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mw B.8-2.8 Notas pars una pedagoet improbable) de ia diferencia Impeovavel) da diferengs Carls Sie Tradugao Giane Lessa eva de provs Daniel Sel Projet gfe ediagramasto ‘Carolina Faleto Geéncia de produgso Maria Gabriela Delgado copa ‘Yomar Augusto Pedapogie improvavel) da carlo Shiba, [trdugio, Giane Lesa, Ro de anc: DP8A, 2003, ‘Notas para una pedagogla Pedagogia (improvavel) da diferenga E se 0 outro nao estivesse ai? Traduséo: Giane Leasa DPaA editora 96 unitivo, negativo, marginalizador. Os doentes acometidos pela peste, 20 contrario, eram a metéfora da inclusio; sobre eles se exercia 0 poder do conhecimento, do exame, do cuidado, Para Foucault, a inclusdo acaba sendo assim uma figura substitutiva daexclusio, mesmo quando esta permanece ativa eativada em uma determinada sociedade. Em outras palavras:a inclusio nao é © contrério da exclusdo, e sim um mecanismo de poder disciplinar ‘quea substitui, que ocupa sua espacialidade, sendo ambas as figuras igualmente mecanismos de controle. Dada a desordem da exclusao, pelo desconhecimento, pela distancia dos exclufdos, pela falta de controle sobre eles, a inclusdo pode ser entendida, de acordo com Alfredo Veiga-Neto (2001, p. 113) como © primeiro passo numa operacio de ordenamento, pois é necessiria a aproximagdo com 0 outro, para que se dé um primeiro (re)eonhecimento, para que se estabeleya algum saber, por menor que seja, acerca desse outro. Detectada alguma diferenca, se estabelece um estranhamento, seguido de uma oposisio por dicotomia: © mesmo info se identifica com o outro, que agora ¢ um estranho. Essa tal operagao de ordem, essa tal aproximagao, esse tal reconhecimento, esse tal saber determinam novas configuragdes na questio eno problema da espacialidade do outro, do lugar do outro.e da mesmidade. © outro globalizado ou localizado num puro exotismo. O outro global. O nome politicamente correto do outro. A exclusio, a desqualificagao, a desafiiagao, a relegagao do outro. A (alsa? fiticia? ilus6ria? ordenadora? controladora?) promessa de incluso do outro: cexistem, acaso, outras espacialidades, espacialidades outras para 0 ‘bumano? Pode o outro nao ser outra coisa diferente de wma imagem velada do eu mesmo? Afugentar a mesmidade e refugiar-se em sua alteridade? Sobre a espacialidade do outro deere da loess eens deslocalizagao (permanente) da alteridade O sujeitodestituldo detoda alteridade se afunda sobre si mesmo e mergulha no autismo. Jean Baudrillard Com pedacos de mim ex monto um ser at Manoel de Barros ito I “Toda questio humana deveria ser pensada a partir da perspectiva das diferentes espacialidades. E,outra vez, seu reverso pode ser verdade: ‘io hd nada das espacialidades ~ e nas espacilidades ~ que possa ser explicado sendo através do humano. Entio: existe uma tnica espacialidade para o humano? 8 a espacialidade do sujeito também uma espacialidade linear ~ 0 outro, que existe outro que volta, ocupando 0 mesmo terrtsrio que Ihe designamos sempre? Um espago somente homogéneo, unicamente colonial? Ou serd 0 espaco um espaco simultineo onde o outro ocupa um espago ‘outro, mas conhecido ou por conhecer; um outro espago, mas que se imagina aprazivelmente vinculado, a mesmidade? Um, espago_m multicultural? Ou seré que se trata de uma espacialidade radicalmente distnta do espago da mesmidade? Um espago queirrompe, um espago de acontecimento, um espago de olhares, gestos siléncios ¢ palavras imeconhectveis, inclassifcaveis,iredutiveis? As espacialidades da(s) diferenga(s)? mente em relagdo a nés mesmos ~ e/ou circular — DP&A editora 98 Assim como ocorret com a temporalidade, as espacialidades Exclusdes que un em todos os corpos € que atravessam dimensbes ignoradas. Acxpulsio do Paraiso, a falta de Paraiso, a inexisténcia do Paratso. © outro ja nao parece ser somente um fora permanente, ou uma promessa integradora, ou seu regresso & nossa hospedagem, ou sua cstrangeirice, ou seu andar errante e/ou vagabundo. Sua irrupgio confunde o espago da mesmidade. Bé também a falta de espagos, a perda de espacos,o descobrimento de espagos, 0 desdobramento de espagos, aquilo que nos causa a perplexidade do presente: assim como precisamos de um outro tempo ede um tempo outro, talvez agora precisemos também de um outro espago e de um espaco outro. © mapa da mesmidade parece ter se esvaido aos poucos com os ‘mapas tracados durante séculos sobre os outros. Porque esse mapa indicava sempre a diregio do mesmo de nés mesmos, ea mesmidade ceraassim eem sium significado completo, absoluto,ordenado, coerente, (Omapa da mesmidade como uma c6pia do mesmo,acépia daquilo ‘que sempre volta ao mesmo (Deruze e Guartatt, 1977, p.29).. Aperda domapa é, também, adiferenga entrea cépia do mesmo, «a c6pia daquilo que sempre volta a0 mesmo ea cartografia do outro, 0 ‘mapa das miltiplas entradas ¢ relevos do outro, desua expressividade, de seus rostos. Se antes éramos como flechas que apontam para a mesmidade, agora sss flechas se curvam perguntando-se, confundidas eperplexas, «em relagio a que diregdes tomar. Elas sabem, n6s sabemos, que jé ndo indicam, que jé nao indicamos, para nés mesmos: “Somos, entio, indicagdes para o sentido de outros?” (Az0s, 2001, p. 32). A resposta a esta pergunta poderia estar na propria negagio do mapa da mesmidade. Dizer: nao existe tal mapa, sendo uma cépia, 90 uma historia de sua repeticdo, de sua traducio, de sua fabricayao, de invengdo, de sua ilusio, de sua conformidade, de sua auto- facdo, Dizer: 6 uma cépia cada ver mais real ou cada vez mais virtual, porém cada vez menos verossimil, que nos faz habitar lugares que nunca vimos e que sempre (nos) inventamos. Lugares que, se jguma ver sio alcangados, deixam de ser lugares: sio a falta de lugares. A perda do mapa da mesmidade, sobretudo, a perda da c6pia de e sobre a perfeigio de sua centralidade. A perda do mapa é, de certo modo, a perda daquelas fronteiras, a cexisténcia de alguns entrelugares que jf nao (re)apresentam com tanta laridade nem o centro nem sua supostaperiferia. Isso no significa que nio existam mecanismos de poder exercidos sobre o espago, sobre as cespacialidades do outro, Significa que o poder, alvez,tenha tomiado outros ‘ramos, porque: € 0 outro somente um outro de um espago vigiado, controlado, determinado pelos férreos disciplinamentos individuais ¢ coletivos?éo outro, unicamente,arepresentagio de um corpo (eo corpo mesmo) décil, passivel de ser trinado e de ser aperfeigoado? formula-se um conceito do espacial como mera condigao-marco de em todas elas bate o espacial-stuacional (De Maso A fabricagéd dos sujeitos do disciplin experimentar desde hé algum tempo um certo tipo de curte Pedagogia improvével) da diferensa idade dos corpos esculpidos pela nor dentidades do mesmo ¢ da comunidade: ‘como faiscas que hoje se apagam e que amanhi ‘eaumentadas", fia de alguns procedimentos pelos quais s4o administradas .des do presente, recuperando a dimensio espacial dos processos sociais. Antes um sujeito era excluido do tréfego social por meio de interveng5es corretivas, ortopédicas, em torno de um corpo que se dizia que estava doente. Essa explicagdo espacial fazia das exclusbes tum processo que era percebido sempre a partir de uma matriz geral € claro, de inclusto). dem metédico edetalhado endo de novas modalidades io desaberes e poderes ole populacional. ‘Abandona-se a vigilancia do corpo individual, a intromissdo em sua biografia, em sua historia — com o propésito de fazer dele, por exemplo, um bom trabalhador, um bom filho, um bom pai, um bom .dio, um bom aluno etc.~ € comecamaadministrar outros perfis, ratizes. A triade modulacdo-controle-exclusto parece deslocar orém, agora, jd ndo se trata so relevamento de presengas.e de ausén degovernabilidade que determinam w relativamente originais: um eficiente e eficaz (© mapa do presente, continua esse autor, supde 0 tragado de riltiplos mapas justapostos que devem mostrar todos os lugares, vystos a partir de todos os angulos possiveis. Desse modo, ¢ posstvel supor a existéncia exercicio de poder: a sociedade disciplinar ea sociedade de controle, ‘Asociedade disciplinar assume a forma de um mapa que representa uma demarcagio estrita de territ6rios,o que permite observar econtrolar 0s sujeitos, reparar suas presengas e suas auséncias; € 0 pandptico de Foucault, que sugere a possibilidade de ver e de fazer tudo, sempre, ‘ocupando uma posigio superior, de privilégio. A sociedade disciplinar Eoresultado de um poder macigo,cotidiano, sistematico econseqitente ue, utilizando a mesma metéfora de De Marinis, tornou-se “cega” desde hé muito tempo paraas exclusOese para tudo o que pode acontecer Sobre 4 vepacialidade do outro to “al fora” Desse modo, o mapa da sociedade disciplinar nos levaa pensar aque “as exclusbes da generalidade do trafego social eram percebidas a partir de uma mati geral da incluséo, da cura, da reabilitagto, da rnormalizasao” (ib. p. 35-36). Diferentemente da cartografia anterior, ada; sth representada por meio do desenrolar de uma ‘ede uma rede com furos, que determinariatrés zonas dif ‘uma zona de modulagio ou incluso, uma zona de vulnet ‘uma zona de exclusto. ‘Mas jé ndo se trata de uma espacialidade de um suj , mas de alguém que se desloca ‘lguém “dividido em esferas notmativas plurais € . 36). A sociedade de controle estabelece uma fade central de movimento rapido e vetiginoso — 0 global, 0 flexivel, o veloz etc. — ¢ uma espacialidade periférica - onde fixat, deixar rigido, imobilizar. ‘Assim entendida, essa rede ndo pode ser des ‘uma tnica densidade ou de uma densidade compacta: existem zonas de linhas grossas, bem determinadas, por onde circula a capacidade de adaptagio as exigtncias do presente, governado ‘mobilidade; em algumas zonas sua trama ¢ sustentam ¢ se mantém 0s uj orificios que conduzem diretamente paraa zon justo, O roteiro fo chama 0 autor, supte a agdo de escorregar para sue jéndotoleram, que jndo desejam (querem) cexigencias. Sea triade modulagdo-controle-exclusio desloca do cenério o ‘inémio disciplinamento-inclusio, a pergunta sobre a espacialidade do outro e da espacialidade outra assume um significado particular: texistem lugares ndo-modulados, de nao-controle, de ndo-exclust «que ndo sejam lugares de disciplinamento e de inclusiot lacaso, um tipo de tercero espaco, um espago sem nome, um entrelugar, {sto é, um espaco outro, um outro espago? 102 Padagogia (Fmprovivel) da forenge I Hoje, & verdade, causam-nos obsessdo 0s espacos, as passagens entre os espagos, a dispersdo dos espacos, a justaposicéo dos espacos, as pregas, a rugosidade dos espagos, os outros lugares. E também nos causam obsessio a falta de lugares, 05 ndo-lugares, a insisténcia em lum aparente inico espaco, a reuniao ordenada daquilo que parece estar disperso, a negacio de outros espagos que nio sejam os mesmos, que no sejam o mesmo, que ndo sejam a sistematica expansio do belecera(s) espacialidade(s) do outro no supde fermindveis a composicao dos nomes da jade, nem ordenar aqueles outros que nao estao/estavam ou que estio/estavam esquecidos, silenciados, ignorados. ta de nomear 0 inomindvel, de tornar sedentério aquilo que foi, éeserd ndmade, de converter os ndo-lugares em lugares conhecidos de antemio, pré-fabricados, instituidos ¢ inventados pela mesmidade. (Ryestabelecer a espacialidade do outro nao é, nao pode ser, nfo deve ser, simplesmente, © mea culpa da mesmidade. Significa, isso ‘sim, nao esquecer a pergunta, refazera pergunta, interrogara pergunta, malferir a pergunta. Significa, também, ndo se acostumar com a nostalgia da mesmidade, ndo se deixar arrastar pela agonia do jé no ser nem arrastar 0 outro nessa agonia tio torpe quanto impiedosa. ‘A pergunta sobre 0 outro ndo é uma pergunta que possa ser formulada em termos de, por exemplo: quem é, verdadeiramente, 0 outro? ‘Uma interrogagao similar (quem é,entao, o outro?) conduziu Mare ‘Augé (1999) a pensar no ndo-lugar, um lugar oposto aquele espago do outro que esté necessariamente fora e cuja aparente exterioridade do é outra coisa senao a tentativa de dominar sua instabilidade e sua ambighiidade como objeto (de conhecimento) social. ‘Também nao é uma pergunta cyja resposta possa nos conduzir & confortavel e tranqailizadora conclusio de que todos somos, de certo ‘modo, outros ou entao todos somos, de certo modo, diferentes, Assim cexpressas, essas frases no parecem ser outa coisa além de uma ‘maneira de pluralizagao do mesmo, ou uma multiplicagio repetitiva los do eu, condescendentes e austeras, que: “ambiglidade, suprimir a respiracdo do outro provocar ainda maiores lidade. E, menos ainda, podemos pretender construir um tipo de {impossivel eimpensivel) catdlogo da alteridade, isto é uma descricao intensa exaustiva, porém malsi, do outro: de um outro conhecido, é claro, que s6 pode ser um outro exclufdo com nome, ou de um outro por conhecer, por incluit, que também terd, mais cedo ou mais tarde, seu nomea disposigdo da mesmidade. Nao se rata de saber seu nome, ide conhecer o outro para iniciar, assim, sua répida captura, ‘A pergunta € uma pergunta que volta a insistir sobre a cespadialidade do outro e nao sobre sua lteraidade. £ uma pergunta sobre as espacialidades assinaladas, designadas, enunciadas, ‘anunciadas, ignoradas, conquistadas. Sobre a distribuigio do outro no espaco da mesmidade e num esparo outro. Sobre 0 perpétuo conflito entre 0s espacos. Sobre a negacio e a afirmacao dos espagos. Sobre a perda ¢ 0 encontro dos espacos. Sobre os espagas que, ainda fem convivencia, se ignoram mutuamente. Sobre espagos que nio convivem, mas que, certamente, respiram seu proprio ar Entre tantas imagens, entre tantos olhares do mesmo ¢ do outro, talvez devéssemos optar por uma cartografia em parte semelhante € em parte diferente das descritas anteriormente. Uma cartografia eno tuma cépia de espacos talver simultancos, certamente paradoxais, obrigatoriamente disjuntivos, indubitavelmente irredutiveis entre 0 ‘mesmo eo outro. Mais do que_insistir na caracterizagao de um espaco de modulagto- controle-exclusio e/ou de um espaco de disciplinamento-inclusio, proponho terrtorializar tts espacialidades do outro, cujas fronteras podem ser as vezes muito ténues e diluirse € as vezes podem ser muito amplas e perder-se e cujos significados continuam sendo por snecessidade ainda imprecisos: sto as espacialidades sobre o outro ou, ‘melhor ainda, representagGes e/ou imagens e/ou olhares espaciais em tomo do outro. para essas representagies de ente, a seguinte denominagao: ‘Adotarei para essas imager espacialidade, apenas provist 104 (a) aespacialidade colonial, isto é,0 outro maléfico ¢ainvengao maléfica do outro; (b) a espacialidade/o(s) espago(s) multcultural(is)—0 outro da relagio eu/vocé ou, melhor, da relacio pluralizada, generalizada e de _mesmio tempo, o espago da mesmidade como sendo refém do outro. igo provisoriamente, pois se corte orisco (eeu mesmo 0 corro) estismo discursive em que tudo € todos se to algum, de nome em nome, de eufemismo em mo, usurpando e tornando seus 0s termos que fazem (Denso, 1997, p. Acultura como intimagao a hospedagem do outro faz de si mesma € de sua hospedagem lugares, espagos, esencialmente coloniais.» Coloniais no sentido de uma lei que, sob uma aparéncia igualitiia, ‘os produ especialmente, a superpopulagdo da universal, de pluralizagao do eu elou dealberg por impor a forca € a generosidade da lingua condicionada por uma’ ‘Ahospitalidade demanda a necessidade de invensaode sua prépria norma, de sua propria regra, de sua propria generosidade: uma hospitalidade do outro, nesse caso, nessa espacialidade, nas condigoes da mesmidade; uma hospitalida «uma hogpitalidade, como diz Derrida (2001), que é hos ‘outro e de fazé-lo em sua aparéncia mais © diferencialismo racial, lingdistico, histérico, sexual, c ‘outrolado, ¢ ao mesmo tempo, 0 de repudiar essas mest dissimulé-las, mascaré-las, desativé-las até conver exotismo, em pura alteridade de fora. Em sin a diversidade como dado descrtivo ¢ transformé-la, em seguida, em ‘um longo e penoso processo de alterizagdo, em sua vitimizagao e em sua culpabilidade, Nas palavras de Bhabha (1998, p. 127): ‘Aigamas de suas priticasreconhecem a dferenga de rags, culture histria ‘como sendo daboradas por sabersestereotipicos, tori racials experiencia ‘colonial administrative e, sobre ess base, institucionalizar uma série de ideologas politias e culturas que sio preconceituosas, discriminar6riss, vestigial, arcaicas, mits, ¢, 0 que € crucial, reconhecias como tal Ae conhecer a populagao nativa nesses term0s, fo rorias € ‘autontérias de controle politico sio consideradas ferent, ainda que, na verdade,fosse ferent, reonhecimentodadversiade rcs do ou. > ili aqua expresso reconhecimer ‘muito mas apropriado empregar out fou, melhor ainda, ezonhecimento 106 Oaparato de poder colonial é, sobretudo, um aparato de produgao de conhecimentos que parece pertencer originariamente s6 a0 colonizador; trata-se de seu saber, de sua ciéncia, de sua verdade e, ortanto, do conjunto de procedimentos que lhe sio ites para instalar € manter ad infinitum 0 processo de fabricagao, de alterizagéo do outro. Mas imediatamente esse saber, esse conhecimento, se transplanta de uma maneira muito lenta, mas violenta, também para © interior do colonizado como se se tratasse de um proprio saber, de lum conhecimento que, justamente, também lhe resulte aproprisdo, Ihe seja natural. E € curioso 0 fato de que o conhecimento estereotipado do colonizador sobre 0 colonizado e o do colonizado sobre si mesmo no sejam percebidos como correspondentes a dois sistemas diferentes dediscursos sendo a um mesmo: ambos giramem torno dallegitimacio ‘na ocupagio do territ6rio e do espago do outro; 0 espago colonial é como uma tinica fecha que aponta insistentemente para a invencdo, para o governo, para aadministra¢go, para a instrugdo e para o massacre do outro ~ ainda que nao necessariamente nessa ordem. Para a modernidade — entendida nio mais como uma idéia de cordem, mas agora como uma ideologia daquilo que comega, quer dizer, 4 modernidade como o novo —0 molde do ndo-Iugar se traduz direta e literalmente como uma espacialidade colonial. E 0 faz, outra ver, por meio de uma duplicidade. Por um lado, o espago colonial éa terra da incégnita ou da terra nula, a terra vazia ou deserta cuja historia ndo é historia, pois tem de ser iniciada de uma vez, todas as vezes; cujos arquivos devem ser abertos e completados pela mesmidade ¢ cujo Progresso futuro deve ser assegurado no e pelo proprio principio ordenador e classificador da modernidade. Mas 0 espaco colonial também representa o tempo despético daquilo que nio é Ocidente, daquilo que se torna um grave problema para adefinicéo da propria modemidade e para a inscrigdo da histéria do colonizado a partir da prépria perspectiva de Ocidente: “Naquela figura dupla que rondava o momento do iluminismo em sua relagao com a alteridade do Outro, pode-te ver a formacio histérica do entretempo da modernidade” (Buasi, 1998, p. 339). wr Dois textos podem ser fundamentais, fundacional,® para pensar inicialmente outro: Psychologie de la colonisation, de Octave Maninoni problematizagdes foram logo retomadas, ainda que parcial Chaves para o imagingirio (1973, na versio em portugues) ¢ Piel negra, ‘mascaras blancas, de Frantz Fanon (1973, na versio em espanol). Depois de passar longos anos em Madagascar, pais de raga negra que sofreu a colonizacio francesa entre 1896 © 1960, Mannoni ‘concentrou sua atengio na tentativa de resolver um paradoxo (talvez insolivel): por que, para os negros que sofrem os efeitos do racismo, a violéncia do discurso racista — por mais inadmissivel que seja ~ resulta menos imobilizadora do quea do discurso liberal da igualdade? ‘Ou, dito de outra maneira: por que para os negros seria preferivel 0 racismo, ¢ néo a idéia universalista de que todos os homens sfo, em cesstncia, iguais? Nas palavras de Mannoni (1973, p. 309), de diferenga, e a questi ¢ saber o que os homens fardo de suas diferengas, endo suprimi-las. Mannoni anuncia nesse pardgrafo uma questo terrivelmente atual e, também, tragicamente falaz: a da aparente e quase obrigada relagdo entre igualdade e diferenca, que se propde em termos de uma {érrea einexpugndvel oposicio: ou bem igualdade ou bem diferengas. Eafirmo que éterrivelmenteatual, no sentido de auetodo ae acao de diferengas no debate contemporineo € colocade em soodiao uma aparente debidade da utopia da igualdade, Asim, 0 dliscurso da igualdade segue aquele da diferenca como a sua sombra colonial Efalaz, pois se desdobra a armadilha de um binarismo nio- pertinente entre igualdade e diferenca, jé que igualdade deveria ser co resultado de uma relagio de oposigdo com a desigualdade—e nao = aco nae ona Rei Ma de um 9 a A ca Can pers om 9m eee inhos para se (re)pensar a educacdo” (Gervmmu, Kroc sobre as diferencas © os {eSiMON, 2000, p. 234-246). 108 com a diferenca ~ ¢ a diferenga com a mesmidade ~ e néo com a igualdade (Sruiaz e Larrosa, 2001, p. 34). Nesse ponto, estou de acordo com Semprini (1998) quando aqui a pergunta nao € 0 que é a igualdade, e sim 0 contrério: ndo serd a igualdade um grande equivoco? E tanto mais essa € a possivel indagagdo quanto mais se observa como a idéia de igualdade produz pressdes e expulsbes, gera promessas ilusbrias de equidade e se fixa, somente, 20 conjunto de direitos formais, administrativos e legais, negligenciando assim a autonomia, a irredutibilidade, a experiéncia € 0 acontecimento das diferencas. ‘Aquele texto de Mannoni se torna ainda mais significative quando, a partir das vozes, dos gestos e dos siléncios do outro, tende-se ajulgar que a solugdo racista nao perde de vista, 20 menos, o enunciado do problema, como o faz o subterfigio universalista da igualdade: A solu univers to grave, be um tl pra magi d Fran de lidde que no ¢ tcl ita equ ads neahume Ec, ved do lado do ras amas ea commepado ee os que senteao coveto po, May els fram connie vee escandalizados, vendo vir a si a critica, por vezes veement & datos je cue aceiaran deter Ota 197 Essa citagdo nos revela uma parte daquilo que mencionamos como dois discursos que so, na verdade, apenas um. Mas também comega a refletir o estado de incompreensio do colonizador diante de seus proprios efeitos discursivos ¢ néo-discursivos, diante de seus proprios olhares, diante da sua propria fabricagao colonial. ‘A colonialidade se transtorna e volta ao seu ponto de partida, & sua fundacio, a sua razio originéria, O colonizador nao compreende actitica do outro, pois acredita que o outro existe gragas sua propria rodugao e inven¢ao colonial, Assim, poderfamos nos perguntar: 0 que é que se espera quando se silenciam os discursos e as praticas coloniais? que vozes podem surgir dessa (aparentemente nova) relagio? silenciar-se é, entdo, fazer perdurar indefinidamente o espaco lenciar-se é continuar falando? falando sobre as vores que falam colonizadamente sobre’'o mesmo? Continua ‘Mannoni (ib, p. 314): nido fosse, pelo menos por uma parte, nossa obra. silencio (colonial) parece ser somente um convite ou & mudez do outro ou a confirmacio ~ ndo idéntica, mas parecida ~ de sua espacialidade, O siléncio colonial permitiu um reagrupamento de forcas, um four de force do colonialism, uma nova legitimagio para inovadoras estratégias de invengao e de traducao do outro. Nega-se 0 que outro fala e nega-se sua fala possivel; ou, em outro sentido, da- se a autorizagdo para que o outro fale somente do mesmo e, entio, ‘celebra-se a nossa generosa autorizagao, a (re)descoberta da voz do outro, néo a sua vor. Fanon (1973) relata a situagio dos negros antilhanos ¢ sugere coutras interpretagGes para a relagio colonial; uma relago marcada foundo-possee/ou posse ‘Todo povo colonizado ~ isto é, todo povo em cujo seio tenha nascido ‘um complexo de inferioridade como consequéncia do cultura local ~ situa-se sempre, encara-se, com relagao nagio civilizadora, jetropolitana. O ‘esceparé tanto mais e melhor de fa quanto mais ¢ melhor fizer cus os valores culturais da metropole. Seré tanto mais branco quanto ais ejeitar sua negritude, ‘Aquilo que pode ser original nesse trecho de Fanon, além da vvinculacdo explicta entre colonialismo ¢ linguagem, encontra-se em dois planos que foram apenas esbogados por ele. O primeizo estabelece que oespago colonial se relaciona necessariamente a um processo de destruigéo e sepulcro ~fisico, material e simbélico - da cultura local O segundo esté no fato de que para poder/tentar/querer ser como os outros 0s outros, é claro, especificados a partir de uma perspectiva sto colonizado deve desracializar-se e/ou desves clou desetnicizar-se efou dessexualizar-se etc; enfirn, deve des ide suas marcas ede seus tragos culturais que constituem suad 110 Em relagio a este ultimo, Fanon reconhece a importincia que tem para os povos colonizados recobrar suas narrativas reprimidas e afirmar as tradigdes culturais, mas ndo nega os perigos que isso acarreta © perigo da fixagao e do fetichismo das identidades na recorda¢io do ppassado., portanto, a conseqiiente homogeneizacio do tempo presente como necessidade de uma experitncia comum, obrigat6ria ¢ sem salvagdo para todos 0s membros de um determinado grupo. ‘Annegagio ao discurso e pritica colonial na descriglo de Fanon nio expressa somente 0 desenterrar dos ritos e dos mitos ancestrais; remete, talvez, a um outro lugar e a uma outra coisa: “No momento que desejo, ‘estou pedindo para ser levado em consideragao. Nao estou meramente aqui-e-agora, selado na coistude. Sou a favor de outro lugar ede outra ‘oise. Exijo que se leve em conta minha atividade negadora” (ib. p.237). © outro coisificado, a negagio da negagto. Desfazer-se para ser como os outros, 05 outros colonizadores. Acespacialidade colonial nao pode ser considerada uma ideologia linear, possuidora de uma tinica cartografia. Mas deve ser pensada em termos de uma finalidade totalizadorae totalitiria, Trata-se, para dizer melhor, de um conjunto muito heterogéneo de priticas, discursos e interesses, cujo objetivo mais evidente ¢ instaurar um sistema de domfnio, Entretanto, nio € s6 0 dominio em si o que interessa, mas também a possibilidade infinitamente exponencial de sua expetuacdo, de sua diversificagdo em subespacos, da efetivacio de estratégias cada vez mais disseminadas e mais microscépicas de saber ede poder sobre o outro. Estabelecer somente uma relagio untvoca entre a espacialidade colonial e 0 imperialismo ~ o capitalismo — remete exclusivamente a uum de seus elementos mais visiveis e também mais superficiais. Como bbem assinala Edward Said (1978), a faceta mais evidente do espaco colonial ¢ aquela que se define como uma pra adotada por um centro urbano que governa um. ‘Aooutra faceta, talvez menos visivel, porém mais substancial e refere ao emprego permanente de um tinico tempo verbal - 0 etemo temporal ~, que transmite uma impressio de repeticao e de forsa e que se resume a utilizagao eficaz e suficiente da simples c6pula é, [Nao se trata de negar a obviedade dessas facetas coloniais. Nao se trata de dar suavidade a violéncia rochosa do colonialismo. Nao é {questio, como diz Derrida (1997, p. 58), “de apagar a especificidade arrogante ou a brutalidade traumatizante do que se denominaa guerra colonial moderna e, propriamente dita, no momento mesmo da conquista militar ou quando a conquista simbélica prolonga a guerra por outros meios”. ‘Trata-se de estabelecer como os outros mis, também coloniais, «que nao se limitam ao fato fisico da acumulacio e aquisicdo colonial de territérios e subjetividades e que nio sio somente usurpagao de fontes de produgéo, também produzem traumas sobre traumas, violéncias sobre violéncias, negacio sobre negacao do outro. © espago colonial supde também a idéia de que, efetivamente, alguns territérios e alguns povos querem ou precisart sex colonizados. E é por essa razdo que o espaco colonial, suas praticase seus discursos desenvolvem formas de conhecimento, modalidades de representacio

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