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5/14/2018 HistoriaDosEstudosLinguisticos-slidepdf.

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História dos Estudos


Lingüísticos

Heronides Moura
 Morgana Cambrussi


Período

Florianópolis - 2008

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ção Acadêmica do Curso de Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância.

Ficha Catalográfca

M929h
Moura, Heronides
História dos estudos lingüísticos / Heronides Moura, Morgana Cambrussi .— Flo-
rianópolis : LLV/CCE/UFSC, 2008.
 
74p. : 28cm
ISBN 978-85-61482-01-5

1. Origem das línguas. 2. Linguagem. I. Cambrussi, Morgana. II. Título

CDD 410
Elaborado por Rodrigo de Sales, supervisionado pelo setor técnico da Biblioteca Universitária da
Universidade Federal de Santa Catarina

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Sumário
Unidade A ............................................................................................ 9
1 Por que estudar autores antigos? ..........................................................11
2 A teoria platônica da linguagem: o Crátilo ........................................13
3 Rousseau: as paixões criaram a linguagem .......................................17
4 Famílias de línguas .....................................................................................21
5 Os espíritos dos povos criam as línguas:
a visão de Ernest Renan ...........................................................................25
6 Sincronia e diacronia: a contribuição de Saussure .........................29
7 A mente criou a linguagem: a moderna teoria
sobre a origem das línguas .....................................................................33

Unidade B ...........................................................................................39
1 Gramática de Port-Royal: a linguagem como
estrutura lógica ............................................................................................41
2 A hipótese de Sapir-Whorf e as relações entre

língua e pensamento .................................................................................45


3 O mentalês: a linguagem da mente......................................................49
4 Linguagem, mente e cérebro: os genes da linguagem ..................55
5  Tradição gramatical: construção da língua como
representação do pensamento ..............................................................61
6 Como vemos as línguas: efeitos da cultura e do poder ................69

Referências.........................................................................................73

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Apresentação
este curso, você vai azer uma viagem no tempo. Estará na Grécia
antiga, acompanhando a discussão de Sócrates e Crátilo sobre a

N
origem das palavras. Circulará em Roma e na Idade Média, quando
perceberá que as idéias da cultura greco-romana sobre linguagem perduraram
até os princípios da Idade Moderna. Chegará a Paris a tempo de ver a discussão
dos membros da comunidade religiosa de Port-Royal sobre a relação entre
a razão humana e a linguagem. Já um pouco antes da Revolução Francesa,
ouvirá os argumentos ardentes de Rousseau em prol de sua teoria da origem
da linguagem, que teria, segundo ele, surgido não da razão, mas da emoção. Já
no século XIX, verá o papel que os românticos, como o lósoo rancês Renan,
atribuíam às nações e aos povos na ormação da linguagem e acompanhará a
grande descoberta das amílias de línguas, pelos comparativistas europeus.

No século XX, depois da viagem pela Europa, você vai pousar nos Estados
Unidos, e acompanhar de perto a discussão sobre o papel da cultura na cons-
trução da linguagem, com a hipótese de Sapir-Whor. E verá a reação a essa
hipótese, com o argumento da gramática universal e da linguagem da mente.

Nessas viagens, você vai descobrir que o lósoo Sócrates não respeitava muito
as mulheres, que o inglês era considerada uma língua bárbara, assim como o
alemão, que a gramática indiana infuenciou os estudos gramaticais no Oci-
dente, que o Brasil quase alou tupi e não português, que Rousseau dizia que
o ser humano começou alando por metáoras, e que os cientistas debatem,
hoje em dia, se há um conjunto de genes responsáveis pela capacidade de o ser
humano se exprimir lingüisticamente.

Você não precisa de passaporte para azer essa viagem no tempo. Use o seu
material impresso, participe das atividades on line e, especialmente, use sua
imaginação, e boa viagem!

Heronides Moura

 Morgana Cambrussi

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Unidade A
Origem e diversidade das línguas

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CAPÍTULO  0
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Porque estudar autores antigos?

1 Por que estudar autores antigos?


Os seres humanos sempre tentaram entender como as línguas sur-

giram e por que há tantas línguas diferentes no mundo. Vamos fazer


nesta Unidade uma viagem no tempo e examinar como diferentes au-
tores, de vários períodos históricos, responderam a essas questões intri-
gantes.

Nem todos os autores citados aqui são lingüistas, pois a questão


da origem da linguagem interessou também a muitos lósofos. De fato,
esse problema foi abordado muitas vezes de forma especulativa, pura-
mente hipotética.

Muitas dessas especulações nos parecem hoje pouco pertinentes,


mas revelam muito sobre a cultura e a época em que foram feitas. Se
formos analisar a questão sob um ponto de vista estritamente da ciência
lingüística moderna, a discussão histórica perde muito de seu valor. Para
um biólogo, o estudo da biologia do século XVI pode ser desprovido de
interesse, pois o que se fazia nessa época tem pouca ligação com o que
se faz hoje na biologia. Mas a linguagem humana é um objeto de pesqui-
sa diferente do objeto de pesquisa da biologia: as línguas humanas são
tanto objetos naturais, no sentido de que têm uma realidade objetiva no
mundo natural, quanto são objetos culturais, e como tais estritamente
conectados ao ambiente cultural em que existem.

Compare por exemplo com outros objetos de pesquisa: a circula-


ção sanguínea e a moral humana. A circulação sanguínea é um objeto
de pesquisa estritamente natural, que não depende em nada de fatores
culturais para sua compreensão. Assim, para quem estuda a circulação
sanguínea hoje haverá pouco interesse em estudar a forma como os gre-
gos da Antigüidade descreviam a siologia do sangue. O único interesse
será de curiosidade histórica.

Agora compare com o estudo da moral humana. A moral envolve


intrinsecamente valores culturais, portanto, saber como os gregos des-
creviam e analisavam a moral na sua época é interessante para quem
estuda a moral hoje, pois não se pode denir a moral humana sem rela-
cioná-la a uma cultura ou a um ideal de cultura.

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História dos Estudos Lingüísticos

Já as línguas humanas apresentam uma ambigüidade em seu es-


tatuto cientíco, porque são tanto um objeto natural (como a circula-
ção sanguínea), quanto um objeto social (como a moral humana). Se
queremos mostrar quais estruturas gramaticais são comuns a todas às
línguas humanas, ou como são formados os sons da linguagem, preci-
samos descrever objetivamente o maior número possível de línguas, e
chegar a uma hipótese que possa ser comprovada empiricamente, como
nas ciências naturais. Mas esse tipo de questão empírica não esgota o
campo de investigação sobre as línguas: é importante denir e estudar
qual a importância social da linguagem, como os falantes de uma socie-
dade encaram as mudanças e variações da linguagem, quais os efeitos
que a diversidade lingüística provoca em uma dada comunidade, qual
a relação que uma sociedade percebe entre linguagem e pensamento
etc. Todas essas são questões sociais, que envolvem não apenas objetos
naturais, mas a percepção que os seres humanos têm desses fatos e como
eles constroem e modicam esses fatos.

A linguagem é um assunto vital para as comunidades humanas,


como a moral, e as pessoas costumam ter muitas idéias sobre o seu uso
e o seu valor. É nesse sentido que o estudo de autores antigos pode ser
muito interessante e revelador: eles nos mostram como suas socieda-
des viam a linguagem, sua origem e seu uso, e podemos comparar essas
crenças com as nossas, o que é uma forma muito útil de perceber quem
somos e como pensamos.

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CAPÍTULO  0
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A teoria platônica da linguagem: o Crátilo

2 A teoria platônica da
linguagem: o Crátilo
Ler o Crátilo, um dos mais famosos diálogos de Platão, é uma ex-
periência surpreendente, como se entrássemos num túnel do tempo e
caíssemos em plena praça pública da Atenas antiga; cada frase ali faz
um enorme sentido no contexto daquela discussão, mas se compara-
mos com o nosso tempo, as crenças sobre a linguagem ali expressas são
totalmente exóticas. Façam a seguinte experiência: leiam o diálogo em
 voz alta, com colegas e/ou alunos, cada um representando um dos per-
sonagens do debate, ou seja, Crátilo, Hermógenes e Sócrates. Vocês vão

sentir como esse debate é vivaz e natural (embora Sócrates fale demais e
os outros muito pouco!), e podemos até imaginar as posturas corporais
dos debatedores, mas como as idéias de Sócrates parecem estranhas! Na
realidade, só parecem estranhas quando comparadas com nossas idéias;
faziam naquele contexto todo o sentido.

O debate principal do diálogo é a oposição entre naturalismo e


convencionalismo do signo lingüístico.
Signo lingüístico
O signo lingüístico (de uma maneira simplicada, a palavra) é uma
compreende, em umaa uma
  junção de som e sentido. Os naturalistas acham que deve existir uma acepção saussureana,
unidade da língua. Pode-se
relação entre a forma da palavra e o sentido que ela expressa. Onoma- dizer que o signo lingüístico
topéias são assim: au-au designa o som que um cachorro faz e tenta-se compreende à unidade
mínima da frase e que,
reproduzir esse som na própria palavra. Onomatopéias são represen- arbitrariamente, carrega
tações naturais dos signicados. A idéia dos naturalistas é que todas as consigo som e sentido.
palavras devem ter essa relação natural entre som e sentido. Os conven-
cionalistas, por outro lado, defendem que o som de uma palavra nada
tem a ver com o sentido que ela designa; as onomatopéias são apenas
exceções a esse princípio. Note-se que o convencionalismo, também co-
nhecido como princípio da arbitrariedade do signo, é hoje aceito como
um princípio básico da lingüística moderna, e é essa uma das razões
que nos levam a estranhar as idéias defendidas no Crátilo. Sócrates, que
domina o debate, defende o naturalismo, juntamente com Hermógenes,
e Crátilo, por sua vez, defende o convencionalismo. É verdade que no
nal do diálogo Sócrates relativiza sua posição e ataca o convencionalis-
mo radical, admitindo alguma forma de convenção no uso lingüístico,

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História dos Estudos Lingüísticos

pois de outra forma a palavra, de tão semelhante à coisa que designa,


poderia ser um substituto da coisa em si, o que para ele é inadmissível.
Alguns comentadores desse diálogo platônico chegam a dizer que no

nal Sócrates se mostra convencionalista, mas a nossa leitura é que ele é


fundamentalmente um naturalista. (SEDLEY, 2006).

Muito antes de Saussure elaborar, de uma maneira clara e precisa, o


conceito de arbitrariedade do signo lingüístico, o lósofo Descartes já ha-
 via comentado que as palavras se ligam arbitrariamente às coisas que elas
denotam. O argumento dele é losóco e é um dos fundamentos da revo-
lução cientíca que ocorreu no século XVII. Descartes argumentou que,
para estudar a natureza, é preciso separar a percepção sensorial feita pelo
ser humano e a realidade das coisas naturais. Tradicionalmente, a idéia
era que as coisas eram essencialmente o que pareciam ser para nós, atra-
 vés de nossos sentidos (CLARKE, 2006, p. 115). Isso leva a erros curiosos;
não há nenhuma propriedade em uma pena de pássaro que seja similar
à sensação causada numa criança, quando alguém roça a pena nela. Ela
sente cócegas, mas essa sensação é totalmente diferente da natureza da
pena em si. Para estudar a pena, é preciso esquecer as cócegas e atentar
para a estrutura físico-química da pena. Ora, as palavras e as coisas tam-

bém pertencem a categorias diferentes, e é um erro buscar nas palavras


semelhanças com as coisas que elas representam, assim como é um erro
buscar nas coisas as mesmas sensações que elas nos causam. Outro lóso-
fo do século XVII, Leibniz, também criticou a visão tradicional de que as
coisas são aquilo que parecem para nós. Ele zombou dos pensadores que
falam em “qualidades ou faculdades ocultas, que na imaginação deles se
parecem com pequenos demônios ou duendes capazes de provocar, sem
mais nem menos, o que lhes pedem, como se os relógios marcassem as
horas devido a alguma faculdade horodêictica (que aponta as horas) sem
precisar de engrenagens” (apud PINKER, 2004, p. 531). Não existe, é cla-
ro, essa propriedade de dar as horas, assim como não existe nas palavras
nenhuma propriedade que as ligue às coisas que representam.

O naturalismo de Platão, por absurdo que possa parecer aos olhos


modernos, (por exemplo, quando ele diz que corpo (soma, em grego)
 vem de sepultura (sema, em grego)), está ligado a uma série de crenças
e idéias do platonismo. Entre elas, podemos citar:

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CAPÍTULO  0
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A teoria platônica da linguagem: o Crátilo

1) As coisas e seres têm uma essência permanente. Nada mais


natural que cada palavra, visando representar as coisas, ten-
te caracterizar pelo menos uma das propriedades da coisa ou
ser por ela representada. Portanto, a ligação mais natural não
é exatamente entre som e sentido, mas entre o sentido da pa-
lavra e a essência atribuída à coisa. O som apenas ajuda a che-
gar a esse sentido que leva à essência. No exemplo citado, se
corpo (soma) está ligado à sepultura (sema), é porque o corpo
é a sepultura da alma, essa é a essência do corpo. Note-se que
essa explicação é quase poética e cabalística; mas o que importa
para Sócrates é investigar o que um conceito, como “corpo” ou
“justiça”, realmente signica. O som (soma-sema) pode ajudar
nessa investigação das essências.

2) A verdade sobre as essências das coisas é absoluta e não relativa


de acordo com a crença de cada pessoa. O relativismo era de-
fendido pelos sostas, que Sócrates e Platão combatiam. Uma
frase famosa de um sosta, Protágoras, é citada no Crátilo (p.
148): “O homem é a medida de todas as coisas, e por isso, con-
forme me parecerem as coisas, tais serão elas, realmente, para
mim, como serão para ti conforme te parecerem”. Sócrates se
insurgia contra esse tipo de armação e então imaginou que
as palavras devem representar necessariamente a essência das
coisas. Outro exemplo dado por Sócrates é que “o” liga a pala-
 vra deuses (theoi, em grego) ao verbo correr (thein), pois seria
da natureza dos deuses mais primitivos (o sol, a lua, a terra, os
astros e o céu) estarem perpetuamente em movimento, ou seja,
correndo! A relação som-sentido não pode ser arbitrária ou
convencional, pois dessa forma cada pessoa teria uma apreen-
são diferente da essência das coisas, o que equivaleria a recair
no relativismo sofístico. Como diz Sócrates (p. 149): “[...] (as
coisas) não estão em relação conosco, nem na nossa dependên-
cia, nem podem ser deslocadas em todos os sentidos por nos-
sa fantasia, porém, existem por si mesmas, de acordo com sua
essência natural”. E nomear as coisas é designá-las de acordo
com sua essência: “convirá nomear as coisas pelo modo natural
de nomeá-las e serem nomeadas, e pelo meio adequado, não
como imaginamos que devemos fazê-lo” (p. 151).

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História dos Estudos Lingüísticos

3) Segundo a opinião de Sócrates e Platão, a verdade e a essência


das coisas devem ser estabelecidas pelas pessoas mais justas e
mais razoáveis de uma comunidade. Essa é idéia por trás da
República ideal de Platão, que seria governada por um conse-
lho de sábios, com todos os poderes para legislar (uma ditadu-
ra de sábios, na verdade). Bem, só os sábios podem saber com
 justeza o que as palavras devem signicar, para representar da
melhor maneira possível as coisas que designam (por exemplo,
a relação entre corpo e sepultura (soma e sema, em grego), já
citada acima. Assim, os sábios devem buscar e denir qual a
relação natural entre som, sentido e coisa representada. A con-
  venção seria um artifício dos tolos, que aceitariam qualquer
relação arbitrária. Platão sustenta que os sábios denem o sen-
tido original das palavras. Esse é um dos pontos que causam
mais estranheza na leitura do Crátilo. Sócrates rearma várias
 vezes que há legisladores sábios que deniram, em algum mo-
mento da história, a relação som-sentido das palavras de uma
língua. Ou seja, essa é a explicação platônica para a criação da
linguagem: os homens sábios se reuniram e deniram a forma
e o signicado das palavras. Por mais estranho que nos pareça
hoje, essa posição se opõe, implicitamente, à idéia religiosa da
criação da linguagem, tal como expressa no Antigo Testamento.
Agora a linguagem não era mais vista como assunto dos deu-
ses, mas como negócio dos homens. Quer dizer, não de todos
os homens, mas dos sábios (todos do sexo masculino, pois Só-
crates não tinha uma opinião muito boa sobre as mulheres,
como se pode ver no Crátilo).

Nós veremos, nessa nossa viagem no tempo, como em cada época


existe um responsável pela criação da linguagem: deuses, sábios, a alma
de um povo (no século XIX), os falantes de uma língua ou, nalmente,
na visão mais moderna, a mente humana.

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CAPÍTULO  0
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Rousseau: as paixões criaram a linguagem

3 Rousseau: as paixões criaram a


linguagem

Em seu Ensaio sobre a origem das línguas, Rousseau argumenta


que as paixões e não as necessidades humanas foram o motor do desen-
 volvimento de nossa faculdade de linguagem. Ele associa o orescer da
linguagem verbal a uma gama mais que rica de sensações humanas, em
especial quanto às relações sociais.

Ele imagina uma Idade de Ouro anterior ao desenvolvimento da


linguagem, em que os homens se comunicavam provavelmente por ges-
tos e não por palavras. Essa Idade de Ouro seria paradoxal, pois “[...]
em todos os lugares dominava o estado de guerra e a terra toda estava
em paz” (ROUSSEAU, 1987, p. 176). Esse aparente paradoxo se explica
da seguinte maneira: sem a linguagem, os homens viviam isolados, em
pequenos grupos familiares, cada grupo sem interagir com o outro, e
numa guerra latente entre esses clãs. Aqui há uma ressonância da idéia
de Hobbes, segundo o qual, antes do desenvolvimento da civilização, o
homem primitivo vivia num estado de guerra permanente, sem lei nem
rei. Mas, acrescenta Rousseau, como os homens não interagiam pela lin-
guagem articulada, viviam isolados em suas famílias, e tinham poucas
chances de guerrear. Portanto, a idéia de Rousseau é que os homens
primitivos satisfaziam plenamente suas necessidades sem o recurso da
linguagem, comunicando-se apenas por gestos e sons inarticulados.

A linguagem humana tirou o homem primitivo de seu isolamento


físico e espiritual, segundo Rousseau. “Além de si mesmos e de sua famí-
lia, todo o universo nada signicava para eles (os homens primitivos)”
(p.175). O efeito da linguagem sobre os homens foi duplo: em primeiro
lugar, ofereceu-lhes uma abertura para a realidade dos outros. A lingua-
gem deu-lhes a imaginação e “[...] quem não imagina não sente mais do
que a si mesmo: encontra-se só no meio do gênero humano” (p. 175).
Em segundo lugar, a linguagem deu ao ser humano a capacidade de
conhecer-se a si mesmo, de voltar-se para seu interior, através do desen-
 volvimento de suas emoções.

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História dos Estudos Lingüísticos

Para Rousseau, o desenvolvimento da linguagem está associado ao


enriquecimento das emoções. Na sociedade primitiva, por exemplo, ha-
 via casamento, mas não amor. Havia afeto, mas não haveria paixão. Essa
nasceu com os tons e inexões da linguagem, sua gama rica de contras-
tes sonoros e de expressões distintas. Quanto mais rica a gama de sons
articulados, mais rica a variação das emoções. Portanto, foi a linguagem
articulada que ajudou a criar, no ser humano, “[...] os acentos das pai-
xões ardentes” (p. 183). Contrariando o senso comum de que Rousseau
pregava um retorno ao mundo primitivo, essas idéias sobre a linguagem
mostram que ele não desprezava a importância da civilização; o estado
social deu ao homem uma “[...] ampliação dos horizontes intelectuais,
enobrecimento dos sentimentos e elevação total da alma”. (ARBOUSSE-
BASTIDE e MACHADO, 1987, p. XIV).

Essa associação da origem da linguagem às paixões leva a duas


conseqüências interessantes na teoria de Rousseau. Em primeiro lugar,
ele faz a hipótese – que outros autores também defenderam (FARRAR,
1860) – de que as primeiras palavras proferidas pelos seres humanos se-
riam metafóricas . Por exemplo, e por hipótese, eles teriam chamado os
outros homens, desconhecidos deles, não de “homens” em seu sentido
literal, mas de “gigantes”, em seu sentido metafórico: “Seu terror tê-lo-ia
levado a ver esses homens maiores e mais fortes do que ele próprio e a
dar-lhes o nome de gigantes.” (ROUSSEAU, p. 164). Ou seja, inicialmen-
te as palavras catalogavam o mundo com base no registro das emoções,
e por isso a metáfora desempenhava um papel importante nessa época
de criação da linguagem.

Outra conseqüência é que Rousseau deu uma grande importância


à fonética (estudo dos sons da linguagem), mais do que à gramática e

ao vocabulário. Não por acaso, aliás, esse ensaio sobre a origem das lín-
guas termina com um estudo sobre a origem da música. Na linguagem
nascente, os sons seriam muito variados, haveria poucas consoantes, os
tons e acentos seriam em grande número: cantar-se-ia em lugar de fa-
lar . Embora isso possa nos parecer estranho, essa linguagem musical
primitiva faz todo o sentido na teoria de Rousseau: ele quer enfatizar a
ligação da linguagem com a gama de emoções da alma humana; como
as emoções são ricas, assim também são os sons que devem expressá-las

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CAPÍTULO  0
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Rousseau: as paixões criaram a linguagem

(embora possa se dizer também que foi a riqueza sonora da linguagem


articulada que levou ao enriquecimento das emoções, como já se viu).
Pense-se na ópera ou no rap: um falar cantando. Isso tudo levou o ló-
sofo a adotar o naturalismo já expresso no Crátilo, de Platão, que já estu-
damos aqui. As palavras das línguas primitivas seriam sons imitativos,
tanto das próprias emoções, quanto do efeito dos objetos percebidos
pelo ser humano. A língua primitiva, original, seria mais emocional do
que racional.

No entanto, com o despertar da civilização e com o desenvolvi-


mento da lógica e da gramática (conferir o capítulo sobre a gramática
de Port-Royal), as línguas foram perdendo esse caráter musical original,

constituindo, posteriormente, a linguagem “fria e monótona” da Europa


do século XVIII. Essa idéia de que a linguagem evolui de uma riqueza
expressiva, mas confusa, para uma gramática mais racional e mais clara
foi também desenvolvida por outros autores no século XIX, como por
exemplo, Ernest Renan. A diferença é que Rousseau via a suposta clare-
za da língua francesa, por exemplo, como uma limitação, ao passo que
Renan a via como uma virtude.

Muito interessantes também são suas observações sobre a diferen-

ça entre fala e escrita. Rousseau chama a atenção para a diferença de


funções entre elas; como vimos, a fala serviria para expressar as emo-
ções, interagir com os outros e comover. A escrita serviria para propó-
sitos sociais de outro nível, por exemplo, o comércio e a burocracia. No
século XX, outro francês, o antropólogo Lévi-Strauss, argumentou, no
livro Tristes Trópicos, que a origem da escrita está associada à criação do
Estado, o que está em conformidade com o que pensava Rousseau.

Para este lósofo, a escrita “substitui a expressão pela exatidão”, e


como tal empobrece a riqueza primitiva da linguagem humana, que foi
o elo que nos tirou da solidão da Idade do Ouro, segundo Rousseau.

Algumas das idéias desse lósofo podem nos parecer estranhas


hoje, mas são extremamente signicativas em seu contexto histórico e,
na verdade, colocam questões instigantes não respondidas até hoje.

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Famílias de línguas

4 Famílias de línguas

No século XIX, aconteceu uma revolução nos estudos lingüísticos,


o chamado comparativismo. Da especulação losóca sobre a origem
da linguagem, os pesquisadores passaram a estabelecer parentescos en-
tre as línguas, e retraçar a evolução das famílias de línguas, com base
em descrições pormenorizadas de propriedades das diferentes línguas,
em especial da família indo-européia. Essas descrições envolviam se-
melhanças de som e de sentido entre palavras das diferentes línguas,
além de propriedades morfológicas e sintáticas. Se um grupo de línguas
apresentava uma série de radicais semelhantes no som e no sentido, en-
tão se podia estabelecer com segurança um parentesco entre elas. As
  variações de sons entre os radicais de línguas de uma mesma família
não eram casuais, mas denidas por regras fonéticas bem estabeleci-
das. Dessa forma, foram estabelecidas correlações entre línguas muito
distantes geogracamente. Por exemplo, descobriu-se que línguas tão
diferentes quanto o sânscrito (língua clássica e religiosa da Índia), o per-
sa, o armênio, o grego, o latim, o antigo germânico, o romani (língua
dos ciganos), entre outras línguas, derivavam de uma língua ancestral
comum, o indo-europeu, cuja existência não pode ser atestada direta-
mente, mas inferida a partir da comparação entre as línguas derivadas
dessa língua-mãe mais antiga. Assim, cada família de línguas derivaria
de uma mãe especíca mais antiga.

A descoberta inicial mais importante e extraordinária, no nal do


século XVII, foi a do inglês Sir William Jones, que decidiu estudar o
sânscrito, uma língua da Índia já morta:

“O sânscrito, seja qual for sua antigüidade, tem uma estrutura


maravilhosa; mais perfeito que o grego, mais copioso que o latim,
e mais primorosamente renado que ambos, embora mantenha
com eles tamanha anidade, tanto nas raízes dos verbos como
nas formas da gramática, que é impossível pensar que isso se deu
 por acidente; a anidade é de fato tão forte que nenhum lólogo
  poderia examinar as três línguas sem pensar que elas tenham
brotado de alguma fonte comum que, talvez, não mais exista.” 
(JONES, apud PINKER, 2004, p. 321).

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História dos Estudos Lingüísticos

Essa fonte comum seria o indo-europeu, extinto há muito tempo,


uma língua-mãe (também chamada de proto-língua) que devia ser fala-
da inicialmente na Ásia Menor, talvez na atual Turquia, e cujos falantes
migraram, em parte para a Índia, em parte para a Europa. Eis a razão
pela qual as línguas se diversicam: as migrações humanas. Quando
membros de um agrupamento humano, que inicialmente falam uma
mesma língua, deslocam-se para uma região distante, ao longo do tem-
po, introduzem mudanças inconscientes na sua língua de origem, ao
ponto de criarem línguas bem distintas, como são o grego e o sânscrito.
Mas um exame acurado mostra identidades lexicais importantes, e o
parentesco pode ser estabelecido.

Estudar a diversidade das línguas é estudar a dispersão dos agrupa-


mentos humanos ao longo dos séculos. Não por acaso, geneticistas mo-
dernos usam o conhecimento sobre esses parentescos lingüísticos para
estabelecer semelhanças genéticas de populações humanas diferentes.
De modo geral, pode-se estabelecer uma correlação entre homogenei-
dade genética de populações diferentes e a família das línguas faladas
por essas populações (CAVALLI-SFORZA, 2003). Por exemplo, os es-
quimós do Alaska e os povos da Sibéria têm genes em comum e línguas
aparentadas, porque os esquimós migraram, há milênios, da Sibéria. Os
homens carregam consigo suas línguas, seus genes e sua cultura. O mito
da Torre de Babel  na verdade se explica pelas migrações e pela história
dos povos humanos.

Podemos, assim, estabelecer diferentes gerações de línguas, com


base na história dos povos e de suas migrações. Por exemplo, o antigo
indo-europeu (digamos, a avó) deu origem ao latim (digamos, a mãe),
que deu origem ao português de Portugal (a neta). Se considerarmos

que o português do Brasil já é uma língua distinta da de Portugal, então


a nossa língua seria bisneta do indo-europeu!

Diferenças de famílias de línguas têm a ver com ondas migratórias


distintas. Por exemplo, na Europa se falam basicamente duas famílias de
línguas: a indo-européia e a uraliana (ou urálica). No Nordeste da Euro-
pa, a maior parte das línguas pertence à família uraliana (por exemplo,
o estoniano e o húngaro), embora algumas línguas dessa família sejam
encontradas também a oeste (o nlandês e o lapão, ambos falados na

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CAPÍTULO  0
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Famílias de línguas

Finlândia). As línguas uralianas, faladas normalmente a Oeste dos Mon-


tes Urais, correspondem a uma determinada onda de migração para o
continente europeu (CAVALLI-SFORZA, 2003, p. 153).

Já as línguas indo-européias correspondem à outra onda de migra-


ção. Portanto, países vizinhos podem falar línguas de origem diferente,
desde que tenham sido colonizados por povos de línguas de famílias
diversas, em distintas ondas migratórias. Assim, o búlgaro é uma língua
indo-européia, mas o húngaro é uma língua uraliana, embora Hungria
e Bulgária sejam países vizinhos.

Essas ondas migratórias de ocupação da Europa devem estar liga-


das à expansão da agricultura. Populações de agricultores foram se espa-
lhando por novas terras, e absorvendo nessa passagem os antigos povos
coletores-caçadores que ali habitavam (PINKER, 2004, p. 323). Lembre-
se de que os povos agrícolas tinham necessidade de novos braços, e sua
população se expandia rapidamente com o alimento das plantações, ao
passo que os coletores-caçadores eram em número bem menor, pois o
alimento disponível era muito mais escasso.

Os parentescos lingüísticos podem gerar situações curiosas. O Orien-


te Médio e o norte da África têm populações de origem genética comum
e línguas, em geral, de uma mesma família: a família afro-asiática. A essa
família pertencem o hebraico, o árabe, o aramaico (língua falada por Cris-
to), o berbere, o egípcio, o etíope, as antigas línguas babilônicas, entre
outras. Assim, judeus e palestinos têm a mesma origem, falam línguas-
irmãs, habitam a mesma região, mas vivem em conito constante.

Mas, se todas as línguas descendem de proto-línguas especícas e já


extintas, é possível supor que todas essas proto-línguas descendam de uma

única
supõe língua-mãe,
que o homoasapiens
língua-mãe de todasaaslinguagem
desenvolveu línguas? Em
em tese,
algumsim, pois do
ponto se
território da África, mas isso aconteceu dezenas de milhares de anos atrás,
de modo que é muito difícil dizer como seria essa língua original.

Um efeito muito importante do comparativismo foi pôr em questão


a idéia de que existem línguas mais primitivas do que outras. Quando se
começou a comparar línguas, viu-se que todas dispunham de complexi-
dade gramatical, independente do desenvolvimento cultural dos povos.

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História dos Estudos Lingüísticos

Mas essa percepção sobre a inexistência de correlação entre complexi-


dade gramatical e desenvolvimento cultural só se armou mesmo no
século XX, com o estruturalismo, especialmente nos Estados Unidos,
Estruturalismo compreende onde se fez um grande esforço para descrever e classicar as línguas na-
um conjunto de estudos tivas daquele país, e se pôde conrmar que, independentemente do de-
diversicados e que se
espalham por muitas áreas. senvolvimento cultural de um povo, sua língua apresentará uma riqueza
Em lingüística, pode-se dar gramatical equivalente à dos povos ditos civilizados. Como diz Sapir
destaque aos trabalhos
estruturalistas de Ferdinand (apud PINKER, 2004, p. 21), “[...] quando se trata da forma lingüística,
de Saussure, que toma a Platão não se distingue do guardador de porcos macedônio, ou Con-
língua enquanto sistema,
e aos trabalhos de L. fúcio, do caçador de cabeças selvagem de Assam”. No século XIX, era
Bloomeld (representativo ainda muito comum tentar mostrar níveis evolutivos da linguagem, em
do estruturalismo norte-
americano), que considerava correlação com o nível cultural de um povo. Mesmo autores que assu-
a noção de subsistemas miam o comparativismo zeram especulações sobre línguas primitivas
operando em um sistema
lingüístico maior. e línguas desenvolvidas, como é o caso de Ernest Renan, como veremos
no capítulo a seguir.

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CAPÍTULO  0
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s espíritos dos povos criam as línguas: a visão de Ernest Renan

5 Os espíritos dos povos criam as


línguas: a visão de Ernest Renan
Renan foi um autor muito famoso no século XIX e começo do
século XX. Ele escreveu um livro sobre o cristianismo que foi muito
discutido e debatido. Mas era também um lingüista, e publicou Sobre
a origem da linguagem (1858). Naquela época, o comparativismo já ti-
nha estabelecido com segurança os seus princípios e já tinham sido fei-
tas descrições extensivas de famílias lingüísticas, em especial a família
indo-européia e a família afro-asiática (tradicionalmente chamada de
camito-semítica).

No entanto, ca evidente em seu trabalho que ele acredita que exis-
tem línguas mais elaboradas que outras, e que estas são mais apropriadas
para o pensamento. Ele reconhece dois estados na evolução das línguas.
O primeiro seria o estado sintético, de rica complexidade gramatical e
morfológica, em que as relações gramaticais são expressas por axos
que se juntam às raízes das palavras.

Modernamente, as línguas sintéticas são classicadas em  exionais,


como o latim, em que um axo pode conter várias informações grama-
ticais, e aglutinantes, em que cada axo transmite uma informação e em
que muitos axos são aglutinados junto das raízes (PINKER, 2004, p.
294). Por exemplo, em kivunjo, uma língua banto, o verbo näïkìmlyìïà ,
que signica “ele está comendo aquilo para ela”, é formado por oito axos
que se juntam à raiz –lyì– (comer). Por exemplo, o axo –m– é marcador
de benefactivo, ou seja, indica que a ação verbal tem um beneciário;
esse axo, além disso, concorda com a classe morfológica desse bene-
ciário, ou seja, ela, que pertence à classe morfológica “humano singular”
(PINKER, 2004, p. 153). O turco é outro exemplo de língua aglutinante.

O segundo estado das línguas seria o estado sintético. Como diz


Renan (1858), nas línguas sintéticas “[...] a exão cai, e a partícula apa-
rece como uma palavra distinta diante do termo que ela modica: dessa
maneira procedem as línguas românicas e as línguas analíticas em geral.”
É o caso das línguas românicas, como o português. Nós exprimimos a
relação de benefactivo não através de um axo, mas de uma palavra

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História dos Estudos Lingüísticos

separada (a preposição PARA, no nosso exemplo), que se combina num


sintagma com um nome ou pronome (no nosso exemplo, o pronome
ELA), e assim temos “está comendo aquilo PARA ELA”. O sintagma 
PARA ELA é uma análise, uma separação, de uma relação que aparece
Sintagma, nesse
denominação caso,
dada éa
a uma  junta numa mesma palavra, nas línguas sintéticas.
cadeia de fala, a qual não
constitui uma sentença, Pois bem, ao reconhecer esses dois tipos de língua, que o compa-
mas apresenta um bloco
de expressões lingüísticas rativismo no século XIX já descrevera, qual a conclusão de Renan? Ele
que é parte da sentença. infere que as línguas analíticas são mais desenvolvidas que as sintéticas,
Os sintagmas podem
ser verbais, nominais ou pois são mais claras e mais aptas para o pensamento: “[...] a marcha das
preposicionais. Exemplos línguas em direção à análise corresponde à marcha do espírito humano
de sintagmas nominais
são: O homem de carro, O em direção a uma reexão mais clara; essa tendência comum do espí-
barco à vela.
rito humano e da linguagem existiu desde o primeiro dia.” (RENAN,
1858). Assim, se o kivunjo e o turco, por exemplo, são línguas sintéticas,
elas seriam, na tese de Renan, menos evoluídas que o francês e o portu-
guês, que são línguas analíticas. Portanto, ele coloca sua própria língua,
o francês, como exemplo de evolução e de perfeição! Renan foi mais um
desses pensadores que divulgaram a crença de que o francês era uma
língua clara, apropriada ao pensamento!

O que um autor atual diria sobre a diferença entre línguas analíti-


cas e línguas sintéticas? Simplesmente, que essa diferença corresponde
a dois tipos de estrutura gramatical, a duas possibilidades de montar
uma gramática, sem nenhuma relação com a cultura do povo que a ge-
rou. Pois se fosse assim, teríamos de dizer que o turco é uma língua de
certo modo primitiva, apesar de ser a língua de uma tradição cultural
riquíssima!

Mas por que Renan chegou a armar essa superioridade das lín-
guas analíticas? Porque ele acreditava que as línguas são criadas pelo
“gênio de uma raça”, e que as línguas nascem “de um só golpe” a partir
desse espírito de um povo! Essa foi uma crença bastante difundida no
século XIX, época do Romantismo, em que os pensadores e artistas ten-
taram criar e imaginar formas próprias de expressão de seu povo e de
sua nação. Ora, a língua seria também fruto da alma de um povo, assim
como suas lendas e cantos tradicionais.

A valorização das línguas nacionais ocorreu também, no Roman-


tismo, em outros países da Europa. Na Alemanha, como em outros pa-

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CAPÍTULO  0
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s espíritos dos povos criam as línguas: a visão de Ernest Renan

íses, havia um domínio do francês e do latim como línguas de cultura


– Leibniz (1646-1716), por exemplo, grande lósofo alemão, escrevia
principalmente nessas línguas –, e os pensadores germânicos, para se
defenderem desse domínio cultural de línguas estrangeiras, passaram
a sustentar que o alemão exprimia mais naturalmente a alma alemã,
no mesmo sentido defendido por Renan, que dizia que cada língua ex-
pressa o espírito de um povo. O francês era criticado como sendo uma
língua supercial, de uma civilização que não representava as legítimas
aspirações do povo alemão. Os lósofos germânicos daquela época ar-
gumentavam que “[...] se modernamente o francês, como outrora o la-
tim, posava de língua da civilização universal, é que eram superciais a
civilização e a universalidade; o alemão seria, ao contrário, a língua da
cultura e da particularidade germânica: autêntica, profunda, e o equiva-
lente moderno do grego” (CÍCERO, 2007). Portanto, os lósofos alemães
usavam argumentos gramaticais (a semelhança do grego e do alemão,
ambas línguas exionais), para se opor à inuência da língua francesa,
que, como vimos, é uma língua analítica. Assim, cada um usa o argu-
mento gramatical que quer, quando deseja valorizar a sua própria língua
em detrimento da língua dos outros povos. Se, para Renan, o francês
era evoluído por ser uma língua analítica, para os alemães o alemão era
desenvolvido por não ser analítico, mas sintético, como o grego!
Na verdade, a avaliação que as pessoas fazem de sua língua e da
língua dos outros tem pouca base gramatical; derivam quase sempre do
papel e da importância que querem atribuir a cada língua na sociedade
em que vivem.

Veja que curioso: o alemão, de “língua de cocheiros”, proibida nas


escolas, onde se ensinava francês, passa a ser considerada a língua da

losoa, ao ponto em que se chega a armar, numa canção de Caetano


Veloso, que “Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção/
Está provado que só é possível losofar em alemão”. Que enorme suces-
so foi a campanha dos pensadores alemães em prol da valorização de
sua língua!

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CAPÍTULO  0
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Sincronia e diacronia: a contribuição de Saussure

6 Sincronia e diacronia: a
contribuição de Saussure
Depois de uma longa tradição de especulação sobre as origens da
linguagem e depois do impacto causado pelas descobertas do compa-
rativismo, no início do século XX, a questão da origem foi relegada a
um segundo plano, em grande parte pela inuência de um lingüista su-
íço, que muitos consideram o pai da lingüística moderna: Ferdinand de
Saussure. O seu trabalho mais famoso, o Curso de Lingüística Geral , não
foi escrito por ele, mas redigido por ex-alunos seus, a partir de anota-
ções de sala de aula. O efeito dessa obra foi enorme.

A idéia de que a língua é um sistema autônomo e coeso, complexo e


com partes interdependentes, descende diretamente das pesquisas desse
Por diacronia entende-se
lingüista. Mas ele ajudou também a tirar de cena a questão da origem o estudo dos fatos da lín-
da linguagem, ou mais exatamente, a limpar o terreno para o que ele gua que leva em conside-
ração a mudança histórica
considerava o verdadeiro estudo da linguagem. desses fatos e a apresenta
a partir da des-crição e da
Ele argumentou que os estudos históricos podem levar a confusões comparação das diferen-
tes formas de uma mesma
teóricas e descritivas no estudo das línguas. Se cada língua é um sistema
expressão ou estrutura
autônomo e coordenado, deve-se examinar um estado desse sistema, sintática ao longo do tem-
po. Por sincronia entende-
e não a forma como ele chegou a ser o que é. Descrições sobre evolu- se o estudo dos fatos da
ções históricas das palavras e das formas gramaticais podem terminar língua em um momento
especíco do tempo, sem
atrapalhando a descrição, ao inserir dados irrelevantes para o sistema. preocupação com mudan-
Não que ele achasse inúteis os estudos históricos: ele simplesmente ar- ças históricas. Assim, um
estudo diacrônico é com-
gumentava que o mais viável metodologicamente seria separar as duas posto por um conjunto de
formas de analisar as línguas: a diacronia, que estuda a evolução das análises sincrônicas.
formas lingüísticas ao longo do tempo, e a sincronia, que estuda uma
língua com base em um momento temporal especíco. Só a sincronia
pode esgotar o objeto de estudo, pois só ela permite apreender o sistema
lingüístico como uma interdependência entre as partes.

Ele dá como exemplo da diferença entre análises sincrônica e dia-


crônica o plural do inglês (Saussure, s.d., p. 99). Certos plurais em inglês
moderno são marcados pela modicação da vogal, tal como ocorre nos
pares: foot, feet; tooth, teeth; goose, geese. Essa é uma oposição sistemá-

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História dos Estudos Lingüísticos

tica entre pares de palavras; é uma regra morfológica do inglês moderno.


(Na verdade, é uma das formas de se marcar o plural, a mais normal é o
acréscimo de -s). Pois bem, essa descrição mostra um estado sincrônico
da língua, e é suciente para dar conta do sistema que os falantes põem
em jogo ao usar a língua inglesa.

Um estudo diacrônico revela como se chegou a essas formas, mas o


estágio anterior, segundo Saussure, não é necessário para compreender
ou explicar a sincronia; essa se basta a si mesma. No caso, o estudo dia-
crônico, revela que no inglês antigo tinha-se fot (pé), plural *foti (pés);
gos (pato), plural *gosi (patos) etc. Uma primeira modicação fonéti-
ca mudou a vogal: *foti se transformou em *feti. Depois, uma segunda

modicação
resumo, temos fonética provocou a*foti
a transformação queda da vogal
feet, nal,a levando
ou seja, forma dea fet.
umEm es-
tado sincrônico p levou a um estado sincrônico a (ou seja, p  a); essa é
uma explicação diacrônica. O estudo sincrônico desconsidera a linha de
tempo e justapõe formas simultâneas numa dada sincronia. No estado
sincrônico p (passado), a regra de plural era feita com o acréscimo de –i.
No estado sincrônico a (atual), a regra de plural (em algumas palavras)
é feita pela mudança de vogal. Repare que as regras sincrônicas para p e
a são independentes.

Em inglês, há outro exemplo interessante. O passado de alguns ver-


bos é marcado de forma irregular: drink (beber) – drank (beber, no pas-
sado); sing (cantar) – sang (cantar, no passado); know (saber) – knew
(saber, no passado); y (voar) – ew (voar, no passado). Como sabe-
mos, o passado regular em inglês é construído com o acréscimo de –ed.
Como se explica a existência dos verbos irregulares? No indo-europeu,
que, como vimos, é o ancestral do inglês, o passado era formado pela

troca da ovogal
crônica; (PINKER,
que importa 2004,
é que p. 167).
no inglês Mas issoháé uma
moderno uma regra
explicação dia-
geral para
a construção do passado (-ed) e listas de passados irregulares. Eles são
irregulares justamente porque são resquícios de regras de outro tempo,
que não se aplicam mais ao inglês moderno. Curiosamente, quando ver-
bos derivados são formados a partir de verbos irregulares, os verbos de-
rivados mantêm a irregularidade do passado: “Quando o verbo to blow
ganhou na gíria sentidos como to blow him away (assassinar) e to blow

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Sincronia e diacronia: a contribuição de Saussure

it o (desconsiderar sem dar importância), as formas do passado con-


tinuaram sendo irregulares: blew him away e blew o the exam, e não
blowed him away e blowed o the exam.” (PINKER, 2004, p. 172).

Ou seja, os falantes de inglês “decoram” listas de passados irregu-


lares como itens lexicais independentes; não há uma regra morfológica
ligando blow–blew como havia no passado; o estado sincrônico anterior
simplesmente sumiu da memória dos falantes. A única regra de forma-
ção de passado é o acréscimo de –ed.

Sendo assim, podemos até radicalizar a análise de Saussure para o


plural do inglês, seguindo sua própria metodologia de separar sincronia
de diacronia. Talvez, sequer exista no inglês atual uma regra morfoló-
gica ligando os pares foot–feet; as duas formas são simplesmente arma-
zenadas como itens lexicais distintos na memória dos falantes. Assim, o
plural do inglês moderno não herdou nenhuma regra do inglês antigo.
Criou-se um novo sistema.

Saussure deu uma grande contribuição para a compreensão das


línguas humanas como sistemas bem construídos e com regras sosti-
cadas. Mas ajudou também a jogar para segundo plano a questão, sem
dúvida fundamental, sobre como as línguas surgiram. Talvez estives-
se na sua mente a mesma rejeição pela questão da origem que muitos
físicos mostravam até algumas décadas atrás. À física, diziam eles, cabe
o estudo da forma atual do universo, e não a indagação sobre sua ori-
gem; a origem do mundo seria uma questão mais religiosa do que cien-
tíca. Mas as pesquisas de Stephen Hawking e outros cientistas levaram
à teoria do Big Bang sobre a origem do universo. Assim como os físicos,
os lingüistas agora voltam a pensar seriamente no Big Bang que deu
origem à linguagem.

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A mente criou a linguagem: a moderna teoria sobre a origem das línguas

7 A mente criou a linguagem: a


moderna teoria sobre a origem
das línguas
Como vimos, ao longo do tempo, a criação da linguagem foi atri-
buída a vários “criadores”: Deus, os sábios, os falantes, o espírito dos
povos. Mas, a partir do século XX, um outro personagem entra em cena:
a mente humana.

Desde os primeiros trabalhos de Chomsky , na década de 60 do


século XX, passou-se a considerar como improvável que uma criança Noam Chomsky  é lingüis-
adquira uma linguagem com base apenas na observação das sentenças ta-autor e responsável
pelo desenvolvimento da
que ela ouve. Seria um verdadeiro milagre que ela pudesse adquirir a Gramática Gerativa, desde
gramática em tão pouco tempo e com tanta ecácia, apenas a partir de de 1950 até os dias atuais.
Entendida como um
deduções sobre a fala dos adultos. Além disso, a criança logo se mostra Programa de Investigação
Cientíca, a Gramática
capaz de produzir frases que ela nunca tinha ouvido antes. Uma ex-
Gerativa se fundamenta
plicação é imaginar que já nascemos com uma gramática universal na na tese inatista, segundo
a qual já nascemos com
mente. Qual a natureza dessa capacidade de linguagem é um ponto de
um dispositivo mental
controvérsia até hoje, mas é difícil colocar em dúvida a necessidade de que nos permite o desen-

pressupor algum conhecimento gramatical inato. volvimento da linguagem


– somos dotados de uma
faculdade de linguagem.
Além disso, ao contrário do que muita gente pensa, essa gramática
universal não corresponde à teoria especíca de um autor ou de uma
escola; ela é antes uma hipótese explicativa da capacidade de aprender
línguas que uma criança demonstra. Como diz Chomsky (2007) em en-
trevista recente:
“Evidentemente, existem muitas confusões sobre a gramática
universal. Em seu sentido moderno, o termo se refere à teoria
correta da faculdade humana da linguagem, o que quer que isso
venha a ser.
A gramática universal tem tanto status quanto a teoria correta
do sistema visual humano, o que quer que isso venha a ser. Não
é ‘minha teoria’.” 

Portanto, a gramática universal é a teoria que explica a faculdade


humana da linguagem, mas ainda não há denição (apenas hipóteses)
sobre qual a natureza e o formato dessa teoria. Há divergência até sobre o

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História dos Estudos Lingüísticos

tipo de mecanismo que deve fazer parte da teoria. Chomsky e colabora-


dores armam que a gramática universal é formada essencialmente por
regras sintáticas, mas para Pinker e Jackendo (2005) ela deve abranger
também estruturas inatas para a produção e percepção da fala, além
de regras fonológicas: “Assim como toda língua dispõe de um número
ilimitado de estruturas sintáticas construídas a partir de uma coleção
nita de morfemas, toda língua tem um número ilimitado de estruturas
fonológicas, construídas a partir de um repertório nito de segmentos
fonéticos”. Além disso, a capacidade de organização fonológica parece
especicamente humana, de modo que deve fazer parte do aparato da
gramática universal, tanto quanto a sintaxe.

Hauser, Chomsky e Fitch (2002), por sua vez, enfatizam a recursi-


 vidade sintática como uma propriedade intrínseca dessa gramática uni-
Recursividade sintática é
a propriedade lingüística  versal, mas, na entrevista citada acima, Chomsky deixa claro que isso é
de combinação innita de
apenas UMA teoria; pode haver outras, que expliquem a faculdade da
termos. Exemplo:  A bolsa
de couro sintético da Joana linguagem. De fato, Pinker e Jackendo (2005) argumentam que regras
da segunda fase do curso fonológicas, que fariam parte da gramática universal, não são recursivas
de Letras da UAB.
(não se pode, por exemplo, encaixar sílabas dentro de outras sílabas).
Desse modo, na teoria desses autores a recursividade não seria uma ca-
racterística comum a todo o aparato da gramática universal.

O resumo desse debate atual é que deve haver um sistema de es-


truturas na mente humana que explique a extraordinária capacidade da
criança de aprender as regras de uma língua, qualquer que seja ela. O
que não se sabe ainda é em que consistem exatamente esses universais
da linguagem, embora muita pesquisa já tenha sido desenvolvida.

Como surgiu a linguagem então? Como uma resposta da mente hu-


mana à sua interação com o meio. Nessa visão, foi a mente que criou a
linguagem, em algum ponto da evolução da espécie. E essa gramática uni-
 versal é passada de pais para lhos através dos genes. Línguas especícas,
como o português e o inglês, passam de pais para lhos através da cultura
e da aprendizagem, mas a capacidade humana de aprender essas línguas
é passada pelos genes, como parte de nosso patrimônio genético.

Essa explicação biológica pode ser levada às últimas conseqüên-


cias, ou seja, pode levar a encarar a linguagem como uma adaptação
da espécie humana, na sua evolução. Isso signica que, num momento

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CAPÍTULO  0
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A mente criou a linguagem: a moderna teoria sobre a origem das línguas

não denido da história do homo sapiens, alguns indivíduos sofreram


mutações genéticas e começaram a falar entre si, tornando-se com isso
mais aptos para a sobrevivência e a reprodução de seus genes. Como

diz Pinker (2004, p. 473), “[...] é incrivelmente lucrativo trocar conhe-


cimentos duramente adquiridos com parentes e amigos, e obviamente a
linguagem é um dos principais meios para conseguir isso”.

Essa vantagem adaptativa explica também por que o ser humano


tem uma capacidade extraordinária de aprender línguas desde muito
cedo e por um breve período. Como sabemos, aprender novas línguas a
partir da adolescência pode ser muito difícil. Na idade adulta, só os mui-
to hábeis com línguas conseguem aprender uma língua estrangeira com
perfeição. Nossas mentes infantis, por outro lado, são fantasticamente
maleáveis para a aquisição da linguagem, e isso na verdade é muito útil.
Crianças que aprendem uma língua têm menos risco de sofrer acidentes
(embora além de saber uma língua, seja preciso também obedecer aos
adultos!). Logo, reproduz-se no indivíduo aquilo que ocorreu na espé-
cie: quem sabe falar tem mais vantagens. (PINKER, 2004).

O cérebro humano concentra muita energia (ou seja, conexões de


neurônios) na aprendizagem de línguas muito cedo; mas depois que a
criança já sabe falar ao menos uma língua, não é mais útil concentrar
tanta energia nessa capacidade cognitiva. O cérebro se volta para outras
funções cognitivas. Como diz Pinker (2004, p. 375):
“Quando a capacidade de aprender (línguas) é necessária? Já
armamos que a resposta poderia ser ‘O mais cedo possível’ para
 permitir que se desfrute dos benefícios da linguagem pelo máxi-
mo de tempo. Note, no entanto, que aprender uma língua – em
oposição a usar uma língua – é extremamente útil uma única
vez. Uma vez aprendidos os detalhes da língua local falada pelos
adultos, qualquer outra capacidade de aprender (afora o voca-
bulário) é supérua.” 

Mas resta entender por que só os seres humanos falam. Não seria
lógico que nossos parentes primatas, como os chimpanzés, também dis-
pusessem de uma linguagem, ou pelo menos de uma proto-linguagem?
Engenhosamente, Pinker compara essa busca da fala dos macacos à
tentativa (insólita) de buscar trombas nos parentes dos elefantes. Só os

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elefantes desenvolveram trombas, e seus parentes no reino animal não


possuem trombas ou proto-trombas! A linguagem é a nossa tromba!
Só nós desenvolvemos esse mecanismo adaptativo, por seleção natural.
Darwin explica.

Mas então os chimpanzés e outros primatas não são capazes de fa-


zer uso de linguagem articulada? Muitos psicólogos e outros cientistas
tentaram ensinar uma linguagem articulada aos macacos, e muitos deles
alegaram que tiveram êxito, mas isso é muito controverso. Como diz
Pinker (op. cit., p. 436):
“Mesmo deixando de lado vocabulário, fonologia, morfologia
e sintaxe, o que mais impressiona na expressão por sinais dos

chimpanzés é que fundamentalmente, lá no fundo, eles simples-


mente não ‘sacam nada’. Eles sabem que os treinadores gostam
que façam sinais e que fazendo muitos sinais conseguem o que
querem, mas nunca parecem intuir de fato o que é a língua e
como usá-la”.

Além disso, obviamente os chimpanzés precisam ser treinados


exaustivamente para aprender a usar alguns sinais, ao passo que uma
criança aprende naturalmente, às vezes com estímulos limitados. A ra-
zão é simples: crianças aprendem uma língua, chimpanzés no máximo
usam mecanicamente alguns sinais.

A mesma coisa se aplica a outros animais. Cachorros interagem


muito bem com seus donos, mas isso não quer dizer que eles entendam
português ou inglês. Uma propaganda de ração, vinculada pela televi-
são, mostra o que um cachorro ouve quando seu dono fala com ele:
“Totó blá blá blá blá Tamp blá blá blá Totó blá blá Tamp”. Totó é o nome
do cachorro e Tamp (nome ctício) é a marca da ração divulgada pela

propaganda. Totó só entende seu nome e o nome da ração. Mas a pro-


paganda é uma brincadeira; de fato, Totó só entende seu nome, e o resto,
inclusive Tamp, é blá blá blá. Mas você deve pensar: eu sei quando meu
cachorro está triste, ou alegre, ou pidão. É verdade, isso parece possível,
mas a comunicação não se dá por linguagem articulada, através de uma
gramática e um vocabulário complexos.

Outro ponto interessante está relacionado à evolução da lingua-


gem, desde os tempos primitivos. Se a linguagem é fruto da seleção na-

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CAPÍTULO  0
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A mente criou a linguagem: a moderna teoria sobre a origem das línguas

tural, então é um mecanismo biológico que deve ter se desenvolvido aos


poucos, e não de um só golpe, como defendeu, no século XIX, o lósofo
Renan, por exemplo.

Finalmente, podemos observar que a questão da origem da lingua-


gem voltou a ser uma questão de interesse dos lingüistas, depois de -
car em segundo plano ao longo de quase todo o século XX, em função
do postulado, defendido por Saussure e pelos estruturalistas, de que os
lingüistas deviam se voltar para a sincronia, para o sistema da língua
enquanto um todo coeso e complexo.

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Unidade B
Linguagem e Pensamento

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Capítulo  0
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1 Gramática de Port-Royal: a
linguagem como estrutura
lógica
O século XVII é tido como o século das gramáticas gerais, surgidas,
conorme pesquisa histórica de Orlandi (1992, p. 12), em uma socieda-
de marcada pelo racionalismo. “Os pensadores da época concentram-se
em estudar a linguagem enquanto representação do pensamento e pro-
curam mostrar que as línguas obedecem a princípios racionais, lógicos”.
De todas as gramáticas gerais surgidas naquele século, o modelo mais

conhecido é a Grammaire générale et raisonnée (também conhecida pelo


nome de Gramática de Port-Royal ), obra que pretende descrever a lin-
guagem em suas propriedades universais. O contexto histórico de seu
surgimento é bastante rico, como nota Weedwood:
“A crescente consciência do uso dos vernáculos europeus e da
multiplicidade de línguas recém-descobertas ora da Europa oi
contra-atacada [...] por uma desconortável percepção de que o
meio tradicional de manter Babel sob controle, a língua latina,
até então a inquestionada língua universal, estava rapidamente
 perdendo efcácia. O latim, desafado por um vernáculo após o
outro como veículo de produção intelectual, e totalmente inútil 
 ora da Europa ocidental, estava empenhado numa batalha de-
sesperada. Derontados com a perspectiva iminente da ragmen-
tação lingüística numa escala desconhecida na Europa desde a
 partida dos romanos, os eruditos e também o público reagiram,
lançando o oco do interesse sobre o aspecto universal da lingua-
 gem” (WEEDWOOD, 2002, p. 96-97).

É nesse contexto que Claude Lancelot observou a existência de as-


pectos comuns entre o latim, o grego, o espanhol e o italiano, enquan-
to escrevia livros didáticos dessas línguas. Em parceria com Antoine
Arnauld, “[...] que trouxe a conrmação indutiva da base cognitiva da
linguagem”, como descreve Weedwood (Ibidem, p. 98-99), esses estu-
diosos jansenistas de Port-Royal propuseram um modelo de gramática
especulativa de tradição greco-latina, a Grammaire générale et raisonnée 
(1660), que iria se tornar a versão dominante de gramática universal, na

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época. Segundo Lyons, o objetivo dessa gramática é “[...] demonstrar


que a estrutura da língua é um produto da razão e que as dierentes lín-
guas são apenas variedades de um sistema lógico e racional mais geral”
(LYONS, 1979, p. 17).

Essa gramática é a precursora de várias outras gramáticas gerais,


losócas, universais ou especulativas, isto é, obras que propuseram
princípios que ultrapassariam a descrição de uma língua particular para
pensar a linguagem em sua generalidade. Nesse tipo de método ana-
lítico, a preocupação é demonstrar, como comenta Lyons, a presença
marcante de princípios lógicos na linguagem, dissociados dos eeitos
arbitrários do uso de uma língua qualquer.

Além do contexto sócio-histórico de retorno do interesse pela uni-


 versalidade da linguagem, vale relacionar o surgimento da gramática de
Port-Royal e o seu orte prescritivismo ao contexto histórico da França
A gramática tradicional, do século XVII, em que a “arte de bem alar” torna-se moda e se dene
que até hoje embasa o en-
sino escolar de língua, pos-
como o explicar bem o raciocínio, o bem pensar: só alaria bem quem
sui relações próximas com raciocinasse bem, segundo operações estabelecidas pela lógica (MAT-
a tradição gramatical que
desde Platão (séc. III a.C.)
TOS e SILVA, 2002, p. 27). Nesse campo de dizer, não cabe o bem alar
situa a linguagem como da retórica, mas o bem alar lógico que também pode persuadir.
representação do pensa-
mento em uma relação Assim, sob o ideário de que a linguagem refete o pensamento e de
icônica: saber alar é saber
pensar. Essa prática da An- que há propriedades que uncionam como núcleo comum às línguas
tigüidade consolidou-se (propriedades ligadas à alma dos indivíduos), o grupo de pensadores
na Gramática de Port-Royal  
com os estudos raciona- de Port-Royal pretendeu construir uma gramática geral das línguas.
listas que se propunham Esse projeto teve continuidade em pesquisas importantes do século XX,
descritivos, mas eram in-
trinsecamente normativos: como a desenvolvida por Noam Chomsky (em sua Gramática Gerativa),
escrever bem é pensar bem. que sob o nome de lingüística cartesiana resumiu o estilo de descrição
Essas questões serão mais
bem discutidas, ao fnal da gramática infuenciado pela lógica, presente em Port-Royal.
desta unidade, no texto
que aborda a construção
da tradição gramatical
ocidental.

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Capítulo  0
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Logo na primeira página de sua obra, Arnauld e Lancelot explicam


que sua Grammaire générale et raisonnée contém undamentos da arte
de alar, os quais, na avaliação dos próprios autores, são explicados de
modo claro e natural – o que justica a ace prescritiva de Port-Royal.
Em seguida, armam que o texto contém aspectos comuns a todas as
línguas e também as principais dierenças encontradas entre elas – o A respeito do tema famí-
que revela a ace universalista e descritivista de Port-Royal. Contudo, a lias de línguas, consulte
o capítulo pertencente
universalidade proposta nesta gramática é restrita ao pensamento e, em à Unidade A deste livro,
termos de estrutura e uncionamento lingüístico, está condicionada aos destinada a tratar das
questões relativas ao sur-
limites de certas línguas, todas indo-européias ou aro-asiáticas: entre gimento das línguas. Tam-
elas o rancês, o latim, o grego e o hebraico. Nesses termos, a universali- bém é possível consultar
Faraco (1991), em obra
dade de Port-Royal restringe-se a línguas que eram as mais conhecidas que trata de questões de
na época. Lingüística Histórica.
E ainda, visite a página
Os gramáticos de Port-Royal dividiram sua obra em duas partes: a http://home.unilang.org/ 
primeira trata do som e dos caracteres dos signos (criados pelos homens main/families.php?l=pt 
que apresenta fguras
para exprimir seus pensamentos); a segunda parte trata da signicação representativas da ge-
dos signos, quer dizer, da maneira como os homens os usam para ex- nealogia das línguas do
mundo, distribuídas em
pressar seus pensamentos. suas amílias e troncos
lingüísticos em orma de
 azer 
O que os , autores
cientifcamente da gramática
relacionado ao estudodedoPort-Royal
uso que sedenominam
az das línguas e
árvore genealógica 

da arte de bem alar, é estruturado por operações mentais. Essa posição


é claramente resultante da base lógico-losóca em que os pensadores
de Port-Royal estavam apoiados. Na época, os lósoos argumentavam
que em nosso espírito ocorrem três operações (conceber, julgar e racio-
cinar) e por meio dessas operações do espírito é que se vem a conhecer
os undamentos da gramática. Weedwood (2002, p. 99) ez as seguintes
considerações a esse respeito:

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“As operações mentais oram transormadas na base das distinções


  gramaticais: as três operações primárias – ormar um conceito
como “redondo”, azer um julgamento como “a terra é redonda”,
e raciocinar – orneciam um arcabouço para distinguir as várias
 partes do discurso e para o estudo da sintaxe. Como essas ope-
rações e as suas conseqüências lingüísticas são universais, elas
 podem ser exemplifcadas por meio de qualquer língua, e o ran-
cês e o latim oerecem a maioria dos exemplos. Dessa maneira, a
célebre análise da oração “Deus invisível criou o mundo visível” 
mostra simplesmente como três proposições mentais distintas –
que Deus é invisível, que Ele criou o mundo, e que o mundo é
visível – estão incluídas nesta única proposição verbal.” 

Em outros termos, o que em Port-Royal oi chamado de operações


do espírito são as relações e categorias semânticas que ainda hoje são
investigadas no estudo das sentenças. No caso da sentença Deus invisível 
criou o mundo visível , podemos identicar: em primeiro lugar, a opera-
ção de conceber, de modo puramente intelectual, o que é Deus, o que é
visível  e o que é invisível e, de modo ísico, o que é mundo; em segundo
lugar, há a operação de julgar, após conceber, que Deus é invisível  e que
o mundo é visível ; e, por m, constituindo a proposição complexa, há a
operação de raciocinar que Deus invisível criou o mundo visível .

Pelas operações do espírito, as quais explicam o percurso incons-


ciente que leva aos usos bem sucedidos da língua, a) expressa-se o pen-
samento e b) garante-se a diversidade das palavras que compõem o
discurso. No primeiro caso, está em jogo a relação entre linguagem e
pensamento e a visão da língua como representativa, não de atos ex-
ternos, mas de atos internos ao homem, ligados ao seu pensamento de
orma coletiva no que se reere às três operações (conceber, julgar, racio-

cinar) e de orma subjetiva no que se reere ao julgamento traduzido no


discurso. No segundo caso, a diversidade das palavras que compõem o
discurso é tal que mesmo não tendo nada “[...] em si mesmas de seme-
lhante ao que se passa em nosso espírito, não deixam de revelar aos ou-
tros todo o seu segredo e de azer com que aqueles que nele não podem
penetrar compreendam tudo quanto concebemos e todos os diversos
movimentos de nossa alma” (ARNAULD e LANCELOT, 2001, p. 29).

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CAPÍTULO  0
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A hipótese de Sapir-Whorf e as relações entre língua e pensamento

2 A hipótese de Sapir-Whorf 
e as relações entre língua e
pensamento
Edward Sapir – lingüista e antropólogo, aluno do estruturalista
americano Franz Boas –, ao estudar línguas indígenas americanas no
início do século XX, propôs que cada língua se congura em um con-
 junto de subsistemas, os quais, interligados, formam um sistema único,
quer dizer, que não se repete, que é próprio para cada língua. Como
denição que considera satisfatória para linguagem, Sapir (1980, p. 22)

diz que ela é “[...] um método puramente humano e não-instintivo de


comunicação de idéias, emoções e desejos por meio de um sistema de
símbolos voluntariamente produzidos”. E, em demonstração clara de
seu determinismo lingüístico, termina por argumentar que não há pen-
samento sem linguagem:

Para apresentar sob outra forma a nossa doutrina, digamos que a lingua-
gem é, primariamente, uma função pré-racional. Limita-se com humil-
dade a entregar ao pensamento, nela latente e eventualmente exteriori-
zável, as suas classificações e as suas formas; não é, como ingenuamente
se costuma supor, o rótulo final de um pensamento concluído.

Perguntando à maioria das pessoas se lhes é possível pensar sem a lin-


guagem, obteríamos provavelmente esta resposta: “Sim, mas não é coi-
sa fácil. Contudo, sinto que é possível”.

A linguagem é então uma roupagem! E se fosse, ao contrário, não tanto


uma roupagem quanto uma estrada feita, um canal?

Com efeito, é mais do que provável que a linguagem seja um instru-

mento aplicado, de início, abaixo do plano dos conceitos e que o pen-


samento tenha surgido de uma interpretação requintada do conteúdo
lingüístico.

Em outros termos, o produto desenvolve-se com o instrumento, e o


pensamento, na sua gênese e na sua prática diária, é tão inconcebível
sem a linguagem quanto o raciocínio matemático é impraticável sem a
alavanca de um simbolismo matemático adequado.
(SAPIR, 1980, p. 27-28).

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História dos Estudos Lingüísticos

O produto de que fala Sapir é o pensamento e o instrumento, a


linguagem. Aquele não se formula, não se organiza, sem o instrumento
adequado: a língua. Esta, então, não pode ser descrita como mero rótulo,
como a roupagem que traz à cena o que se pensa, mas sim como aquilo
que de mais adequado existe para o nascimento e a exteriorização das
idéias. O pensamento é uma substância informe; a linguagem organiza
o pensamento. Desse modo, Sapir arma ser falsa a impressão de que se
pode ter pensamento sem linguagem, uma vez que, àquele, ela serve de
canal, de estrada feita, e que as línguas são mais que códigos que descre-
 vem a realidade, são instrumentos que nos ajudam a interpretá-la.

Benjamim Lee Whorf – engenheiro químico e estudioso de lingüís-

tica, seguidor de Sapir e de Boas – postula que o pensamento se formula


através da linguagem e, radicalizando Sapir, defende que se cada língua é
diferente em seu conjunto de subsistemas, também difere em termos da
 visão de mundo. Assim, os modos de concepção do mundo em seus as-
pectos mais gerais, externos à linguagem, são determinados de maneira
particular e especíca por cada língua. Isso implica dizer que as línguas,
por suas categorias disponíveis para expressar o pensamento, impõem
a forma de os falantes pensarem o mundo e essa forma varia de língua
para língua. Do mesmo modo que Sapir acreditava que a linguagem
dene a percepção que se tem do mundo, ao organizar o pensamento,
Whorf acreditava que a linguagem é o fundamento da realidade e que
ela restringe o pensamento, à medida que o determina.

Assim, formulada entre os anos de 1920 e 1950 e discutida até a


atualidade, a hipótese de Sapir-Whorf estabelece uma relação entre lin-
guagem e pensamento quase que unanimemente associada ao relativis-
mo lingüístico (ao menos em parte a língua determina o pensamento

e diferenças entre línguas acarretam diferenças de pensamento entre


falantes de línguas distintas) ou ao determinismo lingüístico fraco (o
que inuencia a maneira como observamos, pensamos e descrevemos
o mundo é a linguagem que usamos, diferentemente do determinismo
lingüístico forte que postula que o que determina a maneira como obser-
 vamos, pensamos e descrevemos o mundo é a linguagem que usamos).

Segundo Lyons (1987), Sapir e Whorf combinam determinismo


lingüístico com relatividade lingüística à medida que, ao mesmo tempo,

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CAPÍTULO  0
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A hipótese de Sapir-Whorf e as relações entre língua e pensamento

assumem que a linguagem determina o pensamento e que não há limi-


tes para a diversidade estrutural das línguas. Em uma apresentação da
 versão mais extremada da hipótese de Sapir-Whorf, pode-se dizer que
tudo o que fazemos, tudo o que percebemos, tudo o que pensamos está
submetido à língua especíca utilizada em nossa sociedade. Isso implica
dizer que pensamos somente aquilo que está codicado na linguagem,  Também Albert Einstein
fez descobertas a partir
logo, sem linguagem não há pensamento. Também implica armar que de imagens mentais que
as categorias estruturais pertencentes a uma língua são exclusividades criava, como a de estar
montado em um facho
desta língua e distinguem-se de outra língua qualquer e de suas catego- de luz, olhando para um
rias especícas. relógio que se situava
atrás e a de deixar uma
Contra-exemplos à hipótese de Sapir-Whorf não faltam. O famoso moeda cair no interior de
um elevador em queda –
pianista Lui Chi Kung, após car preso durante sete anos e sem nenhum todos os exemplos aqui
utilizados foram extraídos
meio de tocar piano na prisão, ao recuperar sua liberdade, executava
da seguinte página:
sinfonias ainda melhor que antes de ser preso. Segundo o músico, no
http://www.nce.ufrj.br/ 
período em que esteve privado de seu instrumento musical, ensaiava ginape/publicacoes/ 
trabalhos/RenatoMaterial/ 
diariamente, através de imagens mentais das teclas, cuja criação ocorria
 pensamento.htm
sem a utilização de qualquer palavra. No caso do pianista, será cabível Acesso realizado em
armar que os ensaios realizados através das imagens mentais criadas 25/04/2007, às 11h40min.

não recebem o nome de pensamentos? Se reconhecermos, como parece


tão logicamente certo, que se tratava de pensamentos, então há formas
de estruturação do nosso pensar que não passam pela linguagem e isso é
fortemente contrário ao que se postula na hipótese de Sapir-Whorf.

Pinker (2004) faz severa crítica à hipótese de Sapir-Whorf, em es-


pecial à consideração de que pelas categorias de uma dada língua se
pensa, interpreta-se, expressa-se o mundo e à armação de que, ao va-
riar o sistema lingüístico de língua para língua, também as visões que se
tem de mundo variam.

Há ainda uma outra contra-argumentação que atinge em cheio a


hipótese criada por Sapir-Whorf: as relações entre bilingüismo e pensa-
mento. Como se sabe, falantes bilíngües conseguem expressar o mesmo
pensamento nas duas línguas que dominam, à revelia das diferenças sin-
táticas e lexicais existentes entre as línguas. Esses falantes não possuem
 visões de mundo distintas/incompatíveis pelo fato de falarem duas lín-
guas, além disso, quase sempre são capazes de dizer a mesma coisa em
ambas as línguas que falam – opinião também defendida por tradutores.

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História dos Estudos Lingüísticos

Caso se conrmasse a hipótese de Sapir-Whorf, uma mesma pessoa,


multilingüe, por exemplo, teria “choque” de pensamentos; dependendo
da língua em que estivesse se comunicando, expressaria um pensamento
ou outro sobre mesmos aspectos do mundo – o que é claramente falso.

Entretanto, Lyons (1987) arma que nem tudo que se argumenta é


contrário à hipótese de Sapir-Whorf. Segundo o autor, já se sabe que a
memória e a percepção são afetadas pela disponibilidade de palavras e
expressões apropriadas. Dois exemplos, segundo ele, são a recongura-
ção de imagens mentais da memória visual que tendem a ser distorcidas
de maneira que se aproximem de expressões lingüísticas mais usadas e
a lembrança e observação mais exatas e facilitadas de coisas codicadas

na língua, quer dizer, de coisas para as quais há uma palavra ou ex-


pressão lingüística codicadora. O fato é que em versão relativizada, em
interpretação mais “suave” da hipótese de Sapir-Whorf, parece sim ha-
 ver algum tipo de elo entre linguagem e pensamento, mas, hoje em dia,
acredita-se que ninguém ousaria armar que é por ela, a linguagem, que
se pode pensar e que é ela que determina como se pensa sobre o mundo,
sobre o externo a nós e à própria língua.

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mentalês: a linguagem da mente

3 O mentalês: a linguagem
da mente

Como vimos no capítulo 1 desta unidade, os autores da Gramáti-


ca de Port-Royal já propunham que a linguagem reetia característi-
cas universais do pensamento humano. As operações mentais básicas
de conceber, julgar e raciocinar embasariam a estrutura gramatical de
todas as línguas. Portanto, esses autores pressupunham uma conexão
entre pensamento e linguagem, o que implica que a natureza das línguas
deriva mais de propriedades universais da mente humana do que de ca-

racterísticas sociais e culturais. Ou seja, o universalismo de Port-Royal


se opõe ao relativismo lingüístico da tese de Sapir-Whorf, apresentada
no capítulo 2 desta unidade. A tese de Sapir-Whorf é fruto de seu con-
texto histórico, pois, no começo do século XX, foram descritas deze-
nas de línguas pouco conhecidas antes, com gramáticas aparentemente
muito diferentes das línguas mais conhecidas, o que colocou em xeque
a suposta natureza universal da linguagem. Antropólogos e lingüistas
passaram a defender que povos iletrados e ditos primitivos, como os
indígenas do continente americano, possuíam uma linguagem tão com-
plexa e rica quanto a dos povos ditos civilizados, além de perfeitamente
adaptada à sua cultura e modo de vida.

Hoje em dia, o debate se dá em torno dos que adotam a tese de Sa-


pir-Whorf, como Everett (2005), e aqueles que acreditam numa gramá-
tica universal inata (JACKENDOFF, 2002; PINKER, 2004; CHOMSKY,
2007). Uma das maneiras de defender esse universalismo é a dos que
propõem a existência do mentalês, ou seja, a língua da mente, uma lín-

gua sem palavras, mas com conceitos e estruturas organizados em nosso


cérebro (JACKENDOFF, 2002; PINKER, 2004).

A criança nasceria com esse mentalês e teria, de certa forma, de


traduzi-lo para a sua língua materna. Essa teoria, aparentemente mira-
bolante, na verdade corrobora uma idéia do senso comum: nosso pen-
samento não depende da linguagem, sendo anterior a ela; muitas vezes
pensamos coisas que não conseguimos colocar em palavras.

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O mentalês se opõe à teoria de Sapir, para quem não há pensa-


mento sem linguagem. Mas ele ajuda a explicar por que conseguimos
traduzir qualquer coisa entre duas línguas totalmente diferentes entre si,
por exemplo, latim e tupi: simplesmente porque nosso aparato cognitivo
dispõe de um sistema de intermediação entre as duas línguas, ou seja, o
mentalês. “As pessoas não pensam em português ou chinês ou apache;
pensam numa língua do pensamento.” (PINKER, 2004, p. 93).

Essa língua do pensamento seria capaz de dar conta de todas as


interpretações que atribuímos às frases de nossa língua materna, assim
como, em tese, de todas as outras línguas.

Considere este exemplo: todas as frases seguintes são sinônimas


(com variações de ênfase e estilo). Nesse caso, exprimem uma só idéia
ou proposição (PINKER, 2004, p. 92).

1) João borrifou a parede com tinta.

1a) João borrifou com tinta a parede.

1b) A parede foi borrifada com tinta pelo João.

1c) Tinta foi borrifada na parede pelo João.

A idéia que é comum a essas frases deve poder ser representada em


mentalês. Em outras palavras, somos capazes de traduzir uma mesma
imagem ou forma do mentalês nessas quatro frases diferentes. A ordem
e o arranjo das palavras (além do léxico e da fonologia, claro) são típicos
do português, mas a forma da idéia deve ter um correspondente mental.
Uma possibilidade de representar essa forma do mentalês seria:

2) (João borrifar tinta1) CAUSA (tinta1 ir para (na parede))

Essa é uma representação muito mais abstrata do que o português


ou qualquer outra língua, e nada nos diz sobre a gramática dessa lín-
gua. A representação em (2) corresponde a uma idéia, construída na
mente em função de uma estrutura conceptual inata: o mentalês. Assim,
o mentalês deve conter símbolos que identiquem indivíduos (como
João, mas, na verdade, não a palavra João, pois essa é uma palavra do
português), símbolos para predicados (como borrifar  e ir para) e sím-
bolos para substantivos (como tinta e  parede, sempre lembrando que

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CAPÍTULO  0
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mentalês: a linguagem da mente

não nessa forma, pois estas são palavras do português). Além disso, o
mentalês deve conter símbolos que representem relações mais abstra-
tas entre predicados, que são chamados de operadores, como CAUSA.
Qual a moral da história? Nem todas as línguas precisam ter um verbo
com o sentido de borrifar , mas todas as línguas teriam nomes próprios,
predicados, substantivos e operadores. Nem todas as línguas precisam
ter as estruturas sintáticas que aparecem nos exemplos em (1), mas to-
das as línguas seriam capazes de gerar uma estrutura como (2), pois essa
é uma estrutura do mentalês, portanto universal (não a idéia em si, mas
a estrutura).

Voltamos, assim, um pouco às idéias dos gramáticos de Port-Royal.

Eles defendiam que as classes de palavras correspondiam às operações


do pensamento, ou seja, ao que pode ser chamado de mentalês. No en-
tanto, eles concebiam o pensamento com os instrumentos da época de-
les; hoje em dia, os que defendem essa língua universal do pensamento
sustentam que ela deve ser bastante rica e estruturada, com símbolos e
regras combinatórias. Ou seja, ela se parece um pouco com as línguas
reais, que usam palavras.

Assumir o mentalês leva a negar a hipótese de Sapir-Whorf. Se to-


das as línguas humanas podem ser “traduzidas” em mentalês, o que im-
porta é a estrutura conceptual que está na mente, e não o signicado das
palavras ou a estrutura gramatical de uma língua particular. Em termos
mais simples, não importa o tipo de nome que você dá a um conceito ou
a estrutura gramatical que você usa para representar uma idéia; o que
importa são o conceito em si e a idéia expressa (é claro que isso não nega
que a forma de dizer seja importante; na poesia, por exemplo, a forma é
tão importante quanto o conteúdo).

Assim, se a hipótese do mentalês é verdadeira, não faz sentido ima-


ginar que uma língua especíca (por exemplo, o tupi), possa moldar e
denir a forma de pensar de um povo. Os falantes de tupi pensam em
mentalês, não em tupi. Se as línguas têm categorias e estruturas espe-
cícas, isso não quer dizer que um falante de uma língua a não possa
entender o que um falante de uma língua b quis dizer, (se ele sabe a lín-
gua, é claro), ainda que as duas línguas tenham categorias e estruturas
diferentes.

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Um exemplo muito famoso dos que defendem o relativismo lin-


güístico é o dos nomes de neve na língua dos esquimós. É comum dizer
que esse povo tem dezenas, talvez centenas de palavras para neve! E isso
serviria como prova de que a cultura inuencia a língua, que por sua
  vez inuencia o pensamento! O esquimó veria a neve de uma forma
diferente do comum dos mortais!

Pinker (2004, p. 70-71) diz que essa armação sobre a quantidade


de nomes para neve na língua dos esquimós é uma lenda urbana. Uma
 verdadeira história da carochinha. O importante antropólogo e lingüis-
ta americano Franz Boas escreveu, em 1911, que o esquimó tinha quatro
raízes para neve; Whorf aumentou um pouco, e falou em 11 palavras.
A bola de neve foi aumentando e em pouco tempo manuais e livros de
curiosidades falavam em dezenas ou mesmo centenas de palavras para
neve! Como seriam exóticos esses esquimós! Infelizmente, manuais de
lingüística citam esse dado falso até hoje.

Um outro suposto exemplo do relativismo lingüístico seria a mani-


pulação política e ideológica da linguagem. Um empresário não diz que
 vai demitir pessoal, mas sim que sua empresa vai fazer uma “reengenha-
ria da empresa”, e chama seus empregados de “colaboradores”. Um líder

político não diz que vai investir menos em serviços sociais, mas que vai
“cortar gastos” ou “buscar o equilíbrio das contas públicas”. Crises polí-
ticas ou econômicas viram “momentos de turbulência nos mercados”, e
assim por diante.

Orwell, num apêndice a seu livro 1984, imaginou uma ditadura, si-
tuada em 2050, em que os políticos controlariam os sentidos das pala-
 vras. A palavra “livre”, por exemplo, só poderia ser usada em alguns con-
textos concretos, como em “O caminho está livre”, mas não no sentido
mais abstrato (e importante) de “imprensa livre”, ou “politicamente livre”.
Seria a Novilíngua. Para muitas pessoas, o controle das palavras leva ao
controle do pensamento, pois só pensamos com base nas palavras, e se
se proíbe que a palavra “livre” seja usada no campo da política, então as
pessoas podem perder a noção de liberdade! É a tese do relativismo lin-
güístico de Sapir-Whorf: pensamos a partir das categorias e signicados
de nossa linguagem. Se certas categorias e signicados não estão dispo-
níveis na linguagem de uma comunidade, então os conceitos e idéias cor-

respondentes também não estão disponíveis para essa comunidade.


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CAPÍTULO  0
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mentalês: a linguagem da mente

No entanto, se assumimos a posição teórica contrária, que postula


uma estrutura conceptual universal, ou seja, o mentalês, então mesmo
que uma ditadura proíba o uso de certas palavras, ainda assim, em função
de nosso aparato cognitivo, seríamos capazes de pensar nos conceitos in-
terditados: ou seja, os falantes da Novilíngua seriam perfeitamente capa-
zes de pensar na idéia de liberdade, mesmo que as palavras lhes tivessem
sido roubadas (PINKER, 2004, p. 94). Como disse Benveniste (1988, p.
80): “Nenhum tipo de língua pode por si mesmo e por si só favorecer ou
impedir a atividade do espírito. O vôo do pensamento liga-se muito mais
estreitamente às capacidades dos homens, às condições gerais da cultura,
à organização da sociedade que à natureza particular da língua”.

Assim, quando um empresário fala em “reengenharia” e não em de-


missão, ele deseja apenas controlar o debate e situá-lo nos termos que lhe
são favoráveis; mas o conceito não-dito de demissão continua a existir,
mesmo que não seja nomeado. Além disso, por uma mutação semântica
natural, as pessoas podem atribuir à “reengenharia” o sentido de demis-
são, justamente aquele signicado que essa palavra desejava ocultar.

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Linguagem, mente e cérebro: os genes da linguagem

4 Linguagem, mente e cérebro:


os genes da linguagem
Ao longo da história dos estudos lingüísticos, há, conforme já se
disse, uma gama considerável de estudiosos que se dedica a pesquisas
sobre as relações existentes entre linguagem e mente ou entre linguagem
e mundo. Em psicolingüística, área que se consolidou pelo tratamento
da lingüística a partir da  psicologia cognitiva, a aquisição da linguagem 
constitui o cerne das discussões e, como objeto de estudo, tem sido
abordada de maneira muito diversa, cando sua descrição a cargo do
pesquisador e da opção teórica por ele feita. Estudos cientícos atuais,
desenvolvidos por psicolingüistas dedicados em desvendar o que mente,
cérebro e linguagem têm em comum, trazem resultados não denitivos,
mas, sem dúvida, instigantes e convincentes da direção por eles tomada
para explicar como o homem se apropria da linguagem.

Em defesa da tese de que a linguagem é resultado de parte da ativida-


de cerebral humana e de que se trata de uma capacidade biológica e não
cultural, Steven Pinker, no livro O instinto da linguagem, dedica o décimo

capítulo de sua obra (Órgãos da linguagem e genes da gramática, p. 379 a


424) a discorrer sobre as relações entre o aparato cerebral e a linguagem.

Pinker observa que lesões cerebrais ou más formações genéticas


podem interferir no desenvolvimento da linguagem e isso mostraria
que órgãos e genes especícos são responsáveis pela faculdade de lin-
guagem. Quando se fala em órgão de linguagem, está se usando uma
metáfora; assim como o aparelho reprodutor é formado de órgãos cuja
função é a reprodução, no caso da linguagem os órgãos seriam as partes
do cérebro que têm a função de processar e interpretar a linguagem.
Pesquisas realizadas com três gerações de uma mesma família (a
família K), que apresentavam um transtorno hereditário da linguagem,
sugeriram a existência de um gene especíco que, quando afetado pato-
logicamente, prejudica a gramática.

Como o próprio Pinker toma o cuidado de esclarecer, tal gene tem o


poder de prejudicar a gramática, mas não é o único a controlá-la. Didati-

camente, o autor compara a gramática da língua a um carro. A retirada do


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cabo do carburador impede o carro de funcionar, mas não se pode dizer


que o carro seja controlado pelo cabo do carburador. Assim também ope-
ra o gene capaz de prejudicar, mas não de controlar a gramática.

Mas o que seriam, enm, os genes da gramática? Segundo Pinker


(2004, p. 416), “[...] até agora temos indícios que sugerem a existência
de genes da gramática, no sentido de genes cujos efeitos parecem ser
especícos do desenvolvimento dos circuitos que subjazem a partes da
gramática”.

O ponto não controverso é que existem transtornos da linguagem que


são hereditariamente adquiridos, como a patologia especíca que afetava
a família K (membros dessa família, de três gerações distintas, produziam
construções agramaticais como Carol está chora na igreja), as gagueiras,
as dislexias, entre outros. Além disso, há variados estudos desenvolvidos
com gêmeos idênticos separados ao nascer e que viveram em condições
culturais distantes, os quais possuem não só costumes, preferências ou
gostos idênticos, como também idêntico comportamento lingüístico – o
que não se verica em gêmeos fraternos, por exemplo. (PINKER, 2004).

Os gêmeos idênticos Oskar Stöhr e Jack Yufe, que foram separados


ao nascer e cresceram distantes um do outro, quando se encontraram
para um atendimento com o psicólogo que os estudaria enquanto caso
clínico, usavam ambos camisa azul, com ombreiras e duas leiras de
botões. Ambos tinham bigode e usavam óculos com armação de metal
e ambos eram impacientes. Os dois, já quarentões, só haviam se encon-
trado uma vez, por volta dos vinte anos. Pinker pede que se deixe de
lado o ceticismo e que se busque compreender que nesses casos o que há
não é um conjunto de coincidências; também não é o caso de existir um
gene especíco para a cor e o modelo de camisa, mas a constituição de
cinqüenta mil genes que, em alguma medida, interferem em comporta-
mentos, entre eles o comportamento lingüístico.

Segundo o autor, é possível que se pense o órgão da linguagem des-


cartando-se, de partida, metade do cérebro, ao se considerar que apenas
o hemisfério esquerdo é responsável pela faculdade da linguagem. A
teoria de que a faculdade de linguagem se situa no lado esquerdo do
cérebro foi formulada pelo médico francês Paul Broca já em 1861 e tem
sido comprovada desde então.

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Linguagem, mente e cérebro: os genes da linguagem

Por exemplo, nos casos em que se injetam substâncias químicas em


certa área cerebral para paralisá-la, observa-se que “[...] um paciente
com o hemisfério direito adormecido consegue falar; um paciente com
o hemisfério esquerdo adormecido não” (PINKER, 2004, p. 383). Lesões
cerebrais que afetam o hemisfério esquerdo, como as afasias, em outras
palavras comprometem a linguagem de diferentes formas e em diferen- são “perturbações
 Afasias
da comunicação verbal
tes proporções. Decientes auditivos que se comunicam por línguas de sem décit intelectual;
sinais, da mesma forma, apresentam transtorno de linguagem quando podem atingir a emissão
e/ou recepção dos signos
sofrem lesões no hemisfério esquerdo do cérebro, o que é muito coe- verbais, orais ou escritos”
rente, já que a língua de sinais é tão rica e lingüisticamente complexa (DUBOIS et al., 1973, p. 27).
quanto qualquer outra língua.

Contudo, não é em todos os indivíduos que o controle da lingua-


gem ca a cargo do hemisfério esquerdo. Pinker (2004, p. 391) arma
que, em 19% do número de canhotos e em cerca de 3% dos destros, a
linguagem é comandada pelo hemisfério direito. Há também casos de
canhotos em que o controle da linguagem se distribui por ambos os
hemisférios. As vantagens dos canhotos não são difíceis de se perceber.
Sendo a faculdade de linguagem melhor distribuída entre partes do cé-
rebro nos dois hemisférios, canhotos têm maiores chances de suportar
uma lesão em um dos lados sem sofrer de afasia.

Apesar de alguns casos em que os órgãos da linguagem se situam


no hemisfério direito e de outros em que eles se situam em ambos os he-
misférios, os esforços podem ser concentrados no estudo do hemisfério
esquerdo como sendo aquele responsável pelo processamento e produ-
ção da linguagem. Mas que espaço a faculdade da linguagem ocupa no
hemisfério que a controla e em que medida podemos localizar esse(s)
espaço(s)? Os pesquisadores identicaram duas áreas que seriam, então,

os órgãos da linguagem.
A primeira área (a área de Broca) corresponde à região imediata-
mente superior à fenda (o sulco lateral do cérebro) que separa o lobo
temporal do restante do cérebro. A segunda área (a área de Wernicke)
corresponde à parte inferior à fenda, mais próxima ao lobo occipital
(acompanhar gura em Pinker (2004, p. 393)). Como são áreas distin-
tas, são também consideradas como regiões de órgãos diferentes da lin-
guagem, cujas lesões produzem tipos distintos de afasias.

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Quando a lesão atingir a área de Broca, a afasia apresentada de-


tecta-se pela fala trabalhosa e agramatical; a diculdade na fala resulta
do fato de a lesão atingir também uma área motora adjacente, o que
diculta o controle dos maxilares, da boca e da língua, e a agramatica-
lidade advém do fato de essa área ser a responsável pelo processamento
da gramática. Por certo tempo, pensou-se que a afasia de Broca envolvia
apenas a produção da linguagem e não o processamento da gramática,
pois esses afásicos são capazes de explorar redundâncias da fala e fazer
interpretações simples que não requeiram muita análise sintática, o que
enganava os pesquisadores. “Por exemplo, é possível compreender O
cão mordeu o homem ou A maçã que o menino está comendo é vermelha 
só por saber que cães mordem homens, meninos comem maçãs e maçãs
são vermelhas. É até possível adivinhar o que signica O carro empurra
o caminhão porque a causa é mencionada antes do efeito” (2004, p. 394).
Só foi possível, segundo Pinker, compreender o real efeito da afasia de
Broca quando psicolingüistas colocaram diante de afásicos com a área
de Broca lesionada frases do tipo O carro é empurrado pelo caminhão,
em que o processamento sintático interfere na interpretação, e obtive-
ram, como resultado, 50% de respostas corretas e 50% de interpretações
equivocadas, ou seja, os afásicos apelaram para a sorte, como um chute
numa questão do vestibular.
Além disso, há outros fatores que, para Pinker, comprovam que é
a área de Broca o órgão responsável pelo processamento da gramática.
Quando percebem agramaticalidades em uma construção frasal, no pon-
to da construção em que a agramaticalidade é percebida, falantes produ-
zem padrões distintos de atividade elétrica na área de Broca – padrões que
podem ser captados por eletrodos. “Várias tarefas-controle e subtrações
conrmam que o que ativa essa área geral é o processamento da estrutura
das frases, não o simples pensar sobre seu conteúdo.” (2004, p. 394).
Já se a lesão atingir a área de Wernicke, a afasia resultante é, em cer-
ta medida, complementar a de Broca. “Os pacientes emitem seqüências
uentes de sintagmas mais ou menos gramaticais, mas a fala deles não
faz sentido e está cheia de neologismos e de trocas de palavras.” (2004,
p. 396). Diferentemente dos pacientes com afasia de Broca, os com afa-
sia de Wernicke distorcem o som das palavras que nomeiam objetos ou

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Linguagem, mente e cérebro: os genes da linguagem

os nomeiam com palavras semelhantes, como o uso de chair (cadeira)


para nomear table (mesa) ou o uso de tubber  (palavra inexistente em
inglês) para nomear butter (manteiga) – o que caracteriza essa afasia é a
diculdade de se nomear objetos, a chamada anomia. Pinker diz, ainda,
que chama a atenção o fato de pacientes com afasia de Wernicke darem
poucos sinais de compreensão do que é dito ao seu redor.

Em síntese, Pinker arma que se poderia assim dividir o aparato


cerebral humano relativo à linguagem: parte anterior do cérebro, in-
cluindo-se a área de Broca, responsável pelo processamento gramatical;
parte posterior, que inclui a área de Wernicke e a área de junção dos três
lobos, responsável pelos sons das palavras e alguns aspectos de seu sig-

nicado, em especial de substantivos. Contudo, a divisão do cérebro em


subpartes responsáveis por funções especícas é no mínimo pretensiosa
e requer algum cuidado. Primeiro porque não há regularidades quanto
a áreas lesionadas e distúrbios causados: pacientes com áreas distintas
lesionadas apresentam o mesmo tipo de distúrbio e pacientes com dife-
rentes tipos de distúrbio da linguagem apresentam lesões na mesma área
do cérebro. Depois porque a idéia de que um todo complexo funciona
em harmonia parece mais coerente e é justamente o que está por trás das
partes que, nunca isoladamente, colocam o sistema e seus impulsos ner-
 vosos em funcionamento. O paralelo é com um sistema computacional.
Não importa a posição dos diferentes elementos, o que importa é se as
conexões necessárias são feitas.

Portanto, a questão dos órgãos da linguagem está em aberto e é


perigoso assumir qualquer posição denitiva, sob o risco de se fazer
generalizações sobre relações cérebro/linguagem que ainda nem se dei-
xam conhecer. Com não muita cautela, mas apoiado na tecnologia das

neurociências que a cada dia avança e se nos apresenta com toda sua
autoridade e seu poder explicativo, Pinker (2004, p. 402) considera que:
“[...] até onde sabemos o cérebro deve ter regiões dedicadas a processos
tão especícos quanto sintagmas nominais e árvores métricas; nossos
métodos de estudo do cérebro humano ainda são tão precários que ain-
da não conseguimos encontrá-las.”

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CAPÍTULO  0
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Tradição gramatical: construção da língua como representação do pensamento

5 Tradição gramatical:
construção da língua como
representação do pensamento
O ensino da gramática tradicional nas escolas direciona-se ma-
  joritariamente para indivíduos que já dominam a língua cujas regras
estariam estabelecidas nessa gramática com o objetivo de se ensinar
essa língua. Com base nessa armação, que parece ser contraditória se
pensarmos que a gramática nada teria para ensinar a aprendizes que já
dominam a língua a ser aprendida, poder-se-ia fazer a pergunta: o que

se ensina nas escolas, então, e que denominamos contemporaneamente


como gramática tradicional?

De acordo com Mattos e Silva (2002, p. 12), “[...] a gramática tra-


dicional estabelece regras de um predeterminado modelo ou padrão
de língua, para aqueles que já dominam outras variantes dessa língua e
também algumas regras daquela variante que é a padrão”. De posse dessa
denição de gramática, determinamos o objetivo central deste capítulo:
investigar como esse tipo de reexão sobre a língua se constituiu, bem
como traçar um breve panorama geral do percurso da tradição gramati-
cal até chegar ao que se conhece como gramática tradicional, seguindo
de perto a exposição de Weedwood (2002) e Mattos e Silva (2002) sobre
esse tema.

A expressão gramática tradicional, para Weedwood (2002, p. 09),


“[...] engloba um espectro de atitudes e métodos encontrados no perío-
do do estudo gramatical anterior ao advento da ciência lingüística”. De
fato, “tradição”, nesse caso, refere-se a mais de 2.000 anos de reexões
que envolvem a linguagem, desde o trabalho dos gramáticos gregos e
romanos da Antigüidade clássica, passando pelos autores do Renasci-
mento e os gramáticos prescritivistas do século XVIII.

Com relação à origem dessa gramática, é comum encontrarmos


dentre os historiadores da ciência da linguagem o consenso de que a
tradição gramatical remonta aos gregos da Grécia Antiga. Ressalta-se
que se está abordando aqui uma tradição dita “ocidental”, que tem seu

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História dos Estudos Lingüísticos

próprio padrão de desenvolvimento. Há outras tradições gramaticais


que se desenvolveram independentemente da tradição greco-romana,
como a árabe, a chinesa e a indiana, algumas das quais remontam a pelo
menos 2.500 anos.

Já estudamos o Crátilo de Platão, no capítulo 2 da Unidade A. Mas


os estudos lingüísticos na Grécia Antiga compõem uma rica tradição.
Para se perceber a importância dessa tradição, ainda hoje se analisa o
que Aristóteles (384-322 a.C.) considera como o discurso primeiro: a
frase declarativa. Nela, encontra-se a relação entre o que o nome desig-
na e o que o verbo predica.

Aristóteles observa mais atentamente os constituintes semânticos


dos enunciados e acrescenta uma nova classe, a das conjunções, que não
eram nem nomes nem verbos, além de algumas outras distinções que se
referem aos substantivos, às formas de qualicar, às classes de denomi-
nações espaciais, temporais e a algumas categorias verbais. Além disso,
Aristóteles deniu a proposição, “[...] que arma ou nega um predicado
ao sujeito, ou diz se o sujeito existe ou não”. (KRISTEVA, apud  MAT-
TOS e SILVA, 2002, p. 16).

Os estóicos (séculos III-II a.C.) também empreenderam estudos


sobre a língua, dedicando-se em grande medida à etimologia. No qua-
dro de seus estudos, vê-se mais fortemente se delinear a fundamentação
da gramática tradicional nas investigações acerca das regularidades lin-
güísticas. Seus estudos gramaticais também abordavam os constituintes
semânticos dos enunciados – classes de palavras. Mas esses lósofos não
estavam interessados exclusivamente na língua, e como os lósofos an-
teriores, seus estudos gramaticais não se separavam da losoa e da ló-
gica. Como vimos, uma postura parecida foi adotada séculos mais tarde
pelos gramáticos racionalistas, como aqueles de Port-Royal (conferir o
capítulo 1 da Unidade B).

Os estudos feitos pelos estóicos serviram de base para que seus su-
cessores históricos, os estudiosos alexandrinos, privilegiassem as regu-
laridades da língua e adotassem uma postura normativa, preocupando-
se em como a língua deve ser. Já considerados lólogos, esses estudiosos
de Alexandria privilegiaram a língua dos grandes escritores gregos e
rebaixaram os demais usos, pois seu objetivo era educar os povos con-

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Tradição gramatical: construção da língua como representação do pensamento

quistados impondo sua língua e sua cultura. De fato, como comenta


Ferreira (2003, p. 45), a atitude normativo-purista dos lósofos do pe-
ríodo chamado helênico pode ser explicada pelo seu contexto histórico
de dominação e imposição cultural:
“Damos o nome de helenismo à fusão da cultura dos países con-
quistados por Alexandre Magno com a cultura grega, que ele
impunha aos povos que dominava. Quando Alexandre morreu
[323 a.C], seus generais – os díadocos – repartiram entre si o
império que tinham ajudado a conquistar. Nasceram, assim os
reinos helenísticos, nos quais os povos dominados, além de terem
de tolerar a presença de seus conquistadores, foram obrigados a
adotar a cultura grega e fundi-la à sua própria cultura.” 

A cultura grega era imposta sob a égide da precedência da língua


escrita dos grandes escritores em relação aos demais usos. Tal atitude de
seleção de uma variedade escrita e o desprestígio de outras xa na tradi-
ção gramatical o que Lyons (1979, p. 09) chamou de “o erro clássico”.

Como ressalta Mattos e Silva (2002, p. 18), podemos dizer que é


nessa época dos lósofos alexandrinos que se consolida de forma mais
ampla o que veio a chamar-se de gramática tradicional e passa-se a em-

preender esses estudos gramaticais independentemente da losoa e da


lógica. E a autora acrescenta, citando Lyons: “[...] com Dionísio da Trá-
cia, séc. II-I a.C. é que se tem ‘a primeira descrição ampla e sistemática
publicada no mundo ocidental’ (LYONS, 1979, p. 12) de uma língua: o
grego da Ática, ou grego ático”. É, portanto, Dionísio o melhor organiza-
dor da gramática na antigüidade, denida por ele como o conhecimento
prático de uso da língua pelos poetas e escritores de prosa:
“Dene Dionísio a gramática como “a arte de escrever” (arte no
sentido de “conjunto de preceitos necessários para a execução de
uma determinada atividade”), já disciplina independente da ló-
 gica e da losoa e como saber empírico da linguagem dos poetas
e prosadores” 
(MATTOS e SILVA, 2002, p. 18).

A gramática de Dionísio pode ser considerada um livro didático do


Oriente grego e obra de referência nos estudos gramaticais do mundo
de fala grega, pois tinha nalidade pedagógica e contemplava a literatu-

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ra grega clássica. Essa gramática se concentra majoritariamente nos es-


tudos da fonética e da morfologia, dando pouca atenção para a sintaxe.
Por conseguinte, uma tradição lexicológica se verica, sendo denidas
nesses estudos das partes do discurso oito classes de palavras – nome,
 verbo, particípio, artigo, pronome, preposição, advérbio e conjunção.

A primeira teoria sintática foi construída pelo gramático alexandri-


no Apolônio Díscolo (séc. II a.C.) ao estudar a língua grega. De acordo
com Neves (2002), os estudos sintáticos realizados pelo lósofo reve-
lavam a inuência dos trabalhos de Dionísio de Trácia e dos estóicos.
Seus estudos abordavam diversos planos da língua – fonemas, sílabas,
palavras – “uma vez que consideravam uma série de elementos rela-

cionados” e “o conjunto
(NEVES, 2002, p. 63). de regras que regem a sintaxe dos elementos”

Neves (1987, apud JUNQUEIRA, 2003, p. 53) arma que a gramá-


tica era denida como arte (téchne) no Crátilo de Platão, e sua função
era reguladora: dirigia a atribuição das letras nas formações dos nomes;
no helenismo, a grammatiké era o exame dos textos escritos com nali-
Segundo Weedwood dade didática: seu objetivo era preservar as obras que representavam a
(2002. p. 36), De lingua
latina, obra de Varrão, era
cultura e o espírito do povo grego; e com Dionísio da Trácia a gramática
composta por vinte e cin-
co livros, organizados da era denida como empeiriá – conhecimento empírico.
seguinte forma: no livro Um fato interessante é que a gramática de Dionísio cou pratica-
I havia uma introdução;
do II ao VII uma exaustiva mente desconhecida até sua primeira edição em 1727. Na verdade, res-
discussão da etimologia salta Weedwood (2002, p. 34), “foi através dos gramáticos romanos da
latina; do VIII ao XIII era
discutido a exão; e do Antigüidade tardia que a doutrina gramatical grega, ltrada pela língua
XIV ao XXV era discutida a latina, se incorporou à tradição gramatical dominante”. Note-se que os
organização das palavras
em enunciados (provavel- romanos atribuíam aos gregos a introdução da gramática na cultura lati-
mente tratava da sintaxe). na. Marcos Terêncio Varrão (116-27 d.C.), discípulo direto dos gramáti-
Do total desses livros,
temos acesso a somente cos alexandrinos, cou conhecido por aplicar a gramática grega ao latim.
seis (do livro V ao X). Em seu grande compêndio sobre o latim, De lingua latina, encontra-se
uma denição de gramática: a arte de escrever e falar corretamente e de
compreender os poetas. Essa denição já nos indica, conforme aponta
Mattos e Silva (2002, p. 19), que Varrão tratava do latim considerado
“padrão” – posteriormente chamado de “clássico”. O cerne de sua obra
é a morfologia, campo em que o autor realizou distinções fundamentais
encontradas ainda hoje: “entre palavras variáveis e invariáveis, (a obra

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também) estabelece categorias secundárias para analisar as partes do


discurso, como a voz e o tempo para o verbo, e aplica o sistema de casos
do grego ao latim” (Ibidem). As elucidações de Varrão serviram de base
para gerações posteriores de gramáticos latinos.

Apesar desses estudos voltados para a gramática latina, a educação


romana sob o Império era fortemente destinada à formação de oradores:
importava menos a descrição das formas do latim e das regras de geração
de enunciados do que a rotulação e a classicação das formas estilísticas
 já conhecidas. Por isso, Quintiliano (I. d.C.), um importante gramático,
assim como Varrão, intitulou sua obra como Institutio oratoriae.

Na Idade Média, Donato (séc. IV d.C.) e Prisciano (séc. V d.C.) são


os dois gramáticos mais estudados. O primeiro, autor de uma impor-
tante obra, De partibus orationibus ars mino, já propõe diferenças entre
o latim e o grego. O segundo, autor da mais célebre gramática da sua
época, Institutio grammaticae, propõe de forma inédita uma sintaxe da
língua latina, como apresenta Mattos e Silva:
“A sua denição de sintaxe, que é a primeira do mundo ocidental,
é uma denição lógica: a disposição que visa à obtenção de uma
oração perfeita. Os conceitos de oração perfeita/oração imperfeita
[...] já envolvem a distinção da transitividade (não transitivida-
de) dos verbos. Nele também já se estabelece a noção de palavra
regente e palavra regida, conceitos que até hoje vigoram nas ter-
minologias da gramática [...]” (MATTOS e SILVA, 2002, p. 20).

O período histórico compreendido entre os séculos V e XV, que


por convenção chamamos de Idade Média, é marcado por duas direções
nos estudos sobre a linguagem, sendo a segunda a dominante: uma que
deu prosseguimento aos estudos do latim – “língua da cultura” da Eu-
ropa medieval –, em consonância com a gramática greco-latina; e outra
que procura estudar as línguas dos povos dominados por Roma, além
daqueles submetidos ao avanço do catolicismo romano, que tinha o la- Calvet apresenta a se-
guinte denição de língua
tim como língua instrumental (MATTOS e SILVA, 2002). veicular : “[...] uma língua
utilizada para a comuni-
No âmbito dos estudos do latim, os gramáticos produziram materiais cação entre grupos que
não têm a mesma primei-
didáticos para um ensino escolar dessa língua, isto é, para aqueles que não ra língua” (CALVET, 2002,
tinham o latim como língua materna e nem como língua veicular.  p. 57).

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Entre essas gramáticas escolares, as mais conhecidas na Europa ca-


tólica eram o Doctrinale puerorum (1199), de Alexandre de Villa Dei, e
o Graecismus (1212), de Eberhard Bethune.

Nessas obras, adverte Weedwood (2002, p. 56-57), nota-se um


estreitamento do foco da gramática, isto é, há um distanciamento das
preocupações universais e semanticamente enviesadas da Antigüidade,
 voltando-se os autores “[...] aos pormenores de uma língua particular,
o latim”. Nesse sentido, Weedwood aponta uma regularidade que per-
passou diversos momentos da trajetória da tradição gramatical e que
podemos notar ainda hoje: sempre que se tiver uma ampla necessidade
de aprendizado de uma língua especíca, o foco se fechará na gramática

descritiva, “particular”.
Entretanto, os estudos a respeito do aspecto universal da linguagem
não foram abandonados. No nal do século XII, algumas obras de Aris-
tóteles, inacessíveis até aquele momento, começaram a circular na Euro-
pa em traduções recentes para o latim. A partir da leitura de obras como
a Metafísica, os estudiosos da época experimentaram as novas idéias nas
disciplinas tradicionais do conhecimento, além de aprenderem a ques-
tionar a própria natureza dessas disciplinas. Aristóteles opõe, nessa obra,

as disciplinas especulativas (ou teóricas) às habilidades práticas: “O ob-


 jetivo do conhecimento teórico é a verdade, enquanto o do conhecimen-
to prático é a ecácia” ( Metafísica, II 993b 21-22, apud  WEEDWOOD
(2002, p. 57)). Weedwood (2002, p. 57) exemplica essa oposição da se-
guinte maneira: considere-se que um arquiteto entenda os princípios ne-
cessários ao desenho dos edifícios e um construtor simplesmente possui
os conhecimentos técnicos relativos à mistura da argamassa. Essa dico-
tomia entre ramos teóricos e práticos, ressalta a autora, foi projetada no

estudo da linguagem.
princípios Assim,
universais da uma grammatica
gramática,
speculativa investigava os
ao passo que uma grammatica positi-
va interessava-se pelos detalhes de uma língua particular: “[...] a gramá-
tica especulativa se concentrava no essencial e universal, e a gramática
positiva, no acidental e particular” (WEEDWOOD, 2002, p. 57).

No tocante à segunda direção que mencionamos anteriormente, o


estudo das línguas que envolviam o mundo românico, ou seja, as célti-
cas, germânicas, eslavas etc., segundo Mattos e Silva (2002), trata-se de

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Tradição gramatical: construção da língua como representação do pensamento

uma perspectiva inovadora, que abre caminho para outras realidades


lingüísticas para além do grego e do latim.

Ressalta-se que, de maneira semelhante ao fechamento do foco


da gramática de que falávamos anteriormente, também no período do
Renascimento a necessidade social de se ensinar as diversas línguas
românicas aos europeus e também aos povos que estavam sendo cris-
tianizados em outros continentes, contribuiu para a mudança nos es-
tudos gramaticais: quando a língua começa a ser trabalhada de modo
 generalizado como objeto de ensino , preza-se pela clareza, sistematização
e ecácia – necessárias às aplicações pedagógicas –, o que interrompe,
não de modo pleno e denitivo, as especulações lingüísticas medievais

(MATTOS e SILVA, 2002, p. 24).


J.C. Scaliger e Ramus são considerados os grandes representantes
das gramáticas empiristas do Renascimento – em oposição às gramáti-
cas racionalistas anteriores. O primeiro, por volta do ano de 1540, “[...]
tenta delimitar o campo da gramática como ciência, diferencia-a da
lógica, da retórica e da interpretação dos autores literários, e constrói
por m uma gramática de caráter normativo da língua latina, fundada
na forma clássica dessa língua” (MATTOS e SILVA, 2002, p. 24). O se-
gundo, nas obras Dialectique, 1556, e Gramere, 1562, utiliza princípios
formais (e não semânticos ou lógicos) como método de análise grama-
tical. Por exemplo, para distinguir as partes do discurso, ao invés de
dizer que “nome” é o que designa alguma coisa ou a quem se atribui um
predicado, Ramus vai dizer que “nome” é palavra com número e gêne-
ro. A importância dos estudos desse gramático no quadro renascentista
reside em suas análises morfológicas – na ordenação, sistematização e
formalização gramaticais.

As reexões acerca da linguagem no período do Renascimento


podem ser assim sintetizadas, de acordo com Mattos e Silva (2002, p.
25): i) há uma libertação das línguas clássicas – latim e grego – para a
ampliação do campo de observação e de análise empírica: estudo das
línguas românicas, bem como das línguas chamadas de “exóticas” com
que os europeus entravam em contato na África, na Ásia e na Amé-
rica; ii) substituição da especulação pela observação e da lógica pelo
uso lingüístico, mas sem o abandono da relação pensamento-língua. É

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História dos Estudos Lingüísticos

nesse período, portanto, que ocorre o desenvolvimento de um disposi-


tivo pedagógico que gera uma ambivalência (encontrada ainda hoje na
Gramática Tradicional): “o de pretender trabalhar sobre a língua como
objeto de estudo e como objeto de ensino, tentando ser, ao mesmo tem-
po, gramática descritiva e gramática normativa”.

Em resposta ao empirismo renascentista, no século XVII diversos


estudiosos se opõem a esse modelo de estudo da língua, na tentativa de
 voltar aos estudos especulativos medievais de tradição greco-latina. E aí
chegamos nos gramáticos racionalistas, em especial, os gramáticos de
Port-Royal, que já estudamos no capítulo 1 da Unidade B.

Esse quadro de estudos prescritivos dos racionalistas-iluministas


franceses, cujo mote regulador repousa, em última instância, na análi-
se da linguagem enquanto representação do pensamento, delineou em
muitos aspectos a hoje chamada gramática tradicional. Esses pontos
foram aprofundados pelos iluministas franceses Du Marsais, Beauzée,
Condillac, sendo este último o representante mais expressivo de um
aristocratismo lingüístico próprio das gramáticas gerais racionalistas.
Na obra Cours d’étude pour l’instruction du Prince de Parme (1775), Con-
dillac defende que o discurso modelo é o da Academia, por isso recorre

aos grandes textos. Dessa forma, cava reservado a uma elite “o escrever
bem por pensar bem”, já que somente os mais “nobres” freqüentavam a
Academia na época do Cours de Condillac.

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Como vemos as línguas: efeitos da cultura e do poder

6 Como vemos as línguas:


efeitos da cultura e do poder
A gramática, a fonologia e a estrutura conceptual são fatores intrín-
secos de uma língua, provavelmente ligados a uma gramática universal
e ao aparato cognitivo humano. Uma mesma estrutura gramatical pode
servir para a expressão de diferentes culturas e de vários signicados.
A língua não condiciona nossa forma de pensar. No entanto, ainda que
não dena o tipo de gramática de um povo (para uma posição contrária
de um autor contemporâneo, veja Everett (2005)), a cultura certamente
afeta a forma como vemos a nossa língua e a língua dos outros povos.
É muito difícil sermos objetivos em questões de opinião sobre línguas,
tanto quanto é difícil sermos objetivos em questões políticas. Isso ocorre
porque a língua é a face visível de uma cultura. Não por acaso, muitas
 vezes usamos uma mesma palavra para designar um povo e a sua língua:
português, francês, alemão etc.

Mas é preciso não confundir: uma coisa é a forma como vemos uma
língua, em função de seu papel social e de seu poder. Outra são as ca-

racterísticas objetivas de cada língua. No entanto, faz parte do jogo uma


mistura entre as duas coisas, e as pessoas costumam qualicar os traços
gramaticais das línguas a partir do que pensam sobre elas. Por exemplo,
tomemos a situação do inglês hoje em dia. Trata-se da língua internacio-
nal, com domínio na ciência, no comércio, na cultura pop, na informá-
tica etc. Com base nesse domínio, muitas pessoas exprimem conceitos
sobre o inglês, tais como: é uma língua simples e objetiva, a gramática
não é tão complicada, não tem uma conjugação verbal tão difícil como o
português etc. É aquela questão: o inglês domina o mundo porque é sim-
ples, ou parece simples porque domina o mundo? Na verdade, a melhor
alternativa parece ser a segunda: em função de seu valor social e de seu
poder, à língua inglesa se atribuem propriedades positivas.

Mas essas propriedades reetem o valor que se atribui ao uso do


inglês, não propriedades intrínsecas dessa língua. Considere a suposta
simplicidade de seu sistema verbal, por exemplo. É verdade que o inglês
tem uma conjugação mais simples que o português, mas em compen-

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História dos Estudos Lingüísticos

sação a língua inglesa tem uma riqueza incrível de modais (verbos au-
xiliares) e apresenta os famosos  phrasal verbs, formados por um verbo
e uma preposição, os quais são muito difíceis de aprender, pois formam
uma lista enorme, que podem levar à confusão. Veja por exemplo al-
guns exemplos com take: take for (confundir alguém com outra pessoa;
aceitar um certo valor por uma coisa; take by (pegar alguém ou algu-
ma coisa em alguma parte); take aside (tirar uma pessoa de um grupo
para poder falar privadamente com ela); take as (considerar uma pessoa
como sendo um certo tipo de pessoa) etc. Não é tão fácil assim, certo?

Além disso, se hoje o inglês domina, nem sempre foi assim. O grego
dominou amplamente no mundo antigo: “Houve uma primeira globali-

zação
nismo.naFoi
Antigüidade,
na época demas foi anterior
Alexandre, ao Império
o Grande, Romano
a partir e ao300
dos anos cristia-
a.C.
A civilização grega dominava a cultura “mundial”, do atual Afeganistão
(onde os budas são esculpidos como bacos) ao atual Marrocos. A língua
grega ocupava o lugar que o inglês ocupa hoje. Os próprios romanos
possuíam uma cultura grega, assim como o Japão atual é ocidentaliza-
do...” (VEYNE, Folha de São Paulo, 13 de maio de 2007).

Depois foi a época do latim, que foi a língua da cultura até mais

ou menos o século XVIII, quando começou a perder espaço para o


francês. Nas cortes européias e mesmo no Brasil do tempo de Macha-
do de Assis e José de Alencar, no século XIX, o francês era a língua
da cultura, da diplomacia e da moda. Depois o inglês começou a se
impor como língua do comércio, em função do poderio comercial da
Inglaterra, mas ainda no século XX o francês era muito forte, perma-
necendo, por exemplo, como a língua da diplomacia. Só há poucos
anos o Itamaraty deixou de exigir a língua francesa como condição para

ingresso na carreira de diplomata.


Claro que, em cada momento da história, os pensadores tentaram
 justicar o domínio de uma determinada língua a partir de supostas
qualidades superiores dessas línguas dominantes. Mas o fato é que elas
dominavam não em virtude de características intrínsecas, mas em fun-
ção do poder e da cultura dos povos que as falavam. Por exemplo, Ben-
 veniste (1988) mostrou que o lósofo grego Aristóteles propôs as suas
famosas categorias do pensamento com base na língua grega, o que im-

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Como vemos as línguas: efeitos da cultura e do poder

plica que essa língua, e não outra, seria a ideal para representar a estru-
tura do pensamento: “Segue-se que o que Aristóteles nos dá como uma
tabela de condições gerais e permanentes (do pensamento) é apenas a
projeção conceptual de um determinado estado lingüístico” (BENVE-
NISTE, op. cit., p. 76). No século XVII, os gramáticos de Port-Royal
usaram o latim e o francês para exemplicar também a forma pela qual as
línguas reetiam o pensamento, como vimos no capítulo 1 desta unidade.
O lósofo francês Renan, por sua vez, argumentou que a língua france-
sa, como língua analítica, era mais apta a expressar o pensamento, sendo
clara e elegante (cf. capítulo 5, Unidade A). Quem já não ouviu a idéia de
que o francês é uma língua clara e transparente? Bem, isso é fruto de pro-
paganda intensiva em favor dessa língua, feita já há alguns séculos.

Além dessas línguas internacionais, há ainda uma luta política para


 valorizar línguas nacionais em detrimento de outras línguas nacionais,
ou mesmo em relação a outras línguas locais. Por exemplo, como vimos
no capítulo 5 da Unidade A, pensadores alemães zeram uma grande
campanha em favor da língua alemã, contra o domínio do francês como
língua de cultura. A campanha foi bem sucedida, e até hoje, como vimos,
o alemão é visto por muitas pessoas como a língua ideal para a losoa.

Dentro de cada país, as línguas nacionais lutam por espaço e valo-


rização, em detrimento de línguas regionais. Na Itália, o italiano fala-
do na Toscana foi ao longo dos anos se impondo como o dialeto mais
importante daquele país. Na França, o francês teve de dominar outras
línguas, como o gascão, o bretão, o provençal etc. O governo francês, ao
longo dos séculos, defendeu a língua francesa, falada na região de Paris,
como a única língua nacional. As outras línguas, por razões puramente
políticas, foram consideradas dialetos regionais, ou  patois, como dizem

em francês.
O lingüista Calvet (1999) mostrou que as línguas se organizam em
torno de um sistema de poder e prestígio. Ele chamou essa estrutura de
sistema gravitacional, pois, segundo ele, haveria uma língua hipercen-
tral no centro do sistema, em torno da qual gravitam todas as outras
línguas. Atualmente, a língua hipercentral é o inglês. Num segundo ní-
 vel do sistema, haveria as línguas do tipo supercentral, como o árabe, o
chinês, o espanhol, o francês, o russo, o hindi e o português. As línguas

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História dos Estudos Lingüísticos

do nível seguinte seriam centrais, que correspondem mais ou menos às


línguas nacionais, como o japonês, o alemão, o quíchua do Peru etc. En-
m, haveria as línguas periféricas, como as línguas indígenas do Brasil.
Calvet observa que quanto mais alto o prestígio da língua de uma comu-
nidade, mais essa comunidade tende ao monolingüismo. Já os falantes
de línguas periféricas, dado o baixo prestígio de suas línguas, tendem ao
plurilingüismo. Isso gera situações curiosas, descritas em Vieira e Mou-
ra (2002). Bush, atual presidente do Estados Unidos, é um monoglo-
ta, mas orgulhoso dessa limitação, pois para que o presidente da nação
mais poderosa precisa falar a língua dos outros povos? É a arrogância
explicando a ignorância. Já o caso de um indígena brasileiro citado em
Vieira e Moura (op. cit., p. 121), que falava 5 línguas em seu contexto
social, não é valorizado socialmente, pois três delas eram línguas indí-
genas, com baixo status social.

Repare que assumir essa valorização social das línguas não equivale
a assumir o relativismo lingüístico. Teorias como a de Calvet enfatizam
 valores sociais associados aos usos das línguas, mas nada dizem sobre a
natureza intrínseca de cada língua. Dessa forma, nada se arma sobre
possíveis relações entre língua e pensamento.

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