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Pré-Socráticos

Autor: Prof. Vladimir Fernandes


Colaboradores: Prof. Renato Bulcão
Profa. Tânia Sandroni
Professor conteudista: Vladimir Fernandes

Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, especialista em Sociologia e História do Trabalho pela Fundação Santo André e graduado em Filosofia pelo
Centro Universitário Claretiano de Batatais. Na Universidade Paulista (UNIP), atua como professor titular de Filosofia
e pesquisador da linha de pesquisa de políticas públicas e formação de professores na perspectiva filosófica. Possui
experiência na área de Sociologia e Filosofia, com ênfase em Epistemologia, Ética e Educação.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

F363p Fernandes, Vladimir.

Pré-Socráticos. / Vladimir Fernandes. - São Paulo: Editora


Sol, 2020.

100 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230.

1. Filosofia. 2. Mito. 3. Razão. I. Título.

CDU 1

U504.80 – 20

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
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Unip Interativa – EaD

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Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar
Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Ana Fazzio
Carla Moro
Kleber Nascimento
Rose Castilho
Sumário
Pré—Socráticos

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................7

Unidade I
1 A CONSCIÊNCIA MÍTICA...................................................................................................................................9
2 A TEOGONIA DE HESÍODO............................................................................................................................ 12
3 ILÍADA E ODISSEIA E AS FUNÇÕES DO MITO......................................................................................... 13
4 CARACTERÍSTICAS DO PENSAMENTO MÍTICO...................................................................................... 21
4.1 A relação signo e significado............................................................................................................ 25
4.2 A relação de semelhança................................................................................................................... 26
4.3 A parte pelo todo.................................................................................................................................. 26
4.4 O espaço.................................................................................................................................................... 27
4.5 O tempo.................................................................................................................................................... 28
4.6 O número.................................................................................................................................................. 29
4.7 O princípio causal.................................................................................................................................. 30
4.8 Magia e técnica...................................................................................................................................... 31
4.9 Mito e religião........................................................................................................................................ 33

Unidade II
5 A TRANSIÇÃO DO MITO À RAZÃO.............................................................................................................. 42
5.1 O nascimento da Filosofia.................................................................................................................. 47
6 FILÓSOFOS PRÉ‑SOCRÁTICOS...................................................................................................................... 48
6.1 Tales de Mileto (cerca de 625/24-558/6 a.C.)............................................................................ 49
6.2 Anaximandro de Mileto (cerca de 610-547 a.C.)...................................................................... 51
6.3 Anaxímenes de Mileto (cerca de 585-528/5 a.C.).................................................................... 53
6.4 Pitágoras de Samos (cerca de 580/78-497/6 a.C.)................................................................... 54
6.5 Xenófanes de Colofón (cerca de 570‑528 a.C.)......................................................................... 55
6.6 Heráclito de Éfeso (cerca de 540-470 a.C.)................................................................................. 58
6.7 Parmênides de Eleia (cerca de 530-460 a.C.)............................................................................. 59
6.8 Leucipo (nascimento cerca de 500 a.C.) e Demócrito de Abdera
(cerca de 460‑370 a.C.)............................................................................................................................... 60
6.9 Características da reflexão filosófica............................................................................................. 61
Unidade III
7 SÓCRATES: DIFERENTES OLHARES............................................................................................................ 71
7.1 Sócrates, segundo Aristófanes......................................................................................................... 71
7.2 Sócrates, segundo Xenofonte........................................................................................................... 72
7.3 Sócrates, segundo Platão................................................................................................................... 73
7.4 Sócrates: cidadão ateniense............................................................................................................. 75
7.5 Discurso de defesa................................................................................................................................ 76
7.6 Condenação e discussão da pena................................................................................................... 79
7.7 Método socrático.................................................................................................................................. 81
8 OS SOFISTAS E O CONTEXTO DEMOCRÁTICO........................................................................................ 83
8.1 Sócrates e os sofistas........................................................................................................................... 86
8.2 Sócrates e seu legado.......................................................................................................................... 87
APRESENTAÇÃO

Caro aluno,

A disciplina Pré‑Socráticos tem como objetivo geral contribuir para a compreensão dos fatores que
possibilitaram o surgimento da Filosofia na Grécia Antiga e conhecer alguns dos principais problemas
discutidos pelos primeiros pensadores. Trata‑se de apresentar a origem da Filosofia, seu desenvolvimento
inicial e sua especificidade, visando possibilitar uma visão de conjunto dos seus pressupostos e
desdobramentos em suas origens.

INTRODUÇÃO

Este livro‑texto tem por finalidade servir como suporte didático para que as aulas sejam amparadas
por um conteúdo teórico de fácil acesso para os alunos, mas sem perder a profundidade necessária.
Ele foi dividido em três unidades básicas, para melhor expor o percurso que vai dos antecedentes da
Filosofia, passando por sua origem e primeiros pensadores, e finalizando com Sócrates e os sofistas.

Trataremos do pensamento mítico, uma vez que ele antecede a Filosofia. Parte do pressuposto
de que o desejo de conhecer ou de buscar um sentido para o mundo circundante é inerente aos
vários agrupamentos humanos em diferentes épocas e lugares. O ser humano, diante de um mundo
desconhecido, repleto de mistérios como o nascimento, a morte, a sucessão alternada entre dias e noites,
as mudanças climáticas, entre outros, precisa tentar entendê‑lo. Essa necessidade é própria da condição
humana, uma vez que o ser humano, diante do medo, da admiração e do desconforto produzido pelo
desconhecido, precisa dar‑lhe sentido. O khaos tem de ser ordenado para o ser humano encontrar o
seu lugar no mundo e apaziguar as suas inquietações. O pensamento mítico tem cumprido essa função
ordenadora muito antes do surgimento da Filosofia ou da própria Ciência.

Analisaremos os principais fatores que possibilitaram o surgimento da Filosofia na Grécia Antiga.


A passagem do pensamento mítico para o filosófico não se deu através de um salto e nem substitui por
completo o anterior. Foi um processo lento e gradativo em que uma série de fatores, como o nascimento
da cidade‑estado, a invenção da escrita, das leis escritas, a invenção da moeda, contribuíram para que,
bem como o poder e a organização da vida social, os mitos também fossem questionados. Considera
que, no decorrer do processo histórico, as explicações míticas passam a ser questionadas por aqueles
que seriam conhecidos como os primeiros filósofos, preocupados em buscar o princípio fundamental
das coisas. Retrata alguns dos primeiros pensadores e suas explicações racionais para o existente. Por
fim, analisa as características da reflexão filosófica, que pode ser definida como uma reflexão radical,
rigorosa e de conjunto sobre os problemas que o ser humano enfrenta no decorrer de sua existência.

Abordaremos o filósofo Sócrates, figura emblemática na história da Filosofia, apesar de nada


ter escrito e nem ditado para que outros escrevessem. Seu pensamento ficou conhecido graças
às obras de seus discípulos e comentadores. Quando Sócrates estava com cerca de 70 anos foi
chamado ao tribunal de Atenas para se defender das acusações de não acreditar nos deuses da
cidade e corromper a juventude. Solicitavam como pena a sua condenação à morte. Sócrates
foi contemporâneo dos pensadores sofistas e interlocutor de alguns deles. Eles eram professores
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itinerantes que iam de cidade em cidade oferecendo suas aulas para aqueles que pudessem pagar.
Deram importante contribuição para a sistematização do ensino e para o ideal democrático. Assim,
discorreremos sobre alguns aspectos da condenação de Sócrates, o chamado método socrático e as
principais divergências em relação aos sofistas.

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PRÉ-SOCRÁTICOS

Unidade I
1 A CONSCIÊNCIA MÍTICA

Antes de abordarmos a Filosofia propriamente dita, falaremos sobre o pensamento mítico. Mas por
que discuti‑lo? Porque o pensamento mítico é anterior à filosofia. Quando a Filosofia surge, na Grécia
Antiga, ela se depara com um mundo povoado por concepções míticas. Um mundo povoado por deuses,
deusas, heróis e monstros.

Afinal, o que vem a ser mito? O que, em geral, as pessoas entendem como tal?

Muitos definem os mitos como estórias desconexas, como fantasias criadas sem qualquer relação
com a realidade ou como um conjunto caótico de superstições. Mas será que os mitos se limitam a
essas definições? Vamos tomar como exemplo um mito grego sobre o rapto de Cora. Divindades que
compõem esse mito:

Mito de Cora

• Deméter: deusa das colheitas.

• Cora: filha de Deméter.

• Hades: deus do subterrâneo.

• Zeus: deus dos deuses.

• Hermes: mensageiro dos deuses.

Cora, filha da deusa das colheitas, Deméter, brinca pelos campos verdejantes da Grécia. Cora é uma adolescente
pura e cheia de vida. Ela corre, pula, brinca com as borboletas, colhe flores. Mas Cora não sabe que está sendo
observada. Perto dali, Hades, deus do subterrâneo, observa Cora brincar e pensa: que bela adolescente, essa Cora!

Hades então resolve raptar a doce Cora. Ele coloca em movimento sua carruagem puxada por dez
fortes cavalos e parte em sua direção. Cora, ao perceber o que se passa, corre, mas em vão. Hades toma
Cora em seus braços e a leva. No mesmo momento se abre no chão uma grande fenda e a carruagem
desce para o centro da Terra.

Ao cair da noite, a mãe de Cora, Deméter, sente sua falta e sai à sua procura. Dois camponeses que
presenciaram a cena contam‑lhe o que aconteceu. Deméter fica louca de dor e, desconsolada, proíbe
que as plantas, o capim, as árvores, as frutas e os cereais cresçam.
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Unidade I

Os camponeses ficam preocupados e tristes, pois sem o crescimento das plantas eles irão perecer.
Eles imploram aos deuses para que o verde retorne. Os deuses pedem para Deméter deixar a vegetação
crescer, mas ela está irredutível: nada crescerá ou voltará a florescer enquanto Cora não retornar.

Figura 1 – Hermes, mensageiro dos deuses

Zeus resolve intervir. Manda o mensageiro Hermes ao reino dos mortos para falar com Hades para
deixar Cora voltar. Mas ela só poderá retornar se não tiver comido nenhuma comida do reino dos
mortos. O jardineiro informa a Hermes que ela havia comido seis sementes de romã. Dessa forma, Cora
não poderia voltar. Mas Deméter não volta atrás de sua decisão e não permite que nada floresça.

Zeus então estuda o problema e propõe uma possível solução para o impasse: como ela comeu
apenas seis sementes de romã, durante seis meses Cora ficará morando com Hades no subterrâneo, será
sua esposa e se chamará Perséfone (aquela que causa destruição). Durante os outros seis meses, Cora
voltará e passará em companhia de sua mãe, Deméter.

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PRÉ-SOCRÁTICOS

Figura 2 – Perséfone, Hermes, Hekate e Deméter. Terracota bell‑krater (tigela para misturar vinho e água) – The Metropolitan Museum
of Art, New York

Quando Cora está com sua mãe, esta fica muito feliz. Nesse período, a natureza reflete a felicidade
de Deméter: a terra está coberta de verde, com flores e frutos.

Figura 3 – O retorno de Perséfone, Frederic Leighton (1891)

Quando vai se aproximando o momento de Cora partir, sua mãe vai ficando triste e a vegetação
também começa a mudar. Quando Cora retorna ao subterrâneo com Hades, as folhas começam a secar
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Unidade I

e a cair. As plantas e os frutos cessam de crescer e nada mais floresce. Até o sol não brilha com a mesma
intensidade de antes.

Quando novamente se aproxima o momento de Cora voltar, sua mãe vai ficando alegre e a natureza
começa a florescer novamente. E assim sucessivamente.

Exemplo de aplicação

Reflita a respeito do significado do mito de Cora.

Como a ciência explica o fenômeno abordado nele?

2 A TEOGONIA DE HESÍODO

Segundo a Teogonia de Hesíodo, no princípio de tudo havia apenas o Caos (Khaos), uma espécie
de vazio escuro ilimitado e indefinido. Depois, do seio do Caos surgiu a Terra (Gaia). Nossa mãe Terra
nasceu depois do Caos e de certa forma representa o seu contrário. Jean‑Pierre Vernant (2000),
explica que a Terra surge como forma distinta, separada, precisa. Enquanto o Caos simboliza confusão,
indistinção, desordem, a Terra é o chão do mundo, lugar onde os deuses, os homens e os bichos
poderão andar com segurança.

Observação

Teogonia: gr. theogonía, a “origem ou genealogia dos deuses”. Nas


religiões politeístas, narração do nascimento dos deuses e apresentação da
sua genealogia (TEOGONIA, 2009).

Depois, em terceiro lugar, aparece Eros, que mais tarde se chamaria Amor. Este é o Eros primordial,
ainda não há o masculino e o feminino, é ele que expressa o impulso do universo em se manifestar, de
trazer à luz o que está oculto na escuridão.

A Terra (Gaia) é a mãe, é feminino, mas vai parir sem precisar se unir a ninguém. Gera do seu ventre
o Céu (Urano) e as águas. Segundo Vernant (2000), ela dá à luz os seus contrários: se ela é chão firme,
gera uma abóbada estrelada e também as águas e as ondas.

Eros atua de outra forma agora. Céu e Terra precisam se unir para gerar outros seres. Eros lança
sua energia de amor cósmico e faz Céu e Terra se unirem. Céu tem uma atividade incessante com a
Terra. Terra fica grávida de vários filhos (os Titãs) que não encontram espaço para sair, já que o Céu está
deitado constantemente sobre a Terra.

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PRÉ-SOCRÁTICOS

Os filhos de Terra (Gaia) e Céu (Urano) são seis Titãs e suas irmãs Titânides. Nascem também dois trios
de gigantes: três Ciclopes de um só olho cada, e três Cem‑Braços.

Separação entre Céu e Terra

A Terra fica furiosa por reter os filhos em seu ventre e pede para que eles ajudem a libertá‑la das
injúrias do pai (Céu). Ainda não há luz, já que Urano fica constantemente deitado sobre Gaia.

Gaia elabora um plano. Gera dentro de si um tipo de foice, depois a coloca na mão de Cronos, o mais
jovem dos Titãs. Ele está no ventre da mãe e fica à espreita. Quando Urano vem novamente possui‑la,
Cronos corta o órgão sexual do pai e o joga por cima do ombro para as ondas do mar. Nesse ato, Urano
grita de dor e se afasta de Gaia, se instalando no alto, onde está até hoje. Assim, separa‑se o Céu da
Terra e os filhos podem nascer.

Cria‑se, dessa forma, um espaço livre entre o Céu e a Terra que possibilita a vida e a reprodução dos
seres. Surge agora o dia e a noite que se revezarão. Urano separado de Gaia não se une mais a ela, a não
ser através das chuvas fecundantes, que irão gerar outros seres.

3 ILÍADA E ODISSEIA E AS FUNÇÕES DO MITO

Figura 4 – Busto de Homero. Museu Britânico

Os dois poemas épicos mais importantes da literatura grega (e também da literatura ocidental),
Ilíada e Odisseia, têm como possível autoria o poeta Homero. Contudo, há intérpretes que consideram
que essas duas obras não foram escritas por um único poeta, mas por vários.

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Unidade I

Observação

Épico: lat. epìcus,a,um “heroico, de ou relativo aos feitos dos heróis”, adp.
do gr. epikós, adj. ligado ao gr. épos,ous “palavra, verso, discurso, poema”.

1 que relata, em versos, uma ação heroica. 2 relativo a ou próprio


de epopeia ou de heróis. 3 digno de figurar em uma epopeia; que tem a
dimensão dos motivos ou dos heróis da epopeia; heroico. 4 de intensidade
ou grandeza fora do comum; fantástico, desmedido, grandioso, homérico,
memorável (ÉPICO, 2009).

A Ilíada aborda a guerra que aconteceu em Troia (em grego: Ílion), envolvendo gregos e troianos.
Segundo o relato mítico, sua origem encontra‑se em uma festa realizada no Monte Pélion para celebrar um
casamento. Resolveram não convidar a deusa Éris (Discórdia). Mas ela ficou sabendo e resolveu vingar‑se:
pegou uma maçã de ouro e amarrou um bilhete – para a mais bela – e a lançou no meio dos convidados
da festa. Houve uma grande disputa. Por fim, três deusas disputam a maçã: Hera, Atena e Afrodite.

Figura 5 – Atena. Academia de Atenas (Grécia)

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PRÉ-SOCRÁTICOS

Perguntaram para Zeus qual delas deveria ficar com a maçã de ouro, mas ele achou melhor passar a
decisão para alguém de fora do Monte Olimpo: o príncipe Páris de Troia. Assim, as deusas aparecem para
Páris e oferecem vantagens para serem escolhidas: Hera lhe propõe o domínio de toda a Ásia e o trono
de Troia; Atena disse que lhe tornaria o guerreiro mais sábio e valente; Afrodite lhe promete a mulher
mais bela da face da Terra. Quem Páris escolhe?

Figura 6 – Vênus (Afrodite para os gregos), de Alain Darles

Páris escolhe Afrodite. A mulher mais bela naquela época era Helena, mas ela já era casada com
Menelau, rei de Esparta. Páris vai visitar Menelau. Afrodite, disposta a cumprir sua palavra, faz com que
Menelau se ausente da cidade. Páris e Helena se encontram e surge uma atração fulminante. Eles fogem
para Troia.

Quando Menelau retorna fica irado com o acontecimento. Convoca vários reis gregos para irem à
Troia resgatar tanto sua esposa quanto os tesouros da cidade. Agamêmnon, rei de Micenas e irmão de
Menelau, comanda a expedição. Começa a Guerra de Troia, que durará dez anos. A Íliada de Homero
retrata o último ano da guerra.

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Unidade I

Vamos ver a seguir o resumo feito por Peter Jones (2013), em sua Introdução para obra Íliada:

O troiano Páris seduziu Helena, a esposa de Menelau, e levou‑a para Ílion.


Menelau recorreu a seu irmão Agamêmnon, e juntos eles organizaram
uma expedição para resgatá‑la. A Ilíada transcorre no último ano do sítio
dos gregos a Ílion e se inicia com um desentendimento. Agamêmnon, o
comandante da força expedicionária grega, recebeu como butim a filha de
um sacerdote local de Apolo. Obrigado a devolvê‑la, exige uma substituta.
Depois de uma briga furiosa com Aquiles e seu companheiro Pátroclo, toma
para si Briseida, o espólio de guerra de Aquiles, o que leva este e seu grande
amigo Pátroclo a se retirarem da luta. A deusa Tétis, a mãe de Aquiles,
arranca de Zeus, o soberano dos deuses, a promessa de que os gregos
começarão a ser derrotados, para que Aquiles seja chamado de volta e se
desfaça o agravo. Isso causa imediatamente problemas para Zeus com sua
esposa Hera, que é favorável aos gregos (Canto I). Nos Cantos II‑VIII, Homero
deixa de lado o desentendimento pontual e apresenta um panorama mais
amplo: os combatentes gregos e troianos na Terra e os deuses no Olimpo.
Vemos Agamêmnon testar o moral das tropas e fazer um papel vexatório (II);
o troiano Páris derrotado em um duelo com Menelau, mas sendo salvo por
sua deusa padroeira Afrodite (III); as deusas mais hostis à Troia, Hera e Atena,
fazendo com que a luta recomece (IV); o herói grego Diomedes vencendo os
troianos e até ferindo Afrodite e o deus da guerra Ares (V); Heitor, o maior
guerreiro de Troia, em uma conversa comovente com a esposa Andrômaca e
o filho (VI); Heitor travando um duelo que não chega ao fim com Ájax e os
gregos construindo uma muralha e um fosso para defender suas naus (VII);
e Zeus favorecendo os troianos, que obrigam os gregos a recuar de suas
novas defesas e a passar a noite acampados na planície (VIII). Agamêmnon
agora reconhece que fez mal em insultar Aquiles e aceita enviar uma
compensação substancial para obter seu retorno. Ulisses, Fênix e Ájax lideram
a delegação, mas, para seu assombro, Aquiles os repele. É quando começa
a sua tragédia. (Canto IX). Nos Cantos X‑XV, Homero prepara as bases para
a entrada em combate de Pátroclo, o companheiro inseparável de Aquiles.
Em uma expedição noturna, Diomedes e Ulisses invadem o território troiano
e roubam os famosos cavalos de Reso (X); Agamêmnon consegue uma breve
façanha solitária, mas os gregos são obrigados a retroceder. Aquiles manda
Pátroclo averiguar o que está acontecendo, e o velho e sábio Nestor sugere
a este que, se Aquiles não voltar a combater, ele, Pátroclo, o faça vestindo
a armadura do amigo (XI). Entrementes, os troianos intensificam o ataque
contra as defesas gregas. Parte da muralha é destruída; Heitor põe abaixo o
portão e os troianos entram precipitadamente. (XII). Supondo que a vitória
dos troianos está encaminhada, Zeus se distrai com outros assuntos, e
Posêidon aproveita a oportunidade para auxiliar os gregos (XIII). Hera faz
amor com Zeus para distraí‑lo. Os troianos são derrotados (XIV). Zeus acorda
e, enfurecido, ameaça os deuses com violência se voltarem a interferir.
16
PRÉ-SOCRÁTICOS

Posêidon recua, Apolo destrói as defesas adversárias e Heitor conduz


os troianos até as embarcações gregas (XV). Pátroclo volta para junto de
Aquiles e repete a sugestão de Nestor para que entre em combate com sua
armadura. Aquiles concorda (fatalmente). Em uma grande façanha individual,
Pátroclo obriga os troianos a retrocederem, mas é despido da armadura
por Apolo e morto por Heitor (Canto XVI). Irrompe uma feroz batalha pelo
corpo de Pátroclo, e Heitor veste a armadura deste (na verdade, de Aquiles).
Os gregos se retiram com o corpo de Pátroclo (Canto XVII). Informado da
morte do amigo querido, Aquiles assume toda a culpa e anuncia que vai
se vingar de Heitor. Tétis avisa‑o de que morrerá logo depois, e Aquiles
aceita o preço. Eis a sua tragédia. Hefesto faz uma armadura nova para
Aquiles, inclusive seu célebre escudo (Canto XVIII). Agamêmnon e Aquiles
se reconciliam, e os presentes são entregues ao guerreiro, que agora tem
urgência de se vingar (Canto XIX). Avança com tanto ímpeto que Posêidon
é obrigado a salvar Eneias de sua fúria, e Apolo aconselha Heitor a buscar
abrigo (Canto XX). O rio Xanto, também ele uma divindade, tenta afogar
Aquiles, que bloqueou seus canais com os cadáveres; até os deuses se põem
a combater entre si (Canto XXI). Aquiles isola e mata Heitor. Contrariando os
costumes, fica com o cadáver e o mutila (Canto XXII). Pátroclo é cremado, e
Aquiles organiza os jogos fúnebres (Canto XXIII). Ainda incapaz de aceitar os
fatos, arrasta o corpo de Heitor inutilmente ao redor da tumba de Pátroclo.
Os deuses concordam que Aquiles foi longe demais e fazem com que o pai de
Heitor, Príamo, rei de Troia, vá suplicar a devolução do cadáver. No encontro
noturno no alojamento de Aquiles, o velho Príamo é bem‑sucedido (Canto
XXIV). Aqui termina a Ilíada, mas Homero nos deixa com uma ideia clara do
que sucederá num futuro próximo: a morte de Aquiles e a destruição de
Ílion (HOMERO apud JONES, 2013, p. 10).

Lembrete

A guerra de Troia ocorre em dois planos: o humano e o divino.


No plano humano, gregos e troianos lutam. No plano divino, alguns deuses
ajudam os gregos, como Hera, Atena e Posêidon. Enquanto outros ajudam
os troianos, como Afrodite, Apolo, Ares (Marte).

A Odisseia narra o retorno de Troia de um de seus principais guerreiros, Ulisses (em grego Odisseu),
para sua pátria, Ítaca. Foi de Ulisses a ideia do cavalo de Troia que possibilitou a vitória aos gregos.

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Unidade I

Figura 7 – Cavalo de Troia, de Henri Motte

Com o término da guerra, todos aqueles que lutaram em Troia e sobreviveram começam a voltar
para as suas casas, mas Ulisses e seus marinheiros não retornavam. O deus do mar Posêidon, como
castigo por Ulisses ter cegado seu filho, o ciclope Polifemo, não o deixa retornar para sua terra.

Figura 8 – Posêidon

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PRÉ-SOCRÁTICOS

Temos a seguir uma passagem inicial do canto I da Odisseia, em que a deusa Atena fala com Zeus
para que intervenha em favor de Ulisses, para que ele possa retornar para casa. Ele se encontrava na ilha
de Ogígia, da deusa Calipso e enfrentava a fúria de Posêidon. Atena diz:

Mas arde‑me o espírito pelo fogoso Ulisses, esse desgraçado, que longe dos
amigos se atormenta numa ilha rodeada de ondas no umbigo do mar. É uma
ilha frondosa, onde tem sua morada a deusa filha de Atlas de pernicioso
pensamento — esse que do mar conhece todas as profundezas e segura ele
mesmo as colunas potentes, que céu e terra separados mantêm. Sua filha
retém aquele homem desgraçado, e sempre com palavras implorantes e
suaves o encanta, para que Ítaca olvide; mas Ulisses desejoso de no horizonte
ver subir o fumo da sua terra tem vontade de morrer — e o teu coração não se
comove, Olimpo! Não foi Ulisses quem junto às naus dos Argivos na vasta Troia
sacrifícios te ofereceu? Contra ele te encolerizas, ó Zeus? Em resposta à filha
falou Zeus, que comanda as nuvens: “Que palavra passou além da barreira dos
teus dentes? Como me esqueceria eu do divino Ulisses, cujo espírito supera
o de qualquer outro homem e aos deuses imortais, que o vasto céu detém,
nunca faltou com sacrifícios? Mas Posêidon, que cerca a terra, sem tréguas
se lhe opõe, por causa do Ciclope a quem Ulisses cegou a vista — ao divino
Polifemo, que mais força tem entre todos os Ciclopes. Foi a ninfa Toosa que o
deu à luz — a filha de Fórcis, aquele que rege o mar nunca cultivado — depois
de se unir a Posêidon em côncavas grutas. Desde esse dia Posêidon, o deus
que faz tremer a terra, embora sem matar Ulisses, fá‑lo vaguear para longe da
pátria. Mas nós aqui presentes acordemos o seu regresso; e Posêidon deixará
a sua ira: contra todos os imortais, à sua revelia, só, contra todos, lutar não
conseguiria”. A Zeus respondeu Atena, a deusa de olhos esverdeados: “Pai de
todos nós, mais excelso dos soberanos, se agrada aos corações dos deuses
bem‑aventurados que o sagaz Ulisses regresse a sua casa, enviemos agora
Hermes mensageiro, Matador de Argos, à ilha de Ogígia para que rapidamente
anuncie à ninfa de bela cabeleira a nossa vontade: que o paciente Ulisses a sua
casa regresse (HOMERO, 2011, p. 120‑122).

Lembrete

Assim como a guerra de Troia ocorre em dois planos (o humano e o


divino), o retorno de Ulisses para Ítaca também é marcado por aquilo
que depende de sua ação (plano humano) e da intervenção dos deuses
(plano divino).

Desde o término da guerra de Troia, Ulisses leva dez anos para conseguir chegar à Ítaca e rever
sua doce esposa Penélope. Nesse período enfrenta várias aventuras e dificuldades, como, por exemplo,
quando foram feitos prisioneiros pelo ciclope Polifemo; quando, em outra situação, a feiticeira Circe
transforma seus marinheiros em porcos; quando precisou ir ao reino dos mortos falar com o adivinho
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Unidade I

Tirésias para encontrar o caminho para casa; enfrentou também a proposta tentadora da ninfa Calipso,
que lhe ofereceu a imortalidade para que ele, Ulisses, ficasse com ela e não fosse embora; ou ainda
quando enfrentam a sedução do canto das sereias, entre outras situações.

Figura 9 – Odisseu (Ulisses). Museu do Vaticano (Roma)

Figura 10 – Ulisses e a sereias. Detalhe em vaso

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PRÉ-SOCRÁTICOS

A palavra “mito” tem sua origem etimológica em mythos, que significa palavra, o que se fala. Quem era
o falador desses mitos na Grécia Antiga? De um modo geral, os mitos faziam parte da cultura e eram contados
pelos pais, pelas amas de leite, pelos cidadãos, pelos aedos (isto é, poetas cantores). Esses últimos, os poetas,
tinham um papel de destaque na narrativa mítica, uma vez que eram considerados escolhidos pelos deuses
para narrarem poeticamente os acontecimentos divinos. Em uma cultura oral, esses poetas vão pelas praças
contando as estórias envolvendo os deuses e, assim sendo, ajudam a manter viva a memória do seu povo.

Desse modo, o mito é uma forma de explicar o mundo, de atribuir sentido ao existente e, portanto,
tranquilizar o ser humano. Trata‑se de uma verdade intuída cuja autoria se perde no tempo, sendo, em
geral, considerado como uma produção anônima e coletiva.

Mas eles não foram produzidos apenas na Grécia Antiga. Diferentes povos em variadas épocas
criaram seus próprios mitos, por exemplo, aqueles criados por tribos indígenas da floresta amazônica.
O ponto comum entre as diversas concepções míticas é a busca por dar sentido ao mundo e uma
explicação para os fenômenos desconhecidos.

Saiba mais

Para saber mais sobre o assunto, leia:

VERNANT, J. P. O universo, os deuses, os homens. Tradução de Rosa


Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

FERRY, L. A sabedoria dos mitos gregos: aprender a viver II. Tradução de


Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

4 CARACTERÍSTICAS DO PENSAMENTO MÍTICO1

Os exemplos citados nos levam a considerar que o desejo de conhecer ou de buscar um sentido para
o mundo circundante é inerente aos vários agrupamentos humanos em diferentes épocas e lugares.
O ser humano diante de um mundo desconhecido, repleto de mistérios como o nascimento, a morte, a
sucessão alternada entre dias e noites, as mudanças climáticas, entre outros, precisa tentar entendê‑lo.
Essa necessidade é própria da condição humana, uma vez que o homo sapiens, na presença do medo,
da admiração e do desconforto produzido pelo desconhecido, precisa dar‑lhe sentido. O khaos tem de
ser ordenado para o ser humano encontrar o seu lugar no mundo e apaziguar as suas inquietações.
O pensamento mítico tem cumprido essa função ordenadora muito antes do surgimento do cogito
filosófico ou da exaltação da ciência.

1 Texto extraído e adaptado de: FERNANDES, V. A transição do mito à filosofia e o processo político‑formativo do
cidadão grego. Revista Hipótese, Itapetininga, v. 2, n. 1, p. 80‑103, 2016.
___. Mito e religião na filosofia de Cassirer e a moral religiosa. Notandum (USP), Porto, ano VII, n. 11, p. 71‑83, 2004.
21
Unidade I

Figura 11 – Ernst Cassirer (1874‑1945)

Ernst Cassirer é um filosofo alemão do século XX, foi filiado ao neokantismo da escola de Marburg.
É autor de Filosofia das Formas Simbólicas, obra em três volumes, em que analisa no primeiro deles,
a linguagem (1923), no segundo, o pensamento mítico (1925) e no terceiro, o conhecimento (1929).
Publicou também Ensaio Sobre o Homem: Introdução a uma Filosofia da Cultura Humana (1942) e
O Mito do Estado (1946). No período em que publicou a sua Filosofia das Formas Simbólicas, Cassirer
já lecionava na Universidade de Hamburg. Desde 1919 foi professor de Filosofia nessa instituição e em
novembro de 1929 assumiu a reitoria. Foi o primeiro judeu a assumir tal cargo na Alemanha. Contudo, o
crescente antissemitismo fez Cassirer deixar a reitoria em novembro de 1930. Com a ascensão de Hitler
ao poder, em janeiro de 1933, Cassirer é obrigado a fugir da Alemanha. Vai primeiro para a Inglaterra,
onde fica até 1935; depois para a Suécia, e permanece até 1941, e finalmente vai para os Estados Unidos,
onde leciona nas universidades de Yale e Columbia e desenvolve suas últimas pesquisas. Em 13 de abril
de 1945, o filósofo não suporta as notícias catastróficas recebidas sobre a guerra: sofre um fulminante
ataque do coração e vem a falecer.

Ernst Cassirer, em sua obra Filosofia de Las Formas Simbólicas II: El Pensamiento Mitico (1998b),
defende a tese de que o mito é a forma mais primitiva de conformação espiritual do mundo, como
afirma, “Muito antes que o mundo se dê a consciência como um conjunto de ‘coisas’ empíricas e
como um complexo de ‘propriedades’ empíricas, é dado como um conjunto de potências e influxos
mitológicos” (1998b, p. 17). Os mitos resultam das experiências coletivas dos seres humanos, que não
se reconhecem como produtores deles, já que não têm consciência da projeção do seu eu subjetivo
para os elementos do mundo. Segundo Cassirer (1976), os mitos construídos por indivíduos, como os

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PRÉ-SOCRÁTICOS

“mitos platônicos”, não podem ser considerados mitos genuínos. Em Platão, os mitos foram elaborados
de forma livre, com finalidades ética e pedagógica definidas, de modo que o seu criador (Platão) não
estava subordinado à sua criação. Já o mito verdadeiro não se reconhece a si mesmo como uma
imagem ou metáfora; a sua imagem é a própria realidade. As emoções expressas são transformadas
em imagens e essas são a interpretação do mundo exterior e interior. Ou, como o autor explica
em O Mito do Estado, “[...] com o mito o homem começa a aprender uma nova e estranha arte: a
arte de exprimir, e isso significa organizar, os seus instintos mais profundamente enraizados, as suas
esperanças e temores” (CASSIRER, 1976, p. 64).

Por isso, o pensamento mítico não deve ser compreendido como mera ilusão ou mentira, mas
uma forma de objetivação de um dado modelo de consciência da realidade, mais primária e de
caráter específico.

Segundo a mesma obra, embora exista uma diversidade de manifestações míticas entre os mais
diferentes povos e em distintas épocas, devemos procurar pelo seu elemento comum, aquele que permite
uma unidade na diversidade, como afirma,

Os sujeitos do mito e os atos rituais são de uma infinita variedade; na


verdade são incalculáveis e insondáveis. Mas os motivos do pensamento
mítico e da imaginação mítica são, em certo sentido, sempre os mesmos.
Em todas as atividades e em todas as formas de cultura humana encontramos
uma “unidade na diversidade” (CASSIRER, 1976, p. 53).

Esse elemento comum, essa unidade em meio à diversidade que Cassirer aponta, no caso do
pensamento mítico, é uma unidade de sentimento, que se fundamenta na “conscientização
da universalidade e fundamental identidade da vida” (CASSIRER, 1976, p. 53). A essência do
mito não é regida pelo pensamento racional, mas pelo sentimento. A mente primitiva vê o
mundo de forma específica, precisamente porque ela não estabelece, como o pensamento
racional‑científico, uma separação entre as diversas formas de vida e os elementos da natureza.
A relação da mente primitiva para com a sua comunidade e para com a natureza é de profunda
comunhão. Os sujeitos míticos não se concebem como entes separados do resto da natureza,
mas como seres que se sentem unidos e participantes de um mesmo todo, em que os desejos,
as sensações e as emoções manifestam‑se por meio dos ritos. Nas palavras de Cassirer, o que
encontramos na crença primitiva é

[...] um profundo e ardente desejo dos indivíduos no sentido de se


identificarem com a vida da comunidade e com a vida da natureza.
Esse desejo é satisfeito pelos ritos religiosos. Aqui os indivíduos fundem‑se
num todo homogêneo (1976, p. 54).

A relação dos membros da tribo entre si e com a natureza não seguem princípios de causa e efeito,
mas princípios emocionais. Ainda de acordo com o autor, quando os homens da tribo Dayak saem
para caçar, os que ficaram na aldeia não podem molhar as mãos com água ou azeite, pois caso isso
ocorra, aqueles que saíram também ficarão com as mãos e os dedos escorregadios e, portanto, as caças
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Unidade I

escaparão. O homem mítico se sente membro de uma única sociedade, a sociedade da vida. Nela os
seres humanos e todos os elementos da natureza estão no mesmo plano. O homem não se sente num
nível superior a esse plano, não se sente numa situação privilegiada, mas se considera partícipe de
um mesmo kósmos. Para que essa sociedade se mantenha é necessário renová‑la constantemente.
Essa renovação se dá através dos ritos. Os ritos de iniciação, bem como os ritos de vegetação, presentes
em quase todas as sociedades primitivas, guardam uma estreita semelhança entre si. Ambos pertencem
a um mesmo processo de regeneração da vida e representam a continuidade de um ciclo, do que deve
morrer para renascer. Ou seja, existe um ritual específico por meio do qual, por exemplo, a criança deixa
de ser criança e se torna adulta, assim como um ritual próprio para garantir os ciclos das estações da
natureza, e ambos estão indissociáveis do conjunto da vida humana. Para cada estação do ano, há um
ritual particular que garante a continuidade do ciclo.

O mesmo ciclo da vida que aparece na sociedade humana e que constitui a


sua própria essência aparece também na natureza. O ciclo das estações não
é devido às forças meramente físicas. Está indissoluvelmente ligado à vida
do homem. A vida e morte da natureza é parte integrante do grande drama
da morte e ressurreição do homem (CASSIRER, 1976, p. 57).

Figura 12 – Dionísio (Baco romano). Museu do Vaticano (Roma)

24
PRÉ-SOCRÁTICOS

Cassirer toma como exemplo o culto dionisíaco para apontar um sentimento que é comum não apenas
a esse mito, mas também aos ritos mais primitivos e às religiões mais evoluídas. Que sentimento é esse?
“É o profundo desejo de o indivíduo se libertar dos grilhões da sua individualidade, de mergulhar na
corrente da vida universal, de perder a sua identidade, de ser absorvido pela natureza [...]” (CASSIRER, 1976,
p. 57) e, dessa forma, aproximar‑se da divindade. Mas, segundo ele, a mente grega, por seu caráter lógico,
tinha necessidade de explicar, justificar os elementos “irracionais” do culto dionisíaco. Isso se deu pelos
teólogos órficos que criaram a história do Dioniso Zagreu. Para Cassirer, a lenda de Dioniso é um exemplo
característico da origem e do significado das produções míticas. Há um relato explicativo que, no entanto,
não pode ser classificado nem como fenômeno físico ou histórico, tampouco como mera fantasia. A lenda
mítica “refere‑se a uma certa ‘realidade’. Mas esta realidade não é física nem histórica: é ritual. Aquilo que
se vê no culto dionisíaco é explicado no mito” (1976, p. 58). Mas, adverte Cassirer, não devemos, com isso,
concluir que o mito seja produto somente de processos intelectuais, pois o seu elemento originário reside
em profundos sentimentos. Ocorre que também não podemos restringi‑lo a elementos emocionais, uma
vez que o mito não é uma simples emoção, mas expressão dela, como arremata o autor: “A expressão de
um sentimento não é o próprio sentimento – é a emoção tornada imagem” (1976, p. 59).

Por meio da linguagem, o ser humano objetiva suas percepções sensíveis. Percepção esta já carregada
de significado, pois o homem não tem acesso a uma realidade pura, em estado bruto, desprovida de
sentido. O mito é, também, uma forma de objetivação, uma tentativa de explicação da realidade.
Mas, enquanto o “[...] simbolismo linguístico conduz a uma objetivação das impressões sensoriais; o
simbolismo mítico leva a uma objetivação de sentimentos” (CASSIRER, 1976, p. 62). Pois, se nos ritos
mágicos e nas cerimônias religiosas os homens agem de forma inconsciente, movidos por profundos
sentimentos e fortes pressões sociais, no mito já temos um novo aspecto. “Mas se esses ritos se
transformam em mitos aparece um novo elemento” (CASSIRER, 1976, p. 62). Esse novo elemento é
a busca de significado daquilo que se faz nos ritos. O ser humano procura saber os porquês, já não se
satisfaz somente com o agir, quer uma resposta; mesmo que ela possa nos parecer fantástica, absurda
ou improvável, o mais importante não é o conteúdo da resposta, mas o fato de que ela pode apaziguar
uma inquietação e fazer o homem encontrar o seu lugar no mundo.

4.1 A relação signo e significado

Para o pensamento mítico, a palavra não é um mero signo convencional e abstrato que está no lugar
da coisa, mas antes está indissociável dela. Existe uma identidade entre a palavra que designa e a própria
coisa designada; a palavra é tomada como a própria coisa. Mesmo no campo subjetivo, o homem mítico
identifica seu nome com seu próprio ser. Proferir o nome de alguém, mesmo depois de morto, significa
invocá‑lo, torná‑lo presente. A mesma analogia vale para a imagem. “A ‘imagem’ não representa a
‘coisa’; é a coisa; não só a representa senão que opera como ela substituindo em seu imediato presente”
(CASSIRER, 1998b, p. 23). Enquanto no pensamento científico existe uma análise constante dos dados
da experiência na busca por estabelecer ordem ao caos em forma de leis, no pensamento mítico a
experiência sensível não é analisada ou questionada, ela é simplesmente tomada como verdadeira em
sua pura presença.

Da mesma forma que o pensamento mítico não diferencia signo de significado e imagem de
objeto, também não distingue sono de vigília e vida de morte, já que mesmo a morte não impede
25
Unidade I

a convivência com o morto através da vivência do sonho, dos sentimentos de amor, medo etc.
A morte é vista apenas como uma transformação, assim como o nascimento como um retorno.
Tal fato explica porque os cultos aos mortos são realizados com oferendas de comida, vestuários,
utensílios etc., porque se crê que o morto continua “vivendo” e necessitando dos mesmos meios
físicos para sua conservação (CASSIRER, 1998b, p. 61).

Esta não separação entre imagem e coisa, característica do pensamento mítico, explica também
casos de transubstanciação, quando o sacerdote representa um deus ou demônio em ritual. Na realidade,
para o pensamento mítico, o sacerdote não está simplesmente personificando essas entidades, mas se
converte de fato nelas, se transubstancia na mesma potência que mimetiza.

4.2 A relação de semelhança

Da mesma forma que o pensamento mítico não separa signo de significado e imagem de coisa,
também não o faz em relação à semelhança externa superficial e à essência da coisa. Para esse tipo de
pensamento, qualquer semelhança externa superficial já é suficiente para agrupar coisas diferentes num
mesmo gênero. O pensamento mítico coloca um sinal de igual entre semelhança externa e essência,
“porque para o mito essa mesma igualdade ou semelhança perceptíveis são a expressão imediata de uma
identidade de essência” (CASSIRER, 1998b, p. 98). A semelhança nunca é vista como algo puramente
indicativo de algo não presente, mas pelo contrário, algo semelhante é a própria coisa. O autor exemplifica
que para o pensamento mítico, por exemplo, a fumaça do cachimbo não é símbolo de nuvem, mas é a
própria nuvem e como tal tem o poder de fazer chover. Não existe nada que seja simplesmente mímico.
A representação mímica torna possível apropriar‑se da coisa que mimetiza; ambas fazem parte de
uma mesma unidade. De modo análogo, o pensamento mítico pode denominar coisas diferentes com
um mesmo nome, tendo por base uma semelhança externa. Todas as coisas que possuem o mesmo
nome tendem a ser apresentadas como semelhantes. Por exemplo, se o pensamento mítico‑mágico
atribui à imagem do relâmpago uma forma serpenteante, tal fato converte o relâmpago também numa
serpente. E se o sol é denominado como ‘o celestial voador’, ele também pode ser designado como
uma flecha ou pássaro, já que o enfoque aqui está na sua característica de voar; isso explica porque
os egípcios representaram o sol como uma cabeça de falcão (CASSIRER, 1998b, p. 116). As designações
para o pensamento mítico não se encontram numa esfera “abstrata”, pelo contrário, cada uma delas
converte‑se numa presença real.

4.3 A parte pelo todo

Outro elemento característico fundamental do pensamento mítico é a não separação das partes do
todo. A totalidade é indivisa, não há divisão entre seus elementos. O todo é um. Essa visão é válida tanto
na sua percepção objetiva quanto para seus sentimentos subjetivos. O todo se explica pelas partes e a
parte pelo todo. E esse todo é dotado com os mesmos sentimentos subjetivos dos sujeitos míticos, o que
lhe confere um caráter dramático, já que toda a natureza e seus elementos fazem parte de uma constante
luta entre as forças do bem e do mal. Como não há separação entre as partes e o todo, ambos possuem o
mesmo valor, já que são vistos como uma mesma coisa. Dessa forma, a posse de uma parte implica poder
sobre o todo correspondente. Esse tipo de relação entre a parte e o todo tem um caráter substancial
concreto, o que se faz a uma parte é repassado para outra, para o todo (CASSIRER, 1998b, p. 78).
26
PRÉ-SOCRÁTICOS

Essa forma de pensar é que dá sustentação às práticas mágicas, pois se acredita que há uma relação
causal entre todos os fenômenos, independentes de sua espacialidade ou mesmo de sua temporalidade.
Ou seja, para o pensamento mítico‑mágico “não existe em rigor limites determinados que separem os
momentos de tempo, assim como tão pouco existem limites para as partes de um conjunto espacial”
(CASSIRER, 1998b, p. 81). Logo, como não há qualquer tipo de distinção espacial ou temporal, quem
possui as partes de um corpo de outro homem, mesmo que estas estejam separadas dele local e
temporalmente, possui poder mágico sobre ele. Tal fato é que dá sustentação aos ritos expiatórios,
por exemplo, quando um miasma, uma contaminação que atinge a tribo inteira, pode ser transmitido
através de ritos para um único indivíduo, ou um animal, e ser eliminado através do sacrifício desse novo
portador do miasma (CASSIRER, 1998b, p. 84).

4.4 O espaço

Segundo Cassirer (1998c), o espaço constitui o meio através do qual a espontaneidade espiritual
realiza suas configurações primárias. A intuição espacial mítica permanece constantemente relacionada
à sua forma de sentir o mundo. Cada zona, cada região do espaço é impregnada pelo sentimento mítico.
Os diferentes espaços, para o pensamento mítico, não são meras regiões homogêneas que ocupam
apenas localizações diferentes, mas todas as zonas – nascente, poente, em cima, embaixo etc. – recebem
um selo mágico. Todas as regiões são concebidas com base na antítese sagrado e profano. “A antítese
básica do ‘sagrado’ e do ‘profano’ não só está entrelaçada com todas essas antíteses espaciais senão
que é ela que constitui e produz justamente a todas as demais” (CASSIRER, 1998c, p. 181). Os pontos
cardeais – norte, sul, leste, oeste – não são meras coordenadas geográficas, mas são todos dotados de
poderes divinos ou demoníacos.

O espaço do pensamento mítico ocupa uma espécie de posição intermediária entre o espaço da
percepção linguística e o do conhecimento teórico. Enquanto o espaço da percepção sensível linguística
tem o próprio corpo como referencial das diversas posições – atrás, na frente, esquerda, direita, acima,
embaixo – e o pensamento teórico parece como que descolado dessa realidade, num universo de figuras
ideais, de coordenadas não intuitivas, como nas linhas imaginárias do globo terrestre, o pensamento
mítico carrega como distinção fundamental para o espaço a antítese sagrado e profano. Essa antítese
vivida delimita duas regiões do ser: “uma normal, geralmente acessível, e outra que, como região
sagrada, aparece realçada, separada, cercada e protegida do que a rodeia” (CASSIRER, 1998b, p. 118).
A concepção espacial mítica, embora trabalhe com espaços físicos assinalados pela percepção sensível,
também atinge espaços suprassensíveis, pois o espaço físico recebe denominações qualitativas, como, por
exemplo, lado leste bom e lado oeste ruim. As regiões não são divididas com base em critérios somente
empíricos ou geográficos, contudo toda divisão se sustenta na valorização mitológica que é atribuída
a cada região. Para o pensamento mítico, não existe o conceito de lei, como no pensamento científico,
para diferenciar o variável do constante, o mutável do imutável, mas a única valorização existente de
diferenciação se revela no âmbito da sua antítese fundamental. Cassirer assinala que essa valorização
resulta da espontaneidade da consciência mitológica, e também, simultaneamente, está vinculada a
um fato empírico básico que são os opostos luz e escuridão. “Invariavelmente o desenvolvimento do
sentimento mitológico espacial tem seu ponto de partida na antítese do dia e noite, luz e escuridão”
(CASSIRER, 1998b, p. 131).

27
Unidade I

Todas as separações realizadas no espaço pelo pensamento mitológico têm como base essa antítese
luz‑escuridão, que se manifesta na associação luz, divindade, vida e escuridão, demoníaco, morte.
Essa característica tem seu fundamento no dado concreto básico que é a propriedade luminosa do Sol
e o de seu movimento aparente em volta da Terra. O oriente, ou nascente, como a região que ele surge
ou nasce, é concebida como fonte da vida; o ocidente, ou poente, como a região que ele desaparece ou
morre, é concebida como portadora da ausência de luz, da escuridão, da morte.

4.5 O tempo

Segundo Cassirer (1998b), para se penetrar na verdadeira essência do mito é necessário fazê‑lo no
âmbito temporal, quando as figuras divinas ou demoníacas passam a ter uma origem, um nascimento e
vivência no tempo. “O verdadeiro caráter do ser mitológico se revela só quando este aparece como ser
de origem. Todo o sagrado do ser mitológico se remonta em última instância ao sagrado de origem”
(CASSIRER, 1998b, p. 141). O passado remoto passa a ser a explicação para a origem do sagrado e das
coisas. Diferentemente do passado histórico, em que uma série contínua se encadeia de explicações
remetidas umas às outras, o passado mítico é absoluto, não existe algo anterior a ele, uma explicação
que o antecede, ele por si só é a causa e explicação da origem e do devir.

De modo inteiramente análogo ao que ocorre no espaço, todo ele se funda na


intuição de que as linhas divisórias e demarcatórias temporais não são meros
sinais convencionais do pensamento senão que cada um dos intervalos de
tempo possuem em si mesmo uma forma e caráter qualitativos, uma ciência
e uma atividade próprias (CASSIRER, 1998b, p. 145).

Para os povos míticos, todas as suas atividades estão reguladas pelo princípio temporal de sucessivas
fases. A periodicidade das várias fases da natureza – dia, noite, primavera, verão, outono, inverno –
reflete na própria concepção de vida do homem que a concebe também seguindo determinadas fases
– nascimento, matrimônio, morte etc. A garantia de sucesso do acontecer dessas fases é assegurada
pelos vários ritos específicos de cada passagem que recebe seu selo religioso próprio.

Já em relação à linguagem, Cassirer explica na sua Filosofia das Formas Simbólicas I que ela
primariamente vincula o tempo ao espaço e que não pode alcançar de modo imediato um conceito
de tempo ideal. Inicialmente, as mesmas palavras que expressam relações espaciais são usadas para
demonstrar as relações temporais. Os advérbios de lugar, como aqui, se utilizam também como agora,
assim como o advérbio ali para o depois ou antes (CASSIRER, 1998a, p. 182). Ou seja, o perto é associado
com o presente e o distante com o passado ou futuro. Portanto, a única diferença que se estabelece
nessa fase é entre o agora e o não agora. O agora compreende a esfera do presente, do que se apresenta
imediatamente à consciência e o não agora a da obscuridade, do não presente à consciência. Antes que
a linguagem possa conceber o tempo como pura relação entre passado, presente e futuro, ela tem que
percorrer vários estágios. A etapa que precede a esta é conceber as diferenças temporais como as de
ações. Por exemplo, diferenciam‑se as ações concluídas das não concluídas, as demoradas das rápidas
etc. Aqui os acontecimentos individuais, que se dão em um modo de ação particular, são associados a
um tempo específico e ainda não alcançam uma forma universal.

28
PRÉ-SOCRÁTICOS

Observação

Para o mito, o agora tem um caráter mágico, está vinculado ao passado


e ao futuro, compreende todos os instantes temporais. Aqui é válido o
princípio da parte pelo todo, tanto para o espaço como para o tempo.

Ainda segundo o autor, ocorre no pensamento mítico um gradual desprendimento das emoções
sensíveis do acontecer particular para a contemplação de um acontecer mais amplo no movimento dos
astros no céu. Tal fato possibilita o nascimento da ideia de uma ordem universal. Ocorre uma mudança
da contemplação do conteúdo particular para sua forma universal, embora a ideia de tempo permaneça
vinculada concretamente a objetos físicos, os astros. Um novo sentido vai se configurando quando a
adoração deixa de estar vinculada apenas aos objetos particulares numa visão substancialista e passa
a vincular‑se a sua forma, “na ideia de uma ordem legal que rege e prevalece no universo” (CASSIRER,
1998b, p. 150). Aqui os astros deixam de ser adorados pelas suas qualidades particulares de luz, beleza,
brilho etc. e passam a ser pela manifestação do ritmo e da ordem temporal.

Deste modo, no movimento dos astros como imagem visível do tempo


se expressa uma nova unidade de sentido que para o pensamento mítico
religioso começa a estender‑se agora sobre a totalidade do ser e do acontecer
(CASSIRER, 1998b, p. 151).

Já no desenvolvimento das grandes religiões, existe uma relação entre a ordem do cosmos astronômico
com a do cosmos ético. A ordem e a constância daquele serve de modelo a ser seguido por este.

4.6 O número

Para o conhecimento científico, o número é uma abstração que serve para reduzir e estabelecer, diante
da multiplicidade, uma legalidade lógica. Nas palavras de Cassirer (1998b, p. 181), “significa o grande laço
de união que pode aglutinar os conteúdos mais heterogêneos para reduzi‑los à unidade do conceito”.
Os números são concebidos como uma série lógica que pode abarcar os mais diferentes objetos. A diferença
entre os números reside basicamente na posição em que ocupam na série do sistema total.

Para o pensamento mítico, o número não possui um caráter funcional universal, como na ciência,
mas uma subordinação de identidade entre a quantidade e o gênero. Ou seja, existe uma aura de
entidade mágica nos números que faz com que as coisas que possuam um mesmo número também
sejam dotadas com os mesmos valores, com a mesma essência.

Enquanto que para o pensamento lógico o número possui uma função


universal, uma significação universal válida, para o pensamento mitológico
aparece inteiramente como “entidade” originária e comunica sua essência e
seu poder a tudo aquilo submetido a ele (CASSIRER, 1998b, p. 184).

29
Unidade I

Segundo o autor, a origem da adoração dos números sagrados está vinculada a uma tríade do
sentimento mítico: o espacial, o temporal e o eu. Por exemplo, a adoração dos quatro pontos cardeais
se faz relacionada a quatro zonas distintamente valorizadas em função da oposição luz e escuridão
manifestada numa ordem temporal. Ordem temporal esta que não se restringe apenas ao tempo do
movimento dos astros, mas também ao tempo dos acontecimentos da vida humana, que associa luz
ao despertar, ao nascimento, ao viver, e escuridão ao sono, à morte. A adoração do número quatro,
relacionada aos pontos cardeais, pode também levar à adoração do cinco ou do sete, quando se passa
a considerar as posições centro, acima e abaixo. Ressalta ainda que embora o acontecer dos fatores
externos seja fundamental na conscientização dos números, eles não são os únicos determinantes, pois
na esfera das relações interpessoais, entre o eu e o outro, entre pai, mãe e filho, encontram‑se as raízes
mais determinantes para essa consciência numérica.

4.7 O princípio causal

Segundo Cassirer (1998b), as explicações míticas não são caóticas ou carentes de ordenação; pelo
contrário, elas têm seu fio condutor no princípio causal. “O princípio causal está presente no mito de
forma fundamental, mas esta causalidade é diferente da presente no pensamento científico” (1998b,
p. 69). Enquanto no mito a causalidade se origina de uma imediaticidade com a experiência sensível,
no pensamento científico a causalidade não é produto de uma mera percepção, mas resultante de
investigações e experiências. Ao passo que, por exemplo, o pensamento mítico pode associar a primavera
com a aparição do urso e concluir que o urso traz a primavera, bem como que a andorinha é quem traz
o verão, o pensamento científico explica a primavera e o verão com base no movimento de rotação e
translação da Terra ao redor do Sol. Portanto, segundo Cassirer (1998b), a crítica de Hume ao princípio
causal da ciência revelou, na realidade, as raízes do princípio causal que ocorrem nas explicações míticas.
Diante das transformações ocorridas na natureza, o pensamento científico busca desvendar uma lei
universal que explique tais fenômenos, ou seja, ele sabe que existe um determinismo na natureza que
pode ser explicado pelas relações de causa e efeito e, assim sendo, procura revelar quais são essas
relações causais. O pensamento mítico também tenta explicar as transformações da natureza, mas de
uma forma diferente. Não busca leis universais, mas explicações nos próprios elementos individuais
e concretos; por exemplo, a noite pode ter saído de dentro de um coco e os homens do barro. Dessa
forma, enquanto que para a ciência só se chega à causalidade através da análise de casos particulares,
que não estão restritos ao aqui e agora, mas que se inserem em relações unívocas que se repetem de
forma idêntica e são explicadas através de leis universais, o pensamento mítico elege sua causalidade
livremente. Por outro lado, para o pensamento mítico não existe o fortuito, o casual, nada acontece por
um mero acontecer. Esse tipo de pensamento tenta explicar tudo, encontrar uma causa para todos os
eventos. Há uma espécie de hipertrofia do instinto causal. Portanto, por exemplo, uma tempestade, uma
enfermidade, a morte etc., não são vistas como algo que ocorre naturalmente, mas como algo que é
sempre provocado por forças mágicas externas, demoníacas ou divinas (CASSIRER, 1998b, p. 74).

Assim pois, a distinção e oposição de ambos mundos espirituais tão pouco aqui
se funda no conceito de causalidade enquanto tal, senão na forma específica
de explicação causal. [...] fica satisfeito [o pensamento científico] se logra
apreender o evento no espaço e no tempo como um caso particular de uma
lei universal, enquanto que já não pergunta o “porquê” da individualização
30
PRÉ-SOCRÁTICOS

mesma, do aqui e agora enquanto tal. Pelo contrário, a consciência mitológica


pergunta precisamente o “porquê” do particular, do individual que não se
repete. “Explica” o acontecimento individual postulando e supondo atos de
vontade individuais [...] (CASSIRER, 1998b, p. 75).

4.8 Magia e técnica

Cassirer expõe, em Linguagem, Mito e Religião (199‑), que as ferramentas inicialmente são concebidas
como seres dotados de poderes próprios ao qual inclusive se rendem cultos.

Quando o homem empregou a ferramenta, começou por olhá‑la, não como


um mero artefato, do qual se sabia e reconhecia criador, mas como algo
independente, um Ser provido de poderes próprios. Em vez de dominá‑lo com
sua vontade, transformou‑o num deus ou demônio que lhe contrapunha
outra, à qual se sentia submetido e à qual adorava, através de ritos dum
culto religioso (CASSIRER, 199‑, p. 73).

O ser humano não tem consciência, a princípio, de que é um produtor autônomo dessas ferramentas.
A sua eficiência na utilização está associada ao poder divino que reside na ferramenta e a sua fabricação
se deve a uma inspiração de origem divina.

O instrumento nunca é, pois, considerado como algo simplesmente feito,


meramente pensado e realizado, mas como um “dom dos céus”; a sua origem
não deve procurar‑se no próprio homem, mas num “Salvador”, divino ou
animal (CASSIRER, 199‑, p. 74).

Ainda de acordo com o autor, ocorre com a técnica o mesmo que acontece com as demais
formas de atribuir sentido ao mundo, que estão a princípio vinculadas ao pensamento mítico e
que paulatinamente, através de um processo dialético, vão se desprendendo dessa matriz comum e
configurando sua própria individualidade (CASSIRER, 199‑, p. 57). O uso das ferramentas possibilita
a descoberta de uma ordem objetiva no mundo, que irá pouco a pouco se separando da sua matriz
mágica‑mítica subjetiva. Quando o homem toma consciência de que objetos físicos, como as
ferramentas, são formas para produzir mudanças na realidade, independentemente dos desejos ou do
uso de magia, entra também em profunda crise. Essa crise se deve à mudança da relação do homem
com o mundo. Na relação mágica do homem com o mundo, existe a crença de que o pensamento
ou a vontade influi nos acontecimentos objetivos. Também não há separação nem entre o signo e
a coisa, nem entre a parte e o todo. O signo tem o poder da própria coisa que designa, como, por
exemplo, assegurar o sucesso da caçada do dia seguinte através de desenhos representando a caçada
já realizada. Ter posse de uma parte e poder de influir no todo, como invocar a chuva através da
utilização de um pouco de água ou invocar as nuvens através da fumaça do cachimbo. Contudo, por
meio dos instrumentos, o homem vai se tornando cada vez mais consciente de que é através deles
que se realiza a mediação necessária entre a vontade e o fim desejado, entre o interno e o externo.
Muito embora Cassirer afirme também na sua Filosofia das Formas Simbólicas II (1998b) que, mesmo
depois que os instrumentos primitivos são concebidos como os meios necessários para determinados
31
Unidade I

fins, ou seja, quando uma relação técnica com a natureza parece suplantar a relação mágica, os
mesmos instrumentos ainda são vistos como dotados de poderes mágicos na sua forma de operar.
Eles são necessários, mas o seu funcionamento é concebido de forma mágica.

A crença na magia inerente a determinados implementos de trabalho,


utensílios ou armas, está universalmente difundida por toda a terra.
A atividade desempenhada mediante tais utensílios e instrumentos requer
de certas ajudas e estímulos mágicos, sem os quais não pode ter êxito
completo (CASSIRER, 1998b, p. 264).

Por outro lado, ele afirma também que numa perspectiva mais ampla da evolução da humanidade,
embora não seja possível saber o momento exato em que ocorre a preponderância de uma concepção
técnica do mundo sobre uma concepção mágica, essa passagem é de fundamental importância para
edificação da autoconsciência.

[...] não pode assinalar‑se o momento determinado na evolução da


humanidade no qual essa fase da dominação mágica passou para uma
dominação técnica da natureza, o emprego do instrumento enquanto tal
implica uma virada decisiva no progresso e construção da autoconsciência
espiritual (CASSIRER, 1998b, p. 264).

É o uso das ferramentas que possibilitará um acirramento cada vez maior entre a antítese eu e o
mundo exterior e que também detonará a crise interna que levará a uma nova relação do homem
com o mundo. Entre o desejo e o mundo se interpõem etapas intermediárias que já não permitem o
cumprimento imediato dos desejos.

Pois no instante em que o homem trata de influir sobre as coisas por meio de
instrumentos, em lugar de fazê‑lo por meio de mera magia de imagens ou
nomes – ainda que este influxo mesmo inicialmente se mova todavia dentro
das rotas da magia –, para ele se há plantado uma separação espiritual,
uma “crise” interna. A onipotência do mero desejo se há dilacerado agora: a
ação está sujeita a determinadas condições objetivas das quais não se pode
apartar (CASSIRER, 1998b, p. 265).

Por meio do uso de ferramentas, o ser humano irá se tornando consciente de uma ordem objetiva
do mundo que substituirá sua visão mágica‑mítica. Ele reconhecerá que há limites aos desejos e que as
ferramentas são instrumentos indispensáveis para se realizar certas causalidades. No entanto, a visão
mágica, numa perspectiva histórica, segundo Krois (1987), não fica eliminada, mas o homem cada vez
mais amplia sua consciência sobre o que segue uma regularidade objetiva e não depende de magia.
Tal fato possibilita uma transformação profunda: a troca do mero desejo pelo desenvolvimento do
livre arbítrio. “Além do ganho cognitivo de reconhecer um mundo físico objetivo, o uso de ferramentas
pavimenta o caminho para outra profunda mudança: o desenvolvimento do arbítrio ao invés do
mero desejo” (KROIS, 1987, p. 103). Conforme abordado, na concepção mágica o desejo se conecta
diretamente com o fim desejado sem mediação. As ferramentas como mediação, surgem, inicialmente,
32
PRÉ-SOCRÁTICOS

como entidades míticas, mas por meio de seu uso possibilitam o aparecimento da consciência de
que são a mediação necessária independentemente da magia. Tal mediação opõe sujeito e objeto e,
consequentemente, a emergência da consciência da decisão e da ação através dos meios apropriados
para se atingir determinado fim. O homem passa a ser obrigado a decidir e reconhecer‑se como
participante, através de seu próprio esforço para alcançar uma meta. Essa decisão para a ação é a
base da formação da personalidade. Diferentemente das sociedades primitivas em que o sistema de
tabus prescreve toda a vida da sociedade, o que é certo e permitido e o que é errado e proibido, em
que não existe qualquer responsabilidade individual, apenas coletiva, a abertura para a decisão abre
o caminho para a consciência da responsabilidade individual e da moral.

4.9 Mito e religião2

Segundo Cassirer (1994), mito e religião são formas distintas de atribuir sentido à existência. Muito
embora, possuam como ponto de partida problemas comuns e fundamentais da vida humana. Dentre
eles se destaca a morte.

Embora a morte se apresente, a princípio, como um mistério e possa desencadear o medo e,


consequentemente, práticas para que o espírito não retorne, em geral, a tendência oposta é a que
predomina. Os rituais são realizados para fazer com que os fantasmas dos mortos se tornem deuses
familiares. De acordo com o autor, o pensamento mítico e o religioso têm suas origens em iguais
acontecimentos fundamentais da existência.

Em todo o curso de sua história, a religião permanece indissoluvelmente


ligada a elementos míticos, e impregnada deles. Por outro lado, o mito,
mesmo em suas formas mais grosseiras e rudimentares, traz em si alguns
motivos que de certo modo antecipam os ideais religiosos superiores que
chegam depois. Desde o início, o mito é religião em potencial. O que leva de
um estágio para outro não é nenhuma crise repentina de pensamento, nem
qualquer revolução de sentimento (CASSIRER, 1994, p. 146).

Conforme abordado, o pensamento mítico não diferencia nem signo do significado nem imagem da
coisa. O signo e a imagem estão como que colados aos atributos das coisas que designam e assumem,
dessa forma, as propriedades da própria coisa. Já no pensamento religioso, há uma mudança radical em
relação a esse aspecto. A religião ao utilizar imagens e signos sensíveis em relação ao divino o faz como
representação. Cassirer cita a crítica que Isaías (44‑9) faz a adoração de imagens:

Parte da lenha queima no fogo... E transforma sua sobra em um deus, em


sua escultura; humilha‑se diante dela, adora, e roga dizendo: livra‑me, que
meu deus és tu [...] Diante de um tronco de árvore tenho de me humilhar?
(CASSIRER, 1998b, p. 295).

2
Texto extraído e adaptado de: FERNANDES, V. Mito e religião na filosofia de Cassirer e a moral religiosa. Notandum
(USP), Porto, ano VII, n. 11, p. 71‑83, 2004.
33
Unidade I

Enfim, no pensamento religioso não se concebe como no pensamento mítico, em que a imagem
é o próprio deus e como tal é dotada de poderes, mas sim que ela apenas representa ou remete ao
deus ou à divindade.

Tanto no mito como na religião, o autor identifica uma crença na simpatia pelo todo, mas também
que a simpatia religiosa é diferente da mítica.

No pensamento mítico, o homem está em comunhão com a natureza, como se fosse um único
organismo. Os ritos garantem a continuidade dos ciclos da natureza e da existência humana. O homem
intervém na natureza através de ritos e práticas mágicas. Já no pensamento religioso, a natureza passa
a ser abordada do ponto de vista racional e não exclusivamente emocional.

Nenhuma religião pôde jamais pensar em cortar, ou sequer afrouxar,


os laços entre o homem e a natureza. Mas nas grandes religiões éticas
esse laço é feito e apertado em um novo sentido. A ligação simpática
que encontramos na magia e na mitologia primitiva não é negada ou
destruída; mas a natureza é agora abordada do ponto de vista racional,
em vez do emocional. Se a natureza contém um elemento divino, ele não
aparece na abundância da sua vida, mas na simplicidade da sua ordem
(CASSIRER, 1994, p. 165).

Aqui também se pode exemplificar um novo enfoque. Enquanto o mito explica suas crenças
de uma forma emocional, a religião utiliza o logos, elucida sua crença com base em argumentos
racionais. Mesmo aquilo que é inexplicável passa a ser argumentado, o porquê de tal condição.
Na verdade, o logos já se faz presente também na relação signo e significado, na não identidade entre
o representante e o representado.

Outro aspecto importante é a transformação da relação entre o ser humano e o divino. A


relação mágica vai sendo lentamente substituída por outro tipo de vínculo. “Em seu sentido
original, todo sacrifício entranha um fator negativo: significa uma limitação do apetite sensível,
uma renúncia que o eu se impõe a si mesmo” (CASSIRER, 1998b, p. 274). O sacrifício se eleva além
da visão mágica, pois nela inicialmente não há limitação para o cumprimento dos desejos humanos.
A magia é um instrumento para manipular os desejos das forças espirituais e colocá‑las a serviço
do homem; ela não conhece limites na sua ação de submeter à vontade dos deuses. Já no sacrifício
está presente outro elemento e direção. Desde os seus primeiros estágios consta a concepção
de que o poder está relacionado proporcionalmente a uma autocontinência, a uma abstinência
correlativa. Nesse ato negativo do sacrifício e do ascetismo emerge uma nova consciência de si e
do divino. O homem toma consciência de que não é dotado de onipotência, mas que está sujeito
a limites, e também que o divino é um poder superior não manipulável através da magia, mas que
através da oração e do sacrifício pode ser aplacado. Quando o sacrifício deixa de ser meramente
material, como, por exemplo, de animais, para um sacrifício interno, de veneração. O que passa a
ser importante não é mais o conteúdo da oferenda, mas a forma de dar. Aqui ela é interiorizada
e a verdadeira oferenda passa a ser a interioridade do homem. Cassirer identifica uma virada
semelhante na religião profética em relação ao sacrifício. Cita Isaías (1‑11‑17) “Para que a mim,
34
PRÉ-SOCRÁTICOS

disse Jeová, a grande quantidade de vossos sacrifícios? Farto estou do holocausto de carneiros e do
sebo de animais... Aprende a fazer o bem” (1998b, p. 278). Entre o homem e o divino se estabelece
então uma relação essencialmente ética.

Outro elemento de destaque é a substituição do tabu pela ética. O tabu é marcado como algo
proibido, sobrenatural e com o qual não se deve ter contato (pode ser um objeto, um lugar, uma ação
etc.) para que não haja o risco de contaminação e consequente castigo. No sistema de tabu, não há
responsabilidade individual. Se alguém desrespeita o tabu, não é só ele que receberá castigo, mas toda
sua família ou tribo. Deve‑se então recorrer aos ritos de purificação para transferir a impureza para um
bode expiatório ou um pássaro e restabelecer o equilíbrio. Outro aspecto é que a contaminação pelo
contato com o objeto tabu é de forma mecânica. Pouco importa se o contato com ele foi proposital,
acidental, por ignorância etc., a contaminação será certeira.

[...] a ação do tabu é sempre mecânica; o contato com o objeto tabu


comunica a sua infecção com tanta certeza quanto o contato com água
comunica a umidade, ou com uma corrente elétrica comunica um choque
elétrico (JEVONS apud CASSIRER, 1994, p. 176).

Para Cassirer (1994), nesse aspecto, no pensamento religioso, ocorrerá um gradual processo que
levará a uma mudança de sentido em relação à pureza ou impureza dos objetos. Ele afirma que tal
alteração pode ser encontrada no Velho Testamento e que ocorreu no desenvolvimento do judaísmo.

O ideal de pureza significa algo totalmente diferente de todas as concepções


míticas precedentes. Procurar por pureza ou impureza em um objeto, em
uma coisa material, passou a ser impossível. Mesmo as ações humanas,
como tais, deixaram de ser vistas como puras ou impuras. A única pureza
que tem significado e dignidade do ponto de vista da religião é a pureza do
coração (1994, p. 177).

Esta transformação remete a outra também importante. O sistema de tabus obriga ao homem uma
série de deveres e de obrigações. E entre eles, há de comum o fato de serem totalmente negativos,
sem nenhum caráter positivo. O sistema de tabus, embora seja, por um lado, uma importante
forma de regular as ações humanas e a vida social, por outro lado, ameaça paralisar a vida com
suas restrições. Já que em alguns casos não se pode comer determinados alimentos, andar ou ficar
parado em determinados locais ou pronunciar tais palavras. Esse conjunto de proibições gera medo
e, consequentemente, obediência passiva. Segundo Cassirer (1994), as grandes religiões transformam
essa submissão passiva em um sentimento positivo.

No entanto, os grandes mestres religiosos da humanidade encontraram um


novo impulso [...] Transformaram a obediência passiva em um sentimento
religioso ativo. Todas as religiões éticas superiores – a religião dos profetas
de Israel, o zoroastrismo, o cristianismo – propuseram‑se uma tarefa comum.
Elas aliviam o peso intolerável do sistema de tabus, mas em compensação
descobrem um sentido mais profundo de obrigação religiosa, que em vez de
35
Unidade I

ser uma restrição ou compulsão é a expressão de um novo ideal positivo de


liberdade humana (CASSIRER, 1994, p. 179).

Esse ideal positivo de liberdade humana é pautado na concepção que o ser humano é dotado de
livre‑arbítrio, ou seja, é capaz de refletir sobre o bem e o mal, fazer escolhas e ser responsável por elas.
Sua relação com o divino deixa de ser regulada pelo medo ou pela tentativa de manipulação por meio
da magia para se tornar uma relação ética. Nesta relação utiliza o logos para entender o divino e praticar
a virtude. Conforme expõe Cassirer no Ensaio sobre o Homem:

O sentido ético substituiu e superou o sentido mágico. Toda a vida do


homem torna‑se uma luta ininterrupta em prol da virtude. A tríade de “bons
pensamentos, boas palavras e boas ações” tem o papel mais importante
nessa luta. O divino não é mais procurado ou abordado por poderes mágicos,
mas pelo poder da virtude (CASSIRER, 1994, p. 166).

Por consequência, embora haja elementos comuns entre o mito e a religião, a forma como a religião
os trata caracteriza seu distanciamento gradativo e, por fim, radical em relação ao pensamento mítico.

Da mesma forma que o ser humano teve de construir suas armas, ferramentas, roupas, moradia etc.,
teve também de criar uma linguagem, dar nome às coisas, atribuir sentido ao existente. Quando o ser
humano chega ao mundo, não existe um livro que contenha as respostas para suas inquietações. Precisa
elaborar tanto o livro, quanto as respostas e as próprias perguntas. O caos necessita ser ordenado pela
cosmogonia mítica para o ser humano encontrar o seu lugar.

Observação

Cosmogonia: gr. kosmogonía,as “cosmogonia, criação do mundo”.


1 corpo de doutrinas, princípios (religiosos, míticos ou científicos) que
se ocupa em explicar a origem, o princípio do universo; cosmogênese.
2 conjunto de teorias que propõe uma explicação para o aparecimento e
formação do sistema solar (COSMOGONIA, 2009).

Conforme abordado, o mito foi a primeira forma que o ser humano utilizou para atribuir sentido ao
mundo. A religião é outro modo que, embora tenha um ponto de partida comum ao pensamento mítico,
acaba por se diferenciar ao fazer uso do logos e conceber um sentido ético para a conduta humana.

No decorrer do processo histórico, surgem outras formas de abordar a realidade. Devido à contribuição
de uma série de fatores, o saber mítico vai ser questionado por aqueles que seriam conhecidos como os
primeiros filósofos, como os pré‑socráticos. Esses filósofos desconfiam das explicações herdadas pela
tradição e acham que podem dar outra elucidação para o existente.

36
PRÉ-SOCRÁTICOS

Saiba mais

Os filmes a seguir podem propiciar uma inter‑relação com os conteúdos


da unidade:

A ODISSEIA. Dir. Andrei Konchalovsky. EUA, Reino Unido, Itália,


Alemanha, 1997. 176 minutos (2 episódios).

A VILA. Dir. M. Night Shyamalan. EUA, 2004. 108 minutos.

HELENA de Troia. Dir. Robert Wise. EUA, Itália, França, 1956. 116 minutos.

Resumo

O desejo de conhecer ou de buscar um sentido para o mundo


circundante é inerente aos vários agrupamentos humanos em diferentes
épocas e lugares. O ser humano diante de um mundo desconhecido, repleto
de mistérios como o nascimento, a morte, a sucessão alternada entre dias
e noites, as mudanças climáticas, entre outros, precisa tentar entendê‑lo.

Essa necessidade é própria da condição humana, uma vez que o homo


sapiens, diante do medo, da admiração e do desconforto produzido pelo
desconhecido, precisa dar‑lhe sentido. O khaos tem de ser ordenado
para o ser humano encontrar o seu lugar no mundo e apaziguar as suas
inquietações. O pensamento mítico tem cumprido essa função ordenadora
muito antes do surgimento do cogito filosófico ou da exaltação da ciência.

Os mitos resultam das experiências coletivas dos seres humanos, que


não se reconhecem como produtores deles, já que não têm consciência
da projeção do seu eu subjetivo para os elementos do mundo. Por isso,
o pensamento mítico não deve ser compreendido como mera ilusão ou
mentira, mas uma forma de objetivação de um dado modelo de consciência
da realidade, mais primária e de caráter específico.

Mito e religião são formas distintas de atribuir sentido à existência.


Muito embora possuam como ponto de partida problemas comuns e
fundamentais da vida humana. Dentre eles se destaca a morte.

O pensamento mítico não diferencia nem signo do significado nem


imagem da coisa. O signo e a imagem estão como que colados aos atributos
das coisas que designam e assumem, dessa forma, as propriedades da
37
Unidade I

própria coisa. Já no pensamento religioso, há uma mudança radical em


relação a esse aspecto. A religião, ao utilizar imagens e signos sensíveis em
relação ao divino, o faz como representação.

Enquanto o mito explica suas crenças de forma emocional, a


religião utiliza o logos, elucida sua crença com base em argumentos
racionais. Mesmo aquilo que é inexplicável passa a ser argumentado, o
porquê de tal condição. Na verdade, o logos já se faz presente também
na relação signo e significado, na não identidade entre o representante
e o representado.

Outro aspecto importante é a transformação da relação entre o ser


humano e o divino. No mito, predomina a relação mágica com a divindade,
com sacrifícios, por exemplo, de animais. Na religião, ela é interiorizada e a
verdadeira oferenda passa a ser a interioridade do homem.

Outro elemento de destaque é a substituição do tabu pela ética.


O tabu é marcado como algo proibido, sobrenatural e com o qual não se
deve ter contato (pode ser um objeto, um lugar, uma ação etc.) para que
não haja o risco de contaminação e consequente castigo. No sistema de
tabu, não há responsabilidade individual. Se alguém desrespeita o tabu,
não é só ele que receberá castigo, mas toda sua família ou tribo. No
pensamento religioso ocorre uma mudança manifesta da concepção de
que o ser humano é dotado de livre‑arbítrio, ou seja, é capaz de refletir
sobre o bem e o mal, fazer escolhas e ser responsável por elas.

Os dois poemas épicos mais importantes da literatura grega (e também


da literatura ocidental), Ilíada e Odisseia, têm como possível autoria o poeta
Homero. Contudo, há intérpretes que consideram que essas duas obras não
foram escritas por um único poeta, mas por vários. A Ilíada aborda a guerra
que aconteceu em Troia (em grego Ílion), envolvendo gregos e troianos.

A Odisseia narra, principalmente, o retorno de Troia de um de seus


principais guerreiros: Ulisses (em grego Odisseu) para sua pátria, Ítaca. Foi
de Ulisses a ideia do cavalo de Troia que possibilitou a vitória aos gregos.
Com o término da guerra, todos aqueles que lutaram em Troia e
sobreviveram, começam a voltar para as suas casas, mas Ulisses e seus
marinheiros não retornavam. O deus do mar Posêidon, como castigo
por Ulisses ter cegado seu filho, o ciclope Polifemo, não o deixa retornar
para sua terra.

A palavra “mito” tem sua origem etimológica em mythos,


que significa palavra, o que se fala. Na Grécia Antiga, os poetas
tinham um papel de destaque na narrativa mítica, uma vez que eram
38
PRÉ-SOCRÁTICOS

considerados escolhidos pelos deuses para narrarem poeticamente os


acontecimentos divinos. Em uma cultura oral, esses poetas vão pelas
praças contando as estórias envolvendo os deuses e, assim sendo,
ajudam a manter viva a memória do seu povo.

O mito é uma forma de explicar o mundo, de atribuir sentido ao


existente e tranquilizar o ser humano. Trata‑se de uma verdade intuída
cuja autoria se perde no tempo, sendo, em geral, considerado como uma
produção anônima e coletiva.

Diferentes povos em variadas épocas criaram seus próprios mitos, por


exemplo, aqueles realizados por tribos indígenas da floresta amazônica.
O ponto comum entre as diferentes concepções míticas é a busca por dar
sentido ao mundo e uma explicação para os fenômenos desconhecidos.

Exercícios

Questão 1. (Cesgranrio 2010) A elaboração de um discurso acerca da origem das coisas e sua
explicação através dos processos de união e de separação são características:

A) Presentes na filosofia pré-socrática e separam radicalmente o discurso mítico do filosófico.

B) Encontradas tanto na filosofia pré-socrática quanto na poesia épica de Hesíodo, embora, no mito,
a explicação seja dada e, na filosofia, ela seja buscada e questionada.

C) Encontradas tanto em Hesíodo quanto em Parmênides, embora Hesíodo introduza seu discurso
com uma narrativa mítica, enquanto Parmênides introduz seu discurso com uma análise lógica
da predicação.

D) Peculiares ao período helenístico, em contraposição direta tanto ao pensamento platônico quanto


ao aristotélico.

E) Capazes de distinguir a poesia da filosofia pelo fato, puramente estilístico, de uma ser composta
em versos e a outra, em prosa.

Resposta correta: alternativa B.

Análise das alternativas

A) Alternativa incorreta.

Justificativa: não há uma separação radical entre o discurso mítico e o filosófico.

39
Unidade I

B) Alternativa correta.

Justificativa: tanto o pensamento mítico quanto o filosófico preocuparam-se em explicar a origem


do mundo, mas a explicação filosófica é produzida por meio da razão e da observação.

C) Alternativa incorreta.

Justificativa: Parmênides narra que recebeu revelações de uma deusa para seguir o caminho da
verdade. Para ele, o ser é, ou seja, ele defende a imutabilidade das coisas.

D) Alternativa incorreta.

Justificativa: não há contraposição direta do discurso sobre a origem das coisas com as obras de
Platão e de Aristóteles.

E) Alternativa incorreta.

Justificativa: a forma da escrita não é o elemento que distingue filosofia e poesia. Trata-se de
abordagens distintas em relação ao mundo.

Questão 2. Considere os quadrinhos do cartunista Carlos Ruas e analise as afirmativas a seguir.

Disponível em <https://blogdoenem.com.br/socrates-filosofia-enem-2/>. Acesso em 08 set. 2018.

I – O início da Filosofia, na Grécia Antiga, rompeu com o pensamento mítico e eliminou os deuses do
imaginário social, por isso a ira de Zeus mostrada nos quadrinhos.
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PRÉ-SOCRÁTICOS

II – Os quadrinhos fazem referência à característica da produção do pensamento filosófico: a


compreensão por meio da razão e da observação.

III – A explicação mítica dos fenômenos naturais baseia-se, em geral, em ações dos deuses.

É correto o que se afirma somente em:

A) I.

B) II.

C) III.

D) II e III.

E) I e II.

Resolução desta questão na plataforma.

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