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HILÁRIO FRANCO JÚNIOR

A EVA BARBADA
ENSAIOS DE
MITOLOGIA
MEDIEVAL
SUMÁRIO

Procedência dos Textos 9


Siglas e Abreviações 11
Prefácio de ]ean-Claude Schmitt 13
Apresentação 19

MITO E HISTÓRIA

1. Meu, Teu, Nosso: Reflexões sobre o Conceito


de Cultura Intermediária 31
2. Cristianismo Medieval e Mitologia: Reflexões sobre
um Problema historiográfico 45

MITO E S(X:JEDADE

3. A Castração de Noé: Iconografia, Folclore e Feudalismo 71


4. A Construção de uma Utopia: O Império de Preste João 89

MITO E OHALlDADE

5. O Poder da Palavra: Adão e os Animais na Tapeçaria de Gerona ..... 109


6. Entre o Mundo Feudal e o Mundo das Fadas:
A Aventura de Guingarnor 125
MITO E LlT('({ATLJHA

7.A Vinha e a Rosa: Sexualidade e Simbolismo em Tristão e Iso/da 137


8. Valtário e Rolando: Do Herói Pagão ao Herói Cristão ~ 159

9. A Eva Barbada de Saint-Savin: Imagem e Folclore no Século XII 175


10. O Ouvido de Adâo: Escultura e Mito no Caminho ele Santiago 199

MITO E ESCA'('Ol.Or;(A

11. A Outra Face dos Santos: Os Milagres Punitivos na Legenda Aurea ... 221
12. Em Busca da Idade de Ouro: O Papel da Alquimia
em Dante Alighieri 231

Índices Míticos 245


PROCEDÊNCIA DOS TEXTOS

"Meu, Teu, Nosso: Reflexões sobre o Conceito de Cultura Intermediária", Revista


USI', 11, 1991, pp. 18-25.
"Cristianismo Medieval e Mitologia: Considerações sobre uma Questão I-listoriográ-
fica" [inédito].
"A Castração de Noé: Iconografia, Folclore e Feudalismo", Revista de História, 125-
126, 1991-1992, pp. 35-52.
"A Construção de uma Utopia: O Império de Preste João", Tbefournal ofMed ieual
History [a publicar].
"O Poder da Palavra: Adão e os Animais na Tapeçaria de Gerona", Médiéuales,
25,1994, pp, 113-118.
"Entre o Mundo Feudal e o Mundo das Fadas: A Aventura de Guingamor", Revista
US/', 7, 1990, pp. 85-90.
"A Vinha e a Rosa: Sexualidade e Simbolismo em Tristão e Isolda", em R Janine
Ribeiro (org.), RecordarFoucault, São Paulo, Israsíliense, 1985, pp. 153-185.
"Valtário e Rolando: Do Herói Pagão ao Herói Cristão" [inédito].
"A Eva lsarbada de Saint-Savin: Imagem e Folclore no Século XII" [inédito].
"0 Ouvido de Adào: Escultura e Mito no Caminho de Santiago", Campus Stellae
[a publicar).
"A Outra Face dos Santos: Os Milagres Punitivos na Legenda Aurea", em Anais
da VIII Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, 1989, pp. 155-
160.
"Em busca da Idade de Ouro: O Papel da Alquimia em Dante Alighíerí", História,
5-6, 1986-1987, pp. 65-74.
SIGLAS E ABREVIAÇÕES

Alise Annales. Econornies. Sociétés. Ciuilisations.


ca« Cahiers de Ciuilisation Médiévale.
Com media DANTEAI.IGIIIEI!I, Divina Commedia, Hoepli, 2l. ed., Ed. G. Vandelli,
Milão, 1979.
DACI. (dir.), Dictionnaire d'arcbéologie
F. CAIlIlOI. & H. LECI.EI!CQ cbrétienne
et de liturgie, Paris, Letouzey et Ané, 1924-1953, 15 vols.
DSymb J CIIEVAI.IER & A. GIIEEI!IlI!ANT,Dictionnaire des symboles, Paris, Robert
Laffont-jupiter, 1982 .
Legenda .J ACOPODE VAI!AZZE,Legenda Aurea, vulgo Historia Lombardica dieta,
ed.Th, Graesse, Osnabrück, ano Zeller, reecl. 1969.
MGH G. PEI!TZ; G. WAITZ et aI. (eds.), Monumenta Germaniae Historica,
Hanover, Hahniani, 1826-1933,216 vols,
Miti A. GIlAF, Miti, Leggende e Superstizioni nel Media Evo, Milão, Mondadori,
reed, 1984.
PAMA J. LE Gorr, Paul" un autre Moyen Age, Paris, Gallimard, 1977.
I'L J.-P.MIGNE (ed.), Patrologia Latina, Paris, Garnier, 1844-1864, 221
vols.
RHJ>H Reuue Belge de Philologie et d'Histoire.
•••

PREFÁCIO

Este livro prenderá a atenção de seus leitores de duas maneiras. De um


lado, é o trabalho de um pioneiro que não teme se aventurar em um terreno
historiográfico que permanece ainda em grande parte por desbravar, metâfo-'
ra medieval que utilizo propositalmente, pois se aplica também ao Novo
Mundo. De outro lado, ele é uma contribuição das mais preciosas ao debate
historiográfico, tanto em uma parte quanto em outra do Atlântico. Debate con-
cernente aos mitos, tal como as Ciências Sociais das últimas décadas apren-
deram a analisar. Mas qual proveito o historiador, e mais precisamente o his-
toriador do Ocidente medieval, pode tirar destas análises e desses métodos?
A questão subjacente em todo o livro é ambiciosa: é legítimo falar em "mitolo-
gia" a propósito da cultura cristã do Ocidente medieval?
Por muito tempo essa foi uma questão inconveniente, e imagino que para
muitos cristãos de hoje ela ainda deva parecer sem sentido. De fato, a tradição
cristã sempre opôs aos mitos - fabulae, como denominavam os Pais da Igreja,
seguindo autores da latinidade pagã - a Verdade única da Revelação e da
História Santa, a Historia por excelência. O mito era colocado ao lado do paga-
nismo, da mentira e dos costumes dos povos (gentes). Santo Agostinho opu-
nha a ele a legitimidade universal e trans-histórica da doctrina cbristiana, que
tinha como fundamento a vontade do Deus único e a autoridade sobrenatu-
ral da Igreja. Entre mito e cristianismo, não podia haver nenhuma aproximação,
nenhum ponto em comum. Esse corte irredutível chegou ao fim apenas na
Época das Luzes, notadamente com Voltaire, que não temeu incluir as crenças
e práticas da Igreja dentre as "superstições" que ela própria tinha sido a primeira
a denunciar. Desde então, para a história das religiões construída cientificamente
14
no século XIX, o cristianismo é uma religião como as outras, passível dos mes-
mos procedimentos de análise e de interpretação histórica. Por que, então, não
ver nele, sem a menor carga pejorativa, uma "mitologia" dentre outras?
Não há dúvida alguma de que relatos bíblicos - o Gênese, o Dilúvio,
a Encarnação, a Ressurreição do Filho de Deus, o Apocalipse, o juizo Final
- constituem uma mitologia, a primeira, a mais completa e ainda hoje a mais
fundamental para as culturas ocidentais. É portanto perfeitamente justificado
que Hilário Franco júnior consagre vários dos artigos que reuniu aqui às figu-
ras míticas de Adão, de Eva ou de Noé. Mas nas suas análises logo notamos
a marca do historiador: ele se resguarda de considerar o grande mito judaico-
cristão como um conjunto fechado e definitivo. Ele nos lembra que é próprio
do mito estar sempre em movimento, se transformar ao sabor de suas estru-
turas lógicas e sobretudo das situações históricas nas quaís evolui. Assim, por
exemplo, desde os primeiros séculos da Cristandade, a literatura apócrifa
ampliou largamente os núcleos míticos originais e lhe deu uma visibilidade
concreta testemunhada por toda a arte cristã da Idade Média.
Mais frequentemente, é no sentido restrito que Hilário Franco ]únior fala
dos mitos medievais. Ele vê o mito sobretudo naquilo que chama, como ou-
tros, de folclore, isto é, o conjunto de tradições orais e de práticas rituais que
se desenvolveram na Idade Média à margem da cultura oficial da Igreja e às
vezes contra ela. Em parte, pelo menos, o folclore alimentou-se de elemen-
tos que não pertenciam inicialmente ao mito judaico-cristão, e sim a culturas
anteriores e que não foram cristianizadas senão tardia e desigualmente. O caso
das tradições célticas é exemplar, pois a literatura vernácula que se desen-
volveu na Idade Média Central fez grandes empréstimos ao folclore: na França
medieval, os romances arturianos e Tristão e Iso/da beberam na "matéria da
Bretanha", igualmente presente nos lais, como o de Guingamor, estudado mais
adiante. De tudo isso, Hilário Franco júnior extrai duas reflexões de método
que eu gostaria de sublinhar, pois se deve concordar com elas.
De um lado, a análise das tradições folclóricas medievais deve sempre
levar em conta o contexto social de sua emergência e as finalidades de sua
utilização. Hilário Franco júnior, seguindo as sugestões de Jacques Le Goff,
mostrou em trabalhos anteriores, e reIembra aqui, que a aristocracia guerreira
e talvez sobretudo seus membros mais modestos, os cavaleiros ou milites,
cujas reivindicações ideológicas eram mais fortes, foram no século XII os princi-
pais instiga dores desse reuiual do folclore e de sua penetração na literatura
em língua vulgar. De outro lado, esses mitos folclóricos não constituíram jamais
um conjunto fechado, isolado em relação à cultura da Igreja. Eles evidentemen-
te sofreram a sua influência, e por sua vez enriqueceram-na com uma multi-
dão de motivos e de imagens. É portanto bem característico da cultura me-
dieval o desenvolvimento daquilo que Aaron Gurevich chamou de "cultura
intermediária", cujos porta-vozes eram os clérigos, pois somente eles sabiam
escrever, e na qual se misturavam os elementos mais heterogêneos da cultura
erudita e da cultura "popular",
15
É com razão que Hilário Franco júnior vê na Legenda Aurea do domini-
cano italiano Jacopo de Varazze, no século XIII, um produto dessa acultura-
ção. A palavra legenda deve ser entendida aqui no sentido etimológico, pois
aquela coleção de vidas de santos tinha antes de tudo uma função litúrgica:
tratava-se de lê-Ias Clegendum) no refeitório ou de utilizá-Ias na pregação.
Como no mito, o tempo histórico encontra-se ali esmagado pelo tempo da
narrativa, pela referência a uma época tornada lendária C'era uma vez ... ") e
que dá à história um valor sempre atual. Como no mito também, a lógica é a
do eco e das correspondências, o que faz com que cada vida de santo, ape-
sar de singular, trabalhe os mesmos motivos que, organizados diferentemente,
encontram-se nos relatos de outras vidas. É possível que alguns desses motivos
tenham tido uma origem pagã, estranha ao cristianismo: esta era a tese do fol-
clorista Saintyves, cujo livro Les Saints sucesseurs des dieux revelava já no títu-
lo toda sua intenção. Mas o essencial não é isso, como Hilário Franco júnior
acertadamente nos lembra: o principal reside na extraordinária capacidade do
mito cristão, centrado na figura de Cristo, de agregar e de ordenar todos os
"miternas" que se lhe apresentam - sejam eles pagãos, célticos ou simples-
mente camponeses (palavra que gera equívocos, pois de sua forma latina,
paganus, é que veio "pagão") - formando com eles um conjunto bem arti-
culado, t1exível, eficaz, destinado por isso a durar muitos séculos.
Que me seja permitido, a partir dessa leitura, colocar uma questão e pro-
por alguns prolongamentos que pretendem simplesmente testemunhar a fecun-
dídade deste belo livro. Se aquele é o campo do pensamento mítico medieval,
tão bem percorrido neste livro, é possível delimitar seus contornos no seio
da cultura cristã daquela época? Dito de outra maneira, podem-se distinguir
formas culturais divergentes, até antagônicas, correspondentes talvez a interes-
ses sociais e ideológicos diferentes, ligadas umas ao pensamento mítico e ou-
tras ao pensamento racional? O que já foi dito sobre a importância da cultura
intermediária e das trocas entre cultura erudita e cultura folclórica leva-nos a
não traçar fronteiras excessivamente rígidas entre elas. De fato, seria errado
querer excluir totalmente do pensamento mítico - o da Bíblia, dos apócri-
fos, das lendas cristãs, dos milagres - o comentário exegético e doutrinal
que dele faziam os clérigos, inclusive os mais sábios teólogos. Os argumen-
tos que desenvolve um Santo Tomás de Aquino para demonstrar a existência
do Diabo ou a verdade da Presença real, também pertencem, por seu obje-
to, ao mito cristão.
Mas, é verdade, essa forma de argumentação afasta-se do mito e intro-
duz, pela primeira vez no pensamento cristão ocidental, um percurso racional
que tem a ambição de submeter à sua crítica todos os mitos, inclusive o mito
cristão. Historicamente, uma ruptura ocorreu no século XII, nas escolas monás-
ticas e canoniais, logo em seguida nas universidades, em torno de alguns
teólogos - Anselmo, Abelardo - nossos primeiros "intelectuais". Nenhum
deles renunciava à fé, mas todos pretendiam esclarecê-Ia pela inteligência e
pela razão: fidens quaerens intellectum. Ora, essa razão crítica não se desen-
volveu exteriormente à religião: por seus objetos, suas finalidades e sua
inserção social, ela pertencia ao campo religioso. No entanto o que ela anun-
ciava e que ia pouco a pouco se impor - com o nominalismo, mais tarde
com a Reforma, depois com o Iluminisrno - era a morte do mito, a morte
de Deus, sacrificados ~l razão cio homem. Essa "morte" (supondo-se que ela
esteja consumada atualmente, o que não é certeza) não foi causada por um
cornpló exterior, um atentado da raZ~IOIaíca contra as maravilhas da fé: como
lembrou Mareei Gaucher, e para usar as palavras de Max Weber, o "desen-
canramento do mundo" foi ames de tudo o produto do desenvolvimento
histórico do próprio cristianismo, do trabalho do pensamento cristão sobre si
mesmo. Sem dúvida não é absurdo pensar que essa crítica ao mito estava
contida em germe, desde a origem, na singular Inserção do cristianismo no
mundo, o mito da Encarnação.
Esse é, parece-me, o quadro histórico e heurístico no qual se desenvolve
o pensamento de Hilário Franco júnior. Nesse quadro, e é preciso lhe agrade-
cer por isso, ele procurou entretecer rodos os fios do pensamento mítico
medieval, das tradições religiosas ~l literatura vernácula e ;1 iconografia: ele
não é o especialista de um único domínio e menos ainda de um único gênero
literário. Ele não é também um historiador que lÚO olha para outras disci-
»>
plinas: a literatura, a lingüística, a história da arte, a antropologia social, a psi-
cologia, todas o atraem, mesmo continuando a ser historiador. De sua inter-
pretação, destaco de faro a preocupação incessante de lembrar a inserção
social e temporal dos fenômenos, e uma justa desconfiança em relação a expli-
cações excessivamente ávidas de simbolismo universal e de arquétipos, na
linha deIung, Mircea Eliade, Gilbert Durand ou Philippe Walter. Mas ao mesmo
tempo, como não lembrar, lendo-o, que a análise estrutural dos mitos, tal como
a ensinou Claude Lévi-Strauss, encontrou seu primeiro terreno entre os índios
do Brasil?
Hilário Franco júnior sabe também confrontar as versões dos mitos cristãos
e observar suas transformações. Vejamos, por exemplo, como interpreta a sur-
preendente "Eva barbada" figurada, na época românica, nas pinturas da abóba-
da de Saint-Savin-sur-Garternpe. Ele a relaciona com a figura do "Adão grávi-
do", representado simbolicamente como a "mãe" de Eva , tema cuja riqueza e
importância Roberto Zapperi soube recentemente demonstrar. Eva barbada e
Adão grávído invertem, ambos, de maneira oposta, os signos habituais da dife-
1
renciação sexual: ela toma a aparência de um homem, ele a de uma mulher.
Ora, se por definição a figura do Adão grávido precede o momento crucial
da Queda, o mesmo ocorre, constata Hilário Franco júnior, com a Eva bar-
bada de Saínt-Savin: após a Queda ela será figurada sem barba, como uma
"verdadeira" mulher. A partir disso é possível avançar outro passo na análise:
a dupla inversão dos signos da diferenciação sexual deve ser relacionada com
a Queda e o destino trágico que disso resulta para toda a humanidade, segun-
do o mito do Gênese. Essa hipótese é confirmada pela seqüência do mito
cristão?
17
A Queda de Adào e Eva fazia de fato eco ~lPaixão de Cristo, garantia da
Redenção da humanidade. Pesquisas recentes sobre a iconografia da Paixão
(Leo Steinberg, Jean Wirth) ou sobre a literatura mística (Caroline Bynum)
mostraram que (J Cristo crucificado apresenta, também ele, uma situação sin-
gular em relação à sexualidade: a "sexualidade do Cristo". consistiria acima de
tudo na ausência de órgão sexual. Cristo sem dúvida foi homem, porém sem
jamais deixar de ser Deus. A geraç~lo crística não se assemelha ~ldos homens
e da carne, é uma geração espiritual. Dessa maneira, o "órgão" não pode-
à

ria ser um sexo humano: é a ferida lateral do crucificado, da qual jorrou o


Sangue Precioso e da qual nasceu a figura da Ecclesia, a filha espiritual do
Cristo-mãe. É portanto clara a relação entre, de um lado, o Cristo da Paixão
que engendra a Igreja pela ferida e, de outro, o Adão grávído e a Eva barba-
da. Adão e Eva não foram submetidos à ordem da carne e da sexualidade
humana senão a partir da Queda, do pecado pelo qual eles renunciaram à

inocência anterior. A situação de Cristo, por sua vez, é simetricamente inver-


sa: ele está além do pecado do qual libera os homens através da sua morte.
Mas esses permanecem na história e apenas no fim dos tempos reencontrarão
a inocência perdida e a ausência de marcas "sexuais": nas figurações do juizo
Final (de Hans Memling, por exemplo) os eleitos, ao contrário dos condena-
dos, reencontram, com um corpo liso, a inocência perdida.
Ousemos, então, uma última reflexão, que é também uma boutade, a
melhor prova do caráter mítico da religião cristã medieval não a possibili-
é

dade que o historiador atual tem de sentir em relação a ela, trabalhando sobre
textos e imagens, a eficácia dos mitos tal como os antropólogos e os historia-
dores das mitologias antigas definiram? ... Graças a Hilário Franco júnior, ()
caminho está doravante largamente aberto.

JEAN-CLAlJDE
SCI ItVlITT

Ecolc dcs Hautes Etudes cn SciCI1CCS Socialcs


Paris
APRESENTAÇÃO

Dentre as muitas dificuldades em pesquísar, ensinar e estudar História


Medieval no Brasil está o acesso à própria produção nacional no setor, mesmo
sendo ela pequena. Enquanto manuais e obras de divulgação são facilmente
encontráveis, os trabalhos de caráter acadêmico tendem a ficar restritos a um
público reduzido. As limitações editoriais das universidades, as deficiências
das bibliotecas públicas e a vastidão do país acabam por regionalizar o con-
tato com aquela produção. Mesmo os medievalistas e os estudantes muitas
vezes não são adequadamente informados quanto ao aparecimento de teses,
de artigos de revistas especíalízadas, de apresentações em congressos cientí-
ficos (cujas atas, aliás, freqüentemente acabam por não ser editadas). Que
dizer então de um público mais amplo, crescente mente curioso nos últimos
anos sobre as coisas da Idade Média? Pensando nisso é que resolvemos reunir
aqui alguns trabalhos disperses, escritos entre 1985 e 1994, publicados ou em
vias de serem publicados em veículos nem sempre de acesso fácil ao leitor
brasileiro. Ao lado desses textos, incluímos outros, inéditos, especialmente
elaborados para esta coletânea.
Apesar dessas origens variadas, esses ensaios possuem forte unidade
temátíca, cronológica e metoc!ológica. Quanto ao primeiro ponto, como o sub-
título da coletânea indica, o objetivo dos vários trabalhos é estudar a mitolo-
gia da Idade Média cristã ocidental. É mostrar o papel central que o mito
desempenhava naquela sociedade, por ser ele o tipo de linguagem e a forma
de pensamento que expressava a sensibilidade profunda daqueles homens.
Há alguns anos a pretensão de realizar um trabalho como este causaria estra-
nheza - a mitologia era comumente vista como dado cultural típico da
Antiguidade e de povos ditos primitivos -, e ainda hoje esse objeto de estu-
do não faz parte dos campos habituais dos medievalístas. Com razão, jacques
Berlioz, jacques Le Goff e Anita Guerreau-Ialabert, ao fazerem em 1991 um
balanço da produção medievalístíca francesa dos últimos vinte anos, concluí-
ram que a mitologia da Idade Média é Ulll território novo, ainda a explorar.
Se essa constataçào é válida para um centro historiográfico importante como
a França, que dizer do Brasil?
Mas estudar o universo mitológico da Idade Média não é um exercício
gratuito de modernídade historiográfica, É um caminho fundamental para se
entender em profundidade a sociedade medieval e, portanto, as origens da
civilização ocidental. Nào se pode esquecer que as sociedades européias foram
essencialmente agrárias até o século XIX, e por isso sua cultura era sobretu-
do tradicional, oral, folclórica; era, enfim, de inegável fundo mítico. É verdade
que freqüenternente os estudos históricos valorizaram mais as novidades cultu-
rais de elite (a filosofia grega, a escolástíca medieval, o Renascimento, o
Ilurninismo etc.) do que as permanências ou as lentas transformações pluris-
seculares da cultura popular.
No entanto nas últimas décadas essa situação historiográfíca tem-se altera-
do. Reconhece-se atualmente que muitas das motivações e das modalidades
de determinados comportamentos sociais seguiram modelos míticos, seja no
Oriente antigo, seja na África, seja na Europa pré-industrial ou mesmo con-
ternporânea. De fato, podem-se observar certas manifestações da mitologia
medieval tanto no sebastianismo português dos séculos XVI-À'Vn quanto no
nazismo alemão do xx. Muito do material mitológico medieval foi levado para
a América pelos colonizadores europeus e, reforçado, ativado e adaptado pelas
condições locais, manifestou-se também ali. É () caso, por exemplo, da busca
da terra maravilhosa do Eklorado nos primeiros tempos da ocupação ibérica,
de vários ritos populares considerados como bruxaria pela Igreja durante o
período colonial, de movimentos rnessiânicos no Nordeste brasileiro dos
séculos XVIII-XX, de mitos sobre Artur e Carlos Magno que circulavam até há
pouco na literatura de cordel.
Portanto, S~lO permanências de longa duração significativas em si mes-
mas e extremamente úteis ao historiador, pois o acesso deste à mitologia
medieval se dá através de material folclórico, isto é, de dados míticos que ga-
nharam um componente histórico. Com efeito, aquilo que se chama de folclo-
re é o conjunto de crenças e práticas consideradas arcaizantes comparativa-
mente a um outro conjunto que é tomado como referencial, como modelo. A
palavra, criada em 1846 para ser aplicada a sociedades tribais muito diferentes
da civilização ocidental que as observava, comporta desde então certa carga
depreciativa. O fato folclórico representa um outro código de valores, expres-
sa um estágio civilizacional considerado ultrapassado pela cultura dominante.
Aplicado ao próprio Ocidente, o termo designa resquícios de um passado dis-
tante, corresponde de certa forma ao uso que a Igreja medieval dava à "supers-
tição" t superstitio deriva de superstes, "sobrevivente"). Contudo, como mostrou
21
jean-Claude Schmitt, () folclore é uma "cultura integrada, estruturada e eficaz
em todos os atos patentes da vida cotidiana".
De fato, () folclore funcionava na Idade Média como uma forma de
resistência cultural aos valores eclesiásticos. Daí recorrer de forma natural ,tOS
dados míticos que a cultura erudita negava, apesar de eles estarem largamente
presentes no cristianismo (o que examinamos nos ensaios n. 2, 4, 5, 8, 9 e
11). Dados míticos que a cultura oficial pensava destruir ou descaracterízar
ao absorvê-los e adaptá-los ao cristianismo (ensaios n. 1 e 2). Em função disso,
o historiador deve buscar um pouco por toda parte suas fontes sobre a mitolo-
gia medieval. Elas estão presentes nos contos e narrativas orais que foram em
algum momento registrados por escrito (ensaios n. 6 e 7). Estão nas obras de
poetas anônimos que recontavam e às vezes historicizavam velhos relatos
(ensaios n. 7 e 8), ou de poetas conhecidos que criavam uma obra original a
partir de material antigo (ensaio n. 12). Mas estão também em documentos de
procedência bem diferente, elaborados pelo poder imperial em busca de nova
força (ensaio n. 4) ou pelo clero na sua tarefa de pregação (ensaio n. 11).
Estão presentes sob a forma de iconografia no teto de igrejas monásticas
(ensaios n. 3 e 9), nos claustros de igrejas colegiadas (ensaio n. 10) ou nos
altares de catedrais (ensaio n. 5).
Quanto ao período coberto pelos ensaios, ele corresponde ~'lIdade Média
Central, isto é, os séculos XI-XIII. Mas com freqüentes recuos e mesmo alguns
avanços, pois () material mítico é naturalmente um dado de longuíssima duração
histórica. Não se pode pretender submeter esse tipo de fonte as estritas perio-
dízações da história política ou institucional. Não se trata contudo, como uma
historiografia mais tradicional poderia pensar, ele um domínio a-histórico, mas
apenas de um campo que possui seu próprio ritmo histórico. Se de forma
geral este é lento, em certos momentos pode acelerar-se em função do C()11-
texto mais amplo. Dentro do período que aqui nos interessa, foi o que ocor-
reu, por exemplo, nas primeiras décadas do século XII, quando a intensifi-
G1Ç~lO das mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais levou ~l fixação,
literária ou iconográfica, de um grande número de relatos míticos que até
então circulavam apenas oralmente.
Tratava-se do fenômeno sociocultural que jacques Le Goff - partindo
elos trabalhos de Erich Kóhler - definiu como "reação folclórica". Ou seja, a
tentativa por parte da arístocracía laíca de forjar uma identidade cultural frente
~l reorganização da Igreja promovida pelo Pa pado, a chamada Reforma
Gregoriana. Com efeito, esta dividia a sociedade cristã em eclesiásticos e lei-
gos, atribuindo aos primeiros uma personalidade clara, definida por uma
condição jurídica própria, e por comportamentos e atividades exclusivos. Sem
hábito, tonsura, celibato obrigatório e poderes mágicos deiegados pejo mundo
divino, os leigos surgiam como uma massa indiferenciada, apesar de apre-
sentar níveis políticos e econômicos bem distintos.
A célebre tripartição social que abaixo dos oratores dividia os leigos em
bellatores e laboratores não resolvia a questão cio ponto de vista da elite bica,
21
que se ressentia da falta de uma identidade própria. A solução que se lhe apre-
sentava de maneira natural era a valorização da cultura pré-cristã. Apesar de
muitas vezes combatida pelo clero, aquela cultura sempre estivera presente
no Ocidente dos primeiros séculos medievais, quando fora absorvida e adap-
tada, vindo a ser rejeitada em bloco pela Igreja apenas com o rigorismo e ()
exclusivismo da Reforma Gregoriana. Dessa forma, conclui Le Goff, essa cultu-
ra aparecia como "a única que os senhores podiam se não opor, ao menos
impor ao lado da cultura clerical".
Essa passagem da oralidade ao registro implicou, portanto, a incorpo-
ração (consciente e inconsciente) de dados do presente histórico de uma forma
mais rígida do que ocorrera no estágio apenas oral daqueles relatos. Isso não
significou, no entanto, que as narrativas míticas se tenham adequado ao ritmo
da cultura erudita, mais ágil, mais suscetível às flutuações históricas. A preser-
vação do ritmo mais lento da cultura mítica explica-se, de um lado, pelo fato
de, paralelamente às versões escritas (que, aliás, com freq üência se destinavam
a ser lidas em voz alta), os relatos orais terem continuado a circular. De outro
lado, explica-se pela própria estrutura dos mitos, baseada em sentimentos e
emoções que, apesar de assumirem formas históricas específicas, no essen-
cial apresentam poucas variações. Assim, estudar os mitos medievais é cruzar
fenômenos de curta duração (as formas literárias e íconográficas que eles então
assumiram) com outros de muito longa duração (o conteúdo pluríssecular, às
vezes plurirnilenar, daqueles mitos). É também verificar no que aquelas for-
mas condícíonararn o entendimento de determinado mito em determinada
época. É, sobretudo, tentar perceber que papel cada mito estudado desem-
penhava na sociedade medieval.
De forma geral, pode-se dizer que todo mito procura fundamentalmente
responder a uma certa Inquietação sociopsicológica. A partir disso, é possível
pensar como hipótese numa típologia dos mitos medievais composta de cinco
formas básicas, que frequentemente apareciam mescladas. Os mitos etiológi-
cos tratavam das origens do mundo, do homem (ensaio n. 10), de fenômenos
divinos, naturais (ensaios n. 5, 7 e 9) e sociais (ensaios n. 3 e 5). Os mitos
hierofânicos narravam as manifestações de personagens divinas ou sernidi-
vinas como anjos, demônios, santos (ensaio n. 11), heróis (ensaios n. 7 e 8)
e feiticeiros, com suas respectivas atuações, proteção, tentação, milagres (ensaio
n. 11), combates (ensaio n. 8), magia etc. Os mitos messiânicos eram os con-
cernentes a personagens históricas (ensaio n. 12) ou imaginárias (ensaio n. 4)
vistas como salvadoras da sociedade cristã. Os mitos escatológícos criticavam
o presente histórico (ensaio n. 6), descrevendo fenômenos (ensaios n. 11 e
12) e/ou personagens (ensaio n. 4) ligados ao Fim dos Tempos. Os mitos
edênicos falavam do Éden perdido (ensaio n. 9), ou de um Paraíso a ser recu-
perado e/ou conquistado (ensaios n. 4, 6 e 12).
Por fim, a unidade metodológíca dos ensaios aqui reunidos está no pres-
suposto de que a interdisciplinaridade é o melhor caminho para se tentar com-
preender um objeto de estudo tão rnultífacetado. De fato, mito é uma forma
1
I

2:)
narrativa que busca explicar de forma própria fenômenos importantes para a
sociedade que o cria, adota ou adapta. Essa tentativa de explicação não exclui
categorias racionais, porém está baseada sobretudo na sensibilidade e na intui-
ção. Logo, trata-se de explicação cuja riqueza - e dificuldade de apreensão
pelos estudiosos modernos - está na sua não-univocidade, nas suas múlti-
plas possibilidades de interpretação. Sendo uma metáfora que procura captar
o significado essencial do homem e do mundo, o mito é ao mesmo tempo
largamente "natural" e profundamente "cultural".
Nesse sentido é pertinente a definição de johannIakob Bachofen: "Mito
é a exegese do símbolo". Exegese oral, anônima, coletiva, continuamente
reelaborada. E nisso reside a maior dificuldade para o historiador: conhece-
mos os mitos medievais apenas através de versões que ao serem registra das
passaram pelos filtros pessoais de poetas e artistas e pelos filtros ideológicos
dos grupos sociais que estimularam e/ou acolheram a canonizacão de cada
uma daquelas variantes. Além disso, o sentido de um mito não se encontra
apenas nele próprio, mas na sua articulação com outros mitos. Por isso, no
subtítulo desta coletânea não falamos em mitos, mas em mitologia. Apesar
de cada ensaio ser um trabalho autônomo, que pode ser lido isoladamente
e fora de uma seqüência única, eles não raro se cruzam. Não se trata aí ape-
nas de um artifício do historiador, mas de uma condição imposta pelo próprio
objeto de estudo. Cada mito ou fragmento de mito deve ser analisado como
pane de um conjunto articulado, que funciona como um sistema de inter-
pretação do mundo e de comunicação afetiva com ele, isto é, como parte de
uma mitologia.
Assim, diante dos múltiplos aspectos de cada mito e da feição quase cali-
doscópica da mitologia, o recurso ao instrumental analítico de diversas disci-
plinas é obrigatório. Especialmente de seis delas. Em primeiro lugar a história,
por ser a mais antiga daquelas disciplinas e a que, ao menos em termos de
estudos mitológicos, articula as contribuições das demais. Depois de longo
período em que se confundiu com o mito, a história passou a excluí-Io de
suas análises em nome de uma pretensa superioridade intelectual, até reco-
nhecer, mais recentemente, a importância daquele material. Em certo sentido
o mito é um relato historiográfico muito moderno, pois narra e analisa o pas-
sado com a pretensão - pelo menos inconsciente - de fornecer aos seus
ouvintes e leitores uma visão global do universo ao estabelecer relações entre
as instâncias divinas e humanas, ao destacar as articulações e oposições entre
mundo natural e mundo cultural, e ao fazer comparações entre povos, persona-
gens e fenômenos.
Claro que tudo isso se fazia sem os instrumentos analíticos conhecidos
pelo historiador atual, mas de forma intuitiva e empírica os mitos são pre-
cursores distantes e anônimos de Marc Bloch, Lucien Febvre e dos seguidores
de uma "história total". Como t;m.la historiografia é "filha de seu tempo", e na
tentativa de reconstituir o passado podemos e devemos recorrer não somente
à obra de historiadores individualizados, mas também ao registro coletivo e
anônimo que chamamos de mito. Se este não nos fornece dados objetivos
(datas, nomes concretos, locais específicos), de outro lado transmite informa-
ções mais sutis e de certa forma qualitativamente mais importantes sobre insti-
tuições (ensaios n. 3,4,5.6 e 9), valores (ensaios n. ''1, 6, 7, H, 9,10, 11 e 12),
hábitos (ensaios n. 3, 6. H, 11 e 12), sentimentos (n. 3, 5,6,7, H, 11 e 12), e
crenças (ensaios n. -i, ), 6, H, 9, 10, 11 e 12) etc. Enquanto as formas historio-
gráficas tradicionais liam aquele tipo de narrativa como meras fantasias do
passado, o historiador dos imaginários encontra ali dados relevantes sobre a
realidade interna e externa da sociedade estudada.
A história da arte, por sua vez, através da análise da documentação icono-
gráfica, nos permitirá alcançar um nível de compreensão de certos mitos que
não seria possível somente com fontes escritas (ensaios n. 3, 5, 9 e 10). Mas
não se trata naturalmente da história da arte tradicional, predominante do
século XVI a meados do XX, voltada mais ~lS questões formais e estilísticas, e
sim de uma história que considera a produção artística por seu conteúdo cultu-
ral (na linha de Ahy \Xfarburg e Erwin Panofsky) e social (como fizeram Arnold
Hauser e Pierre Francastel). Ou melhor, uma história que a partir disso possa
ver nas imagens elaboradas sobre qualquer suporte - afresco (ensaios n. 3
e 9), tapeçaria (ensaio n. 5), e escultura na pedra (ensaio n. 10) - testemunhos
importantes da sensibilidade de uma época.
Portanto, história que deve verificar as articulações profundas entre
imagem e imaginário. E que deve para tanto ultrapassar o conceito medieval
que via imago como apenas a realização de uma certa forma em certa matéria.
Ames de serem concretizadas, as formas são íntuídas, pensadas, e concebidas
mentalmente, portanto imaginadas. E nesse processo entram tanto os dados
específicos da sociedade em questão, elementos da curta duração histórica,
quanto os dados da mentalidade, elementos da longa duração. Por isso não
seguimos Jean Wirth, quando ele vê a imagem medieval como "um fenômeno
de natureza lógica e semiológíca, mais que de natureza perceptiva e psi-
cológica". Como nâo existe uma lógica absoluta e universal, mas apenas rela-
tiva e histórica, os campos semiológico, teológico e psicológico de uma mesma
sociedade não se opõem, Eles interagern, se completam. É o que as mitolo-
gias constantemente nos lembram.
A antropologia também é fundamental para esse estudo, principalmente
porque ao trabalhar sem fontes escritas fornece ao historiador, sobretudo de
períodos mais recuados, exemplos de como tentar conhecer uma sociedade a
partir de relatos orais (ensaio n. 6) e de documentos visuais (ensaios n. 3, 5, 9
e 10)'. Os modelos antropológicos é que levam igualmente os historiadores a
pensar nos seus objetos não apenas em termos ele linearidade cronológica, mas
também de sincronia. E, portanto, não mais em termos de recortes temporais
e espaciais rígidos, mas ele comparativismo para entender as semelhanças e
especificidades de cada fenômeno histórico (ensaios n. 1, 2, 8, 9 e 10). É a
antropologia ainda que ensina a história a buscar a unidade da espécie huma-
na sob a variedade de formas culturais através das quais ela se expressa.
Uma das decorrências disso é o interesse maior pelos processos de acul-
turação (ensaios n. 1, 2, H, 9 e 10) do que pelas relações de domínio político
ou econômico valorizadas pela história tradicional. Outra decorrência é, seguin-
do Lévi-Strauss, buscar os fundamentos inconscientes da sociedade estudada
(ensaios n. 4, 6, 7, 9 e 12). Além disso, é baseando-se nos "estudos de caso"
e "pesquisas de campo" dos antropólogos que os historiadores recorrem il
"micro-história", que permite passar do particular ao geral (ensaios n. 3, 5, 6,
9 e 10). Ou seja, passar a aceitar que, em termos de tempo e de espaço, é tão
importante o objeto muito amplo quanto o muito restrito. Em suma, percebe-
se nas últimas décadas que não há uma clara separação epistemológica entre
história e antropologia: Edward Evans-Pritchard considerou as duas ciências
"inc.lissociáveis", enquantoIack Gooc.ly propôs o fim da "grande divisão" entre
sociedades primitivas e sociedades civilizadas, entre tradição oral e escrita.
É preciso ainda recorrer ~l sociologia, pois fundamentalmente ela lembra
ao historiador que a cultura consiste em padrões abstratos e concretos que são
criados, desenvolvidos e transmitidos na e pela interação social. Por isso mesmo
toda cultura produz sistemas (como a mitologia) e subsistemas que expres-
sam, reforçam ou criticam a organização social que os enquadra e fora da qual
não poderiam ter surgido. "Cultura é o qu<::se aprende na socialização", diz
Harry Johnson. Ora, os relatos míricos constituíram-se num dos estágios mais
importantes do processo de socialização das comunidades pré-índustriais. E,
temporalmente, num de seus primeiros estágios, pois, como observou Redfiekl,
é pela tradição que se transmite a cultura; e, devemos acrescentar, mito é a
tradição por excelência.
Diante disso, a sociologia mostra que o estudo de mitologias não é ape-
nas um olhar sobre o exotismo daquelas sociedades, e sim uma visão radio-
gráfica delas. Devem-se levar em consideração as mitologias para se apreender
profundamente diversos aspectos do comportamento social daqueles grupos.
Para o historiador, é especialmente importante o faro de a sociologia valorizar
no mito o conteúdo coletivo - grupos funcionais (ensaios n. 5, 6 e 11), políti-
cos (ensaios n. 3. "1 e 6), econômicos (ensaio n. fi), religiosos (ensaios n. 10 e
11), e culturais (ensaios n. 7 e 12) - em detrimento do individual, das "grandes
personagens", e dos "fatos excepcionais".
Também são importantes certos instrumentos da lingüística, cuja análise
do discurso revela as estruturas profundas da fala. Isto é, os dados que se
manifestam ~l revelia do autor, e que por isso mesmo nos informam sobre
valores e sentimentos da época estudada. Informação qualitativamente impor-
tante, pois é transmitida sem que o agente histórico tenha tido consciência ou
intenção de fazê-to. Com efeito, aquilo que cada época considera "realidade"
nada mais é do que produto de sua percepção cultural. Assim, para tentar dis-
secá-Ia deve-se começar pela linguagem, "o faro cultural por excelência" segun-
do Lévi-Strauss. No que diz respeito às sociedades arcaicas, deve-se começar
pelos mitos: Max Müller mostrou há mais de um século o estreito paralelo
existente entre a formação elas línguas e a formação dos mitos.
\
26
Se Saussure tem razão ao afirmar que "é o ponto de vista que cria o obje-
to", a análise lingüística do discurso mítico pode aproximar-nos dos mecanis-
mos culturais e psicológicos mais profundos da sociedade em questão. É por
isso que devemos considerar o subtexto (ensaios n. 6 e 11), o implícito (ensaios
n. 2 e 12), o não-dito (ensaios n. 4 e 7), as lacunas (ensaio n. '8), as incoe-
rências (ensaios n. 6 e 7), e os atos falhos (ensaio n. 3). Na análise de uma
rede narrativa como a mitologia medieval, é preciso também levar em conta
a intertextualidade (ensaios n. 2,7, fi e 11). Mas, apesar de a linguagem fala-
da ser o mais abrangente dos sistemas semiológicos, é importante lembrar,
como nos ensina Izidoro Blikstein, que existe uma semiose para verbal ligada
a um pensamento visual independente de estruturas lingüísticas (ensaios n.
3, 5, 9 e 10).
Por fim, a psicologia também pode fornecer ao historiador em geral e
ao dos mitos em particular técnicas e procedimentos interessantes. Mas aqui
o entendimento interdisciplinar é mais delicado, mais defendido no plano
teórico do que efetivamente praticado. No prefácio de Totem e Tabu, de 1912,
Freud se propunha estabelecer um elo entre psicanalistas, de um lado, e etnó-
Iogas, lingüistas e folclaristas de outro, mas não chegou a explicitar o acor-
do com historiadores. Em 193H Lucien Febvre, em um célebre artigo, defendia
a aproximação entre psicólogos e historiadores, e anos depois Marc Bloch
reconhecia que "os fatos históricos são, na essência, fatos psicológicos". Contudo
o índice dos Annales de 1929 a 1951 registra apenas 2 notas sobre psicologia
(em 1931 e 1957), contra 9 de folclore, 11 de sociologia, 21 de economia, 33
de geografia. Se em 197L} Jacques Le Goff falava de "uma fronteira onde his-
toriadores e psicólogos deverão um dia se encontrar e colaborar", onze anos
depois ele se mostrou mais reticente e afirmou recear que o historiador possa
cair no "irracional e no psicanalítico, dominado pela ideologia suspeita dos
arquétipos".
A questão da pertinência dos métodos psicológicos aplicados à história
fica ressaltada pela dificuldade de se saber qual corrente é mais adequada ao
material e aos objetivos do historiador. A psicanálise de Freud revela-se muito
densa e promissora, mas ainda não resolveu satisfatoriamente o problema da
aplicação de métodos da psicologia individual à psicologia social (ensaio 11.
3). A psicologia analítica de Jung oferece uma hipótese interessante para se
pensar fenômenos de longa duração histórica, a do inconsciente coletivo
(ensaios n. 7 e 12), mas se ressente de aplicações muitas vezes pouco rigo-
rosas. A psico-história norte-americana tem a positiva pretensão de "explicar
a história pelas motivações humanas e de explicar as motivações humanas
pela história", mas para isso aplica ;l pesquisa documental um processo intui-
tivo que se dá através do inconsciente do historiador e que torna a utilização
do método difícil e problemática.

Os textos aqui reunidos apresentam portanto uma clara unidade historio-


gráfica, mas não formal, já que originalmente apareceram em diferentes momen-

~_ ...
'n
-I
tos e em diferentes publicações. Para introduzir essa unidade, procedemos a
certas modificações: uniformizamos as referências bibliográficas, corrigimos
omissões e erros gráficos, eliminamos certas repetições entre os artigos, e
traduzimos os ensaios escritos em outra língua. Aproveitando a oportunidade,
algumas vezes acrescentamos uma ou outra indicação bibliográfica que, por
desconhecimento ou por economia de espaço, havíamos omitido nas versões
originais. Algumas vezes procedemos a pequenas mudanças de redação na
busca de maior clareza e precisão de pensamento. Mas conscientemente man-
tivemos o caráter original dos trabalhos aqui reunidos: eles não são estudos
definitivos e sim ensaios, tentativas de reflexão sobre temas até agora pouco
tratados pela historiografia. Assim, a finalidade deles é instigar, abrir debates,
propor caminhos, mais do que fornecer interpretações pretensarnente "corre-
tas" e fechadas.
Naturalmente um trabalho desse tipo, cujas várias partes foram apre-
sentadas em cursos, seminários e congressos, deve muito ~IS instituições e pes-
soas envolvidas nesses encontros, durante os quais pudemos beneficiar-nos
dos comentários, das questões e do estímulo de diversos amigos, colegas e
alunos. Mas queremos agradecer especialmente ao Departamento de História
da Universidade de São Paulo e Fapesp, que nos possibilitaram uma longa
à

estada de pesquisas na França, bem como a Jacques Le Goff e Jean-Clauc.le


Schmitt, graças a quem aquela estada pôde revelar-se muito proveitosa. Ainda
que dedicado a outro trabalho, foi durante aquele período que aproveitamos
para escrever alguns dos ensaios aqui apresentados, e para organizar e rever
o conjunto da coletânea.

\
MITO E HISTÓRIA
MEU, TEU, NOSSO
REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO
DE CULTURA INTERMEDIÁRIA 1

Um dos temas que mais têm prendido a atenção das ciências humanas
nos últimos tempos é o relativo ~l cultura popular. Mas o que se deve enten-
der exatamente por essa expressão? Quais as características dessa forma cul-
rural? Quais as modalidades e implicações da relação entre ela e outros tipos
de manifestação cultural? Qual a sua gênese e o seu processo de transfor-
mação? Antropólogos, sociólogos, historiadores, folcloristas, lingüistas e psicólo-
gos têm-se debatido com essas e muitas outras questões. Tarefa difícil, pelo
fato de aquele objeto de estudo estar muito próximo, direta ou indiretamente
fazendo parte do cotidiano do pesquisador.
Chamam a atenção fenômenos como misticismo, magia, ritos demonía-
cos e saber esotérico, que não estão presentes apenas em sociedades do pas-
sado ou do presente consideradas "primitivas", sendo claramente perceptíveis
no mundo ocidental que pretensamente teria superado essa "fase" de seu de-
senvolvimento histórico. Por exemplo, em janeiro de 1989 uma pesquisa 1 reve-
lava que 37'YiJdos franceses acreditavam na existência do Diabo, o dobro da
porcentagem de 1968. E cerca de 5 milhões de pessoas naquele país acredi-
tavam viver, ao menos em certos momentos, sob uma influência demoníaca
direta. Na Itália a situação é semelhante: 46'),ú da população estão convenci-
dos da existência de Satanás.
Manifestações típicas de países latinos e católicos? Nos Estados Unidos
uma sociedade internacional de feiticeiros luciferinos, que promove missas

I. /.e Nourcl O!Jserualellr, n. 1 36::;, dez. 1990, pp. ')-6 ,,13.


32
negras, agrupa 2 milhões de adeptos, além de meio milhão na Inglaterra.
Manifestaçôes de uma cultura "popular", de gente atrasada? Os "possuídos"
franceses não são, contudo, velhos camponeses, mas sobretudo jovens citadi-
nos. Os italianos que crêem no Diabo localizam-se mais no Norte industrializa-
do que no Sul rural e comparativamente pobre. Os feiticeiros norte-americanos
e ingleses não são "imigrantes ignorantes", mas majoritariamente pessoas de cer-
tas posses e educação.
Acrescente-se a isso o desenvolvimento de vários fenômenos sociorreli-
giosos de massa considerados legítimos em suas sociedades - como os gru-
pos evangelistas, a Teologia da Libertação ou o islamismo radical - para
entender o forte interesse dos estudiosos pela "religião popular". Os trabalhos
se multiplicaram nos últimos anos, sem haver, no entanto, consenso sobre o
significado exato de "popular'<. Por isso, muitas vezes continua-se a pensar
numa oposição erudito/popular, correspondente a racionalidade/afetivídade
e teorízação/vívencíação, como se cada característica fosse exclusividade ele
um grupo social ou de um povo.
Postura que em suma prolonga aquela ela antropologia elo começo elo
século, que trabalhava com os conceitos de "mentalidade racional" e "menta-
lidade pré-lógica">. Curioso prolongamento, pois há muito as críticas e autocrítí-
cas a essa interpretação? foram-se impondo, acompanhando as mudanças de
relação entre países colonizadores e colonizados. Processo interessante, ade-
mais, para se examinar as influências recíprocas entre política e intelectualida-
de: às vezes a antropologia fornecia argumentos para a descolonização, às
vezes esta levava a antropologia a rever alguns de seus conceitos.
A constatação do simplismo elos sistemas binários civilizado/primitivo,
racional/irracional, histórico/mítico, religioso/mágico e outros elo mesmo tipo
provocaria importantes reflexões nas ciências humanas desta segunda metaele
do século. Acompanhando, aliás, a revisão epistemológica que ocorria em ou-
tras áreas elo conhecimento e que, em suma, revela os limites elo modelo carte-
siano. Como observou Blanché, um conhecimento dito objetivo é apenas aque-
le que é menos subjetivo que outros. A historiografia não ficou imune a tudo
isso e assumiu a subjetividade de seu discursov. Contudo, mais do que um
simples acompanhamento de novas tendências científicas, esse passo revela
a essência da historiografia.

2. I'. A. Is.unbcrr, "Rclígton Populairc, Sociologic, l listoirc cr I'olklorc", em Arcliiucsdcs scicnccssoctales


eles reltgions. /13,1917, pp.161-1HIJ, c 1t6,197H, pp.lll-1n, reSU111L'
os principais trabalhos.
J. Sobretudo I.. l.óvy-l íruhl, t.a Mentatn« priniitiue, Paris, Alcan, 1922; I.A1IIe [nimiticc, Paris, Alcan,
1927.
'L M. Lccnhardt, f)o Kanio. Person ne et Mvtb« dans lc monde tnélanésten. Paris, Gnllimard, 191t7; IVI.
Lccnhardr (cd.), I.es Carnets de l.ucien l.éov-Brubl, Paris, PUI'. 191t9.
5. I{. Blanché, l.a Science pbvsique c! Ia réalité, Paris, PUI', 19IJH,p.132.
6. J I.c Goft, "Prófacc". em I'l1M,-1. p. 15; c. Duby, "Entrevista a Custódia Domingucs", jornal de
Letras. Lisboa, 27 111ar.1990, p. 16.
33
De fato, ela não é apenas um instrumento de análise do passado, mas
também uma produção cultural do seu presente, marca da portanto pelas
necessidades e expectativas desse presente. Daí por que é preciso "observar
o observador:". O surgimento e desenvolvimento da chamada história das
mentalidades nas últimas décadas ilustra bem esse processo. As contradições
da segunda metade do século XX - mais acentuadas do que as dos séculos
anteriores, devido ao poder controlador e destruidor que o homem alcançou
sobre a natureza e sobre si próprio - tornaram necessárias e criaram as
condições para uma análise do passado voltada para o homem interior. Sem
desconsiderar a vida material, com a qual está estruturalmente articulada, é a
história dos sentimentos que se torna o objeto central de estudo. As ansiedades,
as angústias, os medos, as esperanças, os sonhos, as utopias, passam a ser os
interesses básicos do historiador.
Isso deslocou o enfoque da história religiosa tradicional, centrada nas
instituições e personalidades eclesiásticas, passando-se a considerar mais o
sentimento religioso que a religião. Para minimizar a polarização erudito/popu-
lar, que contudo adota, Manselli lembra a "unidade do fato religioso'f', No
entanto, ainda se esquece com freqüência de que o ser humano é um todo
no qual razão e emoção, eventos da realidade vivida externamente e da vivi-
da internamente estão sempre presentes ao mesmo tempo. Por isso propuse-
mos que "religiosidade popularnão é aquela que se identifica com um grupo
social, ou que teve origem nele, mas sim aquela que nas suas manifestações
popularizou elementos de diversas procedêncías'v.
Ao perceber as dificuldades em se analisar os fenômenos religiosos isola-
damente, a hístoriografia passou a se preocupar com as questões culturais,
mesmo porque "a religião popular é um momento essencial da cultura popu-
lar"!". Ou seja, os sentimentos religiosos fortemente enraizados não podem ser
alcançados a não ser através de suas expressões culturais. Não somente uma
cultura de elite, livresca, construída em alguns locais especiais por algumas
grandes personalidades, mas também e sobretudo uma cultura dos campos, das
praças, das tavernas, das estradas, cultura oral, anônima, na qual todos são ela-
boradores, receptores e transmissores. Cultura "popular", portanto. Para esse
estudo o historiador recorre a um instrumental variado, tomado de empréstimo
ao sociólogo, ao lingüista, ao psicólogo, ao folclorista, ao antropólogo. E se vê
assim envolvido nas águas agitadas da discussão sobre o conceito de cultura 11.

7. G. Duby, "l.c Mental ct lc foncríonncmcnt ctcs scicnccs humaincs", /.'Arc. 19711,j1 92.
8. li. Mansclli, t.a Neli.~i<lIl populaire ali Moyen Age, Paris. Vrin, 1975, j1. 16.
<). 11. Franco júnior, Peregrinos, M()//ges e Guerreiros. São Paulo, l Iucitcc, 1990, j1. 111.

10. C. Prandi. "Rcligior: cr classes subalrcrncs cn lralic", C111 Arcbiues eles sciences sociales rlcs religions.
'i3, 1077, p. 3.
11. Cf. as muira« dcfinicôcs rcpcrtoriadas j10r A. 1..Krocbcr c C. Kluckhohn, Cult nrc: A Crittcal Reutetu
o/CcJl/C(1)ISand Definitions, Cambridge (Mass.), IIarvard Univcrsirv Prcss, 1952.
32
negras, agrupa 2 milhões de adeptos, além de meio milhão na Inglaterra.
Manifestações de uma cultura "popular", de gente atrasada? Os "possuídos"
franceses não S~lO, contudo, velhos camponeses, mas sobretudo jovens citadi-
nos. Os italianos que crêem no Diabo localizam-se mais no orte industrializa-
do que no Sul rural e comparativamente pobre. Os feiticeiros norte-americanos
e ingleses não S~lO "imigrantes ignorantes", mas majoritariamente pessoas de cer-
tas posses e educação.
Acrescente-se a isso o desenvolvimento de vários fenômenos sociorreli-
giosos de massa considerados legítimos em suas sociedades - como os gru-
pOií evangelistas, a Teologia da Libertação ou o islamismo radical - para
entender o forte interesse dos estudiosos pela "religião popular". Os trabalhos
se multiplicaram nos últimos anos, sem haver, no entanto, consenso sobre o
significado exato de "popular'<. Por isso, muitas vezes continua-se a pensar
numa oposição erudito/popular, correspondente a racíonalídade/afetívídade
e teorízação/vívenciação, como se cada característica fosse exclusividade de
um grupo social ou ele um povo.
Postura que em suma prolonga aquela da antropologia elo começo do
século, que trabalhava com os conceitos de "mentalidade racional" e "menta-
lidade pré-lógica'". Curioso prolongamento, pois há muito as críticas e autocríti-
cas a essa interpretação" foram-se impondo, acompanhando as mudanças de
relação entre países colonizadores e colonizados. Processo interessante, ade-
mais, para se examinar as int1uências recíprocas entre política e intelectualida-
de: às vezes a antropologia fornecia argumentos para a descolonização, às
vezes esta levava a antropologia a rever alguns de seus conceitos.
A constatação cio simplismo cios sistemas binários civilizado/primitivo,
racional/irracional, hisrórico/míríco, religioso/mágico e outros do mesmo tipo
provocaria importantes reflexões nas ciências humanas desta segunda metade
do século. Acompanhando, aliás, a revisão epistemológica que ocorria em ou-
tras áreas do conhecimento e que, em suma, revela os limites do modelo carte-
siano. Como observou Blanché, um conhecimento dito objetivo é apenas aque-
le que é menos subjetivo que outros. A historiografia não ficou imune a tudo
isso e assumiu a subjetividade de seu discursov. Contudo, mais do que um
simples acompanhamento de novas tendências científicas, esse passo revela
a essência da historiografia.

2. 1'.A. iS:II11Í1err,"Rcligion Populairc, Sociologic, I listoirc ct lolklorc", evn Arcbiucs dessctencessociales


eles reltgtons, 'd, 1917, rp. '161-1H'I, e ~6. 197H, rp. 1 11-1n, resume os principais rrabulhos.
3. Sobretudo L. Lévy-Hruhl, 1.(/ Mentatué pnmiüoe, Paris. Alcan, 1922; I.Al1Ie primitioe. Paris, AIC:lI1,
1927.
ii. M, Lccnhardt, 00 K(/l1Io: Person ne et 1\4)'Ibe dans le monde ntélanésien, Paris, Gallimurd, 19-17: M.
Lccnhurdr (cd.), l.es Carnets de Lucien Léuv-Hrubl, Paris, l'UI', '19~9,
). H. Blanché, t.a Science pbysiqiu: ei Ia réaltté, Paris, PU 1', 19~!:l, p, 132.
6. J. l.c Goff, "Prélucc". em 1'liM/l , p. 1 S; C. Duby, "Iinrrcvisra a Custódia Domingucs", Jornal de
Letras, Lisboa, 27 mar. 1990, r. '16.
33
De fato, ela não é apenas um instrumento de análise do passado, mas
também uma produção cultural do seu presente, marcada portanto pelas
necessidades e expectativas desse presente. Daí por que é preciso "observar
o observador?", O surgimento e desenvolvimento da chamada história das
mentalidades nas últimas décadas ilustra bem esse processo. As contradições
da segunda metade do século XX - mais acentuadas do que as dos séculos
anteriores, devido ao poder controla dor e destruidor que o homem alcançou
sobre a natureza e sobre si próprio - tornaram necessárias e criaram as
condições para uma análise do passado voltada para o homem interior. Sem
desconsiderar a vida material, corri a qual está estruturalmente articulada, é a
história dos sentimentos que se torna o objeto central de estudo. As ansiedades,
as angústias, os medos, as esperanças, os sonhos, as utopias, passam a ser os
interesses básicos do historiador.
Isso deslocou o enfoque da história religiosa tradicional, centrada nas
instituições e personalidades eclesiásticas, passando-se a considerar mais o
sentimento religioso que a religião. Para minimizar a polarização erudito/popu-
lar, que contudo adota, Manselli lembra a "unidade do fato religioso'?', No
entanto, ainda se esquece com freqüência de que o ser humano é um todo
no qual razão e emoção, eventos da realidade vivida externamente e da vivi-
da internamente estão sempre presentes ao mesmo tempo. Por isso propuse-
mos que "religiosidade popular não é aquela que se identifica com um grupo
social, ou que teve origem nele, mas sim aquela que nas suas manifestações
popularizou elementos de diversas procedêncías'v.
Ao perceber as dificuldades em se analisar os fenõmenos religiosos isola-
damente, a historiografia passou a se preocupar com as questões culturais,
mesmo porque "a religião popular é um momento essencial da cultura popu-
lar"!". Ou seja, os sentimentos religiosos fortemente enraizados não podem ser
alcançados a não ser através de suas expressões culturais. Não somente uma
cultura de elite, livresca, construída em alguns locais especiais por algumas
grandes personalidades, mas também e sobretudo uma cultura dos campos, das
praças, das tavernas, das estradas, cultura oral, anônima, na qual todos S2l0 ela-
boradores, receptores e transmissores. Cultura "popular", portanto. Para esse
estudo o historiador recorre a um instrumental variado, tomado de empréstimo
ao sociólogo, ao lingüista, ao psicólogo, ao folclorista, ao antropólogo. E se vê
assim envolvido nas águas agitadas da discussão sobre o conceito de cultural i .

7. C. Duby, "Lc Mental ct lc toncrtonncmcnr eles scicnccs humaincs", /.'/lre.1978, p 92.


8. R. Mansclli, l.a Ne/(t;iolljJojJU/aire (/1/ Moyen Age, Paris, Vrin, 1975, p. '16.
'). 11. Franco júnior, Peregrtnos, Mong(!s (! Guerreiros, São Paulo, l lucitcc, 1990, p, ~·I.
10. C. Prundi, "Rcligion cr classes suhalrcrncs cn ltalic", <:111 Arcbtces des sciences sociales eles religions,
'í3, 1077, p. 3.
li. Cf. as Illuitas dcfinicôcs rcpcrroriadas por A. I.. Krocbcr c C. Kluckhohn, Cuh nre: A Critical kouicu:
fi!' Concepts and f)(ijhliliol1s, Cambridgc (Mass.), I larvard Univcrsiry Prcss, 19'52.
Mas percebe então claramente que cultura erudita e cultura popular não podem
ser vistas como elementos opostos e impermeáveis.
É verdade que a importância das trocas culturais é enfatizada desde
Bakhtin!-, e sobretudo desde o conceito de circularidade cultural definido por
Ginzburgti e utilizado por exemplo por Gurevichl" e Mulletl>. Mas isso resolve
insuficientemente a questão, por continuar a pensar apenas em dois pólos.
Parece-nos preferível considerar a relação entre níveis de cultura e grupos
sociaisl''. Contudo nem sempre é possível, especialmente para períodos mais
antigos ou de documentação mais lacunar, () estabelecimento minucioso e pre-
ciso dos segmentos sociais e da produção cultural de cada um deles, bem
como das suas interações. Nesses casos, talvez se possa continuar a trabalhar
com um recorte sociológico mais grosseiro - mesmo porque muitas vezes o
corte social não corresponde ao corte cultural.'? -, desde que valorizando a
área de intersecção, e não apenas a troca isolada de alguns fragmentos cultu-
rais. O que naturalmente altera o sentido de cultura "popular".
A utilização desse termo sempre foi problemática, pois, como apontou
Van Gennep!", ele é ambíguo por ter três acepções: indica o que foi criado
pelo povo; o que agrada ao povo independentemente de sua origem; o que
é considerado grosseiro e ilógico e está ligado ~IS camadas inferiores da popu-
lação. Mesmo se excluirmos esse último significado, obviamente preconcei-
tuoso, a ambigüidade continua presente. Como já se observou com razão, toda
definição de cultura popular tem um componente erudito!". Podemos porém
atenuar esses dois problemas se pensarmos em cultura popular como aquela
praticada, em maior ou menor medida, por quase todos os membros de uma
dada sociedade, independentemente de sua condição social. Isto é, nessa
hipótese, cultura popular seria o denominador cultural comum, o conjunto de
crenças, costumes, técnicas, normas e instituições conhecido e aceito pela
grande maioria dos indivíduos da sociedade estudada.
O termo perde assim sua forte conotação sociológica para ganhar um
forte sentido antropológico. No entanto continuam presentes nessa análise

12. M. Bakhtin, /1 Cultura Popular na Idade Média e 110 kenascitnento, (tr.id.), São Paulo, l lucitcc-
L1nB, 19107,(cd. orig. 1965).
13. C. Ginzburg, () Queijo e os \'e/'II/I'S, (trad.), São Paulo, Cia. das Letras, 1981, p, 1:\.
11. A. Gurcvich, i1lediem!IJo}!u!ar Cult ure, Cambrídgc, Paris, CLlP-:VISII.19HH.
15. M. Mullct, IJo}!lI/ar Cult u re and Popular Protest 1/1 Late Ml'dil'f}{i! a nrl Earlv Madern tiurop«,
Iscckcnbam, Croom IlcJm,1987.
16. Niceau» de culture 1'1 groupes SOCltiU.\', Paris, i\louton,1967.
17. te Goff, "Culturc clóricalc ct traditions folkloriqucs dans ia civilisation mérovingicnnc", em Nircau»:
ele culture, pp. 21-32 (reproduzido em l'iIM/I, pp. 22j-235); 1'. Burkc, I'OjJl/ÍtIl' eU/IIII'1' i/I f<'{/I'Í)'

Modern Europ«, Londres, Templo Smith, 197H, p. 28; Mullct, ojJ. cit., Capo 2.
18. A. Van Gcnncp, Mantte! defolhlorefrançats contemporatn. (') vols.), Paris, l'icard, 1937-1958, \'01.
I, p. 'U.
I'). M. Ccrrcau, D. julia e J. Rcvcl, "La Bcauté du mort: Lc Conccpt de culturc populaírc", Poliiique
aujourd btt], dez. 1970, pp. 12-11.
35
áreas culturais específicas, grupais, classistas, sociais enfim, que se inter-rela-
cionam exatamente porque têm um imenso repertório de pontos comuns. E
é através dessa área de intersecção que determinados pontos podem migrar
num sentido ou noutro, alargando essa zona de identidade grupal (étnica, reli-
giosa, lingüística, artística etc.) e de intermediação cultural (a partir da qual
ocorrem eventualmente mudanças sociais). Diante disso, talvez melhor que a
consagrada e ambígua expressão "cultura popular" seja chamarmos aquele
denominador cultural comum de cultura intermediária. "Intermediária" quali-
tativamente, por estar colocada entre a cultura de elite e a dos demais segmen-
tos; "intermediária" espacialmente, por ser o ponto de convergência de dados
provenientes dos pólos culturais. No seio de um mesmo grande conjunto
histórico-geográfico, os processos de aculturação tendem a ser facilitados pela
presença de várias similitudes entre suas culturas intermediárias. Mesmo entre
sociedades distanciadas no espaço e nas suas trajetórias históricas, existem
similitudes entre as respectivas culturas intermediárias - devido ao substrato
profundo da psicologia coletiva, a mentalidade - ainda que possam ser enor-
mes as diferenças entre suas culturas de elite.
Em função disso, já se pensou, mesmo para a Europa medieval e moder-
na, na ocorrência de uma aculruracão interna-v. Ao menos para a Idade Média,
porém, os contatos culturais elite-massa mostram que, mais do que uma acultu-
ração, ocorreu uma difusão e reínrerpretação de elementos saídos do núcleo
comum da cultura intermediária-". o contato com bizantinos e muçulmanos,
por outro lado, deu-se o que Wachtcl chamaria de "aculturaçào espontânea",
sobretudo na península Ibérica e na Sicília, salvo curtos períodos de "acultu-
ração forçada". É verdade que os resultados mais visíveis e espetaculares
daquele primeiro processo - influência da arte bizantína, traduções ela escola
de Toledo, redescoberta ocidental do aristotelismo, adoção de conhecimen-
tos científicos orientais etc. - deram-se em relação à cultura clerical, mas com
ret1exos também na cultura simples.
O contraste na intensidade de absorção daquele material por parte dos
vários grupos sociais deveu-se mais ~l presença de instrumentos diferenciados
do que a valores, interesses ou expectativas divergentes. Por outro lado, a
possibilidade de migração de uma parte daquele material da cultura clerical
para a simples, e vice-versa, não se deveu ~l existência de "anfíbios culturais'<',
de indivíduos que por pertencerem aos dois ambientes realizavam as trocas

20. N. \V"ciHc!, "I.'Acculturation", cm ]. l.c Goff e 1'.Nora (di r.i, l-rtir« d" lbistoire: nonoeauxproblêmos,
I'aris, Gallnnard, 1971, pp. lIJ3-H'Í.
21. Duby defende a cxistênciu de um.i '·vlligarii'.a~·~ín culturul" de modelos arisrocr.iricos, mas a partir
de um conceito restrito de cultura; adcmaís, apesar de não valorizar o fenômeno, reconhece que
ocorria o processo inverso, com tra(os (11 "cultura popular' sendo absorvidos pela cultura aris-
tocr.itica: "La Vulg.uisation dcs modeles culrurcls duns Ia société Iéodalc", em Niuean» de culture,
pp. 33-11 (reproduzido em l kunmes e! structu res du Moveu Ilge, Paris. Mouron, 1973, pp. 299-3(8).
22. lsurkc, ojJ. cit., p. 70.
36
culturais. Sem perceber aspectos familiares nos elementos culturais levados
até ele, cada grupo social pouco teria assimilado. Existiam "anfíbios" porque
havia uma área cultural comum, e não o inverso. Um bom exemplo disso
temos na obra de Honório Augustodunensis, na primeira metade do século
XII, sobretudo no célebre Elucidarium, cuja popularidade decorria de seu
recurso freqüente a dados e narrativas que sensibilizavam a maior pane de
seus leitores e ouvintes exatamente por provirem da cultura interrnediária-õ.
Desse ponto de vista, as áreas culturais específicas em cada sociedade
deixam de ser vistas como auto-suficientes, como se era muitas vezes levado
a pensar pelas análises tradicionais. Na verdade, é raro que ocorram influêri-
cias diretas entre aquelas áreas, pois geralmente as adoções, adaptações, defor-
mações e mesmo negações dão-se a partir do material que é recolhido na
zona intermediária. Só se assimila, se modifica ou se critica aquilo que se
entende ou se pensa entender. Aquilo que não é estranho. Aquilo que faz
parte do universo comum, da cultura de todos. Da cultura intermediária enfim,
espécie de Ieoiné cultural que fornece a matéria-prima trabalhada de forma
própria por cada segmento social.
Da mesma forma que não se pode deixar de considerar as particulari-
dades de cada expressão cultural, não se pode permitir que estas desviem
nossa atenção do núcleo comum. A melhor análise é aquela que leva em conta
tanto as áreas periféricas quanto a central, isto é, a dinâmica das relações entre
elas. Assim, por exemplo, é inadequado tentar distinguir heresias eruditas de
heresias populares e pensar que a maior parte cios grupos heréticos se for-
mou a partir das prédicas de um indivíduo letrado e dotado de conhecimen-
tos teológicos que lhe permitiam criticar a Igreja da época>. Toda heresia é
definida como tal em relação a uma ortodoxia, em cuja formulação, por mais
erudita que seja, entraram inúmeras componentes absorvidos da cultura inter-
mediaria ao longo de sua formação histórica.
De fato, heresia nada mais é que uma seleção (do grego bairesis, "esco-
lha") de elementos culturais diferente daquela feita pela ortodoxia. Daí ser
secundário para uma história cultural e dos imaginários (mas não para uma
história sociológica) determinar a condição intelectual dos indivíduos que fize-
ram aquela seleção, heréticos ou ortodoxos. O francês Pedra Valdo e o italia-
no Francisco de Assis foram contemporâneos, eram de uma mesma origem
socioeconômica, tinham espiritualidades comparáveis, mas para a Igreja um
foi herege, e o outro santo. A heresia catara combatia a sociedade feudal e a
Igreja romana, fazendo-lhes uma crítica que rejeitava muitos cios valores delas,
mas que também revelava preocupações semelhantes equacíonadas de forma

23. Y. Lcfcvrc, L'Iilucidaritnn et Ies t.nciclaires, Paris, Boccarcl, 1951; Gurcvich, op. cit., Caro 5.
21. 11. Grundmann, "Ilérésics savanrcs cr hérésics populaircs ali Moycn Age", em l Iérésies et societés
clans I Europ« pré-industriolle, Puris, Mouton, 1968, rr. 209-2H; G. l.ccf, "I lérésic savanrc ct hérésic
populairc dans lc bas Moycn Age", em ibtdem, pp. 219-225.
37
diversa. Foi o caso, por exemplo, da sexualidade, da pureza do clero, da salva-
ção da alma. Se entre heresia e ortodoxia sempre existiu uma fronteira pouco
clara, lima zona cinzenta, é porque esta correspondía à delimitação movediça
entre cultura intermediária e cultura de grupos sociais.
Exemplo talvez mais elucidativo sobre a relação entre as áreas culturais,
temos na evangelízação das massas camponesas medievais. Se () clero aco-
lheu dados culturais pré-cristãos, difundidos no seio daquela categoria social,
n~IOfoi apenas como estratégia de conversão, mas porque esses dados estavam
presentes também no próprio ambiente cultural eclesiástico. É preciso sem-
pre distinguir o cristianismo no seu papel de ideologia e no seu papel de
religião. Em relação ao primeiro, a cultura folclórica era claramente oposta -
e nesse caso aculturação e imposição ideológica tornavam-se um mesmo
processo -, e a utilização de fragmentos dela pelo cristianismo era uma forma
consciente de dominá-Ia, fenômeno tanto do campo na época merovíngiaõ
quanto dos mendicantes nas cidades dos séculos XIII-XIV26 Em relação ao
segundo, cristianismo e folclore confundiam-se, faziam parte de um mesmo
conjunto de concepções e sentimentos, daí uma inconsciente identificação
profundas".
Por isso a definição de Gurevich - cultura popular medieval é O'avisão
de mundo que emerge da complexa e contraditória interação entre () reserva-
tório do folclore tradicional e o cristianismo"28 - precisa ser retocada em dois
pontos. Inicialmente seria fundamental explicitar que a "contradição" da intera-
ção cultura folclórica-cristianismo é apenas um aspecto dessa relação. Depois,
seria interessante marcar o caráter de não-identificação sociológica do termo
"popular". Como lembra mesmo o grande medievalista russo, o uso de ervas
por parte da "medicina folclórica" era aprovado pela Igreja se acompanhado
por preces e condenado se acompanhado por encantações-''. Isto é, a neces-
sidade do ato mágico era aceita por todos (portanto, dado da "cultura inter-
mediária" no sentido que atribuímos ~l expressão), apenas as modalidades dele
diferiam da cultura clerical (preces) para a cultura vulgar ("encantaçôes"). O
mesmo, aliás, poderíamos constatar quanto às festas, ~ISperegrinações, ao cul-
to aos santos, aos ritos, ao calendário, às práticas agrícolas etc.
Na denominação das áreas culturais específicas, devem-se evitar adjetíva-
ções que decorram de um referencial social (elite/massa), político-ideológico
(hegemônica/subalterna) ou técnico (letrada/oral), todas suscetíveis de transfor-
mações históricas mais ou menos rápidas que dificultam a análise. O par "erudi-

25. l.c Gotf, "Culrurc cléricalc ct traditions tolkloríqucs", op. cit


26. Duby, "I.a Vlllgal'is:lrion", op. cit., pp. 299-jOl.
27. G. Cocchiarn, "Sopravvivcnzc lolklorichc ncl Pag:lnesil11o Sicili.mo", <:111Preistorir: e t-oltslore,
Pulcrmo, S<Jlcrio.197H (cd, orig.196fJ), p. 116; .J.-c' Scluuur. "Ikligion populuirc ct culturc foklo-
riquc", /1/::\(,; 011, 1976, pp. 915-9~6.
2H. Gurcvich, op. cit., p. xv.
29. Idem, p. 83.
ta/folclórica" é válido, ainda que tenha uma conotação muito literária e acadêmi-
ca no primeiro termo Centdtre = instruir, eruditio = ensino, vindos de ex, partí-
cula negativa, e rudis, inculto, grosseiro) e se ressinta de uma certa acepção
pejorativa do segundo. Talvez seja preferível "sofisticada/simples". Esses níveis
culturais obviamente são, como também no caso da adoção de alguma das
outras nomenclaturas, definidos um em relação ao outro. De acordo, portan-
to, com os parârnetros da sociedade estudada, e não por comparação com
outros períodos ou sociedades. Não se pode, por exemplo, pensar em "sofisti-
cada" como sinônimo de "lógica": um pajé indígena, um monge medieval ou
um intelectual contemporâneo n~IO são necessariamente mais racionais que
os demais índios, que os leigos ou que os operários. São apenas especialis-
tas em certas técnicas e conhecimentos considerados válidos pelo conjunto
da sociedade. Trata-se do domínio aperfeiçoado (do grego sopbistileâs, "argu-
mentar de forma sutil e refinada") de um certo código, que os simples (sim-
plex, "formado de um único elemento") conhecem apenas superficialmente.
Trata-se, portanto, de "eficácia simbólica".
No caso particular da Idade Média, além do núcleo central da cultura
intermediária, é melhor falarmos em cultura clerical e cultura vulgar. A primeira
expressão é usual na historiografia medíevalístíca, pois providencialmente tem
o duplo sentido de "eclesiástica" - e esse grupo social dominou a cultura
sofisticada até pelo menos o século XII - e de "letrada", acepção que a pala vra
ganha desde fins do século XIII, quando cresce o segmento bico alfabetiza-
do. Dessa forma, a expressão contempla ainda as mudanças sociais do perío-
do. Pela mesma razão, preferimos falar em cultura "vulgar" em vez de "laica",
pois, como j;:i lembramos, a distinção social clérigo/leigo não correspondia
forçosamente a uma distinção cultural. Ademais, "vulgar" era palavra usada
pelos próprios medievais para indicar algo diferente de clerical, sobretudo no
domínio lingüístico - as falas vulgares, vernáculas, diante do latim - o que
justifica ainda mais o uso da expressão, já que aquela cultura (como a interme-
diária) era essencialmente oral.
Devido a essa oralidade básica das sociedades pré-industriais, no estu-
do da cultura intermediária delas, um papel central deve estar reservado ao
mito. Sendo talvez o elemento cultural mais próximo da mentalidade, o mito
sempre foi a forma privilegiada de uma sociedade arcaica enunciar e apreen-
der a essencialidade do Universo. E por isso é um elo entre o homem e o
cosmos, fundindo-os de tal maneira que ambos se tornam por sua vez enti-
dades míticas. Ao estabelecer assim palavras, gestos, atos, eventos, pen-
samentos e sentimentos arquetípícos, porque colocados na origem dos tem-
pos, o mito funciona como modelo de comportamento. Para os homens que
o vivenciam, o mito é registro de um passado indefinido e guia tanto para o
cotidiano quanto para o transcendental a serem experimentados no presente
e no futuro.
Para aquele que vive em uma cultura de forte presença mítica, o mito é
história e a história é mito, o que estabelece certa harmonia entre o Modelar
39
e o Vivido. Para o historiador, o antropólogo e o psicólogo, o mito é expressão
dos comportamentos da sociedade que () cria, o recebe, o adapta, o transmite:
o mito está na história e a história no mito, () que pode revelar os valores pro-
fundos da comunidade analisada. Seja para quem o vivenda, seja para quem
o estuda, o mito é forma de conhecimento. Construido a partir da intuição,
da observação e da analogia, ele é um discurso t mytbos = narrativa) metafórico
globalizante que cada sociedade pré-industríal utiliza sobre as esferas divina,
natural e humana.
Ao usar essa linguagem de transferência de sentido, ele não deixa de
proceder por diferencíações, oposições, comparações e correlações, como
todo pensamento lógico. Ele não é insensível às contradições e às impossibi-
lidades, como pensava Lévy-Bruhl, mas pertence a uma lógica diversa da oci-
dental contemporânea, a do "pensamento selvagem" conceituado por Lévi-
Strauss.iO Essa diferença em relação ~l nossa lógica deve-se a seu forte con-
teúdo ernotivo - "o mito é sentido e vivido antes de ser inteligido e formu-
lado", observou Leenhardts! -, o que não exclui porém o elemento racional.
Este e o mítico convivem, ainda que historicamente em certos momentos haja
a predominância de um aspecto em detrimento do outro. Para Cazeneuve, "as
características do pensamento mítico permanecem presentes no terreno da
mentalidade lógica e fazem parte da natureza humana"32
Cada mito é totalizante no sentido de apresentar todos os aspectos das
relações entre os homens, e entre estes e () cosmos, aquilo que o pensamento
analítico chamaria de político, econômico, social, filosófico, científico, reli-
gioso, mágico etc. Isolado, cada mito mostra apenas fragmentos daquela globa-
lidade (ainda que cada fragmento sob todas as suas facetas), recuperada con-
tudo pelo conjunto dos mitos ele uma sociedade, a mitologia. Pode-se talvez
dizer que mito é eixo paradigmático por apresentar várias versões, e mitolo-
gia é eixo sintagmátíco por ser associativa. Dessa forma, um estudo a respeito
deve considerar essa dupla característica, examinando as diversas versões do
mito analisado - diz Lévi-Strauss que um mito é o conjunto de suas vari-
antes.i3 - e as articulações desse mito específico com outros da rede mítica
na qual ele se encontra inserido.
Ao contrário do sentido que ganharia nas sociedades industrializadas,
nas demais, antigas e atuais, () mito é uma realidade viva e influenciadora do
comportamento individual e coletivo. Alexandre Magno empreendeu a conquis-
ta do Oriente tanto pelas condições materiais de então quanto por causa de
Aquiles e da Iliada. Na sociedade européia medieval, a hierarquia entre os
sexos, com todas as suas decorrências práticas, estava baseada, n~IOcomo sim-

30. C. l.óvi-Srrnuss, 1.(/ Pensée S({IIV{{g". Paris, Plon, 1962.


31. Lccnhardr, ojJ. cit., p. 30:).
32. j. Cuzcncuvc, "Acrualité eles mythcs", em A. Akoun (dir.), Mvtbes ('I crova uces du monde enticr
(5 vols.), I'aris, l.idis-llrcpols,19R5, 1'01. v, p. 31').
33. C. Lévi-Strauss, M)"lbojogiqlles, (I) vols), P,(ris, I'lon, 196'1-1')71.
'10
pies justificativa, mas como realidade sociopsicológica, no modelo de Adão e
Eva. A descoberta e os primeiros tempos da colonização da América atuali-
zavam e concretizavam por parte dos europeus a antiqüíssima busca do Paraíso
Perdido. a própria América, antes mesmo da chegada dos colonizadores,
certos grupos, como o dos tupinarnbás, sonhavam com uma Idade de Ouro.
Nas sociedades tradicionais do Pacífico sul atual, a expectativa messiânica
determina novas relações sociais internas e externas.
Como todo conhecimento, o mito pretende ser uma forma de controle
sobre a realidade externa e interna do homem. Ao dar certa organização e
harmonia a essas realidades, o mito encontra para o homem um lugar no
Universo, constrói algumas certezas, acalma a angústia de viver. Por isso, pon-
dera André Akoun, mito e ideologia cumprem a mesma função, apenas um
utiliza uma narrativa cheia de coisas sensíveis, seres estranhos, animais, plan-
tas, minerais, enquanto a outra recorre a um discurso pleno de entidades
abstratas». E, pode-se acrescentar, ambos partem de um modelo existente em
tempos imemoriais e que se acredita recuperável através de determinados
ritos. A conhecida fórmula "mito é palavra, rito é ação" é aplicável também à
ideologia, desde que se lembre a especificidade dos ritos desta última.
Como todo conhecimento, o mito é desgastado pela história, pelas transfor-
mações do enquadramento cultural do qual ele tinha sido ao mesmo tempo
síntese e matriz. Nesse momento ele perde sua eficácia simbólica, esgota-se
como manancial de especulações e guia de condutas e subsiste apenas como
tema literário e artístico utilizado livremente por estar, a partir de então, mais
no domínio da individualidade do que no da coletividade. Assim como ocorre
com a ideologia, o mito só é visto assim ou por seus críticos ou quando foi
superado. Para sociedades nas quaís ele está presente de forma viva e atu-
ante, o mito (como a ideologia) ajuda a estabelecer a identidade grupal, cons-
titui a visão de mundo da comunidade. Naturalmente, para os estudiosos não
há obstáculo no fato de o conceito de mito não ser interno ~I sociedade estu-
dada, pois se trata de um instrumental de análise que permite compreender
aspectos de um grupo humano ocultos dele mesmo. Como ocorre, aliás, com
boa parte dos conceitos utilizados pelas ciências humanas.
Esse processo de recusa à própria conceituação aparece claramente, por
exemplo, no cristianismo medieval-». Ele rejeitava as "quimeras" pagãs, as
"supersrições'vv, os "mitos", enfim, sem perceber - e nem poderia ser diferen-
te, pois toda interpretação mítica do mundo mitifica todo o Universo, não
havendo espaço para se perceber enquanto tal - que ele próprio era uma
mitologia. Mas, curiosamente, "sob muitos aspectos o cristianismo salvou a

:;1. Akoun, ojJ. cit., vol. I, p. ·I~.


:;5. cr., infr«, ensaio n. 2.
~6. J.-c. Schmitr, "Lcs Supcrstirions", cm ]. I.<:Goff e 11.Rcmond (dir.), l tistoire de la t-rance rcligieusc,
Paris, Scuil, 1988, vol, I, PI'. /í17-55/i.
11
mitologia [antiga]: dessacralízou-a de seu conteúdo pagão e ressacralizou-a
com elementos cristãos, ecuruenizando-a'V. Ernst Cassirer já percebera que
toda religião está indissoluvelmente conectada com e penetrada por elemen-
tos mítícos's'. Apesar de por muito tempo ter sido problemático aplicar-se o
qualificativo mitico a um relato religioso, hoje se concorda que "o mito é ver-
dadeiro, é uma expressão verdadeira da experiência religiosa'v".
Porém o estudioso só tem acesso direto à mitologia da sociedade estuda-
da no caso daquelas chamadas "primitivas contemporâneas". Emrelação ~IS

do passado, o acesso ao material mítico dá-se de duas formas. Ou através de


registros literários e artísticos que selecionam e petrificam as variadas e dinâmi-
cas narrativas míticas, ou através de fragmentos reunidos pelo folclore. No
primeiro caso, temos, por exemplo, a mitologia grega tal como a conhecemos
hoje; no segundo, temos as narrativas medievais, tão fortemente impregnadas
de material folclórico que as devemos considerar transmissões orais tanto
quanto literárias'i". Material que por sua própria característica revela sempre
alguma descontinuidade cultural, seja de uma cultura em relação a uma outra,
contemporânea, mas estrangeira, seja a uma outra do mesmo espaço, mas de
outro tempo, seja a uma outra afastada no tempo e no espaço, seja a uma
outra do mesmo espaço e do mesmo tempo, mas considerada arcaica compa-
rativamente aos valores da cultura que a observa.
Neste último caso, o folclore torna-se cultura de contestação+'. Enquanto
uma mitologia é conhecida e aceita por toda a sociedade, o folclore o é ape-
nas por uma parte dela, aquela que por razões históricas manteve-se ligada a
certas tradições que foram sendo ultrapassadas para os demais segmentos sociais.
Daí seu caráter contestatório. Caso da cultura vulgar dos séculos VI-VII estu-
dada por Le Goff12, da dos séculos XII-XIII analisada por Kohler", da campesina
dos séculos XVI-XVIII vista por Mullet+t. Essa cultura folclórica é sem dúvida
de fundo mítico, apesar de ter sido modificada ao longo do tempo pela trans-
missão anônima e oral. Não se trata de degeneração nem de sobrevivência,
como pensavam os primeiros folcloristas, mas de material selecionado e adap-

37 . .J. Souza Br.mdão, Mttoiogtrc (;regtl, (3 vols.), Pctrópolis, Vozes. 'l 9H(i. "01. I, p, 33; cf . .J. Sczncc,
"Moycn Age er Rcnaissancc.. l.a Survivancc des dicux antiqucs", em Y. Ilonndoy (dir.), Dictlonnctirc
des mvtbologies 1'1 des religions eles sociétés traditionnellcs 1'1 du monde antique, (2 vols.), Paris,
Flammarion, '19HI, "01. 11,p. 129.
3H. E. Cassircr, /11/ /!sS({.I' OJ1 MOI/. Nc\V Havcn, Yalc Univcrsity l'rcss, 1970, p. HI.
39 . .J. GOCt:I., ':Nlythe", em M. Villcr et alii. (dirs.), Dictionnairc do spiritnnlité; (15 vols.), Paris, Iscauchcsnc,
1957-1980, "01. 10, col. 1981-1985.
110. 11. Roscnbcrg, "l-olktorisrcs ct médiévisrcs face au rcxrc luréruirc: l'rohlcmcs de mérhodc", /I"~~'C,
}i, 1979, pp. 913-955.
ft 1. I.. ,\1. Lornbardi Satriani, 11Fullslor« conte Cultura di Contestcuione, Mcssina, Pcloritana, 1966.
/i2. Cf. nota 17.
1i3. E. Kóhlcr, "Obscrvations historiqucs cr sociologiqucs sur Ia poésie eles troubndours", CCM, 7,196;',
pp, 27-51; I. 'Aocnturc cbeualeresque: IdéO/1'1 réalité dans le 1"01I/(1I/ counois, (rrad.), Paris, Gailimard,
197-1.
'ífi. Mullcr, op. cit, Capo j.
ta do a contextos históricos diferentes daqueles que viram a formação de suas
mitologias. O folclore é uma mitologia residual.
Contudo essa constatação é recente. Por exemplo, Jean-Claude Schmitt
viu primeiramente na cultura folclórica medieval algo diferente de uma mitolo-
gia. Ele então argumentou que os mitos semíticos do Gênese legados pela Bíblia
ao cristianismo medieval "não erarn mais vividos como tal", porque explicados
pela Igreja tinham-se tornado história, a história sagrada. Como a cultura cleri-
cal tirara da cultura folclórica o saber por excelência (o conhecimento do Além,
a comunicação com os seres sobrenaturais, a interpretação das visões), "vê-se
mal como () folclore medieval teria podido falar por mitos, pois é função dos
mitos constituir e transmitir um tal saber'">. Poderíamos, entretanto, contra-
argumentar que o fato de aquela cultura ser "folclórica", isto é, contestadora,
indica que a cultura clerical não privara totalmente a cultura folclórica de suas
funções, daí a própria existência desta e a possibilidade de ela exercer uma
resistência, uma contestação. Aliás, se a Igreja exercia naturalmente certo cem-
trole sobre o Gênese e os outros textos canônicos, ele não era tão grande quan-
to se poderia pensar ~lprimeira vista, devido aos meios limitados de que ela
dispunha em grande parte da Idade Média, com um clero paroquial de forma
geral mal preparado e muitas regiões superficialmente cristíanizadas.
Por isso mesmo o entendimento mítico daquele texto não tinha desapa-
recido: sua racionalização, sua transformação em história sagrada, estava no
âmbito da cultura erudita, e não da cultura popular. E, como observa acerta-
damente o próprio Schmitt num trabalho posterior, se a "história santa" distin-
gue-se de outros mitos pela sua dimensão histórica, não deixa de ser U111111ito,
o mito fundamental da sociedade crist~l1C>. Ademais, paralelamente ao relato
bíblico genésico, o Ocidente medieval conhecia diversos apócrífos que tratavam
essencialmente dos mesmos temas e que ajudavam a manter viva a explicação
mitológica dos episódios ali narrados. O mesmo, é claro, ocorria em relação
aos outros textos bíblicos. Quanto à cultura folclórica ter perdido "o saber por
excelência", é possível pensar diferentemente, pois os inúmeros relatos de
viagens ao Além e de interpretação de visões, mesmo clericalizados, escon-
dem rnal seus fundamentos míticos. Ou seja, o folclore falava através de mitos
(ou de fragmentos destes) simplesmente porque estes são o material consti-
tutivo daquelef", Como Jean Seznec observou com razão, a mitologia sobre-
viveu na Idade Média "em diferentes níveis, e antes de tudo no folclore'<".
Se as considerações anteriores são de forma geral válidas para o estudo
de sociedades pré-industriais, () caso das sociedades ocidentais contemporâneas

~5. l-C. Schmitt, "Cluistianismc ct mythologic: Occidcnr médiévnl cr pcnséc mythiquc". cru Bonncfov,
ojJ. di" 1'01. I. pp, 183-1811.
1t6. .J.-c. Scluuiu , "l'roblcmcs du Mythc dans l'Occidcnt médiév.il", Rozo, H, 1988, p. 6.
17. E. M. Mclctinsky, "Du myth« au tolklorc", lJiogene, 99, 1977, p. 120; N. Bclrnonr, l'aroles paicn nes:
ntvtbe ctfollslor«. I'aris, lmugo, I98C>,pp. 1S e 153.
18. J. Sczncc, op. cit., 1'01. 11,p.128; 1.0 Snnnuance des dicnx rnutoucs. Paris, Flauuuarion, 1980.
economicamente desenvolvidas apresenta características próprias. Lembremos
apenas, de passagem, que nelas se quebrou a relação dialética entre mito e
rito, gerando crise de identidade, de desagregação e de angústia. Com a ausên-
cia de mitos, os ritos se esvaziam: fatos e personagens rotulados de míticos
nas sociedades industriais ou serni-industriais são construções da rnídia, subs-
titutos caricatos e efêmeros dos mitos no seu significado coletivo, especulati-
vo, inconsciente. Tornam-se atos, gestos e palavras repetidos por modismos,
fabricados e consumidos como fonte de prestígio social, de certa identidade
grupal, diferentemente das sociedades arcaicas, nas quais eles regulam as ten-
sões, canalizam a violência. Pois rito é sacrifício. O sangue derramado ritualmen-
te impede (ou minimiza) o derramamento cotídíano+', como ocorria, por exem-
plo, na sociedade asreca ou na sociedade cristã tradicional.
Sem dúvida o auto-sacrifício de Cristo pelos homens, prolongado na
comunhão, afastava-se do sacrifício de homens aos deuses astecas. Mas na
aculturação que acompanha a conquista espanhola do México, em nome do
cristianismo - o que não era simples máscara de interesses econômicos, C01110
pensam alguns: a globalidade histórica tende a ser menosprezada pelas análi-
ses fragmentárias -, derrama-se sangue "pagão" para glória da divindade
"cristã". Para sobrevivência da sociedade, enfim. E dessa forma as duas cultu-
ras aproximavam-se no essencial. Na verdade aquela guerra, como todas as
guerras, como todas as festas, segundo mostraram Huizinga, Callois e mais
recentemente Cardínív', era o encontro de dois mundos, superior e inferior,
divino e humano. Pois festa é momento de regeneração do tempo, de volta
ao caos simbólico, de suspensão temporária das normas sociais, por isso histo-
ricamente momento em que ocorrem sublevações. Mas nas sociedades contem-
porâneas ela não é tanto uma reenergização elo tempo quanto uma pausa para
reenergizaçào do homem. Que retoma depois ao trabalho mais produtivo e
menos integrado ao cosmos e, porque menos integrado ao cosmos, mais inte-
grado ao trabalho.
Todas essas violências da sociedade industrial a processos psicológicos
e antropológicos enraizados profundamente há milhares de anos é que levam
ao ressurgimento do misticismo que apontávamos no início deste trabalho.
Pois fenômenos místicos S~lO fórmulas culturais de busca de conhecimento,
de revelação, de desvendarnento do oculto: como se sabe, mystileôs, "relativo
aos mistérios", deriva de tnystérion, "iniciação", "saber reservado aos adep-
tos". Logo, porém, na lógica da conternporaneidade, aqueles fenômenos sào
banalizados e n~IO chegam a cumprir seu papel. São transformados em best-

fJ9. Ver, sobre essas considerações. o belo livro de I'. Cardini, Dias Sagmdos: 'l rculicionPopular en las
Culturas Eurcnnedtterráneas, (rrud.), Barcelona. Argos vergara, 19811.
50 . .I. Iluizinga, 1101110 t.udens, (trad.), São Paulo, Perspectiva, 1980; H. Caillois, i. 't Iomnte et le sacré,
Paris, Gallimard, 1950, e Lesjeu» 1'1 les bO/JII1/(,S, Paris, C;allilllarcl,1958; 1'. Cnrclini, Quell/1n/ictl
I-esta Crudele: (,'1/('1'/'(/ e Cultnra delta (,'1/('/'11/ dall'liti] Fendale "1/,, Grande Ri/Jo/llzirme, Florença,
Sansoni,19H2.
sellers, em modismos, em espetáculos. Um momento-chave para a sociedade
e a religiosidade arcaicas como o Carnaval+ perde em espontaneidade para
ganhar em colorido, perde em comunicação cósmica para ganhar em comuni-
cação televisiva. Pobremente místicas, essas manifestações são descartadas e
substituídas por outras, que alimentam mal muitos espíritos e alimentam bem
poucos bolsos.
A aparente democratização da informação esconde sua forte centraliza-
ção, dominada por alguns particulares em certos países, pelo Estado em ou-
tros; a aparente variedade de opções em algumas sociedades esconde uma
uniformização de conteúdo. Na aldeia global da comunicação de massa, ao
sabor dos interesses em jogo, as verdadeiras identidades culturais são quase
anuladas, ou artificialmente alimentadas. Nesse quadro, o encontro do indiví-
duo com seus deuses internos (sentido etimológico, cultural e psicológico de
"entusiasmo", do grego entbousiasmôs, "ter um deus dentro de si") dá-se pelo
consumo de drogas, o sucedâneo atual mais próximo dos velhos ritos. Todavia,
contrariamente a estes, aquele se revela frágil e fragilizador, por não estar fun-
dado em mitos, em verdades consideradas profundas e estáveis para o cem-
junto da sociedade. S~lO válvulas de escape de uma minoria. Diante disso tudo,
entende-se o interesse atual pela "cultura popular", pela busca de uma nova
identidade coletiva. É o presente buscando a si próprio no passado, é o indiví-
duo tentando reencontrar-se numa nova coletividade.

51. .J. Caro Baroja, IiI Carnaual: Análisis l listorico-Cultural, Madrid, Taurus, 1965; c. C;aigncbct, I.c
C({J'//(/f)(/!: lissais de nivtbolog!« poputatre. Paris, l'ayot, 1979.
CRISTIANISMO MEDIEVAL E MITOLOGIA
REFLEXÕES SOBRE UM
PROBLEMA HISTORIOGRÁFICO

Apesar de Marc Bloch ter afirmado há muito tempo que a época feudal
foi de "grande fecundidade mítica" I, por décadas os medievalistas não deram
maior atenção a essa idéia. Parece que um outro fenômeno cultural de longa
duração - o pensamento eclesiástico medieval, antimítico - int1uenciou os
historiadores da Idade Média, cujos trabalhos pouco abordaram até aqui aque-
le tema. Apenas mais recentemente essa tendência começou a ser alterada,
por int1uência da antropologia, e mesmo assim de maneira tímida. Se atual-
mente poucos historiadores ainda discordam quanto à existência de uma mito-
logia medieval, continua aberta a questão essencial de saber qual era seu
caráter.
De maneira geral, os estudos sobre o assunto limitam-se a examinar
temas mitológicos anteriores reutilizados literariamente na Idade Média. Quando
se reconhece que, naquela época, além de "transposições" de mitos havia tam-
bém "criações", estas S~lO vistas apenas a partir de modelos literários clássicos
e célticos-, Abordagem problemática, pois reduz () mito a um fenômeno literário
e desloca assim as narrativas míticas de seu contexto oral, coletivo e anôni-
mo para ambientes culturais restritos, nos quais elas assumiam formas distin-
tas das originais. Portanto é correto o diagnóstico da Sociedade dos Medievalistas

1. M. B1och, I.a Sociétéféodale. Paris, Albin Michcl, 1973, (la cd., 1939-1910), p. ]29.
2. l.. l Iarf-Lancncr c D. Isoutcr (cds.), 1'0111' IIl1e lIl.J'lb%gie dtt Moven /lge, Paris, licolc Normalc
Supéricurc, 19S5.
Franceses que em 1991 incluía entre os territórios novos, ainda a explorar, o
da mitologia).
Um bom exemplo das questões a serem proximamente pensadas nesse
campo pela historiografia medievalística é o recente livro de Philippe \Valter/,.
Sobretudo porque essa obra apresenta certo descompasso entre suas proposições
e sua concretização, em razão de determinadas opções metodológicas do autor,
o que nos servirá de ponto de partida para algumas considerações a esse
respeito. De um lado, ele acertadamente defende o estudo da mitologia medieval
a partir não apenas de fontes literárias mas também de documentos eclesiás-
ticos (atas de concílios e penitenciais), hagiográficos e íconográfícos. Com
efeito, utilizar fontes provenientes de ambientes culturais e sociais diversos é
o melhor caminho para ter uma visão global sobre qualquer objeto de estu-
do. No entanto, as fontes íconográflcas mereceram somente umas poucas
citações de passagem naquela obra, sem jamais terem sido exploradas no seu
rico conteúdo mitológicos. As hagiografias, que "têm muito mais a nos ensi-
nar por seu conteúdo imaginário e mítico que por seu pretenso testemunho
histórico", também foram ernpobrecidas ao serem analisadas apenas nos seus
motivos "pré-cristãos e em particular célticos" (p. 32).
Da mesma forma, \XTalterpropõe o método comparativo, único que "tem
alguma chance de chegar a resultados palpáveis" (p. 51), mas utiliza-o ape-
nas esporadicamente. Talvez como compensação ao fato de por muito tempo
se ter desconsiderado a especificidade dos mitos celtas "em nome do maior
prestígio dos mitos gregos" Cp. 250), ele se prende quase exclusivamente àque-
les, sem cornpará-los com estes, apesar de reconhecer a existência de "uma
herança comum aos povos célticos e helênicos" (p. 264). Ele recorre ~l mitolo-
.gia hindu para explicar a lenda medieval de S~IOValentino, mas desconsidera
os mitos iranianos de Mitra ao estudar as origens do 25 de dezembro como
data do Natal. Examina a influência das pedras sagradas dos celtas em certos
relatos hagiogrMicos, sem se referir ~l existência do mesmo fenômeno religio-
so entre inúmeros outros povos, inclusive os hebreus vérero-testamentáríos«
De outro lado, o autor quer "levar em consideração o rito que sustenta
() mito e o prolonga na memória" Cp. 13), pois "uma mitologia se inscreve
geralmente num calendário que ritma as celebrações e comemorações sagradas"
(p. 15). Opção correta, já que impede que o mito seja visto unicamente na
sua função narrativa, como apenas um elemento a mais da cultura cortesã.
Essa postura pode sem dúvida lançar mais alguma luz sobre o rito, que perrna-

j. J. Bcrlioz.}. 1.<:Goffc A. Gucrrcau-lulabcn, "Anthropologic cr l lhistoirc", e111 L'btstotrc médiéral«


e/I t-rance: Btla n 1'1perspcctire«; Paris, Scuil,1991, p. 205.
11. Mvtbologk: cbréttenne. Niles et ntvtbes dn Moveu /Ige, l'arls. I-ntente. 1992, p. 2H7.
5. Como foi feito, por exemplo, no célebre artigo de E. I'anofskv e F. Saxl, "Clasxical Mythology in
Mcdiacval Art", Metropolitcn: Museum Stucltes, /1, 1922, pp. 220-jOH.
6. M, liliadc, Tratado de l tistori« das Neligi<!es,(trad.), Lisboa, Cosmos, 1977, pp. 26S-292.
17
nece uma área relativamente pouco conhecida". Mais importante, \'{!alter ado-
tou o caminho acertado de ver rito e mito como realidades interdependentes,
renunciando ao velho e estéril debate sobre a anterioridade ou a preeminên-
cia de um ou de outro. Somente assim será possível reinserir o mito na vida
cotidiana dos homens medievais e compreender melhor o alcance que ele
tinha naquela sociedade. De fato, o maior obstáculo até aqui para se fazer
uma história da mitologia medieval não tem sido a falta de dados, mas uma
insuficiência de método: "Os documentos sobre a mitologia medieval exis-
tem, mas freqüenternente não se sabe nem reconhecê-Ios nem lê-los" (p. 20).
Enfim, o autor faz todo um conjunto de considerações teóricas acertadas,
mas cujo alcance no plano prático ficou reduzido em função da forma de abor-
dá-Ias, através do esquema do calendário carnavalesco. Com efeito, é no míni-
mo exagerado pensar que o "Carnaval era uma religião; era mesmo a [grifo
do autor] religião que precedeu o cristianismo. [...] A mitologia carnavalesca
constitui assim a estrutura da mitologia medieval" (p. 14). Tocamos dessa forma
no primeiro grande problema que o livro de \'{!alter nos coloca: recorrer ao
esquema carnavalesco de Claude Gaignebet" é adotar uma perspectiva a-histó-
rica, que desconsidera a necessidade de uma cronologia mais fina, menos
generalízadora''. É verdade que o mito abole o tempo histórico e que o rito
ciclicamente leva seus participantes àquele momento indefinido. Mas ao mesmo
tempo o rito representa o mito, isto é, torna-o novamente presente, torna-o
contemporâneo dos que dele participam. Mito e rito não existem na sua
atemporalídade intrínseca, mas na historicidade que lhes dá sentido, e ~l qual
eles próprios dão sentido.
Daí a necessidade de hístoricizar a análise deles. O fato de o mito traba-
lhar com emoções profundas, com "invariantes trans-históricas" na expressão
psicanalítica 10, não significa que ele negue a história. Mas, sendo uma forma
de representação, uma mediação entre imagens mentais (sonhos, aparições,
visões etc.), imagens materiais (frases, esculturas, pinturas etc.) e objetos cultu-
ais (ícones, crucifixos, relíquias etc.), não se pode pedir ao mito dados preci-
sos da realidade material. É preciso considerar que mito não é história dos
eventos políticos ou econômicos, mas história da sensibilidade coletiva. É
expressão da longa duração histórica, expressão de valores fortemente enraiza-
dos, daí a larga permanência de um relato mítico. Permanência, contudo, sujei-
ta a flutuações decorrentes das condições históricas concretas.

7. "Se () estudo dos ritos prendeu menos a atenção dos pesquisadores que os mitos, é porque t<..'1110S

dificuldade em compreender o ritual": K. Schippcr, "Avnnt-propos", em A. M. Blondcau c K. Schippcr


(di r. ), tissais su r le rituel, (2 vols.), Louvam-Paris, Peeters, '19HH-1990, \'01. 11,p. VIII.
H. /.e Carnauat, 1"lris, I'ayot, 197/t.
9, vejam-se as pertinentes observações críticas feir:ls por D, F;,ll1re, "I.c Monde du Carnaval", Ah~)'C:
31,1976, 1'1'. 389-106. e também seu C(//"I/(w{/I ou Irt fête fi I 'cnrers, I'aris, Callimard,1992.
iO. C) alcance dessas prcrcnsas invariantcs é discutida por (i, Di:Hkinc: "1.<.:l'xychnuniystc: Traductcur
de mythcs ou anthropologuc .unurcur?", Ne/Juejimlçtlise de psvcbunalvsc, 'í6, '19H2, pp. H12-813.
Tomemos, por exemplo, uma narrativa do Gênese, o "mito por excelên-
cia na nossa tradição cultural"] 1. Até o ano mil, parece que os relatos sobre
Adão não sensibilizavam muito a Cristandade ocidental. A personagem pouco
aparecia na literatura, na iconografia, no folclore e mesmo na teologia. Após
aquele momento, o quadro claramente se inverteu, Ora, enquanto nas sociedades
iletradas a expressão mítica representa a Natureza por analogia com a Cultura 12,
nas letradas (entre elas a sociedade européia medieval) representa a passagem
da primeira para a segunda. o século e meio anterior ao ano mil, período
de forte instabilidade geral da sociedade cristã ocidental, prevaleceram num
certo sentido os dados da natureza: fomes, avanço das florestas e áreas panta-
nosas, epidemias. Com a reorganização feudal surgiu maior estabilidade políti-
co-social, inovações nas técnicas agrícolas, expansão da área cultivada, cres-
cente urbanização, avanços artísticos e literários. Isto é, progressos no domínio
da cultura. Passou-se então a ver, em Adão, material para especulações sobre
a relação Natureza/Cultura, o que atualizou e revalorizou aquele mito.
Não se pode perder de vista que mito é sempre relato sincrônico (seu
tempo é o imperfeito 13) inserido num conjunto diacrônico, numa mitologia.
Esta, por sua vez, se relaciona de forma dupla com a história da sociedade
em que está presente. De um lado, sendo um produto cultural como qualquer
outro, a mitologia não pode deixar de refletir, ainda que através de símbolos,
metáforas, hipérboles e metonímías, os momentos históricos de sua formação
e/ou adoção. A centena e meia de milagres taumatúrgicos narrados na Legenda
Aurea revelam dados interessantes para a história do corpo e das doenças,
mas sobretudo para a história do imaginário sobre eles. De outro lado, como
a mitologia é parte constitutiva da sociedade, muito do comportamento social
é determinado por fatos míticos, como ocorria na Europa cristã com o culto
aos santos ou o repouso dominical. Em função disso tudo, inegavelmente a
história está na mitologia e a mitologia na história 11.
Não por acaso, a história sagrada e a história profana eram colocadas
em paralelo pelos medievais">. Paralelismo que contudo não significava sim-
ples transposição de uma situação social para um mito, pois este é indiferente
à ternporalídade. Como percebeu Lévi-Strauss, o mito tira seu sentido "da posi-
ção que ele ocupa em relação a outros mitos no seio de um grupo de transfor-

11. G. 1'. Caprcrtiní, G. Ferrare e G. l'ilor.uno, "Mythos/l.ogos", em tinciclopedi«: Einaudi; (16 vols.),
Turim, Einaudi, 1977-19R1, 1'01. y, r. 6Hj.
12. Como os baruya da Nova Guine, estudados por ,VI.Godclicr, "Myrhc ct hisroirc: Réflcxions SUl' lcs
fondcmcnrs de Ia pcnséc sauvugc", AI::S'C 26, 1971, rp. 5;'1-55H, ou os Kula do %aire central, anali-
sados por I..lleusch, t.o Rot torc outortgtne de ltitat, Paris, Gallimard, 1972, pp.121-12ge 156-
157.
13. Plotino, Ennéades; 111, 7, 6, trad. E. Bréhicr, Paris, Bcllcs Lcttrcs, 1925, vol. 111, pp, 131-136.
H. Para a crítica"S
posições teóricas que opõem mito e história, ver K. H. Andrio!o, "Myth and llistory:
A General Modcl and trs Application to thc Biblc", Anierican Antbropotogist, H3, 1981, pp. 261-
26H.
15. J. Sczncc, !.aSuruiutlncedesdieuxllllliques, Paris, Harnrnarion, 1980, rp. 20 e ss.
49
mações", ou seja, "os mitos se pensam entre-Si" 16. Mas a temporalídade não
é indiferente ao mito, ela o usa para se pensar. Os. mitos conhecidos pela
Idade Média, quaisquer que fossem suas procedências, eram entendidos e
vivenciados de forma própria àquele momento. E sempre articulados uns com
os outros, independentemente de suas origens, pois roda mitologia é um con-
junto de mitos construido por adaptação, inversão e negação de elementos
mítícos de outras culturas com as quais ela tem contato.
Isso nos remete ao segundo grande ponto que o livro de \Vaiter nos colo-
ca: a mitologia cristã na Idade Média "se apresenta antes de tudo como uma
mitologia cristiariizada', Ela se teria constituído" 110 interior mesmo do cristia-
nismo medieual" a partir de material pré-crístão incorporado "graças à Igreja,
à letra e ao espírito da Bíblia" (p. 10, grifos do autor). Noutros termos, o autor
reaproveíta a velha idéia de as mitologias existentes na Europa medieval terem
sido conscientemente absorvidas pelo clero como recurso para combater o
paganismo. Como argumento, ele cita mais uma vez a famosa carta de Gregório
Magno aconselhando Agostinho de Canterbury a não destruir os templos
pagãos, mas a transformá-los em igrejas cristãs. Contudo essa informação iso-
lada esconde o essencial. O reaproveitarnento cristão dos templos pagãos tinha
motivações econômicas e de evangelização, mas esta última baseava-se sobre-
tudo no reconhecimento da sacralidade daqueles locais!".
Se era possível transformar a cerimônia dos sacrifícios pagãos em oferen-
das cristãs é porque entre ambas havia uma estrutura comum. De certa forma
o sacrifício de Cristo invertia o sentido daqueles praticados pelo paganismo,
pois era o próprio Deus que se fazia imolar em fa vor dos homens, e não ho-
mens ou animais que eram sacrificados em benefício dos deuses. Contudo
tratava-se também do sacrifício de um homem (o Filho encarnado), para que
ele interferisse diante de Deus (o Pai) por todos os outros homens. Como
estes haviam desobedecido a Deus, uma "nova aliança" IR era estabelecida atra-
vés do rito da comunhão. Rito que acalma a Divindade ofendida pela ruptu-
ra da primeira aliança, como indica a palavra bostia, "vítima oferecida aos
deuses como oblação expiatória para acalmar sua cólera"!". Daí por que o
cristianismo primitivo recorria à metáfora do Cristo "cordeiro de Deus"21J e por
que ele foi por séculos representado na Cruz sob a forma daquele animal.

16. C. Léví-Stmuss, M)'lb%giq/.ll!s. I.I! (.'1'/1ct lccuit. Paris, Plon, 1\>6/1,pp. 59 e 20.
17. O mesmo ocorria C0l11 as fontes sagr:Kbs do paganismo, mais de seis mil apenas na França, as
quais com o tempo foram relacionadas a algum personagem Ou ~l algum episódio da história cristã
e acabaram ror se tornar fontes santas também para o cristianismo.}. l lubcrr, "Sourccs sacrécs cr
sourccs suintcs", em /1/'/.1'el oie socialc de !{{)l1I du monde antique au MOJ('Jl /1ge, Genebra, Droz,
1977, pp. 261-267. Algumas dessas fontes estiveram na origem de importantes templos cristãos,
caso por exemplo da catedral de Ch.utrcs.
IR. I.c 22, 20; 1 eu 11, 25.
19. A. Ernou!" A. Mcillct, Dicticm uaire él,1'l1l%gil//.Ie dc la !({lIglle kuiuc, Paris. Klincksicck, 1. cd., 1959.
p. 301: bostia opõe-se portanto a oictnna, que é "ofcrcnda em agradecimento por favores recebidos".
20. Jo 1, 29.36; At H. 32; 1 Pc 1, 19. Essa imagem tinha muitos antecedentes vércro-tcsr.uucnrárlos, por
50
Esse esquema iconográfico foi sendo abandonado a partir do século VII,
exatamente em função do processo de evangelízação que buscou minimizar
os riscos de idolatria e de enfraquecimento da idéia do sacrifício do Deus feito
homem. Mas se aquele elemento tendia a desaparecer do mito, ele ganhava
lugar no rito, e pelos menos desde fins do século VII a fórmula litúrgica da
missa passa a falar em Agtius Dei. De toda maneira, aquele sacrifício, como
o de qualquer religião, "consiste em estabelecer uma comunicação entre o
mundo sagrado e o mundo profano por intermédio de uma vítima, isto é, de
uma coisa consagrada destruída durante a cerimônia"?". Sacrifício que fora dos
círculos cristãos eruditos foi por muito tempo visto mais como propiciatório
que expiatório,
Da mesma forma que entre diversos povos fertilizava-se a terra com
partes de animais ou homens sacrificados-ê, na Europa crístã até o século XI
os camponeses enterravam pedaços de hóstias consagradas-o. Mesmo depois
de o IV Concílio de Latrão ter regulamentado, em 1215, as formas de adminis-
tração da Eucaristia, seu uso mágico n~LOdesapareceu. Um cronista conta o
caso de um padre que, desejando ter relações sexuais com uma mulher que
se mantinha reticente, conservou a hóstia na boca após a missa, esperando
que ao beijá-Ia nessas condições ela cederia aos desejos dele pela força do
sacramento>'. Apesar dos progressos teológicos e da centralização adminis-
trativa, a Igreja do século XIII não podia eliminar os componentes míticos do
comportamento do próprio clero.
Isto é, os dados míticos podiam ser inseridos no cristianismo medieval
porque este era, também ele, como veremos, uma mitologia. Se religião era
um "fato social total" para as sociedades pré-industríais, mito era a palavra
que revelava e explicava os aspectos misteriosos (no sentido etimológico do
termo) daquela globalidade, como o rito faz pelos gestos. O amplo denomi-
nador comum entre cristianismo medieval e paganismos europeus da época
estava justamente na visão mítica do mundo que ambos possuíam. As oposições
ideológicas, sociais e econômicas n~LOobstruíam aqueles vasos comunicantes,
mas construíam discursos muito diferentes, que dificultam ao historiador a
percepção daquele processo sincrético. Um bom exemplo dessa diferença está
na relação ambígua da Igreja frente aos textos apócrífos, oficialmente sem

exemplo () sacrifício ele Isaac sendo substituído pelo de UIll carneiro (Gn 22, 13), c paralelos em
outras mitologias, sobretudo um rito dedicado a Dioniso que consistia em jogar um cordeiro no
precipício para acalmar () guardi:J() (tis portas infernais.
21. I I. I lubcrt c M. Maus», "Essai sur Ia naturc cr Ia fonction du sacrificc". em Mélr/llgcs dbistoire eles
religions. Paris, F61ix Alem. 2. cd., I929, (texto de 1899). r. 121.
22, Os khoncls da [ndia, ror exemplo, sacrificavam seres humanos com esta finalidade c espalhavam
sua carne c seu sangue sobre () solo a ser cultivado: I lubcrt c Mauss, op. cit., r, 98,
2:\. A. Vauchcz. UI SjJiritl/{/liIé dn stoven /1ge occidental, Paris. PUI', 1975, r.18.
21. Ccsnrio de I lcistcrb.ich. Dialogus sttracutormn. cd. J Srrang«, (2 vols.), Colônia. I.cmpcrtz, 185!,
\'01. 11.r. 170.
5i
valor, mas sempre presentes na cultura medieval. E completamente ausentes
do livro ele Walter.
Para as autoridades eclesiásticas, de Agostinho a Isidoro de Sevilha e
depois a Vicente de Beauvais-õ, os apócrifos não eram livros inspirados como
os canónícos, não tinham autoridade divina, mas não deviam ser rejeitados.
Não eram necessariamente falsos, e podia-semesmo tirar proveito deles, desde
que lidos como obras de poetas, e não de santos. Às vezes eles eram citados,
às vezes camuflados nos escritos eclesiásticos. Para ficar com um único exem-
plo, os [ubileus aparecem explicitamente, dentre outros, em Dídimo de
Alexandría, Epifânio, Ierônímo e Nicéforo, e anonimamente em Hipólito,
Orígenes, Diodoro de Antioquia e Isidoro de S~vilha2<í. Na Legenda Aurea o
apócrifo Euangelbo de Nicodemo mereceu seis citações, mais do que recebe-
ram 31 livros bíblicos canônicos, inclusive o Evangelho de Marcos.
Como todos os mitos de uma mesma cultura interagem, formam uma
mitologia, conjunto complexo e articulado, as várias mitologias de um mesmo
quadro espaço-temporal tendem a formar redes intercomunicantes. Por essa
razão toda mitologia se amplia constantemente, agrega novas narrativas. Não
há especificamente, como já se disse, uma "críatividade mitológica do cristianis-
1110"27,e sim uma fecundidade inerente às características do relato mítico. Isso
colocava a cultura erudita diante de uma situação paradoxal, pois se de um
lado ela temia a ampliação de um universo narrativo que fugia ao seu contro-
le, de outro ela própria produzia e incorporava constantemente novos relatos.
Quer dizer, o processo de fusão mítica, de síncretismo de várias mitologias no
Ocidente cristão medieval, não deve ser colocado no campo da história institu-
cional, da história da Igreja, mas no da história da cultura e das mentalidades.
Sincretisrno. Esta palavra, pouco prestigiada pelos medievalistas nos últi-
mos tempos, pode ser importante no estudo do cristianismo medieval se enten-
dida como um "processo contra-aculturativo implicando manipulaçâo de mitos,
empréstimo ele ritos, associação ele símbolos, às vezes inversão semântica e
reinterpretação da mensagem crístlca'?", Não se trata portanto de aculturação
(isto é, assimilação e/ou imposição cultural), cujos estudos tendem a explicar
as trocas do ponto de vista de apenas U111adas culturas envolvidas no preces-
S02'.!. É o que faz Walter, que atribui ~l evangelização um planejamento e uma
continuidade de propósitos que não estavam na mentalidade e nos meios de
atuação da Igreja em grande parte da Idade Média. Isto é, ele enfatíza o cristia-

25. l )« Ctuttatc nei, xv, 2:>, 11, FI., -ít , col. 1J70; tutmotogt,»: VI. 52, cd. -r":ld . .J. Oroz Her:" 2 vols .. /
Madrid, BAt:. 19H2-198:>, \'01. 11, p_ 576: .\jlew!11I11 i1I(/jllS, prol. <) c l-i, vcncza, l.lollliniculll Nicolinum,
1591, pp. 2-).
26. IL lI. Ch.irlcs (cd.), Tbe HooÍJ oftubiks»; Londres, Ad.nu e Ch.ulcs BI:lck.I<)02, pp. LXXVII-LXXXII.
27 . .I-I'. Albcrt, "La l.égcndc de Saintc ,\Iarguerile: lJn Mythc m.úcutiquc?", NIIZO, H, '19Ho, p. 20.
2H. C. Rivicrc, "Syncrótismc", em 1'. Bontc c IvL IZ:ll'(1 (dir.), t iicttonnntre de !dl)}/o!ogie ('I de 1'(/1/-
tbropologic, l'uris , I'lJ!', 1991, p. 6<)2.
29 .. H'. Ba rc, "Acculru rarion", ibirlcm, pp. 1-2.
/

-52
nis1110medieval mais enquanto ideologia do que enquanto conjunto de crenças
e práticas religiosas. E assim transforma-o num absorvedor de mitologias estra-
nhas a eie, numa estratégia para descaracterizar e englobar outras culturasv'.
Por isso é que aquele autor n~IOpercebe a existência de uma verdadeira
mitologia cristã, mas apenas de uma mitologia cristianizada, No entanto, pelas
condições históricas da época (diferentes, por exemplo, das da evangeliza-
Ç~IOda América), o processo de cristianização não podia ser feito unicamente
pela força. \'{!alter reconhece que o cristianismo não teria podido se impor se
não atendesse ~ISnecessidades espirituais daqueles que pretendia evangelizar
(p. 269). Diante disso, dois caminhos eram possíveis. Ou na sua obsessão de
conversão o cristianismo absorvia elementos opostos a ele e se descaracterí-
zava, ou reconhecia certa identidade com outras mitologias, e assim o sin-
cretismo ocorreria de forma natural. Contudo, apenas na última página de seu
livro Walter admite que as "concordâncias entre as duas religiões (indo-européia
e judaico-cristã) permitiram ~l segunda englobar pouco a pouco a primeira"
(p. 269). Logo, se para ele "encontrar o traço da autêntica mitologia da Idade
Média n~IOé fácil" (p. 267), isso se deve à sua opção de não trabalhar com
aquelas concordâncias.
Atingimos dessa forma a terceira e mais importante limitação do livro de
Walter: o "cristianismo medieval não se confunde com uma mitologia" (p. 10).
No entanto, superando as barreiras colocadas pela própria cultura erudita
medieval, é preciso ver o cristianismo enquanto mitologia para recuperar sua
globalidade, para entender sua pOSiÇ~IO na cultura da época, para poder alcançar
sua funcionalidade para () medievo. Tarefa na verdade pouco simples, pois,
como () cristianismo é parte da tradição cultural do próprio historiador, este
se vê diante do problema central de "analisar seu objeto com as palavras desse
mesmo objeto, sem reproduzir um discurso tautológico que não explica nada,
que o leva a tantos impasses">'.
Sabe-se que a cultura cristã oficial entendia por mito um relato fantasio-
so herdado da Antiguidade pagã, negando que o cristianismo pudesse ser ele
mesmo uma mitologia. A teologia medieval opunha história e mito, conside-
rando este um in uolu cru 111, uma capa literária que encobria as verdades da
fé32. O papel da exegese bíblica era exatamente o ele desmitologizar os relatos

30. Dentre outros exemplos possíveis (todos os ~rifos siio nossos): "crenças pag;is que o crisri.misrno
deveu assimilar com ufinalitlade de :IS controlar" (I', 9, cf. também 1'.179); .,método aplicado pela
19rc..'ja em rnatórin de cristianizncâo" (p, 1 r); hugiogrnfia 6 aU111a consrrucao prcmedttada ideologi-
camente e culturalmente" (I'. :11): "a rede de crenças pré-crístãs que a Igreja procuraua dissimu-
lar" (p. nO); "mito célrico bem idcntificávcl camuflado sob um álibi religioso" (I'. 135), "o clero
logo compreendeu o valor I'slm/égicodessa festa l=Páscoal para 'I crísnanízação das religiões pagãs"
(p. 1 ~3): "a hagiogr:lfia medieval se fundamenta nu transformação est udurln de tradições mitológi-
cas pag;;s bem anteriores :1 cristianização" (p. 175. ct. também p. 26S).
31. J.-c. Schmirr, "Une I listoirc rcligicusc du Moyen Age esr-ellc possiblc?", l'n!ltlces, 19, 1990, p. 77.
32. IVI.·1). Chcnu, "lnvolucrum.. l.c Myrhc selou les rhéologicn» médióvaux", em Arcbiues cl'bistoire
tloctrinale ot Iittérairc d u M0.l'<'1I /lge, 22, '19'5'5, pp. 7:'-79,
53
sagrados, racionalizando-os, historicizando-os. Contudo, como toda manifesta-
ção cultural importante nas sociedade pré-industriais, o cristianismo nascera
e se desenvolvera num enquadramento mental fortemente mitologizado, e
portanto dele dependente. É claro que isso não tornava os medievais menos
cristãos, nem o fato de eles não terem tido consciência da forte carga mítica
de sua cultura invalida que a examinemos também por esse ângulo.
Com efeito, para se compreender um momento histórico é preciso vê-lo
com os olhos dele mesmo, mas também com nossos olhos, para desvendar o
que estava oculto ao próprio passado, já que contamos hoje com instrumetos
de análise que ele não possuía. Entender a relação, negada pela época, entre
mito e cristianismo é entender melhor o sentido profundo de ambos. É per-
ceber que, se o cristianismo medieval era um vasto sistema de representações
mentais, verbais, gestuais e imagísticas através do qual os homens de então
atribuíam certa ordenação e certo sentido ao universo, era exatamente porque
ele era uma mitologia. Tratava-se portanto de uma visão de mundo construí-
da historicamente, com elementos de variadas procedências e graças aos quaís,
por sua vez, a sociedade construía concretamente seu próprio mundo. O cris-
tianismo medieval não era apenas um conjunto de dogmas ou a fundarnen-
ração ideológica de certos grupos sociais. Era também um conjunto de crenças
e valores que articulava todas as instâncias do universo, gerando certo senti-
mento de segurança diante das forças da natureza e dos mistérios do mundo,
da mesma forma que faziam todas as mitologias para as sociedades arcaicas.
Por isso, como Maurice Lauwers acertadamente percebeu, o método
menos imperfeito de estudar a dimensão antropológica da cultura medieval é
compará-Ia com a de sociedades tradicionaisx'. Pode-se então aplicar à Idade
Média as observações de Malinowski sobre comunidades primitivas, para as
quais mitos são "histórias [que] constituem a expressão de uma realidade pri-
mordial, superior, mais importante, que condiciona a vida presente, o desti-
no e as atividades da humanidade, e cujo conhecimento proporciona ao homem
a motivação de seus atos rituais ou morais e, ao mesmo tempo, lhe dá indica-
ções sobre os meios de realízá-Ios'w'. Efetivamente, para as sociedades pré-
industriais mito é um relato sempre verdadeiro, pois, mais do que estar liga-
do às condições históricas concretas em que surgiu, seu sentido é, através c~
linguagem metafórica, expressar os sentimentos básicos daquelas sociedades.
Sendo uma "realidade vivida", o mito não é nem relato falso, como argu-
mentavam os eclesiásticos medievais, nem sobrevivências culturais, como pen-
sam alguns eruditos modernos'», Podemos também aplicar a essa questão a

:l:l. M. Lauwcrs, "Rcligion populairc, culrurc rolkloriquc, mcnrulité«. Notes pour une .mthropologic
culturcllc du Moycn Age", f(!ulIe ctbistoire ecclésiasttqnc, k2. ] 9k7. pp. 251-252.
Yi. B. Malinowski, Mrlb in trimitii» /'srcb%p,)', Londres, Kegan Paul."! 926. p. 2].
35. (: significativo que um estudioso do porte de jcan Pcpin, que rcsurnc com macstri.t os compo-
nentes mítíco» do cristianismo primitivo. intitulc seu trabalho "Survivanccx mythiqucs dans lc chris-
tianismc .incicn": (em) Bonncfoy, ojJ. cit, \'01. 11,p. (i6i)-IíT5.
51
aguda observação de jean-Claude Schmitt, para quem falar em sobrevivências
do paganismo na religiosidade medieval é uma postura metodologícamente
ultrapassada, pois toda crença ou rito não é combinação de relíquias ou de
inovações, mas uma experiência que só tem sentido na sua C()eS~1Opresenteõ''.
Realmente, uma mitologia não é lima colagem artificial de relatos míticos, mas
um conjunto único que pela sua própria existência revela uma coerência, uma
aceitação sociopsicológica. Daí a unidade da mitologia da Idade Média ociden-
tal, apesar de suas múltiplas origens (oriental, judaica, greco-romana, cristã,
céltica, germânica).
Em função disso, o título do livro de Philippe Walter - Mytbologie cbré-
tietine - é inapropriado, pois na verdade ele examina apenas um aspecto
daquela globalídade, o fundo mítico céltico que se fundiu no grande conjun-
to mitológico do cristianismo medieval. Sem dúvida a herança celta foi impor-
tante na constituição do cristianismo medieval, porém não se pode tomar a
parte pelo todo, nem sequer atribuir a ela uma parcela preponderante. Mesmo
onde temos reconhecidamente lima confluência cultural, \'(1alter tende a ver a
presença exclusiva da contribuição celta. Por exemplo, "a igreja cristã redis-
põe no seu espaço específico os três elementos principais do culto druídico:
a pedra megalítica (menir ou dólmen) se transforma em pedra de altar; as
fontes batísmais, onde ocorrem os batismos, representam a antiga fonte sagra-
da; quanto às árvores da floresta-templo, elas se tornam pilares e colunas de
uma nave em pedra com seus capitéis de ornamentação vegetal" (p. 13).
Não é preciso insistir que altar, fontes e árvores sagradas não eram exclusi-
vidade da cultura céltica, nem que a comparação árvores-colunas de capitéis
com motivos vegetais é no mínimo discutível. Aqueles elementos druídicos \
não estavam presentes no templo cristão por absorção, mas porque pedra,
água e árvore eram componentes de longuíssima duração da religiosidade das
sociedades pré-inclustriais. Devido mesma interpretação celticizante, Walter
à

pensa que heresia e feitiçaria são frequentemente "formas e temas míticos do


paganismo céltico que não puderam alcançar o estágio de uma sacralidade
reconhecida no cristianismo" (p. 210), o que desconsidera todo um conjunto
de fatores sociais, institucionais e teológicos que, ao lado dos fatores cultu-
rais, criaram condições para o aparecimento daqueles fenômenos.
Ele acredita igualmente que "a fixação do Natal no 25 de dezembro res-
pondia admiravelmente aos costumes pagãos da refeição das fadas associada
a um nascimento excepcional" (p. 93). Ora, sem negar essa possibilidade, não
se pode esquecer que aquela data era comemorada em Roma pelo menos
desde 336, e foi a partir dali que penetrou no restante do Ocidente, onde

36. J-c. Schmitt, "Rcligion popul.iirc ct culrurc folkloriquc", /1/:"SC; 31, '1976, pp. 9-\5-9-\6, posição
acompanhada mais tarde ror N. lsclmonr, Prtl'o/esj)(/feJ1lles, Paris, lmago, "1986, p. HR: "1I1ll~1 crença
ou UIll costume niio podem j.un.us ser puras sobrevivências. 1':I<.:s
sâo ~IS vezes arc.rixrnox em rcbç}o
~'lcultura dominante, !lIaS não são jamais anacronísmos".
55
acabou por se implantar no século VP7. Mas, sobretudo, a associação do
nascimento de Cristo em 25 de dezembro respondia a um fenômeno mítico
largamente presente e profundamente enraizado mesmo fora dos quadros
culturais celtas: o sol renascente do solstício de inverno. o Egito e na Síria
comemorava-se naquela data a festa pagã da virgem celeste dando à luz um
novo sol.iH. Aquele era ainda o momento da principal festividade do mitraís-
mo, a mais importante religião no Império Romano do século III e parte do
IV. Como o próprio Cristo se definira como "luz do mundo'v", era natural iden-
tifícá-lo ao sol, tanto que, como se sabe, o dia cio Senhor (dies dominicus,
dimancbe, domenica, domingo) foi chamado no calendário cristão dos ter-
ritórios germânicos de "dia do sol" Csuriday, sonntag). Enfim, não se pode
reduzir aquele complexo fenômeno de sincretismo à simples transposição da
"festa das fadas" ~l "festa do nascimento do Cristo".
Da mesma maneira, as origens e o significado do mito da Virgem não
podem ser abusivamente simplificados a uma identificação com os poderes e
o culto da fada Cp. 91). Por exemplo, o templo pagão de Soissons, que no
século V passou ao patronato da Virgem, estava anteriormente dedicado à
deusa egípcia Ísis/llJ, isto é, ao culto oriental da terra fecundada periodicamente
por Osíris, () Nilo. Nem mesmo a ainda insuficientemente conhecida Virgem
Negra pode ser considerada uma "autêntica herdeira das fadas" (I'. 238). É
verdade que seu culto quase sempre se dava próximo a fontes e grutas, porém
o caráter crônico não era exclusivo das manifestações religiosas célticas. Efígies
negras tinham sido consagradas a Diana, Cibele, Atená, Vênus e Ísis, esta últi-
ma muito cultuada também na Gália?". As Virgens Negras resultavam "do sincre-
tismo de divindades orientais, gregas, romanas, gaulesas, sucedendo a deida-
des ancestrais da Fecundidade'<'.
De toda forma, para abordar a "autêntica" mitologia medieval- o cristianis-
mo resultante de todas as tradições presentes na sensibilidade da época - se-
ria preciso dar um lugar de destaque à Bíblia. No entanto Walter raramente a
utiliza, e considera mesmo o modelo bíblico oposto ao modelo mítico (p. 268).
Mas, se para o relato hagiográfico São Columba Lisa como travesseiro uma
pedra, isso se devia tanto aos megálitos celtas (p. 203) quanto ao relato bíbli-
co do sono de Jacó-15. Apesar de o texto bíblico negar de forma explícita seus

37. G. M. I)ury, "N(ll'l'", em ntcuonnaire de sj>iritU(/!iIi.', (15 vols. l, Paris, Gahricl Hcauchcxnc, 1Y31-
1991, vol. XI, col. 3H6.
38. 11. í.cclcrcq, "Nariviré dc jésus", em IMO., "01. XII-l, col. '.ri '5-917.
39 . .108,12, cf. Is Y,I (cirado por Mr ~,16); I.c 2, 32.
10. M. Warner, Alone ofAll l ler Sex. Tbe My/h anr! lhe Cult oftb« Virgill Mll/y, Londres, Weidcnfcld
anel icolson,1976. p. 3ft8.
111. M. Durand-Lcfcbvrc, tttud« sur lorigine dcs Vie/ges Noires, Paris, Dur.issté, 1Y37, pp. H6 e HY.
12. Idem, p. 182.
13. Gn 28, 11.
componentes míticos, opondo-os ~lverdade da fe''', a presença deles ali é pa-
tente. E comprovada pelo contínuo empenho exegético dos eclesiásticos na
sua tentativa de desmitologizar as Santas Escrituras. Sem buscar uma dernons-
tração exaustiva de seu caráter mítico, basta lembrar algumas passagens.
A começar naturalmente pela cosmogonia, claramente baseada no Enutna
Elisb babilônico, do século XII a.c. Assim como no processo de organização
do caos primitivo Marduk precisou vencer Tiamat (ou na mitologia grega, Zeus
submeter Tífon), também Iavé enfrentou e derrotou Leviatà e Rahab, mons-
tros simholizadores das forças incontroláveis das Clguas prunordiaís+'. Assim
como Marduk cortou Tiamat (literalmente "mar") em dois, o mesmo fez Iavé
com () m,ll·/I('. Significativamente, a palavra hebraica que designa o caos pri-
mordial Ctebôtn) no texto bíblíco+? é uma derivação do nome Tiamat. A grande
mas única diferença entre os dois relatos está no fato de Marduk depender de
lima matéria preexistente para criar o universo, ao contrário de Iavé, cujo
poder e unicidade não têm limites.
Para diversas mitologias, os primeiros tempos após a Criação foram con-
turbados, com disputas pelo poder no mundo divino. O episódio de um deus
castrar seu pai durante aquela luta (como fez Cremo com Urano e depois Zeus
com Cremo) aparecia no relato inicial sobre Cam e Noé e, apesar de alterado
mais tarde no processo de rnonoreização, seus ecos permaneceram na narra-
tiva do Gênese'" e possivelmente em tradições orais. Por isso o sentido míti-
co original, reativado por condições locais específicas, pôde reaparecer na
longa duração histórica num afresco medieval de Saínt-Savirrt", No mesmo
contexto mítico de revoltas contra as dívíndadesv' é que ocorreu a queda de
Lúcifer e outros anjos, enciumados e irritados com Deus devido criação do à

homem, pelo que conta um apócrifo de grande sucesso na Idade Média>'. Os


anjos, aliás, apresentavam "algumas analogias espantosas com aquelas que a
mitologia atribuía miríade de divindades inferiores encarregadas
à de cuidar
do homem durante toda sua vida"52 São "vestígios de politeísmo na Biblia'>».

li/!. "1... 1não ensinarem doutrinas extravagantes nem se ocuparem de mitos c gcncalogias intermináveis'
CI '1'111 '1,3); "quanto aos mitos profanos e aos contos de comadres. rejeita-os" (J '1'111 li,7); '1..1 afas-
tarào os ouvidos da verdade afim de volrá-los para os mitos" (2 Tn: 1',It); '"1. .. 1 aos mitos judaicos
e aos preceitos de homens que viram as costas Ü verdade" (Tt '1,-1/í); "Na verdade, não é basean-
do-nos em mitos artificiosox que vos damos a conhecer o poder e a vinda de Nosso Senhor Jesus
Cristo, mas como testemunha ocular de sua majestade" (2 Pc '\,16),
15. l's 7/1,11; Is 27,1; I's H9, 11; Is 51, 9.
16. I's 7/1. 13; Is 51, 9.
17. (JI1], 2; Ps 33, 7; 1()'1, 6.
IJH. Gn 9, 21-25.
1t9. C1'., infnt, ensaio n. 3.
50. R. Graves" R Parui, Les Mvtbe« bébreu.x. (trnd.), Paris. Fayard,19H7, p. 76.
51. vtta Adoc:': 2-16, cd . .J. I I. Mozlcv, Tbejonrnal oj""1Z1eo!ogiw! Studies. 30,1929, pp, 131-13:\.
52. 11. l.cclcrcq, "Angcs", em f)/Iel., "01. 1-2, col. 20H1-20H'5.
53. I'.-M. Galopin, "Ang<:", em /Jic/ioill/(/íree/lCj"clojJÍ!diq/lede!(/ IJiIJ!e. Turnhout, Brcpols, 19H7, p. 59.
57
Não é preciso insistir sobre a criação do homem modelado na argila,
narrativa que aparece na mitologia e no folclore de vários povos>". Significativos
também são os paralelos entre Prometeu e Adão. Ambos roubaram a sabedo-
ria do mundo divino, simbolizada no mito grego pelo fogo, no hebraico pela
fruta da Árvore do Conhecimento'». Isso custou ao homem a expulsão do
Paraíso e a perda da imortalidade, fato simétrico ü punição do titã, cujo fíga-
do (centro vital do corpo humano para os gregos) passou a ser diariamente
devorado por uma águia, símbolo celeste. Prometeu sendo titã era muito
grande, como o Adão pré-pecado de lima tradição judaicaSó conhecida no
Ocidente medieval cristãov. O paralelo entre as duas personagens estendia-
se ainda a dois outros pontos importantes para a Idade Média. Para a mitolo-
gia grega o titã fora o inventor de holocaustos aos deuses, para um apócrífo
cristão o Pai da Humanidade é que erguera o primeiro altar e oferecera os
primeiros sacrifícios ao Senhor>". Ambas as personagens foram libertadas de
seus tormentos graças a duas figuras miticarnenre comparáveis, como vere-
mos, Héracles e Cristo.
Também é inegavelmente mítica a versão bíblica do nascimento de Eva,
baseada num relato sumérío segundo o qual para curar as dores do deus Enki,
Ninhursag extraiu-lhe uma costela e criou a deusa Ninti. Ora, esse nome sig-
nifica "mulher ela costela" ou ainda "mulher que faz viver">", etimologia próxi-
ma ao aramaico Havva C'aquela que dá vida") e explicação bíblica do nome à

Eva ("mãe de todos os viventes'<v). O principal episódio da segunda geração


de seres humanos, a oposição entre () agricultor Caim e o pastor Abel, tam-
bém estava calcado num relato sumério, o da disputa entre Enkindu e Dumuziv'.
Igualmente mesopotâmíca era a célebre narrativa do Dilúviov-, bastante comen-
tada na Idade Média pela teologia e representada pela arte. Os gigantes referi-
dos pela Bíblia, produtos de hierogamias entre anjos e mulheres mortaís'»,
aparecem ainda em outras mitologias do espaço cultural do cristianismo
medieval, como a grega, a céltica e a gerrnânica.

51. Gn 2,7; j.-G. Frazcr, Folls-Iore in tbe Old 'testontent, Londres, Mucmillan, 1923, pp, 4-15.
5'5. Além do conhecido relato de Gn :I, 1-7, () roubo da sabedoria divina foi também registrado em
outra versão, alterada ao ser incorporada na Biblia, mas cujos ecos são ainda pcrccprfvcís.}» 15,
7-8, cf. Graves e Putui, (ljJ. cit., P: 91.
56. Midrasb Rabba, 1'1,1,rrad. 11. Maruani e A. Cohcn-Araxi. Paris. Vcrdicr, 1987. p, lWI; l.. Ginzberg,
Tbe t.ogcnr!« ()/' tbeletos, Filadélfia, 'I'hc .Ic\V Socicry 01' Amcrica, '19'1J. 1'01. I. p. '59;1 Y25. vol. v, p.
79 n. 22.
1

')7. Walter Ivlap, Dc Nugi« Curialium, 1.1, cd. M. 1(. jumcs, Oxford, Clarcndon, 191;i, p. 2.
'58. fi Contbatttmento di /1 da 11I0. cd.-rrad. A. Barrisra e 11.lIagalti, Jerusalém, FrancisGI11 Printing l'rcsx,
1982, H, pp. '53-5'5; 46, pp. 117-118.
'59. S. Krumcr, t.Tttstoire conunence ri Sutner, trad., Paris, Arth.iud, 1986, pp. 166-]68.
60. Gn:l, 20.
61. Kr.uncr, ()jJ. cit., p. 186.
62. Gn 7, 10-24; G. Conrcncau, t.e /Jé//lge babvlonien, Paris, l'ayot , 1911.
63. Gn 6. 1-5; Nm 1), 33; Dt 2, 10-'11.
58
Toda essa riqueza mítica não era exclusividade do Antigo Testamento.
Assim como Amon-Ra assumira a forma do marido da rainha Ahmes para
fecundá-Ia'», assim como Zeus se metamorfoseara em chuva de ouro, homem
mortal, outra divindade, touro e cisne para fertilizar mulheres mortais'», o
mesmo fez () Deus cristão com Maria através do Espírito Santo, geralmente
representado desde fins do século I ou começo do II sob a aparência de uma
pornbaw. Esse casamento sagrado pouco se diferenciava, aliás, das tradicionais
hierogamias, pois a Virgem era indiscutivelmente uma nova hipóstase das
antiqüíssimas Mães-Terra'P. A maternidade por parte ele uma deusa virgem
também tinha antecedentes, como o mito de Atená. Se Maria, no céu, desposou
misticamente Cristo, ao mesmo tempo seu pai e seu filho6H, essa relação não
era estruturalmente diferente de outras entre mãe e filho (como Cibele-Átis)
ou entre irmãos (como Osíris-Ísis ou Zeus-Hera). Baseada nessa tradição míti-
ca é que a Igreja medieval se via como mãe e virgem, como esposa do Cristov".
Mais importante, vários deuses tinham sido mortos e haviam ressuscita-
do. Portanto o elemento central do cristianismo - um filho de Deus nascido
de mulher virgem, depois sacrificado e ressuscitado - resultava da reutiliza-
ção e harmonização de dados míticos anteriores. O sentido da crucificação, o
pai sacrificando o filho com finalidades expiatórias, era semelhante ao que
envolvera Abraão/Isaac?", jefté/sua filha única?'. Agamênon/Ifigênia, Cré-
on/Meneceu, Tântalo/Pélops, Idomeneu/seu fílho'". Como em qualquer ban-
quete canibal, também para o cristianismo () sacrificado deve ser devorado

61. T. (õ. I r. jamcs, Mvtbcs et légendcs de l'I:i{l1J1e ancienne, (trad.), Paris, Laroussc, 1\>70, p. H3-s>l.
65. 1'. Grimal, Dictionnaire de 17/.I'lbol(~~iegrecque et ronutine, I'"ris, I'lJl', 10. cd .. 1990, pp. 9, 26, 76.
151 e 257; p"r" concretizar um ;111101' homossexual, Zeus assumiu a forma de águi", cf. 1'.163.
66. I.c 1,:\5;.1.-1'. Kirsch, "Colombc", em f)/Ier, 1'01. 111-2, col, 220:\ c 2212-221); 11. l.cclcrcq," I':sprit
(Lc Saint) .., em ibidcnt, 1'01. V-'I, col, 52'5-'52K. A pomba cr.i, "Iiá" atrlburo de lshtar (cf. 1,. Larochc.
"Animaux". em Bonncfoy, op, cit., 1'01. I, p. 36), um" das representações pré-cristás de Maria.
67. Os textos li respeito sào abund.mrcs, de Santo Agostinho sSernumcs. Hl9, 11, em 1'1.,:lH, eol. 10(6)
li jacopo de V"razzc (Legenda. '12, 3, p. 75). (, inrcrcssanrc que Ev", outra representação da Mãe-
Terra, ao dar ~l luz tenha se referido não ao pai humano de seu filho, mus a Deus ("ganhei 1I1n

homem com a ajuda do Senhor", "Gn i, 1), enquanto Maria , "O contrário, lembra seu dcsconhc-
cimento de homem quando o anjo de Deus lhe bla em filho (I.e 1, 310). O modelo hierogâlllico
que aparece na fiíblia.:' inegavelmente de origem suméria, conforme o célebre estudo de S. N.
Kru me r, I.e J1-(tlnáge sacré, (rrad.), Paris, Bcrg, 19H3.
6S. A. Maycr, "Matcr ct l-ilia. Ein Vcrsuch zur srilgcschíchrltchcn Lnrwicklung cincs Cchctsausdrucks",
ciwjabrbucbfür l.iturgietoissenscbaft, 7, 1\>27, pp. 68 ..69.
69. Santo Agostinho. ne SIl17Cltl I'ilgini/(lle, 11, 1'1.,10, col, 397.
70. Gn 22. 2-13; lavé csrnbclcccra que "todo primogênito é meu": I':x 3'1, 19.
7í. . esse episódio a personagem promete que se vencesse seus inimigos cnrrcg.ui.t em ho!ocausto :l

Deus a prirncir« pessoa que visse em sua casa <Jz 11,30-:\9), bio parnlclo ao de ldomcncu, que
prometeu se fosse salvo de uma rcmpcstadc sacrificar () primeiro ser humano que encontrasse no
seu reino <Grilllai, ojJ. cít.. p. 22H).
72. Grima], ojJ. cit., pp, 19, 291, 35'1-3'5'5 e 228.
pelos seus seguidores: "Tornai e comer, Isto é o meu corpo"T~. O faro de a
hóstia cristã tornar-se carne de Deus apenas através de um rito específico não
ü descaracteriza enquanto canibalismo, como aliás percebeu \Valter (p. 1i15),
pois esse ato é "sempre simbólico, mesmo quando ele é real"?".
A comunhão cristã é um rito de transmissão de poder, de apropriação
das virtudes do mono, faro antropológico e mírico bem conhecido de várias
sociedades. No plano sociológico, talvez se possa aplicar ao Ocidente medieval
a constatação feita para a sociedade árabe pré-islâmica: o consumo de uma
mesma vítima sacrificial estabelece fortes laços entre os membros da cornu-
nídade">. É isso que mostra, a partir de meados do século XII, o abandono do
costume quase universal de todo cristão comungar sob as duas espécies (hós-
tia e vinho)7G, fato que reforçou a coesão interna do segmento eclesiástico,
único a praticar desde então a dupla comunhão. Cornplementando e de certa
forma compensando o processo anterior, em1215 a Igreja estabelecia a obriga-
toriedade de os leigos comungarem pelo menos uma vez ao ano, decisão
tomada no contexto de progressos de sentimentos nacionalistas que pode-
riam colocar em segundo plano o sentimento de pertencer a uma sociedade
mais global, a da Cristandade ocidental.
A descida de Cristo ao mundo infernal (ao Limbo na expressão medíeval?")
aparentava-se a várias outras aventuras no mundo subterrâneo. A deusa suméria
Inanna (ou Ishtar para os babilônicos) ficou três dias no mundo inferior, onde
reinava sua irmã e inimiga Ereshkigal/", () mesmo tempo de Cristo no Inferno,
domínio de Satanás, num certo sentido seu irmão, Dioniso desceu aos Infernos
para resgatar sua mãe, SêmeIe79, como fez Cristo com sua mãe, Eva. Héracles
submeteu o cão Cérbero, que guardava as portas do reino infernal, impedin-

73. Mt 26, 26-28; Me 11, 22-21; I.c 22, 19-20. Significativamente, o texto evangélico utiliza o verbo
lelao; "quebrar, fa7.er em pedaços, romper", c não "dividir" como aparece em algumas traduções
modernas.
71. M. Sahlins, "Raw Women, Cookcd Mcn and Othcr "Grcat Thing~" 01'thc I'iji Islands", em 1'. Brown
e D. Tuzin (cds.), The lilimogmpby (!!" Ca nnibnllsn), Washington, Socicry for I'sychologic:tl
Anrhropology, 1983, rp· 72-93, aptu! M. Carneiro da Cunha, "Cannibnlisrnc", cm Diatonnatre de
I "elbl1ologie ('I de 1'cllllbrojJologie, p. ·12·i,
7'). W. H. Smirh, l.ecturcs 011 tbe /{el(~io1/ oftins Semites, Edimburgo, 1IIack.1889.
76. E. Dublanchy, SUl' Ics dcux cspcccs", Dicttonnaire de Ihéoiogie catboltque. (I5 vols.),
"Communion
Pnrix, l.ctouzcy ct An6, 1930-1950, "01. 111-1,col. ))'l-560.
77. A palavra limbus indicando as bordas do Inferno e O local onde ficavam os não barizados parece
ser expressão das novas condições históricas do século XII:.I. l.c Goff, "Lcs l.imbcs", Nouoelle recue
de psvcbanalyse, :Si, 1986, J)J).161-161.
78. Kra me r, op. cit., PJ). 19R-209, J. Bottero e S. Kramcr, i.orsque les dieitxfaisaient lbomme. J1~)'{boiogie
ntésopotamten ne, Paris, Gallímard, 1989, PJ). 276-290. A mitologia rucsoporâmíca fala ainda em um
mortal, Enk idu, que desceu ao mundo inferior e só niio retomou ao mundo dos vivos por não ter
seguido as recomendações de Gilgal11csh: 1.'lijJopée de (;ilgoll1es;', XII, rrud . .f. Bottcro, Paris,
C;allimarcl, 1992, J)J). 206-216.
79. Grimal, O/I. cit., pp. '127 c 'Í 18.
60
do que os mortos saíssem daliHIJ, da mesma forma que Cristo subjugou os
guardiôes do Limbo e quebrou suas portas de bronzes'. Como Héracles liber-
tou Teseu e mais tarde Alceste daquele lugar82, também Cristo venceu a morte
e arrancou do Limbo os justos do Antigo Testarnento'". Orfeu, cujo mito exerceu
incontestável influência sobre o cristianismo primitivo, foi ao reino de Hades
resgatar sua esposa Eurklice - ninfa, portanto filha de Zeus e personificação
da fecundídade -, que morrera picada por uma serpente'", isto é, persona-
gem que apresenta claros pontos de contato com Eva, retirada do mundo infe-
rior por Cristo.

CGu

Ascensão

Encarnaçâo t Ressurreição

Morte ~ Arudura do Inlcrno


.-------/
I)esckl:i
ao Inferno

Fig.1

A Cruz na qual () Deus encarnado foi sacrificado é comparada pelo texto


bíblico a um altarHS, e é identificada pela tradição medieval ~l Árvore da Vida
do Éden, a Árvore Cósmica presente em praticamente todas as mitologiasw,
Árvore quase sempre guardada por um dragão-serpente que o deus ou o herói
deve enfrentar, como fizeram, por exemplo, Gilgamesh, Apoio, Perseu, Héracles
e Siegfried. E também Cristo, que vence o dragão-serpente identificado ao
Diabo-? quando resiste à tentação demoníaca no deserto e quando rompe as

80. Idem, p. 195.


81. tvlr 27, 52; 1 Pc 3, lH-20; Gest« Pilau-Descensus Cbristi ad l nferos, 17-27, cd. C. Tischcndorf,
tioangeli« I1jJOC1:J1J/J({, l.cipzig, l lcrmann Mcndclssohn, 1H76, pp. 117-1)2.
82. Grimnl, op. cit., p. 86 c 195; Iliculc, v, 39\ trad. 1'. Mazon ('I alii; Paris, Bcllcs Lcrrrcs, 1937, vol, I,
p. i )0; Eurípedes, Alceste, \'1'. H10-850 c 113H-l 112, rrad. I.. i'vléridicr, Paris, Bcllcs l.ctrrcs, 1925,
1'1'. H9 ctoo.
83. 1 Cor 15, 55; Descensus Cbrisli (fel inferos; cf. nota ~n.
81. Grim«], op. cit., p. 320.
H5. IIc 13, 10-12.
86. E. O. jamcs, Tbe Tree o/I.i/i': An Arcbeological SII/(()', Lcidcn, IIrill, 1966;.J. Brossc, Mvtbologic de"
arbres. Paris, I'lon, 1,!H9; 1\. Barroso Cahrcra "J. Morin de I'ahlos, /;'/ Árbol de ItI vtda. ttn Iisutdio
de Icol1o,qmjf(/ vtstgorl«. Madricl, B,'vliVIel', 1993.
87. Ap i2,9; 20, 2.
61

Chamad;--- <,
Passagem pelo limiar da aventura Elixir
Batalha contra o irmão
Batalha contra o dl:lgão
Dcsmcmbrarncnto Retorno
Crucificaçào Ressurreição
LIMIARDA AVENTURA Resgate
Seqüestro
Batalha do limiar
Jornada no mar noturno Provas
Jornada maravilhosa \ VCXl
No ventre da baleia
Ajll~~

~
Casamento sagrado
Expiação do Pai
Apoteose
Roubo do elixir

Fig.2

portas do Limbo para liberar os justos&~. Enfim, se pensarmos na trajetória


histórica do Cristo (esquernatízada por Northrop Frye8~ na Fig. 1), veremos
que ela corresponde àquela que Joseph Campbell'v estabeleceu para todo
herói mítico (Fig. 2).
Diante disso tudo, pode-se dizer que a Bíblia é o grande repertório
mitológico do cristianismo. É a Odisséia cristã. De fato, da mesma forma que
a obra grega é uma Iiterarização de tradições orais bem anteriores e coloca-
da sob a autoridade de um poeta também em certa medida mítico?t, a Bíblia
cristã reúne textos de origem oral e escrita elaborados ao longo de mais de
mil anos e atribui sua autoria última ~l maior de todas as personagens míticas,
Deusv-. O paralelo estende-se sobretudo ao argumento central da narrativa: o
homem forçado pelas circunstâncias que ele mesmo criou abandona sua terra
(Ítaca; Paraíso), passa por muitas e difíceis aventuras e por fim, transforma-
do, consegue retornar a ela. Em função dessa estrutura narrativa, ambos os
livros estão povoados por monstros, gigantes e magos, por sonhos premo-
nitórios, visões e profecias, por oráculos, reis e heróis, por bênçãos, .naldiçôes

88. Mt/i, 1-11; Lc1, 1-13.


89. N. l'ryc, Tbe Great Code: 'lhe Bible ({11d t.iterature, Londres, Routlcdgc anel Kcgan Paul, 1981, p.
175.
90. J. Campbcll, 'lhe lIero tuitb ti Tbousancl Faces, Princcton, I'UI', 2. cd., 1968, p. 215.
91. A erudição moderna pensa que l Iomcro é um nome coletivo, mas os gregos viam nele um poeta
cego, sinal de visão das coisas ocultas aos homens comuns, de forma semelhante ao mítico adivi-
nho Tlrcsins.
92. A autoria dos livros do Pentcueuco, tradicionalmente atribuída a Moisóx, é em si mesma um dado
mitico (Nc 13,1; 2 Cr 2:\, 18),asxirn como ver em Davi o autor dos Salmos U Cr '16, 7; 2 SI 25, l),
em Salomão o do Cântico dos Cânticos (I R 5, 12) ou no apóstolo JO'IO o do Apocalipse, dados
que a crítica moderna não aceita há muito tempo: ver artigos correspondentes do l riction naire
cncyclopédique de Ia Bible, op. cit.
62
e interdições, por ritos de passagem, tabus e sacrifícios, por hierogamias, linha-
gens e incestos.
Mas a mitologia cristã medieval foi composta ainda por diversos elemen-
tos extra bíblicos ou que desenvolviam temas bíblicos. É o caso da Virgem
Maria, sobre a qual as referências testamentárias S~IO escassas, mas que foi
objeto de vários textos apócrifos e de muitas especulações teológicas. O desen-
volvimento de seu culto a partir do século XII mesclou aqueles materiais com
tradições orais de diversas procedências, transformando-a na versão crístã das
antigas deusas-mães. Sendo mãe e virgem, a cultura erudita via nela um sím-
bolo de pureza, uma "nova Eva", A cultura folclórica, a partir daquelas duas
características preferia enfatizar outros aspectos dela, a proteção e a fecundi-
dade. Proteção que recompensava mais quem lhe era fiel do que quem tinha
uma conduta moralmente correta'o. Fecundidade que fazia um poeta do sécu-
lo XIII ver nela a "terra que dá sustento'v! e outro louvar aquela "que nos deu
o alimento de que todos comemos'v-.
A partir de apenas uma referência bíblica9G, o tema dos reis Magos inspirou
na Idade Média LIma rica iconografia, importantes peças teatrais e a utilização
política de suas pretensas relíquias por parte de Barba-Ruiva?". Na base desse
desenvolvimento encontrava-se possivelmente o fundo mítico indo-europeu.
De fato, os presentes que cada um deles levou ao Cristo recém-nascido estavam
associados às três funções indo-européias: incenso (sacerdócio), ouro (realeza),
mirra (produtores). Segundo dois apócrífos cristãos do século VI, tais produ-
tos foram tirados do Paraíso por Adào e guardados numa caverna de onde
foram levados pelos Magos ao menino-Deus?". Da mesma forma que cada pre-
sente correspondía a uma atividade social, cada Mago correspondia a uma
idade do ser humano, a velhice, a maturidade, a [uventudev? Assim, no plano
social eles expressavam uma nova organização: o sucesso dos Magos e do
esquema trifuncional a partir do século XI foram fenômenos paralelos resul-
tantes de um mesmo imaginário. No plano mítico eles eram um símbolo da
totalidade, um reflexo do próprio Cristo, uma referência a um conceito que
então se fortalecia, o da Trindade.

93. vários exemplos em t.a Denxiênre collcction a nglo-nornunule eles miracles de Ia Sainte lIierge ei
SOI/ originrtl lrttin, cd. I I. Kjcllman, Paris-Uppsala, Champion-Akadcmiska Bokhandcln, 1922.
9'i. I.es t\'ell/j(){('s Nostrc Drune, 111,20, cd. T. 1'. Must.moja, l lclsinki, Suomuluiscn Ticdckarcrnian
Toimiruksi«, 19'52, p. 1j.1.

95. Gonzalo de 1Ierceo, Il·!iIa8l'Os de Nuestra Seüora, v. 35b, cd, M. Gcrli, Madrid, Cátedra, 19H5, p. 75.
96. Mr2,1-12.
97. Cf., infra, ensaio n. IÍ.

98. l.a Caserna dei Tesori, 20, cd-rrad, A. Ik'lri~ta e B. Bagarri, jcrusalém, Frunciscim I'rinting Prcss,
1979, p. 15; Testamento de Adán, 7, rrud. 1'.j.rvicr Martíncz l'crnándcz. em A, Dicz IVIacÍ10 et alii
(cds.), Apocrtfos dei Antiguo Testamento. Mudrid, Crisriandad, 1987, \'01. V. p. 135.
9~~. l'~"isatradição estava presente no Oriente desde o ...•éculo VI c no Ocidente desde fins do IX, segun-
do E. IVI:I\e, 1.'/11" reltgicux d u XIW siécl«, Paris, Armand Colin, 7. cd., 1931, pp. 215-216.
63
Esta, sem dúvida, era um elemento central no cristianismo medieval,
porém contava com lima referência bíblica ainda mais ligeira do que aquelas
sobre a Virgem ou os MagosllJO Talvez por isso é que ela nunca teve uma
grande aceitação popular, com a festa da Santíssima Trindade tendo sido insti-
tuída apenas em 1334. Contudo, mesmo sendo uma construção erudita, a con-
cepção da Trindade baseava-se em elementos míticos. Inicialmente a velha
idéia de tríades divinas (por exemplo Anu-Enlil-Ea, Osíris-Ísis-Hórus, júpiter-
juno-Minerva), apesar de a Trindade cristã possuir uma unidade e uma arti-
culação interna desconhecidas naqueles outros casos. Depois, pode-se pen-
sar na influência da trifuncíonalidade indo-européia. Nessa hipótese, os pro-
gressos da teologia trinitária nos séculos XI-XIII teriam estado relacionados,
mesmo inconscientemente, com o esquema da tripartição social da época.
A Idade Média parecia imaginar o Pai como sacerdote, o Filho como rei
e o Espírito Santo como produtor. Para uma sociedade como a medieval, basea-
da no parentesco, na autoridade e no dom, o clérigo era quem mais se aproxi-
mava da imagem do Deus Pai, "de quem tudo vem"!v'. O Filho era guerreiro
("não vim trazer paz, mas espada"102), vencedor de Satanás, por isso era o Rei
dos reis, o descendente de DavillJ5: na Idade Média dizia-se que "trono vacante,
Cristo reinante". O Espírito Santo, por sua vez, estava associado à fecundi-
dade, pois era o grande princípio vivificador, aquele que agiu na criação do
universo, que deu vida a Adão, que engravidou Maria lIH Além disso, a divisão
social de funções atribuía idealmente uma idade para cada papel, a velhice
ao sacerdócio, a maturidade ao guerreiro, a juventude ao trabalhador. Ora,
como o Pai era o Criador e estava mais relacionado com o Antigo Testamento,
ele era associado velhice; o Filho, cujo magistério começara aos trinta anos
à

de idadelO5 representava a maturidade; o Espírito Santo, que era a "força


vital"1I)ií, correspondía à juventude.
O elemento quantitativamente talvez mais importante para o cristianis-
mo medieval era totalmente extrabíblico: os santos. Philippe Walter tem razão
quando observa que as hagiografias são "a fonte de informação mais abun-
dante sobre a mitologia da Idade Média" (p. 30). São mesmo "máquina de
crístianizar os velhos mitos europeus" (p. 31), desde que vejamos nesse proces-
so um encontro de identidades espirituais semelhantes e não um puro recur-
so utilitarista de materiais antigos por parte do clero cristão. Só se pode manipu-
lar aquilo que se conhece, só se pode absorver aquilo que se entende. No
limite, é preciso estar convencido para convencer. Exatamente por causa de

lOD. Mr 2H, ]9.


Iül . 1 Cor H, 6.
]02. ,'vIr io, 31.
103. Ar 17, H; Mtl, 1; I.c 3, :;1.
lWi. Gn 1, 2; 2, 7; Mr 1,IH. 20; I.el, 3').
J05. I.c 3, 23.
106. )1> 33, li; Yi, H-I); Is 1j2, ).
61
seus perfis espirituais diferentes, não se pode considerar os santos cnstaos
"sucessores dos deuses pagãos" como fez Saintyvestv/, e como aceita Walter
(p. 119). Ao contrário das divindades do paganismo, os santos não têm auto-
nomia na sua atuação, são intercessores junto ao Deus uno do cristianismo.
Preferencialmente portanto, devem-se ver neles sucessores dos heróis,
inclusive nas sociedades célticasllJB De fato, na maior parte da Idade Média
eles foram menos valorizados por suas virtudes morais que por seu poder má-
gico (milagres, exorcismosj'w, sua função civilizadora IIU, sua atuação guer-
reira contra monstros (por exemplo São Miguel e São Jorgelll) ou exércitos
inimigos (sobretudo Santiagot!-). Como os heróis pagãos, os santos cristãos
tinham um desempenho ambíguo, ora virtuoso, ora víngatívo!''. Algumas
vezes eles representavam a cristianização de outros tipos de personagens míti-
cos, como ocorreu com S~lOCristóvão, antes da conversão criatura gigantesca,
feia, seguidora do Diabo. Um dia, ao carregar uma criança no ombro através
de um rio, ele ficou surpreso com o enorme peso dela, que lhe explicou ser
o Cristo: "Você tem sobre si não somente todo o mundo, mas também aque-
le que criou o mundo"111. Episódio que lembra claramente o tema dos gigantes
subjugados pelos deuses, e especificamente o de Atlas obrigado por Zeus a
sustentar o mundo.
Podia acontecer também o processo inverso, o cristianismo medieval "pa-
ganizar" espiritualmente uma personagem para desqualífícá-la. O exemplo mais
conhecido talvez seja o deIudas, cuja história de vida semelhante de Édipo 115 à

pré-índícava seu papel de traidor. De qualquer forma, enquanto do ponto de


vista teológico os santos não tinham poder próprio, eram meros intercessores
junto a Deus, para a cultura intermediária tratava-se de defensores de seus
fiéis. Por terem ficado desprotegidos é que muitos monges de Bergues (Picardia)
morreram quando, na segunda metade do século XI, as relíquias de São \Vinnoci
deixaram aquele mosteiro por alguns dias, em procissão pela região1lÚ

107. P.Saintyvcs,t.es Saints sucesseurs eles dteux, Paris,Emilc Nourry, :I907.


10S. 11.l lubcrt, l.es Celtes et ia ciuilisation celtiqtte, Paris,AlbinMichcl, rccd. 197/j.[1. 257.Para]. I.c
Coff, "Culrurccléricalcct rradirionsfolkloriquesdunsIacivilisationmérovingicnnc", em P/I M/I , p.
23"1, n. 22, "a Igreja quis fazer dos santos níio os sucessores mas Os substitutos dos heróis".
109. A Legenda /l1I/"e(/ em 151capítulosdedicadosa vidasde santos registra,numacontagempouco
rigorosa, 511 milagres, portanto mais de 3,'5 milagres por narrativa.
11O. Le Goff, "Culrurc ct culturc lolklonquc au Moycn Age:SaintMareeide Paris ct lc
ccclésiastíquc
dragon",em I'ltM/I, P[1. 236-279.
111. t.egenda, H5, pp. 6-12-653 c 58,pp. 259-26'1.
112, l.iber Sanctijacobi, trad, A. Morulcjo,C. Torrese J Feo,Santiagode Composrcla, CSIC-Instiruto
Padre Sarmicnro de EstudiosGallcgox,1951,livro11,pp. 337-3WI.
113. Cf., infra, ensaion. 11.
111. I.egenda, lOO, p. 'í32.
115. Idem. 1;5, pp. 181-185.
116. Miracula wtnnoci; 25, cd. C. de Smcdt ('I alii, em /lcla
Sancti Sanctorttnt, novcmbris Til(1910),
Bruxelas,Culturcct Civilisation,rcimpr,1969,p. 283,
65
Os santos se constituíam, enfim, numa elite dos mortos e se relacionavam
por isso com outro tema mítico importante, o do Paraíso. Local maravilhoso,
resultante da íntersecção de várias mitologias (Campos Elísios, Ilha Bem-aven-
turada, Ilha de Bran, Avalon etc.), ele era concebido de forma concreta pelos
medievais"!". Apesar de a Igreja, desde o século VIII, ter proibido que os mor-
tos fossem enterrados com objetos de uso pessoal, isso continuava a ser feito
devido crença enraízada numa vida semimaterial no além-túrnulo. É o que
à

atestam escavações arqueológicas em cemitérios do século XII, ao revelarem


a existência de hipogeus, prolongamento do costume funerário proto-históri-
co que consistia em reproduzir sob a terra a habitação dos vivos! li,.
A visão rnítica que os antigos egípcios tinham de si mesmos - o homem
como microcosmost!? - não era diferente daquela que os cristãos medievais
se atribuíam. A identificação homem-cosmos partia de Adão, cujo corpo fora
formado com argila dos quatro cantos do mundol-", e cujo nome resultava da
junção das primeiras letras das palavras gregas que designam os quatro pontos
cardeais, interpretação de origem apócrifa 121 aceita por várias autoridades
cristãs122. Sobretudo nos séculos XII-XIII, concebia-se o corpo humano e o uni-
verso compostos pelos mesmos materiais, a carne feita de argila, o sangue de
água, a respiração de vento, o calor corporal de fogo. Cada parte do corpo
humano estava associada a um signo do zodíaco. Cada parte do homem corres-
pendia a uma parte do universo, a cabeça ao céu, o peito ao ar, o ventre ao
mar, as pernas terra, os ossos ~IS pedras, as veias aos ramos das árvores, os
à

cabelos ~IS ervas, os sentidos aos animais. O tema do homem microcosmos esta-
va largamente difundido, aparecendo tanto na teologia quanto na iconografiaI2.i.

117. Graf,"1I Mito dcl Paradiso Terrestre", em Mil i, pp. 37-H9; J. Dclumcau, Une bístoire duParculis,
Paris, Fayard, 1992, pp, 11-97; 11. Franco júnior, IIs Utopins Medieuais, SJo Paulo, Brasilicnsc, 1992,
pp. 113-139.
118. M. Broéns, "Lcx Résurgcnccs pré-indocuropécnncs dans Ic culto dcs morts de l'Occidcnt méclié-
vai", Oiogen<" 30, 1960, pp. 81-115.
119. ,'vl. 11. Trindade l.opcs, () /10117<'11I"itíjJcio e SU(/ Illlegmçâo 110 COSII/os, Lisboa, 'Icorem.r, 1989, fl.

153.
120. Cbctpitrcs de Rabb! lilir>zf'r, 11, 22-2'Í, trad. ,"I.-A. Ouuk nin e E. Smilóvrrch, Paris, Vcrdicr, 1992, p,
77; Ginzbcrg, "IJ. cit, 1'01. I, p. 51-55.
121. Oraculn Svhillinu, 3, 21-26 e t;, 321, rr.id. E. Suárcz de Ia Torre, em Diez Macho, op. cit., 1'01. 111,
pp. 287-2HH e 355; t.ibro de los Secretos de l leuoc, 63-M, trad. A. de Santos Orcro, em ibidem,
1'01. IV, 1'.178.
122. Santo Agostinho, lnjoannis Euangelium, X, 12. Pl.; 35, col. 1173; Bcda, 111S . joannis liuangelium
Exposition, 11, PI., 92, col, 666-667; Alcuíno, Connnentaria in S. joannis livallge/iu1I/, 11,1,1'1. H!O,
col. 777 A; Ilonório Augustoduncnsis, tüucidarturu, 1.11, Pl., 172, col. 1117 A.
123. A bibliografia a esse respeito é vasta, inter alia 1(, Allcrs, "Microcosmus. I'rorn Anaximandros ro
Paracclsus", Traditio, 2, 191r1r, pp, 319-'Í07; 1'. Saxl, ",\>l:tcroCOSI11
und Microcosm in Mccliacval
I'ictllrcs", Lectures, (2 vols.), Londres, Thc Warbllrg lnstirurc-Univcrsity of Lonclon, 1957, 1'01. I, 1'1'.
5H-72, IVI.-T D'Alvcrny, "L'l Iommc commc symbolc: Lc Microcosmc", CI11Sintboii e Sinibotogi«
Meclioeuo. Spolcto, CISSMvl. 1976, 1'01. I. pp. '123-18j,
1/('11'11110
66
Em suma, mais importante que esses poucos exemplos é notar que o
cristianismo medieval cumpria as três funções essenciais e interdependentes
de toda mitologia. Inicialmente uma função psicológica, que possibilitava
àquela sociedade projetar ou sublimar suas emoções mais profundast>t. Com
efeito, toda mitologia permite classificar, criar tipologias, genealogias e ontolo-
gias, e assim transmite às sociedades pré-industriais a sensação, se não de
dominar, ao menos de controlar em parte a natureza. O mesmo valia em
relação à vida social. Quando os iluministas acusavam a Igreja de repressora
e moralista, não percebiam estar fazendo um juizo de valor sobre a visão míti-
ca do cristianismo medieval. Eliminar hereges e norrnatizar o uso do sexo
eram dados da mitologia cristã12S que atendiam às necessidades de segurança
e de organização daquela sociedade. Se a obrigatoriedade da confissão indi-
vidual e renovável permitia aos clérigos controlarem a consciência coletiva
dos seus paroquianos, favorecia por outro lado a emergência de manifestações
inconscientes. Deste ponto de vista, a confissão (isto é, a ritualização do mito)
correspondía ao setting clínico da psicanálíset-õ.
Na sua função pedagógica, a mitologia cristã ajudava a conservar e a
transmitir valores sociais e morais, bem como a propor explicações de fenô-
menos humanos ou naturais considerados importantes por aquela sociedade.
Assim, se é inegável que a Igreja medieval se beneficiou de seu longo monopólio
da cultura erudita, não se pode creditar esse fato a uma atuação unilateral por
parte do clero. Se a Igreja dominava a transmissão formal do saber, é porque
a sociedade via nela a única instituição em condições de cumprir esse papel.
E isso ocorria por ser ela a única a poder exercer de forma sistemática e coeren-
te as funções psicológicas e pedagógicas necessárias sobrevivência de toda
à

sociedade organizada. Por ser ela a única a conhecer e explicar os textos que
davam um sentido à propria vidal-". Por ser ela, enfim, o elemento organi-

121. A validade c os linlitl's (1:1 intcrprcraçâo r"iC:lnalítica dos mitos foi o tema central dos dezoito traba-
lhos do Colóquio de Dcauvillc (1981), publicados na Reouefrançaise de psycbcmalyse, 16(1),1982,
rp·691-900.
125. Por exemplo, "roda árvore que não produz bom fruto é cortada e lancada ao fogo" (Mt 7, 19; l.c
3,9; jo 15,6) c "melhor casar que abrasar" (1 Cor 7,9).
126. "Penso, de fato, que cru grande parte a concepção mitológica do mundo que anima até as rclígíõcs
mais modernas mio é outra coisa que 11111(/ psicologia projetada sobre () mundo exterior. O obscuro
conhecimento dos fatores c dos fatos psíquicos 1...1 se reflete na construção de uma realidade
suprasensioel, que a ciência rcrransforma em urna psicotogta do inconsciente. Pode-se, deste ponto
de vista, tentar analisar os mitos relativos ~IO Paraíso c ~IO pecado original, a Deus. ao bem c ao
mal, :, imortalidade ctc, c traduzir a metafisica em ntetapsicologict": S. I'rcud, Psvcbopatbologte de
Ia oie quotidtenne, (trad.), Paris, Payor, 1967, r. 296.
127. Por isso não concordamos com .1.-1'. Albcrr, "Dcstins du myrhc duns lc chrtstianismc médiévai",
30,1990, p. 56, quando de afirma que as dcscriçôcs do Paraíso terrestre não são mito,
l.'flO11l111e,

pois estão inscridas "numa visão de mundo capaz de realizar plenamente seu sentido", Ora, lima
mitologia - c ele concorda em qUl' "o crist.ianismo medieval 1...1 merece () nome de mitologia"
(p. 62) - é exatamente uma visão de mundo capaz de dar sentido a todos os fenômenos impor-
rantcs para a sociedade que a criou ou adotou.
67
zador do conjunto mítico cristão que atraía e congregava outras mitologias do
Ocidente.
Na sua função anagógica, toda mitologia exprime o sagrado, verbalíza o
inexprimível, metaforiza a metafísica. Ainda que desde os gregos mytbos seja
oposto a lagos, a mitologia realiza o mesmo trabalho decodíficador do univer-
so que a filosofia, apenas o t~IZ em outro plano e com outra linguagem. Ela é,
portanto, uma mediadora de códigos culturais. É também a intermediadora por
excelência entre o sagrado e o profano, pois ambas as categorias estão pre-
sentes no relato míticol2S Este impede o contato direto, destruidor, daquele
com este. Assim como Sêmele foi incinerada ao ver Zeus em sua plenitudet-v,
os homens não poderiam suportar o brilho emanado de Cristo, que por isso
se mostrava sob uma máscara!3o. Assim como Oza foi fulmínado por Iavé ao
tocar a Arca da Aliança 151, segundo São Bernardo todo homem também o seria
se tivesse uma relação direta com o divinol.i2. Em suma, a eficácia da função
psicológica e a legitimidade da função pedagógica partiam da sacralidade da
mitologia, e por sua vez a reforçavam. O mito desangustía e ensina porque é
um relato sagrado ou ao menos sobre o sagrado, e é um relato sagrado porque
acalma a angústia do viver, porque explica () até então incompreensível.

128. Sagrado c profano não são categorias absolutas C impermeáveis, mas designam tempos, locais,
ressoas e objetos sob uma situação determinada. histórica: J. -C. Schmirt, "La Notion de Sacré ct
son application 'I l'histoirc du chrisnanismc médiéval", em Cabicrs riu Centre de Recbercbes
t ustortques, 9, 1992, rr. ] 9-29. Para uma bibliografia sobre essa importante c complexa questão.
veja-se R. Courtas e F. A. ls.unbcrt, "I.a Notion de sacrc. Bibliogruphi« thématiquc", em Arcbioes
dcs sciences sociales eles reltgions. /i1. J 977, rr. 119-13H.
129. Ovídio, Les kh'/(//J/()Il,boses, 111,29')-310, cd.vtrnd. G. í.nfavc, Paris, lIelles l.cttrcs, 1969, r. 79.
130. l lonório Augusroduncnsis, Huctdartum. 1,21. 1'1., 172, coi. 1125.
131. 2 Sm 6. 6-7.
132. Cirado ror M. !'vI. Davy, "I.a Mcntuliré syrnboliquc au XII" sicclc", f)iogi'lIe, 32. 1960. rr. 11/j-115.
MITO E SOCIEDADE
A CASTRAÇÃO DE NOÉ
ICONOGRAFIA, FOLCLORE
E FEUDALISMO

Já há muitos anos, sobretudo nas duas últimas décadas, os historiadores


têm recorrido frequentemente documentação iconográfica nos seus traba-
à

lhos. Não se hesita atualmente em buscar nela dados para análises dos mais
variados tipos, em particular para a história da cultura, da religiosidade, do
imaginárío e da mentalidade. Contudo, menos comumente têm sido explo-
radas as relações entre imagem e folclore, como nos propomos fazer aqui. No
caso concreto que nos interessa agora - os afrescos da nave da igreja aba-
cial de Saint-Savin-sur-Gartempe, próxima a Poítiers, pintados na passagem
do século XI para o XII -, os principais trabalhos prenderam-se a questões
estílístícast, arqueológicas- ou lirúrgtcas>.
Mas, antes de pensarmos especificamente naqueles afrescos, é preciso
considerar, ainda que de forma rápida, o caráter da imagem para os homens
da Idade Média. Conceitualmente, isto é, para a cultura erudita, imago era a

1. G. Guillard, I.C'SFresque« de Sairn-Sautn, Paris, Chênc, 1~H1; E. Maillard, I.'{;'glisede Saint-Sauin-


.\;11 r-Gnrtentpe, Paris, l lcnri l.aurcns, 1926.
2. 1'. Méruné, Notice sur les peintures de l'église de SlIil//-S(I/Jil1, Paris, lmprimcric Royalc, HI15;.J.
Taralon, "Observations rcchniqucs SUl' Ia voütc de Ia ncf de Saint-Savin er scs pcinturcs", em Butletin.
de III Société Nationale eles Antiqunires de Francc, 1968, pp. 217-256; H. Ourscl, l.a Bible de Saint-
Sauitt, La Picrrc-qui-virc, Zodiaquc. 1971: Y. Lab.mdc-Mailfcrr. "Nouvcllcs donnécs SUl' l'abbarialc
de Saint-Savin", CeM, 11: 197:; 39-68, Y.-I'. Riou, "A propos de trois puhlications
recentes", em
Bulletin de Ia Société eles Antiquaires de lOuest. 1972, pp. 1115-139; H. Favrcau, "Lcs Inscriprions
de l'églisc de Suinr-Savin-sur-Garrcmpc". COH, 1<1,1971, pp. 39-68.
3. Y. Labandc-Mailfcrr, "l.e Cyclc de l'Ancien Tcsramcnt :1 Saint-Savin". Reoue bistotre de Ia spiritu-
alité, 19, 1976, pp. 9-37.
72
realização de uma cena forma em uma certa matéria, termo aplicado nas
discussões sobre a Trindade ou a Encarnação, porém não sobre temas artístí-
COS/I. Contudo imago era também "sonho", "visão", forma que poderia ser pré
ou pós-existente ~l sua materialização, ou mesmo independente desta. Por
transmitir sempre uma ou mais informações, toda imagem era uma forma de
arte Cars = saber, conhecimento), e dessa forma aquilo que chamamos de obra
artística tinha para eles uma função acima de tudo pedagógica, não-estética.
Isso não significa, naturalmente, que o homem medieval não tivesse na
sua escala de valores um conceito de belo". Mas esse conceito justapunha-se
ao de verdadeiro, e assim buscava-se para além da imagem concreta a imagem
do transcendente. Como o transcendente ultrapassa as limitadas possibilidades
de expressão humana, esta recorria às próprias manifestações daquele, ou
seja, relatos bíblicos e outros mitos. Como o transcendente é multífacetado,
como a parte não pode abranger o todo, as imagens construídas eram passíveis
de diferentes leituras. Nas pontas da mensagem constituída pela imagem icono-
gráfica estavam duas culturas, a do artista e a do público.
Elas podiam coincidir, caso por exemplo das iluminuras bíblicas, geral-
mente feitas por artistas monásticos para um público de clérigos. Mas, no caso
de imagens colocadas em locais freqüentados por leigos, através das imagens
ocorria o encontro entre cultura erudita e cultura vulgar. A primeira procu-
rando passar através das imagens os textos bíblicos, hagíográfícos e teológicos
aos quais os leigos analfabetos não tinham acesso. A segunda interpretando
aquelas imagens conforme seus próprios valores, tradições e conhecimentos.
As imagens eram então a grande síntese da cultura intermediária, "aquela prati-
cada, em maior ou menor medida, por quase todos os membros de lima dada
sociedade, independentemente de sua condição socíal'".
No caso de Saint-Savin, as pinturas harmonizavam dados da cultura
monástica beneditina e da cultura folclórica local. A abadia, cuja fundação a
lenda atribuía a Carlos Magno, desempenhara importante papel na renovação
monástica do século IX, inclusive na fundação de Cluny, em princípios do
século seguinte. Assim, a força da tradição carolíngia manteve-se lá por muito
tempo e talvez tenha influenciado mais tarde a decisão de se decorar a igre-
ja apenas com episódios do Antigo Testamento. De fato, a vida religiosa caro-
língia fora marcada pelos temas e preceitos vétero-testamentários/, represen-
tados em Saint-Savin três séculos depois em 58 cenas, totalizando 412 1112 de
afrescos. Esse ciclo íconográfíco claramente ligado liturgia, preparação pas- à à

cal", lembrava ainda que fora a reforma de Bento de Aniane - talvez o primeiro

'I . .J. Wirrh, 1.1/J/{/ge médiérctk), ('a ris, Méridicr», Klincksicck, 1 \189, p, 12.
). E, De líruvnc. Iitudes destbétiqne lI/édiél.'ale, (j vols.), Brugcs, De Tcmpcl, '1916.
6. Cf.. supr«, ensaio n. I.
7. A. Vauchcz, l.a .\jlirilllalilé du Mo}'ell Ilge occidental, ('a ris. (,llF,1 97'5, pp. 11-"1,.
H. Labandc-Mailfcrt, "l.c Cyclc de l'Ancicn Tcst.uncnt", pp. ;W2-jY·í.
73
abade de Saint-Savin - que tornara a atividade litúrgica central na vida dos
monges ocidentais, superando em importância a atividade apostólica".
O momento de elaboração dos afrescos coincidia com a revalorização
da cultura folclórica, aquela que expressava uma descontinuidade cultural,
uma inferioridade institucional do conjunto de valores e tradições de um grupo
social em relação a outro. Era, por isso, uma cultura de contestação, de resistên-
cia norrnatízação que o clero pretendia impor!''. Transmitida anônima e oral-
à

mente, tal cultura se refugiava na memória social, escapando às codífícações,


pois folclore é conjunto de "crenças coletivas sem doutrinas, práticas coleti-
vas sem teoria" I I. Contudo, não se pode esquecer que se no plano ideológi-
co cultura clerical e cultura folclórica se opunham, no plano religioso cristia-
nismo e folclore frequentemente se confundiam, por fazerem parte da mesma
sensibilidade coletiva, do mesmo universo mental.
Isso é que gerava a possibilidade de dupla leitura da iconografia, quase
sempre de origem clerical, mas visando a um público laico. Como ocorria tam-
bém com os afrescos de Saint-Savin. Mas se os textos bíblicos eram as grandes
fontes clericais daquelas pinturas, quais eram as folclóricas? Da mesma forma
que a aristocracia laíca de quase todo o Ocidente, a do Poitou dos séculos
XI-XII não tinha perdido contato com a mitologia clássica e céltica. Aliás, a
mais famosa expressão do folclore regional era produto daquelas reminiscên-
cias míticas. Melusina. Significativamente, essa fada-sereia seria transformada
na ascendente mítica da posteriormente mais importante família nobiliárquica
do Poitou, os Lusignan 12, cujo castelo-sede ficava a apenas 67 quilômetros de
Saint-Savin.
No entanto, para a concepção dos afrescos de Saint-Savin foram mais deci-
sivas as tradições míticas judaicas do que as tradições clássicas e célticas. Elas
resultavam da longa e calma convivência entre judeus e cristãos naquele local.
De fato, desde a época de Carlos Magno os judeus gozavam de boa situação
no reino franco, o que começou a se alterar somente com o anti-semitismo que
acompanhou as Cruzadas. Até então, "frequentemente os cristãos vinham se
misturar massa de judeus para escutar o sermão do rabino, enquanto os judeus
à

prazerosamente assistiam à missa, da qual apreciavam a pompa e a organiza-


Ç~lO"15. Ao longo daquele período muitos elementos culturais judaicos foram
absorvidos pela cultura cristã e, enraizados desde então, não foram afetados
pela nova fase nas relações sociais hebraíco-cristãs. O mesmo processo parece

9. Vauchcz, op. cit., p, H.


10. J.-c. Schmitt, "Au Moycn Age: Culturc lolkloriquc, culrurc clandcst inc?", Rem/e dn vioamis, 1979,
pp.113-118.
11. A. Var.rgnac, Défntition dujollslore, Paris, Société d'Editions Géographiqucs, Maritirncs ct Colonialcs,
1938, p. 1H.
12. J. í.c Goff, "Mélusinc marcrncllc ct défrichcusc", em IJ/IMA, pp. :l(}7-33·1.
"3. B. Blumcnkr.mz, ./III/.' et cbrétiens dans le monde occtdental, 4jO-10.')6, Paris, Mouron, 196o, p. 383.
74
ter-se dado no caso específico de Saint-Savin, que desde a época franca tinha
três colônias judaicas na sua vizinhança, em Poítíers, Loudun e Loches!".
Uma terceira fonte importante para a cultura folclórica eram os relatos
bíblicos apócrífos, muito populares por toda a Idade Média. Ou seja, relatos
que a Igreja não reconhecia como "inspirados", como ditados por Deus, e que
por isso mesmo apresentavam uma plastícídade, uma adaptabilidade a situa-
ções concretas que os textos bíblicos canônícos não possuíam. A influência
deles se fazia sentir na arte, na literatura, no teatro, nos sermões, na hagiografia
e mesmo na liturgia, pois, apesar de considerá-los carentes de autoridade divi-
na, a Igreja não os rejeitava. Colocados assim no âmbito da cultura interme-
diária, quer dizer, da intersecção entre cultura clerical e cultura folclórica, os
apócrifos eram um manancial mítico extremamente rico. E que, apesar de
várias contradições formais com os relatos canônicos, eram vistos mais como
complementares a. eles do que como negação deles.
Estas considerações gerais podem ser verificadas no subciclo de Noé,
um dos mais importantes dos cinco - Criação, Noé, Abraão, Moisés, José -
que compõem o grande painel pictórico vétero-testarnentário de Saint-Savin 15.
Por exemplo, na célebre e belíssima cena da Arca, vemos dois gigantes sobre
ela, referência de indiscutível origem rabíníca!e. De fato, ela aparece no Targum,
o texto bíblico hebraico na sua antiga e popular tradução aramaica interpo-
lada de comentários!", em um midracb do começo do século IX, para o qual
um gigante, Og, rei de Basham, teria mesmo ficado em cima da Arca com a
concordância de Noé, a quem prometera servir perpetuarnenters, e ainda em
outras fontes hebraicas 19.
Mas das oito cenas sobre Noé, a fundamental é sem dúvida a da sua
embriaguez-v. Localizada na parte sul da abóbada, perto do cruzeiro, ela mostra
° patriarca dentro de um espaço arquitetônico representado por paredes de
grandes blocos de pedra e por torres. Ali ele aparece deitado, cabeça em
direção ao Oriente, dentro de um grande nimbo ovalado. Embriagado, a roupa
descomposta, seu falo esta à mostra, destacado pela posição que o tecido

H. Sobre a presença judaica no Poirou, veja-se, infra, ensaio n. 9, rr. 186-187.


15. Sobre a Criação, mais cspccificamcnrc o nascimento de Eva, veja-se adiante o ensaio n. 9.
16. Apesar de bbande-Mailfert.ojJ.àl .• p.385.afirmar que a origem dos gigantcs da cena pode ser
encontrada na Hiblia, Sb JIí, 6, o que lemos aí não rem relação COlll gigantes sobre a Arca: "Scd
cr ab initio CUIll pcrircnt supcrbir gigantes, spcs orbis tcrrnrum ad ratcm confugicns, rcmisit saccu-
10 scmcn nuriviraus quuc manu tua crar gubcrnaru", Biblir: !'lIlga/tI, cd. A. Colunga e I.. Turrado,
Madrid, IIAC, 7. cd. 1985, p. 629.
17. Gn 7, li, Targu m, trad. Il. Lc Déaut, Paris, Cerf,I978, p. ·121.
lH. l.os Capit ulos de kaIJIJi ttlterer, 23, 2, trad. M. l'ércz l'crmlndcz, Valência, lnsrirución San jcrónimo,
19HI(, p.173.
19. 1..Ginzberg, 'lhe l.egetu! oftbejeios. (7 vols.), Filadélfia, Thc jcw Socicty of Amcrica, 1910-:J9/j7,
\'01. I, pp. 158,160, e \'01. V, p. 178, n. 25.
20. Gn 9, 20-27. Sobre a figura de Noé nos apócrifos, veja-se J. 1'. Lcwis, I1 S/{{(!I! oftbe tnterpretation
ofNoab anel tbe Flood iu feioisb and Cbristian t.itcratnre, Lcidcn, llrill, 1968, pp. llH 1.
75

Fig. 3 No," embriagado (a fresco de Saint-Savin).

tomou. Em torno dele encontram-se os filhos: UIll ao lado, outro atrás, Sem e
Jafé estendem o manto que cobrirá a nudez do pai, porém sem estarem cie
costas como diz o texto bíblico, e dessa forma também eles vêem o patriarca
desnudo. Em posição frontal ao pai adormecido, Cam pode observar melhor
a nudez dele e com o braço direito estendido faz () gesto de corno em direção
ao falo paterno (Fig. 3).
É verdade que desde Fílon de Alexandria " muitos exegeras haviam
comentado a irreverência de Cam, o riso debochado diante do pai embriaga-
do. Mas o artista de Saint-Savin, baseando-se na cultura oral, materializou o
comportamento de Cam naquele gesto derrisório e ofensivo. Ora, como jean-
Claude Schmitt bem definiu, através do gesto pode-se chegar ao princípio-
chave da antropologia medieval, que via o homem como "a associação de um
corpo e de uma alma, e esta associação é o princípio antropomorfo de uma
concepção geral da ordem social e do mundo, inteiramente fundada na dialéti-
ca do interno e do externo=". Quer dizer, ao retratar o gesto de Carn, o pin-
tor revelava o caráter negativo daquela personagem e, por contraste, exalta-
va os direitos da paternidade.

21. Filo" de Alcxanclria, Q/leSli()nes ct sotnttonos JI1 (,'ellesill/. 11,71, cel-rrad. C Mcrcicr, Paris, Ccrf,
1<)7<).1'1'.316-31<).
22_ J-C Schmirr. I.{/ Raison des goste» dans tciccident /I/"'I;"{'al. l'aris. Guílimard, -I<)<)0, p_ 18.
76
Portanto, os direitos da ordem familiar e social. Portanto, o papel do
clero, condutor daquela sociedade. De fato, naquele contexro ideológico da
tripartição social, um dos arquétipos bíblicos mais utilizados para legitimar a
ordenação elaborada pelo clero era justamente o dos três filhos de Noé.
Apesar de () texto bíblico falar, pela ordem, em Sem, Carn e Jafé, o comporta-
mento de Cam no episódio da embriaguez do pai e a maldição que este
lançou sobre os descendentes dele criaram uma nova situação: "Maldito seja
Canaâ, que se torne escravo dos escravos de seus irmãos". E acrescentou:
"Bendito seja o Senhor Deus de Sem, e que Canaã seja seu escravo. Que Deus
dê prosperidade a Jafé, que ele habite nas tendas de Sem, e que Canaã seja
seu escravo<'.
A supremacia de Sem, ascendente de Ahraão, de Davi e de Cristo, signi-
ficava, na interpretação medieval oficial, a supremacia do clero, dos oratores.
Os descendentes de jafé, que devem morar "nas tendas de Sem", eram os
bellatores, e os canaítas que deveriam servir a ambos, os laboratores. Dessa
forma, a imagem do Cam desrespeitoso pintado pelo fresquista de Saint-Savin
atendia sobretudo aos interesses monásticos. Mas também aos dos senhores
bicos. E de certa forma aos interesses monárquicos, relacionados também eles
com o esquema social tripartite 21. Não por acaso, reforçando a degradação
do terceiro ardo, Carn, o derrisor, era comparado a Caim, o Iratricida, por parte
de dois cronistas ligados à monarquia Planrageneta->.
A leitura clerical do afresco baseava-se ainda no caráter sagrado do pa-
triarca, segundo pai da humanidade, escolhido por Deus para impedir que o
gênero humano desaparecesse com o Dilúvio. Mais especificamente, Noé era
ali símbolo do próprio clero, pois o texto bíblico atribuía àquela personagem
certas funções sacerdotaís-v. Essa interpretação sobre o patriarca era ainda
reforçada por dados provenientes das tradições judaicas. Nada havia de estra-
nho nisso: para que a mensagem clerical atingisse seu público, era preciso
haver nela elementos de pronta compreensão por parte deste, que há muito
incorporara algumas daquelas tradições. Porém não se tratava apenas de uma
estratégia da cultura erudita. Não se pode esquecer que () clero não era exter-
no ~l sociedade na qual vivia, que entre ele e () laicado havia todo um deno-
minador cultural comum.

25. Cn 9, 25-27, explicação da origem da escravidão reforçada por Santo Agostinho. De Ciottate f)ei,
XIX, 15, I'/., 11, col. 613-611.
2/í. .J. l.c Goff, "Note sur société rripartic, idéologic monarchiquc ct rcnouvcuu économiquc (bns ia
Chréticnré du IXc au Xl l" sit'de",clll 1'/lM/I, pp. BO-90.
25. Giraldus Cambrcnxis, Speculu m Duorttnt, 1.535-5'12, ed. Y. t.cfcvre e R. C. l luygcns, tr:rd. B. Dawson,
Cardíff, Univcrsity of \Vales Prcss, 1971, p. 32; waltcr Map, f)e Nllgis Cu rinltu 111, IV, 6, cd. ~'I. IL
);1I11es,Oxford, Clurcndon, '1911, p. 160. Desnecessário lembrar que o I'oitou se tornaria território
planragcncra desde o casamento de J Icnriquc I'lantageneta com Elconor da Aquirânia em 1152 c
a ascensão dele ao trono ingl~s em "I-151.
26. Gn 7, 3-5 e B, 20-21.
77
Fazia parte dessa cultura o caráter sagrado do patriarca, com cujo nasci-
mento tudo retornou "ao estado anterior Queda do homem'?". Para cons-
à

truir a Arca ele havia utilizado o Livro Sagrado que Adão recebera do anjo
Raziel e que estivera perdido desde a morte do Primeiro Homem-s. Mais ainda,
a Arca era sem dúvida um local edênico, onde todos os tipos de animais con-
viveram pacificamente durante um ano e se abstiveram de relações sexuais,
exceto o cão e o corvo-v. Ao sair da Arca, terminado o Dilúvio, Noé teria sido
castrado por um leão:", animal que era um dos mais conhecidos símbolos de
Cristo, o 1610 de Judá:ll. A partir disso, via-se Noé como tendo sido esterili-
zado pelo próprio Deus e assim transformado em sacerdote, pois apesar de
a Igreja não aceitar eunucos naquela função, da óptica laica os clérigos eram
homens estéreis.
Ademais, ao sair da Arca ele fez uma oferenda a Deus sobre um altar er-
guido no mesmo lugar no qual Adão e Abel haviam feito sacrifícios e no qual
seria mais tarde levantado o Templo de jerusalém--. Outro dado importante
era a própria embriaguez que, apesar de genericamente condenada pelo texto
bíblíco'», era para várias sociedades uma forma de contato direto com o mundo
divino. Os gregos, os celtas, os muçulmanos, conheciam a embriaguez místi-
ca.'li, e mesmo para os judeus o conceito não era desconhecido», Para eles,
a vinha é o Messias-v, o vinho é conhecimento secretov, é símbolo da restau-
ração da ordem cósmica após o Dilúvio-s'. Enfim, a embriaguez de Noé fora
sagrada, pois a vinha que ele plantou tinha sido levada por Adão do Paraísoô",

27. Ginzbcrg, oj). cit., vo1. I, p. 117.


2S. Idem, pp. 151-157.
29. idem, p, 166.
30. Midrasb Na/J/Ja. Genêsc, 30, 6, e 36, !J, rrad. B. Maruani e A. Cohcn-Ar.tzi, I'aris, Vcrdicr, 1987, p(l.
313 e 373; Ginzbcrg, O}). cit., vol, V, p. 187, n. 51 e191, n. 60.
31. Gn 19, 9; Ap 5, 5.
32. Ginzhcrg, op. cit., 1'01. I, p. 166.
33. 1'1'23, 30-35; Ec19, 2; Ga 5, 21;1 Cor 6, 10.
3!J. /J5)'I1Ib, pp, 525 e 1017. Para algumas sociedades africanas a embriaguez do rei revestia-se de
caráter político: 1.., De l lcusch, I.e Roi iure 011 l'origine de lIitot, Paris, Gallimard,1972.
35. Para Fílon de Alcxandria h:1 uma "embriaguez sagrada, mais sóbria que a própria sobriedade": Lois.
UI, 26, apud 1'. Saintyvcs, lissais defollelore biblique. Paris, Nourry, 1923, p. 206.
36. 2 Barucb, 36, rrad. A. F. J. Klijn, e111J. 11. Charlcsworth (ccl.), 'lhe O/c/ 'tcstament Pscudcpigrapbci.
London, Daron, Longman & Todd, 1983,1'01. I, p. 632.
37. "Vinho" CYafl1) e "segredo" CSod) têm o meS1110valor numérico simbólico (70): J. l lassinc, "Lc Vin
dans Ia civilisation d'Isracl", e111M. Milncr e M. Charclain (cds.), I, 'Intaginaire du uin, Marselha,
jcannc Laffirtc, 1983, p, 71.
38. Como indica o fato de o vinho não existir antes do Dilúvio, e de Noé ter plantado a vinha no
1110nteLubar, no Ararat, onde Deus colocara a Arca quando as águas baixaram: Giubilei, 7, 1, trad.
L. Fusella, em 1'. Sacchi (cd.), Apocrifi dell'Antico 'lestrnnento. (2 vols.), Turim, UTET, 1989, vol. I,
p. 252. Veja-se também M. Mcslin, "Lc Symbolísruc de Ia vlgnc dans l'Ancien Israel ct lc judafsmc
ancícn", em L 'tmaginaire du oin, p. '58.
39. Giuzbcrg, op. cit., \'01. I, p, 167.
78
A presença no cristianismo de todo esse imaginário sobre o vinho levou
à sua utilização litúrgica, como fizera Meiquisedeque, considerado pelos rnedíe-
vais uma antecipação vétero-testamentária de Cristo+". Mais do que isso, o
vinho era forma de comunhão com a Divindade, graças à sua identificação
com o sangue de Cristo+l. Porque Cristo viu sua morte, segundo um apócri-
fo, como "beber o copo", e porque ele tirou suas roupas para ser crucificado,
São Cipriano e Santo Hilário viram na embriaguez de Noé o protótipo da pai-
xão de Crísto't-. Não por acaso, as duas cenas mais próximas do altar de Saint-
Savin são sobre o tema: na do lado norte, Noé colhe as uvas com as quais
fará o vinho; na do lado sul, ele bebe o vinho numa taça. Por tudo isso, o ar-
tista representou o Noé enebriado dentro de uma área ovalada, semelhante
às mandorlas usadas pela iconogratla medieval para emoldurar as representa-
ções da divindade.
Se de um lado a presença de vários dados de proveniência folclórica
naquela imagem trabalhava a favor de uma interpretação clerical dela, por
outro tornava possível uma leitura completamente diferente. Uma leitura liga-
da às condições sociais de fíns do século XI e princípios do XII. O grande falo
de Noé e o gesto de corno que Cam lhe dirige, lembram que "o modo grotesco
de representação do corpo e da vida corporal dominou durante milhares de
anos na literatura escrita e oral":". Grotesco que assumia um significado especí-
fico, se relacionado à tradição hebraica segundo a qual Noé pretendia ter
muitos filhos. Perspectiva que descontentava Cam. Assim, foi ao imaginar que
o pai, bêbado, iria manter relações sexuais, que ele fez () famoso gesto, sím-
bolo da potência víríl+' que o patriarca não poderia então exercer.
Essa incapacidade devia-se ao fato de que ou Noé estava embriagado'»,
ou fora mutilado sexualmente por um leão ao sair da Arca/,6, ou, conforme
uma antiga tradição registrada no Ta rgum, porque a responsabilidade pela
impotência de Noé cabia ao próprio Cam, que "era de pouco mérito por ter
impossibilitado que ele [Noé] tivesse engendrado um quarto fílho'<'. Mas ou-
tras fontes insinuam que aquele gesto não se referia a um fato consumado, e
sim à intenção de Cam de tornar definitiva a impotência do pai, então bêba-
do, castrando-os'. Podemos ainda pensar que, como a sociedade medieval

IJO. Gn H, ]R; SI 109, 'i; Ilb 7,3.


li 1. l\lc]IJ, 2:1-21.
12. Lcwís, op. cii., p, ] 77.
1J3. M., Bakhrin, L'Oeuure de François Rabelais 1'1 Ia culturc populaire ali Moyen /tge, (trad.), Paris,
Gallimard, ]982, p. 317.
4/i. IJ5)'11Ib, p. 2H9.
15. Gn 9, 21.
16. Cf., supra, nota n. 30.
17. Cn 9, 21, Targum. p. U3.
48. Ginzbcrg, op. cit., vol, I, p, 168: "Cam juntava ao seu pecado da irrcvcrência a afronta ainda maior
de tentar fazer lima operação em seu pai visando impedi-lu de procriar". Para algumas fontes
79
atribuía a numerosos gestos um poder intrínseco, uma eficácia símbólíca+,
talvez o ato castrador tenha sido o próprio gesto de Cam. Gesto que se não
mutilou literalmente, pelo menos o fez moralmente, pelo sarcasmo, pela zom-
baria, pela derrisão.
Hipóteses. Contudo, qualquer uma delas revela o sentido essencial da
cena para a aristocracia laica. Mais do que falar de cont1itos dentro de uma
família vétero-testarnentária, o gesto expressava, conscientemente ou não, as
tensões da sociedade feudal, agravadas naquele momento' de dogmatização
da Igreja e de crescimento demográfico. O folclore fornecia então para a peque-
na nobreza, as formas de expressão de seus sentimentos de descontentamento.
Fornecia o material cultural que, adaptado ao momento de sua utilização,
podia transmitir a mensagem desejada pelo grupo social que se considerava
prejudicado. De fato, não se pode esquecer que o folclore é "um conjunto de
arcaísmos que, longe de serem anacronismos na época em que se os obser-
va, são resistentes, bem enraizados e tem uma função social">".
Nesse contexto, a referência castração de oé estava associada à cas-
à

tração simbólica do clero>'. ou seja, ao celibato clerical, que a Reforma


Gregoriana tentava impor. Essa medida descontentava a aristocracia laica de
maneira geral, pois implicava, em última análise, a impossibilidade de bens
fundiários eclesiásticos serem transferidos para mãos laicas. Proibidos de
casarem e de terem descendência legal, os clérigos não transmitiam parcelas
do patrimônio da Igreja, que assim jamais diminuía. Pelo contrário, as doações
ampliavam continuamente a riqueza eclesiástica. A queixa do autor anônimo
do Garin te Loberain não era infundada ou incornum: "Quando o barão se
estendia em seu leito/com grande medo de morrer/L.] quase todos os bens
deixava a Jesus Cristo/[ .. .l por isso o mundo foi empobrecido/e o clero muito
enriquecido'ó-.
A contrapartida do celibato eclesiástico não era menos incômoda aos
interesses Iaicos: o matrimônio era tornado um sacramento e passava a ser o
ato fundador obrigatório na constituição de uma nova família. Tal medida era
acompanhada por regras estritas sobre a consangüínídade, permitindo os laços
conjugais apenas a partir de certo grau de parentesco. Como para as sociedades
arcaicas o conceito incluía as relações artificiais de parentesco, o mercado
matrimonial tornava-se bem mais restrito para aquela aristocracia fortemente

judaicas e rara certos Pais da Igreja, a castração de Noé teria sido obra de Canaã, filho de Cam,
este último teria apenas revelado o fato: 1'01. V, pp. ] 91-'192, 11. 6'1; t.os Capitules de kabbi liltczer,
23,/1, p, 175.
19. Schmirr, ojJ. cit., pp. 321-355.
50. N. Bclruonr, Paroles jJar"I7IU!s: Mytbe etfollslore, Paris, Imago,1 9H6, r. 15H.
51. !'vlrJ9, 12.
52. Garin le Loberain, vv. ]9, 20, 23, 26 c 27, cd. A. P. Paris, P:lris, jung-Trcnttcl, 1872. Escrito em fins
cio século XII, aquele texto sem dúvida refletia urna xiruuçâo que não era nova, que se estendia
havia pelo I1H...'1l0:-; um século.
80
aparentada entre si55. Como o casamento implicava sobretudo procriação, e,
através desta, a transmissão de herança, a Igreja passava a regulamentar a
reprodução biológica e social>".
E isso repercutia em todos os níveis. Efetivamente, de um ponto de vista
antropológico, a sociedade feudal era uma rede de parentescos jurídicos e de
parentescos espirituais que aproximava grupos biológicos relativamente dís-
persos. Disso decorria a forte compiementaridade entre as aristocracias ecle-
siástica e bica, esta fornecendo os quadros humanos para aquela, a primeira
legitimando os poderes da segunda. Contudo, os laços de solidariedade não
eram apenas internos às aristocracias, eles existiam no campesinato e mesmo
entre este e as elites, ao contrário de uma luta de classes que pretensamente
seria a única a reger aquelas relações. Assim, ao ampliar e enrijecer os elos
de parentesco ritual, as novas regras matrimoniais desorganizavammomenta-
neamente a sociedade.
Tais questões eram muito concretas para a aristocracia do Poitou, que,
como toda a Cristandade, acompanhava interessada o problema de Filipe I.
Tendo repudiado a esposa estéril para fazer novo casamento, que desse ao
trono francês os herdeiros necessários, o rei foi excomungado pelo papa em
1095 e não pôde participar da Primeira Cruzada. Sobretudo, os nobres do
Poítou especulavam sobre a sorte de seu próprio condado, pois havia uma
única herdeira - Eleonor da Aquitânia, que assumira a direção em 1137 com
a morte do pai - , e as novas regras matrimoniais não facilitariam as soluções
em caso de problema. Também no relato mítico sobre Melusina a questão da
procriação e da herança era central », reflexo da realidade histórica vivida pela
sociedade feudal em geral, inclusive pela poitevina.
O acentuado crescimento populacional da época - os territórios da atual
França teriam passado estimativamente de 7,75 milhões em 1100 para 10,5 mi-
lhões em 120056 - criava sério problema para a aristocracia Iaica. O número
de homens crescia mais rapidamente que a incorporação de novos territórios
à Cristandade. Aguçavam-se as disputas entre as elites eclesiástica e laica pela
apropriação dos frutos do trabalho camponês. A situação era especialmente
tensa na camada inferior da aristocracia guerreira. Como a tradição jurídica
reservava os bens paternos apenas ao primogênito, aos demais filhos não
restavam muitas opções. Eles tentavam viver dignamente ou com parcelas do

53. Como bem observou M. Bloch, ia Sociélé./eot!ale. Paris, Albin Michcl, rccd. 1973, p. 208, "a for(a
da linhagem foi um dos elementos essenciais da sociedade feudal; sua fraqueza relativa explica
que tenha existido () feudalismo".
5~. Sobre a importante questão do casamento para a sociedade feudal, devem-se ver, dentre outros,
G. Duby, t.e Cbeoalter, lafentme et le prêtr«; Paris, t Iuchctrc, 1981; A. Gucrrcau-jalabcrt, "SUl' lcs
srructurcs de parcnté dans l'Luropc médiévalc", /WSC; 36,1981, pp. 1028-1019; J. Goody, Tbe
/)e<,elojJlI/el1l oftbe t-amtlv and Marriag» in liura/H!, Cambridgc, CUP, 1983.
5S. O relato mítico, oral, foi litcrarizado no século XIV por jcan D'Arras, Mélnsin», cd, I.. Stouff,
Genebra, Slatkinc, 197~: Coudrcrrc, I.e NOII/all de MéIIlSil1(!, cd. E. ({oach, Paris, Klincksicck, 1982.
56. C. Mcl.vcdy c I{. joncs, li/ias 0/ Wor/tI Population tttstorv. l Inrmondsworth, I'cnguin, ·1980, p. 87.
81
dote materno ou, mais cornumente, entrando ao serviço de algum senhor, às
vezes o próprio irmão mais velho.
Ingressar no clero era sempre uma alternativa, mas ja não tão interes-
sante quanto antes, pois a Igreja passava a zelar mais pela qualidade espiri-
tual de seus membros, e mesmo a extensão dos beneficia eclesiásticos era
menor diante do crescimento numérico do clero. Por tudo isso o descem-
tentamento latente da camada cavaleiresca vinha à tona com freqüência, geran-
do choques de interesse de seus membros contra a nobreza principesca e os
senhores eclesiásticos. É o que ilustra bem os longos cont1itos da família dos
Lusignan contra o poder condal do Poitou e contra a abadia de Saint-Maixent>".
Ademais, como também ocorriam conflitos entre a elite laica e os mosteiros,
isto é, entre os grandes senhores, os cavaleiros eram inevitavelmente envolvi-
dos, manobrados pelos interesses de um ou outro grupo.
Assim, a grande esperança para eles era um bom casamento. Meta difí-
cil. Os homens núbeis e solteiros - conhecidos independentemente de sua
idade por juvenis, conceito, portanto, não erário, mas social - eram muitos
e tornavam-se um fator de tensão social e de instabilidade polítícax', O suces-
so espetacular de alguns que, saídos da pequena e média aristocracia, alcançavam
riquezas e poder a partir de um casamento conveníentew, apenas ressaltava
a situação marginalizada da maioria. Daí o fenômeno folclórico chamado de
cba riua ri: quando do segundo casamento de um viúvo, os solteiros faziam
uma grande arruaça, com gestos obscenos, palavras agressivas e sobretudo
muito barulho, em protesto pelo fato de continuarem excluídos do mercado
matrimonial devido sua situação socioeconômica
à inferior'v.
A figura de Carn representava para aqueles indivíduos, o protótipo bíbli-
co de sua própria situação. Enquanto algumas tradições viam Sem como primo-
gênito, e outras atribuíam esse posto a jafé, Cam jamais foi colocado nessa
condiçãovt. Dessa forma, através do gesto atribuído a ele no afresco, questio-
nava-se a hierarquia interna do estrato nobiliárquico. Negando a validade cio
preceito bíblico, os nobres secundogênitos perguntavam-se: por que servir ao
irmão mais velho? Negando a comparação eclesiástica Csra-laboratores. a peque-

57. S. Puintcr, "Thc l.ords of I.usignan in thc Elcvcnth and 'I'wclfth Ccnturics", Speculutu, 32,1957, pp.
27-17.
58. G. Duby, "l.cs jcuncs dans Ia sociéré arisrocratique dans '" "rance du Nord-Oucsr au XII" siõclc",
/I/,:~'(,; 19, 1961" pp. 835-816.
59. Para aqueles que observavam o afrcsco no I'oitou de fins do século XII. () grande exemplo era
Guilherme Murcchul, um cavaleiro de origem humilde que "por :-;ClI casamento se tornava, de caçu-
Ia que não possuía nenhum pedaço de terra, um dos homens mais ricos do reino" c IllCS1l10 regente
do trono inglês: I.'llistoire de Gutllaume le Mnrécbul, cd. 1'.Mcycr, (3 vols.), Paris, Rcnouard, 189·1-
]901, vol, 111,p. l.IX.
60. J. I.c Goff c J.-c:. Schmitt (cds.), Le Cbariuari, Paris, Eco'" dcs I lautcs Etudcs cn Scicnccs Socialcs,
1981; C. Gauvard c A. Gokalp.t'l.cs Conduircs de bruir cr lcur significarion " Ia fin du Moycn Age:
Lc Charivari", /I/iS(; 29, 1971, pp. 69:5-7(JII.
61. Ginzbcrg, op. cit., 1'01. v, pp. ]79-180, n. 30.
82
na nobreza procurava apagar da memória social sua própria origem: enquan-
to as grandes famílias nobiliárquicas tinham uma genealogia antiga e conheci-
da, os humildes cavaleiros haviam saído recentemente do campesinato. Negando
a transmissão hereditária das deficiências sociais no seio ela camada dos bel-
fatores - pelo relato bíblico Cam viu a nudez cio pai, mas o amaldiçoado foi
seu filho Canaã - a pequena nobreza cavaleiresca pretendia ser aceita entre
as famílias tradicionais.
Dessa forma o gesto de Cam - antecipando, provocando, seguindo ou
apenas desejando a castração de Noé - corresponclia, no plano pictórico, ~l
situação de um cbariuari. Era um protesto. Com efeito, o afresco estabelecia
uma identidade psicológica entre Carn e a pequena aristocracia. Esta, além de
inferiorizada no plano político e econômico, vivia em um ambiente de tensão
sexual. O crescimento demográfico da época beneficiava sobretudo o seg-
mento feminino da populaçãovt, mas apesar de cercado por maior número de
mulheres os cavaleiros não tinham acesso sexual a elas. A moral da Igreja
impunha o matrimônio, a prática institucional impunha a posse de terras para
constituir família. Assim, às regras e limitações impostas pela Igreja e pelas
práticas feudais, a pequena nobreza opunha, através do gesto, a agressivielade
cio riso. Da mesma forma que poucas décadas depois, para zombar do celiba-
to clerical, do padre simbolicamente andrógino, um mosaico em Monreale, na
Sicília, representava o hidrópico curado por Cristo como um homem gráviclo6.~.
Porém essa válvula de escape para as tensões sociais não se revelava
suficiente. Daí O recurso a um conjunto de convenções que poderia contro-
lar e canalizar melhor os impulsos eróticos do ambiente feudal. É significati-
vo que esse fenômeno sociocultural, conhecido por amor cortesão, tenha
começado exatamente na corte do conde Guilherme de Poitiers, em fins do
século XI. Através da poesia os trovadores sublimavam parte daquela frustra-
ção afetiva, dirigindo seu amor a uma mulher socialmente superior e por isso
inatingível. Mas, para manter aquela "neurose cortesã'v' sob controle, eram
precisos ainda outros exutóríos, como as peregrinações, sobretudo a Cornpostela,
as Cruzadas e a Reconquista ibérica, movimentos que sempre contaram com
bom número de poitevinos.
O gesto de Carn, no entanto, ia muito além disso, pois resultava na mutila-
ção do pai. Ou melhor, na mutilação do senhor feudal. Pela posição que ocupa-
va na famílía patriarcal devido ao nascimento, Cam era perfeitamente compa-
rável a um vassalo. Ora, para a sociedade feudal o pior crime era o de um
vassalo contra seu senhor, o único crime punível com o infamante enforca-

62. V. Isullough c C. Campbcll, "Fcrnalc Longcvity anel Dict in rhc Middlc Age,", Speculum, 21, 1980,
rr· 317-325.
63. H. Zappcri, 1."1 10111 111 e enceint, (trad.), Paris. I'LJF, 1983.
61. 11. Rcy-Flaud, I.a Neurose courtoise, Paris, Navarin, 1983; A. l lauscr. t ttsiárt« Social da t.itercuura
e da !Ir/e, (trad., 2 vols.), S~() Paulo, Mestre jou, 1972, '1'01. I, rr. 296-300.
83

Fig.4 Abraão c l.ot se separam (afrcsco de Savin-Snvin).

mento'õ. Mesmo assim, revelando o quanto era grande a tensão entre o segmen-
to mais alto e o mais baixo da aristocracia, o afresco insinua um atentado físi-
co contra um senhor feudal, senhor laico, pois apesar dos traços sacerdotais
de Noé, a imagem mostra-o dentro de um castelo e cercado pelos filhos. A
partir disso se torna compreensível a motivação monástica para pintar uma
cena bíblica seguindo fontes folclóricas: no choque de interesses entre potentes
laícos e clero, este buscava apoio dos nobres mais humildes, os cavaleiros.
De fato, apesar de protegida por imunidades vindas dos tempos caro-
língios, a abadia de Saint-Savin, a mais rica da região, não escapava aos efeitos
elo processo de fragmentação dos poderes públicos, que se acentuava desde
princípios do século XI e gerava rivalidades entre seus beneficiá rios, castelões
e mosteiros'v. Naquele contexto, o afresco simpático à causa ela cultura folcló-
rica cavaleíresca, funcionava como contrapeso poesia trovadoresca estimu-
à

lada pelo conde do Poitou. A poesia irradiada pela corte de Poitiers deveria
afirmar a especificidade do poder condal face ~l cultura clerical, duplamente
oposta aos interesses do conde, porque os monges eram seus principais rivais
e porque sobre aquela cultura se apoiava a monarquia capetíngía, que tinha

65. Bloch, op. cit., p, 320.


66. R. Sanfacon, Défrtcbemcnts, jJellp!e1/7el1l ct instiuttions s(!igu('uri(/!es cn t lcntt-Poitou du X" (/11 XIII"
siêcle, Qucbcc, Univcrsité 1.<ll'al,1967, pp. 2:5-2/1 c ~9.
reivindicações sobre a região67. Fenômeno curioso: a cultura monástica lança-
va mão de certos dados do folclore para neutralizar outros do mesmo tipo,
utilizados pelo conde contra a cultura monástica.
Esse procedimento cultural homeopático, que enfrentava o oposto com
o próprio semelhante dele, não esgota contudo a questão se considerarmos
que toda ação humana tem duplo suporte motivacional, um coletivo e outro
individual. Ou seja, social e psicológico. No primeiro plano fica claro que
tanto a personagem bíblica quanto a visão que se tinha dela no afresco de
Saint-Savin expressavam uma luta pelo poder. No segundo plano, pode-se
pensar que a imagem tratava daquilo que a psicanálise chama de "prodigiosa
intensidade da angústia de castraç~LO"68.Isto é, todo filho teme ser castrado
pelo pai, o qual, na fantasia daquele, se oporia às atividades sexuais filiais69.
Ora, durante todo o ano passado na Arca, as atividades sex\lais estiveram
proibidas, e o único filho de Noé a desrespeitar tal interdição foi exatamente
Cam70. Em um sentido mais amplo, todo cristão se sentia metaforicamente
castrado pelo clero ("padre" é "pai"), que ameaçava com o Inferno as relações
sexuais fora do casamento. Mesmo para os casados, a vida sexual apresenta-
va fortes restrições de modalidades e de momentos.
Na verdade, a sociedade medieval parecia não se satisfazer com a figu-
ra de um único pai biológico, e assim multiplicava as figuras paternas?". Talvez
a insegurança diante dos perigos deste mundo e das incertezas quanto ao des-
tino no outro, estivesse na base daquele sentimento coletivo. De toda forma,
mais do que pelo pai natural, cada indivíduo estava cercado por padrinhos,
por padres, por senhores, pelo rei, pelo papa. Todas essas representações
paternas eram, por sua vez, em gêneros e graus diferentes, projeções do Pai.
"Assim na terra como no céu", dizia a oração. Por outro lado, essa inflação de
imagens paternas gerava inevitavelmente certo complexo de inferioridade.
Certa infantilização dos indivíduos, daí talvez sua propensão ao choro ou à

cólera fáceis - em suma, sua emotívidade à flor da pele72. Logo, a castração


de uma importante representação de pai, como era Noé, fornecia certa compen-
sação àqueles que se sentiam castrados pelas normas sociais em vigor.
Ao retratar Noé circuncidado, o pintor de Saint-Savin revelava mais LIma
vez conhecer as tradições hebraícas, pois enquanto o texto bíblico atribui o
início daquela prática a Abraão?>, 1Il1111litoafirmava que Noé nascera já circun-

67. G. Duby, t tistoire de 1(/ France: I.e Mo/em I1ge, Paris, l lachctrc, 1987, rr. 62 c 238.
68. S. l'rcud, I. '1Io11/111e Moise et Ia religion monotbéiste, (rrad.), Paris, Gallimard, 1986, p. 175.
69. Ide11/, p. 168; J. l.aplanchc c J. B. I'ontalis, vocabulatre de 1(/psycbanalvsc, Paris, PUF, 10. cd.,
1990, rr. 71-78.
70. Ginzbcrg, op. cii., 1'01. I, r. 166.
71. K. l lauck, "Pormos de parente artificicllcs dans I<: haut Moycn Age", em Faniille et parenté duns
lOccident méduiuat, Roma, Ecolc I'rançaisc de Romc, 1977, r· 13.
72. BJoch, ojJ. cit., pp. 116-117; 1'. Roussct, "Rcchcrchcs SUl' l'émotlviré i l'époquc romano", CeM, 2,
1959, pr. 53-67.
73. Gn 17, 10-1'1.
85
cidado como sinal de benção divina?". Mas além disso, possivelmente sem ter
consciência do fato, o artista, através daquele detalhe, insistia no tema da cas-
tração. O gesto de Cam e () pênis circuncidado do patriarca eram, nesse sen-
tido, indicações complementares. Freud observou que "a circuncisão é o subs-
tituto simbólico da castração que o pai primitivo tinha outrora infligido a seu
filho, na plenitude de seu poder'<".
Como o complexo de castração está estreitamente ligado ao complexo
de Édipo, pode-se pensar que a violência de Cam para com o pai visava man-
ter a mãe sexualmente íntocada. Os comentários rabínicos dos midrasbim afir-
mavam que" oé tinha por única intenção frutificar, se multiplicar no mundo
e ter primogenitura'?». Mais especificamente, no contexto retratado pelo afres-
co, Cam acreditava que o pai, bêbado, iria procurar a esposa para ter mais
um filho?", Do ponto de vista das questões patrimoníaís, um quarto filho pouco
alteraria a situação do secundogênito Cam, ou dos nobres feudais que se identi-
ficavam com ele. A motivação, portanto, do gesto castrador naquele momen-
to era sobretudo psicológica. Essa situação também era familiar aos nobres
feudais: o primeiro filho homem recebia atenções especiais do pai, e logo que
atingia idade adequada era levado corte do senhor paterno para completar
à

sua formação cavaleiresca. Os demais filhos ficavam em segundo plano, viven-


do muito próximo à mãe e às irmãs. Enfim, quadro favorável ao desenvolvi-
mento de uma situação edípica.
No entanto, poderíamos inverter a análise e pensar que a resistência da
personagem às relações sexuais entre seus pais ter-se-ia devido a ciúmes de
outra ordem. Ciúmes não da mãe, mas do pai. De fato, o complexo de Édipo
traz em si elementos de homossexualidade que, se mal resolvidos, podem
desenvolver-se mais tarde. O garoto apresenta sentimentos ambívalentes em
relação a cada um dos progenitores, inclusive comportando-se como "uma
menina que mostra uma terna atitude feminina para com o pai e a atitude cor-
respondente de hostilidade ciumenta em relação à mãe"?". Porém desponta
depois o complexo de castração, que marca a etapa final do complexo de
Édipo, interditando ao menino o objeto materno e levando à identificação
paterna. Ora, o afresco parece mostrar em Cam menos () medo da castração
que uma inversão desse sentimento, uma agressividade castradora dirigida
contra o pai.
Nessa hipótese, ao castrar o pai, ele estaria negando de forma violenta seus
próprios desejos homossexuais. Ainda que altamente hipotética, essa possibili-
dade não é absurda. Ela nos é índicada por comparação com outra personagem,

7-i. Gin:d)crg, op. cit., vol. I, p. H7.


75. lrcud, op. cit., 1'1'. 22:5-221. Para inúmeros exemplos de um ponto de vista da antropologia analíti-
ca, ver J.-'I'. Macrrcns, Ritanalyses J, s/«, jcrômc :'vlillon, ·1987, pp. 103-19:5.
76. Midrasb ttabba, 30, 2, p. 312.
77. Idem, 36, 5, p. 37ft.
78. S. Frcud, "Lc Moi cr lc sol", em lissais de psvcbanalvse, (rr.id.), Paris, Payor, 1951,1'1'.187-188.
86
na mesma parede sul, alguns metros adiante da cena que analisamos (Fig. 4).
Ali Lot faz o mesmo gesto de corno a seu tio Abraão?". A relação de parentesco
diferente não nos deve enganar: para várias sociedades, os elos tio/sobrinho
eram mais fortes afetivamente e mais importantes socialmente que os entre pai
e filho. O mesmo ocorria na Europa feudal, como lembram os exemplos de
CarIos Magno/Rolando, Marcos/Tristão, Percíval/Preste João e outros.
Sem dúvida a passagem bíblica entre Abraão e Lot devia dizer muito à
sociedade feudal, pois narra as relações entre um homem mais velho e mais
poderoso, um senior, e outro mais jovem e dependente, uassalus portanto.
Enquanto senhor laico, Abraão entrega terras ao sobrinho, liberta-o quando
aprisionado por inimigos, remunera com butim os homens que o acompa-
nham na guerraw. Como senhor eclesiástico, intercessor diante de Deus, inter-
fere para Lot não ser destruído junto com as cidades de Sodoma e Gomorra'".
A cena representada em Saínt-Savin mostra o momento em que sobrinho e tio
resolvem separar seus rebanhos e seus homens e cada qual tomar um rumo.
Momento, portanto, no qual o mais jovem conquista sua independência. Nesse
contexto, o gesto representava a castração metafórica da autoridade, para im-
pedir que esta continuasse a ser castradora, Em suma, ao lhes atribuir o mes-
mo gesto como protesto diante de uma autoridade de tipo paterna, o artista
aproximava Cam e Lot.
Isso era reforçado pelo fato de várias fontes míticas hebraicas considera-
rem Lot um lascívo'<, o que Cam sem dúvida também era, tanto que não resis-
tira ao período de abstinência sexual na Arca83. A partir dessa dupla aproximação
inicial entre eles (contestação à figura paterna e lascividade), percebemos que
as respectivas narrativas míticas apresentam inversões reveladoras de LImamesma
estrutura. Lot, o antigo habitante de Sodoma, mantém relações sexuais com mu-
lheres em lima cavernaêí. Cam, o antigo habitante da Arca paradisíaca, deseja
manter relações sexuais com um homem no topo de uma montanha. O primeiro,
bêbado, faz amor com as filhas; o segundo, sóbrio, quer fazê-lo com o pai, bêba-
do. Um, não resistindo ao desejo, procria com as filhas; outro, para resistir ao
desejo, impede que O pai volte a procriar.
Também nessa hipótese ocorria certa identificação entre a figura de Cam
pintada no afresco e os cavaleiros mais jovens e mais humildes. De fato, a
relação entre vassalo e senhor feudal comportava uma carga afetiva forte, que

79. Como no caso de Cam, tratava-se de um gesto de desrespeito, de dcrrissão por parte de Lar, a
quem o Midrasb Rabba chama "gozador". 1\ 1, 8, p. 425.
80. Gn 13, 1-12; 11, 12-16, 21r.
81. Cn 18, 22-33; 19, 29.
82. Ginzbcrg, op. cit., 1'01. V, p. 240, n. 171. Para o Midrasb Rabba, 4'1. 7 c 51, 9, mesmo antes do
incesto c independentemente ele estar bêbado l.ot desejava manter relações sexuais COlll as filhas,
1

estas é que não queriam: cd. clr., pp. 424 c 512.


83. Cf., supra, nota n. 70.
81. (;n 19, 30-38.
S7
os textos da época definiam como "amor". Laço considerado positivo entre
guerreiros mais velhos e jovens futuros cavaleiros, criados não na casa dos
pais, mas na corte senhorialê>, Curiosamente, apesar da total oposição da Igreja
ao homossexualismo, este era favorecido quando ela promovia no ambiente
feudal certa mistura de sentimentos. O amor e a lealdade que se deviam ao
Senhor celeste eram projetados no senhor terrestre, gerando oque Marc Bloch
chamou de confusão entre "o ser amado e o chefe"s(,. A partir disso, pode-se
pensar que na literatura cortesã a dama seria apenas uma rnetonímia do se-
nhor, seu esposo, de forma que, ao exaltá-Ia, o trovador na verdade estaria
expressando um sentimento homossexualê".
Nas duas cenas, de Cam e de Lor, o gesto ofensivo é dirigido contra pa-
triarcas, símbolos do poder eclesiástico. Ou ainda símbolos do estrato superior
do segmento laico, mais próximo ao clero (ainda que várias vezes discordando
dele quanto às estratégias político-sociais adoradas) do que a baixa aristocra-
cia laica. Tais imagens seriam, portanto, rnanífesrações da "reação folclórica"?
Uma resposta afirmativa seria muito símplista, pois na verdade é preciso mati-
zar a oposição entre cultura erudita e cultura folclórica, que não se negavam
de forma absoluta. Ao contrário, como já afirmamos, havia uma larga faixa de
elementos culturais comuns a todos os grupos sociais. Em função disso, o que
o artista fez - seguindo um procedimento comum na Idade Média - foi,
através do "grande código" da Bíblia88, expressar toda a complexidade de seu
próprio momento histórico.
Porque o artista estava na confluência de várias tradições culturais e de
situações sociais diversas, seu trabalho transmitia espontaneamente diferentes
mensagens. Uma imagem não é jamais um mero produto individual, mas "uma
peça essencial no vasto mecanismo instável de um sistema social, pois um
fenômeno histórico se compreende apenas na medida em que se abarca a
totalidade de seu funcíonamento'w. Por isso não se pode concordar, como se
disse recentemente, que no programa iconográfico de Saint-Savin não há "ne-
nhuma intrusão de traços contemporâneos, tudo remete ao internporal mais
distante elo espectador"?". Pelo contrário, os afrescos da abadia a partir de
resquícios históricos (folclore) de relatos aternporais (mitos) traziam as cenas
para o presente do observador e levavam o observador a se encontrar naque-
las cenas. Na iconografia fundiam-se o passado bíblico, o presente feudal e o
futuro sonhado pela pequena nobreza cavaleiresca.

85. Bloch, ojJ. cit .• [1. 317.


s6. Idem, [1. -i30.
87. C. Marchcllo-Nizia, "Arnour courrois, sociéré masculinc e[ figures de pouvoir", /I,,~ÇC; 36, 1981,
[1.980.
HH. N. l-ryc, 'lbe Greal Code, cw York, l Iarcourt Bracc jovanovích, 1981.
89. \Vinh, ojJ. cit., [1. 3-i6.
90. G. Lobrichon, "Comentários às Ilustrações '1:' Obra de C. Duby", em l tistoire de ia Franco. Le
M(~)'el1/Ige, op. cit., [1. 170.
A CONSTRUÇÃO DE UMA UTOPIA
o IMPÉRIO DE
PRESTE JOÃO

Atualmente a história política tradicional passa por uma revisao, com


novas abordagens mostrando campos interessantes e promissores, distancia-
dos da antiga fórmula descritiva centrada em reis e batalhas. Dentre esses
campos de vital importância, Jacques Le Goff aponta o das atitudes mentais
relativas à política I. É um exemplo dessa ótica que nos propomos estudar,
verificando as origens de um Estado utópico - o de Preste João - conce-
bido na segunda metade do século XII a partir ele vasto materíal mírícoz. Sem
entrar nos enormes problemas colocados pela definição de utopia, nós a
entenderemos aqui como uma forma de imaginação social que sonha com
uma sociedade ideal, consensual, sem conflitos e carências, isto é, uma sociedade
autárcica e sem história, localizada além do espaço conhecido>. Estudando
aquela utopia, acreditamos que se possa ter um melhor entendimento sobre
as complexas relações entre Igreja e Império, e especialmente sobre os sen-
timentos do conjunto da sociedade medieval a esse respeito, e não apenas de
sua elite pensante.
Quase sempre aquele conflito entre o poder temporal e o poder espiri-
tual foi estudado através dos textos de ideólogos imperiais ou de teólogos.
Em meados do século XII a formulação eclesiástica oficial era a célebre teo-

1. J. Lc Goff, "L'Histoirc poliriquc csr-cllc roujours l'épinc dorsale de l'hisroirc?", em t.Tmagincure


médiéual, Paris, Gallimard, 1985, r. 313.
2. Sobre a relação mito-utopia ver 11. Franco Júnior, /ls Utopias Medievais, São Paulo, Brasilicnsc,
1992, pp. 11-13.
). Il. Ilaczko, "Utopia", em ttnctclopedta Einancli. Turim, t.inaudi, 19H1, vol. H, pr. 1>56-920.
90
ria dos dois gládios de São Bernardo: a Igreja detém o poder espiritual e o
temporal, servindo-se diretamente do primeiro e delegando às autoridades
laícas, mas sob a direção dela, o segundo". A interpretação imperial, natural-
mente, era outra. Frederico Barba-Ruiva, dirigindo-se ao papa Adriano IV em
1157, afirmava que "aquele que diz que recebemos a coroa imperial como um
benefício do papa contradiz as instituições divinas e o ensinamento de Pedra,
e deve ser considerado mentiroso">.
De maneira menos explícita, porém mais rica, outros dados sobre a
questão nos são fornecidos pelo mito em pauta. A primeira referência que
temos a esse respeito é de Oto de Freísing'i, que faz um resumo do relato que
havia recebido em 1145 de um bispo da Síria franca, Hugo de Gabala. Segundo
este, quatro anos antes um certo João, rei-sacerdote, cristão de rito nestoria-
no, residente alérn-Pérsia, vencera o sultão muçulmano persa Sanjar e conquis-
tara a cidade imperial de Ecbátana, marchando depois para a Terra Santa, na
qual porém não conseguiu chegar devido a dificuldades climáticas. Relato
semelhante aparece ainda em duas outras fontes pouco posteriores, mas
somente em parte baseadas na crônica do bispo alemão?
Mas o passo decisivo para a difusão da narrativa mítica se deu em 1165,
quando uma carta supostamente escrita por Preste João começou a circular
no Ocidente, dirigida ao imperador bizantino Manuel Comneno" ou, na ver-
são francesa, ao imperador romano-germânico Frederico Barba-Ruiva". Essa
carta conheceu grande popularidade, logo tendo além de várias versões lati-
nas, outras também em francês, occitano, italiano, inglês, escocês, irlandês,
alemão, russo e hebraico lU, indício de que atendia a anseies da psicologia
coletiva de então. Não por acaso, em 1177 o papa escrevia uma resposta ao
"magnífico Indorurn regi, sacerdotum sanctissimo'í+, ainda em 1439 o papa
Eugênio IV enviava emissários à "corte de Preste João" e quase cinqüenta anos
mais tarde o rei português D. João II ainda mandava expedições em busca do
império do mítico personagem.

-í. São Bcrnardo, De Consideratione, IV, 3, 1'1.lS2, col. 776.


5. t'rtderici I Constitutiones 1157. n. 165, cd. L. weíland, em MGIII.e.~u11/, Constitutiones et Acta
Publica Intperatorunr e/ Reg u 11I, vol. 1, p. 23].
6. Cbronictt sioe l Iistoria de Duabus Ciuüatibus, VII, 33, cd. A. Ilofmcisrcr, em MGrr.5S in UW11l
Scbo!tI/1/11/, \'01. 13 bis, pp. 36:1-367.
7. A nnales Adnuuensts. em MGI USo 9. p. 5S0, c Cbronica IllIgol1is Weingarlensis. em J'vlGII.SS, 21,
p. 175, apucl l'vl.G05111an. "Otton de Freising cr lc Prêrrc Jean". RHl'/I, 61.198:1, p, 272.
8. Dert'riesterlobanues: Tcxt des /iricjes, ccl. F. I.arncke, Abbandlungen derphilologiscb-bistoriscbcn
Classe der Kôniglicb Sàcbsiscben Gesellscbaf) der WissellsclHljiell. 7, lH79, pp. 909-921; edição c
tradução italiana em (;. Zaganclli, l.a t.ettera del Prete (;i07111i, Parrna, Pratichc, '1990, pp. 52-95.
9. Lettre de Prestrejebctns ri l'entpereurde Rotn«; cd. A. jubinal, Oeuurcs completes de NUlebeuj;l'aris,
Paul Daffis, 2, cd., 1R75, \'01. 111,pp. 355-375; Zanganelli, op. cit., pp. 168-199.
10. Gosman, op. cit., p, 272.
l l . Alexandre I1I, '1Iislo/(/e ct t-rtuttogt«, 1:522, 1'1., 200, cal. 111S.
91
Consideraremos aqui quatro aspectos do mito, por necessidade de análise,
pois tais cortes e rotulações não fariam sentido para a Idade Média. Esta pos-
suía uma arraigada visão cosrnológíca unitária, sintetizada por São Bernardo,
quase contemporaneamente ao surgimento daquele mito, através de uma fór-
mula precisa: "Onde está a unidade está perfeição"12 De fato, a mentalidade
mítica tende a ver de forma globalizante os mitos que cria ou adota. Assim,
o de Preste João dizia muito aos homens medievais pelo conjunto de sua men-
sagem, e não por um aspecto ou outro isoladamente. Como já se afirmou com
razão, a origem desse mito deveu-se, mais do que a fatos históricos, a "uma
aspiração muito compreensfvelv'>.
Por isso mesmo, parece-nos um falso encaminhamento do problema
discutir se Preste João existiu ou não, se seus territórios estavam aqui ou
acolá!". "Lenda ou realidade" são faces da mesma moeda, historicamente impor-
tando pouco identificá-Ias, se é que isso é possível. O que se deve buscar é
saber como o fato (onírico ou concreto) era socialmente vivenciado. Não se
deve esquecer que para as sociedades pré-industriais, como mostrou Ernst
Cassirer, as questões eram pensadas e resolvidas miticamente antes de o serem
racionalmente 15.

O plano da vida social que hoje chamamos de político, aparece com


nitidez no relato de ato de Freising. Para ele o perfeito funcionamento da
respublica cbristiana decorria da harmonia entre poder temporal e poder espi-
ritual, que porém se enfrentavam no momento em que ele escrevia sua crôni-
ca. Significativamente, ele ouvira o relato do bispo sírio em Viterbo, onde a
corte papal se encontrava refugiada em função do movimento comunal de
Arnalelo de Brescia, em Roma. O próprio nome de sua obra é sintomático:
Cbronica siue Historia de Duabus Ciuitatibus. Ou seja, por um processo comum
nas elaborações utópicas, ele projetou a condição ideal da Cristandade na
inversão da realidade vivida. Porém, ao contrário das demais utopízações
medievais, que geralmente implicavam o sonho coletivo de um retorno às ori-
gens - pois, na bela imagem de Jacques Le Goff, os homens ele então "ti-
nham o futuro atrás de Si"IG-, a do império de Preste joào era um modelo
contemporâneo a ser seguido.

12. S~O Bcrnardo, op. cit., 11,8,15, cal. 752.


13. C. F. Bcckingham, "I'hc Quest for Prcstcrjohn", em Hulletin oftbejobn kvlands l.ibrary, 62,1980,
r·29.:$.
H. C. E. Nowcll, ",],l1el listorical l'rcstcr john", SjJ(!CU!1I111,28, '1953, pp. lt35Ji-í5; lJ. Kncfclkamp, "Der
Pricsrcrkõnig johanncs und scin Rcich - l.cgcndc odcr lleali@''',,/ollrl1a!(!lMe(/ieoczlllis/oIY, 11,
1988, pp, 337-355.
15. '" Cassircr, Filosofia de Ias Formas Simbálicas: til Pcnsanuento Mitico, (trad.), México, Forido de
Cultura Econômica, 1979.
16. ,I. l.c Goff, l.a Cioilisation de l Occidentrnédiéoal, Paris. Arrhaud, 1967, p. 2-í8.
92
De fato, a idéia de Santo Agostinho segundo a qual o governante per-
feito é o governante cristão"? continuava indiscutível, porém se revelava incom-
pleta: a questão jamais resolvida consistia em saber se o imperador era servi-
dor direto de Deus e, como tal, protetor da Igreja, ou se, pelo contrário, o
poder dele procedia da Igreja e, portanto, ele deveria servi-Ia. Diante desse
impasse, ganhava força a antiga concepção de um governante que fosse rex
et sacerdos. A figura modelar dessa concepção era, naturalmente, Melquisedeque,
"que não tem nem pai nem mãe, nem genealogia, nem começo, nem fim de
seus dias"lil. Etimologicamente ele é "Rei da Justiça" e, portanto, o próprio
Cristo. É também a síntese das "três funções supremas" que se manifestaram,
separadamente, em três personagens distintas, os Reis Magos!".
Estes, com efeito, sintetizavam a própria condição humana, evocando as
três funções indo-européias estudadas por Georges Dumézil-v. o incenso simbo-
lizava o sacerdócio, o ouro lembrava a realeza, a mirra reportava-se ao estra-
to produtivo. Ademais, eles expressavam as idades do homem, a juventude e
a fecundidade do trabalhador, a maturidade do guerreiro, a velhice do sacer-
dote>'. Por fím, estavam relacionados com os três filhos de Noé e, assim, com
as raças humanas. Se as representações iconográficas dos primeiros séculos
cristãos nada mostram nesse sentido-", um tratado atribuído a Beda, mas que
é na verdade do século XII, Excerptiones Patrum, afirma que Baltasar, o mago
que portava a mirra, era negro-", Daí cada vez mais a partir do século XIII,
com o crescente conhecimento dos europeus sobre o continente asiático, a
geografia imaginária ter deslocado () império de Preste Joi10 para a África.
A identificação mítica entre os Magos e Cristo aparece de forma clara no
relato das tradições populares registradas por Marco Polo: os três reis levavam
para o recém-nascido ouro para saber se ele era um senhor terreno, incenso
caso ele fosse Deus e mirra se fosse eterno. O mais jovem dos três, ao vê-lo,
reparou que Ele tinha sua própria idade e aparência. O mesmo ocorreu com
o rei de meia-idade e com o mais velho deles. Ao estarem os três ao mesmo
tempo diante do bebê, este assumiu a aparência "da idade que tinha, isto é,
de uma criança de treze dias". E que aceitou os três presentes que lhe foram
oferecidos. Ele era rei terreno, era eterno, era Deus>'.

17. Santo Agostinho, f)e Ciuitnte f)ei, V, 2~, 1'1.~1, cal. 170-171.
18. Ile 7,3,
'19. .I. Tourniac, Melkilset!eq Olf Ia trculition printordialc. Paris, Alhin Michcl, 1983, flP. 1J9-55.
20. A vast;, obra de (i. Dumézil este, comodamente apresentada c sintcriznda em M,l'lbes et clienx eles
indo-européens, cd. 11. Coutau-Bégaric, Paris, Flammarion, '1992.
21. Segundo Robcrto de 'lorigni, Cbroniquc, cd, I.. Dclislc, (2 vols.), Roucn, Brumcnt, 1872-1.873, vol.
11, p. 3~9, os Magos teriam 15, 30 e 60 anos.
22. 11. l.cclcrcq, "Magos", em IMO., \'01. X, col. 991-106'1.
23, M. l'Iissagaray, 1.(/ U;r.;endedes Rois Muges, Paris. Scuil, '1965. fl. 2H; lixccI1J!i0J1('S t'anutn, 1'1.,9'1, col. 511.
2~. t.e t.iure de Marco Polo, cd. A. r Scrstcvcns, Paris, Albin Michcl, 1955, p. H6; 11 Milione, cd, R.
Allulli, Milano, Mondadori, 3. cd. 196'i, p. -12 . .J;í em fins do século 11, Santo lrincu atribuiu um
sentido aos presentes: a mirra ao homem, o ouro ao rei, o incenso a Deus, cf. Aduersus l laereses,
1,111, IX, rc; 7, col. 870-871.
93
Ora, esse duplo caráter, sacerdotal e monárquico, aparecia em Preste
João de duas formas. A primeira, pelo próprio nome da personagem, pois
jean seria deformação fonética, por parte dos colonos francos da Terra Santa,
do título do soberano da Etiópia CZan), que ganhava a condição de padre ao
ser ordenado diácono por ocasião de sua ascensão ao trono->, A segunda, e
bem mais importante, dava-se através da relação mítica entre Preste João e os
Reis Magos. De um lado, a carta descrevia as variadas riquezas do império de
Preste João2ú, que o imaginário medieval logo passou a ver como {) local de
onde provinham o ouro, o incenso e a mirra com que os Magos haviam
presenteado o menino Jesus27. De outro lado, a carta localizava as terras de
Preste João nas vizinhanças do Paraíso Terreno-", e uma antiga tradição dizia
que Adão escondera numa Caverna dos Tesouros o ouro, o incenso e a mirra
que ele trouxera do Paraíso. Além disso, teria sido sobre a montanha daque-
la caverna que aparecera a estrela seguida pelos Magos para levar aqueles
objetos ao Messias recém-nascído>'.
Ficava assim estabelecida uma forte proximidade mítica entre Melquise-
deque-Magos-Cristo-Preste João. O fato de desde fins da época carolíngia se
pensar nos Três Reis como símbolos das três raças humanas representantes
das três partes do mundow correspondia bem ~l imagem daquele soberano ao
qual se atribuía extensos territórios. Foi nesse quadro de tradições orais que
Oto de Freising escreveu sua crônica e nela considerou Preste João descen-
dente dos Magos+'. ão foi um acaso, portanto, que as relíquias dos Magos
tenham sido transferidas de Milão para Colônia, em 1164, pelo imperador
Frederico, sobrinho do bispo de Freising.
Havia claras implicações políticas no gesto do imperador germânico. O
traslado daquelas relíquias para a Alemanha tinha dois significados básicos.
De um lado, vários cronistas da época afirmavam que os corpos dos Magos
tinham sido cedidos pelo imperador bizantino Manuel Comneno a Milãoõ-,
antes de serem transferidos para Colônia. Isto é, graças ao simbolismo contí-

25. Esta hipótese antiga sobre o nome de Preste JO~lO ainda é considerada a melhor por J. Richard,
"L'Extrêmc-Oricnt légcndairc au Moyen Age: Roi David ct Prêtrc jcan", /11II1tI1es d'tithiopie; 2, 1957,
p.230.
26. Der Priesterjobnn nes: Text eles Briefes, n. 21, 22, 21, 33, 3H, ,VI e 65, pp, 9]2, 9H, 915 e 91H. Versão
francesa, cd . jubinal, pp. 357, 36;\, j6/í, ;\66, 367 e 370-371.
27. 1VIt.2,ll.
28. Der Priester fobannes: Text dos Briefes, n. 22, p. 912; cd. jubinal, p. 361.
29. bsa rradicão aparece em vários textos apócrifos, sobretudo numa obra atribuída a São João
Crisóstomo, Opus Imperfcct UIII in Maubaeum, li, I, 1>(,', 56, cal. 637-638; La Caoerna dei Tesori,
20, cd-rrad. A. Battisra e B. Bagatti, Jerusalém, Franciscan Printing Prcss, 1979, p, 15; Testamento
de Adán, 111,7, trad. F. juvicr Marrínez Fcrnándcz, em Díc« Macho e/ alii (dir.), Apôcrtfos dei
Antiguo Testamento, Madrid, Cristiandad,1987, 1'01. V, p. 135.
30. Elissagaray, op. cii., p. 28.
31. Oto de Frcising, o/i. cit., VII, 33, p. 366, concepção que: aparece ainda 110 século XIV cm joão de
Ilildcsheim, t tistoria Triuni Regunt, 31, cd, IVI.Elissagaray, op. cit., pp, 138-110.
32. Elissagal~ly, op. cit., pp, 53-')01.
91
do nas figuras dos Três Reis, o gesto de Frederico ganhava ares de uma verda-
deira translatio imperii do Oriente para o Ocidente. De outro lado, tirar aque-
las relíquias de Milão era afirmar que a cidade rebelde - que não aceitava a?
pretensões imperiais sobre o norte italiano - não poderia continuar a custo-
diar os restos sagrados dos vassalos perfeitos do Rei dos reis~j.
É interessante lembrar que na sua crônica universal o bispo de Freising
narrava a sucessão de impérios que decaíram por falta de harmonia entre o po-
der espiritual e o temporal, mas parava exatamente na ascensão do sobrinho
ao trono. Como se este inaugurasse um novo período na História, o que começou
a ser contado numa nova obra, a pedido do imperador, a Cesta Fridericiõ+. A
morte do bispo interrompeu sua elaboração, mas sobretudo impediu que ele
assistisse aos crescentes choques entre a Igreja e o Império Rornano-Germânico.
Coincidentemente, no mesmo ano do falecimento do bispo de Freising outros
conselheiros moderados, adeptos da Sanefa Romana Res Publica, da harmo-
nia entre Papado e Império, também desapareceram, e Frederico passou a se
cercar de partidários da confrontação'». O Sacrum que passava então a adjeti-
var o Romanurn Irnperium não era apenas uma imagem retórica, mas atribuía
ao imperador o direito de intervir nas questões eclesiásticas.
Como fizera Carlos Magno. Entende-se assim que, ao reunir material míti-
co e simbólico de diversas procedências para fundamentar suas pretensões
políticas, Frederico tenha recorrido também à imagem de seu prestigioso ante-
cessor. Sem dúvida, afirma Robert Folz, "a lembrança de Carlos Magno inspirou
Frederlco em vários níveis"·%, um deles a idéia de preeminência, segundo a
qual o imperador exerceria mais um papel de direção geral do que um poder
universal efetivo. Os demais reinos tinham sua soberania reconhecida, porém
se colocavam sob a proteção do imperador, que teria "o patronato do mundo",
na expressão do bispo de Freisingo". Por isso Frederico designava os monar-
cas europeus de "reis de província"38. Enfim, era a concepção de uma' confe-
deração hierárquica, nos moldes do império de Preste joão, a quem se subor-
dinavam 72 reis39, Idéia importante para Frederico não apenas em relação ao
conjunto da Europa ocidental cristã, mas também aos autonornísmos regionais
alemães, sobretudo no período 1156-1180, o ele Henrique, o Leão, da Baviera.

33. F. Cardini, li Barbarossa: Vila, Trionft e llusioni di Federico t tmperatore, Milão, Mondadori, 1985,
p.219.
31. Oto de l'reising e Rahcwini, Gesta Friderici I ttnpercuoris, cd. B. Simson, em }HGIf ..s:\· kerum
Germanicarunt in l!.~U11/ Scbolarutn, voi. H.
35. Cardini, op. cit., p. 191.
36. R, Folz, Le Souoenir et la légende de Cbarlentagne dans l'empire germanique tnédiéual. Genebra,
Slatkine Reprints, 1973, p. 193.
37. Cbronica, VII, 31, p. 367.
38. Saxo Grammaticus. I, XIV, cd. A. Holdcr-Eggcr, Estrasburgo, 1886, p, 539, apud M. Bloch, Les Rois
tbaumaturges, Paris, Armand CoIin, 1961, p. 193.
39. Der Priesterjobannes.Tcxt des Briefes, n. 9 e 13, p. 910. Na versão francesa são 62 reis: ed. Jubinal,
p.357.
95
Para se ligar a Carlos Magno, Barba-Ruiva fez remontar sua linhagem aos
merovíngíos e aos carolíngíos, e dessa forma ~IS origens míticas, portanto
sagradas, da monarquia francaw. A canonizacão de Carlos Magno colocava-
se na mesma linha: através da sacralízação de seu antecessor ele reforçava a
sua própria sacralidade independentemente dos rituais papais. Tanto que a
canonização se deu por um documento imperial, apesar da existência de um
antipapa sustentado por Frederico e que poderia emitir uma bula a tal respeito.
A cerimônia litúrgica compreendeu a traslação do corpo do santo imperador,
cujo rúrnulo desconLecido teria sido revelado por Deus, marcando a adesão
divina aos projet.ix de Frederico" I. A data da canonização também não foi
deixada ao acaso: 29 de dezembro era a festa de São Davi, antepassado de
Cristo e símbolo de poder sagrado.
Portanto, entre meados de 1164 e fins de 1165, três importantes passos
foram dados na direção do projeto político imperial: o traslado das relíquias
dos Magos, a canonizacão de Carlos Magno e o aparecimento da carta atribuí-
da a Preste JO~lO. Os três eventos se articulavam num jogo de comparações,
interações e projeções entre Preste João e Frederico, Império oriental e Império
ocidental. O império de Preste João, com seus 72 reis, era a imagem do univer-
so, habitado por 72 povos segundo Isidoro de Sevilha''". Alguns anos antes da
ascensão de Frederico ao trono, Honório Augustodunensis, que apesar do
nome era possivelmente alemão, afirmava que a coroa imperial simbolizava
com seu círculo o mundo"). Por sua imagem marcadarnente cristológica, Preste
João não se reportava a ninguém, seu poder derivava diretamente de Deus.
Da mesma maneira 'que a iconografia imperial mostrava Henrique III e sua
esposa coroados por Deus. Como Barba-Ruiva desejava ser visto.
Diante disso tudo, não é surpreendente que a chancelaria imperial tenha
estado possivelmente ligada à redação da carta supostamente escrita por Preste
Joã011. Contudo isso não significa que Frederíco e seus adeptos tenham criado
deliberadamente um mito ou mesmo o tenham manipulado. As manifestações
imaginárias, que se constroem com material da mentalidade, da psicologia
coletiva mais profunda, não são meros reflexos (nem "causas") da realidade
material. As duas instâncias interagern. Se o partido imperial recorreu às
tradições orais sobre o rei-sacerdote oriental, é porque elas respondiam às
necessidades psicológicas do homem de então. Inclusive dos elaboradores do
projeto imperial. Os homens são produto de seu tempo, e só se "inventa" ou
se "acredita" no que é possível para a época inventar OLl acreditar.

10. K. Schmid, ""De Regia Sirpc Waiblingcnsium': Remarques sur Ia conscicncc de sai eles Staufen",
em Fi/mil/e et parenté drtns lOccident Médiéual, Roma, Ecolc Française de Rome, J 977, pp, 49-56.
11. Folz, 01'. eil., p. 212.
42. Isidoro de Sevilha, tittmologias, IX, 2, 2, ccl-trad. J. Oroz kcra c M. Marcos Casqucro, (2 vols.),
Madrid, BAC,1982, p. 712.
13. I Ionório Augusroduncnsis, Gemma /Ini111C1e, 224, 1'1" 172, co1.612.
41. K. F. l lcllcincr, "Prcsrcr john's l.cttcr: A Medieval Utopia", 'Ibe Pboenix, 13, 1959, p. 56; J.-I'. HOllX,

t.es Iixplorateurs au Moveu /Ige, Paris, Seuil 1985, p. 77-79; Cardini, op. cit., p. 253.
96
Pode-se constatar isso em outro plano da utopia, que chamaremos de
eclesiástico. Isto é, uma crítica à Igreja de Roma que desde fins do século XI,
com a Reforma Gregoriana, se monarquizava, se híerarquízava, se dogmatizava.
Crítica que não era feita exclusivamente pelo partido imperial, mas também
por certos setores do laícado e mesmo do clero - por exemplo, a propósito
do celibato eclesiástico, que há um século o Papado tentava impor, mas encon-
trando forte resistência. Também para esses setores da sociedade, o império
de Preste João oferecia um modelo alternativo bastante atraente.
O fato de o governante ser rex et sacerdos, portanto um novo Melqui-
sedeque e um novo Cristo, parecia dispensar a existência de um amplo e orga-
nizado setor eclesiástico à moda ocidental. E mantendo um alto nível moral
naqueles territórios. A carta insiste em que lá não havia nem adultério, nem
mentira, nem avareza, e todos viviam num ambiente de paz">. A própria locali-
zação do império de Preste João indicava a alta qualidade moral e material
de seus territórios. De acordo com uma tradição muito antiga, as regiões mais
belas e melhores seriam as mais próximas do ParaÍso;'G. Mas aquele império
era herético aos olhos da Igreja, pois Preste João era nestorianof". Logo, o jul-
gamento de Roma parecia não corresponder ao julgamento de Deus. Como
interessava a Barba-Ruiva - excomungado em 1160 - ressaltar.
Mas curiosamente, contrariando a tradição que via Preste João e seus
súditos como muito virtuosos, Marco Polo relata um episódio no qual servido-
res de Preste JO~lOrecorreram traição para prender um certo rei e entregá-
à

10 a seu senhor'". Aliás, o mercador veneziano demonstra não ter grande sim-
patia por Preste João, não lamentar a vitória de Gêngis-Khan que culmina com
a morte do rei-sacerdote, narrada secamentet''. Além da admiração de Polo
pelos orientais, entre os quais viveu muitos anos, talvez pesasse o ressenti-
mento do cidadão de uma comuna italiana diante das freqüentes pretensões
germano-imperiaís (que ele percebia calcadas no modelo joânico) sobre o
norte peninsular. Talvez também na sua época, um século após a morte de
Barba-Ruiva, os contatos mais freqüentes dos ocidentais com o Extremo Oriente

15. Der Priestcrjobnnnes: Text des Brtefes, n. 51 e 52, r. 916; cd. Jubinal, pp. 368-369. Em função
disso, "Preste João" teria sido um título atribuído :l diversos reis em diferentes países para desig-
nar um soberano ideal, possuidor de todas as virtudes, scgundo ]. l'ircnnc, t.a 1.p'~e/l("J du "Prêtre
[ean", Estrasburgo, Prcsscs lInivcrsitaircs de Strashourg, 1992.
!J6. Gn 1, JIí-16; Graf, "11 ,'vlirodcl Paradiso Terrestre", em suu, rr. )7-;'7.
!J7. Oro de Freising, Cbronica, VII, 3" 12, p. 365. Para o cronista armênio do século XII, Samucl d'Ani,
ncsroríanos sínos teriam chegado ~l Armênia em 5~)"I, propagando ali suas doutrinas c traduzindo
alguns apócrilos sobre Adâo: "Tcmporum usquc ad Suam Acr.ucm Rario", em ec;, "19, col. 685-686.
Entre esses textos estava a Caverna dos Tesouro .•.•
·, que teria sido escrita no começo do século VI
ror UIll ncstoriano, A. Gôtzc, "Dic Schatzhôhlc. Vcbcrlicfcrung und Qucllcns", e111 Sitzungsbericbte
der 1 teidelbcrgerAleadentie der lfIissenscba./íel1, 1922, rr. 39-91. Talvez o Ocidente atribuísse caráter
ncsroriano ao império de Preste João ror idcnrificá-lo com a terra descrita naquele apócrifo,
-18. Le t.iure de Marco 1'010, cd. T' Scrstcvcns, r. 180; 11Milione, cd. Allulli, rr. 177-'179.
19. Ed. T' Scrstcvcns, r. 12!J; cd. Allulli, p. 9).
97
tenham esvaziado o mito de certos significados que ele tinha no século XII: a
pax mongolica tinha tornado possível o contato direto com as regiões pro-
dutoras de especiarias, dispensando os inúmeros e encarecedores intermediários
do século anterior. Quando, mais tarde, o avanço turco dificultou novamente
os contatos Ocidente-Extremo Oriente, voltou-se a sonhar com o império de
Preste João.
De toda maneira, a caracterização de Preste joão como nestoriano parece
ter resultado da harmonização de dados sobre o nestoríanisrno conhecidos no
Ocidente de então, com uma interpretação específica que a chancelaria impe-
rial fazia daquela doutrina. De um lado, sabia-se que a seita nestoriana, conde-
nada pelo Concílio de Éfeso em 431, tinha sobrevivido no Oriente, pois havia
penetrado na Pérsía desde fins do século v, na Índia no começo do século
seguinte e na China em meados do século VII. Em 1141 os turcos seldjúcidas
foram derrotados pelos khara-khitai provenientes da China, não-cristãos que
no seu avanço tinham incorporado grupos nestorianos. Foi possivelmente de
alguns desses indivíduos que Hugo de Gabala ouviu o relato depois transmi-
tido a Oto de Freising, o que na verdade apenas confirmava para os ociden-
tais a existência de países nestorianos no Oriente.
De outro lado, parece ter ocorrido um interessante reaproveitamento de
idéias anteriores, ortodoxas mas pouco usuais. Os concílios vísigótícos tinham
falado em gemina natura e gemina substantia de Cristo, coerentemente com
o dogma que via Nele una persona, dtiae iiaturae. Mas, potencialmente pro-
blemático, o termo gemina ficou esquecido nos séculos seguintes. Por volta
de 1100, contudo, o autor conhecido por Anônimo Normando referia-se ao
rei como um ser gerninado, humano e divino como Cristo, mas tendo esta
condição pela graça, isto é, por sua unção e sua sagração. Idéias que, segun-
do Kantorowicz, n~IOencontraram eco por pertencerem mais ao passado que
ao futuro daquela época'v. No entanto as estranhas tonalidades nestoríanas
daquela teoria monárquíca ortodoxa devem ter impressionado os ídeólogos
de Frederico, E a idéia foi levada adiante, cruzada com () mito: Preste João,
rei-sacerdote por si próprio e não pela intermediação eclesiástica, era o mode-
lo desejado pelo Hohenstaufen.
Reforçando as qualidades sacerdotais de Preste João, a carta aproveita-
va a antiga tradição segundo a qual o apóstolo Tomás teria evangelízado as
índias. Fato importante, pois aquele apóstolo fora o único que conhecera a
ressurreição do Senhor de dupla forma, pela visão e pelo tato, formulando
um ato de fé pessoal>'. A crença acrítica de Pedro, isto é, da Igreja romana,
opunha-se ~l fé especulatíva e pessoal ele Tomás, postura que sensibilizava o
século XII admirador dos clássicos e revalorizador de um certo racionalismo
mesmo nas questões religiosas. Ademais, estabelecendo uma importante articu-

50. E. Kantorowicz, l.es Deu» corps du roi, (rrad.), Paris, Gallimarcl, 1989, pp. 55-63.
51. t.egenda, 5, prólogo, p, 32.
9S
lação com outros ângulos do mito, havia a crença registrada depois na Legenda
Aurea, segundo a qual Tomás teria hatizado os MagosS2 Nesse quadro, alguns
anos depois da divulgação da carta de Preste João, () belga S~lO Bernardo
Penitente peregrinou até o sepulcro de TomásS5, sem dúvida o exemplo mais
famoso, mas não único, de uma espiritualidade crescente em torno do apósto-
lo da dúvida.
Aparece assim outra razão para a transferência dos corpos santos dos
Magos de Milão para Colônia. Reinaldo de Dassel, chanceler imperial e desde
1159 também arcebispo de Colônia, homem ambicioso e servidor dedicado
do projeto imperial fredericiano, é que parece ter tido a iniciativa da traslação.
Esta redundaria em maior prestígio e riqueza para sua cidade. Se em princí-
pios do século XlI, mesmo antes de receber as relíquias dos Magos, acredita-
va-se que Colônia era a maior cidade alemã graças ~lexistência, ali, de impor-
tantes sanctorum patrocintis'n, a posse daquelas relíquias aumentaria ainda
mais seu prestígio. O silêncio sobre aquela rraslação por parte de alguns cro-
nistas ligados ~lIgreja romana talvez se tenha devido exatamente ao perigoso
fortalecimento daquela sede episcopal.
Roma j{ltinha, desde princípios do século XII, o exemplo de Compostela,
que sob a direção do ambicioso bispo Diego Gelmirez, e graças posse do à

corpo do apóstolo Santiago, almejara tornar-se a "cabeça das Igrejas ociden-


tais"55. Mesmo depois das relações Roma-Cornpostela terem melhorado graças
~lintermediação de Cluny, o Papado não esqueceu a pretensão compostelana
e "até hoje teme e se acautela para que tal não ocorra">". Ora, em relação ~l
Colônia o risco era maior devido ao cont1ito que então opunha a Igreja romana
ao Império. Frederico, ao associar seu nome ao dos Magos, esperava ser relacio-
nado com Tomás, ganhando uma autoridade apostólica que lhe faltava diante
do bispo de Roma. Curiosamente a chegada dos corpos dos Três Reis a Colônia
se deu em 24 de julho, na véspera da festa de Santiago>", sublinhando de
forma talvez não-casual a anterioridade cronológica dos Magos em relação ao
apóstolo compostelano.
Ligando-se aos Magos, o imperador gerrnâníco poderia ganhar uma áurea
de anterioridade eclesiástica em relação ao conjunto dos apóstolos. De fato,
a primeira passagem da gentilitas para a cbristianitas dera-se quando os Magos
se dirigiram a Belém para adorar o Menino. Gesto fundamental, que os tornou
os primeiros membros da sociedade cristã. Por isso os progressos na cristolo-

'52. Ident, 5, 11, p. 39.

5J. Viii' S. Bcruardi Poenitcntis; 1. 7, em Acttt Sanctorum, uprilis, t. li, Bruxelas, Culrurc CI Civilisation,
rccmpr, 1969, p. 676.
51. Guilherme de Malmcsbury, De G'eslis Hmli/lclllll Anglonun, V, /1, 1'1., 179, col. H;70.
55. CO/,(J1/ica de ,\'(/111(/ Maria de iria, cd. J. Carro Garcia, Compostcla, CS1C-Tnslilulo Padre Sarmicnto
de FSludios (;allegos,195·1, p. 81; 11. Franco júnior, I'ereg,.il/o.,~ MOl/ges e (,'lIerreims: l'cudo-cleri-
calisnto e Hel(~iosid{/de em Casteln l1/edie/.'(/I, São Paulo, l Iucircc, 1990, pp, ílj-89.
'56. tiistona c.onrposudana, lI, 3, 3, rrud. M. Suárcz el J. Campclo, Composrclu, I'OlTO,1950, pp. 2iH-2i9.
57. Annales Colonieusis l\1a.\'ill/i, cd. G. Pcrtz, MC·//.SS, 17, p. 779.
99
gia eram acompanhados por progressos no culto a eles. Um dos primeiros
exemplos de um mistério (peças teatrais que seriam depois muito populares)
sobre os Reis Magos, é de 106058. O número de milagres realizados pela inter-
cessão deles aumentava, muitas orações lhes eram dirigidas, sobretudo escritas
em fitas que se acreditava proteger seus portadores>".
Justamente para combater o projeto imperial de uma República Cristã
não dirigida pela Igreja, é que o papa respondeu ~l carta de PresteIoào somente
depois de Frederico ter sido derrotado em 1176 em Legnano. Apesar de lhe
reconhecer a condição monárquica e sacerdotal, Alexandre III trata Preste joão
da maneira hierárquica convencional, e exorta-o a se converter ao cristianis-
mo romanow. Na mesma linha, no século seguinte franciscanos foram manda-
dos ao Oriente em busca do império mítico para torná-lo um aliado do P"qX:d061.
Ou seja, aquela utopia não era negada pela Igreja, pois esta própria era pro-
duto, mais do que de dogmas e hierarquias, das estruturas mentais de sua
época. O Papado não negava a utopia por se identificar com ela. O império
paradisíaco do rei-sacerdote oriental era, também do ponto de vista eclesiás-
tico, a sociedade ideal. O modelo oriental servia perfeitamente aos propósi-
tos da Igreja, apenas naturalmente depurado de nestorianismo e com o papa
no papel de rei-sacerdote.
Um terceiro aspecto da utopia a ser considerado é o escatológico, muito
vivo naquele contexro de lutas internas no Ocidente cristão e de avanço muçul-
mano sobre os territórios latinos do Oriente Médio. Aliás, o papel mais ime-
diato que se atribuía ao Preste joão era () de um poderoso aliado dos oci-
dentais, o que possibilitaria um ataque aos muçulmanos em duas frentes. Como
a pressão da Pérsia e do Egito islâmicos sobre os Estados cruzados era em
parte compensada pela contrapressão elo soberano cristão da Geórgia, Davi Il
0089-1125), pensou-se nele como sendo Preste João. Isso era reforçado pelo
mito que localizava os povos de Gog e Magog no Cáucaso, aprisionados por
Alexandre Magno, antiga tradíção'i? registrada na primeira metade do século
XII por Honório Augustodunensis'ô e aproveitada pouco mais tarde pela carta
atribuída a Preste JoãoM

SH. I.. Dclislc. "l.c Mystcrc dcs Rois Mages dunx Ia carhédralc de Ncvcrs", /(IIIII(/lIi(/. 11, 1875. pp. 1-2;
veja-se também Hiblio/!J,'l/lIe de l Ecok: rtes Cbanes, 3i, 1H73, pp, 657-65H.
59. Eliss:tgar:ty. ojJ, cit., p. 55.
60. Alexandre 111, "Pis/ol(/". 1322, 1'/.• 200, col, 'I HH-1150.
61. J. Í\'1.POLIY M:irfí. "I.a l.cycnda dcl Prcstc lunn entre los Franciscanos de Ia J'dad Media". Antonlanunt,
20. 19~5, rr. 65-96-
62. A.IC Andcrson, Alexander's Gat«; (,'og anel JI1(/gog, and tbo lncloscd Nations, Cambridgc (Mass.),
Thc Medieval Acndcmy of Amcric.i, 1932. pp. 15-57.
63. l Ionório Augustoduncnsis. Ou lnutgi ne Mil ndi, I, '11. 1'/.• 172. coI.12:1.
()!i. Oer Prtestcrtobannes. Tcxt eles Hrh:r"s. n. 16 e 17, p. 911, t.nrrc as fontes da carta estava a tqnstotr:
Alexanclri stacedouts ad Aristotuletn M((gis/rtllI/ .\111/'" de ttincre SI/O et de Si/I/ lndiae, muito po-
pular na Idade ,Vlédia segundo C. Gnry, Tbc il-/ediC'{){{1 Alexanrler, Cam;)ridgc. Cl Jl', 1956. r. 15;
veja-se também r. 13tJ.
10n
Também neste ponto várias referências míticas se entrecruza vam, acen-
tuando a identificação simbólica entre Frederico e Preste João. O mito do
Imperador dos Últimos Dias, surgido provavelmente no século IV, juntava-se
ao de Carlos Magno cruzado, de fins do século XI<í\ e se projetava em Barba-
Ruiva naquela situação fortemente escatológíca e cruzadística de meados do
século XII. Nesse contexto a canonizacão do imperador carolíngio, os termos
c as comparações da Cesta Friderici e de uma série de outras obras destinadas
a celebrar o Hohenstaufen, claramente pretendiam fazer deste "um novo Carlos
Magno", ou mais exatamente, "fazer reviver Carlos Magno em Frederico 1"66.
Daí a comparação feita pelo bispo de Freising entre Ecbátana - a velha capi-
tal imperial persa conquistada por Alexandre e Preste João - e Aix-la-Chapelle,
a capital imperial ocidental desde Carlos Magn<P.
Este último, como se sabe, era aos olhos ela Idade Média comparado
várias vezes ao Davi bíblico. Ora, mesmo as tradições que imaginavam os
povos do Anticristo em outro local que n~IOo Cáucaso, atribuíam a um descen-
dente de Davi o dever de vigiar os povos impuros fechados atrás de poderosas
portas de ferro. Aliás, o deslocamento geográfico do império mítico deveu-se
em pane a isso, pois além da dinastia Bagrátída da GeórgiaÚ8 também a Zagwe
da Etiópia reivindicava uma origem salomônica'é'. De toda forma, mantinha-
se o caráter escatológico daquele Davi-Alexandre-Carlos Magno-Preste João.
Um elo importante nessa cadeia mítica, e que reforçava a faceta escatológica
da personagem, foi registrado pelo cronista Salimbene de Adam em fins do
século XIII, mas aproveitando material existente cem anos antes: o enigmáti-
co soberano Davi era descendente dos Magos e pretendia ir até o Ocidente
resgatar os corpos de seus ancestrais?".
Frederico Barba-Ruiva, como vimos, estava simbolicamente ligado a todas
aquelas personagens. Mas, enquanto os demais eram de forma geral bem vis-
tos tanto pela cultura vulgar quanto pela erudita, Alexandre Magno era visto
de dupla maneira. Para o imaginário popular, tratava-se de uma personagem
atraente, existindo diversas narrativas que descreviam viagens dele ao Paraíso?".
Para os eclesiásticos, tratava-se de um homem reprovável, cuja morte prema-
tura se devera ~ISsuas falhas moraís'". Talvez por isso, o imperador germâní-

6'5. I'ol», op. cit., pp. 137-139.


66. klent. pp.199-200.
67. Oro de I'r<:ising, op. cit., VII, 3, p. 313.
68. O Soumbat, crônica monárquica dos Ilagr:íridas, t'll. a genealogia da dinasti« pass:lr por Salom:;o e
Davi c chegar aré Ad;IO, tema desenvolvido na versão georgi~lna d~1 Carerrut, revisada no século
XI: A. Aznlichvili, "Noticc sur une vcrsion géorgicnne de Ia Cavcrnc dcs Trésors", Nem/e de l'orient
cbrcucn, 26, 1927-1928, pp. 38;' e 392.
69. Richard, ojJ. ctt., 1'1'. 228-229 e 2;'1.
70. Salimbcnc D'Adam, Cronica, cd. O. I loklcr-Eggcr, em MG//SS·, 32, p. 580.
71. Graf, O}). cit., 1'[1. 131-136.
72. Car)', 0}1. cit., p. ]01. Uma versão iconográfica disso csrá no mosaico da catedral de Trani, do século
XII, que representa Alexandre na cena scguinrc à elo Pecado Original.
IUl
co não queria seu nome muito associado ao do imperador macedônico. Tal
fato, contudo, não diminuía o papel escatológico que Frederico se atribuía c
que, na verdade, foi bem maior após sua morte a caminho de Jerusalém.
Mais uma vez, a posição de Oto de Freising era privilegiada para reunir
e expressar as duas correntes político-culturais sobre as questões escatológí-
caso De um lado, como membro da família imperial, ele certamente conhecia
diversos relatos sobre () Último Imperador do Mundo e a pretensão de vários
soberanos gerrnânicos, desde os Otônidas, de se apresentarem C0l110 essa per-
sonagem, ou ao menos como seu precursor. De outro lado, como membro da
Ordem Cisterciense, aquele cronista estava próximo ao pensamento de São
Bernardo, que pregara a Segunda Cruzada fortemente influenciado pela
Tiburtina, texto no qual pela primeira vez aparecera a figura do Último
Imperador do Mund075. É interessante que depois de ter tratado de Preste
João no Livro VII de sua crônica, () tio do imperador tenha dedicado todo o
Livro VIII a discussões de fundo apocalíptíco?". Em 1162 Frederico oferecia
um vitral ~l igreja alsaciana de Sainte-Foy de Sélestat, ligada ~l abadia de Conques
e, portanto, a um dos mais famosos tímpanos românicos sobre o jutzo Final.
Nesse ambiente, o Ludus de Anticbristo'>, escrito por um cisterciense da Baviera
por volta de 1160, atribuía ao imperador gerrnânico um papel central, para
cuja caracterização o autor sem dúvida tomou Frederíco como modelo?".
No entanto, ele continuava a ser visto de forma diferente na Alemanha
e fora dela, mesmo após sua morte. O Nove/fino italiano, coletânea de textos
populares reunidos em fins do século XlI ou princípios do XIII, fala no Preste
JO~lOenviando três pedras preciosas com poderes mágicos a Frederico, que
teria porém se comentado com a beleza exterior das pedras e não perguntara
pelas virtudes delas. Frederico era visto assim como homem sem sabedoria,
crítica compreensível em razão dos sentimentos que ele despertava na maior
parte dos italianos. Por outro lado, a mesma história na versão poética alemã
do século XIII afirma que a carta de Preste João ao imperador germâníco fora
acompanhada por diversos objetos maravilhosos, que ele sabia perfeitamente
utilizar?", Entre esses presentes estava uma pedra que dá invisibilidacle ao seu
portador, o que exprimia as crenças, emito em voga, sobre o messíanismo ele
Frederíco, que não teria morrido na Cruzada, mas apenas se retirado deste
mundo esperando o momento de retomar, quando dos combates que antece-
deriam o Fim dos Tempos.
Assim, para a aguçada sensibilidade escatológíca da época, a figura de
um rei-sacerdote como PresteIoão era muito representativa. Ele era visto como

73. N. Coim, Tbc t'ursuit oftbo sl itknrnnn, l.ondrcs. Scckcr and W;IJ·hurg, 1<)';7, pp. 16, 57l: 377.
71. Oro til: I'rcising, ojJ. clt., VIII, [lJ1. 39(H~7.
7~. Tbe 1'1(/.1'ofAnticbrist, cd . .J. Wright, Toronto, Thc I'ontifical l nstitutc "f Medieval Sruclics, 1<)67.
76. Cardini, ojJ. cit .• p. 2W.
77. R. Kôhlcr, "1." Nouvcllc irnlicnnc du I'rêtrc jcan ct de lcmpcrcur l-réclénc ct un r(·cit isianduis".
Rontania, '5, 1876, pp. 76-81.
1112
uma síntese de três personagens: do apóstolo JO~lO, que segundo uma dífun-
(lida lenda não estava morto e preparava a guerra ao Anticristo?"; do rei-sacer-
dote Melquisedeque, que em textos apócrifos judaicos e cristãos primitivos
tinha clara conotação esc ato lógica e estava estreitamente associado a crenças
milenaristas?"; do Último Imperador do Mundo. Não por acaso os franciscanos,
desde o século XIII, saíam em várias missões no Oriente, pois uma tradição
popular falava na crístianização de toda a Terra antecedendo o juízo Final,
daí aqueles pregadores, muitos deles imbuídos de forte espírito joaquimita,
buscarem o império cristão de Preste joão para ter ajuda na sua tarefa. Como
bem percebeu Martin Gosman, "o Preste é a prefiguração tipológica do Cristo.
Seu reino anuncia o do Padre-Rei por excelência'<",
Um último nível de análise a ser considerado é o econômico-social. Aqui
a ansiedade coletiva básica a que o império mítico respondia era o sonho de
uma situação de fartura a qualquer tempo e independentemente da procedência
social do indivíduo. Apesar dos progressos nas técnicas agrícolas desde princí-
pios do século XI, o fantasma da fome não deixara de rondar o Ocidente
cristão. É verdade que os períodos de carestia no século XII não eram tão fre-
qüentes, tão prolongados e tão abrangentes geograficamente quanto antes.
Mas dificilmente se passava um ano sem que algumas regiões fossem vítimas
da escassez. De certa forma, o crescimento populacíonal absorvia boa parte
da produção. Se a qualidade média de vida crescera, o mesmo ocorrera com
as desigualdades entre as regiões e os níveis sociais.
A Alemanha - no sentido de territórios que tinham uma forte unidade
cultural. se bem que não-polítíca - conheceu, entre () século XI e princípios
do XIV, uma taxa de crescimento populacional de mais de 3'YÚ, superior ~l de
outros países europeus'!'. Por isso a pressão dernográfica por novas terras era
grande, o que explica, além da significativa participação gerrnâníca nas Cruzadas
do Oriente Médio, o avanço sobre os territórios eslavos da Europa oriental.
Ademais, o desenvolvimento urbano e comercial do século XII tornava pre-
mente a necessidade de metais preciosos a serem amoedados. Se isso era ver-
dade para as cidades-república italianas, com mais razão o era para os cen-
tros comerciais alemães, mais recentes e de menor tradição mercantil. Ou
seja, também nesse aspecto o império de PresteIoão revelava-se atraente para
os ocidentais.
É interessante lembrar que o Ocidente do século XII, que assistia ao
aparecimento do mito de Preste joão, foi ainda o do surgimento de outros
mitos correlatos. Preste JO~lO, Graal, Cocanha e Virgem Negra eram intercambiá-
veis em diversos aspectos exatamente por responderem a algumas das rnes-

78. Gosman, ojJ. cit., p. 282.


79. I':.l.cach, ",\klchisécl",ch cr l'cmpcrcur", em I.Unité de l'bomnte , rrrad.), Paris, Gallimard, 1980, 1'1'.
2/íO-2'i2.
80. Cll"ml1, op. ctt .. p. 2Wi.
HI. I I' Cuvillicr, L'Allentagnt: ntédiérak), (2 vols.), Paris, l'uyor. 1979-198i, vol, I, pp. 236-212.
103
mas questões colocadas pela psicologia coletiva da época. Isto é, por serem
manifestações imaginárias que traziam à tona - possibilitadas pelas transfor-
mações materiais de então e expressas segundo os valores culturais da época
- elementos míticos muito antigos. Este fato essencial não deve ficar em
segundo plano, encoberto pela circunstância de o primeiro relato sobre Preste
João ter sido alemão e o sobre o Graal ter sido francês.
Naturalmente não interessa aqui discutir os inúmeros pontos polêmicos
do mito do Graal, mas somente relemhrar seu inegável caráter agrário. Seja
como cornucópia céltica, seja como cálice que recolhera o sangue de Cristo,
o Graal desempenhava um claro papel alimentador. Para a versão alemã de
Wolti-an von Eschenbach em princípios do século XIII, "encontram-se diante
do Graal, prontos a serem comidos, todos os alimentos que os convívados
desejam provar. Cada indivíduo podia, a seu bel-prazer, conseguir pratos
quentes ou frios, pedir pratos novos ou repetir aqueles que tinha acabado de
comer, obter pratos de caça ou de qualquer ave. L ..] qualquer que fosse a
bebida do agrado, ele a obtinha imediatamente pela virtude do Graal", Enfim,
as pessoas recebiam "do Graal toda a sua subsistência'f", Graal que "susten-
ta e conforta" a vida, conforme tinha escrito meio século antes Chrétien de
Troyes'o. Em suma, o Graal era para () homem medieval um grande símbolo
da natureza edênica.
Da mesma forma que a Virgem Negra, cujas imagens foram comuns
sobretudo nas regiões centrais da França do século XII. Fenômeno polêmico
e ainda insuficientemente estudado'", ele parece estar ligado a outro importan-
te fenômeno contemporâneo, o da revalorização de temas folclóricos. No caso,
o ressurgimento da face pré-cristã de divindade ctônica contida em Maria.
Com efeito, concebia-se a Virgem Negra - que protegia, alimentava e aumenta-
va a fertilidade da terra85 - como outra imagem da natureza pródiga, da far-
tura. Assim, entende-se melhor o fato de Von Eschenbach atribuir a Preste
João a condição de último guardíão terreno do Graal e de neto de uma rai-
nha negraH(,.
A rede mítica da época apresentava ainda outro espaço mágico caracte-
rizado pela existência de alimentação abundante, sem necessidade de esforço
humano, o país da Cocanha. Esse tema folclórico, líterarízado no século XIII,

82. \XIolfran von Eschcnbach. Parztuat, trad. E. Tonnclat, (2 vols.), Paris, Auhicr, 1977, \'01. I, pp. 20f;-
209.
85. Chréticn de Troycs, I.e conte clu (;/1/(// (Pcrccual), v, 6208, ccl. F. l.ccoy, (2 vols.), Paris, l Ionoré
Cluuupion, 197'5, \'01. 11,p. 11.
8i. Os trabalhos muis recentes são os de E. Begg, Tbe CI/II oftb« Blaci: Vilgil/, Londres, Arlcana,19Wi,
e S. Cassagncs-Brouqucr. Vieq.~(!snoircs, reg(frd el.!(!,',-ciJl(/lioll. Rodcz, Ed. du Roucrguc, 2. cd.
1990. que contudo pouco ucrcsccnram :t ~.1.Durand-Lcfcbvrc. Etude SI/r l'originc eles Vi<,/g<,sNoircs:
Paris, Durasxié. 19j7.
8'5. Durand-Lcfchvrc, op.cit., p. ·1 '52 e SS.; Ilt:gg, op.cit., p. 108: Cass:lgnes-Brouquct, op.cit., pp. ,12-50
e 20')-235.
86. t'nrziual, cd. cir., \'01. I, p. 1f9, e \'01. 11,p. 337.
101
mas sem dúvida anterior (a palavra é da primeira metade do século XII), tinha
vários pontos de contato com o de Preste João. De fato, a Cocanha era uma
terra de fartura sem limites, existindo nas suas ruas mesas preparadas, cheias
de comidas variadas das quais todos podiam se servir livremente. O rio que
atravessa a região é metade de vinho tinto, metade de vinho branco. Lá as
pessoas são corteses, a vida é uma festa, com quatro Páscoas e quatro Natais
cada ano. Quaresma, apenas uma a cada vinte anos, e mesmo assim nesses
dias come-se carne, além de então chover pudins quentes três vezes por sema-
na. Mas o supremo bem da Cocanha era a fonte da juventude, que possibili-
tava a quem ali se banhasse manter sempre trinta anos de idadetl7.
Ora, o império de Preste João de certa forma sintetizava todo esse imagi-
nário da abundância, fosse agrária, como o Graalss, fosse urbana, como a
Cocanha'", Suas fronteiras estendiam-se do Extremo Oriente ~l Mesopotâmia,
territórios de proverbial riqueza para a comparativamente pobre Europa de
entâo?''. Lá "o leite flui abundante", há muito cereal, couro e tecido'". A prodi-
galidade da natureza manifestava-se mesmo na existência de "todo tipo de
animais" e seres estranhos, com a carta enumerando 28 deles, de elefantes e
panteras a grifos e fênix, de centauros e cinocéfalos a pigmeus e gigantes!)2.
Os rios que nascem no Paraíso levavam até as terras de Preste João metais e
pedras preciosas em enorme quantidade'ô. O neto de Barba-Ruiva, Frederico II,
que teria trocado embaixadas com o rei-sacerdote, teria ganho deste um ele-
fante, uma roupa de pele de salamandra, um elixir da juventude, um anel que
torna a pessoa invisível, pedras preciosas e, mais valioso que tudo, a pedra
filosofal?",
Enfim, aquela era indubitavelmente "a mais rica terra que existe em todo
() 111undo"9S, E a carta supostamente escrita por Preste João não se mostrava
modesta em falar a esse respeito, discorrendo longamente sobre aquelas riquezas.
O palácio do rei-sacerdote, feito de pedras preciosas e cristal - como a Ieru-

87. l.e Fubluur de c.ocogne. vv. 15-<)<) e 153-160, cd. v. Vã'l'iIll:n. NelljJ!Ji!%gisc!Je Mitíeilungen, 18,
19'í7. pp. 22-2/; e 27-28.
SS. 11. l'ranco júnior, Ils Vlo/lias Medtcuats, ojl. cit, pp, 33-38.
B9. .J. l.c Goff, "l.'Uropic médiévulc: l.c Pays de Cocagnc", keun« eJ/J'ojJúellllC! dcs scicnces socinles, 27,
p. 279,1989"
90. a p:lssageJ1l do século XII para XIII, uma escultura de bronze no candelabro da catedral de
l lildcshcim associava a Europa :1 guerra, a África 'I ciência e :1 Ásia :1 riqueza: J.-c. Schmitt e M.
Pastoureau, 1!IIJ'OjJe:Méllloires ('I etnbténtes, P:lris, Fel. de l'I'pargne,1990, pp. 31 e 35.
91. /J('r l'riesterjolmnncs: '1 cx! des Hriejes, n. 21 e 2/i, p. 9"12.
<)2. Idem, n. JIi, p. 910-91"1, n. li2 e 11, pp. 9"15. Ainda nas primeiras décadas do século XIV, Odorico
de Pordcnonc considerava o império de Preste JO;lO "a terra dos pigmeus": t.e \.'())'age e11Asie d u
bienbenreuxjrere Odoric de Porclenone. religicu»: de SaintFmnçois. cd. 11.Cordicr, Paris, Lcroux,
1891, pp. }i5-355.
9.1. Idem, n. 22, p. 912, n. 33, 58, 59, p. 91~ c n. 1ft, p. 915.
9"1. I,. Kantorowicz. 1.'limjlerel/r Flt'{h'ric li, (trad.), Paris, Gallimard, 1987, pp. 186, 287, 299 e 326.
95. t.etuv, cd . jubinal, p. :;57.
105
salém Celeste'v, o palácio de Isolda'? e o castelo paradísiaco visto por São
Brandão98 - era comparado ao que () apóstolo Tomás construíra para o rei
Gondoforoz'. Nele a cada dia comiam 30 mil pessoas, o que dá idéia de seu ta-
manho e ela fartura que ali relnavat?". Ademais, toda aquela riqueza, toda aque-
la beleza, toda aquela paz, eram gozadas plenamente pelos seus habitantes,
pois a fonte da juventude ali existente permitia a quem bebesse de sua água
manter-se sempre com 32 anos de idade!'!'. O próprio Preste joâo, apesar de
seus quase 600 anos, podia continuar a governar com saúde e sabedoria.
Em suma, Preste .João fazia parte de toda uma rede mítica ativada pelas
condições concretas do século XII ocidental. As dificuldades materiais, as
indefinições políticas e as transformações espirituais encontravam .naquele
mito suas possibilidades de superação. Ou seja, aquele era o espaço imagi-
nário privilegiado para a cicatrização das físsuras que cada vez mais dividiam
os cristãos ocidentais em eclesiásticos e leigos, campesinos e citadinos, ricos
e pobres, católicos e hereges, nacionais e estrangeiros. O império de Preste
.João era o mundo ideal de todos. Contudo, para o professor Le Goff a Cocanha
seria "a única verdadeira utopia medieval" 11J1, porque ela teria sido a única
crítica global ~l realidade social da Idade Média. Crítica que CHl uma visão de
mundo coerente e estruturada, abolindo a oposição entre natureza e culturalO·o.
Mas, como vimos, o império de PresreIoão representava igualmente uma
crítica global às estruturas da sociedade feudal. Da mesma forma, naqueles
mítícos territórios coabitavam perfeitamente a natureza (pródiga, exuberante,
cheia de seres humanos, de animais, de árvores e de pedras de todos os tipos)
e a cultura (grandes cidades e palácios, ricos em objetos de metal, de couro,
de tecidos). É verdade que nas terras do rei-sacerdote não existia a permis-
sividade sexual ela Cocanha, porém a ausência total de vícios no império orien-
tal equivalia também a uma crítica à sociedade ocidental. O império ele Preste
joüo significava uma inversão daquela sociedade, ele constituía, tanto quan-
to a Cocanha, uma resposta ~IS necessidades profundas da época. Era uma
utopia que a Cristandade construía para superar suas deficiências, mas era
também uma utopia que contribuía para a construção da Cristandade, à medi-
da que sonhar em grupo ajuda a estabelecer a identidade coletiva desse grupo.
A realidade criava a utopia. A utopia recriava a realidade.

96. Ar 21,11.
97. l.a Folie '/i'iSI(/1I dOxford, \'V. 300-308, cd. J c. I'aycn, Paris. Bordas, 1989, r. 271.
98. Bcncdcir. I.e \{)ragede Saint-Hrcndan, VI'. 1675-1708, cd. I':. l(ul1e, Munique, WilheJlll l'ink, 1977,
rp. 128 c 130.
99. DerL'riesterfobnn nes: Tcxt eles Briefo« n. 56-5H, pp. 9'17-91K; i.ege/ld(/. CIJ). 5, 3, p. 35.
10(). Idem, n. 65, p. 91H.
101. tdeni, n. 2H, p. 913 e n. 81, p. 921. Na versão francesa a ,igua da juventude d.rvu trinta anos a quem
dela bebia; cd. jubínul, pp, :l63-:i6i.
102. I.e Goff, "1.'Utopie médiévalc", pr. 276 e 2R6.
103. Idem, pp. 277-280.
MITO E ORALIDADE
o PODER DA PALAVRA
ADÃO E OS ANIMAIS
NA TAPEÇARIA DE GERONA

De todas as etapas da história adâmica, a menos tratada pelas diversas


tradições, judaicas ou cristãs, canônicas ou apócrifas, foi a do curto período
de permanência dos primi parentes no Paraíso. A iconografia medieval seguiu
essa tendência, produzindo comparativamente poucas imagens a tal respeito.
Dentre elas, a maior parte trata da passagem bíblica na qual Adão dá nome
aos animais". E dentre essas representações, a mais interessante talvez seja a
que faz parte da chamada Tapeçaria de Gerona, conservada no museu cate-
dralício daquela cidade (Fig. 5).
Tal peça é um bordado em lã colorida que mede atualmente 3,65 por
4,70 m, mas que originalmente teria sido bem maior. Ela foi provavelmente
confeccionada na própria Catalunha, na passagem do século XI para o XII, a
fim de ser utilizada como baldaquino e colocada atrás do altar quando das
grandes solenidades-, Nos frisos superior e laterais, 21 pequenos quadrados
alegorizarn o ano, as estações, os meses, os rios do Paraíso. No friso inferior,
hoje quase totalmente desaparecido, é narrada a história da descoberta da
Santa Cruz. Nos cantos do grande quadrado central emoldurado por esses
frisos, estão representados os quatro ventos da terra. No centro, enfim, estão
dois círculos concêntricos. O menor mostra o Criador com a mão direita levan-

1. Gn 2. 19.
2. 1'. Palol, "Une Brodcric carulanc d'époquc romanc: La Gcncsc de Géronc", Cabiers arcbéologtques.
8, 1956, p. 190 e 9, 1957, pp. 218-219; 1'. Palol, tilTapis de Ia Creacion de Ia Catedral de Girona,
Barcelona, Artcstudi, 1986, pp. 70-71 e 151.
no

t'ig. 5 A tape,"~II"iade Gcron.i (visiio de conjunto).

tada em gesto de benção, enquanto com a esquerda segura um livro aberto


onde se lê Sanctus Deus.
O círculo maior está dividido em oito cenas. Logo acima da Divindade
aparece o espírito de Deus, representado por uma pomba. De um lado está
figurado o anjo das trevas, de outro o anjo da luz. Completam a metade supe-
rior do círculo, ele um lado a criação do firmamento, de outro a separação
entre o céu e as águas. Na metade inferior estão três cenas sobre os seres
vivos. Na parte mais baixa do círculo aparece a criação das aves e dos seres
aquáticos, a maior cena do tapete, ladeada por outras duas. Uma na qual Adão
rem diante de si vários animais e Ihes atribui nomes. Outra, simétrica ;'1 ante-
rior, na qual elo Banco do Adão adormecido nasce Eva. Nas bordas desse
grande círculo uma frase condensa algum; versículos do Gênese>. Ia cena que
agora nos interessa, localizada ~I direita do observador, Adão está diante de
um grupo de animais e, enquanto exerce a atividade nominativa, olha em
direção ao Criador (Fig. 6).

j, "ln principio Crc.rvit Deus Cclum cr Tcrr.un NI~lrL'cr omni.r Quo(..' in l.lix Sunr Et Vidir Deus Cuncr.i
Que t-cccrat I'r Eranr Valdc 110m", cf. (;11 1, 1-2; 10-12: li!; 20-21: 2+25;)1.
:1:

Fig. 6 Adâo d:t nomes aos animais (detalhe de tapeçaria).

Trata-se portanto, ~l primeira vista, de uma representação tradicional


daquela passagem bíblica. Mas como ela era interpretada pelos 4 mil habi-
tantes que Gcrona tinha na época:'? ossa tentativa de resposta vai levar em
consideração três níveis. O primeiro diz respeito a um dado cultural de longuís-
sima duração, o poder mágico da palavra, crença bastante antiga e difundi-
da>. Na Mesopotâmia e no Egito faraônico, por exemplo, atribuía-se a criação
do mundo ao poder da palavra». Naquelas sociedades todos mantinham em
segredo seu verdadeiro nome, cujo conhecimento por parte de outros pode-

'I. .1. 1'1:\ Cargol, (,'1!/'()/1II l listúrica, Gcron.i-Madrid, Daim:11I Carlcs, 1'1:1,1 Y'Ío, p. 27 i.
). O poder llltlgico das palavras é "lima dcsr~ls ~lssoci:I~'i)L'sde idéias rào ~Inriga:-;c remontando tão
longe nos .mais (b ra~::I,qlle das bzclll parte do p.urimõnio hereditário do qu:li os próprios indi-
vkluos csrào pouco conscicrucs, tanto ele Se irucgra. por assim dizer, :1 SlI:1 narurt ...·z:I.~' (;. Bcrguer,
"t.a Puissancc du nom. Scs Origines psychologi'llles", Arcbiccs ele psvcbologt«; 25, lYj6, p. j13.
Sobre ~I importância reiigiosa do nome rara \'~írias socícd.rdcs, pode-se ver F. M. Dcnny, "Names
.md Numing", em M. Eliudc (ccl.), 'fZ)(Jlil1cyclojJedi[{ oj'/{e!i8io/l, Ncw York, Macmillan, IYH7, \'01.
10, pp, 300-307.
6. Poeina Babitonico de 1(/ Crcaciún, vv, 7-8, tr:«l. F. 1.. l'cinado c M. C. Cordcro, Madrid, Nacional,
lYH1, p. Y2; M. 11. Trindade l.opcs, Ü l lonunn I~~íj)cjo I!SII[{ I/I{egmçdo 110COSI1IOS, I.isboa, Tcorcma,
lYHY, 1'1'. 17-22 e 76-77.
112
ria implicar submissão da pessoa". Isso ocorrera mesmo com o deus Há, que,
forçado pelas artes mágicas de Ísis, revelara seu nome secreto a ela, que de
simples feiticeira passou então a ser uma poderosa deusa". Entre os gregos,
os heróis mudavam de nome quando um rito iniciático marcava a passagem
para outro estágio de vida, caso por exemplo de jasào, Aquíles e Héracles''.
Mesmo para a filosofia o nome estava ligado à essência da coisa, daí a eti-
mologia ser então considerada reveladora tanto em relação a deuses quanto
a astros ou conceitos morais!".
No judaísmo, segundo a expressão bíblica, "a morte e a vida estão em
poder da língua"!", como demonstra o fato de o universo ter sido criado pela
palavra de Deus. Contudo a expressão mais clara daquele princípio estava no
próprio nome de Deus, tão forte que era impronunciável!". Todos os nomes
divinos eram pode~/sos: "Quem evocar o nome do Senhor será salvo'".'. O
cristianismo, inseri[~~ na mesma estrutura mental, também acreditava no poder
da palavra, sobretudo da palavra de Deus, que é como uma "espada"!", e dos
nomes divinos, qL~ "ienhuma boca de homem deve pronunciar se não esti-
ver em perigo de \.Wa"15. O islamismo aceitava igualmente esse poder mági-
co, sobretudo a corrente sufista, para cujos adeptos o caráter sagrado das
palavras de Alá era tal que elas deveriam ser repetidas independentemente
de o homem compreendê-Ias. Para os celtas, um dos principais heróis da corte
de Artur era Gwrhyr Gwalstawt Ieithoedd, literalmente "intérprete de línguas",
aquele que conhecia todos os idiomas existentes 16
Herdeira de todas essas tradições, a sociedade cristã ocidental também
reservava lugar importante ~l palavra na sua visão de mundo. Ela era conside-
rada criadora, mas também destrutíva, como para egípcios!", judeus 18 e celtas!''.
Mal utilizada, ela poderia levar ao aparecimento do Diabo sob forma animal,

7. G. Conrcnuu, 1.(/ \fie quotidien ne ti Habylone et el1l1s.~r,.ie, Paris, l Iachctrc, 1950, pp. 167-173.
8. E.A. Wallis lludgc, ":"..ljili({ll HeI(<;io/l, Londres, Rourlcdgc anel Kcgan I'aul, rccd, 1'!79, pp. lj7-H 1.
9. J. Souza Brunclâo. Mitologia (;,.<,g(/, (3 vols.), Pctrópolis, Vozes, 1987,1'01. 111,p, 31.
10. Plarão, Cratvle, 383ab,IJOOe-'í08d, Ij09a-110e,111 .:-121 c, cd-rracl. L.l'vléridier, Paris, Bcllcs Lcttrcs,
1931, pp. 4H e 77-107.
11. 1'1'1H, 21.
12. Sobre o nome divino no Anligo Testamento veja-se A.-M. Bcsnard, l.e J1.~)'Sle}'(' clu /10/1/, I'aris, Ccrf,
1962, c na Cabala, S. G. \Vald, Tbe Doctrine of' tbe Diuiue Nante. 1111lntroduction 10 Classical
Kabbalistic 'lbeologv; l.ouvain, l'cctcrs, 19HH.
J:). JI 3, 5.
H. Por exemplo, Ef 6,17; IIb IJ, 12; Ap 1,16.
15. Chréticn de Troycs, Le conte du Graal (Perceual), 1'1'. 6263-6266, cd. 1'. l.ccoy, Paris, l Ionoré
Champion, 1979, 1'01. li, p. lj.
16. Mabinogion, rrad, M. V. Cirlor, Madrid, Nacional, 19H2, p. 198.
17. Trindade l.opcs, op. cit., pp. 7»-81.
18. A. Boudarr, "Malédicrion", em Dictionnaire encvclopédtqu« de 1(/ Hibl«; Turnhour, Brcpols, 19H7,
pp, 773-775.
19. Muircbertacb, [ils cl'tirc, rrad. C. J. Guyonvarc'h, II":\'C; ~8, 19HJ, p, 991.
113
como faziam os hereges de Orleans em princípios do século XI20. Mas pode-
ria também dominar os demônios, como fez S~IOMarcial de Limoges, segun-
do uma hagiografia da mesma época.": conhecedor de todas as línguas, o
santo conjura os anjos maus e força-os a dizerem seus nomes, forma de domi-
ná-Ios e de poder então ordenar que desapareçam para sempre no deserto.
Assim como possuir um nome é existir, conhecer o nome é controlar aquilo
que ele designa. Por isso mesmo, certos objetos recebiam nomes, caso das
espadas de alguns heróis, como Cid, Rolando, Olivier, Turpin, Ganelão, Carlos
Magno e Artur-". Enfim, saber usar as palavras equivalia a lima prática de
poder, por essa razão Deus tinha feito de Moisés um orador o.
O poder da palavra era visto como algo efetivo, daí por que a sociedade
medieval tin ta um vasto campo semântico de violência verbal>'. O modelo
era bíblico, ais a própria Divindade havia amaldiçoado a serpente responsá-
vel pelo pe ado de Adão e Eva25. A maldição de oé sobre Cam era conside-
rada a origei do fenômeno social da escravidão-v. De acordo com essa visão
- apesar de S, o Pedro falar em "bendizer aqueles que te maldizem" e de S~IO
Bento ter recornêndado aos monges "benzer, não maldizer" - a documenta-
ção monástica medieval mostra diversos exemplos de fórmulas de maldição-".
Reconhecendo a eficácia simbólica da palavra e desejando restringir seu uso,
em meados do século XI Pedro Damiano relernbrava as advertências bíblicas
contra o "vício da língua"; de fins do século XII a meados do XIII os teólogos
sistematicamente discutiram, avaliaram e classificaram diversos "pecados da
língua"2H; na segunda metade do século XIII, o poder monárquico recém-forta-
lecido legislava contra a blasfêmia, como fizeram Luís IX na França e Afonso
X em Castela-".

20. Paulo ele Chartrcs, t.iber Aganonis, Vl, 3, em Ccnt ulaire de l'Abbave de Saint-Pêre de Cbartres, cd.
B. Guérard, Paris, Crapclcr, JH10, 1'01. I, p, 112.
21. 1.(/ Vil' de Saint Martial de t.imogos, XV, rrad. C. Paupert, Turnhout , Brcpols, 1991, pp. 69-71.
22. Poema de Mio Cid, cd. I. Michacl, Madrid, Castulin, 1980, vv. 10l0, 2126 e 2575; l.a Cbanson de
Roland, cd. J. Bédicr, Paris, I'iazza, 1928, vv. 316, 926, 988, 1055, \065, 1079, 1120, 1324, 1339,
1363,1162, 1It63, 1550, 1583, lH70, 1953, 2089, 2H3, 2261, 23Wi, 2316,2780, 250l e 2508; Gcoffrcy
de Monmourh, t Itstoire eles rois de Bretagne, 117, rrad, r.. Marhcy-Maillc, Paris, Bcllcs Lctrrcs, 1992,
p.20H.
23. Ex'í.IO-12.
21. Como mostraram recentemente os truhalhos apresentados no colóquio internacional "l.Tnvcctivc
au Moycn Age (Paris, 1-6 fcv. 1993).
25. Gn 3. H-15.
26. Gn 9, 25-27; Santo Agostinho, IJe Ciuiutt« nct, XIX, 15, PI., 11, col. 6{).
27. I..K. l.ittlc, "Formules monastiqucs de malédiction aux IX" ct X" sicclcs", keoue Mabillon, 5H, 1975,
pp. 577-399; "l.a Morphologic dcx malédictions monastiqucs", III!~~'C;31, 1979, pp. 13-60. () mesmo
fenômeno acontecia na Caralunha, como mostrou '''I. Zinuncrrnann, "Lc vocabulairc latiu de Ia
malédiction du IX" au XIIC sicclcs: Consrrucrion d'un discours cscharologiquc", no colóquio cita-
do na nota 21.
28. C. Cusagrandc e S. Vccchio, l.es l'rJcbés de Ia langue, (trad.), Paris, Ccrf, '1991.
29. Legenda, 213, p. 917; l.as Siete Partidas, VII, 28, 1, Madrid, Atlas, 1972, 1'01.111,p. 6H9. Para o Antigo
Testamento a blasfêmia era punida com a morte: 1.1'2'1,16.
lJi!
Bem empregada, como na confissão, a palavra salva. Com exceção de
Graciano, todos os teólogos do século XII consideravam a confissão obriga-
tória, o que o Concílio de Latrão de 1215 regulamentou ao impô-Ia ao menos
anualmente a todo cristão. Apesar de a cultura eclesiástica insistir em que a
confissão deve ser dirigida a um sacerdote, na ausência deste ela podia ser
feita mesmo a um leigo'lO. A necessidade mítica da expiação pela palavra era
mais forte do que as restrições ideológicas. A palavra salva mesmo a posterio-
ri, como nas preces e missas rezadas pelas almas dos morros. Porque a palavra
é poderosa, quando não pronunciada ela se torna perigosa. O silêncio de
Percival, que não fez a pergunta adequada, prolongou os sofrimentos do Rei
Pescador e lle sua terra+'. Misteriosa e ambígua, a palavra estava na base de
tudo. Comoklíssera o próprio Cristo, "por tuas palavras serás justificado e por
tuas palavras serás condenado'w
Segund~'Lombardo, o rito central da transubstancíação ocorre no
momento em que a fórmula litúrgica é pronunciada, ou seja, a transformação
do pão e do -ínho em carne e sangue de Cristo se dá "pela força das palavras",
na expressão de Pedro Comestoru. Entende-se assim por que as idéias de
Berengário de Tours foram condenadas por vários concílios na segunda metade
do século XI. Ao negar a realidade da transubstanciação eao defender a livre
interpretação das Escrituras, ele não apenas ameaçava no essencial a ativida-
de sacerdotal como também contrariava a crença geral no poder mágico das
palavras. Sentido semelhante teve no começo do século seguinte a heresia de
Tanchelm de Antuérpia, para quem a eficácia do sacramento depende da
condição moral de quem o mínístra+t. Nesse quadro mental, os debates teo-
lógicos sobre o norninalismo e o realismo eram a expressão erudita de preo-
cupações e interesses profundos, que tocavam em questões fundamentais para
'0 homem da Idade Média.

Para a sociedade cristã medieval, () sacramento do batismo era o verda-


deiro nascimento do indivíduo, não apenas porque ele era lavado do Pecado
Original e ingressava então efetivamente naquela sociedade, mas também
porque recebia um nome. De fato, para a mentalidade arcaica. somente () que
tem nome existe. E, se esse nome é o de um mártir, santo ou personagem
bíblica, a pessoa poderia assumir algumas de suas virtudes, segundo o velho
princípio do bonum uomem, bontun amem. O homem enquanto espécie é
semelhante ao Criador, enquanto indivíduo é semelhante ao parrono. Por isso,

30. l'. Vacandard, "Confcssiou't.cm Dlctíonnaire de tbéolouie catboltque, Paris, i.ctouzcy ct Ané, 1938.
\'01. 111-1, col. 875-HH2.
31. t.e contc du Graal, vv, 329'1-3297, 3538-3557 e lí628-1613. \'01. I, pp. i01-105, 1'12 e 1-15.
;\2. Mt 12, 37.
:53. Citados [)or,l.-<:' Schmitt, /.a /({liS011 elos g""les d(/!IS lOcciclent 11/l'dir'I'(/!. Paris. Gallimard, 1990,
[)[). 511-:l-15. Pedro I.omhardo (1095-1"160) c Pcdro Comcsror (1100-117H) nâo foram fontes dire-
tas da tapeçaria, mas testemunham idéi:ts que não eram novas ou exclusivas do Norte europeu.
3,1. Vila Sancti Norberti, XIII, 79, Pt.• 170, col. ] 31].
ao se tornar papa, a pessoa mudava de nome. Por isso também um cristão
não utilizava nomes próprios pagãos55. Por isso, enfim, não se adotava o nome
de Cristo36 O nome é sempre imagem de um modelo.
Nos bestiários do século XII, as iluminuras mostram que ao dar nome
aos animais Adão revela o essencial deles, de acordo com a concepção de
que o nome exprime a natureza da coisa: "A natureza primitiva e a própria
essência das coisas se reconhecem pela etimologia dos nomes que as desig-
nam"}7. Daí a preocupação com a etimologia por parte dos medievais, de
Isidoro de Sevilha no século VII a ]acopo de Varazze no XIII. Ao atribuir nome
aos animais, Adão de certa forma criava-os. Ao sopro de Deus que dera vida
ao homem, cdrrespondla a fala de Adào, espécie de sopro que concretizava
a existência d!)s animais.
De fato,
I
10
poder sagrado e criador do vento era um dado religioso bas-
tante difundido e aparentado ao conceito mítico de pássaro-vento existente
em diversas d~turas, inclusive a hebraica vétero-restamentáría's'. Na tapeçaria
de Gerona, o cfrçLtio da Criação aparece cercado pelos ventos cardeais, qua-
tro figuras aladas de jovens imberbes como () Pantocrator criador representa-
do no centro. Ora, o Adão que fala aos animais está posicionado entre Deus,
de um lado, e o vento austral, de outro. Como eles, o homem é ali um cria-
dor, reina sobre a natureza, pois é a única criatura que possui o dom da palavra.
Um sentido semelhante era atribuído a uma personagem mítica grega
sem dúvida bem conhecida pelos artesãos da tapeçaria, e que de certa forma
se identificava com o Primeiro Homem judaico-cristão: Orfeu. De fato, a iiga-
Ç~LO de Gerona com a cultura antiga está atestada no seu próprio nome, pois
acreditava-se que ela tinha sido fundada pelo mítico Gérion-v. Mais especifica-
mente, como Pere Paiol demonstrou, a cultura clássica "é muito importante
na íconografia do bordado de Gerona"?", Apesar de esse autor não aceitar a
hipótese, algumas vezes a penúltima figura do friso superior da tapeçaria foi
interpretada como sendo Héracles ' I. Ainda que seja difícil de provar, essa idéia
não é absurda, pois para a Idade Média Héracles tinha certo caráter cristão e

35. Essa rr:lrica cultural medieval foi regulamentada no século XVI pelo Concílio de Trcnro, que deter-
minou que rodos lxuizaclos recebessem nome de santo; Dcnny, ojJ. cit .• p. jWi.
36. Dantc Alighicri jamais rimava Cristo com outra palavra que não tosse Cristo, pois LIma rima é uma
espécie de espelho da palavra c certas imagens clcvcrí.uu ser cvitadas: Conunedia. Paraíso XII, 71,
73,75; XIV,lOlJ, 106,10H; XIX.\lH,106. WH; XXXII. H:', 1-1';. 87.
37. E. Gilson, I.{/ Ptnlosopbíe (111 Moven /lge. Paris. Payot, 1962. p. 152;. X Murarova, "Adum donnc
lcurs norns aux unimaux. L'lconographíc de Ia sccnc dans l'art du j\loycn Agl:: l.es Manuscrits eles
lx-stiuircs cnluminés du XIIC cr du XI W siõclcs", em Snuli Mediel'ali. 18.1977. 1'1'. 9:\1-960.
38. T. 11. Gastcr, Mito, Leyencla y Costumbre en "I t.ibro clel ciencsts; (trad.), Barcelona. Barral,I'!73.
1'1'.11-12; L. l.cclcrcq-Max, "Entre Angcs ct démons: l.cs Vents dans l'iconographic médiévalc", em
Annalcs dbistoire de lart ('I darcbéologie, 12, 1990, pr. 31-!t2.
39. Pia Cargol, oj). cit., r. '!.
10. Paiol. li! Topis de I{/ Crcacion. 1'1'. 1!t1-150.
li 1. Iden), p, 2H.
116
mesmo cristológico, e, deste ponto de vista, ao vencer o monstro Gérion ele
de certa maneira combatera o paganismo local+'.
De qualquer forma, o que nos interessa agora é que inegavelmente Orfeu
era bem conhecido dos cristãos, e mesmo de alguns Pais da Igreja que acredi-
tavam na sua existência histórica, caso de São ]ustino, Clemente de Alexandria,
Eusébio e Santo Agostinho-o. A iconografia cristã dos primeiros séculos repre-
sentou diversas vezes a cena na qual uma personagem ambígua, misto de
Orfeu e Adão, domina os animais que o cercam. Tal representação era pos-
sível porque entre aquelas duas figuras míticas havia claros pontos de conta-
to. Por exemplo, assim como Orfeu tinha descido até ao mundo infernal para
não perder sua mulher, Eurídice, morta por uma picada de serpente, também
Adão tinha conscientemente cometido o pecado e deixado o mundo para-
disíaco para poder acompanhar Eva, que, seduzída pela serpente, havia comi-
do o fruto proibldo+'. Mas sem dúvida o ponto comum mais importante esta-
va na voz, na palavra, com a qual tanto um quanto outro dominavam o mundo
natural, sobretudo o mundo animal.
O segundo nível de leitura daquela cena, nível da média duração históri-
ca, era o exegético. Este baseava-se sobretudo em Santo Agostinho, para quem
todas as espécies de animais foram recolhidas na Arca de Noé não tanto para
sua preservação "quanto para representar os diferentes povos por causa do
mistério da Igreja"15. Para ele, "os animais foram realmente apresentados a
Adão para que lhes desse nome, mas esse fato prefígura outra coisa"1G. Em
função dessa interpretação, desde os primeiros tempos a arte cristã preferia
tratar aquela cena de forma alegóríca+'. No século XII foi comum os comentá-
rios exegéticos alegorizarem os animais, cuja existência e significado eram
relacionados ao ser humano-e.

'i2. I'ara A. Toynbcc, /l Studv oft Hstorv. Oxford, Oxford Univcrsity I'ress, '19IJO,vol. VI, r. 'i75, o mito
de Hérculcs foi uma das fontes dos relatos evangélicos. IVI.Simon, l Iercule e/ le cbristianisme,
Esrrasburgo, Univcrsiré de Strasbourg, J 955, pp. 62-63, concorda com isso e lembra que "dentre
as divindades clássicas rouco a rouco reabilitadas pelo pensamento cristão, Ilérculcs conheceu
um sucesso particularmente brilhante" ~como demonstra o fato de ter sido muito representado na
arte medieval" (1'1'. ] 69-173),
/í3. 11. I.eclereq, "Orphéc", em IJ/lU., \'01. XII-2, col. 2736-2737.
11/1. Este mito judaico (R Graves e R. Patai, l.es Mvtbes bébreux, (rrad.), Paris, l'ayard, 1987, r. 93) não
devia ser desconhecido dos clérigos da catedral de Ccrona, em cujo claustro a cena do Pecado
Original adotara uma interpretação rabínica (Miclrasb kabb«. Genese Rabba, xv, 7, trad. B. Maruani
e A. Cohcn-Arazi, Paris, Vcrdicr, 1987, r. 181J) e representara o fruto proibido como sendo um
cacho de uvas.
líS. Oe Ciouate IJei, XVI, 7, 1'1., fJ1, col. I(H5.
/16. IJe Genesi ad t.iueram, IX, 12, 1'1., 31, eol. 100.
1:7. i I. tvlaguire, "Adarn anel rhe Animais: Allegory anel thc Literal Sense in Ear1y Christian Art", em
Oales Papet s, 51,1987, 1'1'. 363-373.
IJu17I!Jm1e!l1

!J8. W. Cizewski, "Bcauty and thc Bcasrs. Allegorical /'oology in Twclfth-ccnrury l lcxacmcral I.itcraturc",
em 11. J. Westra (cd.), Fremi Atbcns /0 Cbartres. Neoplatonism and Medieual Tbougbt. Studies in
f tonou r ofudouardtcan neau, l.cidcn, Ilrill,1992, 1'1'. 289-j()().
117
Contemporaneamente ao bordado de Gerona, Guibert de Nogent 0053-
1124) foi o maior representante daquela corrente, vendo nos pássaros e pei-
xes alegorias das almas, enquanto os animais terrestres representariam a Igreja?".
Para Pedro Abelardo 0079-1142), as aves correspondiam aos celibatários, os
répteis aos casados e os animais terrestres aos que governamv'. A partir disso,
tudo é perfeitamente plausível que os animais fossem vistos na tapeçaria como
alegorias dos diferentes grupos sociais. N~IOé por acaso, portanto, que os ani-
mais aparecem ali individualizados, e não em casais, como fazia de forma
geral a íconografía. Por exemplo, o episódio foi assim representado no afres-
co de Ferentilio em fins do século XlI, assim aparece algumas décadas depois
na cúpula do átrio da catedral de São Marcos de Veneza, ou ainda, em mea-
dos do século XVI, numa tapeçaria flarnenga> I. Reforça essa hipótese o fato
de mesmo os manuscritos bizantinos - um dos quais foi possivelmente o
modelo iconográfico da tapeçaria52 - quase sempre representarem os ani-
mais aos pares.
Dessa forma, a analogia animais-grupos sociais não foi aleatória, e sim
construída sobre o simbolismo atribuído a cada um deles. Mesmo o posício-
namento dos animais parece ter tido ali um significado. Destacados, um pouco
acima dos outros, quase na altura da cabeça do homem, estão um cervo e um
unicórnio, logo abaixo, enfileirados da esquerda para a direita e de um plano
superior para um inferior, aparecem dois cães, um carneiro, um cabrito, um
boi e um cavalo; posicionados atrás de Adão e abaixo dos outros animais,
estão um pequeno cervo e pouco acima dele um dragão-serpentes5. Ou seja,
a estrutura da composição faz com que a leitura da cena ocorra do alto para
baixo, da direita de Ad~IO para a esquerda.
Leitura que segue portanto a hierarquia social, passando elos oratores
para os bellatores, os laboratores, os grupos urbanos e os grupos marginais.
Evidentemente, trata-se aqui apenas de uma hipótese, porém ela nos parece
plausível: a tapeçaria de Gerona era contemporânea das novas estruturas soci-
ais, econômicas e políticas que acompanhavam no Ocidente medieval a implan-
ração do esquema trífuncíonal>". O fato ele inexistir na Catalunha um rei para

19. Moraliunt Genescos, I, Hl-21 , I'/., ·156.col. /iR-51, COIll () que concordava o contemporâneo (c. lW,O-
1123) IIruno de Segni, Expositio in Gcnesnn, ·1, FI., 161, col. 156 C As idéias desse bispo, conse-
lheiro de Vitor 111, Urbano 11 e I'ascoal li. pap"s reformistas. cr.un em runl.·:io disso provavelmente
conhecidos <..'111 Gcrona,
50. tixpositio in lIe ..xaenteron, {'I., 17R, col. 77 I 1).
51. Esta úlrima peça conservada cm t-lorcnça, Galeria dcll'Ac.rdcmia, esr;Í rcproduzida por J. IkluIllcau,
Une t tistoire du paradis, Paris, layard, 1992, prancha 6, entre pp. 16H e 169.
52. I'alol, 1:'1Tapis de Ia Creactõn, pp. 91-100; "Une Brodcric", pp. 195·202.
53. Contudo. devido às caracrcrlsticas artísticas da época, nenhuma idcntilicuçüo pode pretender grande
cxarklão. j , I'ijoan e j. Gudiol, Les Peintures 1I1111nls roma niques ti Catctiu nvrt. Barcelona, 191JiJ,p.
71 (eirado por Paiol, "Une Brodcric", p. 2(2), acreditam ver UIll camelo dentre aqueles animais;
Paiol fala em cavalo, touro. carneiro, cervo!'>,unicórnio c urso ('~LJnL'Broclcric", p. 2(2).
5/i. l.c Gorr," ore SUl' sociéré rripartic, icléologie monarchiquc cr rcnouvcau économiquc dans ia chré-
ticnté du IX" au XW sicclc", em j '11tlI/1 , pp. HO·90.
118
servir de árbitro entre os grupos sociais, não nos deve fazer esquecer a situa-
ção do nordeste ibérico que, devido ~IS necessidades da Reconquista e do
Repovoamento, atribuía ao conde de Barcelona um papel quase monárquico.
Graças ao seu caráter cristológico, a dupla cervo-unicórnio'ó aparece
naquela cena como alegoria das ordens eclesiásticas. Por isso aqueles animais
estão afastados dos demais e se constituem nos pontos intermediários de uma
linha imaginária que vai do livro divino ~l cabeça de Adâo. Reforçam essa idéia
a posição dos olhos do cervo na mesma altura dos olhos do Primeiro Homem
e a ponta do chifre do unicórnio quase encostada no nome "Adarn", borda-
do na legenda. Essa proximidade talvez ainda fizesse referência ~l virgindade
simbolizada pelo unicórnio e que caracterizava o Adão pré-Pecado. Ademais,
para Honório Augustodunensis a coragem de Cristo é comparável à do
unicórnio'v, analogia que deveria sensibilizar os clérigos envolvidos na vio-
lência social contemporânea à confecção do tapete. Como em todo o Ocidente
cristão, também na Catalunha a aristocracia laica procurava apropriar-se dos
frutos do crescimento econômico, e para isso não poupava a Igreja, inclusive
o bispado de Gerona, de suas pressões>".
Talvez por isso aquela aristocracia tenha sido figurada como cão, ani-
mal fiel e caçador (valores importantes para a nobreza feudal), mas também
predador e símbolo demoníaco do ponto de vista clericalv'. Como na Catalunha
da viragem do século XI para o XII existiam duas nobrezas, a de sangue e a
cavaleiresca>", a tapeçaria de Gerona mostra dois cães, posícionados lado a
lado, quase superpostos. O primeiro deles, mais alto, mais próximo da dupla
cervo-unicórnio (da qual está, contudo, separado pela linha que representa
uma espécie de pequena elevação), tem significativamente a mesma cor que
o cervo e que Adão, É a nobreza tradicional. O outro do, em posição um

55. Devido a isso eles eram mesmo frcqücntcmcntc confundidos na Idade Média. cf. A. Maury, Cro)'(/IIWS
ellégendes du Mo)'e" ,1ge, Paris, l Ionoré Chamrion,IH96. r. 260. o cervo é Cristo, dentre outros,
para Rupcrr de Dcutz, De ntoints ((II/dis. VII,15, cd. 11. l laackc, Turnhout, Brcpols, 1967, p. 212,
e rara llugo de Saint-Victor, D« Bestiis, I'/., 177, col. 61. () unicórnio é Cristo para Ambrósio, Justino,
írincu, Tcrtuliano, Orígcncs, Basílio, l lonório Augustodunensis, l.e HOII/(1/1 cl'Alcxan drc (cf. J.-P.
jossuu, l.a l.icorne, bistoirc d'u u couple , Paris, Ccrf, 1985, pr. 22-2'5), para o mais antigo bcstiário
francês, de Philippc de 'l'haon, na primeira metade do século XII (Hesliario Medieval, cd. I.
Malaxcchcvcrria, Madrid, SirucIa, 19B6, pp. H7-HB) e para U111bcsriarío inglês de fins do século
XII (Hcstiairc Asbmolc 1511, rrad. M. 1'. Dupuis e S. I.ouis, I'aris, l'hilippc l.chaud, J988, pr. 61-
62).
56. speculinn ttcclcstae, 1'1., 172, <:01.8/07 A li.
'57. 1'. Ilonnassie, l.a Catalogne du milicu du xe ii Ia ./111du Xt" siécle, (2 vols.), Toulousc, Univcrsiré
de Toulousc-I.c Mirail, ]975, \'01. 11,pp. 537-552 e 636-6/01. O concílio de 106s precisara ameaçar
de cxcomunhâo aqueles que destruíssem ou roubassem propriedades eclesiásticas tSacronnn
Concilioru m NO/J(/('I Amplissinut, ed . .J.-D. Mansi, Vcncza, Antonio Zatta, 177/0, \'01. 19, cânon 12,
col. 1072) e exigir a restituição dos bens (cânon 13, col. 1(72). e ainda, e111fins do século, () con-
cílio de 1097 reunia-se "pro vcckrsiastica libertnte' (r. 20, col. 953-95'0.
58. Maury, op. cil., p. 251.
59. Bonnassic, 01'. cit .. 1'01. 11,pp. 806-808.
119
pouco inferior, tem uma coloração averrnelhada que o aproxima simbolica-
mente do cabrito e do cavalo. É a nobreza recente.
O carneiro e o cabrito eram animais camponeses por excelência. A fecun-
dídade de um e a resistência do outro, ambos muito aproveitadas no plano
econômico, os tornava símbolos naturais da terceira função indo-européia.
Isto é, dos laboratores vigiados e conduzidos pelos seus senhores, como os
cães faziam com carneiros e cabritos. O temperamento mais calmo do primeiro
animal e o mais rebelde do outro talvez fizessem referência à dupla realidade
social do campesinato, dividido, grosso modo, em um vasto grupo que fora
servilizado com o avanço da sociedade feudalGo e outro, bem menor, que ainda
mantinha certa independência. Suas etimologias pareciam confirmar tais carac-
terísticas. O carneiro existia para ser sacrificado Caries derivaria de aras,
altaresvl), pois era um animal medroso como os servos que, na Catalunha,
eram considerados descendentes daqueles que por covardia não tinham ajuda-
do Carlos Magno contra os muçulmanos-é. O cabrito, por sua vez, era visto
como um animal lascivo, impudico, sempre a copular'o. Enfim, caracteriza-
ções negativas comuns na Idade Média, que tendia a animalizar a aparência
e o comportamento dos camponesesv'.
O boi, geralmente associado aos trabalhos agrícolas, pode ter sido visto
como LIma terceira imagem dos laboratores (nesse caso os escravos muçul-
manos), porém mais provavelmente, como no Hortus De/ic ia rit 1J1, como
G5
imagem do povo judeu . Nessa hipótese, sua presença ali estaria expres-
sando o crescimento numérico que a colônia judaica conhecia na Catalunha
a partir do ano mil, com o progresso econômico e urbano'v. E crescimento
também em importância, como demonstra o fato de o concílio de Gerona de
1068 estipular que os judeus deveriam pagar o dizimo sobre os bens com-
prados de crisrãos-". A mesma dupla tendência parecia verificar-se especifi-
camente em Gerona, onde ao longo do século XII existiam muitas lojas de
propriedade deles(k'l, havendo mesmo, pelo menos desde 1160, uma "rua dos

60. ldcnt, vol. 11, PIO. H09-11211.


61. lsidoro de Sevilha, lilil11oiogítls, XVII,l, 11, cd.-rrad. J. Oroz l{era e ,VI. Marcos Casquero, (2 vols.),
Madrid, BAC, 1982-19H3. 1'01. 11, p. 58.
62. 1'. l'rccdman, "Cowardicc, l lcroixm anel lhe I.egendary Origins of Catalonia", Pas! and trresent, 121,
198:l, pp. 6-H.
63. lililllologías, XVII, I, 11, 1'01. 11, p. 5H.
61. Ainda em princípios do século XX, dizia-se na Catalunha que "o camponês é o animal que mais
se parece com () ser humano", cf. P. Frccdman, "Saintcré cr sauvagcríc. DClIx imagcs du paysan
ali Moycn Age", /IIiSC: 17, 1992, p. 5:l9.
65. G. Carnes, "LI Cré.uion dcs unirnaux dans I '/fOr/IIS Delicictrtun", Cabicr: arcbéologiques; 25,1976,
p.151.
66. lsonnassic, op. cit., 1'01. I, p. /o9:l.
67. Ed. Munsi, 1'01. 19, cânon 11, col. 1072.
(ÍH. 1..Suárcz Fcrnándcz, judios FSjJ(//jo/es en la ttdad Media. Madri, Rinlp, 19HO, p. 9:5.
120
judeus'v". Talvez porque o boi estava ali associado aos judeus é que seu corpo
foi representado em preto, cor de significação negativa.
O cavalo, tradicionalmente símbolo da aristocracia guerreira?", parece
estar associado, no contexto social e iconográfico da tapeçaria geronense, à

elite citadina. De fato, dentre as transformações dos séculos XI-XII estava o


despontar de um grupo não-aristocrático que se aproximava cada vez mais
da aristocracia. Grupo difícil de definir, provavelmente de origem campone-
sa e que pela riqueza, pelos hábitos e pelas alianças matrimoniais tendia a se
fundir com a nobreza?", passando assim a estar associado aos símbolos dela.
Além disso, como para o cristianismo dos primeiros séculos, o cavalo era sím-
bolo de alegria e de triunfo", talvez o caráter arcaizante da tapeçaria tenha
adaptado aquele sentido ao seu presente histórico, tornando-o sinônimo de
vitória social. Para Santo Agostinho o cavalo era símbolo de orgulho?", o que
se adequava igualmente ~l trajetória daqueles indivíduos saídos do campesína-
to para uma situação socioeconômica bem mais favorável.
Oposta ~I dupla cervo-unicórnio, do outro lado de Adão aparece a dupla
cervo-serpente, animais ínímígos?". O cervo está ali como representação dos
neófitos que buscam o batismo'" e que são ameaçados pela enorme boca
aberta do dragão-serpente, encarnação da perfídia diabólica. Como o dragão-
serpente não enfrenta os fiéis abertamente, como o leão, mas sorrareíramentetv,
como na cena em questão, pode-se perguntar se no contexto da época ele
não estaria fazendo referência ~IS heresias. De toda forma, há um interessante
jogo especular entre a serpente representada ~l esquerda de Adão, na altura
de seu quadril, e ti Eva que na cena simétrica nasce do corpo do Primeiro
Homem naquele mesmo lado e na mesma posição. Esse esquema iconográ-
fico baseado no texto bíblico - fora ouvindo a serpente que Eva provocara
a queda de Adão - lembra a expressão do contemporâneo Rupert de Deutz
(1075-1129), que comparava Eva a uma vípera para Adão?", Em função disso,

69. D. Romano, "[ucus a b Caralunya Carolingia i dcls Primcrs Cornrcs (876-1 "100)", em E\jJosició
Girona dins Ia lorntacit; de lEuropa Medieval, Gcronu, Ajuntarncnt de Girona, 1985, Pf>- 113-119.
70. 1:/;1II010g1"s, XVII,I, 1j3-~1, vol. I, p. 61; Bcstiaire Asbntole 1511, p. 90.
71. Bonnassic, ojJ. cit., \'01. I, p. 'í95.
72. 11. l.cclcrcq, "Chcval", em /);10., vol. 111-'1,col. 12H6-128\!.
73. l.narrationos inPsnhni, 1-16, 19, 1'1.,37, col. 1912. aprt«! t.cclcrcq, col. 1289.
71. I'!>ys;ologlls, VI, 9-1-1, ccí-rr.«}. 1'. T. t.dcn, l.cidcn, Brill, 1\!72, p.1R; lililllrJlogí(/s, XII, '1, 18, \'01. 11,
p. 60; Bcsticnre Ashmole, p. 68. o mosaico de Otranro (Pugli«, lráliu), posterior de quatro ou cinco
décadas ao bordado de Gcronu, Saran:'s e o cervo cstào lado a lado, também I:' como símbolos
opostos.
7). SI ~2, 2; jcrônimo, Breuiariurn ;11 1~"{/lIIo\ 1j1, Pl., 26. col. 919 AB; Rupcrt de Dcurz, De nioinis
Q!liciis, VII. 9, p. 2:\1.
76. i Iort ns Deliciarum, fól. 25\', cf, Carnes, op. cil., p. !10.
77. Connnentarta in Ctnuica Canticontm. 11, :\86, 1'1., 168, col. 8671\. Este paralelo rói utilizado por
joão Crisóstomo no século lV c repetido durante séculos, are: aos teólogos contemporâneos, scgun-
do ]. M. lliggins, "Thc Myrh of El'e: 'lhc Tcmptrcss", [onrnol oftb« /llIIeriCIIII /lc({c/em)' f!/i<eligi(l1I.
1j~,1976, pp. 63\!-(,~7.
l2l
a dupla cervo-serpente está colocada do lado simbolicamente negativo da
cena, abaixo e à esquerda do homem feito ~I imagem de Deus.
As considerações dos dois níveis anteriores remetem-nos ao terceiro,
pertencente ao contexto local, à curta duração histórica. Nível que podemos
chamar de eclesiástico, pois estava ligado ~I implantação local da Reforma
Gregoriana. Nessa hipótese, é a legitimidade da utilização eclesiástica do poder
da palavra que estaria sendo lembrado iconograficamente. De fato, no momen-
to da confecção e aquisição do tapete, a catedral de Gerona estava fortemente
imbuída do espírito reformista. Já no concílio de 981 o bispo de Gerona e
conde de Besalú, Miro, tinha sido encarregado pelo papa de difundir uma
carta universal contra a simonia. O concílio de Gerona de 106B, presidido pelo
legado papal Hugo de Romans, além de proclamar a Trégua de Deus centrou-
se no combate ~I simonia, ao nicolaísrno e aos casamentos incestuosos?". Para
aplicar essas determinações, o bispo de Gerona, Berenguer Guifré, foi encar-
regado pelo papa de intervir no arcebispado de Narbonne. Outros concílios
reformistas reuniram-se ainda em Gerona em 107B, 1097 e 1143.
Como se sabe, o ponto de partida daquele projeto papal fundava-se na
clara e irreversível separação entre clérigos e leigos, marcada pela veste (bati-
na), pelo corpo (tonsura) e pelo comportamento (celibato)?", E sobretudo, o
que articulava os pontos anteriores, pela reivindicação do uso exclusivo do
poder mágico da palavra, concepção que estava presente na Catalunha medieval
tanto através das "crenças pré-crístãs" do "velhíssimo fundo cultural pré-
romano" da regiãoXU, quanto através da célebre formulação bíblica que atribuía
aos clérigos o poder de ligar e desligar as coisas na terra e no CéU81. Poder
realizado através de ritos e preces, isto é, de gestos e sobretudo de palavras.
Por isso na tapeçaria de Gerona o Adão que dá nome aos animais olha em
direção ao livro aberto que se encontra na mão de Deus.
Ademais, no contexto reformista o idioma utilizado ritualmente, portan-
to magicamente, tornava-se uma das mais importantes fronteiras entre cléri-
gos e leigos. Idioma que era considerado de origem divina, paradisíaca. É ver-
dade que a língua falada por Aclão no Éden teria sido o hebraico, segundo
Santo Agostínho'", Isidoro de Sevilha8j e Rábano Mauro+'. Também para um
apócrífo judeu, do qual existia tradução latina desde o século VI, "a língua da

78. Ed. Mansi, vol. 19, col. 106')-1072.


79. A proibição de clérigos portarem armas aparece no concílio de 1068 (cd, Mansi, vol. 19, cânon 5,
col. 10TI) e de 1078 (vol , 20, cânon 6, coI.518). Ambos legislavam também contra o concubina-
to de clérigos (1'01. 19, cânon 5, eol. "j(171; vol. 20, cânon ·1, eol. 517). O de l(I78 insistia na obri-
garoricdadc do LISO de ronsuru (1'01. 20, cânon 7, col. 51')).
80. Bonnassic, ojJ. cit., 1'01. I, p. :lH.
81. Mr16,18-1').
82. no Ciuitate not, XVI ,11 , 1'1.,li I. col. 190-'i92.
8:í. litilllologí(/s, IX, 1,1, 1'01. I, p. 7:í8; XII, 1,2,1'01. 11, p. 56.
Wí. COII/II/<!l1lal'iO/'ll11l in Genesim, I, 11, I'/., 1lI7, <':01. -183 ))-181 A.
122
criação" era o hebraico, falado no Paraíso inclusive pelos animais'". Contudo,
pensava a cultura erudita cristã, da mesma forma que a Igreja era a herdeira
superior da Sinagoga e que o Evangelho suplantara a Lei, o latim substituíra
em sacralidade o antigo hebraíco. Na hagíografía de São Marcial, os demônios
pedem que o santo não lhes fale em latim, mas em hebraico ou qualquer outra
língua8ó. Latim que no fracionado mundo feudal mantinha certa unidade lingüís-
tica, indício de perfeição do ponto de vista clerical.
A partir disso tudo, era possível que naquela cena da tapeçaria Adão
fosse visto como um protótipo do clérigo. De fato, não se pode desconside-
rar a origem e o espírito monástico dos reformistas, nem esquecer que desde
João Crisóstomo o ideal do monge era () Adão anterior ao Pecado. Com freqüên-
cia a literatura monástica comparava o claustro ao ÉdenH7. Ora, segundo a
Bíblia, Adão era um homem muito superior a todos os outros, e também muito
s:lbi088, mais sábio que os anjos, segundo comentários rabínicos'w que influen-
ciaram fortemente André de Saint-Victor e outros?". Era, para Honório Augus-
todunensis, sábio como Salomão, forte como Sansão, belo como Absalão'".
Era, de acordo com Dante Alighieri, o único homem além de Cristo no qual
estava o próprio Deusv-. Portanto, a analogia aparecia com naturalidade: assim
como Adão exercia sua supremacia sobre os animais através da palavra, o
mesmo faziam os clérigos em relação ao restante da sociedade.
A legenda daquela cena - "Adão não encontrava um ser semelhante a
si" - preparava o episódio bíblico seguinte, do nascimento de Eva, mas tam-
bém estava ligada ~lmetáfora que analisamos. O Adão-sacerdote posicionado
diante dos animais-leigos podia dizer com razão que não tinha ali nenhum
semelhante. O fato pouco comum de Adão estar representado sexuado talvez
fosse mais um esforço reformista em marcar a superioridade dos clérigos, ho-
mens completos, mas que com auto-submissão da carne mantinham-se celiba-
tários e puros. Não se sabe ao certo se o bordado foi feito em Ripoll, em São
Pedro de Rodas, em Seo d'Urgell ou na própria Gerona, mas sem dúvida ele
procedia de um centro eclesíástíco'". Ora, a alta especialização requerida por

S5. Ginbilv], 111,2H; XII, 26, trad. I.. 1'1Isdla, em 1'.Sacchi (cd.), Apocrifi tlell'Antico 'lestantento, (2 vols.),
Turim, UTET, 19HI-1989, vol. I, pp. 2,2 e 27S.
H6. 1.11 I'ie de: Saiut starttn), XV, p. 71.
87. Por exemplo, I'edro Damiano, hjJis/olae, VI, ~, 179, 1'1., 11,1, coi. ,7;', e Ilonório Augusroduncnsís,
Genuna Aniniae, 119, FI., 172, col. 59011.
8S. Eclo 19, 19; Sb 10, 1.
H9. Midrasb Rabba, XVII, ;" p. 200.
90. Cf. B. Smallcy, '!ZJeS/UtZI' otHib!« in tbe Midd/e 11,~es,,. cd., Oxford, lIasil'lIlackwcll, 1983, pp, 86
e SS., e 121-12H.
91. t texuemeron, 3, 1'1., 172, coi. 258 C. Para um sermão do século XIII, Adão era t'IO sábio quanto
Noé, Abraâo, Moisés, Davi e Salomào: Gra nt malfist Adant. e.120 ad, cd. 11. Suchicr, Neil11jJl'edi.l5l,
11"lIe, Nicmcycr, lH79, p. 60.
92. Contmedia, I'arabo XIII, 13-;'/í.
93. Paiol, N Tapis, pp. "151-155.
aquele tipo de trabalho artesanal fazia com que ele dependesse estreitamente
de seu comanditário?". Isso ficava reforçado pela posição da tapeçaria, atrás
do altar, fazendo daquela cena um espelho do que os fiéis viam durante a
liturgia: um sacerdote falando e gesticulando para seu público, isto é, forman-
do consciências, salvando almas, dirigindo a sociedade.
Mas, para que a cena fosse assim entendida, a identificação de Adão como
clérigo deveria fazer parte da cultura laica local. Ora, havia pelo menos um
texto não-eclesiástico a tal respeito. Trata-se de um apócrifo cristão então conhe-
cido numa versão latina (atualmente perdida), e desde o século VIII ou IX numa
tradução árabe. Naquela região fortemente habitada por moçárabes (cristãos
culturalmente arabizados), o referido apócrifo deveria ser bem conhecido, fosse
num ou noutro idioma. Segundo aquele texto, antes do pecado Adão via longe,
sua inteligência era muito grande, superior mesmo à dos anjos''>. Expulsos do
Paraíso, o primeiro alimento dos primi parentes foram figos enviados por Deus,
frutas com sabor de "pão e sangue"9ú. Portanto uma espécie de eucaristia, rece-
bida significativamente no octogésimo dia da Expulsão, ou seja, após um duplo
período penitencial de quarenta dias. E depois de terem aprendido a rezar, em
pé, com as mãos para () alto e voltados para oriente?".
Doze dias depois da comunhão, eles fizeram um sacrifício a Deus sobre
um altar que haviam erguido anteriormente e prometeram repetir o rito três
vezes por semana, às quartas, sextas e domíngosw. Mais tarde, 142 dias após
a Expulsão, quando Adão oferecia novo sacrifício a Deus, Satanás o feriu do
lado direito, do qual saiu sangue e água99. Assim, ao mesmo tempo Adão ante-
cipava o Crucificado e o ritual destinado a perpetuar e a celebrar o auto-sacri-
fício da Cruz. Ele era o Primeiro Cristo e o Primeiro Sacerdote. Por isso Isídoro
de Sevilha e Rábano Mauro puderam comparar a imposição de nome aos ani-
mais ~l Ressurreição dos Mortos e ~l Salvação dos Ressuscitadox'v'. Por isso na
tapeçaria de Gerona o Adào colocado em pé diante dos animais, rendo a boca
aberta e o braço direito senti-estendido, possivelmente lembrava aos obser-
vadores um sacerdote que pelas palavras e pelos gestos realiza a líturgía diante
de seus paroquianos. Gesto do Adão-sacerdote que de cerra forma reproduz
o da Divindade colocada no círculo central. Gesto que organiza o caos, gesto
que cria, gesto que estabelece a vida social. Como a Reforma Gregoriana pre-
tendia fazer na Europa cristã.

91. K. Sr.milund, Les Artisans du Moven /Ige, t.cs Brodeurs, (rrad.), Turnhour, Brcpols, 1991, pp. 55 ss.
95. Il Contbattíntento di Aclamo, I{ e 33, ccl-rrucl. A. lIanist:1 e 11. lIag:mi, Jerusalém, Franciscan I'rinting
Prcss, 1982, pp. !to c 91.
96. ldcm. liO, p. 110.
97. Idem, 28, pp. 81; 31, pp. 99; 35, pp. 99; 36, pp.11J1.
9S. Idem, 16, pp. 117-111{; 1ft, pp. 53-55; 1t7, p. l1S.
99. Idem, 17, pp.119-120,cf . .1019, Yí.
lOO. Isidoro de Sevilha, QII(/eSlionesin Vetus "/(·sl(/11/(,I1II./1I/. 111,6, 1'1., 1{3, col. 217; IUbano Mauro, COIII-

mentarionnu in Genesini, I, ]'Í, P/.> 107, col. 'ÍRIÍ B.


121
Em suma, a tapeçaria de Gerona sintetizava boa parte da visão de mundo
de princípios do século XII. Ali os três ciclos representados estavam profun-
damente articulados e expressavam diferentes áreas de atuação social. O ciclo
calendário lembrava o tempo curto, as estações do ano e sua influência decisi-
va em uma sociedade agrária. O ciclo da Descoberta da Cruz referia-se ao
tempo longo, histórico, colocado entre a Criação e o Apocalipse e que tinha
seu centro na Encarnação e na Paixão, O ciclo da Criação, colocado no meio
dos outros dois, dizia respeito ao tempo intermediário, o tempo social inau-
gurado por Adão quando nomeou os animais e pariu Eva. Na confluência
daqueles tempos estava a Igreja gregoriana, agrária, monárquíca, misógina e
sacerdotal. No controle daqueles tempos e na legitimação daquelas carac-
terísticas estava o poder da palavra. E na origem do uso desse poder, o Adão
paradísíaco.
ENTRE O MUNDO FEUDAL
E O MUNDO DAS FADAS
A AVENTURA DE GUINGAMOR

Em fins do século XII, o Ocidente cristão conhecia importantes trans-


formações político-sociais, amplamente documentadas e bem estudadas pela
historiografia. Contudo, apenas mais recentemente incluiu-se nessa análise
elementos fornecidos pela cultura folclórica da época. Abordagem importante,
que nos permite ter sobre o tema uma visão mais completa e mais próxima
àquela que a própria época possuía. Uma importante e ainda pouco explora-
da fonte para um estudo desse tipo é o Lai de Gutngamot+, composto por
volta de 1180 e conhecido atualmente através de um único manuscrito, em
dialeto frâncico, apresentando traços dos dialetos picardo e nonnando.
Esse laí - canção ceIta de temática folclórica, em octossílabos empare-
lhados e interpretada com acompanhamento de harpa? - reúne claramente
influências de três fenômenos da época. O primeiro deles, a "reação folclóri-
ca", significou a reemergência e revalorização de um conjunto de elementos
da cultura tradicional como forma de estabelecer a identidade da média e da
pequena aristocracias laicas diante do clero, do qual se afastavam naquele

1. tat de (,'Uil1g{/I1I()/~ cd. c. Paris, Rontania, H, 1H19, ['['. )0-59; ediçl0 crítica em 1'. M. Tobin, tcs Lais
(/11011.1'/1/eS eles Xli" e/ XffP siédes, Genebra, Droz, 1976, ['['. 127-155; texto original com tradução em
francês moderno em Laisféenques de» Xli" e/ XffF siêdes; cd.-rrad. A. Micha, Paris, Fkuumarion, 1992, pp.
61-103.
2. A palavra parece ser de origem irlandesa, provavelmente de fins do século VIU ou começo do IX,
segundo D'Arhois de jubainvillc, "Lai", Romania, H, 1879, ['. li22. Sobre a clcfiniçâo e as caracterís-
ticas do gênero, veja-se ).-1'. Paycn, Le I.ai nurratl], Turnhout, Brcpols, 1975.
126
contexto de novos interesses políticos e econômícos>. Graças àquele movi-
mento socíocultural, o folclore medieval, oral por definição, pôde sobreviver
na literatura através de textos compostos por "clérigos alimentados de cultura
erudita, em intenção de um público preciso, em um quadro literário preciso:
portanto, necessariamente, o testemunho não é senão um espelho deforrnante.
Todavia os próprios clérigos, tanto quanto seu público nobre, não escapam a
essa cultura popular na qual se resume o imaginário coletivo?".
O outro fenômeno era a literatura cortesã, uma das expressões da "reação
folclórica". Se de um lado ela n~IOdeixou de sofrer certa cristianização (idea-
lização do amor, dama comparada ~l Virgem, amor carnal sublimado etc.), de
outro opunha-se ao processo eclesiástico de sacrarnenralização do matrimônio,
preferindo combater o casamento e erotizar o amor. Por fim, o terceiro ele-
mento era a literatura de visões que, ao narrar contatos humanos com o mundo
supranatural, retomava e fundia a apocalíptica judaico-cristã com relatos bár-
baros, sobretudo célticos e mais especificamente irlandeses>. Contempora-
neamente ao lai que agora nos interessa, gozavam de grande popularidade a
Nauigatio sancti Brendatii e a Visio Tiuigdaii, relatos sobre a trajetória daque-
las personagens ao Outro Mundov.
O autor anônimo, que Iiterarizou a aventura de Guingamor, aproveitou
elementos daquelas três procedências, mantendo-se muito próximo às raízes
orais e laicas do conto que transcrevia. Sua estrutura é simples e pode ser
decomposta em sere panes. No prólogo, () poeta insiste em que vai contar uma
aventura verdadeira, ocorrida outrora, e apresenta o herói, Guingamor, so-
brinho e herdeiro de um rei cujo nome foi esquecido. A seguir, a descrição da
situação inicial mostra a rainha se apaixonando pelo personagem-título, que
a repele por lealdade ao rei e por não se preocupar com o amor. Ofendida e
temendo ser delatada, a rainha desafia Guingamor a caçar o javali branco que
já provocara () desaparecimento de inúmeros cavaleiros. A contragosto o rei
concorda e empresta ao sobrinho sua matilha, seu cão de caça e seu cavalo.
O outro momento da narrativa é o do primeiro contato com o Além: o
herói é acompanhado pela corte até fora da Cidade, ernbrenha-se na floresta,
localiza o javali, persegue-o, atravessa um rio e depara com um rico e belís-
simo castelo desabítado. Perto dele, em uma fonte, encontra uma mulher lindís-
sima que o chama pelo nome e promete entregar-lhe o javali se ele aceitar
sua hospedagem por dois dias. Apaixonado, ele a acompanha até o castelo

j, J. I.c Goff, "Culrurc clérícalc cr tr.rdirions folkloriqucs dans 1a civilixarion mérovingicnnc", em


I~!II/I, p. 233, n. 26.
/õ. \.. l lnrl-l.ancncr, tes I'ée.l"au tII(!l'el/ /lge, Paris, Ilonoré Ch.unpion, ·19tH. p. fi.
5. .J. l.c Goff, "Aspccts savanrs cr populuircs de voyugcs dans l'au-dclà :IU Movcn Age", em I.'ltnaginnir«
1I1{'dit'I.'(t!. Paris, (;allil11:l1"(l, ·191:1'5,
p. lOH; 11. H. l'onch, FI otro !li I 11 Ido ett la l.itcraturrt JIlediel.'tlI,
(rrnd.). México, Fondo de Cultura Fconól11ica,19H3.
6. i\'({{J(gtl/io Sanctt Brcndani Abbatis, cd. C. Sd me r, Norrc-Damc, Univcrsity of Norrc Damc, 19'59:
Tb« s/isicnt ojTu nclal«. cd. IL Mc.irns. l Icidclbcrg, Carl \Vinter, ·191:15.
127
que acreditara estar desabitado e lá encontra alguns dos cavaleiros que ha-
viam sumido na caça ao javali. O quarto momento é ()do interdito, quando ele
quer voltar ~l corte do tio levando o animal, e sua amiga lhe diz que lá tinham-
se passado trezentos anos e ele não encontraria nenhum conhecido vivo. Diante
do ceticismo do herói, ela o adverte: para poder mais tarde retomar ~l terra
maravilhosa das fadas, ele nada deve comer ou beber depois de cruzar o rio.
Ocorre então a reínsercão de Guingamor no mundo terreno. Indo em
direção ao castelo do tio, ele encontra um carvoeiro a quem pede informações
e através de quem fica sabendo que efetivamente trezentos anos haviam-se
passado desde sua saída dali. O herói resolve voltar ao encontro de sua amiga,
porém, estando faminto, esquece a recomendação e come três maçãs.
Subitamente enfraquecido, cai do cavalo e fica à beira da morte. Abre-se então
a penúltima etapa, a da volta ao Além, quando surgem duas belas jovens que
o recriminam pela desobediência, colocam-no sobre um cavalo que traziam
consigo e, chegando ao rio, embarcam-no com seu cão e seu cavalo de caça.
Por fim, a narrativa se fecha com o carvoeiro indo até a corte levar a cabeça
do javali que Guingamor lhe dera e contar a estranha história que ouvira do
cavaleiro. O rei manda então compor um lai em lembrança do episódio.
O que poderia parecer aos olhos modernos um mero relato "fabuloso"
expressa, na verdade, um conjunto de valores centrais para a mentalidade do
século À1I. Mas, para compreendê-1o, é preciso considerar inicialmente o signi-
ficado simbólico ele três elementos da narrativa. Em primeiro lugar, os ani-
mais. O animal-objetivo era o javali, de caráter primordial tanto para a tradição
cristã, na qual é identificado com o demônio, quanto para a tradição celta, na
qual está vinculado ao carvalho, árvore sagrada de cujos frutos se alimenta.
Não por acaso, o javali era o alimento sacrificial na festa celta de Samain. A
cor daquele animal também é um dado importante: o branco, caudidus, é a
cor, como a etimologia registra, do candidato, daquele que vai mudar de
condição, que vai se submeter a um rito de passagem. É a cor dos druídas.
Ou melhor, para os medievais é a não-cor, é a ausência que evoca a alterida-
de elo Além, daí estar associada a anjos, santos e fantasmas.
Os animais-meio da narrativa, isto é, aqueles que permitiriam ao herói
cumprir sua tarefa, eram o cão e o cavalo. Ambos lembravam a sociedade feu-
dal como símbolos ele fidelidade e de poder aristocrático, mas ambos também
eram vistos como psicopompos. O cão aparece nesse papel ele transmissor da
alma de um mundo a outro em várias mitologias. Por isso, para os celtas, esta-
va associado aos guerreiros, tinha claro sentido positivo: o nome do herói
mítico Cuchulainn significa "cão de Culann". Assim, não é de estranhar que
os cães que Guingamor utiliza em sua caçada já conhecessem as pegadas do
javali". O cavalo também expressava o trânsito fácil entre dia e noite, vida e
morte. No rito de entronização dos monarcas ela Irlanda no século XII, o futuro

7. l.ai de C;1I inga 1lI o1", 1'1'. 275-276, cd. Michu, p. 7H.
128
rei copulava com uma égua branca, depois sacrifícada, e cuja carne era con-
sumida em um festim ritual do qual o rei estava excluído. Entretanto, ele se
banhava em um caldeirão com o caldo que cozinhara o animal, de forma a
reproduzir simbolicamente sua presença no útero (caldeirão) e no líquido
uterino (caldo) tal ato era um renascimento que lhe permitia deixar a condição
humana e se sacralizar".
O segundo elemento a considerar são as fadas. O termo, derivado de
fata, correspondente à Moira grega e ~ISParcas romanas, tornou-se no século
XII designativo de "divindade silvestre ligada a um culto da abundância e da
fertilidade":'. Era uma figura mítica nova, nascida naquele momento, apesar
de os textos entre 1160 e 1220 quase n~IO usarem ainda a palavra!". Mas era
figura original apenas na forma, pois na verdade se tratava de mais uma das
inúmeras hípóstases da Mãe-Terra. A fada de Guingamor, como as dos lais
em geral, lembra uma senhora feudal com sua corte e suas terras, mas sobre-
tudo reconstitui miticarnente uma ordem matriarcal arcaica, diante da ordem
patriarcal expressada pelos romancexl '. A fada, com sua beleza extraordinária,
seduz Guingamor - o que a rainha, apesar de "esguia, elegante e bela"!",
não conseguira - pois oferece uma feminilidade mais atraente, de essência,
permanente. Oferece todo um mundo de riqueza e de eternidade. Ela é a sen-
hora do Outro Mundo, daí ninguém poder capturar o javali branco sem sua
ajuda 1.).
O terceiro elemento, por fim, é o tempo. De um lado, a tradição cristã
concebia um tempo humano e um tempo divino diferentes e isolados. De
outro, se a tradição folclórica também pensava em tempos diferenciados, aceita-
va contudo a possibilidade da passagem, ainda em vida, de um para outro.
Na base dessas concepções estavam a linearidade e a circularidade temporal,
que porém se mesclavam na Idade Média, quando os "cristãos não são, afi-
nal de contas, senão pagãos banzados"!". Dessa forma, dentre muitos outros
exemplos possíveis">, lembremos um do século XII, quando o bispo Maurício
de Sully refere-se a um homem que seguira um pássaro e que ao voltar depois

H. IJ.<;rmb, pp, 229-230.


9. I Iart-Lancncr, op. cit., p, 25.
10. Idem, pp. 35-36 e 77.
11. D. Rcgnicr-Hohicr, Le Coeur 1I/(/l1gé. Récits érotiques et courtois, XI/e et XIII" siéclcs, Paris, Srock,
1979, p. 330.
12. I.(/Í de Gu inganror. v. 'ÍO, p. 66.
15. Idem. v. 1t67, p, 90.
H. A Manclouzc, "Tcmpus Chrísrianum, Tcmpus Christianonuu ou Christiana Tempera?", em I.e Temp«
cbrétten de lafin de l'Antiquité ali Morel1l1ge, 111"et XIII" siecles, Paris, CNRS, 19H-1, p. 575. Sobre
o conceito medieval de tempo, ver também B. Rihémont (dir.), 1." Temt»; S(/ utcsure et S(/ percep-
tiou au Moyen Age, Cacn, ParadigmL\ 1992.
15. Aquela concepção era conhecida mesmo fora da área célríco-crísrâ, COIllO mostra O caso dos muçul-
manos: I.e 0)/'(/11, 2, 261, (trad.), Paris, Gamicr-Flammarion, 1970.
129
ao seu mosteiro percebeu que haviam passado trezentos anosí6. No século
XIII, mas de origem anterior, uma narrativa italiana faia em um homem que
foi retribuir uma visita e ao voltar, um dia depois, percebeu que na sua terra
haviam transcorrido trezentos anos!", Também em Guingamor a fronteira tem-
poral é geográfica, no caso um rio transposto sobre um cavalo terreno na ida
e na volta, mas ultrapassável apenas com um cavalo do Outro Mundo quan-
do, após a quebra do interdito, o herói retoma ao mundo das fadas.
Ainda que a presença desses elementos seja importante, nada tem de
surpreendente, sendo mesmo freqüente na literatura da época. O que chama
a atenção é o uso que o texto faz daqueles elementos, realizando uma críti-
ca aguda ao presente histórico da narrativa, um momento indefinido, "outro-
ra", diz o poera!e. Apesar dessa distância no tempo, () narrador insiste em que
"é verdade o que direi"!". Ora, como ele compôs () lai por ordem do rei, somos
levados naturalmente a pensar que se trataria de uma composição literária
para servir aos interesses da realeza naquele contexto de certo avanço da cen-
tralização monárquica. Impressão logo reforçada ao se perceber que as críti-
cas do poeta anônimo eram dirigidas ~l sociedade feudal. Aliás - aproveitan-
do tema mítico bastante conhecido-v - o simples contato físico do herói com
o mundo feudal (através das maçãs, símbolo de conhecimenro?") quase ocasio-
na sua morte.
De fato, em algumas passagens a narrativa demonstra um nítido espíri-
to antífeudal, atacando aspectos centrais daquela sociedade. É o caso do desres-
peito às regras do amor cortesão, que são mesmo invertidas quando a rainha
tenta seduzir Guingamor. Fato agravado pela existência de laços de parentesco
entre eles e sobretudo pela proposta explícita de amor carnal: "Que eu seja
sua amante.Nocê é belo e eu sou bela:/Se você se dedicar a me amar,lMuito
prazer encontraremos nisso."22 Diante da escusa de Guingarnor, que diz amá-
Ia como senhora, a rainha responde que não deseja esse tipo de sentimento,

16. 1'. Meyer, "Lcs Manuscripts des scrmons françaiscs de Mnuricc de Sully", Ronranirt. 5. 1876, pp.
lí66jiH7, transcreve diversas versões daquela narrativa.
17. A. Gruf, "11 Miro dcl Paradiso Terrestre". em Mili, pp. 1'13·115; G. Gano, "I.c Voyage au Paradis: I.a
Christianisation dcs tr:tditions folkloriques ali Moyen Age", I1/iSC; 31, 1979, pp. 929-~H2.
1H. t.ai de (,'lIillgrll1l()/; 1'. '5, p. 61.
19. ldent, 1'. 3, p. 61.
20. Para a mentalidade arcaica, () retorno dcsritu.ilizndo ao mundo profano podia ser rào perigoso
quanto () contato direto com () sagrado. () companheiro afoito de Bran que desceu do barco na
volta tio Além foi pulverizado ao tocar o solo de seu país: I.({ Naoigntlc»: de tsran.Ttls de Fcbal.
65, rrad. C. Cuyonvarc'h. Og(/III, 9, 1957, p. 309.
21. /J.\)'11I b, p. 776. (t importante também o significado simbólico do:t\O de comer, que prende o indi-
víduo ao local em que isso ocorre, como no miro grego de Pcrsétouc. No caso do nosso lai, talvez
a fruta comida por Guingamor tenha sido maçã por assocíação com (IU({! (nome cclra daquela
fruta) e a ilha de Avalon (terra das maçãs, das fadas e dos monos): segundo um poema C0l1te111-
porânco de Chréticn de Troycs - tirei: ct tiuidc, VI'. 1l)Wr·1907. cd. 1\1. Roques, Paris, l lonoré
Cluunpion, 197H, pp. 5H-59 - Guingamor era o senhor daquela ilha mítícu.
22. l.a i de G'lIing({1II0r, \'V. 102·105, p. 6H.
ijO
recusa o amor vassálico que ele lhe deve. Mas não se trata apenas de uma
negação da feudalídade ditada pela fraqueza feminina. O próprio rei, diante
da decisão de Guingamor em partir para a perigosa caçada, lamenta mais a
possível perda de seu cão e de seu cavalo do que a de seu sobrinho. Os inte-
resses luxuriosos da rainha e materiais do rei estavam acima dos laços de
fidelidade, alicerces do feudalismo.
Por isso mesmo. dos vinte cavaleiros que se acreditava terem desapare-
cido na busca do javali, dez estavam no Além, numa decisão que implicara
na rejeição à sociedade feudal por parte deles. Sobre os demais o texto nada
fala, mas fica implícito que haviam morrido na tentativa de passar de um
mundo para o outro. Eles nem mostraram condições de viver entre as fadas,
nem quiseram permanecer entre os homens. Dessa forma, tanto os que chegaram
ao Outro Mundo quanto os que morreram na sua busca, manifestavam a fragi-
lidade, a efernerídade da sociedade feudal, destinada a ser historicamente
ultrapassada. Quando Guingamor pede informações ao carvoeiro que encon-
tra na floresta, ouve não apenas que o rei e sua corte não mais existiam, como
também que os seus castelos "estão há muito tempo todos destruídos'vs. Não
somente a sociedade feudal desaparecera, mas também seus símbolos.
Essa referência aos castelos feudais tinha como contra ponto na narrati-
va o castelo das fadas, sólido, rico, imponente, ainda que à primeira vista pare-
cesse deserto aos desavísados. FI se mostrou que no romance medieval "o
motivo do castelo deserto pode ser considerado como um ponto de cristali-
zação de uma seqüência narrativa que leva ~I libertação":". No caso de
Guingamor, não se tratou da libertação de uma princesa ou de um cavaleiro
aprisionado por monstros ou gigantes, e sim, em uma metáfora facilmente
compreensível para os medievais, de o castelo das fadas ter libertado o herói
das limitações do castelo de onde ele provinha. O castelo das fadas era a liber-
dade que o arrancava da prisão da História. É significativo que a própria me-
mória coletiva da sociedade feudal seja preservada, no lai, através de um car-
voeiro, que relata aqueles fatos a Guingamor e ouve por sua vez as aventuras
vividas pelo herói, permitindo que elas fossem depois registradas e perpetua-
das. O que sobrevivia daquela sociedade aristocrática era apenas uma lembran-
ça, e graças a um elemento socialmente inferior, explorado por ela.
O lai refletia, portamo, as profundas transformações que em fins do sécu-
lo XII prenunciavam a decadência feudal. Mas não podia negar suas ligações
com o mundo feudal. É o que revelam outras passagens do texto, quase que
simétricas àquelas vistas anteriormente. Diante da tentativa de sedução por
parte da rainha, Guingamor insiste em que "vos devo honrar/como esposa do

2j. Idetn. 1'. 602, p. 9H.


Z/i. 1'. l íozóky, "Roman médióval cr come populairc: l.c Chârc.ru déscrt", titbnologiefrançatse; 1, 197!1,
p.55/o.
!31
meu senhor'<>, preservando a fidelidade e a hierarquia. Diante das manobras
da rainha para ele partir em uma empreitada arriscada, e diante das mesqui-
nhas preocupações materiais do tio, Guingamor continua a praticar os clássi-
cos valores feudais. Ele é "sábio, cortês, valente'<''. Por isso quando, na flo-
resta, pensa ter perdido o cão de caça e () javali, lamenta-se e não quer voltar
~I corte sem eles, sem poder devolver o animal emprestado e entregar o ani-
mal que prometera caçar.
Depois de ter aqueles animais em mãos, ele pensa em retomar logo à
corte para cumprir seus compromissos, mesmo que isso significasse aban-
donar temporariamente a felicidade que desfrutava ao lado da sua fada. Ao
contrário de outros cavaleiros, que haviam trocado sem hesitação a corte
monárquica pelo palácio das fadas, Guingamor sente-se obrigado a primeiro
cumprir seus deveres feudais para depois ter direito ~I felicidade em um outro
mundo. Expressivamente, na sua reinserção no Além () cão e o cavalo foram
juntos, levados pelas fadas, num reconhecimento de que, sendo humano,
Guingamor, mesmo estando em outra esfera, não poderia esquecer suas ori-
gens. Em suma, Guingamor revelava Sentimentos ambivalentes e assim, através
dele, o poeta expressava as oscilações de um período de transição histórica
acelerada.
E dessa maneira alcançamos finalmente o sentido último do lai, cuja críti-
ca social levava-o a fazer do mundo das fadas uma inversão do mundo feu-
dal. Com efeito, lá a natureza é bela e pródiga, há fartura de alimentos, como
no mito contemporâneo da Cocanha (cujo único manuscrito existente é tam-
bém do Norte francês), de onde, aliás, () poeta que a canta saiu pensando em
voltar, como Guingamor em relação ao mundo das fadas, tendo porém menos
sorte que este?". Guingamor deparou ainda com um mundo muito rico, cujo
palácio era feito de mármore verde, com uma torre que parecia de prata e
portas de marfim com ouro engastado2H, lembrando o castelo que São Brandào
encontrara no Paraíso, segundo outro texto da mesma época, conhecido tam-
bém numa versão anglo-normanda, aparentada portanto ao laj29. O mundo
das fadas era claramente hedonísta, oferecendo com fartura a seus habitantes
alimentos finos, o amor físico de belas mulheres, cantos agradáveis acom-
panhados por harpas e violas, distrações variadas, suntuosidade e beleza em
tudo. Todavia, é interessante como o poeta de GlIÍngal1101; ao contrário de

25. t.ai de Gningcnncn: vv, 97-911, [1. 6H.


26. Itkrnt, vv. 10 e 12. 1'.61. Sobre os valores sociais das bd;IS e dos cavaleiros, veja-se A. Guerreou-
juluhcrt , "Fécs cr chcvalcric. Obscrvations SUl' lc scns social d'un thémc dit mcrvcíllcux", em
Miraclcs, jJ/vdiges ('I incrrcillcs (/11 Movcn /Ige, Paris, l'ublirut ions de Ia Sorbonnc, pp. I3:FI50.
27. Le Fabl ict): de COCtlgW!, vv, 167-1116, cd. v. Vààãncn, !\'l!lIfJbilologisclie Milleilzlllgell, /IH, 1917, pp.
2H-29, 1I. Franco júnior, /ls Utopia» Medieoats, S,ío Paulo, l ír.rsilicnxc, 1992, pp, 'í6-1t9.
28. I.ai de (,'lIillg(/III01: vv, 365-370, p. H·L
29. lscncdcir, l« lí!)'/I,~edeSllilll-Hmlldl/ll, 1'1'.1669-169'", ccl-uud. I. Short c B. Mcrrilccs, Pnrix, lJnion
Générale d'Edirions, 19R;', p.120.
132
seus colegas da Cocanha e da Viagem de São Brandão, não carregou muito
na descrição das vantagens materiais oferecidas pela terra das fadas.
A ênfase parece estar em outras características. Aqueie é um mundo
sem interditos morais (como a Cocanha), onde cada um é livre para fazer o
que bem entender. O poeta censurava assim a Igreja da época, cada vez mais
hierarquízada, dogrnatizada, interventora na vida privada dos indivíduos. Na
verdade, a crítica ao clero é tão forte que nem chega a ser explicitada; ele é
simplesmente banido direta ou indiretamente da narrativa, e sua existência
histórica, esquecida. Por isso, no lai, a passagem de um tempo terreno para
um tempo paradisíaco pode dar-se sem a intermediação eclesiástica, bem de
acordo com o despontar de uma cultura e de uma espiritualidade laicas
autônomas. E bem de acordo, ainda, com a concepção popular medieval da
existência de inúmeros pontos de contato entre o Aqui e o Alérnõ".
Ademais, o mundo das fadas era igualitário; neie, as hierarquias e as dife-
renças de todo tipo estavam abolidasv'. Era também - o que não implicava
contradição - uma sociedade matriarcal. Ou melhor, uma sociedade forma-
da originalmente apenas por seres femininos, as fadas, que atraíam homens
para lá. Assim, Guingamoré um conto do tipo "morganiano", no qual um ho-
mem vive com uma fada no mundo desta e por isso a união permanece estéril,
ao contrário do conto "melusiano", no qual a fada vive com seu homem no
mundo deste, tendo então muitos filhosõ-. Conseqüentemente, sendo um
mundo não-humano, a terra das fadas oferecia ainda a seus convidados a
eternidade. Ou, mais exatamente, a supressão do tempo terreno, arrancando
o homem da maior limitação que lhe é imposta pelo seu mundo. Em função
disso, a terra das fadas não precisava ter uma fonte da juventude, como ocor-
ria com outros espaços míticos mais presos ao terreno, caso da Cocanha e do
império de Preste .Jo~io.')5.
Outro aspecto ainda da oposição ao clericalismo da sociedade feudal
aparece na indicação da gênese do próprio conto folclórico. A personagem,
atraída pelo que ouvira dizer sobre o javali e a floresta, penetra naquele mundo
e na volta relata o que ali lhe acontecera, isto é, enriquece a tradição folclóri-
ca e oral que estivera na origem mesma da aventura. Esta foi narrada a um típi-
co representante daquela cultura, um humilde carvoeiro, e num cenário tam-
bém característico, a floresta. Ademais, () herói recomenda explicitamente àquele

30. Franco .Júnior. ojJ. cit., fl. 116 c ss.


31. Na inrcrprctacào de ,I.-C. Aubailly, I.rll'é'e e/te cbeualter. Paris, l lonoré Cluunpiun. 19<\6, flfl. 1~2-
1{3, o herói do ln i é um modelo de comportamento proposto ao consciente do leitor, mas tam-
bém visa modificar comportamentos coletivos. daí a sua função social. (~ 111114i outra imagem do
cavaleiro, menos viril c mais aberto internamente. reconhecendo c assumindo SLU Feminilidade. A
fada guia-o para o Outro Mundo para a n.;aliz'-H,;~lodo, em linguagem junguiana, scl].
32. l Iarf-Lancncr, ojJ. cit, Pfl. 1() C 203-2()!1.
33. 1.1'I-abliau de Cocagnc, \'V. 153-161, flfl. 27-2<\; Der Pricsterjobrt n nes: Tcxt des Briefs, 28, cd. F.
Zarnckc. Abbandlungen dcrpbilologlscli-bistoriscbcn Classe der k<il1ig/ie!J Sácbsiscben Gesellscba]:
der \Vis,<.;ensc!J{!/ien, 7,1879, p. 913. Sobre esse último mito, veja-se, supra, ensaio n. li.
133
indivíduo que conte às pessoas da região o que acabava de ouvir>". O carvoeiro
assim faz, jurando a autenticidade do que fala e apresentando como prova a
cabeça do javali branco que Guingamor lhe dera e que, desde então, foi mostra-
da em muitas festas para reforçar a narrativaô>. Mesmo quando esta sai do plano
exclusivo da oralídade e é líteralizada, continua popular na medida em que o
veículo de registro escolhido não foi o latim, mas um idioma vulgar3Cí.
Entretanto, a nítida postura antieclesiástica do texto não nos deve iludir:
o mundo bico também era objeto de uma acentuada depreciação. Quer dizer,
a impressão inicial de que se tratava de um texto favorável ~l monarquia não
é totalmente correta. Talvez houvesse lima intenção primeira nesse sentido
porém, consciente ou inconscientemente, () poeta - expressando sentimen-
tos de seu público, inclusive o rei - propunha um espaço e um tempo para
além daquela sociedade concreta, para além da História. Tratava-se, portan-
to, de uma manifestação da Imaginação utópica da época. De fato, além de
aspectos conjunturais, o texto revela elementos arcaicos, põe mostra uma à

estrutura, o sonho do Paraíso perdido. Como parece ser próprio de toda


sociedade em qualquer momento histórico, a Europa ocidental do século XII,
metaforizada na figura de Guingamor, colocava-se entre dois tempos, o da
realidade presente e o da esperança edênica. Também para ele se apresenta-
va a grande questão: é possível viver a felicidade das fadas, sendo homem'

Yi. l.ai de Gn ingamor, vv, 628-629, p, 98.


35. Idem, \'V. 671-671, p. 102.
j6. O folclore da n:gi~í() de Bcaucc, centro-noroeste francês. próxima ~I zona de origem do único
manuscrito existente do l.at de (;uing(/!1IOJ', registra UJll conto que tem ~ligllnspontos de contato
com aquele. Segundo esse relato, um homem que n:io queria morrer foi levado por lima fada ar('
lima estrela, mas como ele se cnrcndiuva Lí, voltou :10 seu mundo, onde encontrou tudo diferente
e onde morreu imvdiatamcntc :lpeis ler descido do cavalo: ,\1.-(;. Tcnczc. /.e Coute populairefrançnis.
Paris, Maisonncuvc ct l.arosc, ·196'í, conro-ripo !J70 !l, vol. 11,pp. ·163-16~.
MITO E LITERATURA
A VINHA E A ROSA
SEXUALIDADE E SIMBOLISMO
EM TRISTÃO E ISOWA

A partir do ano mil, com a "revolução feudal", dentre o conjunto de


lentas e profundas transformações pelas quais passava o Ocidente cristão, a
sexualidade pôde encontrar novas possibilidades de expressão. De um lado,
inovações nas técnicas agrícolas permitiram um recuo da mortalidade ferni-
nina! e, assim, uma participação mais significativa da mulher na vida social.
De outro lado, a revalorização da cultura clássica (igualmente produto das
transformações psicosociais do século xII), com a correspondente descober-
ta do culto pagão ao corpo humano, agiu também no mesmo sentido.
Contudo é inegável a misoginia daquela sociedade, dírigida por um clero
celibatário - que, a par da trífuncíonalídade social, estabelecia também uma
rripartícão sexual entre virgens, continentes e cônjuges? - e por uma aristo-
cracia laica guerreira cuja atividade baseava-se no uso da força física, mascu-
lina. O pensamento eclesiástico da época feudal prolongava o texto sagrado,
segundo o qual "a cabeça da mulher é o homern'", e o de Santo Agostinho,
para quem a esposa deve obedecer ao marido como os filhos aos pais e os
servos aos senhores". Pouco depois das primeiras Iírerarízações do mito de
Tristão e Isolda, na passagem do século XII para o XIII, o bispo jacques de

1. V. Bullough e: C. Campbcll, "Fcmulc l.onge:l'ily and Dict in lhe: Middle:s Ages", Sj)('WIIlIll, 55, 1980,
pp, 317-325.
2. C. Duby, l.es Tois orares 011 linmgtnairc <111
féodutismc, l'nris, Gallimard, 1978, pp. j09-3lU.
3. 1 Cor 11, ;I.
/1. Santo Agostinho, l.a Ciurlacl de Dias, XIX, H, cd.vtrud. S. Santamartu dcl Rio c: M. Fucrtcs l.ancro,
(2 vols.), Madrid, BAC, 1977,1'01. 11, p. )9/1.
Vitry ainda considerava que "entre Adão e Deus no Paraíso não havia senão
uma mulher, mas ela não teve um momento de descanso até conseguir a expul-
são do marido do jardim das delícias e a condenação de Cristo no suplício da
cruz">. Algumas décadas mais tarde, por sua vez, um cronista franciscano, den-
tre os cinco tipos de mando que desgraçariam um homem, colocava em
primeiro lugar o mando das mulheresv.
A realidade social, porém, era outra. As transformações provocadas pela
dinâmica feudal revalorizavarn a mulher, como mostra o desenvolvimento do
culto a Maria e da concepção de amor cortesão. Fenômenos estreitamente li-
gados, pouco nos importa aqui saber se o amor trovadoresco possibilitou ()
amor marianista? ou se este é que gerou aquele". Interessa, isto sim, notar
como em ambos se conjugavam, de forma aparentemente contraditória, a
espírítualização e a erotízação do amor. De um lado, o lamento do trovador
pelo desprezo de sua amada era, em última análise, um louvor sua casti- à

dade, funcionando assim metaforicamente como lima identificação dela com


a Virgem, caso, por exemplo, do célebre "amor longínquo" de Jauffré Rudel".
De outro, a lírica cortesã tinha inegáveis doses de sensualidade, ainda que
sublimadas, da mesma forma que a própria Virgem aparece erotizada em algu-
mas passagens de suas relações com os devotos!".
Na verdade tal concepção era bastante antiga, pois para a mentalidade
arcaica, o sexo estava mais na área de atuação do sagrado do que do profano.
Para as cosmogonias daquelas sociedades, todas as atividades reproduzem
atos ocorridos ab origine, de forma que tudo () que não tem modelo exem-
plar não possui realidade e, portamo, repetir gestos paradigrnáticos leva o
indivíduo de volta ~L época mítica do gesto exemplar 1 I. Como para muitas
daquelas culturas primitivas () sexo estava na origem do mundo, tal ato tinha
uma evidente sacralídade, e sua prática ritualizada estava destinada a preser-
var a própria sociedade através da imitação do gesto primordial. Contudo, ao
negar qualquer prática que considerasse pagã, () cristianismo, desde os primeiros
séculos, combateu o caráter sagrado da sexualidade, ainda que sem conseguir
destruir aquelas estruturas mentais muito antigas.

). Citado por E. Powcr, I.es lcnnnes (111 Mo)"ell Age. ÚI~,d.), I':lris. Aubicr, "1979, pp. lH-20.
6. Salimhcnc de Adam, Crontca, cd. O. l Ioldcr-Eggcr, Meill..\:\ ;52, p. 6).
7. A. l Iauscr, t tistôria Social da t.iterat nra e d({ Ar/e, (rrad.), 2 vols., São Paulo. Mestre jou, 2. cci.,
1972, \'01. L, pp. 302-301; LI. I. Marrou, l.es 't'roubadours, Paris. Senil, 197L, p. 176.
8. A. \V. Schlcgcl, vortesungen uetsrr dranuttisbc KIIIISI, I, H, (/Jilld l lauscr, op. cit, p. 302.
9. l.(lIlg(/lIc! lijorn .1011lonc en nuti, cd. fl.1.Riqucr, !.OSTrooadorcs, (3 vols.), Barcelona, Planeta, 1975.
\'01. I, pp.163-166.
10. Legetul«), 181, 6, p. 592; Les I\'el(jjoir!s Nos/ri! Danie. A IJoi!1I/ /ulribntcd /0 Rutebeu], v. 127, cd, T.
I'. Mustanoja, 1lclsinki, Suomalaiscn 't'icdcakurcmí.m Toimituksiu, 1952, p. 50: l.a Deuxiênu: col-
Iecticn: anglo-normcnulc tles ntiracles de Ia Saiu/e Viel:~e e! .1011ongiu«! latin, cd, 11. Kjcllman,
Purix-Llppsala, Champion-Akudcmixku Bokhandcin, 1922, n. 11, 30, -16.
·1·1. M. Eliade, () Mito rio titeruo Retorno, (trad.), Lisboa. Edil,·iks 70, 197H, pp. 12-50.
139
Daí por que na Idade Média a procissão dos rogantes e a bênção da terra
eram vistas como práticas que incrementariam as colheitas da mesma forma
que todos os ritos de fertilidade utilizados pelas sociedades tradicionais. Elas
faziam parte das forças produtivas tanto quanto qualquer instrumento agríco-
la. Naquele contexto mental, a relação homem-mulher lÜO era apenas um
contrato sexo-social, mas trazia em si uma carga mágica que não foi elimina-
da pela clericalização do ato, através do sacramento do matrimônio!". Com
efeito, preocupado desde sua implantação em combater () paganismo oficial,
o cristianismo não levou muito em consideração os antigos resíduos culturais
que a própria civilização romana não absorvera!". Por isso eles puderam reapa-
recer no século XI, paralelamente ~IS grandes manífestações heréticas, como
pane de um movimento anticlerical mais amplo a "reação folclórica".
Apesar disso, claro está, o substrato folclórico continuou a ser filtrado
pela cultura clerical, conquanto que de forma menos rígida que anteriormente.
Essa relativa autonomia dos motivos folclóricos tinha seu terreno privilegia-
do na chamada "matéria da Bretanha", proveniente do imaginário celta, pois
a "matéria de França", ou seja, a das canções de gesta, refletia forte clericali-
zação da cavalaria, enquanto a "matéria antiga", adaptação de temas clássi-
cos, há muito já sofrera uma significativa cristianização. É verdade que mesmo
a rica mitologia céltíca, com sua atmosfera de encantamento e sensualidade,
tinha sido bastante transformada no seu cruzamento com a mitologia cristã,
como o testemunha a literatura do ciclo do rei Artur e seus cavaleiros em
busca do Santo Graal.
Contudo o mito de Tristào e Isolda se manteve menos atingido pelo
processo de clericalização: enquanto La Qtteste dei Saiut Graal faz 9 referên-
cias aos sacramentos ele maneira geral, 16 ~IS virtudes da confissão, 8 às ela
penitência, 31 à missa e 12 ao sinal da cruz!", nada disso existe nas várias ver-
soes de Tristão e Isolda. O eremita que ali aparece - estranha personagem
que compra ricas roupas para Isolda, negocia com o rei Marcos a volta dela
à corte, não impõe nenhuma penitência aos amantes e até aconselha-os a
mentir para evitar escândalo - lembra mais um druida celta que um sacer-
dote cristão.
Assim, para compreender as versões medievais daquele relato mítico,
mais importante do que os dados da cultura erudita é a análise do rico sim-
bolismo presente na cultura Intermediária"? da época. De fato, o ambiente
essencialmente religioso da psicologia coletiva medieval, de aguçada sensibi-
lidade diante das coisas de caráter sagrado, expressava-se através de símho-
los. O sentido literal era considerado pobre, vulgar e até mesmo "indigno de

12. J.-c' Schmirt, "Rcligion populairc ct culturc folkloriqlle", /I/:'S(,', :11,1976, pp. 9;'5-9;'H.
Ij . .J. l.c Goff, "Culturc clériralc ct traditions Iolkloriqucs (blls Ia civilisation mcrovinuicnnc", em 1'11M/I ,
p. 22H, 11. 17.
H. 1.1/ Q//csie dei SI/IIII (,'J'i/(I/, cd. A. l'uuphilcr, Purix, t lonoré Ch.unpíon, 19HO, [utssitn.
15. O .. supra, ensaio n. 1.
110
ser recebido na Escritura tão santa e tão autêntica", como afirmou São Bernardo 16.
O mesmo acontecia, reconhecidamente, com nosso objeto de estudo: "Todas
as forças impulsivas da alma, inclusive a sexualidade, participam da elabora-
ção dos produtos simbólicos" 17. A linguagem simbólica era a única possível
para aquela concepção de mundo caracterizada pela integralidade, pela insepara-
bilidade de suas diferentes esferas, ligadas entre si por analogias simbólicas.
Não poderia ser de outra forma, pois pensava-se que cada coisa terrestre pos-
suía um modelo transcendental, arquetípico: "A'i coisas visíveis são transitó-
rias, as invisíveis, eternas"!", O próprio homem era um símbolo, com a palavra
que o designava, persona, sendo vista como derivada de per se una ("unido
por seus próprios meios"), isto é, criado imagem da tripla pessoa de Deus!v,
à

Não se atribuíam relações causais aos diferentes fenômenos, pois tudo


se reportava ::1 Divindade, causa incausada, e assim o valor de cada coisa esta-
va em função do lugar que ocupava na hierarquia global. Noutros termos,
havia urna hierarquia de valores e desta derivava uma hierarquia de símbo-
los. No entanto as coisas "não podem simplesmente servir de símbolo, nós
não lhe damos um conte Lido simbólico, elas sôo símbolos, e a missão do sujeito
iniciado consiste em descobrir seu verdadeiro significado'v". Ou seja, na interde-
pendência das partes que compõem o todo, a ligação entre elas se dá por
associação simbólica a partir de propriedades comuns que as confundem com
a essência das coisas. Como S~IO muitas aquelas possibilidades associativas,
disso decorre a polissemia elos símbolos, e é em função dessa capacidade
explicativa que há uma forte presença deles na mentalidade arcaica: "A cons-
ciência simbólica medieval não foi engendrada pelo cristianismo">'.
Ela foi, contudo, desenvolvida pela existência de um rico simbolismo
nos mitos e ritos cristãos. Por isso, na produção literária da "matéria da Bretanha"
puderam facilmente confluir símbolos celtas cristianizados e símbolos cristãos
folclorizados, síntese possibilitada pela ausência de divergências fundamen-
tais entre cristianismo e antigas crenças celtas22. Aí está, parece-nos, o âmago
da questão: a religiosidade profunda, vivida, independente de diferenças teoló-
gicas, constituía o quadro mental no qual ressurgiu o mito de Tristão e Isolda,
sendo um falso problema a tentativa de estabelecer se esse contexto era católi-
C025 ou cátaro>'.

16. Scrntones in Ca ntica Canticorunt, 63, I, 1'1., 1H3, col. 'IORO.


17. C. G. .Jung, Aion: Estudos sobre o Simbolismo do Si-ntesntc, (tr.id.), l'ctrópolis, Vozes. 19H2, 1'1'. Hi,
l'Í7.
1R. 2 Cor 1, ia.
19. A.,1. Gourcvitch, l.es Clf/(~~o{'il!sde Ia cultura médiéuale, (rrad.), París, Gallimard, 19H3, 1'1'. 299-
300.
20. í'. Bitsilli, lilemcntv Srednccelsouo] KIlI'ilI/:J', rI'· 'i-S, citado por Gourcvitch, p. 296.
21. Gourcvitch, ojJ. cit., p, 2%.
22. Cf., supra, ensaio n. 2j J. Markulc, t.e Cbristia nisnte celtique et ses snruiucnrcespopulaires, Paris,
Imago, 19H3, 1'1'. 129-1;\3.
23. E. Wechsslcr, Drts Kult urproblem dos Minuesang«, l ínllc. Nicmcycr. 1909.
21. 1). kougcmonr, (J /I/1/()1' e o Ocidente; (trud.), Lisboa, Mor.ics, 2. cd. '19HZ.
111
Para o pensamento oficial cristão, () amor de Tristão e Isolda era conside-
rado culposo, já que incestuoso, adúltero e perjuro. Havia ali, para a Igreja,
um duplo incesto. O primeiro era concreto, pois, ao se casar com Marcos,
Isolda tornava-se por adoção tia de Tristão, e esse grau de parentesco era dos
mais sacralizados: o latim medieval tbius (donde zio, tio, tio), derivava do
grego tbeos (deus). Isto é, tio/tia possuía conotações divinas, sobretudo pelo
lado materno, o que era o caso entre Trisrão e Marcos. O outro incesto era
alegórico, porém não menos importante, pois a rainha era vista como mãe
simbólica de seus súditos, daí a gravidade da falta de Tristão e Isolda e a resis-
tência eclesiástica a tal mito.
Isso fica claro quando se lembra que Lancelot e Guenievre incorreram
apenas no segundo daqueles incestos, e por isso seu mito pôde ser mais facil-
mente clerícalízado e aquela personagem tornada um exemplo de cavaleiro
cristão. Na verdade, a Igreja só normatizaria a proibição ao incesto no Concílio
de Latrão, em 1215, no momento em que o mito de Tristão já tinha recebido
suas principais formulações literárias. Apesar disso, em vários lugares o inces-
to continuou a ser prática corrente mesmo um século depois, como na aldeia
pirenaica de Montaillouz>. Logo, não se deve estranhar que nas áreas de forte
passado celta - em cuja cultura o incesto era tato antropológico noonal26 -
a questão fosse encarada de forma não clerical.
Enquanto adultério, aquela relação era condenável não apenas por si
mesma, mas sobretudo por desmascarar a força, () magnetismo da sexualida-
de. Ora, esta devia ser sempre escamoteada, como revelava a etimologia ecle-
siástica de casamento, sacramento que não elimina o caráter pecaminoso do
prazer carnal, mas apenas "deixa oculto o que poderia ser vergonhoso. Daí
que as assim chamadas núpcias derivem ela palavra nebuloso, conforme nos
ensinam nossos antepassados'?". Enfim, a história de Tristão e Isolda era bas-
tante incômoda para a cultura clerical, daí, como sugeriu Iean-Charles Payen,
a existência de uma espécie de censura que levou ao desaparecimento total
ou parcial dos mais antigos manuscritos sobre aquela narrativa-e.
Talvez tenha sido em função disso que a leitura clerical foi quase sem-
pre a adotada pela historiografia. Iacques Ríbard, por exemplo, vê a estada
dos amantes na floresta como antítese da vida civilizada, local onde falta pão
e sal e para onde o casal fora levado depois de o filtro amoroso, verdadeiro
Pecado Original, os excluir do Paraíso terrestre da corte real. Naquela terra
inóspita as roupas de Tristão se esfarrapavam, tornavam-se sórdidas, reflexo
dele próprio, e assim seu pedido de ajuda para consertá-Ias mostraria seu

25. E. Lc Roy l.adurtc, Montaillou, uillaue occitan, Paris, Gallimard, 1975, [1. 265.
26. Rougcmcnt, op. cit., [1. 11H.
27. João de Salisbury, Polvcraticus, VIII, 1"1, 1'1., 199. col. 719_
28_ J. c:. Paycn, "l.ancclot conrrc Tristan: !~lConjuration d'un mythc subvcrsif", em Mél(//Iges Cffens ii
Pierre l.e Gentil, Paris. SEDES-C!)\J, 1973, [1[1. 61 H e 632.
H2
desejo de purificaçâo-". Para Erich Kóhler, na versão cio poeta anglo-norrnando
Thomas, Tristão aparece como uma crítica violenta, uma visão pessimista cio
homem, uma negação cio otimista espírito cortesão. Enquanto neste o amor
é um instrumento de perfeição e nobreza moral, em Tristão não há motivação
social, e em vez de superar a alienação entre indivíduo e sociedade ele a apro-
funda, em vez de reconduzir o herói ao seio da sociedade ele faz com que as
exigências desta o destruamw.
Interpretações deste tipo não levam suficientemente em conta o sim-
bolismo e a religiosidade laicas contidos no mito c nas suas literarizações. É
fundamental considerar que o público a que Tristâo e Isolda se destinava IÚO
era menos religioso por ser laico, mas apenas de uma sensibilidade diversa
da eclesiásticaõ '. Na realidade, como veremos, Tristão e Isolda fundem o amor
profano no sagrado, porém isso só pode ser percebido através da análise da
linguagem simbólica, que nos revela () subsrrato espiritual comum à mitolo-
gia céltica e ao cristianismo, pois "o simbolismo é a expressão estética da par-
ticipação onrológica'w. Assim, por exemplo, aquilo que ~l primeira vista parece
ser perjúrio era tão-somente desrespeito a um formalismo social. As falsas
garantias de inocência não partiam dos amantes, pois, como apaixonados
entregues totalmente ao seu amor, eles estavam literalmente em éktasls, isto
é, "fora ele si":i5.
Portanto não eram eles, no sentido da essência de suas almas, que juravam
falso. Tanto no episódio conhecido por "juramento ambíguo" quanto no de
Tristão disfarçado de louco, a ação foi determinada pela necessidade gerada
pelo amor, de maneira que quem agia socialmente, diante da corte, não eram
eles próprios, cujas essências permaneciam intocadas. Por isso mesmo, num
desses momentos em que Tristão está dissimulado em mendigo para poder
ver Isokla, ele não foi reconhecido por ela, mas apenas por seu cão:ii. C01110
para a tradição celta esse animal é psícopornpo, ou seja, transportador de

29 . .J. I(ih;rrd, t.c i\/(~)·e/l /Ige: t.iüératur« et symboiisme. I',u·i", l lonoré Ch.trnpion, 19Hi, pp. 9S. 'I Ir l-I /í2
c "I'i7-'I·'10.
30. !~.!-.:ühicr "li Sistema
1 Sociologico dei ROIll:IIlI.O Fr.mccxc Mcdicv.ilc". A/edioeuo !<0l1Uf1lZ0, 3~ 1976,
pp. )}1-335.
31. As versões do miro utilizadas neste estudo foram: a) Béroui, Tristan ('I Ysettt; b) Thomas, Trista it
('I 1:'('1/1; c) as anônimas l.a Foh« de Beru« e /.lI Folic Tristnn de Oxforcl, todas editadas por]. Ch.
I';rl'en, Paris, Garnicr, 1971; cl) Gorrfricd von Srrassburg, Tristan e tsoida, rrad. B. Dictz, Madrid,
Nacional, -19R2.Algumas vezes recorremos ainda ~lS rcconsriruiçõcs tcnrndas a partir de diversos
h·;rgmentos por joscph Bédicr, t.e R0l71l1l1de Tristan et tseut, Paris, Union (;énérale dÉditions, rccd.
1981; e por René l.ouis, Tristn n et lseut, Paris, l.ibrniric Cénérale l'rançaisc, .1972 ttr.rd., Lisboa,
Europa-Amóric.r, '1975, pcl.: qual citamos), O fato de mesclarmos ess,rs diferentes verse)es na nossa
argumenta<;Jo fundamenta-se na idéia proposta por C. l.évi-Straus». - IIl1lbmjl%gie structurate.
I',rris, I'lon, I 95H, p. 252 e sobretudo Jl/ylb/l//I.~itJl/("s (~ vols.), Paris. I'lon,196n-1975 - pura quem
não existem vcrsõc» boas ou mús de um miro, pois sua cssl'n('i~t "L'st~Í na his[()ria que ck; conta",
:;2. !'. de Hruyrtc, I. "!:"sl"dliqlle tI/I Jl/o)"(,/l Age, l.ouvuin, Instítul Supéricur de I'hílosophie, 19''Í7, p. 95.
33. Plurão jú observara que "n~io existe juramento amoroso": Banquet«, H)3h, trnd. L. Gil, em Obras
C/I/llfiíellls, Madrid. Aguilar, '1972, p. 571.
:li. I.lI Folie de Bernc. VI'. 51O-51J2.
113
almas, somente ele poderia ver Tristão em seu âmago. Reforçando esse ponto
de vista, noutra versão literária do mito aparece um cão que não precisava
comer ou beber e que era proveniente da ilha de Avalon, o repouso celta dos
rnortosõ>. Em suma, Tristão e Isolda, mudados pelo amor, faziam aqueles jura-
mentos sem má intenção, sem culpa no coração. Ao se despedir de sua amada,
dirigindo-se para () estrangeiro, o último pedido de Tristão, relembrando o
que eles consideravam a essência de sua relação, foi: "Conservar em vossa
memória quão puro foi nosso a111or"56.
Daí por que Deus, isto é, () próprio Amor, inúmeras vezes protegeu os
amantesõ". O caso mais célebre, fornecido pela versão de Gottfried von
Strassburg, é o da cena de ordálio na qual, apesar de um juramento de duplo
sentido, malicioso, Isolda saiu ilesa ao segurar o ferro em brasa, provando
assim sua inocência-s'. Coerentemente com essa idéia de que os amantes não
cometiam perjúrio perante Deus, os nobres cortesãos que instigavam o rei
contra eles eram chamados de traídoresw, quando na verdade, pelo costume
feudal, estavam sendo fiéis ao zelar pelo interesse de seu senhor. No mesmo
sentido, a personagem que, procurando agradar Marcos, vigiava os amantes,
dificultando seus encontros, não podia ser, segundo o poeta, senão um "instru-
mento do demônio"!".
Assim, é importante tentar uma interpretação que leve em conta a
espiritualidade profunda (e não apenas da elite eclesiástica) do século XII. Ou
seja, lima explicação que considere a emergência de elementos pré-cristãos
reaproveitados pelo cristianismo da Idade Média Central. Deste ponto de vista,
por exemplo, vemos que na versão de Béroul () amor de Tristâo e Isolda não
os afasta de Deus - pelo contrário, já que Ele é Amor e lÚO importam os
caminhos para atingi-Io. Dessa forma negava-se o caráter pecaminoso da
relação extramatrirnonial, valorizando-se apenas a intenção, a sinceridade do
sentimento, de acordo com a postura menos formalista da época e sobre a
qual insiste particularmente Gottfried" i. Atitude, aliás, presente na religiosida-
de popular, que via muitos milagres da Virgem beneficiarem pessoas que ha-
viam pecado, mas que lhe tinham uma devoção genufna't-.
No mito de Artur, a rainha Guenievre é a Soberania, a Prostituta Sagrada
que busca o melhor guerreiro, no caso Lancelot, já que o rei, pela tradição
celta, não combate, não é ação, mas equtlíbrío+'. Ora, o mesmo se aplica a

.:1). Gorrfricd, pp. jOj-3WI.


j(Í. klcnt, p. }·H.
j7. Bérou], V\'. 552-555, 55';, 507,729,7';7, 2755, ~1t30-1t152; Thoma», 1'. o, Gottfricd, pp, 250, 2H5, 2H-i;
l.a t-ol!« dOxfortl, I'\'. H05 c 917.

,,8. Gottfricd, pp. 29H-301.


:19. Béroul, 1'1'. IH, 36, 100, 5j), 62 I, 809, 2799, 3005, 37611,133CJ, li369 c 'i3';H: Thomas, \'.19.
10. Gotrfricd, p. zst.
-n. klent, 1'1'. 59, ·i2, 129, 2'í6, 257 c 327, cf. também Bérouf, VI'. H-17, 555, 2301, 2829-2850.
/12. l.a neuxiênu: colloction, n. ti, H. 11, 12, 13, 1ft. li;. 20. 21, 22, 2.'l, 25, 1;2, ;'6. 51 e 60.
'i3. J. ~brk:lle. I.e N()i Artbnrct ln société celriquc, I'aris. l'ayOl, l<JHI. p. lOb. Nu l.a i de Graeleut, rodo
Isolda, de quem Tristão, como principal guerreiro da corte e herdeiro do rei
Marcos+', devia ser amante. Entende-se assim o pouco caso do rei em compro-
var a "traição" da esposa. Um dos poetas que narram a história insiste mesmo
em que "sem dúvida cometeria uma injustiça aquele que reprovasse a Isolda
havê-to enganado. Nem ela nem Tristão o enganavam.v'> Ademais, se caracte-
rizado o adultério segundo o prisma da Igreja, isso traria pesadas conseqüências
políticas. Pelo direito canóníco, a fornicação era motivo de separação que
impossibilitava novo casamenrow, o que deixaria Marcos sem o herdeiro natu-
ral (Tristão) e sem uma esposa legítima (Isolda) que lhe pudesse dar suces-
sor. Entre o costume celta, que permitiria sem desonra a paz do reino, e as
regras clericais, que vilipendiariam o rei e lançariam a Cornualha na anarquia,
Marcos inclinou-se a favor do primeiro.
Portanto a "reação folclórica" levava as versões literárias a negarem a
visão clerical do mito e a insistirem nos seus aspectos originais. E em primeiro
lugar no caráter natural do amor. No conjunto de símbolos que expressam
essa idéia encontra-se inicialmente o famoso filtro amoroso, preparado pela
mãe de Isokla para ser dado ~l filha e ao marido desta no dia do casamento,
mas que a noiva e Tristão ingerem ainda a caminho do reino de Marcos. Do
ponto de vista clerical, esse fato era uma transgressão ao interdito sobre práti-
cas mágicas para atrair o amor de outra pessoa, falta identificada ao incesto,
aborto e antíconcepção, puníveis na Alta Idade Média com de seis a quinze
anos de jejum e às vezes com a proibição perpétua de casar e ter atividade
sexualf". Do ponto de vista mítico, a aproximação através do filtro os incul-
pabilizava de qualquer erro, dando ao seu amor um caráter predestinado, divi-
no, decidido por forças superiores. É secundário, assim, que em algumas ver-
sões o filtro tenha sido administrado não-íntencíonalmente+', enquanto noutras
o foi de forma consciente, já que a criada de confiança de Isokla percebera
sua atração por Trist~lo1').
De qualquer forma, o filtro opunha-se ao casamento, relação que naque-
la sociedade era freqüenreruente estaheIecida sem amor, atendendo apenas in-
teresses familiares, patrimoniaís, feudais ou políticos, como no caso de Marcos
e Isolda. Apesar disso, o casamento não excluía na prática - diferentemente
do pensamento eclesiástico - a satisfação sexual. Assim pensa Tristão ao se

~1I10 Arrur coloca a rainha nua num banco alto, perguntando se alguém conhecia mulher mais bela,
dando-se assim um dos modos do exercício do poder real: C. Marchcllo-Nizia, "Amour courtois,
sociéré masculino ct figures de pouvoir", /I/IS(,: 36, 19~1'1, p. 9RO.
IJ/j. Pela filiação marrtlincar cclru, o sobrinho pelo lado da mãe vinha em primeiro lugar na linha
succssória, antes mesmo que o filho do sucedido: Markulc, cit., p. 265; M. Dillon e N. K.
O/I.

Chadwick, /.C'S I<O)'(/UIIIC'S celtiques, Vcrvicrs, Marubour, 1979, p. 15H.


liS. Gorrfricd, p. 335.
1J6. G. Duby, Lc Cbocnlier, Ia fenuno ct le prêtr«, Paris, l lachcrrc, 19t11, p. 205.
!J7. ].-1.. llandrin, (/11 Tentps pourenrbrasser; Paris, Scuil, 19H3, p. 12').
iR. Thomas, VI'. 2193-2!J9-1; Gorrtricd, p. 231; 1.(/ Folie de Berne, \'1'. 13;-1-11.
'i9. Béroul, \'1'. 2IH2-2l93; 't'ristan ct Iseut, cd. l.ouis, pp. 3Hj12.
H5
atormentar no exílio com a distância da amada, imaginando-a nos braços do
marido: "Não pode ela ter prazer e voluptuosidade sem amorr">". Pelo mesmo
raciocínio e sofrendo com aquela dúvida é que ele resolve casar, usando "con-
tra o amor o remédio do prazer", o "prazer conjugal">'. Contudo entre os amantes
a relação é de outra intensidade e significado, como procura mostrar o mito.
O filtro é a força do amor, que pode ser um fim em si mesmo, sem visar
necessariamente à procriação, como estabeleciam as leis da Igreja. Por isso
mesmo as relações Lancelot-Gueníevre e Tristão-Isolda eram estéreis, basta-
vam-se a si mesmas. Enfim, o filtro é expressão do amor, e não causa dele.
Daí Gottfried não ter limitado sua duração, tornando-o apenas símbolo do
poder fatal do amor, capaz de ir além da vontade humana. Se Béroul, por sua
vez, estabeleceu um tempo de eficácia do filtro, ele insistiu no fato de o senti-
mento dos amantes não se enfraquecer depois desse prazo'<. Também para
Thornas o amor permaneceu intacto'o. Ou mesmo, segundo outra versão, ces-
sado () efeito do filtro o amor se tornou "mais forte que nunca">".
É interessante notar que na versão de Béroul o efeito do filtro durou três
anos55, cessando na data da festa de São JO~lO. Isto é, no dia mais longo do
ano no hemisfério norte, quando o Sol atinge o ápice de seu curso e passa
então a declinar. E de fato, pouco depois, os amantes procuraram o eremita
Ogrin para os orientar, com Isolda recebendo roupas novas, voltando para o
marido, a corte, a vida civilizada. Reinserindo-se, portanto, na moral cristã.
Esse fato é expressivo, pois no calendário religioso celta lÚO havia festa do
solstícío'v, () que indica que () episódio deve ter sido enxertado por concessão
à postura clerical. Se assim foi, o prazo de três anos não deve ter sido casual,
com a conotaçào divinizante daquele número servindo para justificar o fim
do efeito maléfico da magia do filtro.
Porém o substrato mítico continuou a ser mais forte, tanto assim que o
poeta renova desde então as referências força do sentimento, da sensualida-
à

de que atraía os amantes. O cessar da magia apenas revelava a verdade daquele


amor, que independia de artifícios para existir, para se fortalecer constante-
mente. Aliás, ele era bem anterior ao filtro>? , daí Isolda ainda em sua terra
recriminar Tristào por querer entregá-Ia a Marcos, com quem ela se recusaria
a tomar o filtro, o que faria espontaneamente com Tristão. Na verdade ela inge-
riu () líquido mágico sabendo o que estava fazendov'. Assim, o fim do sortilé-
gio não podia ser o fim do amor, mas apenas de "uma coação mágica, uma for-

50. Thomas, 173-17~.


1'1'.

51. Idem, VI'.240 c 259-260.


52. Béroul, 1'1'. 2653 c ss.
53. Thomas, VI'. 49-50.
5~. Tristan el tseut, cd. l.ouis, p. 91.
55. Béroul, v. 2277.
56. Murkalc, I.e Cbristianisnte celtique, pp. "190-191.
57. Gorrtricd. pp, 170,196 c 206.
58. hiSI(1II et Iseut, cd. I.ouis, pp, 32 c 10-41.
H6
ça exterior, invencível e fatal"5'). A relação entre eles se tornou então mais pro-
funda e duradoura, por partir de um movimento interno, espontâneo, natural.
Essa ligação embriagante e misteriosa do amor foi selada entre os amantes
através da entrega de um anel. Gesto genuíno, distanciado do hábito clerica-
Iízado e formalizado que tinha perdido boa parte de sua significação profun-
da, original; daí Isolda, durante o tempo em que viveu com Trístào na flores-
ta, ter continuado a usar despreocupadamente o anel que Marcos lhe dera no
dia do casamentoô''. Pelo contrário, o anel dos amantes resgatava () antíqüís-
simo simbolismo do ligar e desligar, encontrável em várias culturasv'. A concep-
ção existia entre os hebreus, com Iavé sendo um Deus dos nósô2; os gregos,
com Prometeu depois de libertado tendo de usar um anel com um pedaço da
rocha a que estivera acorrentado para significar a continuidade de sua sub-
missão a Zeus: os romanos, para os quais fascinium (malefício, sortilégio)
tinha a mesma raiz de fascia (faixa) e fascis (feixe), daí "fascínio" transmitir
a idéia de ligação, os germanos, que participavam de uma de suas grandes
festas atados em sinal de sujeição ~IS divindades; os cristãos, cujo apóstolo
Pedro recebera de Cristo o poder de "tudo o que ligares na terra será ligado
no céu e tudo o que desligares na terra será desligado no céu"ô5.
Entre os celtas, () Lai de Yonec fala de um anel que um cavaleiro entre-
gou sua amante para que o marido dela esquecesse o ocorrido entre eles;
à

o Lai de Guiguemar ccsws de um nó dado na camisa do herói por sua amada


e que só poderia ser desfeito por quem realmente o amassevt. De acordo com
esta concepção, quando se separaram após dois anos ele convivência na t1ores-
(a ele Morois, Isolda entregou a Tristão um anel cuja pedra, ao ser olhada por
ele, lhe revelaria a imagem da raínha'». Esse mesmo anel tornou-se uma senha
para eles, com os mensageiros de Tristão devendo mostrá-Io a Isolda para
provar que eram realmente enviados de seu amado. Quando ele voltou do
exílio fingindo-se de louco e ela n~IOo reconheceu, a indicação definitiva de
sua identidade foi o anelCí(,. Na noite de seu casamento com a outra Isolda,
Tristão, ao ver o anel, lembrou-se da amada, sentiu a força da ligação entre
eles e ficou arrependido-". Enfim, sempre aparece no mito a concepção de
duas pessoas irreversivelmente "atadas"C,s

59. lilcnt, p. 91.


60. Béroul, v. 2017.
61. ,\1. Hliadc. l/J/(/ges el svniboles. Paris, Gallimard,1 979, 1'1'. 120-1 Cí3.
<l2. Os 7,12; I':z 12,1:\;.Ii> 19, 6.
<lj ,\It 16.19.
61j. Maric de lrancc, Guigc/Jltl/; \'\'. '55H-'56"í, e ) ()/lCC, vv, /1-\ /jji19, trad. P. jonin, Paris, llonoré Champion,
1981,1'1'.17 c 97.
65. Tristn n ct Iscut, cd, l.ouis, 1'1'. 99 c 125; para B0roui, VI'. 2679-2680. Thoruas, vv, '':'O-lí50, Gotrfricd.
1'.3'15, I.C! IÚ)/}/(/Il. cd, B0dier, p. 168, mesmo Sem a virtude llügica da pedra, o anel pela sua pre-
sença traz a recordação da amada.
66. l.a Folic: de Herue, vv, 528-')12; l.a Foli« clCixfcnrl, v. 956.
67. Thomas, vv, 'í'Í()-'Í63.
68. Gotrfricd, pp. 2:\5, 2:\6, 238-239 e 2'Í:).
Na verdade ele se casara com Isolda da Bretanha por causa do nomew,
elemento que no plano simbólico funcionalmente se aproximava do anel, isto
é, expressava um vínculo. Era muito antiga e difundida a concepção segun-
do a qual a palavra participa da realidade da coisa, como mostra uma obra
contemporânea ao afirmar que "pelo nome se conhece um homem"?". Porque,
como diz () texto bíblico, "mais aromático que teus perfumes é teu nome"?",
é que Tristão casou com uma Isolda por amor da outra?-. Mas assim o nome
lhe despertava o desejo da rainha">, e ele se conservava casto com a esposa.
Portanto, mantida a força da ligação pelo anel e pelo nome, Tristão, muito
saudoso, volta para sua terra e, disfarçado ele leproso, vai ver Isolda durante
uma missa. Ela então, em sinal de reconhecimento e de reafirrnação do elo
que os unia, entrega-lhe, como se fosse uma esmola para aquele falso mendi-
go, um outro anel, de ouro?".
A força daquele amor transparecia ainda através do episódio enganosa-
mente conhecido por "espada da castidade". Ao encontrar os amantes no
bosque dormindo com uma espada desembainhada entre eles, Marcos viu
nisso uma prova da inocência elo sobrinho e ela mulher. No entanto, a coloca-
çào da espada separando os dois corpos fora apenas circunstancial, em Bérou!
devido ao extremo cansaço de Tristão depois de horas de dura caçada, em
Gottfried ato proposital para iludir Marcos. Não havia no gesto nenhuma
intenção de castidade. Aliás, aquela foi a única noite em que eles não fizeram
amor, durante os dois anos vividos maritalmente na floresta">.
A espada, mais do que um símbolo de castidade, continuava a ser ali
um símbolo fálico, algo que corta, rasga, penetra. O instrumento que desvirgí-
nara Isolda tempos atrás. Algo que rompe, mas que pode dar vida, fecundar,
como a espada da alquimia, que opera a separaria eletnentorum e produz
então um novo corpo. Logo, ela não era naquele contexto sinal de afasta-
mento, mas, pelo contrário, simbolizava uma relação próxima, profunda. Era
algo que unia, como o filtro ou o anel. Por isso, ao encontrá-Ios, Marcos tro-
cou a espada do sobrinho pela sua, marcando dessa forma seu direito de posse
sobre lsolda, que efetivamente pouco depois retomava ao marido. E então
Tristào recuperou sua espada: desfeita a troca dos companheiros de Isolda,
pela lógica do simbolismo também devia ser desfeita a troca das espadas/v.
Significativamente, todos esses elementos simbólicos (revelação do sen-
tido do filtro, troca de anéis, espada entre os corpos) tiveram como pano de

69. Thomas, VV. 250, 273-2HIJ e \057.


7U. Chrét icn de Troycs, I.e Conte du GIY/{f!, v. 'S60. cd, F. l.ccoy, Paris, l lonoré Clunupion, 1979, vol. I.
p. 22. Sobre a conccpcào m[lgica (LI palavra, ver, supra, ensaio n. 'S.
71. Cr 'i, j,
77 Thomas, VV. 361-3HO.
7.:\. Idem, v. 619.
7/t. Idem, v.lH:lO.
75. Trista n ('I lseut, cd. l.ouis, p. H7.
76. tdem, 1'1'. H\i-103.
118
fundo a floresta de Morois. Esta era a imagem de um bosque sagrado celta,
com uma cruz na sua entrada a estabelecer o limite geográfico da cristianiza-
cão, como se tornara comum na Bretanha rural de fins do século xn». Naquela
mata os enamorados viveram maritalmente, da mesma forma que pela crença
celta a floresta, símbolo feminino, convivia com o Sol, a quem tinha sido dada
como esposa pelos druídas, Ora, como veremos, Trístão, enquanto hípóstase
de Cristo, é o próprio Sol, e Isolda, como representação da Virgem, e portanto
da Grande Mãe, é a própria natureza. Por isso aquele era o cenário privilegia-
do para que os símbolos examinados anteriomente se revelassem. Daí a sín-
tese de toda essa simbologia, que expressa a naturalidade da relação entre
Tristâo e Isolda, ser a bela imagem da aveleira e da madressilva: "Nós dois
somos como a madressilva quando se enrola ~l volta do ramo da aveleira: uma
vez a ela ligada e presa, arnbas podem, juntas, durar eternamente, mas, se as
querem separar, a madressilva morre em pouco tempo e o mesmo sucede à
aveleira". E Tristão conclui com a mais simples e mais tocante definição do
amor já dada pela literatura: "Bela amiga, tal é o nosso caso: nem vós sem
mim, nem eu sem vós!"7H.
O segundo grande conjunto simbólico de Tristão e Isolda estabelece a
dívínízação daquele amor através da identificação analógica dos personagens
com figuras divinas. Ainda que estas, na sua forma acabada, fossem forneci-
das pelo cristianismo, é o caráter arquetípico delas que prevalece. Ou seja,
por partirem da herança céltica, tais figuras satisfaziam ao espírito da reação
folclórica e, por terem seu significado básico presente também no cristianis-
mo, satisfaziam ao espírito clerical. Esse sincretismo religioso-simbólico teve
sua melhor expressão na roseira vermelha plantada no túrnulo de Isolda e na
videira no de Tristão?",
De fato, enquanto rosa, Isolda é representação da Virgem. Rosa, pois, é
o cálice que guardou o sangue de Cristo, portanto o primeiro e verdadeiro
Graal, o "vaso da eleição", o "cálice do rnundo'w. Cristianização, aliás, de uma
imagem antíqüíssírna, já que a mulher, como fonte de cujo bojo sai a vida,
sempre teve seu corpo comparado a um vaso. Sendo procríadora, a mulher,
e por conseguinte a rosa, era' símbolo de regeneração, daí na Antiguidade ser
colocada sobre túrnulos, e Hécate, deusa dos Infernos, ser coroada de rosas'".
Ora, a Virgem era a regeneradora por excelência, pois como instrumento da
encarnação de Deus possibilitara a redenção da humanidade. Ademais, ela

77. Béroul, v. 1883; 11. e L. Marin, "Croix ruralcs cr sacralísarion de l'cspacc", em Arcbiues de SCiel1(X,\'

socialcs eles religtons. 13, 1977,r. 38.


78. Muric de I-rance, Cbéorefeuillc. \'V. 68-78, r.135.
79. li-iS/{1I1 ct Iseut, cd. Louis, p. 167. Para Bédic:', essa narrativa da morte dos amantes provém de ver-
~iíc~ primitivas enquanto para l'aycn seria talvez arenas resultado de reconstruções CojJ. cit., r.
350), o que de qualquer forma nào altera " essência de nossa hipótese.
SIl. Evangelho de Bartolorncu. 11, 18 e 20, em I.os liu(/l1ge!ios /IjJ()CI'if()s. cd. A. Santos Otero, Madrid,
IIAC. 3. cd., I 979,r· 555.
SI. IJS)'l7lb, r. 82:5.
H9
inúmeras vezes triunfou das forças infernais, salvando almas e conquistando
assim a coroa de rosas. Entende-se, pois, que as rosáceas góticas que tinham
por centro o Sol representassem exatamente a Virgem com o Cristo no seu
interior. Na Rosa do Paraíso que Dante contempla e onde se localiza a corte
celestial, a figura principal é MariaH2.
É interessante notar que o símbolo da rosa ligava-se ainda a outro símbo-
lo vegetal, a oliveira, através de Atená, a deusa de olhos claros nascida em
Rodes, a ilha das Rosas, e a quem aquela árvore estava consagrada. Fato impor-
tante, essa deusa, como Maria, nascera de forma singular, pura, imaculada, e
apesar de ter sempre permanecido virgem teve um filho de outro deusH). Mas,
talvez por contraposição, enquanto Atená vinculava-se à guerra, nas tradições
judaico-cristãs a oliveira simbolizava a paz, e foi provavelmente em razão disso
que segundo um mito de grande sucesso no século XIII, a cruz de Cristo foi
feita de oliveira, além de cedro, cipreste e pinheiro'". Talvez também por isso
aquela árvore simbolizasse na Idade Média o ouro e o arnor'". Daí várias vezes
Tristão ter se comunicado ~IS escondidas com sua amada através de gravetos
de oliveira, encontrando-se depois com ela próximo àquela árvore'v. Na ver-
são de Béroul, mais primitiva, a planta daquele episódio é um pinheiro, liga-
do ao culto da deusa da fertilidade Cibele e de seu filho-amante Átis, que
morre e ressuscita periodicamente. Em suma, pelos seus olhos claros como
( os de Atená e por seu vínculo com a oliveira (ou o pinheiro), Isolda pôde ser
chamada de "deusa'?", e em função da identidade simbólica Cibele-Atená-
Maria pôde tornar-se igual a elas.
Sua relação com a vegetação reforçava sua proximidade com a Virgem,
cristianização da Grande Mãe, elemento central na religiosidade das sociedades
agrárias. Nesse sentido é que a Virgem é a terra da qual por sua pureza sairia
o Novo Homem, redimindo o antigo, conforme dissera Santo Agostinho: ·'A
verdade surgiu da terra porque Cristo nasceu da Virgem"HH. As raizes dessa
concepção encontravam-se na mitologia suméria, na qual um dos epítetos de
Ninhursag, "a mãe da terra", era Ninsikil-la, "a pura senhora", isto é, a virgerns".
Igualmente rnesopotâmico é o título de "rainha do céu" - atribuído a Ishtar,
a Mãe-Terra babilônica, por ela ser a esposa do deus do céu?" - que seria na
Idade Média um dos mais usados epítetos de Maria.

H2. Connnedia, Paraíso XXXI.


83. P. Grimal, nictionnatre de llIylho!ogie grecfjlle el romaino, Pari,. 1'1.I1',1(), ed.,1990. [1. 5H.
WI. l.egelld(/6H, [1. j()1;.J. Brossc, IHr/!Jo!ogie de» arbres, Paris. Plon.1989. pp. 310-317.
H5. W)mb, p. 699.
86. Gorrfricd, P[1. 279-2HO.
H7. Idem, p. 330.
8H. Serntones, lH9, 11,IJI., :lH, colo W06.
H9. E.O . j.uncs, Os t Ienses /I111~'50S, (trad.), l.isboa, Arcádin, 1966. p. 82.
<)0 . .f. L. Mackcnzic, Dicionário Biblico. (trad.), S~() Paulo, Paul inas 19fVi, [1. 771; S. 11. l lookc, Middle
Eastern Mvtbolog): l lnrrnondxworth, l'cnguin. 19H1. pp. 32-19.
150
É ilustrativo também que no cristianismo a Virgem seja a protetora das
prostitutas, que tradicionalmente eram as servas-sacerdotisas da Grande Deusa.
Ademais, reforçando a identificação, no século XIII vários textos construídos
com material mítico insistiam sobre o aspecto alímentador da Virgem Maria.
Na mesma linha, o processo de cristíanização do Ocidente fez com que uma
poderosa deusa céltica da fertilidade fosse substituída por Santa Brígida?",
cujos milagres estavam ligados reprodução de alimentos e ao verdejamen-
à

to de madeira já corrada-", isto é, ~IS forças da natureza. Foi num local de culto
a essa deusa-santa, superficialmente cristianizada, que o rei Marcos ergueu
uma capela dedícada ~l Virgern'", completando na órbita do mundo celta a
assimilação de Maria às Grandes Mães pré-cristãs.
Por tudo isso, o culto da Virgem teve terreno favorável entre os celtas,
que sempre haviam colocado o princípio feminino no mesmo plano do mascu-
lino. Em função disso, já se disse mesmo, com certo exagero, que nos seus
aspectos populares aquele culto é de origem celta?", É verdade que na Bretanha
a estatuáría representava com freqüência a Virgem, o Filho e Ana, tríade corres-
pondente ~IS Três Matronas gaulesas, coerentemente com as muitas hipóstases
celtas da Deusa-Mãe'". Exilado na Bretanha, Tristão recorda-se de Isolda e das
coisas ligadas a ela montando a chamada Sala das Imagens?», uma gruta que
decorou corri diversas estátuas, com as quais conversava e passava várias horas
por dia. A mais importante delas naturalmente era a de Isolda, representada
à semelhança das imagens de santas, com coroa, cetro e o anel que ela lhe
dera. Mais expressiva ainda era uma pequena cavidade na boca da escultura,
onde era colocado perfume que se espalhava por todo o ambiente, como se
fazia em algumas estátuas da Virgem?", lembrando que dela emanam "odores
de flores matutínas'v''.
Também a linguagem utilizada em relação a Isolda reforça essa idéia,
seguindo de perto os textos marianistas da época. A rainha da Cornualha,
como a rainha dos céus, é um "prodígio deste mundo"?". Mais ainda, ela "é
luminosa e brilhante, tão pura como o ouro da Arábia", por isso "quem con-
temple Isolda sentirá purificar-se tanto seu coração como seu espírito". Depois,
acentuando o paralelo, o mesmo poeta afirma que da é exer.iplo de humil-
dade e "a seu lado nenhuma mulher se vê humilhada eu diminuída em seu
valor, C01110 se poderia estar tentado a pensar". Na verdade Isokla, assim como

91. T. C. I'o",el\, Os Celtas, (rrad.), Lisboa, Verbo, ·1965, p. 122.


Y2. Lcgend«; 20j, pp. 902-903.
93. Y. Brckilicn, I.C/A~J'lbologie cettique, Vcrvicrs, Marabout, 1981, pp. 303-j(J.i.
91. Markaic, i.e Cbristianisnus celtique, pp. 231-232.
95. Idem, pp. 235-238.
96. Thomus, vv, 9;' 1-<)<)0.
':)7. Tristo n et lseut, cd. l.ouis, p. 156; F. Whilehcad. "I'hc l,ariy Trisran Pocrus", em H. S. l.oornis (cd.),
Artlnrria n l.itemture 11/ tbe Middie !1,~('s,Oxford, Clarendon, 1979, p. H3.
9H. l.cào Ivlagno: Sermo de Annunticuionc. XV, 2, P/" =)/1, col. '510.
99. Gortlricd, p. 2!J9.
151
Maria, apaga a mácula de Eva e redime a parte feminina da humanidade, pois
"sua beleza embeleza, adorna e cerca a todas as mulheres e a todo seu sexo"100.
Num expressivo jogo de palavras, Isolda, ao se despedir do amado, encomen-
da-o ~l rainha dos céus e ele responde: "eu a bendigo, rainha maravilhosa, e
invoco para isso todos os exércitos celesriais"'!".
Como a Virgem e suas correspondentes da mitologia céltíca, Isolda tam-
bém se destaca pelo seu poder terapêutico, fazendo verdadeiros milagres ao
salvar Tristão dos ferimentos envenenados que recebera na luta contra o
gigante irlandês e o dragão. Aliás, ele morre de uma ferida desse tipo, para
cuja cura mandara chamar Isolda. O mensageiro recebeu o prazo de quarenta
dias para ir da Bretanha, onde estava Tristão, até a Cornualha e voltar trazen-
do a rainha, pois "mais ninguém pode me curar além de Isolda, a loira. Só
ela, se o quiser, pode realizar esse milagre"llJ2 Prazo significativo, em função
do simbolismo do número 40, quase sempre expressando um teste, uma
provação. Esses tinham sido os dias do Dilúvio 105,os anos dos hebreus vagan-
do a caminho da Terra Prometidat'", os dias de Cristo no desertol''>. Esse foi
igualmente () número de dias que Tristão, no início de suas aventuras, pas-
sou no mar a caminho da Irlanda, buscando alívio para suas dores1oó. Os celtas
também acreditavam na eficácia mágica dos grupos de quarenta dias para
purificação e festas religiosastv'. Mas Tristão não superou aquele teste.
Duvidando várias vezes de que o socorro de Isolda chegasse, ele acreditou
no ardil ciumento de sua esposa, que lhe dera uma informação falsa, fazen-
do-o crer que o mensageiro fracassara em sua missão. Por isso Tristão mor-
reu. Morreu de desesperança, morreu por falta de fé naquela que poderia
"realizar esse milagre".
Por fim, Isokla é também a Virgem por ser a Loira. A concepção dualis-
ta que opunha Luz e Trevas esteve presente na religiosidade de inúmeras civi-
lizações, e também, como se sabe, no cristianismo, para o qual "Deus é luz,
nele não há trevas"10B Apesar de sempre presente na psicologia coletiva, tal
visão ganhou terreno entre a elite clerical ocidental apenas a partir do século
IX, graças ~l tradução latina da obra do pseudo Dioniso Areopagita. De fato,
as idéias deste sobre a hierarquia celeste permitiam analogias com a sociedade
humana, daí terem penetrado definitivamente na teologia e na espiritualidade
ocidentais na segunda metade do século XII e conhecido grande sucesso com

100. Idem, p. 17H.


101. h/C'I1I, p. 2H7.
102. Tristan et lseut, cd. l.ouis, p. 160.
103. Gn 7, Ij.
101. Iix 16, 35; Nm 11, 33; Dr 29.5.
]05. Mr i.;$; Me 1, 13; I.e 'i, 2.
106. Gorrfricd, p. 166.
107. Markulc, ojJ. cit., pp. 190-191.
lOH. 1.101,5.
152
as universidades, no século xnrw. Portanto no momento das mais importantes
literarizações do mito de Tristão.
Segundo tais idéias, a luz é fonte de toda perfeição, de forma que pela
irradiação da luz os corpos adquirem luz, tanto mais intensa e mais bela quan-
to mais próximos da fonte luminosa, Deus. Na literatura, a mais perfeita
expressão dessa concepção encontra-se em Dante, que depois das trevas do
Inferno, ao deparar finalmente com a Divindade, canta-a como "suma luz",
"luz que vives de teu próprio ardor'"!", É nesse contexto estético-espiritual
que se deve entender a insistência com que os poetas chamam lsolda de "a
loira". De fato, pela lei básica do simbolismo medieval, cada realidade mate-
rial expressa de forma imperfeita seu arquétipo espiritual: ela é tão loira e tão
bela por estar t~LOpróxima da Divindade.
Na mesma direção, podemos entender a vinha colocada no túmulo de
Tristão como elemento simbólico a identificá-Io com Cristo. Na realidade, a
associação de deuses e árvores era comum nas mitologias pré-cristãs, como
ocorria com Átis e o abeto, Osíris e o cedro, júpiter e a azinheira, Apelo e o
loureiro 1]] Mas a videira tinha clara preeminência, sendo identificada na
Mesopotâmia com a Árvore da Vida, daí o sinal sumério designativo de "vida"
ter sido originariamente uma folha daquela planta. Assim como a deusa
mesopotârnica Siduri, "a mulher do vinho", também a ninfa Calipso da mitolo-
gia grega estava ligada àquela bebida e podia por isso conceder ímortalí-
dade112. Da mesma forma, na tradição judaico-cristã a vinha ocupava papel
central, destacando-se das demais árvores, que lhe pediam: "Vem, e reina sobre
nós" 11:-1. Israel era "a vinha do Senhor Todo-Poderoso?"!". Com Cristo, a associa-
ção planta-divindade se transforma em identidade: "Eu sou a verdadeira vide.
Eu sou a videira e vós os ramos"!".
Ligava-se dessa maneira a figura de Cristo à de Dioniso, com o vinho
sendo considerado o sangue tanto do deus grego quanto o do Filho do Homem.
As duas divindades assemelhavam-se ainda por derramarem o próprio sangue
em benefício dos homens e por proporcionarem assim conhecimento dos mis-
térios da morte. Daí a vinha, antigo símbolo funerário, continuar a sê-lo no
cristianismott'i. Por isso o milagre de Caná é semelhante ao ocorrido no tem-
plo de Dioniso: a imagem existente sobre () cálice de Damasco mostra Cristo

109. G. Duby, l.es Trois ordrcs, pp. lltl-151; .I. l.c Goff, 1.(/ Cioilisatton de I 'Occident médtéual, Paris,
Arrhaud, 1967, p, 210,
110. Paraíso XXXIII, 67" 121.
«iI1l111C'di(/.

J 11. J.
E. Cirlor, Diccionario de Símbolos, Barcelona, Labor, -i.cd., 19H1, p. 77. Sobre essas associações,
veja-se sobretudo Brossc, op. cit, pp.110-152, 167-179.91-95,152-1")6.
112. M. Eliadc, 'tratado d« t ttstária elas Neligi(jes, (trad.) , Lisboa, COSI110S, 1977, pp. 311-315.
115. Jz 9, 12.
u-; Is 5. 7.
115. Jo 1"), t.s.
116. O.\)"IIlb, p. 1(1).
153
entronizado entre cachos de uvas, como aquele deus helênicol!". De forma
significativa, tal milagre ocorreu durante uma festa de casamento, isto é, na
comemoração propiciatória da Iecundidade de um novo casal. Em função da
embriaguez que provoca, () vinho, nas tradições serníticas, era símbolo de co-
nhecimento e de iniciaçâo '!", por isso não poderia faltar naquele momento.
Em razão disso, mesmo lembrando que "minha hora ainda não chegou'T'",
ou seja, a de demarrar seu sangue, o vinho do mundo, Cristo transformou a
água em vinho, água da vida.
Portanto o arquétipo Cristo, divindade que morre e ressuscita, estava
profundamente relacionado com as forças da natureza, da fecundídade. Da
mesma maneira que Osíris renasce todo ano nos cereaist-", Cristo o faz no
pão, pois Ele é o "pão da vida"121. Logo, por coerência com a lógica interna
do pensamento mítico, também Cristo deveria ser filho-amante da terra, isto
é, da Virgem. E a própria videira era um dos elementos dessa relação, já que,
segundo Eliade, primitivamente a Deusa-Mãe era chamada de "Deusa tronco
de vldeira'T". Ademais, há uma estreita ligação no pensamento místico entre
o leite materno e o vinhot-". Como as demais divindades que morrem e ressus-
citam, Cristo associava-se ao Sol pelo simbolismo do ressurgimento, da imor-
talidade e da luz. Sendo o Solo centro do céu, como o coração é o centro
do ser, e sendo o coração uma vinha segundo o texto bíblicot-+, os dois sím-
bolos fundiam-se em Cristo. Logo, duplo caráter do morrer e renascer, fazen-
do de Cristo uma divindade ctônico-celeste que na mitologia celta aparecia
sob a forma de uma tríade. Esses deuses eram o filho da aveleira, o filho do
arado, o filho do So1125.
Ora, Tristão encarnava aquela tríade, e assim () próprio Cristo. Ele mesmo,
como vimos, comparava-se a uma aveleira, árvore de claro significado sim-
bólico para celtas e germanos. De um lado, a aveleira expressava o desen-
volvimento da experiência mística, com a vara feita de sua madeira sendo
atributo druídíco e instrumento de feiticeiros, que a utilizavam para localizar
mananciais e minérios no ventre da Mãe-Terra. Estava assim ligada à fertili-
dade, e por tal motivo associada aos ritos nupciais. Por outro lado, enquanto
árvore no seu significado mais amplo, a aveleira evocava a verticalídade, a
ascensão para o céu. Lembrava o caráter cíclico da natureza, a morte e a rege-
neração periódicas. Ligando os três níveis, subterrâneo com as raizes, terrestre
com o tronco, celeste com a copa, toda árvore vincula-se ao simbolismo da

117. A. Romano de Sant'anna, () Canibalismo Amoroso. Sâo Paulo, Bruxilicnsc, "19H1, p. 27H.
118. m)'l1/b, [l.1016.
119. Jo 2, /1.
120. 11.lrankforr, Re)'s,l' Dioses, (trnd.), Madrid, Alíanza, 1'.18;;, p. 207.
J 21 . ./0 6, ;;5.
122. Eliadc, op. cit., p. 31J-i.
123. (;. Durand, 1.(/.1'tistntcturas Antropológicas de to III/(/gil1C11'io, (trad.), Madrid, Taurus, 198], p. 2!J8.
12/1. Ct 1, 6.
125. Powcll, ojJ. cit., p. 12'.1.
15/1
cruz. Orígenes via Cristo, por metonímia, tornado árvore do mundo, enquan-
to São Boaventura afirmava que "a cruz é uma árvore de perfeição; sacrali-
zada pelo sangue de Cristo, é farta de todos os frutos"126.
Tristão ligava-se ainda ao arado, instrumento de civilização, pelo episó-
dio da destruição do dragão127. Enquanto o simbolismo clerical procurava
identificar aquele monstro ao Diabo, as tradições folclóricas atribuíam-lhe um
caráter ambíguo, de forças incontroladas da natureza '>'. Isto é, a vitória sobre
ele representava a submissão daquelas forças, portanto um feito civilizacional,
coerente inclusive com o significado da videira, planta cultivada pelo homem
e que não se desenvolve bem espontaneamente. Reuniam-se assim nas ver-
sões literárias do mito duas vertentes do século XII. De um lado, na tradição
celta o arado participava do simbolismo do começo do mundo, com a relha
lembrando o falo ao penetrar a terra, ao abrir um sulco análogo ao órgão se-
xual feminino. De outro, na tradição cristã a madeira e o ferro com os quais
era feito o arado simbolizavam a união das duas naturezas de Cristol-".
Por fim Tristão, pela força, pela beleza, pelos cabelos loiros 150, vincula-
va-se ao Sol. Ao saber de sua morte, Isolda voltou-se para o Oriente, local do
ressurgimento diário do Sol, dirigindo seus lamentos diretamente ao amado,
como que a esperar que ele ali reaparecesse 1:$1.Por isso Marcos, ao encon-
trar os amantes dormindo na floresta, cobriu - com uma luva, insígnia de
poder, nas versões de Béroul e das Palies, com folhas e flores na de Gottfried
- um raio de sol que tocava o rosto de Isolda, iluminando-o e tornando-o
mais belo. O marido se interpunha dessa forma entre os apaixonados, corta-
va a luz que os aproximava, a mesma luz que no pensamento cristão unia
Cristo e Maria e na concepção celta o Sol e a t1oresta. Não por acaso, pouco
depois daquele episódio cessou o efeito do filtro mágico. Em síntese, a tríade
divina aveleira-arado-Sol estava presente simbolicamente tanto na cultura célti-
ca quanto na cristã. Por essa razão, ao se identificar com uma, automatica-
mente a imagem de Tristão se identificava com a outra, tornando possível afir-
mannos que ele era uma hípóstase de Cristo.
Na verdade, tal papel se revelara desde o nascimento, com sua mãe
Brancaflor sendo aproximada figura da Virgem. De um lado, por seu nome
à

denotar pureza, de outro por ela ser descrita - como era comum em apolo-
gias rnarianistas - como inspiradora de devoção, levando todos a terem "em
maior consideração as mulheres" graças àquele "prodígio terreno" 1.'12A analo-
gia com a descrição que se fazia de Isolda é clara e não deve causar estranhe-

126. Citado no HS)'II1iJ, p, j2j.


127. I.{{ l-olie dOsford, I'I'.IJH-IJIH; Gottfricd, pp. lSH-191.
12H. J. te Goff, "Culturc ccclésiastiquc ct culrurc folkloríquc ali Moycn Age: Saint Marccl de Paris ct I<.:
dragon", em /~'Ii1l/1,p. 2';1 c ss.
129. /JS)'IJ/b, p. 213.
130. 1.(/ f«,/ie de Berne, 1'. 2H3; Goufricd, I1p. 96 e 207.
131. Thomas, 1'1'. 30HO-jOH2.
132. Gottfricd, pp. 51-52.
155
za, pois um dos princípios básicos do simbolismo medieval era o silogismo
tipológico. Ou seja, da mesma forma que se via o Antigo Testamento prenun-
ciar o Novo, com cada personagem e cada fato deste tendo um modelo naque-
le, os pais de Tristão, pelas suas personalidades e pela sua relação, antecipa-
vam o caso de amor de Tristão e Isolda.
Seguindo o mesmo princípio simbólico, explicava-se a adoção do pequeno
príncipe órfão, Tristâo, por parte de um marechal do reino, como forma de
ocultar a verdadeira identidade do garoto, afastando-o dos inimigos de seu
pai, numa referência ao episódio bíblico de Herodes e do menino ]esus153.
Na primeira façanha do herói ocorre outra aproximação desse tipo. Ao enfrentar
o gigante irlandês Morholt, inimigo da Cornualha que exigia desse reino um
tributo em vidas humanas, Trístào cortou-lhe a cabeça, como Davi fizera a
Golias. Da mesma forma que o gigante filisteu desprezara seu oponente, jovem
loiro, de boa aparência e bom músico com a lira, o irlandês menosprezava o
rapaz brerão, que em tudo correspondia ~l descrição do vencedor de Goliaslj·".
Ora, pelo silogismo tipológico Jesus era descendente de Davins. Por fim, na
mesma linha, pouco antes de expirar, Tristão invoca o nome de Isolda nos
moldes em que Cristo fizera na cruz com () Pai.
No cruzamento dos dois eixos simbólicos anteriores, encontramos a idéia
central de nossa hipótese. Isto é, sendo aceitáveis as demonstrações quanto
ao caráter natural (e não social) daquele amor e quanto à ídentifícaçâo de
Tristão com Cristo e de Isolda com a Virgem, a conclusão se impõe por sua
própria lógica: a relação entre eles afigurava-se aos olhos da Idade Média
Central como uma hierogamia simbólica. Tal visão foi tornada novamente pos-
sível graças às condições psicológicas do século À'lI ocidental, favoráveis ao
reaparecimento daquele fenômeno presente na espiritualidade de longuíssi-
ma duração. Com efeito, em quase todas as cosmovísões pré-cristãs a hierogamia
estava nas origens do universo e das próprias divindades. Ela devia ser ri-
tualmente imitada para preservação da humanidade, pois era o gesto primor-
dial, o gesto gerador por excelência.
No Egito, o deus-criador Atum criou de si próprio o casal Sju e Tefnet
(ar e umidade), cujos filhos eram Geb e Nut (terra e céu), dos quais nasce-
ram os pares Osíris-Ísis e Set-Nefítis. É interessante observar que, enquanto
aquelas cinco primeiras divindades representavam uma cosmologia por
descreverem elementos primordiais e sua inter-relação implicar uma história
da criação, as quatro últimas estabeleciam uma ponte entre a natureza e a
humanicladetw. Por isso o filho de Osíris e de sua irmã Ísis era identificado
com o rei encarnado, Hórus, que na verdade se tornava rei ao ocupar o trono,
ou seja, ao se relacionar com Ísis, vista como o trono deificado. O sentido

1;)5. Í\\t 2, 'I-/i; Gortfricd, p. 75.


1Yi. lSm 17, ~-7.~2.51; 16, 17-23; Gortfricd, pp. H2-15K
135. Rm J, 3; 2 Tm 2, H.
136. J'rankfort, ojJ. cit., p. 20·;.
156
profundo da hierogamia se completava, então, com o fato de o rei morto
tornar-se Osíris, e seu filho ao assumir o trono converter-se numa nova mani-
festação de Hórus. Portanto, Ísis era a mãe-amante de Hórus e a esposa fiel
de OsírisU7, daí o hábito ritual de o faraó casar-se com a própria irmã.
Diferentemente, enquanto no Egito era um deus que fazia o papel de
rei no ato sexual, na Mesopotâmia o rei representava o papel de deus, usan-
do o epíteto que Tammuz adotava ("Grande Governante do Céu") quando de
sua relação com a Deusa-Mãe, Istharl58. Esse matrimônio sagrado ocorria na
festa do Ano Novo, destinada a redespertar a fecundídade da natureza ..Também
naquela civilização o arquétipo se repetia. A deusa-criadora Nammu deu luz à

Anu (céu) e Ninhursag (terra), que engendraram Enlil, que ao se unir à sua
mãe formou a vida vegetal e animal. A manutenção dessa vida dava-se através
de outra hierogamia, entre a Mãe-Terra e seu filho Tarnmuz, () jovem rei que
morria e ressuscitava para benefício dos homens ao agir sobre o ciclo da vege-
tação. O mesmo esquema existia na região sírio-palestina e sobreviveu por
muito tempo, mesmo depois da introdução do monoteísmo judaico. Sua pre-
sença é igualmente atestada nas culturas da Ásia Menor e da área egeu-
cretense 15'j. Ainda da mesma maneira, na concepção grega os deuses surgi-
ram da hierogamia entre o casal primordial, Gaia (terra) e Urano Ccéu)lltlJ.
Enraízadas portanto na mentalidade, na longuíssima duração, tais con-
cepções não poderiam deixar de estar presentes no cristianismo desde suas
origens. A Virgem, como sabemos, é a terra, o princípio feminino, que foi
fecundada pelo poder celeste, masculino, do Espírito Santo. Assim, Maria é
mãe-esposa de Deus, repetindo o protótipo hierogârnico pelo qual Deus quer
se renovar no mistério das núpcias celestes, como ocorria no caso egípcio.
Para tanto foi escolhida uma virgem, vaso puro para o futuro nascimento de
Deus. Contudo ela se afastava assim da humanidade, cuja característica é o
Pecado Original, ganhando então aspecto divino, estabelecendo-se a identida-
de entre Mãe e Filho atestada em diversas mitologias. Isto é, para gerar um
Deus do Deus, ela deveria ser pura como Ele. Nesse sentido, já nos séculos
III-IV um texto fala de como Cristo dirigiu-se a um monte (símbolo ele ascen-
S~lO mística), produziu uma mulher, tirando-a de seu próprio flanco, e uniu-
se carnalmente a ela. Ao fazê-lo, Ele era concebido como segundo Adão e
ela, alegoricamente, como a Igreja, sua esposa 1ft 1
Também entre os ceitas a renovação da fecunc.lidade, e por conseguinte
a manutenção do equilíbrio universal, dava-se através de um casamento sagra-
do, entre o deus Dagda e a deusa Morrigan 112. Assim, é natural que os persona-

137. ldent, pp. 165, 201 c 205.


]j8. Idem, p. 317.
139. jamcs, ojJ. cit., pp. 92-1 H.
110. l lcsíodo, ~'e()g()lli{/, VV. 126 c ss., rrad . .J. Torruno, São Paulo, Ohno-Kctupf. 1981, p, 1jj.
H I. .Jung, Aion. pp.192-19H.
Jlt2. Powcll, op. cit., p.120.
157
gens do mito tristânico revelassem () significado essencial da hierogamia, pre-
sente tanto na psicologia celta quanto na cristã. No seu triplo aspecto de filho
da aveleíra, do arado e do Sol, Trístão manifestava seu papel de esposo da
Mãe-Terra, penetrando-a com as raizes da árvore, símbolo fálíco por excelên-
cia, mordendo-a e rasgando-a com os dentes da charrua, aquecendo-a com seu
próprio calor. Era o Crísto-Tristão unindo-se ~l Virgern-Isolda. Foi como envia-
do de Marcos (Pai) que Tristão (analogicamente aí como Espírito Santo) tratou
do casamento de Isokla (tornada então potencialmente Mãe), transformando-
se ipsofacto em Filho, mas antes mesmo da própria concretízação formal dessa
condição (gerada pelo matrimônio Marcos-Isolda) fez-se Amante dela.
Contudo a união definitiva é posterior, quando, aniquilado Satanás, Cristo
pode enfim realizar as núpcias com sua esposa que, como a nova Jerusalém,
brilha com suas pedras preciosas incrustadas em ouro puro+», semelhante ao
anel que Isokla dera a Tnstão '+'. Destarte, simbolicamente os amantes da
Cornualha se ligavam como Deus à sua Cidade Santa. Aliás, quando um cava-
leiro amigo de Trístão entrou no quarto em que ele estava com Isolda, o local
lhe pareceu "reino celestial"!">. De fato, transformados em sua natureza pelo
amor, Tristão e Isolda se identificam definitivamente com seus modelos celestes
e irão realizar suas núpcias eternas no céu. É o que Tristão, fingindo-se de
louco, ou melhor, negando seu lado humano e social, revela diante de Marcos
e de toda a sua corte, ao dizer que iria viver com Isolda no céu, num palácio
"todo de vidro, magnífico e espaçoso. O Sol lá resplandece de todos os lados.
Ele flutua no céu, suspenso entre as nuvens, sem nenhum vento a sacudi-lo
ou agitá-lo. Ele tem um quarto feito de cristal e mármore. O Sol, na alvorada,
o iluminará completamente" IIJG.
Compreende-se dessa maneira por que () filtro os fez "se converterem
em um só ser unido'T'", de acordo com a concepção contemporânea da unia
mystica. Realmente, na segunda metade do século XII as experiências místi-
cas ocidentais estavam sendo sistematizadas pela primeira vez, partindo do
Cântico dos cânticos, interpretado como um diálogo entre Deus, identificado
a um amante, e a alma, apresentada como sua amada. Conforme essa visão,
o homem é a imagem do mundo por seu corpo e de Deus por sua alma, mas
este elemento divino ficara oculto por causa do Pecado Original. Deus, porém,
restaurou aquela semelhança através da Encarnação, e assim Maria tornou-se
um modelo para o cristão. Logo, a alma-esposa em busca de Deus deve procu-
rar assemelhar-se à Virgem e tornar-se mãe para dar nascimento ao espírito
divino 11R. Fusão total, portanto, entre amante e amada, como no mito tristâni-

H3. Ar 21,2.18.
H'Í. 1.(/ Folie de Berne, \'V. 528-5'Í2.
115. Gortfricd, r. 21H.
\'1'. 300-308; t.a t-olte de Bcrnc. \'1'. 166-169.
116. 1.(/ l-olie dOxford,
I~7. Cotrfricd, p. 235.
H8. A. Vauchcz, t.a Sptrit uahté <111 Moveu /Ige occidental, I'"ris, I'lJF, 1975, rp. 159-·160.
15H
co: "Isolda, minha amada, minha amiga, em vós minha morte, em vós minha
vida" 119. Por isso, na hora da partida de Tristão para o exílio, para a separa-
ção terrena, Isolda lembra ao amado que tinham formado um só coração e
que "assim continuará sendo eternamente, e durará pelos séculos dos sécu-
los". A união mística é completa, Isolda acrescenta, pois "somos um só corpo
e uma só vida ['..l Tristão e Isolda, vós e eu, ambos somos para a eternidade
um só ser, sem diferença alguma'">".
A antecipação dessa união celeste e eterna ocorreu na Gruta do Amor,
símbolo fundamental, representando a volta ~ISorigens, ao útero da Grande
Mãe, mas também um novo início enquanto gruta da Natividade de Cristo.
Antecipação que é uma regressão, ou melhor, uma re-atualizaçào do gesto
primordial que se projetava no futuro. A realização da dialética hierogârnica.
Um eterno retorno. Essa gruta é descrita na versão de Gottfried von Strassburg
como uma catedral gótica nos seus vários detalhes, tendo no centro, em vez
de um altar, uma cama "talhada em cristal com grande esplendor e pureza,
alta e larga, belamente construída"151 No mesmo local em que ocorre o misté-
rio do amor eucarístico ocorre o da eucaristia do amor. Com a união espiri-
tual e carnal, Tristão e Isolda tornavam-se a hóstia e o Graal, administrando-
se mutuamente o verdadeiro sacramento: "Levavam consigo, oculto sob suas
vestes, o melhor alimento que cabe encontrar no mundo'T'". E esse amor, na
vida e depois dela, é que sustenta os homens, por isso "sua vida e sua morte
são nosso pão. Assim vive sua vida, assim vive sua morte. Assim continuam
vivendo, ainda que tenham morrido. Sua morte é pão para os ViVOS"153.
Concluamos. Se o incesto é desejo de união com a essência de si próprio,
o incesto simbólico entre Tristào-Cristo e Isolda-Virgem é o encontro da essên-
cia divina no ser humano e do humano na Divindade, o que correspondía aos
anseies e necessidades profundas da espiritualídade do século XII. A melhor
expressão dessa realidade psíquica está sintetizada numa fórmula do próprio
mito. Nela se reflete não apenas a condição amorosa no plano humano, de
companheirismo e atração sexual, mas também no plano celeste, fonte e obje-
to de amor. Mais que isso, espelha a díalética do amor profano e do amor
sagrado. Sacraliza novamente a sexualidade, resgatando sua beleza e pureza.
Despindo-a de sua roupagem de lado menor da afetividade. "Ne VlfS satiz tnei,
tte tnei SCl7lZ VIlS."

119. Gottfricd, p. yíl.


ISO. Idem, pp. 31'5-;016.
151. Idem, pp. 317-318.
152. Idem, p. 319.
153. Irk-ni. p. 'i'i.
VALTÁRIO E ROLANDO
DO HERÓI PAGÃO
AO HERÓI CRISTÃO

o mais ambíguo e talvez mais importante tipo de personagem mítica é


o herói, espécie de super-homem, de intermediário entre o mundo terreno e
o mundo divino no qual cada civilização projeta seus sonhos, fazendo dele
uma espécie de síntese idealizada da sociedade. Ele frequentemente está na
própria origem da vida social, na passagem do estado natural para o estado
cultural, e "deste ponto de vista não existe sociedade sem herói'". Este é um
ser glorioso, lembrado pelas gerações futuras devido a seus feitos e sobretu-
do à maneira pela qual os realizou. O herói é caracterizado pela nobreza de
espírito, por uma enorme energia vital, pela ação criadora, pela generosidade
para com sua comunidade. Por tudo isso, "herói" é etimologicamente "prote-
tor". Porém, para poder realizar suas façanhas, antes de tudo ele precisou per-
correr um longo caminho de auto-aperfeiçoamento. Nas palavras de joseph
Carnpbell, "herói é o homem que conseguiu a submissão de si próprio'<. Para
PIa tão é símbolo da alma imortal''.
Assim, o tipo heróico por excelência do cristianismo é o santo. [obre
de espírito, ele intercede junto a Deus pelos outros homens; por isso na Alta
Idade Média ele é nobre de sangue, existindo verdadeiras dinastias de santos.
Dono de extraordinária energia, ele suporta martírios brutais, supera dificul-

1. U. J'abicrri, "Rcligioni", em 1:'lIcic!ojx'dia!:últllldi, Turim, Einaudi, '19H2, 1'01.15, p. 538.


2. j. Campbcll, 'lbe 1/1'1'0 toitb (/ Tbousand Faces, Princcron, I'lll', 2.ed., 196H, p, 16. Em outra obra-
() Poder fio Milo, (trad.), S,10 Paulo, I'alas Arena, 1990, p. "[31 - o mesmo autor define herói como
"aiguélll que deu a própria vida por algo maior que de mesmo",
3. Plariio, Me17017, H1c, rrud. A. Croiscr, Oeuores completes; I"lris, Belles l.ettres,1972, 1'01. 111-2,p. 250.
160
dades inimagináveis para homens comuns. Criador como o Deus que ele repre-
senta na Terra, o santo é fundador de cidades, de mosteiros, de hospitais, de
zonas cultiváveis. Generoso, ele vive em função dos outros, dando-se, sacrifi-
cando-se, mesmo que várias vezes seu martírio aparentemente objetive ape-
nas sua própria salvação. Como a santidade era portanto um conjunto de traços
de caráter, teoricamente pouco importava que o santo fosse eremita ou rei,
bispo ou guerreiro, homem ou mulher, clérigo ou leigo.
Eles eram verdadeiros "magos brancos":' a quem se recorria cotidiana-
mente. Sendo uma sociedade agrícola, a cristã medieval preocupava-se natural-
mente com fenômenos essenciais para sua sobrevivência, como a chuva, a
fertilidade da terra, a presença de animais selvagens ete. Sem recursos técni-
cos para dominar a natureza, tanto a cultura clerical quanto a laica voltavam-
se para o mundo supra-humano. Se Burchard de Worms condenava o rito fol-
clórico propiciatório de chuva, que consistia numa procissão de mulheres
encabeça da por uma virgem nua que colhia determinada erva e levava-a a um
rio>, é porqufi"exlfi{ia_Jl<l--Htttrgia oficial missas destinadas a atrair chuvas. Para
qualquer objetivo podia-se recorrer aos santos, como S~lOMarcial e São Medrado
para obter chuva, Santa Bárbara contra tempestades e raios, São Cornélio para
proteger os bois, São Gall, as galinhas e Santo Antônio, os porcos.
Eram milhares de santos substituindo o politeísmo pagão, cada um poden-
do ser invocado para momentos específicos da vida cotidiana. Eles eram 25
mil no século Xc" pois os próprios fiéis santificavam indivíduos que tivessem
realizado algo importante para a comunidade, fatos geralmente interpretados
como de origem sobrenatural. Essa prática de transformar "quaisquer mortos
em santos" já era denunciada em meados do século VIII por uma capitular
carolíngía", porém apenas em princípios do século XI aparece o termo "cano-
nízacão", referindo-se à inclusão oficial de um santo no cânone da missa. Um
século depois, pela primeira vez o Papa do recolhia testemunhos sobre a vida
de um santo antes de canonizá-lo, e apenas com a dogmatízacão e monar-
quização da Igreja no século XIII é que o Pontificado passou a dominar com-
pletamente o processos.
Contudo a evangelízação ocidental na Alta Idade Média não deixara de
ser um choque cultural, daí o tema comum da prova de força entre um santo
do Deus cristão e um mago ou um sacerdote das religiões tradicionais. Ou

1. 1'. Cardini, M(/gi({, SIregolle/'ÍCI. Superstizioni nell'Occidente Medieoah), Florença, I.a Nuova ltalia,
1979, pp. 150-151.
S. Decret unt, XIX,S. P/., 110, col. 976.
6. IL S. l.opcz, O Nascimento da /!IITOJI(I, (trad.), Lisboa, Cosmos, '1965, p. 201.
7. Karlonurni Principis Capitulare Liptinense, cd. A. Borctius, MGII Capit nlnria Rcgtnn I'mnco/'UIII,
p. 26, citado por Cardini, OJ1. cit., p. 197.
8. M. Goodich, Vi/a Perfecta. 'lbe Ideal (!/ Sctintbood in tbe Tbtrteentb C(111111)',Stutrgart, Anton
l Iicrscmann, '\982, rp. 21-28. A normarízação e controle eclesiástico sobre a canonização não
impediram contudo o aparecimento de novos santos populares, como mostra o caso do cachorro
santo magnificamcnrc estudado por J.-c. Schmitt, I.e Saitu léorier, Paris, l-lammarion, 1979.
161
mesmo, variante paroxístíca do processo, um mago que se torna santo". Ainda
em meados do século XIII, a Legenda Aurea precisava citar vários exemplos
dessas vitórias sobre o paganismo e as forças folclóricas!''. Mas, de forma geral,
até princípios do século XI os santos encontravam-se predominantemente no
âmbito de uma religiosidade profunda, socialmente indiferenciada. Como
Oronzo Giordano observou com razão, nas conversões "a nova profissão de
fé não vinha geralmente substituir, mas sobrepor-se a um bacleground de reli-
giosidade: havia atitudes espirituais enraízadas, sedimentos profundos de uma
interioridade índetenninada, sobrevivências indestrutíveis de práticas e de'
crenças que continuavam informando e condicíonando, inclusive sem o indiví-
duo sabê-lo, sua nova profissão religiosa" 11.
No entanto, as transformações relacionadas com a "revolução feudal"
criaram uma espírítualídade monástica ligada ú prece e liturgia, como for- à

mas de combate ao corpo e ao material, expressão do "desprezo ao mundo".


Essa religiosidade difundiu-se na elite eclesiástica, gerando uma "depreciação
profunda e durável do estado laico"12 que esteve nas bases da Reforma
Gregoriana e sua clara diferenciação entre clérigos e leigos. Nessa nova
sociedade dual e dualísta, a Igreja gregoriana via apenas duas possíblídades
de salvação para o estrato leigo. Ambas significavam uma repressão dos instin-
tos naturais: a sexualidade deveria ser ou sublimada ou controlada graças à
sua colocação nos quadros do matrimônio cristão, tornado um sacramento; a
violência deveria ser canalizada para o combate aos nâos-cristãos e aos maus
cristãos, isto é, para a Guerra Santa. Respeitados esses valores, surgia um novo
tipo de herói. Indivíduo-modelo para o conjunto da sociedade cristã medieval,
modelo importante, pois "naquela sociedade menos organizada que a nossa,
a ação direta dos homens contava muito mais do que as instituições" 1:1.
Tal herói antes de tudo era cristão, diferenciando-se dos heróis pagãos
pela crença e pelo respeito às idéias centrais do cristianismo, a serviço do qual
se colocava. Ele era leigo, não se confundia com os muitos monges e bispos
que faziam da santidade clerical o modelo básico do heroísmo cristão. Mais
ainda, apesar de possuir características de santo (como Percival ou Galaad!")
e, mesmo, de ser às vezes objeto de certo culto (como Cid15), ele não era san-
tificado. Basicamente guerreiro, era inimigo de infiéis, pagãos e hereges. Por
fim, as tradições orais sobre ele foram a partir de certo momento fortemente

9. Cardini, ojJ. cit., p. 151.


10. Legenda, Cars. -1;ll, 1;12, 3; 23, /t; -16,13; 81, 2; 98; 99,1; HO; 159, 2.
11. O. Giordano, Religíosidad Popular en la /"/(1 Iidacl Media, (rrad.), Madrid, Credos, 1983, r. 21.
12. A. Vauchcz, 1.0 Spirituatné <111M(~l'en Age occidental (Vllle_Xlle siéclcs), Paris, PU!', 1975, p. 53.
13. 11. Platcllc. "l.e Problcmc du scandalc. l.cs Nouvcllcs modos masculinos aux XJl" cr Xll" sicclcs",
RH/>/I, 5), 1975, rr. 1079.
H. l.a Queste dei Saint Grartl, ed. A. Puuphílcr, Paris, l lonoré Champion, 1980.
15. C. Smirh, "Thc Diffusion ofthc Cid Cult: A Survcy and a Littlcknown J)oculllent",.!o/lnl([! ojiHedieu(//
t tistorv, 6,1980, pp. 37-60.
162
clericalizadas (como certos heróis do ciclo arturiano). Ao lado desse novo he-
rói cristão surgido a partir de fins do século XI, a Idade Média ocidental conhe-
cia ainda o herói pagão, mais ou menos cristianizado conforme os casos e as
épocas. O herói antigo (como Alexandre) ou germânico (caso de Siegfríed)
continuava presente em certas obras artísticas e literárias. O herói celta reapa-
recia com força na "reação folclórica" dos séculos XII-XIII (como Artur e Tristão),
Para tentar uma comparação entre o herói pagão e o herói cristão na
Idade Média, examinaremos dois relatos orais depois literarizados, Waltharíus 16,
na segunda metade do século x, e Ia Cbanson de Rolandí", por volta de 1100.
O primeiro escrito em latim, o outro em francês, ambos de autores desconhe-
cidos. O primeiro deles faz empréstimos a Virgílio e Prudênciot", cita Homerol?
e refere-se a vários elementos da mitologia pagã clássica-v, talvez devido às
obras existentes no seu local de trabalho, uma biblioteca monástica anterior-
mente influenciada pela Renascença carolíngia e na época da elaboração do
Waltharills pelo Renascimento otônida-I. O autor de Ia Cbanson de Roland,
por sua vez, ainda que escrevendo em vernáculo, toma vários elementos de
empréstimo ao latim, possivelmente através de seu conhecimento de Virgílio
e da cultura clerícal medíeval ".
No plano político, é interessante ver como o primeiro autor pensa na
Europa apenas como uma realidade geográfica, na qual coexistem vários povos,
vários idiomas, vários costumes, várias religiões23, enquanto na gesta france-
sa aparece o conceito de Cristandade-", ou seja, de os territórios ocidentais
constituírem uma comunidade. Valtário, no exílio, sonha em abandonar a

16. Wal/barius. cd, K. Strcckcr, MGII. Poetae t.atini Medii /leui, Weimar, l lcrmann Bohlaus Nachfolgcr,
1951, vol. VI, p.I-H5; citamos pela tradução de L. A. de Cucnca, Madrid, Siruela,19H7.
17. La Cbanson de Roland, cd . .J. lscdicr, l'aris, Piazza, 71. cd. 192H. A duração e a autoria desse texto
suscitaram muitos debates e uma abundante bibliografia, na qual se destacam ainda os clássicos,
de ínrcrprcraçõcs opostas,.J. Bédicr, l.e: h{qendes éjJiques: Recbercbes sur laformaticm eles cban-
SOl!Sde geste, (1 vols.), Paris, l Ionoró Champion, 1913 e 1(, Mcnéndcz Pidal, l.a Ch(//IS(1Il de No/anel
y cl Neotradicionalismo, Madrid, Espasa-Calpc. 1959.
1H. M. l Iclin, l.a t.ütércuure [atine (/11 M0.l'en /lge, Paris, PUI', 1972, p, 33.
19. \f'alibarius, p. 28.
20. idem, pp, 13, 15, 17, 21, 23, 30, 33, 35, 38, 10, 13, 15, 17, 19, 50-51 e 51. Talvez por isso ll. F.
l luppc, "Thc Conccpt 01'thc Ilero in rhe Eariy Middle Ages", em N.T. Burns e C. J Rcagan (cds.),
COllu1JIS 11/ tbe Ilero in tbe Middle /Iges and tbe kcnaissancc; Albany, State Univcrsity of thc New
York I'r<:ss, 1975, p. 1, tenha considerado Wa[/harius "um exercício acadêmico qu<: n.io pode scri-
amcntc ser considerado lima obra de arte", Naturalmente essa apreciação, alíás injusta, não afeta
o valor do texto enquanto fonte para o historiador da mitologia medieval.
2"1. Não nos interessa aqui seguir os longos e eruditos debates sobres a autoria daquelas obras: regis-
tre-se apenas a grande possibilidade do Wa//hal'ills ter sido escrito por I,kkhard (910-973), ou por
algum outro 1110ngc do mosteiro suíço de Saint-Gall.
22. E.1<. Curtius, Literatura liuropea y lidtul Media I.atina, trad., (2 vols.), México, l'ondo de Cultura
Econômica, 1975, \'01. I, pp. 5H-59, e vol, li, pp. 519 e 629.
23. p. 3.
Waflbarius,
21. 1.(/Cbanson de Roland, v. 1129.
163
"odiosa terra" dos hunos-" para retomar "doce pátria"2(;; nascido aquitano,
à

ele não tem outros povos em alta conta, mas refere-se a eles comedidamente:
os francos são chamados apenas de "fanfarrões", os saxões de "gozadores'<".
Ou seja, o sentimento nacional que acompanhava a feudalização estava, como
esta, na sua fase de gestação-s. De seu lado, se o poeta de Rolando pensa em
termos de Cristandade, ele vive a realidade cotidiana da "doce Prança'<", naque-
le momento mais uma entidade espiritual do que político-territorial, Talvez
por isso suas opiniões são mais radicais: para ele os francos são o povo eleito
de Deus)!), sua terra é a "santa França">'.
O mundo econômico revelado pelos dois textos é o mundo nobiliárquico,
de riquezas obtidas através de tributos, saques e butinsõ", mundo de mentali-
dade perdulária, expressa pela prática socioeconômica do dom e do con-
tradom'r'. Essa era a forma de realizar certa redístríbuíção social da riqueza, e
ao mesmo tempo ritos propiciatórios para que os poderes extra-humanos
favorecessem a comunidade. A quebra desse equilíbrio delicado era proble-
mática, daí o longo lamento do poeta de 1Valtharius sobre a excessiva e injusti-
ficada cobiça dos francos em relação ao tesouro trazido da terra dos hunos
pelo herói: "Insaciável apetite de possuir, abismo da avareza, entranha de
todos os males! l...] Quanto mais têern, mais os consome a ânsia de possuir='.
As novidades que ocorriam no século XI no plano econômico não aparecem
na história de Rolando, seja pela fidelidade do poera às suas fontes orais, ante-
riores àquelas novidades, seja pelo caráter arcaizante próprio àquele gênero
literário.
Quanto aos aspectos sociais, além da óbvia diferença da fidelidade vassáli-
ca, mais importante e explícita no caso de La Cbansoii de Roland, chama a
atenção o papel da mulher. Naquele texto de uma época crescentemente cleri-
calizada e portanto misógina, há apenas uma referência ~IS "gentis esposas=>
e outra às mães e esposasw, isto é, às mulheres que desempenhavam os papéis

25. wattbortns, pp. 15-17.


26. Idem, P- 6.
27. ldcnt, pp, 22 e 36.
28. l.opcz, O}}. cit., p. 96-97; K. \'(Ierner, "l.cs Narions ct lc scnrimcnt national duns l'Europc médiéval",
Reuue bistoriqtte, 9/1, 1970, rI'. 285-30'i.
29. J.a Cbanson cle Roland, \'\'.16, 109, 116, 360, 573, 702, 706-707,10'51,1061, 119'Í,121O, 1223, 1861,
1927,1985,2017,2379,2131,2579,2661,2773 e 3579.
30. Idem. VV. 3360-3368, 1'1'. 278-280; cf. também a contemporânea Gest« IJei pcr Francos, escrita ror
volta de '11O.j por Guibcrt de Nogent: Recucll eles btstortcns eles crotsades: I tistoriens occidentaux,
Farnborough, C;regg Prcss, 1967, \'01. IV, pp. 115-263.
ll.ldelll,v.2311.
32. !Va!/barills, pp. 5-7, 11-12, 15, 17, 19-20, 23-26. 28, 31, 15-'16; ia Chanson de ltoland, vv. 30-33,
75-76,91, lOO, 385, 398-399, 515. 518, 602, 620-621, 629, 637-638. 651-652,1167 e 2'178.
33. G. Duby, Guerriers e/ puvsans, Paris, Gullimard, 1973, pp. 60-69 c 260-262.
3·1. Waltbarills, p. 33.
35. I.a Cbll11S011de f(o!tll1d, v. 821.
36. Idem, v.I;'02.
sociais que a Igreja lhes reservava. O grande modelo naturalmente era a Virgem,
cujo culto começava a se desenvolver no Ocidente e deixava reflexos na
gesta . No caso de desaparecimento
57 do homem designado para seu esposo,
tudo o que restava ~l mulher - ao menos, idealmente, para o clero - era
morrer, como ocorre com Alda ao saber do falecimento de Rolando'?'. Por
outro lado, em Waltharius a mulher é herdeira do pai, custódia tesouros, acon-
selha o marido, vela pelo sono do amado, cuida de suas feridas39. Por tudo
isso, o próprio herói fala em "prazeres doméstícos'"" e não dissimula como
Rolando seus sentimentos: ele ama Hildegunda e por isso a respeita sexualmen-
te antes do casamento- 1.
Percebe-se, pelo comportamento dos dois heróis, que tanto no plano
cultural quanto no religioso passava-se aos poucos de uma postura mais flexí-
vel e tolerante para outra, maniqueísta. Por exemplo, no primeiro daqueles
textos os hunos S~IO vistos com olhos favoráveis, e o próprio Átila é conside-
rado "benévolo'V, o que não deixa de surpreender num momento em que as
Invasões magiares no Ocidente europeu ainda eram uma lembrança recente.
Apesar de ter sido refém dos hunos durante anos, em nenhum momento
Valtário tentou cristianizá-los ou adjetivou-os negativamente, como Rolando
faz com freqüência com os "pagãos" muçulmanos, que "estão no erro, os
cristãos no direito"ó3. A pretensão de cristíanízá-Ios é constante não importa
que pela força, com cem mil deles recebendo o batismo após Carlos Magno
conquistar Saragoça. Apenas a rainha dos inimigos não se tornou cristã naque-
la oportunidade, pois o imperador quis levá-Ia para a França a fim de instruí-
Ia no cristianismo. A exceção chama a atenção do próprio poeta, que obser-
va que Carlos Magno "quer que ela se converta por amor":".
Na verdade, o papel dos clérigos não era tanto de promover conversões
interiores, mas pela força, de acordo com a concepção vétero-testamentária que
então se tinha de Deus, "senhor dos exércitos". Por isso um dos melhores com-
panheiros de Rolando nas batalhas era o arcebispo Turpin, que realizou mais
proezas na guerra do que o número de missas rezada por qualquer clérígo ».
Os muitos bispos, abades, monges, cônegos e padres tonsurados - o poeta
insiste nisso num momento em que tudo é importante para delinear melhor a

37. Idem, \'V. 1173, 2305 c: 293H.


3H. Idem, vv. 371 H-372 I.
59. veattbmtus, pp. '5, 7-R, 'Í'5 e 53.
10. Idem, p. 9.
'Í1. ldent, pp. 12 e lH.
12. Idem, pp. 6-7.
-13. 1.(1CbanS()11 de koland, V\'. Hf15, 1212,3359 e 3367.
/rIJ. Idem, v. 3571. A preocupação com a cvangclízaçào aparece ainda nos versos 38, 101-102, 155,
131, 171, 3596-359R c: 397'5-39H7. Naturalmente a prática da conversão pela força era do Carlos
Magno histórico, mas o fracasso dessa política, c aliás a impossibilidade de aplicá-Ia ao longo cios
séculos IX c: X, provocara" relativa tolerância daquela época.
1\5. Idem, vv. 1606-1607.
165 •
fronteira clérigo-leigo - que acompanham o exército, absolvem e benzem os
mortos-v. A fonte desse poder não devia ser contestada - como faziam algu-
mas heresias em torno do ano rnílt? -, pois Deus os "havia colocado entre os
homens em Seu nome"'Í8. O fato de Carlos Magno também absolver e benzer"?
não quebrava aquele monopólio do sagrado possuído pelo clero, já que o rei,
por sua arcaica sacralídade, renovada pela unção cristã, tinha um caráter "quase
sacerdotal'w. Em contrapartída, apesar de escrito por um monge, Waltharills
faz uma única referência eclesiástica, uma citação da hora litúrgica>'.
Já os elementos provenientes da cultura popular aparecem ali em maior
número, sem que o autor monástico tenha querido (público a que se destina-
va o texto?) ou podido (processo inconsciente? pressão laicar) cristianizá-la
profundamente. Por exemplo, Valtário, após matar seus oponentes, corta-Ines
a cabeça 52, não como decorrência de um golpe dado na luta como faz Rolando o,
mas como um ritual destinado a absorver a força vital do degolado. Força que
estava não apenas na cabeça em si mas ainda no cabelo, símbolo também de
virilidade e poder, como mostram o mito de Sansão e os costumes das realezas
merovíngia e célticav'. Por isso Valtário sentiu-se ofendido quando um inimi-
go, durante a luta, arrancou-lhe com a espada duas mechas de cabelo ».
Portanto, hábitos pré-cristãos e que contrastavam com a piedade pregada e a
tonsura usada pelos clérigos. Ainda pré-cristão é o fato de o herói usar uma
armadura feita por Wielancl)(Í, o mítico ferreiro germâníco.
No que diz respeito religiosidade oficial, há um certo esforço de adequa-
à

ção do texto a ela, mas denotando resistências. Se explicitamente Deus é que


rege todos os acontecirnentos'", bem de acordo com a visão teológica, no
momento crucial da narrativa é a Fortuna que é invocada três vezesv'. Ou seja,
a deusa clássica que, independentemente de padrões morais de comporta-

'16. Idem, 1'\'. 2955-2957.


'17. J. Musy, "Mouvcmcnts populaircs ct hércsics .ru XI" sicclc", Recue l listorique, 99, 1975, rr. ;53-
76.
I;H. l.a O){tl/SOII de J<OI(//ld, v. 22;5H.
'i9. ldcnt, VV. ;5ItO e 3066.
50. M.Bloch, Les Rois /bal//l/a/l/Iges, Paris, Annand Colin, 1961, p, 186.
51. waltbartus, r. 51.
52. Idem, rp. 2H, 29, ;55, 36, 37 e ;59.
53. t.a 01(//1.1'011 de Roland, v. 190'i.
S~. Jz 16,17; 1J.~:)'llIb, p. 235; J. Iloyoux, "Reges Criuit i: Chcvclurcs, Tonsurcs cr Scalps chcz lcs
Mérovingicns", NHf'/I, 26, 1918, rI'. 179-508; A. Cumcron, "l low Did rhc Mcrovingian Kings \Xiear
Thcir l Iair?", NRI'/I, 1t3, 1965, rI'. 1203-1216. Em função desse significado simbólico do cabelo é
que entre O~ cclras seu primeiro corre, na adolescência, era rirualizado, como mostra o Ma!Jil1ogioll.

trad. M. V. Cirlot, Madrid, Nacional, 19H2, pp. Hl5 e 190.


55. Wa//!wril/s, pr. 37-3H. Na mesma linha, para punir o traidor Guncion, arranca-se-lhe a barba e o
bigode: 1.0 Cbanson de Roland, v. lH23.
56. Idem, p. ":57.
57. Idem, p, /11.

5H. tdent, pp. 17, 50 e 51.


:66
mento, altera constantemente o destino dos indivíduos. Tema forte, enraiza-
do psicologicamente, e que fez a Roda da Fortuna aparecer ao longo de toda
a Idade Média na arte e na Iíterarura>v. Aliás, a própria referência ao Deus
cristão é usada parcímoníosarnente pelo autor de Waltbarius, apenas nove
vezes em todo o poema':". Isso contra 98 aparições da palavra em La Cbattson
de Rolatid 61. Portanto, no primeiro caso, surgindo em pouco mais de 0,6%
dos 1456 versos; no segundo caso, em quase 2,5% dos 4002 versos. Logo,
Deus é lembrado cinco vezes mais na obra de um leigo do século XI do que
na de um monge do século x.
Além disso, em Waltharius praticamente não há outras referências que
de forma clara se possam ligar religiosidade oficial. O herói reza apenas uma
à

vez, diante dos corpos dos inimigos que acabara de matar e voltado para
Oríentev-, o que poderia estar relacionado com o antiqüíssimo culto ao Sol,
C0111 seu sentido de renovação, de morte e ressurreição diárias. Elementos
obviamente presentes também no cristianismo, de forma que fica difícil saber
o sentido real daquela passagem da narrativa. Ou melhor, seu sentido parece
estar exatamente na ambivalência, revelando a proximidade entre as religio-
sidades oficial e popular naquela época. Diferentemente de La Cbanson de
Roland, em que diversos dados apontam a importância da religiosidade eclesiás-
tica para o meio e o momento em que o poema foi literarizado. Importância
que cresce se lembrarmos que, como tudo indica, o autor daquela versão foi
um leigoG5.
Ali fala-se de míssav', de absolvíção'ó, de confíssão'v, do aparecimento
de anjos a Carlos MagnoG7, de intervenções de São Miguel(,8 e do arcanjo
Gabrielw, de juramento sobre relíquias?". Rolando, segundo a visão que feudali-
zava a religião, estende sua luva para Deus?", tornando-se vassalo do verda-

59. J. 1.<:Coff, 1.(/ Ciuilisation de lOccident ntédiéual, Paris, Arthaud, 1967, p. 211.
60. Wall/Jr{/'ills, pp, 3, 7, 22, 23, 2~, 1j1 (três vezes) c 55.
61. I.a 0)(111.1'0/1 de Rolancl, 1'1'. 123, 137, 15~, 289, 339, 358, 1]20, !t28, 535, 676, 698, 7] 6, 788, Si O, 888,
J015, 1062, 107:), 1089, 1137, 1177, ]183, 1196, 1259, ]3]6, 1'173, 1516, 1511, 1579, ]632, ]689,
1733,1837,1819, 185!t, 1865, 1898,2006,2016,2096,2183,2296,2338,2241, 22!J5, 2253, 2261,
2j19, 23j7, 2j65, 2j7j, 2j83, 2389, 239j, 2j97, 2112, 2!J29, 2139, 2119, 2155, 2'158, 2180, 2505,
2518,2526,2568, 28!t7, 2887, 2933, 2998, 301j, 3099, 3165, 32!t7, 3261, 3277, 39'58, 3368, 3139,
3'538,3597,3609,3625,3638,3657,3666, 369!J, 3718, 3768, 3891, 3898, 3906, 3923, 3931, :\980,
3993 c !tooo.
62. \Valll)({ril.l.l', p. 1'..
63. Mcnéndcz I'idal, op, cit., pp. 129-130.
6!J. I.{/ Cbanson de Rolancl, V\'. 161, 670 c :\860.
65. Idem, V\'. 31'0, 1133 c 3859.
66. ldeni, \'1'. 2011, 2239, 2361 c 3859.
67. idem, VI'. 2152 c 2568.
68. Idem, v. 2391.
69. Idem, \'1'. 2262, 2390, 2526, 2817, 3610 c 3993.
70. Idem, v. 607.
7 J. Idem, VI'. 2365, 2373 c 2389.
i67
deiro Senhor. Assim, há uma ambigüidade proposital quando ele diz que "por
seu senhor deve-se sofrer grandes males e suportar os grandes calores e os
grandes frios, e deve-se perder sangue e carne'?". De um lado seu senhor é
Carlos Magno, que lhe entrega riquezas e terras. De outro é Deus, que lhe dá
um feudo no Paraíso em troca de sua morte na luta contra os Infiéis?". Mas a
dualídade é falsa, pois Carlos Magno aparece no poema como uma figura
sagrada, que fala com anjos, que é ajudado por eles em batalha, que como o
josué bíblico é beneficiado pelo milagre de () sol interromper seu curso para
poder liquidar os inimigos?". Recorrendo a uma imagem que a religiosidade
oficial sempre utilizou para mostrar a superioridade de seu Deus sobre os
demais, o poeta conta que os pagãos invocaram uma de suas divindades para
escapar de Carlos Magno, mas continuaram desprotegídos e muitos morreram">.
A comunhão, porém, aparece apenas uma vezl», o que é compreensí-
vel numa época em que o hábito de os leigos comungarem estava em desu-
so havia muitos séculos e em que a administração da Eucaristia sofria.mudanças?",
Um aspecto que ganhava peso na religiosidade oficial era a belícosídade, ele-
mento há muito presente na mentalidade medieval/" e que, a partir da feu-
dalização da sociedade, passou a int1uir mais claramente no comportamento
da elite eclesiástica. É verdade que, por ir contra o tabu do derramamento de
sangue, surgiram críticas por parte dos setores mais conservadores do clero.
O bispo Adalberon de Laon, preso às tradições carolíngias, recriminava em
1027-1031 a "ordem belicosa dos monges" 79, isto é, Cluny e sua política de
guerra justa.
Esta última corrente, contudo, ganhava terreno apesar das críticas e contri-
buía para a concepção de Guerra Santa, tão importante para o projeto que a
Reforma Gregoriana teria pouco depois para a sociedade ocidental cristã.
Elaborada nessa atmosfera mental, a gesta de Rolando chama várias vezes de
"mártires" aqueles que morrem na luta contra os muçulmanos, estabelecendo
uma relação de causalidade entre Guerra Santa e ida ao Paraísos", Nada disso

72. Idem, vv. 1117-1119.


73. Idem, vv. 2390-2396.
71. Idem, vv, 2319-2321, 2152, 2568, 2526-2528, 3602-3624, 2-115-2151.
75. Idem, vv. 2-167-2-168.
76. Idem, v, 3860.
77. K. Bihlmcycr e 11. 'l'ucchlc, tttstôria da Igreja: Idade Média, (trad.), São Paulo, Paulinas, 1961, pp,
215-216,
7ft 11. Franco júnior, /I {til/de Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo, Brasilicnse, 5. cd. 1991, pp.
16o-1M.
79. Adalbcron de l.aon, Poênte au roi Rubert. v. 156, cd. C. Carozzi, Paris, Bcllcs l.crrrcs, ] 979, [J. 12.
HO. t.a Cbanson de Roland, vv, 112-í-1I3H, 1511-1525, 1H5'1-186H, 1913-1931, 2010-2023, 2181-2199,
2233-2258, 2375-2396 e 2892-290H, Tal traço não é estranho. pois as canções de gcsra corrcspon-
di.uu ~t época c ao espírito de Cruzada: P. jonin, "te Climar de croisadc eles chansons de gesrc",
CeM, 7, 1961, pp. 279-288.
168
aparece na gesta de Valtário que, numa narrativa ainda muito ligada ao espíri-
to dos antigos mitos germãnícos, vê nas batalhas algo sem objetivo específi-
co, acontecimentos decorrentes da fatalidade das personagens.
No entanto, num caso como noutro há muito de lúdico no choque com
os inimigos. Aqueles eram momentos esperados, que punham à prova a força
e a habilidade dos envolvidos. Momentos em que a sensibilidade aguçada do
hornem medieval''! vinha completamente à tona: levados pelas circunstâncias
a se enfrentarem, Valtário e Haganon revelam sua tristeza e sua ira pelo fato,
para por fim, mutilados mas reconciliados, gozarem da alegria da amizade
reencontrada'<. A forte afetívídade que ligava Rolando e Olivier transparecía
também no momento do perigo, com os amigos se recriminando, se instigan-
do para a luta, sofrendo com os perigos vividos pelo outro, lamentando a per-
da85. Carlos Magno e seus homens, ao saberem da morte de Rolando, choraram
profunda e seguidamente H1.
Se em Waltbarius existem elementos da religiosidade eclesiástica em
menor número que em Ia Cbansoii de Roland, abundam em ambos os prove-
nientes da religiosidade popular. Nos dois, por exemplo, há sonhos pre-
monitóriosê>. Curiosamente eles não são dos heróis principais de cada texto,
mas sobre eles. No sonho de Haganon, um urso arranca a perna do rei Guntário
(que quer tirar o tesouro de Valtário) e um olho do próprio Haganon. Profecia
que se cumpre, realizada por Valtário'v, que portanto é () urso onírico. Nos
sonhos de Carlos Magno, um urso aparece em três das quatro vezes, sempre
atacando o imperador. No quarto sonho quem o faz é o traidor Ganelon.
Como, nesse caso, um galgo (símbolo da aristocracia feudal) luta contra o ur-
so, tudo indica que aquele é Rolando e este Ganelon.
No entanto as visões nunca mostram quem é o vencedor, como que a
resguardar a onipotência divina e, assim, a retirar esses sonhos do âmbito das
"superstições". Para reforçar essa intenção aparentemente c1ericalizante, o
poeta faz com que os dois últimos sonhos tenham sido enviados a Carlos
Magno pelo arcanjo GabrieL Os significados opostos que o urso assume nos
sonhos dos dois textos talvez se devam - além da políssemía própria aos
símbolos - à maior proximidade do Waltbarilts às fontes da cultura folclóri-
ca. De fato, para esta () urso tem sentido positivo, é animal de pele apotropaica,
portanto protetor, é um ser ressuscitado, porquanto se imaginava que ele

RL M. 1II0ch, I.a Socü!/é/éotÍale. l'aris. Albin Michcl, rccd., 196R, pp. 116-117; 1'. Rousscr, "Rcchcrchcs
sur I'émorivité :1 I' ('PO<l"" romano", (;01-1, 2, 1959, pp. 5:5-67.
82. \r'(//Ibarius, pp. /í7-;/L
83. /.({ Cl}{II1S0l1 de Roland. 1'1'. 1017-1187. 1691-1736, 19S2-20}1.
SI!. Idem \'V. 766-77"., H1S-H6(), 1396-1111, 221'5-2221, 2375-2!J17, 2!J1H-2!JfJ2,2827-2H11, 2855-21069,
2870-29IJ1, )096-3120, 3625-3617, 3705-3722, 372:;-)733, :5H7j-j8H3 c 3988-1002.
H5. wattbarius. p. 25; 1.(/ Cbanson de No/aliei. \'V. 719-723, 725-735, 252H-2551 c 2555-2569.
H6. ldent pp. 51-52.
169
nascesse morto e disforme e fosse recuperado pela mãe'". Por outro lado,
desde o cristianismo primitivo "o urso não gozou absolutamente do favor da
simbólica cristã" e, ao lado do javali, aparece perseguindo mártires's',
Paralelamente aos sonhos premonitórios encontravam-se os augúrios e
presságios, práticas sabidamente antiqüíssimas e que continuaram presentes
ao longo de toda a Idade Média. Nos dois textos que agora nos interessam,
tais crenças aparecem mesmo em pequenos fatos: uma lança mal arremessa-
daR9 ou uma luva que cai ao chão?" eram interpretados como prenúncios de
eventos ruins. O lado esquerdo, de "mau agouro", como o define o autor de
1,ValtbarÍus91, prolongava uma tradição arcaica presente em Parmênides, em
Platão, entre os romanos, na Bíblia, no Corão e no folclore medieval. Se para
os homens anteriores ao ano mil a origem dos eventos nefastos era algo
indefinida, a partir daquele momento a figura do Diabo passou cada vez mais
a sintetizar () problema filosófico-teológico do Mal.
Com a reorganização do Ocidente promovida pela "revolução feudal",
a figura distante e repressora do Deus Pai foi sendo ofuscada pela do Filho,
mais adequada espiritualidade
à de uma sociedade que se estabilizava e se
suavizava. Dessa forma, a faceta punitiva da Divindade foi exteríorizada na
personagem antiga, mas até então pouco importante, Satanás. Enquanto ele
não merece sequer uma citação em Wallbarills, aparece na gesta de Rolando
cumprindo um papel que depois se tornaria comum, o de punir e/ou se identi-
ficar com os inimigos da sociedade cristã. É assim que, enquanto anjos bons
levam as almas dos mártires da luta antiislâmica para o Paraíso, Satanás ou
seus demônios arrebatam as almas dos muçulmanosv-. Se um anjo do Senhor
dera a Carlos Magno a espada com que este presenteou Rolandov'', um demônio
é que deu ao emir muçulmano um escudo ornado de pedras preciosas?". Em
suma, ocorria uma demonização dos muçulmanos: um deles era entendido
em "artes maléficas" 95, outro jú estivera no Inferno levado por Júpiter'JG, outro
ainda habitava a mesma região que os dernônios'".
Contra tais forças os homens podiam recorrer ao sinal da cruz, "sinal
poderoso'vs utilizado desde os primeiros tempos do cristianismo. Com efeito,

H7. I.e Besttatr«; trad, NI.-F. Dupuis e S. I.ouis, Paris, Philippc Lcbaud, 19fiH, pp.72-75.
HH. 11. I.cclcrcq, "Ours", em f)/lC/., vol, 13, col. 153. No sentido de animal selvagem, o urso aparece
ainda, além dos sonhos, em outras duas passagens de l.a Cbanson de Roland, v. 30 (e suas
repetições) e I R27.
W). Wa/l!Jarills, p. 19.
90. La CballSOI1 de Roland, vv, 333-335.
91. Wallbarills, p. 5/1.
92. l.a Cbanson de Rolancl, \'V. '126H, 1553 e 3617.
93. Idem, v. 2319.
9/1. Idem, v.1502.
LJS. (riel1l, 'i. \\\\6.
96. Idem, vv . \:'9\-):'9'2,
97. Idem, v. 9H3.
98. idem, v. 3111; cf. também vv. 3,iO, 220), 2HIJH e 3111.
170
já no século IV, Prudência afirma que os soldados cristãos faziam o sinal da
cruz ames de entrar em combate')') Outro recurso, de origens mais antigas, era
a bênção. Por isso ela aparece ta mo na gesta de Valtário quanto na de Rolandol''",
A diferença marcante é que o herói aquítano benzeu a si próprio, enquanto
no segundo texto são sacerdotes (ou () imperador com sua faceta sacerdotal)
que benzem alguém. Ou seja, o ato de benedicere. de atrair o favor de Deus
para uma criatura ou um objeto, entrava predominantemente no campo das
atribuições clericais. Tanto assim que, das acepções medievais da palavra, três
designavam atos de competência exclusiva dos eclesiásticos (consagrar uma
igreja, ordenar um padre, sagrar um rei), outras três eram atos mais clericais
que laicos (abençoar, rezar, adorar) e apenas uma era de uso geral (saudar)!'!'.
É interessante notar que se na canção rolandíana as bênçãos já se apre-
sentam clericalizadas, as orações e as confissões podem ocorrer de forma laíca.
Sentindo-se morrer, Rolando deita-se debaixo de um pinheiro, com o rosto
encostado na terra, e confessa seus pecados diretamente a Deus, pedindo
perdão 102. Carlos Magno, preparando-se para a batalha decisiva, também deita-
se na relva verde com o rosto no chão e voltado para Oriente 10.1. Nos dois
episódios, o coma to direto com a Mãe-Terra parece ser o essencial, aproximan-
do o homem do mundo divino, estabelecendo uma relação que dispensava
intermediários. No evento que envolve o imperador, isso era reforçado pela
sua posição, de frente para o sol nascente, para uma das mais arcaicas divinda-
des existentes e que no cristianismo se identificava com o próprio Cristo. No
caso de Rolando, o reforço era dado pela presença de uma árvore, com seu
simbolismo de axis mundi, de elemento de ligação entre instâncias subterrâ-
neas e celestes"?". Ademais, era especificamente um pinheiro, árvore ligada
no passado ao culto da deusa Cibele e seu filho-amante Átis, que morre e res-
suscita períodícamentetv>, sendo portanto a própria atureza e prefiguração
de Cristo. Rolando se integrava assim, por seus próprios meios, ao Sagrado.
Em Waltharílls, com seus poucos elementos clericalizados, há apenas
uma oração, feita pelo herói diante dos corpos dos inimigos mortos. Nesse
único episódio aparece um terço das referências feitas a Deus em todo o texto.
Na mesma oração Valtário fala em "coração contrito" e "definir o pecado",
conceitos estranhos ao conjunto do poema e a todo o clima de sensibilidade
que ele revela. Tudo isso indica que tal passagem ou é uma interpelação poste-
rior, ou uma rara tentativa clericalizante do autor. E tanto numa hipótese quan-
to noutra, não se anula a sensação de o herói estar se dirigindo às suas dívinda-

99. 11. í.cclcrcq, "Croix (signo de la)", em osa, "(li. 3, col. 3139-31~O.
100. Wllllb(/rius, p. 11; I.a C!)(I11S071 de f<O/tIIlC/, VI'. 3IíO, 2957, 3066 e 3859.
101. .J. F. Nicrmcycr, Mediae l.atinitatis t.exicon Minus, Lcídcn, Brill, 1981i,p. 89.
102. Lu OWI1S01l de Roland, \'V. 2357-2358.
103. Idem, VI'. 3096-3099.
101. IV!. Lliudc, Tratado de t tistúna das Reltgiôes, (rrad.), Lisboa, Cosmos, 1977, pp, 323-351.
105. Dsvmb, p, 761.
171
eles germânicas. Ele está em pleno bosque, no qual passará a noite numa gruta,
e seu pedido de encontrar os outros heróis mortos no "reino dos céus"1IJ6 soa
mais como o desejo de juntar-se um dia a eles no Walhala, a residência celes-
tial de Odin para onde iam todos os guerreiros mortos em batalha.
As bênçãos, as orações e as confissões eram manifestações de um fenô-
meno de longuíssima duração, o poder mágico da palavra, presente em várias
civilizações, inclusive na Europa medieval'v", A concepção de que só existem
as coisas que tem nome está exemplificada pelas espadas de Rolando, Carlos
Magno, Olivier, Turpin e Ganelonlw. Mais do que isso, Rolando fala longa e
amigavelmente com sua espada Durendaltw. Temendo que ela caísse em mãos
indignas com sua morte, Rolando tenta inutilmente quebrá-Ia contra uma
pedra 110. Por outro lado, a espada de Valtário, que se quebrou durante a luta 111,
lembra o relato da espada fíncada por Odin no freixo que sustentava o mundo
e que só pôde ser tirada e usada por Sigmund. Após inúmeras vitórias com
essa espada, que nada quebrava, um dia o próprio Odin partiu-a, e o herói
morreu. Ou seja, enquanto para o pensamento mítico germânico a vida do
herói estava ligada à vida da espada, para o pensamento mítíco cristão elas
eram coisas próximas, porém independentes. A espada de Rolando era um
objeto sagrado, trazída por um anjo e cheia de relíquias dentro do cabol12.
Dessa forma a Canção de Rolando clericalizava o maior símbolo da condição
laica de acordo com a pretensão da Igreja do século XI de disciplinar a cava-
laria cristã e pô-Ia a seu serviço.
Não por acaso surgiu desde então uma iconografia religiosa de Rolando,
Na catedral compostelana ela materializava as tradições orais existentes desde
o século VIII e levadas para a Galícia pelos peregrinos 113. Entre 1120 e 1140
ele aparece com traços de santidade nos portais das igrejas de Angoulême,
Limoges e São Zeno de Verona, em 1148 numa pequena igreja perto de Bari,
em fins da década de 1170 num mosaico de Brindisi e na Ghirlandini, torre
próxima à catedral de Módena, No século XIII ele passa para o interior das
igrejas, como em Saint-Faron de Meaux e num vitral do coro da catedral de
Chartres, no qual, após derrotar o gigante Ferragut, símbolo do paganismo,

ios. W({lib({J'ius, p. 11.


lO7. Cf., SlIjJ/'II, cnsa io n. 5.
108. I.a Cbanson de Roland, vv. 926, 988, 1055, 1065, 1079, 1120.1321. 1339, 1162, 1583, 1870, 2113,
2261, 2301;, 2316, 2780 (Durandcl); 2501 e 2508 (loycusc de Carlos Magno); 1363, 1163, 1550 e
1953 (J lautcclairc de Olivicr); 2089 (Almace de Turpin); 3!J6 (Murgleis de Ganelon).
109. lclcm, vv. 2301-2310, 2316-2337 e 2311-2351. Também Ganclon dirige-se ü sua espada: vv. 415-
1;19.
110. Idem, v. 2310.
111. Wa/tbarius, p. 52.
112. La Cbanson de RO/(/Iu/, vv. 2319, 231/; e 2315-2318.
113. F. Bouza Brey, "Fortuna de Ias Canciones de Cesta y dcl l léroc Rold.in cri cl Románico Compostclano
y cri Ia Trudición Gallcga", Compostella 1111 111, 10, 1965, rp. 663-685.
172
Rolando aparece com nirnbot!". Completava-se o processo iniciado em 1138,
quando ele foi representado com emblema de mártir no portal da catedral de
Verona. Pelo menos na iconografia, o herói guerreiro tornava-se um herói
cristão completo, um santo.
A espada de Rolando, que destruía infiéis e era, ela própria, indestrutível,
sintetizava a imagem que os clérigos faziam da sociedade cristã. Aquele herói
metaforízava de certa forma a Divindade Encarnada que não veio "trazer a
paz, mas a espada"!">, e que se sacrificou pelos homens. Aqueles mesmos
clérigos viam a contrapartída disso na espada quebrada de Valtário e na mutila-
Ç~LO do herói, símbolos do paganismo. Contudo, a cultura intermediária parece
ter tido outra visão daquelas personagens oriundas da tradição folclórica. Visão
que enfatizava mais as semelhanças que as diferenças. Que colocava o dado
essencial no substantivo beroi e não nos adjetivos pagão ou cristão. Se a ideo-
logia tentava historicizar e clericalizar os heróis, atríbuíndo-lhes uma identi-
dade própria e um conjunto de valores cristãos, para o imaginárío medieval
como um todo eles continuavam a ser modelos atemporais e amorais, resistentes
a classificações redutoras.

'l I-i. R. Lcjcunc, "La I.ógcndc de Roland dans l'art iralicn du Moycn Age", em t.a Poesia Iipica e Ia Sua
Forniazione, Roma, Accaclcmí.r Nazionalc dei Lincci, 1970, pp. 300-301:l; H. l.cjcunc e P. Sticnnon,
"I.c l Iéros Roland, 'ncvcu de Charlcmagnc', dans l'iconographic médiévalc". em W. Israunfcls e
I'.E. Schramm (cds.), Karl der Grosse.l.ebensuxrri: 1//1(1 Nacbleben, Düsscldorf, Schwarin, 1967, pp.
216 e 223-225.
115. MrIO, 31.
MITO E IMAGEM
.s.->

A EVA BARBADA DE SAINT-SAVIN


IMAGEM E FOLCLORE
O SÉCULO XII

No último meio século, o campo abrangido pela História não tem dei-
xado de se alargar, seja pela construção de novos conceitos, seja pela incor-
poração de instrumentos de análise tomados de empréstimo a áreas afins, seja
pela ampliação das temáticas estudadas, seja pela utilização de novas fontes.
Quanto a este último ponto, Lucien Febvre já chamara a atenção para o valor
do folclore 1, usado, para ficarmos restritos ao campo do medievalismo, sobre-
tudo por ]acques Le Goff2 e ]ean-Claude Schmítte. Reconhece-se igualmente
a importância das fontes íconográfícas". Contudo, ainda não se tornaram
comuns trabalhos voltados para a análise das relações entre imagem e fol-
clore. De um lado porque os historiadores têm observado os traços deixados

1. Desde seus primeiros tempos, os Annalesd"bisloireécollomiqueelsocialepropunham estudos que


levassem em conta o folclore, "que pode ser singularmente profundo na textura mais íntima de
nossas sociedades européias": I.. Febvrc, "Enquêtes folkloriqucs cn Francc", 7, 1935, p. 75. Dois
anos depois ele afirmava ser "inútil insistir sobre o interesse que podem apresentar para o histo-
riador os estudos folclóricos": "Un Manuel de tolklorc", 9,1937, p, /,00. Pouco mais tarde, de forma
ainda mais clara e plena de potcncialidaclcs historiográficas, ele dizia que o folclore pode "lançar
luz sobre os mecanismos mais profundos da mcnralídadc dos grupos humanos": "I listoirc socialc
ct folklorc", 10, 193H, p, 325.
2. Sobretudo nos vários artigos reunidos em IJ/IA1A, 1977, e em I. 'tmaginaire ntérliécal, Paris, Gallimard,
1985.
3. Dentre outros títulos, "Rcligion populuirc ct culrurc folklorlquc", I1/ise;; 3'1, 1976, pp. 911-953; Le
Saint léurier, Paris, l'lammarion, 1979; "Lcs Traditions Iolkloriqucs duns Ia culrurc médiévalc:
Quclqucs réflcxions de mérhodc", em Arcbiues des sciences sociales eles religions, 52, 1981, pp, 5-
20.
1. Como demonstram os trabalhos, dentre outros, de Michcl Pasrourcau, jêromc Baschcr e Chiara
I'rugoni.
li6
pela cultura folclórica sobretudo na literatura ou através da literatura. De outro
porque os historiadores da arte têm tradicionalmente se preocupado mais com
problemas formais, técnicos e cronológicos do que com as relações entre arte
e sociedade.
Ora, a imagem é uma expressão plástica não apenas do literário, mas de
todo o enquadrarnento sociocultural que engendra o literário. Inclusive, é
claro, da oralidade, que desempenhava um papel fundamental na Idade Média.
Como p. se observou, os autores medievais levavam a sério as tradições folcló-
ricas, e por isso é importante considerar as narrativas da época como sendo
transmissões tanto orais quanto literárias>. Nas complexas relações que leva-
vam dados folclóricos a serem literarizados e narrativas de origem literária a
serem folclorizadas, a imagem cumpria muitas vezes uma função importante.
Ela era uma mediadora cultural que fixava determinadas concepções e informa-
ções, transmitindo-as sob uma forma mais estática (e assim mais duradoura)
do que o fazia a corrente viva da oralidade.
Assim, enquanto os traços da cultura folclórica se transformavam ao
longo de séculos de transmissão oral - apesar de seu caráter tradicional-
ista - determinadas facetas dela eram regístradas pela literatura e pela icono-
grafia. Mas, enquanto a literatura geralmente reprocessava o folclore em
intensidade variável, de acordo com o público relativamente restrito a que
estava destinada, a iconografia tendia a acompanhar mais de perto suas
fontes folclóricas, já que voltada para um público mais amplo. aturalmente,
estas observações gerais precisam ser matizadas, pois uma literatura como
a dos exempla G possui um rico conteúdo folclórico devido à sua finalidade
de pregação, e a iconografia das iluminuras bíblícas, de maneira geral,
respeitava mais as fontes eruditas por estar voltada em grande parte para
um público eclesiástico.
Mas as representações íconogrãfícas destinadas a serem consurnídas
sobretudo pela massa de leigos incorporavam quase sempre certa quantidade
de dados folclóricos. É o que acontecia, por exemplo, com tímpanos ou claus-
tros de igrejas de peregrinação. Se o recurso aos elementos folclóricos fazia
parte da estratégia eclesiástica de evangelização espiritual e de manutenção
do domínio social, não podemos esquecer que o próprio clero como mem-
bro daquela sociedade também estava impregnado de cultura folclórica. Se
esta não era a cultura conscientemente adotada e desenvolvida pelo clero,
também não era uma cultura desconhecida ou totalmente combatida por ele.
Da mesma forma que a camada clerical não era impermeável à cultura tradicio-

5. B. Roscnbcrg, "Folklorísrcs cr médiévisrcs face au rcxrc lirtérairc. Problcmcs de mérhodc", /lESe,


3'í, 1979, pp. 9,jIj-953; A. ]{. Corrázar, Follslorev t.iteratnra, Bucnos Aircs, liudcba, 1964, pp, 20-
4~. I'm um belo estudo, Paul Zumthor mostrou que a literatura medieval tinha elevado "índice de
oral idade", ou seja, traços de caráter oral que aqueles textos comportavam na Sua elaboração. 1.0

Lettre e/Ia uoix de 10 littércüurc mâdiéuale, Paris, Scuil, "987. pr. 37-~6.
6. c. Brcmonr, J. I.c Goff e j.-C. Schmirr, L'Iixemplunt. Turnhour, Brcpols, 1982.
----

177
nal dos leigos - e nem poderia o ser, pois ninguém nasce eclesiástico - eles
não ficavam imunes à cultura erudita, cujos traços essenciais lhes eram trans-
mitidos pelo próprio clero".
Assim como a sobrevivência de dados folclóricos contidos nos textos
escritos é "a expressão de uma relação de dominação ideológica'", o mesmo
se poderia dizer a propósito das representações iconográficas ligadas à Igreja,
isto é, a quase totalidade das que nos foram legadas pela Idade Média. Como
é próprio da ideologia absorver e desnaturar os elementos contrários que ela
não pode simplesmente negar, fica difícil, e muitas vezes impossível, determi-
nar a exata extensão e função dos dados da cultura folclórica presentes em
imagens religiosas. Trata-se então de, a partir do contexto sociocultural-psi-
cológico da produção da imagem, procurar interpretar as leituras possíveis
que ela recebia. Trata-se de pensar sobre as funções da imagem, que não são
necessariamente explicitadas pelas suas formas. Trata-se de tentar retirar o véu
que recobre o símbolo, isto é, de verificar as relações entre significante e signi-
ficado". Estas rápidas considerações teóricas vêm a propósito de uma determi-
nada imagem que nos propomos analisar.
Na parte oriental do Poitou, 41 quilômetros a oeste de Poitiers, na margem
esquerda do rio Garternpe, ergueu-se em fins do século VIII ou começo do IX
a abadia de Saint-Savin. Colocada sob a direção prestigiosa de Bento de Aniane
ou de Ulll discípulo deste, ela contribuiu para a renovação monástica da região,
abrigou as relíquias de vários outros mosteiros atacados pelos normandos e,
parece, seus monges participaram da fundação de Cluny, cujo primeiro abade,
Bernon, talvez tenha sido monge de Saint-Savin 10. A igreja abacial, recons-
truída em fins do século XI e princípios do século seguinte, recebeu então
uma rica decoração de afrescos, "o conjunto mais importante, mais represen-
tativo e mais belo de todas as pinturas românicas conservadas na França e
mesmo em todo o Ocidente"!'. Nesse vasto conjunto, a abóbada da nave rece-

7 C0ll10 ponderou 1'. c. Bcgotti, "Sulla Origini Mcdicvali dclla Cultura l'opolnrc", em Quaderni
Medicoali, 3, 1977, r. 88, "com a devida cautela, rodemos generalizar o seguinte esquema: quan-
do uma classe está no poder, através da propaganda, da escola, das instituições públicas, da obra
de intelectuais e de oradores persuasivos, procura impor sua visão de mundo e de vida :IS classes
subalternas (para bloquear a porcncíalídadc revolucionária). e estas recebem as concepções domi-
narucs inserindo-as na sua própria cultura rradicional, L .. l fruto de sucessivas modificações da estru-
tura social e mental durante a história".
R. Schmitr, L'Exemplum, op. cit., p. 107.
9. J. Wirrh, "Introduction",CIll F. Dunand,J.-M. Spiescr c ]. Wirth (di r.), L'lmage et la production du
sacré, Paris, Méridtcns Klincksieck, 1991, pr. R-15.
]0. 1'. Mcriméc, No/ice SUl' lespcintures de l'église de Saint-Sauin, Paris, lmprimeric Royale, 1815, pp.
19-22; 1'. A. Lcbrun, l.Abbaye e! i église de Saint-Sauin, Poit icrs, Oudin, 1888, pp. 14-17,90-92 e
123-129. Para outros, essa Iiliação teria sido apenas indireta: G. Valous, I.e Monacbisme clunisien
des origines ali XVt! stécle, (2 vols.), Paris, I'icard, 1935, \'01. I, p. 19, n. 2.
11. G. Gaillard, l.es Fresques de Saint-Saoin, Paris, Chcnc, 1911, p. 3.
178
beu 58 cenas do Antigo Testamento, inclusive, no lado norte, uma famosíssi-
ma Apresentação de Eva a Adão,
Na primeira parte da seqüência narrativa sobre a criação da mulher,
aparecem Adão adormecido e, inclinado sobre ele, Deus, que com uma mão
levanta o braço esquerdo do Primeiro Homem e com a outra faz o gesto de
extrair dele uma costela. Na cena seguinte estão figuradas as três personagens,
Deus entre os outros dois, voltado para Adão, que tem os braços serní-estendi-
dos e olha para Eva, posicionada ~l esquerda do Criador. Por fim, prosseguin-
do o relato bíblico, na cena seguinte Eva está diante da serpente, enorme, que
a domina pela altura. Estruturalmente, portanto, uma representação clássica.
Mas que mostra a Eva apresentada a Adão tendo barba. Este detalhe, absoluta-
mente antíconvencíonal, sem ponto de apoio escríturístíco, foi por isso sem-
pre interpretado pela hístoríografia como decorrência de engano ou de irreverên-
cia por parte do artista ou de um restaurador.
Prosper Mérimée, que em 1845 chamava a atenção para a beleza e o
estado de abandono dos afrescos, pensava que o artista, depois de ter pinta-
do Adão, resolvera mudar as personagens de lugar e cobrira a barba dele,
transformando-o em Eva, pintando então um novo Adão do outro lado. Porém
aquela cobertura teria posteriormente caído, revelando a barba e criando assim
uma falsa "Eva barbada"12 Mais de oitenta anos depois, Elise Maillard afirma-
va que "foi por descuido que o fresquista atribuiu uma barba a Eva: ele ten-
tou cobri-Ia, mas o gesso seco não fixou a tinta" 13. Quase quarenta anos mais
tarde, George Henclerson considerava aquela cena "convencional", negando
implicitamente que nela Eva tivesse barba!". Pouco mais tarde, jean Taralon
atribuiu a presença da barba a uma restauração de fins do século XIV, "muito
malfeita" porque o restaurador não pudera contar com o modelo do desenho
original, que teria desaparecido completamente 15. Acatando essa proposta,
pouco depois Yvonne Labande-Mailfert afirmava que "a barba malfeita de Eva
[".l não podia ter sido produzida por um ateliê româníco='v. Mais recente-
mente, Píerre Dubourg-Noves!? falava em uma intervenção do século XIII,
quando "o restaurador, que não compreendia mais o episódio danificado,
dotou Eva de barba". A publicação mais recente, de Yves-Iean Riou, retoma
a tese de uma restauração malfeita em fins da Idade Média!".

12. Mérimée, op. ciI., p. 103.


13. E. Maillard, r. 'Iiglise de Saint-Scunn-sur-Gurtempe, Paris, l lcnri Laurcns, 1926, p. 60, n. I.
11. G. llcnderson, "I'hc Sourccs of lhe Gcncsis Cyele ar Saint-Savin-sur-Gartcmpc", em Tbejournal
<i/lhe Britisb Arcbueological
Association, 26, 1963, P[1. 2~-25.
15. j. 'laralon, "Ohscrvations tcchniqucs SUl' Ia voútc de Ia ncf de Saint-Savin ct ses pcinrurcs", em
Bulletin de Ia Sociét« Nationale des Antiquaires de France, 1968, p. 251.
16. Y. l.alxmdc-Mailfcrt, "Nouvcllcs donnécs sur l'abbarialc de Saint-Savin", CeM, 11, 1971, p. 11.
17. 1'. Dubourg-Novcs, I.'Abbave de Saint-Sautn, Rcnncs, Oucst France,I9H1, p. 15.
18. Y.-J. Riou, iAbbave de Saint-Sauin, Poiricrs, Connaissancc cr promorion du parrímoinc de Poitou-
Charcntcs, 1992, p. 16.
li9

Fig. 7 Apresentação de Evn (Snint-Savin-sur-Curtcmpc).

o problema central de todas essas hipóteses é que elas se baseiam em


dados arqueológicos de difícil dataçãot? e interpretação 20, e pouco conside-
ram o enquadramento psicológico-cultural da época. Na verdade, nega-se que
a famosa barba seja obra de um pintor românico, a partir da dificuldade em
adequá-Ia à cultura erudita da época. Por isso Mérimée via sua hipótese como
melhor que "procurar uma difícil explicação dessa anomalia no hermafroditísmo
dos habitantes do Paraíso terrestre'?". Contudo, é pouco provável que o artista

19. Por exemplo, uma grande especialista nos afrcscos de Saint-Savin como l.abandc-Mailfcrt atribuiu
o "retoque" primeiro ao século XIV ou xv (ojJ. cit., p. 11), depois ao século XIX: "te Cyclc de
I' Ancicn Tcstamcnr 11 Saint-Savin", Reuue d'bistoire de Ia spiritnalité, 50, 1974, p. 370.
20. Mesmo a simples idcnrificação das personagens é problemática. Tradicionalmente pensa-se que a
figura ~l direita de Deus é Adâo, mas o inverso seria possível, se não preferível: pela lógica da com-
posição, a Eva recém-formada deveria estar próxima do Adão adormecido. e de fato a gestualiza-
çào de Deus faz mais sentido se considerarmos aquela figura como sendo Eva. Aliás essa dis-
posição espacial das personagens não era nem rara nem nova sendo atestada já em fins do século
IX na Biblia de Carlos, o Calvo, fól. Tv . De qualquer forma, essa questão não afeta nossos obje-
tivos e argumentação, esteja líva posicionada na pintura de um lado ou de outro.
2]. Mériméc, op. cit., p. 101, idéia aceita por Gaillard, op. cit., p. 7. Contudo, como \Xfirth, "Iutroduction",
ojJ. cit., p. ]0, comentou, "a dificuldade de perceber um fenômeno não é um argumento contra
sua existência". Desde fins do século XIX o abade de Saint-Savin jú entendera isso, e descrevia
aquela cena com simplicidade e objetividade (Lcbrun, ojJ. cit., p. 50, n.J): "Eva inocente tem barba
como Adão, E,'a culpada não. Tudo na primeira, a fisionomia, a atitude, transpira inocência; tudo
na outra exprime o contrário". Essa idéia foi acompanhada alguns anos depois por P. Gclis-Didor
íSO
não tivesse um esboço da composição, resolvendo mudar as personagens ele
lugar depois de pintá-Ias.
Se a tese de Mérimée é insustentável, poder-se-ia acompanhar Taralon,
que alega uma intervenção bem posterior, comprovada segundo ele pelas
cabeças das personagens, diferentes das da primeira pane da cena, o sono de
Adão. Cabeças, ele acrescenta, desproporcionais aos corpos, que seriam os
da pintura original. É verdade que o volume daquelas cabeças é maior que
em outras cenas da abóbada, porém ali trabalharam vários artistas ao longo
de uma geraçào-". Poder-se-ia tentar acompanhar a explicação de Dubourg-
Noves, próxima à de Taralon. Mas dessas duas hipóteses seríamos levados a
concluir que o pretenso restaurador - bem menos distanciado do original do
que nós - considerava possível e natural que o primeiro pintor tivesse colo-
cado barba em Eva. Assim, mesmo que se pudesse provar que a polêmica
barba é produto de uma restauração, seja do século XIII, seja do XIV, restaria
a questão central: por que aparece ali aquele detalhe anatômico aparente-
mente deslocado?
Não poderíamos atribuí-lo a um suposto devaneio pictórico, pois, como
já se observou com razão, as pinturas de Saint-Savin revelam o "gênio simpli-
ficador" do artista, que executa sua obra, salvo em dois ou três casos, ele forma
clara e pouco carregada: "Todo detalhe inútil é omitído'<'. Além disso, temos
o caso da Eva barbada de S~lOZeno de Verona, esculpida no lado direito da
fachada ocidental da igreja pouco antes de 1138: naturalmente, em função do
material ali utilizado, não se pode pensar nessa barba como um acréscimo
posterior. Dessa forma, devemos procurar a explicação da presença da barba
de Eva na cultura folclórica da época, e não num mero acidente de trabalho
ou numa brincadeira irresponsável do artesão. Até porque, nesses casos, caberia
perguntar a razão da omissão dos monges diante daquela pintura suposta-
mente, de forma voluntária ou involunrária, "irreverente",
Podemos, então, considerar como hipótese explicativa daquela imagem
um elemento cultural conhecido na região de Saint-Savin daquela época: a
lenda da santa barbada, Trata-se porém de um fenômeno cultural complexo e

e 11. l.atfilléc, La Pcinture déconuuie Vil t-rance da XI" au XI/le siêde, Paris, l.ibrairics-lmprimcrics
Réunis, 'IH99, s/p, (160): "Não se deve ver nela Ia Eva barbadal um comentário às palavras elc Santo
Agostinho: .Barba signuiu perfecttontsi", No entanto tal ínrcrprctação Foi desprezada até hoje, com
exceção da cautelosa afirmação de 1'. [I. Michcl, I.a Fresque rontane, Paris, Gallimard, 1961, p. 90,
para quem, "por mais estranha que da Ia hipótese] pareça, continua sedutora".
22. P. Dcschamps; "Lcx Pcinturcs de l'églisc de Saint-Savin", em Congres arcbéologiques de t-rance,
}09, 195"1, pp. Lj37-~i9. Para J. Wcttstcin, 1.(1Fresque /"0/1/(/111'.: Etude; UJ/IIjJtIIWivcs 11, Genebra,
Droz, 197H, pp. 19-20, as pinturas da nave foram feitas em poucos anos. mas por cinco mestres
diferentes, cada um responsável por um subciclo (Criação. Noé, Abruão, Moisés, José). Por sua
Peintures rCJl1/{I71VS eles églises de Freme!', Paris, FIa111111arion,
vcz.Tl. Focillon, 1967 (cd, orig., 1938),
p, 'Í2, (10 comentar a diferença de formas entre a história de Adão c Eva c a Criação dos astros,
observava que "a qualidade despojada não pertence indistintamente a todo ateliê de Saint-Savin".
23. E. Malc, "La Peinturc murale cn l-rance", em A. Michcl (dir.), ltistoirc de l'att, Paris, Armand Colin,
1905, vol, I, p. 767,
1S1
mal documentado, difícil de ser acompanhado. Jé'iem meados do século II um
texto apócrífo, o Evangelho de Tomás, afirmava que "toda mulher que se fizer
homem entrará no Reino de Deus'?". Duas ou três décadas depois, com outro
apócrífo, Atas de Paul025, surgia o tema da mulher dísfarçada de homem para
levar uma vida espiritualmente superior. Tema que conheceu grande sucesso
no monasticismo primitívo-é. Talvez originário de ritos pagãos, o uso de roupas
de outro sexo fazia parte do contexto mítico greco-romano, no qual o cris-
tianismo se desenvolveu-". Daí, na tradição bízantina dos séculos VI-VIII, os
muitos exemplos de santas que se disfarçaram de homem para fugir de sua
condição feminina28. No Ocidente cristão do século XII, temos ao menos o caso
de Santa Híldegunda, que visitou Jerusalém em 1188 dísfarçada de homem-v.
O caso extremo de mulher travestida de homem foi o de joana, em mea-
dos do século IX. Ela se teria vestido de forma masculina para acompanhar
seu amante e, assim fazendo, acabou por ter acesso ~l Cúría romana e por ser
eleita papa, segundo narra uma lenda surgida em fins do século XII e magni-
hCdn,ente 'dWàh~'àU'à pm .M'<\\.n1)\)'üYl::a'ü:'o. Ma3 corno, 111::331::
C'à30, tratava-se úe
um disfarce para fins pecaminosos, ocorreu () retorno condição feminina à

quando joana deu à luz uma criança, em público, durante uma procissão. O
episódio ilustrava bem o caráter negativo da passagem da androginia (sim-
bólica no caso da papisa e dos clérigos em geral) para a sexualízação, e talvez
por isso não tenha sido abafado pela Igreja medieval, apesar de escandaloso.
Na mesma linha, valorizava-se a recuperação da situação edênica representa-
da pela passagem da condição feminina para a condição andrógina - simbó-
lica com as monjas, comportamental com as virgens e continentes, física com
as mulheres barbadas.
De fato, no Ocidente cristão a androginização feminina ocorria através
da barba, quase sempre associada à negação da sexualidade. Gregório Magno
narra o caso de Santa Gala, jovem viúva que ganhou barba ao recusar um
novo casamentoõ". Também do ponto de vista médico acreditava-se na possi-
bilidade de uma mulher barbada, caso houvesse problemas com a menstrua-
ção, cujo papel é o de eliminar os excessos do corpo feminino, como fazem

2~. I. '1iL'tll1gile de Tbonuts. 111, trad ,1.- Y. Lcloup, I'aris, Albin Michcl, 19H6, p. ;,;,.
25. T.es i\cles ele {'mil el ses !ellres crpoCI)lJ1ws, fiO, cd. Irad. \ .. Vml<\lIx. Paris. \.cto\.\'J.cy ct An0, 191:\,
Q. 22~.
26. J. Anson, "Thc Femalc Transvcstirc in Early Monasticism: Thc Origin anel Dcvclopmcnt of a Motif",
Via/ar, 5, 1971(, pp. 1-32.
27. M. Dclcourr, "I.c Complexo de Di.me dans l'hagiogruphic chréricnnc", keouc de l'bistoire des reli-
gions, 77, 1958, p. H.
2H. E. I'arlagean, "L'l Iistoirc de Ia fcuunc déguiséc cn moinc ct l'évolution de Ia saínreté fémininc "
Byzancc", siuat Medteuali, 17, 1976, pp. 597-623.
29. Vi/a S. l lildegurulis, I, 5, em /IUa S(/IlC/OI'lIllI, aprilis, 11,(l675), Bruxelas, Culturc cr Civilisation,
rccmpr, 1969, p. 783.
30. 1.(/ Papessejeanne. Paris, Aubicr, 1988.
31. Grcgório Magno, Dialogonnn, 1. IV, n, 1)1.,77, eol. 'lIJO BC; /let(/ Snnctorunt, ocrobris 111 (1770),
p.162.
181
mal documentado, difícil de ser acompanhado. J't em meados do século II um
texto apócrifo, o Euangelbo de Tomás, afirmava que "toda mulher que se fizer
homem entrará no Reino de Deus">'. Duas ou três décadas depois, com outro
apócrifo, Atas de Paulo», surgia o tema da mulher disfarça da de homem para
levar uma vida espiritualmente superior. Tema que conheceu grande sucesso
no monasticismo primitivo-v. Talvez originário de ritos pagãos, o uso de roupas
de outro sexo fazia parte do contexto mítico greco-romano, no qual o cris-
tianismo se desenvolveu" Daí, na tradição bizantina dos séculos VI-VIII, os
muitos exemplos de santas que se disfarçaram de homem para fugir de sua
condição feminina-e. No Ocidente cristão do século XII, temos ao menos o caso
de Santa Hildegunda, que visitou Jerusalém em 1188 disfarçada de homem-".
O caso extremo de mulher travestída de homem foi o de joana, em mea-
dos do século IX. Ela se teria vestido de forma masculina para acompanhar
seu amante e, assim fazendo, acabou por ter acesso à Cúria romana e por ser
eleita papa, segundo narra uma lenda surgida em fins do século XII e magni-
ficamente analisada por Alain Boureau'v. Mas como, nesse caso, tratava-se de
um disfarce para fins pecaminosos, ocorreu o retorno ~l condição feminina
quando joana deu à luz uma criança, em público, durante uma procissão. O
episódio ilustrava bem o caráter negativo da passagem da androginía (sim-
bólica no caso da papisa e dos clérigos em geral) para a sexualízação, e talvez
por isso não tenha sido abafado pela Igreja medieval, apesar de escandaloso.
Na mesma linha, valorizava-se a recuperação da situação edênica representa-
da pela passagem da condição feminina para a condição andrógina - simbó-
lica com as monjas, comporta mental C0111 as virgens e continentes, física C0111
as mulheres barbadas.
De fato, no Ocidente cristão a androginização feminina ocorria através
da barba, quase sempre associada à negação da sexualidade. Gregório Magno
narra o caso de Santa Gala, jovem viúva que ganhou barba ao recusar um
novo casamento+t. Também do ponto de vista médico acreditava-se na possi-
bilidade de uma mulher barbada, caso houvesse problemas com a menstrua-
ção, cujo papel é o de eliminar os excessos do corpo feminino, como fazem

2/i. I. 'Éuangile de '1/)011/(/\ 111, rrad. ).- Y. l.cloup, Paris, Albin Michcl."] 986, p. IJIJ.
25. t.cs /leles de Paul et scs lcttres apocrypbes, ;'0, cd. tr;rd. I.. Vouaux. Pnrix, l.erouzcy cr AIl\:', 19 1::1,
p.223.
26. ). Anson, "Tlic tcmalc Transvcstite in Early Monaxtícism: 'I'hc Origin anel Dcvciopmcnr of a Motif",
Virttt»; 5, 197-1, pp. 1-32.
27. M. Dclcourr, "te Complexo de Dianc dans l'haglographlc chréricnnc", keoue de lbistoire des reli-
gions, 77, 1958, p.11.
28. E. l'arJagean, "1.'1lisroirc de Ia fcnuuc déguíséc cn moinc ct l'évolurion de Ia saintcró fémlninc 'I
Byzancc", Studi Medieualt. 17, 1976, pp. 597-623.
29. Vi/a S. l lilclcgundis, I, 5, em /lua Sanctorum, aprilis, li, (1675), Bruxelas, Culrure ct Civilisation,
rccmpr, 1969, p. 78::1.
30. I.a Papessejcannc, Paris, Aubicr, 1988.
31. Grcgório Magno. lJialogorIllII,I, IV, '13, 1'1.,77, col. j/jO IIC; /leltl Sanctonnn, octobris 111(1770),
p.162.
182
a barba e o suor no homemv. Concordando com Beda35 e Aelred de Rievaulxõ",
para quem a barba é indicação de virtude, na primeira metade do século XII
o monge beneditino e bispo Bruno de Segni considerava que a mulher dota-
da de força de espírito é "barbada".'I5.
A partir desses precedentes hagiográficos, científicos e morais, novos
casos de mulheres barbudas podiam ser construídos. O exemplo mais bem
conhecido é talvez o da lenda de Santa Wilgeforte36, chamada ainda, con-
forme a região, ele Kümmerrnis, Ontcommer e Liberara (ou Livraele). Seu nome
derivaria ele uirgo fortis, já que aquela virgem e mártir, pé!ra escapar ao casamen-
to, obteve de Deus uma barba, sendo então crucificada pelo pai, profundamen-
te irritado pelo fato. A documentação mais antiga existente sobre seu culto
remonta, parece, a fins do século XIV e é restrita aos Países Baixosõ", A origem
da veneração estaria ligada a uma colônia de comerciantes de Lucca, que
levara para aquela região um crucifixo de estilo antigo, anterior ao século X
- o chamado Volto Santo, provavelmente originário da Catalunha e ali reve-
renciado desde o século VIII - no qual Cristo aparece coberto por longa túni-
ca, tendo por isso sido confundido com uma mulherõ". Essa confusão estava
também na base do nome da santa, pois uirgo fortis era o epíteto dado pelos
italianos ao Volto Santo.
Talvez também tenha exercido certa influência na formação da lenda da
santa barbada, o grande crucifixo de madeira da catedral de Colônia, conhe-
cido por Gerokreuz. Encomendado pelo arcebispo São Gereão entre 970 e
976, essa peça mostra um Cristo andrógino, de cabelos bastante longos, barba
bem curta, seios femininos, pequenos, mas claramente pronunciados, ventre
que lembra uma gravidez nos primeiros mesesw. Entre os dois crucificados,
o Cristo de Gerokreuz e Wilgeforte, havia uma relação estrutural. A santa, para

32. "Uma mulher sofrendo de retenção menstrual pode ganhar uma pequena barba": G. Consrablc,
"Inrroduction", em Burchard de lscllcvaux, Apologia de barbis, cd. R. 1\. C. IIuygcns, Turnhout,
Brcpols. 1985, [l. 59, n. 58.
33. Bcda, ln Esdrum et Nebemiant Propbetas Allegortca Expositic, 1[, 12, 1)/., 91, col. 875 B.
31. Aclrcd de Ricvaulx, Serntones, 25, F/., 195, cal. 465 A.
35. Exposuio in l.eoitic, 19, 161, F/., 161, col. 444 n.
36. Aela Sanctorum, julii V (1727), r. 50-70.
37. J. Gcssler, "Une Version inéduc de Ia légcndc de Saintc Wilgcfortis", Reuue d'bistoire ecclésiastique,
31, 1935, pp, 93-99. Contudo para A. Bouvcnnc, "Saintc WilgefoI1e", Reuue de l'art cbrétien, 10,
1866, p. 115, no século Vil! Carlos Magno erguera uma igreja dedica ela àquela santa, cuja mais
amiga representação está em um trfprico de marfim do século XIII (r. 119); rara A. Dcmain, Beaux-
Artsplastiques, Paris, 1873, p. H5, (/jJudCasrex cop. cito infra. nota 11), p, 90, a mais antiga imagem
dela é um crucifixo em um baixo relevo em pedra, provavelmente do século Xl.
38. 11. Dclchayc, t.es I,égendes bagiograpbiques, Bruxelas, Société eles Bollandistes, 3. cd., 1927, r. 103;
G. Schnürcr c ], Ritz, Santzi Kúmntermis und volto Santo Studien urul Ri/der, Düsscldorf, Schwann,
1931; j.-c. Schmitt, "Cendrillan crucifié: A propos du volte Santo ele Luques", em Miracles, prodi-
ges et merueilles au Moven Age, Paris, Publicarions de Ia Sorbonne, 1995, pp. 211-269.
39. Reproduzido por I'. Thoby, I.e Crucifix des origines au concite de Trente, Nantcs, Bellangcr, 1959,
figs. 102-101 elo Supplémcnt.
IS3
se aproximar de Deus e obter a salvação, ganhou um atributo masculino
(barba) sem ter perdido a morfologia feminina (escondida porém sob amplas
roupas). O Filho de Deus, para salvar os seres humanos de ambos os sexos,
assumiu uma morfologia herrnafrodita (revelada por sua curta túnica) e exer-
ceu uma função feminina, a procriação. A barba de Wilgeforte é física (talvez
resultante de uma retenção menstrual), mas sobretudo simbólica, expressão
de suas virtudes. O hermafroclitismo cio Cristo é físico, mas sua gravidez, simbó-
lica, pois foi de seu corpo aberto pela lança do legionário que nasceu a Igreja í''.
No mesmo momento em que se desenvolvia a lenda de Santa Wilgeforte,
e provavelmente ligada a ela, aparecia a de uma virgem de Ávila, Santa Paula,
que fugindo às intenções amorosas de um homem, refugiara-se numa capela
onde, abraçada ao crucifixo, pedira a Cristo uma barba que afastasse seus pre-
tendentes+l. Temos ainda, contemporaneamente, em uma adição Legenda à

Aureafeita nas primeiras décadas do XIV, a história de Santa Barba (ou Bárbara),
mártir do século IV que se recusara a casar e fora decapitada pelo pai12 Apesar
de esse relato nada falar de uma barba da personagem, o nome dela revela
que em versões anteriores, provavelmente mais ligadas cultura folclórica, a
à

santa estava dotada daquele elemento anatõmico.


De fato, reconhecidamente, tal narrativa foi montada a partir de um mate-
rial preexistente, uma passio do século IX, um hinário do XI e uma legenda
do XII, como se percebe pelas edições incunábulas alemã e holandesa da
Legenda Aurea15 e talvez por relatos ainda anteriores que hoje desconhece-
mos. Ora, as relíquias de Santa Barba eram veneradas um pouco por toda
parte, mas sobretudo, desde o século IX, em Veneza e Placência. Ou seja, na
mesma região (especialmente em Placência, Verona e Como) onde se cultua-
va uma virgem do século VI chamada Liberata+'. Foi talvez naquelas cidades
que os comerciantes de Lucca tomaram conhecimento daquele relato hagiográ-
fico. Assim, o culto à santa conhecida por Wilgeforte surgiu quando, instala-
dos no noroeste europeu em fins da Idade Média, eles mesclaram a vita daque-
la santa com a referência à barba contida no seu nome e com a inversão que
os flamengos faziam do sexo de Cristo representado no Volto Santo.
É verdade que somente na versão mais recente, depois incluída na
Legenda Aurea, Santa Barba foi morta por ter-se recusado a casar, e não por

10. Tcrtuliano, De Anima, !J3,lO, cd . .J. 11. Waszink, Turnhout, Brcpols, J951J, p. 817; IIdefonso de
Toledo, Liber de Cognüione Baptismi, P/., 96, col. 111. tconografícamcnrc, talvez o mais famoso
exemplo da Igreja nascendo do /lanco aberto de Cristo esteja na Biblia Moralisadu Latina, de mea-
dos do século XIJI (Paris, Bibl iorcca Nacional, ms. Iar. 11560, tól, 186r).
11. Acla Sanctorum, fcbruarius, 111,(1758), p, 171.
42. legenda, p. 898.
43. B. ele Gaifficr, "La l.égcndc latino de Sainrc Ilarbc p.ujcan ele Wackerzecle", em Analecta Bollandiana,
77,1959, pp. 11 c 15-18.
,H. H. Castcx, Sainte t.ioradc: tüude bistorique et critique sur sa uie, son tnartyre, ses reliques e/ SOIl

culte, I.ille, Dcscléc, De Brouwer ct Cie. 1H90, pp. ')9-62.


i8i
ter-se convertido ao cristianismo como nos martirológios da Alta Idade Média''>.
Ocorre que os primeiros registros conhecidos sobre ela são do século VII, no
contexto de evangelização da Europa bárbara, quando importava acima de
tudo exemplos de mártires que tivessem morrido pela religião cristã. Passada
essa fase, o relato hagiográfico adaptou-se ao novo enquadramento histórico,
atribuindo o martírio da santa ao desejo de manter sua pureza. Da mesma
forma, sabe-se pela narrativa tradicional que Santa Barba não foi crucificada
pelo pai e sim decapitada, o que se refletiu em uma versão moderna que fala
em Wilgeforte (sob o nome de Liberara) decapitada'<. Ademais, ambas eram
patronas da boa morte, Barba contra a morte inesperada e Wilgeforte contra
a morte com agonia+'.
Portanto, Santa Wilgeforte era confundida com Santa Barba por se atribuir
a elas, a partir de certo momento, determinadas características comuns: recusa
ao casamento, martírio pelo próprio pai e, articulando esses dois elementos,
o aparecimento de uma barba. Ou seja, elas recusavam o estatuto de esposa
e de mãe, como Eva antes da Queda. De forma significativa, na cena do peca-
do o artista de Saint-Savin mostra Eva sem barba e com seios, portanto pronta
para desempenhar, fora do Paraíso, seu papel de esposa e mãe. De fato, as
tradições míticas judaicas (bem conhecidas na região, como veremos) falavam
na inexistência de menstruação no Paraíso/18, portanto na impossibilidade da
maternidade, o que coincidia com a visão cristã segundo a qual a retenção da
menstruação provocava o crescimento da barba femínína+'. Quer dizer, enquan-
to para o homem a barba é sinal de força sexual - por isso todos os mon-
ges a corta varn>? -, para a mulher ela é símbolo de recusa à sexualidade>'.
Como notou com argúcia de antropólogo o monge cisterciense que no
começo da década de 1160 fazia o elogio da barba, seu uso depende das
circunstâncias, dos costumes de cada povo e do significado que ela ganha em
cada momento'<. Assim, não se pode dizer que () motivo da barba feminina
fosse inequivocamente positivo para o período que aqui nos interessa. Existem
casos opostos. A Eva de São Zeno ganha barba apenas na cena do Pecado.
Um pouco mais tarde, Geraldo de Gales, cronista ligado ~l monarquia planta-
geneta e, portanto, à área político-cultural do Poitou, cita o caso de uma mu-

-15. Bcda, Manyrotogtinn, /}I., 9~, col. 11:Vi; Mtlr/yru/ogilll1l Adonis, 1'1., 12:1,col. ~ 15; /lela StIIICIOrUI1l,
maii, r. I (16HO), p. XXVI.
~6. R. Van Doren, "Vilgcforris", em Bibliotbcca S{//ICIOJ7/III, (13 volx.), ROlHa. tsriruro Giovanni XXIII
dcllu Pontificia Univcrsità l.atcrancnsc, ·1961-1970. vol. 12, col. 1097.
'í7. G.D. Gordini, "lkrrbara", em Hihliotbeca Sanctorunt, "01. 2, col. 76~, Van Dorcn, loc. cit., col. J096.
~8. I.. Ginzberg, Tbe t.egends oftbcjetos, (6 vols.), Filadélfia, 'I'hc jcw Sodety of Amcrica, 1910-19~6,
vol. v. p. HI1, n. 115.
-19. C:L, supra, nora 32.
50. Consrablc, op. cu., p. 110.
5"1. A barba de Santa Gulla cresceu devido ~l intcrrupçâo de sua vida sexual decorrente da viuvez,
segundo Gregório Magno (cf., supra, nora 31).
52. /1jJ%gitl ele Barbis, 2, 339-3~6, cd. cit., p. 170.
185
Iher barbada, considerando-a monstruosa e motivo de riso>>. Existem casos
ambíguos, tipicamente folclóricos, como a íconografía românica de sereias
barbudas, catorze em toda a França, dez das quais no Poítou+'.
A barba da Eva de Saint-Savin, contudo, estava sem dúvida relacionada
com a androginia do Primeiro Homem e com a tradição hagiográfica da assexua-
lidade (e, portanto, de certa forma da androginia) de algumas santas conhecidas
na região. Sobretudo de Livrade ou Liberara, nome pelo qual a futura Wilgeforte
era desde o século VIII cultuada na Aquitânia, onde havia muitas capelas dedi-
cadas a ela55. Essa santa era objeto de reverência eminentemente popular, sem
tumba conhecida nem culto lítúrgíco». Naquela região, seu templo mais impor-
tante localizava-se em Casseneuil, na díocese de Agen, a alguns dias de dis-
tância de Saint-Savin, mas dentro do mesmo espaço político-cultural do duca-
do da Aquitânia. Provavelmente construída por Carlos Magno, essa igreja foi
depois entregue, em 1117, aos benedítinos da abadia de Chaise-Dieu>".
Portanto, entre aquelas duas igrejas abaciais havia uma possível origem
comum (que a tradição atribuía a CarIos Magno), uma mesma ordem monás-
tica (beneditina) e um culto de caráter popular a santas locais (Livrade e
Savine's'). A partir desses pontos comuns, não seria estranho que no espírito
dos habitantes ele Saint-Savin algumas características de Livrade fossem proje-
tadas sobre uma santa local cujo perfil possibilitasse certa identificação entre
elas. Poder-se-ia pensar em Santa Fleur, ausente de qualquer martirológio'",
e que aparece ao lado de Santa Barba em preces populares que pedem prote-
ção contra ternpestadesw. Preces folclóricas, presentes na longa duração históri-
ca, atestadas pelo menos desde o século XIV e ainda hoje existentes no Poitou.
Reforça essa possibilidade o fato de a festa de Santa Fleur ser no mesmo dia
da de Santa Galla e apenas três dias antes da de Ontcommer (cujo nome é a
tradução flamenga de Liberata, "libertada"). Contudo, não há indícios que rela-
cionem claramente Santa Fleur e a abadia de Saint-Savin,

53. G iraldus Cambrcnsis, Topograpbia l libernica, 11, 20, ed. J. F. Dinock, Londres, Longman, 1867, p.
107: "Mulícr ista, duplici prodígio monstruosa, non hcrmaphrodira tamcn, scd alias mulicbri naru-
ra rantum cmollita, ad intucntium rarn risum quarn stuporcm, curiam assiduc scqucbatur".
51. Conforme os dados fornecidos pela Fototeca do Ccntre d'Erudcs Supéricurcs de Civilisation Médiévalc
de Poiricrs. Tais representações estão em Aulnay, Chnizc-lc-Vicomrc, Chauvigny, l laimps, Sallcs-
lcs-Aulnay c Villicrs-sur-Chizé.
55. Bouvcnnc, 01'. cit., p. 115.
56. Van Dorcn, 01'. cit., col. 1096-1097.
57. Casrex, op. cit., 1'1'. 118-128; Bouvcnnc, oJ). cu., 1'1'. 115-116.
58. A mártir e virgem Savinc é conhecida apenas em Sainr-Savin, onde um dos altares registra seu
nome: Corpus eles inscriptions de Ia Francc médiéuale. Vienne. cd, R. Favrcau c ]. Michaud, Poiticrs,
CNRS-Universiré de Poiticrs, 1975, n. 59, p. 100.
59. J-L. Lc Qucllec, "I.a I-ormulerrc de Saintc Barhc conrrc I'orage: Variantes ct motivations", em
Méntoircs du cercle de/lides rnytbologiques, 1, 1991, 1'.59.
60. Idem, 1'1'. 51-80. A proteção contra tempestades eleve-se ao fato de um raio ter fulminado o pai
de Barba logo após ele a ter martirizado.
186
Devemos então lembrar que, na concepção dos afrescos da nave, tive-
ram papel central os textos lítúrgícos lidos ou cantados da Septuagésírna à
Páscoavl. Isto é, na etapa do ano Iitúrgico na qual aparecem referências a Adão
e Eva. De fato, na semana da Septuagésima lêem-se os primeiros capítulos do
Gênese, quando da Circuncisão e da Epifania, passagens da Epístola aos
Romanos, e no tempo da Paixão, versículos da Primeira EPístola aos Corintios,
textos que se referem ao Primeiro Homem, além de antífonas, responsórios e
hinos que também o citamG2. Ademais, o momento-chave da Paixão é tam-
bém o equinócio da primavera e () dia da criação do mundo'», portanto momen-
to no qual os primeiros afrescos da nave mereciam especial atenção. Dentre
eles o da Eva barbada, que inaugurava ali, no lado norte da igreja, um eixo
imaginário que terminava exatamente no primeiro altar da absidíola do dearn-
bulatório, o altar das virgens, erguido em meados do século XI, pouco antes
de começarem os trabalhos de pintura da abóbada.
Assim, não é despropositado pensar que havia uma "festa" de Eva6\ que
de maneira informal se inseria no calendário martirológico local. As santas do
altar das virgens eram celebradas a 5 de fevereiro (Agata), 13 de maio (Agnes),
15 de julho (Savine), 12 de agosto (Cecília), 19 de setembro (Lúcia) e 13 de
novembro (Percincrer». Duas santas barbadas completavam os últimos meses
do ano, Ontcommer (8 de outubro) e Bárbara (4 de dezembrojw. Ficavam
descobertos apenas junho, mês de trabalhos agrícolas imensos, no qual já
havia a festa do segundo patrono da abadia, Cipriano; e os meses ligados às
festas cristológicas, janeiro (Circuncisão e Epifania, esta por muito tempo con-
siderada mais importante que o Natal) e março-abril (Páscoa, a principal data
do cristianismo, festa móvel que se desloca de 22 de um mês a 25 do outro).
No período da Ressurreição do Senhor, lembrava-se aquela que intro-
duzira o pecado no mundo e que assim tornara necessária a Encarnaçâo e a
Paixãos". Aquela que fora em certo sentido a primeira mártir, atormentada

61. l.abandc-Mailfcrt, "Lc Cyclc de l'Ancicn Tcstarncnt", pp, 392-393.


62. '1'. Garcia de Orbijo, "Aliamo". em Bibliotbeca SaI1CIOrU111, 1'01. 1, col. 211.
63. I'. Carol, "Lcs Fêtcs chrétienncs", em lJAU., vol. V-I, col. 1-114 c 1429. Para a Legenda Aurea , 53,
p. 229, Adão foi criado em março, c na mesma data e hora do seu pecado é que se daria depois
a Anunciação c a Crucificação.
61. Para a Igreja ocidental, Eva não foi canonizada, e era lembrada na liturgia, sobretudo quando das
festas marianas, devido ao antigo paralclismo anritético Eva-Maria (ef. E. Guldan, Eua und Maria:
Iiine A ntitbese ais Bildmotiu; Colônia, Bôhlau, 1966). Na Igreja bizantina, Adão e Eva eram cul-
ruados no primeiro domingo do Advento, quando da festa dos antepassados de Cristo e dos jus-
tos do Antigo Testamento.
65. COljJUS des lnscriptions. n. 53, pp. 87-8H, e n. 59, p. 100.
66. As festas de Liberara (12 de julho) e Galla (17 de julho) enquadravam a de Snvinc (15 de julho)
e vinham logo após a de Savin, patrono da igreja, no dia 11; cf. os respectivos verbetes da Bibliotbeca
Sanctorum.
67. Um martirológio oriental jacobita de fins do século XIII ou primeira metade cio XIV celebra o casal
primordial na semana seguinte 'I Páscoa, a .< bebdomas albaturum": "I.c Martyrologuc de Rabban
187
pelo Diabo mesmo após ter sido expulsa do ParaísoGs. Era clara a relação entre
Eva, de um lado, e as santas do altar das virgens, de outro. Tratava-se de uma
relação tipológica entre a primeira virgem - condição bem marcada pela pre-
sença da barba - e as demais. E também de uma relação inversa, entre Eva
que nasceu inocente e por isso barbada, e as mulheres que nasceram mancha-
das pelo pecado original e portanto imberbes, mas que pela conduta se tornaram
santas e barbadas. Enfim, no confuso e longo processo de assimilação, identi-
ficação e fusão entre santas de caráter popular, podemos pensar como hipótese
que a Eva barbada representada no afresco da nave era na óptica laica associa-
da a Gala-Barba-Liberata,
Alcançamos assim um primeiro significado daquela imagem, contudo de
forma ainda insuficiente. Devemos então tentar aproximar-nos um pouco mais
da leitura que os homens medievais faziam daquela cena. Para isso propo-
mos uma análise em quatro níveis. Obviamente tais cortes são artificiais, recur-
so do historiador buscando entender um fenômeno do passado, mas recurso
legítimo caso ele trabalhe respeitando os valores da época estudada.

Pensemos assim, inicialmente, no plano exegético. Mas não na exegese


erudita, restrita a uma elite dentro da camada eclesiástica, o que já foi muito
bem estudadow. Deve-se levar em conta uma espécie de exegese popular,
constituída por fragmentos de diferentes procedências que eram reunidos e
articulados de acordo com as condições de cada local e de cada grupo social.
Não havia, é claro, codificações dessa exegese, e exatamente devido à sua
plastícídade ela é muito difícil de ser captada pelo historiador. No entanto essa
seria uma tarefa importante para se compreender melhor determinadas face-
tas das relações entre cultura erudita e cultura folclórica.
Entre o material variado que a constituía, estavam fragmentos da exegese
clerical selecionados, absorvidos e adaptados pelos leigos a partir do que
chegava até eles através da pregação, da liturgia e da iconografia. Também
fazia parte da construção da exegese popular uma exegese de origem erudi-
ta destinada aos leigos, e por isso simplificada e rnoralízantetv. Um terceiro
elemento eram as concepções e os valores do folclore, utilizados como filtros
e moldes no contato com o material bíblico. Mas, acima de tudo, estavam as

Sliba", cd. 1'. Pcctcrs, em Analecta Bollandiana, 27, 1908, [1. 178, Como os [acobitas, isto é, mem-
bros da Igreja crisrâ síría ocidental, sempre peregrinaram de forma continua a Jerusalém" - cf. J.
Fiey, "Lc Pêlcrinagc eles ncstoricns ct jacohites il jérusalcm, COH, 12, 1969. pp. 113-126 - não é
impossível que os cruzados, dos quais muitos eram originúrios do Poitou, tenham tomado conhe-
cimento das tradições religiosas daquele grupo.
68. O tema da vida sofrida de l.va e de seu comportamento santo após o Pecado Original aparece frc-
qücnrcmcnrc nos apócritos, em especial no II Comhattimento di Adanio, cd.-trad. A. Battista c B.
Bagarti, jcrusalém, l-ranciscan l'rinting I'ress, 1982.
69. lI. de Lubac, I!xégese médiéuale: Les Quutre sens de l'ticriture, (4 vols.), Paris, Aubier, 1959-1964;
B. Smallcy, 'I1JeSIUC~}' oftbe Bible inibe Middle Ages, Oxford, lIasil Blackwcll, 1983.
70. G. Dahan, "L'Intcrprétation de I'Ancien Tcstamcnt dans lcs drames religieux (Xlv-Xl llv sícclcs)",
RO/1/ll11ia, 100, 1979, rp. 71-103.
188
tradições bíblicas que circulavam de forma oral e literária sem entraves codi-
ficadores. Tradições que, devido exatamente a essa plasticidade, adequavam-
se melhor sensibilidade e ao comportamento
à dos leigos: os apócrifos.
Apesar de considerar tais narrativas sem autoridade divina, isto é, não
ditadas pelo Espírito Santo e por isso excluídas da Bíblia canonicamente acei-
ta, a Igreja não as combatia. Várias vezes mesmo, autoridades eclesiásticas
citavam-nas. Freqüenternente textos de pregação e a decoração iconográfica
recorriam aos apócrifos. Como Paul Zumthor constatou, "desde os séculos XI-
XII, e mais ainda no XIII, os livros bíblicos apócrifos entraram no domínio dos
conhecimentos correntes"?". E da mesma forma que desde os primeiros Pais
da Igreja as relações entre Antigo e Novo Testamentos eram objeto da exegese
erudita.", faziam-se aproximações e comparações entre os relatos apócrifos.
Esse simbolismo tipológico Iaico incluía personagens bíblicas - vistos mesclada-
mente a partir dos textos canônicos e apócrífos - e personagens provenientes
da mitologia clássica ou do folclore local.
No caso da Apresentação de Eva de Saint-Savin, a exegese popular dava-
se sobretudo a partir da forte presença de elementos míticos de origem judaica
incorporados ao folclore. De fato, desde a época de Carlos Magno os judeus
gozavam de boa situação no reino franco, com aquele soberano tendo mesmo
trazido da Itália e de Bagdá alguns eruditos conhecedores da fé mosaica, aos
quais se seguiram outros nos reinados de Luís, o Pio, e de Carlos, o Calvo?".
Ora, a tradição local atribuía a fundação de Saint-Savin a Carlos Magno e conside-
rava Bento de Aniane, que tinha sido homem de confiança de LUÍS, o Pio, um
dos primeiros a dirigir a abadia. Assim, pelas próprias condições históricas de
sua fundação, ela desde o início não deve ter desconhecido a cultura judaica.
Os contatos entre judeus e cristãos no reino franco de forma geral, inclu-
sive no Poitou, não foram incomuns. Mais do que isso, até vésperas das Cruzadas,
apesar da diferença central que representavam as respectivas religiões, judeus
e cristãos geralmente conviviam bem. Apesar do confisco dos bens hebraicos
ordenado por Filipe I (1060-1108), em meados do século XII os judeus do
Poitou já estavam novamente em boa situação, que melhorou ainda mais com
o advento dos Plantagenetas. Naquela época havia em Poitiers uma comu-
nidade judaica organizada, concentrada em uma das mais importantes ruas da
cidade, fato indicativo de estar ali instalada há muito tempo>'. Até mesmo ativi-
dades militares eram praticadas em comum por cristãos e judeus. As polêmi-
cas religiosas não significavam conflito, e alimentavam mesmo os espíritos">.

71. 1'. Zlllllthor, t tistoire littémire de Ia France ntédiéual, VI"-XII!<J siêclcs, Paris, PUI', '1951, p. 99.
72. Lubnc, op. cit., vol. I, pp. :128-355.
73. E. Kukcnhcim Iizn, "judco-Gnllk'a Neopbi/ologus, 17, 1963, pp. 8{)-91.
ou Gallo-judaict?",
71. ])1'. Vinccnr, '"es./uij'· du Poitou au bas /lge, Paris. Mareei Rivicrc, 1931, pp, 2-6.
iltO,1'1J1/

75. B. Blumcnkranz, ./uij.i et cbrétiens dons le monde occidental, 430-JO'J(j, Paris, Mouron, 1960, pp.
376 c 383. Daí que, ainda nos séculos XII-XliiI os cristãos tivessem bons conhecimentos das inrcr-
189
Saint-Savin pôde perfeitamente ter sentido os efeitos dessa convivência
tranqüila. Das 96 colônias judaicas existentes no reino franco, havia uma pró-
xima a Poitiers, outra em Loudun e outra ainda em Loches?ó. Portanto a peque-
nas distâncias (cerca de 50, 96 e 130 quilômetros respectivamente) de Saint-
Savin, o que o homem da Idade Média, de "mobilidade desconcertante"?",
podia cobrir entre um e quatro dias, conforme o caso. Na própria Saint-Savin
deve ter existido uma comunidade judaica, pois mesmo com os arquivos da
abadia quase totalmente destruídos no século XVI, subsistem indícios naque-
le sentido. Conhecemos documentadamente pelo menos um caso de judeu
habitando a cidade?", fato que sem dúvida não era isolado, como comprova
a existência de uma sinagoga?".
Apesar de esses fragmentos documentais serem do século XIII, eles permi-
tem pensar numa presença judaica anterior em Saint-Savin. Na passagem do
século XI ao XII havia ao menos, com certeza, grupos judaicos próximos a
Saint-Savin e em contato com ela. A influência da cultura judaica pôde atraves-
sar os muros da abadia e se fixar nos afrescos da abóbada da nave, não ape-
nas por estar enraizada na região mas também por não ter encontrado oposição
dos monges de Saint-Savin. De um lado, isso se deveu naturalmente ao fato
de aqueles monges serem produtos da cultura local, ou ao menos não poderem
ficar isentos dela. De outro, aqueles monges, devido à história da abadia,
estavam tocados pelo espírito cluniacense, que valorizava mais os trabalhos
litúrgicos que o estudo'v. No próprio programa iconográfico da abadia poitevi-
na percebe-se, como bem notou Yvonne Labande-Mailfert'". nítido caráter
pedagógico e litúrgico, no qual se revela a influência de Cluny. Ora, essa or-
dern monástica, de acentuado cunho aristocrático, mantinha forte ligação com
a cultura laica, que contemporaneamente ~lqueles afrescos ganhava terreno
com o fenômeno que ]acques Le Goff chamou de "reação folclórica'w.
Aquele convívio talvez tenha - ao lado da herança carolíngia, valoriza-
dora de temas vétero-testamentários - inconscientemente exercido alguma

prctaçõcs bíblicas judaicas: G. Dahan, Les tntellectucls cbréttens et lesjuifs au Moveu Age, Paris,
Ccrf, 1990, pp. 289-307; "I.a Connaissance de l'cxégcsc juivc par lcs chréricns du XII" au XIV" sie-
ele", Recue eles etuclesjuiues, 119, 1990, p, -183.
76. Conforme o mapa de \Veinreich publicado na Rotn. Pbil., 9, 1956. p. li09 e reproduzido por
Kukcnhcim, ojJ. cii., p. 90. Em I.oudun, ainda em princípios do século XVII, havia mais de sessen-
ta epitáfios judaicos medievais atestando a forte presença deles naquela região: '''I. Schwab,
"l.pitaphcs hébraíqucs " l.oudun'', Reuue eles étudesjuioes, 69,1919, pp. 221-22-1.
77. J. Lc Goff, La Cunliscuion de lCccident médtéoal, Paris, Arthaud, 1961, p. 172.
78. Vinccnt, ojJ. cit., p. 30.
79. ]1 o que revela um texto de 1266, no qual o abade se queixa ao conde de Poitlcrs de que "a sina-
goga dos judeus atrapalhava a celebração do serviço divino da igreja": citado por G. Nahon,
"L'Archéologic juive de Ia lrancc médiévalc", Arcbéologie médtéuale, 5, 1975, p. 1-15,
80. Valous, op. cit., 1'01. I, Pf>- 312-372.
81. Labandc-Mailfert, "Le Cyclc de I'Ancien Testamcnr'', pp. 391-395.
82. l.c Goff, "Culturc cléricalc ct traditions folkloriqucs duns Ia civilisation mérovingicnnc", em FAMA,
p. 233, n. 26.
190
influência na decisão de se cobrir 412 m? de afrescos apenas com cenas do
Antigo Testamento. De qualquer forma, é inegável que a convivência resul-
tou na penetração de elementos míticos judaicos no imaginário cristão local,
ou ao menos reforçou a presença deles ali. Foi o caso da concepção da
androginia inicial de Adão, que aparece, ainda que de forma ambígua, no
próprio texto do Beresbit. "Deus criou o homem sua imagem; à imagem de
à

Deus ele o criou. Macho e fêmea foram criados ao mesmo tempo"8.i. Esse "ao
mesmo tempo" tinha permitido comentários rabínicos segundo os quais, quan-
do o texto sobre a criação de Eva fala em Deus extraindo de Adão "uma de
suas costelas", isso significaria "um de seus dois lados"81. A mesma interpre-
tação que via em Ad~IOum andrógino depois dividido apareceria também no
Zobarõ>, texto tardio que reunia, contudo, tradições bem anteriores. Enfim,
era uma idéia muito difundida no mundo judaico a de que "a criação da mu-
lher, a partir do homem, foi possível porque originalmente Adão tinha duas
faces, que foram separadas para o nascimento de Eva"8ú.
Na verdade, as especulações sobre a androginia primitiva de Adão não
eram estranhas ao cristianismo medieval. Apesar de negada oficialmente pela
Igreja, a idéia foi aceita ao longo da Idade Média por vários teólogos importan-
tes, de Gregório de Nissa a Nicolau de Cusa. Quando Santo Agostinho, talvez
a maior autoridade teológica para o homem medieval, refere-se a Eva como
"masculi latere creata est'í", ele involuntariamente deixava para os séculos
seguintes a possibilidade da aceitação da interpretação andrógina. Adepto de
uma explicação literal e não alegórica das Escrituras, Santo Agostinho ao
preferir falar em tatus e não em costa, como aparece na Vulgata, não fazia ne-
nhuma opção exegética, mas isso seria entendido diferentemente pelos
medievais. Se no latim clássico costa, desde o século III a. c., significava igual-
mente "lado"88, no latim medieval tatus, além de sua acepção originária, ga-
nhou ainda o sentido de "união conjugal", de "concubinagem'w.
Visto dessa maneira, o afresco de Saint-Savin correspondía bem ao sen-
tido que o pensamento mítico atribuía ao texto bíblico: () Pecado que levara
o Ser humano a ser retirado do Paraíso era um fato paralelo retirada do lado- à

costela de Adão, narrado nos versículos anteriores. E esta última passagem, o


relato da separação entre o feminino e o masculino ganhava sentido ao se

83. Beresbití . 27: La Bible, édition bilingue, rrad. Grand-Rabbin Zadoc Kahn, Paris, Caibo, 3. cd., 1983,
voi.I, p. 2.
81. Midrasb Rabba. Genêse, 8, 1, trad. li. Maruani e A. Cohcn-Arazi, Paris, Verdicr, 1987, p. 101.
85. Zobar, 31b, rrad, C. Mopsik, Paris, Verdier, 1981, vol. I, p. 193.
86. Ginzberg, ojJ. cit., vol. I, p, 66, e vol, V, pp. 88-89, n. 12.
87. f)e Ciuitute lJei, XIV, 22, n, 11, col. 1\30.
88. A. Ernout, A. Mcillct e J. Anclré, Dictionnuire étymologiqne de! la langue lutine. Paris, Klincksicck,
1979, p. 11\6.
89. A. Blaisc, t.extcon Latinitatts Medi! /leui, 'I'urnhout, l írcpols, ]975, p. 525. É interessante observar
que a versão bfblica grega dos Setenta também fala em pleurà, "lado', c não em "costela": La Bible
d'Alexandrie: 1.0 Genêse, rrad. M. l larl, Paris, Cerf, 1986,pp. lO'Í-105.
191
ligar à descrição do capítulo anterior do Gênese, que fala no homem criado à
imagem de Deus, criado "macho e fêmea". Enfim, bem de acordo com a men-
talidade medieval e suas expressões culturais globalízadoras, tratava-se de uma
leitura circular da Bíblia. Em função disso, a pintura mostra as três persona-
gens com traços bastante semelhantes, inclusive todas barbadas, pois os dois
indivíduos colocados nos lados (Adão e a pretensa Eva) são reflexo daquele
que se encontra no centro, são na verdade uma mesma e única criatura: o ser
humano criado à imagem e semelhança do Criador.
No plano social, a questão central colocada pela imagem era a do casa-
mento que, aliás, naquele momento, ganhava importância em todo o Ocidente
cristão. Para a Igreja tratava-se, no quadro da Reforma Gregoriana, de estabe-
lecer a atividade sexual como fronteira diferenciadora básica entre eclesiásti-
cos e Ieígos'v. Aos primeiros impunha-se o celibato obrigatório, aos segundos
que quisessem manter uma vida sexual ativa impunha-se o matrimônio. Fazendo
deste um sacramento, a Igreja retirava o sexo e a procriação da esfera do priva-
do, como tinha sido na Antiguidade, e colocava-o na esfera do público, isto
é, da comunidade cristã dirigida pela própria Igreja. Ora, a imagem de Deus
apresentando Eva a Adão era, do ponto de vista eclesiástico, lembrar o ato
fundador do sacramento. E dotar Eva de barba era lembrar a igualdade exis-
tente entre os cônjuges naquele sacramento, era insistir na necessidade do
consentimento mútuo para que ele fosse válido.
Para a monarquia francesa, a questão se colocava no mesmo momento
da execução dos afrescos de Saint-Savin, pois Filipe I ao repudiar sua esposa
para fazer um novo casamento foi excomungado (1095-11 05), ficando assim
impedido de participar da Primeira Cruzada. Este fato repercutiu por toda a
Cristandade, inclusive no POitOLl, cuja região vizinha estava naquele mesmo
momento (o Berry, em 1100) sendo anexada aos domínios reais capetíngios.
Para a nobreza feudal, enfim, a regulamentação do matrimônio interferia nas
questões de sucessão e herança e tornava-se por isso um tema de grande inte-
resse para ela. Especialmente a reafirmação das regras sobre consangüinidade
limitavam o mercado matrimonial daquela aristocracia fortemente aparentada
entre si por laços biológicos e espirituais. Para ela, a imagem de Saint-Savin
evocava antes de tudo uma relação incestuosa?". Mas do ponto de vista eru-
dito, como incesto é a intrusão da sexualidade numa relação espiritual, ele
não acontecera no Paraíso, apenas depois, como decorrência do Pecado Ori-
ginal. A prática do incesto era uma reprodução da Quedav-.

90. Chama a atenção uma curiosa sincronia, que mereceria ser estudada: o celibato clerical como ele-
mento difendador entre cléngos e leigos dava-se no momento em que se generalizava o hábito
destes últimos de raspar a barba, como faziam os primeiros. IIá interessantes dados para se pen-
sar a questão em 11. Platcllc, "Lc Problêmc du scandalc. l.cs Nouvellcs medes masculines aux Xlc
ct XII" siõclcs", J<HJ>lf, 53, 1975, pp. 1071-1096.
91. E. Leach, "Ia Gcnõsc comme mythc", cvo L'Unité del'bommect autres essais, (tracl.), Paris, Gallimard,
]980, pp. 151-156.
92. Agradecemos a Anita Gucrrcau-jalabcrt seus comentários sobre essa passagem de nosso texto e a
gentileza de ter colocado " nossa disposição trabalhos seus ainda em via de publicação.
192
Essa faceta social do Nascimento de Eva mostra, talvez mais que outras,
o fato de a leitura de uma imagem ser uma forma de manipulação dela'):\.
Freqüentemente o casamento representava interesses contrários para Igreja,
monarquia e nobreza?". Sobretudo naquele contexto de Cruzadas e de cresci-
mento demográfico, o que deixava muitos senhorios temporária ou definiti-
vamente sob o comando de mulheres. O próprio Poitou era um exemplo disso:
herdado em 1137 por Eleonor de Aquitânia, ela no mesmo ano o transmitiu
por casamento a Luís VII de França e, por um novo casamento, em 1152, ao
futuro Henrique II da Inglaterra. Da mesma forma, a transmissão de bens
fundiários por via feminina era um elemento importante no mais famoso mito
do Poitou, o de Melusina, fada que levou prosperidade material para a família
do marido e a retirou quando retornou ao Outro Mund095.
A melhoria da condição social feminina na primeira metade do século
XII, recolocava na ordem do dia algumas questões aparentemente definidas
pelo relato do Gênese. O fato de Eva ter nascido da costela de Adão, era geral-
mente interpretado como origem da inferioridade e da submissão femininas.
Além disso, ao dar nome a Eva, como fizera aos animais, AcElO passava a ter
poderes sobre ela<J6,segundo a antiga e difundida crença no poder criador e
dominador das palavras. Poderes, portanto, anteriores mesmo ao Pecado.
Porém o afresco de Saint-Savin, ao mostrar Eva com barba, em tudo seme-
lhante a Adão, colocava em xeque aquela pretensa superioridade masculina.
E de certa forma apenas fazendo uma leitura literal do texto bíblico: Eva "é
osso dos meus ossos e carne da minha carne", e por isso "eles se tornam uma
só carne"?", Leitura, aliás, que era a justificativa teológica do matrimônio
enquanto sacramento.
No plano antropológico, devemos considerar sobretudo a mudança entre
a Eva pré-pecado (barbada) e a Eva pós-pecado (imberbe). Podemos ver nisso
a expressão de um rito de passagem, como os existentes em grande número
nas sociedades arcaicas, inclusive na feudal. Conhecemos muitos casos, talvez
comparáveis, nos quais o corte de cabelo marcava o deslocamento do indiví-
duo de uma condição para outra, fosse social, etária ou sexual98. Mais especi-
ficamente, a imagem parece lembrar um rito de iniciação, dado cultural cen-

93. Wirth, "lntroduction", op. cil., p. 16.


91. G. Duby, I.e Cbeoalter, lafemnte et le prêtre, Paris, Ilachette, 1981.
95. J. I.e Goff, "Mélusinc maternelle ct défrichcusc", em I'l1MA, pp. 307-331. Ilá alguns pontos de con-
tato interessantes entre a Eva de Saint-Savin e Mclusina, mas sua demonstração fica para outro tra-
balho.
96. Gn 2, 21-23; 3, 20; 2, 19-20. O vcrsiculo 3,16 explicita a supremacia masculina: "Estarás sob o
poder do homem, e ele te dominará". Quanto às especulações do clero medieval sobre essa supe-
rioridade, ver J. Dalarun, "Rcgards de dercs", em G. Duhy e "I. l'crrot (dir.), l listoire clesjemntes:
t.e Moyen Age, Púris, Piem, 1991, pp. 31-5/1.
97. Gn 2, 23-21.
98. A. Van Gcnncp, Les Rites de passage, Paris, Emilc Nourry, 1909, Pf>- 78, ]09, 185 e 238-239; M.
Eliade, Naissances mystiques. Essai SUl' quelques types ctiniticüion, Paris, Gallimard, 1959.
193
tral para as sociedades pré-industriais?'. Tal tipo de rito "consiste em engen-
drar uma identidade social através de um ritual e em tornar esse ritual o fun-
damento axiomático da identidade social que ele produz. [... 1 A iniciação é
um rito criador de identidade que contém portanto o princípio de sua própria
repetíçâo'"?".
O Pecado, sem dúvida, tinha assinalado °
início de uma nova etapa da
vida do ser humano, e assim a perda da barba era a expressão física daque-
la passagem, daquela transição para uma nova situação. Para as tradições po-
pulares judaicas, várias deficiências físicas (menor estatura, perda do brilho
da pele, calvície, menstruação) tinham atingido os seres humanos apenas fora
do Paraíso 101.O relato do Gênese expressa nitidamente as três etapas dos ritos
de iniciação: separação, margínalização, agregação. A primeira, obviamente,
é simbolizada pela extração da costela, pelo corte que separa Eva de Adão,
Na segunda etapa, Eva é responsabilizada por Adão - "foi a mulher que o
senhor me deu para companhia que me entregou o fruto, e eu comi"102 - e
punida por Deus1o.~. Na última, ela passa a se reagregar periódica e efernera-
mente ao marido através do ato sexual: "Adão conheceu Eva, sua mulher, que
concebeu e deu à lUZ"104.
Nessa trajetória, há uma homologia inversa da barba em relação à roupa.
Antes do Pecado Original, o ser humano era assexuado, nu e barbado, depois
sexuado, vestido e, Eva, irnberbelv>, Ou seja, a barba era elemento da glória
paradisíaca, reflexo da imagem divina: "Qual era a roupa do primeiro homem?
Uma pele de unha e uma nuvem de glória o cobria" JOG. Depois isso mudou,
e para se resguardar das intempéries Adão e Eva recorreram a uma prosaica
roupa, feita de linho e pele de carneiro, de bode, de coelho e de camelow".
Para o Adão exilado a única esperança - "Eu sabia que estava desnudado da
justiça que me havia revestido"108 - passou a ser o batismo, que faz o cristão
estar "vestido de Cristo"109.

99. ]. G. Frazer, Tbe Golden Bougb, (8 vols.), Londres, Macmillan, 1907-1927, vol. lI, p. 278; Lcach,
"Chcveux, poils, magic'', em L'Unité de l'bomme, op. cit., pp. 321-361.
100. A. Zcmpleni, "Initiation", em 1'. Bonre e M. lzard (dir.) Dictionnaire de l'eib nologie et de l'anibro-
pologie, Paris, PUF, 1991, p. 375.
101. Ginzbcrg, op. cit., vol. I, pp, 75-83.
1(12. Gn 3, n.
103. Gn 3, 16.
104. Gn 4,1.
105. Burchard ele Bellevaux, op. cit., 11I,XXIV, 836-81t1, p. 200, associa barba e roupa, considerando-
as elementos revcladorcs das características espirituais de seus portadores, como demonstra o caso
de Santa Galla (111,VI; p. 177-178).
106. Los Capítulos de Rabbi Iiliezer, 14, 2, trad. M. Pérez Fcrnández, Valência, Institución S. jcrónimo,
1984, p, 125.
107. Midrasb Rabba, 20, 12, p. 235.
108. La \fie grecque d'Adam e/ Eoe, 20, cd-rrad. D. A. Bcrtrand, Paris, Maisonncuve, 1987, p. 85.
109. Cal 3,27; 1(11113, H; Cal 3,10 e Ef 4,24: sobre esses vcrsículos ver E. J Iaulottc, Svntbolique du vê/e-
meru selem laBible, Paris, Aubicr, 1966, pp, 221-233.
194
Símbolo do pecado, a nudez revela o outro lado do homem. Antes a alma
pura e radiante recobria o corpo, depois o corpo tornou-se a veste da alma.
O Pecado virou o homem do avesso. Assim, foi para cobrir o interno tornado
externo que ele passou a usar roupas. Roupas que protegem dos extremos do
frio e do calor o frágil corpo feito de argila, mas sobretudo que protegem o
corpo do poder de atração exercido por outro corpo. Não é casual que pelo
relato bíblico, Deus tenha entregue túnicas de pele aos primeiros seres humanos
logo após Adão ter lembrado a função sexual de Eva, cujo nome significa "mãe
de todos os ViVOS"llU.Como a barba de Eva era símbolo de assexualídade, e a
roupa seu inverso, faz sentido a leitura psicanalítica que vê na roupa uma repre-
sentação do útero, da gravidez e mais especificamente das membranas fetais!' t.
Assim, o rito de iniciação permite a passagem do uno ao dual e, pela
fusão da dualidade, o retorno à unidade através de uma terceira identidade.
Por isso O rito implica lima mudança física, uma pequena mutilação (dente,
orelha, nariz, circuncisão, subincisão) que marca definitivamente a inserção
do indivíduo na nova categoria social. Rito que gera ainda uma socialização
antagônica entre o mundo de dentro da nova categoria e o mundo de fora
dela112. Sem dúvida o casamento é uma das melhores expressões desse tipo
de rito por implicar separação (em relação às famílias originárias), marginalí-
zação (do mundo dos solteiros), mutilação (defloramento), reagregação (através
da maternidade/paternidade). Para a sociedade cristã medieval, naturalmente,
o protótipo dos casamentos (e de outras formas de iniciação) era encontrado
no mito de Adão e Eva. Esse é um dos fatos que a versão iconográfica de
Saint-Savin pretende acentuar, com a perda da barba de Eva metaforízando a
passagem da situação paradisíaca para a terrestre.
Como vimos, apesar das dificuldades em se acompanhar a formação das
lendas das santas barba das, a associação entre barba feminina e santidade é
bastante clara. Essa criação medieval tinha fontes bem anteriores. Na Antiguidade,
atribuía-se uma barba postiça a homens imberbes e a mulheres que tivessem
demonstrado coragem e sabedoria lU. Entre os semitas ela era muito valorizada,
sobretudo pelos hebreus, para quem cortar a barba de alguém era uma enorme
afronta, ou então sinal de luto e desolação!". Para os romanos do século I

110. Cn 5, 20-21.
111. A. Garma, "Origine cr symbolismc des vêrcmcnts". Reuucfrançaisc de psvcbanalvse, 11, 1950, pp.
60-81.
112. A expressão medieval disso eram os juvenis, homens núbcis c solteiros que buscavam um casa-
monto proveitoso em famílias socialmente mais bem colocadas. No contexto do crescimento
dcmográflco dos séculos XI-XII, esses membros da pequena c média aristocracia rcprcscnruvam
um furor de tensão social c insrahilidadc política, cf G. Duby, "I.cs jcuncs dans Ia sociéré arisro-
cratiquc duns ia Francc du Nord-Oucst au XII" sicclc", /l/;5e; 19, 1961, pp. 835-816; Guillaunte le
Marécbul ou le nteilleur cbeuatier du 11Iol1d<" I'aris, layurd. 19!H.
113. fJSymb, p. 107.
111. I'. Vigouroux, "Barbc", em F. Vigouroux (di r.), Dicttonimire de la Bible ( 10 vols.), I':tris, l.etouzcy
ct Ané, 1926-1928, vol, 1-2, col. H50-J156.
195
ela significava juventude, e deixava-se de usá-Ia aos 40 anos de idade. Entre
os primeiros cristãos, por influência romana, ela era considerada um símbo-
lo de eterna juventude e, para alguns Pais da Igreja, era preferível que os fiéis
usassem barba!t>. Entre os francos, um largo bigode era sinal de força e de
condição social superiorU". Para o monge Burchard de Bellevaux, no começo
da segunda metade do século XII, ela era sinal de força, sabedoria, maturida-
de e religiosidade! 17.
Para a sociedade medieval, o fato de um pai matar uma filha que se
recusava a aceitar o casamento (como nas lendas de Santa Barba, de Santa
Liberata e de Santa Wilgefone) era uma questão moral e jurídica, mas tam-
bém dizia respeito ao campo que atualmente chamaríamos de antropológico.
Realmente, o episódio se relacionava com a questão da parentela, que repre-
senta uma realidade cultural de peso para inúmeras sociedades. No caso da
sociedade feudal, os elementos essenciais estavam nos conceitos de filiação
e aliança. Elementos intimamente articulados, pois os dados da filiação eram
manipulados para formar ou consolidar alianças, e estas, por sua vez, gera-
vam novas filiações, que seriam depois utilizadas na construção e manutenção
das redes de aliança.
No entanto as regras matrimoniais que a Igreja passava então a impor
dificultavam o jogo das relações feudo-vassálicas através de casamentos.
Dificultavam, portanto, a preservação do sutil e delicado equilíbrio entre filia-
ção e aliança. O fato de a Igreja classificar como incesto, isto é, como tabu,
as uniões entre indivíduos aparentados até o sétimo grau, punha limites difí-
ceis de serem respeitados por aquela aristocracia de práticas matrimoniais mais
ou menos endogâmicas. Nesse contexto, o afresco de Saint-Savin lembrava
que o primeiro casamento do mundo fora entre Adão e sua filha Eva1J8. Isto
não era, claro, exclusividade da pintura de Saint-Savin, mas a barba de Eva,
ao dar uma nova força à cena, ressaltava a questão do incesto. Questão que
falava de perto à nobreza feudal do Poitou, pois em 1103 o duque Guilherme
IX fora excomungado por incesto, e em 1152 sua neta Eleonor e Luís VII de
França divorciavam-se alegando laços próximos de parentesco entre eles.

115. 11. Lcclcrcq, "]\arb<:", <:111/JAU., vol, 11-1, col. ~79-180 c 182.
J 16. J. Iloyoux, "Iü:g<:s criniti. Chevclurcs, tonsurcs cr scalps chcz lcs Mérovingicris", NHPI/, 26, 1918,
rr. 1J79-508; A. Camcron, "llo\\' J)id rhc Mcrovingian Kings Wear 'I'hcir Ilair''', 1<8['[[. 13, 1965, pp.
120j-1216.
117. Apologia de barbis, 111,XVI, rp. 190-191, e XVIII, pp. 193-195; XIX-XX, pp. 195-197; XXI-XXII, pp.
197-199; XXIII-XXIV, pp, 199-201.
1!8. Como foi mostrado por Rohcrto Zapperi em um interessante estudo, a partir da segunda mcradc
do século XI a iconografia passa a representar o nascimento de Eva não em dois momentos, a
extração da costela de Adào c a moldagcm da mulher naquela costela, mas <:111
uma só cena, com
Eva nascendo diretamente de Adão, COIllO em um parto: I. Tknnnte enceittt, (rrad.), Paris, PUI', 1983,
pp. 21 c ss. Assim, no plano mítico, a EV~I barlxrd« era o correspondente L' o complemento do
Adão grávido.
196
No plano psicológico, por fim, já se aventou uma hipótese sobre o mito
adâmico que se poderia aplicar ao afresco que examinamos U". Segundo
Theodor Reik e sua "psicanálise arqueológica", o mito, na sua versão bíblica,
registra de maneira deformada um rito de iniciação tal como era praticado
pelas tribos hebraícas primitivas. Tratar-se-ia de um rito clássico de puber-
dade: Adão adormecido (em êxtase) é circuncidado (extração da costela), des-
perta física, social e psiquicamente em condições de se casar (renascimento
simbólico que é o eixo do ritual), tem sua primeira experiência sexual (co-
nhece Eva), integra-se, enfim, ao mundo masculino adulto de sua sociedade.
Deste ponto de vista, ao sair de seu sono iniciático, Adão encontrou um novo
Adão graças à intervenção de um homem mais velho que conduzira o ritual.
Logo, na pintura de Saint-Savin as duas figuras barbadas que ladeiam
Deus, igualmente barbado, poderiam estar se referindo a Adão. Não existiria,
assim, uma Eva barbada. A cena pretenderia mostrar o iniciador, o pai sim-
bólico, apresentando o iniciado a si mesmo, isto é, ao indivíduo "morto" e
"renascido" pelo rito. Indivíduo representado basicamente com as mesmas
feições do mais velho, para expressar sua nova condição, sua igualdade diante
daquele. Plausível primeira vista, essa sobreposíção da teoria de Reik e do
à

nosso afresco, coloca no entanto alguns problemas que invalidam a hipótese.


Limitemo-nos ao essencial: os cristãos medievais estavam impossibilitados de
fazer aquela leitura da imagem, porque ela pressupunha dados culturais que
não eram os seus. Pode-se duvidar de que mesmo os judeus ocidentais do
século XII tivessem elementos para fazer aquela interpretação do afresco.
Por outro lado, a cultura e a psicologia daquela época nos autorizam a
pensar que, nesse plano mais do que nos anteriores, os medievais viam na re-
presentação da Eva barbada uma imagem da androginia primitiva. Deste ponto
de vista, a barba de Eva faz sentido: a imagem estaria se referindo à unidade
indiferenciada dela com Adão. Tanto que ela perde a barba e ganha seios na
etapa seguinte da cena, quando do Pecado. O conhecimento adquirido através
do fruto proibido teria sido assim, antes de tudo, o conhecimento do andrógi-
no sobre si mesmo, sobre a existência de suas duas metades, que então, e por
causa disso, se separaram. A vergonha que sentiram naquele momento teria
sido a tomada de consciência do Eu e do Outro. Somente então teriam surgi-
do como entidades autônomas o Adão masculino e a Eva feminina.
Não esqueçamos que o tema da tomada de autoconsciência se impunha
cada vez mais aos homens do século XII. Quando, em 1215, o IV Concílio de
Latrão tornou a confissão obrigatória pelo menos uma vez ao ano, ele apenas
normatizava a tendência à instropecção e à auto-análise que se desenvolvia
desde o século anterior. A alteridade tornava-se visível em rodos os cantos e

119. Til. Rcik, La Création de ia femme, (trad.), Paris, Complexo, 1975, sobretudo pp. 81-123.
197
levava os ocidentais, primeiro a reagirem com violência contra o diferente, e
depois a refletirem sobre si mesmos. As Cruzadas punham aqueles homens
diante de outras sociedades, com as quais os contatos anteriores tinham sido
indiretos ou pouco intensos. Através dos cronistas e viajantes da época percebe-
se bem os sentimentos contraditórios de admiração, ódio, estranheza e atração
que bizantinos e muçulmanos provocavam nos ocidentais. Os judeus, presen-
tes havia tantos séculos no Ocidente, passavam a ser vistos como o outro, o
estrangeiro por excelência.
Esses novos sentimentos despontavam mesmo no seio da sociedade
cristã. O crescimento demográfico, ao provocar a derrubada de florestas, a
drenagem de pântanos, a construção de cidades, a intensificação das trocas
comerciais, não aproximava os grupos humanos? Não se percebia que as
regiões vizinhas, tão parecidas em vários aspectos, também tinham suas parti-
cularidades? Não se descobria cada vez mais a existência de dialetos dife-
rentes, de gente vinda de todas as partes? Não começava a se desenvolver o
sentimento que depois seria chamado de nacionalista? Apesar de todas essas
novidades, naquele mundo em transformação acelerada, os maiores contrastes
e as maiores semelhanças entre o Eu e o Outro continuavam a estar na com-
paração homem/mulher. E nisso, como em muitos outros fenômenos sociais,
o mito de Adão fornecia os elementos essenciais de reflexão, conscientes ou
não. Nesse quadro é que a concepção da androginia adâmica ganhava nova-
mente força.
Tal leitura do texto bíblico e de sua representação-interpretação pelos
artistas de Saint-Savin era perfeitamente plausível para a cultura da época. Na
narrativa bíblica, a proibição de comer o fruto fora implicitamente feita a um
ser andrógino. A interdição fora anterior ao nascimento de Eva, e se esta foi
depois punida por uma proibição que Deus não lhe dirigira nomeadamente,
é porque enquanto costela de Adão a proibição também dizia respeito a ela.
Costela era então claramente uma metáfora da parte feminina do Andrógino
Primordial. Mesmo autores eclesiásticos, desde Santo Ambrósio, reconheciam
que, se o espírito é masculino e a alma feminina, "o espírito é como Adão, a
sensibilidade como Eva"120. Ademais, no relato do Gênese, o elemento femini-
no somente recebe nome - Eva -logo após o Pecadot-", fato fundamental,
pois para a mentalidade arcaica um ser OLl uma coisa ganha existência ape-
nas a partir do momento em que tem um nome122.

Em suma, na Eva barbada sintetizavam-se sentimentos das diversas cama-


das socíoculturaís, valores profundamente enraizados, folclóricos no sentido
de resíduos míticos pertencentes ao conjunto daquela sociedade. Ela era a

120. Ambrósio, De Paradiso, 111,12, rt; 11, cal. 279.


121. Gn 3, 20.
122. Cf., supra, ensaio n. 5.
198
metáfora pictórica da androginia adâmica. Com efeito, para os monges aque-
la representação iconográfica relembrava o caráter adâmico e andrógino que
eles próprios se atribuíam 123. Ademais, a imagem ajudava a justificar o
matrimônio dos leigos que, naquele momento, era imposto pela Igreja como
um dos sacramentos. Para os leigos, por sua vez, a imagem do Andrógino
Primordial evocava um Paraíso pleno de beleza, de fartura, de saúde, de imor-
talidade, elementos "vivos na consciência dos Crentes, que sonhavam e dese-
javam, na desolação comum, a felicidade perdida"121. Vista assim, como imagem
alimentada e realimentadora de antigas tradições folclóricas, a "Eva barba da"
nada tinha de exótico ou de improvável. Era a expressão imagística de ques-
tionamentos e ansiedades profundas da época.

123. Desde os primeiros tempos do monasrícísmo, costumava-se comparar o monge ao Aclào paradi-
siaco e o claustro ao 1;(I<.:n,o que era feito ainda por volta de 1130 por Ilonório Augusroduncnsis,
Gemnta Anintae. 119, FI., 172, col. 590 n. Esse sentido transmitido pela "Eva barba da" era reforça-
do alguns metros adiante pela cena da embriaguez de Noé, segundo pai da humanidade, que t.un-
bém ganhara contornos andróginos <':0111 a cmasculaçào: a Arca é um símbolo da Igreja) c o 1110ngt.:
é tanto o Adào pró-Queda quanto o Noé pós-castração.
12ft. Graf, "11 Mito dei I'aradiso Terrestre", em Mili, p. 92; 11. Franco júnior, IIs Utopias Medieoais, São
Paulo, Brasilicnsc, 1992, pp, 113-139.
o OUVIDO DE ADÃO
ESCULTURA E MITO
NO CAMINHO DE SANTIAGO

Sobre um fundo vermelho atualmente bastante desbotado, Deus, antropo-


morfo e tricéfalo, segura com o braço esquerdo o boneco de argila que acabou
de modelar. Este, rígido, recebe no ouvido esquerdo o toque da mão direita
do Criador, o que lhe dará vida. A cena se desenrola em um espaço grossei-
ramente circular, que é seguro nas bordas por quatro anjos, colocados con-
tudo fora daquela área (Fig. 8). Tal imagem, absolutamente única na icono-
grafia medieval, encontra-se em um capitel da galeria norte do claustro da
igreja colegiada de Santa Maria de Alquézar, no Aragão. Igreja que começou
a ser construída em 1083 e foi consagrada em 1099, ainda que inconclusa.
Apesar do estilo escultórico indicar mais para fins do século XI, outros indí-
cios apontam a construção do claustro, e portanto de nossa escultura, para o
primeiro terço, no máximo a primeira metade, do século XIII.
Situada nas proximidades do caminho de Santiago, a 120 quilômetros de
jaca, Alquézar, direta ou indiretamente, sentia a influência das trocas cultu-
rais que ocorriam através das rotas de peregrinação. Ainda que tais trocas fos-
sem favorecidas pela existência de uma religiosidade comum aos dois lados
dos Pireneus-, o inusitado daquela imagem possivelmente surpreendia os via-
jantes. De um lado porque no mesmo claustro, em outro capitel, uma cena

I. R. Dei Arco y Garay, Calâlogo Monumerual de Iispaiia. lIucsca, Madricl, CSIC, 1942, p, 191; A.
Ubieta Altera, "La Consrrucción de Ia Colegiata de Alquézar", Pirineos, 5, 1949, p, 259. A. San
Vicente, Aragol1 ronian, l.a Picrrc-qui-virc, Zodiaque, 1971, pp. 26 e 309.
2. I J.Franco júnior, Peregrinos, Monges e Guerreiro.": Peudo-dericalismo e Religiostdade e111 Castelo
Medieval, São Paulo, Ilucitec, 1990, pp. 35-81.
200
do Pecado Original está figurada de maneira absolutamente convencional. De
outro, porque as versões bíblicas às quaís os cristãos de então podiam ter
acesso descreviam o ato divino da criação de Adão de forma diferente.
Com efeito, assim como faz a tradução grega dos Setenta", a Vulgata
latina também fala no gesto criador como sendo um sopro divino sobre a face
de Adão: "Deus formou o homem do pó do solo, e insuflou sobre seu rosto
um sopro de vida e o homem tornou-se um ser vívo'", O original hebraico,
por sua vez, refere-se a Deus soprando "nas suas narinas">, Além disso, o ar-
tista de Alquézar rompia a tradição iconográfica segundo a qual o caráter sagra-
do de Deus deveria estar sempre figurativamente indicado, fosse por uma
auréola, por um nimbo ou por algum outro signo. Trata-se portanto de uma
imagem única e que não foi até hoje, que saibamos, objeto de um estudo
especffícov.
Quais teriam sido as fontes daquela imagem? Unicamente a imaginação
do escultor anônimo? Como Reto Bezzola observou com razão há já muitos
anos, "o poeta da Idade Média [...l, como o escultor, o pintor, o arquiteto, o
músico e mesmo o pensador e o filósofo, cria segundo um modelo que nasce
da própria alma da obra com a qual ele sonha, e não para exprimir em primeiro
lugar seus sentimentos individuais [...l. O autor da Idade Média, como o da
Antiguidade, não é somente um indivíduo perdido num mundo caótico e hos-
til; ele é uma pessoa, isto é, ele se sente indivíduo, mas também e sobretudo,
membro de um organismo, a sociedade humana. O estilo que ele adota, ao
qual se submete sem se sentir forçado, é a expressão desse organísrno'".
Portanto, criava-se de acordo com as possibilidades de criação e de com-
preensão desta, contidas no artista, no patrocinador e no público. Se no caso
de Alquézar quase nada sabemos sobre o primeiro, conhecemos suficienternen-
te os outros dois elementos dessa relação interdependente geradora de obras
artísticas. Sabemos da força da cultura oral naquela sociedade em grande parte
iletrada. A partir dela, muito provavelmente sem ter consciência disso, o que
o escultor ali realizou foi uma interessante metáfora do seu próprio trabalho
de criador. Vox populi, vox Dei. Ou, diz () apóstolo, "a fé nasce da audição'<.

3. Gn 2, 7, ia Bible d'Alexandrie: ia Genêsc. trad. M. Ilarl, Paris. Cerf, 1986, pp. 100-101.
1. Gn 2, 7, Biblia vutgata, cd, A. Colunga e L. 'l'urrado, Madrid, llAC, 7. cd., 1985.
5. Beresbit Z, 7, La Bible, édition bilingue, trad. Grand-Rabbin /:adoc Kahn, Paris. Coíbo, 3. cd., 1983,
vol. I, p. 3.
6. Estranhamente, mesmo as referências ao capitel ele Alquézar não são comuns: ele não aparece
recenseado no imenso levantamento do lndex cfCbrisiian Art ele Princcton, G. Pamplona, Iconografia
de Ia Santisinut Trinidad en e/ /lrle Medieual lN){11701,Madrid, Instituto Dicgo Vclázqucz-Côlt.,
1970, e F. Bocspflug, Dieu dans lart, Paris, Ccrf, 19811, também não o citam. Mesmo a identifi-
cação da cena às vezes gerou problemas: J. Lacoste,"La Sculpturc romane du cloitre d'Alquézar",
em XII Semana de Estutlios Medieuales, Pamplona, Insrírucíón Príncipe de Viana-CSIC, 1976, p.
226, vê ali uma Ascensão da Virgem.
,. IL Bezolla, Le Sens de l'auenture et de l'amour, Paris, La jeune Pâque, 1917, pp. 82-83.
8. Rrn 10, ]7.
201
o fato de não conhecermos atualmente textos que façam referência explí-
cita a uma cena como aquela não significa que eles não tenham existido, ao
menos sob forma oral, o primeiro estágio de toda literatura medieval. Como
Paul Zumthor observou, "o conjunto de textos que nos legou os séculos x,
XI, XII e, numa medida talvez menor, o XIII e o XIV, transitou pela voz não de
maneira aleatória, mas em virtude de uma situação histórica que fez desse
trânsito vocal o único modo possível de realização - de socialização - des-
ses textos'". De fato, o artista parece ter tirado da cultura oral a concepção da
imagem que esculpiu sobre a formação de Adào. Por isso seu tratamento do
tema, ainda que incomum, não chocou nem os cônegos seus contratantes nem
o público local, pois ambos partilhavam das mesmas tradições orais.
Não se pode esquecer que a oralidade era na Idade Média um elos traços
marcantes ela cultura intermediária, isto é, do universo cultural comum a todos
os membros da sociedade, da área de intersecção entre a cultura erudita e a
cultura vulgarlO. Deve-se ainda ter sempre em conta a aguda observação de
Lucien Febvre!", retomada por ]acques Le Gofft-, segundo a qual antes do
século XVI os homens valorizavam mais o que ouviam do que o que viam.
Ou melhor, os medievais tendiam a identificar as coisas que viam com valo-
res e conhecimentos adquiridos previamente, quase sempre por ouvir-dizert:'.
O cristianismo tivera papel central na formação dessa mentalidade ao valo-
rizar a realidade transcendente sobre a realidade material, ao colocar a fé
acima das comprovações concretas: "Felizes aqueles que acreditaram sem
terem visto"!".
A imagem que não correspondesse a fatos, coisas Oll pessoas sobre os
quais se ouvira algo não era reconhecida. A pequena preocupação da arte
medieval com o naturalismo expressava exatamente essa preponderância do
ouvido sobre o visto. Por ter fundamentos na oralídade, é que a arte români-

9. P. Zumrhor, La tettre et Ia uoix de la llttérature médiéuale, Paris, Scuil, 1987, p. 22.


10. Cf., supra, cnsa io n. 1.
11. L. Febvrc, l.e Problême de l'incrovance au XVJ<!siêcle : La Religion de Rabelais, Paris, Albin Michcl,
1912,1'1'.461-173.
12. ]. Le Goff, "L'Occidcnr rnédiéval cr l'océan Indien: Un I lorizon oniriquc", em PI1MA, 1'1'. 283-281.
13. Dentre 05 inúmeros exemplos possíveis, tomemos um de fins da Idade Média, antes da revalo-
rização da cultura greco-Iatina e da invenção da imprensa começarem a empreender a profunda
mudança psicocultural que foi a colocação da visão como o mais intelectual dos sentidos. Segundo
o diário da primeira viagem de Colornbo. no dia 9 de janeiro de 1493 ele "viu três sereias que
apareceram em alro mar, mas não eram tão belas como dizem, pois de cerra forma tinham cara de
homem": Cristóvão Colombo, Textos y Documentos Completos, cd. C. Varcla, Madrid, Alianza, 1989,
pp. 111-112. Ou seja, apesar da aparência daquelas criaturas não corresponder aos relatos que
conhecia sobre elas, Colombo prefere dar crédito ao que ouvira (sereias), e não ao que via (focas).
11. Jo 20,29. A importância do ouvido nesse processo fica clara quando, por exemplo, llecla hicrar-
quiza órgãos e sentidos e coloca o ouvido atrás apenas do coração, sede da alma. Para ele o
batismo circuncida ao mesmo tempo o coração, os ouvidos, <.I língua, os olhos, as mãos, o pala-
dar, ° olfato c os pés: l lomeliae I, 10, 1>1.,
91, col. 57.
202
ca representou abundantemente homens estranhos e animais exóticost>,
Enquanto a cultura erudita tinha sua fundamentação nas auctoritates e a cul-
tura vulgar nos relatos míticos e folclóricos, a cultura intermediária simplifi-
cava e oralízava dados da primeira e crístíanízava e literarizava dados da segun-
da. Desse denominador comum cultural é que freqüenternente saíam as fontes
da iconografia, por isso fornecedora de material para reflexão dos clérigos e
para instrução dos leigos.
() caso de Alquézar não foi diferente. O fato de aquele artista não ter
sido um profíssional'v, provavelmente tornava-o mais receptivo às int1uências
Iaícas e orais. Por isso o capitel em questão reúne três elementos que, se isola-
damente já eram raros, ao serem associados geraram uma imagem inédita na
iconografia cristã. Ainda que não estejamos agora interessados em examinar
com a mesma atenção todos aqueles elementos, não podemos desconsíderar
nenhum deles, sob risco de falsear a análise do conjunto.
Com efeito, uma imagem não é apenas a justaposição de diversos sig-
nos, mas o resultado articulado deles. Ademais, uma imagem nunca é autôno-
ma, pois seu significado está ao menos em parte relacionado com o conjun-
to no qual ela se encontra inserida, isto é, com sua localização física e com a
utilização social que recebe. Ora, no presente caso esse procedimento ele
análise não pode ser adotado, pois o claustro românico de Alquézar foi subs-
tituído no século XIV, quando se reaproveitararn alguns dos capitéis anterio-
res, dentre eles o que nos interessa agora. A impossibilidade de estudá-lo no
seu enquadramento mais amplo sem dúvida limita algumas conclusões, mas
podemos minimizar essa dificuldade examinando de perto suas partes essen-
ciais: o Deus tricéfalo, o Adão inerte, o tóque divino criador no ouvido do
homem. Por opção, faremos essa análise de forma desigual, prendendo-nos
mais à figura humana do que divina. à

Contudo, talvez seja o Deus tricéfalo o que mais chama a atenção ao se


olhar aquele capítel pela primeira vez. Tal imagem derivava da harmonização
de fontes cristãs e pagãs num contexto específico. Entre as primeiras estava
a interpretação de Gênese 1, 26, que via no plural utilizado pela Divindade
C'faciamus bominem ad imaginem et similiiudinem nostram ...") uma referên-
cia à Trindade criadora, ponto de vista partilhado por autoridades como
Ambrósio, Agostinho, Gregório, Beda e Rábano Mamo. Na iconografia, o mais
antigo exemplo de utilização dessa interpretação é do século IV, um relevo
num sarcófago do Museu de Latrão que mostra a Trindade dando vida ao ser
humano através da imposição da mão de uma das pessoas divinas sobre a
cabeça da criatura recém-concluída 17.

15. Mesmo ° gótico, tocado por uma sensibilidade coletiva mais naturalista, continuaria sempre liga-
do ao universo do maravilhoso, como mostrou muito bem j. Baltrusaitis, I.e Moven Agefantas-
tique: Antiquités et exotismes clans /'(//"1gotbique, Paris, l-larnmurion, 1981.
16. San Viccnrc, ojJ. cit., p. 26.
17. lI. l.cclcrcq, figuras 2~00 (detalhe) e 33~2 (conjunto), em /J/lCl, vai. 11I-1, col. 10, c 111-2, cal. 3021-
203
No entanto esse tipo de figuração não conheceu grande sucesso nos
séculos seguintes. Ele colocava problemas teológicos difíceis de serem resolvi-
dos a contento do ponto de vista da hierarquia eclesiástica. Talvez por isso,
como observou Adelheid Heírnann, existem poucos exemplos iconográficos
de Deus tricéfalo criador, dentre eles apenas um do século XII (além do de
Alquézar, que aparentemente aquela autora desconhecia), em uma Bíblia do
mosteiro de Michelbeuren IH Expressando a importância relativamente peque-
na que tivera até então, apenas em 1334 passou a existir no calendário Iitúrgi-
co uma festa da Santíssima Trindade. Significativamente, a partir daquele
momento cresceu o número de representações rrícéfalas da Divindade, surgin-
do dezenas delas ao longo dos séculos XIV e XVi'). Mas suas raízes míticas
sempre causaram desconfiança no clero e, em meados do século XVIII, o papa
Bento XIV condenava as representações antropomorfas da Trindade e consi-
derava monstruoso figurá-Ia como uma pessoa de três cabeças-v.
Em Alquézar as resistências a esse tipo de representação foram peque-
nas. No piano eclesiástico, porque o mistério da Trindade tinha sido uma preo-
cupação constante de Santo Agostinho, sob cuja regra viviam os cônegos da
colegiada. De fato, para ele a Trindade é o fundamento da vida espiritual e,
concretamente, da vida comunitária. Nessa leitura, ele enfatizava o texto bíbli-
co que explicava a unidade da Trindade pelo fato de todos os crentes terem
uma só alma e um só coração em Deus-I: se a caridade transforma a multi-
dão de fiéis em um só homem, com mais razão isso ocorre entre as Pessoas
Divinas. Como o homem foi criado à imagem de Deus, é preciso conhecer
Deus para se conhecer o homem, é preciso ver o modelo para ver a imagem.
Modelo que é um mistério, mas acessível porque ele próprio se revelou ao
homem através do amor e da caridade. Somente em comunidade e a partir da
comunidade, se pode alcançar Deus e o próprio homemss.
Dessa maneira, do ponto de vista dos cônegos que dirigiam a abadia de
Alquézar, aquele capítel, ao representar o ato da Criação, lembrava a unidade
essencial existente entre a Trindade e a própria comunidade agostiniana. Figu-
rar Deus como tricéfalo era apenas uma forma de insistir em seu caráter trini-
tário. Se as representações artísticas ocidentais geralmente evitavam uma solu-

3022, vê naquela imagem a "criação do homem" (vol. 111-1,col. 3i:n. Para A. l1eimann, "Triniras
Crcator Mundi", [ournal oftbe rr;arIJlJl:~ lnstüute, 2, 1938-1939, p. /t3, "O assunto é indubiravcl-
mente a criação de Eva".
18. l lcirnann, "Trinitas Crcator Mundi", op. cit., p. ~5. Nessa iluminura, a página está dividida em seis
cenas, cada uma correspondente a um dia da Criação. Em cinco delas a obra criadora é feita pela
Trindade (três figuras aurcoladas que estão sempre juntas), enquanto, curiosamente, na cena da
criação do homem Deus é representado sob uma forma única.
19. Bocspflug, (li), cit., pp. 285-286.
20. Idem, pp. 39-1t7.
21. Ar «, 32.
22. J. García Alvurcz, "El Misterio de Ia Trinidad y Ia Comunidad en San Agustín", Reuista Agustiniana,
33, 1992, pp. 613-637.
201
ção semelhante, ela não punha maiores problemas para os agostinianos, sem-
pre conscientes dos limites de qualquer tipo de figuração divina: "Quem pen-
sas que é Deus? Como pensas que ele é? Qualquer coisa que chegues a figu-
rar não é ele. Qualquer coisa que compreendas com tua mente não é ele"2.ô.
No plano da cultura laica aquela representação era vista com naturali-
dade, porque pelo menos desde o século IX existia um texto latino de fundo
mítico que sugeria a Criação pela Trindade. Nele, ao lado do Deus criador e
do Espírito Santo (este citado como o sétimo elemento constitutivo de Adão),
aparecia como oitavo elemento a lux mundi, interpretada como sendo Cristo>'.
Ademais, as transformações sociais, culturais e espirituais que acompanhavam
a consolidação da sociedade feudal geravam referências iconográficas ao princí-
pio trinitário da Divindade, especialmente do último terço do século XI ao
primeiro quartel do século seguinte-o. Por fim, os artistas espanhóis do sécu-
lo XII estavam bem familiarizados com as figurações bizantinas da Trindade-v.
As origens pagãs da concepção do Deus tricéfalo de Alquézar eram muito
antigas. Elas remontavam à cultura do substrato populacional celta, que aceita-
va a existência de várias divindades tricéfalas, como ocorria, aliás, com ou-
tros povos bárbaros europeus-". A posterior presença dos gregos em território
ibérico reforçou aquele dado: eles tinham na sua mitologia seres tricéfalos
como a deusa Hécate e o cão Cérbero, além de um gigante de três cabeças,
Gérion, cujos domínios localizavam-se na ilha de Erítia, provavelmente a região
de Cádiz-". Posteriormente a conquista romana, com suas tríades divinas, tam-
bém ajudou a manter em terra hispânica aquele elemento cultural.
Por fim, o sincretismo realizado por aquela imagem dependeu muito da
situação local, eclesiástica e política. Paralelamente ao antiqüíssirno simbolis-
mo do número três, a referência a ele no Aragão da época ligava-se a um im-
portante fenômeno religioso, a substituição do rito moçárabe pelo rito romano.
De fato, ao lado de várias pequenas práticas típicas de cada uma, a diferença
central, cheia de implicações simbólicas, era o fato de a liturgia hispânica dividir
a hóstia em sete partes (ou nove, conforme a região) e a romana em três-".

23. Santo Agostinho, Sernumes, 21, 2, P!., 36, cal. 143.


2ft. M. Turdcanu, "Dicu créa l'hornmc de huit élémcnts ct tira son nom eles quatro coins du monde",

Rerue des études roumaines, 13-14, 197ft, pp. 172-173.


25. I. G. Bango Torviso, H Roniántco en Espana, Madrid, Espasa-Calpc, ]992, p. 37. Isso talvez tenha
ocorrido por influência da adoção da idéia indo-européia de trifuncionalidade social por parte da
cultura eclesiástica: ver, supra, ensaio n. 2, pp. 62-63.
26. A. I1cimann, "1.'Iconographie de Ia Trlníté", l.'Art cbrétten, 1, 1931, p. 45.
27. R. Pcrrazzoni, "The I'agan Origins of thc Thrcc-hcacled Represcntarion of thc Christian Triníty",
[ournal oftbe warburg anel Courtauld Institutes, 9, 1946, pp, 135-151; A l Iackcl, Die Trinitát in
der Kunst: Eine ileonograpbiscbe Untersucbung, Bcrlin, Rcither und Rcichard, 1931, p. ]()![.
28. 1'.Grimal, Dictionnatre de Ia mytbologie grecque e/ romaine, Paris, PUI', 10. cd., 1990, pp. 176, 86
e 165-166.
29. H. I.cclercq, "Mcssc", em lJ/lCr, 1'01.XI-1, cal. 687; J.M. Pincll, "I.iturgia lIispánica", em Q. Aldea
vaqucro, T Marín Martíncz e J. Vives Gatell (cds.), Diccionario de I listoria iiclesiásttca de E,/J{jI1Cl,

(4 vols.), Madrid, CSIC, 1972-1975,1'01. 11I,pp. 1303-1320.


205
Em nome da preservação do rito local tradicional ou da introdução do rito
papal, ocorreram lá muitos conflitos eclesiásticos e políticos, com várias dis-
putas entre bispados e com o rei Sancho Ramírez substituindo em 1076 os bis-
pos de Jaca e de Roda para forçar a adoção do rito romanow.
Alquézar encontrava-se diretamente envolvida naquele )rocesso. Perto
de lá, a apenas dois ou três dias de viagem, estava o mosteiro de San.Juan de
Ia Pefia que, favorecido pelos reis aragoneses e entregue à Ordem de Cluny,
tornara-se a porta de entrada c!a Reforma Gregoriana na península. Foi ali que,
em março de 1071, pela primeira vez a liturgia romana sutstituiu a hispâni-
ca. Pouco depois era fundada a abadia do castelo de Alquézar, colocada nas
mãos de uma comunidade de cônegos agostinianos para vinculá-Ia ao rito
romano e à Reforma Gregoriana. Significativamente,. o indivíduo escolhido
para seu primeiro abade era embaixador de Sancho Ramírez junto ao papa
Gregório VII.
O segundo elemento incomum figurado naquele capitel é a forma e a
posição que o artista deu a Adão, Enqus.njo na época a quase totalidade das
imagens mostra-o sendo criado C01L .im corpo já flexível e maleável, apesar
de ainda inanimado, na cena de Alquézar ele aparece rígido, sendo claramente
uma estátua. Ora, se o relato genésico fala em Deus "modelando" Adão com
argila, o relato corâmico é muito mais enfático quanto a isso, no que insiste
em dez passagens>'. Ademais, os quatro anjos que ao mesmo tempo susten-
tam e assistem à cena lembram a tradição de origem judaica adaptada pelos
muçulmanos, segundo a qual Deus mandou quatro anjos buscarem argila dos
quatro cantos do mundo para modelar o Primeiro Homemõ-.
Tal tradição também tinha sido cristianizada havia muitos séculos, de
forma que na sua essência - "A substância do mito encontra-se na história
que ele conta", afirma Lévi-Straussõõ - não era estranha aos cristãos de Alquézar.
O mito hebraico que atribui o nome Adam à junção das primeiras letras das
palavras gregas que designam os quatro pontos cardeais, apareceu pela primeira
vez nos Oracula Sybillinaõ+, apócrifo de imenso sucesso na Idade Média cristã.

30. A. Ubieto Arteta, "La Introducción dei Rito Romano en Aragón y Navarra", Hlspania Sacra, 1, 1918,
pp. 299-324; A. Durán Gudiol, t.a Iglesia de Aragõn durante Ias Reinados de Sancbo Ramirez y
Pedro I, Roma, Iglesia Nacional Esp'1I101a, ] 962.
31. Gn 2,7. Le Coran, trad, H. Blancherc, Paris, Maisonneuve ct Larosc, 1966: 6, 2; 7, 11; 15,26,33;
17,63; 23, 12; 32, 6; 38, 7], 77; 55,13. Outros versículos falam em "terra" (11, 6'1; 20, 57), "pó"
(18, 35; 30, 19; 40, 69) e "água" (25, 56).
32. R. Graves e R. Patai, Los Mitos Hebreos, (trad.), Maclrid, Alianza, 1986, pp. 55-56; J. Knappcrt,
Islarnic Legends, (2 vols.), l.cidcn, J3rill, 1985, vaI. I, p. 3. Tabari, Cbronique. De 1(/ Création. à
Dauid, tracl. H. Zotenberg, Paris, Simbacl, 1981, pp, 74-75, transmite uma variante segundo a qual
Alá enviou Gabriel para recolher argila de todo tipo para sua obra mas, diante do lamento da terra,
o anjo não cumpriu a tarefa, o mesmo acontecendo com o segundo enviado, Migucl, até que o
seguinte, Izrâil, o anjo da morte, cumpriu a ordem e Deus pôde assim criar o homem.
33. c:. Lévi-Strauss, Antbropologie structurale, Paris, Plon, 1958, p. 232.
31. Oracula Sybillina, 3, 21-26 e H, 321, trad. E. Suárcz de Ia Torre, em A. Dícz Macho e/ alii (cds.),
Apôcrtfos dei Antiguo Testamento, Madrid, Crisriandad, 1982, \'01. 11I, pp, 287-288 c 355.
206
Depois o mito foi retomado pelo Livro dos segredos de Henoc », por Pais da
Igreja como Agostinhow, e por autores medievais como Beda57, Alcuino-f e
Honório Augustodunensis-".
O mesmo relato mítico fala em Aclão formado por oito elementos - ter-
ra, mar, sol, nuvens, vento, pedra, espírito de Deus, luz do mundo - motivo
conhecido no Ocidente pelo menos desde Plutarcow. Disso decorriam as oito
características humanas, quatro vindas do mundo celeste (o homem tem porte
vertical, fala, inteligência e visão, como os anjos), quatro do mundo inferior
(o homem come, se reproduz, defeca e morre como qualquer animal)!'. Esse
duplo relato sobre o nome e os elementos constitutivos de Adão, teve na
Europa medieval versões em latim e em idiomas vulgares e sobrevive ainda
no folclore de vários países12. As oito cabeças que aparecem na escultura de
Alquézar (quatro de anjos, três de Deus e a de Adào) fariam alguma referên-
cia a isso?
Sustentado pelo braço esquerdo de Deus, o Adão ainda inerte toca o
lado oriental do círculo com sua cabeça e o ocidental com os pés. Sendo o
círculo símbolo cio Uníverso+', a imagem lembra uma antiga tradição mítica
- ele origem hebraíca+', mas presente em fontes cristãs15 e sobretudo muçulma-
nas - que atribuía ao Adão paradisíaco uma enorme estatura. Falavam nisso,
por exemplo, as célebres narrativas das aventuras de Sindbad, texto escrito
na primeira metade do século IX e logo popular por todo o mundo muçul-
mano. Segundo esse relato, havia no Ceilão uma montanha sobre a qual Adão
caíra ao ser expulso do Paraíso, deixando na rocha a marca de seu pé, sufí-
cientemente profunda para um homem poder dormir ali dentro sem ser visto16
Essa marca, especifica outro relato da mesma época, tinha 70 codos de
comprimento, isto é, 35 metrost". Outro texto ainda, de fins do século X, consí-

35. Libro de los Secretos de l Icnoc, 65-61, trud. A. de Santos Otcro, em Díez Macho, ojJ. cit., vol, IV, p.
178.
36. Santo Agostinho, [11.'/o([l111istiuangelíum, X, 12, 1'1., 35, col, 11,75.
37. Bcda, In S.[oannis Iiuangelium tixposruo, ll, Pl., 92, col. 666-667.
38. Alcuino, C0111I1/el1ll//'io in S.]om1l1is Iioangeliunt, li, 1, 1'1., 100, col. 777 A.
39. IIon6rio Augusroduncnsís, tüuctâartnnr. 1,11, 1'1., 172, col. 1117 A.
1n. Grnf, em Mili, p. 79.
11. Midrasb Rabba. Genõse, 8,11 e 11, 5, trud. B. Maruani e A. Cohcn-Arazí, Paris, Vcrdicr, 19H7, pp.
112-113 e 172.
'i2. S. 'I'hompson, Tbc Mutif-index ofFolle-lttemturc. (6 vols.), Bloomingron, Indiana Univcrsiry Prcss,
19'55-195H, 1'01. I, A. 1260, 1. 3; Turdcanu, ojJ. cit., 2. cd., pp. 165-191.
13. O. Bcígbcdcr, t.cxique eles svmboles, l.a Pierre-qui-vire, Zodiaque,1989, p. 152. O círculo era ainda,
para a tradição islâmica, a mais perfeita forma existente: f),\)'IIIb, p. 191.
-í-i. Mulrasb Rabba, 8, 1, p.I01; l.. Ginzberg, Tbe I.egentls oftbcjeios. (6 vols.), l'iladélfia, Thc jcw
Socicry 01' Amcrica, 1910-1916, 1'01. I, p. 59, e vol. V, p. 79, n. 22.
15. Por exemplo, de fins do século XII, \Valtcr Map, De Nugis Cu/'i(/1i1/111, I, I, cd. M. R. jumcs, Oxford,
Clarcndon, 1911, p. 2.
46. Les Auentures de Sindbad le ntarin, rrad. H. H. Khawam, Paris, Phébus, Z. cd., 1990, p. 191.
17. Retatton eles oovages faits par les Arabes et les Persans dans [h/de et il Cbine (/(//1S le IXe siécte de
207
derava a grande estatura de Adão como uma das características dos habitantes
do Paraíso+'. Nenhum desses textos era originário de al-Andalus, porém é
preciso lembrar que a Espanha muçulmana, ao menos até o desmembramento
político de 1031, mantinha-se muito ligada cultural e espiritualmente às regiões
íslãmícas orientais. Os muçulmanos andaluzes dirigiam-se com freqüência ao
Oriente, em peregrinação ou a negócios, e havia em Córdoba uma pequena
mas influente colônia de muçulmanos originários do Oriente t''. Além disso,
o "aspecto delíberadarnente conservador ou mesmo arcaizante" do califado
Omíada>', sem dúvida contribuiu para enraizar ali dados míticos de pro-
cedência oriental.
Quanto à posição do corpo de Adão, chama a atenção uma referência
de fins do século IX ou começo do X, feita por Tabari, talvez o mais impor-
tante e mais conhecido dos cronistas muçulmanos medievais. Segundo ele,
após a criação Adão ficou "estendido no chão, de uma grandeza tal que seu
corpo ia do Oriente ao Ocidente">'. Exatamente como aparece no capitel
aragonês. Essa disposição corporal cio Primeiro Homem adotada pelo escul-
tor não era casual, mas expressava o rico simbolismo do eixo Oriente-Ocidente,
importante tanto para cristãos quanto para muçulmanos. Para estes a questão
ganhou nova importância com a corrente sufísta, que via o Ocidente ligado
ao corpo e o Oriente à Alma uníversal--.
O mesmo cronista lembra ainda outra tradição mítica muçulmana que
ajuda a explicar a postura rígida do Ad~IO de Alquézar. Este é representado
estático diante do Criador, pois Alá depois de modelar o Primeiro Homem
olhou-o por quarenta anos antes de lhe insuflar vida 55. A cena esculpida no
capítel relembra esse momento, no qual o toque divino transformará o boneco
em um ser vivo. Logo depois disso começou a revolta de Iblis, que não quis
prosternar-se diante da nova criatura>", o que dividiu a comunidade angélica

l'êre cbrétienne, i, 7, cd-rrad. J.. M. Langlcs c). '1'. Rcinaud. (2 vols.), l'urix. lmprimcric Royalc,
1815, pp. 5-6. () local passou desde () século X a ser objeto de pcrcgrinaçâo por parte dos muçul-
manos: li, 9, n. 11;.
~8. Abou-Zeid Ahmed lIen Sahl cl-Bnlkhi, I.e t.iure de Ia Création et de l'histoire, rrnd. C. J íu.ur (5 vols.),
Paris, Ernest l.croux, 1899-1919, \'01. I, Cup. 6, p. 179.
/i9. E. Lcvi-Provcncal, Histoirc dellispagne musulnutne: l.eSiiJc/edu caltfat de Cottknte, Paris, Mnisonncuvc
cr l.arosc, 1967, pp, 467-170 c 1H8-190.
50. tdem, p. 155.
51. Tabari, op. cit., p. 75.
52. n.\)'IIIb, p. 711. Conrcmporancamcntc 'I escultura de Alquézar. difundia-se o pcnsamcruo de al-
Ghazali (1058-1111), que foi o maior representante do sufismo. mas sem se afastar da ortodoxia
sunira, o que facilitoll a divulgação de suas idéias. Esras, apesar de condenadas pelo tradicionalis-
mo dos almorávídas em ·1109, em Córdoba, não foran: eliminadas da l lispânia muçulmana c ganha-
rum nova t()I"\:adécadas mais tarde, com a dinastia dos almôadas, cujo fundador feria entrado pes-
soalmcntc <.:111 contato com o célebre teólogo.
53. Tahari, op. cit., p. 75; Abou-Zcid, 01'. cit., vol. 11,Cap, 7, p. 7'1.
)li. I.e Coran 2, 511-36;7,11-18; 15, 30-1t2; 17,61-65;18, 1j1)-50;20, 116; 38, 73-81.
208
entre os que acataram a criação do homem e outros que a desaprovaram.
Diante disso, pode-se perguntar se o escultor não se referia a esse relato quan-
do colocou em posições opostas os anjos que assistem à cena.
Portanto, o material mítico islãmico parece ter-se constituído na princi-
pal fonte para a representação de Adão realizada pelo escultor. Tal fato, é
claro, decorria das condições históricas aragonesas, que tinham na cultura
muçulmana um componente de peso. A influência exercida por ela naquela
região foi grande e se manteve na longa duração histórica, permitindo que
ainda em princípios do século XX se pudesse observar que "a cidade de
Alquézar, os costumes e o modo de vestir de seus moradores lembram os tem-
pos da dominação muçulmana'o>. Recuperada mais de três séculos depois da
conquista moura da região, Alquézar não poderia naturalmente negar aquela
prolongada presença islârnica. Seu próprio nome era uma prova disso, pois
vinha de al-Qasr Banú laia}; "o castelo dos descendentes de ]alaf", chefe
muçulmano local.
A convivência próxima e cotidiana entre reconquistadores e dominados
permitia uma constante troca cultural, na qual a parcela islâmica era preponde-
rante, ou quase, em função da situação demográfica local e do poder de atração
daquela cultura. Tal poder era tão grande que o rei Pedra I (1094-1104), suces-
sor do reconquistado r de Alquézar, assinava suas atas em árabe apesar de ser
fervoroso adepto da luta antimuçulmana. Quanto à importância demográfica
da população rnudéjar, isto é, muçulmana vivendo em território cristão, sem
dúvida ela se manteve grande em Aragão até o século XVI. Aqueles indivídu-
os eram majoritariamente camponeses dependentes, mas também proprietários
rurais, artesãos e comerciantes urbanos'é. Enfim, a supremacia político-mili-
tar cristã resultante da Reconquista da região, não se refletiu de imediato em
uma inversão da condição social e cultural dos mudéjares.
Como ocorria em todo Aragão reconquistado, também na zona de influên-
cia do castelo de Alquézar a maioria dos muçulmanos que ali habitavam ante-
riormente permaneceu no localv. Pela documentação ainda existente, "pode-
se pensar que eles coabitavam com cristãos e judeus em completa igualdade,
sem serem confinados fora ela muralha, e que seu número era superior ao dos
cristãos"58. Vários deles elevem ter acabado por se converter ao cristianismo,

55. R. Dei Arco e L. Labastida, RI Alto Aragôn Monumentaly Pintoresco, Iluesca, Justo Martlnez, 191;$,
p. 32. Veja-se também H. Dei Arco, No/as de Polelore Altouragones. Madrid, CSIC, 191;$.
56. J. M. l acarra, "Introducción ai Esrudio de los Mudéjares Aragoncscs", em Aragól1 en Ia tidud Media,
Zaragoza, Universidad de Zaragoza, 1979, pp. 7-10.
57. A. Durán Gudiol, Historta de Alquézar, Zaragoza, Guara, 1979, p. 123. Ainda no século XIV, os
mudéjares se constituíam em um terço da população aragonesa e conviviam bastante bem com os
outros segmentos religiosos, pois "de fato, na época, a simbiosc aragonesa parecia quase utópi-
ca": J. Boswcll, 77.?eRoyal Treasure: Muslitn Communities u.nder lhe Crown ofAragon in lhe
Fourteentb Century, New l lavcn, Yale Univcrsity Press, 1977, pp. 7 e 373.
58. J .-G. l.iauzu, "L" Condition des musulmans dans I'Aragon chréticn aux Xc ct Xll" sicclcs", l Iespéris-
Ta/muda, 9, 1968, p. 185.
209
como ocorreu em 1081 com seis servos, então alforriados>", Indivíduos nessa
situação tornavam-se intermediários culturais privilegiados, pois sem poder, mes-
mo que quisessem, negar sua herança muçulmana, levavam-na para a socie-
dade cristã, na qual tinham passado a ser mais bem aceitos graças à conversão.
Ademais, não se deve esquecer que a cultura popular muçulmana mescla-
va lendas bíblícas, outros relatos míticos cristãos e narrativas folclóricas das
regiões conquístadasv'. Sobretudo na península Ibérica, onde as tradições orais
hebraicas, cristãs e muçulmanas estavam fortemente entretecidasc'. Em função
desse estreito parentesco, quando determinados elementos não estavam pre-
sentes em um daqueles universos, podia-se recorrer aos de outro para com-
por um novo relato ou enriquecer um tradicional. Por exemplo, os quarenta
anos de hesitação de Deus antes de vivificar sua escultura não tinham parale-
los judaico-cristãos, mas se harmonizavam perfeitamente com a narrativa da
revolta do anjo por ciúmes de Adão, contida em um dos mais conhecidos
apócrifos vétero-testamentários, a Vila Adae et Euae=.
A mesma profunda interpenetração de material mítico das três culturas
ocorria no elemento mais original do capitel, a vivificação de Adão através do
ouvido. O toque no ouvido de Adão é feito pela mão direita de Deus, lembran-
do o gesto ritual ou sacramental que aparece várias vezes na Bíblia com o
significado de transmissão de uma bênção, de um poder, de um direito: a
imposição da mão65. Com tais sentidos, o gesto foi utilizado pela Igreja nos
seus rituais desde os primeiros tempos. Devido a uma carga simbólica positi-
va muito antiga, quase sempre se utilizava nesses ritos a mão direita, coloca-
da pelo oficiante sobre a cabeça do fiel. Para os cristãos, a mão era ainda um
importante instrumento na realização de milagres. Através dela Cristo ressusci-
tou uma pessoa, isto é, devolveu-lhe a vida, e através do dedo colocado no
ouvido de um surdo restituiu-lhe a audíçãov', ou seja, permitiu-lhe ter conta-
to com a vida.
De certa forma é a síntese disso tudo que aparece no capitel de Alquézar,
A mão de Deus sobre Ad~IO é uma bênção, uma concessão de poder, uma

';9. Idem, p, 188.


60. n. Shoshan, "I Iigh Culturc and Popular Culture in Medieval Isla111", Studta Islamica, 73, 1991, pp.
83-107.
61. Como lembra corrcramcntc, apesar de exagerar os efeitos do fenômeno, a conhecida tese de A.
Castro, La Realidad l listárica de tispaüa, México, Porrúa, 1975, (cd, orig., 1951).
62. vtta Adae. 12-16, cd, J. I I. Mozley, Tbejournal ofl beotogical Studies, 30, 1929, pp. 131-133.
63. J. A. MacClIlIoch, "lland", em J. l Iasrings (cd.), ttncvctopnedtn ofReligiol1 and lãbics, (13 vols.),
Edinburgh-Ncw York, T. IX T. Clarck-Charlcs Scríbncr's Sons, 1~OH-1926, 1'01. VI, pp, 1j92-1j96; 1',
Galticr, "lmposirion dcs mains", em A. Vacanr, E. Mungcnor e E. Amann (dir.), Dtctionnatre de
tbéotogie catboltquc. C1O vols.), Paris, l.crouzcy ct Ané, 1930-1972, vol. VII-2, <.:01. 1302-1125; I.. de
Bruyne, "L'Imposirion eles mains duns l'arr chréticn ancicn", kim:\'/a di Arcbeologta Cristiana. 20,
191j, pp. 212-217; J-C Schmirt, l.a kaison des gestes dons l Uccident médiéoal, Paris, Gallionard,
1990, pp. 327-j2H.
61. Me 5, ;'1; 7, 31.
210
transmissão de direito, uma realização do milagre da vida, uma concessão da
audição para a criatura poder gozar de todos esses privilégios. De fato, com
o toque da mão divina o homem tornava-se o representante de Deus sobre a
terra, ganhava domínio sobre os outros seres vivos, passava, enfim, a ser o
centro da Criação. "A direita de Iavé realiza proezas", diz um dos livros bíbli-
cos mais apreciados pelos medievais'i>. Mas por que esse fluxo de energia di-
vina era transmitido ao homem através do ouvido?
Essa parte do corpo humano, devido às suas características, possuía em
muitas sociedades forte simbolismo. Para os hebreus, como para vários ou-
tros povos do Oriente Médio antigo, a orelha desempenhava papel central no
rito que indicava a sujeição de um indivíduo a outro; ela tinha em diversas
passagens bíblicas o sentido de compreensão, de inteligênciaw. Na cultura
cristã, um evangelho apócrifo na sua versão armênia afirma que Maria con-
cebeu pela orelhas". Essa idéia, apesar de condenada pelo Concílio de Nicéia,
foi retomada no começo do século VI pelo bispo de Pavía, Santo Enódio, cujos
versos foram adorados mais tarde pelo Missal de Salzburg: "Salve Virgem, mãe
de Cristo,! Que pela orelha concebeu'w'.
Além dessas fontes literárias, havia uma fonte iconográfica na vizinha
Catalunha, porém talvez duas ou três décadas posteriores à de Santa Maria de
Alquézar. Trata-se de um afresco de Sant Sadurni d'Osormort (hoje no Museu
Episcopal de Vich - Fig. 9), no qual a cena da criação do homem mostra o
sopro divino vívificador chegando até ele sob a forma de três raios que inci-
dern sobre seus olhos, sua boca e seu ouvido. Porém essa imagem não pode-
ria ter sido fonte daquela, pois, além do descompasso cronológico, parece
que no caso catalão a intenção do artista era apenas sublinhar o surgimento
dos três principais sentídosw.
Para outras sociedades, a orelha era símbolo da abertura do homem em
relação ao mundo. Para os dogons do Mali, na África ocidental, o ouvido
exerce um papel na procriação, pois as palavras do homem durante o ato se-
xual são tão fecundadoras quanto seu sêmen/", Para os celtas, algumas dívinda-

65. SI 117,16.
66. I i. Lcsctrc, "Orcillc", <:111 F. Vigouroux (dir.), Diction naíre de /0 Bible, (10 vols.), Paris, Lcrouzcy cr
AnO, I 926-192H, vol. IV-2, col. 1857-1860.
67. "O Verbo de Deus penetrou nela, passando pela sua orelha. 1 ... 1 No mesmo instante começou a
gravidez da Santa Virgem.": ll vangelo dell'tnfanzta Arntenio, V, 9, em IVJ. Erberta (cd.), Gli Apocrifi
dei Nuouo Testcunento, (2 vols.), Casale Monferrato, Maricrti, 1981. 1'01. 11,p. 13'1.
61l. Citado por I{. Gourmonr, I.e Latin ntvsiique. Les Poétes de lantipbonairc et la symbolique au Moyen
Age, Paris, Gcorgcs Crês, 2. ed. 1913, p. 315.
69. J. Surcda, t.a Pintura Românica eti Catatu ãa, Madrid, Alianza, ]981, p. 103.
70. lJ.~l'11/b, p. 709. 11 um dado antropologicamente bem conhecido a comparação entre hírncn e tím-
pano, clitóris c concha auditiva, lábios vaginais c pavilhão auditivo, em suma, entre vulva c ouvi-
do: ].-T. Macrtcns, Ritanaiyses J, s/c, jcromc Millon, 1987, p. 12. A partir disso poder-se-ia talvez
tentar construir lima hipótese que pensasse naquela cena da Criação como lima cena ele inscmi-
nação, na qual o decio de Deus (símbolo fálico) penetra o ouvido (vulva) de um ser feito de terra,
elemento feminino e rcprodutor por excelência.
211

Fig. 8. A criação de Adão do claustro de Alquézar.

des tinham a orelha direita de animal, símbolo de regeneração e de írnortalida-


de71. A cristianização desses deuses não alterou o significado essencial da ore-
lha, como demonstra a vila latina de um santo irlandês em um manuscrito da
primeira metade do século XIII, mas que registra um relato sem dúvida bem
anterior. Pelo que ele nos conta, um recém-nascido, o futuro São Berach, foi
amamentado pela orelha direita de seu tio, São Fraech/-.
Para o cristianismo, religião do Verbo, o ouvido é o canal de assimilação
da palavra, plena de poder criador?", É a via de acesso ao alimento espiritual,
é, assim, símbolo da inteligência e da sensibilidade. Porém pode transformar-
se igualmente na porta de entrada de sentimentos baixos, daí a advertência
de Santo Agostinho - "Não sejas fútil, alma minha, não deixe o ouvido do
teu coração captar os ruídos da tua vaidade"71- texto que os cônegos agostinia-
nos de Alquézar certamente conheciam. Pelo ouvido o homem recebeu vida,
pelo ouvido ele foi tentado e perdeu o Paraíso, pelo ouvido ele recebe a pala-

71. W. Dconna, "t.c Dieu gullo-romuín 'I l'orcillc animalc", 1.'l1l1liqui/é Classiquo, 2'5, 1956, pp. 8'5-99.
72. "Cum a uiro Dei diligcnri cura cducarcrur, solitus crar, ur marrís m.unillan saneti ('rcgii auricularn
sugere dcxrram . Sicquc tactum cst nuru illius, qui mel de pctra porcos cst produccrc, ut conractu
auriculc uiri Dei pucr crcsccrct, ranquarn ornncm lacris marcrní cxubcranriam ld.Ch. habcrct."
Plumrncr, Vi/aeSaI1C/OI7l111 I Iibern iae, Oxford, 1910, "01. I, p. 76, apucl ], Gricourr, "L'Orcillc droitc
de Saint I'racch", CJgUlII, 9,1957, p, 191.
73. o.. supra, ensaio n. 5.
71. Santo Agostinho, COI1'/essioI1UI11, IV, XI, 16, 1'1" 32, col, 700.
212
vra redentora de Cristo. Assim, ao valorizar o ouvido de Adão o artista subli-
nhava a dualidade humana.
Da mesma forma, pode-se aproximar um texto de S~lOBento que tam-
bém fala no "ouvido do coraçào"75 a uma representação escultórica de Adão
na catedral de Compostela. Tal escultura localizava-se na porta Francigena,
no lado norte da catedral, por onde entravam os peregrinos. Quando esse
portal foi substituído na segunda metade do século XVIII pelo atual, neoclás-
sico, a escultura românica foi levada para a entrada meridional da catedral,
conhecida hoje por Puerta de Ias Platerías. Nesse relevo, Deus dá vida a Adão
através do toque de sua mão direita espalmada sobre o coração do homem
(Fig. 10). Esculpido provavelmente em 1103, pode-se perguntar se a idéia da
escultura compostelana, levada por peregrinos, não teria também exercido
certa influência na concepção do capitel de Alquézar?», Ou talvez essa influên-
cia tenha mesmo sido exercida diretamente por uma fonte inspiradora do rele-
vo compostelano, um manuscrito elaborado por volta de 1100 na abadia de
Saínt-Martial de Limoges?". De fato, essa abadia desde 1063 estava ligada a
Cluny, que mantinha relações estreitas com a catedral compostelana e que
teve um papel fundamental no estabelecimento e organização da rota santia-
guista78. Como já se observou, "as peregrinações exerceram um grande papel
na extensão das relações exteriores da abadia do Limousin"?",
De qualquer maneira, os cônegos de Alquézar sabiam que Santo Agostinho,
com sua exegese desmitificante, tinha insistido em que o homem fora criado
pelo poder de Deus, e não por sua mão, como teria feito um derniurgo'v. No
entanto a linguagem iconográfica, por suas próprias características de forma
e de conteúdo, preferia geralmente seguir o relato mítico do Gênese, e ver na
criação do homem um trabalho escultórico tformauu, [ortnauerat) de Deus.
O capitel de Alquézar seguia essa tendência, mas dando-lhe uma feição parti-
cular. Como toda a Criação fora feita pela Palavra Divina, e somente o homem
pela Mão Divina, representar a vívífícaçãc de Adão com o toque no ouvido
era uma forma de harmonizar a interpretação agostiniana com a interpretação
mítica do relato bíblico.

75. "Ausculta, o fili, prucccpta mugistri, cr inclina aurcm cordis rui": Regula, Prologus 1, I.J/., 66, col,
2151).
76. Essa data, sugerido por S. Moralcjo, "I.a Primitiva Fachada orrc de Ia Catedral de Santiago",
C011l1'ostel/(/1111111, 1-1, 1969, 1'1'. 661-662, foi considerada muito recuada por M. Durliat, "I.a 1'0I1e
de Ia l-rance à Ia Cathédralc de Compostcllc", Bulletin Monumental, 130, 1972, p. 1-13.
77. Breuiariuni ad /lSU11I S. Martialis, Bibliorhcquc Nationalc de Paris, ms, lar. 713, f. 112v.
78. Franco júnior, 01'. cit., 1'1'. 121-128.
79. D. Gaborir-Chopin, La Décoration eles 7I1Cl1111scrils ii Snint-Martial de l.il11oges et en Limousin du.
lXe au xue siécle, Paris-Genebra, Droz, 1969, p. 25.
80. Santo Agostinho, De Ctuitate Dei, XII, 23, 1'1., 11, col. 373. Fssa posição loí seguida por muitos,
inclusive, conrcmporancamcntc 'I
construção do claustro de Alquézar, pelo popular tilucidariunt,
0J!. cit., 11, 11, col. n"17 A.
213
o toquede Deus no ouvido de Adão relembra ainda a presença da cultu-
ra muçulmana entre as fontes daquela imagem, Na verdade, o Corão fala ape-
nas em Alá insuflando em Adão seu "sopro de vida" e seu "espírito'"!", sem
especificar por qual via. Porém quando, mais adiante, () texto corâmico relem-
bra ao homem que foi Deus "que vos fez nascer", acrescenta que foi Ele que
deu ao ser humano "o ouvido, a vista, as vísceras'<'. Mais do que isso, segun-
do um baditb, Deus afirmou a Adão que ".. eu sou seu ouvido, sua vista, sua
mão." "105. Essas citações do ouvido em primeiro lugar não são casuais. A
seqüência correspondia à hierarquia do corpo do ponto de vista muçulmano,
para o qual as vísceras, ligadas às funções sexuais, digestivas e defecatívas,
eram consideradas pouco nobres. A vista, importante porém pouco precisa
na vastidão do deserto, relacionava-se com as miragens, as ilusões.
O ouvido, por sua vez, para uma sociedade oral e tradicional como a
árabe, era a principal via de comunicação com o Universo'". Por isso as ativida-
des adâmicas iniciais tiveram por base a audição. A primeira vez que o Corão
cita Adão é para dizer que o Senhor lhe ensina todos os nomes, os quais o
homem deveria repetir aos anjosH5 Para as crenças populares muçulmanas,
Adão era alguém ligado ao poder mágico da palavra, alguém que conhecia
certas falas que podiam dominar espíritos maus; ele foi o inventor do Budub,
o quadrado mágico que servia de talísmã por combinar de formas especiais
determinadas letrasHÚ Mais ainda, entre as principais características do Deus
muçulmano está o fato de ele ser "aquele que ouve"H7, Aliás, essa valorização
do oral e do auditivo por parte dos árabes era anterior ao Islã, e manteve-se
mesmo em um texto árabe cristão, para o qual a serpente foi condenada
primeiro a rastejar e depois - punição maior devida a uma segunda desobe-
diência - a perder a voz&;,
Buscando, talvez inconscientemente, manter um certo equilíbrio entre
suas fontes, o artista incluiu alguns dados inequivocamente cristãos diante
daqueles vários elementos de clara inspiração islârnica. a estrutura da com-
posição, o escultor colocou o corpo do Criador e o da criatura formando uma

81, fe CO/1/11 15, 29 e 38, 72.


102, Idem, 67, 23,
83, Citado por um místico andaluz (I 165-1210), 11mArabi, l.'Arbre du monde, trad. M. Gloron, Paris,
I.es Dcux Océans, 1990, )1, 53,
81, A Palavra de Deus recebida por Maomé ao longo do tempo foi reunida em livro apenas em 65],
quase vinte anos depois da sua morte. Para a organizaçào do CO/'{to, utilizaram-se as anotações
nào-sisrcmáncas feiras por alguns discípulos, mas sobretudo confiou-se na memória daqueles que
tinham ouvido o Profeta, daqueles que "guardavam a Revelação no seu peito"; 1), e J. Sourdcl, l.a
Ciuilisation de I'tslam classique, Paris, Arth.iud, 1968, p. 130,
85, l.e Coran 2, 29-:11,
86, 1', M, Parcsa, t.a NeI(f5iosidlld IlII1SlIlllICIIl(/, Madrid, IlAC, 197'5, pp, 209 e 211-212,
87, l.e Coran 2,121,221,21'5; IJ, 61, 133, 117; '5, 30; 6,13,115; H, 55; 9, '.I(); 10, 32, 66; 17, I; 110,25;
21,1; 26, 220; 29, /1, 60; 31. 27; 31, IJ'); IJO, 21, 510;11, 36; 12, 9; 13, HU;/i1, 5.
88. 11Contbatl intcnto di Adamo, 12, cd-rrad. A, Battista e 11, lIag:nti, jcrusulcm, I'ranciscan l'rinting
Press, 1982, p. 50,
214
cruz, símbolo do tempo, inscrita em um círculo, símbolo da eternídadew.
Relernbrava-se dessa maneira o mistério da Encarnação, do Filho de Deus
colocado na História. O fato de o círculo estar pintado de vermelho indicava
ao mesmo tempo o início da Criação - o nome "Adão" derivava possivel-
mente de adamab (terra), dam (sangue) e adom (vermelho)?" - e o sacrifí-
cio de Cristo, cujo sangue fora derramado para a salvação dos homens.
No cruzamento dos dois fenômenos, Criação e Encarnação, ficava suge-
rida a clássica identificação do Cristo como segundo Adão?'. Identificação
reforçada pelo fato de Adão ter sido vivificado através do ouvido, como Cristo,
que enquanto carne fora concebido através do ouvido de Mariav-. Para Hilário
de Poitiers, a associação Adão-Cristo tinha caráter sobretudo soteriológico,
pois, se o primeiro resume em si a humanidade, o segundo, ao fazer parte do
gênero humano, salva todos os homens. O relato evangélico da cura do para-
lítico simbolizava exatamente o Adão imobilizado pelo pecado sendo liberta-
do por Cristov'', Nas suas linhas gerais, tais especulações teológicas deviam
ser familiares a muitos dos peregrinos compostelanos que passavam por
Alquézar. Sobretudo aos originários do Poitou, onde as idéias de Santo Hilário
eram bem conhecidas, os quais constituíam uma parcela significativa do con-
tingente peregrinatório.
Ademais, a figura da Divindade lembra ali o importante tema mítico da
Árvore Invertida, com as três cabeças assemelhando-se a raízes saídas do céu.
Símbolo muito difundido, presente entre lapões e muçulmanos, aborígines da
Austrália e judeus, Platão e Dante Alighieri, para os cristãos a Árvore Invertida
"faz da criação uma descida e da redenção uma nova ascensão'vs. Ou seja, tal
imagem associava a Primeira Aliança, rompida por Adão através da Árvore do
Conhecimento, com a Segunda Aliança, restabelecida por Cristo através da Ár-
vore da Vida, a Cruz. Não por acaso, esta começava a ser cada vez mais rela-

89. M. M. Davy, Initiation Ü Ia symbolique rotnane, Paris, Hammarion, 1977, 1'1'. 166 e 186.
90. Esta ctirnologia é negada por E. Lipinski, Dictionnaire encvclopéd ique de Ia Bible, Turnhour,
Brcpols, 1987, r. 15, mas era aceita pelo pensamento mítico. Para os babilônicos, o deus Ea cri-
ara o homem com argila e com sangue do deus Qingu:]. Bottero, "L'Epopéc de Ia Création", em
Mythes et rües de Babvlone, Genebra-Paris, Slatk inc-Champion, 1985, 1'1'. 139-110. Para o judaís-
mo, a água que Deus misturou 'I
terra rara moldar Adão era comparável ao sangue da Aliança
derramado na circuncisão, após o que o recém-nascido é submetido a ur.i banho ritual. Para o
cristianismo, o verdadeiro ato de nascimento se dá com a água do bat isr.ro, que prolonga ritual-
mente o sangue purificador derramado por Cristo. Sobre as diversas tradições folclóricas que
aceitam a criação do homem a partir da argila, ver J G. Frazcr, Folls-Lore in tbe Old Testament.
Londres, Macmillan, 1923, pp. 1-15. Um exemplo medieval daquela ctimologia temos no famoso
ardo Representacionis Ade, de meados elo século XII, segundo ° °
qual o ator que 1:IZ papel de
Adão deve estar vestido de vermelho: cd, P. Acbischcr, Genebra-Paris, Droz-Minard, 1964, r. 27.
91. 1 Cor 15, 15.
92. Cf., supra, nota 67.
93. 1.. F Ladaria, "Adán y Cristo: Un Motivo Soteriológico dei 11/ Mattbaeuni ele Ililario de Poitiers",
Compostellanutn, 35, 1990, 1'1'. 1It5-162.
94. J. Brosse, Mytbologie eles arbres; Paris, Plon. 1989, r. 68.
215

Fig.9 A crlnçào de Adão de Sant Sadumi d'Osorrnort.

cionada pela iconografia C0111 a Árvore de Jessé, cujos grandes frutos eram a
Virgem (à qual estava dedicada a igreja de Alquézar) e o Cristo. I o caminho
de Santiago pelo menos em dois casos a Trindade tinha sido iconograficamen-
te incorporada ~l Árvore de Jessé: em um relevo do claustro de Santo Domin-
go de Silos e em uma coluna do Pórtico da Glória da catedral compostelana.
E assim a imagem de Alquézar remetia a outro tema caro à Idade Média,
e sobretudo ao norte ibérico, o Fim dos Tempos. A cruz formada pelos cor-
pos das duas personagens, Deus e homem, é uma cruz latina invertida, de
caráter escatológico''>. Caráter acentuado pelos quatro anjos em torno do
círculo, que lembram a profecia apostólica: o Filho do Homem "enviará seus
anjos ao som da grande trombeta, e eles reunido seus eleitos dos quatro pon-
tos do horizonte, de uma extremidade à outra do Céu"9G. Clima escatológico
bem conhecido da cultura cristã espanhola da época, que continuava a pro-
duzir e a admirar as iluminuras dos manuscritos dos Comentários ao Apocalipse
do Beato de Liébana.
Geralmente a iconografia daquele momento mostrava a Divindade colo-
cada na mandorla cercada pelos evangelístas, representados sob o símbolo
dos tetramorfos. Mas na Espanha era mais comum - possivelmente como
reflexo daquele versículo bíblico de sentido apocalíptíco - figurar a cena com

95. Bcigbcdcr, 0/1. cit., p, lHR


96. Mr 21,31.
,.,..."

:i~
~-):~~,~;.~'
....
..

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Fig.l0 A criuçào de Ad'.!O da catedral de Compostcla.


217
quatro anjos em torno de Deus. É o que se vê, por exemplo, no relicário de
São Demétrio do castelo de Loarre (Aragão), na Arca Santa de Oviedo (Astúrias),
no afresco de Santa Cruz de Maderuelo (Castela), na pintura sobre madeira
da errnída de Vilaseca (Catalunha).

Em suma, o capitel em questão sintetizava, possivelmente sem o escul-


tor ter consciência disso, todo um complexo conjunto de fatores. Estando a
apenas dezenove quilômetros de Barbastro - onde começara efetivamente a
luta antimuçulmana, inclusive com a participação de franceses e talvez mesmo
com a categoria jurídica de Cruzada'? - Alquézar fora conquistada aos 1110Uros
em 1067 pelo rei Sancho Ramírez, tornando-se desde então um local importan-
te na Reconquista aragonesa. Como, nessa fase inicial, peregrinação a Compostela
e Reconquista se confundiam, a fortaleza e a igreja de Alquézar devem ter si-
do relativamente bastante freqüentadas, apesar de afastadas da rota principal.
Por lá passavam, além de peregrinos e guerreiros, muitos clérigos de
origem transpirenaica, responsáveis pela introdução e acompanhamento dos
novos procedimentos determinados pelo papado da Reforma Gregoriana. Mas,
com a ocupação cristã de Monzón em 1089, Huesca em 1096 e Barbastro em
1100, Alquézar perdeu seu valor militar e tornou-se um centro comercial. Nessa
segunda fase, na qual peregrinação e comércio caminhavam juntos, Alquézar
beneficiou-se do [uero que Afonso I, o batalhador, lhe outorgou em 1114,
surgindo então um burgo ao lado do castelo'f'. Ali cristãos e muçulmanos pas-
savam a viver lado a lado, e as trocas culturais se intensificavam.
Assim, naquela região dominada muito tempo pelos mouros, e ainda
então habitada por eles em grande número, era natural que o artista aproveitasse
vários elementos das tradições muçulmanas. Natural também, em uma zona
de peregrinação, que ele absorvesse dados da cultura oral cristã e que em uma
abadia de agostinianos recorresse a aspectos do pensamento de Santo Agostinho.
Quase tudo isso foi reunido de forma espontânea, como resultado de um sin-
cretismo cultural. É possível, porém, que o escultor tenha representado antropo-
morfícamente a Trindade cristã para evitar eventuais acusações de tendências
islarnizantes, pois os muçulmanos, como fervorosos adeptos da unícídade divi-
na, rejeitavam-na, vendo nela traços de politeísmo. Dessa forma, se a repre-
sentação do Deus tricéfalo e de seu gesto criador incornum deve ter chama-
do a atenção dos peregrinos, não deve ter espantado os habitantes de Alquézar.
Aquela imagem apenas registrava o sutil e esplêndido equilíbrio ali existente
entre as várias tradições míticas das quais a cultura local era tributária.

97. D. l.ornux, Tbe Reconquest oI,V)({in, l.ondrcs, Longman, 197R, p. ')9.


98. Durún Gudiol, ojJ. cit., pp. ·í9-50.
MITO E ESCATOLOGIA
A OUTRA FACE DOS SANTOS
OS MILAGRES PU ITIVOS
NA LEGENDA AUREA 11

Um dos textos centrais para se conhecer a religiosidade e o pensamen-


to mítico do século XIII é a famosa Legenda Aurea, coletânea hagiográfica
elaborada pelo dominicano e futuro bispo de Gênova, Jacopo de Varazze, por
volta de 1260. Seu rápido e imenso sucesso, atestado pelos inúmeros manus-
critos ainda existentes, resultava de um raro equilíbrio entre elementos de
origem erudita e de origem popular. Estes últimos, devido aos objetivos da
pregação mendicante que eram a razão de ser daquela obra, estavam pre-
sentes através do recurso ao exemplum, isto é, "uma narrativa breve, dada
como verídica e destinada a ser ínserida num discurso (geralmente um ser-
mão) para convencer um auditório por uma lição salutar'". Narrativa de inegá-
vel fundo mítico, o que garantia a receptívídade almejada.
Apesar das aceleradas transformações do século XIII, pela sua caracte-
rística de "lentidão na Hlstória'", a mentalidade mantinha-se essencialmente
a mesma dos séculos anteriores, sobretudo num texto arcaizante como a
Legenda Aurea>. Dentre os traços básicos da mentalidade medieval, como
definimos noutro trabalho", aparecem com muita força na Legenda Aurea o

I. C. Brcmond, J. I.e Goff e). C. Schmirr, L'Iixentplunt, Turnhour, lIrcpols.1982, pp. 37-38.
2. ). Lc Goff, "As Mentalidades, uma História Ambígua", em). l.c Goff e 1'. Nora (dir.), J ltstoria: Novos
Objetos, (trad.), Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976, p. 72.
3. A. Bourcau, La Lcgende t.iorée.t.e .~)'S/el11enarraujdejacques de Voragine; Paris, Ccrf, 1981, pp. 25,
38, 11 et passim.
li. J I. Franco júnior, A Idade Média, Nascimento do Ocidente, Silo Paulo, Brasilicnsc, 5. cd., 1991,
pp. 119-169.
222
belicismo e o contratualismo. O primeiro significa que o universo era visto
como palco da luta enrre as forças do Bem e do Mal, a qual somente se encer-
raria com o Iuízo Final. Nesse conflito, os santos, cujas vidas são narradas pelo
frade de Varazze, eram armas importantes para a vitória final do Bem. O segun-
do traço expressa a participação naquela luta de todos os elementos da natureza,
mas sobretudo do homem, que necessariamente se posiciona de um lado ou
de outro, já que a neutralidade ética era inviável para aquela visão de mundo.
Aí o papel dos santos era, pelo exemplo do martírio e das virtudes, conquis-
tar novos adeptos para a causa de Deus.
A concepção atualmente mais difundida de santidade, que a interpreta
como um sagrado acessível e benéfico, apesar de considerar aqueles dois
traços da psicologia coletiva medieval, não explícita um aspecto fundamental
e aparentemente contraditório: as intervenções punitivas dos santos. É ver-
dade que estes dominam a natureza em si mesmos e à sua volta, é verdade
que põem tal poder a serviço dos homens, já que ser santo é viver em função
dos outros e pelos outros, é ser mediador homem-Deus, é ser integra dor do
homem com sua sociedade, ao curar, exorcizar e harmonizar interesses gru-
pais'. Mas também é preciso acrescentar, ser santo é punir alguns para recolo-
car outros no caminho correto. Assim, expressando de forma mais completa
o belicismo e o contratualismo, os santos eram vistos na Legenda Aurea como
"escravos de Deus" que preparavam a humanidade para o Juízo Final.
De fato, a espiritual idade dos séculos XII-XIII centrava-se em três ele-
mentos fortemente articulados, a pobreza evangélica, a pregação apostólica
e as especulações escatológicas. O primeiro deles representava uma preparação
para o Fim dos Tempos, tanto para quem vivia em pobreza quanto para os
que davam esmolas, praticando a caridade cristã. O segundo elemento, reali-
zado sobretudo nas cidade e por mendicantes como Jacopo de Varazze, cons-
cientizava os homens dos perigos que rondavam suas almas, especialmente,
naquele contexto, as heresias. O último componente daquela tríade espiri-
tual, a expectativa pelo Iuízo, era constantemente reforçado pela prática da
pobreza - a avareza é a "raiz de todos os males'< - e da pregação anti-heré-
tica, pois uma das atividades do Anticristo, cuja presença anuncia a proximida-
de do Fim dos Tempos, é difundir uma falsa interpretação das Sagradas
Escrituras".
O significado escatológico, essencial nos exempla», tão importantes na
Legenda Aurea, transparecía, dentre outras formas, através do papel de punidores
desempenhado pelos santos. Da mesma maneira que, pela visão totalízadora

5. A. Vauchcz, "Santidade", em linciclopédia Einaucl, (trad., 11 vols.), Lisboa, Imprensa acional-Casa


da Moeda, 1987, \'01. ·12, pp. 290-292.
G. Legenda, 57, 6, pp. 251.
7. Idem, 1.
8. Brcmond, Lc Goff e Schmitt, op. cit., p. 37.
223
que se tinha da Divindade, os demônios eram "feitores de Deus":', os santos
também O serviam castigando pecadores. Ou melhor, assim como os milagres
benéficos tinham Deus como autor exclusivo, sendo os santos apenas seus
instrumentos, o mesmo ocorria nos milagres punitivos. Daí um santo dizer a
um pagão que "morrerás e entrarás no Inferno e conhecerás, queiras ou não,
esse Deus verdadeiro que adoramos"!", Ou seja, o mundo infernal era visto
como território divino, e neste sentido também os demônios praticavam o l3em
ao punir o Mal, como na história de Santa Inês, cujo estupracor foi estrangula-
do por um demônio antes de poder concretizar seu ato 11. Os santos eram
personagens-tampão que impediam o contato direto homem-Deus, como de
certa maneira o faziam também os demônios. Tanto uns quanto outros repre-
sentavam o profano no sentido exato do termo: pro fanu, "diante do templo",
algo que existe em função do sagrado, e não contrário a ele, como vulgannen-
te se interpreta a palavra. Santos e demônios eram anteparos diante do Sagrado.
Isso, de um lado, prolongava a antiqüíssima vertente que concebia o
mana religioso como tão poderoso que o homem não poderia ter contato
com ele, sob pena de ser destruído. É o que ilustra, por exemplo, o episódio
do soldado hebreu que tocou a Arca da Aliança+-, ou ainda de Zeus apare-
cendo epifanicamente a Sêmeleo. De outro lado, no cristianismo, os santos
salvaguardavam a figura divina, com os fiéis podendo descarregar neles sua
ira por pedidos não-realízados!". A humilhação dos santos fora muito pratica-
da nos séculos À1:-XII pelas comunidades monásticas, que durante seus desacor-
dos com a sociedade laica ofendiam as relíquias para simbolizar a injustiça
que sofriam (portanto, a humilhação voltava-se contra o agressor, tornado
responsável pela suspensão da intervenção sobrenatural dos santos) e tam-
bém para expressar descontentamento com o santo que não protegera a comu-
nidade. Tal procedimento era análogo ao ritual popular de bater nas relíquias
de santos que não ajudavam seus fiéist>.

9. TOl11asde Ccluno, Vita Secunda di San Francesco d'Assisi, 81, 120, em Fonti Francescane, I'áelua,
Mcssagcro, 4. cd. 1990, p. 650; J.egrtenc/a Perugina, 76, idem, p. 12'Í2.
10. Legenda, 12, 1, p. 70.
11. Idem, 2/;, 1, p, l I-í.
12. 2 Sm 6, 6-7.
13. Ovídio, t.esMétnmorpboses, 111,295-310, eel.-trad. G. Lafayc, Paris, Bcllcs I.crtrcs, 1969, p. 79.
11. J. l.c Coff, "Culturc cléricalc et traelitions folkloriqucs dans Ia civilisation mérovingicnnc", em P/lM/I,
p. 231, n. 22.
15. 1'. Géary, "L'í lumiliation eles sainrs", /lliSC; 34, 1979, pp. 36-38. A punição aos santos era forma de
fidúcia, de afeto e de confidência, segundo G. Cocchiara, "Sopravvivcnze Folkloríchc dcl Pagancsimo
Siciliano", em Preistoria e l'olhlore, Palcrrno, Sellcrio, 1978, p. 116. Na legenda /lurea há o intercs-
santc exemplo de um judeu que mandou fazer uma imagem de São Nicolau para guardar seus
bens enquanto se ausentava, ameaçando o santo de espancamento se não cumprisse direito sua
tarefa. Tendo sido assaltado, o judeu efetivamente passou a "açoitar furiosamente a imagem do
santo", que em função clisso interveio para que os ladrões devolvessem o produto do roubo (Cap,
3, 9, p. 27). Atitude semelhante adorou uma mulher cujo filho fora sequestrado: de uma estátua
da Virgem, ela retirou a imagem de Jesus, afirmando que só devolveria o Filho a Maria se esta
intercedesse pela volta do seu filho (Cap. 131, 1, pp. 59]-592).
o processo de cristianização de festas e divindades pagãs que ocorria
desde a Alta Idade Média não era apenas uma estratégia de conversão, mas
também expressão da permanência da sensibilidade antiga, que via o divino
habitando a natureza. Ao insistir repetidamente naquele processo!o, a Legenda
Aurea reforçava a visão belicista e contratualista do mundo e sobretudo mani-
festava sua vínculação a uma espiritualidade que ia sendo ultrapassada. Os
milagres punitivos na Legetida Aurea, apesar de dirigidos população urbana, à

mais afeita àquela transformação, correspondiam a uma espiritualidade mais


pública que privada, portanto arcaica.
É interessante, nesse sentido, uma comparação com a literatura hagiográ-
fica dos séculos XI e XII do Sul francês!". Nela, num conjunto de doze relatos
há noventa milagres punitivos, 44'% dos quais dirigidos àqueles que ofende-
ram um santo, geralmente através de um sacrilégio, ou seja, uma violação do
sagrado. Cerca de 33% puniam as pilhagens de bens da Igreja ou a agressão
a clérigos colocados sob a proteção de um santo. Os castigos relatados por
aqueles hagiógrafos parecem ter objetivado amedrontar as pessoas que pode-
riam prejudicar os servidores dos santos em função da fraqueza do poder real
naquela região. Na Legenda Aurea, da centena de milagres daquele tipo, ape-
nas 5')10 dizem respeito aos que atacavam o patrimônio da Igreja'", outros 5%
aos casos de disciplina eclesiástica I'), 13'% a questões morais?", 23')1) 2l autori-
dade da Igreja-" e 54% às ofensas aos "escravos de Deus"22
Noutros termos, enquanto desde o século XII se acentuava a "fernínílízação
da linguagem religiosa"25, prevalecendo a face mais branda, mais humana, da
Divindade, no texto de jacopo de Varazze o reino de Deus se mantém pelo
medo, pelo terror. A verdade brilha pela força. "É o Deus do Antigo Testamento,
o Deus justiceiro, o Deus vingador, que reaparece na Legenda Aurea=í Ou

16. r.egendo, Caps. 2, 3, 5, 8, 9,12, 19, 23, 2~, 26, 36, iJ2, iJ3, 1[/1, li5, li6, 1Í7, 1[9, 52, 58, 59, 63, 65, 71,
71,75,77,79,86,87,89,90,93,97,99, lOO, 102, 107, ]]0, 113, 115, 116, 117, 118, 121, 123, 12iJ,
127,129, ]32, 136, 139, 110, 112, 153, 15~, 157, 158, 159, 161, 166, 169, 170, 172 e 180.
17. l'.-A. Sigal, "Un Aspect du culte dcs saints. Le Chãumcnt divin aux XI" ct XII" e sleclcs d'aprcs Ia
littératurc hagiographique du Midi de Ia France", Cabiers de Fanjeaux, 11, 1976, pp. 39-59.
]8. t.egenda, Capo. 2; ]0; 30; 117,2 (dois milagres) e 166.
19. Idem, Caps. li9, 3; iJ9, 13-H; 113 e 111, 5.
20. Idem, Caps. 2, 5; 6, 2; 11, 3; 27, 3; 50; 57, 5; 76; 92; 113; 115, I; 119; 159, 1 e 168, 1.
21. idem, Caps. 2, 2; n, 6; 12, 2; 21, 6; 30, 3; 30, 5; li5; 58; 63, 7, 10, 17, 18; si: 82; 99, 8; 105; 116;
123, li; ]25, 1; 138; H2;155, iJ e 170.
22. ldent, Caps. 2,8 (dois milagres); 3, 9; 5, 1; 6,1 (dois milagres); 7; 12, 1; 19; 2-i, 1-2; 26, IJ; 27, 3;
39; /11 (doi, milagres); iJ3; iJ6, 13; 57, 2, 3, /1, li (dois milagres); 58; 59, 2,8; 61; 63, 5,10; 81; 82;
86, 1; 98 (dois milagres); 100; 111; 113; 117, 7; 119, 1 (dois milagres); 123,1; 125, 1; 127; 137; 138
(doi, milagres); 139 (três milagres); HO; 153; 159,2; 161 e 168, 8.
23. C. W. Bynulll,jes/Ls as Motber: Stuclies in tbe sptritualttv oftbe lligb Middle Ages. lscrkclcy, llniversity
of Califorriia Prcss, 1982.
21. G. l luor-Girard, "Lu )ustice ímmancnrc dano Ia I.egencle Doree", CI.1 Cabiers cletuclcs ntcdtéoales,
1,1975, r- 117.
._--._'.---. ---~--~-~

225
melhor, esta faceta divina, que não desaparecera da religiosidade ocidental,
sem dúvida mantinha na Legenda Aurea U111 peso significativo, maior que em
outras obras da mesma época. Seguindo o texto vétero-testarnentário, aquela
obra afirma, C01110 uma espécie de conclusão, que Cristo chama os homens
com benefícios, conselhos e castígoss>. Aliás, como já se notou, aquele legen-
dárío apresenta um notável equilíbrio entre casos de castigo e de salvação-v.
Os castigos terrenos que ali se narram parecem antecipar os da danação
eterna, com a força da exernplarídade procurando afastar outros homens do
pecado. Por isso mesmo o recurso aos exetnpla é freqüente, já que estes trazem
fatos autênticos do ponto de vista histórico, ao contrário dos miracula, que
o fazem pelo ângulo da fé27. Na verdade, () poder dos exemplo estava num
esquema narrativo e de categorias morais relativamente simples, opondo Bem
e Mal, esperança na Salvação para os convertidos e medo do castigo para os
pecadores: o cristianismo de então já era, e seria cada vez mais nos séculos
seguintes, urna religião do medo-s. De fato, "o verdadeiro sujeito da Legenda
Aurea é o conflito no qual Deus e o Espírito do Mal são os protagonistas"?",
com o primeiro agindo sobretudo através dos santos. Assim, as punições aos
pecadores revelavam-se uma prática salutar para a comunidade cristã. Na lin-
guagem evangélica, "caso a tua mão direita te leve a pecar, corte-a e lance-a
para longe de ti, pois é preferível que se perca um dos teus membros do que
todo o teu corpo vá para o Inferno=v. Na fórmula da Legenda Aurea, "os con-
trários se curam com seus contráriox'vu.
Para Alain Boureau, os castigos revelam a orientação eclesiástica da
Legenda Aureatâ. Realmente, é significativo que a maior parte daquelas punições
atingisse atos de desrespeito aos santos. Isto é, de figuras até então vistas com
certa desconfiança pelas elites eclesiásticas, e que apenas naquele momento,
século XIII, passavam a ser melhor definidas pela Igreja, cuja dogrnatízação
implicava também a normatízação dos processos de canonízaçào:». A unifor-
mização dos elementos folclóricos dos exempla por parte da cultura erudita,
transformando-os num dos "instrumentos mais eficazes do poder ideológi-

25. l'r],I-:B; 1.(:~e/UI{/,IR2, p. R55.


26. Bourcau,op. cit., pp. 1J9 e112.
27. Brcmond, I.c Goff e Schmirr, op. cit., p, 5/1.
2R. Idem, p. 103;.J. I.)elumeau. l.tI Peuren Occident (XIV"-XVIIP siécles): (file Ciléllssil:!!,i'e. Paris, I'ay.ird,
197R.
29. I I. Savon, "lnrroduction", <:111 1.0 I.e,f!,ende Doiée. trad, J-H. Rozc, Paris, Garnícr-t-Iammaríon, 1967.
vol. I, p. 11.
30. l'vlt 5, 30 (cf. também 18, R), Me 9, 1(7 e Lc 3, 9. Num certo sentido, essa é a expressão cristã da
prática plurimilcnar, encontrada em diversas civilizacôcs, de sacrificar lima parte para a sobre-
vivência do todo: j. G. Fr:tzer, l.a Rama nome/ti. (rrud.), México, l'ondo de Cultura Económica, 9.
cd., 19H1, pp, 1;92-199.
31. I.egeml{/, Caps. 2, H, p. 17.
32. lsourcau, ojJ. cit., p. J!l7.
33. M. Goodich, Vi/o Perfect«. Tbe Ideal (j/, Saintbood in lhe Tblrtceutb o! III 11 rI', Srurrgart, Anton
Ilicrsemann,19R2, pp. 5'1-17.
226
CO".14, ocorreu também na Legenda Aurea. Contudo, olhados mais de perto,

os milagres punitivos que ali aparecem expressam sobretudo perspectivas


escatológicas populares, mesmo porque o medo ao ]uízo Final era mais popu-
lar que clerical'».
Aqueles milagres alimentavam, por sua vez, a atmosfera escatológica da
época, mas mostrando como tais castigos poderiam contribuir para a eventual
salvação dos próprios envolvidos e, se compreendida a lição, dos demais ho-
mens. Por exemplo, quando o apóstolo Tomás foi tirado de sua meditação
durante um banquete ao receber um tapa de um criado, disse a este que logo
ele seria morto e um cão traria sua mão direita, que fizera a ofensa; e explicou-
lhe: "É muito melhor para ti obter assim o perdão desse pecado, para poder
entrar na vida eterna, que evitar esse castigo passageíro'w. Ainda que lembrando
a possível apocrífícídade dessa história, ]acopo de Varazze não deixa de narrá-
Ia, mostrando como o castigo desproporcionado à ofensa serviu de exemplo
aos presentes e como o santo agiu assim cheio de caridade pelo ofensor.
De forma geral, contudo, transparecia na Legenda Aurea uma lei de simí-
litude punitiva, como, por exemplo, aquela adotada anteriormente no tím-
pano do juizo Final de Sainte-Foy de Conques, no centro-sul francêsv, ou,
posteriormente, no Inferno de Dante. Foi assim nos casos de paralisia narra-
dos pelo dominicano, todos decorrentes do ato (ou da tentativa) de mãos
ímpias tocarem um corpo santo, fosse o hímen da Virgernõ'', fosse torturarõ?
ou matar-v um santo, fosse segurar uma relíquia descrente de sua autentici-
dade+l, fosse tentar violar uma santa ou mesmo tocar nela"2, fosse ainda tocar
objetos sacralizados pelo contato com um corpo santo, como a corda de um
martirizadoõ, a oferenda dada a um santo+' ou o caixão da Virgem">.
Outras vezes a ira divina manifestava-se através de desmoronamentos,
terremotos, raios e tempestades provocados por diversos motivos: desejo de
incestosv, dúvida sobre a possibilidade de uma virgem parir+", tortura+s e

31. Brcmond, Lc Goff c Schmitt, ojJ. cit., pp. 105, 107 e 164.
35. C. Carozzi e J I. Taviani-Carozzi, La Fin des temps. Terreurs et propbéties au Moyen Age, Paris, Stock,
1982, pp. 176-180.
36. Legenda. 5, 1, p. 33.
37. 11. I'ranco júnior, "O Diabo no Ocidente Feudal: A Versão Iconográfica de Conqucs", l Iistúria:
Questões e Debates. 7, 1986, pp, 119-137.
38. Legenda, 6, 1, p. 42.
39. Idem, 82, p. 350.
'ÍO. Idem. 57, 3, p. 252.
11. Idem, 125, 1, p. 573.
42. Idem,! 39, p. 621 (duas punições).
13. idem, 2, 8, p, 18.
11. Idem, 63, 18, p. 288.
ti5. Idem, 119, 1, p. 508.
16. idem, 2, 5, p. 15.
17. Idem, 6, 1, p. 42.
48. Idem, 39, p. 172.
227
martírio de santos-v, tentativa de assassínio>", decapitação de uma santa>",
resistência de pagãos à pregaçãow, tentativa de corromper mongeso, orgulho
da riqueza material>", imposição ele cristãos adorarem ídolos pagãos>, não-
celebração ela festa do santo'v, comemoração ele festa pagã>", substituição da
estátua do Cristo pela de uma personagem pagã58, desterro e morte do santo
no exílio?', prática simoníaca por parte de um clérígow, invocação de júpiter
por parte ele U.l1 sacerelote pagãov'. egoísmo de um moleiro que não quis par-
tilhar seu rnoini.o com o sant062, prisão de um devoto elo santo6j
Os motivos de castigo eram, portanto, variados, mas na maioria das vezes
relacionavam-se com práticas pagãs ou perseguições ao cristianismo nascente.
Sabendo-se ela insistência ele J acopo ele Varazze sobre o papel elos santos como
evangelízadoresv", e de sua preocupação com a atualização desses fatos históri-
cos através da conversão dos hereges - tarefa essencial elos pregadores mendi-
cantes 65 -, pode-se pensar que aqueles milagres punitivos, semelhantes à
atuação elos eleuses pagãos, deveriam funcionar como forma ele díssuasão dos
segmentos sociais mal catolicizaelos.
No entanto, o tipo de punição mais freqüente - 37% do total - era o
da morte do pecador. Especialmente a morte súbita, que para a mente medieval
era infamante e vergonhosa, pois impedia os preparativos adequados, os ritos
de passagem para a outra vida. Havia ainda uma circunstância agravante, caso
a morte repentina se desse de forma clandestina, sem testemunhas. De toda
maneira, a rnors repentina significava maldíção'v. A causa mortis variava,
podendo resultar de possessão dernoníacaõ", febreGH, ataque de leãoG9 e ani-

~9. Idem, Caps. 24, 2, pp. lI5; 58, pp. 261; 159, 2, pp. 710-711.
50. Idem, 41, p. 175.
51. idem, 43, p. 178.
52. Idem, 15, p. 18H.
53. Idem, 19, 3, p. 207.
51. idem, 57, 5, pp. 253-254.
55. idem, Caps, 58, pp. 263; 111, p. 461.
56. Idem, 59, 8, p. 270.
57. Idem, 81, p. 319.
58. Iclent, 105, p. 'í1S.
59. Idem, 138, p, 619.
60. Idem, 11 1, 5, p. 632.
61. Idem, 142, p. 636.
62. Idem, 147, pp. 659-660.
63. Idem, 155, ;" pp, 690-691.
61. idem, Capo 6, 1, c também nota 16.
65. Idem, Cap. 149.
66. 1'11. Arié«, O Homem diante da Morte, (trad.), (2 vols.), Rio de janeiro. Francisco Alvos, 1981, voi.
I, p. 12.
67. Legenda, Caps, 2, 8, pp. 19; 41, pp. 175; 61, pp. 273; 123,1, p. 5'í3.
68. Idem, 2, 10, pp. 21-22; 30, 2, p. 111.
69. Idem, 5, 1, p. 33.
228
mais venenosos?", espinho de peixe na garganta?", queda do cavalon, queda
da galeria da casa7.i, estrangulamento por demônio?", acidentes naturaísz>,
lepra e suicídio?", instrumento de tortura que atinge torturador?", desmorona-
mentos e fatores não-especificados?". De forma geral, a punição com a morte
era proporcional aos desvios castigados: 17 casos dentre os 54 de ofensas aos
santos, 11 em 23 de desrespeito ~l autoridade da Igreja, 5 em 13 ligados a
questões morais, 2 em 5 de prejuízo ao patrimônio eclesiástico e 2 em 5 de
inobservância da disciplina eclesiástica.
De toda maneira, cegando, emudecendo, paralisando, esmagando, mutilan-
do, endemoniando, enlouquecendo, queimando, adoecendo, acidentando,
matando, os milagres punitivos expressavam bem a concepção da Legenda
Aurea, para a qual a trajetória da humanidade se colocava entre méritos e
pecados, oposição, como bem viu Boureau, mais escatológica que moral?".
Muitas vezes os milagres punitivos anunciavam o início de uma nova era.
Numa das mais longas uitae da coletânea, a de São Pedro Mártir, quase con-
ternporâneo de jacopo de Varazze e dominicano como ele, três intervenções
do santo castigaram hereges e fizeram-nos a partir disso se convertere". Isto
é, conseguia-se uma vitória sobre o Anticristo e assim dava-se um passo impor-
tante em direção à Parusia e ao Milênio.
Em conclusão, há três pontos a marcar sobre os milagres punitivos na
Legenda Allrea. Primeiro, eles revelam a ambivalência dos santos, com seus
atos benéficos e/ou maléficos para os homens reforçando a velha e discutida
tese de os santos cristãos terem sido sucessores dos deuses ou ao menos dos
semideuses pagãosl:n, tese aceitá vel desde que seja feita a ressalva fundamental
de os santos não terem poder próprio como as entidades pagãs, sendo ape-
nas intermediários. Segundo, aquele tipo de milagre representava uma tentati-
va de valorizar os santos num momento em que a Igreja - cada vez mais
centralizada, porém também arneaçada pelas heresias - passava a controlar
a canonização, de forma a aproveitar um traço da cultura vulgar para afirmar
a superioridade da cultura clerical. Terceiro, os milagres punitivos funcionavam

70. Idem. 98, p. 121.


71. idem, 12, 1, p. 70.
72. Idem, 21, 6, p. 107.
73. Idem, 99, H, p. ;'28.
71. Idem. 2-1, I, p. 115.
7). Idem. Caps, 2, 5; 2-1. 2: :"\9. 13; -15; 57, 5; "5H; 136; 111. "5; 1-19. 2.
76. Idem, 110, p. 625.
77. Idem, 139, [>[>.621-622.
78. Idem. Caps. -19, 3; pp. 207; H1, [>p. 3-19; ] 55, ;" p. 691.
79. Bourcau, ojJ. cit., p, 1 "53.
8U. t.cgenda, 63, 2, [>. 279-280; 63, 1, [>[>. 282; 6j, 7, [>. 28;'.
!l"I. 1'. Saintyvcs,l.es Saints sucesseurs des dieux. Paris. ourry, 1907; 11. Dclchayc, Sanctus: Essai sur
le culte des saints, Bruxelas. Sociéré dcs Bollandisres, 1927; 1'. Brown, Tbe Cult ofSaints: Its Rise
anel Function in Latin Cbristianity, Chicago, Univcrsiry of Chicago l'ress, 1981. Veja-se também.
supra, ensaio n. 2, pp, 63-65.
229
como uma Microparúsia, uma aceleração da História, ou melhor, como a
negação da História, pois seu objetivo se colocava para além dela, no Fim dos
Tempos. Enquanto os demais tipos de milagre eram lima intervenção do Eterno
na História, reafirmando a própria existência desta, os milagres punitivos sim-
bolizavam o Fim da História, a passagem para o Eterno.
EM BUSCA DA IDADE DE OURO
o PAPEL DA ALQUIMIA
EM DAI\ifE ALIGHIERI

Na hierarquia dos pecados e dos correspondentes castigos elaborada por


Dante, surpreende à primeira vista a brandura da punição atribuída por ele
aos mágicos e adivinhos, comparada ao rigor aplicado aos alquimistas. Mas
isto se esclarece quando se recordam as fortes críticas do poeta à sociedade
do seu tempo 1 e a utopia nostálgica que ele construía como proposta alterna-
tiva. Ora, para a concretização dessa utopia, a alquimia era o melhor instru-
mento por ser um saber caracterizado pela "vontade de fugir da história'<.
Exatamente por ser um crítico implacável de seu momento, o poeta não ignora-
va o processo histórico, mas o interpretava de acordo com suas preocupações
escatológicas, colocando o sentido da história no próprio fim dela. Porém
antes disso ocorrer haveria, como etapa precedente, uma nova Idade de Ouro,
o reino terrestre de Cristo, o Milênio. Do ponto de vista dantesco, a alquimia
tinha um importante papel a desempenhar na concretízação daquela etapa.
Em função disso, na verdade Dante não pune na décima fossa do Oitavo
Círculo do Inferno os alquimistas, e sim aqueles que se faziam passar por eles.
Castiga os falsos alquimistas por serem elementos perigosos, ao enganosa-
mente pretenderem elaborar a Ars Magna, o aperfeiçoamento do homem e
da natureza. Tal postura não era exclusiva do poeta, merecendo a atenção da

I. I I. Franco júnior, "A Trindade do Mal e a Demonizaçâo Social em Dantc Alighieri", História, ~,
1985, pp. 7]-78.
2. C. Crisciani e C. Gagnon, Alcbintie et pbilosopbie au. Moyel1 Age: Perspectiues et jJroblemes,MontreaI,
Univcrs, 1980, pp, 24 e 72; J-C Margolin c S. Mauon (dir.), A tcbimte et phtlosopbie à Ia Renaissance,
Paris, Urin, 1993.
232
época. A falsificação de metais era objeto de preocupação dos próprios alquimis-
tas". Juristas como Oldrado da Ponte (1270-1335) interessavam-se pela alquimia
enquanto expressão do fenômeno sociocultural da íntegraçào entre filosofia
e medicina, considerando algumas de suas práticas legais e outras não". O Pa-
pa João XXII, adepto das idéias alq uimistas, condenou em 1317 a prática delas,
temeroso de que pudessem levar ~l falsificação da moeda>,
Dante coloca aqueles indivíduos, com lepra, ao lado de outros falsifica-
dores, os de identidade punidos com loucura, os de moedas com hidropisia,
os de palavras com febre ardente». Também Tomás de Aquino n~LOcondena-
va a prática alquímica, mas a falsificação de metal precioso. Para ele, "se a
alquimia fizer ouro verdadeiro não será ilícito vendê-lo como tal, pois nada
impede a arte de usar de certas causas naturais para produzir efeitos naturais
e verdadeiros'". Um dos mais populares textos do século XIII, Le Roman de
Ia Rase, traduzido para () italiano por um certo Durante Fiorentino, possivel-
mente o próprio poeta, também aceitava a transmutação de outra matéria em
ouro, mas lembrava que só teriam sucesso nessa tarefa "os que, de fato, são
mestres em alquimia/I ...] a este resultado n~LOsaberiam chegar/os que se ocu-
pam apenas de falsa ciência'f'. Por ter-se dedicado a esta é que Capocchio de
Siena, colega de estudo de Dante, condenado e queimado vivo em 1293, foi
chamado por ele de "bom imitador da natureza":'.
O verdadeiro alquimista não pretendia realizar essa mera imitação, e sim
reordenar a natureza. Daí o contemporâneo Arnaldo de Villanova (1240-1313)
afirmar que "esta ciência não outra coisa que a perfeita inspiração de Deus'"",
é

Nascido no mesmo ano, o poeta Jean de Meun concordava com ele: "Alquimia
é uma técnica verdadeira/quem sabiamente a estudar/ grandes maravilhas aí
pode encontrar" I:' Alberto Magno Cl193-12BO), que Dante coloca no Paraíso
e a quem se atribuíam diversos trabalhos no campo da alquimia, provavel-
mente compartilhava da mesma idéia. Ainda que não esteja confirmada a au-
tenticidade de todas as obras atribuídas àquele importante teólogo, elas pelo

3. c. Criscinni. "l.a Quaestio de Alchimia Ira Ducccnro e Trcccnto", stedtocro. 2, 1976, rp. 119-168.
'1. j'. Migiiorino, "Alchimia i.ccira c lllccira ncl Trcccnro", QlIademi Mcclieuali; 11, 1981, pr. 6-11.
5. 1.. Thorndikc, /I l listorv o/Magic aiut lL\yJcrill/el1[al Scicnce, Ncw York, Colurnbia Unlvcrxlty Prcss,
19)';, voi. 111,pr. HH8.
6. Connncdia. Inferno XXIX, J:í7.
7 Tomás de Aquino, Su ma 'l'eo!ôgiul, li-li, q. 77. a. 2. ccf-rrad. A. Correu. ( ll vols.), Porto Alegre,
Escola Superior de Teologia Sào Lourenço de Brindes ~ Universidade de Caxias do Sul-Sulina
Editora. 1980-1981, 1'01.V, rI'. 2618-26zo.
8. jcun de Mcun, l.c KOll1(11f ele Ia kos«. VI'. 16 105 c 16115-16116, cd. A. l.anly, (i vols.), Paris,
l Ionoré Chamrion,197j-1976, 1'01. IV, rI'. 112-113.
9. Connnedia, Inferno XXIX. ]39.
1O, Citado por S. l Iutin, l.a l'ie qnotidicnnc eles alcbtnustes ali J1{o)'en Age, Paris, l luchcrrc, 1977, p.
.i 11. Nào é improvável que Dant« tenha conhecido a obra ou mesmo a pessoa de Arnaldo, médl-
co, teólogo e alquimista que viveu na Catalunha, em Paris, Monrpcllicr, Florcnca, Bolonha, Nápoles
c Palcrmo: DI'. l loffcr, Nourelk: biogmjJbie u ntoersetle, Paris, Didot, 1852.1'01. 111.col. 279-281.
1 i. le lêoman de 10 lIose, \'1'.16 05-í-16 056,1'01. IV. p.liO.
233
menos indicam "um parentesco conceptual entre seu pensamento e certas pers-
pectivas alquímícas"!-. De fato, distinguindo entre magia natural e magia peca-
minosa, ele defendia a descoberta de virtudes ocultas nos elementos, tendo
realizado para isso diversos experimentos 15. Postura endossada por Dante, que
faz Beatriz dizer que a experiência "é na terra a nutriz da melhor arte"!".
Não somente Dante com certeza tivera contato com aquelas idéias, como
alguns indícios nos sugerem certo domínio desse saber por parte dele. No que
diz respeito à obtenção daqueles conhecimentos, deve-se lembrar que a
alquimia foi introduzida no Ocidente por influência árabe">, cultura com a
qual o tlorentino tinha contato e que estava presente em sua obra 16. Se a
alquimia cristã for compreendida como uma forma de aristotelismo heterodo-
xo saído das traduções latinas do século XII17, fica reforçada a idéia do aces-
so de Dante a ela, ele que considerava Aristóteles o "mestre do pensamen-
to"lll e a quem conhecia através daquelas traduções por não saber grego.
O peso disso fica evidenciado quando lembramos que no conjunto de
sua obra, Alighieri fez mais de duas centenas e meia de citações dos clássi-
cos, sendo quase metade delas do Estagirita. Acrescente-se a isso que quan-
do, em 1295, forçado pela situação política, precisou filiar-se a alguma das
muitas corporacões profissionais de Florença, Dante o fez na dos médicos e
farmacêuticos, opção estranha para um literato e filósofo, porém compreensí-
vel para alguém interessado pela alquimia. De acordo, aliás, com o crescente
interesse que aquele campo do conhecimento então despertava e que fez com
que no século XIV o número de obras alquímicas se multiplicasse!''.
Quanto à elaboração daquele conhecimento, é importante observar que
alquimia e filosofia não se opunham, como muitas vezes se disse - pelo con-
trário, se complementavam. Não somente os alquimistas eram chamados de
fílósofos-? - e buscavam por isso a pedra "fílosofal" - como a sua arte era
"a tentativa de junção entre o discurso científico e o simbólico'?". O alquimista
se apresentava entre o sábio e o ignorante, entre os procedimentos espirituais
e os materiais, pretendendo atuar como uma ponte que os aproximasse. A
alquimia implicava um processo cognitivo em dois planos, um racional e expe-

12. Crisciani c Gagnon, op. cit., p. 27.


13. A. C. Crombic, t ttstoria de Ia Ciencia: IJe San AgIIS/íll a Galileo. (rrad .. 2 vols.), Madrid, Alianza,
197~. \'01. I, pp. 5H c 125.
lIi. Connneclia, Paraíso li, 95-96.
15. Crisciani e Gagnon, ojJ. cit. p, ;'9.
l(í. M. I'alaeios Asín, l.c!liscatologia MIISllflllOlltl <,1/ 10 Contodia, Madrkl, l lipcrión, 'I. ed. ,19Wí, sobre-
tudo pp. 31l7-121.
17. Crisciani e Gugnon, op. cit .. p. 79.
18. Connnedirt, Inferno IV, 131.
19. \YI. Ganzcnmullcr, L'Alcbiniie ali Moyen Age, (trad.), Paris, ALlhier,1910, 1'1'. 17 e 57.
20. Criscinni e Gagnon, op. cit., 1']1. 2:; c 65.
21. G. lI. Allard, "LI Pens~" symboliquc au Moycn Age", em Cabters tnternationanx de Svmbolisme,
21, 1972, ]1.12.
231
rimental, outro divino e colocado além da razão-é. Ora, o próprio poeta expli-
ca que a Commedia encerra um sentido literal e outro alegórico, tendo em
razão disso sido escrita em estilo simples e em idioma vulgar, como os que
"as mulheres utilizam em suas conversações diárias" 25.
Apesar de os tratados de alquimia se apresentarem misturados com
escritos da Escolástica, como se vê na obra de Alberto Magno, o discurso alquí-
mico ocorria fora das instituições devido aos seus motivos neoplatônicos e
herméticos, que desde o século XIII tinham sido expulsos da universidade-".
Nessa perspectiva, poder-se-ia repensar as razões que levaram Dante a desis-
tir de obter o grau de doutor na Universidade de Paris, o que possivelmente
teria depois aliviado a "extrema pobreza em que me deixou o desterro'<>. O
naturalismo excluído do pensamento oficial refugiou-se então na tradição
mágica popular, aparecendo sobretudo em Le Roman de Ia Rosee na Commedia,
obras inter-relacionadas em diversos aspectos: "Se o mundo voltasse mais a
mente/para o fundamento da natureza/seguindo-o seria melhor toda gente"26.
Em função disso, Dante Alighieri se colocava como defensor daquele
tipo de saber. Vendo na alquimia a atividade de um artesão que pensa e reza,
e que não tinha lugar na ideologia urbana do século XIV27, pode-se entender
melhor as críticas feitas por Dante à sociedade florentina. Ao reprovar a ambição
e o despudor de seus conterrâneos, ele ao mesmo tempo lamentava as impli-
cações sociais do fato e exaltava implicitamente a necessidade de recorrer aos
métodos alquímicos que purificariam a matéria e o homem. Nessa linha, as
críticas feitas à alquimia no início do século XIV pelo papado e pelos francís-
canos, dominicanos e cistercíenses, devem ter contribuído para as ácidas
observações do poeta sobre os pontífices e sobre aquelas ordens religiosas
naquele momento.
O mais importante, porém, era a prática daquele conhecimento por parte
de Dante. De fato, a viagem que ele realiza pelo mundo do Além segue o es-
quema elas operações alquímicas, partindo ela calcinação (destruição da forma
primária) até atingir a coagulação filosófica (junção perfeita e inseparável dos
princípios da matéria). Quando "no meio do caminho desta vida/me encon-
trei numa selva escura/porque a via reta estava perdida'<e, o poeta precisou
destruir sua matéria pecaminosa assistindo aos tormentos do Inferno, para
somente depois poder encontrar Deus. Um interessante texto alquímico do

22. Crisciani c Gagnon, op. cit., pp. 50-51.


23. Dantc Alighicri, Iipisiotae, XIII, 31, cel. E. Pistclli, Enciclopedia Dantesca. Appendtce, Roma, Istituto
dclla Enciclopeelia Italiana, 197R, p. RIS.
2/Í. Crisciani c Gagnon, op. cit., p. 17.
25. I!pisto/ae, 11,7, p. 806.
26. Commedia. Paraíso VIII, 112-11'1.
27. Crisciani e Gagnon, op. cit., p. 80.
28. Commedia, Inferno I, 1-3.
235
século XIII, Aurora Consurgens, que foi atribuído a Tomás de Aquino-", afir-
ma que a criança vem à luz após ficar no ventre três meses conservada na
água, três meses alimentada pelo ar, três meses preservada pelo fogo. Somente
então ela nasce, recebendo vida do sol, "o ressuscítador de todas as coisas
mortas". No seu processo de renascimento espiritual, Dante também passou
por essas três fases: a primeira dominada pela água, no poço do Inferno, estando
o próprio Lúcifer serní-enterrado num bloco de gelo; a segunda deu-se ao ar
livre, na montanha do Purgatório; a terceira nos céus, próximo aos astros e
caminhando sempre em direção à fonte luminosa que é Deus. Em termos mais
precisos, saindo da escuridão do Inferno (nígredo) para o branco do Purgatório
Calbedo) e depois para a lurninosidade do Paraíso Crubedo e citrinitas).
Na mesma fonte sonhava-se com um espírito que "libertasse minha alma
do mais profundo Inferno'w', passagem de claro paralelismo com o agradeci-
mento de Dante a Beatriz. "Sendo eu servo, me deste a liberdade":ll. Beatriz,
que aliás lhe apareceu pela primeira vez vestida de "cor sanguínea", portan-
to na etapa do rubedo, pois a pouca idade do poeta preservava sua pureza.
Anos mais tarde ela lhe aparece de "cor branquíssima", pois o jovem Alighieri
já precisava purificar sua almaõ-, A morte da amada lançou-o de vez na escuridão
do pecado, que ela lhe recriminaria ao reencontrá-lo ». Portanto a trajetória
espiritual do Florentino involuiu, apesar de suas boas inclinações naturais+í.
Para reverter esta situação é que Beatriz interveio recolocando o poeta no
caminho do autoconhecimento.
Também é preciso lembrar que havia estreita relação entre alquimia e
astrologia, com a Grande Obra somente podendo ser realizada em condições
astrológicas favoráveis e que precisariam, portanto, ser bem conhecidas pelos
alquimistas. Ora, Dante demonstra seguidamente seu saber astrológico'», Ele
afirma, através de Beatriz, que já no momento do nascimento as estrelas
definem as tendências do destino de cada índívíduox. Atribui mesmo seu ta-
lento ao fato de ser do signo de Gêrneosô". Mais ainda, acredita que da "radia-
ção e dos movimentos das luzes sacras":lH, ou seja, dos astros, são criadas as
almas dos animais e das plantas. Portanto, os astros são intermediários entre
Deus e todas as partes da Criação, exceto os anjos, os homens, o céu e a
matéria primordial, criados diretamente pela Divindade. Porque toda Grande

29. M. I.. Von l'ranz, Alquimia: Introdução ao Simbolismo e ii Psicologia, ( trad.), São Paulo, Cultrix,
1985, p. 213.
30. Idem, p. 216.
31. Commedia, Paraíso XXXI, 85.
32. Dante Alighieri, Vila Nuooa, 11, 3. cel. M. Barbi, Enctclopedia Dantesca. Appendice, p. 623.
33. Commedia. Purgatório XXX, 130-132.
34. Idem, XXX, 115-117.
35. Idem, Inferno VI, 68 et passim.
36. idem, Purgatório XXX, 109-111.
37. Idem, ParaísoXXTT, 112-111.
38. Idem, VII, 111.
236
Obra deve ser corneçada por volta do equinócio da prírnaveraw, a viagem de
Dante pelo Outro Mundo ocorre em abril de 1300, exatamente naquele momen-
to, ou pelo menos próximo a ele?",
Em suma, ou tendo sido um alquimista (hipótese não descartável) ou
apenas tendo tido certo contato com aquele tipo de conhecimento - o que
seria coerente com o enciclopedismo da época - a verdade é que Dante
encontrou na alquimia mais um elemento para a construção de seu sonho de
uma sociedade perfeita?". Sabemos que a AI:, Magna buscava mudanças na
natureza espiritual do homem a partir de alterações na composição química
das coisas, não estando portanto associada ~l feitiçaria+". Por isso mesmo, ela
era a ciência ou a arte da imortalidade, pretendendo possibilitar o reencon-
tro do estado anterior ~l Quedaí". É interessante que as duas etimologias admiti-
das para alquimia estejam ligadas a essa idéia: a palavra viria de Kemia, for-
mada do egípcio Kem, "terra negra", que era um dos nomes do Egito, ou do
chinês Kiam-oile, "suco de ouro", um dos nomes do elixir da imortalidade
naquela cívílízação+'. De qualquer forma, as duas possibilidades falam da
mesma coisa, uma adotando o ponto de partida (a terra da qual foi feito o
homem, matéria a ser purificada), outra o de chegada (o ouro, a luz, a essên-
cia divina).
Pela Tábua Esmeralda, que os medievais atribuíam a Herrnes Trimegisto,
a realização da Grande Obra era análoga à origem do mundo, ~l organização
do caos primitivo, daí ser para os alquimistas um processo sagrado ". Isto é,
a prática alquímica apenas aceleraria os processos da natureza, revelando a
verdade essencial: "O que está embaixo é como o que está em cima e o que
está em cima é igual ao que está embaixo, para realizar os milagres de uma
única coisa"IJG.Por isso o local em que se tentava realizar tal obra era um labo-
ratório, lugar de trabalho (!abOJ~ e de oração Coratorium). Para os alquimis-
tas, o cristianismo libertara o homem do pecado, mas não lhe restituíra a
natureza primordial, daí pretenderem alcançar a pedra filosofal, identificada

39. l Iutin, ojJ. cit., p. 77.


110.A data exata do início da viagem dantcsca <" difícil de sei' precisada, mas devia estar entre 25 de
março <primeiro dia do ano pelo calendário florcntino) e 8 de abril (Sexta-feira Santa naquele ano
de 13(0). Como na época de Danrc usava-se o calendário iuliano, que apresentava uma diferença,
para mais, de dez dias em relação ao calendário grcgoriano utilizado a partir de 1582, o primeiro
dia de abril corrcspondia usrronomícamcntc ao 21 de março, exatamente o dia do cquinócio de
primavera no hemisfério norte.
11. Contudo, a prestigiosa Enciclopedia Dantesca, dir. lJ. Bosco, (5 ,,01s0>, 1970-1976, dedica ao assun-
to um verbete de apenas nove linhas, sem nenhuma indicação bibliográfica ("01. I, p. 1 JO).
1;2. J. B. Russcl, Wilcbc/'{fji in tbe Midclk: /Iges. lrhaca, Cornell Univcrsiry I'ress.1 972, pp. 9 e 263.
'13. 1lutin, oj). cil ., p. 60; 1'. Duv.il, I.{/ Pensée alcbintiquc el le conte clu Graa], Paris. 1lonoré Ch.unpion.
1979, p, 250.
li/;. Duv.il. ojJ. cit., p. 98.
15. Ilutin, ojJ. cit .• pp. 76-77.
Ij6. I lcrrncs Trismcgisto, "Tábua de Esmeralda", <.:111 C:()J1JlIS t tenueücnsn, (trad.), Siio Pauio, I lcruus,
1983, p, 127.
ao Cristof". Este, como símbolo do Si-mesmo, efetivava a união dos opostos:
do ponto de vista junguiano, a "matéria" que se pretendia transformar era a
vida psíquica, a opus corresponderia ao processo de índívíduacãov'.
Na perspectiva de Dante, era a redescoberta do homem primordial. Era
o retorno à Idade de Ouro passada, para cujo restabelecimento ele acredita-
va estar predestinado a contribuir. Para ele o processo alquímico significava
passar do chumbo (cujo planeta correspondente é Saturno) ao ouro, portan-
to à idade primordial, presidida pelo próprio Saturno ou Crono, deus das ori-
gens e do tempo. Ao relembrar esse fato, Virgílio fala a Dante sobre a ilha de
Creta, onde no reinado daquele deus acontecera a Idade de Ouro. Lá, no mon-
te Ida onde Rea tinha escondido seu filho para não ser devorado pelo pai (o
tempo), há o vulto de um velho posicionado de costas para Damieta e de
frente para Roma. A cabeça dele é de ouro, os braços e o peito de prata, ()
ventre de cobre, o restante de ferro, menos o pé direito, feito de argila. Em
cada uma de suas partes, menos a cabeça, há uma fenda de onde saem lágri-
mas que formam os rios do Inferno e o lago Cocitow.
Passagem rica de simbolismo, e difícil de interpretar. Os comenta dores
de Dante quase sempre se referem à figura do velho como sendo análoga à

da estátua descrita pelo livro bíblico de Daniel, a qual alegorizava os vários


impérios do mundow, Mais que isso, porém, deve-se insistir em que Virgílio
falava num "mundo casto">', no qual estava "mona toda malícia", como o pró-
prio Dante lembraria mais adiante52. Era ali, dentro da montanha, portanto no
seio da Mãe-Terra, que se encontrava o "grande velho"s3, apesar de a ilha estar
"agora deserta como coisa inútil"51. Imagem, portanto, de um mundo puro
que já não existia na época de Dante, tanto que se achava desabitado. Ou
melhor, nele permanecia apenas o velho, frágil com todo seu peso apoiado
num pé de argila.
Ademais, o Grande Velho dantesco apresentava as cores típicas do proces-
so alquímico, porém na ordem inversa, expressão da decadência humana:
dourado, branco, vermelho, preto. Contudo suas partes nobres, sedes do espíri-
to e da alma, a cabeça e o peito, ainda eram de metais preciosos. Mais impor-
tante, o pé de argila sublinhava a ambigüidade do ser humano, pois argila é

1Í7. kusscl, OjJ. cit., p. 30-31.


fit:. c:. C;. ,Iung, Aion. tistttdos sobre o Simbolismo do Si-mesmo, (trad.), Pcrrópolis, Vozes, '1982, pp. 63-
66; j~Z)'slel'iIl1Jl Coniu nctionis, (rrad.), Pctrópolis, Vozes, '1985, p. H5. Apesar de o método de ,Iung
ser várias vezes problemático para o historiador por sua tendência a-histórica, ao menos sobre a
alquimia de "rode: ser um excelente instrumento de cxcgesc", segundo R, l lallcux, Les Textos
alcbimiqucs; Turnhout, Iírcpols, 1979, p, 55.
19. Comntedia. Inferno XIV, ~!It-no.
50. Dn 2, 31-1Í5.
51. Commedia, Inferno XIV, 96.
52. Idem, Paraíso XXI, 27.
53. Idem. Inferno XIV, lO3.
51Í. Idem, Inferno XIV, 99.
238
adamab, ou seja, ao mesmo tempo "solo" e "vermelho". Enquanto solo relem-
bra a fragilidade humana, já que "és pó e ao pó tornarás":», mas enquanto
vermelho registra a possibilidade de se recuperar o mundo perdido, pois rube-
do é a fase da união com a própria alma, é a regeneração. Tudo isso não lem-
brava o Adão alto e belo de antes da QuedaSG ? O Adão andrógino como o
mítico Hennafrodito criado no próprio monte Ida57?
Dessa forma o velho colocado no centro da ilha de Creta - a monta-
nha é sempre um axis mundi= - correspondia pela lógica simbólica à árvore
plantada no centro do Paraíso. Se lembrarmos que esta é ao mesmo tempo
Adão e Cristo>", que Saturno é alquimicamente o primus antbropos'v e que
Cristo é o "último Adão'<", a figura do gran veglio ganha todo o seu sentido.
Ele é o Adão primordial. É por isso que de suas diversas partes, menos do
ouro incorruptível, saem lágrimas formadoras dos rios infernais, o Aqueronte
("sem alegria"), o Estige C'tristeza"), o Flegetonte ("ardente") e o Cocito C'pran-
to"). Tratava-se, pois, ele uma quaterniclade inversa à do Paraíso, também cons-
tituída por quatro riosG2.
É talvez em razão disso que o velho se colocava de costas para Damieta,
isto é, para o Oriente, onde a geografia imaginária medieval localizava o Paraí-
so. Conseqüentemente, ele olhava para Roma como para "seu espelho'v''. De
forma significativa, apenas nesse momento da narrativa é que () poeta descreve
o velho e, através dessa imagem da degradação humana refletida em Roma,
Dante insistia na crítica à Igreja, que ele considerava prostituídaõ". Episódio
paralelo àquele no qual, envergonhado dos erros passados, o próprio Dante
vê seu ret1exo nas águas do rio Letes, um pouco antes ele entrar no ParaísoG5.
Aliás, foi naquele momento que ele reencontrou Beatriz, não por acaso ves-
tida de vermelhow. Podemos então, finalmente, entrever as intenções do poe-

"55. Gn 3,19.
56. H. Graves e R. Purai, /.0.1' Mitos l lebreos, (rrad.), Madrid, Alianza, 1986, rr. 56-57; I I. Franco júnior.
As Utopias Medieoais, S. Paulo, Brasilicnsc, 1992, rr. 125-128.
57. Segundo o miro grego, I1ermafrodito, filho de IIcrmcs e Afrodirc, teria sido criado nas florestas de
Ida, na Frígia, cf. 1'. Grimal, Dictionnaire de mvtbologie grecque et rontaine, Pari>, PUF, í990, p.
206. Contudo ° rapto de Ganimcdc ror Zcus, mito lembrado ror Dantc (Purgatório IX, 22-2~), era
localizado ora em Ida da Frígia, ora em Ida de Crera (Grimal, p. ]64). Como Canimcdcs era ° "mais
belo dos mortais" e ganhava traços andróginos na sua relação com Zcus, ele era comparável ao
Adão paradisiaco, de forma que a identificação mítica lIermafrodito/Ganimedes/ Adão e sua asso-
ciação com a ilha de Crcta pareciam dados naturais a Danrc Alighieri.
58. M. Eliaclc, Tratado de l Iistoria das Reltgtôes, (trad.), Lisboa, Cosmos, 1977, pp, 1Í~~-fJfJ8.
59. Duval, op. ctt., rp. 250-251.
60. jung, Aion, r. 188.
61. 1 Cor 15, 15.
62. Gn 2, 10-11.
63. COl1111/edia, Inferno XIV, 105.
6~. Idem, Purgatório XXXII, Jlí9.
65. Idem, XXX, 76-78.
66. Idem, XXX, 33.
239
ta. Ele é o Grande Velho, que é Cristo, que é Adão. ele próprio, Dante, o exi-
lado, resume-se a história do Homem, exilado em busca do Paraíso perdido.
O tema ressurge quando o poeta lembra os versos de Virgílio na IV Éclo-
ga, que ele reescreve assim: "O século se renova/ volta a justiça e os primeiros
tempos do homem/e uma nova raça desce do céu"67. Portanto, essa "nova
raça" era na verdade a dos "primeiros tempos do homem", ou seja, a do ser
humano enquanto andrógino. De fato, partindo da tradição judaica, a androginia
mantinha-se presente no cristianismo: "Não há homem nem mulher, pois todos
vós sais um só em Cristo"68 Na verdade essa concepção era muito antiga e
difundida, era parte integrante das estruturas mentais arcaicas, para as quais
as próprias divindades eram geralmente andróginas. A presença dessas idéias
é atestada em diversas sociedades pré-industriaísôv, inclusive a cristã medieval/v.
Ora, a reintegração dos opostos, a conjunctio oppositorum eie exatamente
a pedra fílosofal, chamada de "andrógina hermética"?'. Ou melhor, conforme
afirmaria mais tarde Nicolau de Cusa (1401-1464), a coincidentia oppositorum
é a definição menos imperfeita de Deus72. Assim, tudo indica que, apesar de
rejeitada pela Igreja na sua formulação original, a concepção andrógina do
homem primordial continuava viva na psicologia coletiva medieval. Para ela, a
recuperação do Paraíso e a da androginia andavam juntas. Essa crença era ali-
mentada pelos textos bíblicos apócrifos, que gozavam de imenso prestígio. O
Evangelho de Tomás, por exemplo, afirmava que "só entrareis no Reino L ..]
quando fízerdes do masculino e do feminino um único ser, quando o masculino
não for mais um homem, quando o feminino não for mais uma mulher'<". O
Evangelho de Filipe considerava a separação dos sexos o início da morte?".
Na sua perspectiva fortemente escatológica, Dante via a recuperação da
androginia primordial como condição básica para voltar à justiça dos primeiros
tempos. Acreditava-se que Adão tinha sido uma totalidade, daí seu nome,
segundo um apócrifo do Antigo Testamento, ter sido formado pelas letras ini-
ciais dos nomes de quatro estrelas vistas por anjos nos quatro cantos do
mundo">, Logo, tratava-se do simbolismo universal do número quatro como
plenitude, como globalídade?ó. Mas, como fora a similitude do homem com
a Divindade que gerara a revolta de Lúcífer?", a separação dos sexos por parte

67. Idem, XXII, 70-72.


68. GI j, 28, cf, tambcm jo 17,2j; Rm 12, IJ-5; 1 Cor 12, 27.
69. E. Zolla, Tbe Androgyne, Fusiott oftbe Sexes, Londres, Thamcs and l ludson, 198'1, rr. 5-29, e M.
Eliadc, Tratado, rr. 495-197.
70. Cf., supra, ensaios n. 7 e 9.
71. Elíadc, op. ctt., r. soa.
72. M. Eliadc, Mejlstóji!lesy el Andnigino, (trad.), Barcelona, I.abor, 1981, r. 101.
73. L 'úoangite de 'tbomas, 22, rrad. J.- Y. l.eloup, Paris, Albin Michcl, 1986, r. 93.
74. AjJUdEliadc, Mefistofeles, r. 131.
75. Vila Adae, 57, cd.J. 11. Mozlcy, Tbe journal ofTheological Studies, 3D, 1929 rr. 117-148.
76. IJSymb, rr.
795-796.
77. Vila Adae, 12-16, rr. 1j1-13j.
210
de Deus tornou-se inevitável para a afirmação da Sua própria identidade e
poder. Sirnilitude que tinha sua melhor expressão na androginia de Criador e
criatura: "Deus criou o homem à sua imagem, imagem de Deus o criou, à

homem e mulher os criou"7H


Portanto, em última análise o poeta pretendia não apenas voltar aos bons
tempos de seu trisavô?", mas negar () tempo, implantar o Fim da História. Por
isso mesmo ele observa, diante da Rosa Paradisíaca, que aqueles "lugares estão
tão tomados/que pouca gente mais ali irá"~(j.Aproximava-se então o momen-
to imaginado no século IX por Scotus Erigena, para quem a reunificação
andrógina do homem seria seguida da reunificação escatológica da Terra com
o Paraíso'<. Na visão político-milenarista que Dante tinha de sua época, a dis-
cutida figura do 515 ou Veltro82 reunificaria a humanidade dividida para der-
rotar o Anticristo. Concretizada essa tarefa, finalmente seria inaugurado o Milê-
nio, período de paz e fartura, antecipação terrena do Paraíso, a Idade de Ouro
que precede o Juízo Final.
Para se chegar a isso, as operações alquímicas procuravam realizar a
fusão das partes masculina e feminina da matéria. Buscava-se a androginia
dos minerais, considerados seres vivos e sexuados'o, para se alcançar depois,
coroando as meditações e os experimentos, a reunifícação da personalidade,
o equilíbrio entre animus e anima, o homem integral. De fato, os indivídu-
os "submetidos a operações adequadas/são suscetíveis de se transformarem
de tantas maneiras/que eles podem mudar sua constituíção.zlaquelas opera-
ções] os coloca em espécies diferentes/e lhes tira da espécie anteríor'vi. O eli-
xir alquímico, ao realizar aquele retorno às origens, permitiria o acesso à Árvo-
re da Vida, conforme Deus prometera a Adão quando da expulsão do Paraísos>.
Ou seja, a pedra filosofal (al-iksir em árabe, donde "elixir") resgataria não
apenas o Paraíso, mas também uma de suas características essenciais, a imorta-
lidade. Portanto, mais uma vez, o Fim da História.
Cessaria então o "longo exílio"~6 a que o homem tinha sido condenado
pelo Pecado Original. Não fora a fruta proibida, arrancada ~l Árvore do
Conhecimento, que dera ao ser primordial a consciência de sua masculinidade
e de sua feminilidade? "Então os olhos dos dois se abriram, e perceberam que
estavam nus"1:l7.A ruptura da unidade anterior revelava-se a "pena de morte"81:l,

78. Gn 1,27.
79. Connnedia, Paraíso XV, 97 e ss.
80. Idem, XXX, 131-132.
8"1. Cf. Eliadc, Mejislti/eles, [J. 1j J.
H2. C011/11/edia, Inferno I, 100-102; Purgatório XXXIII, 1010.

83. Zolla, ojJ. cit., [J[J. 7~-~'1; M. líliadc, Ferreiros (' Alqulnitstas, (rrnd.), Rio de Janeiro, Zahar, 1979,
[Jr>. 2~-35.
81. Le Roman de Ia kos», 1'1'. 16059-16061 c 16 OM-16 06'5,1'01. IV, [J. 111.
85. Vila Adae, 28, [J. 136.
86. C011/11Iedia, Paraíso X;"''VI,116.
87. Gn 3, 7.
88. Gn 3, 3.
2·11
com que Deus ameaçara o homem caso tocasse no fruto proibido. Contudo
a própria Árvore do Conhecimento aprovara a opção do homem pela sabedo-
ria, ao invés de pela imortalidade'?'. Logo, esta só poderia ser alcança da pela
renúncia da consciência, refundindo-se as partes do homem separadas pelo
pecado. Quer dizer, desde que ele volte os olhos para Deus, que Adão define
para Dante como o "espelho verdadeiro/que reflete semelhante mente a si as
outras coisas/mas que em coisa alguma pode ser refletido'v",
O homem superaria assim outro problema colocado pela Expulsão, a
dificuldade na obtenção de alimentos?". No entanto esse aspecto é mais dífí-
cil ele ser detectado em Dante. As razões disso S~IO pouco claras, sobretudo
se se pensar nas dificuldades materiais sofridas pelo poeta: "Verás quão amar-
go/é o pão alheio e quão duro o caminho/quando se deve subir e descer esca-
da alheia'v-. Talvez a aparente despreocupação elo florentino pelo tema se
devesse ao fato de o pensamento rnítíco de sua época oferecer algumas
respostas àquelas necessidades. A principal delas era o país da Cocanha, local
de abundância onde, sem esforço, todos satisfazem aos seus sonhos de praze-
res materiais. Local também da fonte da juventude, onde a vida longa e saudá-
vel permite o pleno gozo daqueles prazeres'o. Provavelmente devido ao indivi-
dualismo, materialismo e anarquismo daquele lugar rnítícovt é que Dante não
tenha incorporado à sua utopia características da Cocanha, tão conhecida na
Itál.a de então.
Em suma, o que ele descreve na Comtnedia é o processo de transmu-
tação espiritual que operações de tipo alquímico produziram em si mesmo. E
que poderiam, por isso, servir de modelo para a humanidade. Daí sua obra
ser uma Grande Obra, um "poema sacro/ao qual puseram a mão o Céu e a
Terra'v>. Isto é, para cuja elaboração utilizou a oração e o trabalho. Formas
de acelerar as transformações necessárias, de "transmutar as espécies naturais
em tempo curto"'JG, de obter ouro a partir de metais grosseiros e impuros.
Noutros termos, de caminhar em direção a uma nova época de Saturno, a uma
nova Idade de Ouro. Foi depois de passar pelo sétimo céu, o de Saturno, que
Dante ganhou nova compreensibilidade das coisas divinas. Realmente, pela
mentalidade simbólica, SatUf110 tem uma função definídora, representando um
fim e um começo, a passagem de um ciclo para outro?". Se antes Beatriz não

89. Graves e Parui, Los Mitos I Iebrcos, p. 70.


90. C011l111edia, Paraíso XXVI, ioe-roa.
91. Vi/a Adae, 1. p. 129.
92. Commedia; Paraíso XVII, 58-60.
93. J. l.c Goff, "L'Utopic médiévalc: Lc Pays de Cocagne", ReVI/e européonne eles sciences sociales, 27,
1989, pp. 271-286; Franco júnior, As Utopias Mcdieuais, pp. 15-'19.
91. A. Ciorancscu, "Uropic: Cocagnc ct âge d'or", mogi!ll(,. 75, 1971, pp, 95-98.
95. COTu171('dia, Paraíso xxv, 1-2.
96. Tomás de Aquino (atribuído a), A Pedra Filosofal. (trad.). S~o Paulo, Global, 19Wí, p. ;'5.
97. 1J.~1'1I1!J, pp. HIo8-81J9.
212
lhe podia sorrir para que ele não fosse incinerado como Sêmele por júpiter?",
agora ela lhe diz "abre teus olhos e contempla quem sou"?".
Desta bela e importante passagem podemos concluir - dentre outras
leituras verossímeis - que naquele momento Dante descobria em Beatriz seu
oposto complementar. De fato, quando ele está a "errar por uma selva escu-
ra"IOO,ela é a luz salvadora e protetora que enviou Virgílio para guiá-Io pelo
submundo infernal. O mesmo Virgílio que na sua obra falara do retorno emi-
nente da Idade de Ouro e que anuncia a Dante O advento do Veltrot?". É
Beatriz que o recebe na última etapa do Purgatório e o conduz para o mundo
celestíal. Ela é a figura sagrada que se refere a si mesma com palavras de
Cristo102. Ela é a própria Virgem105. Ela é, em Dante, o lado divino presente
em todo homem. Ao compreender isso, e ao recuperar assim sua androginía
psicológica, o poeta podia finalmente encontrar a Divindade.
Esta era concebida como um intenso foco luminoso, o que expressava
um dado cultural de longa duração e também os estudos da época sobre a
luz. A antíqüíssíma oposição trevas-luz, que se tornara teologicamente vitorio-
sa no Ocidente a partir do século IX, graças tradução que Scoto Erigena fiz-
à

era da obra do pseudo Dioniso Areopagita com sua teoria da luz em gradações,
levou mais tarde, na primeira metade do século XIII, ~IS experiências óticas
realizadas por Roberto Grosseteste para comprovar aquela idéia. A partir de
tais estudos, aquele franciscano inglês atribuiu à luz uma propriedade de
difusão múltipla e coexistente, bem como uma atividade criadora. Adotando
uma visão neoplatônica da Divindade, ele afirmava que todas as mudanças
ocorridas no Universo partiriam de movimentos da luz, forma corpórea fun-
damental l!li, Tal concepção científica e teológica expressava a visão de mundo
do século XIII, na qual também a estética "se desenvolve num clima particu-
lar, o de uma mística da IUZ"I!)5.
Participe dessa mística, Dante define a Divindade como "luz eterna que
é fonte de si mesma"lOG e que, pela teoria neoplatônica da propagação e da
difusão, "move o sol e as outras estrelas" 107. Tudo é ret1exo da idéia divina,
"luz viva" que sem se desunir, como num jogo de espelhos, atinge todos os
elementos, mas a cada grau com menor intensidadew. A natureza humana

91\. Connncdia, Paraíso XXI, 6, 62.


99. Idem, XXIII, !J6.
100. Idem, lnfcrno I, 2.
101. Idem, lnfcmo, I, 102.
102. Idem, Purgatório XXXIII,10.
103. 11. Franco júnior, "O l'ocra Que Amava o Amor: O Discurso Amoroso ele: Dantc Alighícri", l.er
t tistária, n. 191\7, pp. 15-27.
10'1. Cromhic, op. cit, vol. I, p, 96.
105. E. de: Bruync, litudes cl'estbétiqne médiénalo. Brugcs, De: Tcrupcl, 1916, vol. 111,p. 9.
106. Conuncdta, l'arníso XXXI1I, 12'1.
107. Idem, XX)G1I, li').
108. Idem, XIII, 52-69.
243
obviamente faz parte desse jogo, e recebe sua porção de luz, ainda que desigual
conforme os índívíduosíw. Ou seja, quanto mais próximo da Divindade, maior
a luminosidade do ser humano. Daí as várias referências ao olhar de Beatriz,
de brilho comparável ao do 501110. Mais ainda, o fulgor de I3eatriz era análo-
go ao da Virgem, que por sua vez o era ao de Cristo lU.
Diante de tudo isso, podemos reconhecer na trajetória espiritual do poeta
o caminho proposto pela alquimia. A luz, múltiplo no uno, fusão de cores e
feixes diversos, é uma coincidentia oppositorum. É interessante como certos
comentários ao Gênese falavam de Adão como tendo sido formado com pó
de várias regiões, daí as diversas cores do homem, () vermelho da carne e do
sangue, o negro das entranhas, o branco dos ossos e tendões, o verde-oliva
da pele111. Antes de comer o fruto proibido, de sua pele emanava uma luz
brílhante!". Assim como o dourado da luz é a fusão de todas as cores e o
ouro é a fusão purificac\a da matéria, Deus é a fusão do Universo. Portanto a
Divindade é Luz por ser Andrógina, é Andrógina por ser Luz. Ou seja, mistica-
mente o poeta só recebe essa luz após o reconhecimento da essência de
Beatriz. Ou, psicologicamente, após a harmonízação com a anima completar
seu processo de individuaçâo. Ou, alquimicamente, após a depuração da maté-
ria obter o ouro.
Isso explica por que Dante pune mais duramente os falsos alquimistas
que os feiticeiros. Estes iludem o homem com falsas profecias ou realizam
transformações da natureza com ajuda demoníaca, porém aqueles, ao falsifi-
carem o ouro, trapaceavam com urna imagem divina. Tudo indica que quan-
do Dante condenava a falsificação de ouro, não o fazia devido às implicações
econômicas do fato. De um lado porque era grande crítico das transformações
da época, defendendo uma economia de valores de uso, e não de valores de
troca. De outro lado porque. na Itália de fins do século XIII e começo do XIV,
a monetarização estava suficientemente adiantada para que o metal circulasse
apenas sob a forma de moeda, e os falsificadores de moeda recebiam seu
próprio castigoll1.
Contudo o verdadeiro alquimista também despertava suspeitas, pois "o
complexo da coincidentia oppositorum desperta sempre sentimentos arnbíva-
lentes: de um lado o homem se vê acossado pelo desejo de escapar à sua si-
tuação particular e de se reintegrar em uma modalidade transpessoal, de outro,
está paralisado pelo temor de perder sua 'identidade' e de se 'esquecer' de si
mesmo"!". É talvez em função disso que, na sua genialidade, o texto de Dante

109. Idem, xin, 13-51.


] 10. Idem, Purgatório XXXII, 11 et jJlISSiJl/.

iu. Idem, Paraíso XXXII, H5-f37.


112. Graves c l'atai, t.os Mitos t tebrcos, p. 55.
113. Idem, [l. 70.
111. Commedia, Inferno XXX, 1ó-90.
115. Eliadc, M,!/isló./eles, [l. 157.
241
permite dupla leitura, uma mais explícita, mais imediata, mais de acordo com
os valores da cultura oficial, e outra mais implícita, mais próxima da visão que
ele próprio tinha da questão.
..

ÍNDICES MÍTICOS

Í DICE DE DATAS, EVI' TOS E OBjl':TOS Cocanha, 103-5, 131-2, 241


Coeito, 238
Carnaval, 44, 47 Édcn, 60, 122, 198

Dilúvio, 57, 76-7, 151 Estige, 238

Encarnação, 49, 60, 72, 124, 157 Hcgcrontc, 238


Espadas (Alrnacc, Durcndal, fontes sagradas, 49, 54, 105
Hautcclairc, joycuse, Murglcis), 171 lha Bem-aventurada, 65
Graal, 103-4, 139, 148, 158 Inferno, 59, 148-9, 235
Idade de Ouro, 159, 231-44 l.ctcs, 238
Juízo Final, 101-2,222,226,231-2,235,240 I.imbo, 58-61
Milênio, 228, 231, 240 Morois (floresta). 146-8
Natal, 46, 54, 104, 186 Paraíso, LíO, 57, 61-2, 65, 77, 93, 96, 100, 104,
Parúsia, 228 109, 115, 123, 13H, 179, 235, 238, 240
Páscoa, 104, 186 Purgatório, 227, 235
Pecado Original, 114, 116, 157, 184, 187, Preste joão (império), 89-105
190,194, 196, 240 Sào Brandào (ilha), 65
Quaresma, 104
S. João (festa de), 145 ÍNDICE DE PEHSONAGENS

ÍNDICE GEOGHÁFICO Abcl 57, 77


Adào, 46, 48, 57, 62-3, 65, 77, 93, 109-10, 113,
Aqucronte, 238 124,178-197,199-217.238-40
Árvore Cósmica, 57, 60, 152, 240-1 Agamenon, 58
Avalon, 65, 129, 143 Alccsrc, 60
Campos Elíscos, 65 Alexandre, 99-100, ](;2
Caverna dos Tesouros, 93 Arnon-Rá, 58
2fJ6
anjos, 56-7, 1]3, 167 Gaia, 159
Anticristo, ] 00-1, 222, 240 Galaad, 161
Anu, 63, 156 Gall (São), 160
Apoio, 60, 152 Galla (Santa), 181, 185, 187
Aquilcs, 39, 112 Ganclon, 113, 168, ] 71
Artur, 112-3, 139, ] 43, 162 Ganimcdc, 238
Atcná, 55, 58, 149 Gériou, 115-6
Atis, 58, 149, ]52, l70
Atlas, 64-5 Gilgamesh, 60
Atum, ]55 Gog e Magog, 99
Barba (Santa), 184-5, 187 Golias, 155
Bárbara (Santa), 160 Grande-Mãe (oertambém Mãe-Terra), 148-50
Brandâo (São), ]05-]31 Gucnicvrc, 141, 143, 145
Brígida (Santa), 150 Guingamor, 125-33
Caim, 57, 76 Gwahyr Gwalstawd, 1] 2
Calipso, 152 Haganon, 168
Cam, 56, 75-8, 81-4, 86-7 Hécatc.:,148
Carlos Magno, 86,113,164-71 heróis, 159-72
Cérbero,59 Héraclcs, 57, 59-60, ]] 2, ]] 5
Cibclc, 55, 58, 149, 170 I-lildegunda, 164
Cid, 113, 161 Hórus, 63, ]55-6

Colurnba (S:IO), 55 Jdomcncu, 58


Cornélio (São), 160 lfigênia, 58
Créon,56 Imperador dos Últimos Dias, 100-2
Cristo, 49, 55, 57, 58-62, 64, 77-8, 82, 92, 95, Inanna (uer Ishtar)
97,102-3,114-5,118,122, ]38, 148-9, lshtur, 59, 149, '15<>
152-8 Ísis, 55. 58, 63, 112, 155-6

Cristóvão (5:10), 64 lsokla coer Tnstão)


Cronos, 56, 237 Izr:lil (anjo), 205
D:lgda,156 jasào, 1] 2
demônios, 113 joana (papisa), 181
Diabo (uer também l.úcifcr e Satanás), 60, Jorge.: (São), M
64, 112 judas, 64
Diana, 55 jCIpiter, 63, 152, 169, 242
Dioniso, 59, 151-2 l.ancclor, 14], 143, 145
Dumuzi, 57 l.cviatà, 56
Ea, 63, 214 Liberara (Santa), 182-3, ]85, 187
Édipo, 65 l.úcifcr (ter também Diabo e Satanás), ';6,
Enlil, 63, ]56 235,239
Enki,57 Mãe-Terra (uer também Grande-Mãe), 153,
Enkindu,57 156-7,170
Ercshigal. 59 Magos (reis), 62-3, 92-4, 98-10()
Eurídicc, 59-60, 1]6 Marduk, 56
Eva (uerAdão), 63,116,120,196-8,]]0 Maria (ver também Virgem), 58,63, 103, 138,
fadas, 55, 128, 133 148-9, 150, 154, 156
Flcur (Santa), 185 Medrado (5:10), ]60
Fortuna, 165-6 Mclquiscdcquc, 78, 92-3, 96
Gabricl (arcanjo), 166, 168, 205 Mclusina, 73, 80
••

247
Messias, 77 Satanás i cerrambõni Diabo c Lúcifcr), 59,63,
Miguel (S:IO), 64, 166, 205 120,123,169
Morholt, 155 Saturno, 237, 241
Morrigan, 156 Sêrnclc, 59, 223, 242
Nínhursag, 57, 149, 156 Siduri, 152
Ninti,57 Sicgfricd, 60, 162
Noé, 56, 71-87,]]3 Sigmund, 171
Odin,171 Tarnmuz, 156
Og,74 Tânt.ilo, 58
Olivicr, 113, 168, 171
Tescu,60.
Orfeu, 60, 115-6
Tiamat,56
Osiris , 55, 58, 63, J 52-3, J 55-6
Tifon,56
Paula (Santa), 1H3
Tirésias, 61
Pélops,58.
Trindade, 62, 72, 203-4
Pcrcival, 86, 114, 161.
Tristâo, 86,137-58, 162
Pcrscu, 60
Turpin, 113, 171
Preste joão, 86, 89-105
Urano, 56, 156, 159
Prometeu, 57
Vnltário, 159-72
Quingll,214
!{ahab, 56 Veltro,242

Razícl (anjo), 77 Vl:nlls,55

]{ca, 237 Virgcm (uertambém Maria), 55, 58, 62, 138,


Rolando, 86, 159-72 149-51,154-5,1'57,210
Sansào, 165 Virgem Negra, 5'5, 102-3
Santiago, 64 Wieland, 165
santos, 63-4, 221, 228 Wilgeforte (Santa), 183-4
Savinc (Santa), 185 Zeus, 56, 58, 60, 64-5, 67

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