de Os mistérios de Paris,
descreverá: “nós vamos tentar colocar sob os olhos do leitor alguns episódios da vida
de outros bárbaros, tão fora da civilização quanto os povos selvagens (...). só que os
bárbaros de quem falamos estão no meio de nós (...)” (Sue apud Meyer, 1996:74-
75). O outro é, portanto, um próximo, mas tão assustador quanto o distante.
No entanto, ao colocar em cena personagens populares, símbolos da
“sofredora e injustiçada condição operária”, Sue consegue uma repercussão
extraordinária e, com essa trama, se transforma no rei dos folhetins. A resposta popular
é expressiva, como nos conta Meyer: o autor recebe cartas, contribuições, visitas de
operários (“há o que se suicida à sua porta”). O público descreve suas agruras, narra
“casos sociais terríveis”, fala da fome, das injustiças, da miséria. A pressão dos leitores
e o contato estreitado com sujeitos “reais” que inspiram seus personagens levam a
uma guinada na trajetória do autor, que se transforma em socialista (inclusive sendo
eleito como deputado socialista por Paris em 1850), passando “dos bárbaros das

76 Ana Lucia S. Enne – O sensacionalismo como processo cultural


classes perigosas como objeto de interesse turístico às classes laboriosas como sujeito”
(idem:76). Tal mudança de perspectiva altera também sua forma literária: seus folhetins
passam a ser mais sérios, a solicitar reformas, a sugerir transformações sociais. A
partir da interação com seus leitores reais, Sue cria um novo gênero folhetinesco: o
socialmente engajado. E o que acontece? Vejamos nas palavras de Meyer: “O público
reclama. Se identifica com aqueles esquecidos e explorados que Eugène Sue trouxe à
tona, dando-lhes estatuto de sujeito, nem por isso quer deixar de se divertir e se deixar
levar pelo caudal romanesco” (idem, ibidem).
Estes episódios nos parecem reveladores em vários aspectos. O primeiro,
que não exploraremos neste artigo, diz respeito ao lugar dos receptores no processo
midiático. Acreditamos que, no caso do sensacionalismo, os protocolos de leitura que
se estabelecem entre o público e os meios de comunicação são pontos fundamentais
para pensarmos como se constitui o fluxo do imaginário do sensacional (Barbosa e
Enne, 2006). Além disso, o caso Sue nos remete a uma questão que vem se anunciando
recorrentemente nas matrizes que estamos apresentando: o lugar do outro nesse
processo.
Como indicamos anteriormente, o século XIX será assinalado, na
modernidade ocidental, por grandes transformações nos países em desenvolvimento
industrial, em especial a França e a Inglaterra. O crescimento urbano é um de seus
traços mais marcantes. As cidades modernas, com sua concentração demográfica e
crescente utilização de novas tecnologias, serão a nova referência espacial para o
medo: não mais as florestas e castelos medievais, mas os bairros populosos, as ruas
mal iluminadas, os rostos anônimos que podem esconder assassinos perversos, as
novas e perigosas técnicas (o bonde, o trem, o automóvel, todos velozes e furiosos)
etc. Esses são os novos outros, como descreveu Sue. A monstruosidade agora está
na vida urbana, no perigo das grandes cidades, no estilo de vida metropolitano. A
literatura do século XIX, da qual estamos aqui discutindo algumas matrizes, pode ser
percebida como uma “literatura de paranóia” (Magalhães, 2003). Acreditamos que,
embora esse conceito possa ser aplicado de modo genérico a todas as matrizes citadas,
ele se ajusta de forma clara à literatura de horror, sobre a qual já falamos e voltaremos
adiante, e à literatura fantástica, matriz sobre a qual falaremos imediatamente a seguir.
Para Célia Magalhães (2003), tomando como referência o clássico es-
tudo de T. Todorov, o fantástico deveria ser definido “a partir do efeito de incerteza e
de hesitação provocada no leitor frente a um acontecimento possivelmente sobrena-
tural” (Magalhães, 2003:15). Para a autora, o fantástico “ressurge no final do século
XVIII e durante o século XIX, com o sentido estrito de narrativa que se desenvolve
pelo rompimento da racionalidade do Século das Luzes, questionando o discurso

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 70-84 77


realista e seus preceitos de verosimilhança” (idem, ibidem). E completa: “o fantástico
constitui a hesitação por parte do leitor entre uma explicação natural e outra sobrena-
tural para os eventos do qual participa” (idem:27). É, portanto, uma poética de incerteza,
de “problematização das categorias de verdade, visão e realidade” (idem:28). Esse
caráter de desafio ao racional atribuído à literatura fantástica no século XIX também
é abordado por Roberto Causo (2003) em suas reflexões sobre o horror e a fantasia.
Afirma o autor que, mesmo tendo suas origens em mitos e narrativas orais, o fantás-
tico, na modernidade, faz parte de um quadro contextual específico, no qual
desempenha o papel de oferecer outras explicações para o mundo, não submissas ao
preceito da racionalidade, mas ao mesmo tempo flertando com as tecnologias moder-
nas (daí, para Causo especialmente, o quanto o fantástico irá influenciar um subgênero
que seria a ficção científica, fortemente marcada por temáticas e discussões da vida
urbana e moderna).
Porém, neste processo ambíguo de oferecer encantamentos frente ao
desencantamento do mundo, de que fala M. Weber, o fantástico seria acompanhado
de outras formas narrativas, dentre as quais o melodrama, de que falamos, e também
o horror, já citado e sobre o qual falaremos um pouco mais a seguir.
Célia Magalhães associa a literatura de horror à literatura gótica, por ela
identificada como “ficção de paranóia”, por representar a dificuldade do ser humano de
lidar com o outro e consigo mesmo. Para ela, a literatura de horror é a literatura da
alteridade, em que o outro é colocado para o leitor de modo ambíguo, promovendo nele
“o estranho efeito ambivalente do desejo narcisista pelo outro e do medo de que o outro
possa romper os limites do mesmo, confundindo as noções de dentro e fora”. Se, para
ela, o fantástico faz irromper os temas “do duplo, da catalepsia e da volta dos mortos, das
alucinações, das desordens mentais e perversões”, o horror funcionaria, principalmente,
como “uma máquina textual criadora de monstros” (Magalhães, 2003:15).
A monstruosidade, a nosso ver categoria fundamental para pensarmos a
prática narrativa do sensacionalismo da imprensa do século XX, seria elemento-chave
dentro da literatura do horror, mas nela já reapareceria como reconfiguração dentro
de um fluxo imaginário que remontaria a tempos imemoriais. Etimologicamente, como
nos indica Magalhães, monstro vem de monstrare (em latim, mostrar) e também de
monere (também latim, avisar), fazendo com que a monstruosidade fosse percebida
como um sinal divino indicativo do mal e trazendo presságios que avisariam o homem
sobre o que estava por vir. Em outros sentidos propostos, monstrum é o espetacular,
ou “aquele que se mostra para além da norma”, ou “o monstro é algo ou alguém para
ser mostrado (monstrare), servindo ao propósito de revelar o produto do vício e da
desrazão como um aviso (monere)” (idem:24-25).

78 Ana Lucia S. Enne – O sensacionalismo como processo cultural


A expansão industrial e urbana seria, para Magalhães, base fundamental
para a literatura de horror, que estaria procurando dar conta desse mundo em
transformação, mas oferecendo, em diálogo por vezes complementar, em outras
contrastivo, explicações diferentes daquelas dadas pelo Iluminismo e pelo Romantismo
a esse processo. Neste sentido, tanto a literatura fantástica quanto a do horror estariam
estabelecendo uma relação dialógica com o realismo/naturalismo ratificado pela
Ilustração e o romantismo literário. O horror seria “uma forma literária de oposição às
unidades clássicas da ficção realista – tempo, espaço e personagem unificada”, o que,
como aponta Magalhães, levaria a um “excesso ornamental”, em que a utilização dos
apelos sensoriais levaria a produzir “simultaneamente medo e desejo no leitor” (idem:30).
Por agora, esses breves comentários acerca da literatura de horror nos
bastam para o que pretendemos desenvolver. Estamos partindo, portanto, da assertiva
de que o horror trabalha com representações acerca do outro, fazendo um jogo narrativo
especular que oscila entre o medo e o desejo, e que tem como construção narrativa
fundamental o monstro, o espetacular, aquele que moralmente traz o sinal de advertência
acerca do mal e da perdição.
O outro monstruoso da literatura de horror do século XIX aos poucos
vai abandonando as figuras clássicas (o vampiro, o mutante etc.) para se concentrar
na monstruosidade que pode estar ao nosso lado ou em cada um de nós. Os plots do
assassino que se esconde na multidão ou aquele que, vivendo como um duplo (caso
clássico de O médico e o monstro), é capaz de cometer atrocidades, passam a ser
usuais nas narrativas de horror. E chegam aos folhetins em sua segunda fase, como
demonstra Meyer, na segunda metade do século XX, quando, renovados, passam a
se apoiar nos fait divers, entendidos pela autora como “relato romanceado do cotidiano
real” (Meyer, 1996:94). A nosso ver, neste momento crucial encontramos um marco
claro de hibridação entre as matrizes que apontamos sucintamente até aqui (mescladas,
não sem conflitos, também com o realismo e o naturalismo, que exploraremos em
outro contexto) e a apropriação pelo jornalismo comercial da narrativa sensacionalista.
Para Meyer, esses novos folhetins são “eróticos, exóticos, históricos, macabros, de
mulheres fatais” (idem:95). Estão sendo gerados concomitantemente a um outro gênero,
que também será matriz fundamental para o noticiário sensacionalista do século XX:
o romance policial. Para Todorov, há algo que aproxima o romance policial e o fait
divers: o estranho. Nas palavras do autor: “(...) relatam-se acontecimentos que podem
perfeitamente ser explicados pelas leis da razão, mas que são, de uma maneira ou de
outra, incríveis, extraordinários, chocantes, singulares, inquietantes, insólitos (...)”
(Todorov, 2004:53). Tais imbricações, entre os diversos formatos narrativos que
estamos descrevendo aqui, chegam aos jornais através dos folhetins em forma de fait

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 70-84 79


divers, que, no fim do século XIX, já se constituem em matriz para as crônicas do
cotidiano que povoam os jornais comerciais americanos e europeus, e que se
estabelecerão no Brasil no início do século XX (Barbosa, 1996).

REFLEXÕES FINAIS
Apresentamos, de maneira breve conforme as regras de composição
deste artigo, algumas das matrizes que consideramos fundamentais para o surgimento
do sensacionalismo na imprensa contemporânea. Em outro momento, cabe-nos
demonstrar como tais matrizes irão reaparecer nas práticas sensacionalistas do século
XX, bem como ampliar as reflexões sobre o fluxo cultural que alimentará o imaginário
ocidental para além da Modernidade já consolidada dos Novecentos, buscando seus
vestígios e questões nos primórdios do processo moderno do Ocidente, ainda na
Idade Média. Acreditamos ter aqui um importante caminho para pensarmos o
surgimento da moderna mídia de massa, voltada para a ampliação de seu público e
que, neste processo, incorpora atributos culturais dos mais diversos segmentos sociais.
Mapearmos este processo é um de principais objetivos da pesquisa que desenvolvemos.
No entanto, não nos basta o como. Queremos, sim, mapear tal processo
de imbricações e mediações e entender como este se deu na modernidade ocidental.
Mas queremos também, evidentemente em outro espaço mais apropriado, pensarmos
alguns porquês: por que tal configuração, nitidamente processual e dialógica, passou
a ser compreendida, a partir de meados do século XX, como algo que irrompe,
negando assim o seu fluxo? Por que o sensacionalismo, ambivalente e polifônico,
percebido em constante jogo de interação com a razão, foi estigmatizado como sendo
unicamente instrumento de alienação, manipulação política e econômica, resquício
cultural do atraso e marca indelével da falta de gosto e distinção das camadas subalternas?
São perguntas que nos movem e nos levam a algumas reflexões
preliminares, que acabam apontando para outras perguntas. Parece-nos claro que
estamos diante de um processo histórico de memória, envolvendo jogos de lembrança
e esquecimento, relacionados de forma intrínseca com a construção de identidades
sociais (em especial de classe), e com a constituição de projetos de futuro, marcados
pela distinção e pela atribuição significativa de valor a determinadas dimensões de
gosto e consumo. Sem esquecer as marcas evidentes da indústria cultural e das
estratégias políticas que envolvem o uso do sensacionalismo na mídia contemporânea,
achamos cabível perguntar a quem interessa esquecer o caráter processual de sua
constituição, que remete a jogos intensos de negociação e circularidade entre camadas
sociais. Qual seria, nesta construção de memória/identidade/projeto envolvendo o
sensacionalismo, o papel dos agentes da imprensa, da mídia de uma forma geral e

80 Ana Lucia S. Enne – O sensacionalismo como processo cultural


também da academia? Estas são reflexões que também estão em nosso horizonte, e
este artigo é parte de nossa jornada. Estamos compreendendo, com indica Stuart
Hall, que o popular é sempre lugar de disputas e negociações. Consideramos que o
fluxo do sensacional é um processo cultural e, no sentido proposto por Hall, algo que
diz respeito ao popular. Não o popular idealizado ou vilipendiado, mas aquele que
implica em mediações e fluxos, em “conter e resistir”. Como afirma o autor, “é por
isso que a cultura popular importa”, porque é “arena de consentimento e de resistência”
(Hall, 2003:263).
Assim, percebemos, em nossas análises sobre as matrizes culturais do
século XIX citadas de forma sucinta neste artigo (a saber, a literatura pornográfica, o
melodrama, o folhetim, a literatura de horror e fantástica, o fait divers e o romance
policial), o caráter de circularidade entre os diversos gêneros culturais, bem como a
existência de claros pontos de convergência e continuidade entre tais matrizes e as
narrativas sensacionalistas que irão povoar as páginas da imprensa do século XX. Da
mesma forma, é possível detectar pontos de ruptura em termos de formato, conteúdo
e propósitos entre as produções narrativas nos diversos contextos mapeados, o que
também temos explorado no decorrer de nossas pesquisas.7 Portanto, nos parece
claro que a tessitura dos discursos sensacionalistas contemporâneos está envolta em
um jogo de apropriações e negações, cuja compreensão requer, em sua complexidade,
que se alie, aos estudos dos fenômenos midiáticos, uma perspectiva histórico-cultural.

ANA LUCIA S. ENNE é professora do curso de Estudos de Mídia e do Programa de Pós-graduação


em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM/UFF), onde coordena o LAMI
(Laboratório de Mídia e Identidade - http://www.uff.br/lami)

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 70-84 81


NOTAS

* Este trabalho foi apresentado ao Grupo de Trabalho “Cultura das Mídias”,


do XVI Encontro da Compós, na UTP, em Curitiba, PR, em junho de 2007.
1 Trata-se do livro Jornalismo de Sensações (título provisório), de autoria
de Ana Lucia Enne e Marialva Barbosa, com a colaboração de Mariana Baltar, que se
encontra em fase de finalização, com previsão para edição em 2008.
2 Não é nosso interesse direto neste artigo apresentar uma discussão sobre
como as práticas sensacionalistas podem ser encontradas nos chamados veículos
“sérios” da imprensa. Mas sugerimos as leituras de Duarte (2003) e Matheus (2006).89
3 Lembramos que todas são percebidas como processuais e não como
formas puras, e que aqui serão apresentadas de forma simplificada em virtude da
limitação de espaço e objetivos propostos. Estamos deixando de fora algumas outras
matrizes importantes, como o realismo grotesco, os folhetos extraordinários que
antecederam os jornais, os livros de morte, os canards franceses, os pliegos espanhóis,
a literatura de cordel, os romances “de sensação” e “para homens”, a literatura realista
e naturalista, dentre outros, que serão abordados em nosso trabalho final.
4 Sobre o adensamento das transformações na Modernidade ocidental
no século XIX, conferir o artigo que apresentamos na Intercom 2007 (Enne e
Borges, 2007).
5 Não cabem aqui as inúmeras discussões sobre as convergências e
divergências entre os termos, que serão desenvolvidas em trabalhos posteriores.
6 Campeã de vendas, Radcliffe vai ser considerada autora menor, exatamente
por seu caráter comercial. Jane Austen a ridiculariza em A abadia de Northanger
(1982), faz uma crítica deliciosa e impiedosa à influência que o romance a la Radcliffe
teria na imaginação das mulheres inglesas do século XIX. No entanto, é sempre bom
lembrar que o gênero consagrado por Austen, o romance de costumes, também será
objeto de diversas críticas, que o considerarão gênero menor em termos narrativos.
7 Agradecemos, neste sentido, as colaborações dos participantes do GT
Cultura das Mídias da COMPÓS/2007, realizado em Curitiba, no qual este artigo foi
debatido. Em especial, os instigantes comentários da relatora Vera Lúcia Follain de
Figueiredo.

82 Ana Lucia S. Enne – O sensacionalismo como processo cultural


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84 Ana Lucia S. Enne – O sensacionalismo como processo cultural


A telenovela brasileira:
uma nação imaginada
Cláudia de Almeida Mogadouro

O presente artigo está contextualizado num trabalho que vimos realizando


junto ao Núcleo de Pesquisa de Telenovela (NPTN-ECA-USP) e do Observatório
Ibero-americano de Ficção Televisiva1 (OBITEL), sob a orientação da Profª Drª Maria
Immacolata Vassallo de Lopes.
As reflexões aqui contidas advêm de estudos que desenvolvemos durante
o mestrado, concluído em 2005, e no doutorado, em curso.
Buscamos articular algumas reflexões sobre o ainda existente preconceito
no meio intelectual com os estudos sobre a ficção televisiva, tentando demonstrar o
quanto este produto revela sobre a idéia de nacionalidade como construção cultural,
podendo se constituir como uma “narrativa da nação”. Tentamos fazer um paralelo
entre a idéia de “repertório compartilhado” a partir da audiência massiva da telenovela,
presente na obra de Martín-Barbero e Maria Immacolata Vassallo de Lopes e o conceito
de “comunidades imaginadas”, proposto por Benedict Anderson e utilizado por Homi
Bhabha. Procuramos ainda, rever o percurso da telenovela brasileira, que traz muitas
peculiaridades em relação aos outros países da América Latina, potencializando ainda
mais as discussões polêmicas que atravessam o país.

A TELENOVELA COMO OBJETO DE ESTUDO


A ficção televisiva, principalmente seu formato mais conhecido, a
telenovela diária, é uma narrativa que, por um percurso muito peculiar no Brasil,
tornou-se o principal e mais lucrativo produto televisivo, desde o surgimento da TV,
em 1950.
Em toda a América Latina, a importância da telenovela em termos de
audiência e lucratividade é inversamente proporcional à relevância dada nos meios
acadêmicos para os estudos desse objeto.
Esse preconceito, que vem sendo superado ao longo dos últimos anos,
acompanha a relutância em relação a outros objetos de estudo, especialmente de
temáticas ligadas a entretenimento, lazer, humor e cultura popular.
Martín-Barbero, no campo da comunicação na América Latina e no
Brasil, tem sido um dos teóricos mais críticos dessa visão elitista da cultura, com
contribuições significativas para a teoria das mediações, especialmente para os estudos
sobre a televisão, ao trazer a perspectiva dos estudos culturais europeus para a realidade

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 85-95 85


latino-americana. O autor discute um certo mal-estar pela desordem na cultura,
introduzida pela experiência audiovisual. Primeiro, foi o cinema, “ao se conectar com
o novo sensorium das massas”. No campo intelectual, o cinema era visto com
desconfiança, uma vez que “des-organizava” o saber canonizado, tornando “visível a
modernidade de certas experiências culturais que não se regiam por seus cânones,
nem eram apreciáveis segundo seu gosto” (Martín-Barbero e Rey, 2001:33). Apesar
da “domesticação dessa força subversiva” pela indústria de Hollywood, o cinema
europeu volta a introduzir uma nova legitimidade cultural, nos anos 1960, com o
“cinema de autor”, distanciando-o da mídia que, nessa época, já era fortalecida
mundialmente com a televisão:
A televisão é a mídia que mais radicalmente irá desordenar a idéia e os
limites do campo da cultura: suas cortantes separações entre realidade
e ficção, entre vanguarda e kitsch, entre espaço de ócio e de trabalho.
Porque, mais do que buscar seu nicho na idéia ilustrada de cultura, a
experiência audiovisual a repõe radicalmente: desde os próprios modos
de relação com a realidade, isto é, desde as transformações de nossa
percepção do espaço e do tempo (idem:33-34).
Mas enquanto o cinema catalisa a experiência da multidão, a televisão
traz essa experiência audiovisual para a esfera doméstica, para o campo do privado,
em um movimento de “des-agregação” e “atomização” (Martín-Barbero, 1998). Porém,
oferece ao telespectador o mundo, tornando-se lugar estratégico de sociabilidade, de
circulação de informações e de entretenimento para todas as classes sociais.
O denominado “mau-olhado dos intelectuais” denuncia a crítica mais
comum existente entre a intelectualidade latino-americana – bastante acentuada no
Brasil, que não vê opção de vida inteligente na programação televisiva. Esses intelectuais
criticam o mau gosto, a superficialidade e a imbecilização que a TV provoca no seu
público, impedindo a “reflexão e a disseminação da cultura”.
Valendo-se, entre outros, de historiadores como Michell de Certeau
(2003) que entendem o cotidiano como um espaço de recriação e não necessariamente
de alienação, a teoria das mediações foi sendo adotada como paradigmática para as
pesquisas de recepção no Brasil. Segundo esta visão, há uma negociação de sentidos
no campo da recepção, que sempre é mediatizada. Não há uma transmissão direta e
unívoca de mensagens e, sim, um processo que se inicia antes da assistência e
continua quando a televisão é desligada. A reelaboração e ressignificação das
mensagens produzem outros discursos que circulam em outros cenários, inseridos
no cotidiano de todos, até de quem não assiste. Dentro dessa perspectiva, a recepção
de situações apresentadas numa telenovela pode ser muito variada, pois depende do
contexto sociocultural do assistente.

86 Cláudia de Almeida Mogadouro – A telenovela brasileira: uma nação imaginada


O melodrama estudado como constitutivo da cultura popular permite
ainda a abordagem da noção de reconhecimento que, ao contrário de ser entendido
como alienação – uma vez que se situa no âmbito dos sentimentos —, pode significar
“interpelar uma questão acerca dos sujeitos, de seu modo específico de se constituir.
E não só os sujeitos individuais, mas os coletivos, os sociais e, inclusive, os sujeitos
políticos” (Martín-Barbero, 2001:316).
Nos elementos do melodrama, entendido numa perspectiva cultural,
há muito do que somos, as incoerências e tensões, os preconceitos e
superações: “Em forma de tango ou telenovela, cinema mexicano ou
reportagem policial, o melodrama explora nessas terras um profundo
filão do nosso imaginário coletivo, e não existe acesso à memória
histórica nem projeção possível sobre o futuro que não passe pelo
imaginário” (idem, ibidem).
A telenovela expressa muito bem esse reconhecimento ou identificação,
uma vez que relata histórias essencialmente familiares, a partir da sociabilidade
primordial do parentesco. Os marcos históricos e sociais passam a ser narrados
através da participação de personagens. Uma guerra é vista a partir da morte de um
vizinho, um hospital público é apresentado a partir de um acidente envolvendo
personagens. Tal característica passou a ser muito clara na telenovela brasileira, e sua
circulação de sentidos passou a ser tão intensa que possibilitou que questões privadas
– assuntos íntimos de sexualidade, crises existenciais, problemas familiares,
relacionamentos extraconjugais – alimentassem o debate público, enquanto questões
públicas – corrupção política, lutas pela posse da terra, preconceitos raciais, conquistas
da condição feminina – fossem vistas a partir da esfera privada (Lopes, 2003;
Mogadouro, 2005). Ainda sobre o melodrama, Martín-Barbero manifesta-se:
Ao que nele (o melodrama) está em jogo é o drama do reconhecimento.
Do filho pelo pai ou da mãe pelo filho, o que move o enredo é sempre
o desconhecimento de uma identidade e a luta contra as injustiças, as
aparências, contra tudo o que se oculta e se disfarça: uma luta por se
fazer reconhecer. Não estará aí a secreta conexão entre o melodrama
e a história desse sub-continente? (Martín-Barbero, 2001:316).

A TELENOVELA COMO EXPERIÊNCIA DE RECONHECIMENTO


Com uma estrutura muito singular – sua origem é uma mescla do
folhetim literário ou de jornal, radionovela, fotonovela, narrativa oral
ou cordel – a ficção televisiva apóia-se na redundância e na fragmentação
para contar histórias interligadas entre si, durante aproximadamente
oito meses (tempo atual da novela brasileira do horário nobre). A partir
de algumas pesquisas recentes,2 tem ganhado corpo a idéia de que

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 85-95 87


esse ritmo e tempo, aliado a outros elementos da produção industrial
permitem que a ficção televisiva esteja muito mais ligada à narração do
que ao romance e essa narrativa sintetize o “imaginário de uma nação”,
como nos diz Lopes: “(...) quando uma novela galvaniza o país, nesse
momento ela atualiza seu potencial de sintetizar o imaginário de uma
nação, isto é, sua identidade, ou o que é o mesmo, de se expressar
como nação imaginada” (Lopes, 2003:32).
Além de se relacionar com outros textos (intertextualidade), a telenovela
traduz-se num gênero em que há uma representação da identidade nacional. Para a
compreensão desse “repertório compartilhado” que a telenovela estabelece com milhões
de telespectadores, a partir de um mesmo texto ou produto, tomou-se o conceito de
nacionalidade como nação imaginada, trazido por Anderson:
(...) a nacionalidade, ou, como poderá ser preferível, dada a
multiplicidade de significados desse termo, o fator nacional e o
nacionalismo são artefatos culturais de um tipo especial. Para
compreendermos bem temos de analisar atentamente o seu aparecimento
histórico, as alterações sofridas pelos seus significados ao longo do
tempo e a razão por que, hoje em dia, possuem uma legitimidade
emocional tão profunda. (Anderson, 2005:25)
Tal idéia nos permite entender a ficção televisiva como narrativa sobre
a nação, que consegue interligar dimensões temporais, com histórias passadas em
várias épocas, contribuindo para a construção de uma memória coletiva, constituindo-
se em documento histórico, além de propor discussões polêmicas sobre temas
controversos e latentes na sociedade atual (ética, corrupção, violência, sexualidade,
entre outros). Independente do conteúdo e da abordagem de seus temas, a telenovela
propicia a formação de um fórum de discussões em âmbito nacional, nos mais diversos
cenários e segmentos sociais.
Anderson define a nação como “uma comunidade política imaginada e,
ao mesmo tempo, intrinsecamente limitada e soberana”: “(...) É imaginada
porque até os membros da mais pequena nação nunca conhecerão, nunca
encontrarão e nunca ouvirão falar da maioria dos outros membros dessa
mesma nação, mas, ainda assim, na mente de cada um existe a imagem
da sua comunhão” (Anderson, 2005:25, grifos no original).

À PROCURA DE UMA IDENTIDADE NACIONAL


A telenovela é o produto cultural mais popular e lucrativo da televisão
brasileira, consumida por todas as camadas da nossa sociedade. Embora tenha sua
origem numa estrutura essencialmente melodramática, esse gênero percorreu um
caminho muito interessante no Brasil, pois buscou uma forma própria de narrativa

88 Cláudia de Almeida Mogadouro – A telenovela brasileira: uma nação imaginada


popular, pautada nas relações do cotidiano, agregando realismo e críticas sociais,
construindo um produto extremamente representativo da modernidade brasileira, por
juntar o moderno e o arcaico, um típico produto da hibridização cultural (García-
Canclini, 2000).
Atualmente, a marca da telenovela brasileira é identificada como aquela
feita na Rede Globo de Televisão, porém, é importante lembrar que a ficção televisiva
diária teve início em outra emissora – a TV Excelsior. Primeira emissora a conceber
a televisão de um ponto de vista empresarial, a TV Excelsior inovou criando o seu
primeiro cast, valorizando as equipes de produção, oferecendo bons salários e sendo
pioneira em criar departamentos de figurinos e de cenografia, por exemplo. Foi dentro
dessa estratégia de ampliação do público que a telenovela diária foi criada, em 1963,
inspirada na experiência da soap opera norte-americana e já com a intenção de um
produto cultural que iria agradar aos anunciantes, porque poderia promover a fidelidade
do telespectador. A Colgate-Palmolive previu que a telenovela seria o espaço ideal para
a veiculação dos seus produtos e passou a financiar essa experiência, inclusive
escolhendo elenco, roteiros e autores, até o final da década de 1960 (Ortiz, Borelli,
Ramos, 1989).
Embora as telenovelas da década de 1960 já refletissem aumento da
audiência, elas ainda estavam em fase de experimentação, apresentando produção
oscilante. Na sua maioria, eram adaptações de novelas da Argentina, Venezuela, Cuba
e de outros países, mas os escritores brasileiros contratados para adaptá-las, aos
poucos, passaram a imprimir uma marca brasileira, com adaptações mais próximas
do telespectador. Alguns desses escritores começam a se firmar como autores
nacionais de sucesso: Ivani Ribeiro, Benedito Rui Barbosa, Geraldo Vietri, Janete
Clair, entre outros. A iniciante TV Globo trouxe, de Cuba, Glória Magadan, escritora
de sucessos melodramáticos, para realizar vários folhetins fantasiosos, como O Sheik
de Agadir.
Algumas iniciativas de mudança para diálogos mais coloquiais já haviam
sido ensaiadas (Ninguém Crê em Mim, de Lauro César Muniz, 1966), assim como
aproximação do herói folhetinesco com um cidadão comum (Antônio Maria, Geraldo
Vietri e Walter Negrão, 1968/1969), quando se lançou, na TV Tupi, o que foi
considerado o divisor de águas da história da telenovela: Beto Rockfeller (autoria de
Bráulio Pedroso e direção de Lima Duarte, 1968/1969). Essa experiência reuniu uma
série de inovações – na direção, na posição das câmeras e na estrutura da história.
Com o sucesso de Beto Rockfeller, o anti-herói que desejava ascensão
social – interpretado por Luiz Gustavo —, os produtores confirmaram não só a força
que o gênero poderia adquirir na televisão brasileira, mas que o público desejava um

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 85-95 89


produto com linguagem mais moderna, que tratasse de temas do cotidiano das pessoas
comuns, da classe média urbana e não mais romances com duques e sheiks, em
terras longínquas.
A Rede Globo de Televisão, a partir das mudanças introduzidas pela TV
Tupi, foi responsável pela “industrialização” da telenovela, transformado-a num produto
cultural altamente lucrativo e consolidando a especificidade da teleficção brasileira. A
associação com o grupo Time-Life e a criação da Central Globo de Produção foram
fatores decisivos pelo altíssimo investimento na sua programação e o estabelecimento
do “Padrão Globo de Televisão”. Na mesma época, o governo militar promove a
implantação do sistema de telecomunicações da Embratel e a rede televisiva passa a
cobrir praticamente todo o país. Alia-se a tudo isso o processo de urbanização pelo
qual passa o país, além do aumento significativo verificado nas aquisições de televisores
pela classe média urbana.
A passagem da direção da Rede Globo para as mãos de “homens de
marketing” e o aprendizado com a Time-Life inovaram a forma de se encarar o
produto telenovela, logo visto como a menina-dos-olhos da programação. As mudanças
podiam ser vistas no formato industrial e altamente profissional de se fazer telenovela,
o que provocou mudanças radicais na contratação dos profissionais e técnicos, na
feitura do programa, nos temas a serem discutidos nas tramas e na relação com os
anunciantes. Os programas eram pensados conforme o horário e a faixa etária, o que
passou a ser de profundo interesse dos anunciantes. O estabelecimento da grade de
programação, com horários fixos e bem divulgados, foi fundamental para firmar o
hábito do telespectador e a novela global passa a ser “mania nacional”.
Pode-se afirmar que a novela produzida no Brasil é um produto de alto
nível artístico, que se foi aprimorando no decorrer das últimas décadas e que, embora
moldado industrialmente pela Rede Globo, passou a influenciar as produções de outras
emissoras, tanto no Brasil, como no exterior.
A fidelização do público passou a exigir cada vez maior criatividade dos
produtores, uma vez que se buscava uma constante renovação de roupagem para um
produto que tanto sucesso comercial alavancava. Estabeleceu-se uma convenção
que cada novo programa deveria trazer maiores novidades, em termos de elenco,
assuntos polêmicos diferentes das novelas anteriores, além de provocar vendas de
mais discos, roupas e outros produtos de consumo. O senso comum aponta esse
consumo como exemplo do impacto das telenovelas na população, porém, é
interessante verificar que alguns lançamentos de produtos da moda são bastante
efêmeros e mal são lembrados no início da novela seguinte. É importante registrar
que as mudanças mais significativas e que são efetivamente incorporadas socialmente

90 Cláudia de Almeida Mogadouro – A telenovela brasileira: uma nação imaginada


relacionam-se com temas como preconceito, igualdade da mulher em relação ao
homem, entre outros (Ribeiro, 2005; Lopes, 2003).
Essa ênfase na representação de uma contemporaneidade
sucessivamente atualizada é visível na moda, nas tecnologias, nas
referências a acontecimentos correntes. Mas é visível também na
evolução da maneira como o amor, o sentimento, o romance e a relação
homem-mulher foram representados nas novelas dos anos 70 em diante
(Lopes, 2003:25).
Outra característica marcante no percurso da telenovela no Brasil e que
difere de outros países, foi o estabelecimento de uma “marca autoral”, enquanto em
outros países existe a figura do roteirista, responsável por desenvolver um roteiro a
partir de um argumento pronto, de marca industrial, com menores elementos artísticos.
No Brasil, passaram a escrever telenovela para a Rede Globo, principalmente durante
a ditadura militar, autores conhecidos publicamente por suas posições de esquerda,
especialmente, os vindos do teatro, cujas obras não tinham chance de serem encenadas,
justamente pela perseguição política. Mesmo sob uma feroz censura, esses
dramaturgos (Dias Gomes, Lauro César Muniz, Jorge Andrade e outros) encontraram
na telenovela uma possibilidade, muitas vezes dissimulada, de trazer a um público
grande a crítica social e política.
Contraditoriamente à imagem da emissora profundamente comprometida
com a ditadura militar, os autores assumem claramente a crítica social: “cabe ressaltar
que o realismo concebido pelos autores neste período, visa responder a uma questão
central: como retratar, discutir e criticar a realidade brasileira?” (Ortiz, Borelli, Ramos,
1989:93).
O fato de a telenovela ser um produto industrial altamente lucrativo,
com necessidade de retorno imediato, explica parte desse paradoxo. O sucesso absoluto
exigia, cada vez mais, bons autores que, possivelmente por uma questão de
sobrevivência e necessidade de terem sua obra conhecida por muitos, deveriam
encontrar uma alternativa para que sua crítica social fosse mantida, apesar da censura.
Em relação à emissora, sempre se disseram independentes como criadores. Em 1973,
Jorge de Andrade, faz um depoimento:
Não estou preocupado em fazer sucesso a qualquer preço. Tenho uma
história pra contar e vou contá-la como acho que devo. Para isso fui
contratado, para fazer ‘minha novela’, e a Globo até hoje cumpriu o
combinado. Esta novela terá todos os ingredientes que formaram meus
textos no teatro. Terá característica de novela, mas será minha. Eu
não estou fugindo de ser o que sou no teatro e na literatura (apud
Ortiz, Borelli, Ramos, 1989:86).

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 85-95 91


Outra característica vista com muito mais ênfase no Brasil é o fato de
ela ser escrita na mesma época em que vai ao ar, caracterizando claramente o que se
chama de “obra em aberto” (Lopes, 2003; Pallottini, 1998), permitindo forte relação
de interatividade do autor com o público. A telenovela conquistou mecanismos de
interatividade que fazem com que a sua assistência se transforme numa experiência
não apenas cultural, mas de sociabilidade, uma vez que ativa um “repertório
compartilhado” e faz circular discussões que se entrecruzam com o que se divulga na
imprensa escrita, nos vários programas de televisão e de rádio, pesquisas de audiência,
conversas domésticas, entre vizinhos, em ambientes de trabalho e escolares.
A crítica social é tratada através dos núcleos familiares, dos desencontros
amorosos. A telenovela trata do preconceito racial, da condição feminina, da ascensão
social, das relações familiares, da sexualidade e de tantos outros temas por meio de
seus personagens que cativam o público por muitos meses. Desta forma, a nação é
representada na telenovela e acompanhada e criticada por milhões de pessoas que
interagem com a produção.
Alguns temas sociais passaram a ser incorporados nas produções, como
vem se notando na questão de casamentos inter-raciais e no debate sobre o preconceito
em relação à homossexualidade.
Outras ambigüidades desse produto cultural: ela acaba por apresentar
uma mensagem muitas vezes moralizante, típica do melodrama, uma mensagem
conservadora, uma vez que os problemas familiares e da ordem da afetividade estão
normalmente no eixo de todas as tramas.
Porém, por se exigir constantemente certa verossimilhança, cada vez
mais as tramas de sucesso vêm apresentando novos arranjos familiares, superação de
preconceitos, questões políticas e de desigualdade social, trazendo tensões interessantes
ao debate público.
Apesar de termos nos atido mais à telenovela brasileira, para
considerarmos o produto cultural como narrativa da nação, torna-se relevante situar
que nossa troca de experiências com os países que compõem o OBITEL (Brasil,
Espanha, Portugal, Venezuela, Chile, Argentina, México, Colômbia e EUA; público e
produção hispânica) nos permite constatar que, apesar do intenso bombardeio da rica
indústria cultural norte-americana, no horário de maior audiência da televisão aberta
são exibidas as novelas nacionais.
O caso de Portugal é bem interessante. Tradicional consumidor das
telenovelas brasileiras desde 1977, através de uma retransmissora da Rede Globo
naquele país (SIC), de uns dez anos para cá, a TVI (Televisão Independente, que era
a terceira colocada em audiência) passou a contratar vários profissionais brasileiros

92 Cláudia de Almeida Mogadouro – A telenovela brasileira: uma nação imaginada


(entre técnicos e de criação) para realizarem o mesmo produto, com a mesma
competência técnica das brasileiras, mas com o desenvolvimento de temáticas locais.
O resultado – apresentado no congresso da Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação) em 2005, por Catarina A. D. Burnay da
Universidade Católica de Portugal, é que, a partir de 2000/2001, os índices de audiência
em Portugal registraram superioridade da TVI, o que vem se mantendo até os dias de
hoje (Burnay, 2005). O mesmo se vê em relatos de brasileiros em outros países que
querem ver sua “nação” no cotidiano apresentado na telenovela exportada do Brasil.
Novamente, cabe aqui o conceito de “comunidade imaginada” (Anderson,
2005) assim como a abordagem de ambivalência da idéia de nação de Homi K. Bhabha
em Narrando la Nacion (1990). Segundo este pensador, enquanto a historiografia
tradicional identificava a idéia de nação como uma narrativa do “progresso nacional”,
as grandes migrações contemporâneas puderam trazer uma reatualização desse
conceito, a partir de recriações culturais e sentimentos de “nostalgias culturais”, novas
“etnicidades”, novos movimentos sociais etc., facilmente confirmados pelo sentimento
de pertencimento nos estrangeiros que se vêem nas produções culturais ligadas à sua
origem, nos outros países. Também nessa perspectiva, acredito que é possível ampliar
os estudos da ficção televisiva e sua representação da idéia de nação.

CLÁUDIA DE ALMEIDA MOGADOURO é doutoranda em ciências da comunicação da Escola de


Comunicação e Artes (ECA)-USP, Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Telenovela da ECA-USP.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 85-95 93


NOTAS
1 O Observatório Ibero-americano de Ficção Televisiva (OBITEL) foi criado
em fevereiro de 2005 e trata-se de uma rede de pesquisadores de oito países: Brasil,
Portugal, Espanha, Chile, Argentina, México, Colômbia e EUA (público hispânico).
Entre outros objetivos, o OBITEL se propõe a estudar as temáticas apresentadas na
produção de ficção televisiva e a representação cultural e identitária desses países.

2 Tal tese vem sendo desenvolvida desde 2002, no NPTN-ECA-USP,


particularmente no projeto de pesquisa Nações e Narrações Televisivas: a telenovela
brasileira no cenário internacional, coordenado pela Profª Drª Maria Immacolata Vassallo
de Lopes. Tais reflexões foram base para a constituição do OBITEL, em fevereiro de
2005.

94 Cláudia de Almeida Mogadouro – A telenovela brasileira: uma nação imaginada


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas; reflexões sobre a origem


e a expansão do nacionalismo (trad. da 2ª ed.), Rev.,2005.
BHABHA, Homi K. (org.). Nation and narration, Londres/ Nova York:
Routledge, 1990.
BURNAY, Catarina A. D.D.. “Ficção Nacional: a emergência de um paradigma
televisivo”. Trabalho realizado na UCP (Portugal), apresentado no Congresso
da Intercom, 2005.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano, Artes de fazer. Petrópolis:
Vozes, 2003.
GARCÍA-CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas. São Paulo: EDUSP, 2000.
LOPES, Immacolata. BORELLI, Sílvia H. S., RESENDE, Vera R. Vivendo
com a telenovela: mediações, recepção e teleficcionalidade, São Paulo:
Summus Editorial, 2002.
LOPES, Immacolata. “Telenovela: uma narrativa sobre a nação”.
Comunicação e Educação, nº 26, São Paulo: CCA-ECA-USP/Ed.Salesiana,
pp21-33.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura
e hegemonia, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001.
_______. 1998. Cidade virtual: Novos cenários da comunicação.
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_______ e REY, Germán. Os exercícios do ver, hegemonia audiovisual e
ficção televisiva, São Paulo: Editora Senac, 2001.
MOGADOURO, Cláudia de A. “Do pátio à sala de aula: possibilidades da
discussão da telenovela na sala de aula”. Dissertação de mestrado, ECA/
USP, São Paulo, 2005.
ORTIZ, Renato; BORELLI, Sílvia H. S.; RAMOS, J. Mário O. Telenovela
– história e produção, São Paulo: Brasiliense, 1989.
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão, São Paulo: Moderna, 1998.
RIBEIRO, Renato Janine. O afeto autoritário, São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.

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Engajamento afetivo e as performances
da memória em Um passaporte húngaro
Mariana Baltar

All memories are traces of tears


Intertítulo de 2046, dirigido por Wong Kar Wai

A epígrafe sumariza a idéia deste artigo: a relação afetiva que se estabelece


com a memória, especialmente com os seus atos de compartilhamento, sobretudo
nos testemunhos tão recorrentes no domínio do documentário. A questão aqui é pensar
no tipo de ligação que se estabelece entre as performances da memória – o ato de
testemunho, de narração da memória – e uma noção de engajamento emocional com
tal ato, um vínculo que acaba por reforçar o valor de autenticidade, recuperando,
dessa maneira, através desta espécie de contrato sentimental, o lugar social de fala do
domínio do documentário. A carga emotiva que nos une, personagem, diretor, filme e
espectadores, reveste de credibilidade o que é, em última instância, da ordem do
íntimo, do privado.
Quero pensar, na verdade, uma certa recorrência de procedimentos na
expressão dos testemunhos que evoca uma poderosa estratégia de engajamento,
remetendo diretamente a um diálogo com a imaginação melodramática e colocando
em cena uma dicotomia fundadora do conceito de memória: a fricção entre as esferas
privadas e públicas.
O privado que é submetido ao olhar público e expresso numa base de
sustentação e ativação emocional é também o que está em jogo no universo da
imaginação melodramática. Em diversos exemplos fílmicos, essa mesma imaginação
entra em cena; nem sempre como uma adesão ao cânone do melodrama, mas como
um diálogo possível que problematiza as relações privadas e públicas (tão presentes
no universo do documentário contemporâneo) e o papel central do engajamento afetivo
em colocar essas relações em questão.
Acredito que a pertinência em se chamar o universo do melodramático
para pensar esse tipo de uso – das performances da memória – se dá por dois motivos
principais: em primeiro lugar, pois o laço que se estabelece a partir desses testemunhos
é da ordem do engajamento afetivo; e em segundo, pois tal engajamento atua exatamente
para fortalecer uma espécie de correlação entre o privado e o público. Ao observar as
estratégias de expressão das performances da memória no interior dos documentários,

Mariana Baltar – Engajamento afetivo e as performances da memória em Um passaporte húngaro


96
vemos que, não raro, elas colocam em uso estruturas que se remetem aos
procedimentos da imaginação melodramática para, justamente, articular o convite à
emoção.
Há, portanto, toda uma ordem de expressividade que se vincula à economia
narrativa da imaginação melodramática, mesmo que não se trate de uma adesão ao
modo de excesso característico do melodrama canônico. Com isso, quero ressaltar
que, embora muitos dos documentários não se estruturem com base no excesso
melodramático, eles acabam por se utilizar, em momentos-chave, das categorias que
balizam tal excesso para afirmar o engajamento afetivo.
O conceito de imaginação melodramática é desenvolvido num contexto
de revalorização do melodrama como gênero narrativo levado a cabo tanto pelo
pensamento crítico quanto por projetos cinematográficos ao longo dos anos 1970.
Num mesmo momento, Peter Brooks (1995) e Thomas Elsaesser (1987) formulam o
conceito buscando, na esteira dessa revalorização, pensar de maneira mais ampla as
questões que estão articuladas no universo melodramático e que dizem respeito a uma
“publicização” da esfera privada e a uma “pedagogização” dos sentimentos num
contexto de formação da subjetividade moderna – por isso a centralidade do doméstico,
do cotidiano, do feminino e das emoções nas narrativas tradicionais do melodrama.
Nesse contexto, as instâncias da intimidade e da moral são fundamentais
como reguladoras da vida social; como se o cotidiano (e com ele o privado e o
íntimo) se constituísse no palco privilegiado para uma pedagogia moralizante (por
isso a centralidade do olhar público sobre a esfera privada) frente às novas relações
sociais e políticas de uma sociedade laica e de mercado.
Ao formular a idéia de imaginação, o projeto de Brooks não é o de
alargar o gênero melodrama ao ponto da deformação, mas tão-somente reconhe-
cer que sua existência mesma como cânone (primeiro teatral e depois em outros
regimes narrativos) é sintomática de um contexto histórico maior. Por isso trata-
se de uma imaginação, informando uma série de narrativas e experiências que
trazem à cena semelhantes preocupações – com semelhanças no regime de
expressividade – e cujo produto mais bem acabado é o próprio melodrama
canônico, embora não restrinja a ele.
Correlatamente, este mesmo caminho orienta as análises de obras fora
do escopo do melodrama canônico: um processo dialógico com a imaginação
melodramática que raramente é declarado e que, quando instaurado – no processo da
análise –, traz à tona questões ainda importantes para a subjetividade contemporânea,
contempladas, por exemplo, nos documentários, que dizem respeito à tensão entre as
esferas privada e pública, à lógica de privatização da vida pública, às encenações da

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 96-112 97


memória e da intimidade (como tema e como estratégia), à autoridade do sujeito em
encarnar o público, e o social, em si.
Três categorias fazem “reconhecer” a presença dialógica da imaginação
melodramática, pois as reencontraremos nas narrativas que nos parecem “atravessadas”
por esse universo. As categorias são: a antecipação (como maneira de ativar um
estado de suspensão e comoção), a simbolização exacerbada e a obviedade. As três,2
em conjunto e operadas reiteradas vezes, organizam no melodrama canônico o modo
de excesso; ao passo que, no interior das narrativas contaminadas pela imaginação
melodramática, mesmo aquelas que não se baseiam no excesso, estas categorias
comparecem como instrumentos eficazes para a articulação do engajamento afetivo.
Poderia usar um sem-número de exemplos em que o ato da memória
convida a um vínculo sentimental entre personagem e espectador e em que esse
mesmo vínculo garante um sentido de autenticidade a essa narração. Passaria então
por filmes diversos como Shoah (Claude Lanzman, 1985); Number our days (Lynne
Littman e Barbara Myerhoff, 1976); Heir to an execution. A grandaughter’s story
(Ivy Meeropol, 2003); Crônica de um verão (Jean Rouch e Edgar Morin, 1961);
ou mesmo Peões (Eduardo Coutinho, 2004). Mas aqui vou me focar em um só
exemplo, o documentário brasileiro Um passaporte húngaro, dirigido por Sandra
Kogut em 2001.
Gostaria, antes, de tecer algumas considerações sobre a memória e suas
implicações na fricção entre as dimensões privada e pública. O conceito de memória
coletiva, encontrado nos livros de Halbwachs (o último, que leva este mesmo nome,
um livro póstumo, de 1950) e seu vínculo com a concepção de fato social, ou sua
intrínseca correlação com a dimensão social – marcadamente influenciado pelo
pensamento de Emile Durkheim – é o que condensa a tensão que aqui analiso como
central: a da fricção entre as categorias do privado e do público.
Para Halbwachs, muito embora a memória se dê como individual, ela
não existe em si enquanto tal, sendo, intrinsecamente, da ordem coletiva, uma vez
que a própria formação do indivíduo (a tudo que lhe pertence) está ancorada na vida
em sociedade. Assim, pois, a memória é tanto mais importante como conceito quanto
é entendida como exposição compartilhada da lembrança, do ato de reminiscência do
passado. E sendo compartilhada está intrinsecamente ligada às influências e
conformidades dos quadros sociais da vida coletiva.
Dessa forma, Halbwachs empreende uma dupla apropriação: de um lado,
utiliza a noção tão cara a Durkheim de que os fatos sociais (e a memória seria um
deles) ao mesmo tempo que podem ser encontrados na consciência individual, dela
independem e se originam de uma consciência coletiva (...); de outro, percebe que na

Mariana Baltar – Engajamento afetivo e as performances da memória em Um passaporte húngaro


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interação e no significado comum que as lembranças têm para o grupo é que se forma
a memória coletiva (Enne, 2002:113).
É precisamente nesse sentido que menciono que a noção de fricção
entre as categorias de privado e de público é o aspecto central para o conceito de
memória – pois, embora seja da ordem do indivíduo, se faz coletiva a partir da interação
e da criação – através de seu partilhamento – de uma comunidade afetiva que a
sustenta e autoriza, e que em certa medida conforma, altera, a própria lembrança.
Para ser coletiva, portanto, é preciso que seja trazida a público.
No mais, se a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de
ter por suporte um conjunto de homens, não obstante eles serem indivíduos que se
lembram, enquanto membros do grupo. “(...) Diríamos voluntariamente que cada
memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de
vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo
as relações que mantenho com outros meios.” (Halbwachs, 1990:51).
Importante para Halbwachs é o caráter de interpenetração da memória
individual e coletiva, e, em segunda instância, desta última na construção da memória
histórica. Quase que uma interdependência (pois que somos sujeitos socialmente
localizados) onde uma (con)forma a outra com base nas situações de interação em
que a lembrança é um ato. A partir dessa percepção decorre toda uma importante
discussão com relação a disputas pela autoridade, e autenticidade, sobre a memória
coletiva e, correlatamente, sobre a memória histórica. Nessa discussão, entram as
contribuições de historiadores como Pierre Nora (1984; 1988) e Jacques LeGoff
(1992) sobre a centralidade dos lugares de memória (museus, monumentos, casas de
cultura, imagens de arquivo) na legitimação da memória coletiva como história.
Meu argumento, no entanto, é que na disputa pela legitimação das
memórias coletivas, tão fundamental quanto os lugares de memória são os atos (as
narrações, os testemunhos, a performance) da memória, pois que eles reforçam o
compartilhamento através de laços afetivos.
Se não é possível prescindir de lugares de memória para ancorar a
memória – imprimir uma marca visível da autenticidade –, tampouco é possível
prescindir dos relatos orais para preencher de afetividade esses mesmos lugares.
Lugares (a “concretude” visível) e atos (a afetividade) recuperam outras supostas
dicotomias (privado e público; individual e social), apontando para a interrelação
(fricção) constante, e constitutiva, da subjetividade moderna.
No exemplo que aqui analiso, vê-se como essas duas estratégias – atos
e lugares – estão evocadas na maneira como a performance da memória (do
testemunho) vem sempre associada com imagens que tentam forjar um lugar de

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 96-112 99


memória. É importante reter, e ressaltar, que essa tentativa de construir a narrativa
associando atos e lugares de memória é uma estratégia de, a um só tempo, revestir de
autenticidade e reforçar os elos sociais (d)aquela lembrança compartilhada.
Este debate em relação ao conceito de Memória ganha ainda um segundo
nível de pertinência quando o recolocamos no contexto do projeto moderno (e seus
adensamentos desiguais) de hipertrofia do privado, de privatização da vida pública.
Sintomático desse contexto é, por exemplo, o papel central dos testemunhos dos
sobreviventes do Holocausto na construção, política e social, do conceito de holocausto.
Se pensarmos nesses exemplos, à luz de um debate de fundo à cerca da memória,
veremos como o papel desempenhado por esses testemunhos é exemplar, ao mesmo
tempo, para entendermos a constituição do lugar de fala da atuação política no contexto
contemporâneo (pois expõe a questão da privatização da vida pública); e para o tipo
de discussão que estamos traçando aqui.
Michael Rothberg (2004) estabelece uma articulação entre a ação do
testemunho e a construção da memória como instrumento político, partindo, para
isso, do emblemático contexto dos discursos do Holocausto. O ano de 1961 é, segundo
o autor, paradigmático desse processo. É o ano do julgamento de Adolf Eichmann,
em Jerusalém, em que testemunhos dos sobreviventes constituíram, pela primeira
vez, argumentos de acusação: “o momento no qual memórias individuais e familiares,
privadas e prévias, do genocídio acabaram por ‘penetrar’ a esfera social” (idem:1.231).
1961 é também o ano de Crônica de um verão (Jean Rouch e Edgar Morin), que
trazia, pela primeira vez, a expressão/performance no campo do documentário dos
atos de memória de uma sobrevivente. A análise de Rothberg localiza o filme e a
inserção do testemunho da personagem Marceline como articulação de um discurso
político ao mesmo tempo em nome da questão judaica e dos discursos anticoloniais
relacionados ao contexto da guerra da Argélia: “Argumento que o testemunho de
Marceline foi tornado possível por um contexto discursivo no qual a associação de
tortura, verdade, testemunho e resistência firmou uma ligação entre a guerra da Argélia
e as atrocidades nazistas. A aparição do sobrevivente, a partir do silêncio e da esfera
privada de íntimas associações – e de fato, a própria emergência dessa esfera privada
– com o espaço público (...)” (idem:1.242, tradução da autora).
De maneira análoga, podemos dar conta de outras experiências que
constituem ações e construções sociais que se ancoram no compartilhamento dos
atos de memória individuais: “no que concerne à memória, privado e público tornam-
se, na prática, menos facilmente separáveis do que o senso comum nos faz crer (...)
Se as memórias são de ordem individual, suas correlações se expandem para além do
privado. (...) Nestes casos, histórias externas e internas, sociais e pessoais, históricas

Mariana Baltar – Engajamento afetivo e as performances da memória em Um passaporte húngaro


100
e psíquicas, convergem; e a teia de interconexões que as liga umas as outras é tornada
visível” (Kuhn, 1995:4, tradução da autora).
Nas seqüências que analiso aqui – vinculadas a Um passaporte húngaro
– são exatamente os atos de memória das personagens da família da diretora (a avó
Mathilde e os tios Gyuri e Eva) que ancoram, ajudados pelo laço da afetividade, a
ligação do projeto pessoal (tirar um passaporte húngaro e fazer um filme a respeito)
com a questão mais ampla, social e política (por exemplo, questões de fragmentação
da identidade, o alinhamento brasileiro às práticas anti-semitas e o questionamento do
nosso mito de tolerância racial).
O elo privado e público – que, tal como o conceito de memória,
desestabiliza a suposta dicotomia entre essas esferas – compõe-se a partir do que
nomeio de engajamento afetivo. A evocação da emoção se dá pelo regime de
expressividade das passagens desses atos na narrativa – passagens nas quais
reencontramos, justamente, os procedimentos, a “contaminação”, da imaginação
melodramática, ainda que não se trate de uma adesão ao melodrama.
Parece-me interessante estabelecer uma correlação ao que chamo de
engajamento afetivo e o que Paula Rabinowitz (1999) conceitua como “contrato
sentimental”. Num artigo dedicado a analisar os documentários americanos sobre
questões trabalhistas – tais como os filmes de Barbara Kopple, American Dream
(1990) e Harlan County USA (1976), e o filme de Michael Moore, Roger and Me
(1989) – a autora articula a idéia de um contrato sentimental que é central na mobilização
política, não negando que um certo quê de melodrama será fundamental no firmar de
tal contrato.
Nesse sentido, a autora historiciza o papel da retórica da sentimentalidade
na formação de uma identidade de classe ao lidar com o universo das lutas trabalhistas.
Esta retórica, que muito deve ao melodrama, segundo Rabinowitz, estará presente,
através de seus contratos sentimentais, nos documentários sobre essas mesmas lutas
(labor documentaries) analisados no texto. No contrato sentimental, está em jogo
uma ênfase no universo da emoção que se faz necessária para o ato da mobilização
política. Ênfase que se dá na citação das experiências privadas dos personagens, na
articulação de uma lógica moral que se desprende dessas falas individuais ao trazer à
tona um partilhamento de sentimentos.
O que Rabinowitz (1999) chama de retórica da sentimentalidade me
parece que se aproxima e muito da tese da imaginação melodramática. O que está em
jogo no argumento desenvolvido em ambos os conceitos é uma economia expressiva
que se vincula ao lugar social da esfera (e das expressões) do sentimento e da vida
privada no contexto do projeto de modernidade a partir do final do século XVIII e ao

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 96-112 101


longo do século XIX. A presença da imaginação melodramática no documentário aqui
tratado (e nos analisados em minha tese de doutorado) é central para a ação política
de consolidar essas rememorações no domínio público, estabelecendo a ponte dessas
narrativas individuais com as questões políticas no interior do documentário.
O contrato sentimental que se firma exatamente pela presença e pelo
diálogo com o melodramático, ao contrário de afastar as obras do domínio do
documentário, as recoloca com vigor neste universo, cumprindo a expectativa social
em torno dele, pois, compelindo-nos ao engajamento, convidando-nos a nos
apropriarmos dessas lembranças, garante a crença destas como realidade social.
Engajamento afetivo e contrato sentimental são, portanto, estratégias potentes para
reafirmar o lugar de fala político desses filmes; os considerados por Rabinowitz e os
analisados aqui, pois, ao revestirem de emoção o privado dos atos de memória,
consolidam esses mesmos atos como memórias coletivas.

UM PASSAPORTE HÚNGARO –
AFETIVIDADE QUE REITERA INTERSEÇÃO
PRIVADO E PÚBLICO
Partindo de um projeto pessoal de conseguir um passaporte húngaro,
Sandra Kogut acaba por trazer questões muito contemporâneas em torno da
desestabilização da identidade, dos trânsitos simbólicos e efetivos no processo de
globalização, dos traumas familiares e sociais a partir do evento da Segunda Guer-
ra Mundial.
Um passaporte húngaro inicia-se com a empreitada que a diretora se
coloca em conseguir o passaporte, pois seus avós, que migraram para o Brasil em
plena Segunda Guerra, eram húngaros. A partir desse momento, o filme acompanha
esse processo junto ao consulado da Hungria na França (onde então Sandra morava),
junto ao arquivo nacional brasileiro, recuperando os arquivos e dados da migração, e
junto aos familiares de Sandra no Brasil e na Hungria. Entre esses familiares, que
darão a Sandra as comprovações de sua ascendência húngara, está a avó Mathilde e
seus tios na Hungria, Eva e Gyuri. Estes personagens atestam a ascendência húngara
da diretora/narradora, sobretudo através das lembranças que recontam a deportação
durante a Segunda Guerra Mundial, a chegada no Brasil, a própria guerra e a vida
daqueles que ficaram na Hungria. É sobre estes atos de memória, aos quais o filme
constantemente retorna ao longo de seus 71 minutos, que irei tecer minhas análises.3
Mathilde aparece logo na segunda seqüência do filme, após uma série
de imagens de aparelhos de telefone que transmitem conversas em francês sobre a
possibilidade e os procedimentos de se tirar um passaporte húngaro. Mathilde aparece,

Mariana Baltar – Engajamento afetivo e as performances da memória em Um passaporte húngaro


102
então, num primeiro plano, na mesa de jantar. Do extraquadro ouvimos a voz feminina
perguntando: “Lembra quando a gente falou que poderia ser uma boa idéia eu ter um
passaporte húngaro?”
Assim, Mathilde é o elo entre a pergunta hipotética e a encarnação em
alguém do projeto anunciado pelas conversas de telefone da seqüência anterior. O
papel que a personagem ocupa – ela aparece ao longo do filme por mais oito vezes –
é, então, o de reforçar a dimensão pessoal do filme.
É sintomática, nesse sentido, a primeira rememoração de Mathilde.
Trazendo nas mãos (em primeiro plano) diversos documentos amarelados, ela, junto
com a voz extraquadro da neta, vai puxando cada papel em busca dos antigos
passaportes dela e do marido. Ao pegar o passaporte da mãe, mostra-o para Sandra:
“A minha mãe. Mas de verdade, isso, foto de passaporte, não é... não é... parece uma
pessoa estranha.” A música então começa a soar e introduz a próxima cena. Este é
sem dúvida um mecanismo de antecipação do procedimento do restante do filme,
quando as memórias de Mathilde darão familiaridade aos documentos que, do contrário,
continuariam parecendo “pessoa estranha”.
Todas as seqüências em que Mathilde aparece no filme são delineadas
por uma trilha musical que unifica as imagens da personagem – enquadrada
invariavelmente em planos mais aproximados – e imagens variadas, em planos médios,
de estações de trens, de plataformas de navio, das águas, de bicicletas numa estrada
de terra, de um senhor e sua venda, evocando uma cena comum do interior do Brasil.
Essas imagens têm com a fala da personagem uma relação de convergência, de tentativa
de reiteração, ou de atualização, do testemunho.
As aparições de Mathilde são anunciadas por uma mesma melodia e por
imagens de trens, trilhos e navios que fazem uma transição entre a seqüência anterior
a o início da rememoração da personagem. As imagens invariavelmente vinculam-se
ao teor da fala de Mathilde. Em sua segunda aparição, imagens de trilhos, da plataforma
e da janela do trem de onde se pode ler a placa invertida de Budapest (stepadub)
anunciam o momento em que Mathilde reconta o embarque a partir da capital.
Primeiramente ouvimos suas palavras, como uma voz off por sobre essas imagens e
a música que segue até que um corte apresenta a senhora, num plano mais aproximado,
sentada à mesa de jantar. A música ainda se ouve, junto ao testemunho de Mathilde,
agora em quadro e olhando para a direita dele, ou seja, direciona seu olhar a alguém ao
lado da câmera, com quem conversa: “O negócio é o seguinte, nós já estivemos no
trem em Budapest. E os irmãos todos foram acompanhando na gare, né. E a gente já
tava dentro do coupet, na janela. E um dos irmãos disse para ele, desce, tenha coragem
de descer. Você vai chorar onde ninguém vai ver você.” Nesse momento, a música

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volta a se ouvir e voltamos a ver imagens de trens, pessoas embarcando, despedidas
nas plataformas. Mathilde segue lembrando: “E a mim eles disseram: Eu não entendo
isso, até um animal quando vai ter a cria procura um lugar seguro e vocês vão pra
onde? Porque eu tava esperando a Titi....” “Se você não estivesse grávida, você teria
vindo?” pergunta Sandra à avó. “Talvez não”, responde Mathilde.
Nesse momento, um homem balança um lenço branco, uma saudação.
O volume da música sobe enquanto se vêem imagens de água. “Eram tempos que
vocês não podem nem imaginar, com tanto... coisas impossíveis, que normalmente
não, não acontecem, né. Vocês não podem imaginar”, diz Mathilde. “Eu não posso”,
ouvimos bem baixo Sandra falar do extraquadro. “Porque vocês podem imaginar ter
uma casa montada, ter uma vida arrumada, e de repente, de repente... vai embora”,
Mathilde retoma a fala, e retoma também sua figura no quadro, num plano ainda mais
aproximado do que na primeira parte da seqüência.
Esta estrutura que se repete sempre – de alternância entre as imagens
variadas, os primeiros planos de Mathilde, outras imagens e Mathilde novamente,
fechando a seqüência – acaba por funcionar como um mecanismo de antecipação na
narrativa. Ao ouvirmos a música, ao vermos imagens de paisagens, somos levados a
esperar a presença de Mathilde e suas memórias. Uma expectativa que Um passaporte
húngaro nunca frustra, e tal estrutura transforma-se, assim, num leit-motif do filme.
Penso que as imagens de trens e trilhos e água são como uma estratégia de forjar os
lugares de memória – que efetivamente não existem. Trazer uma visibilidade onde não
há uma evidência visível; traçar um elo entre som e imagem tal como o elo entre a
performance da memória e os lugares de memória. Esse elo, ao mesmo tempo em que
recupera uma máxima das estratégias melodramáticas (tudo deve ser mostrado, não
há implícitos nem vazios possíveis), preenche a expectativa do domínio do
documentário de produzir evidências visíveis.
O fato de esse procedimento ser repetido, circularmente e infalivelmente,
em todos os atos de memória de Mathilde só reforça minha análise deste como uma
expressão de diálogo com o modo de excesso da imaginação melodramática. Meu
argumento é que a repetição, quase que meticulosa, dos procedimentos da narrativa
com relação a Mathilde e seus atos de memória é um elo de diálogo com a imaginação
melodramática, reforçado pelo fato de os seus depoimentos serem estruturados em
primeiros planos e com forte presença da trilha sonora musical.
A reiteração se dá ao organizar todas as cenas de Mathilde sempre numa
mesma estrutura e ao fazer com que elas ocupem, na narrativa, o mesmo papel – o de
legitimar através de seu testemunho (privado e pessoal), da narração de sua memória
para a neta, o que os outros personagens do filme contaram como passagens históricas,

Mariana Baltar – Engajamento afetivo e as performances da memória em Um passaporte húngaro


104
despersonalizadas. Nesse sentido, o que era uma história contada por arquivos mortos
– nas visualmente emblemáticas caixas de metal do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro
e nos muitos planos de detalhes de documentos antigos (não estaria aqui uma economia
de simbolização melodramática?) – encarna-se no corpo de uma senhora idosa, de
um português com sotaque, de mãos trêmulas, que refaz sua trajetória para a neta.
Essa encarnação, possibilitada pela performance da memória de Mathilde, preenche
de afetividades os lugares de memória das instituições e dos documentos. Todas as
falas de Mathilde, com exceção da fala inicial, são rememorações da deportação,
junto com o marido, da chegada ao Brasil, da dificuldade e incerteza com relação à
obtenção do visto brasileiro, da difícil adaptação. O que os testemunhos da personagem
nos dizem é que não podemos esquecer que toda essa história de deportações, de
perseguições, de preconceitos acontece com sujeitos que são avós, avôs, vizinhos, e
não com documentos amarelados, com fotos esmaecidas. Por isso, a insistência do
filme em retomá-los de quando em quando, como que reiterando o lembrete. Para a
audiência brasileira, este lembrete é também o revirar de uma história ainda incômoda
– o nosso alinhamento, a despeito da participação junto aos Aliados, com políticas
anti-semitas durante a ditadura do Estado Novo, e a desmistificação da nossa tolerância
e democracia racial.
As passagens as quais me referi tecem um diálogo com a imaginação
melodramática não apenas porque são atos de memória (evocando, assim, tal como
no universo desta imaginação, a fricção privado e público). O diálogo se instaura
porque é um ato de memória inscrito numa narrativa que expõe a personificação do
olhar público sobre esse ato, reforçando, numa segunda instância, essa fricção das
categorias privadas e públicas. A esfera do olhar público que está obviamente expresso
na narrativa é central no universo melodramático, e, nesse sentido, a referência à
presença da diretora personifica, num duplo movimento, o discurso fílmico e a
espectatorialidade como instâncias de “presentificação” desse olhar público.
Não é somente a personagem Mathilde que ocupa a função dramática
no documentário de desempenhar a memória e propor um engajamento afetivo,
que aqui estamos apontando como um diálogo com a imaginação melodramática.
Gyuri e Eva, tios húngaros de Sandra, também desempenham papel correlato ao da
avó de Sandra, porém o fazem a partir de uma estrutura bem diversa. No caso
deles, não é a reiteração que vai evocar o diálogo com a imaginação melodramática,
mas uma articulação em torno de simbolizações que atuam na construção de uma
memória familiar.
Se a avó tem o papel de encarnar os documentos amarelados –
preenchendo de afetividade os arquivos guardados com ela e com o Arquivo Nacional

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105
–, Gyuri e Eva estabelecem um vínculo entre Sandra e seus antepassados, incluindo-
a, portanto, nessa herança familiar. Suas ações no filme são como um reconectar
dessa família que foi seccionada pela migração e pela Guerra.
Embora não haja uma economia de reiteração constante nas cenas dos
tios na Hungria, como no caso de Mathilde, ainda é possível pensá-las numa chave
melodramática exatamente pelo papel de elo familiar que estas cenas ocupam.
Sobretudo nas seqüências em que esse papel é mais óbvio. Isto porque esta função
dramática – estabelecer o elo familiar – se dá ao se ressaltar símbolos de aproximação
da família partida com Sandra – essa brasileira que está em busca de sua descendência
húngara. Há todo um investimento do discurso do filme em reforçar esses símbolos
estabelecidos pelos tios. Há dois momentos marcantes desse processo, em que
podemos enxergar a economia de simbolização exacerbada em ação, justamente
atuando com o papel de reconstituir a família – tios e Sandra. O primeiro deles se dá
a partir da evocação do ancestral comum, o avô do avô de Sandra, o que ocorre
numa visita ao cemitério e no ritual judaico, desempenhado por Gyuri em nome de
Sandra, de colocar pedras nos túmulos de seus mortos. Estas duas imagens são
símbolos poderosos ressaltados pelo filme.
No entanto, a cena mais exemplar me parece ser quando os tios de
Sandra relembram o período da Segunda Guerra, a vida no gueto e a salvação de ser
mais um entre os vagões que levavam aos campos de extermínio. Toda a seqüência
se dá em primeiros planos que evocam o plano ponto de vista de Sandra. Ouvimos
sua voz a responder ao tio quando este pergunta se ela teria “10 ou 20 minutos” para
ele. O tempo pedido por Gyuri é um momento para que Sandra se torne a ouvinte de
seu testemunho, para que se torne a ouvinte das memórias familiares. E nós, junto
com ela, nos tornaremos ouvintes dos testemunhos da memória coletiva.
O ato do testemunho é iniciado, de fato, com imagens de judeus
ortodoxos em ruelas e entradas de casas. A voz off de Gyuri começa a descrever a
vida no gueto: “Nós estávamos todos no gueto. Onze pessoas num quarto.”
“E o gueto, era a 200 metros desse apartamento. E aqui era o fim do
mundo, nós não podíamos vir até aqui”, diz Eva.
Um corte para um plano mais próximo de Eva na sala de sua casa. Do
extraquadro ouvimos Gyuri perguntar a Sandra: “Você tem 10 ou 20 minutos para
mim?” Ao que ela, também numa voz extraquadro, responde: “Claro.” Inicia-se então
o testemunho de como Gyuri se salvou de ser obrigado a embarcar no vagão que
levou seus companheiros para um campo de extermínio. A cena começa com um
plano de detalhe das mãos de Eva a mostrar, para a câmera e, conseqüentemente,
Sandra, cópias e originais de documentos antigos. É na verdade Eva que inicia a

Mariana Baltar – Engajamento afetivo e as performances da memória em Um passaporte húngaro


106
rememoração: “Esta é o papel da vida dele. Antes de subir no vagão, os fascistas
perguntaram se alguém ali tinha passaporte.”
É interessante notar que a câmera aproxima-se e afasta-se dos
documentos, como um olho que busca ler os detalhes mencionados por Eva. Um
corte para um plano médio onde estão Eva e Gyuri sentados. Ela segue contanto que,
naquela ocasião, seriam dispensados de subir ao vagão quem pudesse dizer que tinha
passaporte sueco, português, suíço ou do Vaticano. Eva conta que, naturalmente,
Gyuri não tinha tais papéis, pois naquele momento todos seus pertences já haviam
sido jogados fora: “Aí eles perguntaram se ele se lembrava do número. Ele nunca se
lembra de números. Mas ele vai te mostrar o papel amarelo onde ele escreveu um
número e eles aceitaram. E ele não teve que ir para o vagão. A maioria dos companheiros
dele morreu lá”, diz Eva.
Um novo corte e um novo plano detalhe num documento amarelado.
Dessa vez é a voz de Gyuri que vai nos narrar a memória. A mesma história, agora
acrescida do impacto de ser um testemunho: “Aqui é o número do passaporte.
Passaporte português.”
Suas mãos retiram o documento antigo do plástico que o protegia, seus
dedos passam pelas linhas onde está escrito o número, mas é um número errado,
lembra Gyuri: “Minha memória não é boa para números”, coloca a mão na cabeça,
“2, 0... e esse número... E isso é minha vida”, diz levantando o papel com a ponta
dos dedos. “Esse, só esse papel... aqui”, complementa Gyuri dobrando o papel,
guardando em seu bolso, como que repetindo um gesto do passado, diante da câmera
de Sandra que se move entre o detalhe do seu rosto e o detalhe de sua mão. Eva
conta a história. Gyuri repete a mesma narração da memória de ambos. Mas Eva o
faz em terceira pessoa, e ele, em primeira. Eva faz um depoimento, Gyuri, um
testemunho.
Ambas as falas, contudo, são direcionadas à Sandra, à câmera, e a
nós. Ambas as narrações, e o comportamento da câmera que incorpora o olhar de
Sandra, estabelecem nos números e no papel um símbolo de sobrevivência e de
religação – de Gyuri a sua memória, de Sandra a sua família húngara, dos espec-
tadores à memória coletiva.
Ao longo deste ato de memória, a câmera move-se de um lado a outro,
sempre em primeiro plano, ora enquadra Eva, ora enquadra Gyuri, ora enquadra o
documento amarelado. O efeito acaba por reforçar o lugar de Sandra como ouvinte
desse testemunho, e o nosso lugar de engajamento com ela. Este efeito instaura um
laço afetivo especial ao estabelecer um engajamento não apenas com donos do ato da
memória, mas com aquela a quem o ato está endereçado. Dessa maneira, Sandra é

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reinserida na família – pode ouvir as histórias familiares –, mas também o são os
espectadores. Tal estratégia reforça, portanto, o engajamento afetivo.
A rememoração das táticas de sobrevivência no período nazista em si
transmite um estado de comoção. No entanto, quero argumentar que não é apenas
este fato que me instiga à abordagem em diálogo com o melodramático. É o tema e
a maneira que temos acesso a tal tema – e a emoção e a maneira com a qual acessamos
a emoção. É, portanto, também pela economia de expressividade dessa seqüência
que afirmo o diálogo com o melodramático.
Em Um passaporte húngaro, o testemunho de Gyuri se dá para alguém
que o escuta, alguém que está encarnado na narrativa (e não pressuposto de maneira
efêmera) através da voz de Sandra no extraquadro e da câmera que se coloca como
ponto de vista dessa voz – lembremos, nesse sentido, que a seqüência do testemunho
se inicia com Gyuri perguntando: “Você tem 10 ou 20 minutos para mim?”
Ressalto este aspecto, pois ele remete a uma instância fundamental para
a imaginação melodramática: a presença visível, incorporada concretamente, da figura
do olhar público frente ao privado. Os espectadores, nessa interpelação direta do
olhar, através do plano ponto de vista de Sandra, fazem, também, parte desse olhar
público. Por outro lado, a seqüência do testemunho de Gyuri é aparentemente pautada
na contenção – não há música, mas há a presença estratégica dos primeiros planos,
ora em seu rosto, ora em suas mãos ao pegar o “papel que é sua vida” – e, no entanto,
é ela que permite uma análise intertextual com o melodramático. Assim se afirma,
pois a seqüência nos mostra um personagem a rememorar a emoção frente a um
olhar público encarnado – Sandra a conversar com ele do extraquadro –, e tal estrutura
– personagem na interação com um outro – propõe um engajamento com a emoção
evocada pela rememoração, num certo nível com Gyuri, mas também com Sandra.
Produz-se nessas seqüências uma economia de simbolização, e a
expressão via simbolização – um símbolo que, por sua vez, encarna o próprio sentido
evocado na seqüência – é outro aspecto de ligação com a imaginação melodramática.
É interessante pensarmos no poder desses símbolos – o túmulo, o
papel amarelado – no restituir de uma herança familiar. E em como essa herança é
central para reforçar a ligação entre a história privada e a pública, ligação essa que é
o próprio lugar de fala desse documentário e que, por sua vez, é o principal ponto de
convergência com o universo da imaginação melodramática.
Em Um passaporte húngaro, a presença dos tios húngaros de Sandra
no papel de reconectar essa família desgarrada pela guerra faz encarnar no plano
pessoal – no corpo das histórias privadas – um aspecto central do filme: a temática
de identidades fragmentadas. Há uma ligação histórica entre as experiências geradas

Mariana Baltar – Engajamento afetivo e as performances da memória em Um passaporte húngaro


108
a partir da guerra, de deportação, migração, e todo um processo de reconfiguração
da geopolítica mundial, e da Europa em particular. Qual a origem familiar? Quais são
suas raízes? Onde é sua casa? São questões que se disseminaram no velho e no novo
continente com mais intensidade a partir da Segunda Guerra. A história de Sandra –
seu projeto, seus passaportes e seu filme – e especialmente as ações dos personagens
de sua avó Mathilde e seus tios, Gyuri e Eva, encenam em um universo particular,
uma espera privada, o que é de caráter histórico. Tal procedimento é sintomático do
documentário contemporâneo (veja-se, por exemplo, a centralidade da instância do
personagem), mas, antes disso, esta mesma estratégia já era marcante no universo
melodramático. Não espanta que os dois venham se tocando, se interconectando,
com cada vez mais intensidade.

MARIANA BALTAR é doutora em comunicação pela Universidade Federal Fluminense – UFF.

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109
NOTAS

* Uma versão deste artigo foi apresentada no XVI Encontro da COMPÓS


(Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação), realizado
em junho de 2007, em Curitiba/PR.

1 Na verdade, o tratamento desses elementos como estruturantes está


espalhado em diversos autores do campodo melodrama – Neale (1986) com relação a
antecipação, Elsaesser (1987) sobre a simbolização exacerbada – sem no entanto
serem formalizados enquanto categoria. Tenho trabalhado no sentido de pensar mais
especificamente nesses três elementos como categorias analíticas em diversos artigos
e na tese de doutorado, com financiamento da Capes, defendida em maio de 2007,
junto ao Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal
Fluminense (UFF).

2 As considerações que vou traçar aqui fazem um corte pontual nesse filme,
a questão da memória, e deixam, propositalmente, de lado outros aspectos
fundamentais, tais como a dimensão do documentário em primeira pessoa ou a questão
dos processos de negociação de identidades que se estabelece tanto no fluxo temático
quanto estético de Um passaporte húngaro.

Mariana Baltar – Engajamento afetivo e as performances da memória em Um passaporte húngaro


110
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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edição: 1988.)

Mariana Baltar – Engajamento afetivo e as performances da memória em Um passaporte húngaro


112
Oh, meu Deus!
Manchetes e singularidades
na matriz jornalística melodramática
Márcia Franz Amaral

A imprensa nasceu imbricada com a literatura e o folhetim e, portanto,


utiliza-se de características melodramáticas que vão sendo refuncionalizadas ao longo
do tempo como estratégias de popularização. Atualmente, podemos afirmar que a
herança do melodrama está disseminada na imprensa, especialmente nos veículos
que se propõem a atingir um público das classes C, D e E. Podemos apontar que
existem duas grandes matrizes culturais que regem a imprensa: uma matriz racional-
iluminista e uma matriz dramática. Especificamente no jornalismo, encontramos essa
matriz melodramática tanto nos critérios de noticiabilidade, como na estrutura da
notícia de vários veículos.
A imprensa usa recursos narrativos originados no melodrama e no
folhetim que, ao mesmo tempo, aproximam determinadas camadas da população
dos jornais, auxiliando na geração de um novo público leitor de jornais, e geram
deslizamentos nos propósitos mais nobres do jornalismo. Embora possamos
questionar o uso desses recursos, eles não podem ser explicados apenas pelos
interesses de sucesso comercial das empresas jornalísticas, porque de fato trazem
algumas recompensas a esse leitor popular, afastado do “mundo oficial”.
Precisamos considerar o uso de uma matriz dramática no jornalismo como um
movimento duplo que articula as demandas sociais e as dinâmicas culturais às
lógicas do mercado. (Martín-Barbero, 1997).
Dedicamo-nos, neste artigo, a refletir sobre como as características
melodramáticas podem ser observadas como uma forma específica de apresentar as
manchetes. Afinal, os títulos são extraídos do lide das notícias, e o lide é a cristalização
dos aspectos mais singulares dos fatos. Apresentamos algumas manchetes de jornais
para evidenciar as diferentes formas como os fatos podem ser relatados ao leitor.
Posteriormente, nos dedicamos a caracterizar o melodrama e o folhetim para facilitar
a análise de suas influências no jornalismo.
A caixa-preta das singularidades
Manchetes de jornais de 2 de agosto de 2007:
Falha ocorreu 2 segundos antes do pouso
Folha de S.Paulo

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Caixa-preta revela luta de pilotos para desacelerar Airbus
Zero Hora
Caixas-pretas mantêm dúvidas sobre tragédia
O Estado de S. Paulo
Os momentos finais na cabine do Airbus da TAM
Agora São Paulo
O último diálogo da tragédia - ‘Não dá, não dá. Ai, meu Deus’
O Globo
‘Oh, meu Deus!’
Diário de S.Paulo

Ao observarmos as manchetes referentes às investigações sobre explosão


da aeronave da TAM, em São Paulo, no dia 2 de agosto de 2007, perceberemos que
elas cristalizam diversas singularidades apreendidas sobre o acidente naquele dia. Todos
os jornais tinham praticamente as mesmas informações originadas da análise da caixa-
preta do avião. Entretanto, cada jornal optou por puxar um fio da trama de informações
disponíveis. Cada fio mostra um aspecto singular do fato do dia, que se transformou
em um acontecimento jornalístico por diferentes razões em cada um dos jornais.
Normalmente, uma manchete e um título devem ser extraídos do lide, o
primeiro parágrafo que condensa o que há de mais singular no fato. Nas manchetes
citadas, percebemos que a singularidade vai se acentuando no sentido da dramatização
da notícia. O detalhe de a possível falha no avião ter ocorrido dois segundos antes do
pouso, foi a manchete publicada apenas pela Folha, jornal que abrange um público
classe A.1
A manchete do Diário de S. Paulo, em contraposição, já não revela
informação propriamente dita, mas sim um sentimento, um pedido de ajuda do piloto
frente à fatalidade. Com certeza, trata-se da manchete menos explicativa do ponto de
vista jornalístico, constitui-se num título que serve mais para emocionar e, portanto,
para entreter, do que para ampliar a compreensão dos leitores sobre o fato. Aliás, o
Diário de S. Paulo, herdeiro do centenário Diário Popular, foi comprado em 2001
pelas Organizações Globo. Baseia-se atualmente num público classe B e C2 e dedica-
se fundamentalmente a esporte, entretenimento e prestação de serviço. Portanto,
dirige-se a uma população supostamente desinteressada de informações “técnicas”,
mesmo que elas pudessem revelar a causa do acidente.
O aspecto pinçado pelo jornal em questão é o fato de o piloto ter se
desesperado a ponto de apelar a Deus. A capa relata o pavor do piloto na hora do
acidente, revela a subjetividade de um indivíduo “em carne e osso”. Como diz

Márcia Franz Amaral – Oh, meu Deus! Manchetes e singularidades na matriz jornalística melodramática
114
Marcondes Filho em seu clássico Capital da notícia, “vende-se nas manchetes aquilo
que a informação interna não irá desenvolver melhor” (Marcondes, 1995). Mesmo
que a matéria ainda contenha um pouco da informação contextualizada, a função da
manchete é fragmentar exageradamente para atrair a atenção do leitor. As notícias da
imprensa sensacionalista sentimentalizam as questões sociais, criam penalização no
lugar de descontentamento e se constituem num mecanismo reducionista que
particulariza os fenômenos sociais.
Recursos melodramáticos no jornalismo podem ser apontados como
estratégias de comunicação que privilegiam um universo cultural popular heterogêneo,
formado por pessoas que vivem longe das esferas de poder. Caracterizada pelo poder
dos sentimentos, pela fusão do público e do privado e pelo entretenimento, a matriz
melodramática no jornalismo apresenta os fatos a partir das individualidades e a da
esperança de final feliz.
Normalmente, no jornalismo, o melodrama se revela quando as notícias
restringem-se a apresentar a singularidade dos fatos ao seu máximo. Assim ocorre
nos fait divers, assim ocorre nas notícias sem contexto. Num fato relatado por
intermédio do habitus jornalístico, a singularidade presente nas manchetes e no lide
está atada ao que há de singular no fato, mas trata-se de uma singularidade que guarda
relação com o interesse público. Em muitas notícias que se pretendem “populares”, o
singular normalmente se apresenta como uma redução do fato a um indivíduo ou
sentimento.
É de conhecimento que, na imprensa de referência ou em notícias de
interesse público, um acontecimento terá mais chance de ser notícia se os indivíduos
envolvidos forem importantes, se tiver impacto sobre a nação, se envolver muitas
pessoas, se gerar importantes desdobramentos, se for relacionado a políticas públicas
e se puder ser divulgado com exclusividade. Já na imprensa popular ou numa notícia
para ter maior alcance, um fato terá mais probabilidade de ser noticiado se possuir
capacidade de entretenimento, se for próximo geográfica ou culturalmente do leitor,
se puder ser simplificado, se puder ser narrado dramaticamente, se for útil e se tiver
identificação dos personagens com os leitores (personalização).
Genro Filho (1987) afirma ser o jornalismo a cristalização de uma nova
modalidade de percepção e conhecimento social da realidade através da sua reprodução
pelo ângulo da singularidade. Mas este singular varia no contexto histórico e nas
diversas comunidades. O que é singular para cientistas, por exemplo, pode ser uma
abstração aborrecida para os leigos. O autor faz analogia entre o processo de percepção
e a estrutura da notícia. O lide funciona como a percepção imediata, que capta o
concreto para depois chegar à essência. Nas notícias populares, o contexto

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 113-127 115


supostamente já não interessa. O que é singular para alguém da classe C, pode não ser
para alguém da classe A ou para um especialista. Assim, podemos afirmar que cada
fato abriga diversas singularidades, e os critérios de noticiabilidade orientam a opção
por essas singularidades.
Como afirma Bourdieu (1991:454-457), os jornais denominados por
“sensacionalistas” e os jornais “de reflexão” mantêm duas relações diferentes com a
política. Quando um leitor lê o que chamamos aqui de um jornal “de reflexão”, sente-
se um cidadão, com direito e dever de participar da política e de exercer seus direitos
de cidadão. A diferença entre as duas imprensas reproduz definitivamente a oposição
entre os que fazem política em atos, palavras ou pensamentos, e os que a recebem.
Para ele, os periódicos de qualidade reconhecem no leitor a dignidade de sujeito político
capaz de ser, se não sujeito da história, ao menos sujeito de um discurso sobre a
história – tarefa que o segmento popular por vezes não cumpre.
Por vezes, os recursos melodramáticos são utilizados no sentido de que
o veículo atinja um público maior. Os jornais acreditam que, de fato, a maioria dos
leitores não se interessa (ou se interessa menos) por determinados aspectos dos fatos
e prefere os aspectos dramáticos dos acontecimentos. Evidentemente, essa
representação que os jornais fazem do interesse jornalístico da maioria da população
deve ser questionada, mas encaixa perfeitamente com as características
melodramáticas. Também se pode perceber que esse “gosto popular” é, na verdade,
resultado de uma história de exclusão da maioria da população das decisões importantes.

MELODRAMA, RECURSO HISTÓRICO DE POPULARIZAÇÃO


O melodrama3 é uma espécie de macrogênero que inclui a telenovela, o
folhetim, o radioteatro, a literatura de cordel, entre outros. Para Martín-Barbero
(1995:64-65), o gênero é uma estratégia de comunicação ligada profundamente aos
vários universos culturais. O autor repensa o gênero e mostra que ele é mais que a
qualidade da narrativa; é o mecanismo a partir do qual se obtém o reconhecimento.
“Entre a lógica do sistema produtivo e as lógicas dos usos, medeiam os gêneros. São
suas regras que configuram basicamente os formatos, e nestes se ancora o
reconhecimento cultural dos grupos” (idem,1996:301). Prossegue Martín-Barbero
(1997:296): “[...] os gêneros fazem agora a mediação entre o tempo do capital e o
tempo da cotidianidade”. São modos de escritura e de leitura, um lugar de onde se lê
e se decifra o sentido de um relato. No popular-massivo, os gêneros cumprem o
papel de articular a cotidianidade com os arquétipos (1989:113) e, mais do que isso, o
gênero melodramático faz a ligação entre a indústria, o texto e o público; entre as
Matrizes Culturais e formatos industriais e comerciais. (idem, 1995:65).

Márcia Franz Amaral – Oh, meu Deus! Manchetes e singularidades na matriz jornalística melodramática
116
Baseado em Gramsci, Martín-Barbero aborda a força comunicativa dos
gêneros populares. Gramsci localiza Matrizes Culturais, relaciona-as com as tradições
populares e confirma a existência de um gosto popular ligado ao gênero melodramático.
(Borelli, 1996). Referindo-se à Itália, Gramsci (1986:75) afirma que os gêneros
populares, como o melodrama, estão relacionados com o fato de que o gosto popular
não se formou com a leitura nem com a meditação íntima da poesia e da arte, mas
com as manifestações coletivas, oratórias e teatrais.
Na América Latina, as maiorias incorporam-se à Modernidade não por
meio da cultura letrada, mas, sem abandonar sua cultura oral, apropriam-se a partir
dos gêneros e das narrativas. O gênero melodramático é a estética popular dominante
desde o século XIX (Grisprud, 1992:86) e a Matriz Cultural fundamental da produção
simbólica latino-americana. Nele, está em jogo o drama do reconhecimento, uma luta
por se fazer reconhecer. Lembra Martín-Barbero (1997) que os enredos são movidos
pelo desconhecimento de uma identidade, pela luta contras as injustiças, e talvez
esteja aí a conexão entre o melodrama e a história da América Latina.
No início do melodrama, quando a proteção dos mecenas dava lugar
para as iniciativas empresariais, ele se impôs como uma arte viável economicamente.
O melodrama deve monitorar a reação do público para oferecer-lhe a dosagem adequada
e proporcionar o retorno ao espetáculo. Se é evidente que o melodrama precisa fazer
várias concessões para deleitar as platéias pouco ilustradas, ele também tem o desafio
de capturar o interesse de um público heterogêneo, submetendo-se aos ditames da
rentabilidade (Huppes, 2000:13).
O gênero melodramático muitas vezes inclui o excesso de clichês,
destinados a provocar emoções fáceis, a que se costuma chamar de “breguice”,
“cafonice”, “mau gosto”, “kitsch” etc (Sodré e Paiva, 2002). Trata-se de um desnível
entre o gosto momentaneamente valorizado pelas elites sociais e o gosto das classes
populares. (idem: 60).
No melodrama podem conviver a temporalidade racionalista da produção
capitalista e as temporalidades seculares transmitidas pela família (comunidade, grupo,
classe) e há a possibilidade de um entendimento familiar da realidade. O melodrama é
o gênero que reúne público e privado, trabalha com um sentido de comunidade e não
busca controlar os sentimentos, ao contrário, tem forte sabor emocional. Se o
melodrama na Europa foi uma criação de um segmento popular, na América Latina é
transclassista. É mais do que um gênero; resulta numa Matriz Cultural e alimenta o
reconhecimento popular na cultura de massas (Martín-Barbero e Rey, 2001:152).
Para Martín-Barbero e Muñoz (1992), o melodrama está no mesmo
vértice do processo que leva do popular ao massivo: lugar de chegada de uma

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 113-127 117


memória narrativa e gestual popular e lugar de emergência de uma cena de
massa.
Sodré (1978) entende o melodrama, na América Latina, como um gênero
que permite a mediação entre a indústria cultural e as culturas populares. A estética
do melodrama pode ser considerada a estética dominante popular desde a primeira
metade do século XIX. Trata-se de uma estética que apresenta o mundo como se ele
fosse governado por valores e forças morais, emocionais e pessoais. Em parte,
substitui a compreensão religiosa tradicional da vida, perdida historicamente. Representa
originalmente o empenho da moralidade e emocionalidade da consciência da burguesia
emancipada contra os remanescentes do feudalismo. Para o autor, o público reencontra
nos textos melodramáticos elementos de sua memória afetivo-cultural. O autor também
mostra que o discurso da literatura de massa é manifestação de um discurso específico
e não uma utilização medíocre do discurso literário.
O cinema, a radionovela e a telenovela latino-americanos são lugares
por excelência do melodrama também em função de seus exageros cênicos. Nas
novelas e radionovelas, o melodrama é ressemantizado e incorpora um realismo que
possibilita a cotidianização da narrativa (Martín-Barbero e Rey, 2001).
Baseado na estética romântica, o melodrama estreita a intimidade do
público com as personagens e procura a identificação entre ambos, por intermédio
de várias sensações, como o terror e a piedade. O melodrama foi modificando-se ao
longo da história, mas sua estratégia ainda comporta o apelo aos sentidos e aos
dramas dos indivíduos. Bucci (1992) afirma que, no caso da televisão, o melodrama
serve para elevar a moral do espectador, ensina que a solução para as adversidades
brota do centro do homem, na força de vontade, na fé, no amor — virtudes que, por
sua vez, conduzem a paz, fraternidade, solidariedade, harmonia. Diz que o melodrama
reforça a ilusão de permanência do bem que trazemos em nós, por isso ele precisa
ter a fórmula da superação de todas as misérias dentro de si, dentro do personagem,
e não fora.

MELODRAMA, FOLHETIM E IMPRENSA


O melodrama transforma-se em folhetim na metade do século XIX,
com o desenvolvimento da imprensa na Europa. O folhetim foi o texto que
primeiramente se preocupou em ter um formato popular e em apresentar personagens
do povo. (Tinhorão, 1996:10).
Conforme Meyer (1996), os romances-folhetins foram os grandes
responsáveis pela popularização da imprensa na França. No começo do século XIX,
le feuilleton designava o rodapé do jornal, geralmente o da primeira página, e se

Márcia Franz Amaral – Oh, meu Deus! Manchetes e singularidades na matriz jornalística melodramática
118
destinava ao entretenimento. Oferecia chamarizes aos leitores afugentados pela censura
napoleônica (piadas, receitas de cozinha ou de beleza, histórias sobre crimes e monstros,
crítica teatral ou literária). Em 1836, dois jornais parisienses transformam-se em
empresa comercial. O folhetim ganha o lugar destacado nos jornais Le Presse e Le
Siècle. O folhetim vai se definir em sua especificidade com Alexandre Dumas e Eugène
Sue. Destacam-se o folhetim histórico e o realista, inspirado em eventos do cotidiano.
A receita do folhetim vai se elaborando aos poucos, no final de 1836, a fórmula do
“continua amanhã” torna-se habitual e, na década de 1840, é a grande isca para atrair
os anunciantes. Todos os jornais aderem à novidade.
Entre os atributos gerais do folhetim, estão: caracterização maniqueísta
dos personagens, simplificação, suspense, superexposição e saga autobiográfica. O
folhetim reúne fórmulas como a luta entre o bem e o mal. Sodré (1978) lembra que
a estrutura folhetinesca abriga elementos como o herói, os arquétipos, a atualidade
informativo-jornalística (necessidade de informação de maneira acessível), o
pedagogismo (intenção clara de dar resposta a questões reais) e as oposições míticas
(o bem e o mal, a felicidade e a amargura, o perseguidor e o perseguido, a generosidade
e a mesquinhez). A retórica é subsidiária da literatura culta (do Romantismo e do
Realismo), mas, de maneira geral, é pobre e esquemática. Vários folhetins têm crítica
direta ou indireta aos problemas sociais da época como a miséria urbana, os erros
judiciários e os dramas da infância, e se caracterizam pelo suspense (para reforçar o
contato com o leitor) e pela redundância (pois tudo deve ser explicado).
O folhetim representa a conquista de novos públicos para os jornais. É
popular, mas já nasce massivo. Não é simplesmente conseqüência da ganância dos
proprietários de jornais, mas está ligado a ela pela necessidade de fazer as pessoas
lerem. Entre as suas características estão, também, a linguagem acessível e os diálogos
breves. Quando Martín-Barbero e Muñoz abordam o folhetim, dizem que ele mesclava
os escritos literários e noticiosos, produzindo uma osmose da atualidade com a ficção.
Entre el lenguaje del periodismo y el del folletín hay una fuerte corriente
subterránea que saldrá a la superficie cuando, avanzado el siglo XIX,
se configure esa otra prensa que, para diferenciarla de la ‘séria’,
llamarán sensacionalista o ‘popular’. (idem, 1992:53).
Assim, a farta utilização de registros populares nos jornais é parte da
reconfiguração deste discurso jornalístico que se hibridiza por pressão mercadológica
e obtém sucesso por se apropriar de características de uma determinada cultura
popular. Os jornais adotam uma
estética melodramática que se atreve a violar a separação racionalista
entre os assuntos sérios e os temas destituídos de valor, a tratar os

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 113-127 119


fatos políticos como fatos dramáticos a romper com a ‘objetividade’
observando as situações a partir daquele outro ponto de vista que
interpela a subjetividade dos leitores (Martín-Barbero, 1997:247).
O folhetim nasceu nas mãos de dramaturgos como Alexandre Dumas,4
e, portanto, tem estreita relação com o melodrama, quando não é inspirado nele.
Para Meyer, mesmo conservador, matreiro, enquadrador na família, na fábrica e
na classe social, nem por isso esse folhetim deixa de ter a mesma verdade do
melodrama: a denúncia da miséria humana. E cita inúmeros avanços sociais que
tiveram a indiscutível influência do folhetim, como o reconhecimento da paternidade
livre e a lei do divórcio.
É produtivo entender os vínculos do romance-folhetim com o
Romantismo, no que tange à importância atribuída à individualidade e à subjetividade.
No Romantismo, o homem passa a ser o centro de si mesmo, do sentido do seu viver.
O Romantismo impulsiona a mitificação, a subjetivação e a espiritualização. O elemento
unificador do movimento romântico é a oposição ao mundo burguês moderno. O
Romantismo está ligado à oposição ao capitalismo, à recusa da realidade social presente,
à experiência da perda, à nostalgia melancólica e à busca do que está perdido. Para
Lowy e Sayre (1995) , a Modernidade possui algumas características insuportáveis
para o Romantismo: entre elas, o desencanto com o mundo, a abstração racionalista
e a dissolução dos vínculos sociais.
No Brasil, os folhetins foram os primeiros elementos de sensacionalismo
introduzidos na imprensa. O interesse pelas situações melodramáticas e fantásticas se
explicava pelo fato de o romance romântico constituir a expressão literária da frustração
das novas camadas da classe média urbana da era industrial, após a consolidação da
burguesia no poder e a liquidação dos ideais revolucionários do novo homem anunciado
por Rousseau, e definido teoricamente em 1879 na Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão (Tinhorão, 1994). Com o folhetim, o Romantismo aproveita o que tinha
de literariamente mais alienante: o sentimentalismo exagerado, a visão estereotipada
da vida, a atração pelo fantástico, o interesse pelo exótico, o fascínio pelas situações
dramáticas e apaixonantes, a crítica subjetiva às injustiças sociais e a tendência à
comovida contemplação da desgraça humana. No Romantismo, todos os sentimentos
tendiam a despir-se de seus condicionamentos socioeconômicos para se transformarem
em paixões (idem).
Os folhetins no Brasil representam, a partir da década de 1840, uma
abertura dos jornais no sentido da conquista de novas camadas de público,
principalmente feminino, pois o tom da imprensa diária tinha sido até então o do
comentário e doutrinação

Márcia Franz Amaral – Oh, meu Deus! Manchetes e singularidades na matriz jornalística melodramática
120
Nos jornais de hoje, raramente encontramos o folhetim propriamente
dito, mas heranças de seu estilo, forma e valores são perceptíveis na mídia como um
todo, traduzindo um gosto que se fez popular historicamente no movimento dialético
da imprensa em direção aos modos de narrar populares e pelo acolhimento desses
produtos entre os setores populares.
Para Meyer (1996), o fait divers é irmão xifópago do romance de jornal.
Ela cita o especialista em fait divers Michel Gillet para explicar a “folhetinização da
informação” que anuncia a tônica da informação de hoje, que já não separa o público
do privado e tornou tênues as fronteiras entre imprensa marrom e imprensa séria.
Trata-se de uma informação que apazigua e suscita a curiosidade de um público para
quem “o excesso” visceral do melodrama sempre foi natural e se insere como uma
luva na “rocambolização”5 das sociedades (idem:225). Ela lembra que as características
da moderna manipulação jornalística remetem à técnica do folhetim criada por Girardin.
A narrativa apoiada no fragmento é uma delas. Para Meyer (ibidem), o fait divers é
subproduto imediato da Matriz folhetinesca, é um relato romanceado do real.
Congênere do folhetim, o fait divers faz uma relação inversa com este.
Conforme Guimarães (2003), enquanto o folhetim é uma ficção que busca inspiração
na realidade, o fait divers é a realidade contada com recursos do melodrama. Muitas
pessoas acham no fait divers algo de familiar, que lhes lembra as mesmas histórias
contadas por gerações. Segundo a autora, as marcas da cultura oral estão na escolha
dos temas como o amor, a morte, a paixão, o desespero, o sangue, o extraordinário,
o prodígio, o grotesco e o cômico. Aparece na construção do discurso como a
presença do tom agonístico, das repetições, dos clichês, do ritmo que permite a
leitura em voz alta recuperando um pouco do calor que tinha esta palavra antes de
ser escrita, quando só vivia no campo do efêmero da palavra falada, que se esvai
antes mesmo de acabarmos de pronunciá-las. Para Guimarães (2003), todos esses
recursos, que penetram o impresso, visam a recuperar um pouco da força da palavra
falada. Para o homem pertencente à cultura oral, a palavra é uma substância, uma
força material.
O folhetim passa do popular ao massivo sem passar pelos lugares
“cultos”, porém o processo não resulta unicamente dos interesses comerciais, mas
também da incorporação do imaginário popular. A incorporação do mundo do leitor se
dá, para Martín-Barbero (1997), por intermédio de dispositivos de reconhecimento
de um leitor imerso na cultura oral, da fragmentação da leitura, da organização em
episódios, do suspense, do relato, da experiência da violência e da luta pela
sobrevivência e, por último, um que nos interessa particularmente: da identificação do
leitor com os personagens. Uma das principais características do folhetim é o

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envolvimento entre o leitor e a obra. Ou seja, o folhetim dirige-se às mesmas pessoas
sobre as quais discorre.6

JORNALISMO E MELODRAMA: A SINGULARIDADE EXTREMA


Entendemos que, quando se trata de imprensa, podemos visualizar pelo
menos dois grandes universos culturais diferentes, que convivem permanentemente
pautados por duas Matrizes diversas: as Matrizes racional-iluminista e a dramática.7
Se falar em Matriz é abordar o funcionamento social de relatos, é preciso lembrar que
várias Matrizes Culturais coexistem na imprensa brasileira, muitas vezes no mesmo
jornal, e se cotejam dia a dia. Trata-se, muitas vezes, de expressões deformadas,
refuncionalizadas, mas que ativam uma memória que as coloca em contato com
diversos imaginários.
Cada Matriz vai tornar visíveis determinados atores, conflitos e espaços,
determinar a forma como o popular é representado, pois diferencia entre identidades
políticas e identidades sociais (Sunkel, 1995:54). Nenhum jornal é a expressão pura
de uma determinada Matriz, pois o massivo é um lugar de articulação delas.
A Matriz racional-iluminista é de onde se origina o habitus profissional
do jornalista, inserida na cultura popular com ideologias políticas de corte iluminista
(principalmente o marxismo, o anarquismo, o liberalismo). A Matriz racional-iluminista
busca transformar a Matriz cultural pré-existente por considerá-la um vestígio de
uma época histórica superada (idem:47). É laica e expressa elementos como a razão,
o progresso, a educação e a ilustração. A linguagem característica é regida pelo
mecanismo da generalização, ou seja, o que é particular só adquire significado quando
aparece como objeto de generalização, processo que requer abstração. A Matriz
simbólico-dramática é introduzida na imprensa pela indústria das comunicações e
setores empresariais.
A Matriz racional-iluminista refere-se a uma identidade do tipo político
— que apela a elementos mais conscientes do mundo popular — e a dramática, com
ampla acolhida popular, refere-se a identidades de tipo social e utiliza uma linguagem
concreta, dando lugar a uma representação mais cultural do popular. Os jornais baseados
numa Matriz dramática não reconhecem no público um sujeito político ou, ao menos,
sujeito de um discurso sobre a história e baseiam-se nos modos de conhecimento
populares.
Sunkel, ao analisar o caso chileno, encontra, na estética melodramática
da lira popular, semelhanças com os jornais sensacionalistas: a ênfase no drama humano,
as histórias sanguinolentas, o relato dos ídolos de massa, o mundo dos esportes e do
cinema. A Matriz dramática é fruto de uma concepção religiosa e dicotômica do

Márcia Franz Amaral – Oh, meu Deus! Manchetes e singularidades na matriz jornalística melodramática
122
mundo (bem e mal, ricos e pobres etc.). A linguagem é baseada em imagens e pobre
em conceitos e os conflitos histórico-sociais são apresentados como interpessoais. A
estética é sensacionalista e melodramática. Para o autor, o sensacionalismo pode ser
definido a partir de uma operação de hierarquização de temáticas distintas daquelas
que operam na tradição racionalista: a escolha de temáticas não sérias ou relevantes,
apresentação de recursos tipográficos desproporcionais, a exploração do lado humano
das situações e a apelação para a subjetividade dos leitores.
É importante destacar que a imprensa comercial absorve Matrizes
populares até porque historicamente a imprensa alternativa, de esquerda, foi incapaz
de incorporar em seu discurso esses elementos, fruto da dificuldade do marxismo em
lidar com o popular, o cotidiano, a subjetividade e as práticas culturais como afirma
Sunkel. Para Sunkel (2002), o contrato de leitura da imprensa denominada
sensacionalista supõe a construção de relações com o mundo cultural dos leitores.
Num primeiro âmbito, conecta-se como a oralidade da cultura dos setores populares;
em um segundo, com certas experiências de vida do mundo popular, e, num terceiro,
com um modo de narrar. No jornalismo popular, diz Sunkel (idem:123), encontramos
situações arquetípicas e respostas a demandas de reconhecimento.
Nenhum jornal é a expressão pura de uma determinada Matriz, pois o
massivo é um lugar de articulação delas. O melodrama retorna em produtos culturais
cultivados em meios de comunicação que se mostram totalmente sintonizados com a
lógica da sociedade de consumo. Assim, mais uma vez “revela eficiência para atrair a
camada emergente de consumidores, como já o fizera ao incorporar o público que
recentemente ganhava acesso ao teatro, no final do século XVIII e no seguinte”.
(Huppes, 2000:153). Do melodrama e do folhetim, o jornalismo popular herda esse
envolvimento com o público, a pressão dos leitores e o enraizamento na vida cotidiana.
Como lembra Martín-Barbero (1997:186) sobre o folhetim, nele, o que ganhou
visibilidade foi uma “voz afetada, sentimental, moralista e muitas vezes reacionária,
mas, por fim, uma voz por meio da qual se expressa o rouco submundo que nem à
direita cultura nem à esquerda política pareceu interessar”.
Os jornais, para destinarem-se às classes populares, têm um discurso
marcado pelo alto grau de mercantilização. Mas essa afirmação diz respeito apenas ao
circuito do capital e não ao circuito da produção de formas subjetivas. (Martín-Barbero,
1997). Assim, o sensacionalismo
delineia então a questão dos rastros, das marcas deixadas no discurso
da imprensa por uma outra Matriz Cultural, simbólico-dramática, a
partir da qual são modeladas várias das práticas e formas da cultura
popular. Uma Matriz que não opera por conceitos e generalizações,

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 113-127 123


mas sim por imagens e situações; excluída do mundo da educação
oficial e da política séria, ela sobrevive no mundo da indústria cultural,
onde permanece como um poderoso dispositivo de interpelação do
popular. Claro que fica muito mais fácil e seguro continuar reduzindo
o sensacionalismo a um “recurso burguês” de manipulação e alienação
(idem:246).
Para Grisprud (1992), a popularidade do melodrama é uma resistência
popular ao abstrato, ao teórico caminho de entender a sociedade e a história. O
melodrama continua presente como uma maneira de fazer sentido, um sistema que
insiste que a política ou a história somente são interessantes quando afetam nossa
vida diária. Externaliza o que está debaixo da face caótica e incerta da existência
moderna. O texto do melodrama clássico apresenta indivíduos representando certos
valores morais ou forças. Enquanto o melodrama no cinema, televisão ou na literatura
é apresentado como ficção e normalmente entendido como não empiricamente
verdadeiro, a representação melodramática do mundo na imprensa popular busca
autenticidade.
A manchete Oh, Meu Deus!, que citamos no início do artigo, é o exemplo
de pinçamento de um singular baseado estritamente na sensação, da experiência imediata
e sensível, sem reflexão. Entretanto, o acidente aéreo de Congonhas é um exemplo de
como a notícia pode se tornar complexa. Afinal, reúne ao seu redor problemas
políticos, públicos, trabalhistas e empresariais. Como afirma Genro Filho,
Há um grau mínimo de conhecimento objetivo que deve ser
proporcionado pela significação do singular (...) que exige um mínimo de
contextualização do particular, para que a notícia se realize efetivamente como forma
de conhecimento. A partir dessa relação minimamente harmônica entre o singular e o
particular, a notícia poderá – dependendo de sua abordagem ideológica tornar-se uma
apreensão crítica da realidade (1987:192).
Podemos afirmar que, no jornalismo, o melodrama se realiza
freqüentemente pelo destaque deste singular personalizado e descontextualizado que,
ao deixar o particular que o contextualiza de lado, desloca o jornalismo de seu lugar
mais nobre, o de informar sobre os acontecimentos de interesse público, explicando
ao leitor os entornos do fato.

MÁRCIA FRANZ AMARAL é docente do mestrado em Comunicação Midiática e tutora do grupo


PET do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Santa Maria. Doutora pelo Programa
de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Autora do livro Jornalismo popular (Editora Contexto, 2006).

Márcia Franz Amaral – Oh, meu Deus! Manchetes e singularidades na matriz jornalística melodramática
124
NOTAS

1 Dados sobre o jornal mostram que 47% dos seus leitores cursaram a
faculdade e 13% fizeram cursos de pós-graduação. Cinqüenta e três por cento têm
renda individual até 15 salários mínimos e 35% têm renda acima de trinta salários
mínimos. (Fonte: Perfil do leitor 2000/Datafolha).

2 O perfil do leitor no primeiro trimestre de 2005 foi de 12% da classe A,


61% da classe B, 20% da classe C e 7% das classes D e E.

3 O melodrama é um espetáculo popular relacionado a formas de oralidade,


especialmente na França e Inglaterra, desde o final do século XVIII. Está ligado em
mais de um aspecto com a Revolução Francesa e à transformação do populacho em
povo. As paixões políticas e as violentas cenas vividas na Revolução exaltaram a
imaginação e exacerbaram a sensibilidade das massas que podiam colocar suas emoções
em cena (Martín-Barbero, 1997:157-158). Mais do que com o teatro, o melodrama
tem relação com os temas das narrativas da literatura oral. Com a proibição de teatros
populares na França e na Inglaterra, só ficam permitidas ao povo representações sem
diálogos, para que o teatro verdadeiro não seja corrompido. O espetáculo baseia-se na
mímica, nos efeitos sonoros, nos truques cenográficos e nas canções. Nasce destinado
aos que não sabem ler, como espetáculo total para um povo que já pode se ver de
corpo inteiro.

4 Autor consagrado que, como Eugéne Sue, Victor Hugo, Walter Scott,
Emile Zola e Dickens, aderiu ao folhetim com obras como O Conde de Montecristo,
Capitão Paulo e Os três mosqueteiros.

5 Refere-se a Rocambole, personagem de grande sucesso, constantemente


metido em aventuras complicadas, criado pelo folhetim francês de Ponson du Térrail.
O nome do herói do folhetim tem origem no bolo assado em tabuleiro e enrolado com
recheio.

6 Eco (1991) aborda a função exercida pela verossimilhança da narrativa de


acordo com as expectativas do leitor.

7 Denominada por Sunkel e Martín-Barbero de simbólico-dramática.


Utilizamos a expressão dramática por entendermos que a racional-iluminista também
é simbólica.

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127
O mundo cotidiano de Retrato falado:
diálogos com a telenovela
Marina Caminha

As histórias de Retrato falado1 são narrativas que se alimentam de


situações que ocorreram no mundo cotidiano e que são deslocadas à realidade televisiva,
a partir de cartas enviadas à produção do quadro. Essas fabulações são descritas por
duas personagens principais: uma voz testemunhal, dos sujeitos que escreveram
manifestando o desejo de assistirem as suas façanhas na tela, e a dramatização de
Denise Fraga. A primeira fala atua como voz narradora e a segunda, como uma
teatralização desses testemunhos.
É desse deslocamento para o mundo televisivo, com sua maneira própria
de contar, capaz de criar sistemas simbólicos que se constituem a partir da conformação
de seus produtos em grades de programação, gêneros e formatos que o Retrato
encena o mundo cotidiano onde este também apresenta modos de apreensão,
acomodação e significação. Isto é, operam dentro de sistemas organizadores, através
dos quais o mundo passa a ser atribuído de valores, hábitos e vínculos capazes de
criar sentido aos participantes, no dizer de Certeau (2005), que ali habitam.
Esse processo de apropriação pelo mundo midiático, do qual a televisão
é uma das instâncias, se complexifica, na medida em que retorna a vida diária, fazendo
parte dela, ajudando a ordená-la questioná-la e, também, compartilhá-la. É nesse sentido
que o quadro expõe as relações entre a linguagem televisiva e a audiência, indicando
como os modos organizacionais da televisão atravessam as maneiras em que esses
sujeitos, “habitantes do mundo cotidiano” se narram, quando dão o seu testemunho
ao quadro.
O propósito deste artigo é discorrer como o modo de contar de Retrato
falado é atravessado por marcas narrativas encontradas na telenovela da Rede Globo,
através de um diálogo entre uma imaginação melodramática e documental –
convenções formais por meio das quais a telenovela buscou (e ainda busca) representar
o cotidiano brasileiro. É dessa interconexão que o quadro legitima a sua narrativa,
indicando uma permanente “entrada e saída” na vida diária, lugar em que a televisão
é parte constituinte. Esse processo valida a relação entre esses dois lugares a partir
de uma circularidade (idem).
Acredito que as modificações encontradas na maneira de contar da
telenovela, a partir de 1970, com a chamada proposta realista, foram parte de um
processo narrativo que legou a junção entre as marcas do melodrama e do documentário

Marina Caminha – O mundo cotidiano de Retrato falado: diálogos com a telenovela


128
em Retrato falado, gerando uma espécie de teia que se vincula a outros programas
televisivos2 e volta à própria trama novelesca, com a presentificação desses sujeitos
comuns como parte constituinte desse ato inventivo.3
Discorrerei sobre essa análise, primeiramente, indicando o que chamo
de cotidiano e sujeito comum a partir das considerações de Michel de Certeau. Caminho
que exploro a seguir.

O MUNDO COTIDIANO
Para o autor, o cotidiano é o mundo diário através do qual materializamos
nossas ações e, portanto, parece ser o lugar em que a “realidade” se constitui como
princípio legitimador e regularizador. Essa “realidade” se concretiza por meio de práticas,
mas também, a partir do contexto no qual nos inserimos. Ou seja, estamos imersos
em um “real existente” no qual nossas atuações se corporificam, como uma espécie
de jogo relacional em que o fazer diário depende e legitima uma configuração de
mundo real.
Nesse sentido, Berger e Luckmann (2002) vão dizer que a realidade
cotidiana se autoriza como a mais real por sua “posição privilegiada”. Assim, a
experiência da vida cotidiana existe em nós sob forma irrefletida e se configura como
uma organização de modos de ação, um saber que surge por meios de práticas
preexistentes e que são continuamente reatualizadas.
É a partir dessa organização de ações em um dado momento e lugar que
Certeau (2005) constrói seu argumento. Entender esse mundo para ele significa pôr
em questão um feixe de relações que se materializa nas práticas diárias. O autor,
então, elabora um primeiro pressuposto: o cotidiano é um lugar de saber. Certeau
(idem), dessa forma, parte da premissa que o cotidiano é regido por duas operações
simbólicas: uma situada em um espaço estratégico que institui as “leis maiores”, capazes
de dar sentido e organizar o nosso dia-a-dia. Operações essas que são marcadas por
uma racionalidade que explica. É um tipo de processo que se articula no deslocamento
efetuado pela relação entre fazer parte desse mundo e sair dele (olhar de cima), para
tentar compreendê-lo melhor.
Com isso, ele qualifica o discurso do perito e do filósofo, sujeitos que
“saem” da realidade cotidiana para falar sobre ela. À medida que se distanciam, ganham
autoridade sobre o seu lugar de fala. É desse deslocamento que esses olhares ganham
“ares” de universalidade, entendidos como significantes verdades sobre o mundo.
O primeiro questionamento do autor diz respeito ao próprio lugar de fala
em que estão situados os discursos das ciências. Certeau se cerca teoricamente dos
estudos sobre a linguagem, precisamente a análise efetuada por Wittgenstein, para

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compreender que não há como o discurso científico ser originado de “fora”, pois “o
perito e o filósofo” são sujeitos ordinários, habitantes desse mundo comum. Portanto,
mesmo sendo percebidos como “estranhos” que ali explicam, esses discursos são
originados de “dentro”: “Em suma não existe saída, e apenas o fato de se ser um
estranho dentro mas sem fora, e na linguagem ordinária, resta lançar-se contra os
seus limites” (Certeau, 1994: 73).
No dizer de Berger e Luckmann, é uma espécie de campo de outras
realidades em comparação ao da realidade cotidiana, que são entendidos dentro de
uma significação finita, ou seja, como “enclaves da realidade dominante marcada por
significados e modos de experiência delimitados”. Dessa maneira, a realidade cotidiana
– dominante – cerca-a todos por todos os lados (Berger e Luckmann, 2002:43).
Esses discursos, portanto, entendidos na sua generalidade, são verdades
que se constituem a partir de um deslocamento ilusório pelo qual se legitimam os
sujeitos do campo científico e que se tornam um lugar próprio. Daí, em contrapartida,
o conceito de homem ordinário se referir ao que o autor vai chamar de “extravio da
escrita fora do seu lugar próprio” (Certeau, 1994:61).
O ordinário, então, se constitui por aquilo que não é: o sujeito esclarecido
versus o sujeito comum. Assim, é na diferenciação entre esses que Certeau toma
como ponto de partida, não o discurso científico, mas o seu retorno ao mundo comum:
“como o mar volta a encher os buracos da praia e pode reorganizar o lugar de onde se
produz o discurso” (idem: 64). Dessa maneira, o cotidiano, para o autor, é um lugar
que se inventa a todo instante, nas ações invisíveis que se formulam a partir de uma
reapropriação, por parte desses sujeitos comuns, de uma ordem criada em um lugar
próprio. É por esse caminho que Certeau busca analisar as maneiras de fazer com
desses habitantes, que, para ele, se inscrevem na ordem das táticas.4
Aproximando a concepção do autor com essa análise, o sujeito no Retrato
se constitui pela oposição entre a própria designação do sujeito habitante do mundo
midiático. Dito de outra maneira, o ordinário no quadro só pode ser definido por
aquilo que ele não é, um lugar próprio, a mídia. Nesse sentido, ele se constitui como
espécie de avesso ao homem midiático simbolizado pelas celebridades.5
Concordo com Guimarães (2006) quando diz que a proposta desses
programas, e, particularmente no caso do Retrato, é construir uma celebração do
ordinário em oposição ao sujeito habitante do mundo midiático, ou nas palavras do
autor: transformar o “ordinário em extraordinário”.
Portanto, as histórias do quadro giram em torno de mulheres em suas
relações com o tio, o vizinho, o marido, o melhor amigo e a própria televisão dentro
de um contexto que lhes é familiar: o mundo privado. Só podemos entender o

Marina Caminha – O mundo cotidiano de Retrato falado: diálogos com a telenovela


130
testemunho e a atuação de Denise Fraga a partir de um diálogo entre essas “duas
mulheres”, pois, uma legitima a existência da outra.
É dessa maneira que o testemunho traz para a narrativa de Retrato
falado a expectativa de presença desse mundo diário. Ele é estrategicamente colocado
em cena para tornar a atuação da atriz mais próxima da vida cotidiana, ou seja, Denise
Fraga sai do seu papel de atriz (sujeito de um lugar próprio), para tornar-se uma
pessoa comum. É essa voz que cria uma imaginação de ordinariedade as histórias.6
O jogo inverso se constitui pelo desempenho de Denise Fraga, pois, os
traços excessivos7 intencionais que caracterizam a sua atuação validam a configuração
de um lugar próprio na história. Indica, portanto, a complexidade que se instaura
quando os modos de representação do fluxo televisual passam a fazer parte da vida
cotidiana. Nesse caso, as marcas textuais pelas quais a telenovela constrói a sua
realidade são reapropriadas pelos sujeitos comuns, tendo em vista que a televisão,
como disse no início deste artigo, faz parte das experiências diárias. É esse universo
que o Retrato pretende encenar.
Aprofundarei essa discussão apontando como a imaginação
melodramática é uma das instâncias organizadoras da narrativa do quadro. Mostrarei
esse caminho na relação entre o Retrato e a telenovela.

O MUNDO COTIDIANO DA TELENOVELA


O gênero telenovela está na televisão nacional praticamente desde o seu
surgimento. Oriunda das radionovelas, as primeiras narrativas novelescas foram
releituras de sucessos já transmitidos pela rádio. A televisão brasileira tinha apenas um
ano de existência, quando Walter Fóster dirigiu, atuou e escreveu a primeira novela
nacional: Sua vida me pertence (1951).8
Embora a primeira transmissão tenha ocorrido nos primeiros anos de
surgimento da televisão, a telenovela só se popularizou a partir de 1960. Período em
que houve um início de uma produção televisiva racionalizada, através de um projeto
econômico e cultural que começou a estabelecer determinadas regras de funcionamento
nas emissoras. Se nos primeiros dez anos foi o regime de experimentação que estruturou
o seu funcionamento, tendo em vista que o meio ainda era uma novidade, é nesse
momento que, segundo Borelli e Ramos, “a televisão começa realmente a se implantar
como um veículo de massa”, processo que se consolidou a partir de 1970, com a TV
Globo (Borelli e Ramos, 1989:56).
Dessa forma essa narrativa que já havia obtido sucesso nas estações de
rádio passou a ser fundamental para a construção de uma audiência televisiva, vindo a ser
um programa de grande rentabilidade e produto de forte concorrência entre as emissoras.9

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Em 26 de abril 1965, mesmo dia de sua inauguração, a TV Globo, lançou
a sua primeira experiência em dramaturgia: Rua da Matriz, um seriado com histórias
contadas em cinco capítulos, relativo aos moradores da referida rua (fictícia). Nesse
mesmo ano, a autora cubana Glória Magadan assumiu a supervisão de novelas, criando
uma espécie de era que durou até 1969 e foi inaugurada pela transmissão de Paixão
de outono (1966) (Alencar, 2004).
O modelo inicialmente adotado por esse tipo de narrativa seguiu o caminho
aberto pelas radionovelas, como sugere Ortiz (1989): um drama centrado em histórias
de amor que remetem às tramas folhetinescas do século XIX. A estrutura da telenovela
brasileira seguiu o estilo cubano de produção. Este foi influenciado pelo padrão
americano das soap operas, porém, com suas tramas sendo limitadas a um tempo
específico de duração10 e as temáticas amorosas formalizadas pelo par romântico.
Essas histórias foram desenvolvidas através de um núcleo básico que conduzia o
telespectador, sob influência de uma matriz melodramática, às ações arrematadas por
um final feliz.
Para Brooks (1995), que percebe o melodrama menos como um gênero
e mais como uma imaginação, a característica central dessa matriz é o adensamento
de uma moral oculta, organizadora do domínio do privado, que narra as complexidades
da modernidade. É pelos modos de excesso, como um espaço estratégico para a
explicação de um mundo que não consegue mais ser definido dentro de uma lógica
sagrada, baseada em princípios religiosos, que essa moral se revela. Indicando maneiras
de proceder que restituem a estabilidade através de um contrato de intimidade.
Nesse sentido, Xavier vai dizer que “O melodrama formaliza um
imaginário que busca dar corpo à moral, torná-la visível (grifo do autor), quando ela
parece ter perdido seus alicerces”. São histórias dramáticas que inspiram comoção,
pois, se constituem pelos laços de afetividade e se legitimam através da relação de
cumplicidade entre texto e público, situadas pelas falas do coração.
Essa imaginação aparece na telenovela através do par romântico, temática
que serve como fio condutor para a exteriorização dos dramas privados, ao mesmo
tempo em que privatiza as questões públicas. É pelo caminho do amor que temas
sociais são desenvolvidos. Através dessas marcas reconhecidas pelo espectador, a
telenovela, no dizer de Hamburguer, dilui as fronteiras entre “os domínios do público
e do privado”, resumindo situações complexas em “figuras e tramas pontuais”,
transformando “dramas pessoais e pontuais” em ações passíveis de serem vividas
por qualquer sujeito (Hamburguer, 2006:470).
O conceito de Brooks, criado posteriormente ao surgimento do gênero
melodrama, é utilizado neste artigo como suporte para a análise de um tipo de narrativa
11

Marina Caminha – O mundo cotidiano de Retrato falado: diálogos com a telenovela


132
que não pode ser localizada como melodramática, caso da telenovela, mas que se
constitui pela presença dessa imaginação como uma das instâncias que a organiza.12
Para Bentley (1981), Xavier (2003) e Barbero (2003), o excesso é o
ponto de partida para compreendermos a imaginação melodramática. É a partir da
estrutura centralizada na exacerbação do sentimental que este deixa transparecer
estratégias de organização do mundo moderno, instauradas por uma pedagogia
moralizante.
Xavier vai dizer que o melodrama clássico tinha como proposta “tornar
visível a moral cristã, às vezes ativando os paradigmas de renúncia e sacrifício” em
função da virtude. Nele, encontra-se: a vitória, o bem – corporificado pela noção de
virtude –, “o triunfo da virtude”, “o infortúnio da vítima inocente” e a “trilha sonora
melodiosa” (Xavier, 2003:93).
Os personagens dessa narrativa são constituídos a partir de um jogo
dicotômico para que não deixem dúvidas no público: a figura da mocinha é sempre
virgem, inocente e pura; já a vilã é sempre fatal, sedutora e sem escrúpulos. As
marcas do herói e do vilão são traduzidas no corpo, através do que Mariana Baltar vai
chamar de “simbolização exacerbada”, ou seja, na construção de metáforas a partir
de uma “obviedade”. Estes são os fundamentos de um modo de contar que quer
deixar tudo à vista do espectador (Baltar, 2005:1).
Acrescenta Xavier (2003:94): “O vilão é antes de tudo nos bigodes na
postura insinuante, a heroína é inocente na conformação do rosto e na contenção do
gesto, o herói destila virtude no asseio e na presença modesta e respeitosa”.
Nesse sentido, Borelli e Ramos (1989) vão dizer que as primeiras
telenovelas tinham maior aproximação com esse tipo de estrutura, descreviam histórias
que se passavam em lugares fantasiosos, ocorridas em tempos distantes e giravam
em torno de temáticas amorosas. Seus personagens, de nomes estrangeiros,
caracterizavam-se pela oposição ao tipo brasileiro e possuíam, no dizer de Hamburguer
(2006), figurinos suntuosos e um linguajar formal.
Eram personagens menos maleáveis, baseados em tipificações
antagônicas que expressavam os ideais de pureza e maldade pela eloqüência da
interpretação, pela caracterização do corpo e por um texto cheio de artifícios
convidativos às lágrimas e à indignação. Foi esse tipo de configuração que se tornou
hegemônica nas duas primeiras décadas.
A partir de 1970, a telenovela brasileira experimentou um tipo de
linguagem que se constituiu numa tentativa de apagamento do excesso melodramático
em função de uma busca por uma narrativa que se aproximasse do “cotidiano
brasileiro”. Recuperou marcas narrativas de outros gêneros, como a comédia, por

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 128-145 133


exemplo, o que significou uma releitura da própria matriz que a originou. 13 Essa
transformação ficou conhecida como proposta realista e se opôs ao padrão cubano.14
Esse é o ponto de partida para a compreensão de uma teledramaturgia tipicamente
brasileira e que passou a fazer parte de um mercado internacional de exportação de
bens culturais.
Para Borelli e Ramos (1989), a década de 1970 foi o período de
“consolidação definitiva” de uma indústria televisiva no país. A telenovela, por sua
vez, foi um dos programas mais importantes desse movimento e, à medida que as
emissoras se industrializavam, ocorria uma reorientação da linguagem e da temática
abordada. Em 1968, a TV Tupi, que estava passando por dificuldades financeiras,
também em virtude da concorrência com a TV Globo, resolveu transmitir uma novela
que não demandasse tanto investimento e possuísse uma história capaz de ser produzida
com poucos cenários e figurinos. Eis que Beto Rockfeller, escrita por Bráulio Pedroso,
um autor iniciante, passa a ser transmitida pela emissora no horário das 20 horas.
Investida de situações cômicas, a novela contava a história de um cidadão de classe
média de nome homônimo, vivido pelo ator Luís Gustavo, que tentava de qualquer
maneira fazer parte da alta sociedade paulistana.
Para Alencar (2004:51), os elevados índices de audiência atingidos por
essa narrativa evidenciaram o cansaço do espectador com os ‘dramalhões’ cheios de
“Sheiks, duques e duquesas”, refletindo a necessidade de uma reorganização na
teledramaturgia nacional, da qual a TV Globo foi o melhor exemplo.
Borelli e Ramos (1989) afirmam que essa emissora15 surgiu em um
momento histórico mais favorável para a implantação de uma empresa comercial de
televisão do que as suas concorrentes. A Globo, portanto, entrava no ar sob condições
mais adequadas para a criação do que se chamaria “padrão de qualidade”. Para Alencar,
ela foi responsável pelo “abrasileiramento total da telenovela”, ao mesmo tempo em
que a transformou em um dos produtos de maior audiência (Alencar, 2004;52).
É preciso ressaltar a importância do financiamento promovido pelo estado
autoritário, com o intuito de promover melhores circunstâncias de transmissão, que
percebeu as potencialidades do meio na veiculação do projeto político de integração
nacional. Nesse sentido, em 1968, foi inaugurado o sistema Embratel, possibilitando
uma melhoria no desenvolvimento das redes televisivas, culminando com a transmissão
via satélite em 1970.16
A transformação ocorrida na telenovela fez parte, evidentemente, de um
processo social mais amplo que exprimiu os anseios de uma sociedade em fases de
modernização e que necessitava ser representada. Assim, a noção de realidade incidiu
sobre todas as esferas de produção da mesma. Nesse sentido, a proposta realista foi

Marina Caminha – O mundo cotidiano de Retrato falado: diálogos com a telenovela


134
também parte constituinte de um projeto interno, encabeçado por Walter Clark e Boni
(José Bonifácio de Oliveira Sobrinho), de renovação da programação da TV Globo,
cuja finalidade era a criação do que chamavam Padrão Globo de Qualidade.17
Uma das instâncias desse processo foi o descontentamento dos autores
com relação à inflexibilidade do modelo adotado por Glória Magadan, responsável
pelo departamento de telenovela da emissora. Dias Gomes relata o que pensava à
autora a respeito da criação de uma novela ambientada no Brasil:
Uma vez eu disse a Janete (Clair): olha, diga a essa senhora para realizar
novelas passadas aqui no Brasil, tratando de nossa cultura e de nossos
problemas. A resposta que a Janete me trouxe foi esta: ela disse que o
Brasil não é um país romântico e que não se pode admitir numa novela
um galã com o nome de João da Silva. Ele tem que se chamar Albertinho
Limonta ou Ricardo Montalbán (Mattos, 2004:77).

A insatisfação gerada entre os autores e produtores pela maneira como


Glória Magadan concebia a telenovela acabou sendo o motivo pelo qual, em 1969, a
diretora pediu demissão da emissora. Dessa maneira, o processo de mudança aberto
por Beto Rockfeller, na TV Tupi, serviu como fonte de inspiração para os novos
formatos.
A perspectiva de abrasileirar a telenovela mexeu com a estrutura técnica,
que passou a introduzir cenas externas, mostrando ruas, edifícios ou símbolos de
cidades brasileiras que pudessem ser reconhecidos pelo público. Houve a simplificação
do diálogo, tornando as falas mais coloquiais com o uso de gírias e de sotaques
referentes às regiões brasileiras. Alencar (2006:466) aponta, também, o surgimento
das tramas paralelas, conectadas à principal, isto é, à do par romântico. E, Hamburguer
vai dizer que a proposta realista se constitui pela necessidade de uma permanente
atualização da “contemporaneidade” através da moda (roupas, sapatos, griffes), da
“tecnologia” (computadores, telefones sem fio, carros importados) e de
“acontecimentos políticos correntes” (Plano Cruzado, impeachment de Collor).18
Assim, o excesso sentimental que caracterizava a telenovela latina foi
sendo amenizado pelo garimpo e futebol em Irmãos coragem (1970), pelo subúrbio
carioca e o jogo do bicho em Bandeira 2 (1972), por um engarrafamento no trânsito
em O espigão (1974), pelos desmandos de um coronel baiano em O bem amado
(1973) ou pelo crescimento caótico da cidade de São Paulo em O grito (1975).
O que chamamos de proposta realista foi, portanto, a mudança na maneira
de contar da telenovela, que passou a ser elaborada pelo diálogo entre as marcas de
uma imaginação melodramática e outros gêneros, para, com isso, incorporar temáticas
ligadas ao universo nacional. Nesse sentido, os dramas passaram a ser indicativo de

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 128-145 135


um comportamento cotidiano, revelando as tensões existentes nas relações familiares
contemporâneas.
O triunfo da virtude espelhado pela conquista da felicidade foi reatualizado,
convidando o púbico a adentrar no reino do sentimental, por onde suas histórias iriam
disseminar gestos, hábitos e concepções extraídos de uma relação que se faz entre o
mundo cotidiano e o mundo da telenovela.
Desde a década de 1970, a telenovela brasileira se constitui de discursos
que voltam ao mundo cotidiano de grupos sociais diferenciados e se expressam nas
conversas familiares, com os amigos ou nos colégios, entre diversas outras
possibilidades. Essas discussões são alimentadas pelo próprio mundo midiático, que
elabora pesquisas de opinião, sites, revistas, jornais, programas televisivos e
radiofônicos, criando uma espécie de circularidade que desloca o mundo cotidiano
para o da telenovela, voltando para a vida diária e sendo retomada pela narrativa
novelesca, através das “cenas dos próximos capítulos”.
Esse movimento de presentificação das questões públicas nacionais,
levando o espectador a se sentir representado por essas narrativas, introduziu maneiras
de contar que transportavam para a ficção marcas de realidade que, no nosso
entendimento, abriram caminho para a incorporação de convenções características
do documentário. Nesse sentido, essas marcas são de três ordens: a primeira está
ligada a práticas do dia-a-dia, como lavar louça e fazer supermercado, que passaram
a serem representadas.
A segunda diz respeito à “participação especial” de personalidades que
entram nas tramas como personagens de si mesmos, para depor sobre as questões
sociais tematizadas por essas narrativas. A telenovela, dessa maneira, legitima seu
conteúdo informativo através de depoimentos reconhecidos e autorizados pelo público.
Por fim, imagens de acontecimentos nacionais passam a habitar as tramas
novelescas, seja para contextualizar uma época em tramas históricas, seja em situações
que se entrelaçam ao destino dos personagens. Há que ressaltar, ainda, o movimento
inverso, quando eventos da novela saem do reino do ficcional e tornam-se
acontecimentos nacionais, como as imagens das Mães da Candelária, mulheres que
denunciaram publicamente o desaparecimento de seus filhos, em Explode coração
(1995, de Glória Perez).
Nesse caminho, os recursos de linguagens característicos do formato
documental foram inseridos na maneira de contar dessas histórias. Assim, percebe-se
o artifício de o personagem olhar para a câmera para simular uma entrevista, com um
jornalista fictício ou não, como no caso do jogador do Flamengo, Duda (Cláudio
Marzo), em Irmãos coragem (1970, de Janete Clair).19

Marina Caminha – O mundo cotidiano de Retrato falado: diálogos com a telenovela


136
Quando essas marcas são incorporadas à narrativa, problematizam
a fronteira existente entre o mundo midiático e o mundo cotidiano, formalizando,
no dizer de Hamburguer, uma sensação de pertencimento a uma comunidade
imaginada. Diz ela: “A novela atualiza seu potencial de sintetizar uma comunidade
imaginária, cuja representação, ainda que distorcida e sujeita a uma determinada
variação de interpretações, é verossímil, vista e apropriada como real e legítima”
(2006:484).
É por esse caminho que aponto a relação entre a telenovela brasileira e o
Retrato. Este (entre outros programas criados a partir da década de 1990) é parte
constituinte de uma tradição narrativa que se legitimou pela necessidade de atrelar à
ficção “correntes de realidade”. O formato utilizado nos depoimentos transmitidos
em Explode coração, que introduziu pela primeira vez na telenovela o testemunho do
sujeito comum, deixou vestígios de uma estrutura que se constituiu pelas marcas de
uma imaginação melodramática e documental.
Para este artigo, apontarei como a imaginação melodramática atravessa
os dois tipos de encenação encontradas em Retrato falado.

O pé de Zeferina Baldaia
Considerado o último episódio da primeira fase (2003) de Retrato falado,
narra a história de uma cortadora de cana que se tornou campeã da corrida de São
Silvestre:20
Meu nome é Maria Zeferina Rodrigues Baldaia, eu tenho 29 anos. Eu
sou mineira, nasci em Minas Gerais, mas hoje eu moro em Sertãozinho,
então eu me considero uma mineira sertanezina.
Esse testemunho inicial indica o processo pelo qual devemos olhar para
a narrativa. Quando somos convidados pela própria Zeferina a conhecer sua história,
somos levados a crer que essa trama é, antes de tudo, um fato do mundo cotidiano.
Nesse sentido, a imagem da “mineira sertanezina” confere essa expectativa ao quadro.
A partir desse momento, entendemos que é fundamental que Zeferina
represente a imagem do cotidiano na tela, posto que é essa expectativa que passa a
legitimar a história que vai ser contada, indicando uma representação do comum.
Em seguida, Denise Fraga apresenta, diz que essa história começou
quando a personagem tinha 12 anos de idade. Ela era bóia-fria e tinha o sonho de se
tornar uma corredora igual a Rosa Mota (maratonista portuguesa). A dramatização,
dessa maneira, se inicia com a personagem ainda criança:
Zeferina/criança: Mãe quando eu crescer eu quero ser que nem a
Rosa.

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Mãe: Rosa? Você quer virá flor minha filha? Não é melhor ser um pé
de maçã, um pé de banana?
Zeferina/criança: Não mãe, eu quero ser que nem a Rosa Mota .
Mãe: Rosa Mota? Ela trabalha em alguma fazenda por aqui?
Entrecortando o diálogo, aparece uma animação que explica para o
público quem foi Rosa Mota e, em seguida, retorna para a cena inicial:
Mãe: Você quer ser corredora, né?
Zeferina criança: É, e a semana que vem vai ter uma corrida na
cidade, posso?
Mãe: Como é que você vai correr? Nem sapato você tem minha filha!
Testemunho: (depoimento intercalado por encenações) Eu lembro que
eu corri descalça porque eu não tinha tênis (voz off, inicio da
dramatização, mas não mostra os pés da personagem). Na metade da
prova a menina que era favorita a ganhar a prova, ela sentiu dores, aí
eu perguntei para ela o que ela tava sentindo, ela falou que estava
sentindo umas dores, aí eu peguei na mão dela, coloquei ela sentada na
sarjeta, e passou uns amigos meus que é conhecido e falou: Maria
você não pode parar.
Amigo: Maria você não pode parar, Maria, vai, vai que eu cuido dela,
vai.
Testemunho: Nisso as outras meninas já estavam na frente, mas aí eu
imprimi um ritmo, alcancei as meninas, acabei ultrapassando e ganhei
a prova que era de 4 quilômetros e 200 metros (...).

A cena seguinte mostra o detalhe dos pés descalços de Zeferina, quando


ela ocupava o primeiro lugar do pódium. O que assistimos nesse enquadramento é o
pé da personagem acima do número 1. No nosso entendimento, essa imagem contém
marcas de uma imaginação melodramática, tendo em vista que sintetiza a situação
financeira de Zeferina, que já havia sido referida em dois momentos anteriores: na fala
da mãe fictícia - “nem sapato você tem minha filha!”, e no testemunho da corredora
- “eu lembro que eu corri descalça porque não tinha tênis”. Com isso, o quadro
construiu uma metáfora indicando, para nós, espectadores, como devemos olhar
para a personagem.
Essa imagem, inserida entre partes do testemunho de Zeferina, passa a
ter significados de ordem emocional, produzindo em nós um sentimento de
cumplicidade e comoção diante dessa “história de vida”. Portanto, além da situação
financeira, estão ali implícitos, o obstáculo, a perseverança e a vitória. É por esse
motivo que esse pé remete à existência de uma imaginação melodramática, mostrando,

Marina Caminha – O mundo cotidiano de Retrato falado: diálogos com a telenovela


138
claramente, as marcas dessa instância na construção dessa fábula. Esse enquadramento
está ali para que nós, induzidos afetivamente, passemos a torcer pelo sucesso da
personagem.
Por fim, é preciso considerar como essas falas, estruturadas pelos laços
sentimentais, formalizadas por essa imaginação, instância organizadora da narrativa
novelesca (ou seja, do universo televisivo, portanto midiático), passam a fazer parte
do mundo cotidiano, exteriorizando os atravessamentos existentes entre esses dois
lugares. Após a primeira vitória, Zeferina é convidada por um treinador para fazer
parte da equipe da cidade. Nesse momento surge o primeiro obstáculo:
Zeferina criança: Acho eu não tenho tempo pra isso não, senhor,
trabalho o dia todo na roça.
Treinador: Imagina, olha que você podia ser que igual a Rosa Mota.
Testemunho: Aí eu comecei a lembrar da Rosa Mota e falei por que
não?
Zeferina/criança: Tá bom, eu aceito.
Testemunho: (cenas reais de Maria Zeferina correndo nessas rodovias)
Finalzinho da tarde quando eu chegava, tomava um banho, colocava
meu short, meu top, meu bonezinho e saía correndo pelas rodovias,
que era onde eu morava.
Aos 18 anos, Zeferina engravidou do namorado que, além de resolver
não assumir o filho, ainda deu dinheiro para que ela abortasse. O filho seria, dessa
maneira, o seu segundo obstáculo:
Testemunho: Rasguei o dinheiro, joguei na cara dele e falei: se você
não tem capacidade de criar um filho, uma criança, você pode deixar
que eu vou criar sozinha.
O filho de Zeferina nasceu aos oito meses de gravidez. E ela continuou
treinando:
Testemunho: (em off, ilustrado por uma fusão de imagens que
transforma o bebê de colo em uma criança com 6 anos) Depois do
resguardo, eu voltei a correr, correr é uma coisa que eu nunca, nunca
deixei, nunca desisti, que sempre era o meu sonho. Treinei, treinei,
treinei, eu lembro que eu treinei muito, até que, em 2000, em novembro,
19 de novembro, eu fui participar da maratona internacional de Curitiba.
À medida que a história avança, percebemos como a maneira de Zeferina
se narrar deixa vestígios de um excesso melodramático, tendo em vista que ela mesma
se vê como uma mulher batalhadora que soube ultrapassar todos os obstáculos para
ver seu sonho realizado. A sua fala é carregada de performances sentimentais: “eu

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 128-145 139


comecei a lembrar da Rosa Mota e pensei, por que não?”, Mais adiante: “correr era
uma coisa que eu nunca deixei, nunca desisti, que era meu sonho”.
Essas falas revelam como as convenções formais próprias do mundo
midiático são reapropriadas pelos sujeitos comuns, como forma de agenciamento do
cotidiano. É nesse sentido que indicam a tensão existente entre a televisão e o lugar
que ela habita: a vida diária. Assim, são marcas presentes nas nossas maneiras de
interpretação do nosso dia-a-dia,21 enfatizadas, no caso deste episódio, pelo desejo de
correr. Esse desejo possibilita que Zeferina ultrapasse todos os obstáculos e vença,
em 2001, a corrida de São Silvestre.
E, no final do episódio, assistimos a “imagens reais” de Zeferina ganhando
a São Silvestre, porém, a encenação de uma imaginação melodramática está, mais
uma vez, ali presente. É sob os fortes gritos emocionados do locutor da Globo e da
música Bom pra você, de Zélia Duncan, que diz “Guarda pro final, aquele sabor
genial, se é genial pra você”, que a narrativa declara os excessos que indicam uma
história construída pelo viés afetivo. Se não houve a palavra fim escrita no último
quadro, ela está ali, sob a metáfora de que ela viveu feliz para sempre, já que realizou

MARINA CAMINHA é mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal


Fluminense – UFF.

Marina Caminha – O mundo cotidiano de Retrato falado: diálogos com a telenovela


140
NOTAS
1 Dirigido por Luiz Villaça, o quadro Retrato falado está no ar desde 1999,
quando foi criado para o programa Zorra total da Rede Globo. No ano seguinte foi
transferido para o Fantástico, sendo transmitido todos os domingos até 2003. A partir
de 2004 passou a ser exibido por temporadas, com uma média de 12 a 16 episódios
por ano.
2 Esses atravessamentos que discuto podem ser exemplificados em sitcoms
como A diarista (mesma emissora), no ar desde 2003, quando na sua primeira
temporada encerrava os episódios com testemunhos de empregadas domésticas.
3 Embora o testemunho de sujeitos comuns, como marca do documentário,
já estivesse presente na novela Explode coração (Glória Perez, 1995, TV Globo), ou
seja, antes mesmo de Retrato falado ter sido imaginado. Minha posição ao reforçar a
volta dessa marca a esse tipo de dramaturgia reflete o “peso” que essa convenção
passa a ter em tramas como Páginas da vida (Manoel Carlos, 2006/2007, TV Globo),
que se apropriou desse recurso deslocando-o para o final de cada capítulo encenado,
para legitimar as temáticas abordadas.
4 Na verdade, aponto de maneira indireta os conceitos de estratégias e
táticas do autor. Aqui, eles aportam como uma espécie de arquitetura desse mundo
cotidiano que desejo definir. Cf. Certeau (1994).
5 É preciso esclarecer que, embora sejam sujeitos que se constituem em
lugares de oposição, eles não são a representação de uma classe marginalizada, pois
estão imersos no universo televisivo com aspirações próprias desse mundo do qual a
televisão é uma das instâncias organizadoras. No entanto, não sujeitos passivos. È é
esse mundo que o quadro encena.
6 Essa voz testemunhal é enquadrada pelo depoimento em primeiro plano
(ou médio), em que só assistimos à imagem da personagem, marca do documentário.
7 Esse excesso a que me refiro traz as marcas de um riso popular da praça
pública proferido por Bakthin. Não aprofundarei essa análise, tendo em vista que este
artigo pretende discutir sobre outro excesso, pautado por uma imaginação
melodramática.
8 Ainda sem ser diária, indo ao ar duas vezes por semana, às 20 horas na
TV Tupi.
9 Borelli e Ramos (1989) apontam para crescimento da produção novelesca
que, de 1963 a 1969, passou de 3 novelas diárias para 24.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 128-145 141


10 As soap operas se estruturavam pela longa duração de suas histórias,
chegando a permanecer durante anos no ar, modelo que foi copiado pelas telenovelas
americanas. Cito como exemplo Days of Our Lives que, em 2005, completou quarenta
anos de transmissão. Cf. http://www.nbc.com/Days_of_our_Lives.
11 O melodrama (gênero) figurou como uma espécie de arcabouço para a
criação desse conceito, posto que este é o modelo mais bem resolvido da imaginação
melodramática. Não se trata aqui de uma aproximação com o gênero clássico, mas
apontar uma lógica narrativa que se estrutura também por um engajamento afetivo,
para, dessa maneira, promover um possível diálogo entre as maneiras de representação
do cotidiano nacional por meio da telenovela e do Retrato falado. Cf. Brooks (1995).
12 As marcas do documentário e do riso da praça pública são outros
domínios organizadores dessa narrativa.
13 É preciso deixar claro que a imaginação melodramática permanece
agenciando as formas de narrar da telenovela, o excesso continua presente, porém ele
foi amenizado em comparação a um tipo de excesso encontrado nas narrativas
melodramáticas clássicas.
14 Obviamente que essa proposta se caracterizou sob uma crítica negativa
ao padrão anterior de produção de telenovela. E é por esse motivo que, atualmente, no
senso comum, diferenciamos as produções brasileiras como mais realistas em
comparação às produções mexicanas, mais próximas do modelo cubano. É nesse
sentido ainda que nos acostumamos a nomear essas últimas, transmitidas pelo SBT,
de melodramáticas, como se o excesso só se constituísse como marca aí. Ainda no
senso comum, melodramático virou sinônimo de mexicanização, exagero, ilusão.
15 A trajetória da TV Globo se iniciou na década de 1950, quando Juscelino
Kubitschek concedeu um canal televiso a Roberto Marinho, dono de um patrimônio
empresarial que reunia o jornal O Globo, a Rádio Globo e a editora Rio Gráfica. Em
1962, o empresário fez um acordo com a empresa norte-americana Time-Life, que
tinha interesse em investir na América Latina.
16 Antes da inauguração da Estação de Tanguá e da Estação Rastreadora
de Itaboraí, no Rio de Janeiro, as emissoras funcionavam recorrendo ao envio de
videotapes para as afiliadas. A TV Globo foi pioneira na instalação de microondas,
importadas a baixo custo dos Estados Unidos, onde já estavam sendo substituídas
por tecnologia mais avançada. Depois do incêndio em São Paulo (1969), ela passou a
contratar os serviços da Embratel, cinco vezes mais caro que as microondas de
segunda mão, porém mais confiáveis. Para arcar com a elevação dos custos de sua

Marina Caminha – O mundo cotidiano de Retrato falado: diálogos com a telenovela


142
transmissão em rede, a emissora aumentou os preços da tabela de publicidade e adotou
uma política expansionista, procurando agregar cada vez mais estações afiliadas, o
que significava maior audiência e, em conseqüência, maior interesse dos anunciantes.
Foi assim, graças à entrada em operação do sistema Embratel, que telespectadores de
todo o país puderam assistir, ao vivo, via satélite, o homem pousando na Lua, em
1969, e, no ano seguinte, a Copa do Mundo de Futebol no México, também transmitida
em rede nacional (DHBB, 1998:4.919).
17 Para aprofundar tais questões, cf. Borelli e Ramos (1989), Alencar
(2004) e Hamburguer (2006).
18 Faz-se necessário considerar que cada emissora adotou um modelo. O
SBT continua até hoje importando as novelas mexicanas, possibilitadas por um contrato
entre a emissora e a Televisa. Produzem poucas e, quando o fazem, seguem a tendência
de uma aproximação maior com o melodrama clássico. Tomo a proposta realista
como característica dominante da telenovela brasileira porque a maioria das produções
geradas no país é acometida por essa singularidade, não apenas na TV Globo, mas
também em outras emissoras, como a Bandeirantes (O campeão e Perdidos de amor,
1996), a Record (Metamorphoses, 2004) e a extinta TV Manchete (Guerra sem fim,
1993). Cf. www.teledramaturgia.com.br
19 Todas as novelas citadas foram transmitidas pela TV Globo. Cf. Projeto
Memória das Organizações Globo (org). Dicionário da TV Globo, vol. I – Dramaturgia
e entretenimento. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
20 O episódio de Zeferina Baldaia foi ao ar no dia 17 de fevereiro de 2003.
21 Refiro-me ao tipo de sujeito comum que o quadro encena. Esse que já
está habituado a assistir à televisão.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 128-145 143


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ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 128-145


145
Melodrama, gênero dramatúrgico
e linguagem televisiva:
uma análise à luz de Bakhtin
Clara Fernandes Meirelles

Ainda que as análises do melodrama sejam variadas, controversas e até


mesmo incompatíveis, dois aspectos geram unanimidade: a durabilidade do gênero e
sua maleabilidade. São essas características, aliadas à combinação de sentimentalismo
e prazer visual, que têm garantido ao melodrama dois séculos de hegemonia na esfera
dos espetáculos. Nascido no teatro francês do século XIX, o gênero está presente
atualmente em filmes, programas de TV e livros, entre outros produtos, em países
com as mais diferentes formações culturais. É inegável que continua vivo.
O que faz com que a estrutura do melodrama resista ao tempo? Que
operações de atualização estão presentes e constroem as novas formas de elaboração
do gênero? Considerando o melodrama dialogicamente, como esse texto cultural se
transformou, do drama teatral burguês, passando pelos folhetins, radionovelas, até a
forma hoje hegemônica e consolidada da telenovela? Quais são as peculiaridades
contextuais que dão vida ao melodrama da teledramaturgia brasileira?
Essas questões trazem uma série de outros pensamentos sobre a cultura
e a capacidade de transformação e contextualização sociocultural de um produto. Por
isso, a análise que empreendo será feita à luz do pensamento bakhtiniano. Três conceitos
da vasta obra do autor serão mais utilizados nesse trabalho – diálogo, polifonia e
contextualização.
A primeira parte deste trabalho será destinada a uma descrição desses
três conceitos de Bakhtin. Em seguida, analiso as diferentes acepções do melodrama,
enquanto gênero dramatúrgico. Finalmente, buscando agregar o pensamento bakhtiniano
à forma mais presente do melodrama na televisão brasileira, passo à analise das
apropriações do gênero pelo audiovisual, através da telenovela.

PILARES DO PENSAMENTO DE BAKHTIN


PARA UMA ANÁLISE DO MELODRAMA
Apesar da necessidade de se delinear os pilares da obra de Bakhtin que
serão aplicados à análise de meu objeto de pesquisa, é absolutamente difícil – impossível,
eu diria – estudar um conceito elaborado pelo filósofo sem remeter a outro, e sem ter
em mente as questões fundamentais que atravessam sua obra. Existe uma unidade

146 Clara Fernandes Meirelles – Melodrama, gênero dramatúrgico e linguagem televisiva: uma análise à luz de Bakhtin
filosófica no pensamento de Bakhtin, que faz com que as questões ontológicas que
norteiam seu trabalho estejam sempre presentes. Elas vão e voltam de maneira espiral,
e expressam-se de diferentes formas nas principais categorias criadas pelo autor, de
modo que todos os conceitos-chave de Bakhtin – carnaval, heteroglossia, polifonia,
dialogismo, entre outros – englobam simultaneamente o textual, o intertextual e o
contextual. É com essa essência bakhtiniana que pretendo trabalhar, ainda que opte
por destacar e definir três conceitos em minha análise.
A alteridade se situa no âmago da obra de Bakhtin. Como muitos artistas e
pensadores da época, Bakhtin estava preocupado com a relação entre sujeito e sociedade,
arte e vida social. Entre 1918 e 1924, o filósofo faz diversas tentativas de enfrentar essas
questões, escrevendo ensaios sobre o tema. A essência de seus escritos é a essência da
relação entre eu e o outro, ou a construção da subjetividade a partir da alteridade, proble-
ma ao qual o escritor dá uma ressonância bastante pessoal (Stam, 2000).
Bakhtin observa que cada um de nós ocupa um espaço e um tempo
específicos no mundo, e cada um de nós é responsável, ou respondível por nossas
atividades. Essas atividades ocorrem nas fronteiras entre eu e o outro, e portanto a
comunicação entre as pessoas tem uma importância capital. O eu, para Bakhtin, existe
somente em diálogo com outros eus. O eu necessita da colaboração de outros para
poder definir-se e ser autor de si mesmo. Essa necessária e produtiva
complementaridade de visões, compreensões e sensibilidades forma o cerne da noção
bakhtiniana de diálogo “ processo que supõe a autocompreensão através da alteridade.
O eu humano não tem existência independente; depende do outro e do ambiente social
(Bakhtin, 2006; Stam, 2000).
O conceito da relação dialógica entre eu e outro está presente em diversas
outras dicotomias conceituais desenvolvidas pelo autor: épica/romance; oficial/carnaval;
monologismo/dialogismo.
Alguns dos princípios elucidados por Bakhtin em Marxismo e filosofia
da linguagem (2006) também serão úteis à análise do melodrama que pretendo
empreender. Contrariando a lingüística saussuriana, nessa obra o filósofo afirma que
a realidade da língua não é o sistema abstrato das formas, não é o enunciado monológico
isolado, mas o evento social da interação verbal. A palavra orienta-se para um
destinatário, e esse destinatário existe em relação clara com o sujeito falante – ele
pertence a uma geração, a um gênero, a uma classe, é próximo ou afastado daquele
que fala, conjunto de códigos que constituem o tato. O enunciado individual é moldado
pelas relações de força existentes no tato (Bakhtin, 2006; Stam, 2000).
Assim, qualquer texto constitui uma forma de ação verbal calculada
para leitura ativa e respostas internas, e para reação por parte de críticos, pastiche ou

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.146-161 147


paródia por parte de outros escritores. Essa concepção ampla de dialogismo permite-
nos ver todo texto artístico como estando em diálogo não apenas com outros textos
artísticos, mas também com seu público. Esse conceito muiltidimensional do dialogismo
será aplicado, neste trabalho, ao melodrama, em duas perspectivas diferentes: primeiro,
em relação à definição do gênero. Segundo, em relação à experiência do melodrama
audiovisual, notadamente das telenovelas. Se aplicado a um filme, como faz Stam
(2000), o dialogismo poderia se referir não apenas ao diálogo dos personagens no
interior do filme, mas também ao diálogo do filme com filmes anteriores, assim como
ao diálogo entre música e imagem etc. Aqui, me apropriarei do conceito para referir-
me à outra produção cultural, o melodrama, especificamente a telenovela.
Uma última categoria a ser utilizada neste trabalho diz respeito ao
conceito de polifonia. A partir da análise da obra de Dostoiévski, Bakhtin observa
a criação do romance polifônico, que consiste em uma pluralidade textual de
vozes e consciências diferenciadas. Onde está Dostoiévski, na multiplicidade de
vozes conflitantes que constitui os seus textos? Ao contrário de uma análise
monológica, Bakhtin propõe que o autor deve ser visto como o orquestrador das
vozes de personagens que estão a seu lado em plena liberdade, capazes de
discordar de seu criador e até rebelar-se contra ele. Não deve ser identificado
como essa ou aquela voz de seus romances, mas com a instância que orquestra
uma multiplicidade de vozes distintas ou mesmo antitéticas. Assim, os romances
de Dostoiévski têm muitas vozes que abarcam diversos campos complementares
de visão, nos quais o todo é formado pela interação de diversas consciências. A
metáfora musical de polifonia assinala uma situação harmônica, em que o todo se
veria prejudicado pelo desaparecimento de uma voz que fosse.
A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e
a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a
peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. Não é a
multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo
uno, à luz da consciência una do autor, se desenvolve nos seus
romances; é precisamente a multiplicidade de consciências eqüipolentes
e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento,
mantendo a sua imiscibilidade (Bakhtin, 1997:4).
O que importa, portanto, como assinala Stam (2000), não é defender o
poder dominador do discurso de um dos personagens, mas catalisar a interação criativa
dos discursos heteroglotas dos diferentes personagens. Bakhtin endossa a troca
dialógica entre personagens que são capazes de se comunicar sem perder sua
individualidade. Ele rejeita uma noção burguesa, proprietária, do pensamento. Para
ele, a idéia não é uma formulação individual, com direitos permanentes de residência

148 Clara Fernandes Meirelles – Melodrama, gênero dramatúrgico e linguagem televisiva: uma análise à luz de Bakhtin
no interior da cabeça de uma pessoa. Idéias são, na verdade, eventos intersubjetivos
elaborados no ponto de encontro dialógico entre as consciências.
A visão de Bakhtin, portanto, tal como a de Dostoievski, é democrática
– senão anarquizante – por prezar a revolta dos pequenos contra as definições
finalizantes às quais geralmente estão submetidos.
Para Bakhtin, o embate ideológico localiza-se no centro vivo do discurso,
seja na forma de um texto artístico ou no intercâmbio cotidiano da linguagem. Na
vida social do enunciado – seja ele uma frase proferida verbalmente, um texto literário,
um filme, uma propaganda ou um desfile de escola de samba –, cada palavra é dirigida
a um interlocutor específico numa situação específica. A palavra está sujeita a
pronúncias, entonações e alusões distintas. Nesse ponto, entra em cena um outro
conceito muito relevante na obra de Bakhtin: o de contexto (Stam, 2000).
Existem, para o filósofo, tantos gêneros do discurso quanto situações
sociais possíveis. Tantas são as possibilidades de uso da língua com determinadas
especificidades, o que determinaria a formação de um gênero, quanto são as
possibilidades de interação social. Bakhtin denomina “tato” ao conjunto de códigos
que regem a interação discursiva. Como vimos, isso tem a ver com as relações entre
interlocutores e é determinado pelo conjunto de relações sociais dos sujeitos falantes,
por seus horizontes ideológicos e pelas situações concretas da conversa. Assim, o
uso de uma palavra não é invariável; este significado depende de um contexto
extraverbal, que é ilimitado. É nas situações concretas que a língua faz-se viva e
presente, e não no abstracionismo e na propagação de regras.
Se Stam (2000) nota que essa noção é extremamente rica para a semiótica
e análise do cinema, é possível dizer que o conceito é útil à análise de múltiplos textos
culturais, inclusive o melodrama, objeto de pesquisa aqui retratado.

MELODRAMA, GÊNERO DRAMATÚRGICO


Começo o capítulo com uma abordagem sobre o livro The Melodramatic
Imagination (1996), de Peter Brooks, pois ele deu impulso a muitas reflexões que
investigaram o vínculo entre melodrama e a indústria do audiovisual.
Para Brooks, o melodrama é mais que um gênero dramático de feição
popular ou um receituário para roteiristas. É a forma canônica de um tipo de imaginação
presente até em formas mais elevadas da literatura – ele utiliza os realistas Balzac e
Henry James para comprovar. A imaginação melodramática permeia o alto e o baixo
e cumpre uma função modelar capaz de incidir sobre variadas formas de ficção.
Brooks não vê a ascensão do melodrama como sinal de uma perda. O
melodrama nasceu com o fim da Revolução Francesa e, conseqüentemente, com a

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.146-161 149


crise da sociedade cristã, baseada na Igreja, na monarquia e na cristandade. A partir
desse momento, para o autor, certas formas literárias se tornaram invalidadas, como
a tragédia e a comédia de costumes. O melodrama não corresponde somente ao fim
da tragédia, mas ao fim da perda da visão trágica. Esses fatores histórico-culturais
fizeram com que a questão da verdade e da ética fosse posta em jogo. A instauração
da ética como modelo de vida passou a ser uma preocupação política, de modo que a
república surge como instauradora da moralidade.
Esse é o contexto que produz o melodrama. A luta incessante contra os
inimigos, os chamados vilões, que corrompem a moralidade e que devem ser
confrontados e removidos para que seja assegurado o triunfo da virtude. E, mais do
que isso, o melodrama utiliza uma linguagem muito clara para dizer o que pretende,
ou seja, para elucidar sobre o triunfo da moralidade operativa e evidente.
Capaz de múltiplas adaptações, o melodrama formaliza um imaginário
que busca sempre dar corpo à moral, torná-la visível. Fornece uma pedagogia do
certo e errado que não exige uma interpretação racional do mundo, confiando na
intuição e nos sentimentos naturais do indivíduo na lida com tramas que envolvem,
quase sempre, laços de família. “O melodrama se tornou o principal modo por descobrir,
demonstrar e fazer operacional o universo moral da era pós-sagrada” (Brooks,
1996:39).
A título de esquema, como esclarece Xavier (2003), o gênero foi
associado a um maniqueísmo entre bem e mal, a uma fabulação que não suporta
ironias, que é avessa a ambigüidades. Ele se oporia ao realismo moderno e ao da
tragédia, essas sim formas históricas de uma imaginação esclarecida que se confronta
com a verdade, organizando o mundo como uma rede complexa de contradições.
Essas distinções serviram de baliza, ao longo do século XX, para estruturar uma
oposição entre ficção alternativa e a rotina dos meios de comunicação.1
Nos anos 1970, entretanto, ainda que a produção audiovisual no cinema
e na televisão estivesse fortemente vinculada pelo melodrama, novas formas de arte
promoveram uma revisão do gênero. Essa transformação ocorreu em um diálogo
amplo das artes com o melodrama da televisão e com os preceitos das narrativas da
sociedade de consumo. Um exemplo notório é a arte de Andy Warhol, que se apropria
ironicamente de diversos mecanismos presentes na sociedade de consumo, como o
culto à personalidade e o imaginário sentimental melodramático. Xavier (2003) utiliza
o termo melodrama pop para referir-se a esse tipo de revisão do melodrama.
Não há como não notar a paródia que Warhol e outros artistas, como
Pedro Almodóvar, vão desenvolver em relação a um gênero que se supunha finalizado.
À luz de Bakhtin e de sua concepção polifônica da obra de arte, é possível enxergar na

150 Clara Fernandes Meirelles – Melodrama, gênero dramatúrgico e linguagem televisiva: uma análise à luz de Bakhtin
reapropriação do melodrama pop uma visível paródia, em que valores da sociedade de
consumo são criticados e deslocados, e dão lugar a uma desestabilização do uso da
linguagem e do código operante. Nota-se, entretanto, que, ainda que esta visão esteja
impregnada de crítica, ela integra o universo da mídia auto-referenciada; ou seja,
ainda que o objetivo seja fugir da esfera monopolista da televisão, a arte do melodrama
pop refere-se à televisão o tempo todo.
Cabe, aqui, fazer uma ressalva em relação a tais usos do melodrama,
conforme assinala Xavier (2003), para não cair no engano de celebrá-las acriticamente,
simplesmente pelo fato de simbolizarem um contraponto ao formato até então
conhecido. Se um dia tais formas foram a revisão crítica, tempos depois tornaram-se
rotina da indústria e marcaram a permanência de estruturas mais convencionais, como
a própria televisão, tema de nossa próxima seção.
Outra oposição bastante comum é a melodrama versus realismo, que
abarcaria algumas subdivisões, como telenovelas brasileiras e telenovelas mexicanas,
e outros debates intrincados no cinema. Tal dicotomia parece estar baseada em um
equívoco. Atualmente, as telenovelas, em especial as brasileiras, bem como diversas
produções cinematográficas, possuem um grau de realismo bastante expressivo, o
que não anula a presença da matriz melodramática em sua essência, apenas demonstra
como certas composições conseguem reunir diferentes vozes estéticas, que
comparecem formando um todo harmônico. Um exemplo simples são as novelas de
Manoel Carlos, autor que zela por retratar o cotidiano e o banal em suas elaborações
ficcionais. Ali, realismo e melodrama não estão em disputa: ao contrário, beneficiam-
se mutuamente, em uma composição que é atualmente um dos maiores sucessos de
audiência da televisão brasileira.
A maleabilidade é sem dúvida o fator que permitiu a permanência da
matriz melodramática no século XX, com todas as mudanças sociais e culturais que
aconteceram. Como poucos, o melodrama consegue trabalhar na ficção imaginários
completamente diferentes. Por isso, conseguiu absorver o discurso psicologizante do
imaginário moderno, em que a admissão do prazer substitui a moral religiosa. Os
padrões morais do melodrama ajustaram-se à sociedade de consumo. Embora ainda
afeito às encarnações do bem e do mal, são incorporadas as variações que tais noções
têm sofrido. É um intercâmbio entre discursos, tal como propunha Bakhtin (Xavier,
2003; Bakhtin, 2006).

DIÁLOGOS COM O SENSACIONAL


O conceito do sensacional também se relaciona com o surgimento da
forma melodramática. A modernidade trouxe a intensificação do ambiente urbano,

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.146-161 151


decorrente da industrialização, da urbanização, do crescimento populacional rápidos,
além da proliferação de novas tecnologias e meios de transporte. Finalmente, com a
modernidade tem início a explosão de uma cultura de consumo de massa. Os indivíduos
passaram a lidar com um bombardeio de estímulos, com uma nova intensidade de
estimulação sensorial.
À medida que o ambiente urbano ficava mais intenso, o mesmo ocorria
com as sensações dos entretenimentos comerciais. Perto da virada do século, uma
grande quantidade de diversões passou a dar mais ênfase ao espetáculo, ao
sensacionalismo e à surpresa. A sensacionalização do divertimento comercial foi
enfatizada de modo particular no melodrama teatral, que passou a exibir ações violentas,
incêndios, explosões, naufrágios, enfim, cenas de sensação. O tom do melodrama
mudava, ganhando a alma metropolitana da modernidade. “O divertimento
sensacionalista era a contrapartida estética das transformações radicais do espaço, do
tempo e da indústria” (Singer, 2001:115). O sensacionalismo popular compensou e ao
mesmo tempo imitou a estrutura frenética, desarticulada da vida moderna.2
Assim, o melodrama demonstra ser um gênero vivo, uma língua operante
na sociedade atual, principalmente porque se ajusta aos códigos vigentes, consegue
adaptar sua matriz literária a diferentes configurações sociais, ou, em termos
bakhtinianos, a contextos diversos. Se, como explica Brooks, o surgimento do gênero
ocorre no fim da Revolução Francesa, o uso corriqueiro no cinema e na TV é mais do
que prova dessa capacidade de adaptação.
Tais como os clássicos, que recebem tal denominação por estarem sempre
atualizados, em leituras que transcendem o tempo e o espaço em que foram
originalmente concebidos, também o melodrama consegue tal feito, e é incorporado a
variados contextos, indiferentes ao que gerou sua concepção original (Bakhtin, 2006).
Como bem observa Xavier:
Há melodramas de esquerda e de direita, contrários ou favoráveis ao
poder instituído, e o problema não está tanto numa inclinação francamente conservadora
ou sentimentalmente revolucionária, mas no fato de que o gênero, por tradição, abriga
e ao mesmo tempo simplifica as questões em pauta na sociedade, trabalhando a
experiência dos injustiçados em termos de uma diatribe moral dirigida aos homens de
má vontade (Xavier, 2003:93).

VELHA MATRIZ, NOVA FORMA:


TELENOVELAS, DIALOGISMO E CONTEXTUALIZAÇÃO
Para começar a discussão sobre as transformações dialógicas por que
passou o gênero melodramático em sua trajetória na telenovela, evoco um pensamento

152 Clara Fernandes Meirelles – Melodrama, gênero dramatúrgico e linguagem televisiva: uma análise à luz de Bakhtin
de Martín-Barbero (Martín-Barbero e Rey, 2004) que vê uma profunda contradição
na hegemonia audiovisual: para o autor, ao mesmo tempo em que a revolução
tecnológica se desenvolve com uma expansão e diversificação sem limites dos formatos,
vive-se um profundo desgaste dos gêneros.3
Essa diferenciação entre as nomenclaturas de formato e gênero,
empregadas por Martín-Barbero e que também surgem com freqüência no senso
comum, parecem bastante elucidativas acerca das transformações da linguagem
audiovisual e da manutenção da matriz melodramática. Usando o arsenal teórico
bakhtiniano, pode-se dizer que as mudanças de formato induzem o melodrama a
dialogar com o contexto atual, adquirir a maleabilidade necessária à operação social,
e continuar vivo e interessante, dialogando com outras formas, outros gêneros.
De fato, atualmente assiste-se a uma explosão de novos formatos
em ficção seriada: além da clássica telenovela, há os sitcoms, os seriados, as
séries, minisséries e microsséries, os seriados que se originam de filmes, os
quadros ficcionais em programas de auditório, as novelas infantis, os desenhos
animados. O advento da televisão digital e a conseqüente possibilidade de interação
direta do espectador com o desenrolar da trama certamente trará uma enxurrada
de novos formatos ficcionais. O que se questiona é: através de que mecanismos
consegue o melodrama manter-se como matriz? Com que forças dialoga o gênero,
para manter-se hegemônico?
Como disse Martín-Barbero, a televisão constitui um âmbito decisivo
do reconhecimento sociocultural, do desfazer-se e refazer-se das identidades
coletivas, tanto as dos povos como as dos grupos. Segundo esse autor, a telenovela
é a narrativa que melhor demonstra os cruzamentos entre memória e formato, entre
lógicas da globalização e dinâmicas culturais.
Essa narrativa televisiva é o que catalisa o desenvolvimento da indústria
audiovisual latino-americana, justamente ao misturar os avanços tecnológicos da mídia
com as velhas narrativas que fazem parte da vida cultural desses povos. O que não
pode nos ocultar que o relato novelesco remete também à longa experiência do mercado
para captar, na estrutura repetitiva da série, as dimensões ritualizadas da vida cotidiana.
E, assim, conectar com as novas sensibilidades populares para revitalizar narrativas
midiáticas gastas.
De acordo com Martín-Barbero e Rey (2004), entendemos por tradicional
aquele tipo de telenovela que dá forma a um gênero sério, no qual predomina a inclinação
trágica. Gênero moldado por um formato que põe em imagens unicamente paixões e
sentimentos primordiais, elementares, excluindo do espaço dramático toda ambigüidade ou
complexidade histórica e neutralizando, com freqüência, as referências de lugar e tempo.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.146-161 153


As telenovelas latinas possuem uma origem parecida: ambas remontam
ao teleteatro. A nova ficção televisiva dava seus primeiros passos aproveitando um
time de artistas e profissionais que ainda se familiarizaria com a nova linguagem, mas
que trazia, sobretudo, a experiência em um tipo de ficção que já havia caído no gosto
popular: a radionovela e o teleteatro. Assim, vai se dando uma transição da peça teatral
ao texto para televisão que tem sua consolidação definitiva na década de 1960 e, mais
concretamente, com o surgimento da telenovela (Martín-Barbero e Rey, 2004).
A consolidação da telenovela como gênero televisivo impõe um
amadurecimento da lógica televisiva, que é possível comprovar nas estratégias
narrativas, no desenvolvimento temporal e na programação periódica. De fato, o que
está em operação é a consolidação de um novo vocabulário simbólico, construído não
só pelos que criam o produto, mas também pelos espectadores, que acompanham e
legitimam a nova lógica. Naquele novo contexto, em que acontecem mudanças sociais,
culturais, e que a América Latina, de maneira geral, vive um processo de modernização
e industrialização, a telenovela surge como uma nova linguagem ficcional, que vai se
articular com todas as demais mudanças em curso. É um novo gênero de discurso,
atrelado, como não podia deixar de ser, a um contexto.4
As diferenças começaram a ser notadas rapidamente. A televisão permitia
divulgar massificadamente manifestações artísticas reservadas a públicos minoritários,
tornar presentes outras ordens de gosto, que se qualificam como grossos ou próprios
da ralé, validar pouco a pouco expressões culturais até então excluídas dos cânones
aceitáveis, como o humor e a farsa, introduzir uma noção de espetáculo até então
desconhecida, contrastar diversas maneiras de viver e ainda antagônicas às propostas
tidas como modelares pela escola, pela família ou pela Igreja, além de modificar a
oferta cultural segundo as lógicas comerciais e do consumo de massa (Martín-Barbero
e Rey, 2004; Freire Filho, 2003).
Se, nos anos 1950, o teleteatro significa um gênero que impulsiona a
modernidade cultural, diante do conservadorismo estético e político das elites, nos
anos 1960, a telenovela, como gênero em ascensão, representa a crescente
massificação das narrativas. A classe média deixa de ocupar uma posição subalterna e
passa ao centro. As formas culturais sucumbem às necessidades de representação
dos novos habitantes urbanos e as pressões modernizadoras que chegam com as
mídias, como a televisão.
Um exemplo interessante é a telenovela Beto Rockfeller, transmitida
pela TV Tupi em 1968. Ela marca o início da conformação de um outro modelo, que
denominamos moderno, e que é aquele que, sem romper de todo o esquema
melodramático, irá incorporar um realismo que possibilita a cotidianização da narrativa

154 Clara Fernandes Meirelles – Melodrama, gênero dramatúrgico e linguagem televisiva: uma análise à luz de Bakhtin
e o encontro do gênero com a história e alguns matizes culturais do Brasil. O primeiro
modelo constitui o segredo do sucesso de novelas mexicanas, já o segundo foi o que
ganhou reconhecimento para as novelas brasileiras.
O modelo brasileiro caracterizou-se por desenvolver capacidades
expressivas abertas pelo cinema, publicidade e videoclipe. Os personagens se libertam
do peso do destino e se aproximam das rotinas cotidianas e das ambigüidades da
história, da diversidade das falas e do costume. Martín-Barbero ressalta o que acaba
sendo bastante positivo, enquanto a grande e densa experiência cinematográfica
brasileira possibilitou uma especificidade de atuação que a televisão soube aproveitar,
isso é, o cinema marcou forte e positivamente a produção televisiva (Martín-Barbero
e Rey, 2004).
Partindo da linguagem do teleteatro até a forma final da telenovela, o
melodrama atravessou muitas transformações. A telenovela se insere nas lógicas
comerciais, com uma acolhida crescente e repercussões econômicas e de publicidade
evidentes, enquanto o teleteatro não tinha o mesmo potencial de massas. A telenovela
trabalha com a continuidade temporal, primeiro estendendo seus capítulos por vários
dias na semana e, depois, por todos os dias. A duração e a estrutura narrativa
melodramática fazem dessa uma realização televisiva por excelência (Martín-Barbero
e Rey, 2004). O teleteatro mostrou-se menos adaptado ao progresso da linguagem
audiovisual própria da televisão. Ele sucumbiu diante de um gênero que se adaptou
velozmente, tanto nas rotinas produtivas como em seu consumo, às mudanças
tecnológicas, comerciais e às flutuações dos gostos. A telenovela consegue superar
com facilidade as dificuldades econômicas vividas pelo teleteatro.

DIÁLOGOS E INOVAÇÕES NA TRAMA LITERÁRIA


Do ponto de vista da criação da trama literária, também se notam algumas
modificações trazidas pela telenovela em seu momento de implementação inicial. Como
destaca Martín-Barbero, a adaptação de formato significou escolher determinadas
obras, destacar personagens específicos e enfatizar sua trama pessoal, além de ressaltar
certos elementos dramatúrgicos.
A adaptação do melodrama folhetinesco literário para o teleteatro e para
a telenovela não foi realizada sem tensões e sem discussões acerca do novo modelo.
O diálogo do discurso literário com a televisão freqüentemente contesta a
superficialidade dos assuntos, os esquematismos narrativos, os estratagemas do
mercado. Na verdade, o que está em pauta são as transformações que permitem às
massas urbanas se apropriar da modernidade sem deixar sua cultura oral, incorporar-
se por fora das instituições de ensino.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.146-161 155


Analisando essa transformação com um olhar bakhtiniano, pode-se dizer
que existe um jogo de poder na reinvenção do melodrama, uma vez que as classes
privilegiadas desdenham e temem essa nova linguagem porque ela se refere a um
repertório que reflete e interage com a cultura popular, a cultura não-oficial, e, nesse
primeiro momento, consegue o feito de ser aceita pelo mercado ao mesmo tempo em
que promove uma subversão dos valores oficiais, a carnavalização (Bakhtin, 1997;
Martín-Barbero e Rey, 2004).
Essa ligação da cultura oral com a telenovela permite a predominância
do contar a, conforme assinala Martín-Barbero (Martín-Barbero e Rey, 2004), o que
implica uma certa redundância, estabelecendo, dia após dia, a continuidade dramática.
E conserva também a abertura temporal indefinida do relato, pois sabe-se quando
começa, mas não quando acaba.
Além disso, fator essencial às telenovelas, e em especial às telenovelas
brasileiras contemporâneas, é o vínculo com a atualidade do que acontece enquanto
dura o relato. A telenovela cada vez mais se ocupa de uma posição de articulação com
o mundo real, o que não só serve para promover mais uma transformação no formato,
questionando as barreiras entre ficção e realidade, mas também para reafirmar sua
relação contextual e seu papel social. Alguns exemplos interessantes são as tramas de
Glória Perez, que freqüentemente se aliam a campanhas sociais existentes, como a
das crianças desaparecidas, e as novelas de Manoel Carlos, que se utilizam do mesmo
recurso, como Páginas da vida, que abordou o preconceito aos portadores de síndrome
de Down. Exemplo ainda mais pitoresco é a passeata contra a violência que a novela
Mulheres apaixonadas promoveu, protesto que aconteceu tanto na trama como na
vida real, extrapolando os já tensos limites entre essas categorias.

A LITERATURA DE FOLHETIM:
MAIS UM DISCURSO NO MOSAICO DO MELODRAMA
Para compreender melhor o caminho realizado pela dramaturgia
melodramática, é preciso retornar às origens da confecção dos textos. Inicialmente,
os textos de telenovela eram elaborados por escritores que haviam ganhado notoriedade
em outras áreas que não a escrita audiovisual. Gabriel García Márquez na Colômbia,
Nelson Rodrigues no Brasil. Mas, como explica Martín-Barbero (Martín-Barbero e
Rey, 2004), a televisão inicialmente se ofereceu aos escritores como um modo de
expansão de suas obras. A televisão tinha uma tarefa difusiva: ilustrar obras com
imagens sujeitas à lógica da narrativa escrita. A experiência audiovisual era temida
como elemento deformador, então a qualidade era tanto maior quanto mais fiel ao
texto literário original.

156 Clara Fernandes Meirelles – Melodrama, gênero dramatúrgico e linguagem televisiva: uma análise à luz de Bakhtin
É possível concluir, portanto, que esse tipo de melodrama ainda não
tinha dado o salto maior para as transformações do audiovisual. A luta de poder
expressava-se na linguagem: o monopólio do assim denominado bom gosto impedia a
consolidação de um tipo de melodrama que sucumbisse por completo ao gosto das
massas, ou seja, a apropriação de um tipo de prazer no maior meio de comunicação já
existente.
Em meados dos anos 1970, entretanto, literatura e televisão passaram a
influenciar-se mutuamente: do lado da literatura, pela folhetinização do relato, que
aproximou o roteiro de televisão à modalidade serial das produções norte-americanas
de longa duração. Na televisão, passou-se a desenvolver uma linguagem específica da
narração televisiva. A partir daí, esse tipo específico de linguagem ganha espaço.
Note-se que nesse embate é possível fazer uma análise à luz de Bakhtin
e ver que não é somente a consolidação de um meio de comunicação que está em
jogo, mas o domínio sobre a linguagem e os códigos de relato. A consolidação da
figura do autor de telenovela, tão popular no Brasil, é o resultado do amadurecimento
e legitimação cultural desse novo tipo de linguagem.
É o início de uma prática que vincula a experiência estética com as
exigências das condições comerciais e industriais de produção. Assumindo a mistura
dos formatos industriais com as formas culturais, das ideologias profissionais com as
rotinas produtivas, das flexões criativas com as necessidades estratégicas das
telenovelas, autor e diretor conseguem para a narração da telenovela um estatuto
profissional e uma expressividade própria (Martín-Barbero e Rey, 2004).
É a mídia em busca de seu próprio idioma. Os novos textos de telenovela
buscam construir relatos próprios de televisão. A telenovela possibilitará a
profissionalização do ofício de autor de telenovelas, introduzindo as bases de sua
legitimação estética e de seu reconhecimento profissional.
A partir do amadurecimento da linguagem, surge um outro fenômeno
muito interessante, o entrecruzamento de gêneros com a permanência do melodrama
como matriz. Os autores começam a utilizar o melodrama com a comédia, a farsa, o
terror, a aventura, e muitos outros gêneros. Martín-Barbero (Martín-Barbero e Rey,
2004:156) dá especial destaque à comédia, que, para ele, “começa a minar o
melodrama”, desvertebrando-a, o que garantiu a conservação do fervor popular por
um tipo de telenovela que deslocou seu peso dramático das grandes paixões para os
costumes cotidianos identificadores de uma região e uma época.
A palavra encanta, conecta o dito popular com a metáfora, num encontro
da televisão com a oralidade cultural do país e com a escrita que rompeu a gramática
para liberar as sensibilidades e os ritmos do oral.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.146-161 157


Na década de 1990, mais uma mudança afeta a produção teledramatúrgica
latino-americana: a internacionalização. Ainda que ela tenha acontecido em anos
anteriores, agora é requisito indispensável na criação melodramática. A novela dos
anos 1990, mantendo os marcos do melodrama, introduz temas novos, compõe os
personagens de maneira mais complexa, elabora com maiores matizes os contextos,
investiga com maior cuidado os diálogos e o universo referencial no qual transcorrem
as situações. A dramatização influi nesse sentido na telenovela, que já se arrisca a
apresentar reflexões humanas mais cotidianas, além de uma geografia interior menos
esquemática e mais moderna.
Conforme escreve José Mario Ortiz Ramos, a telenovela brasileira trabalha
bem a mescla entre universal e particular, pois
(...) toma sua energia ficcional dessa característica, que teve uma
ressonância nos mercados interno e externo, mesclando uma matriz
universal com peculiaridades nacionais, sem deixar de incorporar as
inovações tecnológicas e as tendências mais atualizadas, tanto no plano
da linguagem televisiva quanto no das temáticas. Todas as suas variantes
são, na verdade, uma hábil combinação de gêneros, tendo o melodrama
como base, porém integrando-o com outras possibilidades ficcionais
(Ramos apud Martín-Barbero e Rey, 2004:página).

RESPONDIBILIDADE E TELENOVELA: A RECEPÇÃO


Um outro ponto importante para essa análise, que não poderia deixar de
ser contemplado, é a interpretação que cada espectador faz da telenovela. De acordo
com as noções de responsabilidade e respondibilidade bakhtinianas, cada espectador
refaz a simbologia do melodrama de maneira individual, de acordo com o lugar que
ocupa no mundo e as condições socioculturais de sua experiência com aquele texto
cultural. A esse respeito, cabe citar o trabalho de Lopes (Lopes et alii, 2002), que
recolhe inúmeros depoimentos para analisar o envolvimento dos espectadores com a
telenovela. Isso envolve inúmeros fatores, que vão desde a rotina de assistência e o
posicionamento do aparelho de televisão na casa até a apropriação dos códigos de
comportamento, a identificação com os personagens, o recontar da trama, que passa
a ser assunto em esferas como ao trabalho, lazer etc. Lopes parte da concepção do
gênero ficcional como matriz cultural e estratégia de comunicabilidade, sendo, portanto,
parte constitutiva do meio – a televisão – e elemento de expressão do cotidiano vivido
pelos receptores.
Os “modos de ler”, conforme expressão utilizada pela autora, estão
muito ligados às tradições, preocupações e expectativas da vida prática, que a
pesquisadora tenta apreender através da cultura da família. Essa afirmação remete

158 Clara Fernandes Meirelles – Melodrama, gênero dramatúrgico e linguagem televisiva: uma análise à luz de Bakhtin
indubitavelmente ao pensamento bakhtiniano, uma vez que, para o pensador, é a
partir das relações concretas e das experiências no mundo real que se estabelecem
as relações discursivas. O estudo mostra como as fronteiras entre os pólos de
produção e recepção não são rígidas, mas se interpenetram na produção social do
sentido. Nas palavras da autora:
A familiaridade existe porque os gêneros acionam mecanismos de
recomposição da memória e do imaginário coletivos de diferentes grupos
sociais e porque a narrativa de gênero supõe a existência de um repertório
compartilhado que permite o diálogo (Lopes et alii, 2002:página).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível definir a telenovela como um texto dialógico, que con-
tém não só as relações aqui discutidas, mas em que também é fundamental o
vínculo que o espectador estabelece com a trama, alimentando-a com a própria
vida. É uma confusão entre relato e vida, em que se cruzam diversas lógicas: a
padronização, repetição e serialidade (lógica do sistema produtivo), a do conto
popular, a do romance. A telenovela ativa também um modo de leitura muito
particular, uma vez que a maioria desfruta não só do prazer de vê-la, mas de
contá-la, e é nesse relato que se encontra a sobreposição entre narração e expe-
riência. Em que a experiência se incorpora ao relato.
A telenovela é um texto cultural dialógico não só porque funde diferentes
gêneros, lógicas e funções literárias, mas também porque o modo de ver novela
institui uma relação dialógica, em que cada parte daquele conjunto encontra-se em
harmonia com as outras, compondo um todo polifônico.

CLARA FERNANDES MEIRELLES é Bacharel em Comunicação Social com habilitação em jornalismo


(UFRJ) e aluna do curso de Pós-Graduação (Mestrado) em Comunicação e Cultura (linha Mídia e
Mediações Socioculturais) da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro/
ECO-UFRJ.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.146-161 159


NOTAS

1 Xavier (2003) esclarece, sobre isso, que a tendência do cinema de autor


dos anos 1950 e 1960 era marcar a diferença entre cinema popular e cinema crítico.
Apenas nos anos 1970 o processo do melodrama foi reaberto, e o cinema passou a
dialogar com os produtos da indústria, como estratégia de um novo cinema político
que desejava uma comunicação maior com o público. As experiências de Fassbinder
e Douglas Sirk são emblemáticas desse período. Em relação a esse processo, entretanto,
é essencial ressaltar que os experimentalismos cinematográficos conviviam com o
cinema de Hollywood, fortemente marcado pelo melodrama.

2 O sensacional não foi um gênero exclusivo do contexto histórico do


surgimento da modernidade, na transição do século XIX para o XX. Ele está presente
atualmente em inúmeros produtos da cultura de massa na pós-modernidade, como,
por exemplo, nas narrativas jornalísticas populares. As notícias desses periódicos, de
acordo com Barbosa (2004), teriam o teor do sensacional, do espantoso e do chocante,
construindo um relato que se aproximaria de um melodrama do cotidiano, embora os
personagens sejam tirados da realidade objetiva.

3 Walter Benjamin, em “O narrador”, aponta para o fim da narração, o que


supõe a troca de experiências. O filósofo associa a asfixia do relato ao aparecimento
de um novo modo de comunicar, que é a informação, que substitui a experiência do
narrador pelo saber experimentado do cronista ou jornalista (Martín-Barbero e Rey,
2004).

4 A relação entre contexto histórico-cultural e telenovela merece uma


abordagem mais ampla que, por uma limitação de espaço e tempo, não pôde ser
realizada nesse trabalho. É, entretanto, absolutamente relevante reconhecer, inclusive
pelo fato de se estar utilizando uma abordagem bakhtiniana, as causalidades que
vinculam o surgimento dessa nova linguagem ficcional, ou de uma reinvenção dessa
linguagem ficcional, com a modernização latino-americana.

160 Clara Fernandes Meirelles – Melodrama, gênero dramatúrgico e linguagem televisiva: uma análise à luz de Bakhtin
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Reverso - Revista da Comunicação, ano XVIII, número 39, 2004.

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____.Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.

BROOKS, Peter. The Melodramatic Imagination. Nova York: Columbia


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BUONANNO, Milly. Comunicação e Ética: Colóquio Brasil-Itália. São
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LOPES, Maria Immacolata Vassalo de; BORELLI, Silvia Helena Simões e


RESENDE, Vera da Rocha. Vivendo com a telenovela – mediações, recepção,
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audiovisual e ficção televisiva. São Paulo: Editora Senac, 2004.

SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo


popular, in SCHWARTZ, Vanessa e CHARNEY, Leo. O cinema e a invenção
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XAVIER, Ismail. O olhar e a cena – melodrama, Hollywood, Cinema Novo,


Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.146-161 161


162
Pesquisando a telenovela no Brasil

Para este número, especialmente dedicado ao melodrama, a revista ECO-


Pós entrevistou Maria Immacolata Vassalo Lopes, professora titular da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Maria Immacolata
vem se dedicando ao estudo da telenovela há mais de dez anos, tendo como suas
principais preocupações os estudos de recepção e a questão metodológica. É autora
de diversos livros, entre eles Pesquisa em comunicação (1990) Vivendo com a
telenovela (2002), junto com Sílvia Borelli e Vera Resende, e Telenovela:
internacionalização e interculturalidade (2004).
Nesta entrevista, Maria Immacolata faz um balanço da pesquisa sobre
telenovela no Brasil e conta como funciona o Núcleo de Pesquisa de Telenovela da
ECA/USP, de que é coordenadora. Fala ainda sobre a experiência do Obitel
(Observatório Ibero-americano da Ficção Televisiva), rede que reúne diversos
pesquisadores e realiza o monitoramento dos programas de ficção da TV aberta em
nove países: Brasil, México, Venezuela, Colômbia, Chile, Argentina, Portugal, Espanha
e Estados Unidos.

Ana Paula Goulart Ribeiro

Quando e por que você começou a fazer pesquisas sobre


telenovela?
Tudo começou com meu interesse por cultura popular, que foi a linha
de minhas pesquisas iniciais. Meu mestrado foi sobre rádio e recepção entre as classes
populares. Foi através desse trabalho que descobri Gramsci. Priorizei uma abordagem
renovada sobre a existência das culturas populares, não uma concepção derivada, e
que tem uma espessura, como diz Gramsci, que tem uma “existência própria”. A
questão da ideologia se coloca também de uma maneira particular e não propriamente
de uma forma grosseira, enfim. Primeiro, eu queria trabalhar a cultura popular. O
rádio foi minha primeira incursão e, depois, eu me detive às questões de recepção,
alimentada por esse meu interesse no cotidiano das culturas populares, na existência

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.162-167 163


dessa realidade. As minhas pesquisas sobre recepção me levaram à telenovela. Nesse
momento, houve um marco que foi um convite, em 1985, para fazer parte de um
projeto latino-americano de estudo das telenovelas, uma proposta de Jesús Martín-
Barbero. Não é fácil trabalhar a telenovela, porque ela não é um texto escrito. Eu não
vou trabalhar apenas o script, e também não é apenas a dramaturgia, mas é um
conjunto. Para mim, precisava ser um trabalho que desse conta da exploração
metodológica. A idéia era trabalhar a telenovela não como um produto isolado, mas
dentro da concepção de produção e de recepção. E, para isso, eu me detive na
questão das mediações, vendo mediações na telenovela e ela mesma como mediação
de uma coisa maior.

Em que período você começou a fazer essas pesquisas?


Está fazendo dez anos. Ao mesmo tempo, paralelamente, já existia o
Núcleo de Pesquisas de Telenovela da ECA/USP. Então, um conjunto de pesquisadores
e pesquisadoras se reuniu para propor um projeto temático à Fapesp com o objetivo
de abordar a telenovela no Brasil. O meu subprojeto foi de recepção de telenovela,
que acabou se tornando o Vivendo com a telenovela, um livro feito com os resultados
da análise de recepção por quatro famílias de uma mesma telenovela, que foi A
indomada. Existe uma coerência nesse percurso. Meu interesse era a descoberta da
telenovela e, até hoje, eu ainda estou descobrindo. Da questão da metodologia eu não
abro mão, da questão de como abordar a telenovela de tantas e variadas formas. A
partir disto, dessa pesquisa sobre telenovela, que foi um conjunto de estudos de
caso, eu quis dar um outro passo, que foi o do Observatório da Ficção Televisiva. A
idéia era deixar de fazer estudos de caso e tentar ver a partir de uma perspectiva
maior, de um paradigma de sociedade brasileira mesmo.

Explica um pouco, então, o que é o Observatório Ibero-americano


da Ficção Televisiva, o Obitel.
Em termos acadêmicos, o Observatório é resultado de um pós-doutorado
que eu fiz na Itália, quando eu já mexia com a telenovela. Eu tinha terminado a
pesquisa de recepção das quatro famílias, e surgiu a idéia de dar esse outro passo, de
trabalhar numa perspectiva societária, histórica e cultural. Eu já conhecia o trabalho
que era feito na Itália de um observatório da ficção televisiva e de sua perspectiva
internacional. Lá, existe um observatório nacional e outro europeu. A minha idéia era
concretizar, da perspectiva do Brasil, a proposta de Jesús Martín-Barbero, que era
uma proposta para a América Latina, e ao mesmo tempo abordar um tema tão
importante, ou um produto cultural tão importante, que era pouco trabalhado, ou

164 Maria Immacolata Vassalo Lopes – Pesquisando a telenovela no Brasil


talvez abordado de forma concentrada em certas balizas. Então, a idéia do
monitoramento veio daí. Eu trouxe essa experiência para adaptar para o Brasil. A
minha proposta era fazer um observatório da ficção televisiva no Brasil e, depois,
montar um observatório latino-americano, que acabou se tornando ibero-americano,
com a entrada da Espanha e de Portugal. Esse monitoramento é feito com uma
metodologia comum. Fomos oito pesquisadores em reunião para elaborar essa
metodologia. Agora, já temos o anuário de 2006, que está saindo em 2007. Cada
pesquisador faz o retrato do que foi a oferta e a audiência da ficção televisiva em seu
país. Isso tem sido o Obitel, o Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva.
E é uma coisa inédita, no sentido de reunir países que têm produção de telenovela,
além da produção de séries e minisséries. Em cada país, os formatos mudam, porque
são culturais, o que é uma coisa bem interessante.

Como você avalia o cenário da pesquisa sobre telenovela no Brasil


do momento em que você começou, dez anos atrás, até hoje?
O cenário que eu vejo é de um tema que não só era pouco pesquisado,
como havia resistência ao seu estudo, o que é diferente, por exemplo, de como se
coloca a pesquisa do jornalismo ou do telejornalismo no campo da comunicação no
Brasil. A pesquisa sobre a telenovela, entre os pesquisadores de comunicação, teve
que acontecer, e o trabalho do Núcleo de Pesquisa de Telenovela foi importante. Nós
mesmos, que fazíamos parte desse Núcleo, quando houve o incêndio em 2001, que
acabou com o acervo, nos surpreendemos com a repercussão. Todo mundo só
falava das coisas que o Núcleo fazia e promovia sobre a telenovela. Um levantamento
que nós também fazemos no Núcleo é sobre o que se estuda de telenovela no Brasil.
É muito vasto pensar que, por exemplo, em uma faculdade de engenharia, possa ter
um trabalho sobre telenovela. Então, a gente tinha que começar um levantamento.
Nós temos um dado que é o seguinte: foram produzidas 121 teses e dissertações
sobre telenovela, até 2005, nos programas de pós-graduação em comunicação do
Brasil. Se você pensar que as primeiras dissertações e teses de telenovelas são dos
anos 1980, nós temos 25 anos produzindo 121 teses e dissertações. Eu acho que é
pouco. Além disso, nós vamos levantar o que se estudou sobre telenovelas; estamos
trabalhando nisso. Isso é possível através dos abstracts, nos quais você deve dar
conta da metodologia, do foco da pesquisa, do objeto. Esse é um trabalho que está
em andamento. Mas o que eu vejo é muito estudo de caso. Também me surpreenderam
as transposições daquilo que a gente chama de intertextualidade: um romance que foi
adaptado para televisão, o que já tinha sido de cinema e foi adaptado para televisão,
mas principalmente de literatura (contos, romances etc.). Então, eu acho que há

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.162-167 165


muito o que fazer. Acho que, nessa questão de estudo de caso, a gente tem que andar
um pouco mais, tem que ampliar. As pessoas não vêem “uma” telenovela, há uma
cultura de telenovela, há uma cultura de televisão. O receptor forma sua própria
programação. Ele pega um pouco da telenovela da Globo, pega uma outra importada
do SBT, para depois pegar a das 21h da Globo.

O Obitel tem estreitado os laços com pesquisadores estrangeiros.


Como você vê a especificidade da pesquisa no Brasil em comparação a de outros
países? O que há de diferente na pesquisa latino-americana ou ibero-americana?
Eles mesmos reconhecem que a pesquisa de teleficção no Brasil é muito
mais avançada que nos países deles. Isso eu acho que é notório. O que você tem são
alguns pesquisadores que tradicionalmente se voltaram para isso e continuam. O que
eu pretendi também em relação ao Obitel é que, existindo um pesquisador, vamos
dizer, mexicano, como o Guilhermo Orozco, ele possa servir como referência para a
pesquisa de telenovela no México. Eu tenho que mencionar um programa de pesquisa
de ficção de Jorge González: ele formou um grupo de pesquisadores interessantes,
no qual estava uma pesquisadora que foi para os Estados Unidos, a Ana Uribe, por
causa dessa coisa de ver o México de fora, pesquisando como as telenovelas eram
vistas lá. Mas esse projeto terminou, e o Jorge está trabalhando com outra coisa. No
Brasil, existe pesquisa, mas está muito localizada. Até mesmo por causa da
grandiosidade da nossa produção, talvez em termos quantitativos igual ao México,
mas melhor em questão de qualidade e com especificidades, eu acho que tem que
haver uma expansão, tem que formar mais gente trabalhando com telenovela. Os
trabalhos são bons, a qualidade das pesquisas é boa, é academicamente sustentável.

Como você vê a perspectiva de desenvolvimento dessa área de


pesquisa no campo da comunicação?
Só posso ver de uma forma muito otimista, até por causa da questão
hoje de se estar revendo conceitos, superando toda essa coisa – que ainda tem – de
que telenovela é apenas divertimento, é alienação, é um produto feminino. Eu acho
que essa área deve atrair cada vez mais pesquisadores. Eu vejo isso com bons olhos,
inclusive em termos de linha de pesquisa de novos mestrados e doutorados. E quero,
sem dúvida alguma, me voltar para isso. Em psicologia, eu sei que está havendo
pesquisas; em letras, deve ter muito; em antropologia, principalmente, isso faz parte
de um trabalho interessante. A minha intenção com o Obitel é colocar em contato
pesquisadores que trabalham o tema e fazer com que os estudos se potencializem
muito mais.

166 Maria Immacolata Vassalo Lopes – Pesquisando a telenovela no Brasil


Esses levantamentos de teses, dissertações e trabalhos, vocês fazem
no âmbito do Núcleo de Telenovela?
Isso mesmo. Nós temos muita solicitação de estudantes que querem
vir consultar o acervo do Núcleo, o que é uma coisa muito interessante, porque é aí
que se forma o interesse do futuro pesquisador em continuar a partir do que viu na
iniciação científica ou no TCC, fazendo um mestrado e um doutorado. Eu acredito
muito nisso.

Você estava falando do incêndio. O que o Núcleo tem, hoje, de


acervo?
Com relação ao acervo, a gente deve colocar isso em uma perspectiva
temporal. Sem dúvida alguma, o Núcleo continua sendo um centro de consulta, mas
eu quero dizer que, hoje, você entra no YouTube e tem acesso a certas coisas que
nem centros de pesquisa têm. Então, vamos relativizar um pouco. Sem dúvida alguma,
vem gente consultar nosso acervo, porque nós gravamos programas, temos doações
de revistas de época que falavam da telenovela, como a revista Intervalo, e inclusive
cadernos da TV Globo. O que nós tínhamos e achávamos sensacional eram as
sinopses, que na verdade eram obras de arte. Você não acredita o que a Globo fazia
quando lançava uma novela. A sinopse era um produto importante para disseminar a
novela na época do seu lançamento. Mas o Núcleo, hoje, é voltado para fazer
principalmente eventos e encontros para reunir os pesquisadores e alavancar projetos
de pesquisa. Vem gente de fora inclusive para ver o acervo que nós temos, as doações
da Globo, as minisséries etc. Mas é preciso dar o Observatório para os pesquisadores
brasileiros de ficção televisiva levarem a frente. E os eventos e os seminários, é
preciso relacioná-los com o NP da Intercom. Eu acho que a Compós também deveria
ter um GT específico sobre ficção televisiva, que já está um pouco dentro do GT
sobre recepção. Há muita coisa a fazer, e eu realmente aposto nisso. As pessoas que
entram nesse campo não saem mais no sentido da fidelidade ao tema de pesquisa. E
é assim que tem que ser.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.162-167 167


168
A indústria da música na Espanha
e a “pirataria musical”
Juan C. Calvi

A indústria da música constitui atualmente um dos setores mais potentes


e de maior crescimento da economia mundial, não apenas como um setor particular
dentro do conjunto de setores que compõem as chamadas Indústrias Culturais, mas
também como irrigador de produtos utilizados pelo resto destes setores, tais como o
rádio, a televisão, a indústria cinematográfica, de videogames etc.; além de componente
fundamental de outros setores industriais como a eletrônica de consumo, a publicidade,
as telecomunicações etc.
Concretamente, na Espanha, em 2003, a indústria da música gerou
diretamente um volume de negócios de quase 1,2 bilhão de euros e deu emprego a
52.850 pessoas; e, considerando o negócio da música como componente de outros
setores da economia, tais como a eletrônica de consumo, os meios de comunicação,
a publicidade, as telecomunicações, bares, discotecas, salões de dança etc., o volume
total de negócios que a música gerou no mesmo ano, na Espanha, foi de 4,5 bilhões
de euros ou o equivalente a 0,8% do PIB [Produto Interno Bruto] (IFPI, 2005b;
Promusicae, 2005).
Em 2004, levando em conta apenas o mercado de CDs musicais, foram
vendidos 50 milhões de unidades, com um faturamento de 482,4 milhões de euros.
Pois bem, segundo o último relatório elaborado pela SGAE (Sociedade Geral de
Autores e Editores da Espanha) sobre a situação do mercado da música no país
(SGAE, 2005), nos últimos anos, a venda de fonogramas em todos os suportes caiu
36.99%,1 passando de 77,8 milhões de unidades em 2000 a 49,1 milhões em 2004,
sendo constatado que o suporte CD foi o que mais acusou essa queda, passando de
67,3 milhões de unidades a 44,6 milhões no mesmo período.
As causas dessa queda apontam para a pirataria e a cópia privada dos
CDs, além das descargas de música na internet. No entanto, para analisar essa situação,
não se podem desprezar outros fatores determinantes, principalmente a substituição
do suporte CD pelos novos suportes digitais e a ascensão dos serviços de
comercialização de música através da internet.
Ainda assim, o mercado da música segue em plena atividade e, nesse
sentido, é necessário destacar que a SGAE conseguiu, durante o ano de 2004, a
maior arrecadação de sua história, ao alcançar 300,7 milhões de euros em receita, o
que revelou um aumento de 11,9% em relação ao ano anterior; e dos quais 20,9% foi

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.169-180 169


arrecadado devido à polêmica imposição do pagamento de um imposto pelos CDs e
DVDs virgens. As artes cênicas e musicais também geraram 10,8% a mais em
arrecadação que no ano anterior, os espetáculos ao vivo, 8,8% e o setor de rádio e
TV, 6,1% (SGAE, 2004).
O mercado fonográfico espanhol ocupa a nona posição no mercado
internacional em termos de volume de faturamento, o que equivale a 1,9% do mercado
fonográfico mundial (IFPI, 2005b). No entanto, a indústria da música tanto a nível
mundial quanto nacional está controlada por quatro grandes gravadoras multinacionais
(majors), e a principal conseqüência dessa situação é uma tendência geral à
homogeneização dos mercados musicais tanto internacionais quanto nacionais.
A estratégia dessas empresas nos mercados nacionais é promover a
venda de seu repertório internacional, assim como produzir e distribuir artistas locais,
competindo nesse mercado com as pequenas e médias empresas fonográficas
nacionais (PEMEF, também denominadas aqui de indies). Da mesma forma, as majors
têm poder de acesso aos meios de comunicação, principalmente ao rádio, utilizando
uma grande quantidade de recursos publicitários e de marketing para promover seus
produtos musicais, substituindo assim as empresas menores e criando barreiras à
entrada de novos selos independentes locais, alternativos ou minoritários.

A ESTRUTURA DO MERCADO FONOGRÁFICO ESPANHOL


O processo de concentração do mercado da música na Espanha foi
muito mais rápido do que o do mercado internacional. Em 1980, sete companhias
fonográficas internacionais controlavam 52% do mercado nacional, ao passo
que, em 1985, eram apenas cinco empresas que concentravam 87% do mercado
(Buquet, 2002); e quando analisamos a estrutura atual do mercado fonográfico
na Espanha, vemos que este é um reflexo em pequena escala do cenário
internacional (cf. gráfico 1).
Atualmente, as companhias fonográficas multinacionais que
monopolizam mais de 80% do mercado fonográfico espanhol são: Sony BMG, com
28,42%; Universal, com 17,46%; seguida por Warner, com 19,26% e EMI, com
16,3%. Os 18,56% restantes dividem-se entre as pequenas e médias empresas
fonográficas nacionais (IFPI, 2005b; Promusicae, 2005).
Como comentamos, a estratégia comercial das majors consiste na
exploração massiva dos repertórios musicais internacionais e nacionais, estabelecendo
filiais locais naqueles mercados fonográficos mais importantes e lucrativos,
produzindo artistas locais, competindo com os selos nacionais e expandindo
lançamentos internacionais.

170 Juan C. Calvi – A indústria da música na Espanha e a “pirataria musical”


Embora analisemos que as majors e as PEMEFs desenvolveram uma
relação funcional na qual estas últimas atuam como viveiros criativos das
primeiras, as conseqüências desse tipo de estrutura de oligopólio da indústria da
música nacional são similares às que observamos em relação à indústria da música
internacional. Isso não significa necessariamente que o repertório nacional esteja
relegado a uma porcentagem marginal do mercado; mas sim que sua exploração
fica nas mãos das principais gravadoras.
Essa situação pode ser comprovada ao compararmos a distribuição
entre repertório nacional e repertório internacional no mercado fonográfico
espanhol com a distribuição dos mesmos repertórios nos dez principais mercados
fonográficos do mundo. Desta maneira, constatamos que, na Espanha, a
porcentagem do repertório nacional encontra-se na média desses países, em torno
de 50% do mercado (cf. tabela 1).
A partir da análise desses dados, conclui-se que as majors não
somente comercializam seus repertórios internacionais como também
desenvolvem uma estratégia de exploração dos repertórios musicais nacionais
através de suas filiais locais, competindo, mas, ao mesmo tempo, alimentando-
se das PEMEFs nas fases de exploração, descoberta e produção dos artistas e
intérpretes locais. Porém, apesar dessa relação funcional entre majors
internacionais e PEMEFs nacionais, no decorrer dos últimos anos os selos
nacionais foram desaparecendo, ocasionando uma deterioração no conjunto da
indústria da música na Espanha e uma tendência à homogeneização do mercado
da música local.

O CRESCENTE DESAPARECIMENTO DOS


SELOS FONOGRÁFICOS NACIONAIS
A queda das vendas de música no mercado internacional e sua re-
percussão no mercado espanhol aceleraram o processo de concentração das
gravadoras que já se anunciava desde a década de 1980. Somado à estratégia das
majors em estabelecer filiais locais e explorar os repertórios nacionais, o resulta-
do foi que os selos nacionais se viram esvaziados de conteúdo, foram absorvidos
pelas grandes companhias ou tenderam a desaparecer. Não obstante, simultane-
amente a esse processo, se produziu a aparição de pequenos selos independentes,
minoritários ou alternativos, mais especializados na procura de novos talentos e
mais audaciosos em suas apostas no mercado.
Durante os anos 1980, as companhias fonográficas de capital
nacional mais importantes foram absorvidas pelas majors ou foram

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.169-180 171


desaparecendo, enquanto apareciam novos selos independentes. Durante os anos
1990 e início de 2000, essa tendência intensificou-se.
Se observamos a evolução da quantidade de selos de acordo com a
quantidade de discos que se editou por ano, entre os anos 2000 e 2004, vemos
que os selos que editam menos de trinta discos ao ano passaram de 554 a 669
nesse período, os que editam entre trinta e duzentos discos ao ano passaram de
71 a 60, e os selos que editam mais de duzentos discos ao ano passaram de 15 a
13 (SGAE, 2005). Isso significa que o viveiro de selos independentes cresceu,
o número de selos de média escala diminuiu, e os grandes selos de gravadoras
concentraram-se; ou seja, foram desaparecendo as empresas fonográficas
nacionais que podiam competir com as majors e surgiu um número maior de
pequenos selos independentes que não só não podem competir com elas, como
ainda as alimentam na fase de produção (cf. tabela 2).
Atualmente, as majors controlam 81,44% do mercado nacional,
ao passo que as PEMEFs de capital espanhol ficam com 18,56% do mercado
restante. Isso se vê refletido na lista dos discos mais vendidos na Espanha; e,
se tomamos como referência a lista dos discos mais vendidos na última semana
de fevereiro de 2006, vemos que as empresas que controlam a maior parte dos
lançamentos dos fonogramas no mercado nacional são Sony BMG (quatro
discos), EMI (dois discos) e Warner (um disco).
Em relação à evolução dos preços dos CDs na Espanha, da mesma
forma que na maioria dos mercados internacionais, se verifica que a fixação dos
preços, por parte das grandes companhias da música, foi artificial e abusiva.2
Nos últimos dez anos, por exemplo, um CD de lançamento custava entre € 20 e
€ 23, enquanto que em 2005 o preço era em torno de € 15; e o preço dos discos
das majors costuma ser mais elevado que o preço dos discos lançados pelas
indies (Buquet, 2002; SGAE, 2005).
As conseqüências dessa estrutura de oligopólio da indústria da
música e do mercado fonográfico espanhol são as mesmas que as comentadas em
relação à indústria da música a nível internacional. Ou seja, o desenvolvimento por
parte das majors de um modelo de exploração global de alguns poucos produtos
musicais de sucesso e, ao mesmo tempo, a domesticação e exploração dos
repertórios musicais locais, competindo nos mercados nacionais, se alimentando
dos pequenos selos independentes e diminuindo a participação das PEMEFs.
Finalmente, um mercado fonográfico com essas características – no
qual a diversidade de produtos disponíveis se vê diminuída, onde as estratégias de
lançamentos, fixação de preços, distribuição, difusão e consumo são planejados

172 Juan C. Calvi – A indústria da música na Espanha e a “pirataria musical”


pelas grandes companhias –, somado à expansão das novas redes, tecnologias e
suportes digitais que facilitam o acesso e a distribuição livre de todo tipo de
produtos musicais, gerou as condições para o surgimento de uma prática social
muito propagada, denominada freqüentemente de “pirataria” de produtos musicais.

A PIRATARIA MUSICAL NA ESPANHA


Nos últimos anos, na Espanha, produziu-se um amplo debate social
em torno da questão da “pirataria” musical, entretanto, esse foi um debate muito
ideologizado desde o começo, e, atualmente, é difícil discernir o que é pirataria
do que não é, qual é seu impacto real sobre a indústria da música e até que ponto
se utiliza este termo para defender certos interesses das partes em conflito.
Segundo a definição da IFPI (The International Federation of the
Phonographic Industry), pirataria é a infração deliberada da lei de copyright
em escala comercial e, em relação à pirataria de produtos musicais, essa prática
é a cópia não-autorizada de uma obra original com propósitos comerciais sem
o consentimento do proprietário dos direitos sobre a mesma. 3 E, de acordo
com a definição da SGAE, entende-se por pirataria qualquer ato pelo qual se
executa uma exploração (isto é, de acordo com o dicionário da RAE: 4 “obter
proveito de um negócio ou indústria em benefício próprio”) dos direitos de
propriedade intelectual de maneira ilícita, com a finalidade de eximir-se do
cumprimento da lei.
Em relação à pirataria clássica dos CDs musicais, segundo o último
relatório da IFPI, o volume de CDs pirateados em todo o mundo passou de 640
milhões no ano 2000 a 1,1 bilhão em 2004, embora o ritmo de crescimento tenha
desacelerado nos dois últimos anos. Em 2004, o volume de negócios da pirataria
de CDs foi estimado em U$ 4,6 bilhões, o equivalente a 34% das vendas legais de
CDs (IFPI, 2005a).
No caso particular da Espanha, em 2004 foram vendidos 50 milhões
de discos e faturou-se 428,4 milhões de euros, ao passo que o número de CDs
piratas vendidos foi de 16 milhões, com um faturamento de 64,8 milhões de
euros ou o equivalente a 24% do mercado legal de CDs. A Espanha encontra-se,
portanto, entre os cinco países da União Européia com um nível de pirataria que
varia entre 10% e 24% de seu mercado legal, junto a Bélgica, Finlândia, Holanda
e Eslovênia (IFPI, 2005a).
Com relação à distribuição e descarga de arquivos musicais na internet,
segundo os dados da IFPI, em janeiro de 2006, o número de arquivos musicais
disponíveis para serem distribuídos e baixados era de 885 milhões, dos quais 775

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.169-180 173


milhões estavam disponíveis nas redes de usuários P2P e o resto em páginas da web.
Essa cifra é ligeiramente superior à registrada em janeiro de 2005 (870 milhões), mas
inferior à registrada em junho do mesmo ano (900 milhões), e, desde a quantia
alcançada em abril de 2003, com 1,1 bilhão de arquivos disponíveis, a queda registrada
até hoje é de cerca de 20% (IFPI, 2006).
Segundo o mesmo relatório, no Reino Unido e na Alemanha, o número
de usuários da internet que baixam música de forma legal já supera aqueles que
baixam música ilegalmente, e, na Europa, o número de usuários que compram música
de forma regular na internet chega a 4%, enquanto aqueles que baixam música de
forma ilegal chegam a 6%. A IFPI estima que de cada cinco compradores de música
na internet apenas um seja usuário das redes P2P, e que 25% dos usuários dessas
redes estariam dispostos a pagar pelos arquivos musicais se os serviços comerciais
fossem melhores, enquanto que 50% ainda não estariam dispostos a pagar pelos
mesmos; e, conforme outras estimativas, 43% dos usuários da internet que baixam
música fazem-no através das plataformas comerciais (Pew Internet, 2005). A IFPI
assegura, por outro lado, que os usuários dispostos a baixar música de forma legal
superarão os que o fazem de forma ilegal.
No caso da Espanha, de acordo com o informe da OCDE (Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), os usuários de sistemas P2P
representam 1,1% do total de usuários desses sistemas no mundo (OECD, 2005); e,
de acordo com o último relatório da EGM (Enquete Geral dos Meios) na Espanha,
23,2% dos usuários espanhóis da internet utilizam algum sistema P2P para baixar
música (AIMC, 2005).
Então, quanto a esse fenômeno econômico, político e sóciocultural tão
recente e complexo, tanto em sua vertente off-line como on-line, é necessário que
se façam algumas distinções e que se considerem não apenas as interpretações da
própria indústria fonográfica, mas também as de outras instituições e pesquisadores.
É evidente que a aceitação de um mercado ilegal e paralelo ao legal
afeta a venda legal dos CDs, gera perda de empregos no setor da música e não
contribui com impostos para o setor público, e, por isso, a pirataria comercial é uma
atividade que deve ser combatida. Entretanto, também é evidente que a cópia não-
autorizada de produtos culturais muitas vezes beneficia setores sociais com escassos
recursos que, de outra forma, não teriam acesso a eles, levando em consideração
seus preços proibitivos.
Por sua vez, o estudo do impacto econômico e sociocultural da “pirataria
on-line” sobre a indústria da música é muito complexo e controvertido. Segundo o
relatório da OECD (2005), a queda das vendas de fonogramas nos últimos anos está

174 Juan C. Calvi – A indústria da música na Espanha e a “pirataria musical”


relacionada com uma multiplicidade de fatores, e a descarga de música pela internet
por si só não é uma causa determinante. Além dos fatores apontados com relação ao
declive do suporte CD, da substituição do mesmo por novos suportes digitais e da
pirataria comercial de CDs, há uma multiplicidade de fatores relacionados tanto com
as mudanças na oferta quanto com as transformações no comportamento da demanda
de música (Vogel, 2001).
A própria indústria da música, inclusive, indicou que o impacto da
descarga de música na internet é muito difícil de quantificar e enumerou outros
fatores adicionais para explicar a queda de vendas de música, tais como o esgotamento
de certos repertórios musicais, erros nas estratégias de marketing, promoção e
distribuição das gravadoras, e, fundamentalmente, o aumento da competição com
outros setores das indústrias culturais pelos recursos econômicos que as pessoas
destinam a lazer e entretenimento (OECD, 2005).
Um dos efeitos negativos que se deve levar em consideração acerca da
pirataria, tanto em sua vertente analógica como digital, não é precisamente a suposta
perda de lucro das grandes gravadoras e seus artistas e “estrelas”, mas sim a perda
de mercado dos pequenos selos e gravadoras, dado que com a pirataria se difundem
principalmente os produtos musicais de sucesso internacional, além disso, ainda há
a perda de empregos dentro do setor da música e a perda de impostos para o setor
público (Yúdice, 2002).
Se, por um lado, a pirataria coloca os CDs musicais ao alcance dos
setores com menos recursos econômicos, por outro, é evidente que isso não resolve
o problema fundamental da participação desses setores na produção cultural. Nesse
sentido, o acesso ao consumo cultural não soluciona a questão da diversidade na
produção cultural. Por isso, a pirataria não constitui “a solução” frente ao domínio
das majors (García Canclini e Moneta, 1999; Smiers, 2003; Yúdice, 2002).
Mesmo assim, as reações da própria indústria fonográfica promoveram
ainda mais as práticas de pirataria musical, tratando como criminosos os milhares
de usuários pela troca e por baixar música na internet e pela realização de cópias
privadas de CD, mas sem atender ao apelo desses usuários em relação à, dentre
outras coisas, escassa oferta musical alternativa e aos preços abusivos que as
gravadoras impõem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Certamente, a pirataria de produtos musicais, já presente no ambiente
off-line e multiplicada a uma escala extraordinária no ambiente on-line, transgride o
direito dos autores e criadores de administrar a distribuição e reprodução de suas

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.169-180 175


obras musicais; entretanto, é inquestionável que a organização oligopolista da indústria
da música e o sistema de copyright não facilitam a promoção desses direitos.
A solução para esse grave conflito de interesses não é defender uma
suposta “gratuidade” dos produtos musicais na internet, tampouco defender a restrição
ao seu acesso e, menos ainda, ser a favor da “criminalização” e da ação repressiva
contra milhares de cidadãos. Ao contrário, impõe-se a necessidade de um novo pacto
social que reconcilie o direito dos autores de viver de seu trabalho com o direito ao
acesso universal à cultura como um recurso de domínio público (Quéau, 2000) que
resulte em benefício dos criadores musicais, das pequenas e médias empresas
fonográficas e do público em geral, e não apenas em benefício das grandes companhias
fonográficas e das associações que as representam (Bustamante et alii, 2003).
Por último, a recusa absoluta às novas formas de distribuição, acesso e
consumo de produtos musicais por seu suposto atentado contra a propriedade
intelectual é uma manifestação mais da ideologia do “mercado perfeito”, que não
tolera o surgimento de espaços alternativos de acesso à produção musical, e, portanto,
de promoção e sobrevivência de artistas, criadores e pequenas e médias empresas
fonográficas.

TABELAS E GRÁFICOS

Gráfico 1: Estrutura do mercado fonográfico na Espanha, 2005

18,56%
Sony/BMG
28,42% Sony/BMG

Universal

EMI

Warner
Warner
19,26%
Universal Indies
EMI 17,46%
16,3%

Fonte: IFPI, 2005 e Promusicae, 2005

176 Juan C. Calvi – A indústria da música na Espanha e a “pirataria musical”


Tabela 1: Porcentagem dos repertórios nacionais nos dez principais
mercados fonográficos do mundo, 2003

Posição País Porcentagem de repertório nacional


1 EUA 93%
2 Japão 72%
3 França 60%
4 Alemanha 48%
5 Itália 48%
6 Reino Unido 47%
7 Espanha 46%
8 Austrália 26%
9 Canadá 22%
10 Holanda 19%

Fonte: OCDE, 2005

Tabela 2: Evolução das gravadoras na Espanha segundo


o número de discos lançados no mercado, 2000-2004

Discos lançados/Ano 2000 2001 2002 2003 2004


Mais de 200 15 17 19 17 13
De 30 a 200 71 60 67 60 60
Menos de 30 554 574 595 639 669
Fonte: SGAE, 2005

JUAN C. CALVI é professor da Universidade Rei Juan Carlos de Madri, na Espanha.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.169-180 177


NOTAS

1 Essas unidades compreendem os suportes físicos LP, single, cassete,


CD e DVD musical.

2 Entre os anos 2000 e 2001, tanto nos Estados Unidos quanto na União
Européia, os tribunais de competência correspondentes investigaram e concluíram
que as grandes companhias fonográficas chegaram a um acordo para impor preços
mínimos de venda às lojas varejistas.

3 “The term of piracy is generally used to describe the deliberate


infringement of copyright on a commercial scale. In relation to the music industry
(…) simple piracy is the unauthorised duplication of an original recording for
commercial gain without the consent of the rights owner.” (IFPI).

4 A Real Academia Espanhola é uma instituição especializada em lexicografia,


gramática, ortografia e base de dados lingüísticos.

178 Juan C. Calvi – A indústria da música na Espanha e a “pirataria musical”


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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____. Anuario SGAE de las artes escénicas, musicales y audiovisuales.
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financial analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.

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Disponível em: http://www.campus-oei.org/pensariberoamerica, acessado
em dezembro de 2003.

180 Juan C. Calvi – A indústria da música na Espanha e a “pirataria musical”


O discurso jornalístico e seus rituais
Alexandre Sebastião Ferrari Soares

Neste artigo, pretendo abordar de que forma os mitos de verdade,


objetividade, neutralidade e imparcialidade, construídos em torno do discurso
jornalístico, materializam-se na imprensa: quais são, em termos da produção de efeitos
de sentidos, os mecanismos usados para que eles se estabeleçam como próprios
desse discurso.
Usei, como exemplo, além do corpus anteriormente analisado (Soares,
2006a), composto por artigos publicados nas revistas semanais Veja e Istoé, na segunda
metade da década de 1980 (mais precisamente entre os anos de 1985 e 1990), que
abordavam questões sobre AIDS, sexualidade e a relação entre ser homossexual e
portador em potencial do vírus HIV, também artigos publicados nos jornais O Globo
e Folha de São Paulo, reportagens das revistas Época e Megazine e, finalmente, uma
notícia veiculada pelo Jornal Nacional.
Para organizar este artigo, elaborei duas questões que me ajudaram na
compreensão da construção desses mitos em torno da imprensa:
1) O que é que esperamos dos meios de comunicação?
2) Por que é que projetamos nesses veículos de informação um ponto
de vista de coisa pública quando se trata de uma empresa privada?

Acho importante destacar que, ao contrário do que pretende a


construção do discurso jornalístico, recusamos completamente, nós, analistas
do discurso, a concepção da linguagem como instrumento de informações que
existiriam ou poderiam ser definidas independentemente da linguagem. Ainda que
muitos jornalistas não acreditem num jornal desprovido de intencionalidade e
ideologias, no imaginário do leitor desses textos, as notícias veiculadas são
percebidas como representação do real (Soares, 2006b:14-15), portanto a
linguagem não é compreendida como efeito de sentido entre interlocutores, mas
como instrumento de comunicação de informação.
Comunicar não é uma inocente transmissão de saberes, mas a ação do
homem sobre o homem. Não estou querendo dizer, com isso, que a linguagem não
sirva para comunicar, mas que a comunicação é apenas uma parte visível do iceberg
(Gadet e Hak, 1993:26).
Devemos, então, para tentar responder à primeira questão, pensar um
pouco ainda sobre outras que tangem aquelas postas como próprias do discurso

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.181-196 181


jornalístico (e não menos importantes). Será que o mundo é o mesmo para todas as
pessoas? Será que podemos falar de uma realidade absoluta?
Acredito que um dos maiores problemas referentes à análise do discurso
jornalístico seja a incompreensão do que denomino versão da verdade, visto que, de
uma forma geral, no senso comum, faz-se alguma confusão entre a verdade
propriamente dita, como se fosse possível mostrá-la, e uma versão dela. A
incompletude é uma das características do simbólico. Não se pode supor a completude
dos fatos:
O ato de noticiar não é neutro nem desinteressado: nele se encontram,
entrecruzando-se, os interesses ideológicos e econômicos do jornal, do
repórter, dos anunciantes bem como, ainda que indiretamente, dos
leitores. (...) Se não há imparcialidade, se as notícias dadas significam
na medida dos interesses políticos momentaneamente em jogo e se é
inevitável que cada jornal interprete numa direção, então, como saber
o que aconteceu? Ou, “como é que se pode chegar à verdade?” (Mariani,
1999:102-103, grifos meus).
Informar, portanto, é recortar a partir de interesses próprios e construir,
assim, realidades: a notícia, o jornal, o anunciante, o leitor, as condições de produção
e a linguagem, como efeito de sentido entre interlocutores, vão interpretando o mundo
numa dada direção.
Em outras palavras, tem-se a impressão de que existe apenas um mundo
para todas as pessoas, esquecendo-se de que ideologia e história marcam-se na
linguagem e que, por isso, o que é dito não sai de qualquer lugar, mas é posição
discursiva diante de outras.
Antes de mais nada, é preciso esclarecer que, em AD, exterioridade
não se confunde com a idéia de realidade empírica. O que chamamos
de realidade é resultado da construção/rememorialização cotidiana de
concepções de mundo que não se inauguram nos sujeitos, mas que se
concretizam em suas práticas sem que haja percepção crítica deste
processo. A realidade, portanto, não é algo dado, um mundo externo,
mas, sim, algo que resulta da necessária significação com que o homem,
ser simbólico, investe suas práticas sociais e linguageiras (Mariani,
1998:27, grifos meus).
O texto de uma revista ou jornal (ou qualquer que seja o veículo de
comunicação) não é manipulador, sem sentido ou mentiroso, mas uma posição dentre
outras, com intenções etc., construindo realidades. Ele, o texto, também pode ser
manipulador, mentiroso etc., mas aqui não me interessa discutir se ele mente ou
manipula, mas estudar o mecanismo que faz o discurso jornalístico ser compreendido
como verdadeiro, objetivo, imparcial e neutro.

182 Alexandre Sebastião Ferrari Soares – O discurso jornalístico e seus rituais


A minha posição, como analista, não pode ser, portanto, a de concordar
ou não com o que é dito nesse meio de comunicação (posso até fazê-lo, mas não
estarei falando como analista do discurso), mas a de observar como os sentidos são
construídos e de que maneira se materializam. Para isso, não pretendo uma análise de
conteúdos: saber de que trata o texto, quais as idéias principais contidas nele, ou ainda
se ele está em conformidade com as normas da língua na qual se apresenta. Pretendo,
mais do que isso, uma análise capaz de identificar o processo de produção, o conjunto
dos mecanismos formais que produzem um discurso de tipo dado em circunstâncias
dadas (Gadet e Hak, 1993:61, 74).
Este trabalho vincula-se à teoria francesa de análise do discurso (doravante
AD). Os sentidos, a partir desta concepção, vão se estabelecendo através de já-ditos
ou já-construídos, ora retomando discursos em forma de paráfrase e reproduzindo
sentidos, ora em uma disputa acirrada de efeitos discursivos.
Cada grupo social tem seus valores, que se traduzem na forma como
vêem e julgam o mundo. A verdade, portanto, não está nem aqui nem em outro lugar.
Se procurarmos saber (através de documentos, por exemplo) como a Igreja católica1
se situa diante das diferentes formas de expressão do amor, é bem provável que ela,
como Instituição, nos dissesse que o amor verdadeiro só pode existir entre um homem
e uma mulher, por vários motivos que não nos interessam aqui. Por outro lado, se a
mesma questão fosse posta para um grupo de gays, lésbicas e transgêneros, a resposta
provavelmente seria outra. Qual dos dois grupos estaria com a resposta verdadeira?
Quem teria razão? Por que as respostas seriam diferentes? Que interesses estariam
representando?
O deputado estadual Edino Fonseca (Partido Social Cristão/RJ),
também pastor da igreja evangélica Assembléia de Deus, ao ser entrevistado pela
revista Época, em 15 de novembro de 2004, para falar do seu projeto de lei que
pretendia, através da fé e de algum dinheiro, curar os homossexuais e transformá-
los em heterossexuais, responde da seguinte maneira à pergunta sobre como
seria feito o tal tratamento:

Sou pastor evangélico da Assembléia de Deus e como freqüentador de


templos religiosos observei muitos homossexuais procurando ajuda.
Não só devido ao peso de consciência pelos pecados praticados, mas
querendo deixar a homossexualidade. Na Igreja, a alma dessas pessoas
é tratada, mas o problema delas está no psiquê (sic). Elas precisam de
tratamento psicológico. Nesse caso, para quem tem dinheiro, é só
pagar, mas o pobre não tem como resolver o problema e é dever do
estado ajudar a todas as pessoas (Revista Época, ed. 339, 15/11/2004,
grifos meus).

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.181-196 183


A homossexualidade é, segundo o pastor (representante de Deus e
representando uma visão cristã a respeito da homossexualidade), um peso que se
carrega na consciência pelo pecado de suas práticas.
Seguindo nessa mesma direção, o Vaticano publicou um documento de
12 páginas instruindo todos os políticos e religiosos católicos a se posicionarem contra
a união civil entre os homossexuais:2 por conta de que “O casamento existe somente
entre um homem e uma mulher (...) É sagrado, enquanto atos homossexuais vão
contra a lei moral natural”, e ainda considera a homossexualidade uma ameaça à
sociedade (grifos meus).
Este documento, “Considerações sobre as propostas de reconhecimento
legal das uniões entre homossexuais”, aprovado pelo Papa João Paulo II, foi elaborado
pela Congregação da Doutrina da Fé, comandada pelo cardeal alemão Joseph Ratzinger
(atual líder da Igreja católica) — entidade fundada no século XVI, conhecida como
Sagrada Congregação da Universal Inquisição ou Santo Ofício.
A verdade é uma versão da realidade a partir de intenções. Podemos
falar de uma verdade hegemônica (predominante), mas nunca da verdade em si. Não
é possível o acesso ao real sem um recorte ideológico. Os conflitos entre os segmentos
sociais renovam a categoria de verdade hegemônica: poderíamos dar muitos exemplos
sobre as verdades absolutas, ao longo da história, que perderam esse status e se
transformaram a partir de embates sociais, políticos, ideológicos.
A própria relação entre a Aids e os chamados grupos de risco, no início
da década de 1980, é um bom exemplo desses embates ideológicos e políticos que
envolvem as notícias veiculadas pela imprensa como se fossem representações da
realidade: os homossexuais, os usuários de drogas injetáveis e os haitianos eram,
segundo o CDC americano (Centro de Controle de Prevenção de Doenças),
considerados portadores em potencial do vírus HIV. Sem um maior conhecimento a
respeito do vírus ou das suas vias de transmissão, a abordagem epidemiológica,
classificando cada caso observado num grupo segundo fatores hipotéticos de riscos,
constrói os ‘grupos de risco’ homossexuais e drogaditos e, mais tarde, o dos haitianos,
por conta do Human T-Lymphotropic Virus (HTLV) estar presente no Caribe e por se
acreditar, na época, que esse vírus era o agente etiológico da Aids (Soares, 2006a:56).
A construção desses grupos é, portanto, realizada pela observação
limitada de casos e pelo isolamento das características comuns a esses casos, a
saber: a homossexualidade masculina, o uso de droga por via intravenosa e a origem
geográfica.
Os porta-vozes dos grupos indicados contestam prontamente essa
classificação. Acusado por representantes da comunidade haitiana nova-iorquina de

184 Alexandre Sebastião Ferrari Soares – O discurso jornalístico e seus rituais


veicular preconceitos raciais, o CDC retira esse grupo de suas listas em 1982.
Entretanto, as contestações provenientes de organizações homoeróticas ficam sem
efeito, e não se ouvem muitas vozes em protesto contra a inclusão do grupo
‘drogaditos’.
Vê-se, então, que o resultado, aparentemente de técnicas estatísticas
neutras (por exemplo, como a que o CDC produziu em relação aos haitianos), é
igualmente atribuído ao poder de negociação e de pressão de que dispõe cada grupo.
A descoberta do vírus, o conhecimento cada vez mais apurado de suas vias de
transmissão e a multiplicação de casos inclassificáveis questionam, portanto, a
legitimidade do que antes era tido como verdade absoluta em relação a Aids (Pollak,
1990:123).
No discurso jornalístico, não é diferente; silencia-se para produzir alguns
sentidos e evidenciar outros. Em cada veículo de comunicação existe um projeto
ideológico-político que determina o que pode ou não ser dito. Como mencionado
anteriormente, dizer tudo é impossível, não existe a completude dos fatos. Quando
um jornal/revista/rede de televisão etc. afirma que mostra a realidade ou que o seu
compromisso é com a verdade, com os fatos, está se utilizando de um recurso de
persuasão (mecanismo discursivo) e reforçando um dos mitos em torno da construção
do discurso jornalístico.
Segundo Hernandes (2006:27), os jornais reportam realidades filtradas,
resultado de um processo de três fases: (1) pinçagem ou escolha do que é importante;
(2) remontagem dos aspectos que interessam para criar uma sensação de realidade e
verdade; e (3) esquecimento ou negação do que é notado como sem importância na
situação retratada.
A falta de isenção não é exclusividade do discurso jornalístico. Ela se
dá, e não poderia ser de outra forma, a partir de um compromisso político com um
projeto ideológico ao qual se esteja vinculado, ou com uma ideologia a que se esteja
assujeitado. Professores e alunos falam diferente porque ocupam posições diferentes
na sociedade, assim como políticos de partidos distintos discursam de forma distinta:

Em outras palavras, um discurso é sempre pronunciado a partir de


condições de produção dadas: por exemplo, o deputado pertence a
um partido político que participa do governo ou a um partido da
oposição; é porta-voz de tal ou tal grupo que representa tal ou tal
interesse, ou então está “isolado” etc. ele está, pois, bem ou mal,
situado no interior da relação de forças existentes entre os elementos
antagonistas de um campo político dado: o que diz, o que anuncia,
promete ou denuncia não tem o mesmo estatuto conforme o lugar que
ele ocupa (Gadet e Hak, 1993:77, grifos meus).

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.181-196 185


Nem tudo pode ser dito e nem qualquer um pode dizer o que quiser.
Existem restrições em relação a quem diz e sobre o que é dito.
Um dos conceitos fundamentais da AD é o de condições de produção.
As condições de produção caracterizam o discurso, e assim o fazem na medida em
que remetem a:
(...) lugares determinados na estrutura de uma formação social, lugares
dos quais a sociologia pode descrever o feixe de traços objetivos
característicos: assim, por exemplo, no interior da esfera da produção
econômica, os lugares do “patrão” (diretor, chefe da empresa etc.),
do funcionário de repartição, do contramestre, do operário, são
marcados por propriedades diferenciais determináveis (Gadet e Hak,
1993:82, grifos meus).
Deve-se então levar em conta alguma coisa do exterior da língua para se
compreender o que é dito nela. A sua descrição não é suficiente para explicar
determinados fenômenos nos quais ela está envolvida. A memória das significações
de um discurso e suas condições de produção não são secundárias, mas constitutivas
da própria significação.
Como o discurso é considerado efeito de sentido entre interlocutores,
ou em relação às suas condições de produção, os sistemas de signos são tomados no
jogo das Formações Discursivas. As regularidades depreendidas nos enunciados (ordem
discursiva, posições discursivas) caracterizam então uma Formação Discursiva, que
é o que determina o sentido que as palavras adquirem a partir de uma posição dada
numa conjuntura, isto é, numa certa relação de lugares no interior de um aparelho
ideológico, e inscrita numa relação de classes. Um outro sentido vai caracterizar,
portanto, uma outra Formação Discursiva.
Foucault (2005) define da seguinte forma as regras de formação de
Formações Discursivas como:
No caso em que se puder descrever, entre um certo número de
enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre
os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas,
se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições
e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se
trata de uma formação discursiva (Foucault, 2005:43, grifos meus) .
A língua, portanto, é afetada pelo social, pelo histórico e
fundamentalmente pelo ideológico. Nenhuma formação social é homogênea, dadas as
relações de força existentes. Os sentidos colocados em circulação, aqueles produzidos
pelas instâncias de poder, podem ser considerados hegemônicos e produzir efeitos
ideológicos de unicidade.

186 Alexandre Sebastião Ferrari Soares – O discurso jornalístico e seus rituais


Do ponto de vista discursivo, falar de ideologia é deslocar esse conceito
para Formações Ideológicas. Estas,
as formações ideológicas comportam necessariamente, como um
de seus componentes, uma ou várias formações discursivas
interligadas que determinam o que pode e deve ser dito (articulados
sob a forma de uma arenga, um sermão, um panfleto, uma
exposição, um programa etc.) a partir de uma posição dada em
uma conjuntura, isto é, numa certa relação de lugares no interior
de um aparelho ideológico, e inscrita numa relação de classes.
Diremos, então, que toda formação discursiva deriva de condições
de produção específicas, identificáveis a partir do que acabamos
de designar (Gadet e Hak, 1993:166-167, grifos meus).
A noção de arbitrariedade ou convencionalidade definida pela AD é então
incompatível com aquela apresentada por Saussure, uma vez que é tida como motivada
pelo sistema de produção e caracterizada pelo funcionamento do discurso na produção
dos sentidos.
Um outro elemento compõe o quadro epistemológico do surgimento
da AD: Pêcheux considera a subjetividade do ponto de vista do sujeito dividido,
ou seja, do sujeito afetado pelo inconsciente, tal como Lacan, que faz uma releitura
de Freud, recorrendo ao estruturalismo lingüístico, numa tentativa de abordar
com mais precisão o inconsciente. Para Lacan, o inconsciente se estrutura como
uma linguagem, como uma cadeia de significantes latente que se repete e interfere
no discurso efetivo: o discurso atravessado pelo discurso do Outro, do
inconsciente (Mussalin e Bentes, 2003).
O sujeito do discurso não é aquele incapaz de operar mudanças no
sistema de signos, mas sim aquele que, ao produzir um enunciado, está produzindo
linguagem e, ao mesmo tempo, é reproduzido nela, embora se tenha a ilusão de que o
sujeito é fonte exclusiva de seu discurso. A AD esclarece que seu assujeitamento, isto
é, os enunciados que compõem seu discurso, estão inseridos em determinadas
Formações Discursivas e Instituições da qual ele é apenas porta-voz.
A teoria do discurso, portanto, “não é uma teoria do sujeito antes que
este enuncie, mas uma teoria da instância de enunciação que é, ao mesmo tempo e
intrinsecamente, um efeito de enunciado” (Maingueneau, 1993:33, grifos meus).
A AD não aceita que um enunciado possua apenas um sentido, mas
considera que os sentidos das palavras, das expressões ou dos textos são plurais, na
medida em que cada um advém de um discurso. O sentido é um efeito de sentido, de
maneira que a existência de determinada forma não garante a ocorrência de um
funcionamento do discurso específico, mas possibilidades de várias leituras, explícitas

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.181-196 187


ou não. O efeito de sentido dependerá da ocorrência de material verbal em condições
de produção definidas.
A AD não concebe que dada uma palavra, seu sentido seja óbvio, como
se estabelecido por convenção ou como se a palavra pudesse refletir a coisa. A mesma
palavra ou mesmo enunciado podem ter sentidos diversos, se pertencerem a Formações
Discursivas diferentes.
A linguagem é fundamentalmente dialógica, deve-se ressaltar que os
enunciados são produzidos em situações de interlocução também
constituídas pela história. Logo, o sentido não “pertence” a nenhum
interlocutor, mas é produzido, enquanto efeito, no discurso constituído
pelos/nos interlocutores em interação. Esse “dizer para alguém” é uma
prática social que funciona pelo imaginário: é o jogo de imagens
constituído em torno dos lugares de onde se fala que precisa ser
observado no processo histórico da produção de enunciados e de
sentidos (Mariani, 1998:31, grifos meus).
Dessa forma, o sentido da palavra é determinado pelo lugar ocupado
pelo sujeito, identificando a filiação deste a uma ou a outra Formação Discursiva.
Nem tudo pode ser dito, nem qualquer um pode dizer o que quer, mas
são as condições de produção que permitem ou não que algo possa ser “falado” e,
conseqüentemente, fazer o devido sentido.
A AD questiona, assim:
a) a existência de uma língua auto-suficiente;
b) a existência de um sujeito como unidade controlada pela razão,
totalmente consciente, controlador;
c) a existência de uma conjuntura uniforme, porque as sociedades são
divididas em classes ou grupos etc.

É, portanto, fundamental destacar que os enunciados são produzidos


em situações de interlocução constituídos pela história e que o sentido,
conseqüentemente, não é de nenhum interlocutor, mas produzido, como efeito de
sentido, no discurso que se constitui pelos/nos interlocutores.
O “dizer para alguém” é uma prática social que funciona pelo imaginário:
é o jogo de imagens que se estabelece a partir dos lugares de onde se fala e que
precisa ser observado no processo histórico da produção de enunciados e de sentidos.
Podemos, por exemplo, para entender melhor o jogo de imagens que se
estabelece em relação aos efeitos de sentido entre interlocutores, pensar em algumas
estratégias discursivas usadas nos meios de comunicação como efeitos de
distanciamento em relação ao que é escrito: raramente usam um sujeito explícito, mas

188 Alexandre Sebastião Ferrari Soares – O discurso jornalístico e seus rituais


a sua indeterminação, as aspas, os discursos direto ou indireto para indicar a voz do
Outro e, dessa forma, marcar a impessoalidade em relação ao assunto tratado. Evitam-
se os adjetivos e advérbios, já que caracterizam a visão de quem escreve a notícia.
Uma outra estratégia discursiva que produz como efeito de sentido o
distanciamento daquilo que está sendo veiculado é o que Souza (1997) chama de
moral cívica: o de se falar em nome da sociedade, em nome da família, em nome da
moral e dos bons costumes etc. Essa estratégia, além do efeito de filiação do ouvinte/
leitor com o que é dito, já que ele é parte dessa sociedade e, provavelmente, compartilha
dos valores sociais evocados, o locutor/escrevente não toma para si a responsabilidade
em relação ao que é dito/escrito, porque ele é apenas um canal de ligação entre os
valores sociais e o cidadão.
Essas estratégias, entretanto, não são capazes de mascarar os efeitos de
sentidos produzidos pelas Formações Discursivas e Formações Ideológicas às quais
o veículo de comunicação se insere. É como se o veículo estivesse apenas apresentando
a realidade com o distanciamento necessário e fundamental para reforçar o seu
compromisso com a verdade:
O discurso jornalístico constrói-se, dessa forma, com base em um
pretenso domínio da referencialidade, pois baseia-se em uma concepção
de linguagem que considera a língua como instrumento de comunicação
de informações. Decorrem daí vários efeitos constitutivos dos sentidos
veiculados como informações jornalísticas: objetividade, neutralidade,
imparcialidade e veracidade. (...)
Fica apagado para o leitor o fato de ter havido uma seleção das
notícias (a pauta), ficando igualmente apagado que as manchetes
também resultam de tomadas de decisão realizadas pelos editores e
assim por diante (Mariani, 2005, grifos meus).
O fato de se considerar importante algo que foi publicado pelo veículo
de informação por parte do leitor, porque no senso comum ficam apagadas as
tomadas de decisão realizadas pelos editores, cria um imaginário de verdade em
torno dos fatos abordados. Como diz Mariani, só pode ter sido divulgado porque
é relevante ou é relevante porque foi divulgado. Os interesses políticos, as editorias,
a obediência à pauta, as posições ideológicas são apagadas nesse imaginário em
torno do que foi dito.
Certa vez, no Jornal Nacional, a apresentadora Fátima Bernardes, ao se
referir aos atos do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, em relação à estatização de
empresas de eletricidade e de telecomunicações pelo Estado, usou o verbo “abocanhar”:
“O Presidente Hugo Chávez abocanhou mais uma empresa de eletricidade e
telecomunicações na Venezuela” (ou bem próximo disso), relatou a jornalista.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.181-196 189


O fato de a apresentadora usar a palavra abocanhar que, segundo o
Dicionário Eletrônico Houaiss, em uma de suas acepções, significa “obter alguma
coisa de forma ilegal, escusa, indevida ou pouco recomendável, fazendo uso de astúcia,
artimanhas, coação ou senso de oportunismo”, justifica-se pelas Formações Discursivas
e Formações Ideológicas às quais se vincula o meio de comunicação e,
conseqüentemente, determina o que a jornalista pode e não pode dizer em relação ao
assunto tratado, uma vez que ela representa, naquele momento, a emissora, portanto,
o que ela diz deve legitimar um determinado sentido e não outro.
A apresentadora não fala de qualquer lugar ou posição: o Jornal Nacional
é visto por milhares3 de brasileiros e ocupa na grade da emissora um lugar de destaque
em relação a sua programação diária. Milhões de reais estão, durante o programa,
sendo investidos pelos patrocinadores que são simpatizantes das Formações Discursivas
e Ideológicas e associam as suas imagens à imagem da rede de televisão.
O efeito de sentido que se quis legitimar com o uso da palavra
abocanhar poderia ser o de apontar a ilegalidade do ato e também de levantar
suspeita quanto à forma como ele foi realizado pelo governo da Venezuela.
Abocanhar não tem o mesmo sentido que estatizar. O governo estatiza, o Jornal
Nacional julga o ato, mas o julgamento se pretende neutro como se o compromisso
fosse o de apenas relatar os fatos. Silenciam-se as intenções do veículo de
comunicação porque o efeito de sentido do uso do verbo, por exemplo, não é o
de marcar uma posição entre outras em relação ao assunto tratado, mas o de
legitimar uma posição, como se fosse a única possível: a estatização das empresas
de eletricidade e telecomunicações é ilegal.
A revista Megazine, encarte do jornal O Globo, edição de 25 de outubro
de 2005, destinada aos adolescentes, trouxe em sua matéria principal (capa) uma
pesquisa sobre sexo casual entre adolescentes. Constatou-se que 25% dos jovens de
17 a 25 anos fazem parte da geração “Transei e esqueci o nome”.
Segundo essa pesquisa, realizada pelo Laboratório UniCarioca, 45% dos
jovens entrevistados disseram que sexo casual é normal: toda a matéria diz respeito à
relação sexual entre parceiros de sexos opostos. Alguns desses jovens, 17,08%,
disseram que já transaram sem perguntar o nome do parceiro:
Você conhece a garota na noite. É tudo tão fácil que não precisa
saber o nome para transar com ela. Provavelmente ela também não
sabe o meu – diz Fábio, de 18 anos, que ao contar suas aventuras
para os amigos cria apelidos para as garotas (grifos meus).
O mesmo comportamento, mas avaliações distintas. O que a imprensa
chama(va) de promiscuidade, no início dos anos 1980 e até o final dessa década,

190 Alexandre Sebastião Ferrari Soares – O discurso jornalístico e seus rituais


entre parceiros de mesmo sexo, agora é denominado aventura quando se trata de
parceiros de sexos diferentes. E não há qualquer valor pejorativo nessa denominação
(aventura), além, é claro, da banalização desses encontros sexuais. Esse
comportamento faz parte dessa geração e não há nada mais para se dizer além do que
foi constatado.
Nessa mesma reportagem da revista Megazine, um psicanalista e uma
psicóloga analisam o comportamento desses jovens e afirmam que o que acontece é
que eles vivem num mundo de consumo e que transferem para o parceiro o status de
mercadoria: “há uma falta de aproximação e intimidade. Nesse período de grande
experimentação, muitas vezes eles abrem mão de seus desejos para seguir uma tendência
do grupo”, diz o psicanalista.
Não há qualquer aspecto da moral cristã na avaliação do comportamento
desses jovens. Também não são analisados a partir de estatísticas médicas, como era
feito na década de 1980.
A responsável pela análise dos dados, Maura Cruz Xerfan, coordenadora
de marketing do laboratório, faz menção ao uso de preservativo, dizendo que “é bom
saber que 81,4% dos entrevistados não transam sem camisinha”. No entanto, não
manifesta qualquer nível de moralização em relação à pesquisa que relata.
As condições de produção são outras, os atores são outros, os lugares
foram ocupados por outros sujeitos: o que era um exemplo legítimo de promiscuidade
passou a ocupar o status de aventura.
O importante é que se perceba que a verdade, a neutralidade e a
imparcialidade são sempre negociáveis. E o efeito de sentindo atribuído ao que se
construiu como sendo o resultado de técnicas estatísticas, portanto imparciais e
objetivas, pode ser atribuído além do poder de negociação e de pressão de que dispõem
os grupos às condições de produção desses enunciados.
Em relação à segunda questão elaborada para a organização deste artigo
(por que é que projetamos nesses veículos de informação um ponto de vista de coisa
pública quando se trata de uma empresa privada?), sabemos que os pecados da mídia
são muitos. Os exemplos são freqüentes: é a rede de televisão que apóia um candidato
à presidência do país, distorcendo o noticiário (exemplo clássico, a edição do debate
entre Collor e Lula nas eleições para presidente da República em 1989); é o editor que
aceita a viagem paga pela empresa x e pelo hotel y e, na volta, indica essas empresas;
é o colunista que, em época de eleição, ganha dinheiro extra ao assessorar um político
sobre o qual publica algumas notas favoráveis etc., sem falar da questão da própria
política interna desses meios de comunicação: a ética jornalística sobre o conflito de
interesses é a ética da empresa.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.181-196 191


No espaço privado (nas empresas de comunicação), enfrentam-se
problemas que, em tese, pertencem à esfera pública (porque a independência editorial
corresponde à informação, que é de ordem pública). São normas éticas da empresa –
uma solução privada – que correspondem, em parte, a uma expectativa pública. A
empresa considera que, caso seus veículos percam a independência (seja lá o que
entendem por isso), seus negócios vão mal. E nada adiantaria termos jornalistas de
fino trato, se o dono do jornal, das rádios, das mídias etc. colocasse a emissora a
serviço de alguma idéia ou de alguém (Bucci, 2000:33).
A ética do canal de televisão, rádio, revista etc. é, como disse, a ética da
empresa de comunicação a partir de seus interesses, posição político-ideológica. A
empresa é um partido e fala, portanto, desse lugar. Seus interesses dão o tom dessa
ou daquela notícia. Não devemos, pois, nos guiar pela fé que cega e tomar como
verdade única ou absoluta o que lemos/ouvimos, pois, provavelmente, aquilo poderia
ter sido dito de uma outra maneira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acreditar em uma ação de modelagem das mentes, ou acreditar na
possibilidade de uma influência direta dos meios de comunicação sobre o homem, é
reduzi-lo. É negar que ele dispõe de recursos e instrumentos para filtrar as relações de
recepção de um produto qualquer da mídia.
Acreditar que o que ele ouve/lê ficará marcado como uma impressão
digital é acreditar também que a aquisição de conhecimentos e as operações mentais
acontecem por meio de simples esquemas de estímulo, aos quais são dadas respostas
previsíveis e automáticas. Isso não acontece:
A resistência, em termos discursivos, é a possibilidade de, ao se
dizer outras palavras no lugar daquelas prováveis ou previsíveis,
deslocar sentidos já esperados. É re-significar rituais enunciativos,
deslocando processos interpretativos já existentes, seja dizendo uma
palavra por outra (na forma de um lapso, um equívoco), seja
incorporando o non sense, ou simplesmente não dizendo nada
(Mariani, 1998:26, grifos meus).

Nenhum processo de assujeitamento é completo ou imutável. O sujeito,


no todo social, não ocupa apenas uma posição. Os mecanismos de resistência e
transformação (evolução) são constitutivos dos rituais ideológicos de assujeitamento
(Mariani, 1998).
Observar o uso das palavras e das imagens e comparar versões sobre
um mesmo assunto, em diversos meios de comunicação, são boas estratégias: além

192 Alexandre Sebastião Ferrari Soares – O discurso jornalístico e seus rituais


da observação de semelhanças e discrepâncias, o leitor/ouvinte disporá de informação
mais consistente. Essa ampliação de campo deve abranger, ainda, manifestações que
escapem do circuito dos grandes meios de comunicação: meios de comunicação
alternativos podem trazer pontos de vista sequer cogitados na grande imprensa.
Não tenho dúvidas de que as políticas de mercado dão direção às
abordagens dessa ou daquela notícia, mas precisamos de meios para discutir as
questões éticas, os projetos políticos e o tom daquele veículo de informação. Temos
pistas na materialidade lingüística porque nela se inscrevem a história e a ideologia.
Falar em liberdade de imprensa significa, até certo ponto, sustentar a
liberdade para as pessoas: a informação deixou de ser um privilégio de poucos, para
ganhar as ruas. No caso brasileiro, parte da imprensa foi decisiva na modernização
das instituições do país, na luta pelas eleições diretas, dentre outros processos
importantes da história do Brasil.

ALEXANDRE SEBASTIÃO FERRARI SOARES é doutor em Letras pela Universidade Federal


Fluminense e professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.181-196 193


NOTAS

1 Em Soares, 2006a, analisei textos religiosos, médicos, entre outros,


que tratavam da homossexualidade.

2 Partes do documento foram reproduzidas pelo jornal O Globo, em 1


de agosto de 2003, página 28, Primeiro Caderno – O Mundo – Vaticano contra
união gay.

3 Segundo a revista Veja, edição 1869, de 01 de março de 2004 em “A


guerra atrás das câmeras” de João Gabriel de Lima 101-108, o Jornal Nacional
é líder de audiência desde a sua estréia em 1969, com média de 43 pontos de
Ibope em 2004, o que corresponde a 68% dos televisores brasileiros sintonizados
no programa.

194 Alexandre Sebastião Ferrari Soares – O discurso jornalístico e seus rituais


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2000.
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HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico da língua portuguesa. Rio de
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196 Alexandre Sebastião Ferrari Soares – O discurso jornalístico e seus rituais


De consumidor a co-produtor:
o potencial das redes sociais
Marianna Taborda

O protagonismo de grandes conglomerados transnacionais no meio


comunicacional tem levantado discussões sobre como preservar a diversidade, as
identidades culturais e fomentar o desenvolvimento local. Quando a indústria condiciona
a cultura, surge o desafio de garantir que os indivíduos não sejam manipulados por
fins corporativos. Paralelamente, é preciso reconhecer o outro lado: a cultura também
exerce influência na produção.
Neste cenário, as Novas Tecnologias da Informação e Comunicação
(NTICs) apresentam a promessa de dar voz a expressões minoritárias, oferecer mais
autonomia às pessoas e incentivar a cooperação, constituindo-se como um meio para
resistências. Suas potencialidades, no entanto, esbarram na força contrária de interesses
privados, que cercam o acesso a bens e serviços na rede, reproduzindo suas dominações
no ambiente digital. Mesmo com novas possibilidades abertas, a exclusão se repete.
A desigualdade entre países, uns como produtores e outros como
consumidores, se reflete no mundo digital, assim como a disparidade social entre
classes mais e menos favorecidas. Entre as limitações do ciberespaço, está o caos
informativo, o predomínio da língua inglesa1 e da cibercultura, sobre outras que se
mantêm periféricas.
A era da Internet e da mundialização tem sido anunciada como o fim
das geografias. Isso não é verdade. A combinação da mundialização e
da Internet formam uma geografia própria, reconstruindo uma nova
hierarquia de territórios, ao redor de poucos centros motores e círculos
concêntricos de influência (Zallo, 2005:230).

Apesar das limitações, não seria recomendável ignorar os caminhos


democráticos que se abriram com as NTICs. Para Pierre Lévy (1999:26), a internet
tem os benefícios da comunicação interativa, da inteligência coletiva e do aumento
das conexões – o que não quer dizer que o ciberespaço seja a salvação. Como técnica
e fator condicionante, também não significa perdição.
Segundo Rámon Zallo (2005:239), as tecnologias não possuem virtudes
intrínsecas de desenvolvimento econômico nem de ampliação da democracia
participativa. São as interações entre a sociedade, o setor privado e instituições
públicas que podem configurar “redes de governança” e expandir a capacidade das

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.197- 211 197


pessoas, criando novas e melhores oportunidades. Sendo que isto requer fatores
infraestruturais, comunicacionais, além de políticas públicas pela garantia de acesso
e diversidade.
Este artigo busca analisar as alternativas trazidas pelas redes sociais
digitais e as influências destas ferramentas no comportamento dos indivíduos, que
podem assumir uma postura mais participativa, passando de consumidores a co-
produtores de conhecimento, mercadorias e até mesmo iniciativas sociais. Para tanto,
faz-se necessário entender as mudanças que o capitalismo tem atravessado, avaliando
tanto os riscos quanto as potencialidades desse novo contexto.

CAPITALISMO COGNITIVO E AS NTICS


O capitalismo não tem mais como eixo principal a reprodução de
mercadorias. No sistema atual, os vetores principais estão na gestão de conhecimento
e informação, que estrapolam o chão de fábrica e ultrapassam o manuseio repetitivo
das máquinas. Quando o trabalho torna-se imaterial, a inovação protagoniza cena. E a
questão vira: como inovar?
“De fato, a passagem do fordismo ao pós-fordismo pode ser lida como
a passagem de uma lógica da reprodução a uma lógica da inovação, de um regime de
repetição a um regime de invenção” (Cocco et alii, 2003;15). A inovação já existia no
período fordista, mas não era regra, pois o valor estava em dominar o tempo de
reprodução das mercadorias padronizadas e produzidas mecanicamente.
No pós-fordismo, a valorização se desloca para o conhecimento, o tempo
de sua produção, difusão e socialização, permitidas pelas NTICs. Vivemos na
“economia do conhecimento, na qual o saber se manifesta enquanto força produtiva
e fator de produção fundamental” (idem:11).
Apesar de estar profundamente ligado à inovação, o conhecimento, por
si só, não exerce a função de sujeito do predicado inovador. Buscando compreender
quem são os agentes da inovação e onde se encontram, os evolucionistas acreditam
que a resposta está nas empresas. A inovação nasceria a partir do empreendedor e do
acúmulo de conhecimentos relacionados à produção.
Em um sistema direcionado pela diferenciação é fundamental reconhecer
que muitas inovações surgem além dos domínios da empresa e dos laboratórios de
pesquisa. Despontam de aspectos organizacionais e institucionais, a partir da interação
em rede entre as empresas e diversos atores, como organizações, centros de estudo
e instâncias governamentais. O processo inovador não depende apenas de questões
tecnológicas. Pode começar e se difundir em instâncias exteriores à empresa, como o
“consumo e as redes sociais de relacionamento” (idem:14) .

198 Marianna Taborda – De consumidor a co-produtor: o potencial das redes sociais


No site Innocentive,2 por exemplo, estão reunidos cerca de 91 mil
cientistas de 175 países, trocando informações com empresas que oferecem
recompensas para quem solucionar seus problemas de pesquisa e desenvolvimento.
Desta comunidade já fazem parte cerca de 35 empresas da Fortune 500 — que
envolve as companhias mais bem-sucedidas dos Estados Unidos.
Atribuindo tamanha importância ao conhecimento, o capitalismo
cognitivo tem como epicentro a questão da propriedade. Os parâmetros da economia
industrial, no entanto, não servem à nova realidade. Ao contrário da mercadoria, o
conhecimento não se esgota ao ser consumido: é possível dar uma informação e
retê-la ao mesmo tempo. O consumo de conhecimento, em vez de destruí-lo, produz
novos conhecimentos.
Os bens saber e informação não apresentam mais as características
de exclusividade, de rivalidade, de divisibilidade, de cessibilidade, de
dificuldade de reprodução e de escassez que permitiam mercadorizar
seu uso, seu fruto, sua reprodução e, portanto, tornar efetivamente
aplicáveis seus direitos de propriedade (Boutang, 2001:33).

Com as NTICs, um produto é capaz de se aprimorar com o consumo,


inaugurando assim uma mudança qualitativa:
Objetos de consumo e ferramentas de trabalho ao mesmo tempo, elas
aceleram os processos de socialização da inovação, dos quais emerge
a figura de ‘usuário como inovador’. Na qualidade de usuários, somos
todos inovadores potenciais” (Cocco et alii, 2003:24).

No ciberespaço, os custos da produção de conhecimento tendem a


zero, e os meios estão nas mãos dos consumidores. Indivíduos divulgam informações
que não apareceriam na grande mídia, artistas aproveitam a eliminação de
intermediações formais e a inteligência coletiva pode ser aproveitada em prol de
interesses sociais. Sem dúvida, a internet dá lugar ao ativismo e tem o potencial de
ampliar a democracia, oferecendo serviços gratuitos, favorecendo a produção
independente, educação à distância e livre cooperação. É essencial, portanto, a criação
de acessos públicos à rede e o desenvolvimento de sites comprometidos com o bem
coletivo. Políticas públicas devem garantir estes pontos.
Por outro lado, a rede pode reforçar o poder e o controle de grandes
conglomerados, que se esforçam em elaborar novos modelos de negócio e limitar o
acesso a conteúdos e serviços, apontando para a dependência de outros intermediários,
que tentam controlar a comunicação.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.197-211 199


Na fábrica fordista era o salário que constituía um elemento de
comunidade do operário-massa. Na sociedade-fábrica do pós-fordismo,
a comunidade vem antes, ela constitui a base mesma da produtividade
da cooperação social produtiva. Quando no fordismo a extração de
valor se articulava a partir do salário, enquanto elemento de controle
da relação entre trabalho necessário e mais-trabalho, é o controle da
comunicação que permite a captura do valor gerado pela cooperação
social produtiva (Cocco, 1996:28).

Acessível a uma minoria, o ciberespaço tem refletido a hegemonia da


cultura americana, abrigando poucos sites que se dedicam a outras expressões culturais.
Há isolamento e sobrecarga cognitiva, com o acúmulo de informações irrelevantes,
como reconhece Pierre Lévy (1999:29).
Por sua mobilidade, a internet também transformou o trabalho, alargando
o tempo produtivo e invadindo o período do lazer. Se, por um lado, pode servir de
dispositivo de exploração, por outro, sua mobilidade permite modelos de trabalho
mais flexíveis e livres, como a produção em locais e horários de escolha própria.
Já no âmbito da vigilância, o ciberespaço possibilita o uso privado da
inteligência coletiva pela monitoração da navegação de usuários/consumidores. Temido
por alguns, até mesmo o monitoramento de dados serve de ferramenta útil para
organização do fluxo informacional, orientando os usuários a se aproximarem de seus
(possíveis) interesses, como as recomendações da Amazon, baseadas nos perfis de
compra, e as sugestões de música do Last FM, de acordo com o histórico de gosto
individual. Como técnica, a internet pode ser usada de diversas formas.
Uma técnica não é nem boa nem má (isto depende dos contextos, dos
usos e dos pontos de vista), tampouco neutra (já que é condicionante
ou restritiva, já que de um lado abre e de outro fecha o espectro de
possibilidades). Não se trata de avaliar seus impactos, mas de situar
suas irreversibilidades, às quais um de seus usos levaria, de formular
os projetos que explorariam as virtualidades que ela transporta e de
decidir o que fazer dela (idem:26).
Por abrigar perfis, comportamentos de consumo e por seu caráter
interativo, a internet também tem mudado a relação entre consumidor e empresa, já
que aumentou significativamente os pontos de contato de pessoas e instituições.

AS TRANSFORMAÇÕES DO CONSUMIDOR
As mudanças no capitalismo geraram um consumidor bem diferente
daquele que figurava na economia fordista, entre os anos 1920 e 1930. Longe de ser
passivo e alienado, o consumidor ganhou importância e, em contrapartida, precisa

200 Marianna Taborda – De consumidor a co-produtor: o potencial das redes sociais


assumir responsabilidades. Já é claro que, por meio do consumo, os indivíduos fazem
escolhas diretamente ligadas a questões identitárias, pois através dele definem suas
comunidades e estilos de vida. Aproximando consumo e cidadania, Néstor García
Canclini diz que consumo serve para pensar:
Quando se reconhece que ao consumir também se pensa, se escolhe e
reelabora o sentido social, é preciso analisar como esta área de
apropriação de bens e signos intervém em formas mais ativas de
participação do que aquelas que habitualmente recebem o rótulo de
consumo. Em outros termos, devemos nos perguntar se ao consumir
não estamos fazendo algo que sustenta, nutre e, até certo ponto constitui
uma nova maneira de ser cidadãos (García Canclini, 1995).

A partir dos anos 1960 até os 1990, os contornos do consumidor


começaram a tomar forma nas pesquisas de mercado e estudos de recepção, pois as
empresas perceberam que precisavam superar a padronização. Na economia atual, o
consumidor não apenas não é mais passivo como é co-produtivo. Com a ampliação
da capacidade comunicativa pelas NTICs, ele interage e aparece mais do que nunca.
Os consumidores hoje têm maior capacidade de interferência na
produção: tornam-se co-produtores. A esse novo tipo de ‘consumo
produtivo’ corresponde um novo tipo de trabalho, imaterial. O ‘trabalho
imaterial’ está caracterizado pelas operações de sentido e sobre sentidos,
voltado para a gestão de informações, exigindo que o trabalhador
empregue o máximo de informações no processo produtivo, fragilizando
inclusive a fronteira, por exemplo, entre trabalho e lazer. Sinaliza-se,
desse modo, para a crise das noções isoladas de produção e consumo:
passamos todos a experienciar a co-produção, a produção coletiva e/
ou em rede, advindo daí a parte mais significativa da mais-valia
(Herschmann e Pereira, 2002:8)

As transformações no consumo, associadas ao surgimento das NTICs,


fazem com que as organizações, especialmente as que atuam no espaço virtual, sejam
cada vez mais orientadas pelos consumidores. De acordo com Carlos Alberto Messeder
Pereira e Micael Herschmann, as empresas são encorajadas a apostar na interatividade
entre seus clientes.
Passa-se a enfatizar, nas organizações, não exatamente a gestão de
produtos, mas sim de clientes, consumidores ou co-produtores (em
função de sua maior ou menor capacidade comunicativa). O valor
agregado, mais do que associado a hardware e software, está associado
à relação com os clientes, à socialização de informações e conhecimento
(idem:8)

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.197-211 201


Giuseppe Cocco afirma que é a relação com a clientela que gera os
diferenciais de competitividade.
As empresas da mass customization não produzem bens materiais,
mas gratificações para os clientes. Os executivos insistem que não é
mais suficiente pôr no mercado bens mais performantes (isto é,
incorporando saber e conhecimento). Fundamental é a criação e gestão
da relação com a clientela (Cocco, 1996:25).

Segundo Shoshana Zuboff, professora da Harvard Business School, a


empresa, os gerentes, os produtos e serviços perdem seu lugar central para as
necessidades de cada pessoa. Para ganhar a confiança do consumidor, é preciso ser
transparente. “O valor do relacionamento depende também do conhecimento que se
tem daquilo que o público deseja. A internet viabiliza isso por proporcionar canais
para expressão e diálogo. A organização que adotar esse comportamento enriquecerá
antes das demais” (Zuboff, 2007).
A rede se mostra como um meio poderoso de conectar empresa e
consumidor, o que virou primordial para as corporações. Não é possível inovar sem
conhecer o consumidor. E nada melhor para conhecê-lo do que se relacionar com
ele. Redes sociais e blogs, por exemplo, são ótimos recursos para estreitar os laços
e manter relações mais freqüentes. De mãos dadas com a boa relação, viria a
fidelização, tão disputada nos dias de hoje.

CONSUMIDOR PRODUTIVO
Vivemos em uma economia estética, que valoriza a espetacularização
dos serviços, a customização de produtos e outras formas de sedução do consumidor.
Para seduzi-lo, faz-se necessário conhecê-lo. E as NTICs têm se apresentado como
um meio eficiente de se estabelecer essa relação. Mais do que isso: são capazes de
levar o consumidor à produção, criando meios viáveis para colaboração.
Se antes as empresas usavam as pesquisas de mercado para conhecer
seus consumidores, atualmente podem recorrer a processos mais dinâmicos e
constantes, seja por meio de blogs, fóruns ou redes virtuais de relacionamento. A
interação trazida pela internet permite que a relação entre empresa e cliente seja mais
freqüente e direta.
Conforme apontam os consultores Don Peppers e Martha Rogers,
algumas empresas já estão recorrendo às redes sociais para gerar inovação. Segundo
a dupla, cerca de metade das inovações da Procter & Gamble é gerada fora da
empresa. Buscando facilitar a conexão e o desenvolvimento de novas idéias vindas

202 Marianna Taborda – De consumidor a co-produtor: o potencial das redes sociais


do exterior da corporação, a Procter & Gamble publica diversas de suas patentes
no site yet2.com - um “mercado global on-line” que aproxima compradores e
vendedores para estimular a criação e adesão de novas idéias.
Os consultores afirmam que relatórios da Procter & Gamble
mostram que aproximadamente 45% de seus novos produtos, lançados nos últimos
cinco anos, vieram do contato com essas redes externas, o que dobrou a taxa de
inovação de produtos da empresa. Discorrendo sobre este fenômeno, chamado
“co-criação com clientes”, “inovação de código aberto” e “colaboração com o
cliente”, Peppers e Rogers citam também a National Semiconductor, que lançou
uma plataforma on-line para que seus clientes possam desenhar melhorias em
produtos existentes. Mensalmente, surgem cerca de 20 mil novas idéias.
Outra iniciativa seria a do site de pesquisa Hotspex, no qual os
consumidores apostam nas melhores idéias, podendo ser premiados pela empresa
caso haja adoção e, ao mesmo tempo, ganhar fama na comunidade.
O que de fato é compartilhada é a habilidade de desenvolver uma
rede social na qual tanto entusiastas quanto críticos podem interagir
com o grupo e com a empresa. São ferramentas de engajamento
que permitem que os clientes ativamente criem produtos e indiquem
como utilizarão esses produtos no futuro. Em contrapartida, a
empresa tem uma fonte constante de novas idéias, provenientes de
uma comunidade de milhares de clientes – uma fonte coletiva e
global de inteligência, em vez de um pequeno grupo de Pesquisa e
Desenvolvimento trancado em uma sala (Peppers e Rogers, 2007).

Reforçando o argumento de que é necessário apostar na interação


com os consumidores, por meio de ferramentas virtuais, a dupla cita uma pesquisa
da IBM com 750 CEOs. Questionados de onde vêm as idéias mais criativas, 36%
disseram vir de clientes, 41% responderam que surgiam de funcionários e apenas
14% apontaram o tradicional departamento de Pesquisa e Desenvolvimento. Fica
clara a vantagem de conectar em rede tanto o público interno quanto o externo
para pensarem cooperativamente.
Recentemente, a IBM desenvolveu a ferramenta Connections, 3 que
reúne funcionários de determinada empresa em uma rede social, permitindo a
visualização de seus perfis, habilidades, experiências e contatos. Com a promessa
de impulsionar a colaboração e a gestão do conhecimento dentro das empresas,
o produto permite que os usuários troquem informações com outros, podendo
até mesmo economizar custos, já que muitas questões são resolvidas,
internamente, com mais agilidade.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.197-211 203


Mas criar conexões dentro da empresa não basta para que uma
corporação esteja à frente das outras. É aconselhável oferecer meios onde os
clientes possam publicar suas impressões, e pelos quais desenvolvedores e con-
sumidores se comuniquem. Para alcançar competitividade, a inovação tem que ir
além dos produtos: “Ainda que um produto ou serviço detenha, intrinsecamente,
qualidade, se a experiência do cliente for pobre, é certo que ele migrará para
concorrentes” (idem).
Por falar em experiência, Joe Pine e Jim Gilmore acreditam que
vivemos na Economia da Experiência, ou seja, faz-se necessário causar sen-
sações memoráveis no consumidor para gerar envolvimento dele com a
empresa. Não basta oferecer o produto, mas sensibilizar o cliente. “As em-
presas que se resignarem ao restrito mundo dos bens e serviços perderão
importância. Para evitar esse destino, você precisa aprender a encenar sen-
sações férteis e atraentes” (Gilmore e Pine, 2001:36). A economia, então,
fica cada vez mais espetacular – o que pode ser refletido na existência de
restaurantes temáticos, cafés caros em ambientes sofisticados e parques
como a Disney.
Publicitários e marqueteiros buscam inovar na marca, na embalagem
e no contato com o cliente, recorrendo a fatores culturais e aspectos simbólicos
relevantes para os consumidores. Percebe-se que não só a indústria afeta a cultura
como a cultura condiciona a produção, pois a economia não pode mais ignorar
valores, hábitos e códigos dos consumidores. Resta refletir se estes valores e
hábitos já não seriam frutos de dominações.
A cultura, na maior parte das vezes pensada como produto, é um
elemento importante no processo produtivo. Pesquisadores, como Paul Dugay,
começam a vê-la como fator infra-estrutural – ao contrário de Marx, que a colocava
na superestrutura. A produção, assim como o consumo, certamente não é mais a
mesma.

O CÍRCULO VIRTUOSO
Segundo a diretora geral do e-bay na Espanha, Maria Calvo, a
passagem do usuário de uma postura consumidora para produtora é estimulada
estrategicamente pela empresa. Para o e-bay, o cenário ideal é aquele em que o
usuário passa a produzir ofertas em vez de apenas consumi-las. Neste caso, a
evolução comportamental se dá da seguinte forma: primeiro, o visitante navega
pelo site; em seguida, se registra; depois, consome ofertas da rede; até que produz
ofertas; e, por último, recomenda o e-bay.

204 Marianna Taborda – De consumidor a co-produtor: o potencial das redes sociais


Em uma lógica semelhante, por sinal, funciona a Wikipedia, cujos verbetes
são publicados pelos próprios usuários. As vantagens de estimular que as pessoas se
tornem mais produtivas são claras: a rede passa a concentrar mais criatividade,
diversidade e envolvimento. Sem contar que quanto mais constante for a alimentação
do conteúdo, melhor para a empresa e para os usuários, de forma geral.
Uma pesquisa da Forrester,4 que analisou o comportamento on-line de
consumidores adultos americanos, aponta que uma minoria (13%) pode ser
reconhecida como Criadora – ou seja, aquela parcela da população que alimenta a
internet, mantendo blogs, sites ou publicando conteúdo na rede. Enquanto isso, 52%
são Inativos e 33% permanecem como Espectadores, lendo, ouvindo música ou
assistindo a vídeos. O desafio é, portanto, inverter essa pirâmide, gerando ambientes
propícios para a colaboração.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.197-211 205


REDES DE VOLUNTARIADO
Passando o foco para o voluntariado, torna-se ainda mais valioso que as
pessoas assumam posturas criativas, sendo menos reativas e dependentes. Tal
posicionamento implicaria em não apenas consumir vagas de trabalho voluntário
oferecidas pelas instituições formais, mas ter autonomia de criar e distribuir
oportunidades de atuação voluntária, por conta própria. Como há uma discrepância
entre a quantidade de instituições e o número de pessoas que desejam atuar como
voluntárias, é preciso oferecer outras alternativas de engajamento voluntário, além
daquelas geradas pela intermediação formal.
Publicada em 2000, a pesquisa5 Doações e Trabalho Voluntário no Brasil
constatou que nada menos do que 60,5% dos adultos brasileiros estariam dispostos a
“trabalhar como voluntário se soubesse onde poderia ajudar” (Landim e Scalon, apud
Ayres, 2003:12). Naquele ano, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), a população brasileira – hoje calculada em 189.678.451 habitantes
– somava 169.799.170, sendo 64,55% representados por pessoas entre 15 e 64 anos
e 5,85% por maiores de 65 anos.6
Supondo que a disposição dos brasileiros de ajudar não tenha se alterado
consideravelmente desde então, vale considerar um engasgo, levantado na dissertação
de mestrado “Informação, Voluntariado e Redes Digitais”, em consideração à pesquisa
citada:
Este percentual (60,5%) corresponde a um contingente de 53 milhões
de pessoas, aproximadamente. Mas se colocarmos este dado ao lado
do número de instituições sociais formalmente registradas no Brasil –
algo em torno de 200 mil – temos um gargalo. Mesmo sabendo da
limitação que simples números trazem à análise de um ambiente social
complexo como este, não podemos ignorar a discrepância entre estes
dois dados (53 milhões de potenciais voluntários / 200 mil ONGs) e
verificar que há aqui um grande estrangulamento: em uma conta simples,
percebe-se que a perspectiva organizacional não é suficiente para o
desenvolvimento do voluntariado no Brasil e é preciso apresentar outras
visões e ampliar conceitos, limites e alternativas para que esse potencial
se desenvolva (Ayres, 2003:12).
Apresentando dados atualizados, o estudo As Fundações Privadas e as
Associações Sem Fins Lucrativos no Brasil7 revela que, em 2002, o país abrigava 276
mil fundações e associações sem fins lucrativos. Este gargalo, que envolve 53 milhões
de potenciais voluntários e apenas 200 mil ONGs, aproximadamente, pode ser reduzido
com auxílio de redes sociais digitais. Permitindo a interação ágil e informal entre
pessoas e organizações, as redes são ambientes extremamente propícios para a
fomentação do voluntariado.

206 Marianna Taborda – De consumidor a co-produtor: o potencial das redes sociais


A rede brasileira V2V (Volunteer-to-Volunteer), desenvolvida pelo Portal
do Voluntário,8 reúne cerca de 50 mil usuários, entre voluntários e organizações. Os
integrantes da rede (aberta e gratuita) interagem em torno do voluntariado, podendo
postar ou buscar oportunidades de trabalho voluntário e doação. Com a função de
promover a aproximação entre quem quer ajudar e quem precisa de ajuda, sem a
necessidade de intermediações formais, a ferramenta foi inspirada no padrão P2P
(Peer-to-Peer) e concebida na dissertação de mestrado Informação, Voluntariado e
Redes Digitais9 (Ayres, 2003), apresentada à UFRJ.
Esta tecnologia veio fortalecer a missão do Portal do Voluntário, nascido
em 2000 para promover o voluntariado no país, fruto de uma iniciativa do Programa
Voluntários da Comunidade Solidária (1997), da Rede Globo de Televisão, Globo.com
e da IBM Brasil. Atualmente, a sustentabilidade do Portal do Voluntário vem do
desenvolvimento e manutenção de redes customizadas para empresas que desejam
fomentar seus programas de voluntariado corporativo. Com acesso restrito a
funcionários, no caso de redes corporativas, o V2V está disponível nos portais de
voluntariado da IBM, Embratel, CPFL, Embraer, Banco Real, Itaú, Vale do Rio Doce,
HSBC, Alcoa, Vivo e Nike.10
Após ter se consolidado no Brasil, o Portal do Voluntário firmou,
recentemente, uma parceria com a rede de voluntariado Haces Falta,11 da Espanha,
para criação do V2V Network, uma rede de voluntariado global. Contando com o
apoio financeiro e intelectual da Omidyar Netwok12 (criada pelo fundador do e-bay) o
projeto prepara sua expansão para outros países, com acesso aberto e gratuito.
Ao visibilizar exemplos de voluntários e experiências, a rede é capaz de
inspirar a atuação de outras pessoas, por meio de um processo viral. Além disso,
serve de ferramenta de comunicação para que indivíduos comuns divulguem suas
iniciativas sociais, peçam ou ofereçam apoio, por conta própria. Processos colaborativos
em rede são tratados por Steven Johnson, ao analisar a relação de vizinhança e
cooperação das células:
As células baseiam-se fundamentalmente no código de DNA para seu
desenvolvimento, mas também precisam de um sentido de lugar para
cumprir sua tarefa. Na verdade, o código é totalmente inútil sem a
habilidade da célula para determinar seu lugar no organismo total, uma
façanha conseguida graças à estratégia de prestar atenção às vizinhas.
(...) A célula olha em volta para as vizinhas e vê que todas estão
empenhadas na construção de um tímpano ou de uma válvula do
coração, o que a leva por sua vez a trabalhar na mesma tarefa
(Johnson, 2003:63).

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.197-211 207


Para Matt Ridley, autor de livros de divulgação científica, a grande beleza
do desenvolvimento embrionário é que ele segue um processo totalmente descentralizado.
“Como cada célula do corpo carrega uma cópia completa do genoma, nenhuma delas
aguarda instruções ditadas por autoridades, cada uma age com sua própria informação e
os sinais que recebe das vizinhas” (Ridley apud Johnson , idem).
Na perspectiva de Johnson, a observação de exemplos de ação serve
de estímulo para a cooperação, sem a necessidade de uma força de comando. Também
no voluntariado, tornar visíveis exemplos de ação é estimular a adesão de mais pessoas.
Assim, o V2V percebeu que seria interessante tomar o mesmo desafio
proposto pelo e-bay: estimular que os usuários passem de consumidores a produtores
de oportunidades de voluntariado. A dinâmica ideal da rede seria aquela que começa
com a visita, passa pelo cadastro, se firma na adesão à atividade voluntária e culmina
na criação de oportunidades de voluntariado. Em conseqüência, viria a recomendação
da causa.

A rede social digital possibilita que um círculo virtuoso se estabeleça no


voluntariado. Conectados com outros voluntários, os indivíduos percebem que podem
ser protagonistas de ações sociais. De voluntários passam também a promotores do
voluntariado, gerando um terreno de troca, sem dúvida, mais fértil.

MARIANNA TABORDA é mestranda em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da


Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

208 Marianna Taborda – De consumidor a co-produtor: o potencial das redes sociais


NOTAS

1 Ver dados estatísticos em www.internetworldstats.com/stats.htm

2 http://www.innocentive.com

3 http://www-306.ibm.com/software/lotus/products/connections/

4 http://blogs.forrester.com/charleneli/2007/04/forresters_new_.html

5 “(...) foi utilizada uma amostra estratificada e representativa da população


brasileira com 18 anos ou mais, que vivem em cidades de mais de 10.000
habitantes, contando com um total de 1.200 entrevistas em domicílios”
(Landim e Scalon, apud Ayres, 2003)

6 Dados coletados em http://www.ibge.gov.br/brasil_em_sintese/default.htm

7 Lançada em dezembro de 2004, pelo Instituto de Pesquisa Econômica


Aplicada (Ipea) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
em parceria com a Associação Brasileira de Organizações Não-
Governamentais (Abong) e o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas
(Gife). Acessível em: www.abong.org.

8 www.portaldovoluntario.org.br

9 www.portaldovoluntario.org.br/press/uploadArquivos/109692420921.pdf

10 O endereço dos portais corporativos de voluntariado estão reunidos em


www.portaldovoluntario.org.br/site/pagina.php?idconteudo=285

11 www.hacesfalta.es

12 www.omidyar.net

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.197-211 209


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciência da
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da Tecnologia (IBICT) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
(CNPq). Rio de Janeiro, 2003.
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uma Rede Organizacional Baseada no Fluxo da Informação. Artigo publicado
no DataGramaZer, do Instituto para Adaptação a Sociedade da Informação
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(CETIC.br) - http://www.cetic.br/

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.197-211 211


O desejo como lei:
uma análise do cinema de Pedro Almodóvar
Henrique Codato

Na época em que o cinema era novidade, em que a reprodução de


imagens em movimento era coisa surpreendente; quando a existência mesmo do
cinematógrafo era um problema, dispontava o que Metz (1994:13) chama de crítica
ou análise cinematográfica. Mesmo que ela tenha reconhecidamente um caráter muito
mais filmográfico que cinematográfico, essa atividade teórica de descrever o filme
por meio de uma observação fundamentada no conceito de “impressão de realidade”,1
tem como objetivo entender o todo pela parte, o meio pelo fim, o próprio cinema pelo
filme, num sistema no qual metáfora e metonímia – ambos elementos representacionais
– tentam estabelecer uma reflexão sobre a imagem cinematográfica.
Tomamos como premissa essa relação analogicamente construída
entre o cinema e o filme, mas buscamos, entretanto, estendê-la além da dualidade
do dispositivo e da projeção. Nossa idéia inicial é a de que tanto na dinâmica
interna como externa do filme – ou seja, tanto dentro como fora da narrativa
fílmica – uma espécie de “jogo de sedução” 2 é instituído, e que esse jogo pode
servir como elemento-chave na elaboração de uma Teoria Fílmica. Gostaríamos
que o termo sedução fosse compreendido além do seu senso comum, que o
define, segundo o dicionário Aurélio (1988) – incluir referência completa na bi-
bliografia, como o ato de atrair, encantar ou fascinar, pretendemos que ele seja
interpretado aqui como “o ato de captar o desejo do outro, dando seu próprio
desejo como representação”. 3
Como podemos observar, tal definição apresenta em sua composição
semântica uma relação complementar entre dois termos: o desejo, que assume o papel
simbólico de objeto, e a representação, noção atrelada ao próprio conceito de imagem,
e que serve, vista sob esse prisma, como produto de uma transformação efetuada
pela noção mesmo de alteridade. De fato, essas duas terminologias e sua relação
servirão como base referencial na construção de nossa tese.
Este artigo é fruto de uma reflexão sobre o cinema contemporâneo
espanhol, representado aqui por meio de duas produções: A lei do desejo (La ley del
deseo, 1986) e Má educação (La mala educación, 2004), ambas de Pedro Almodóvar.
A relevância desse cineasta no cenário internacional, a repercussão de suas obras e a
pertinência temática de seus filmes frente a nossa proposta teórico-metodológica
servem para justificar sua escolha como corpus de nossa análise.

212 Henrique Codato – O desejo como lei: uma análise do cinema de Pedro Almodóvar
A Espanha sempre ganhou a representação de país quente, misterioso,
sensual; lugar onde se cruzam diversas culturas e etnias.4 A noção de desejo sempre
permeou a cultura hispânica, manifestando-se, na ficção, por meio de personagens
como Don Juan5 e Carmen,6 por exemplo. A narrativa picaresca,7 com seus anti-
heróis, sua falta de intenção moralizadora e seu estilo esperpêntico8 ganha lugar de
destaque na literatura espanhola. Nas artes plásticas, sublinhamos a pintura subversiva
e obscena de Goya9 e a excentricidade das obras de Dalí. No canto e na dança, temos
o flamenco, com seu toque sentimental, intenso e choroso e seus movimentos que
simulam uma conquista amorosa. Finalmente, nas artes cênicas, aparecem nomes
como o de García Lorca, com seu teatro poético e obsessional, 10 e no cinema,
destacamos o audacioso Luis Buñuel, o metafórico Carlos Saura e o próprio Almodóvar,
entre tantos outros artistas que utilizam o desejo e a sedução como fonte de inspiração
em suas artes.
O objetivo maior deste artigo é o de mostrar que as definições de desejo
e de imagem guardam diversas semelhanças semânticas e discursivas e que tanto um
como outro são representações de uma ausência e utilizam a noção de alteridade e de
olhar como fundamentação. É claro que essa analogia não é novidade, como tentamos
provar na primeira parte de nosso trabalho, mas propomos que ela seja utilizada como
ferramenta teórico-metodológica na intenção de analisar um “gênero”11 de cinema
que apresenta o desejo tanto em sua forma como em seu conteúdo, desejo que se
exprime como sujeito e que se deixa expressar como objeto, seduzindo seu espectador.

CINEMA, IMAGEM E ESPECTADOR


Diversos modelos de análise, construídos em sua maioria sob influência
do pensamento estruturalista, entre final da década de 1960 e início dos anos 1980,
buscam essencialmente na concepção psicanalítica de desejo12 um norte para refletir
sobre a relação espectador-personagem-filme-dispositivo cinematográfico.
Para Metz (1977), o espectador é um olhar. Contudo, uma identificação
entre esse olhar e a câmera e posteriormente o personagem se faz necessária para que
os códigos de linguagem do filme ganhem sentido. Essa identificação – que, segundo
Tortajada (1999), determina um efeito de sedução – também é condição para que o
desejo se manifeste. Em suma, para o autor, toda imagem cinematográfica encontra
seu significado no registro imaginário, e esse encontro faz com que o espectador,
alteridade fílmica por excelência, questione seu papel de observador, provocando
uma espécie de processo identificatório, seja com a atividade espectatorial, o que ele
chama de nível primário, seja com elementos diversos da própria imagem, num nível
secundário.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.212-232 213


Oudart (1969), a partir de uma reflexão sobre a obra de Bresson, postula
que, no quadro de um enunciado cinematográico articulado em campo e contra-
campo, surge uma ausência que é representada pela presença de alguma coisa ou de
“um alguém”, batizado pelo autor de “O Ausente” (l’Absent). O campo ocupado por
essa presença, um terceiro campo, transforma-se então no campo do imaginário e é
nesse “lugar fílmico” que o significante encontra um eco para se ancorar
definitivamente no campo fílmico. Como exemplo da manifestação dessa ausência,
podemos citar o cinema de Antonioni, mestre dos silêncios e dos vazios, que,
contrariamente ao que poderíamos imaginar, são repletos de significação, tanto na
forma quanto no conteúdo, servindo como elementos de “conexão” entre o espectador
e a narrativa.13
Por sua vez, Baudry (1978) aproxima a situação do espectador
cinematográfico do lugar dos homens acorrentados do Mito da Caverna de Platão. A
imobilidade é utilizada para justificar tal analogia, também característica da criança
que acaba de nascer e do sujeito que sonha. Nessa perspectiva, a tela de cinema seria
simbolicamente o útero da mãe, para o qual o espectador desejaria retornar.
Objeto de interesse de ciências como a Psicanálise, mas também da
Sociologia, da Antropologia, da Comunicação e da Semiologia, o cinema apresenta
distintos contornos e diferentes possibilidades de observação, e talvez seja essa sua
grande riqueza: oferecer infinitas formas de abordagem. Assim, como objeto, o cinema
é inesgotável, analisado em suas diversas dimensões – mecânica, psicológica, social,
cultural, estética – e em seus diferentes aspectos – fílmico, temático, narrativo,
representacional – que se desdobram e que permitem a elaboração do que chamamos
de “teorias do cinema”, tão ricas em número e forma como os estilos e gêneros de
filmes apresentados nas salas de cinema.
Na construção de um cinema narrativo, a imagem em movimento e o
som formam o que consideramos sua matéria-prima. O conteúdo narrativo ou o que
a semiologia chama de significado é o que compõe e define a história do filme, que
apresenta um início e um fim, um tempo e um espaço próprios,14 que formam um
“pseudo-mundo”, um universo fictício no qual todos os elementos se reúnem dando
a impressão de uma totalidade uniforme (Aumont, 1994:80). Aí está a definição de
diegese, uma das maneiras, segundo o pensamento aristotélico, de apresentar a ficção;
uma espécie de técnica narrativa que serve como modelo na definição desse universo
particular criado pela interação imagem-som.
Uma imagem pode ser entendida como a representação de um objeto
determinado que não está lá realmente; a presença de uma ausência. Conectada ao
mundo da memória e do souvenir na concepção bergsoniana15 ou utilizada como

214 Henrique Codato – O desejo como lei: uma análise do cinema de Pedro Almodóvar
forma de apreensão do mundo na fenomenologia de Merleau-Ponty (1976), a imagem
pode ter um valor estético ou epistemológico, de representação ou de simulacro.16
Como afirma Tortajada (1999), a partir da função enganadora da imagem, ligada à sua
qualidade de “parecer ser”, ela seduz; e o ato de seduzir implica sempre em aceitar a
existência do papel fundamental do espectador.
A experiência estética requer um receptor que a vivencie, que com-
plete sua significação, que a interprete, que lhe construa um sentido. Na verdade,
o termo “espectador” deve ser aqui compreendido como plural, pois não existe
uma única maneira de compreendê-lo ou de delimitá-lo e talvez as maneiras de
observá-lo sejam tantas quanto às formas de observar o cinema. Ele designa uma
determinada população,17 é claro, mas propomos que ele seja entendido aqui como
um lector in fabula (Eco, 1979), sujeito ideal que mantém com o filme uma expe-
riência individual – e portanto subjetiva – compreendida em seus níveis afetivo,
psicológico e estético.
O sujeito-espectador serve como fator modificador da ordem dual da
imagem, como explica Tortajada (1999) em sua análise sobre o cinema de Rohmer.
Ele traz um terceiro olhar, termo que explicaremos melhor posteriormente, compondo
uma tríade no jogo estabelecido pelo eixo-de-ação18 fílmico e assumindo a posição de
“sujeito desejante”, onipresença imperceptível que condiciona o ato mesmo de seduzir.
Como exemplo dessa apreciação, Barthes (1980), ao refletir sobre a
fotografia, faz oposição a duas maneiras de apreender uma (mesma) imagem,
construindo um modelo de análise. A primeira, que ele chama de studium, refere-se
à atividade de questionar a informação contida na foto por meio de seus signos
objetivos e seus códigos intencionais. A segunda, por sua vez chamada ponctum,
inquire sobre as associações subjetivas que compõem a imagem, traduzindo-a em
objeto do desejo. Essa segunda forma de apreensão assume códigos distintos e nem
sempre intencionais, e introduz a noção de alteridade no processo, pois ao transformar
a imagem em objeto de desejo, impõe-se um elemento novo: a presença de um mediador.
É justamente essa mediação que vem a compor um dos argumentos que nos interessará
neste artigo.

O DESEJO
Desejar – desiderare, em latim – tem sua origem etimológica na palavra
sidus (estrela), siderare, que significa conjunto de astros ou estrelas; uma constelação.
Di Giorgi (1990:133) explica que o termo considerare referia-se, na Roma antiga, à
atividade de contemplar os astros e buscar nessa contemplação uma solução para
eventos futuros. Uma vez que os astros respondiam negativamente aos anseios daquele

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.212-232 215


que os observava, dizia-se então que tal sujeito desistira dos astros, e é essa desistência,
esse abandono, essa ausência de certeza que traduz o termo desiderare.
“Desejar” é, portanto, lamentar uma ausência. A marca dessa carência
ganha diferentes contornos e é explicada de formas distintas por diversas correntes
ao longo da História do Pensamento Ocidental. Platão condena o desejo físico e sugere
que o verdadeiro desejo deve servir de motor na busca da verdade. Segundo o filósofo,
os desejos do corpo servem apenas para perturbar a tranquilidade da alma. Já a moral
epicuriana, que vê no prazer o bem e na dor o mal, reduz o desejo às necessidades
naturais biológicas – a harmonia do corpo, o sono e o alimento – e as afirma como
única forma de conquistar a felicidade. Ainda no discurso filosófico, para Espinosa e
Hobbes o termo desejo (desiderium19) é explicado como o amor do que falta, enquanto,
para Hegel, desejo é a afirmação abstrata de si pela negação imediata do que é o outro
(Chauí,1990:24).
No discurso religioso judaico-cristão, o desejo vem construir a gênese.
É o desejo de conhecer o bem e o mal, de “ser como Deus” que faz com que Eva,
tentada pela serpente, dê de comer do fruto a Adão, pois o fruto era bom e a árvore,
desejável.20 Sublimar o desejo físico e transformá-lo em fonte de força espiritual é o
objetivo dos santos. O corpo torna-se, assim, um objeto de sofrimento e a sublimação
desse desejo dá lugar a um gozo místico, por vezes manifesto pelo exercício da
escrita, como é o caso de Santa Tereza d’Avila,21 no qual Deus, o eterno ausente,
ocupa o lugar da alteridade.
A partir de sua definição psicanalítica, as noções de desejo e de memória
se entrelaçam, e é essa interação que permite que o próprio desejo se constitua como
temporalidade. Assim, a insatisfação é protelada indefinidamente, deslocando-se a um
tempo-espaço imaginário e simbólico – também chamado tempo do mito.22 Segundo
Freud (1999), desejo é o impulso de recuperar a primeira experiência de satisfação,
para sempre perdida e jamais recuperável.
Nascido de uma perda irreparável do objeto proibido pela censura (ou
pela Lei, instância simbólica), o desejo é a busca indefinidamente repetida
dessa perda que não cessa de ser presentificada por outros objetos,
sob aspectos aparentemente irreconhecíveis, procurando burlar a
censura imposta ao desejante e ao desejado (Chauí, 1990:25)
Para falarmos do desejo freudiano, é necessário abordar noções como a
de sonho, de inconsciente e de identificação. O sonho seria, segundo Freud, a realização
de um desejo reprimido. Tal desejo, em sua essência infantil23 e sem origem real
precisa,24 é despertado pela consciência, que paradoxalmente é motivada pela
necessidade da satisfação desse desejo, o que só poderá acontecer, entretanto, com a

216 Henrique Codato – O desejo como lei: uma análise do cinema de Pedro Almodóvar
intervenção do outro, da alteridade. O inconsciente, palco das pulsões da personalidade
e reservatório da libido e da energia psíquica, é então ativado e passa a representar
esse desejo por meio de um sistema narrativo, por vezes desconexo, mas que apresenta
uma estrutura própria, construindo assim uma forma de linguagem.25
Ainda segundo o pensamento psicanalítico freudiano, o sujeito humano,
em seus primeiros meses de vida, encontra-se num estado de relativa indiferença, no
qual a separação entre sujeito e objeto – ou o “eu” e “o outro” – ainda não é efetivo
(Aumont et alii, 1983:174). Uma vez iniciada essa separação, ocorre o que Freud
chama de identificação primária; primeira relação do sujeito com o objeto, composição
do laço afetivo estabelecido com o outro,26 também conhecida como fase oral primitiva
da evolução. Nos primeiros anos de vida, a alteridade ideal é composta pela imagem
da mãe e do pai; daí a origem do complexo de Édipo.27
Já na teoria psicanalítica lacaniana, forjada a partir de uma releitura do
pensamento freudiano feita por Lacan, a relação entre sujeito e objeto estabelece-se
de forma dual, modelo próprio ao registro imaginário, e recebe o nome de “Teoria do
Espelho”. Nessa teoria, o sujeito utiliza o olhar ou a identificação à imagem para
ganhar acesso ao registro simbólico. Segundo Lacan (1988), a realidade divide-se em
três registros diferentes: o simbólico, campo da linguagem; o real, que escapa a
qualquer tipo de representação e, finalmente, o imaginário, registro da identificação
espacial, lugar onde o Ego depara-se com sua própria imagem,28 seu duplo; onde a
noção de sujeito, efeito do simbólico,29 descobre sua alteridade.
Lacan busca explicar sua teoria por meio do mito de Narciso, que explicita
o desejo de fusão do sujeito com sua própria imagem, a fim de constituir um objeto
total e único. Segundo o psicanalista, a criança, que na primeira infância30 tem uma
visão desfragmentada de seu corpo,31 ainda não reconhece a alteridade da imagem e
confunde seu reflexo com seu próprio “eu” (Ego), conquistando assim uma impressão
de unidade que será superada apenas com a transição da ordem do imaginário à
ordem do simbólico.
Como podemos perceber, tanto para Lacan quanto para Freud, o desejo
se apresenta como uma vontade inconsciente de fundir-se com o outro – representado
por sua própria imagem ou pelo corpo materno – de voltar à fase anterior ao consciente.
Mas essa fusão, por consequência, resultaria na dissolução do sujeito, por isso a
necessidade de reprimir tal gozo e deixá-lo sob o domínio do inconsciente.
A literatura e a crítica literária também encontram no desejo uma
importante fonte de inspiração. O movimento chamado de romântico, que invadiu o
Ocidente nos séculos XVIII e XIX, tem como uma de suas principais características
a vontade de expressar, por meio da utilização da primeira pessoa, as experiências

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.212-232 217


pessoais do autor ou do narrador, de onde afloram narrativas oníricas, que utilizam os
estados da alma ou os sentimentos em oposição à razão neoclássica.
Compte-Sponville (2001) vai dizer que o tempo é o grande mal do
Romantismo, mas também sua razão de ser. É o tempo, segundo o filósofo, que dá
ao sujeito a consciência de finitude e que o condena também à dupla linguagem, ou
aos “além-mundos”. Ele afirma que um dos desejos maiores do autor romântico é o
de fundir-se na unidade, mas que ele acaba se chocando permanentemente com o
múltiplo ou com a dualidade, o que o leva a utilizar a fuga como tentação e o sonho
como desculpa.
Por sua vez, René Girard (2006), ao analisar obras literárias de dife-
rentes autores – Cervantes, Flaubert, Stendhal, Proust e Dostoiévski –, apresenta
uma interessante teoria do desejo construída a partir da noção de mediação. Uti-
lizando a distinção entre os termos “romântico” – que não revela a presença do
mediador – e “romanesco” – que revela e se constitui a partir da presença do
mediador, o autor afirma que o indivíduo não é responsável pela origem de seu
próprio desejo. Na realidade, essa impressão de autonomia nada mais é do que
uma ilusão romântica, pois a verdadeira origem do desejo encontra-se na mímesis,32
na imitação de um outro sujeito. Esse “mediador”, termo empregado pelo próprio
Girard, transforma-se em referência na imitação do desejo dito subjetivo, seja
por meio da admiração (rôle du modèle [papel de modelo]), como é o caso de
Quixote e seu legendário Amadis, personagens de Don Quijote de la Mancha
(1605), de Cervantes, ou ainda, de forma conflituosa (rôle d’obstacle [papel de
obstáculo]) e por vezes contraditória, como na literatura de Dostoiévski e de
Stendhal.
Essa fórmula triádica criada por Girard leva em consideração a relação
entre o sujeito desejante, o objeto desejado e seu mediador, analisando-a por meio
das noções de tempo e de espaço. Enquanto o tempo serve de compreensão para o
processo da mediação,33 o espaço serve de medida para fixar o papel que assume o
mediador nesse jogo relacional. “A mesure que le médiateur se rapproche, son rôle
grandit et celui de l’objet diminue”, defende Girard (2006).34
A relação entre o cinema e a literatura não é recente. Os estudos
cinematográficos do início do século XX já aproximavam essas duas artes. A
expressão Caméra-stylo (câmera-caneta) lançada por Astruc e os estudos críticos
de Bazin (1985)35 são provas disso. Metz (1977) mesmo afirma que o filme é
exibicionista assim como era o romance clássico do século XIX com suas intrigas e
seus personagens, modelo que o cinema imita semiologicamente, prolonga
historicamente e substitui sociologicamente.

218 Henrique Codato – O desejo como lei: uma análise do cinema de Pedro Almodóvar
Nessas breves e obviamente incompletas descrições do desejo, tentamos
mostrar ao nosso leitor que, mesmo que bastante diferentes entre si, essas acepções
apresentam semelhanças em seus discursos. Podemos perceber que alguns elementos
semânticos como “alteridade”, “ausência”, “tempo”, “espaço”, “memória”,
“representação” e “olhar” são recorrentes e servem de referência, seja explícita ou
implicitamente, para explicar o ato de desejar. Tais elementos estão também presentes
na compreensão do termo “imagem”, o que nos faz acreditar que uma aproximação
teórica entre os dois significantes é primordial no desenvolvimento de uma possível
análise fílmica.

O DESEJO E SUAS LEIS: O CINEMA DE PEDRO ALMODÓVAR


La ley y el deseo son lo mismo
(Fuentes, apud Zurían e Varela, 2005:96)

O desejo serve de combustível para todas as narrativas de Almodóvar.


Todos os seus filmes são melodramas que se inscrevem na “longa tradição espanhola
da ironia e do esperpento” (Fuentes, apud Zurían e Varela, 2005:29). O melodrama
pode ser compreendido como um gênero teatral oriundo do drama, que mistura texto
e canção, no qual a música36 tem o papel fundamental de reforçar as respostas
emocionais do público. Tal gênero tem como características principais a introdução
de elementos realistas ou cômicos num contexto trágico ou patético e a presença de
um jogo de cena baseado numa relação maniqueísta, na qual o objetivo principal é
fazer com que o espectador atinja a catarse,37 dividindo com as personagens suas
emoções e seus sentimentos. A partir da influência que se estabelece mutuamente
entre teatro e cinema, no início do século passado, o melodrama passa a compor,
juntamente com a tragédia e a comédia, o que chamamos de cinema narrativo,
manifestando-se em distintos filmes. Daremos destaque aqui à obra do diretor espanhol
Pedro Almodóvar.
Influenciado pelas mais diversas matrizes culturais,38 freqüentemente
comparado a Buñuel, o diretor, que dispensa apresentações, despontou no final da
década de 1970, início dos anos 1980, como um dos líderes da movida espanhola,39
e é hoje considerado o mais importante representante do cinema espanhol
contemporâneo.
Segundo Zurían (Zurían e Varela, 2005:26), Almodóvar tem na emoção
estética a matéria-prima de seus melodramas. Os sentimentos que suas personagens
sentem umas pelas outras, assim como os sentimentos do público ao ver seus filmes
inauguram um processo de auto-identificação e de auto-implicação. Esse processo

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.212-232 219


pode ser explicado pela utilização irreversível da noção de tempo, pela utilização
redundante da metáfora para traduzir os estados de ânimo das personagens e,
ressaltamos, pela utilização da música como elemento estético-narrativo que, às vezes,
serve para representar subjetivamente o que sentem as personagens – como Lo dudo
(de Chucho Navarro [1944], interpretada pelo grupo Los Panchos) ou Ne me quite
pas (de Jacques Brell [1959], interpretada por Maysa Matarazzo), canções presentes
em A lei do desejo, – e, outras vezes, apresenta uma função específica na trama,
como é o caso de Cuore mato (de Little Tony [1967]), em Má educação.
Almodóvar é mestre na arte de seduzir. No caso dos dois filmes propostos
para análise, percebemos que um jogo de sedução se estabelece internamente – entre
as personagens – e externamente – entre a imagem e o espectador – e que o desejo é
o elemento fundamental a partir do qual a narrativa fílmica se constrói. Encontramos
referências desse desejo no enquadramento dos planos, por exemplo, no qual o olhar
da câmera é freqüentemente um terceiro olhar, sugerindo um voyeurisme ativo por
parte do receptor; ou ainda, nas cenas de amor, com planos extremamente fechados,
quase closes, convidando o espectador a deitar-se junto às personagens, a compartilhar
com elas a cama e sentir o calor de seus corpos, experimentar o prazer que sentem,
como numa espécie de ménage à trois “cine-extésico”.40
O espectador transforma-se assim em cúmplice do diretor. Almodóvar
divide com ele a intimidade de suas personagens, contando-lhe seus segredos mais
obscuros e mostrando-as nuas, de corpo e de alma. García (apud Zurián e Varela,
2005:355), ao analisar as topografias dos filmes de Almodóvar, diz que o espectador
está sempre em companhia do narrador, frente a uma narrativa que se apresenta ao
indivíduo em sua mais completa solidão. Numa analogia à cena inicial de A lei do
desejo, Almodóvar conduz seu espectador ao gozo como a voz em off do voyeur
conduz ao orgasmo sua presa, pedindo que ele deseje sua própria imagem como se
ela fosse de outrem, que a beije através do espelho, mas que acima de tudo finja estar
sozinho, e que, em hipótese alguma, revele a presença de seu guia, deixando-se trair
pelo olhar.
As duas obras que nos propusemos a analisar apresentam estruturas
narrativas semelhantes e diversos elementos intertextuais. Ambos os filmes contam a
história de dois diretores de cinema – Pablo Quintero (Eusebio Poncela) e Enrique
Goded41 (Fele Martínez) –, de seus respectivos amantes – António (Antonio Banderas)
e Ángel/Juan (Gael García Bernal) –, e de suas relações homossexuais construídas a
partir da busca insaciável do desejo que pensam sentir uns pelos outros.
Enquanto Pablo se deixa conquistar por António na tentativa de esquecer
Juan (Miguel Molina), que não o ama como este gostaria de ser amado, que não o

220 Henrique Codato – O desejo como lei: uma análise do cinema de Pedro Almodóvar
absorbe las 24,42 Enrique se deixa seduzir por Ángel (que é na verdade Juan, irmão
de Ignácio [Francisco Boira], verdadeiro amor de Enrique) com o intuito de recuperar
seu passado, de visitar novamente as mesmas sensações de outrora, de (re)viver
finalmente sua grande paixão de infância. Percebemos que as duas relações têm como
motor a memória e o souvenir. Mesmo que seus movimentos sejam opostos –
lembrança versus esquecimento –, são complementares, pois para esquecer é necessário
primeiramente lembrar. Se tomarmos a memória como um discurso que ocupa o
lugar da coisa acontecida, encontramos no termo seu sentido representacional,
ancorando sua significação nas noções de imagem e de desejo. De fato, é o desejo de
Enrique e de Pablo que se manifesta por meio de suas lembranças.
Tanto um como o outro se deixam seduzir espontâneamente por seus
amantes no intuito de recuperar algo que lhes é ausente no tempo presente, inaugurando
um processo de substituição e de transferência, no qual a busca pela realização do
desejo não tem limites e passa a ser a única forma possível de sobrevivência. Enrique,
a princípio, é enganado por Juan, que se faz passar por Ignácio, mas como o ciumento
de Proust (1980), que busca a verdade sob a pressão das mentiras do amado, o
diretor parte para a Galícia em busca de uma explicação para suas desconfianças, e
acaba descobrindo toda a farsa. No diálogo final entre as duas personagens, Enrique
diz a Ángel/Juan que, antes mesmo de iniciar seu filme, já conhecia sua verdadeira
identidade.

Ángel: Piensava contártelo todo después del rodaje.


Enrique: Contarme qué?
Ángel: Que me llamo Juan. Que soy hermano de Ignácio y que Ignácio
murrió hace cuatro años.
Enrique: Eso ya lo sabía.
Ángel: Ya, Ya sé que lo sabías43
Ángel: Pensava em te contar tudo depois das filmagens.
Enrique: Contar-me o quê?

E, mais adiante, acaba por confessar a Juan seu jogo sado-masoquista:

Ángel: Por qué me elegiste? Tú sigues sin verme de Zahara. Me elegiste


sólo para follar?
Enrique: No. Te elegí por curiosidad.Quería saber hasta donde eras
capaz de llegar tú y hasta donde podía soportar yo.44

No caso de Pablo, tal jogo acaba levando seus dois amantes à morte.
António, utilizando as declarações conseguidas por meio de uma entrevista televisiva
dada por Pablo sobre o que esperar de um amante ideal, tenta transformar-se nesse

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.212-232 221


modelo para conquistá-lo. O escritor deixa-se seduzir e inaugura um processo no
qual sujeito desejante e objeto desejado se confundem. Uma vez que os dois se tornam
amantes, António, obcecado pelo ciúme que sente do diretor e das correspondências
trocadas entre ele e Juan – que são na verdade cartas escritas pelo próprio Pablo – vai
procurar o rapaz no intuito de fazê-lo desistir de Pablo e acaba tentando seduzi-lo.
Quiero posear todo lo que ha sido de Pablo porque le quiero, diz António antes de
matá-lo. E como em Má educação, o diretor também vai buscar explicação para a
morte de seu amado, descobrindo a verdade. Quererte de este modo es un delito, pero
estoy dispuesto a pagar por ello,45 diz António a Pablo E sabendo que nunca poderá
ocupar o lugar de Juan na vida de Pablo, suicida-se.
O desejo ou a pulsão de morte leva, uma vez personificado, o nome de
Tânatos, deus que, junto a Hades, na mitologia greco-romana, representa a morte. A
morte é, no caso de António, sua única saída, pois como nos lembra Santos (1990:210),
“o desejo de um é o desejo do outro” e como em se tratando de desejo não cabem
polarizações, abrir mão do objeto desejado seria abdicar de si mesmo como sujeito
desejante. Morrer é assim uma condição para que o desejo de António por Pablo
continue a existir. Já em Má educação, a morte é a recompensa de Ignácio. Ela traz
alívio à vítima e a seus algozes e vem quase como uma redenção, uma conversão. “A
verdade do desejo é a morte”, afirma Girard (2006:325).
Ambas as narrativas apresentam personagens centrais que têm em
comum uma transgressão identitária de gênero. No primeiro filme, Carmem Maura é
Tina Quentero, atriz underground e irmã de Pablo que, seduzida pelo pai quando
jovem, foge para o Marrocos, troca de sexo e é posteriormente abandonada pelo
progenitor que encontra outra mulher e se muda para Nova Iorque. Tina acaba por
encontrar António e se apaixona pelo moço, que vê na atriz mais uma chance de
possuir tudo o que é de Pablo. Aliás, é para Tina que Pablo cria a personagem de
Laura P., protagonista de seu novo filme e pseudônimo utilizado pelo diretor nas
cartas que escreve para António.
Má educação, num jogo metalinguístico, apresenta Zahara (Gael García
Bernal) personagem interpretada por Ángel/Juan no filme La visita,46 dirigido por
Enrique Goded, história de um travesti que volta à sua pequena cidade natal com a
intenção de vingar-se do padre que o seduzira quando ainda garoto. Zahara é uma
espécie de alter-ego de Ignácio, verdadeiro autor da narrativa e verdadeira vítima do
religioso.
Essas duas personagens têm na figura de um sacerdote – Padre
Constantino, no caso de Tina e Padre Manolo, no caso de Zahara/Ignácio – o
responsável por seu destino de sofrimento e por sua condenação à solidão. Contudo,

222 Henrique Codato – O desejo como lei: uma análise do cinema de Pedro Almodóvar
para Tina, tal referência simbólica masculina confunde-se com a de director espiritual,
o que produz na personagem sentimentos contraditórios de culpa e de vingança.
A memória é aqui de novo protagonista. É por meio de suas lembranças
que tanto Tina quanto Zahara alimentam seus desejos e é dessas mesmas lembranças
que as duas personagens encontram sentido para suas vidas. Mis recuerdos están
aqui,47 diz Tina a seu “guia espiritual”, referindo-se à igreja onde os dois se encontram.
Huye de ellos como yo hé huído,48 aconselha Constantino. Zahara, por sua vez, vai
procurar o Padre Manolo para fazê-lo relembrar de seu passado, que é também o
passado de Ignácio. Finalmente, as ações presentes são condicionadas pelas lembranças,
pois elas sempre restam, mesmo quando nada mais sobrou. Como o desejo, elas
também têm de “não ser” para existir.
O desejo metafísico de mutação, de transformação, é representado pelos
diversos elementos estéticos e narrativos ligados ao discurso religioso presentes nos
dois filmes, e frequentemente conectados à infância.. Ada (Manuela Velasco)
representa essa possibilidade de mudança – desejo manifesto pela fé – em A lei do
desejo. Na casa de Tina, Almodóvar constrói um altar, onde cohabitam imagens de
santos, ícones pós-modernos, flores, velas e conchas. É diante dele que a menina
faz voto de silêncio para que Tina consiga trabalho, que manifesta sua intenção de
fazer sua primeira comunhão e que reza pela “ressurreição” de Pablo, acreditando
que o diretor – por quem, aliás, a menina se crê apaixonada – esteja morto. Ao
encontrar sua mãe, interpretada pela transexual Bibi Andersen, a menina lhe diz: Tina
y yo somos creyentes. Y mucho. Tenemos una cruz de mayo en casa.... Hemos
encuentrado una Vírgen que hace milagros.49 É diante deste mesmo altar que António
se suicida, numa espécie de auto-sacrifício, metáfora de sua impossibilidade de
transformar o desejo de Pablo. A cena final do filme mostra o diretor abraçado ao
corpo imóvel do jovem, representação pós-moderna da Pietá, enquanto o altar é
destruído pelas chamas das velas.
Em Má educação, é o garoto Ignácio (Nancho Perez) que serve de
representação para tal desejo metafísico. Entretanto, contrariamente à Ada, aqui tal
transformação acontece inversamente. Não há mais cruzes de maio ou virgens
milagrosas: o menino Ignácio perde sua fé, dessacraliza o mundo, deixa de crer em
Deus como consequência da expulsão de Enrique (Raul García Forneiro) do internato
e dos abusos frequentes que sofre por parte de Padre Manolo. Da mediação possível
do santo, afirma Girard (2006:76) ao falar da metamorfose do desejo — uma vez que
o divino passa a ser humano —, é a mediação negativa da angústia e do ódio que
ganha terreno. É o homem que, entregue a si mesmo, adquire a consciência de ser
responsável pelo próprio destino.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.212-232 223


Nos dois filmes é possível encontrar triângulos amorosos, o que vem a
sustentar a tese de filósofo, já apresentada anteriormente neste artigo, sobre a
triangularidade do desejo. Tanto António quanto Ángel/Juan adquirem uma outra
identidade com a intenção de seduzir seus parceiros (gráficos 1 e 2). É justamente
nessa transformação que se encontra o que o autor chama de mediação. A imitação ou
mímesis é a estratégia escolhida pelas personagens nesse jogo de sedução, mas como
nos mostra René Girard (idem:56), esse desejo copiado de um outro desejo tem como
conseqüências a inveja, o ciúme e o ódio, pois é a própria mentira que alimenta o
desejo triangular. Se António e Ángel/Juan mentem respectivamente a Pablo e Enrique,
esses, por sua vez, se deixam enganar por seus parceiros, pois o desejo triangular é
também o desejo que transfigura seu objeto. É somente por meio dessa metamorfose
que ele consegue sobreviver.

Pablo Enrique

António Juan Ángel/Juan Ignácio


○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Gráfico 1 Gráfico 2

Girard (idem, ibidem) afirma que essa mediação também pode manifestar-
se por intermédio de um objeto qualquer.50 Se Juan e Ignácio servem como mediadores
na triangularidade do desejo, como explicitado nos gráficos, no caso do Senhor
Berenguer (Lluis Homar), ex-padre Manolo, e de Juan, é o dinheiro que vem a servir
de elemento mediador. A Juan, le deseava cada día más, confessa Berenguer a Goded.
O velho paga as mensalidades do curso de artes cênicas de Juan, lhe dá de presente
uma câmera Super 8 e uma echarpe de seda, passa a realizar suas vontades, o que faz
com que o jovem se torne seu amante, seduzindo-o a ponto de convencê-lo a matar
Ignácio. Mas tal como em Stendhal ou em Proust, a possessão do objeto vem trazer
decepção e frustração, pois o sujeito percebe que a grande metamorfose esperada não
acontece, justamente porque tal esperança se nutre da ausência e da impossibilidade
do gozo, da distância que mantém o sujeito desejante do objeto desejado (Girard,
2006:106).

224 Henrique Codato – O desejo como lei: uma análise do cinema de Pedro Almodóvar
O desejo se manifesta ainda em cenas como a do banho de Tina, numa
espécie de paródia ao banho de Anita Ekberg na Fontana di Trevi em A doce vida, de
Fellini (La dolce vita, 1960). É clara a alusão que faz aqui Almodóvar ao gozo, à
juissance. Vamos, riegáme51 pede Tina ao funcionário, enquanto Pablo e Ada assistem
à cena, estupefatos. Ou, ainda, quando Padre Manolo escuta a adaptação da canção
italiana Torna a Sorrento, que ganha o título de Jardinero, cantada por Enrique, à
ocasião de seu aniversário. Cuando la estás cantando, mirale siempre a él, como si no
hubiera nadie más en el refectório,52 ordena o padre assistente. Enquanto Enrique
canta, o olhar de Padre Manolo manifesta medo, paixão, admiração e, claro, desejo. É
pelo olhar que o sacerdote sucumbe à tentação, assim como é também pelo olhar que
o espectador se deixa seduzir.

CONCLUSÃO
O jogo de sedução não é apenas característica da narrativa fílmica. Ele
extrapola a diegese e encontra como objeto de desejo o olhar do espectador, esse
“terceiro sujeito”, esse voyeur imóvel que, sentado a uma distância fixa da tela de
projeção, hesita entre dois lugares incompatíveis face à representação.53 Tortajada
(1999) afirma que essa condição de imobilidade favorece seu investimento imaginário
no movimento que lhe é proposto pelo filme, pois o espectador se identifica ao olhar
da câmera, deixando-se guiar por ela e pelas qualidades ilusionistas inerentes ao próprio
cinema.
Como já exposto anteriormente, a alteridade é a condição para que o
desejo se manifeste, pois é no outro que se ancora e que se espelha o meu próprio
desejo, num jogo em que sujeito e objeto se confundem no desejo de se fundirem.
Analogicamente, a imagem cinematográfica pode ser entendida como a expressão do
desejo do outro, pois ela é a apreensão do olhar alheio. Melhor dizendo, ela é a
representação de seu desejo, que, uma vez reproduzida na tela de uma sala escura, se
tansorma em objeto que se pode simbolicamente possuir. É na relação de alteridade
entre espectador e narrativa que se fundamenta a relação que estabelecem o desejo e
a imagem cinematográfica. Assim, a principal função da imagem é seduzir o olhar a
fim de buscar na memória e nas lembranças, sentido e significação. E quando a
influência do mediador se faz sentir, o sentido do real se perde, dando lugar ao
imaginário.
Estou no cinema. Assisto à projeção do filme. Assisto. Como a parteira
que assiste a um parto e daí também à parturiente, eu estou para o filme segundo a
modalidade da dupla (e todavia única) do ser-testemunha e do ser-ajudante: olho e
ajudo. Olhando o filme, ajudo-o a nascer, ajudo-o a viver, posto que é em mim que ele

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.212-232 225


viverá e para isso é que foi feito: para ser olhado, isto é, somente ser pelo olhar (Metz,
1977, apud Xavier, 1983:406)
O conceito fundador do melodrama almodovariano consiste em
apresentar uma situação sob o modelo do caleidoscópio (Zurián, 2005), representando
um conjunto específico de relações entre indivíduos que, na maioria das vezes, acabam
sendo levados ao impasse ou ao conflito. A frustração e a morte são freqüentemente
o resultado dessas tramas, e a psicologia das personagens é tão importante quanto o
jogo psicológico criado pelo cineasta para influenciar e conduzir a leitura de seu
espectador. É justamente por meio desse jogo, que utiliza como fio condutor o desejo,
que Almodóvar seduz.
Como Pablo e Enrique se deixam seduzir por seus amantes, o espectador
se deixa seduzir pela imagem, mesmo sabendo que ela, assim como António ou Juan/
Ángel, é enganadora, dissimulada, mentirosa. Mas ela só pode existir a partir de seu
olhar, que descobre a representação sem se dar conta de que ela vem dele mesmo,
que foi ele quem a inventou, pois sou “eu” quem deseja o desejo do “outro”. Essa
ambiguidade, essa analogia entre o desejo intra e extradiegético é a tese que defendemos
nesse artigo, que se propõe a utilizar o cinema de Almodóvar como objeto, no intuito
de aplicarmos a noção de desejo como constituinte da forma e do conteúdo fílmico.

HENRIQUE CODATO é graduado em Comunicação Social pela Universiade Estadual de Londrina


(UEL), Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB) e em Literatura e
Estética pela Universidade de Genebra, Suíça. Atualmente é doutorando do departamento de História
e Estética do Cinema na Universidade de Lausanne, Suíça.

226 Henrique Codato – O desejo como lei: uma análise do cinema de Pedro Almodóvar
NOTAS

1 Conceito explicado por Metz (1994) como a impressão causada pela


imagem em movimento, que desperta no espectador do filme um processo ao mesmo
tempo perceptivo e afetivo de participação. Cada técnica de representação ou ainda
cada meio (fotografia, pintura, teatro) apresenta uma impressão de realidade mais ou
menos forte, admitindo graus distintos de indíces de realidade. Para Metz, o movimento
contribui de maneira direta com a impressão de realidade, pois é ele que dá corporalidade
aos objetos, sendo freqüentemente percebido como mais real do que outras estruturas
visuais.
2 Tese corroborada por Tortajada (1999).
3 Definição apresentada em francês : «Séduire c’est capter le désir de
l’autre en donnant son propre désir en représentation» (tradução minha).
4 Cristãos e muçulmanos, africanos e ciganos, por exemplo. Sobre a
alteridade étnica no cinema espanhol, aconselhamos o livro de Isabel Santaolalla Los
“Otros”: Etnicidad y “raza” en el cine español contemporáneo. Col. 81/2, PUZ,
2005.
5 Personagem mitológica andaluz, inveterado conquistador que desafia as
leis morais da época, aparece pela primeira vez em 1630, na peça El burlador de
Sevilla y Convidado de piedra do dramaturgo espanhol Tirso de Molina, posteriormente
adaptada por Molière (1665). Don Juan é também inspiração para Mozart na concepção
de sua ópera Don Giovanni (1787).
6 Personagem título da obra de Prosper Mérimée (1845), transformada em
ópera por Bizet (1875), Carmen é uma cigana que utiliza sua beleza e sensualidade
para conquistar os homens que cruzam seu caminho .
7 Gênero de novela espanhola que narra, utilizando a forma autobiográfica,
as aventuras de um pícaro ou anti-herói (Disponível em http://
www.wordreference.com/definicion/picaresco, acessado em 10 de agosto de 2007).
8 Estilo literário caracterizado pelo exagero e pelo uso do grotesco com
intenção de crítica social.
9 Com destaque para O quadro La Maja desnuda (1790-1800).
10 Lorca utiliza uma série de elementos estéticos e semânticos que se repetem
ao longo de toda sua obra, com destaque ao sangue, à faca e à rosa.
11 Entendemos como gênero uma delimitação formal, uma modalidade
normativa e/ou classificatória.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.212-232 227


12 Principalmente na psicanálise freudiana e na lacaniana, posteriormente
explicadas em nosso projeto.
13 Pensamos especialmente nos filmes A aventura (L’Avventura, 1960), A
noite (La Notte, 1961), O eclipse (L’Eclisse, 1962) e Deserto vermelho (Il Deserto
Rosso, 1964), quadrilogia cujo tema principal é a falta de comunicação entre amantes.
14 Fazemos referência aqui à questão da relação espaço-tempo fílmico
(temps du récit) ou diegético e o espaço-tempo ditos reais (temps de la chose-racontée),
ou extradiegéticos (Metz, 1994:27).
15 Ver Deleuze (1989), que parte de postulados de Bergson sobre a imagem
para compor sua reflexão sobre o cinema.
16 Compreendido em sua noção primeira, (Platão), como a representação
mnemotécnica de um objeto por meio de uma representação; uma ilusão dos sentidos.
Uma “simulação”, que certamente não deixa de ter uma existência própria, como nos
propõe Baudrillard (1991).
17 Compreendida como um determinado público analisável em termos
estatísticos, econômicos e sociológicos.
18 Linha imaginária que interliga os olhares de duas ou mais pessoas em cena.
19 Chauí (1990:24) explica o termo desiderium como nostalgia, saudade.
20 Gênese, cap.3 (Bíblia Sagrada, 1996).
21 Ver Denis Vasse, 1997.
22 Um tempo fora do tempo, anterior a ele mesmo (Campbel, 1999)
23 Tese fundamental da Teoria dos Sonhos de Freud (Complexo de Édipo).
24 Portanto, simbolicamente representado pelo Mito.
25 Propomos que linguagem seja entendida em sua concepção saussuriana,
ou seja, como um sistema de signos que serve para comunicar algo.
26 A alteridade por excelência nessa primeira fase é representada pela mãe.
27 Teoria psicanalítica desenvolvida por Freud (mesmo que o termo
complexo tenha sido estabelecido por Jung) que afirma que a criança (menino), na
fase dita genital do desenvolvimento (entre 2 e 3 anos), sente-se atraída pelo progenitor
do sexo oposto ao seu (a mãe) e desenvolve um comportamento hostil face ao
progenitor do mesmo sexo (o pai), percebendo-o como uma ameaça. Tal complexo
faz alusão ao mito grego de Édipo, que mata seu pai e se casa com sua mãe, recebendo
o nome de “Complexo de Electra” em sua versão feminina.

228 Henrique Codato – O desejo como lei: uma análise do cinema de Pedro Almodóvar
28 O termo é aqui apresentado em itálico pois refere-se à “Teoria do Espelho”
de Lacan (1988).
29 Segundo o pensamento psicanalítico freudiano, o indivíduo torna-se
sujeito por meio da linguagem que, como propõe Lacan, se encontra-se no campo do
simbólico.
30 Tal manifestação acontece, segundo Lacan, entre os primeiros 6 a 18
meses de vida.
31 Daí as fases assinaladas por Freud como anal e oral.
32 Termo utilizado por Aristóteles em sua Poética para referir-se ao ato da
imitação ou da representação.
33 Girard (2006:52) afirma que o tempo serve para que o sujeito ganhe a
consciência e reconheça que esse processo de mediação nada mais é do que pura
imitação, de que sempre se copiou o outro – a alteridade – a fim de parecer original.
34 À medida que o mediador se aproxima (do sujeito desejante) , seu papel
se amplifica e o do objeto diminui. (Tradução minha).
35 Em suas críticas e análises, Bazin emprega freqüentemente termos vindos
de outras artes, tais como regard (olhar), originário da pintura; mise-en-scène (encenação),
vinda do teatro; e style (estilo) e auteur (autor), emprestados da crítica literária.
36 O prefixo melo-, originário do grego, significa canto ou música.
37 Conceito artistotélico que defende que, por meio do melodrama, a alma
do espectador será purificada de suas paixões excessivas.
38 Aconselhamos a leitura do artigo de Román Gubern sobre o tema. In
Zurían e Varela, op.cit., p. 45-56.
39 Movimento cultural com viés underground que chacoalhou Madri após
a morte de Franco (1975). Para saber mais sobre o tema, aconselhamos o artigo de
Pilar Martínez-Vasseur presente no livro Almodóvar: el cine como pasión (apud Zurían
e Varela, 2005:107-131).
40 Alusão à sinestesia. Jogo de palavras que sugere o êxtase amoroso por
meio do prazer visual.
41 Goded, uma homenagem a Godard? Zurián (2005) afirma que as duas
personagens funcionam como alter-ego do próprio Pedro Almodóvar.
42 “O absorve as 24 horas do dia”. Referência às palavras de Pablo em sua
entrevista televisiva, falando do que mais o fascina e do que mais o amedronta no
amor.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.212-232 229


43 “Ángel: Pensava em te contar tudo depois das filmagens.
Enrique: Contar-me o quê?
Ángel: Que me chamo Juan. Que sou irmão de Ignácio e que Ignácio
morreu faz quatro anos.
Enrique: Eu já sabia disso.
Ángel: Sim, eu sei que já sabia.” (tradução minha).
44 “Ángel: Por que me escolheu? Você continua sem me ver como Zahara.
Você me escolheu somente para transar? Enrique: Não. Te escolhi por curiosidade.
Queria saber até onde eras capaz de chegar e até onde eu poderia suportar.” (tradução
minha).
45 “Querer-te desse modo é um delito, mas estou disposto a pagar por ele.”
(tradução minha).
46 O título do filme de Enrique Goded faz alusão a uma multiplicidade de
visitas. Essa gradação refere-se à visita que recebe Padre Manolo de Zahara para
chantageá-lo, à visita que o próprio Enrique recebe de Ángel/Juan no início de Má
educação, à visita que faz Berenguer – ex-padre Manolo ao estúdio de Goded e,
finalmente, à visita que faz Almodóvar ao filme de Goded, criando assim um efeito
metalinguístico.
47 Minhas recordações estão aqui. (tradução minha).
48 Fuja delas como eu fugi. (tradução minha).
49 Tina e eu somos crentes. Temos uma cruz de maio em casa.
Encontramos uma virgem que faz milagres. (tradução minha).
50 O que a psicanálise vai chamar de fetichismo.
51 Vamos. Regue-me. (tradução minha).
52 Quando a estiver cantando [a canção], olhe sempre para ele, como se
não houvesse mais ninguém no refeitório. (tradução minha).
53 O lugar real do espectador e seu lugar imaginário, aquele que constrói a
significação.

230 Henrique Codato – O desejo como lei: uma análise do cinema de Pedro Almodóvar
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232 Henrique Codato – O desejo como lei: uma análise do cinema de Pedro Almodóvar
Poder e Comunicação:
um breve debate sobre a questão do
poder nos meios de comunicação de massa
Carolina Dantas de Figueiredo

Desde o início da década de 1990, quando a poeira da queda do Muro


de Berlim começa de fato a baixar, podemos perceber dois movimentos antagônicos
nos estudos sobre comunicação no mundo ocidental: saem de cena os trabalhos que
relacionam diretamente comunicação de massas e os serviços que o aparelho da
comunicação prestam às classes dominantes — e aqui colocado de modo mais explícito
aos governos totalitários — e avolumam-se os trabalhos que colocam a comunicação
dentro de uma perspectiva democrática.
Tal migração de eixo teórico refletiu as próprias mudanças do mundo
nas duas últimas décadas: fim da União Soviética, último regime antidemocrático
ocidental e surgimento de novas mídias, em especial da internet e mais recentemente
das mídias móveis — ou simplificando esta explicação, celulares e afins — que aliam
imagem, som e conectividade à rede em tempo real e em qualquer local. Politicamente,
dois movimentos nos levam a uma visão democrática de comunicação: o
neoliberalismo, que defende ferrenhamente a democracia para que as engrenagens de
seu modelo de produção possam funcionar, e que, ao incentivar a liberdade de escolha
total dos consumidores, permite que a comunicação seja plural e multifacetada (afinal,
esta seria a melhor forma de contemplar a todos); e o surgimento e estruturação
social de ONGs e organizações ligadas aos direitos humanos que defendem a
comunicação livre como direito de todos. Assim, o foco dos estudos de comunicação
sobre seus aspectos democráticos é natural e reflete o mundo contemporâneo tal
como ele parece se apresentar.
Todavia, tratar da comunicação contemporânea como irrestritamente
democrática apresenta alguns riscos. O primeiro deles depende do tipo de relação emissor-
receptor e do público-alvo considerado. Ora, ao mesmo tempo em que o neoliberalismo,
ou para não repetirmos este termo já tão desgastado, o liberalismo econômico permite
que surjam diferentes mídias e veículos que se enquadram nas relações de produção e
consumo — ou seja, movimentam as engrenagens da economia, o sistema estimula,
por uma questão de concentração de capital e economia de escala, a formação de
grandes conglomerados de comunicação; verdadeiras holdings que, embora englobem
diferentes mídias (no Brasil podemos citar os exemplos clássico da Rede Globo, Editora

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.233-247 233


Abril e, mais recentemente, da empresa de telefonia Oi, que possui rádios e canais de
internet), servem aos interesses dos seus grupos acionistas e, na medida em que é
interessante para a sustentabilidade destes, servem também aos governos constituídos.
Outra questão a ser levantada é a acessibilidade aos meios de comunicação
democráticos ou à democracia dos meios. Nesse sentido dois problemas se apresentam.
O primeiro diz respeito à acessibilidade às mídias. Naturalmente, o capitalismo se
preocupou — e continua a fazê-lo ininterruptamente — em permitir o acesso em
massa a televisores, rádios, celulares e internet (esta última ainda em processo em
função dos custos envolvidos na aquisição de computadores, softwares e provedores),
este acesso, porém, é controlado por agências reguladoras do estado e das próprias
empresas que o possuem. Voltando ao caso da internet, como mencionamos há pouco,
é necessário ter um provedor, na maioria dos casos,1 o que significa pagar a alguém
e, em certa medida, ser controlado (em termos de mapeamento de utilizações e
transmissão de conteúdos). Ou seja, mesmo que o sujeito seja, através da rede, produtor
de conteúdos ou que interaja com outros transmissores, ele está submetido a
determinados controles. Do mesmo modo que por meio do acesso aos celulares é
possível localizar os indivíduos, o que lhes tira o direito à privacidade.
Tratamos aqui de dois pontos que não podemos deixar de considerar. O
primeiro — a questão do acesso — nos indica que as possibilidades democráticas,
por assim dizer, são parciais e controláveis, uma vez que ainda dependemos de empresas
e instituições que proporcionam os conteúdos midiáticos (seja por meio de sua produção
ou de sua transmissão). Não custa lembrar que tais empresas atendem ao capital, se
relacionam com governos e se articulam de modo a maximizar seus lucros e se
perpertuar. Cabe aqui recorremos ao conceito de Indústria Cultural de Adorno e
Horkheimer. O termo foi criado para substituir a noção de “Cultura de Massas” que,
segundo os autores, daria a falsa impressão de uma cultura surgindo espontaneamente
das massas. Para os autores, a Indústria Cultural, ao proporcionar a produção massiva
de conteúdos simbólicos de consumo, nivela os sujeitos horizontalmente, e, por meio
das ideologias que transmite, estimula formas de consumo e submissão. Ou seja, as
mídias, conforme existem atualmente, possuem todos os elementos característicos
do mundo industrial: divisão do trabalho, produção em escala etc.
O segundo ponto é talvez mais complexo e polêmico, pois trata da
questão do controle dos indivíduos por meio das mídias. Tratamos aqui de controle
físico, por, em função da interconectividade, as novas mídias (internet, mídias
móveis) permitirem a localização dos indivíduos e rastreamento dos seus fluxos
comunicacionais. Trata-se de uma perspectiva aterradora, pois na medida em
que permite a comunicação, o sistema passa a controlá-la de forma velada.

234 Carolina Dantas de Figueiredo – Poder e Comunicação: um breve debate sobre a questão do poder
nos meios de comunicação de massa
O que queremos dizer aqui é que, embora a comunicação tenha
efetivamente se democratizado nas últimas décadas — em uma perspectiva neoliberal
de democracia — e que realmente esteja contribuindo para observar criticamente os
governos instituídos, trocar saberes e entreter-se fora do mainstream, existe nas
mídias contemporâneas possibilidades de controle que, se radicalizadas, aniquilariam
sua proposta democrática. Não é nossa intenção sugerir que esta possibilidade esteja
na iminência de acontecer. Muito pelo contrário, tratar das possibilidades totalitárias
que subsistem nas mídias, e em especial nas mídias de massa nas quais a interatividade
é notadamente menor, é reforçar a importância da democracia e viabilizar que ela
se amplie, por meio da identificação e análise das possibilidades que lhe são
contrárias. Por fim, resta-nos fazer uma pequena provocação. Se as teorias
contemporâneas mostram os limites de uma noção hipodérmica de comunicação,
ou seja, mostraram que o público não é amorfo nem indiscriminadamente receptivo,
faltou-lhes explicar por que este mesmo público não resiste a determinados conteúdos
mídiáticos ou por que as pessoas buscam se enquadrar em determinados padrões
pautados pelos meios de comunicação de massa. Ainda que democrática, a mídia
transmite continuamente conteúdos ideológicos relevantes para os que os controlam
e que o público acaba incorporando, não por ser manipulável, mas por necessitar
deles para “caber” nas relações sociais que o circundam e exercer seu papel duplo de
produtor-consumidor. Assim, embora não sejam impositivos, os meios de
comunicação oferecem aos indivíduos uma possibilidade fantástica, a de se inserirem
socialmente, serem socialmente aceitos e produzirem sem conflitos. Como tudo no
capitalismo trata-se de uma troca, e para Simmel (1990) a troca depende de elementos
e motivações bastante sutis e que transcendem o próprio ato da troca em si, envolvendo
necessidades subjetivas e fé em certa medida. Neste caso, o público entrega às
mídias sua confiança e audiência em troca da promessa de consumo e ajustamento
social que estas apresentam.

OS APARELHOS IDEOLÓGICOS
E A INSERÇÃO NAS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO
Segundo Marx, no livro II do Capital, as formações sociais, para
existirem, devem, ao mesmo que produzem — e para poderem produzir —, reproduzir
as condições da sua produção. O filósofo francês Louis Althusser lembra que as
condições de produção englobam tanto as forças produtivas, quanto as relações de
produção existentes (Althusser, 1985:11). Ou seja, a produção depende diretamente
da reprodução de suas condições.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.233-247 235


Para Althusser a reprodução da força de trabalho passa-se essencialmente
fora da empresa e é assegurada materialmente por meio do salário e pela qualificação
da mão-de-obra. O salário constitui apenas o mínimo para saúde, alimentação, moradia
e manutenção dos filhos, ou seja, permite a subsistência e procriação do trabalhador.
Porém, as condições materiais isoladamente não garantem a reprodução da força de
trabalho. A força de trabalho deve ser qualificada de acordo com a classe social à qual
pertence, dividindo-se em diferentes “postos” e “empregos” de acordo com sua
qualificação. Nas palavras de Althusser:
Esta reprodução da qualificação da força de trabalho tende a ser
assegurada “em cima das coisas” (aprendizagem na própria produção),
mas, e cada vez mais, fora da produção: através do sistema escolar
capitalista e outras instâncias e instituições (idem:20).
Assim, o autor busca desenvolver uma teoria que foca a educação dentro
de uma visão formal do capitalismo (Gomes, 1994:50). Embora Althusser se refira
explicitamente à educação, ao situarmos a questão da reprodução das condições de
produção de modo mais amplo somos obrigados a deixar as questões meramente
escolares para pensarmos no ajustamento do sujeito ao todo social, sua inclusão por
meio não apenas de conhecimentos, técnicas e normas de comportamento (idem:51),
mas conteúdos simbólicos, informações e mesmo padrões de consumo
compartilhados.
Ou seja, ao propor que a reprodução da qualificação da mão-de-obra
não acontece apenas “em cima das coisas”, isto é, produção da força material e
aprendizagem na produção, Althusser expande esta atividade à esfera ideológica. Mais
do que uma “cultura científica” ou literária diretamente utilizáveis nos diferentes lugares
da produção”, isto é, “saberes práticos”, aprende-se o que ser e como ser enquanto
sujeito num dado todo social.2
A reprodução da força de trabalho exige não só uma reprodução da
qualificação desta, mas, ao mesmo tempo, uma reprodução da
submissão às regras da ordem estabelecida, isto é, uma reprodução da
submissão desta à ideologia dominante para os operários e uma
reprodução da capacidade para manejar bem a ideologia dominante
para os agentes da exploração e da repressão, a fim de que possam
assegurar também “pela palavra” a dominação da classe dominante
(Althusser, 1985:20-21).
E ainda:
A Escola (mas também outras instituições do estado como a Igreja ou
outros aparelhos como o exército) ensinam “saberes práticos” mas
em moldes que asseguram a sujeição à ideologia dominante ou o manejo

236 Carolina Dantas de Figueiredo – Poder e Comunicação: um breve debate sobre a questão do poder
nos meios de comunicação de massa
da “prática” desta. Todos os agentes da produção, da exploração e da
repressão devem estar de uma maneira ou de outra “penetrados” desta
ideologia, para desempenharem “conscienciosatemente” a sua tarefa
— quer de explorados (os proletários), quer de exploradores (os
capitalistas), quer de auxiliares da exploração (os quadros), quer de
papas da ideologia dominante (os seus “funcionários”), etc. (idem:22).

A partir desta idéia, o autor desenvolve sua noção de Aparelhos Ideológicos


do Estado. Para Althusser, os Aparelhos Ideológicos são meios utilizados pelo Estado
para garantir a reprodução das relações de produção através da disseminação contínua
da ideologia dominante. A ideologia — ou “as diferentes ideologias, religiosas, moral,
jurídica, política, etc.” (idem:26) — integra, juntamente com o nível jurídico-político
(o direito e o estado) a superestrutura de uma sociedade. Para explicar esta noção,
Althusser recorre à metáfora do edifício. Numa construção, os andares superiores
(da superestrutura) não se mantêm sozinhos se não assentados na sua base (a infra-
estrutura econômica). Assim, embora o econômico acabe por determinar a questão
ideológica, existe uma “autonomia relativa” da superestrutura em relação à base, assim
como uma “ação de retorno” da superestrutura sobre a base (idem:27). Ou seja, a
base de produção material exige uma estrutura ideológica que a retroalimente. Embora
Althusser trate do papel da comunicação como Aparelho Ideológico, ou seja, sua
possibilidade de, por meio das ideologias transmitidas, servir aos interesses dominantes
e situar os indivíduos quanto ao seu papel na cadeia produtiva, cabe a Adorno e
Horkheimer (1985) explicitarem esta relação.
Para eles, a Indústria Cultural apresenta em si todas as características
do mundo industrial moderno, exercendo nele, em contrapartida, o papel de
transmissora das ideologias dominantes. A técnica a que os homens se submetem é
para os autores uma espécie de antiiluminismo, por brutalizar e tornar os homens
cativos do sistema produtivo, o que diminuiria sua capacidade de mobilização e
consciência de massas, por um lado e por outro impede a formação de indivíduos
autônomos e capazes de decidir conscientemente.
Neste sentido, o próprio lazer proporcionado pela indústria cultural seria
uma forma de mecanizar os sujeitos, pois ocuparia o tênue espaço entre a “pausa” e
o “retorno” ao trabalho, onde não caberiam reflexões, mas formas de distração e
entretenimento que permitem a volta ao trabalho num momento posterior. A divisão
do trabalho e o modelo que pauta o processo produzido são mimetizados pelas formas
de lazer e, então, reproduzidos, o que coloca a Indústria Cultural no mesmo patamar
de formação dos indivíduos e manutenção do sistema que o Aparelho Educacional de
Althusser.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.233-247 237


ESTADO, INDÚSTRIAS CULTURAIS E HEGEMONIA
Considerando que “as idéias da classe dominante são, em cada época,
as idéias dominantes” e que a reprodução das condições de produção é uma exigência
necessária para que tal classe mantenha sua situação, temos que:
O estado é uma máquina de repressão que permite as classes dominantes
assegurar a sua dominação sobre a classe operária para a submeter ao
processo de extorsão da mais-valia (quer dizer, à exploração capitalista)
(Althusser, 1985:31).
Assim, o Estado constitui na verdade aquilo a que os clássicos do
marxismo chamam de o Aparelho de Estado, que compreende ainda instituições como
a polícia, os tribunais, as prisões e o exército que intervém como força repressiva
quando necessário, estando acima deste conjunto o chefe de Estado, o governo e a
administração (idem:31-32). Para Althusser, compreender o Estado como Estado de
classe esclarece a necessidade de estruturas repressivas e ideológicas, como a Indústria
Cultural, entendida pelo autor como Aparelho Comunicacional, que submetem o
populacho às classes dominantes.
O Estado só existiria então enquanto aparelho em função do seu poder
do estado. Sendo por isso mesmo local político da luta de classes. Dentro desta visão,
mesmo a democracia representa uma forma de dominação, pois legitima o domínio
de determinados grupos em detrimento de outros, naquilo a que Lênin chamou, depois
de Marx, a ditadura da burguesia (idem:35). Na visão marxista, a solução final para
este problema seria a tomada do poder do Estado pelo proletariado para destruir o
Aparelho de Estado burguês existente, assim como a ideologia que o permeia.
Althusser estabelece a distinção entre o Aparelho Repressivo de Estado
(ARE), que funciona pela violência (polícia, tribunais, prisões etc.), e os Aparelhos
Ideológicos de Estado (AIEs), que transmitem as ideologias que permitem a reprodução
da força produtiva. Para o autor:
Se os AIE “funcionam” de forma massivamente prevalente pela
ideologia, o que unifica a sua diversidade é precisamente este
funcionamento, na medida em que a ideologia pelo qual funcionam é
sempre unificada apesar das suas contradições e da sua diversidade,
na ideologia dominante que é da “classe dominante” (...) A mesma
classe dominante é ativa nos Aparelhos ideológicos de Estado. É claro,
agir por leis e decretos no Aparelho (repressivo) de Estado e “agir” por
intermédio da ideologia dominante nos Aparelhos Ideológicos de Estado
são duas coisas diferentes (idem:48-49).
Os Aparelhos Ideológicos, como já mencionamos, são meios dos quais
o Estado se utiliza para garantir a reprodução das relações de produção através da

238 Carolina Dantas de Figueiredo – Poder e Comunicação: um breve debate sobre a questão do poder
nos meios de comunicação de massa
disseminação contínua da ideologia dominante. Estas, embora sigam a ideologia do
Estado — que é a ideologia da classe dominante — se apresentam como instituições
autônomas, distintas e especializadas. Assim, enquanto o Aparelho (repressivo) do
Estado pertence ao domínio público, a maior parte dos Aparelhos Ideológicos do
Estado remete ao domínio privado. Para o autor:
Enumeramos, nas formações sociais capitalistas contemporâneas um
número relativamente elevado de aparelhos ideológicos de Estado: o
aparelho escolar, o aparelho religioso, o aparelho familiar, o aparelho
político, o aparelho sindical, o aparelho de informação, o aparelho
cultural etc... (idem:75).
Assim, ainda nas palavras de Althusser, “nenhuma classe pode
duravelmente deter o poder de Estado sem exercer simultaneamente a sua hegemonia
sobre e nos Aparelhos Ideológicos de Estado” (idem:49), o que torna também os AIEs
local da luta de classes.
Para Gramsci (1989:29), o Estado não tem uma “concepção unitária,
coerente e homogênea” expressa em um projeto político igualmente homogêneo, o
que corrobora a visão althusseriana de AIE como local de luta de idéias. Além disso,
na sua teorização de hegemonia, Gramsci teria adiantado a visão de Althusser ao
afirmar que o Estado não se reduzia ao aparelho (repressivo) de Estado, mas
compreendia certo número de instituições da “sociedade civil” como as igrejas, as
escolas, os sindicatos e a comunicação, instituições denominadas pelo autor de
Aparelhos Privados de Hegemonia.3 Para Gramsci, a sociedade civil é parte do Estado,
sendo este composto de dois planos superestruturais, a sociedade civil, como
organismos ou aparelhos privados de hegemonia; e a sociedade política, como aparelho
burocrático, militar e jurídico e respondendo pelo poder, legal ou de fato, de coerção.
Para ele:
Por enquanto, podem-se fixar dois grandes “planos” superestruturais:
o que pode ser chamado de “sociedade civil” (isto é, o conjunto dos
organismos chamados comumente de “privados”) e o da “sociedade
política ou Estado”, que corresponde à função de hegemonia que o
grupo dominante exerce sobre toda a sociedade e àquela de “domínio
direto” ou de comando, que se expressa no Estado e no governo
jurídicos4 (Gramsci, 2000:32).
Sociedade civil e política operariam organizando a vida diária e
reproduzindo relações de poder. Ambas constituem o Estado de forma mais abrangente.
Segundo Gramsci, estas se distinguem por agirem de formas distintas. Enquanto na
primeira operam os aparelhos privados de hegemonia que buscam obter o consenso
como condição indispensável à dominação, por isso, prescindem da força, da violência

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.233-247 239


visível do Estado, que colocaria em perigo a legitimidade de suas pretensões. Na
segunda agem os aparelhos coercitivos de Estado. Em condições de hegemonia, as
instituições da sociedade civil se solidarizam com o Estado, e zelam pela reprodução
dos valores sociais, conformando o que Gramsci chama de Estado ampliado. Para
Tragtemberg:
O Estado é o grande organizador da hegemonia no sentido gramsciano,
controlando, através de licenças, os instrumentos de reprodução
simbólica. Desativando a política e eliminando a opinião pública com
capacidade de opor-se a ele, através da comunicação de massa, reforça
o controle social (Tragtemberg, 1997:7).
Assim, para assegurar a hegemonia, o poder e suas formas de manutenção
são distribuídos por meio destas instituições e exercido por diferentes agentes
relacionados à ideologia dominante. A comunicação seria a forma perfeita de disseminar
tal poder, reproduzindo a ideologia vigente. Para Adorno e Horkheimer, tal disseminação
é eficiente justamente por não se apresentar como tal, mas por entreter enquanto
transmite os valores da classe dominante. Segundo os autores “a unidade implacável
da indústria cultural atesta a unidade em formação da política. (...) O fornecimento ao
público de uma hierarquia de qualidades serve apenas para uma quantificação ainda
mais completa” (idem,1985).

COMUNICAÇÃO DE MASSA, IDEOLOGIA E PODER


Em Althusser, Gramsci e em Adorno e Horkheimer a comunicação
aparece como “instituição” parceira do poder estatal. Isto porque os meios de
comunicação hegemônicos corroboram com a ideologia do Estado e a compartilham
e disseminam, como forma de manter seu próprio poder. Para Althusser, o AIE da
informação inclui imprensa, rádio e televisão, estruturas privadas que funcionam de
modo análogo aos AEs, só que por meio da ideologia que disseminam.5 O AIE da
informação funcionaria, então, levando a “todos os ‘cidadãos’, doses quotidianas de
nacionalismo, chauvinismo, liberalismo, moralismo, etc.” (Althusser, 1985:63) e
recheando-os da ideologia que convém ao papel que os indivíduos devem:
Desempenhar na sociedade de classes: papel de explorado (com
“consciência profissional”, “moral”, “física”, “nacional” e apolítica
altamente “desenvolvida”); papel de agente da exploração (saber mandar
e falar aos operários: as “relações humanas”); de agentes de repressão
(saber mandar e ser obedecido “sem discussão” ou saber manejar a
pedagogia retórica dos políticos); ou profissionais da ideologia (que
saibam tratar as consciências com o respeito, isto é, com o desprezo,
a chantagem, a demagogia que convêm acomodados às sutilezas da
Moral, da Virtude, da Transcendência, da Nação) (idem:65-66).

240 Carolina Dantas de Figueiredo – Poder e Comunicação: um breve debate sobre a questão do poder
nos meios de comunicação de massa
Além de funcionarem massivamente pela ideologia, os AIEs atuam ainda
por meio de formas de repressão simbólica. Ou seja, exclusões, seleções e censura de
elementos informativos realizados no processo comunicacional são formas dissimuladas
de repressão, que o são muitas vezes sem percebê-lo. Os meios de comunicação de
massa permitem que os conteúdos ideológicos tenham o maior alcance possível,
atingindo os sujeitos em situações distintas e características heterogêneas.
A mídia de massas se configura assim como transmissora em larga
escala das ideologias dominantes. Nas entrelinhas das notícias de jornal e TV, e mesmo
nos mais inofensivos programas de entretenimento estão expressas, às vezes em
doses homeopáticas, outras vezes quase escandalosamente, as formas de pensamento
hegemônico. Olhando mais atentamente o caso da imprensa, o próprio Marx nota, em
1842, que, mesmo onde não havia censura institucionalizada, o “jornalismo como
negócio” representava uma ameaça à liberdade de imprensa (Marx, 1980:44), devido
às imposições e restrições dos proprietários dos grandes meios. Ou seja, mesmo não
havendo o controle dos meios de comunicação por governos totalitários, a ditadura
do capital prevaleceria, reproduzindo conteúdos simbólicos da classe dominante sob
a carapuça mítica da liberdade. Sendo assim, os meios de comunicação acabam por
disseminar os interesses daquela classe que, num período histórico particular, é a
classe dominante.
Para Bourdieu, o poder é exercido por meio de sistemas simbólicos
ideológicos. Estes sistemas simbólicos constituem “estruturas estruturantes” (Bourdieu,
2000:9), ao moldarem sentidos e ao serem deliberadamente moldados por aqueles que
os controlam. Ao tratar de tais estruturas, o autor se refere ao seu conceito de habitus,
que corresponde a:
Sistemas de posições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a
funcionar como estruturas estruturantes, quer dizer, enquanto princípio
de geração e de estruturação de práticas e de representações que podem
ser objetivamente “reguladas” e “regulares”, sem que, por isso, sejam
o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu objetivo
sem supor a visada consciente dos fins e o domínio expresso das
operações necessárias para atingi-las e, por serem tudo isso,
coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação combinada
de um maestro (Bourdieu apud Miceli, 1987:45).
O poder simbólico6 exercido por tais sistemas é um poder de construção
da realidade que tende a estabelecer sentido imediato do mundo (em particular do
mundo social), através dos habitus que dissemina. A possibilidade de construção da
realidade inerente a tais sistemas depende da existência de um grupo de produtores
especializados, capazes de gerarem símbolos e ideologias que são instrumentos por

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.233-247 241


excelência de “integração social” por tornarem possível “o consensus acerca do sentido
do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social”
(idem:10). Para o autor:
Os “sistemas simbólicos” distinguem-se fundamentalmente conforme
sejam produzidos e, ao mesmo tempo, apropriados pelo conjunto do
grupo ou, pelo contrário, produzidos por um corpo de “especialistas”
e, mais precisamente, por um campo de produção e de circulação
relativamente autônomo: a história da transformação do mito em religião
(ideologia) não pode se separar da história da constituição de um corpo
de produtores especializados de discursos e ritos religiosos, quer dizer,
do progresso da divisão do trabalho religioso, que é, ele próprio, uma
dimensão do progresso da divisão do trabalho social, portanto, da
divisão em classes, e que conduz, entre outras conseqüências, a que
se desapossem os laicos dos instrumentos de produção simbólica
(idem:12-13).
Na verdade, o compartilhamento de símbolos e ideologias introjetados
nos sujeitos indica a verdadeira extensão do poder sobre determinado grupo, o que
significa concomitantemente um poder de fazer o grupo, impondo-lhe princípios de
visão e divisão comuns (Bourdieu, 2000:117). Por meio da compreensão do conceito
de habitus como um “sistema de disposições duráveis e transferíveis que, integrando
todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de
percepções, apreciações e ações” (idem, ibidem) temos que o poder de determinado
grupo é capaz de se estender por todo o campo de atuação dos sujeitos que o integram,
como numa “espécie de círculo cujo centro está em toda parte e em parte alguma”.
Sendo o poder simbólico na realidade: “esse poder invisível o qual só pode ser exercido
com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo
que o exercem” (idem:7-8)
Aqueles que mantêm o controle dos meios de produção usarão dos
Aparelhos Ideológicos para transmitir as idéias que eles tenham interesse de reproduzir
e perpetuar. Com isso, as ideologias da classe dominante acabam por formar uma
rede de representações, regras, valores e imagens que sustentam aquilo que
compreendemos como “realidade”. Tal rede determina os limites de ação dos indivíduos
no mundo através de padrões de pensamento e conduta, conforme postulado por
Althusser ao se referir à transmissão dos valores dominantes. Embora forneça relativo
conforto ao indivíduo e favoreça a vida em sociedade, a rede de valores construída
neste caso, por meio da mídia, acaba por ocultar contradições da vida e da vida
social, assim como as divergências entre estas contradições e as idéias que deveriam
explicá-las.

242 Carolina Dantas de Figueiredo – Poder e Comunicação: um breve debate sobre a questão do poder
nos meios de comunicação de massa
Por definirem “certo” e “errado”, as idéias propagadas pela classe
dominante estruturam os padrões de comportamento, limitando o espaço dos desejos
e ambições pessoais e definindo “possível” e “impossível” dentro de limites
socialmente aceitáveis. Temos, em resumo, a partir da disseminação e assimilação
das ideologias da classe dominante, um verdadeiro processo de condicionamento,
sendo este apenas possível por meio da introjeção dos sistemas simbólicos. Nesse
sentido, a comunicação de massas se destaca como “ferramenta” de transmissão de
tais sistemas. Trata-se de moldar o habitus dos sujeitos por meio daquilo que ele
apreende como realidade e como padrão de comportamento através da mídia. Antes
de prosseguirmos, lembramos, contudo, que partimos de uma premissa generalista
de que uma parcela significativa dos sujeitos submetidos a determinado estímulo
midiático assimila os conteúdos informacionais que recebe sem grandes
questionamentos. Nesta saturação consiste a manutenção do poder, uma vez que as
ideologias de uma classe passam a ser incorporadas pelas demais, assumindo um
caráter de “normalidade” e “normatividade”.

EXERCENDO O PODER IDEOLÓGICO:


A COMUNICAÇÃO COMO SISTEMA SIMBÓLICO
Ao controlar os meios de comunicação de massa hegemônicos na
sociedade, a classe dominante opera para manter o arcabouço de idéias que temos do
sistema através do controle do acesso das pessoas ao “real”, ou seja, aos fatos ditos
relevantes que acontecem em espaços (e em certos casos em tempos) distantes dos
receptores das informações, de modo que, sozinhos, não teríamos acesso a eles.
Através dos meios de comunicação, somos convidados a participar de “realidades”
que fogem ao nosso alcance imediato, realidades que não podemos vivenciar senão
por meio de mediações, ou seja, transposições, recortes e análises do real determinadas
por meio de terceiros. Para esclarecer melhor esta questão e seu funcionamento na
nossa perspectiva, tomaremos o jornalismo como exemplo.
Da enormidade de eventos simultâneos que irrompem na esfera da vida
cotidiana, somos informados somente daqueles que se tornaram acontecimentos
midiáticos. O mundo se converte então em uma série de vivências abstratas, mediadas
por conjuntos e mais conjuntos de discursos jornalísticos. Assim, o jornalismo passa
a ser uma das principais fontes de informações necessárias à compreensão e à
organização do ambiente social circundante, dos quais os seres humanos fazem uso
(Thompson,1995).
Diante dessa enormidade de acontecimentos e considerando que os
jornalistas trabalham para organizações de comunicação, temos que o “real” é muito

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.233-247 243


bem selecionado antes de converter-se em notícia. Neste processo, os fatos são
submetidos tanto à subjetividade do jornalista como aos interesses da organização
onde trabalha. Quanto ao papel da subjetividade no trabalho jornalístico, temos que o
profissional projeta no seu trabalho (como na maioria das práticas humanas) suas
concepções “pessoais” de mundo, apreendidas durante seu processo de socialização,
ou seja, as idéias dominantes internalizadas. De Tracy e os demais ideólogos franceses
já questionavam a influência do meio sobre o indivíduo como determinante das idéias
que ele carrega durante a vida. Para esta corrente, as idéias humanas são fruto do
meio, e mesmo os textos mais imparciais carregam uma série de conceitos
internalizados anteriormente, sendo a imparcialidade tão propagada por alguns teóricos
de jornalismo como apenas uma utopia.
Além da subjetividade pura e simples, outro fator de interferência na
escolha do “real” para transformá-lo em notícia são as “pressões” – orientações
sobre o que apurar e como produzir o texto – às quais o jornalista está submetido no
ambiente de trabalho, capazes de sobrepujar mesmo sua subjetividade. Logo, deve-
se entender o jornalismo em grande parte em função do tipo de organização ao qual
o jornalista pertence, ficando, via de regra, seu trabalho orientado pelas ideologias da
empresa onde trabalha. Chaparro (1994) explicita esta questão tratando da
intencionalidade do discurso jornalístico, motivo último do controle do discurso
nos meios de comunicação de massa. Para ele, em função de ser dominado por um
determinado grupo ou classe social,7 o jornalismo é dotado inevitavelmente de
intencionalidade, de acordo com os interesses de classe defendidos pelas organizações
aos quais os meios pertencem. A intencionalidade se baseia nas ideologias e interesses
da classe mantenedora do poder.
Isto significa que a escolha de um acontecimento para ser noticiado,
assim como a importância atribuída ao mesmo, é dada em função de objetivos
predeterminados pelos controladores do meio de comunicação. Neste caso, se as
notícias são produzidas em função de uma intencionalidade, os conhecimentos que
obtemos através da mídia são sempre selecionados e se enquadram dentro da estrutura
de manipulação e manutenção do poder pelas classes dominantes.
A disputa política implica em disputa ideológica. Como vimos
anteriormente, esta disputa é travada no âmbito da comunicação. Por meio de
diferentes subterfúgios, as classes dominantes controlam os meios de comunicação,
assim, as informações divulgadas correspondem unicamente aos seus interesses e
busca-se disseminar apenas as ideologias que contribuem para a manutenção do
status quo destas classes.

244 Carolina Dantas de Figueiredo – Poder e Comunicação: um breve debate sobre a questão do poder
nos meios de comunicação de massa
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como vimos, não há conhecimento neutro, pois todo saber está
subordinado aos interesses de uma classe. Embora haja, numa formação social, tantas
visões de mundo quantas sejam as classes sociais, a ideologia dominante é sempre a
ideologia da classe dominante disseminada através dos meios de comunicação social
(Fiorin, 1993:31).
Buscamos, no decorrer deste artigo, refletir sobre as condições que a
classe dominante cria para manter e exercer seu poder por meio da comunicação.
Sabemos que tal opção de análise pode ser considerada um tanto radical, especialmente
num momento em que a comunicação de massa parece perder força diante da
possibilidade dos sujeitos saírem, especialmente por meio da internet, da sua posição
de receptores para emissores de conteúdos simbólicos, interagindo diretamente com
outros sujeitos, apreendendo parcelas do real sem a intermediação de terceiros. Todavia,
julgamos ser necessário tratar da relação poder e meios de comunicação de massa
para compreendermos como Estados e classes sociais dominantes utilizaram estas
mídias para sustentarem suas posições no decorrer do século passado. O poder destes
é concretizado por meio dos princípios ideológicos apreendidos pelos sujeitos que se
tornam núcleo duro de suas ações e que indicam seu posicionamento na estrutura
social e produtiva. Nesse sentido, transmitir conteúdos simbólicos específicos ou
cercear a contato que os sujeitos têm com a realidade é essencial para compreendermos
as formas através das quais a comunicação age como AIE.

CAROLINA DANTAS DE FIGUEIREDO é doutoranda em comunicação pela Universidade Federal


de Pernambuco (PPGCOM/UFPE) e mestre em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco
(PPGS/UFPE). Realiza pesquisas voltadas para as relações entre poder e mídia na contemporaneidade.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.233-247 245


NOTAS
1 Lemos (2006) nos lembra que há, em algumas cidades do mundo, estudos
sobre a disponibilização de redes sem custo para a população e movimentos sociais que
pregam a abertura de redes.
2 Para Atlthusser, a Escola, ao mesmo tempo que ensina técnicas e
conhecimentos, “ensina também as ‘regras’ dos bons costumes, isto é, o comportamento
que todo agente da divisão do trabalho deve observar, segundo o lugar que está destinado
a ocupar: regras da moral, da consciência cívica e profissional, o que significa exatamente
regras de respeito pela divisão social-técnica do trabalho, pelas regras da ordem estabelecida
pela dominação de classe. Ensina também a ‘bem falar’ a ‘redigir bem’ o que significa
exatamente (...) a mandar bem aos operários“ (idem, 1985:21).
3 Para Althusser, a imprensa é um Aparelho Ideológico de Estado que, operando
predominantemente através da ideologia, assegura as condições políticas da reprodução
das relações sociais de produção. Gramsci define os organismos de opinião na sociedade
civil – dentre eles os meios de comunicação – como aparelhos privados de hegemonia.
Ambas idéias são compatíveis com a noção de Indústria Cultural de Adorno e Horkheimer,
pois articulam reprodução das condições de produção, hegemonia e o controle por
instituições não-estatais.
4 Esta citação aparece nos Cadernos do cárcere em duas versões com pequena
variação de redação, como que tendo passado por um processo de amadurecimento. No
(QC I, 476) lê-se “dois tipos de organizações sociais” e no (QC III, 1.518) lê-se “dois
planos superestruturais”. Conforme Ferreira, 1986:143.
5 Embora este artigo explore questões meramente teóricas, a questão das
concessões de televisão ou os investimentos de capital necessários para a aquisição de
um parque gráfico para a impressão de um jornal de grande circulação, por exemplo,
apontam para a comunicação — e neste caso mais especificamente a comunicação de
massas — como realizada por membros da classe dominante. Ainda que pretensamente
democrática em seu alcance, a comunicação de massas não o é em termos da sua
produção. Assim, se os meios de comunicação de massa pertencem à classe dominante,
os conteúdos simbólicos veiculados serão aqueles de seu interesse.
6 O poder simbólico surge como todo o poder que consegue impor significações
e impô-las como legítimas. Os símbolos afirmam-se, assim, como os instrumentos por
excelência de integração social, tornando possível a reprodução da ordem estabelecida.
7 Até o momento, tratamos apenas da classe dominante, mas o mesmo
pode ser válido para quaisquer classes.

246 Carolina Dantas de Figueiredo – Poder e Comunicação: um breve debate sobre a questão do poder
nos meios de comunicação de massa
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
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Janeiro: Paz e Terra, 2000. – não mencionado no texto.
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uma teoria da ação jornalística. São Paulo: Summus, 1994.
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cadernos de Gramsci. Brasília/SãoPaulo: UnB/Hucitec, 1986.
FIORIN, José Luís. Linguagem e ideologia. São Paulo: Editora Ática, 1997.
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_____. Cadernos do cárcere (vol. 1). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
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mencionado no texto.
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SIMMEL, Georg. Philosophie des Geldes, Berlin, 1977. Tradução de T.
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1997.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.233-247 247


O drama dos personagens de X-men
como um novo caminho
para compreender a noção jamesoniana
de identidade esquizofrênica
Cláudio Clécio Vidal Eufrausino

Para compreendermos o modo como Fredric Jameson se vale da palavra


esquizofrenia como uma das principais características da contemporaneidade,
precisamos analisar o contraponto dialético deste conceito: a noção de individualismo.
Ao estudarmos a relação entre individualismo e esquizofrenia, tomando como base as
idéias deste autor, não visamos a debater o conflito entre moderno e pós-moderno,
mas sim a entender como a reflexão jamesoniana a respeito da identidade é retomada,
em perfil alegórico, na narrativa de X-men.

OS X-MEN
X-men representam um marco de transformação da idéia do super-herói
como alguém glorioso, imbatível e superior. A partir deles, o valor conferido ao poder
e à força muda de direção. O próprio nome do grupo ilustra essa mudança. Em X-
men, o “X” significa extra ou extraordinary. Mas, nesse caso, extraordinário não tem
a ver com maravilhoso, mas sim com anormal. Os X-men são, em sua maioria,
jovens que herdaram dos pais genes mutantes devido à influência de fatores como a
radiação, a presença de conservantes nos alimentos industrializados e a poluição.
Estas mutações são responsáveis pelos poderes das personagens. Tais alterações podem
ficar incubadas, vindo a se manifestar na adolescência. Nesta narrativa, criada em
1963 por Stan Lee e Jack Kirby, percebe-se que o poder, antes tratado como dom,
passa a ser comparado a uma doença, levando os mutantes a serem estigmatizados
socialmente.
Ser encarado como alguém extraordinário passa a significar a
marginalização e a perseguição por parte dos seres humanos ditos normais. Existem
inclusive mutantes que, devido a sua aparência estranha, foram obrigados a viver em
ambientes como os esgotos. O resultado dessas mutações é o aparecimento de
habilidades fora do comum como pirocinese (poder de incendiar as coisas com a
força da mente), teletransporte e o poder de atravessar paredes. Essas habilidades são
tratadas, na narrativa, não como poderes mágicos, mas sim como funções corporais,
que, como tais, são, em parte, autônomas, agindo independentemente da vontade do

248 Cláudio Clécio Vidal Eufrausino – O drama dos personagens de X-men como um novo caminho para
compreender a noção jamesoniana de identidade esquizofrênica
indivíduo, e, em parte, controláveis. Mas o equilíbrio entre essas duas faces do poder
é difícil de ser alcançado e responde por um grande sofrimento para os mutantes.
A personagem Vampira é, talvez, um dos maiores emblemas da saga
mutante. Seu nome, em inglês, é Rogue, que significa ladra ou trapaceira. O produto
do roubo é a essência dos outros. Ao tocar as pessoas, a personagem absorve
memórias, habilidades e energia vital. Isso responde, em casos extremos, pela morte
da vítima de seu toque e por crises devido a conflitos gerados pela confusão entre a
personalidade de Vampira e a das pessoas cujas essências ela absorve. Em português,
o nome dado à “super-heróina” alude ao mito dos mortos vivos que sugam o sangue,
símbolo da vida, para se alimentarem. Os vampiros, assim como os mutantes,
representam o poder dos que estão à margem da sociedade, encarados como
amaldiçoados.

SOBRE O INDIVIDUALISMO
Um dos produtos mais consumidos, atualmente, são os discos laser,
onde música e imagem não têm de dividir espaço com ruídos ou chuviscos, ou seja,
possuem um caráter puro ou individualizado. A busca tecnológica por esta pureza tem
gerado uma febre pela remasterização (tratamento de sons e imagens para adquirirem
um caráter digital).
Esta compulsão pela pureza digital tem origem em um passado distante,
mais precisamente no período de transição entre Feudalismo e Idade Moderna, época
marcada pela tentativa de a própria sociedade “remasterizar-se”. No entanto, a
contemporaneidade também tem sede pela poluição informacional, pela ambigüidade,
pelo conhecimento labiríntico (Machado, 1997).
Este artigo pretende demonstrar como, ao fazermos uma leitura alegórica
de personagens da revista em quadrinhos X-Men, a exemplo de Vampira, Mística e
Wolverine, deparamo-nos com as sutilezas envolvidas no conflito de identidade
marcado pela opção entre o caráter analógico e o digital. Esta disputa revela uma
dupla face do que chamamos de individualismo e nos conduz à seguinte questão: a
fragmentação ou o caráter multifacetado das identidades contemporâneas é realmente
o oposto da identidade centrada – almejada pelos iluministas do século XVIII – ou
um desenrolar desta?
O processo de “digitalização” do homem moderno teve como alvos
obsessivos a preservação da individualidade e a ausência de conflito, entendidos como
elementos característicos de uma vida perfeita. O termômetro utilizado para medir a
eficiência dos modernos em se aproximar destas metas foi denominado civilidade. A
civilização tem sido encarada como algo que existe de forma pronta e acabada

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.248-263 249


(esperando pelo esforço de quem quiser obtê-la) e, acabamos por esquecer de perguntar
como viemos a possuí-la. Norbert Elias nos lembra que este fenômeno é um processo
ou parte de um processo em que nós mesmos estamos envolvidos. Em torno deste
desejo do homem moderno de tornar-se individual – a fim de conquistar civilidade –
detectamos fatores de ordem antropológica, socioeconômica e psicológica. “Todas
as características distintivas que lhe atribuímos [isto é, à civilização] – a existência de
maquinaria, descobertas científicas, formas de Estado, ou o que quer que seja –
atestam a existência de uma estrutura particular de relações humanas, de uma estrutura
social peculiar, e de correspondentes formas de comportamento (Elias, 1990:73).1
Os modernos viam, na individualidade e na ausência de conflitos,
componentes indispensáveis ao processo de acumulação de capital que estava em
andamento. Isto não significa dizer que todo o arcabouço ideológico contido no conceito
de civilização está relacionado ao simples desejo de lucrar, mas que noções como
progresso e propriedade, encaradas como representações da felicidade, foram
associadas à possibilidade de acumular capital. A crescente produção industrial parecia
capaz de fornecer todos os meios necessários para satisfazer as necessidades do
homem. “Assim, no tempo em que Hegel elaborava seu sistema, Saint-Simon, na
França, exaltava a indústria como o único poder capaz de conduzir os homens a uma
sociedade livre e racional. O processo econômico aparecia como o fundamento da
razão” (Marcuse, 1978:18).
A idéia medieval de que existem posições naturais a serem ocupadas
pelos seres humanos é substituída pela noção de que a posição social é fruto da
eficiência (ou ineficiência) dos atos individuais. O ser humano passa a ser concebido
como alguém sujeito a crescimentos e quedas de condição social. Em conseqüência
desta nova mentalidade, os modernos se tornam vítimas de uma espécie de “síndrome
do espelho”, ficando obcecados em monitorar sua auto-imagem, elemento certificador
da posição social que ocupam. Elias cita uma passagem do Werther, de Goethe, para
exemplificar tal monitoramento:
‘O que mais me irrita’, lemos na anotação de 24 de dezembro de 1771,
‘é nossa odiosa situação burguesa. Para ser franco, sei tão bem como
qualquer outra pessoa como são necessárias as diferenças de classe,
quantas vantagens eu mesmo lhes devo. Apenas não deviam se levantar
diretamente como obstáculos no meu caminho’.
Coisa alguma caracteriza melhor a consciência de classe média do que
essa declaração. As portas debaixo devem permanecer fechadas. As
que ficam acima têm que estar abertas. E como todas as classes médias,
esta estava aprisionada de uma maneira que lhe era peculiar: não podia
pensar em derrubar as paredes que bloqueavam a ascensão por medo

250 Cláudio Clécio Vidal Eufrausino – O drama dos personagens de X-men como um novo caminho para
compreender a noção jamesoniana de identidade esquizofrênica
de que as que a separavam dos estratos mais baixos pudessem ceder
ao ataque (Elias, 1990:37).
O impulso de fixar limites com relação à posição social própria e alheia
dá origem a um individualismo extremado, manifestado até mesmo por gestos
inconscientes como o repúdio ao contato com secreções de outras pessoas (suor, por
exemplo). De acordo com Elias, as pessoas que costumavam, na Idade Média, comer
juntas num mesmo prato e beber do mesmo cálice tinham entre si relações diferentes
das que hoje vivemos:
O que faltava nesse mundo courtois, ou no mínimo não havia sido
desenvolvido no mesmo grau, era a parede invisível de emoções que
parece hoje se erguer entre um corpo humano e outro, repelindo e
separando, a parede que é freqüentemente perceptível à mera
aproximação de alguma coisa que esteve em contato com a boca ou as
mãos de outra pessoa, e que se manifesta como embaraço à mera vista
de muitas funções corporais de outrem, e não raro à sua mera menção,
ou como um sentimento de vergonha quando nossas próprias funções
são expostas à vista de outros, e em absoluto apenas nessas ocasiões
(idem:82).
O individualismo é a forma encontrada pelos modernos de mapear os
altos e baixos aos quais se está sujeito devido à imprevisibilidade e volatilidade do
capitalismo no qual, como dirá Marx, no Manifesto Comunista, “tudo o que é sólido
desmancha no ar” (Marx, 2001). Da mesma forma, a organização burocrática da
sociedade também é engendrada pela necessidade de controlar a efemeridade do capital.
No ideal iluminista da paz generalizada, revela-se o medo dos homens modernos da
perturbação da ordem social, pois a instabilidade impediria o progresso e,
conseqüentemente, o afastamento das “trevas” feudais.
A personagem Vampira alegoriza esta paranóia da modernidade. Como
vimos, ela tem o poder de absorver, por meio do toque, a energia vital de outras
pessoas, o que implica a absorção da identidade (memórias e traumas). Se ela tocar
duas vezes uma mesma pessoa, suga completamente a essência desta. Como
conseqüência deste poder, Vampira tem crises de identidade, uma espécie de
esquizofrenia.2
Assim como esta integrante dos X-men, os modernos acreditam que
não devem “tocar” outras pessoas, pois se misturar, significa perder as coordenadas,
estruturadas individualmente, que permitem elaborar o mapa de orientação no caminhar
rumo ao progresso. Em outras palavras, o individualismo moderno representa o esforço
para afugentar a temível perda da essência. “Tem sido aceita como natural a impressão
das pessoas de que seu próprio ‘ser’, sua ‘verdadeira identidade’ são como que

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.248-263 251


coisas fechadas ‘dentro’ delas, separadas de todas outras pessoas e coisas ‘externas”
(Elias, 1990:242).

AS IDÉIAS DE GENIALIDADE E OBRA DE ARTE


COMO EXEMPLOS DO MEDO DE PERDA DA ESSÊNCIA
A descrição moderna do próprio entendimento humano é influenciada
pelo medo do “poder vampírico” dos indivíduos. A verdadeira compreensão é encarada
como a capacidade de o homem calar em seus pensamentos todas as vozes alheias
que atrapalham a expressão da voz individual – única que seria capaz de expressar a
verdade, como avalia Descartes, em O discurso do método (2001).
A valorização de idéias como a de genialidade, obra de arte e estilo
único também pode ser alegorizada pela mutante Vampira. O trabalho de um gênio é
entendido como aquele que não deixa margem para a valorização de nenhum outro.
Tal trabalho, dentro desta óptica elitista, está sujeito à depreciação se estiver ao
alcance das massas, devendo ser apreciado somente por especialistas. Nesta
perspectiva, a compreensão é representada pelos modernos como a capacidade de
manter afastadas quaisquer interpretações diversas das do autor ou gênio. Assim
como as pessoas que cercam Vampira podem no máximo olhá-la, pois, caso se
aproximem, arriscarão a vida, o observador das obras de um gênio não pode interferir
com suas impressões no significado da obra, devendo apenas fruir o significado
pensado pelo artista.
O nome da personagem em inglês, Rogue, como observamos, significa
“ladra, trapaceira”. Este sentido também serve para ilustrar o medo dos modernos de
terem seus poderes absorvidos, isto é, suas idéias geniais, ou seu estilo, roubadas.
Para evitar isto, a estratégia adotada por eles foi a de perseguir ininterruptamente
diferenciais para suas obras. O nome Rogue pode também ser visto sob outro prisma:
o do contentamento em roubar as essências de outrem, desde que este roubo pareça
nunca ter existido. Isto significa que os exercícios prediletos do homem moderno são
ocultar ou fazer resplandecer, por meio de jogos de representação, identidades. Nesta
empreitada, ele tenta, ao máximo, não deixar rastros do conflito entre identidades, o
qual busca apagar, gerando a ilusão da identidade plena ou unificada.
Em todos estes casos, a preocupação central é evitar que a identidade
individual se confunda com a de outras pessoas, o que requer o isolamento. Vampira
também representa tal temor de que outras pessoas tenham contato com o seu interior,
o lugar em que se esconde o caos, em que as dúvidas e inseguranças são trabalhadas,
buriladas para que o ser humano possa trazer para fora uma auto-imagem de perfeição.3
O contato também é entendido como uma ameaça à liberdade individual. Ao conhecer

252 Cláudio Clécio Vidal Eufrausino – O drama dos personagens de X-men como um novo caminho para
compreender a noção jamesoniana de identidade esquizofrênica
as fraquezas uns dos outros, os indivíduos poderiam controlar-se mutuamente.
Jameson dirá a respeito:
Porém é preciso acrescentar que o próprio problema da expressão
está intimamente ligado a uma concepção do sujeito como receptor
monádico, cujos sentimentos são expressos através de uma projeção
no exterior. O que temos de enfocar agora é em que medida a concepção
do alto modernismo de um estilo único assim como os ideais coletivos
de uma vanguarda, ou avant-gard artística ou política, desaparecem
com a noção (ou experiência) mais antiga do assim chamado sujeito
centrado (Jameson, 1997:43).
A esta fixação moderna pela individualidade está relacionada a ideologia
de que cada coisa possui uma essência única, uma razão de ser, a qual pode ser
perseguida pelos seres humanos. Os modernos acreditam que sua vida deve ser um
esforço para retirar de seu caminho todos os empecilhos que o impedem de alcançar
a razão ou verdade única dos valores, sentimentos e também do mundo natural. Em
sendo assim, os diferentes indivíduos representariam estágios diversos de realização
da razão, da mesma forma que, conforme Hegel, os diferentes períodos históricos
marcam “cada um deles um nível distinto de desenvolvimento, e cada um deles
representando um estágio definido de realização da razão” (apud Marcuse, 1978:23).
Esta concepção hegeliana aponta para a encruzilhada do individualismo moderno,
dividido entre a compreensão da história como caminhar de diferentes indivíduos
rumo a uma razão única e universal e o caminhar dos indivíduos rumo a diferentes
razões, isto é, o relativismo. A vertente relativista do individualismo também é
alegorizada por Vampira, como veremos mais adiante.
A crença de que cada coisa e cada ser humano possui uma essência
única, um caminho particular a seguir gera, como lembra Elias (1990), o lamento de
Virgínia Woolf sobre a incomunicabilidade da experiência como causa da solidão
humana. Jameson identifica uma reflexão sobre esta incomunicabilidade no quadro O
Grito, de Munch. Na pintura, o grito, representação da tentativa humana de se exprimir,
revela-se inútil, pois os seres humanos, conforme o mito moderno do individualismo,
só seriam capazes de ouvir e de conhecer, verdadeiramente, a si mesmos.
O desespero provocado pelo desejo e pela incapacidade de se exprimir –
de tocar4 o outro – aproximam alegoricamente a personagem Vampira do quadro de
Munch. Como não pode tocar os outros, Vampira também não pode se fazer sentir.
O conteúdo gestual de O Grito, como destaca Jameson (1997:43) “já assinala seu
fracasso, uma vez que o domínio do sonoro, o grito, a pura vibração da garganta
humana, é incompatível com seu meio (algo assinalado no interior da obra pelo fato
de o homúnculo não ter orelhas)”. O autor prossegue:

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.248-263 253


Também aqui o quadro de Munch [dramatiza] o infeliz paradoxo de
que quando nos constituímos como uma subjetividade individual, como
um campo auto-suficiente e um domínio fechado, também nos
isolamos de todo o resto e nos condenamos à solidão vazia da mônada,
enterrada viva e condenada a uma cela de prisão sem saída (idem,
ibidem).

A “ESQUIZOFRENIA” OU
A NOVA FACE DO INDIVIDUALISMO
O individualismo ganha um novo modelo na pós-modernidade.5 Deixa
de estar ligado à crença de que é necessário resguardar-se a identidade individual.
O aspecto de autoquestionamento, presente à racionalidade
iluminista, fortalece-se em detrimento da noção de que existe uma razão única
todo-poderosa. A idéia que se ergue como dominante 6 é a de que a verdade é
relativa, ou seja, varia conforme o referencial, o qual, por sua vez, varia conforme
outros referenciais, num fluxo sem fim ou total, como o denomina Jameson
(1997). Esta acentuação do caráter contestador da razão abre espaço para uma
reconfiguração do individualismo. O indivíduo deixa de ser entendido como
essência unificada e passa a ser encarado como palco onde transitam múltiplas
identidades, correspondentes às múltiplas verdades ou ao labirinto que se oferece
no capitalismo tardio.
Em vez de se ancorar a um núcleo de personalidade, o individualismo
pós-moderno busca a possibilidade de ser diversas essências. Não se trata de se
mascarar, pois tal atitude pressupõe a existência de um núcleo de personalidade
por trás das máscaras. Os indivíduos pós-modernos se tornam verdadeiros rogues,
ou “ladrões de essência”, que buscam ser capazes de usurpar as memórias, a
vivência e os valores pertencentes a outras pessoas, quer sejam estas reais ou
fantasias de suas mentes. Talvez este seja um dos motivos do mal-estar existencial
contemporâneo: sentir que nossa identidade é, grande parte das vezes, algo
estranho a nós; produto de um roubo. E ladrões de essências pós-modernos, por
vezes, são ainda mais solitários que os individualistas modernos.
O que a leitura alegórica de personagens de X-men nos indica é que
o fenômeno contemporâneo da multiplicidade ou fragmentação de identidades
não significa, necessariamente, o fim do individualismo, podendo representar
um recrudescimento deste. O indivíduo deixa de ser representado pela idéia da
mônada e passa a ter na encruzilhada a imagem que melhor o identifica. A ilusão
é de que se nos apresentam múltiplos caminhos, porém o que melhor descreveria

254 Cláudio Clécio Vidal Eufrausino – O drama dos personagens de X-men como um novo caminho para
compreender a noção jamesoniana de identidade esquizofrênica
nossa condição é a de seres encurralados no centro da encruzilhada ou presos
nos nós das redes de informação. Esta é uma imagem que acreditamos poder
expressar o individualismo em sua versão contemporânea. Tal imagem pode ser
encarada sob um ponto de vista otimista se, em vez da prisão na encruzilhada,
elegemos como metáfora a imagem do homem que se aventura pelos múltiplos
caminhos do labirinto no embalo da dança dos gêranos. 7 Contrariamente à
estratégia de atravessar o labirinto, seguindo o fio de Ariadne, o qual representa
o esforço por linearizar a complexidade, por manter-se uno em meio à fragmentação
da identidade, “a idéia de optar simultaneamente por todas as alternativas marca
a diferença da dança dos gêranos (...) A beleza e astúcia da estrutura do labirinto
estão na multiplicação das possibilidades e na vivência de tempos espaços
simultâneos” (Machado, 1997: 257).
Parece-nos, porém, que o individualismo contemporâneo reflete tanto
uma dificuldade de abrir mão do fio de Ariadne quanto um esforço de simular a
dança dos gêranos, tomando como acompanhantes não outras pessoas, mas nossos
próprios fantasmas. Mas o ponto de vista de Arlindo Machado é cativante
justamente por lembrar que o individualismo, seja ele moderno ou pós-moderno,
não é dimensão única da existência.
O otimismo não deve, no entanto, nos fazer perder de vista que o
apego à imagem do ser humano como fragmentado ou múltiplo indica também
um esforço para fugir do tempo histórico real. O “espetáculo paradoxal das infinitas
ocorrências” (idem, ibidem) eleito pelos contemporâneos como auto-imagem,
pode nos conduzir à vivência por vezes rica, por vezes agoniante da simultaneidade
ou do hibridismo. Por outro lado, pode nos fechar em verdadeiros universos
paralelos. Jameson exemplifica este fenômeno, analisando o filme de Lawrence
Kasdan, Body Beat, que “retrata” os anos 1930. Nesta obra, a ambientação foi
estrategicamente enquadrada de forma a evitar a maior parte dos signos que
transmitem a imagem dos Estados Unidos em sua era multinacional. A edição
contribui cuidadosamente neste seqüestro de essência. “Desse modo, tudo no
filme conspira para borrar sua contemporaneidade oficial e possibilitar ao
espectador uma recepção da narrativa como se ela fosse ambientada em uns
anos 1930 eternos, para além do tempo histórico real” (Jameson, 1997:48).

A PERDA DA COERÊNCIA
Enquanto o individualismo de cunho iluminista gerou o sentimento
de incomunicabilidade do ser, o descentramento 8 do sujeito atual faz com que se
desenvolva uma atmosfera de perda da capacidade de controlar de forma ativa

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.248-263 255


expectativas e memórias em um complexo temporal e “organizar seu passado e
seu futuro como uma experiência coerente” (Jameson, 1997:52).
O que geralmente chamamos de significado [essência] – o sentido ou
o conteúdo conceitual da enunciação – é agora visto como um efeito-
de-significado, como a miragem objetiva da significação gerada e
projetada pela relação interna dos significantes [referentes] (...) Se
somos incapazes de unificar passado, presente e futuro da sentença,
então somos também incapazes de unificar o passado, o presente e o
futuro de nossa experiência biográfica, ou de nossa vida psíquica
(idem:53).
Esta esquizofrenia pós-moderna, porém, é uma extensão da busca
obsessiva dos modernos pelo individualismo centrado. Vampira alegoriza também o
momento de crise deste indivíduo monádico, cuja sede pelas verdades atemporais
produz uma necessidade de provar da água de diferentes fontes, tornando-se um
tipo de nômade a vagar pelo deserto do ser. Nesse sentido, as pessoas se vêem
encurraladas entre a prisão da mônada e a fragmentação esquizóide, já que “com a
ruptura da cadeia de significação, o esquizofrênico se reduz à experiência dos puros
significantes materiais, ou, em outras palavras, a uma série de puros presentes não-
relacionados no tempo” (idem, ibidem).
Enquanto os modernos tinham a sensação de possuir uma alma que os
diferenciava como indivíduos particulares, os pós-modernos convivem com a
sensação de possuírem diferentes almas que disputam espaço no seu interior, aflorando
e submergindo de maneira oscilante. O individualismo contemporâneo reflete-se na
tentativa débil de administrar esta oscilação. Temos tido imensa dificuldade de aprender
a dança dos gêranos.
Jameson utiliza um trecho do livro Autobiography of a schizofrenic
girl, escrito por Marguerite Séchehaye, para ilustrar como a esquizofrenia nos
faz sentir:

Eu me lembro muito bem do dia em que aconteceu. Estávamos


passando uns dias no campo, e eu tinha ido caminhar sozinha, como
fazia de vez em quando. De repente, quando estava passando pela
escola, ouvi uma canção alemã: as crianças estavam tendo uma aula
de música. Eu parei para escutar e, naquele exato momento, um
estranho sentimento me acometeu, um sentimento difícil de analisar,
mas parecido com algo que eu iria conhecer muito bem mais tarde –
um perturbador sentido de irrealidade.
Parecia-me não mais reconhecer a escola, ela tinha ficado grande
como um quartel; as crianças que cantavam eram prisioneiras,
obrigadas a cantar. Era como se a escola e as crianças estivessem

256 Cláudio Clécio Vidal Eufrausino – O drama dos personagens de X-men como um novo caminho para
compreender a noção jamesoniana de identidade esquizofrênica
separadas do resto do mundo. Ao mesmo tempo, meus olhos se fixaram
em um campo de trigo cujos limites eu não conseguia ver. Uma vastidão
amarela, ofuscante à luz do sol, aliada ao canto das crianças presas na
escola-quartel, causou-me tal ansiedade que comecei a soluçar
convulsivamente.
Corri para casa, para nosso jardim, e comecei a brincar, “para fazer
com que as coisas parecessem normais”, isto é, para voltar à realidade. Essa foi a
primeira aparição daqueles elementos que estiveram para sempre presentes nas minhas
futuras sensações de irrealidade: uma vastidão sem limites, uma luz fulgurante e o
brilho e a suavidade das coisas materiais (idem:54).
Compare esta descrição com a seqüência escrita por Chris Claremont e
publicada no Brasil na revista X-Men, número 7, páginas 40 e 41. Nesta seqüência, a
identidade da personagem Miss Marvel, que teve sua essência absorvida, assume o
lugar da identidade de Vampira em uma de suas crises de personalidade:

VAMPIRA: Tantos pensamentos misturados... Não sei quais são meus.


Nem sei mais quem sou... (...) Ela...Ela é...Sou eu (...)
NARRADOR: As imagens não são reais. São memórias que não
pertencem a Vampira... Mas ela sente tudo.

Esta esquizofrenia altera profundamente o sentido de obra de arte, que,


segundo Jameson (1997) transforma-se em um texto, cuja leitura procede por
diferenciação, em vez de proceder por unificação.

Teorias da diferença têm, no entanto, procurado enfatizar a disjunção


até o ponto em que os materiais do texto, inclusive as palavras e
sentenças tendem a se desintegrar em uma passividade inerte e aleatória,
em um conjunto de elementos que se apartam uns dos outros. (...)
Essa nova modalidade de relação pela diferença pode, algumas vezes,
configurar-se em uma maneira nova e original de pensamento e de
percepção; mais freqüentemente, ela toma a forma de um imperativo
impossível no sentido de se atingir uma nova mutação de algo que
talvez não se possa mais chamar de consciência (idem:57).

A esquizofrenia reflete a crise da razão, em que os valores num instante


parecem ser verdades eternas e, em outro, ilusões completas. Esta interpretação não
deve conduzir ao cinismo como postura única a ser adotada diante da vida. Ao
contrário, deparamo-nos com o inescapável compromisso com a reflexão constante
sobre os valores éticos que pautam nossas ações e somos convidados a abandonar o
comodismo e a presunção doados pelas verdades centradas e eternas da racionalidade
iluminista.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.248-263 257


MÍSTICA
Não vamos ter medo só porque podemos pintar o rosto
Vange Leonel

Se Vampira alegoriza o ser humano em conflito com a esquizofrenia, a


personagem Mística ilustra um ser humano adaptado a esta condição. É uma
personagem que tem o poder de assumir características físicas de outras pessoas,
com destaque para a voz e a aparência. A identidade verdadeira dela é um mistério,
nos quadrinhos, e sua aparência real tem de ser mantida oculta por causa de suas
características incomuns (pele azul-escura).
Enquanto Vampira reage com sofrimento e angústia diante de suas crises
de identidade, Mística nem chega a enfrentar crises, pois já está acostumada a ter
uma identidade em constante mudança. Ela encara este fato com indiferença e tédio,
os quais foram influenciados pela perda completa de confiança nos seres humanos,
devido à perseguição e ao preconceito que enfrentou.
Este acostumar-se com a esquizofrenia é responsável pelo que Jameson
denomina esmaecimento do afeto ou o fim da idéia de sentimento na pós-modernidade.
Mística alegoriza esta atmosfera de tédio, entendido como uma reação a situações de
paralisia, “mas também, sem dúvida, como um mecanismo de defesa ou
comportamento de escape” (idem:95) diante da instabilidade de valores da atmosfera
pós-moderna. E não é comum confundirmos tal indiferença com uma falsa sensação
de segurança existencial; de possuirmos, a despeito das encruzilhadas em que vivemos,
suposto controle sobre todos os nossos valores e crenças. A idéia de sentimento
estaria relacionada, na concepção de Jameson, a seres humanos que se enxergam
como possuidores de raízes no passado e, portanto, capazes de alimentar planos
para o futuro. Nesta historicidade, estaria contida a carga afetiva chamada de
sentimento. A metamorfose incessante da alma pós-moderna, alegorizada por Mística,
possibilita ao ser humano no máximo ter intensidades.
Em sendo possível adotar uma postura semelhante a da personagem
Mística, ou seja, adaptada à esquizofrenia, não seríamos mais afetados pela ansiedade
(Jameson, 1997), pois não sentiríamos mais necessidade de perseguir verdades
supremas. Ironicamente, neste caso a alienação (ilusão que afasta o homem da
realidade) se tornaria a única verdade diante da miragem da vivência contemporânea.
No entanto, a disjunção esquizofrênica ou écriture, na opinião de
Jameson, não tem uma relação necessária com o conteúdo mórbido ou doentio que
associamos à palavra esquizofrenia e também se “torna disponível para intensidades
mais alegres, para aquela mesma euforia que vimos deslocando as afecções anteriores
de ansiedade e alienação” (idem, 1997:56).

258 Cláudio Clécio Vidal Eufrausino – O drama dos personagens de X-men como um novo caminho para
compreender a noção jamesoniana de identidade esquizofrênica
WOLVERINE: A TEIMOSIA DA ESSÊNCIA
Vejo flores no deserto; homens buscando o certo. Labirintos; fontes
do pecado.
Mapas que me levam ao passado. Reações impensadas. Mentes
alienadas
Sentimentos presos sem saída. Momentos de eterna despedida.
Vega

O personagem Wolverine representa uma terceira via da disjunção


esquizofrênica ou do individualismo pós-moderno. Vampira alegoriza a angústia
manifesta diante da esquizofrenia e Mística figura a indiferença (em certos momentos,
a excitação) diante deste fenômeno, sendo ambos os sentimentos decorrentes da idéia
de que a essência e o sentimento estão mortos na pós-modernidade. Já Wolverine
representará uma atitude de teimosia da essência e do sentimento, que insistem em
sobreviver.
A história desta personagem também é narrada de forma obscura em X-
Men. Não se sabe ao certo quem ele foi, no passado, havendo somente suspeitas de
que foi vítima de experimentos de guerra, como o de substituição de seu esqueleto
ósseo por um esqueleto de um metal chamado adamantium (liga indestrutível, cujo
nome é uma alusão à dureza do diamante). Não dá para saber ao certo se ele é jovem
ou velho, já que o seu poder de regeneração faz com que ele envelheça num ritmo
diferente do dos seres humanos considerados normais. Suspeita-se também que muitas
de suas memórias tenham sido implantadas por meio de lavagem cerebral.
Wolverine vive como um andarilho, sempre em busca de suas raízes e
de sua identidade, sendo atormentado por memórias confusas e desconexas. O futuro
para ele é bastante incerto, pois suas emoções e planos vivem em constante
reconfiguração, à medida que os diferentes passados gravados em sua mente o impelem
a seguir caminhos diversos. É um personagem que representa a perda da historicidade
ou da segurança ontológica9 do capitalismo tardio, que resulta na incapacidade de
estabelecer laços afetivos.
Este x-man aparenta estar sempre desdenhando as pessoas e convive
com elas como se estivesse sempre na defensiva porque, além do ressentimento com
o preconceito e a perseguição empreendida pelos seres humanos normais contra os
mutantes, não pode confiar no que sua mente lhe diz a respeito dos que o cercam.
Sabe que o que sente por alguém pode mudar a qualquer momento conforme sopram
os ventos de suas memórias, que não passam de simulacros, isto é, imagens que em
um instante aparentam ser reais e, no outro, totalmente ilusórias. Suas memórias, ao
invés de fortalecerem a idéia que o personagem possui do que é real, efetuam a

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.248-263 259


desrealização do mundo ao seu redor. São responsáveis por “momentos de hesitação
e dúvida” (Jameson, 1997:58) em que se questiona se o real não é algo imaginário ou
se o imaginário não é a realidade. A perda de referenciais faz com que Wolverine não
saiba se as pessoas que estão a seu lado são, ao certo, amigas ou inimigas.
Este personagem tem uma tendência a agir movido por instintos
animalescos,10 o que requer dele grande esforço para se autocontrolar. A confusão de
suas memórias faz com que este esforço seja ainda maior, pois ele tem medo de, por
conta de impressões erradas, vir a atacar inocentes ou poupar pessoas que possam
prejudicá-lo.
Apesar de seu jeito fechado e isolado, conseqüência desta disjunção
esquizofrênica, Wolverine teima em buscar valores essenciais, o que o faz, de maneira
contraditória, apegar-se facilmente. Idealiza as pessoas com base em poucos indícios
do que estas “são”, como se tentasse desesperadamente construir histórias de vida,
em miniatura, antes de tudo vir por terra devido aos terremotos de suas memórias
esquizofrênicas.
Da mesma forma que Wolverine constrói histórias de vida, em miniatura,
os contemporâneos construímos mundos em miniatura, a exemplo dos shopping
centers, na ilusão de que, nestes mundos, estaríamos a salvo da avalanche de valores
e práticas díspares do mundo existente do lado de fora. Festejamos nos shoppings a
diversidade, mas, na verdade, não buscamos lá nenhuma imprevisibilidade que quadros
de aviso ou balcões de informação não possam solucionar. Esses microuniversos
assumem o caráter de verdadeiros calidoscópios, simulando a novidade em verdades
velhas que propagam no espelho confuso das vitrines. A tristeza de Wolverine talvez
se deva ao fato de que ele, mesmo ansiando pela ficção da essência, termina sempre
por suspeitar da felicidade dos microuniversos e da fidelidade dos espelhos.

CLÁUDIO CLÉCIO VIDAL EUFRAUSINO é mestre em comunicação, mídia e cultura pela


Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Escolhido como um dos integrantes da publicação
“Jovens produtores de mídia” (2006), desenvolvida pela Unesco.

260 Cláudio Clécio Vidal Eufrausino – O drama dos personagens de X-men como um novo caminho para
compreender a noção jamesoniana de identidade esquizofrênica
NOTAS

1 O conteúdo entre [ ] é acréscimo meu.

2 A esquizofrenia vivenciada pela personagem é análoga a duas subdivisões


da doença descritas pelo “Manual de Diagnóstico de Transtornos Mentais” (DSM-
IV). Referimo-nos à esquizofrenia do tipo paranóide – caracterizada por idéias delirantes
e alucinações auditivas – e à esquizofrenia desorganizada, marcada por comportamento
e linguagem desorganizados (Disponível em www.clinicapsi.com, acessado em 28
de junho de 2006).

3 A própria idéia de identidade secreta dos super-heróis alegoriza este


mecanismo de autopreservação acionado pelo individualismo.

4 Vale destacar que o verbo tocar está relacionado também à idéia de


sensibilizar.

5 Sobre o conceito de pós-modernidade, conferir Jameson (1997). Nossa


conceituação parte da idéia jamesoniana de que a história não pode ser dividida em
blocos homogêneos. Cada período histórico é caracterizado por uma dominante
cultural. Descrevê-lo em termos de hegemonia cultural não significa sugerir uma
homogeneidade cultural massificada e uniforme no campo social, mas exatamente
levar em conta a coexistência da dominante com outras forças resistentes e
heterogêneas que ele tem tendência a dominar e a incorporar (idem:176).

6 Perceba-se que, como dominante, esta idéia não anula o efeito da ideologia
do Iluminismo, rivalizando com ela.

7 Trata-se de uma das estratégias criadas para lidar com a estrutura complexa
do labirinto. “Rapazes e moças alternados e com as mãos dadas em fila simulam o
percurso do labirinto por meio de uma dança típica. Há um guia em cada uma das
pontas da fila, o que significa que eles podem correr em qualquer um dos sentidos.
Diante de uma encruzilhada, o grupo pode percorrer simultaneamente as duas
alternativas, cada guia puxando o grupo para cada uma delas. Caso uma das alternativas
não tenha saída, o guia que se defronta com essa alternativa dá um grito e é logo
compreendido por seus companheiros: a fila passa a ser dirigida então pelo outro
guia até a próxima encruzilhada” (Machado, 1997:257). E assim por diante, até que
os dois condutores da dança se encontram.

8 Sobre a noção de descentramento, conferir Hall (1997).

9 “A segurança ontológica (...) se refere à crença que a maioria dos seres

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.248-263 261


humanos têm na continuidade de sua auto-identidade e na constância dos ambientes
de ação social e material circundantes” (Giddens:1991:95).

10 Wolverine tem os sentidos superaguçados, semelhantes aos de animais.


Mas, além dos sentidos, possui também um lado selvagem aguçado, o que o leva a
surtos de fúria repentinos.

262 Cláudio Clécio Vidal Eufrausino – O drama dos personagens de X-men como um novo caminho para
compreender a noção jamesoniana de identidade esquizofrênica
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DESCARTES, René. O discurso do método. São Paulo: Martin Claret, 2001.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador, vol. 1 – Uma história dos costumes.


Trad. Ruy Jungman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

GIDDENS, Antony. Conseqüências da modernidade. SãoPaulo: Editora


Unesp, 1991.

HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro:


DP & A, 1997.

JAMESON, Fredric. Pós-modernismo ou A lógica cultural do capitalismo


tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 1997.

MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e pós-cinemas. São Paulo: Papirus Editora,


1997.

MARCUSE, Herbert. Razão e revolução. Trad. Marília Barroso. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1978.

MARX, Karl. O manifesto comunista. São Paulo: Martin Claret, 2001.

ROUANET. Sérgio Paulo. Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia


das Letras, 1987. – não mencionado no texto.

REVISTAS:
X-Men, número 9. São Paulo, Abril Jovem, 1989.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.248-263 263


“Que a justiça seja feita”:
a dinâmica do esforço X recompensa
no Caldeirão do Huck
Fernanda Cupolillo Miana de Faria

COMPETIÇÕES E MELODRAMA
Com as luzes ainda apagadas, cinco dançarinas se encontram no
centro do palco e, ao som da música tema de Caldeirão do Huck, começam a
dançar. As luzes se acendem. Ao fundo, ouve-se a voz de Luciano Huck: “Quebra
tudo no Caldeirão”. O apresentador se dirige à platéia de jovens, com empolgação,
fazendo a abertura de seu programa. A platéia responde com gritos, assobios,
palmas. Todos dançam. As câmeras novamente se fecham nas dançarinas, que
sorriem animadamente. É assim que, nas tardes de sábado, na Rede Globo, tem
início o programa juvenil Caldeirão do Huck. No ar desde o ano 2000 nesta
emissora, o programa, com duas horas de duração, já passou por diversas
modificações; o histórico inclui atrações do tipo reality show (a exemplo do
“Acorrentados”), várias modalidades de jogos interativos, além dos quadros
vinculados aos personagens criados pelo programa. Apesar da remodelação
constante, uma modalidade específica de atração sempre esteve presente: os
jogos competitivos. Com ou sem a participação da platéia, os jogos já ofereceram
diversos tipos de prêmio: brindes com a logomarca do programa, dinheiro, papéis
em novela, reforma na casa, no carro, entre outras coisas.
Na terceira edição do programa no ano de 2007, exibida no dia 20
de janeiro, apesar de estarem incluídas alterações na programação em virtude da
passagem do ano, vários tipos de jogos e de competições estiveram presentes. A
partir da análise dessa edição do programa, escolhida em função de tais recentes
alterações, foi possível perceber nas atrações – mais especificamente, nos jogos
e/ou competições – uma mesma lógica norteadora (lógica que, aliás, está presente
na maioria das atrações que já fizeram parte do programa). Ou seja, a premissa
que orienta os jogos e/ou competições e que permite o seu pleno funcionamento
é uma só: a do esforço e recompensa. O prêmio a que os participantes dos jogos
concorrem tem que ser merecido. Mas não basta merecer; é preciso dar provas
visíveis – para a platéia e para o apresentador – de que se deseja o prêmio “mais
do que os outros” e de que se é capaz de tudo para alcançá-lo, inclusive um
desprendimento das convenções sociais. É preciso fazer “loucuras” para ter o

264 Fernanda Cupolillo Miana de Faria – Que a justiça seja feita:a dinâmica do esforço X recompensa no Caldeirão do Huck
prêmio (“pagar micos” em rede nacional, desafiar fobias, superar limitações).
Essa é a contrapartida que o apresentador solicita dos participantes; a forma
através da qual se materializa simbolicamente o esforço dos participantes; a forma
com que se honra o prêmio. O esforço é medido, portanto, na quantidade de
energia que se investe no sentido de alcançar o prêmio. Quanto maior a vontade
do participante de ganhar, percebida na sua disponibilidade para cumprir as metas
da prova (se possível, superando-as), maior é a sua capacidade de honrar o
prêmio.
Na edição do dia 20 de janeiro, todas as atrações do programa eram
jogos e/ou dinâmicas competitivas. Em todas, era possível perceber a incorporação
de elementos da matriz popular do excesso ou do chamado “fluxo do
sensacional”, 1 a exemplo daqueles comumente associados aos universos do
estranho e/ou bizarro e do erótico (o sensual, o quase pornográfico). Mais
marcadamente, no entanto, o melodrama esteve presente, em maior ou menor
grau, em todas as atrações, conferindo o tom do apresentador, que simbolicamente
desempenha um estratégico papel dentro do universo melodramático. Todos os
jogos, portanto, são marcados pelo excesso – tanto dos participantes, que estão
dispostos a tudo para ganhar o prêmio, como da platéia, que responde diretamente
ao excesso dos participantes por meio do seu grau de animação. É como se o
desempenho dos participantes refletisse diretamente na platéia, que, nesse sentido,
funciona como uma espécie de termômetro; quanto mais o desempenho for
ousado, desprendido, excessivo, mais intensa e eufórica é a resposta da platéia.
De acordo com Martín-Barbero,
“tudo no melodrama tende ao esbanjamento. Desde uma encenação
que exagera os contrastes visuais e sonoros até uma estrutura dramática e uma
atuação que exibem descarada e efetivamente os sentimentos, exigindo o tempo
todo do público uma resposta em risadas, em lágrimas, suores e tremores” (idem,
1997:166).

LUCIANO HUCK, O JUSTO


Além do excesso, há um outro elemento do universo melodramático
que é integrado ao programa, e incorporado pela figura do apresentador. Luciano
Huck materializa a figura do justo, responsável por tornar visíveis os “modelos morais
a serem seguidos” (Baltar, 2006:1); é ele quem funciona como modelo de
comportamento a partir do qual os outros são avaliados. Por mais que em alguns
momentos ele transfira para a platéia a responsabilidade de fazer uma avaliação, é ele
quem avalia a platéia, medindo as suas variações de comportamento. Além disso, ele

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.264-279 265


se fortalece no papel de justo na medida em que se mostra capaz de ouvir a maioria,
de ser democrático, de expressar a vontade geral.

“Jogos Tan-Tan Americanos”. A premiação do ridículo


A primeira atração da edição do dia 20 de janeiro (atração inaugurada no
ano de 2007), intitulada “Jogos Tan-Tan Americanos”, numa alusão aos Jogos Pan-
Americanos, tinha como propósito fazer com que cinco jovens fantasiados
atravessassem um trampolim fazendo uma performance amalucada (dançando, dando
saltos, fazendo palhaçadas etc.) e se jogassem “com vontade” numa piscina de plástico.
O participante que fosse capaz de arrancar mais aplausos da platéia por sua atuação e,
ao mesmo tempo, de derrubar mais água da piscina seria o ganhador. Ou seja, a
disputa envolvia uma etapa cuja avaliação seria mais de caráter subjetivo e outra de
caráter objetivo. Haveria também a premiação do segundo e do terceiro lugares. O
vencedor da disputa foi um jovem fantasiado de marinheiro que fez uma performance
que lembrava os movimentos do astro pop Michael Jackson. Dentre todos os
concorrentes, foi ele quem se mostrou mais disposto a pagar “um mico”: seus
movimentos foram mais exagerados, eloqüentes; a duração de sua performance foi
ligeiramente maior do que as outras; foi ele quem, enfim, conseguiu arrancar mais
risos e aplausos da platéia. Embora uma outra concorrente tenha conseguido derrubar
mais água da piscina, a atuação do marinheiro teve uma resposta mais animada do
público e lhe garantiu a vitória.
A estruturação do quadro está diretamente vinculada, portanto, ao
ridículo: os concorrentes apresentam-se fantasiados, têm que fazer uma performance
ao som de músicas que nada têm a ver com as fantasias e, além disso, ganha quem se
mostrar capaz de fazer os movimentos mais estranhos e inusitados. A incorporação
de elementos do universo do melodrama pode ser visualizada, para além do excesso,
na resposta do apresentador às performances. Luciano Huck tem uma postura
debochada e, na maior parte das vezes, refere-se às performances como “fraquinhas”,
“mais ou menos”, agregando a elas um grau maior de ridículo. Se os participantes
não se mostram “com vontade de ganhar”, dispostos a superar a timidez e a arrancar
risos da platéia, eles tornam-se mais suscetíveis aos deboches do apresentador. Se o
esforço não se mostra à altura da oportunidade que lhes foi dada (de ganhar o prêmio,
de ter alguns minutos de fama), o apresentador parece ter o direito de, legitimamente,
amparado pela platéia, desempenhar simbolicamente a função do justo ao contrário
(do carrasco), ridicularizando-os. Há que se ter em vista que em nenhum momento,
no entanto, Luciano se desprende da figura do justo. Além disso, Luciano a incorpora
na medida em que, como mediador dos interesses da platéia, é capaz de perceber o

266 Fernanda Cupolillo Miana de Faria – Que a justiça seja feita:a dinâmica do esforço X recompensa no Caldeirão do Huck
que mais lhe agrada. Ou seja, a justiça, mais do que com o concorrente, se dá na
relação com a platéia.

“Super Chance”. Fortes x fracos


O segundo quadro exibido, intitulado “Super Chance”, constitui uma
espécie de desafio: participam duas pessoas por semana e elas têm que tentar vencer
o desafio para ganhar o prêmio (que é acumulado, caso ninguém consiga cumprir as
atividades propostas). O desafio do momento é conseguir acertar uma bola no travessão
do gol, fazendo com que volte (ela não pode entrar no gol nem desviar para os lados).
O candidato conta com dez oportunidades de chute. Os participantes podem contar
ainda com a ajuda de um craque da bola. Na edição do dia 20 de janeiro participaram
Leonardo, Joseir e o craque Felipe Adão. O apresentador recebeu os candidatos no
palco com um tom sarcástico: “É uma grana... Chutar dez bolinhas no travessão e
levar 22 mil pra casa... Moleza, heim!”. Nenhum dos dois candidatos foi bem-sucedido
na execução da tarefa; nem mesmo o craque Felipe no seu papel de “especialista da
bola”. Segundo Luciano, “desperdiçaram” a “grande oportunidade” que supostamente
lhes foi dada. Durante o quadro, o tom debochado do apresentador ficou fortemente
marcado. Quando algum dos participantes errava o chute, Luciano dizia: “Vou ter que
ir aí mostrar como é que se faz esse negócio”. Em um determinado momento do
quadro, quando o segundo candidato já tinha “desperdiçado” quase todas os seus
chutes, Luciano fez uma intervenção: “Me empresta essa bola aqui um pouquinho,
antes de você pedir a ajuda do profissional”. O apresentador chutou a bola em direção
ao travessão e, como era a proposta do quadro, acertou no alvo, fazendo com que a
bola voltasse. Luciano foi ovacionado pela platéia e, novamente, utilizou-se de um
tom debochado: “Eu não vou fazer as dez aqui senão vão achar que é fácil demais.
Felipe, depois eu te dou umas dicas aí”.
Nesse quadro, os participantes, segundo o apresentador, não se
esforçaram o suficiente para ganhar o prêmio. Por isso, as ridicularizações de que
lançava mão a todo o tempo, em referência tanto aos participantes quanto ao craque,
eram legítimas. Ainda mais porque a oportunidade era considerada pelo apresentador
como “muito boa”, constatação feita, por exemplo, por meio de comentários do tipo
“moleza, heim!”. Mais uma vez, portanto, a figura do justo incorporada por ele se
deixa ver em suas falas e atitudes: na autoridade com que proclama os vitoriosos e os
fracassados, ou melhor, os dignos de premiação e os não-dignos de premiação; com
que afirma o “talento” e nega o que é “desengonçado”; com que separa o que é digno
de ser agraciado com a sua justiça e de se transformar em espetáculo do que é “perda
de tempo”. Há, portanto, de acordo com o que se pode depreender das falas/gestos

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.264-279 267


do apresentador, indivíduos que merecem a sua atenção e outros que não merecem;
em última instância, pode-se dizer que há duas espécies de indivíduo: os que respondem
às expectativas nele depositadas, os que sabem honrar investimentos e oportunidades
com esforço e dedicação e os que não alcançam os padrões mínimos de expectativa,
os que frustram a confiança neles depositada, os que não conseguem retribuir à
altura, os que desperdiçam as superchances da vida. Há os indivíduos bem-sucedidos,
os espertos, os habilidosos, os talentosos e também os fracassados, os lerdos, os que
dormem no ponto.
No programa Caldeirão do Huck, a lei que impera é a lei natural: os
fortes triunfam sobre os fracos. E quem gerencia essa lei natural, incorporando-a
simbolicamente e reproduzindo-a, é o apresentador; a sua justiça é uma réplica da
justiça natural, das leis da vida. Luciano Huck representa a verdade contida nessa lei
e dá pequenas mostras de que não é por acaso que ocupa esse lugar; por exemplo,
quando acerta a bola no travessão e ridiculariza os participantes (e se os fracos não
conseguem honrar suas oportunidades que, pelo menos, dêem uma esmola em diversão
aos espectadores, “pagando um mico”). A justiça, portanto, é mais do que somente
com a platéia; metonimicamente, é com a vida, com a lei que supostamente governa
a vida.

“Agora ou Nunca”
Uma reviravolta nos destinos (ou o retorno à origem)
Em uma edição do programa do ano de 2005, em um quadro (“Agora
ou Nunca”), sob muitos aspectos, semelhante a esse, e cuja moral norteadora é
2

também a do esforço x recompensa, veiculou-se a história de um pequeno craque da


bola. Essa história havia comovido há algum tempo vários espectadores, quando
exibida no programa dominical da Rede Globo, Fantástico: com apenas 10 anos, o
pequeno jogador, oriundo de uma classe economicamente desfavorecida, sustentava
com dificuldade toda a sua família exercendo tal atividade. Caldeirão do Huck
apresentou essa história e lançou um desafio que, caso fosse vencido, iria ajudar os
sonhos do pequeno jogador a se concretizarem. Ele teria que acertar a bola em
algumas partes do gol, separadas com bastões de ferro; atividade considerada na
ocasião pelo apresentador como simples, tendo em vista a pessoa que a realizaria,
um craque da bola. Se conseguisse tal proeza, ele estaria provando simbolicamente a
sua real habilidade como jogador. No momento específico em que o menino teria que
realizar a atividade, ele ficou extremamente nervoso e emocionado e não conseguiu
executá-la com sucesso. Todos os familiares presentes também se emocionaram. O
apresentador ficou sem graça quando percebeu que a atividade que considerava ser

268 Fernanda Cupolillo Miana de Faria – Que a justiça seja feita:a dinâmica do esforço X recompensa no Caldeirão do Huck
simples não foi cumprida, mas disse que, em nome da justiça não poderia premiar o
jogador.
Luciano Huck parecia não se deixar envolver emocionalmente com o
inusitado episódio, embora toda a composição do quadro convidasse o espectador a
um extremo envolvimento: foram exibidos closes do jogador, de seus familiares e da
platéia emocionados; a música acentuava o sentimento de tristeza; a história de
dificuldades do menino parecia ser invocada com a sua derrota e, simbolicamente,
perpetuava-se (o menino não foi capaz de romper com a sua história, dando a ela um
novo rumo; pelo contrário, foi engolido por ela, pelo seu destino). O menino parecia
não conseguir cruzar a fronteira entre o seu passado de dificuldade e o seu futuro
promissor, e, pela forma como Luciano Huck argumentava, isso se devia, em grande
parte, a uma escolha. Só o menino e mais ninguém, naquele momento, parecia ser
capaz de interferir naquele destino e mudar seu trajeto. Luciano Huck, simbolicamente,
lavou as mãos: deu a oportunidade e demonstrou vontade em ajudar, mas o participante
não correspondeu à confiança nele depositada, não conseguiu aproveitar a oportunidade;
enfim, escolheu não ganhar.
Embora o cenário em que o jogo se desenrolou em muitos aspectos
lembrasse o universo do melodrama, da comoção, do envolvimento, havia uma outra
força, contrária, que se movimentava subterraneamente na dinâmica dos diálogos e
das cenas, abrindo o terreno para que a moral emergisse, sem que qualquer espécie
de bloqueio sentimental a fizesse recuar. Ao mesmo tempo em que as histórias que
nos eram passadas através do programa nos faziam estar envolvidos e comovidos, a
neutralidade do apresentador, honrando o lugar de juiz que ocupava, despontava nos
clímax narrativos, freando a emoção e afirmando o lugar da razão. Os indivíduos,
espectadores, eram convocados a reassumirem seus lugares na cadeira, como meros
espectadores, e a deixar o desfecho da história nas mãos do apresentador, que,
ironicamente, ao dizer-se submisso às leis da justiça, pediu à platéia que “recobrasse
seu juízo”, seu estado “normal de consciência” (e de distanciamento) e se afastasse
do drama narrado, sem culpa ou peso (pois essas sensações só cabiam ao próprio
desafiante, personagem de uma cena em que o ideário do self made man era despertado
sob condições artificiais).
Georg Simmel contextualiza a intensificação da “moral da neutralidade”
na modernidade. Segundo ele, na metrópole “a economia monetária e o domínio do
intelecto estão intrinsecamente vinculados. Eles partilham uma atitude que vê como
prosaico o lidar com o homem e coisas; e, nessa atitude, uma justiça formal
freqüentemente se combina com uma dureza desprovida de consideração” (Simmel,
1979:13). Mas para além dessa “justiça formal” e “falta de consideração” de que fala

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.264-279 269


Simmel em referência aos modelos de relacionamento que se construíram a partir da
modernidade, pode-se dizer que há um outro elemento que faz com que a atitude de
Luciano Huck seja neutra (até porque antes de a prova ser completada o apresentador
torce pelo participante, demonstra empolgação etc.). Luciano Huck se apropria do
discurso da neutralidade porque se apresenta como guardião de uma suposta lei natural
da vida; ele se comporta como uma espécie de árbitro que regula essa lei, fazendo
com que ela se perpetue, até mesmo quando pretende estar interferindo no fluxo
natural da vida ao eleger alguns candidatos para concorrer aos prêmios. Pois o que
Luciano Huck faz, na verdade, não é de forma alguma interferir estruturalmente no
funcionamento da lei; ele se limita a adiantar alguns feitos que a vida, espontaneamente,
em função das características de personalidade dos participantes, se encarregaria de
trazer. A justiça, nesse caso, não se dá somente na relação com a vítima (outro
personagem típico do universo melodramático), representada pelo pequeno jogador.
A justiça de que Luciano Huck se mostra porta-voz sublima as pequenas causas; ela
tem a eloqüência de um discurso que se pretende democrático, ela se mostra capaz de
agir em função de uma maioria. Luciano é impelido a se cegar para a condição do
menino e a abraçar o valor que orienta a atração, que transpassa o singular e o individual.
A lei não pode ser quebrada sob nenhuma condição; tem que se mostrar ativa a todo
instante, pois fornece parâmetros coletivos para a ação.
Quando Luciano Huck diz que não vai premiar o jogador, apesar de seu
talento e de sua necessidade, ele está dizendo que “essa é a lei da vida”, que “é assim
que a vida funciona” e que ele nada pode contra essa força que irrompe da natureza,
e que ele traduz corporalmente e verbalmente sob o signo de justiça. A vítima, nesse
caso, em favor da qual o justo orienta a sua ação (isso se recorremos ao acervo do
universo melodramático), não se metamorfoseia em herói; pelo contrário, ela é
penalizada pelo justo pela sua falta, pelo seu erro de cálculo e obrigada a retornar ao
lugar primeiro de onde sua ação se originou, ou seja, ela é obrigada a retomar o seu
lugar e a sua função social. “Você não mereceu, você não fez por merecer”: é isso o
que parecemos escutar ao nos deparar com tal conflito. Mas paradoxalmente Luciano
Huck não se desprende da função do justo ao deixar desamparada a vítima: ele “salva
a vítima e castiga o traidor” (Martín-Barbero, 1997:164). Além disso, “é, pela
generosidade e sensibilidade, a contraface do traidor (...) e tem por função (...) desfazer
a impostura e permitir que a ‘verdade resplandeça’” (idem, ibidem). Luciano Huck
salva a vítima dando a ela uma oportunidade, mas quando ela não é capaz de
corresponder a essa oportunidade, ele castiga o gesto de traição que a vítima cometeu
para consigo. Ele castiga o agente da traição; nesse caso, a própria vítima, que foi
incapaz de “agarrar a chance”. A verdade que resplandece é a verdade do merecimento;

270 Fernanda Cupolillo Miana de Faria – Que a justiça seja feita:a dinâmica do esforço X recompensa no Caldeirão do Huck
Luciano parece ter o poder de revelar, como um bruxo, uma verdade oculta dos
participantes em razão de sua vitória ou fracasso (que é diretamente proporcional ao
merecimento do prêmio). Se o participante vence a prova, ele não só é capaz de
ganhar o prêmio, como merece ter seus traços de caráter exaltados; ele é exibido não
somente como ganhador de uma prova, mas como um ganhador genérico, ou seja,
um indivíduo que possui espírito de vencedor. Nesse sentido, o vencedor da prova se
configura como um exemplo de indivíduo através do qual se pode visualizar uma
trajetória ascendente rumo ao sucesso na vida em função de suas supostas qualidades
(p. ex., coragem, persistência, eficiência, capacidade de superação etc.). Se, pelo
contrário, o participante perde a prova, ele abre uma brecha para que o apresentador
dele deboche (é como se ele mesmo, simbolicamente, pedisse para ser repreendido
em sua ação). A mesma lógica que se imprime ao vencedor é aplicada ao participante
que perdeu a prova; ele passa a ser visto não só como aquele que não foi capaz de
vencer a prova, mas como alguém que possui determinados traços de caráter ou de
personalidade que o impedem de ser um vencedor. Luciano Huck não se opõe, portanto,
nem à natureza da vida, nem à natureza interna dos participantes: ele deixa que elas
aflorem, como se fossem únicas, coerentes e homogêneas.

“Lata Velha”
A posse simbólica dos destinos: o poder de dar e o de tirar
O terceiro quadro da edição do dia 20 de janeiro foi pinçado do arquivo
do programa. Intitulado “Lata Velha”, o quadro tinha como propósito selecionar um
candidato (via carta) que quisesse ter seu carro reformado pela equipe do programa.
Nesse dia, o selecionado foi o senhor Antônio Pinto. Antes do primeiro contato do
apresentador com o “sortudo”, armou-se um esquema, com o auxílio de policiais, em
que Antônio iria ser constrangido a parar de circular com seu carro, que se encontrava
em más condições de conservação. Esse artifício de antecipação de que Luciano
Huck faz uso encontra eco no universo melodramático, constituindo-se como elemento
que, a um só tempo, costura a narrativa e mobiliza o público no sentido de um
envolvimento mais intenso em relação a ela. Isso porque no momento em que Luciano
Huck arquiteta o esquema, elabora o plano, ele o torna visível ao espectador,
compartilhando o mapa de dramatização que irá ser seguido pelos personagens (e ao
qual eles não têm acesso no momento). Segundo Mariana Baltar, a antecipação constitui
uma das três principais categorias “para entender os procedimentos do excesso nas
narrativas, especialmente as audiovisuais, que se vinculam ao melodramático” (idem,
2006:5). As outras duas categorias, também presentes no programa são: “a obviedade
como estratégia, o que se apresenta como uma narrativa em superfície e uma

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.264-279 271


superutilização de metáforas visuais, através da simbolização exacerbada, para amarrar
o engajamento dos espectadores” (idem, ibidem). A característica da obviedade surge
em vários momentos da narrativa, sobretudo a partir das pistas deixadas pelo
apresentador: por mais que em alguns momentos Luciano Huck tente imprimir uma
tensão à narrativa, no sentido de conferir a possibilidade de o espectador ter uma
margem de dúvida com relação ao seu desenrolar e desfecho, ela parece seguir um
fluxo unidirecional. As tensões parecem ser pequenos obstáculos incapazes de frear a
“força de realização” da “vontade” de Luciano Huck anunciada no início do quadro. O
apresentador quer reformar o carro, quer ajudar Antônio, quer modificar sua vida
(para melhor). Muitas das tensões que o apresentador busca imprimir à narrativa,
tentando abrir uma brecha para a dúvida com relação ao destino de Antônio, portanto,
soam artificiais, e inúmeros signos apontam para isso, a exemplo da empolgação do
apresentador.
É preciso fazer uma breve diferenciação, no entanto, desse quadro com
o anterior, para que fiquem claras algumas diferenças na forma de condução de ambos:
ao contrário do quadro anterior, esse é pré-gravado. Isso implica uma outra estratégia
de narração por parte do apresentador, que, em vários momentos nos quais se dirige
ao espectador, já se encontra a par do desfecho da história. O apresentador dispõe,
portanto, de um repertório mais amplo de dramatização para costurar a história. No
quadro anterior, pelo contrário, há uma outra temporalidade, pois a narração se dá ao
vivo: o apresentador tem que lançar mão de artifícios mais restritos no sentido de
incrementar a narrativa com suspense, expectativa, tensão etc. Tal diferença na
temporalidade da narrativa nos fornece uma via possível para compreender a variação
entre um quadro e outro do emprego do recurso da obviedade. Por mais que nesse
quadro, no entanto, o desfecho da história nos pareça cristalino em vários momentos
— se levarmos em conta, por exemplo, a dramatização do apresentador e o seu
excesso de vontade de fazer o bem —, isso não é suficiente para que esse bem se
concretize: é preciso uma contrapartida do interessado. E é em cima dessa necessidade
de contrapartida do interessado que Luciano Huck procura sustentar toda a tensão da
narrativa.
Depois que o carro de Antônio Pinto (com que ganha a vida, vendendo
galinhas e ovos) foi cercado por policiais, foram exibidas algumas imagens com o seu
desconforto perante a situação, o seu constrangimento e incapacidade de reação.
Luciano Huck aparece de repente, reforçando a pré-imagem do espectador com relação
ao desenrolar da história (já que esse encontro estava subentendido no momento em
que foi feito o contrato de silêncio entre o apresentador e o espectador, que é convidado
a apoiar a brincadeira de Luciano Huck, como se ele estivesse ali, participando da

272 Fernanda Cupolillo Miana de Faria – Que a justiça seja feita:a dinâmica do esforço X recompensa no Caldeirão do Huck
armadilha). Luciano Huck é recebido com lágrimas e surpresa; explica a situação para
Antônio e sua família e tenta deixá-los descontraídos: “Seu nome é Antônio Pinto. Cê
nasceu pra isso, vender pinto, né?!” O apresentador faz promessas de que vai deixar
a Piubinha (apelido do carro de Antônio) a Belina mais bonita do Brasil, mas sob a
condição de que Antônio e sua esposa dêem algo em troca para o programa: “Na vida
de vocês, nada veio fácil, né?! No Caldeirão, nada vem fácil também. Eu transformo
ela, mas vocês vão ter que se transformar também. Vocês vão ter que ir no palco do
Caldeirão e dançar tango. Se vocês dançarem bem e a galera gostar, eu devolvo a
Piubinha; se não, eu leilôo ela e dôo o dinheiro para o Criança Esperança”.
Por meio das falas de Luciano Huck pode-se perceber o papel que ele
parece se auto-atribuir na relação com aquele que é agraciado pelos seus feitos: ele
assume o papel de uma autoridade, de um gerenciador. Luciano Huck parece saber o
que é melhor para a vida de Antônio, mais do que o próprio Antônio e, por isso,
submete-o a algumas de suas visões e vontades, como se elas expressassem um
desejo e/ou um sonho de Antônio. O apresentador promete transformar a Piubinha na
Belina mais bonita do Brasil (embora em nenhum momento Antônio seja convidado a
opinar sobre o novo visual de seu carro) e, ao mesmo tempo, submete a família a uma
prova de superação. Luciano Huck parece ter o direito, em virtude de estar ajeitando
a vida de Antônio, de não só ser um representante legítimo de suas escolhas e vontades
como de dar ordens e fazer chantagens. O apresentador estabelece, portanto, algumas
condições para que o carro seja reformado (lembrando que essa reforma é de acordo
com o seu gosto pessoal e o de sua equipe): Antônio e sua esposa terão que: 1) fazer
aulas intensivas de tango; 2) aparecer no programa Caldeirão do Huck; 3) dançar
tango; 4) dançar bem o tango; 5) fazer com que “a galera” (a platéia) aprecie a dança.
Caso essas condições não sejam cumpridas, Luciano Huck terá o direito (de acordo
com suas próprias palavras) de se apossar do carro de Antônio (que, segundo Luciano
não passa de “ferro-velho”, sendo que é por meio desse ferro-velho que Antônio e sua
família se sustentam), leiloá-lo e doar o dinheiro para o Criança Esperança. Embora
essa frase esteja atravessada por um tom de ironia, ela reforça a situação desfavorecida
de Antônio, por um lado, e o poder de que o apresentador se reveste, por outro; ela
reforça, portanto, o novo status de Luciano Huck com relação à vida de Antônio (o
apresentador parece ter domínio sobre a sua posse e o seu destino; o poder de dar,
mas também de tirar). Tudo parece depender, apenas, do livre arbítrio de Antônio, da
vontade de ganhar o prêmio (avaliável, segundo o apresentador, pela performance de
dança); se a vontade for proporcional ao tamanho do prêmio, ele merecerá ganhar,
caso contrário, será roubado (sendo que esse roubo não irá se configurar como
roubo, mas como uma lição, uma repreensão, um castigo).

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.264-279 273


Antônio e sua esposa passam a ter aulas de tango com o dançarino
Carlinhos de Jesus. São exibidas imagens dos ensaios em que eles se mostram
preocupados com os passos da dança: “Eu acho que eu não vou conseguir. É muito
difícil”, diz a esposa de Antônio. Carlinhos de Jesus a todo tempo aparece dando
broncas pela má atuação de ambos: “Isso vale um carro, heim! Tem que se ligar,
heim! (...) Não, não! Vocês estão desatentos. Já estamos no quarto dia e vocês estão
errando coisas do primeiro. Eu não vou estar lá na hora para ficar contando os passos.
(...) Não, não, não!” Tudo parece indicar que Antônio e sua esposa não conseguirão
dançar o tango; essa impressão fica ainda mais forte com o depoimento final de
Carlinhos de Jesus: “Eu posso dizer que em trinta anos de profissão eu nunca peguei
um casal que me desse tanta dificuldade. Isso está sendo um desafio pra mim. Eu vou
torcer por eles, mas estou achando difícil”. De acordo com Carlinhos de Jesus, um
dos mais renomados professores de dança do Rio de Janeiro, eles não conseguem se
organizar minimamente para aprender os passos básicos da dança. As dificuldades do
casal parecem estar associadas, simbolicamente, a uma falta de vontade de ganhar o
prêmio. Subentende-se, por meio de sua fala, no entanto, que há, além de uma “falta
de vontade”, uma dificuldade “anormal” para aprender; em última instância, uma
dificuldade de aprendizagem. Carlinhos de Jesus parece querer dizer que eles são
burros, pois não conseguem ouvir o que o professor está dizendo e responder
corporalmente aos ensinamentos. “Não, não, não”: essas são as palavras mais
recorrentes do professor no vídeo que exibe sua interação com os alunos. Nem a
repetição à exaustão pelo professor dos passos da dança parece ser capaz de habilitá-
los para uma boa performance: “Estou achando difícil” é o recado que Carlinhos de
Jesus transmite ao Caldeirão do Huck, em forma de laudo, de veredicto.
Nessa passagem do quadro, instaura-se um forte clima melodramático:
as dificuldades do casal no aprendizado da dança constituem uma espécie de
prolongamento de suas dificuldades cotidianas. Carlinhos de Jesus parece funcionar
como um guia para o novo mundo, para a nova vida, mas uma dificuldade
desconhecida, que o professor não consegue acessar, o está impedindo de ajudá-los.
Forma-se no programa uma breve narrativa rocambolesca,3 folhetinesca, ressaltando
conflitos e embates recorrentes e sem resolução aparente, que se sucedem e formam
uma teia: o casal parece estar sendo engolido pelas dificuldades e tudo indica que não
irão conseguir superá-las. Mas não se pode esquecer da vontade primeira de Luciano
Huck em ajudar Antônio (vontade que, inclusive, instaura e norteia o quadro); em
alguns breves instantes, ela ressurge na narrativa do programa, distribuindo esperança.
E se Carlinhos de Jesus funciona como um guia, alguém que irá conduzir o casal em
direção à realização do sonho, Luciano Huck atua como o arquiteto do sonho, alguém

274 Fernanda Cupolillo Miana de Faria – Que a justiça seja feita:a dinâmica do esforço X recompensa no Caldeirão do Huck
que reúne todas as condições materiais necessárias para que ele se realize; em última
instância, Luciano Huck se metamorfoseia no sonho. Ele o toma emprestado de Antônio,
o transforma e o devolve; além disso, o sonho carrega as marcas de Luciano Huck,
de suas próprias vontades e desejos. Já Antônio aparece como a vítima: “personagem
cuja debilidade reclama o tempo todo proteção – excitando o sentimento protetor no
público – mas cuja virtude é uma força que causa admiração e de certo modo tranqüiliza”
(Martín-Barbero, 1997:164). E apesar de sua força ser posta à prova o tempo inteiro,
de ser questionada, ela é, ao final de sua apresentação de tango no Caldeirão do
Huck, exaltada por Carlinhos de Jesus como aquilo que o permitiu ganhar o prêmio:
“Essa semana, eu aprendi muito com eles. Eles foram campeões na vontade de ganhar,
na superação, no esforço”.
A frase soa contraditória tendo em vista os comentários de Carlinhos de
Jesus durante os ensaios, mas as dificuldades enfrentadas no percurso constituem,
em última análise, mais um cenário de uma narrativa rocambolesca, elementos que
conferem dinamismo à história (para que ela não se revele apressadamente linear), do
que indicadores de um fracasso. Catarticamente (o que só seria possível em função
das dificuldades enfrentadas e superadas), Antônio se encontra com seu sonho vivo:
“Está melhor assim, dez mil vezes. Só Deus pra lhe pagar”. Luciano Huck retruca:
“Entra aí, fica à vontade cara”. Luciano Huck parece abrir a porta de sua casa à
Antônio, convidando-o para entrar num sonho que é tanto de Antônio como dele
mesmo. O sonho de Antônio parece estranho a ele (parece mais do que seu sonho);
ele não o reconhece. A catarse se completa, portanto, não só pela conquista de Antônio,
mas por seu encontro com algo que está além de seu sonho, com algo inimaginável
por ele até mesmo em sonho.
Na edição do dia 20 de janeiro, terminada a exibição do arquivo “Lata
Velha”, Luciano Huck convida ao palco Antônio Pinto, acompanhado da cantora de
funk Deise Tigrona. Ambos cantam o novo sucesso veiculado pelo “carro do ovo” de
Antônio, reformado pelo Caldeirão do Huck. Luciano se dirige a Antônio como MC
Pinto, e seu novo sucesso é chamado de “funk do ovo”. Luciano Huck mostra-se
contente com as novas conquistas de Antônio (que está fazendo sucesso com seu
carro e vendendo muito mais do que antes de ele ser reformado). O seu investimento
em Antônio e em seu carro parece ter dado certo: Antônio mostrou ter espírito de
vencedor ao se propor novos desafios e ir em busca de novas conquistas. Mas o
sucesso de Antônio – é preciso ressaltar – não se deve simplesmente ao seu espírito
empreendedor; ele é produto da ação direta de Luciano Huck. A apresentação de
Antônio nos palcos do Caldeirão não constitui somente uma celebração de suas
conquistas, mas uma exibição do poder de Luciano Huck (investido simbolicamente

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.264-279 275


no carro), de suas estratégicas visões de mercado. O apresentador firma-se, portanto,
como um empresário com olho clínico na detecção não só de indivíduos com potencial
para o sucesso, mas de produtos capazes de conquistar a atenção dos indivíduos, ou
seja, que tenham potencial para o sucesso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Musa do Caldeirão 2007”


A objetividade como parâmetro para a avaliação
e o lugar social do apresentador
A última atração do Caldeirão do Huck foi uma etapa eliminatória do
concurso de “Musa do Caldeirão 2007”. Cinco pessoas integravam a comissão
julgadora: dois jornalistas, um maquiador, um cantor e uma consultora de moda.
Dentre sete candidatas, duas teriam que ser selecionadas como semifinalistas. Luciano
Huck estabeleceu os critérios da avaliação: “Ganha aquela que tiver beleza, carisma e
o melhor samba no pé”. A platéia também teria direito a um voto. Nesse quadro,
alguns elementos do universo do erótico conduziram a apresentação: além das roupas
sensuais das concorrentes e de seus movimentos sensuais durante a dança, as câmeras
focalizavam os seios, nádegas e pernas das concorrentes. Apesar de todas as candidatas
demonstrarem bastante empolgação enquanto faziam a dançavam, ganharam as duas
que, além de terem corpos bem torneados e uma beleza “imponente”, “deram de
tudo” durante a apresentação do samba, fazendo movimentos ousados e inusitados.
Esse foi o quadro em que Luciano Huck menos interferiu na avaliação
dos concorrentes; havia uma equipe de especialistas (pelo menos, foi assim que o
apresentador identificou os jurados) responsável por dar uma avaliação precisa sobre
a performance das candidatas. Os jurados, da forma como foram apresentados,
pareciam estar investidos da missão de detectar as melhores candidatas, como se isso
pudesse ser medido unicamente por critérios objetivos. Luciano Huck apresenta-se
como justo na medida em que é capaz de concordar com a avaliação dos jurados, que
supostamente traduzem uma verdade do mundo por meio de sua análise objetiva e de
coordenar a avaliação dos jurados à avaliação da platéia. A eleição da musa, portanto,
supostamente expressa uma vontade geral, por mais que a voz do apresentador pareça
se anular em função disso. Essa anulação, no entanto, constitui uma prova de sua
capacidade para coordenar o interesse da maioria, de exercitar o seu senso de justiça.
Luciano Huck não se anula quando deixa de apresentar um veredicto sobre a
performance; pelo contrário, coloca-se como alguém que está acima das divergências

276 Fernanda Cupolillo Miana de Faria – Que a justiça seja feita:a dinâmica do esforço X recompensa no Caldeirão do Huck
de opinião porque é capaz de captar a verdade (seja porque ela é expressão de uma
maioria, seja porque ela parece traduzir a natureza da vida). E é justamente porque é
dotado dessa característica que se apresenta como alguém capaz de se expressar pelo
outro, em nome do outro, até mesmo quando estão envolvidos sonhos e desejos
desse outro.
Mas o que esse senso de justiça esconde não é simplesmente uma vocação
democrática, mas um forte autoritarismo: o centro do mundo parece girar em torno
de suas visões e percepções, que julga verdadeiras e neutras o bastante para serem
representativas de uma maioria. Na verdade, essas visões estão fortemente marcadas
por gostos e preconceitos de classe, por percepções de mundo singulares à sua trajetória
de vida e não são capazes de expressar uma natureza do mundo (a não ser a natureza
de uma cultura, que é uma construção e está sempre em movimento – embora seja
tomada aqui como única e universal). Luciano Huck é justo, portanto, tão e somente
no sentido de perpetuar o seu lugar de classe, as visões tradicionais que atravessam o
seu lugar social e que são compartilhadas, em grande parte, pela sua platéia (parte
integrante apenas de um universo social muito mais amplo e complexo).

FERNANDA CUPOLILLO MIANA DE FARIA é mestranda em Comunicação do Programa de


Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente desenvolve uma pesquisa
sobre as abordagens behaviorista e evolucionista das reportagens de comportamento das revistas
Veja, Época e Istoé, orientado pela professora doutora Ana Lúcia Enne. É membro do GRECOS,
Grupo de Estudos em Comunicação e Sociedade, coordenado pela professora doutora Ana Lúcia
Enne. Principais publicações: “Por um mundo de palavras vivas: os jornalistas e o imperativo da
neutralidade”, Revista Ciberlegenda (Comunicação/UFF) e Revista Garrafa (Letras/UFRJ).

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NOTAS
1 “Como aponta Marialva Barbosa, há um fluxo do sensacional que remete
aos tempos imemoriais, funcionando como protocolos de leitura para diversos
segmentos sociais em sua relação com as práticas da comunicação, sejam
predominantemente orais ou já atravessadas pela escrita e pela imprensa.
Trata-se do universo da cultura popular, sempre circular, dinâmica e em
interação com os diversos mundos que a cercam e a compõem. (...) Para a autora, ‘o
popular é formado, na longa duração, pela mescla dos dramas quotidianos, pelos
melodramas, pelas estruturas narrativas que apelam a um imaginário que navega entre
o sonho e a realidade’” (Enne, 2006).

2 Nesse quadro, somente uma pessoa participa, sendo que ela se


transforma, momentaneamente, numa espécie de personagem do programa; sua história
e/ou drama de vida são mostrados em vídeo; e os desafios são diferentes a cada
semana, variando conforme sua história, suas dificuldades e seus desejos. É interessante
ainda tecer breves considerações sobre o nome da atração: “Agora ou Nunca”. Ele faz
parecer que a oportunidade dada à pessoa pelo programa é única e nunca se repetirá.
Além disso, o desafiante é chamado para o desafio, é convocado a encará-lo, corajosa
e solitariamente, sem nenhuma força externa a atrapalhar o embate. O programa
parece dar a oportunidade de o desafiante lutar contra seu próprio destino, invertendo
seu fluxo habitual, e, por isso, coloca-o numa espécie de ringue para estimulá-lo a
lutar consigo próprio, superando limites e dificuldades até então invencíveis.

3 “Os grandes gêneros populares do século XIX engendraram todo um


campo semântico intercambiável e de carga altamente pejorativa. Melodrama,
melodramático, folhetim, folhetinesco conotando previsíveis e redundantes narrativas,
sentimentalismo, pieguice, lágrimas, emoções baratas, suspense e reviravoltas,
linguagem retórica e chapada, personagens e situações estereotipadas etc. No referido
campo semântico também está acoplado o rocambolesco, sinônimo de delirante
aventura, enrolada como o bolo ao qual deu nome” (Meyer, 1996).

278 Fernanda Cupolillo Miana de Faria – Que a justiça seja feita:a dinâmica do esforço X recompensa no Caldeirão do Huck
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALTAR, Mariana. “Moral deslizante. Releituras da matriz melodramática


em três movimentos”. Texto apresentado na XV COMPÓS. Bauru, 2006.

ENNE, Ana Lúcia. “O caso ‘Mão Branca’ e o fluxo da narrativa do


sensacional”. Artigo apresentado no VIII Congresso ALAIC. São Leopoldo,
2006.

Martín-Barbero, Jesus. “Do folclore ao popular”, in Dos meios às mediações.


Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.

MEYER, Marlyse. “Os modos de produção rocambolesca”, in Folhetim:


uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SIMMEL, Georg. “A metrópole e a vida mental”, in Otávio Guilherme Velho


(org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

SINGER, Ben. “Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo


popular”, in Leo Cherney & R. Schwartz (org.). O cinema e a invenção da
vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

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280
Projeto Obitel e ficção televisiva
no espaço ibero-americano
Maria Immacolata Vassallo de Lopes

O Obitel – Observatório Ibero-americano da Ficção Televisiva – foi


fundado em 25 de fevereiro de 2005, na cidade de Bogotá. É formado por
investigadores universitários e especialistas internacionais de teledramaturgia de
oito países e pretende ampliar-se, incorporando outros países da região.
Sabe-se que a ficção televisiva é hoje um enclave estratégico para o
audiovisual nacional e ibero-americano, tanto por seu peso no mercado televisivo,
como pelo papel que joga na produção de imagens que esses países fazem de si
mesmos e através das quais se reconhecem culturalmente. A telenovela,
especialmente, tem sido um fator determinante na criação de uma capacidade
televisiva nacional que se projetou não só numa larga produção como também
numa particular apropriação do gênero em cada país.
Obitel faz parte de um conjunto de esforços para a promoção da
integração do espaço ibero-americano e também para a mobilização do mercado
mundial da ficção televisiva. O objetivo central é estimular a cooperação e o
intercâmbio de conhecimentos para fomentar o desenvolvimento da pesquisa e
da formação sobre a produção, circulação e recepção da teleficção no espaço
audiovisual ibero-americano.
Para tanto, o Observatório pretende publicar um estudo anual da
indústria ibero-americana, o Anuário Obitel, que visa apresentar tanto dados
sobre a evolução da produção, recepção e impacto da ficção televisiva em cada
um dos oito países, bem como realizar a comparação das características e
tendências entre eles.
O marco teórico-metodológico é unificado e tem por base o
monitoramento de todos os programas de ficção produzidos por esses países e
levados ao ar durante o ano nos canais de televisão aberta.
Esse estudo sistemático da ficção televisiva no plano nacional, regional
e internacional tem por finalidade nutrir projetos de investigação acadêmica e
não-acadêmica e propor políticas públicas para a televisão, além de fornecer
informação anual atualizada destinada ao conhecimento da produção ficcional
televisiva de cada país e do espaço ibero-americano.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 280-291


281
Os pesquisadores-membros do Obitel são os seguintes: Maria
Immacolata Vassallo de Lopes – Universidade de São Paulo, Brasil (coordenação
geral); Lorenzo Vilches – Universidad Autônoma de Barcelona, Espanha
(coordenação geral); Guillermo Orozco Gómez – Universidad de Guadalajara,
México; Isabel Ferin Cunha – Universidade de Coimbra, Portugal; Nora Mazziotti
– Universidad Nacional de La Matanza, Argentina; Omar Rincón – Universidad
Javeriana, Colombia; Tomás López-Pumarejo – City University of New York,
Estados Unidos; e Valerio Fuenzalida – Universidad Católica de Santiago de Chile,
Chile.

MARIA IMMACOLATA VASSALLO DE LOPES é coordenadora do OBITEL e do Núcleo de


Pesquisa de Telenovela da ECA-USP.

282 Maria Immacolata Vassallo de Lopes – Projeto Obitel e ficção televisiva no espaço ibero-americano
Novelas exportação

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 280-291 283


Cartaz de Mujeres Apasionadas

284 Maria Immacolata Vassallo de Lopes – Projeto Obitel e ficção televisiva no espaço ibero-americano
Convite para seminário, novembro 2006

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 280-291 285


Cartaz de seminário, outubro de 2005

286 Maria Immacolata Vassallo de Lopes – Projeto Obitel e ficção televisiva no espaço ibero-americano
Cartaz do curso Obitel em Guadalajara

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 280-291 287


Amor real

Os ricos também choram

288 Maria Immacolata Vassallo de Lopes – Projeto Obitel e ficção televisiva no espaço ibero-americano
Coração selvagem

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 280-291 289


Juana Iris

290 Maria Immacolata Vassallo de Lopes – Projeto Obitel e ficção televisiva no espaço ibero-americano
O direito de nascer

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 280-291 291


292
O telejornal de Bart e Lisa Simpson TRAVANCAS,


Isabel.



Igor Sacramento


Juventude e



Toda mídia imagina seu público. O Jornal Nacional televisão:um



também imagina o seu: o Homer Simpson, um homem que já passou estudo de


dos 40, que está infeliz com o trabalho, que tem que sustentar a


recepção do


mulher e três filhos (dois adolescentes e uma criança), que tem


Jornal Nacional


como maior diversão a cerveja com os amigos no, de sempre, Bar do


Moe e que já está acomodado demais para mudar. Um homem médio entre jovens



da classe média; é preguiçoso e tem raciocínio lento. Como disse o universitários


editor-chefe do telejornal mais importante do país, William Bonner, cariocas.



numa polêmica reunião de pauta em que professores universitários


Rio de Janeiro:


estavam presentes, o programa é feito para que “o Homer possa


entender” (Leal Filho, 2005). Se ele não entende, não entra. FGV,



Todavia, Bart e Lisa também assistem ao programa; 2007


gostam e desgostam, aceitam e questionam assim como os Homers



do Brasil. Fazem isso por eles mesmos ou pela formação social que



os constitui? No fundo, há mesmo diferenças entre esses extremos?


Isabel Travancas, no recém-lançado Juventude e televisão
(2007), propõe um estudo da recepção daquele noticiário televisivo a
partir de um grupo de 16 jovens universitários cariocas de diferentes
classes sociais, estilos de vida, bairros de moradia, carreiras e religiões.
Cinco são alunos de Serviço Social; cinco, de Comunicação Social; três,
de Pedagogia; e três, de Medicina. Cinco moram na Zona Sul; dois, na
Tijuca; cinco na Zona Norte; uma, na Barra; dois, na Cidade de Deus; e
dois são de fora do Rio de Janeiro, residentes no alojamento estudantil
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Os entrevistados
foram selecionados de uma amostra muito maior. A pesquisadora colheu
264 questionários respondidos por outros estudantes de universidades
públicas e particulares. Ao longo do trabalho, ela faz uma análise estática
minuciosa dos dados obtidos. A maioria dos jovens tem entre 20 e 22
anos, com a exceção de dois que têm mais de 30, mas que foram incluídos
“porque se mostraram interessados em participar e disponíveis para a
recepção” e, além disso, “seus depoimentos apresentaram aspectos
interessantes para analisar a questão do estudante universitário”
(Travancas, 2007:75). Como ela afirma, a situação de universitário tem
uma transitoriedade própria da juventude.
Travancas (2007:61) também faz questão de frisar que
está lidando com uma categoria privilegiada na cultura de massa das
sociedades capitalistas e que é mais ampla do que simplesmente
faixa etária. Todavia, a autora não define a amplitude que enxerga na

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 293-298


293
juventude, mas a trata como uma “transitoriedade entendida como
etapa de transição, que implica a passagem de uma condição social
mais dependente para o ingresso na vida adulta” (2007:93-94),
retomando, assim, a classificação etária. Por haver essa inquietação
própria da idade, como faz entender a autora, os jovens sempre reagem
e se posicionam em relação às matérias do programa e nunca são
indiferentes a elas. Mas, afinal, o que é ser jovem? Quais discursos,
em diferentes épocas, são construídos sobre a juventude? Como esses
discursos (da arte, da moda, da beleza, da mídia, da ciência) colidem,
circulam e se articulam e possibilitam a existência de conceitos de
juventude tão instáveis e distintos num mesmo tempo e espaço?
A discussão acerca da dicotomia entre a atividade e a
passividade do receptor é, sem dúvida, a maior contribuição dos
Estudos de Recepção, uma tendência que não é nova nos Estudos de
Comunicação. Na década de 1940, Paul Lazarsfeld acreditava que os
conteúdos veiculados pelos meios de comunicação de massa ganhavam
sentidos múltiplos a partir de sua transmissão, principalmente pelo
“boca-a-boca”, o que contraria a teoria da “agulha hipodérmica”,
forjada por Harold Laswell nos anos 1920, para quem a mídia “injeta”
mensagens diretamente em seus receptores, sem qualquer tipo de
ressignificação, e a teoria de um “consumidor passivo, alienado e
dócil” tal como foi moldada pela Escola de Frankfurt (Fiske, 1990).
Dessa forma, o novo campo se configurou para estudar como
diferentes grupos interagem com os produtos midiáticos,
relacionando-os e incorporando-os às suas experiências cotidianas.
O receptor como um indivíduo ativo remonta ao conceito
de agência tão caro às Ciências Sociais (Jenks, 1998; Walsh, 1998),
em que os indivíduos são capazes de agir livremente sobre o terreno
social, construindo sua própria experiência de realidade com outros
indivíduos que também estão livres dos constrangimentos sociais e
são capazes de controlar seus destinos e suas ações. No extremo
oposto, está a noção de receptor como um indivíduo passivo que é
apenas reprodutor de normas e condutas já previamente estabelecidas
pela estrutura social num momento anterior à sua existência e
independente de suas ações. Acredito que o maior desafio dos Estudos
de Recepção é o de evitar a anulação de uma perspectiva em nome da
supervalorização da outra, mas buscar trabalhar com as duas de
maneira articulada.
No Brasil, a partir dos anos 1980, as pesquisas de recepção
se consolidam. Carlos Eduardo Lins da Silva (1985) trabalha com a
recepção do Jornal Nacional entre trabalhadores de duas localidades,
no bairro operário Paicará (Guarujá, SP) e no bairro também operário

294 Igor Sacramento – O telejornal de Bart e Lisa Simpson


Lagoa Seca (Natal, RN), por meio de uma pesquisa-ação. Ela consiste
numa estreita associação com uma ação ou com a resolução de um
problema coletivo (no caso, o tratamento dado por aquele telejornal
às notícias nacionais) e no qual o pesquisador e os participantes
estão envolvidos de modo cooperativo e participativo. Lins da Silva
conclui que, mesmo nas camadas mais humildes da sociedade, há
consciência crítica em relação ao fenômeno televisivo.
Outro trabalho desse momento fundador é o de Ondina
Fachel Leal (1986), que é uma densa etnografia que discute as
diferentes apropriações e comportamentos produzidos pela
assistência da telenovela Sol de verão (1982/1983) em dez famílias
separadas em dois grupos “ o popular e o dominante. A pesquisa é
complementada por uma série de fotografias das casas dos
entrevistados, compondo uma “etnografia dos objetos” com a
finalidade de mostrar as preferências estéticas dos receptores da
novela como estratégias de distinção social, e como a televisão, no
conjunto dos objetos domésticos, recebe diferentes significações
nas decorações de cada residência. Essa é a maneira que a autora
encontrou para esmiuçar a sua “etnografia da audiência”, analisando
como os grupos se comportam diante da tensão da ficção e do real
proposta a partir da telenovela. No grupo popular, há um
distanciamento menor do universo ficcional, já que é feita uma ponte
entre o seu cotidiano e o imaginário da ficção seriada. Já no
dominante, há um afastamento maior que tem a intenção de marcar a
irrealidade do ficcional.
Mais recente, o coletivo Vivendo com a telenovela (2002)
consolida a perspectiva das mediações socioculturais e toma a
recepção de maneira multidisciplinar para poder abranger tanto o
espaço da produção quanto o tempo do consumo. São analisados
detalhadamente quatro lugares de mediação: o cotidiano familiar e a
relação com a telenovela; a subjetividade dos sujeitos e a reelaboração
dos conteúdos simbólicos; o gênero ficcional como estratégia de
comunicação e reconhecimento cultural; e a videotécnica da televisão
como processo de produção e dispositivos técnicos de
teledramaturgia.
Dentro desse campo, Isabel Travancas (2007:68)
promete uma abordagem diferente que aposta num receptor ativo,
num indivíduo particular, mesmo levando em conta o contexto em
que vive e como se dá a sua relação com a televisão e a recepção
dentro do ambiente familiar. A autora ainda tem a intenção de observar
quais conflitos estão expressos nos discursos de cada jovem sobre a
TV e seus programas, e “em que medida a televisão é um elemento

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 293-298


295
de união e troca ou, ao contrário, fonte de disputas e luta de forças”.
Essas são as promessas, e delas surgem muitas expectativas.
Para atingir tal objetivo, o livro é dividido em três partes
e ainda conta com quatro anexos. O Jornal Nacional e os jovens do
Rio introduz o leitor ao universo do telejornal que atinge uma média
de vinte milhões de brasileiros e dos jovens entrevistados, moradores
dos mais diferentes bairros da cidade. Para mostrar isso, a autora
oferece diversos gráficos (índices de audiência do programa; a
proporção de domicílios com microcomputador por regiões
administrativas; bairros de residência dos estudantes entrevistados;
e a proporção dos cursos, dos sexos e da faixa etária), cruzando as
informações.
Depois, em A TV e a notícia, Travancas constrói um breve
histórico do telejornal, discute também rapidamente o conceito de
notícia defendido por ele, menciona a importância da televisão na
sociedade contemporânea, pincela algumas obras importantes para a
discussão e narra um dia que passou na redação do Jornal Nacional.
Neste momento, vem à memória a “etnografia da produção” que a
mesma autora fez em livro anterior, O mundo dos jornalistas (1993),
em que discutiu a constituição da identidade social do jornalista
através de entrevistas com vários profissionais em seu trabalho e em
seu cotidiano.
Finalmente, em Os filhos da televisão, a autora faz um
levantamento das pesquisas de referência acerca da juventude e da
recepção televisiva. Só depois, ela dedica menos de vinte páginas
para a etnografia propriamente dita. O pouco espaço inviabiliza o
cumprimento das promessas. Faltou descrição. Quase nada se sabe
sobre o modo específico e individual, sobre os “modos de ver”, que
tanto defende a autora (Travancas, 2007:69-86), acionados por cada
jovem que interage com o programa, sobre o tipo de relação travada
com o conteúdo do programa e com a televisão como instituição e
como aparelho doméstico. Fica difícil, por isso, perceber como os
critérios classistas, geográficos, religiosos, estilísticos e profissionais
implicam tão distintas interpretações, apropriações e negações. Nesse
sentido, a opção por usar, em muitos momentos, as falas dos
entrevistados na forma de discurso indireto é uma outra dificuldade.
Não há como saber onde termina e onde começa a fala da pesquisadora
e do pesquisado, onde há incorporação e onde há enfrentamento e
desconfiança. No lugar disso, Travancas acaba tomando os discursos
colhidos como uma verdade acabada e encerrada nela mesma, por não
colocá-los em perspectiva, por não mostrar as suas nuanças e as
múltiplas vozes sociais que os constituem.

296 Igor Sacramento – O telejornal de Bart e Lisa Simpson


Todavia, essas poucas vinte páginas guardam o ponto
alto do livro. Travancas (2007:67) se recorda do trabalho de Alves
(1981), que trata a televisão como um “relógio social”, que organiza
as rotinas, destaca os rituais e enfatiza os papéis da vida familiar.
Isso abre o caminho para a discussão das estratégias que permitem
que a televisão se naturalize como um sistema de controle, delineando
as mais diferentes experiências cotidianas (a entrada na universidade,
a escolha do curso, o consumo cultural e o posicionamento político),
indicando os comportamentos aceitáveis para os indivíduos nesses
diferentes momentos e sugerindo o que deve ser lembrando e
esquecido. A autora reforça a idéia de sugestão, porque acredita que
os meios de comunicação de massa não têm o poder de impor valores,
condutas e normas sem negociar e acredita também que os sujeitos
são capazes de fazer escolhas individualmente.
O primeiro anexo, A cobertura das Diretas: memória em
disputa, não faz parte, como reconhece a autora, do estudo de
recepção, mas foi incluído por discutir um tema muito polêmico da
história da TV Globo e do Jornal Nacional, especificamente. A
emissora e seu principal telejornal foram acusados de acobertarem as
mobilizações pelas eleições diretas que aconteceram no Rio de Janeiro
e em São Paulo, entre o final de 1983 e o início de 1984. Travancas
mapeia a questão a partir do enfrentamento entre a “memória
institucional” (Ali Kamel e Memória Globo) e a “memória social”
(Eugênio Bucci, Mário Sérgio Conti, Murilo César Ramos e Venício
Arthur de Lima).
Em Questionários e estatísticas, a autora disponibiliza o
questionário utilizado e uma análise crítica dos dados levantados em
forma de inúmeros gráficos sobre curso, idade, sexo, se vê televisão,
quais programas, se assiste ao Jornal Nacional e se gosta dele. Depois,
ela apresenta os dados do Ibope do programa, aferido durante a
realização das entrevistas. E, finalmente, o último anexo é uma
entrevista com William Bonner, e a sua fala é uma volta.
O nosso público principal não é mais popular. Isso é curioso.
No entanto, quando você fala no Brasil em classe B ou classe
A, isso não tem nada a ver com bagagem cultural. Você tem
pessoas que têm posses, uma condição financeira melhor, e,
no entanto, não têm bagagem cultural melhor por isso
obrigatoriamente. Então, é um público que tem grandes
dificuldades de entender temas complexos, grande dificuldade
de abstração para temas que exigem abstração, para a
macroeconomia, por exemplo. Então, nesses momentos,
temos que triplicar a atenção e traduzir as coisas
aparentemente mais simples (Bonner apud Travancas,
2007:131-132).

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 293-298


297
Voltamos ao público imaginado pelo Jornal Nacional. Bart
e Lisa são coadjuvantes. Protagonista mesmo é o Homer. Mas
Juventude e televisão é importante por dizer o contrário: no convívio
com a televisão, nós, telespectadores, somos todos protagonistas.
Será mesmo?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FISKE, John. Introduction to Communication Studies. Londres:


Routledge, 1990.
JENKS, Chirs. “Active/Passive”, in Core Sociological Dichotomies.
Londres: Sage Publications, 1998.
LEAL FILHO, Laurindo. “De Bonner para Homer”, in Carta Capital,
07/12/2005.
LEAL, Ondina Fachel. A leitura social da novela das oito. Petrópolis:
Vozes, 1986.
SILVA, Carlos Eduardo Lins da. Muito além do Jardim Botânico:
um estudo sobre a audiência do Jornal Nacional da Globo entre
trabalhadores. São Paulo: Summus Editorial, 1985.
BORELLI, Silvia Helena Simões; LOPES, Maria Immacolata Vassallo
de; RESENDE, Vera da Rocha. Vivendo com a telenovela: mediações,
recepção, teleficcionalidade. São Paulo: Summus, 2002.
TRAVANCAS, Isabel. Juventude e televisão: um estudo de recepção
do Jornal Nacional entre jovens universitários cariocas. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2007.
______. O mundo dos jornalistas. São Paulo: Summus Editorial,
1993.
WALSH, David F. “Structure/Agency”, in JENKS, Chirs (org.),
Core Sociological Dichotomies. Londres: Sage Publications, 1998.

IGOR SACRAMENTO é jornalista e mestrando em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Atualmente,


dedica-se à escritura de sua dissertação, intitulada “Depois da revolução, a televisão: cineastas de
esquerda e o jornalismo televisivo”. É vencedor do I Prêmio Francisco Morel, oferecido ao melhor
artigo apresentado à Intercom por aluno de mestrado.

298 Igor Sacramento – O telejornal de Bart e Lisa Simpson


O jornalismo carioca em debate RIBEIRO, Ana


Paula Goulart.



Alzira Alves de Abreu


Imprensa e



As mudanças que ocorreram no jornalismo do Rio de Janeiro história no Rio



nos anos 1950 é um tema que tem muitos significados. Não há dúvida de de Janeiro nos


que a autora do livro enfrentou com grande competência o desafio de


anos 50.


analisá-los.


Rio de Janeiro:


Esse foi um período em que se assistiu a transformações


redacionais, editoriais e gráficas, ocorreram mudanças na gestão dos jornais E-Papers,



e na profissionalização dos jornalistas, e teve início a concentração 2007


empresarial. Os conceitos de objetividade e imparcialidade ganharam



relevância, tornando-se o objetivo e a marca do bom jornalismo.



Mas as perguntas que devem ser feitas sobre esses temas é


em que medida essas transformações significaram a continuidade de um



processo em andamento ou representaram uma ruptura com o modo de


fazer jornal predominante até então. Acompanhar passo a passo as



transformações que se operaram no jornalismo brasileiro desde o início



do século permite perceber a década de 1950 não como um momento de


ruptura radical, mas sim, como mostra a autora, como um período de
consolidação das transformações.
A modernização da imprensa brasileira respondia a interesses
econômicos, ligados ao mercado, e ao mesmo tempo a interesses políticos.
A renovação dos parques gráficos, a compra de novos equipamentos, a
construção de novos prédios, tudo isso dependia do financiamento dos
bancos estatais ou órgãos governamentais. As relações entre os
proprietários dos meios de comunicação e o poder político foram
fundamentais para que a modernização das empresas jornalísticas se
tornasse possível.
Para entender as mudanças no mercado jornalístico durante
os anos 1950, não podemos deixar de associá-las ao desenvolvimento
industrial do país, que foi acompanhado de um vigoroso crescimento do
mercado interno, o que provocou o estímulo à ampliação das empresas
de publicidade. Também o pleno funcionamento do regime democrático
foi fundamental para que essas mudanças ocorressem. Todo esse processo
é analisado por Ana Paula Goulart Ribeiro com profundidade e
criatividade.
Mas o estudo apresenta outras questões que permitem alargar
o conhecimento sobre os jornais e o jornalismo dos anos 1950. Ao analisar
o processo de profissionalização dos jornalistas, a autora traz uma
importante contribuição para entendermos a transição de um jornalismo
personalizado, então dominante para um jornalismo anônimo, com estilo

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 299-300 299


padronizado. A implantação de cursos de jornalismo contribuiu para a
formação de novos profissionais e para a construção de um novo ideário,
uma nova deontologia para o jornalismo. É nesse é o momento que se dá
a passagem do jornalismo político-literário para o jornalismo informativo,
sob forte influência norte-americana.
A revolução visual do jornalismo ocupa um espaço importante
no livro de Ana Paula Goulart Ribeiro. A autora não se limita a apresentar
as mudanças qualitativas da fotografia. Enriquece o texto com dados e
análises que nos permitem entender a renovação da caricatura, da charge,
da “história em quadrinhos”, da “tira cômica” e situar os seus pais
produtores.
Aprendemos com a leitura da obra que, nas primeiras décadas
do século XX, os jornais “não apresentavam uniformidade na tipologia
das letras e nem lógica na hierarquia dos elementos nas páginas. A
disposição das matérias, em geral, se guiava pela improvisação”. A partir
da década de 1950, ao mesmo tempo, que novas técnicas são introduzidas,
surge um estilo mais organizado na disposição visual dos jornais.
Para realizar sua pesquisa, a autora consultou uma excelente
bibliografia, periódicos da época, autobiografias e depoimentos orais.
Realizou, ela própria, entrevistas com jornalistas que viveram esses
momentos de mudança.
Ao terminar a leitura do livro, nos fica a certeza de que se
trata de obra fundamental para todos os estudiosos da história brasileira,
e em especial para os que se dedicam a entender o papel da imprensa no
processo de desenvolvimento do país.

ALZIRA ALVES DE ABREU é pesquisadora do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas - FGV

300 Alzira Alves de Abreu – O jornalismo carioca em debate


Reinventando a cidade HERSCHMANN,


Micael.



Ecio P. de Salles


Lapa, cidade



Recentemente, um amigo paulista, com quem eu caminhava da música.



pela Lapa numa noite de quinta-feira, comentou que o bairro, que ele não
Rio de Janeiro:


visitava havia alguns anos, estava “a cara de Nova Orleans” – a animação


Mauad X,


das ruas, a música saindo das múltiplas casas de espetáculo, o movimento


2007


incessante das pessoas em meio à paisagem sonora da região.


Nesse momento, já estava empenhado na leitura do novo livro



de Micael Herschmann Lapa, cidade da música: desafios e perspectivas


para o crescimento do Rio de Janeiro e da indústria da música independente



nacional. O curioso é que um dos autores citados pelo autor, Henrique



Cazes, afirma a necessidade de investimentos nessa área, a fim de que o


choro e a Lapa possam se tornar referências da cultura carioca, “algo como



o que acontece com o jazz em Nova Orleans” (p. 38).


Coincidências à parte, Lapa, cidade da música se propõe a



repensar a crise da indústria da música e as suas alternativas a partir do



circuito cultural do samba e choro na Lapa. A começar daí, busca contribuir


para a formulação de políticas públicas consistentes e mais democráticas. O
texto inicial do livro já indica esse caminho de maneira decidida, ao criticar
a decisão do governo carioca de construir um centro de música erudita – a
Cidade da Música – na Barra da Tijuca, bairro nobre da cidade. Nada contra
a música clássica: o autor apenas destaca que “mais uma vez, não se levaram
em conta as tradições e hábitos culturais locais que nitidamente apontam o
bairro da Lapa, no Centro do Rio, como uma espécie de ‘cidade da música
do coração’ dos cariocas (e quiçá de alguns brasileiros)” (p. 11).
O primeiro ponto a notar é que o fenômeno de revitalização da
Lapa indica a centralidade do papel desempenhado pela cultura –
notadamente pela música – no desenvolvimento de determinadas localidades
no país. Mais que isso, ele marca a iniciativa de indivíduos ou grupos locais
que agem, pelo menos inicialmente, por conta própria, à margem tanto do
Estado quanto das grandes gravadoras, como aponta Hermano Vianna na
orelha do livro.
Herschmann desdobra e aprofunda neste livro a percepção que
tinha desde as pesquisas que realizou para sua tese de doutorado, a respeito
da conformação, nos anos 1990, no Rio de Janeiro e em São Paulo, de um
vigoroso circuito alternativo associado ao funk e ao hip-hop. Trata-se do
reconhecimento da vitalidade da indústria fonográfica independente do Rio
de Janeiro e, por outro lado, os “sérios obstáculos na articulação e integração
de significativos segmentos sociais (locais) com o mercado”. Ao mesmo
tempo em que há dificuldades para que esse setor gere sustentabilidade, os

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 301-304


301
gestores de cultura instalados nas três esferas de governo parecem não
enxergar “a importância socioeconômica e política de se apoiarem esses
(pequenos) artistas e empreendedores culturais dessa região do país.
Infelizmente, para um grande número deles, a cultura continua representando
um gasto e não uma oportunidade de crescimento das regiões e de solução de
problemas sociais”.

A PRODUÇÃO DA CULTURA
E A CULTURA DA PRODUÇÃO
Quem é da antiga na Lapa – eu (que comecei a freqüentá-la no
início da década de 1980 por conta do Circo Voador e, mais tarde, dos blocos
afro e da Fundição) estou longe de integrar a “velha guarda” – sabe que do
popular pastelzinho no saudoso Seu Cláudio ao sofisticado cabrito no Capela,
as opções que o bairro oferece, sejam gastronômicas, culturais, arquitetônicas,
históricas..., são múltiplas e variadas. Ficando apenas no campo dos gêneros
musicais, pode-se dizer que a Lapa revela uma microcartografia da música
brasileira e global: do forró ao reggae, do samba ao hip-hop, passando pelo
rock, samba-reggae, son, salsa... Alguns deles em casas de espetáculo, outros
na rua, mas a maioria de muita vitalidade. E ainda tem o Teatro do Oprimido
e o Tá na Rua, a sinuca na rua do Riachuelo, práticas circenses, dança de
salão, um universo complexo de alternativas aparentemente inesgotáveis.
Com essa vocação para abrigar o diverso e o contraditório, a
Lapa gozou sempre de certa reputação (para alguns, má reputação) de
boemia e marginalidade. Lar de bêbados, malandros, prostitutas e travestis...
enfim, um lugar perigoso. Provavelmente por isso mesmo tenha sido, durante
um longo tempo, abandonada à própria sorte. Sua contrapartida, entretanto,
foi entregar-se de corpo e alma às inúmeras tribos que fizeram dali seu ponto
de encontro. O que talvez não se esperasse é que a velha Lapa enfrentasse a
própria decadência e, ainda uma vez, se reinventasse, curiosamente recorrendo
em parte à sonoridade de uma época antiga na memória.
Lapa, Cidade da música trata justamente deste universo
específico, aquele que percebeu no circuito do samba e do choro um recurso
capaz de fortalecer os laços culturais e afetivos do bairro da Lapa com a
cidade e, em certa medida, com o país; colaborar para o desenvolvimento
sustentável e a ampliação do acesso à cidadania; e, finalmente, incrementar a
dinâmica social, política e, em especial, econômica da região e seu entorno.
A motivação para dar a partida nesse processo viria das
condições oferecidas pelo próprio bairro. Afinal, “a Lapa estava toda lá.
Prontinha, mas ninguém aproveitava: os Arcos, os casarios, os antiquários
etc.”, declara Lefê de Almeida, produtor musical do Arco da Velha e do
Emporium 100, casas de espetáculo que são referência nesse contexto da
recente revitalização da Lapa.

302 Ecio P. de Salles – Reinventando a cidade


A primeira parte do livro, em que Micael Herschmann trata
diretamente a questão do circuito do samba e choro é, em que pese o interesse
das demais, a mais instigante. Aqui, a Lapa ganha vida e voz. “Desde a
segunda metade dos anos 1990, esta localidade está vivenciando um novo
‘círculo virtuoso’ por iniciativa basicamente das lideranças locais, após passar
décadas de relativo abandono” (p. 34).
Essas lideranças locais, que constituíram este novo momento
de glória do bairro, narram os acontecimentos que conduziram ao estágio
em que a Lapa se encontra hoje com o entusiasmo de quem participou de
algum modo do processo. Em uma pesquisa de muito fôlego, o autor
entrevistou nomes como o já citado Lefê de Almeida; Plínio Fróes
(liderança da ACCRA — Associação dos Comerciantes do Centro do
Rio Antigo e proprietário das casas de espetáculo Mangue Seco e Rio
Scenarium); a atriz Ângela Leal (também liderança da ACCRA e
proprietária do Teatro Rival); Maurício Carrilho (músico e proprietário
da Acari Records); Hermínio Bello de Carvalho (historiador, compositor
e crítico de música popular); Egeu Laus (presidente do Instituto Jacob
do Bandolim); Carlos Tiago Alvim (proprietário do Carioca da Gema),
entre muitos outros.
A partir desse “ressurgimento”, são criadas representações
diversas sobre o bairro, entre as quais, e adquirindo um peso considerável
neste contexto, as sonoridades ligadas à combinação samba-choro, como
deteminantes de um vetor de gosto. A partir do consumo desses “gêneros
musicais”, considerados “autêntico” e de “raiz”, “e desse circuito cultural
localizado no bairro histórico da Lapa, constituiu-se uma identidade e um
estilo de vida em que os indivíduos são vistos como portadores de um gosto
musical que ao mesmo tempo em que é ‘refinado’ e de ‘qualidade’, é também
popular” (p. 49).

CRISE, PERSPECTIVAS E PROPOSTAS


O livro tem o grande mérito de mergulhar no universo da cultura
popular, da Lapa e das rodas de samba e choro a um só tempo com paixão
e disposição para pesquisa, colhendo informações que são preciosas não
apenas para estudantes ou pesquisadores, mas para todo o leitor interessado
em assuntos de cultura, música, sobretudo em sua interseção com a questão
do território.
Por outro lado, Herschmann é rigoroso tanto no que diz respeito
à pesquisa empírica quanto à análise teórica. De um lado, o autor recorre à
história da tradição do samba e do choro e do próprio bairro cuja revitalização
esses gêneros estão contribuindo para ativar. De outro, propõe uma
estimulante combinação entre teorias da comunicação e econômicas para a
análise do fenômeno que se propõe a investigar.

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 301-304


303
Na segunda parte, na qual disponibiliza importantes dados
estatísticos, o autor aprofunda a investigação sobre a cultura e a indústria da
música em um contexto de mudanças rápidas e radicais, com o aparecimento
do MP3 e formas diferenciadas de distribuição. Aqui, a crise das majors e a
oportunidade aberta para as gravadoras indies são pensadas em termos da
constituição de novas perspectivas para a produção e circulação da cultura,
em especial da música.
Finalmente, na terceira e última parte – em que apresenta o
marco teórico do livro; um balanço das políticas públicas voltadas para
a indústria cultural no Brasil e na América Latina nas últimas décadas; e
um conjunto de reflexões com a finalidade de contribuir para a efetivação
de políticas mais democráticas e capazes de garantir o desenvolvimento
sustentável regional –, fica evidente a sua importância para o nosso
tempo, uma vez que escapa do território das lamentações para afirmar
perspectivas concretas de investimentos políticos que podem interferir
positivamente sobre a indústria da música, mas também sobre a cidade,
o estado e até o país.
Lapa, cidade da música conta ainda com prefácio de André
Urani e um belo ensaio fotográfico sobre o bairro, de Antonio Fatorelli e
Victa de Carvalho, além do já mencionado texto de Hermano Vianna na
orelha do livro.
Trata-se de leitura prazerosa e necessária. Não apenas para
pesquisadores acadêmicos, apreciadores de samba e choro ou freqüentadores
da noite da Lapa, mas para todos os que se interessam em refletir sobre os
caminhos de reinvenção da cidade, buscando modos mais democráticos,
abertos e interessantes para a gestão dos territórios, geográficos e afetivos, e
das relações neles estabelecidas.

ECIO P. DE SALLES é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da ECO/UFRJ.

304 Ecio P. de Salles – Reinventando a cidade


Efervescência cultural FOURCE,


Héctor.


na Espanha pós-franquista



El futuro ya


Tatiana Galvão


está aqui –



“Madri nunca duerme”, “Madrid por la noche”, “Esta noche música pop y



todo el mundo a la calle” ou “Madrid me mata”. Essas são algumas das cambio



expressões que nasceram daquela que se tornou a referência da chamada cultural.


Idade de Ouro do pop na Espanha. Se os Estados Unidos têm Elvis e a


Madri:


Inglaterra ainda hoje se desfaz em nostalgia com a British Invasion dos


Beatles, a Espanha tem a Movida Madrileña como fenômeno cultural que Velecio,



teve como protagonistas o cineasta Pedro Almodóvar e a cantora Alaska. 2006



El futuro ya está aqui – Música pop y câmbio cultural nasce da


tese de doutorado de Héctor Fouce e tem como objetivo analisar esse



fenômeno dentro de uma relação entre as mudanças que acontecem no


panorama musical do período de transição e o contexto político, econômico



e social da época. Para isso, Fouce recorre não só à experiência vivida por



protagonistas da Movida, mas também a várias publicações e a um


referencial teórico que busca nos estudos culturais o caminho para


compreender a Movida como reflexo de uma época de mudanças. O livro
é estruturado em quatro partes, além de um prólogo escrito pelo músico
Mario Vaquerizo, de um epílogo de Edi Clavo, ex-integrante do grupo
Gabinete Caligari, dissolvido em 1999 e de fotografias de Miguel Trillo.
Numa Espanha pós-franquista e vivendo uma época de
transição, o país se une no consenso em torno da adesão à Comunidade
Econômica Européia (CEE) como certificado de normalidade política rumo
à consolidação democrática. Com a vitória socialista nas urnas, em 1982,
iniciava-se a fase de concretizar as expectativas dos anos de oposição e o
desejo de prosperidade e riqueza que colocasse a Espanha no mesmo
patamar de seus vizinhos.
A Movida, inicialmente nascida no underground como cultura
minoritária, ganha projeção e é institucionalizada como representação da
renovação pela qual a própria Espanha buscava. Entretanto, a expectativa
política acabou em desencanto à medida que a esquerda abria mão de
muitas de suas reivindicações em prol de uma integração no rol seleto da
CEE que garantiria a homologação de seu regime democrático.
O desencanto e a percepção da prometida mudança como mera
construção retórica levou a Movida a estabelecer seus traços fundamentais
a partir do fim de qualquer tipo de compromisso político. Assim, ela
rompe com todo referencial histórico e estético de uma militância para se
deixar influenciar por múltiplos referenciais a partir do contexto cultural

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 305-309 305


internacional. Dentro do panorama musical, entra em contato com
influências como o punk, a new wave e o tecno-pop, mas não se limita a
imitar esses estilos. Conforme Fouce ressalta, a Espanha tornava-se mais
uma corrente que adequava o punk à sua própria realidade e necessidade
que, em seu caso, estava voltado para uma estética e uma atitude resistentes
aos ideais da esquerda.
A formação e proliferação de redes de bares e salas que
contribuíram para criar a consciência de grupo que caracteriza essa Nueva
ola mudaram em certa medida não só o panorama noturno de Madri, mas
principalmente colaboraram para a configuração da Movida como
fenômeno cultural. De todos, foi o Rock Ola, nascido em 1980, que se
converteu num referente mítico, templo da música madrilena, abrindo
oportunidade para grupos desconhecidos e possibilitando uma grande
troca de experiências sociais e culturais entre grupos nacionais e
internacionais que se apresentavam ali.
Ao falar do papel dos meios de comunicação, Fouce destaca a
importância da consolidação das emissoras de rádio que passaram a dar
lugar à música pop na sua programação. O nascimento da Radio Popular
FM, por onde passou boa parte dos protagonistas musicais da Nueva
Ola, e da Onda Dos, que acolheu um bom número de jornalistas musicais
especializados nos mais diversos gêneros, potencializou a música feita
por grupos contemporâneos e difundiu as novidades de outros países,
especialmente o pop e o rock britânico e americano. Essas rádios chegaram
a reunir num só festival mais de 10 mil pessoas. Seguindo a tendência das
rádios, as emissoras de televisão também investiram numa programação
voltada para as novidades produzidas pela nova cultura. A Edad de Oro,
programa dirigido por Paloma Chamorro, era o protótipo dessa nova
cultura.
A falta de atuação de uma imprensa musical especializada que
ignorava ou se limitava a criticar o surgimento dos novos grupos levou
esses jovens a produzirem suas próprias publicações na forma de inúmeros
fanzines que prepararam terreno para publicações como La Luna de
Madrid e Madrid me mata que fizeram parte da segunda época da Movida,
época de sua consolidação, dando-lhe visibilidade e status.
Fouce vai abordar ainda a séria reorganização pela qual passa
o mercado fonográfico espanhol na primeira metade da década de 1980,
dentro de um contexto no qual as indústrias nacionais eram absorvidas
pelos grandes conglomerados multinacionais. Com a crise da indústria
fonográfica, as grandes gravadoras não apostavam nos grupos que surgiam,
então as gravadoras independentes apareceram no cenário, descobrindo
novos nomes, tendências e dando saída às novas produções. Um exemplo

306 Tatiana Galvão – Efervescência cultural na Espanha pós-franquista


dessa época é a DRO - Discos Radioactivos Organizados e a GASA -
Grabaciones Accidentales, que devido ao êxito e à credibilidade acabaram
sendo absorvidas por multinacionais como a Warner.
A partir do referencial teórico, Fouce ressalta a necessidade de
uma redefinição do conceito de cultura nesse momento em que surgia pela
primeira vez, na Espanha, a juventude como grupo diferenciado com suas
próprias práticas, valores e símbolos. E ele faz isso a partir do terceiro
capítulo, quando analisa como a música popular pode servir como campo
de análise para entender como os grupos sociais constroem sua identidade
a partir de articulações que esses indivíduos estabelecem entre si.
Fouce parte das diferenças existentes entre os estudos de
músicas classificadas entre as “sérias” e aqueles que se ocupam da música
popular, passa pela redefinição do conceito de cultura e se detém no
desenvolvimento e na consolidação dos estudos culturais como uma área
de estudo que se ocupa dos diferentes aspectos da cultura. Ao lembrar
que, a partir dos Estudos Culturais e citando Raymond Williams, o sentido
da cultura se desloca da sua tradição elitista para as práticas cotidianas, ele
ressalta que a cultura deixa de ser vista apenas como um conjunto de obras,
para ser vista também como um conjunto de práticas que se estabelecem
na produção e no intercâmbio de sentidos entre os membros de uma
sociedade ou de um grupo. A cultura torna-se, assim, uma região de disputa
e de conflitos entre modos de vida diferentes devido à existência de relações
de poder.
É então que Fouce recorre a Althusser e Gramsci para definir
conceitos como ideologia e hegemonia, que estão inseridos na cultura, em
seus valores, significados e práticas. No campo específico da música, a
questão seria “encontrar conexões entre música e identidade social no
marco das lutas internas a cada cultura em torno da hegemonia” (p. 106).
Uma complexidade incrementada pelas sucessivas interpretações que os
ouvintes criam e trocam entre si. Nesse caso, esses grupos passam a
apresentar traços que os diferenciam da cultura hegemônica e se firmam
como subculturas.
Nesse ponto, recorre aos trabalhos de autores como Dick
Hebdige e Stuart Hall, ressaltando que essas subculturas realizam um
trabalho de ressignificação do material simbólico de sua cultura familiar,
adaptando-o e transformando-o em função de sua situação, interesse e
experiência de geração que giram em torno dos materiais disponíveis para
construir sua identidade, como roupa, música e forma de falar.
Mas, apesar das teorias sobre subculturas dominarem durante
muito tempo os estudos sobre música popular, a demanda sobre o assunto
cresceu e pouco a pouco os estudos de música popular conquistaram seu

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 305-309


307
próprio espaço. E, aí, Fouce chama a atenção para o fato dos debates
acerca da análise da música, na verdade, envolverem posições ideológicas
a respeito da música como forma de comunicação, o que implicaria deixar
de lado as concepções românticas sobre o gênio criador para pensá-la
como o resultado de interações complexas entre intérprete, público,
tecnologias e ideologias.
Entender como essas canções comunicam supõe entender a
forma em que o som, as palavras e o contexto atuam entre si para um
resultado final. Dessa forma, para o autor, a análise da música popular
precisaria ser realizada de forma macroscópica, como um conjunto de
mensagens culturais que são transmitidas também por meio da definição
dos gêneros musicais que a situam em termos do próprio material sonoro
e do público que dela se apropria.
Ao analisar um movimento cultural, então, seria necessário
relacionar uma canção com outras similares, com grupos da mesma época,
com acontecimentos sociais e culturais do momento, com valores e
experiências que se quer comunicar e com os que se quer resistir. Teríamos
que entender esse conjunto de mensagem como o resultado de uma estratégia
destinada a colocar em circulação uma forma de ver o mundo e de rechaçar
outras.
A partir do estudo comparativo das letras de várias músicas,
tanto de grupos da Movida como dos “cantautores”, Héctor Fouce
aprofunda e contrasta os aspectos presentes na cultura da Movida.
Enquanto o cantautor atuava como músico e agitador político, incorporando
o papel de porta-voz do povo e defendia que o papel da música consistia
em denunciar, integrar e levar à ação, a Movida renunciava a este papel, a
música se convertia num fim em si mesma e era, antes de tudo, desfrute,
celebração do presente e hedonismo. O artista não sentia que a música
devesse ter um trabalho social a cumprir senão as idéias do músico.
Essas diferenças evidenciam uma perspectiva temporal
diferente, uma relação diferente com o processo de mudança. Se, de um
lado, para os cantautores, a liberdade era a principal aspiração, para os
grupos da Movida a liberdade já não é uma aspiração, mas a vivência de
uma geração que não conheceu a repressão em seus momentos mais duros.
Enquanto o presente, para os cantautores, era vivido como um momento
de transição, a Movida se instala no presente, na sua celebração e no seu
desfrute.
Fouce ainda assinala que enquanto os cantautores se referiam
ao espaço rural como lugar de resistência ao mundo contaminado pela vida
moderna e ao capitalismo das cidades, a Movida era totalmente urbana.
Para ela, a cidade se torna o espaço da aventura e da experiência, sobretudo,
a cidade da noite, o espaço dos bares, dos clubes e das festas. Por isso,

308 Tatiana Galvão – Efervescência cultural na Espanha pós-franquista


para entender o mundo de sentido construído pela Movida, seria necessário
perceber aspectos como a vivência do espaço e, em torno dele e muito
vinculado à questão da identidade, está a vivência da sociabilidade.
Em El futuro ya está aqui: música pop y cambio cultural,
Héctor Fouce analisa a cultura não apenas como um campo de prática,
mas também de valores e posições de sujeitos cruzados por relações de
poder. Por isso, estudar um fenômeno cultural como a Movida é estudar
a maneira pela qual aspectos como valores, imaginário, vivência social,
espacial e temporal, bem como determinadas práticas, criam um sentido
comum em certo setor social que se opõe àquela conduzida pela geração
anterior, cujos valores, situações e práticas estavam marcados por um
contexto social diferente.
É uma obra que serve como referência para aqueles que têm
interesse na área porque oferece uma base teórica com perspectivas
diversificadas que possibilitam a compreensão da importância cultural da
Movida madrileña.

TATIANA GALVÃO é jornalista e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da


ECO/UFRJ.

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310
resumos / abstracts

Turquia: um teste para a Europa. Identidades européias e


identificações nos discursos midiáticos turcos, belgas e franceses
Gaelle Rony
Resumo: Esse artigo trata de debates midiáticos sobre a possível adesão da Turquia
à União Européia (U.E.), pois eles constituem um trabalho de confrontação simbólica,
onde as interações entre agentes sociais fazem e desfazem as identificações dos
europeus e dos não-europeus. A imbricação entre processos discursivos e
procedimentos de identificações passa pela negociação de critérios de pertencimento
e critérios de reconhecimento. Ela se condensa, em última análise, em uma necessidade
de auto-identificação, aquela do europeu. Na incerteza quanto ao sentido e ao valor
da identidade européia, a reativação, a recomposição da fronteira Turquia/Europa
age como um recurso identitário, inclusive para os turcos.
Palavras-chave: discurso midiático, identidade européia, Turquia

Abstract: This article deals with the media debates about the possible adhesion
of Turkey to the European Union (E.U.), once they constitute a work of symbolic
confrontation, where the interactions of the social actors make and unmake the
identifications of the Europeans and non-Europeans. The imbrication between
the discursive processes and the identification procedures goes through the
negotiation of belonging criteria, as well as recognition criteria. In the last analysis,
it condenses into a necessity of self-identification, the European’s one. Under
the uncertainty as to the meaning and to the value of the European identity, the
reactivation, the re-composition of the Turkish-European border acts as an identity
resource, to the Turkish as well.
Keywords: media discourse, European identity, Turkey

Melodrama: notas sobre a tradição/tradução de uma linguagem


revisitada
Maurício de Bragança
Resumo: Por ter sua origem moderna vinculada às manifestações das camadas
populares, no fim do século XVIII, na Europa, através de um repertório de
representação teatral e de pantomima, o melodrama logo seria visto como um gênero

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.310-323 311


de má reputação, olhado com suspeita por uma elite ilustrada. O desenvolvimento
das cidades no século XIX exigiria que o melodrama incorporasse discussões
programadas pela complexificação das questões sociais, articulando uma linguagem
em torno de uma espécie de melodrama social. Na sua construção de discurso, o
melodrama trabalhava com uma estética do exagero, onde o sentimento exacerbado
estava a serviço da configuração de um pathos melodramático, formada em estreita
sintonia com o que Peter Brooks definiu como uma “imaginação melodramática”.
Ismail Xavier vem introduzir as discussões sobre o melodrama no cinema a partir da
construção de uma geometria de olhares que configura a cena melodramática, também
trabalhando com conceitos consolidados por Brooks. Tais argumentos se baseiam
na aproximação da idéia de imaginação melodramática à idéia de imaginação moderna,
onde os estudos de Ben Singer se fazem fundamentais. Este artigo tem como proposta
pensar as discussões sobre o melodrama, problematizando algumas tradições do
gênero/linguagem a partir dos recentes estudos que apresentam novas perspectivas
sobre o tema.
Palavras-chave: melodrama, imaginação melodramática, modernidade

Abstract: Since its modern origins were linked to the manifestations of the popular
classes at the end of eighteenth century in Europe, through the repertoire of theatrical
representation and that of pantomime, melodrama would come to be seen as a genre
of ill repute, viewed with suspicion by an erudite elite. In the construction of its
discourse, melodrama relied upon an aesthetic of exaggeration, whereby overstated
feeling was at the service of the configuration of a melodramatic pathos, forming a
narrow syntony with what Peter Brooks defined as a “melodramatic imagination”.
Ismail Xavier presented the discussions about melodrama by the construction of a
sight geometry that form a melodramatic scene, using Brooks’ concepts. Their issues
are based on an approach between melodramatic imagination and modern imagination,
also developed by Ben Singer studies. This article presents a discussion about
melodrama, introducing some traditions of this genre/language reviewed by recents
studies that point out new perspectives about the theme.
Keywords: melodrama, melodramatic imagination, modernity

Resumos/Abstracts
312
Telenovelas, telespectadores e representações do amor
Paula Guimarães Simões e Vera França
Resumo: A proposta deste artigo é investigar a atualização do amor em telenovelas
brasileiras contemporâneas, exibidas pela Rede Globo, e a forma como a sociedade
configura sentidos sobre essa temática, ao se posicionar em relação às histórias
de amor ficcionais. O objetivo é delinear um universo de representações acerca
desse valor, construído na interlocução entre ficção e realidade. Com isso, o
trabalho revela elementos configuradores da experiência amorosa na sociedade
contemporânea e a inscrição do amor no quadro de referências que orientam a
vida dos sujeitos, ou seja, no ethos. A análise revela que muitas tramas amorosas
construídas nas telenovelas procuram estabelecer uma tipologia do amor em pares
antitéticos: o amor bom e o amor ruim, o amor do herói e o amor do vilão.
Entretanto, há histórias em que ocorre um deslizamento das fronteiras entre esses
dois pólos, configurando uma representação mais móvel acerca do amor. A
pesquisa evidenciou, também, que, na interlocução que as telenovelas estabelecem
com o público, nem sempre há convergências de sentidos em relação ao amor.
Ao tematizar esse valor, os telespectadores participam de um processo de
negociação simbólica, que produz tanto legitimações como deslocamentos de
sentidos. Ao cruzar as representações que emergem a partir desses dois âmbitos
de produção simbólica — a telenovela e a vida social —, a pesquisa evidencia a
força do amor em nossa sociedade e a forma como esse valor se inscreve no
ethos contemporâneo.
Palavras-chave: telenovela, sociedade, amor, ethos

Abstract: The purpose of this paper is to investigate the love’s treatment on


some contemporary Brazilian soap operas and the way through which society
produces senses about this theme, while people take a position about fictional
love stories. Our aim is to map out a universe of representations about love,
which is built through the permanent interaction between fiction and reality. The
study, hence, points out elements that constitute the experience of love in
contemporary society. By analyzing soap operas, the research shows how love
is entry into the cultural frames that guide the subjects’ lives, that is, into an
ethos. The study shows that several relationships constructed in soap operas
tend to fit into antithetic categories: the good type of love and the bad one, the
hero’s love and the villain’s one. However, there are stories in which occurs a
certain glide; frontiers that usually split poles apart get mixed, enabling the
emergence of another representation of love: a less fixed one. Finally, the study’s

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results suggest that there is no necessary convergence between the soap operas’
representations about love and the way people conceive this value. The public is
immerse in a process of symbolic negotiation, in which legitimations and
displacements about the sense of love are produced. By intersecting
representations that emerge from this sources of symbolic production (social
life and soap operas), the research shows the strength of love in our society and
how it is an important element of contemporary ethos.
Keywords: soap opera, social life, love, ethos

O sensacionalismo como processo cultural


Ana Lucia S. Enne
Resumo: Neste artigo, parte de uma pesquisa de maior fôlego que estamos
desenvolvendo, apresentamos algumas reflexões sobre o sensacionalismo na
imprensa contemporânea. Partindo do princípio de que as práticas sensacionais
nos jornais não se apresentam como um fenômeno isolado, sendo parte de um
longo processo histórico, buscamos mapear, de maneira preliminar, algumas das
matrizes culturais do século XIX, que podem ser entendidas como fundamentais
para a constituição desse sensacionalismo, a saber: a pornografia, o melodrama,
o folhetim, o romance gótico e a literatura de horror, a literatura fantástica e o
romance policial.
Palavras-chave: sensacionalismo, processo cultural, matrizes culturais

Abstract: In this article, which is part of a larger research still in development,


we present some reflections about sensationalism in contemporary press.
Considering that sensational practices in the newspapers do not present themselves
as an isolated phenomenon, but are part of a long historical process, we try to
analyze in a preliminary perspective some of the cultural matrices of the 19th
century that can be understood as fundamental for the constitution of
sensationalism, such as: pornography, the melodrama, the feuilleton, the gothic
novel and horror literature, fantastic literature and detective stories as well.
Keywords: sensationalism, cultural process, cultural matrices

Resumos/Abstracts
314
A telenovela brasileira: uma nação imaginada
Cláudia de Almeida Mogadouro
Resumo: O presente artigo está contextualizado num trabalho que vimos
realizando junto ao Núcleo de Pesquisa de Telenovela (NPTN-ECA-USP) e do
Observatório Iberoamericano de Ficção Televisiva (OBITEL), sob a orientação
da Profª Drª Maria Immacolata Vassallo de Lopes. As reflexões aqui contidas
advêm de estudos que desenvolvemos durante o mestrado, concluído em 2005,
e no doutorado em curso. Buscamos articular algumas reflexões sobre o ainda
existente preconceito no meio intelectual com os estudos sobre a ficção televisiva,
tentando demonstrar o quanto esse produto revela sobre a idéia de nacionalidade
como construção cultural, podendo se constituir como uma “narrativa da nação”.
Tentamos fazer um paralelo entre a idéia de “repertório compartilhado” a partir
da audiência massiva da telenovela, presente na obra de Martín-Barbero e Maria
Immacolata Vassallo de Lopes e o conceito de “comunidades imaginadas”,
proposto por Benedict Anderson e utilizado por Homi Bhabha. Procuramos ainda,
rever o percurso da telenovela brasileira, que traz muitas peculiaridades em relação
aos outros países da América Latina, potencializando ainda mais as discussões
polêmicas que atravessam o país.

Abstract: This article is contextualized in a work in progress in the Nucleus of


Research on Telefiction (NPTN-ACE - USP) and the Center for Iberoamericanan
Telefiction (OBITEL), under the guidance of Prof. Dr. Maria Immacolata Vassallo
de Lopes. The thoughts contained herein come from studies developed during
my 1st post-graduate studies (Mestrado), completed in 2005, and the PhD now
in course. Hereby we articulate some reflections on the still existing bias among
intellectuals which develop studies on the televisional fiction, trying to show
how this product shows on the idea of nationality and cultural construction and
can be set as a “narrative of the nation”.
We try to make a parallel between the idea of “shared repertory” from the mass
audience of soap operas, present in the work of Martin-Barbero and Maria
Immacolata Vassallo de Lopes and the concept of “imagined communities”,
proposed by Benedict Anderson and used by Homi Bhabha. Looking further, we
review the path of Brazilian ‘telenovela’, which shows many peculiarities in relation
to other Latin American countries.

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Engajamento afetivo e as performances da memória em Um
Passaporte Húngaro
Mariana Baltar
Resumo: Este artigo reflete sobre um tipo de vínculo afetivo que se estabelece a
partir das performances da memória, sobretudo através dos testemunhos,
presentes no documentário. Tal engajamento afetivo acaba por reafirmar um valor
de autenticidade para o testemunho, colocando em jogo questões que recuperam
uma forte intersecção entre os domínios privado e público, intersecção essa, por
sua vez, fundamental para o próprio conceito de memória. Argumento que um
diálogo com a imaginação melodramática, que se estabelece na narrativa, atua no
sentido de firmar tal laço afetivo para a performance da memória (o ato do
testemunho) presente no discurso fílmico. Tomaremos por base de análise o
filme Um Passaporte Húngaro, dirigido por Sandra Kogut em 2001.
Palavras-chave: documentário, imaginação melodramática, memória

Abstract: This article intends to analyze the sort of affective engagement establish
between the acts of memory (the testimonies) of the characters in some
documentaries. I would argue that such engagement legitimates the testimony, staging
the interconnection between private and public spheres. Such interconnection is
central to the very concept of memory, one that is staged by the testimonies. The
performances of such acts of memory are structured in the documentary in a way
that establishes a certain kind of dialogue with the melodramatic imagination,
reaffirming the empathic-based engagement that is proposed in such passages of the
filmic discourse. In order to develop my argument, I will analyze Um Passaporte
Húngaro, directed by Sandra Kogut in 2001.
Keywords: documentary, melodramatic imagination, memory

Resumos/Abstracts
316
Oh, meu Deus! Manchetes e singularidades na matriz jornalística
melodramática
Márcia Franz Amaral
Resumo: O artigo reflete sobre a presença das matrizes melodramáticas na imprensa
como um recurso de popularização. Utiliza-se de manchetes como exemplo para
uma discussão sobre o conceito de singularidade no jornalismo e suas relações com
o melodrama. Recupera o conceito de melodrama e mostra como eles originaram
características utilizadas permanentemente pela imprensa.
Palavras- chaves: melodrama, jornalismo, manchete

Abstract: The article reflects on the presence of the melodramatics matrices in the
press as a popularization resource. It is used of headlines as example for a discussion
on the concept of singularity in the journalism and its relations with melodrama. It
recoups the concept of melodrama and shows as they had originated characteristics
used permanently for the press.
Keywords: melodrama, journalism, headline

O mundo cotidiano de Retrato Falado: diálogos com a telenovela


Marina Caminha
Resumo: Esse artigo procura descrever a relação entre o mundo midiático e o mundo
cotidiano a partir das marcas da telenovela existentes em Retrato Falado, exibido no
Fantástico. Parto do pressuposto que o testemunho traz para o quadro uma expectativa
de realidade através de uma estrutura narrativa que tem como estratégia materializar
histórias vividas por cidadãos comuns. Essa encenação, por sua vez, se constitui
através de um engajamento afetivo apontando as marcas de uma imaginação
melodramática como uma dos domínios que a organiza.
Palavras-chave: telenovela, cotidiano, melodrama

Abstract: This article describes the interactions between mediathic world and real
life world, analyzing the elements from soap-opera existing in “Retrato Falado”, a
broadcast from “Fantástico”. The testimonial brings to TV an expectation from reality
through a narrative structure that materializes common people life stories. This mise-
en-scène, in its turn, is built through an affective engagement that reveals aspects of
a melodramatic imagination.
Keywords: soap-opera, quotidian, melodrama

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Melodrama, gênero dramatúrgico e linguagem televisiva: uma
análise à luz de Bakhtin
Clara Fernandes Meirelles
Resumo: Este trabalho se propõe a analisar a construção do gênero melodramático
e as transformações que esse texto cultural atravessou, desde o drama teatral
burguês, passando pelos folhetins e radionovelas, até a telenovela. À luz do
pensamento bakhtiniano, especialmente de três de suas categorias filosóficas
(diálogo, polifonia e contextualização), é investigado o modo como o melodrama
atualizou-se em diferentes formatos narrativos e contextos socioculturais,
mantendo-se vivo como matriz da produção televisiva. As telenovelas brasileiras
recebem destaque especial, por sua relevância como produção audiovisual
melodramática, e também porque essa forma tensionou e transformou as fronteiras
do gênero narrativo em questão.
Palavras-chave: melodrama, Bakhtin, telenovela, televisão

Abstract: This article analyzes the construction of the melodrama genre and the
transformations through which this cultural text has gone, from bourgeois theatre
drama, newspaper series (folhetins), radio soap operas, and finally television
soap operas. From the perspective of Bakhtinian thought, especially his three
philosophical categories (dialogue, polyphony and contextualization), the way
melodrama has updated itself in different narrative formats and socio-cultural
contexts is looked at, as well as how it is kept alive as the matrix of television
production. Brazilian soap operas (telenovelas) receive special attention because
of their relevance as melodramatic audiovisual production, and also because they
have woven and transformed the frontiers of the narrative genre in question.
Keywords: melodrama, Bakhtin, soap opera, television

A indústria da música na Espanha e a “pirataria musical”


Juan Calvi
Resumo: Este artigo trata da estrutura da indústria da música na Espanha, a
constituição do mercado oligopólico controlado pelas quatro maiores
multinacionais, e o conseqüente surgimento do novo fenômeno social chamado
“pirataria musical”, tanto em sua modalidade off line como on line. O artigo
problematiza o conceito e o fenômeno da pirataria a partir de um ponto de vista

Resumos/Abstracts
318
econômico, social e cultural, e conclui com a necessidade de estabelecer um
novo pacto social entre os criadores, a indústria e o público em geral.
Palavras-chaves: indústria da música, Espanha, “pirataria musical”

Abstract: This article treats the structure of the musical industry in Spain, the
constitution of the oligopolic market controlled by the four larger multinationals,
and the consequent appearance of the new social phenomenon called "musical
piracy", both in its modality off line and on line. The article problematizes the
concept and the phenomenon of the piracy from an economical, social and cultural
point of view, and ends with the need of establishing a new social pact in general
among creators, industry and the public.
Keywords: musical industry, Spain, "musical piracy"

O discurso jornalístico e seus rituais


Alexandre Sebastião Ferrari Soares
Resumo: Neste artigo analiso textos jornalísticos publicados pelas revistas
semanais Época, Veja e Istoé, uma matéria publicada na revista Megazine (encarte
do jornal O Globo), artigos publicados nos jornais O Globo e Folha de São
Paulo e uma notícia veiculada pelo Jornal Nacional para verificar as estratégias
discursivas usadas por esses veículos de comunicação que reforçam os mitos de
verdade, objetividade, neutralidade e imparcialidade construídos em torno do
discurso jornalístico. A análise da materialidade da linguagem é o que permite a
compreensão dos sentidos que derivam da inscrição da língua na história. Nesse
processo discursivo depreende-se o que se chama de naturalização dos sentidos
produzida pela ideologia, que coloca o homem na relação imaginária com suas
condições materiais de existência, de forma não apenas a afetar o sujeito, mas a
constituí-lo.
Palavras-chave: discurso jornalístico, efeito de sentido, formação discursiva

Abstract: In this article I analyze journalistic texts published by the weekly


magazines Época, Veja and Istoé, an article published in the Megazine magazine
(attached to O Globo newspaper), articles published in O Globo and Folha de
São Paulo newspaper and one specific notice that has been divulgated in the
Jornal Nacional to verify the usage of discursive strategies by these vehicles of
communication that strengthen myths of veracity, objectivity, neutrality and
impartiality constructed within the journalistic speech. The analysis of the

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.310-323 319


language materiality is what it allows the understanding of the meanings that
derive from the impression of the language in history. This discursive process
becomes what is called naturalization of meanings produced by ideology, which
puts humanity in an imaginary relationship with the material conditions of its
existence.
Keywords: journalistic discourse, sense effect, discursive formation

De consumidor a co-produtor: o potencial das redes sociais


Marianna Taborda
Resumo: As redes sociais digitais possibilitam que os indivíduos assumam
posturas mais participativas, passando de consumidores a co-produtores de
conhecimento, mercadorias e até mesmo iniciativas sociais. Esta mudança de
paradigma também ocorre no voluntariado, quando consumidores de
oportunidades de atuação formais (promovidas por organizações) podem gerar e
distribuir oportunidades por conta própria, em rede, sem intermediações. É preciso
estar ciente dos riscos, limitações e potencialidades da Internet para melhor
aproveitá-la. Assim como entender os contornos do capitalismo cognitivo, a fim
de se situar neste contexto. Atualmente, o desafio está em criar meios que
incentivem a inovação e a interação cooperativa.
Palavras-chave: Capitalismo cognitivo, ciberespaço, co-produção, consumidor,
cultura, inovação, Internet, redes sociais, trabalho imaterial, voluntariado

Abstract: Social networking creates conditions for more participatory behavior.


Individuals can switch from consumers to co-producers of knowledge, products
and even social initiatives. This paradigm shift also happens in volunteerism,
when consumers of formal volunteer opportunities (promoted by organizations)
turn into generators and distributors of their own opportunities in the network,
with no intermediation. It is necessary to be aware of the risks, limitations and
possibilities of the Internet to make better use of it, as well as to understand the
concept of cognitive capitalism. Now, the challenge is to create conditions to
foster innovation and cooperation.
Keywords: Capitalism cognitive, cyberspace, co-production, consumer, culture,
innovation, Internet, social networks, immaterial work, volunteerism

Resumos/Abstracts
320
O desejo como lei: Uma análise do cinema de Pedro Almodóvar
Henrique Codato
Resumo: Este artigo tem como objetivo maior mostrar que as definições de
desejo e de imagem guardam diversas semelhanças semânticas e discursivas,
utilizando como fundamentação a alteridade e o olhar. Propomos que a noção de
desejo seja utilizada como ferramenta teórico-metodológica na intenção de analisar
um gênero de cinema, aqui representado por “A Lei do Desejo” (1986) e “Má
Educação” (2004), ambos de Pedro Almodóvar, que apresenta o desejo tanto em
sua forma como em seu conteúdo, desejo esse que se exprime como sujeito e
que se deixa expressar como objeto, seduzindo seu espectador.
Palavras-chaves: desejo, cinema, espectador, olhar, alteridade, Almodóvar

Abstract: This paper has as its major aim to prove that the words desire and
image present several semantic and discursive similarities and that both hold as
basis the ideas of the otherness and the eye. We suggest, using two films of
Pedro Almodóvar (“The law of Desire”, 1986 and “Bad Education”, 2004), that
the conception of desire could be used as a methodological tool to analyse a style
of cinema which presents the notion of desire in its form and in its contents,
permitting to affirm that the film seduces the spectator.
Keywords: desire, cinema, spectator, eye, otherness, Almodóvar

Poder e Comunicação: um breve debate sobre a questão do poder


nos meios de comunicação de massa
Carolina Dantas de Figueiredo
Resumo: Este trabalho trata do poder e de como ele é exercido através da
comunicação de massa, utilizada pelas classes dominantes e Estados como
Aparelhos Ideológicos. Através deste conceito iniciamos uma discussão da relação
entre poder, classe dominante e ideologia, com base nos pensamentos de,
Gramsci, Adorno e Horkheimer, Althusser e Bourdieu. Buscamos assim reunir
neste artigo alguns aspectos sobre esta relação entre o exercício do poder e
comunicação de massa, traçando para isso um caminho que vai das ideologias à
sua transmissão por meio da comunicação de massa, aqui entendida por meio do
conceito althusseriano de Aparelho Ideológico do Estado, e da noção de Indústria
Cultural de Adorno e Horkheimer.
Palavras-Chave: poder, Aparelhos Ideológicos, comunicação de massa

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.310-323 321


Abstract: This work is about power and how it is exerted through mass
communication, used by the ruling classes and States as a Ideological Apparatus.
Through this concept we start a quarrel about the relation between power, ruling
class and ideology, based on Gramsci, Adorno and Horkheimer, Althusser and
Bourdieu thoughts. In this article we want to congregate some aspects about
this relation between power and mass communication, tracing, in order to do
that, the path that goes form ideology to its transmission by the mass media,
here understood by the althusserian concept of States Ideological Apparatus,
and by the concept of Cultural Industry by Adorno and Horkheimer.
Keywords: Power, Ideological Apparatus and mass communication

O drama dos personagens de X-men como um novo caminho para


compreender a noção jamesoniana de identidade esquizofrênica
Cláudio Clécio Vidal Eufrausino
Resumo: Neste artigo, lançamos um novo olhar sobre a noção jamesoniana de
“esquizofrenia”, a partir da leitura alegórica de personagens da narrativa de X-
men. Esta análise nos permite identificar na esquizofrenia uma nova forma de
individualismo, descendente do individualismo herdado do Iluminismo. As
personagens Vampira, Mística e Wolverine apontam para diferentes nuances do
conceito trabalhado por Fredric Jameson.
Palavras-chave: individualismo, identidade esquizofrênica, contemporaneidade,
Fredric Jameson, X-Men

Abstract: This essay has on purpose to propose a new interpretation on Fredric


Jameson notion of “schizophrenia”, by analyzing characteres of X-men’s
narrative. This analysis allow us to identify in schizophrenia a new kind of
individualism, related to the individualism the way it was conceived by
Enlightenemant’s philosophy. The characters Rouge, Mystic and Wolverine,
members of the X-Men, points to different aspects of Jameson’s concepts.
Keywords: individualism, schizophrenic identity, contemporaneity, Fredric
Jameson, X-Men

Resumos/Abstracts
322
“Que a justiça seja feita”: a dinâmica do esforço X recompensa no
Caldeirão do Huck
Fernanda Cupolillo Miana de Faria
Resumo: O presente artigo tem como propósito discutir, a partir da matriz popular
do excesso ou do chamado “fluxo do sensacional”, os papéis desempenhados
pelo apresentador Luciano Huck no programa Caldeirão do Huck. De que forma,
incorporando alguns discursos vinculados sobretudo ao universo do melodrama
e fazendo-os ressoar nos “personagens” que integram as atrações e/ou quadros,
Luciano Huck consegue imprimir uma determinada “moral” ao seu programa?
Pretende-se pensar também quais as lógicas norteadoras das relações que se
estabelecem entre apresentador e platéia e apresentador e telespectador, tomando-
se como base os quadros do programa e a “moral” norteadora dos mesmos.
Palavras-chave: moral, melodrama, programa de televisão

Abstract: The present article intends to discuss, from the popular matrix of
excess or from the one named as “sensational’s stream”, the roles performed by
the presenter Luciano Huck at the television show Caldeirão do Huck. How can
Luciano Huck print a kind of “moral” to his program, incorporating many
discourses especially tied to the melodrama’s universe and making them resound
on the characters that integrate the attractions? It also aims to think about what
are the ideas that guide the relations established between presenter and live audience
and between presenter and spectator, based on the attractions of this program
and the “moral” that guides those attractions.
Keywords: moral, melodrama, television show

ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp.310-323 323


proposta editorial

Hoje, mais do que nunca, pensar o tempo presente implica a elaboração


de análises que dêem conta, em alguma medida, da amplitude e dinâmica do campo da
comunicação, que vem sendo alterado sensivelmente: as relações dos indivíduos com
o espaço e o tempo; os circuitos de produção, distribuição e consumo; as possibilidades
de interações e agenciamentos afetivos e simbólicos produzidos por diferentes agentes
e segmentos sociais; e os processos e fluxos que vêm atualizando a gestão da
informação e do conhecimento. Em outras palavras, refletir sobre a complexa realidade
atual demanda a construção de interpretações que levem em conta as mudanças em
curso e operem com os processos e circuitos comunicacionais que, cada vez mais,
constituem-se nos alicerces do mundo atual.
Daí a centralidade do campo da comunicação na cultura con-
temporânea. Esta é a designação generalista para a intrincada trama de dispositivos
técnicos, representações sociais, fluxos informativos, espaços mentais ou
configurações de consciência que confluem para a constituição de novos estilos
de vida que cotidianamente articulam-se e colocam-se em tensão com o capital
transnacional e o mercado. A mídia, portanto, hipostasia essa forma, ensejando o
desenvolvimento de uma tecnocultura que se impõe como superfície semiótica
de um mundo globalizado e multicultural.
Para a compreensão do fenômeno, de pouco vale o apelo isolado às
disciplinas tradicionais do pensamento social: a realidade, hoje, demanda com
urgência um sistema de inteligibilidade afinado epistemológica e meto-
dologicamente com a nova dinâmica sociocultural. De modo geral, é isto o que
vem buscando a perspectiva transdisciplinar, adotada desde o começo no Programa
de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da ECO/UFRJ.
Conseqüentemente, esta publicação está aberta a contribuições de
pesquisadores de diferentes áreas, desde que, mesmo guardadas as suas diferenças
disciplinares ou especializadas, se empenhem em atravessar fronteiras para
experimentar as interfaces do conhecimento. Nossa expectativa é que, assim, os
estudos de comunicação constituam-se num viés, numa perspectiva para a
apreensão dos saberes sobre a vida social em sua dinâmica de transformação e
passagem.

Os Editores

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encaminhamento de artigos
Colaborações para a revista podem ser enviadas em disquetes ou por e-
mail, em modo attached.
As colaborações deverão conter:
a) notas de rodapé de acordo com as normas de referência bibliográfica;
b) referências, ao final do texto, apenas das obras mencionadas;
c) um resumo de, no máximo, 250 palavras na língua original do texto,
acompanhado de palavras-chave;
d) abstract com keywords;
e) breve nota biográfica do autor que indique, se for o caso, onde ensina,
estuda e/ou pesquisa, sua área de atuação e principais publicações;
f) indicação, em nota à parte, caso o texto tenha sido apresentado em
forma de palestra ou comunicação.
As colaborações por e-mail devem ser enviadas para:
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Os disquetes devem ser encaminhados com o respectivo endereço,


telefone, fax e e.mail do autor para:
Revista ECO-PÓS
Escola de Comunicação – Campus da Praia Vermelha – UFRJ
Av. Pasteur, 250 (fundos), Urca
CEP 22290-240 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

A Revista ECO-PÓS pode ser adquirida nas versões


impressa e eletrônica através do site da E-papers Editora
(http://www.e-papers.com.br) ou em livrarias selecionadas.

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