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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Conceito de Redução de Danos em Políticas Públicas


Relacionadas a Drogas
Concept of Harm Reduction in Public Policies Related to Drugs

Maurides de Melo RibeiroI, Antonio Carlos Bellini JúniorII

Resumo Abstract

O consumo de substâncias psicoativas é hábito milenar, mas des- The consumption of psychoactive substances is an ancient habit,
de o século XIX, se observa um movimento proibicionista, que but since the 19th century, there has been a prohibitionist move-
tem papel hegemônico na questão das drogas e dita um controle ment, which has a hegemonic role in the issue of drugs and dicta-
social usando ferramental penal. A questão das drogas, sob um tes social control using criminal tools. The issue of drugs, under a
viés bélico e criminalizante, não traz efeito positivo esperado: a warlike and criminalizing bias, does not have the expected positive
erradicação ou diminuição do uso de drogas; e, ao contrário, traz effect: the eradication or reduction of drug use; and, on the contra-
malefícios como a marginalização do usuário, o cerceamento do ry, it brings harm such as the marginalization of the user, the res-
seu direito à saúde e de poder escolher pela aquisição de drogas triction of their right to health and of being able to choose by pur-
de melhor qualidade. A marginalização impacta, ainda, em seleti- chasing better quality drugs. Marginalization also has an impact on
vidade penal, onde, na sua maioria, homens, jovens e negros, são criminal selectivity, where, mostly, men, young people and blacks
parte de altos índices de encarceramento em razão de crimes re- people are part of high incarceration rates due to crimes related to
lacionados a delitos de drogas. Ainda se verificam relações entre drug crimes. There are still relationships between the phenomenon
o fenômeno da violência e sua articulação com as drogas. Como of violence and its articulation with drugs. As an alternative policy
política alternativa ao probicionismo, a Redução de Danos leva em to probationism, Harm Reduction takes into account the complexi-
consideração a complexidade do fenômeno e a multiplicidade de ty of the phenomenon and the multiplicity of variables, the indivi-
variáveis, a individualização do risco na cena do uso de drogas. Tal dualization of risk in the scene of drug use. Such a policy has hu-
política tem o direito humanitário como princípio basilar e consi- manitarian law as a basic principle and considers vulnerability as
dera a vulnerabilidade como critério de eleição para a adoção de the criterion of choice for the adoption of Harm Eeduction actions.
ações de Redução de Danos.
Keywords: Harm reduction; Prohibitionism; Drugs.
Palavras-chave:Redução de danos; Proibicionismo; Drogas.

Introdução

O
consumo de drogas e o conhecimento de
seus efeitos decorrem de hábitos milena-
I
Maurides de Melo Ribeiro (mauridesribeiro@uol.com.br) é advogado. Mes- res, sendo que “o limite do consumo, do
tre e Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (FD-USP) e Pesquisador do Laboratório de Estu- hábito, do apego, da paixão e do vício é sempre
dos de Política e Criminologia (PolCrim) do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/UNICAMP). determinado pelo contexto particular de cada
II
Antonio Carlos Bellini Júnior (bellini@bellinijunior.com.br) é advogado. época e sociedade” (p.52)1.
Doutorando em Saúde Coletiva pela Faculdade de Ciências Médicas da Uni-
versidade Estadual de Campinas (FCM/UNICAMP) e Pesquisador do Labora- Durante o período das grandes navega-
tório de Análise Espacial de Dados Epidemiológicos (epiGeo) do DSC/FCM/
UNICAMP. ções, o que se inicia no século XVI, um grande

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número de ervas transformaram-se em mercado- como um todo.


rias, algumas inclusive com características psi- De um lado, essa política não vem mos-
coativas. Tais produtos foram introduzidos na so- trando respostas positivas no sentido de erradi-
ciedade europeia2 e, já no curso do século XIX, a car ou diminuir o uso de drogas:
Europa e os Estados Unidos conviviam com mui-
“A política criminal de combate às drogas
tas drogas, das quais pouco conheciam e com as
não tem influído de forma importante na
quais não possuíam identidade cultural3. O marco
redução de sua circulação e consumo, ao
do comércio de larga escala, bem como a consoli-
contrário, o que se vê é o incremento da
dação do monopólio inglês desse mercado foram
oferta e da demanda. Nesse cenário, tem
as chamadas “Guerras do Ópio”4.
aumentado o número de falas públicas
Nas colônias das Américas, o uso de ma- alinhadas com a percepção do fracasso
conha pelos escravos, em cultos religiosos, tinha desse tipo de intervenção e já não soam
forte associação com a lascívia e o descontrole convincentes as manifestações oficiais em
(p.2)5, o que, somado aos iderários cristãos de defesa do controle penal das drogas, ´pe-
que o consumo de certos psicoativos estavam re- la´ e ´para´ a sociedade” (p.4) 8.
lacionados a rituais diabólicos (p.245)2, levaram
E, por outro lado, ainda falando sobre os
partes da sociedade norte-americana a um mo-
impactos dessa mesma política proibicionista,
vimento proibicionista, que culminou, em 1920,
essa traz malefícios que, em muito, afetam a dig-
com a edição da 18ª Emenda à Constituição dos
nidade da pessoa que faz a escolha de utilizar
Estados Unidos ou Volstead Act3.
drogas, bem como impactam negativamente em
Ainda no âmbito das “questões das dro- diferentes atividades e serviços públicos.
gas”, em que pesem as amplas críticas feitas ao
No que tange à dignidade da pessoa,
modelo proibicionista-punitivo, tal modelo tem ti-
há um verdadeiro processo de marginalização
do “papel hegemônico na formulação de políticas
do usuário de drogas ilícitas, o qual é obrigado
públicas nessa matéria” (p.17)6, tendo, em 1971,
a sorrateiramente plantar ou adquirir o psicoa-
o presidente norte-americano Richard Nixon che-
tivo e, posteriormente, novamente às sombras,
gado a declarar “guerra às drogas”, sendo este
utilizá-lo.
termo disseminado globalmente. Tal expressão
Esse processo ainda implicando em difi-
bélica dá, ao tema proibicionista das drogas, “a
culdade, por parte do usuário de drogas que fica
tônica do controle social exercitado através do sis-
a parte dos cuidados da saúde a que teria direi-
tema penal nas sociedades contemporâneas”7.
to. Ainda, no que tange à saúde do usuário, mas
pensado sob a ótica do psicoativo do qual fará
Dos impactos do proibicionismo e da “guerra uso, em drogas de má qualidade, com diversas
às drogas” impurezas e sem a certeza de qual o produto que
A “questão das drogas”, quando analisa- efetivamente está se comprando, chega-se, inclu-
da sob esse viés bélico e de criminalização, não sive, ao absurdo de uma narrativa, como obser-
tem se mostrado em nada eficiente; ao contrário, vado em um caso concreto, onde se constatou a
desnuda-se como uma condução política que traz venda de fermento em pó no lugar de cocaína9.
mais efeitos nocivos que benéficos, seja à pes- A marginalidade daqueles que se vêm as
soa que é usuária de drogas, seja à sociedade voltas do comércio ilegal de drogas também pode

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ser observada com o claro processo de seletivi- “a maior parcela da vitimização por intervenções
dade penal10. policiais, com 33,6% das vítimas neste extrato
O Levantamento Nacional de Informações etário” (p.61)11.
de Penitenciárias, no período de julho a dezembro Sobre essa relação da juventude e jovens pobres:
de 201910, informa – referente aos presos daque- ”As favelas e periferias urbanas pas-
le sistema - a quantidade de incidências por tipo sam a ocupar um lugar estratégico para
penal; no total foram 989.263 incidências, sen- o forte mercado de drogas, recrutando jo-
do que desta totalidade, 200.853 incidências es- vens pobres para o tráfico. As disputas por
tão relacionadas a delitos de drogas (20,28%). E, pontos de venda de drogas entre facções
destas incidências em tipos penais de drogas, os inimigas e o enfrentamento direto com a
homens representavam 183.077 casos e as mu- polícia agregaram ao mercado de drogas o
lheres os outros 17.506 casos. As informações mercado de armas, dando início a uma ver-
gerais acerca de toda a população prisional, por dadeira guerra civil que se encontra inseri-
faixa etária, mostra que jovens de 18 a 24 anos da num “ciclo global de guerras” (p.155)12.
são 23,29% de toda esta população e, de 25 a
Ainda decorrente dessa guerra às drogas,
29 anos, mais 21,5%; a somatória dessas duas
observa-se o fenômeno da violência e sua arti-
faixas de idade atingem 44,44% de toda popula-
culação com as drogas. Esse fenômeno é muito
ção carcerária no período averiguado. Quanto à
complexo13 e a “demonização do tráfico de dro-
composição dessa população prisional por raça-
gas fortaleceu os sistemas de controle social,
-cor, pardos compõe 328.108 presos, ou seja,
aprofundando seu caráter genocida” (p.135)14. E,
49,88% da população, e pretos são 110.611 pre-
essa violência, em suas diferentes vertentes, im-
sos (16,81%), compondo ambos a população ne-
pacta substancialmente no sistema de saúde:
gra, segundo a classificação adotada pelo IBGE
“Por ser um fenômeno sócio-histó-
que soma pretos e pardos, ainda que o levanta-
rico, a violência não é, em si, uma ques-
mento não se utilize desta terminologia, totalizam
tão de saúde pública e nem um problema
66,69% do total de pessoas encarceradas.
médico típico. Mas ela afeta fortemente a
Chama a atenção que, entre 2017 e 2018,
saúde: 1) provoca morte, lesões e traumas
no Brasil, foram analisadas 7.952 mortes por
físicos e um sem-número de agravos men-
intervenção policial. Ao se analisar o perfil das
tais, emocionais e espirituais; 2) diminui a
vítimas nesses casos, verifica-se que a sobrer-
qualidade de vida das pessoas e das co-
representação de determinados grupos sociais
letividades; 3) exige uma readequação da
é a mesma que aquela observada no aprisiona-
organização tradicional dos serviços de
mento: 99,26% das vítimas de letalidade policial
saúde; 4) coloca novos problemas para o
são do sexo masculino (mas só cerca de 48% da
atendimento médico preventivo ou curativo
população é deste sexo); o percentual de negros
e 5) evidencia a necessidade de uma atua-
mortos pela polícia é de 75,4% (mas só aproxima-
ção muito mais específica, interdisciplinar,
damente 55% da população brasileira é negra);
multiprofissional, intersetorial e engajada
e, por fim, jovens de até 29 anos representam
do setor, visando às necessidades dos ci-
78,5% das vítimas letais das intervenções poli-
dadãos” (p.45)15.
ciais, sendo que jovens entre 20 e 24 anos são

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Redução de Danos: uma política pública danos a usuários” (p.116)16. Em Portugal, o Plano
alternativa - definição, principiologia e critério Nacional Estratégico 2005-2012 se assenta em
de adoção seis grandes eixos; o eixo que trata que cuida
da redução da demanda dá ênfase a cinco sub-
Como verificado, os impactos da política
-áreas, uma delas, a redução de riscos e danos
proibicionista são extensos e complexos, e, jus-
(p.128)16.
tamente por isso exigem uma discussão que não
pode, nem deve ser simplista ou rasa. O estudo aponta:

Um estudo, de 200916, mostra diferentes “Terapias substitutivas e trocas de


tendências políticas e legislativas em países eu- seringa – sendo que estas são realizadas
ropeus com relação às drogas. Em todos os paí- não apenas em estabelecimentos oficiais,
ses analisados, salvo a Itália, dentre outros focos mas em farmácias privadas de todo o pa-
políticos, a Redução de Danos se fez presente. ís-, também são consideravelmente aplica-
Na Alemanha, o “Plano de Ação sobre Drogas e das em Portugal” (p.132)16.
Adição”, “alude à drogadição sob uma manifesta
perspectiva política de saúde pública” (p.106)16, Mostra também, que no Reino Unido, por
tendo como principais focos a prevenção do uso; sua vez,
aconselhamento; tratamento e reabilitação; auxí- “...é comumente lembrado por haver sido
lio à sobrevivência e Redução de Danos; e repres- ´pioneiro em políticas bem sucedidas de
são e redução da oferta. Na Espanha, Redução de Danos, que ali se intensifica-
“a realização de políticas de redução de ram desde a década de 1980 e vem sendo
danos merecem especial atenção das au- aplicadas sem interrupções” (p.134)16.
toridades e sociedade espanhola, havendo
ali bem sucedidos programas de trocas de
A necessidade de se pensar em uma po-
seringa – inclusive no interior de estabe-
lítica de Redução de Danos decorre do fato que
lecimentos penitenciários -, testes de qua-
nem sempre é possível que as políticas públicas
lidade de comprimidos em festas raves,
se pautem na abstinência, seja porque não é
terapias de substituição e disponibiliza-
possível, seja porque não é desejada. Daí que:
ção de narco-salas para consumo seguro”
“Na ótica da Saúde Pública, pode-
(p.111)16.
-se conceituar a política de redução de da-

nos como um conjunto de estratégias que
Na Holanda, os princípios básicos da po-
visam minimizar os danos causados pelo
lítica de droga são “a distinção entre drogas le-
uso de diferentes drogas, sem necessaria-
ves e drogas pesadas e a abordagem integrada e
mente exigir a abstinência do seu uso.
equilibrada do tema”, estabelecidos em um docu-
mento denominado “Política de Drogas: Continui- (...)
dade e Mudança”, de 1995, o qual, dentre seus A nova abordagem leva em consi-
“objetivos nucleares”, estabelece a “redução de deração múltiplos aspectos, tais como: a

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complexidade do fenômeno, a diversidade A Redução de Danos


das substâncias e seus usos e as particu- “...contrapõe-se, desse modo, ao modelo
laridades sociais, culturais e psicológicas tradicional, de cunho meramente proibicio-
dos usuários, possibilitando, do cotejo de nista-punitivo, que desconsidera a comple-
toda essa gama de variáveis, uma melhor xidade do fenômeno, buscando uma meta
única: a erradicação da produção e con-
ponderação e individualização dos riscos
sumo das drogas etiquetadas de ilícitas”
e das vulnerabilidades na cena de uso de
(p.46)6.
drogas” (p.45)6.


Ela exige a elaboração de novas estraté-
A Redução de Danos, enquanto política gias e ampliando seu campo de atuação. Tal polí-
que prestigia e considera aspectos diversos, po- tica visa, ainda:
de-se mostrar um eficaz instrumento para ame- “...além do estabelecimento de vínculos
nizar o impacto da violência, um dos principais com os serviços de atenção, o cidadão usu-
fenômenos do proibicionismo. Essa articulação ário de psicotrópicos passa a se reconhe-
entre violência e drogas, como já exposto, é um cer não mais pela rotulagem sócio-cultural
fenômeno complexo que exige ser “tratado com que assumiu como estigma, maconheiro,
instrumentos, conhecimentos e ações que ultra- louco, delinquente, bandido, pária, margi-
passem a mera representação ou o moralismo nal, para assumir-se como um cidadão su-
simplista” (p.40)13. jeito de direitos, protagonista das reivindi-
cações de seu contexto social e responsá-

vel pela implementação das modificações
E essa visão simplista, com um obtuso necessárias para a melhoria de sua vida
olhar limitador, coloca a Redução de Danos em um pessoal e relacional” (p.47)6.
panôrama limitado de discussão e compreensão:

“A RD [redução de danos], mesmo O modelo de Redução de Danos, do pon-
após mais de 30 anos de discussão, ainda to de vista principiológico, pauta-se no respeito
é entendida como uma forma de apologia à dignidade da pessoa humana, respeitando-se
ao uso de substâncias psicoativas. No en- sua individualidade e sua autonomia e tem por
tanto, a RD [redução de danos] não exclui meta a moderação do uso dessas substâncias. A
a abstinência, não é reducionista colocan- pessoa do usuário como
do apenas a droga em primeiro lugar, não “um interlocutor qualificado, um sujeito de
negligencia o contexto psíquico e sociocul- direitos que deve, como tal, participar as-
tural, mas se apresenta como uma alter- sumindo um papel de protagonista das rei-
nativa de apoio à saúde na ótica da ação vindicações de seu contexto social e cor-
biopsicossocial”17 responsável pela implementação das mo-
dificações necessárias” (p.58)6.

A diferença entre o modelo proibicionista
e de Redução de Danos pode ser mais facilmente

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Quadro 1 - Características de Modelos de Abordagem de Drogas


MODELOS PROIBICIONISTA REDUÇÃO DE DANOS

Problema enfocado danos e usos de drogas danos/ usos de drogas

Política de drogas: ”guerra às drogas” Tolerante/pragmática

Prioridade: Repressão ao uso de drogas ilícitas e Redução de danos à saúde individual


tráfico e coletiva
Postura em relação droga: Moralismo; estigmatização UD Realística/ pragmática
Papel/ posição do Estado Controle abusivo do cidadão Provê serviços para UDs,
Apoia organizações UDs,
Prega direitos dos UDs
Prevenção de drogas: “sociedade livre das drogas” Dano/risco assoc. abuso

Sistema de atenção à saúde/ Atendimento médico individual Vários tipos de serviços,


Serviços “alta exigência”*: abstinência “baixa exigência”**: busca ativa***
Prevenção a aids: dificultada por restrições legais articulada como prioridade
Abordagem de UDs/UDIs dificultada por restrições legais de Saúde Pública
*,** “Alta ou Baixa exigência”: refere-se a critérios mais ou menos restritos de inclusão de pacientes UDs no tratamento da dependência ou
de outros cuidados de saúde. ***“Busca ativa” de usuários de drogas em seu meio [agentes saúde, “redutores de danos”.

visualizado no Quadro 118. (condicionada socialmente) e consiste no


grau de risco ou perigo que a pessoa corre
Há ainda que se considerar a vulnerabili-
só por pertencer a uma classe, grupo, es-
dade como critério de eleição a ser adotado nas
ações de Redução de Danos. trato social, minoria, etc., sempre mais ou
menos amplo, como também por se encai-
“O conceito atual de vulnerabilidade xar em um estereótipo, devido às caracte-
também foi construído a partir do direi- rísticas que a pessoa recebeu.
to humanitário significando, inicialmente,
O esforço pessoal para a vulnera-
uma característica de pessoas ou comuni-
bilidade é predominantemente individual,
dades fragilizadas, do ponto de vista jurídi-
co ou político, na efetivação ou garantia de consistindo no grau de perigo ou risco em
seus direitos fundamentais” (p.801)19. que a pessoa se coloca em razão de um
comportamento particular. A realização do

‘injusto’ é parte do esforço para a vulnera-
Sendo que tal vulnerabilidade pode ser
bilidade, na medida em que o tenha decidi-
classificada partindo da idéia de seletividade
do com autonomia” (p.270)20.
penal:
E essa “vulnerabilidade foi novamente
“Esta situação de vulnerabilidade
deslocada do restrito âmbito penal e reformulada
é produzida pelos fatores de vulnerabilida-
em três dimensões, a saber, uma vulnerabilidade
de, que podem ser classificados em dois
frente ao sistema penal, uma vulnerabilidade da
grandes grupos: posição ou estado de vul-
comunidade e uma vulnerabilidade psicossocial”
nerabilidade e o esforço pessoal para a
(p.63)6, sendo esses planos interdependentes.
vulnerabilidade.
Essa tridimensionalidade da vulnerabi-
A posição ou estado de vulne-
lidade pode ser adotada como critério formal e
rabilidade é predominantemente social

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objetivo na “a ponderação e determinação das Referências


ações redutoras de riscos e danos consideran- 1. Carneiro H. Drogas: a história do proibicionismo. São
do as especificidades individuais e coletivas das Paulo: Editora Autônoma Literária; 2019.
pessoas, segmento ou comunidades, além do ti- 2. Escohotado A. O livro das drogas: usos e abusos, pre-
po de droga, sua apresentação e forma de admi- conceitos e desafios. São Paulo: Dynamis Editorial; 1997.
nistração” (p.65)6. 3. Musto D. The american disease: origins of narcotic con-
trol. New York: Oxford University Press; 1987.

Considerações finais 4. Passetti E. Das fumeries ao narcotráfico. São Paulo:


EDUC; 1991.
Na “questão das drogas”, o modelo de
proibicionismo e sua política de “guerra às dro- 5. Dória R. Os fumadores de maconha: efeitos e males do
vício. In Brasil. Serviço Nacional de Educação Sanitária. Ma-
gas” não vêm mostrando resultados eficientes
conha: coletânea de trabalhos brasileiros. Rio de Janeiro:
para seu almejado fim, ou seja, uma “sociedade Ministério da Saúde; 1958.
livre das drogas”. Ao contrário, esse modelo mos-
6. Ribeiro MM. Drogas e redução de danos: os direitos das
tra-se pernicioso. O usuário de drogas, que não pessoas que usam drogas. São Paulo: Editora Saraiva;
abraça a abstinência, vê sua dignidade humana 2013.
atacada nos mais distintos cenários: é estigmati- 7. Karam ML. Proibição às drogas e violação a direitos fun-
zado, criminalizado, muitas vezes tem cerceado o damentais. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais.
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acesso aos serviços de saúde e, na maioria das
vel em: http://dspace/xmlui/bitstream/item/6937/PDIexi-
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dade. No cenário coletivo, a sociedade também
8. Rezende BVRG. A ilusão do proibicionismo: estudo sobre a
perde. A criminalização e a condução bélica da criminalização secundária do tráfico de drogas no Distrito Fe-
questão levam a números alarmantes de mortos, deral. 2011. (Tese). Universidade de Brasília. Brasília; 2011.
bem como se mostra responsável por parte do (on line). [acesso em 25 set 2020]. Disponível em: https://
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so uma alternativa a esse modelo, que se mostra 9. Costa PA; Veríssimo MA. “Aqui, até o pó é fake”! - apon-
esgotado. tamentos sobre Lei de Drogas e ações policiais no Brasil
a partir de um caso particular. Rev. Direito Mov.; 2020.
É preciso que a política “de drogas” tenha 18(1):28-50. (on line). [acesso em 25 set 2020]. Disponível
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to_online/edicoes/volume18_numero1/volume18_nume-
nhecendo o usuário de drogas como um sujeito ro1.pdf#page=30
de direitos, tais como a individualidade e a auto-
10. Brasil. Departamento Penitenciário Nacional. Levanta-
nomia. A vulnerabilidade pode ser um instrumen-
mento Nacional de Informações de Penitenciárias: período
to para definição de ações que identifiquem “ca- de julho a dezembro de 2019. (on line). [acesso em: 25
rências e necessidades da pessoa ou grupo so- set 2020]. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/
cial, dando maior objetividade e incrementando sisdepen

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é a política de Redução de Danos, que se mos- lise da letalidade policial no Brasil. Anuário brasileiro de
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tra como alternativa viável na “questão das dro-
Segurança Pública; 2019. 13:61-63. (on line). [acesso em:
gas”, já tendo sido adotada em diversos países, 25 set 2020]. Disponível em: https://www.forumseguran-
e que pode ser abordada com maior amplitude no ca.org.br/wp-content/uploads/2019/10/Anuario-2019-FI-
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