Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A EVA BARBADA
ENSAIOS DE
MITOLOGIA
MEDIEVAL
SUMÁRIO
MITO E HISTÓRIA
MITO E S(X:JEDADE
MITO E OHALlDADE
MITO E ESCA'('Ol.Or;(A
11. A Outra Face dos Santos: Os Milagres Punitivos na Legenda Aurea ... 221
12. Em Busca da Idade de Ouro: O Papel da Alquimia
em Dante Alighieri 231
PREFÁCIO
dade que o historiador atual tem de sentir em relação a ela, trabalhando sobre
textos e imagens, a eficácia dos mitos tal como os antropólogos e os historia-
dores das mitologias antigas definiram? ... Graças a Hilário Franco júnior, ()
caminho está doravante largamente aberto.
JEAN-CLAlJDE
SCI ItVlITT
2:)
narrativa que busca explicar de forma própria fenômenos importantes para a
sociedade que o cria, adota ou adapta. Essa tentativa de explicação não exclui
categorias racionais, porém está baseada sobretudo na sensibilidade e na intui-
ção. Logo, trata-se de explicação cuja riqueza - e dificuldade de apreensão
pelos estudiosos modernos - está na sua não-univocidade, nas suas múlti-
plas possibilidades de interpretação. Sendo uma metáfora que procura captar
o significado essencial do homem e do mundo, o mito é ao mesmo tempo
largamente "natural" e profundamente "cultural".
Nesse sentido é pertinente a definição de johannIakob Bachofen: "Mito
é a exegese do símbolo". Exegese oral, anônima, coletiva, continuamente
reelaborada. E nisso reside a maior dificuldade para o historiador: conhece-
mos os mitos medievais apenas através de versões que ao serem registra das
passaram pelos filtros pessoais de poetas e artistas e pelos filtros ideológicos
dos grupos sociais que estimularam e/ou acolheram a canonizacão de cada
uma daquelas variantes. Além disso, o sentido de um mito não se encontra
apenas nele próprio, mas na sua articulação com outros mitos. Por isso, no
subtítulo desta coletânea não falamos em mitos, mas em mitologia. Apesar
de cada ensaio ser um trabalho autônomo, que pode ser lido isoladamente
e fora de uma seqüência única, eles não raro se cruzam. Não se trata aí ape-
nas de um artifício do historiador, mas de uma condição imposta pelo próprio
objeto de estudo. Cada mito ou fragmento de mito deve ser analisado como
pane de um conjunto articulado, que funciona como um sistema de inter-
pretação do mundo e de comunicação afetiva com ele, isto é, como parte de
uma mitologia.
Assim, diante dos múltiplos aspectos de cada mito e da feição quase cali-
doscópica da mitologia, o recurso ao instrumental analítico de diversas disci-
plinas é obrigatório. Especialmente de seis delas. Em primeiro lugar a história,
por ser a mais antiga daquelas disciplinas e a que, ao menos em termos de
estudos mitológicos, articula as contribuições das demais. Depois de longo
período em que se confundiu com o mito, a história passou a excluí-Io de
suas análises em nome de uma pretensa superioridade intelectual, até reco-
nhecer, mais recentemente, a importância daquele material. Em certo sentido
o mito é um relato historiográfico muito moderno, pois narra e analisa o pas-
sado com a pretensão - pelo menos inconsciente - de fornecer aos seus
ouvintes e leitores uma visão global do universo ao estabelecer relações entre
as instâncias divinas e humanas, ao destacar as articulações e oposições entre
mundo natural e mundo cultural, e ao fazer comparações entre povos, persona-
gens e fenômenos.
Claro que tudo isso se fazia sem os instrumentos analíticos conhecidos
pelo historiador atual, mas de forma intuitiva e empírica os mitos são pre-
cursores distantes e anônimos de Marc Bloch, Lucien Febvre e dos seguidores
de uma "história total". Como t;m.la historiografia é "filha de seu tempo", e na
tentativa de reconstituir o passado podemos e devemos recorrer não somente
à obra de historiadores individualizados, mas também ao registro coletivo e
anônimo que chamamos de mito. Se este não nos fornece dados objetivos
(datas, nomes concretos, locais específicos), de outro lado transmite informa-
ções mais sutis e de certa forma qualitativamente mais importantes sobre insti-
tuições (ensaios n. 3,4,5.6 e 9), valores (ensaios n. ''1, 6, 7, H, 9,10, 11 e 12),
hábitos (ensaios n. 3, 6. H, 11 e 12), sentimentos (n. 3, 5,6,7, H, 11 e 12), e
crenças (ensaios n. -i, ), 6, H, 9, 10, 11 e 12) etc. Enquanto as formas historio-
gráficas tradicionais liam aquele tipo de narrativa como meras fantasias do
passado, o historiador dos imaginários encontra ali dados relevantes sobre a
realidade interna e externa da sociedade estudada.
A história da arte, por sua vez, através da análise da documentação icono-
gráfica, nos permitirá alcançar um nível de compreensão de certos mitos que
não seria possível somente com fontes escritas (ensaios n. 3, 5, 9 e 10). Mas
não se trata naturalmente da história da arte tradicional, predominante do
século XVI a meados do XX, voltada mais ~lS questões formais e estilísticas, e
sim de uma história que considera a produção artística por seu conteúdo cultu-
ral (na linha de Ahy \Xfarburg e Erwin Panofsky) e social (como fizeram Arnold
Hauser e Pierre Francastel). Ou melhor, uma história que a partir disso possa
ver nas imagens elaboradas sobre qualquer suporte - afresco (ensaios n. 3
e 9), tapeçaria (ensaio n. 5), e escultura na pedra (ensaio n. 10) - testemunhos
importantes da sensibilidade de uma época.
Portanto, história que deve verificar as articulações profundas entre
imagem e imaginário. E que deve para tanto ultrapassar o conceito medieval
que via imago como apenas a realização de uma certa forma em certa matéria.
Ames de serem concretizadas, as formas são íntuídas, pensadas, e concebidas
mentalmente, portanto imaginadas. E nesse processo entram tanto os dados
específicos da sociedade em questão, elementos da curta duração histórica,
quanto os dados da mentalidade, elementos da longa duração. Por isso não
seguimos Jean Wirth, quando ele vê a imagem medieval como "um fenômeno
de natureza lógica e semiológíca, mais que de natureza perceptiva e psi-
cológica". Como nâo existe uma lógica absoluta e universal, mas apenas rela-
tiva e histórica, os campos semiológico, teológico e psicológico de uma mesma
sociedade não se opõem, Eles interagern, se completam. É o que as mitolo-
gias constantemente nos lembram.
A antropologia também é fundamental para esse estudo, principalmente
porque ao trabalhar sem fontes escritas fornece ao historiador, sobretudo de
períodos mais recuados, exemplos de como tentar conhecer uma sociedade a
partir de relatos orais (ensaio n. 6) e de documentos visuais (ensaios n. 3, 5, 9
e 10)'. Os modelos antropológicos é que levam igualmente os historiadores a
pensar nos seus objetos não apenas em termos ele linearidade cronológica, mas
também de sincronia. E, portanto, não mais em termos de recortes temporais
e espaciais rígidos, mas ele comparativismo para entender as semelhanças e
especificidades de cada fenômeno histórico (ensaios n. 1, 2, 8, 9 e 10). É a
antropologia ainda que ensina a história a buscar a unidade da espécie huma-
na sob a variedade de formas culturais através das quais ela se expressa.
Uma das decorrências disso é o interesse maior pelos processos de acul-
turação (ensaios n. 1, 2, H, 9 e 10) do que pelas relações de domínio político
ou econômico valorizadas pela história tradicional. Outra decorrência é, seguin-
do Lévi-Strauss, buscar os fundamentos inconscientes da sociedade estudada
(ensaios n. 4, 6, 7, 9 e 12). Além disso, é baseando-se nos "estudos de caso"
e "pesquisas de campo" dos antropólogos que os historiadores recorrem il
"micro-história", que permite passar do particular ao geral (ensaios n. 3, 5, 6,
9 e 10). Ou seja, passar a aceitar que, em termos de tempo e de espaço, é tão
importante o objeto muito amplo quanto o muito restrito. Em suma, percebe-
se nas últimas décadas que não há uma clara separação epistemológica entre
história e antropologia: Edward Evans-Pritchard considerou as duas ciências
"inc.lissociáveis", enquantoIack Gooc.ly propôs o fim da "grande divisão" entre
sociedades primitivas e sociedades civilizadas, entre tradição oral e escrita.
É preciso ainda recorrer ~l sociologia, pois fundamentalmente ela lembra
ao historiador que a cultura consiste em padrões abstratos e concretos que são
criados, desenvolvidos e transmitidos na e pela interação social. Por isso mesmo
toda cultura produz sistemas (como a mitologia) e subsistemas que expres-
sam, reforçam ou criticam a organização social que os enquadra e fora da qual
não poderiam ter surgido. "Cultura é o qu<::se aprende na socialização", diz
Harry Johnson. Ora, os relatos míricos constituíram-se num dos estágios mais
importantes do processo de socialização das comunidades pré-índustriais. E,
temporalmente, num de seus primeiros estágios, pois, como observou Redfiekl,
é pela tradição que se transmite a cultura; e, devemos acrescentar, mito é a
tradição por excelência.
Diante disso, a sociologia mostra que o estudo de mitologias não é ape-
nas um olhar sobre o exotismo daquelas sociedades, e sim uma visão radio-
gráfica delas. Devem-se levar em consideração as mitologias para se apreender
profundamente diversos aspectos do comportamento social daqueles grupos.
Para o historiador, é especialmente importante o faro de a sociologia valorizar
no mito o conteúdo coletivo - grupos funcionais (ensaios n. 5, 6 e 11), políti-
cos (ensaios n. 3. "1 e 6), econômicos (ensaio n. fi), religiosos (ensaios n. 10 e
11), e culturais (ensaios n. 7 e 12) - em detrimento do individual, das "grandes
personagens", e dos "fatos excepcionais".
Também são importantes certos instrumentos da lingüística, cuja análise
do discurso revela as estruturas profundas da fala. Isto é, os dados que se
manifestam ~l revelia do autor, e que por isso mesmo nos informam sobre
valores e sentimentos da época estudada. Informação qualitativamente impor-
tante, pois é transmitida sem que o agente histórico tenha tido consciência ou
intenção de fazê-to. Com efeito, aquilo que cada época considera "realidade"
nada mais é do que produto de sua percepção cultural. Assim, para tentar dis-
secá-Ia deve-se começar pela linguagem, "o faro cultural por excelência" segun-
do Lévi-Strauss. No que diz respeito às sociedades arcaicas, deve-se começar
pelos mitos: Max Müller mostrou há mais de um século o estreito paralelo
existente entre a formação elas línguas e a formação dos mitos.
\
26
Se Saussure tem razão ao afirmar que "é o ponto de vista que cria o obje-
to", a análise lingüística do discurso mítico pode aproximar-nos dos mecanis-
mos culturais e psicológicos mais profundos da sociedade em questão. É por
isso que devemos considerar o subtexto (ensaios n. 6 e 11), o implícito (ensaios
n. 2 e 12), o não-dito (ensaios n. 4 e 7), as lacunas (ensaio n. '8), as incoe-
rências (ensaios n. 6 e 7), e os atos falhos (ensaio n. 3). Na análise de uma
rede narrativa como a mitologia medieval, é preciso também levar em conta
a intertextualidade (ensaios n. 2,7, fi e 11). Mas, apesar de a linguagem fala-
da ser o mais abrangente dos sistemas semiológicos, é importante lembrar,
como nos ensina Izidoro Blikstein, que existe uma semiose para verbal ligada
a um pensamento visual independente de estruturas lingüísticas (ensaios n.
3, 5, 9 e 10).
Por fim, a psicologia também pode fornecer ao historiador em geral e
ao dos mitos em particular técnicas e procedimentos interessantes. Mas aqui
o entendimento interdisciplinar é mais delicado, mais defendido no plano
teórico do que efetivamente praticado. No prefácio de Totem e Tabu, de 1912,
Freud se propunha estabelecer um elo entre psicanalistas, de um lado, e etnó-
Iogas, lingüistas e folclaristas de outro, mas não chegou a explicitar o acor-
do com historiadores. Em 193H Lucien Febvre, em um célebre artigo, defendia
a aproximação entre psicólogos e historiadores, e anos depois Marc Bloch
reconhecia que "os fatos históricos são, na essência, fatos psicológicos". Contudo
o índice dos Annales de 1929 a 1951 registra apenas 2 notas sobre psicologia
(em 1931 e 1957), contra 9 de folclore, 11 de sociologia, 21 de economia, 33
de geografia. Se em 197L} Jacques Le Goff falava de "uma fronteira onde his-
toriadores e psicólogos deverão um dia se encontrar e colaborar", onze anos
depois ele se mostrou mais reticente e afirmou recear que o historiador possa
cair no "irracional e no psicanalítico, dominado pela ideologia suspeita dos
arquétipos".
A questão da pertinência dos métodos psicológicos aplicados à história
fica ressaltada pela dificuldade de se saber qual corrente é mais adequada ao
material e aos objetivos do historiador. A psicanálise de Freud revela-se muito
densa e promissora, mas ainda não resolveu satisfatoriamente o problema da
aplicação de métodos da psicologia individual à psicologia social (ensaio 11.
3). A psicologia analítica de Jung oferece uma hipótese interessante para se
pensar fenômenos de longa duração histórica, a do inconsciente coletivo
(ensaios n. 7 e 12), mas se ressente de aplicações muitas vezes pouco rigo-
rosas. A psico-história norte-americana tem a positiva pretensão de "explicar
a história pelas motivações humanas e de explicar as motivações humanas
pela história", mas para isso aplica ;l pesquisa documental um processo intui-
tivo que se dá através do inconsciente do historiador e que torna a utilização
do método difícil e problemática.
~_ ...
'n
-I
tos e em diferentes publicações. Para introduzir essa unidade, procedemos a
certas modificações: uniformizamos as referências bibliográficas, corrigimos
omissões e erros gráficos, eliminamos certas repetições entre os artigos, e
traduzimos os ensaios escritos em outra língua. Aproveitando a oportunidade,
algumas vezes acrescentamos uma ou outra indicação bibliográfica que, por
desconhecimento ou por economia de espaço, havíamos omitido nas versões
originais. Algumas vezes procedemos a pequenas mudanças de redação na
busca de maior clareza e precisão de pensamento. Mas conscientemente man-
tivemos o caráter original dos trabalhos aqui reunidos: eles não são estudos
definitivos e sim ensaios, tentativas de reflexão sobre temas até agora pouco
tratados pela historiografia. Assim, a finalidade deles é instigar, abrir debates,
propor caminhos, mais do que fornecer interpretações pretensarnente "corre-
tas" e fechadas.
Naturalmente um trabalho desse tipo, cujas várias partes foram apre-
sentadas em cursos, seminários e congressos, deve muito ~IS instituições e pes-
soas envolvidas nesses encontros, durante os quais pudemos beneficiar-nos
dos comentários, das questões e do estímulo de diversos amigos, colegas e
alunos. Mas queremos agradecer especialmente ao Departamento de História
da Universidade de São Paulo e Fapesp, que nos possibilitaram uma longa
à
\
MITO E HISTÓRIA
MEU, TEU, NOSSO
REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO
DE CULTURA INTERMEDIÁRIA 1
Um dos temas que mais têm prendido a atenção das ciências humanas
nos últimos tempos é o relativo ~l cultura popular. Mas o que se deve enten-
der exatamente por essa expressão? Quais as características dessa forma cul-
rural? Quais as modalidades e implicações da relação entre ela e outros tipos
de manifestação cultural? Qual a sua gênese e o seu processo de transfor-
mação? Antropólogos, sociólogos, historiadores, folcloristas, lingüistas e psicólo-
gos têm-se debatido com essas e muitas outras questões. Tarefa difícil, pelo
fato de aquele objeto de estudo estar muito próximo, direta ou indiretamente
fazendo parte do cotidiano do pesquisador.
Chamam a atenção fenômenos como misticismo, magia, ritos demonía-
cos e saber esotérico, que não estão presentes apenas em sociedades do pas-
sado ou do presente consideradas "primitivas", sendo claramente perceptíveis
no mundo ocidental que pretensamente teria superado essa "fase" de seu de-
senvolvimento histórico. Por exemplo, em janeiro de 1989 uma pesquisa 1 reve-
lava que 37'YiJdos franceses acreditavam na existência do Diabo, o dobro da
porcentagem de 1968. E cerca de 5 milhões de pessoas naquele país acredi-
tavam viver, ao menos em certos momentos, sob uma influência demoníaca
direta. Na Itália a situação é semelhante: 46'),ú da população estão convenci-
dos da existência de Satanás.
Manifestações típicas de países latinos e católicos? Nos Estados Unidos
uma sociedade internacional de feiticeiros luciferinos, que promove missas
7. G. Duby, "l.c Mental ct lc foncríonncmcnt ctcs scicnccs humaincs", /.'Arc. 19711,j1 92.
8. li. Mansclli, t.a Neli.~i<lIl populaire ali Moyen Age, Paris. Vrin, 1975, j1. 16.
<). 11. Franco júnior, Peregrinos, M()//ges e Guerreiros. São Paulo, l Iucitcc, 1990, j1. 111.
10. C. Prandi. "Rcligior: cr classes subalrcrncs cn lralic", C111 Arcbiues eles sciences sociales rlcs religions.
'i3, 1077, p. 3.
11. Cf. as muira« dcfinicôcs rcpcrtoriadas j10r A. 1..Krocbcr c C. Kluckhohn, Cult nrc: A Crittcal Reutetu
o/CcJl/C(1)ISand Definitions, Cambridge (Mass.), IIarvard Univcrsirv Prcss, 1952.
32
negras, agrupa 2 milhões de adeptos, além de meio milhão na Inglaterra.
Manifestações de uma cultura "popular", de gente atrasada? Os "possuídos"
franceses não S~lO, contudo, velhos camponeses, mas sobretudo jovens citadi-
nos. Os italianos que crêem no Diabo localizam-se mais no orte industrializa-
do que no Sul rural e comparativamente pobre. Os feiticeiros norte-americanos
e ingleses não S~lO "imigrantes ignorantes", mas majoritariamente pessoas de cer-
tas posses e educação.
Acrescente-se a isso o desenvolvimento de vários fenômenos sociorreli-
giosos de massa considerados legítimos em suas sociedades - como os gru-
pOií evangelistas, a Teologia da Libertação ou o islamismo radical - para
entender o forte interesse dos estudiosos pela "religião popular". Os trabalhos
se multiplicaram nos últimos anos, sem haver, no entanto, consenso sobre o
significado exato de "popular'<. Por isso, muitas vezes continua-se a pensar
numa oposição erudito/popular, correspondente a racíonalídade/afetívídade
e teorízação/vívenciação, como se cada característica fosse exclusividade de
um grupo social ou ele um povo.
Postura que em suma prolonga aquela da antropologia elo começo do
século, que trabalhava com os conceitos de "mentalidade racional" e "menta-
lidade pré-lógica'". Curioso prolongamento, pois há muito as críticas e autocríti-
cas a essa interpretação" foram-se impondo, acompanhando as mudanças de
relação entre países colonizadores e colonizados. Processo interessante, ade-
mais, para se examinar as int1uências recíprocas entre política e intelectualida-
de: às vezes a antropologia fornecia argumentos para a descolonização, às
vezes esta levava a antropologia a rever alguns de seus conceitos.
A constatação cio simplismo cios sistemas binários civilizado/primitivo,
racional/irracional, hisrórico/míríco, religioso/mágico e outros do mesmo tipo
provocaria importantes reflexões nas ciências humanas desta segunda metade
do século. Acompanhando, aliás, a revisão epistemológica que ocorria em ou-
tras áreas do conhecimento e que, em suma, revela os limites do modelo carte-
siano. Como observou Blanché, um conhecimento dito objetivo é apenas aque-
le que é menos subjetivo que outros. A historiografia não ficou imune a tudo
isso e assumiu a subjetividade de seu discursov. Contudo, mais do que um
simples acompanhamento de novas tendências científicas, esse passo revela
a essência da historiografia.
12. M. Bakhtin, /1 Cultura Popular na Idade Média e 110 kenascitnento, (tr.id.), São Paulo, l lucitcc-
L1nB, 19107,(cd. orig. 1965).
13. C. Ginzburg, () Queijo e os \'e/'II/I'S, (trad.), São Paulo, Cia. das Letras, 1981, p, 1:\.
11. A. Gurcvich, i1lediem!IJo}!u!ar Cult ure, Cambrídgc, Paris, CLlP-:VISII.19HH.
15. M. Mullct, IJo}!lI/ar Cult u re and Popular Protest 1/1 Late Ml'dil'f}{i! a nrl Earlv Madern tiurop«,
Iscckcnbam, Croom IlcJm,1987.
16. Niceau» de culture 1'1 groupes SOCltiU.\', Paris, i\louton,1967.
17. te Goff, "Culturc clóricalc ct traditions folkloriqucs dans ia civilisation mérovingicnnc", em Nircau»:
ele culture, pp. 21-32 (reproduzido em l'iIM/I, pp. 22j-235); 1'. Burkc, I'OjJl/ÍtIl' eU/IIII'1' i/I f<'{/I'Í)'
Modern Europ«, Londres, Templo Smith, 197H, p. 28; Mullct, ojJ. cit., Capo 2.
18. A. Van Gcnncp, Mantte! defolhlorefrançats contemporatn. (') vols.), Paris, l'icard, 1937-1958, \'01.
I, p. 'U.
I'). M. Ccrrcau, D. julia e J. Rcvcl, "La Bcauté du mort: Lc Conccpt de culturc populaírc", Poliiique
aujourd btt], dez. 1970, pp. 12-11.
35
áreas culturais específicas, grupais, classistas, sociais enfim, que se inter-rela-
cionam exatamente porque têm um imenso repertório de pontos comuns. E
é através dessa área de intersecção que determinados pontos podem migrar
num sentido ou noutro, alargando essa zona de identidade grupal (étnica, reli-
giosa, lingüística, artística etc.) e de intermediação cultural (a partir da qual
ocorrem eventualmente mudanças sociais). Diante disso, talvez melhor que a
consagrada e ambígua expressão "cultura popular" seja chamarmos aquele
denominador cultural comum de cultura intermediária. "Intermediária" quali-
tativamente, por estar colocada entre a cultura de elite e a dos demais segmen-
tos; "intermediária" espacialmente, por ser o ponto de convergência de dados
provenientes dos pólos culturais. No seio de um mesmo grande conjunto
histórico-geográfico, os processos de aculturação tendem a ser facilitados pela
presença de várias similitudes entre suas culturas intermediárias. Mesmo entre
sociedades distanciadas no espaço e nas suas trajetórias históricas, existem
similitudes entre as respectivas culturas intermediárias - devido ao substrato
profundo da psicologia coletiva, a mentalidade - ainda que possam ser enor-
mes as diferenças entre suas culturas de elite.
Em função disso, já se pensou, mesmo para a Europa medieval e moder-
na, na ocorrência de uma aculruracão interna-v. Ao menos para a Idade Média,
porém, os contatos culturais elite-massa mostram que, mais do que uma acultu-
ração, ocorreu uma difusão e reínrerpretação de elementos saídos do núcleo
comum da cultura intermediária-". o contato com bizantinos e muçulmanos,
por outro lado, deu-se o que Wachtcl chamaria de "aculturaçào espontânea",
sobretudo na península Ibérica e na Sicília, salvo curtos períodos de "acultu-
ração forçada". É verdade que os resultados mais visíveis e espetaculares
daquele primeiro processo - influência da arte bizantína, traduções ela escola
de Toledo, redescoberta ocidental do aristotelismo, adoção de conhecimen-
tos científicos orientais etc. - deram-se em relação à cultura clerical, mas com
ret1exos também na cultura simples.
O contraste na intensidade de absorção daquele material por parte dos
vários grupos sociais deveu-se mais ~l presença de instrumentos diferenciados
do que a valores, interesses ou expectativas divergentes. Por outro lado, a
possibilidade de migração de uma parte daquele material da cultura clerical
para a simples, e vice-versa, não se deveu ~l existência de "anfíbios culturais'<',
de indivíduos que por pertencerem aos dois ambientes realizavam as trocas
20. N. \V"ciHc!, "I.'Acculturation", cm ]. l.c Goff e 1'.Nora (di r.i, l-rtir« d" lbistoire: nonoeauxproblêmos,
I'aris, Gallnnard, 1971, pp. lIJ3-H'Í.
21. Duby defende a cxistênciu de um.i '·vlligarii'.a~·~ín culturul" de modelos arisrocr.iricos, mas a partir
de um conceito restrito de cultura; adcmaís, apesar de não valorizar o fenômeno, reconhece que
ocorria o processo inverso, com tra(os (11 "cultura popular' sendo absorvidos pela cultura aris-
tocr.itica: "La Vulg.uisation dcs modeles culrurcls duns Ia société Iéodalc", em Niuean» de culture,
pp. 33-11 (reproduzido em l kunmes e! structu res du Moveu Ilge, Paris. Mouron, 1973, pp. 299-3(8).
22. lsurkc, ojJ. cit., p. 70.
36
culturais. Sem perceber aspectos familiares nos elementos culturais levados
até ele, cada grupo social pouco teria assimilado. Existiam "anfíbios" porque
havia uma área cultural comum, e não o inverso. Um bom exemplo disso
temos na obra de Honório Augustodunensis, na primeira metade do século
XII, sobretudo no célebre Elucidarium, cuja popularidade decorria de seu
recurso freqüente a dados e narrativas que sensibilizavam a maior pane de
seus leitores e ouvintes exatamente por provirem da cultura interrnediária-õ.
Desse ponto de vista, as áreas culturais específicas em cada sociedade
deixam de ser vistas como auto-suficientes, como se era muitas vezes levado
a pensar pelas análises tradicionais. Na verdade, é raro que ocorram influêri-
cias diretas entre aquelas áreas, pois geralmente as adoções, adaptações, defor-
mações e mesmo negações dão-se a partir do material que é recolhido na
zona intermediária. Só se assimila, se modifica ou se critica aquilo que se
entende ou se pensa entender. Aquilo que não é estranho. Aquilo que faz
parte do universo comum, da cultura de todos. Da cultura intermediária enfim,
espécie de Ieoiné cultural que fornece a matéria-prima trabalhada de forma
própria por cada segmento social.
Da mesma forma que não se pode deixar de considerar as particulari-
dades de cada expressão cultural, não se pode permitir que estas desviem
nossa atenção do núcleo comum. A melhor análise é aquela que leva em conta
tanto as áreas periféricas quanto a central, isto é, a dinâmica das relações entre
elas. Assim, por exemplo, é inadequado tentar distinguir heresias eruditas de
heresias populares e pensar que a maior parte cios grupos heréticos se for-
mou a partir das prédicas de um indivíduo letrado e dotado de conhecimen-
tos teológicos que lhe permitiam criticar a Igreja da época>. Toda heresia é
definida como tal em relação a uma ortodoxia, em cuja formulação, por mais
erudita que seja, entraram inúmeras componentes absorvidos da cultura inter-
mediaria ao longo de sua formação histórica.
De fato, heresia nada mais é que uma seleção (do grego bairesis, "esco-
lha") de elementos culturais diferente daquela feita pela ortodoxia. Daí ser
secundário para uma história cultural e dos imaginários (mas não para uma
história sociológica) determinar a condição intelectual dos indivíduos que fize-
ram aquela seleção, heréticos ou ortodoxos. O francês Pedra Valdo e o italia-
no Francisco de Assis foram contemporâneos, eram de uma mesma origem
socioeconômica, tinham espiritualidades comparáveis, mas para a Igreja um
foi herege, e o outro santo. A heresia catara combatia a sociedade feudal e a
Igreja romana, fazendo-lhes uma crítica que rejeitava muitos cios valores delas,
mas que também revelava preocupações semelhantes equacíonadas de forma
23. Y. Lcfcvrc, L'Iilucidaritnn et Ies t.nciclaires, Paris, Boccarcl, 1951; Gurcvich, op. cit., Caro 5.
21. 11. Grundmann, "Ilérésics savanrcs cr hérésics populaircs ali Moycn Age", em l Iérésies et societés
clans I Europ« pré-industriolle, Puris, Mouton, 1968, rr. 209-2H; G. l.ccf, "I lérésic savanrc ct hérésic
populairc dans lc bas Moycn Age", em ibtdem, pp. 219-225.
37
diversa. Foi o caso, por exemplo, da sexualidade, da pureza do clero, da salva-
ção da alma. Se entre heresia e ortodoxia sempre existiu uma fronteira pouco
clara, lima zona cinzenta, é porque esta correspondía à delimitação movediça
entre cultura intermediária e cultura de grupos sociais.
Exemplo talvez mais elucidativo sobre a relação entre as áreas culturais,
temos na evangelízação das massas camponesas medievais. Se () clero aco-
lheu dados culturais pré-cristãos, difundidos no seio daquela categoria social,
n~IOfoi apenas como estratégia de conversão, mas porque esses dados estavam
presentes também no próprio ambiente cultural eclesiástico. É preciso sem-
pre distinguir o cristianismo no seu papel de ideologia e no seu papel de
religião. Em relação ao primeiro, a cultura folclórica era claramente oposta -
e nesse caso aculturação e imposição ideológica tornavam-se um mesmo
processo -, e a utilização de fragmentos dela pelo cristianismo era uma forma
consciente de dominá-Ia, fenômeno tanto do campo na época merovíngiaõ
quanto dos mendicantes nas cidades dos séculos XIII-XIV26 Em relação ao
segundo, cristianismo e folclore confundiam-se, faziam parte de um mesmo
conjunto de concepções e sentimentos, daí uma inconsciente identificação
profundas".
Por isso a definição de Gurevich - cultura popular medieval é O'avisão
de mundo que emerge da complexa e contraditória interação entre () reserva-
tório do folclore tradicional e o cristianismo"28 - precisa ser retocada em dois
pontos. Inicialmente seria fundamental explicitar que a "contradição" da intera-
ção cultura folclórica-cristianismo é apenas um aspecto dessa relação. Depois,
seria interessante marcar o caráter de não-identificação sociológica do termo
"popular". Como lembra mesmo o grande medievalista russo, o uso de ervas
por parte da "medicina folclórica" era aprovado pela Igreja se acompanhado
por preces e condenado se acompanhado por encantações-''. Isto é, a neces-
sidade do ato mágico era aceita por todos (portanto, dado da "cultura inter-
mediária" no sentido que atribuímos ~l expressão), apenas as modalidades dele
diferiam da cultura clerical (preces) para a cultura vulgar ("encantaçôes"). O
mesmo, aliás, poderíamos constatar quanto às festas, ~ISperegrinações, ao cul-
to aos santos, aos ritos, ao calendário, às práticas agrícolas etc.
Na denominação das áreas culturais específicas, devem-se evitar adjetíva-
ções que decorram de um referencial social (elite/massa), político-ideológico
(hegemônica/subalterna) ou técnico (letrada/oral), todas suscetíveis de transfor-
mações históricas mais ou menos rápidas que dificultam a análise. O par "erudi-
37 . .J. Souza Br.mdão, Mttoiogtrc (;regtl, (3 vols.), Pctrópolis, Vozes. 'l 9H(i. "01. I, p, 33; cf . .J. Sczncc,
"Moycn Age er Rcnaissancc.. l.a Survivancc des dicux antiqucs", em Y. Ilonndoy (dir.), Dictlonnctirc
des mvtbologies 1'1 des religions eles sociétés traditionnellcs 1'1 du monde antique, (2 vols.), Paris,
Flammarion, '19HI, "01. 11,p. 129.
3H. E. Cassircr, /11/ /!sS({.I' OJ1 MOI/. Nc\V Havcn, Yalc Univcrsity l'rcss, 1970, p. HI.
39 . .J. GOCt:I., ':Nlythe", em M. Villcr et alii. (dirs.), Dictionnairc do spiritnnlité; (15 vols.), Paris, Iscauchcsnc,
1957-1980, "01. 10, col. 1981-1985.
110. 11. Roscnbcrg, "l-olktorisrcs ct médiévisrcs face au rcxrc luréruirc: l'rohlcmcs de mérhodc", /I"~~'C,
}i, 1979, pp. 913-955.
ft 1. I.. ,\1. Lornbardi Satriani, 11Fullslor« conte Cultura di Contestcuione, Mcssina, Pcloritana, 1966.
/i2. Cf. nota 17.
1i3. E. Kóhlcr, "Obscrvations historiqucs cr sociologiqucs sur Ia poésie eles troubndours", CCM, 7,196;',
pp, 27-51; I. 'Aocnturc cbeualeresque: IdéO/1'1 réalité dans le 1"01I/(1I/ counois, (rrad.), Paris, Gailimard,
197-1.
'ífi. Mullcr, op. cit, Capo j.
ta do a contextos históricos diferentes daqueles que viram a formação de suas
mitologias. O folclore é uma mitologia residual.
Contudo essa constatação é recente. Por exemplo, Jean-Claude Schmitt
viu primeiramente na cultura folclórica medieval algo diferente de uma mitolo-
gia. Ele então argumentou que os mitos semíticos do Gênese legados pela Bíblia
ao cristianismo medieval "não erarn mais vividos como tal", porque explicados
pela Igreja tinham-se tornado história, a história sagrada. Como a cultura cleri-
cal tirara da cultura folclórica o saber por excelência (o conhecimento do Além,
a comunicação com os seres sobrenaturais, a interpretação das visões), "vê-se
mal como () folclore medieval teria podido falar por mitos, pois é função dos
mitos constituir e transmitir um tal saber'">. Poderíamos, entretanto, contra-
argumentar que o fato de aquela cultura ser "folclórica", isto é, contestadora,
indica que a cultura clerical não privara totalmente a cultura folclórica de suas
funções, daí a própria existência desta e a possibilidade de ela exercer uma
resistência, uma contestação. Aliás, se a Igreja exercia naturalmente certo cem-
trole sobre o Gênese e os outros textos canônicos, ele não era tão grande quan-
to se poderia pensar ~lprimeira vista, devido aos meios limitados de que ela
dispunha em grande parte da Idade Média, com um clero paroquial de forma
geral mal preparado e muitas regiões superficialmente cristíanizadas.
Por isso mesmo o entendimento mítico daquele texto não tinha desapa-
recido: sua racionalização, sua transformação em história sagrada, estava no
âmbito da cultura erudita, e não da cultura popular. E, como observa acerta-
damente o próprio Schmitt num trabalho posterior, se a "história santa" distin-
gue-se de outros mitos pela sua dimensão histórica, não deixa de ser U111111ito,
o mito fundamental da sociedade crist~l1C>. Ademais, paralelamente ao relato
bíblico genésico, o Ocidente medieval conhecia diversos apócrífos que tratavam
essencialmente dos mesmos temas e que ajudavam a manter viva a explicação
mitológica dos episódios ali narrados. O mesmo, é claro, ocorria em relação
aos outros textos bíblicos. Quanto à cultura folclórica ter perdido "o saber por
excelência", é possível pensar diferentemente, pois os inúmeros relatos de
viagens ao Além e de interpretação de visões, mesmo clericalizados, escon-
dem rnal seus fundamentos míticos. Ou seja, o folclore falava através de mitos
(ou de fragmentos destes) simplesmente porque estes são o material consti-
tutivo daquelef", Como Jean Seznec observou com razão, a mitologia sobre-
viveu na Idade Média "em diferentes níveis, e antes de tudo no folclore'<".
Se as considerações anteriores são de forma geral válidas para o estudo
de sociedades pré-industriais, () caso das sociedades ocidentais contemporâneas
~5. l-C. Schmitt, "Cluistianismc ct mythologic: Occidcnr médiévnl cr pcnséc mythiquc". cru Bonncfov,
ojJ. di" 1'01. I. pp, 183-1811.
1t6. .J.-c. Scluuiu , "l'roblcmcs du Mythc dans l'Occidcnt médiév.il", Rozo, H, 1988, p. 6.
17. E. M. Mclctinsky, "Du myth« au tolklorc", lJiogene, 99, 1977, p. 120; N. Bclrnonr, l'aroles paicn nes:
ntvtbe ctfollslor«. I'aris, lmugo, I98C>,pp. 1S e 153.
18. J. Sczncc, op. cit., 1'01. 11,p.128; 1.0 Snnnuance des dicnx rnutoucs. Paris, Flauuuarion, 1980.
economicamente desenvolvidas apresenta características próprias. Lembremos
apenas, de passagem, que nelas se quebrou a relação dialética entre mito e
rito, gerando crise de identidade, de desagregação e de angústia. Com a ausên-
cia de mitos, os ritos se esvaziam: fatos e personagens rotulados de míticos
nas sociedades industriais ou serni-industriais são construções da rnídia, subs-
titutos caricatos e efêmeros dos mitos no seu significado coletivo, especulati-
vo, inconsciente. Tornam-se atos, gestos e palavras repetidos por modismos,
fabricados e consumidos como fonte de prestígio social, de certa identidade
grupal, diferentemente das sociedades arcaicas, nas quais eles regulam as ten-
sões, canalizam a violência. Pois rito é sacrifício. O sangue derramado ritualmen-
te impede (ou minimiza) o derramamento cotídíano+', como ocorria, por exem-
plo, na sociedade asreca ou na sociedade cristã tradicional.
Sem dúvida o auto-sacrifício de Cristo pelos homens, prolongado na
comunhão, afastava-se do sacrifício de homens aos deuses astecas. Mas na
aculturação que acompanha a conquista espanhola do México, em nome do
cristianismo - o que não era simples máscara de interesses econômicos, C01110
pensam alguns: a globalidade histórica tende a ser menosprezada pelas análi-
ses fragmentárias -, derrama-se sangue "pagão" para glória da divindade
"cristã". Para sobrevivência da sociedade, enfim. E dessa forma as duas cultu-
ras aproximavam-se no essencial. Na verdade aquela guerra, como todas as
guerras, como todas as festas, segundo mostraram Huizinga, Callois e mais
recentemente Cardínív', era o encontro de dois mundos, superior e inferior,
divino e humano. Pois festa é momento de regeneração do tempo, de volta
ao caos simbólico, de suspensão temporária das normas sociais, por isso histo-
ricamente momento em que ocorrem sublevações. Mas nas sociedades contem-
porâneas ela não é tanto uma reenergização elo tempo quanto uma pausa para
reenergizaçào do homem. Que retoma depois ao trabalho mais produtivo e
menos integrado ao cosmos e, porque menos integrado ao cosmos, mais inte-
grado ao trabalho.
Todas essas violências da sociedade industrial a processos psicológicos
e antropológicos enraizados profundamente há milhares de anos é que levam
ao ressurgimento do misticismo que apontávamos no início deste trabalho.
Pois fenômenos místicos S~lO fórmulas culturais de busca de conhecimento,
de revelação, de desvendarnento do oculto: como se sabe, mystileôs, "relativo
aos mistérios", deriva de tnystérion, "iniciação", "saber reservado aos adep-
tos". Logo, porém, na lógica da conternporaneidade, aqueles fenômenos sào
banalizados e n~IO chegam a cumprir seu papel. São transformados em best-
fJ9. Ver, sobre essas considerações. o belo livro de I'. Cardini, Dias Sagmdos: 'l rculicionPopular en las
Culturas Eurcnnedtterráneas, (rrud.), Barcelona. Argos vergara, 19811.
50 . .I. Iluizinga, 1101110 t.udens, (trad.), São Paulo, Perspectiva, 1980; H. Caillois, i. 't Iomnte et le sacré,
Paris, Gallimard, 1950, e Lesjeu» 1'1 les bO/JII1/(,S, Paris, C;allilllarcl,1958; 1'. Cnrclini, Quell/1n/ictl
I-esta Crudele: (,'1/('1'/'(/ e Cultnra delta (,'1/('/'11/ dall'liti] Fendale "1/,, Grande Ri/Jo/llzirme, Florença,
Sansoni,19H2.
sellers, em modismos, em espetáculos. Um momento-chave para a sociedade
e a religiosidade arcaicas como o Carnaval+ perde em espontaneidade para
ganhar em colorido, perde em comunicação cósmica para ganhar em comuni-
cação televisiva. Pobremente místicas, essas manifestações são descartadas e
substituídas por outras, que alimentam mal muitos espíritos e alimentam bem
poucos bolsos.
A aparente democratização da informação esconde sua forte centraliza-
ção, dominada por alguns particulares em certos países, pelo Estado em ou-
tros; a aparente variedade de opções em algumas sociedades esconde uma
uniformização de conteúdo. Na aldeia global da comunicação de massa, ao
sabor dos interesses em jogo, as verdadeiras identidades culturais são quase
anuladas, ou artificialmente alimentadas. Nesse quadro, o encontro do indiví-
duo com seus deuses internos (sentido etimológico, cultural e psicológico de
"entusiasmo", do grego entbousiasmôs, "ter um deus dentro de si") dá-se pelo
consumo de drogas, o sucedâneo atual mais próximo dos velhos ritos. Todavia,
contrariamente a estes, aquele se revela frágil e fragilizador, por não estar fun-
dado em mitos, em verdades consideradas profundas e estáveis para o cem-
junto da sociedade. S~lO válvulas de escape de uma minoria. Diante disso tudo,
entende-se o interesse atual pela "cultura popular", pela busca de uma nova
identidade coletiva. É o presente buscando a si próprio no passado, é o indiví-
duo tentando reencontrar-se numa nova coletividade.
51. .J. Caro Baroja, IiI Carnaual: Análisis l listorico-Cultural, Madrid, Taurus, 1965; c. C;aigncbct, I.c
C({J'//(/f)(/!: lissais de nivtbolog!« poputatre. Paris, l'ayot, 1979.
CRISTIANISMO MEDIEVAL E MITOLOGIA
REFLEXÕES SOBRE UM
PROBLEMA HISTORIOGRÁFICO
Apesar de Marc Bloch ter afirmado há muito tempo que a época feudal
foi de "grande fecundidade mítica" I, por décadas os medievalistas não deram
maior atenção a essa idéia. Parece que um outro fenômeno cultural de longa
duração - o pensamento eclesiástico medieval, antimítico - int1uenciou os
historiadores da Idade Média, cujos trabalhos pouco abordaram até aqui aque-
le tema. Apenas mais recentemente essa tendência começou a ser alterada,
por int1uência da antropologia, e mesmo assim de maneira tímida. Se atual-
mente poucos historiadores ainda discordam quanto à existência de uma mito-
logia medieval, continua aberta a questão essencial de saber qual era seu
caráter.
De maneira geral, os estudos sobre o assunto limitam-se a examinar
temas mitológicos anteriores reutilizados literariamente na Idade Média. Quando
se reconhece que, naquela época, além de "transposições" de mitos havia tam-
bém "criações", estas S~lO vistas apenas a partir de modelos literários clássicos
e célticos-, Abordagem problemática, pois reduz () mito a um fenômeno literário
e desloca assim as narrativas míticas de seu contexto oral, coletivo e anôni-
mo para ambientes culturais restritos, nos quais elas assumiam formas distin-
tas das originais. Portanto é correto o diagnóstico da Sociedade dos Medievalistas
1. M. B1och, I.a Sociétéféodale. Paris, Albin Michcl, 1973, (la cd., 1939-1910), p. ]29.
2. l.. l Iarf-Lancncr c D. Isoutcr (cds.), 1'0111' IIl1e lIl.J'lb%gie dtt Moven /lge, Paris, licolc Normalc
Supéricurc, 19S5.
Franceses que em 1991 incluía entre os territórios novos, ainda a explorar, o
da mitologia).
Um bom exemplo das questões a serem proximamente pensadas nesse
campo pela historiografia medievalística é o recente livro de Philippe \Valter/,.
Sobretudo porque essa obra apresenta certo descompasso entre suas proposições
e sua concretização, em razão de determinadas opções metodológicas do autor,
o que nos servirá de ponto de partida para algumas considerações a esse
respeito. De um lado, ele acertadamente defende o estudo da mitologia medieval
a partir não apenas de fontes literárias mas também de documentos eclesiás-
ticos (atas de concílios e penitenciais), hagiográficos e íconográfícos. Com
efeito, utilizar fontes provenientes de ambientes culturais e sociais diversos é
o melhor caminho para ter uma visão global sobre qualquer objeto de estu-
do. No entanto, as fontes íconográflcas mereceram somente umas poucas
citações de passagem naquela obra, sem jamais terem sido exploradas no seu
rico conteúdo mitológicos. As hagiografias, que "têm muito mais a nos ensi-
nar por seu conteúdo imaginário e mítico que por seu pretenso testemunho
histórico", também foram ernpobrecidas ao serem analisadas apenas nos seus
motivos "pré-cristãos e em particular célticos" (p. 32).
Da mesma forma, \XTalterpropõe o método comparativo, único que "tem
alguma chance de chegar a resultados palpáveis" (p. 51), mas utiliza-o ape-
nas esporadicamente. Talvez como compensação ao fato de por muito tempo
se ter desconsiderado a especificidade dos mitos celtas "em nome do maior
prestígio dos mitos gregos" Cp. 250), ele se prende quase exclusivamente àque-
les, sem cornpará-los com estes, apesar de reconhecer a existência de "uma
herança comum aos povos célticos e helênicos" (p. 264). Ele recorre ~l mitolo-
.gia hindu para explicar a lenda medieval de S~IOValentino, mas desconsidera
os mitos iranianos de Mitra ao estudar as origens do 25 de dezembro como
data do Natal. Examina a influência das pedras sagradas dos celtas em certos
relatos hagiogrMicos, sem se referir ~l existência do mesmo fenômeno religio-
so entre inúmeros outros povos, inclusive os hebreus vérero-testamentáríos«
De outro lado, o autor quer "levar em consideração o rito que sustenta
() mito e o prolonga na memória" Cp. 13), pois "uma mitologia se inscreve
geralmente num calendário que ritma as celebrações e comemorações sagradas"
(p. 15). Opção correta, já que impede que o mito seja visto unicamente na
sua função narrativa, como apenas um elemento a mais da cultura cortesã.
Essa postura pode sem dúvida lançar mais alguma luz sobre o rito, que perrna-
7. "Se () estudo dos ritos prendeu menos a atenção dos pesquisadores que os mitos, é porque t<..'1110S
11. G. 1'. Caprcrtiní, G. Ferrare e G. l'ilor.uno, "Mythos/l.ogos", em tinciclopedi«: Einaudi; (16 vols.),
Turim, Einaudi, 1977-19R1, 1'01. y, r. 6Hj.
12. Como os baruya da Nova Guine, estudados por ,VI.Godclicr, "Myrhc ct hisroirc: Réflcxions SUl' lcs
fondcmcnrs de Ia pcnséc sauvugc", AI::S'C 26, 1971, rp. 5;'1-55H, ou os Kula do %aire central, anali-
sados por I..lleusch, t.o Rot torc outortgtne de ltitat, Paris, Gallimard, 1972, pp.121-12ge 156-
157.
13. Plotino, Ennéades; 111, 7, 6, trad. E. Bréhicr, Paris, Bcllcs Lcttrcs, 1925, vol. 111, pp, 131-136.
H. Para a crítica"S
posições teóricas que opõem mito e história, ver K. H. Andrio!o, "Myth and llistory:
A General Modcl and trs Application to thc Biblc", Anierican Antbropotogist, H3, 1981, pp. 261-
26H.
15. J. Sczncc, !.aSuruiutlncedesdieuxllllliques, Paris, Harnrnarion, 1980, rp. 20 e ss.
49
mações", ou seja, "os mitos se pensam entre-Si" 16. Mas a temporalídade não
é indiferente ao mito, ela o usa para se pensar. Os. mitos conhecidos pela
Idade Média, quaisquer que fossem suas procedências, eram entendidos e
vivenciados de forma própria àquele momento. E sempre articulados uns com
os outros, independentemente de suas origens, pois roda mitologia é um con-
junto de mitos construido por adaptação, inversão e negação de elementos
mítícos de outras culturas com as quais ela tem contato.
Isso nos remete ao segundo grande ponto que o livro de \Vaiter nos colo-
ca: a mitologia cristã na Idade Média "se apresenta antes de tudo como uma
mitologia cristiariizada', Ela se teria constituído" 110 interior mesmo do cristia-
nismo medieual" a partir de material pré-crístão incorporado "graças à Igreja,
à letra e ao espírito da Bíblia" (p. 10, grifos do autor). Noutros termos, o autor
reaproveíta a velha idéia de as mitologias existentes na Europa medieval terem
sido conscientemente absorvidas pelo clero como recurso para combater o
paganismo. Como argumento, ele cita mais uma vez a famosa carta de Gregório
Magno aconselhando Agostinho de Canterbury a não destruir os templos
pagãos, mas a transformá-los em igrejas cristãs. Contudo essa informação iso-
lada esconde o essencial. O reaproveitarnento cristão dos templos pagãos tinha
motivações econômicas e de evangelização, mas esta última baseava-se sobre-
tudo no reconhecimento da sacralidade daqueles locais!".
Se era possível transformar a cerimônia dos sacrifícios pagãos em oferen-
das cristãs é porque entre ambas havia uma estrutura comum. De certa forma
o sacrifício de Cristo invertia o sentido daqueles praticados pelo paganismo,
pois era o próprio Deus que se fazia imolar em fa vor dos homens, e não ho-
mens ou animais que eram sacrificados em benefício dos deuses. Contudo
tratava-se também do sacrifício de um homem (o Filho encarnado), para que
ele interferisse diante de Deus (o Pai) por todos os outros homens. Como
estes haviam desobedecido a Deus, uma "nova aliança" IR era estabelecida atra-
vés do rito da comunhão. Rito que acalma a Divindade ofendida pela ruptu-
ra da primeira aliança, como indica a palavra bostia, "vítima oferecida aos
deuses como oblação expiatória para acalmar sua cólera"!". Daí por que o
cristianismo primitivo recorria à metáfora do Cristo "cordeiro de Deus"21J e por
que ele foi por séculos representado na Cruz sob a forma daquele animal.
16. C. Léví-Stmuss, M)'lb%giq/.ll!s. I.I! (.'1'/1ct lccuit. Paris, Plon, 1\>6/1,pp. 59 e 20.
17. O mesmo ocorria C0l11 as fontes sagr:Kbs do paganismo, mais de seis mil apenas na França, as
quais com o tempo foram relacionadas a algum personagem Ou ~l algum episódio da história cristã
e acabaram ror se tornar fontes santas também para o cristianismo.}. l lubcrr, "Sourccs sacrécs cr
sourccs suintcs", em /1/'/.1'el oie socialc de !{{)l1I du monde antique au MOJ('Jl /1ge, Genebra, Droz,
1977, pp. 261-267. Algumas dessas fontes estiveram na origem de importantes templos cristãos,
caso por exemplo da catedral de Ch.utrcs.
IR. I.c 22, 20; 1 eu 11, 25.
19. A. Ernou!" A. Mcillct, Dicticm uaire él,1'l1l%gil//.Ie dc la !({lIglle kuiuc, Paris. Klincksicck, 1. cd., 1959.
p. 301: bostia opõe-se portanto a oictnna, que é "ofcrcnda em agradecimento por favores recebidos".
20. Jo 1, 29.36; At H. 32; 1 Pc 1, 19. Essa imagem tinha muitos antecedentes vércro-tcsr.uucnrárlos, por
50
Esse esquema iconográfico foi sendo abandonado a partir do século VII,
exatamente em função do processo de evangelízação que buscou minimizar
os riscos de idolatria e de enfraquecimento da idéia do sacrifício do Deus feito
homem. Mas se aquele elemento tendia a desaparecer do mito, ele ganhava
lugar no rito, e pelos menos desde fins do século VII a fórmula litúrgica da
missa passa a falar em Agtius Dei. De toda maneira, aquele sacrifício, como
o de qualquer religião, "consiste em estabelecer uma comunicação entre o
mundo sagrado e o mundo profano por intermédio de uma vítima, isto é, de
uma coisa consagrada destruída durante a cerimônia"?". Sacrifício que fora dos
círculos cristãos eruditos foi por muito tempo visto mais como propiciatório
que expiatório,
Da mesma forma que entre diversos povos fertilizava-se a terra com
partes de animais ou homens sacrificados-ê, na Europa crístã até o século XI
os camponeses enterravam pedaços de hóstias consagradas-o. Mesmo depois
de o IV Concílio de Latrão ter regulamentado, em 1215, as formas de adminis-
tração da Eucaristia, seu uso mágico n~LOdesapareceu. Um cronista conta o
caso de um padre que, desejando ter relações sexuais com uma mulher que
se mantinha reticente, conservou a hóstia na boca após a missa, esperando
que ao beijá-Ia nessas condições ela cederia aos desejos dele pela força do
sacramento>'. Apesar dos progressos teológicos e da centralização adminis-
trativa, a Igreja do século XIII não podia eliminar os componentes míticos do
comportamento do próprio clero.
Isto é, os dados míticos podiam ser inseridos no cristianismo medieval
porque este era, também ele, como veremos, uma mitologia. Se religião era
um "fato social total" para as sociedades pré-industríais, mito era a palavra
que revelava e explicava os aspectos misteriosos (no sentido etimológico do
termo) daquela globalidade, como o rito faz pelos gestos. O amplo denomi-
nador comum entre cristianismo medieval e paganismos europeus da época
estava justamente na visão mítica do mundo que ambos possuíam. As oposições
ideológicas, sociais e econômicas n~LOobstruíam aqueles vasos comunicantes,
mas construíam discursos muito diferentes, que dificultam ao historiador a
percepção daquele processo sincrético. Um bom exemplo dessa diferença está
na relação ambígua da Igreja frente aos textos apócrífos, oficialmente sem
exemplo () sacrifício ele Isaac sendo substituído pelo de UIll carneiro (Gn 22, 13), c paralelos em
outras mitologias, sobretudo um rito dedicado a Dioniso que consistia em jogar um cordeiro no
precipício para acalmar () guardi:J() (tis portas infernais.
21. I I. I lubcrt c M. Maus», "Essai sur Ia naturc cr Ia fonction du sacrificc". em Mélr/llgcs dbistoire eles
religions. Paris, F61ix Alem. 2. cd., I929, (texto de 1899). r. 121.
22, Os khoncls da [ndia, ror exemplo, sacrificavam seres humanos com esta finalidade c espalhavam
sua carne c seu sangue sobre () solo a ser cultivado: I lubcrt c Mauss, op. cit., r, 98,
2:\. A. Vauchcz. UI SjJiritl/{/liIé dn stoven /1ge occidental, Paris. PUI', 1975, r.18.
21. Ccsnrio de I lcistcrb.ich. Dialogus sttracutormn. cd. J Srrang«, (2 vols.), Colônia. I.cmpcrtz, 185!,
\'01. 11.r. 170.
5i
valor, mas sempre presentes na cultura medieval. E completamente ausentes
do livro ele Walter.
Para as autoridades eclesiásticas, de Agostinho a Isidoro de Sevilha e
depois a Vicente de Beauvais-õ, os apócrifos não eram livros inspirados como
os canónícos, não tinham autoridade divina, mas não deviam ser rejeitados.
Não eram necessariamente falsos, e podia-semesmo tirar proveito deles, desde
que lidos como obras de poetas, e não de santos. Às vezes eles eram citados,
às vezes camuflados nos escritos eclesiásticos. Para ficar com um único exem-
plo, os [ubileus aparecem explicitamente, dentre outros, em Dídimo de
Alexandría, Epifânio, Ierônímo e Nicéforo, e anonimamente em Hipólito,
Orígenes, Diodoro de Antioquia e Isidoro de S~vilha2<í. Na Legenda Aurea o
apócrifo Euangelbo de Nicodemo mereceu seis citações, mais do que recebe-
ram 31 livros bíblicos canônicos, inclusive o Evangelho de Marcos.
Como todos os mitos de uma mesma cultura interagem, formam uma
mitologia, conjunto complexo e articulado, as várias mitologias de um mesmo
quadro espaço-temporal tendem a formar redes intercomunicantes. Por essa
razão toda mitologia se amplia constantemente, agrega novas narrativas. Não
há especificamente, como já se disse, uma "críatividade mitológica do cristianis-
1110"27,e sim uma fecundidade inerente às características do relato mítico. Isso
colocava a cultura erudita diante de uma situação paradoxal, pois se de um
lado ela temia a ampliação de um universo narrativo que fugia ao seu contro-
le, de outro ela própria produzia e incorporava constantemente novos relatos.
Quer dizer, o processo de fusão mítica, de síncretismo de várias mitologias no
Ocidente cristão medieval, não deve ser colocado no campo da história institu-
cional, da história da Igreja, mas no da história da cultura e das mentalidades.
Sincretisrno. Esta palavra, pouco prestigiada pelos medievalistas nos últi-
mos tempos, pode ser importante no estudo do cristianismo medieval se enten-
dida como um "processo contra-aculturativo implicando manipulaçâo de mitos,
empréstimo ele ritos, associação ele símbolos, às vezes inversão semântica e
reinterpretação da mensagem crístlca'?", Não se trata portanto de aculturação
(isto é, assimilação e/ou imposição cultural), cujos estudos tendem a explicar
as trocas do ponto de vista de apenas U111adas culturas envolvidas no preces-
S02'.!. É o que faz Walter, que atribui ~l evangelização um planejamento e uma
continuidade de propósitos que não estavam na mentalidade e nos meios de
atuação da Igreja em grande parte da Idade Média. Isto é, ele enfatíza o cristia-
25. l )« Ctuttatc nei, xv, 2:>, 11, FI., -ít , col. 1J70; tutmotogt,»: VI. 52, cd. -r":ld . .J. Oroz Her:" 2 vols .. /
Madrid, BAt:. 19H2-198:>, \'01. 11, p_ 576: .\jlew!11I11 i1I(/jllS, prol. <) c l-i, vcncza, l.lollliniculll Nicolinum,
1591, pp. 2-).
26. IL lI. Ch.irlcs (cd.), Tbe HooÍJ oftubiks»; Londres, Ad.nu e Ch.ulcs BI:lck.I<)02, pp. LXXVII-LXXXII.
27 . .I-I'. Albcrt, "La l.égcndc de Saintc ,\Iarguerile: lJn Mythc m.úcutiquc?", NIIZO, H, '19Ho, p. 20.
2H. C. Rivicrc, "Syncrótismc", em 1'. Bontc c IvL IZ:ll'(1 (dir.), t iicttonnntre de !dl)}/o!ogie ('I de 1'(/1/-
tbropologic, l'uris , I'lJ!', 1991, p. 6<)2.
29 .. H'. Ba rc, "Acculru rarion", ibirlcm, pp. 1-2.
/
-52
nis1110medieval mais enquanto ideologia do que enquanto conjunto de crenças
e práticas religiosas. E assim transforma-o num absorvedor de mitologias estra-
nhas a eie, numa estratégia para descaracterizar e englobar outras culturasv'.
Por isso é que aquele autor n~IOpercebe a existência de uma verdadeira
mitologia cristã, mas apenas de uma mitologia cristianizada, No entanto, pelas
condições históricas da época (diferentes, por exemplo, das da evangeliza-
Ç~IOda América), o processo de cristianização não podia ser feito unicamente
pela força. \'{!alter reconhece que o cristianismo não teria podido se impor se
não atendesse ~ISnecessidades espirituais daqueles que pretendia evangelizar
(p. 269). Diante disso, dois caminhos eram possíveis. Ou na sua obsessão de
conversão o cristianismo absorvia elementos opostos a ele e se descaracterí-
zava, ou reconhecia certa identidade com outras mitologias, e assim o sin-
cretismo ocorreria de forma natural. Contudo, apenas na última página de seu
livro Walter admite que as "concordâncias entre as duas religiões (indo-européia
e judaico-cristã) permitiram ~l segunda englobar pouco a pouco a primeira"
(p. 269). Logo, se para ele "encontrar o traço da autêntica mitologia da Idade
Média n~IOé fácil" (p. 267), isso se deve à sua opção de não trabalhar com
aquelas concordâncias.
Atingimos dessa forma a terceira e mais importante limitação do livro de
Walter: o "cristianismo medieval não se confunde com uma mitologia" (p. 10).
No entanto, superando as barreiras colocadas pela própria cultura erudita
medieval, é preciso ver o cristianismo enquanto mitologia para recuperar sua
globalidade, para entender sua pOSiÇ~IO na cultura da época, para poder alcançar
sua funcionalidade para () medievo. Tarefa na verdade pouco simples, pois,
como () cristianismo é parte da tradição cultural do próprio historiador, este
se vê diante do problema central de "analisar seu objeto com as palavras desse
mesmo objeto, sem reproduzir um discurso tautológico que não explica nada,
que o leva a tantos impasses">'.
Sabe-se que a cultura cristã oficial entendia por mito um relato fantasio-
so herdado da Antiguidade pagã, negando que o cristianismo pudesse ser ele
mesmo uma mitologia. A teologia medieval opunha história e mito, conside-
rando este um in uolu cru 111, uma capa literária que encobria as verdades da
fé32. O papel da exegese bíblica era exatamente o ele desmitologizar os relatos
30. Dentre outros exemplos possíveis (todos os ~rifos siio nossos): "crenças pag;is que o crisri.misrno
deveu assimilar com ufinalitlade de :IS controlar" (I', 9, cf. também 1'.179); .,método aplicado pela
19rc..'ja em rnatórin de cristianizncâo" (p, 1 r); hugiogrnfia 6 aU111a consrrucao prcmedttada ideologi-
camente e culturalmente" (I'. :11): "a rede de crenças pré-crístãs que a Igreja procuraua dissimu-
lar" (p. nO); "mito célrico bem idcntificávcl camuflado sob um álibi religioso" (I'. 135), "o clero
logo compreendeu o valor I'slm/égicodessa festa l=Páscoal para 'I crísnanízação das religiões pagãs"
(p. 1 ~3): "a hagiogr:lfia medieval se fundamenta nu transformação est udurln de tradições mitológi-
cas pag;;s bem anteriores :1 cristianização" (p. 175. ct. também p. 26S).
31. J.-c. Schmirr, "Une I listoirc rcligicusc du Moyen Age esr-ellc possiblc?", l'n!ltlces, 19, 1990, p. 77.
32. IVI.·1). Chcnu, "lnvolucrum.. l.c Myrhc selou les rhéologicn» médióvaux", em Arcbiues cl'bistoire
tloctrinale ot Iittérairc d u M0.l'<'1I /lge, 22, '19'5'5, pp. 7:'-79,
53
sagrados, racionalizando-os, historicizando-os. Contudo, como toda manifesta-
ção cultural importante nas sociedade pré-industriais, o cristianismo nascera
e se desenvolvera num enquadramento mental fortemente mitologizado, e
portanto dele dependente. É claro que isso não tornava os medievais menos
cristãos, nem o fato de eles não terem tido consciência da forte carga mítica
de sua cultura invalida que a examinemos também por esse ângulo.
Com efeito, para se compreender um momento histórico é preciso vê-lo
com os olhos dele mesmo, mas também com nossos olhos, para desvendar o
que estava oculto ao próprio passado, já que contamos hoje com instrumetos
de análise que ele não possuía. Entender a relação, negada pela época, entre
mito e cristianismo é entender melhor o sentido profundo de ambos. É per-
ceber que, se o cristianismo medieval era um vasto sistema de representações
mentais, verbais, gestuais e imagísticas através do qual os homens de então
atribuíam certa ordenação e certo sentido ao universo, era exatamente porque
ele era uma mitologia. Tratava-se portanto de uma visão de mundo construí-
da historicamente, com elementos de variadas procedências e graças aos quaís,
por sua vez, a sociedade construía concretamente seu próprio mundo. O cris-
tianismo medieval não era apenas um conjunto de dogmas ou a fundarnen-
ração ideológica de certos grupos sociais. Era também um conjunto de crenças
e valores que articulava todas as instâncias do universo, gerando certo senti-
mento de segurança diante das forças da natureza e dos mistérios do mundo,
da mesma forma que faziam todas as mitologias para as sociedades arcaicas.
Por isso, como Maurice Lauwers acertadamente percebeu, o método
menos imperfeito de estudar a dimensão antropológica da cultura medieval é
compará-Ia com a de sociedades tradicionaisx'. Pode-se então aplicar à Idade
Média as observações de Malinowski sobre comunidades primitivas, para as
quais mitos são "histórias [que] constituem a expressão de uma realidade pri-
mordial, superior, mais importante, que condiciona a vida presente, o desti-
no e as atividades da humanidade, e cujo conhecimento proporciona ao homem
a motivação de seus atos rituais ou morais e, ao mesmo tempo, lhe dá indica-
ções sobre os meios de realízá-Ios'w'. Efetivamente, para as sociedades pré-
industriais mito é um relato sempre verdadeiro, pois, mais do que estar liga-
do às condições históricas concretas em que surgiu, seu sentido é, através c~
linguagem metafórica, expressar os sentimentos básicos daquelas sociedades.
Sendo uma "realidade vivida", o mito não é nem relato falso, como argu-
mentavam os eclesiásticos medievais, nem sobrevivências culturais, como pen-
sam alguns eruditos modernos'», Podemos também aplicar a essa questão a
:l:l. M. Lauwcrs, "Rcligion populairc, culrurc rolkloriquc, mcnrulité«. Notes pour une .mthropologic
culturcllc du Moycn Age", f(!ulIe ctbistoire ecclésiasttqnc, k2. ] 9k7. pp. 251-252.
Yi. B. Malinowski, Mrlb in trimitii» /'srcb%p,)', Londres, Kegan Paul."! 926. p. 2].
35. (: significativo que um estudioso do porte de jcan Pcpin, que rcsurnc com macstri.t os compo-
nentes mítíco» do cristianismo primitivo. intitulc seu trabalho "Survivanccx mythiqucs dans lc chris-
tianismc .incicn": (em) Bonncfoy, ojJ. cit, \'01. 11,p. (i6i)-IíT5.
51
aguda observação de jean-Claude Schmitt, para quem falar em sobrevivências
do paganismo na religiosidade medieval é uma postura metodologícamente
ultrapassada, pois toda crença ou rito não é combinação de relíquias ou de
inovações, mas uma experiência que só tem sentido na sua C()eS~1Opresenteõ''.
Realmente, uma mitologia não é lima colagem artificial de relatos míticos, mas
um conjunto único que pela sua própria existência revela uma coerência, uma
aceitação sociopsicológica. Daí a unidade da mitologia da Idade Média ociden-
tal, apesar de suas múltiplas origens (oriental, judaica, greco-romana, cristã,
céltica, germânica).
Em função disso, o título do livro de Philippe Walter - Mytbologie cbré-
tietine - é inapropriado, pois na verdade ele examina apenas um aspecto
daquela globalídade, o fundo mítico céltico que se fundiu no grande conjun-
to mitológico do cristianismo medieval. Sem dúvida a herança celta foi impor-
tante na constituição do cristianismo medieval, porém não se pode tomar a
parte pelo todo, nem sequer atribuir a ela uma parcela preponderante. Mesmo
onde temos reconhecidamente lima confluência cultural, \'(1alter tende a ver a
presença exclusiva da contribuição celta. Por exemplo, "a igreja cristã redis-
põe no seu espaço específico os três elementos principais do culto druídico:
a pedra megalítica (menir ou dólmen) se transforma em pedra de altar; as
fontes batísmais, onde ocorrem os batismos, representam a antiga fonte sagra-
da; quanto às árvores da floresta-templo, elas se tornam pilares e colunas de
uma nave em pedra com seus capitéis de ornamentação vegetal" (p. 13).
Não é preciso insistir que altar, fontes e árvores sagradas não eram exclusi-
vidade da cultura céltica, nem que a comparação árvores-colunas de capitéis
com motivos vegetais é no mínimo discutível. Aqueles elementos druídicos \
não estavam presentes no templo cristão por absorção, mas porque pedra,
água e árvore eram componentes de longuíssima duração da religiosidade das
sociedades pré-inclustriais. Devido mesma interpretação celticizante, Walter
à
36. J-c. Schmitt, "Rcligion popul.iirc ct culrurc folkloriquc", /1/:"SC; 31, '1976, pp. 9-\5-9-\6, posição
acompanhada mais tarde ror N. lsclmonr, Prtl'o/esj)(/feJ1lles, Paris, lmago, "1986, p. HR: "1I1ll~1 crença
ou UIll costume niio podem j.un.us ser puras sobrevivências. 1':I<.:s
sâo ~IS vezes arc.rixrnox em rcbç}o
~'lcultura dominante, !lIaS não são jamais anacronísmos".
55
acabou por se implantar no século VP7. Mas, sobretudo, a associação do
nascimento de Cristo em 25 de dezembro respondia a um fenômeno mítico
largamente presente e profundamente enraizado mesmo fora dos quadros
culturais celtas: o sol renascente do solstício de inverno. o Egito e na Síria
comemorava-se naquela data a festa pagã da virgem celeste dando à luz um
novo sol.iH. Aquele era ainda o momento da principal festividade do mitraís-
mo, a mais importante religião no Império Romano do século III e parte do
IV. Como o próprio Cristo se definira como "luz do mundo'v", era natural iden-
tifícá-lo ao sol, tanto que, como se sabe, o dia cio Senhor (dies dominicus,
dimancbe, domenica, domingo) foi chamado no calendário cristão dos ter-
ritórios germânicos de "dia do sol" Csuriday, sonntag). Enfim, não se pode
reduzir aquele complexo fenômeno de sincretismo à simples transposição da
"festa das fadas" ~l "festa do nascimento do Cristo".
Da mesma maneira, as origens e o significado do mito da Virgem não
podem ser abusivamente simplificados a uma identificação com os poderes e
o culto da fada Cp. 91). Por exemplo, o templo pagão de Soissons, que no
século V passou ao patronato da Virgem, estava anteriormente dedicado à
deusa egípcia Ísis/llJ, isto é, ao culto oriental da terra fecundada periodicamente
por Osíris, () Nilo. Nem mesmo a ainda insuficientemente conhecida Virgem
Negra pode ser considerada uma "autêntica herdeira das fadas" (I'. 238). É
verdade que seu culto quase sempre se dava próximo a fontes e grutas, porém
o caráter crônico não era exclusivo das manifestações religiosas célticas. Efígies
negras tinham sido consagradas a Diana, Cibele, Atená, Vênus e Ísis, esta últi-
ma muito cultuada também na Gália?". As Virgens Negras resultavam "do sincre-
tismo de divindades orientais, gregas, romanas, gaulesas, sucedendo a deida-
des ancestrais da Fecundidade'<'.
De toda forma, para abordar a "autêntica" mitologia medieval- o cristianis-
mo resultante de todas as tradições presentes na sensibilidade da época - se-
ria preciso dar um lugar de destaque à Bíblia. No entanto Walter raramente a
utiliza, e considera mesmo o modelo bíblico oposto ao modelo mítico (p. 268).
Mas, se para o relato hagiográfico São Columba Lisa como travesseiro uma
pedra, isso se devia tanto aos megálitos celtas (p. 203) quanto ao relato bíbli-
co do sono de Jacó-15. Apesar de o texto bíblico negar de forma explícita seus
37. G. M. I)ury, "N(ll'l'", em ntcuonnaire de sj>iritU(/!iIi.', (15 vols. l, Paris, Gahricl Hcauchcxnc, 1Y31-
1991, vol. XI, col. 3H6.
38. 11. í.cclcrcq, "Nariviré dc jésus", em IMO., "01. XII-l, col. '.ri '5-917.
39 . .108,12, cf. Is Y,I (cirado por Mr ~,16); I.c 2, 32.
10. M. Warner, Alone ofAll l ler Sex. Tbe My/h anr! lhe Cult oftb« Virgill Mll/y, Londres, Weidcnfcld
anel icolson,1976. p. 3ft8.
111. M. Durand-Lcfcbvrc, tttud« sur lorigine dcs Vie/ges Noires, Paris, Dur.issté, 1Y37, pp. H6 e HY.
12. Idem, p. 182.
13. Gn 28, 11.
componentes míticos, opondo-os ~lverdade da fe''', a presença deles ali é pa-
tente. E comprovada pelo contínuo empenho exegético dos eclesiásticos na
sua tentativa de desmitologizar as Santas Escrituras. Sem buscar uma dernons-
tração exaustiva de seu caráter mítico, basta lembrar algumas passagens.
A começar naturalmente pela cosmogonia, claramente baseada no Enutna
Elisb babilônico, do século XII a.c. Assim como no processo de organização
do caos primitivo Marduk precisou vencer Tiamat (ou na mitologia grega, Zeus
submeter Tífon), também Iavé enfrentou e derrotou Leviatà e Rahab, mons-
tros simholizadores das forças incontroláveis das Clguas prunordiaís+'. Assim
como Marduk cortou Tiamat (literalmente "mar") em dois, o mesmo fez Iavé
com () m,ll·/I('. Significativamente, a palavra hebraica que designa o caos pri-
mordial Ctebôtn) no texto bíblíco+? é uma derivação do nome Tiamat. A grande
mas única diferença entre os dois relatos está no fato de Marduk depender de
lima matéria preexistente para criar o universo, ao contrário de Iavé, cujo
poder e unicidade não têm limites.
Para diversas mitologias, os primeiros tempos após a Criação foram con-
turbados, com disputas pelo poder no mundo divino. O episódio de um deus
castrar seu pai durante aquela luta (como fez Cremo com Urano e depois Zeus
com Cremo) aparecia no relato inicial sobre Cam e Noé e, apesar de alterado
mais tarde no processo de rnonoreização, seus ecos permaneceram na narra-
tiva do Gênese'" e possivelmente em tradições orais. Por isso o sentido míti-
co original, reativado por condições locais específicas, pôde reaparecer na
longa duração histórica num afresco medieval de Saínt-Savirrt", No mesmo
contexto mítico de revoltas contra as dívíndadesv' é que ocorreu a queda de
Lúcifer e outros anjos, enciumados e irritados com Deus devido criação do à
li/!. "1... 1não ensinarem doutrinas extravagantes nem se ocuparem de mitos c gcncalogias intermináveis'
CI '1'111 '1,3); "quanto aos mitos profanos e aos contos de comadres. rejeita-os" (J '1'111 li,7); '1..1 afas-
tarào os ouvidos da verdade afim de volrá-los para os mitos" (2 Tn: 1',It); '"1. .. 1 aos mitos judaicos
e aos preceitos de homens que viram as costas Ü verdade" (Tt '1,-1/í); "Na verdade, não é basean-
do-nos em mitos artificiosox que vos damos a conhecer o poder e a vinda de Nosso Senhor Jesus
Cristo, mas como testemunha ocular de sua majestade" (2 Pc '\,16),
15. l's 7/1,11; Is 27,1; I's H9, 11; Is 51, 9.
16. I's 7/1. 13; Is 51, 9.
17. (JI1], 2; Ps 33, 7; 1()'1, 6.
IJH. Gn 9, 21-25.
1t9. C1'., infnt, ensaio n. 3.
50. R. Graves" R Parui, Les Mvtbe« bébreu.x. (trnd.), Paris. Fayard,19H7, p. 76.
51. vtta Adoc:': 2-16, cd . .J. I I. Mozlcv, Tbejonrnal oj""1Z1eo!ogiw! Studies. 30,1929, pp, 131-13:\.
52. 11. l.cclcrcq, "Angcs", em f)/Iel., "01. 1-2, col. 20H1-20H'5.
53. I'.-M. Galopin, "Ang<:", em /Jic/ioill/(/íree/lCj"clojJÍ!diq/lede!(/ IJiIJ!e. Turnhout, Brcpols, 19H7, p. 59.
57
Não é preciso insistir sobre a criação do homem modelado na argila,
narrativa que aparece na mitologia e no folclore de vários povos>". Significativos
também são os paralelos entre Prometeu e Adão. Ambos roubaram a sabedo-
ria do mundo divino, simbolizada no mito grego pelo fogo, no hebraico pela
fruta da Árvore do Conhecimento'». Isso custou ao homem a expulsão do
Paraíso e a perda da imortalidade, fato simétrico ü punição do titã, cujo fíga-
do (centro vital do corpo humano para os gregos) passou a ser diariamente
devorado por uma águia, símbolo celeste. Prometeu sendo titã era muito
grande, como o Adão pré-pecado de lima tradição judaicaSó conhecida no
Ocidente medieval cristãov. O paralelo entre as duas personagens estendia-
se ainda a dois outros pontos importantes para a Idade Média. Para a mitolo-
gia grega o titã fora o inventor de holocaustos aos deuses, para um apócrífo
cristão o Pai da Humanidade é que erguera o primeiro altar e oferecera os
primeiros sacrifícios ao Senhor>". Ambas as personagens foram libertadas de
seus tormentos graças a duas figuras miticarnenre comparáveis, como vere-
mos, Héracles e Cristo.
Também é inegavelmente mítica a versão bíblica do nascimento de Eva,
baseada num relato sumérío segundo o qual para curar as dores do deus Enki,
Ninhursag extraiu-lhe uma costela e criou a deusa Ninti. Ora, esse nome sig-
nifica "mulher ela costela" ou ainda "mulher que faz viver">", etimologia próxi-
ma ao aramaico Havva C'aquela que dá vida") e explicação bíblica do nome à
51. Gn 2,7; j.-G. Frazcr, Folls-Iore in tbe Old 'testontent, Londres, Mucmillan, 1923, pp, 4-15.
5'5. Além do conhecido relato de Gn :I, 1-7, () roubo da sabedoria divina foi também registrado em
outra versão, alterada ao ser incorporada na Biblia, mas cujos ecos são ainda pcrccprfvcís.}» 15,
7-8, cf. Graves e Putui, (ljJ. cit., P: 91.
56. Midrasb Rabba, 1'1,1,rrad. 11. Maruani e A. Cohcn-Araxi. Paris. Vcrdicr, 1987. p, lWI; l.. Ginzberg,
Tbe t.ogcnr!« ()/' tbeletos, Filadélfia, 'I'hc .Ic\V Socicry 01' Amcrica, '19'1J. 1'01. I. p. '59;1 Y25. vol. v, p.
79 n. 22.
1
')7. Walter Ivlap, Dc Nugi« Curialium, 1.1, cd. M. 1(. jumcs, Oxford, Clarcndon, 191;i, p. 2.
'58. fi Contbatttmento di /1 da 11I0. cd.-rrad. A. Barrisra e 11.lIagalti, Jerusalém, FrancisGI11 Printing l'rcsx,
1982, H, pp. '53-5'5; 46, pp. 117-118.
'59. S. Krumcr, t.Tttstoire conunence ri Sutner, trad., Paris, Arth.iud, 1986, pp. 166-]68.
60. Gn:l, 20.
61. Kr.uncr, ()jJ. cit., p. 186.
62. Gn 7, 10-24; G. Conrcncau, t.e /Jé//lge babvlonien, Paris, l'ayot , 1911.
63. Gn 6. 1-5; Nm 1), 33; Dt 2, 10-'11.
58
Toda essa riqueza mítica não era exclusividade do Antigo Testamento.
Assim como Amon-Ra assumira a forma do marido da rainha Ahmes para
fecundá-Ia'», assim como Zeus se metamorfoseara em chuva de ouro, homem
mortal, outra divindade, touro e cisne para fertilizar mulheres mortais'», o
mesmo fez () Deus cristão com Maria através do Espírito Santo, geralmente
representado desde fins do século I ou começo do II sob a aparência de uma
pornbaw. Esse casamento sagrado pouco se diferenciava, aliás, das tradicionais
hierogamias, pois a Virgem era indiscutivelmente uma nova hipóstase das
antiqüíssimas Mães-Terra'P. A maternidade por parte ele uma deusa virgem
também tinha antecedentes, como o mito de Atená. Se Maria, no céu, desposou
misticamente Cristo, ao mesmo tempo seu pai e seu filho6H, essa relação não
era estruturalmente diferente de outras entre mãe e filho (como Cibele-Átis)
ou entre irmãos (como Osíris-Ísis ou Zeus-Hera). Baseada nessa tradição míti-
ca é que a Igreja medieval se via como mãe e virgem, como esposa do Cristov".
Mais importante, vários deuses tinham sido mortos e haviam ressuscita-
do. Portanto o elemento central do cristianismo - um filho de Deus nascido
de mulher virgem, depois sacrificado e ressuscitado - resultava da reutiliza-
ção e harmonização de dados míticos anteriores. O sentido da crucificação, o
pai sacrificando o filho com finalidades expiatórias, era semelhante ao que
envolvera Abraão/Isaac?", jefté/sua filha única?'. Agamênon/Ifigênia, Cré-
on/Meneceu, Tântalo/Pélops, Idomeneu/seu fílho'". Como em qualquer ban-
quete canibal, também para o cristianismo () sacrificado deve ser devorado
61. T. (õ. I r. jamcs, Mvtbcs et légendcs de l'I:i{l1J1e ancienne, (trad.), Paris, Laroussc, 1\>70, p. H3-s>l.
65. 1'. Grimal, Dictionnaire de 17/.I'lbol(~~iegrecque et ronutine, I'"ris, I'lJl', 10. cd .. 1990, pp. 9, 26, 76.
151 e 257; p"r" concretizar um ;111101' homossexual, Zeus assumiu a forma de águi", cf. 1'.163.
66. I.c 1,:\5;.1.-1'. Kirsch, "Colombc", em f)/Ier, 1'01. 111-2, col, 220:\ c 2212-221); 11. l.cclcrcq," I':sprit
(Lc Saint) .., em ibidcnt, 1'01. V-'I, col, 52'5-'52K. A pomba cr.i, "Iiá" atrlburo de lshtar (cf. 1,. Larochc.
"Animaux". em Bonncfoy, op, cit., 1'01. I, p. 36), um" das representações pré-cristás de Maria.
67. Os textos li respeito sào abund.mrcs, de Santo Agostinho sSernumcs. Hl9, 11, em 1'1.,:lH, eol. 10(6)
li jacopo de V"razzc (Legenda. '12, 3, p. 75). (, inrcrcssanrc que Ev", outra representação da Mãe-
Terra, ao dar ~l luz tenha se referido não ao pai humano de seu filho, mus a Deus ("ganhei 1I1n
homem com a ajuda do Senhor", "Gn i, 1), enquanto Maria , "O contrário, lembra seu dcsconhc-
cimento de homem quando o anjo de Deus lhe bla em filho (I.e 1, 310). O modelo hierogâlllico
que aparece na fiíblia.:' inegavelmente de origem suméria, conforme o célebre estudo de S. N.
Kru me r, I.e J1-(tlnáge sacré, (rrad.), Paris, Bcrg, 19H3.
6S. A. Maycr, "Matcr ct l-ilia. Ein Vcrsuch zur srilgcschíchrltchcn Lnrwicklung cincs Cchctsausdrucks",
ciwjabrbucbfür l.iturgietoissenscbaft, 7, 1\>27, pp. 68 ..69.
69. Santo Agostinho. ne SIl17Cltl I'ilgini/(lle, 11, 1'1.,10, col, 397.
70. Gn 22. 2-13; lavé csrnbclcccra que "todo primogênito é meu": I':x 3'1, 19.
7í. . esse episódio a personagem promete que se vencesse seus inimigos cnrrcg.ui.t em ho!ocausto :l
Deus a prirncir« pessoa que visse em sua casa <Jz 11,30-:\9), bio parnlclo ao de ldomcncu, que
prometeu se fosse salvo de uma rcmpcstadc sacrificar () primeiro ser humano que encontrasse no
seu reino <Grilllai, ojJ. cít.. p. 22H).
72. Grima], ojJ. cit., pp, 19, 291, 35'1-3'5'5 e 228.
pelos seus seguidores: "Tornai e comer, Isto é o meu corpo"T~. O faro de a
hóstia cristã tornar-se carne de Deus apenas através de um rito específico não
ü descaracteriza enquanto canibalismo, como aliás percebeu \Valter (p. 1i15),
pois esse ato é "sempre simbólico, mesmo quando ele é real"?".
A comunhão cristã é um rito de transmissão de poder, de apropriação
das virtudes do mono, faro antropológico e mírico bem conhecido de várias
sociedades. No plano sociológico, talvez se possa aplicar ao Ocidente medieval
a constatação feita para a sociedade árabe pré-islâmica: o consumo de uma
mesma vítima sacrificial estabelece fortes laços entre os membros da cornu-
nídade">. É isso que mostra, a partir de meados do século XII, o abandono do
costume quase universal de todo cristão comungar sob as duas espécies (hós-
tia e vinho)7G, fato que reforçou a coesão interna do segmento eclesiástico,
único a praticar desde então a dupla comunhão. Cornplementando e de certa
forma compensando o processo anterior, em1215 a Igreja estabelecia a obriga-
toriedade de os leigos comungarem pelo menos uma vez ao ano, decisão
tomada no contexto de progressos de sentimentos nacionalistas que pode-
riam colocar em segundo plano o sentimento de pertencer a uma sociedade
mais global, a da Cristandade ocidental.
A descida de Cristo ao mundo infernal (ao Limbo na expressão medíeval?")
aparentava-se a várias outras aventuras no mundo subterrâneo. A deusa suméria
Inanna (ou Ishtar para os babilônicos) ficou três dias no mundo inferior, onde
reinava sua irmã e inimiga Ereshkigal/", () mesmo tempo de Cristo no Inferno,
domínio de Satanás, num certo sentido seu irmão, Dioniso desceu aos Infernos
para resgatar sua mãe, SêmeIe79, como fez Cristo com sua mãe, Eva. Héracles
submeteu o cão Cérbero, que guardava as portas do reino infernal, impedin-
73. Mt 26, 26-28; Me 11, 22-21; I.c 22, 19-20. Significativamente, o texto evangélico utiliza o verbo
lelao; "quebrar, fa7.er em pedaços, romper", c não "dividir" como aparece em algumas traduções
modernas.
71. M. Sahlins, "Raw Women, Cookcd Mcn and Othcr "Grcat Thing~" 01'thc I'iji Islands", em 1'. Brown
e D. Tuzin (cds.), The lilimogmpby (!!" Ca nnibnllsn), Washington, Socicry for I'sychologic:tl
Anrhropology, 1983, rp· 72-93, aptu! M. Carneiro da Cunha, "Cannibnlisrnc", cm Diatonnatre de
I "elbl1ologie ('I de 1'cllllbrojJologie, p. ·12·i,
7'). W. H. Smirh, l.ecturcs 011 tbe /{el(~io1/ oftins Semites, Edimburgo, 1IIack.1889.
76. E. Dublanchy, SUl' Ics dcux cspcccs", Dicttonnaire de Ihéoiogie catboltque. (I5 vols.),
"Communion
Pnrix, l.ctouzcy ct An6, 1930-1950, "01. 111-1,col. ))'l-560.
77. A palavra limbus indicando as bordas do Inferno e O local onde ficavam os não barizados parece
ser expressão das novas condições históricas do século XII:.I. l.c Goff, "Lcs l.imbcs", Nouoelle recue
de psvcbanalyse, :Si, 1986, J)J).161-161.
78. Kra me r, op. cit., PJ). 19R-209, J. Bottero e S. Kramcr, i.orsque les dieitxfaisaient lbomme. J1~)'{boiogie
ntésopotamten ne, Paris, Gallímard, 1989, PJ). 276-290. A mitologia rucsoporâmíca fala ainda em um
mortal, Enk idu, que desceu ao mundo inferior e só niio retomou ao mundo dos vivos por não ter
seguido as recomendações de Gilgal11csh: 1.'lijJopée de (;ilgoll1es;', XII, rrud . .f. Bottcro, Paris,
C;allimarcl, 1992, J)J). 206-216.
79. Grimal, O/I. cit., pp. '127 c 'Í 18.
60
do que os mortos saíssem daliHIJ, da mesma forma que Cristo subjugou os
guardiôes do Limbo e quebrou suas portas de bronzes'. Como Héracles liber-
tou Teseu e mais tarde Alceste daquele lugar82, também Cristo venceu a morte
e arrancou do Limbo os justos do Antigo Testarnento'". Orfeu, cujo mito exerceu
incontestável influência sobre o cristianismo primitivo, foi ao reino de Hades
resgatar sua esposa Eurklice - ninfa, portanto filha de Zeus e personificação
da fecundídade -, que morrera picada por uma serpente'", isto é, persona-
gem que apresenta claros pontos de contato com Eva, retirada do mundo infe-
rior por Cristo.
CGu
Ascensão
Encarnaçâo t Ressurreição
Fig.1
Chamad;--- <,
Passagem pelo limiar da aventura Elixir
Batalha contra o irmão
Batalha contra o dl:lgão
Dcsmcmbrarncnto Retorno
Crucificaçào Ressurreição
LIMIARDA AVENTURA Resgate
Seqüestro
Batalha do limiar
Jornada no mar noturno Provas
Jornada maravilhosa \ VCXl
No ventre da baleia
Ajll~~
~
Casamento sagrado
Expiação do Pai
Apoteose
Roubo do elixir
Fig.2
93. vários exemplos em t.a Denxiênre collcction a nglo-nornunule eles miracles de Ia Sainte lIierge ei
SOI/ originrtl lrttin, cd. I I. Kjcllman, Paris-Uppsala, Champion-Akadcmiska Bokhandcln, 1922.
9'i. I.es t\'ell/j(){('s Nostrc Drune, 111,20, cd. T. 1'. Must.moja, l lclsinki, Suomuluiscn Ticdckarcrnian
Toimiruksi«, 19'52, p. 1j.1.
95. Gonzalo de 1Ierceo, Il·!iIa8l'Os de Nuestra Seüora, v. 35b, cd, M. Gcrli, Madrid, Cátedra, 19H5, p. 75.
96. Mr2,1-12.
97. Cf., infra, ensaio n. IÍ.
98. l.a Caserna dei Tesori, 20, cd-rrad, A. Ik'lri~ta e B. Bagarri, jcrusalém, Frunciscim I'rinting Prcss,
1979, p. 15; Testamento de Adán, 7, rrud. 1'.j.rvicr Martíncz l'crnándcz. em A, Dicz IVIacÍ10 et alii
(cds.), Apocrtfos dei Antiguo Testamento. Mudrid, Crisriandad, 1987, \'01. V. p. 135.
9~~. l'~"isatradição estava presente no Oriente desde o ...•éculo VI c no Ocidente desde fins do IX, segun-
do E. IVI:I\e, 1.'/11" reltgicux d u XIW siécl«, Paris, Armand Colin, 7. cd., 1931, pp. 215-216.
63
Esta, sem dúvida, era um elemento central no cristianismo medieval,
porém contava com lima referência bíblica ainda mais ligeira do que aquelas
sobre a Virgem ou os MagosllJO Talvez por isso é que ela nunca teve uma
grande aceitação popular, com a festa da Santíssima Trindade tendo sido insti-
tuída apenas em 1334. Contudo, mesmo sendo uma construção erudita, a con-
cepção da Trindade baseava-se em elementos míticos. Inicialmente a velha
idéia de tríades divinas (por exemplo Anu-Enlil-Ea, Osíris-Ísis-Hórus, júpiter-
juno-Minerva), apesar de a Trindade cristã possuir uma unidade e uma arti-
culação interna desconhecidas naqueles outros casos. Depois, pode-se pen-
sar na influência da trifuncíonalidade indo-européia. Nessa hipótese, os pro-
gressos da teologia trinitária nos séculos XI-XIII teriam estado relacionados,
mesmo inconscientemente, com o esquema da tripartição social da época.
A Idade Média parecia imaginar o Pai como sacerdote, o Filho como rei
e o Espírito Santo como produtor. Para uma sociedade como a medieval, basea-
da no parentesco, na autoridade e no dom, o clérigo era quem mais se aproxi-
mava da imagem do Deus Pai, "de quem tudo vem"!v'. O Filho era guerreiro
("não vim trazer paz, mas espada"102), vencedor de Satanás, por isso era o Rei
dos reis, o descendente de DavillJ5: na Idade Média dizia-se que "trono vacante,
Cristo reinante". O Espírito Santo, por sua vez, estava associado à fecundi-
dade, pois era o grande princípio vivificador, aquele que agiu na criação do
universo, que deu vida a Adão, que engravidou Maria lIH Além disso, a divisão
social de funções atribuía idealmente uma idade para cada papel, a velhice
ao sacerdócio, a maturidade ao guerreiro, a juventude ao trabalhador. Ora,
como o Pai era o Criador e estava mais relacionado com o Antigo Testamento,
ele era associado velhice; o Filho, cujo magistério começara aos trinta anos
à
cabelos ~IS ervas, os sentidos aos animais. O tema do homem microcosmos esta-
va largamente difundido, aparecendo tanto na teologia quanto na iconografiaI2.i.
117. Graf,"1I Mito dcl Paradiso Terrestre", em Mil i, pp. 37-H9; J. Dclumcau, Une bístoire duParculis,
Paris, Fayard, 1992, pp, 11-97; 11. Franco júnior, IIs Utopins Medieuais, SJo Paulo, Brasilicnsc, 1992,
pp. 113-139.
118. M. Broéns, "Lcx Résurgcnccs pré-indocuropécnncs dans Ic culto dcs morts de l'Occidcnt méclié-
vai", Oiogen<" 30, 1960, pp. 81-115.
119. ,'vl. 11. Trindade l.opcs, () /10117<'11I"itíjJcio e SU(/ Illlegmçâo 110 COSII/os, Lisboa, 'Icorem.r, 1989, fl.
153.
120. Cbctpitrcs de Rabb! lilir>zf'r, 11, 22-2'Í, trad. ,"I.-A. Ouuk nin e E. Smilóvrrch, Paris, Vcrdicr, 1992, p,
77; Ginzbcrg, "IJ. cit, 1'01. I, p. 51-55.
121. Oraculn Svhillinu, 3, 21-26 e t;, 321, rr.id. E. Suárcz de Ia Torre, em Diez Macho, op. cit., 1'01. 111,
pp. 287-2HH e 355; t.ibro de los Secretos de l leuoc, 63-M, trad. A. de Santos Orcro, em ibidem,
1'01. IV, 1'.178.
122. Santo Agostinho, lnjoannis Euangelium, X, 12. Pl.; 35, col. 1173; Bcda, 111S . joannis liuangelium
Exposition, 11, PI., 92, col, 666-667; Alcuíno, Connnentaria in S. joannis livallge/iu1I/, 11,1,1'1. H!O,
col. 777 A; Ilonório Augustoduncnsis, tüucidarturu, 1.11, Pl., 172, col. 1117 A.
123. A bibliografia a esse respeito é vasta, inter alia 1(, Allcrs, "Microcosmus. I'rorn Anaximandros ro
Paracclsus", Traditio, 2, 191r1r, pp, 319-'Í07; 1'. Saxl, ",\>l:tcroCOSI11
und Microcosm in Mccliacval
I'ictllrcs", Lectures, (2 vols.), Londres, Thc Warbllrg lnstirurc-Univcrsity of Lonclon, 1957, 1'01. I, 1'1'.
5H-72, IVI.-T D'Alvcrny, "L'l Iommc commc symbolc: Lc Microcosmc", CI11Sintboii e Sinibotogi«
Meclioeuo. Spolcto, CISSMvl. 1976, 1'01. I. pp. '123-18j,
1/('11'11110
66
Em suma, mais importante que esses poucos exemplos é notar que o
cristianismo medieval cumpria as três funções essenciais e interdependentes
de toda mitologia. Inicialmente uma função psicológica, que possibilitava
àquela sociedade projetar ou sublimar suas emoções mais profundast>t. Com
efeito, toda mitologia permite classificar, criar tipologias, genealogias e ontolo-
gias, e assim transmite às sociedades pré-industriais a sensação, se não de
dominar, ao menos de controlar em parte a natureza. O mesmo valia em
relação à vida social. Quando os iluministas acusavam a Igreja de repressora
e moralista, não percebiam estar fazendo um juizo de valor sobre a visão míti-
ca do cristianismo medieval. Eliminar hereges e norrnatizar o uso do sexo
eram dados da mitologia cristã12S que atendiam às necessidades de segurança
e de organização daquela sociedade. Se a obrigatoriedade da confissão indi-
vidual e renovável permitia aos clérigos controlarem a consciência coletiva
dos seus paroquianos, favorecia por outro lado a emergência de manifestações
inconscientes. Deste ponto de vista, a confissão (isto é, a ritualização do mito)
correspondía ao setting clínico da psicanálíset-õ.
Na sua função pedagógica, a mitologia cristã ajudava a conservar e a
transmitir valores sociais e morais, bem como a propor explicações de fenô-
menos humanos ou naturais considerados importantes por aquela sociedade.
Assim, se é inegável que a Igreja medieval se beneficiou de seu longo monopólio
da cultura erudita, não se pode creditar esse fato a uma atuação unilateral por
parte do clero. Se a Igreja dominava a transmissão formal do saber, é porque
a sociedade via nela a única instituição em condições de cumprir esse papel.
E isso ocorria por ser ela a única a poder exercer de forma sistemática e coeren-
te as funções psicológicas e pedagógicas necessárias sobrevivência de toda
à
sociedade organizada. Por ser ela a única a conhecer e explicar os textos que
davam um sentido à propria vidal-". Por ser ela, enfim, o elemento organi-
121. A validade c os linlitl's (1:1 intcrprcraçâo r"iC:lnalítica dos mitos foi o tema central dos dezoito traba-
lhos do Colóquio de Dcauvillc (1981), publicados na Reouefrançaise de psycbcmalyse, 16(1),1982,
rp·691-900.
125. Por exemplo, "roda árvore que não produz bom fruto é cortada e lancada ao fogo" (Mt 7, 19; l.c
3,9; jo 15,6) c "melhor casar que abrasar" (1 Cor 7,9).
126. "Penso, de fato, que cru grande parte a concepção mitológica do mundo que anima até as rclígíõcs
mais modernas mio é outra coisa que 11111(/ psicologia projetada sobre () mundo exterior. O obscuro
conhecimento dos fatores c dos fatos psíquicos 1...1 se reflete na construção de uma realidade
suprasensioel, que a ciência rcrransforma em urna psicotogta do inconsciente. Pode-se, deste ponto
de vista, tentar analisar os mitos relativos ~IO Paraíso c ~IO pecado original, a Deus. ao bem c ao
mal, :, imortalidade ctc, c traduzir a metafisica em ntetapsicologict": S. I'rcud, Psvcbopatbologte de
Ia oie quotidtenne, (trad.), Paris, Payor, 1967, r. 296.
127. Por isso não concordamos com .1.-1'. Albcrr, "Dcstins du myrhc duns lc chrtstianismc médiévai",
30,1990, p. 56, quando de afirma que as dcscriçôcs do Paraíso terrestre não são mito,
l.'flO11l111e,
pois estão inscridas "numa visão de mundo capaz de realizar plenamente seu sentido", Ora, lima
mitologia - c ele concorda em qUl' "o crist.ianismo medieval 1...1 merece () nome de mitologia"
(p. 62) - é exatamente uma visão de mundo capaz de dar sentido a todos os fenômenos impor-
rantcs para a sociedade que a criou ou adotou.
67
zador do conjunto mítico cristão que atraía e congregava outras mitologias do
Ocidente.
Na sua função anagógica, toda mitologia exprime o sagrado, verbalíza o
inexprimível, metaforiza a metafísica. Ainda que desde os gregos mytbos seja
oposto a lagos, a mitologia realiza o mesmo trabalho decodíficador do univer-
so que a filosofia, apenas o t~IZ em outro plano e com outra linguagem. Ela é,
portanto, uma mediadora de códigos culturais. É também a intermediadora por
excelência entre o sagrado e o profano, pois ambas as categorias estão pre-
sentes no relato míticol2S Este impede o contato direto, destruidor, daquele
com este. Assim como Sêmele foi incinerada ao ver Zeus em sua plenitudet-v,
os homens não poderiam suportar o brilho emanado de Cristo, que por isso
se mostrava sob uma máscara!3o. Assim como Oza foi fulmínado por Iavé ao
tocar a Arca da Aliança 151, segundo São Bernardo todo homem também o seria
se tivesse uma relação direta com o divinol.i2. Em suma, a eficácia da função
psicológica e a legitimidade da função pedagógica partiam da sacralidade da
mitologia, e por sua vez a reforçavam. O mito desangustía e ensina porque é
um relato sagrado ou ao menos sobre o sagrado, e é um relato sagrado porque
acalma a angústia do viver, porque explica () até então incompreensível.
128. Sagrado c profano não são categorias absolutas C impermeáveis, mas designam tempos, locais,
ressoas e objetos sob uma situação determinada. histórica: J. -C. Schmirt, "La Notion de Sacré ct
son application 'I l'histoirc du chrisnanismc médiéval", em Cabicrs riu Centre de Recbercbes
t ustortques, 9, 1992, rr. ] 9-29. Para uma bibliografia sobre essa importante c complexa questão.
veja-se R. Courtas e F. A. ls.unbcrt, "I.a Notion de sacrc. Bibliogruphi« thématiquc", em Arcbioes
dcs sciences sociales eles reltgions. /i1. J 977, rr. 119-13H.
129. Ovídio, Les kh'/(//J/()Il,boses, 111,29')-310, cd.vtrnd. G. í.nfavc, Paris, lIelles l.cttrcs, 1969, r. 79.
130. l lonório Augusroduncnsis, Huctdartum. 1,21. 1'1., 172, coi. 1125.
131. 2 Sm 6. 6-7.
132. Cirado ror M. !'vI. Davy, "I.a Mcntuliré syrnboliquc au XII" sicclc", f)iogi'lIe, 32. 1960. rr. 11/j-115.
MITO E SOCIEDADE
A CASTRAÇÃO DE NOÉ
ICONOGRAFIA, FOLCLORE
E FEUDALISMO
lhos. Não se hesita atualmente em buscar nela dados para análises dos mais
variados tipos, em particular para a história da cultura, da religiosidade, do
imaginárío e da mentalidade. Contudo, menos comumente têm sido explo-
radas as relações entre imagem e folclore, como nos propomos fazer aqui. No
caso concreto que nos interessa agora - os afrescos da nave da igreja aba-
cial de Saint-Savin-sur-Gartempe, próxima a Poítiers, pintados na passagem
do século XI para o XII -, os principais trabalhos prenderam-se a questões
estílístícast, arqueológicas- ou lirúrgtcas>.
Mas, antes de pensarmos especificamente naqueles afrescos, é preciso
considerar, ainda que de forma rápida, o caráter da imagem para os homens
da Idade Média. Conceitualmente, isto é, para a cultura erudita, imago era a
cal", lembrava ainda que fora a reforma de Bento de Aniane - talvez o primeiro
'I . .J. Wirrh, 1.1/J/{/ge médiérctk), ('a ris, Méridicr», Klincksicck, 1 \189, p, 12.
). E, De líruvnc. Iitudes destbétiqne lI/édiél.'ale, (j vols.), Brugcs, De Tcmpcl, '1916.
6. Cf.. supr«, ensaio n. I.
7. A. Vauchcz, l.a .\jlirilllalilé du Mo}'ell Ilge occidental, ('a ris. (,llF,1 97'5, pp. 11-"1,.
H. Labandc-Mailfcrt, "l.c Cyclc de l'Ancicn Tcst.uncnt", pp. ;W2-jY·í.
73
abade de Saint-Savin - que tornara a atividade litúrgica central na vida dos
monges ocidentais, superando em importância a atividade apostólica".
O momento de elaboração dos afrescos coincidia com a revalorização
da cultura folclórica, aquela que expressava uma descontinuidade cultural,
uma inferioridade institucional do conjunto de valores e tradições de um grupo
social em relação a outro. Era, por isso, uma cultura de contestação, de resistên-
cia norrnatízação que o clero pretendia impor!''. Transmitida anônima e oral-
à
tomou. Em torno dele encontram-se os filhos: UIll ao lado, outro atrás, Sem e
Jafé estendem o manto que cobrirá a nudez do pai, porém sem estarem cie
costas como diz o texto bíblico, e dessa forma também eles vêem o patriarca
desnudo. Em posição frontal ao pai adormecido, Cam pode observar melhor
a nudez dele e com o braço direito estendido faz () gesto de corno em direção
ao falo paterno (Fig. 3).
É verdade que desde Fílon de Alexandria " muitos exegeras haviam
comentado a irreverência de Cam, o riso debochado diante do pai embriaga-
do. Mas o artista de Saint-Savin, baseando-se na cultura oral, materializou o
comportamento de Cam naquele gesto derrisório e ofensivo. Ora, como jean-
Claude Schmitt bem definiu, através do gesto pode-se chegar ao princípio-
chave da antropologia medieval, que via o homem como "a associação de um
corpo e de uma alma, e esta associação é o princípio antropomorfo de uma
concepção geral da ordem social e do mundo, inteiramente fundada na dialéti-
ca do interno e do externo=". Quer dizer, ao retratar o gesto de Carn, o pin-
tor revelava o caráter negativo daquela personagem e, por contraste, exalta-
va os direitos da paternidade.
21. Filo" de Alcxanclria, Q/leSli()nes ct sotnttonos JI1 (,'ellesill/. 11,71, cel-rrad. C Mcrcicr, Paris, Ccrf,
1<)7<).1'1'.316-31<).
22_ J-C Schmirr. I.{/ Raison des goste» dans tciccident /I/"'I;"{'al. l'aris. Guílimard, -I<)<)0, p_ 18.
76
Portanto, os direitos da ordem familiar e social. Portanto, o papel do
clero, condutor daquela sociedade. De fato, naquele contexro ideológico da
tripartição social, um dos arquétipos bíblicos mais utilizados para legitimar a
ordenação elaborada pelo clero era justamente o dos três filhos de Noé.
Apesar de () texto bíblico falar, pela ordem, em Sem, Carn e Jafé, o comporta-
mento de Cam no episódio da embriaguez do pai e a maldição que este
lançou sobre os descendentes dele criaram uma nova situação: "Maldito seja
Canaâ, que se torne escravo dos escravos de seus irmãos". E acrescentou:
"Bendito seja o Senhor Deus de Sem, e que Canaã seja seu escravo. Que Deus
dê prosperidade a Jafé, que ele habite nas tendas de Sem, e que Canaã seja
seu escravo<'.
A supremacia de Sem, ascendente de Ahraão, de Davi e de Cristo, signi-
ficava, na interpretação medieval oficial, a supremacia do clero, dos oratores.
Os descendentes de jafé, que devem morar "nas tendas de Sem", eram os
bellatores, e os canaítas que deveriam servir a ambos, os laboratores. Dessa
forma, a imagem do Cam desrespeitoso pintado pelo fresquista de Saint-Savin
atendia sobretudo aos interesses monásticos. Mas também aos dos senhores
bicos. E de certa forma aos interesses monárquicos, relacionados também eles
com o esquema social tripartite 21. Não por acaso, reforçando a degradação
do terceiro ardo, Carn, o derrisor, era comparado a Caim, o Iratricida, por parte
de dois cronistas ligados à monarquia Planrageneta->.
A leitura clerical do afresco baseava-se ainda no caráter sagrado do pa-
triarca, segundo pai da humanidade, escolhido por Deus para impedir que o
gênero humano desaparecesse com o Dilúvio. Mais especificamente, Noé era
ali símbolo do próprio clero, pois o texto bíblico atribuía àquela personagem
certas funções sacerdotaís-v. Essa interpretação sobre o patriarca era ainda
reforçada por dados provenientes das tradições judaicas. Nada havia de estra-
nho nisso: para que a mensagem clerical atingisse seu público, era preciso
haver nela elementos de pronta compreensão por parte deste, que há muito
incorporara algumas daquelas tradições. Porém não se tratava apenas de uma
estratégia da cultura erudita. Não se pode esquecer que () clero não era exter-
no ~l sociedade na qual vivia, que entre ele e () laicado havia todo um deno-
minador cultural comum.
25. Cn 9, 25-27, explicação da origem da escravidão reforçada por Santo Agostinho. De Ciottate f)ei,
XIX, 15, I'/., 11, col. 613-611.
2/í. .J. l.c Goff, "Note sur société rripartic, idéologic monarchiquc ct rcnouvcuu économiquc (bns ia
Chréticnré du IXc au Xl l" sit'de",clll 1'/lM/I, pp. BO-90.
25. Giraldus Cambrcnxis, Speculu m Duorttnt, 1.535-5'12, ed. Y. t.cfcvre e R. C. l luygcns, tr:rd. B. Dawson,
Cardíff, Univcrsity of \Vales Prcss, 1971, p. 32; waltcr Map, f)e Nllgis Cu rinltu 111, IV, 6, cd. ~'I. IL
);1I11es,Oxford, Clurcndon, '1911, p. 160. Desnecessário lembrar que o I'oitou se tornaria território
planragcncra desde o casamento de J Icnriquc I'lantageneta com Elconor da Aquirânia em 1152 c
a ascensão dele ao trono ingl~s em "I-151.
26. Gn 7, 3-5 e B, 20-21.
77
Fazia parte dessa cultura o caráter sagrado do patriarca, com cujo nasci-
mento tudo retornou "ao estado anterior Queda do homem'?". Para cons-
à
truir a Arca ele havia utilizado o Livro Sagrado que Adão recebera do anjo
Raziel e que estivera perdido desde a morte do Primeiro Homem-s. Mais ainda,
a Arca era sem dúvida um local edênico, onde todos os tipos de animais con-
viveram pacificamente durante um ano e se abstiveram de relações sexuais,
exceto o cão e o corvo-v. Ao sair da Arca, terminado o Dilúvio, Noé teria sido
castrado por um leão:", animal que era um dos mais conhecidos símbolos de
Cristo, o 1610 de Judá:ll. A partir disso, via-se Noé como tendo sido esterili-
zado pelo próprio Deus e assim transformado em sacerdote, pois apesar de
a Igreja não aceitar eunucos naquela função, da óptica laica os clérigos eram
homens estéreis.
Ademais, ao sair da Arca ele fez uma oferenda a Deus sobre um altar er-
guido no mesmo lugar no qual Adão e Abel haviam feito sacrifícios e no qual
seria mais tarde levantado o Templo de jerusalém--. Outro dado importante
era a própria embriaguez que, apesar de genericamente condenada pelo texto
bíblíco'», era para várias sociedades uma forma de contato direto com o mundo
divino. Os gregos, os celtas, os muçulmanos, conheciam a embriaguez místi-
ca.'li, e mesmo para os judeus o conceito não era desconhecido», Para eles,
a vinha é o Messias-v, o vinho é conhecimento secretov, é símbolo da restau-
ração da ordem cósmica após o Dilúvio-s'. Enfim, a embriaguez de Noé fora
sagrada, pois a vinha que ele plantou tinha sido levada por Adão do Paraísoô",
judaicas e rara certos Pais da Igreja, a castração de Noé teria sido obra de Canaã, filho de Cam,
este último teria apenas revelado o fato: 1'01. V, pp. ] 91-'192, 11. 6'1; t.os Capitules de kabbi liltczer,
23,/1, p, 175.
19. Schmirr, ojJ. cit., pp. 321-355.
50. N. Bclruonr, Paroles jJar"I7IU!s: Mytbe etfollslore, Paris, Imago,1 9H6, r. 15H.
51. !'vlrJ9, 12.
52. Garin le Loberain, vv. ]9, 20, 23, 26 c 27, cd. A. P. Paris, P:lris, jung-Trcnttcl, 1872. Escrito em fins
cio século XII, aquele texto sem dúvida refletia urna xiruuçâo que não era nova, que se estendia
havia pelo I1H...'1l0:-; um século.
80
aparentada entre si55. Como o casamento implicava sobretudo procriação, e,
através desta, a transmissão de herança, a Igreja passava a regulamentar a
reprodução biológica e social>".
E isso repercutia em todos os níveis. Efetivamente, de um ponto de vista
antropológico, a sociedade feudal era uma rede de parentescos jurídicos e de
parentescos espirituais que aproximava grupos biológicos relativamente dís-
persos. Disso decorria a forte compiementaridade entre as aristocracias ecle-
siástica e bica, esta fornecendo os quadros humanos para aquela, a primeira
legitimando os poderes da segunda. Contudo, os laços de solidariedade não
eram apenas internos às aristocracias, eles existiam no campesinato e mesmo
entre este e as elites, ao contrário de uma luta de classes que pretensamente
seria a única a reger aquelas relações. Assim, ao ampliar e enrijecer os elos
de parentesco ritual, as novas regras matrimoniais desorganizavammomenta-
neamente a sociedade.
Tais questões eram muito concretas para a aristocracia do Poitou, que,
como toda a Cristandade, acompanhava interessada o problema de Filipe I.
Tendo repudiado a esposa estéril para fazer novo casamento, que desse ao
trono francês os herdeiros necessários, o rei foi excomungado pelo papa em
1095 e não pôde participar da Primeira Cruzada. Sobretudo, os nobres do
Poítou especulavam sobre a sorte de seu próprio condado, pois havia uma
única herdeira - Eleonor da Aquitânia, que assumira a direção em 1137 com
a morte do pai - , e as novas regras matrimoniais não facilitariam as soluções
em caso de problema. Também no relato mítico sobre Melusina a questão da
procriação e da herança era central », reflexo da realidade histórica vivida pela
sociedade feudal em geral, inclusive pela poitevina.
O acentuado crescimento populacional da época - os territórios da atual
França teriam passado estimativamente de 7,75 milhões em 1100 para 10,5 mi-
lhões em 120056 - criava sério problema para a aristocracia Iaica. O número
de homens crescia mais rapidamente que a incorporação de novos territórios
à Cristandade. Aguçavam-se as disputas entre as elites eclesiástica e laica pela
apropriação dos frutos do trabalho camponês. A situação era especialmente
tensa na camada inferior da aristocracia guerreira. Como a tradição jurídica
reservava os bens paternos apenas ao primogênito, aos demais filhos não
restavam muitas opções. Eles tentavam viver dignamente ou com parcelas do
53. Como bem observou M. Bloch, ia Sociélé./eot!ale. Paris, Albin Michcl, rccd. 1973, p. 208, "a for(a
da linhagem foi um dos elementos essenciais da sociedade feudal; sua fraqueza relativa explica
que tenha existido () feudalismo".
5~. Sobre a importante questão do casamento para a sociedade feudal, devem-se ver, dentre outros,
G. Duby, t.e Cbeoalter, lafentme et le prêtr«; Paris, t Iuchctrc, 1981; A. Gucrrcau-jalabcrt, "SUl' lcs
srructurcs de parcnté dans l'Luropc médiévalc", /WSC; 36,1981, pp. 1028-1019; J. Goody, Tbe
/)e<,elojJlI/el1l oftbe t-amtlv and Marriag» in liura/H!, Cambridgc, CUP, 1983.
5S. O relato mítico, oral, foi litcrarizado no século XIV por jcan D'Arras, Mélnsin», cd, I.. Stouff,
Genebra, Slatkinc, 197~: Coudrcrrc, I.e NOII/all de MéIIlSil1(!, cd. E. ({oach, Paris, Klincksicck, 1982.
56. C. Mcl.vcdy c I{. joncs, li/ias 0/ Wor/tI Population tttstorv. l Inrmondsworth, I'cnguin, ·1980, p. 87.
81
dote materno ou, mais cornumente, entrando ao serviço de algum senhor, às
vezes o próprio irmão mais velho.
Ingressar no clero era sempre uma alternativa, mas ja não tão interes-
sante quanto antes, pois a Igreja passava a zelar mais pela qualidade espiri-
tual de seus membros, e mesmo a extensão dos beneficia eclesiásticos era
menor diante do crescimento numérico do clero. Por tudo isso o descem-
tentamento latente da camada cavaleiresca vinha à tona com freqüência, geran-
do choques de interesse de seus membros contra a nobreza principesca e os
senhores eclesiásticos. É o que ilustra bem os longos cont1itos da família dos
Lusignan contra o poder condal do Poitou e contra a abadia de Saint-Maixent>".
Ademais, como também ocorriam conflitos entre a elite laica e os mosteiros,
isto é, entre os grandes senhores, os cavaleiros eram inevitavelmente envolvi-
dos, manobrados pelos interesses de um ou outro grupo.
Assim, a grande esperança para eles era um bom casamento. Meta difí-
cil. Os homens núbeis e solteiros - conhecidos independentemente de sua
idade por juvenis, conceito, portanto, não erário, mas social - eram muitos
e tornavam-se um fator de tensão social e de instabilidade polítícax', O suces-
so espetacular de alguns que, saídos da pequena e média aristocracia, alcançavam
riquezas e poder a partir de um casamento conveníentew, apenas ressaltava
a situação marginalizada da maioria. Daí o fenômeno folclórico chamado de
cba riua ri: quando do segundo casamento de um viúvo, os solteiros faziam
uma grande arruaça, com gestos obscenos, palavras agressivas e sobretudo
muito barulho, em protesto pelo fato de continuarem excluídos do mercado
matrimonial devido sua situação socioeconômica
à inferior'v.
A figura de Carn representava para aqueles indivíduos, o protótipo bíbli-
co de sua própria situação. Enquanto algumas tradições viam Sem como primo-
gênito, e outras atribuíam esse posto a jafé, Cam jamais foi colocado nessa
condiçãovt. Dessa forma, através do gesto atribuído a ele no afresco, questio-
nava-se a hierarquia interna do estrato nobiliárquico. Negando a validade cio
preceito bíblico, os nobres secundogênitos perguntavam-se: por que servir ao
irmão mais velho? Negando a comparação eclesiástica Csra-laboratores. a peque-
57. S. Puintcr, "Thc l.ords of I.usignan in thc Elcvcnth and 'I'wclfth Ccnturics", Speculutu, 32,1957, pp.
27-17.
58. G. Duby, "l.cs jcuncs dans Ia sociéré arisrocratique dans '" "rance du Nord-Oucsr au XII" siõclc",
/I/,:~'(,; 19, 1961" pp. 835-816.
59. Para aqueles que observavam o afrcsco no I'oitou de fins do século XII. () grande exemplo era
Guilherme Murcchul, um cavaleiro de origem humilde que "por :-;ClI casamento se tornava, de caçu-
Ia que não possuía nenhum pedaço de terra, um dos homens mais ricos do reino" c IllCS1l10 regente
do trono inglês: I.'llistoire de Gutllaume le Mnrécbul, cd. 1'.Mcycr, (3 vols.), Paris, Rcnouard, 189·1-
]901, vol, 111,p. l.IX.
60. J. I.c Goff c J.-c:. Schmitt (cds.), Le Cbariuari, Paris, Eco'" dcs I lautcs Etudcs cn Scicnccs Socialcs,
1981; C. Gauvard c A. Gokalp.t'l.cs Conduircs de bruir cr lcur significarion " Ia fin du Moycn Age:
Lc Charivari", /I/iS(; 29, 1971, pp. 69:5-7(JII.
61. Ginzbcrg, op. cit., 1'01. v, pp. ]79-180, n. 30.
82
na nobreza procurava apagar da memória social sua própria origem: enquan-
to as grandes famílias nobiliárquicas tinham uma genealogia antiga e conheci-
da, os humildes cavaleiros haviam saído recentemente do campesinato. Negando
a transmissão hereditária das deficiências sociais no seio ela camada dos bel-
fatores - pelo relato bíblico Cam viu a nudez cio pai, mas o amaldiçoado foi
seu filho Canaã - a pequena nobreza cavaleiresca pretendia ser aceita entre
as famílias tradicionais.
Dessa forma o gesto de Cam - antecipando, provocando, seguindo ou
apenas desejando a castração de Noé - corresponclia, no plano pictórico, ~l
situação de um cbariuari. Era um protesto. Com efeito, o afresco estabelecia
uma identidade psicológica entre Carn e a pequena aristocracia. Esta, além de
inferiorizada no plano político e econômico, vivia em um ambiente de tensão
sexual. O crescimento demográfico da época beneficiava sobretudo o seg-
mento feminino da populaçãovt, mas apesar de cercado por maior número de
mulheres os cavaleiros não tinham acesso sexual a elas. A moral da Igreja
impunha o matrimônio, a prática institucional impunha a posse de terras para
constituir família. Assim, às regras e limitações impostas pela Igreja e pelas
práticas feudais, a pequena nobreza opunha, através do gesto, a agressivielade
cio riso. Da mesma forma que poucas décadas depois, para zombar do celiba-
to clerical, do padre simbolicamente andrógino, um mosaico em Monreale, na
Sicília, representava o hidrópico curado por Cristo como um homem gráviclo6.~.
Porém essa válvula de escape para as tensões sociais não se revelava
suficiente. Daí O recurso a um conjunto de convenções que poderia contro-
lar e canalizar melhor os impulsos eróticos do ambiente feudal. É significati-
vo que esse fenômeno sociocultural, conhecido por amor cortesão, tenha
começado exatamente na corte do conde Guilherme de Poitiers, em fins do
século XI. Através da poesia os trovadores sublimavam parte daquela frustra-
ção afetiva, dirigindo seu amor a uma mulher socialmente superior e por isso
inatingível. Mas, para manter aquela "neurose cortesã'v' sob controle, eram
precisos ainda outros exutóríos, como as peregrinações, sobretudo a Cornpostela,
as Cruzadas e a Reconquista ibérica, movimentos que sempre contaram com
bom número de poitevinos.
O gesto de Carn, no entanto, ia muito além disso, pois resultava na mutila-
ção do pai. Ou melhor, na mutilação do senhor feudal. Pela posição que ocupa-
va na famílía patriarcal devido ao nascimento, Cam era perfeitamente compa-
rável a um vassalo. Ora, para a sociedade feudal o pior crime era o de um
vassalo contra seu senhor, o único crime punível com o infamante enforca-
62. V. Isullough c C. Campbcll, "Fcrnalc Longcvity anel Dict in rhc Middlc Age,", Speculum, 21, 1980,
rr· 317-325.
63. H. Zappcri, 1."1 10111 111 e enceint, (trad.), Paris. I'LJF, 1983.
61. 11. Rcy-Flaud, I.a Neurose courtoise, Paris, Navarin, 1983; A. l lauscr. t ttsiárt« Social da t.itercuura
e da !Ir/e, (trad., 2 vols.), S~() Paulo, Mestre jou, 1972, '1'01. I, rr. 296-300.
83
mento'õ. Mesmo assim, revelando o quanto era grande a tensão entre o segmen-
to mais alto e o mais baixo da aristocracia, o afresco insinua um atentado físi-
co contra um senhor feudal, senhor laico, pois apesar dos traços sacerdotais
de Noé, a imagem mostra-o dentro de um castelo e cercado pelos filhos. A
partir disso se torna compreensível a motivação monástica para pintar uma
cena bíblica seguindo fontes folclóricas: no choque de interesses entre potentes
laícos e clero, este buscava apoio dos nobres mais humildes, os cavaleiros.
De fato, apesar de protegida por imunidades vindas dos tempos caro-
língios, a abadia de Saint-Savin, a mais rica da região, não escapava aos efeitos
elo processo de fragmentação dos poderes públicos, que se acentuava desde
princípios do século XI e gerava rivalidades entre seus beneficiá rios, castelões
e mosteiros'v. Naquele contexto, o afresco simpático à causa ela cultura folcló-
rica cavaleíresca, funcionava como contrapeso poesia trovadoresca estimu-
à
lada pelo conde do Poitou. A poesia irradiada pela corte de Poitiers deveria
afirmar a especificidade do poder condal face ~l cultura clerical, duplamente
oposta aos interesses do conde, porque os monges eram seus principais rivais
e porque sobre aquela cultura se apoiava a monarquia capetíngía, que tinha
67. G. Duby, t tistoire de 1(/ France: I.e Mo/em I1ge, Paris, l lachctrc, 1987, rr. 62 c 238.
68. S. l'rcud, I. '1Io11/111e Moise et Ia religion monotbéiste, (rrad.), Paris, Gallimard, 1986, p. 175.
69. Ide11/, p. 168; J. l.aplanchc c J. B. I'ontalis, vocabulatre de 1(/psycbanalvsc, Paris, PUF, 10. cd.,
1990, rr. 71-78.
70. Ginzbcrg, op. cii., 1'01. I, r. 166.
71. K. l lauck, "Pormos de parente artificicllcs dans I<: haut Moycn Age", em Faniille et parenté duns
lOccident méduiuat, Roma, Ecolc I'rançaisc de Romc, 1977, r· 13.
72. BJoch, ojJ. cit., pp. 116-117; 1'. Roussct, "Rcchcrchcs SUl' l'émotlviré i l'époquc romano", CeM, 2,
1959, pr. 53-67.
73. Gn 17, 10-1'1.
85
cidado como sinal de benção divina?". Mas além disso, possivelmente sem ter
consciência do fato, o artista, através daquele detalhe, insistia no tema da cas-
tração. O gesto de Cam e () pênis circuncidado do patriarca eram, nesse sen-
tido, indicações complementares. Freud observou que "a circuncisão é o subs-
tituto simbólico da castração que o pai primitivo tinha outrora infligido a seu
filho, na plenitude de seu poder'<".
Como o complexo de castração está estreitamente ligado ao complexo
de Édipo, pode-se pensar que a violência de Cam para com o pai visava man-
ter a mãe sexualmente íntocada. Os comentários rabínicos dos midrasbim afir-
mavam que" oé tinha por única intenção frutificar, se multiplicar no mundo
e ter primogenitura'?». Mais especificamente, no contexto retratado pelo afres-
co, Cam acreditava que o pai, bêbado, iria procurar a esposa para ter mais
um filho?", Do ponto de vista das questões patrimoníaís, um quarto filho pouco
alteraria a situação do secundogênito Cam, ou dos nobres feudais que se identi-
ficavam com ele. A motivação, portanto, do gesto castrador naquele momen-
to era sobretudo psicológica. Essa situação também era familiar aos nobres
feudais: o primeiro filho homem recebia atenções especiais do pai, e logo que
atingia idade adequada era levado corte do senhor paterno para completar
à
79. Como no caso de Cam, tratava-se de um gesto de desrespeito, de dcrrissão por parte de Lar, a
quem o Midrasb Rabba chama "gozador". 1\ 1, 8, p. 425.
80. Gn 13, 1-12; 11, 12-16, 21r.
81. Cn 18, 22-33; 19, 29.
82. Ginzbcrg, op. cit., 1'01. V, p. 240, n. 171. Para o Midrasb Rabba, 4'1. 7 c 51, 9, mesmo antes do
incesto c independentemente ele estar bêbado l.ot desejava manter relações sexuais COlll as filhas,
1
17. Santo Agostinho, f)e Ciuitnte f)ei, V, 2~, 1'1.~1, cal. 170-171.
18. Ile 7,3,
'19. .I. Tourniac, Melkilset!eq Olf Ia trculition printordialc. Paris, Alhin Michcl, 1983, flP. 1J9-55.
20. A vast;, obra de (i. Dumézil este, comodamente apresentada c sintcriznda em M,l'lbes et clienx eles
indo-européens, cd. 11. Coutau-Bégaric, Paris, Flammarion, '1992.
21. Segundo Robcrto de 'lorigni, Cbroniquc, cd, I.. Dclislc, (2 vols.), Roucn, Brumcnt, 1872-1.873, vol.
11, p. 3~9, os Magos teriam 15, 30 e 60 anos.
22. 11. l.cclcrcq, "Magos", em IMO., \'01. X, col. 991-106'1.
23, M. l'Iissagaray, 1.(/ U;r.;endedes Rois Muges, Paris. Scuil, '1965. fl. 2H; lixccI1J!i0J1('S t'anutn, 1'1.,9'1, col. 511.
2~. t.e t.iure de Marco Polo, cd. A. r Scrstcvcns, Paris, Albin Michcl, 1955, p. H6; 11 Milione, cd, R.
Allulli, Milano, Mondadori, 3. cd. 196'i, p. -12 . .J;í em fins do século 11, Santo lrincu atribuiu um
sentido aos presentes: a mirra ao homem, o ouro ao rei, o incenso a Deus, cf. Aduersus l laereses,
1,111, IX, rc; 7, col. 870-871.
93
Ora, esse duplo caráter, sacerdotal e monárquico, aparecia em Preste
João de duas formas. A primeira, pelo próprio nome da personagem, pois
jean seria deformação fonética, por parte dos colonos francos da Terra Santa,
do título do soberano da Etiópia CZan), que ganhava a condição de padre ao
ser ordenado diácono por ocasião de sua ascensão ao trono->, A segunda, e
bem mais importante, dava-se através da relação mítica entre Preste João e os
Reis Magos. De um lado, a carta descrevia as variadas riquezas do império de
Preste João2ú, que o imaginário medieval logo passou a ver como {) local de
onde provinham o ouro, o incenso e a mirra com que os Magos haviam
presenteado o menino Jesus27. De outro lado, a carta localizava as terras de
Preste João nas vizinhanças do Paraíso Terreno-", e uma antiga tradição dizia
que Adão escondera numa Caverna dos Tesouros o ouro, o incenso e a mirra
que ele trouxera do Paraíso. Além disso, teria sido sobre a montanha daque-
la caverna que aparecera a estrela seguida pelos Magos para levar aqueles
objetos ao Messias recém-nascído>'.
Ficava assim estabelecida uma forte proximidade mítica entre Melquise-
deque-Magos-Cristo-Preste João. O fato de desde fins da época carolíngia se
pensar nos Três Reis como símbolos das três raças humanas representantes
das três partes do mundow correspondia bem ~l imagem daquele soberano ao
qual se atribuía extensos territórios. Foi nesse quadro de tradições orais que
Oto de Freising escreveu sua crônica e nela considerou Preste João descen-
dente dos Magos+'. ão foi um acaso, portanto, que as relíquias dos Magos
tenham sido transferidas de Milão para Colônia, em 1164, pelo imperador
Frederico, sobrinho do bispo de Freising.
Havia claras implicações políticas no gesto do imperador germânico. O
traslado daquelas relíquias para a Alemanha tinha dois significados básicos.
De um lado, vários cronistas da época afirmavam que os corpos dos Magos
tinham sido cedidos pelo imperador bizantino Manuel Comneno a Milãoõ-,
antes de serem transferidos para Colônia. Isto é, graças ao simbolismo contí-
25. Esta hipótese antiga sobre o nome de Preste JO~lO ainda é considerada a melhor por J. Richard,
"L'Extrêmc-Oricnt légcndairc au Moyen Age: Roi David ct Prêtrc jcan", /11II1tI1es d'tithiopie; 2, 1957,
p.230.
26. Der Priesterjobnn nes: Text eles Briefes, n. 21, 22, 21, 33, 3H, ,VI e 65, pp, 9]2, 9H, 915 e 91H. Versão
francesa, cd . jubinal, pp. 357, 36;\, j6/í, ;\66, 367 e 370-371.
27. 1VIt.2,ll.
28. Der Priester fobannes: Text dos Briefes, n. 22, p. 912; cd. jubinal, p. 361.
29. bsa rradicão aparece em vários textos apócrifos, sobretudo numa obra atribuída a São João
Crisóstomo, Opus Imperfcct UIII in Maubaeum, li, I, 1>(,', 56, cal. 637-638; La Caoerna dei Tesori,
20, cd-rrad. A. Battisra e B. Bagatti, Jerusalém, Franciscan Printing Prcss, 1979, p, 15; Testamento
de Adán, 111,7, trad. F. juvicr Marrínez Fcrnándcz, em Díc« Macho e/ alii (dir.), Apôcrtfos dei
Antiguo Testamento, Madrid, Cristiandad,1987, 1'01. V, p. 135.
30. Elissagaray, op. cii., p. 28.
31. Oto de Frcising, o/i. cit., VII, 33, p. 366, concepção que: aparece ainda 110 século XIV cm joão de
Ilildcsheim, t tistoria Triuni Regunt, 31, cd, IVI.Elissagaray, op. cit., pp, 138-110.
32. Elissagal~ly, op. cit., pp, 53-')01.
91
do nas figuras dos Três Reis, o gesto de Frederico ganhava ares de uma verda-
deira translatio imperii do Oriente para o Ocidente. De outro lado, tirar aque-
las relíquias de Milão era afirmar que a cidade rebelde - que não aceitava a?
pretensões imperiais sobre o norte italiano - não poderia continuar a custo-
diar os restos sagrados dos vassalos perfeitos do Rei dos reis~j.
É interessante lembrar que na sua crônica universal o bispo de Freising
narrava a sucessão de impérios que decaíram por falta de harmonia entre o po-
der espiritual e o temporal, mas parava exatamente na ascensão do sobrinho
ao trono. Como se este inaugurasse um novo período na História, o que começou
a ser contado numa nova obra, a pedido do imperador, a Cesta Fridericiõ+. A
morte do bispo interrompeu sua elaboração, mas sobretudo impediu que ele
assistisse aos crescentes choques entre a Igreja e o Império Rornano-Germânico.
Coincidentemente, no mesmo ano do falecimento do bispo de Freising outros
conselheiros moderados, adeptos da Sanefa Romana Res Publica, da harmo-
nia entre Papado e Império, também desapareceram, e Frederico passou a se
cercar de partidários da confrontação'». O Sacrum que passava então a adjeti-
var o Romanurn Irnperium não era apenas uma imagem retórica, mas atribuía
ao imperador o direito de intervir nas questões eclesiásticas.
Como fizera Carlos Magno. Entende-se assim que, ao reunir material míti-
co e simbólico de diversas procedências para fundamentar suas pretensões
políticas, Frederico tenha recorrido também à imagem de seu prestigioso ante-
cessor. Sem dúvida, afirma Robert Folz, "a lembrança de Carlos Magno inspirou
Frederlco em vários níveis"·%, um deles a idéia de preeminência, segundo a
qual o imperador exerceria mais um papel de direção geral do que um poder
universal efetivo. Os demais reinos tinham sua soberania reconhecida, porém
se colocavam sob a proteção do imperador, que teria "o patronato do mundo",
na expressão do bispo de Freisingo". Por isso Frederico designava os monar-
cas europeus de "reis de província"38. Enfim, era a concepção de uma' confe-
deração hierárquica, nos moldes do império de Preste joão, a quem se subor-
dinavam 72 reis39, Idéia importante para Frederico não apenas em relação ao
conjunto da Europa ocidental cristã, mas também aos autonornísmos regionais
alemães, sobretudo no período 1156-1180, o ele Henrique, o Leão, da Baviera.
33. F. Cardini, li Barbarossa: Vila, Trionft e llusioni di Federico t tmperatore, Milão, Mondadori, 1985,
p.219.
31. Oto de l'reising e Rahcwini, Gesta Friderici I ttnpercuoris, cd. B. Simson, em }HGIf ..s:\· kerum
Germanicarunt in l!.~U11/ Scbolarutn, voi. H.
35. Cardini, op. cit., p. 191.
36. R, Folz, Le Souoenir et la légende de Cbarlentagne dans l'empire germanique tnédiéual. Genebra,
Slatkine Reprints, 1973, p. 193.
37. Cbronica, VII, 31, p. 367.
38. Saxo Grammaticus. I, XIV, cd. A. Holdcr-Eggcr, Estrasburgo, 1886, p, 539, apud M. Bloch, Les Rois
tbaumaturges, Paris, Armand CoIin, 1961, p. 193.
39. Der Priesterjobannes.Tcxt des Briefes, n. 9 e 13, p. 910. Na versão francesa são 62 reis: ed. Jubinal,
p.357.
95
Para se ligar a Carlos Magno, Barba-Ruiva fez remontar sua linhagem aos
merovíngíos e aos carolíngíos, e dessa forma ~IS origens míticas, portanto
sagradas, da monarquia francaw. A canonizacão de Carlos Magno colocava-
se na mesma linha: através da sacralízação de seu antecessor ele reforçava a
sua própria sacralidade independentemente dos rituais papais. Tanto que a
canonização se deu por um documento imperial, apesar da existência de um
antipapa sustentado por Frederico e que poderia emitir uma bula a tal respeito.
A cerimônia litúrgica compreendeu a traslação do corpo do santo imperador,
cujo rúrnulo desconLecido teria sido revelado por Deus, marcando a adesão
divina aos projet.ix de Frederico" I. A data da canonização também não foi
deixada ao acaso: 29 de dezembro era a festa de São Davi, antepassado de
Cristo e símbolo de poder sagrado.
Portanto, entre meados de 1164 e fins de 1165, três importantes passos
foram dados na direção do projeto político imperial: o traslado das relíquias
dos Magos, a canonizacão de Carlos Magno e o aparecimento da carta atribuí-
da a Preste JO~lO. Os três eventos se articulavam num jogo de comparações,
interações e projeções entre Preste João e Frederico, Império oriental e Império
ocidental. O império de Preste João, com seus 72 reis, era a imagem do univer-
so, habitado por 72 povos segundo Isidoro de Sevilha''". Alguns anos antes da
ascensão de Frederico ao trono, Honório Augustodunensis, que apesar do
nome era possivelmente alemão, afirmava que a coroa imperial simbolizava
com seu círculo o mundo"). Por sua imagem marcadarnente cristológica, Preste
João não se reportava a ninguém, seu poder derivava diretamente de Deus.
Da mesma maneira 'que a iconografia imperial mostrava Henrique III e sua
esposa coroados por Deus. Como Barba-Ruiva desejava ser visto.
Diante disso tudo, não é surpreendente que a chancelaria imperial tenha
estado possivelmente ligada à redação da carta supostamente escrita por Preste
Joã011. Contudo isso não significa que Frederíco e seus adeptos tenham criado
deliberadamente um mito ou mesmo o tenham manipulado. As manifestações
imaginárias, que se constroem com material da mentalidade, da psicologia
coletiva mais profunda, não são meros reflexos (nem "causas") da realidade
material. As duas instâncias interagern. Se o partido imperial recorreu às
tradições orais sobre o rei-sacerdote oriental, é porque elas respondiam às
necessidades psicológicas do homem de então. Inclusive dos elaboradores do
projeto imperial. Os homens são produto de seu tempo, e só se "inventa" ou
se "acredita" no que é possível para a época inventar OLl acreditar.
10. K. Schmid, ""De Regia Sirpc Waiblingcnsium': Remarques sur Ia conscicncc de sai eles Staufen",
em Fi/mil/e et parenté drtns lOccident Médiéual, Roma, Ecolc Française de Rome, J 977, pp, 49-56.
11. Folz, 01'. eil., p. 212.
42. Isidoro de Sevilha, tittmologias, IX, 2, 2, ccl-trad. J. Oroz kcra c M. Marcos Casqucro, (2 vols.),
Madrid, BAC,1982, p. 712.
13. I Ionório Augusroduncnsis, Gemma /Ini111C1e, 224, 1'1" 172, co1.612.
41. K. F. l lcllcincr, "Prcsrcr john's l.cttcr: A Medieval Utopia", 'Ibe Pboenix, 13, 1959, p. 56; J.-I'. HOllX,
t.es Iixplorateurs au Moveu /Ige, Paris, Seuil 1985, p. 77-79; Cardini, op. cit., p. 253.
96
Pode-se constatar isso em outro plano da utopia, que chamaremos de
eclesiástico. Isto é, uma crítica à Igreja de Roma que desde fins do século XI,
com a Reforma Gregoriana, se monarquizava, se híerarquízava, se dogmatizava.
Crítica que não era feita exclusivamente pelo partido imperial, mas também
por certos setores do laícado e mesmo do clero - por exemplo, a propósito
do celibato eclesiástico, que há um século o Papado tentava impor, mas encon-
trando forte resistência. Também para esses setores da sociedade, o império
de Preste João oferecia um modelo alternativo bastante atraente.
O fato de o governante ser rex et sacerdos, portanto um novo Melqui-
sedeque e um novo Cristo, parecia dispensar a existência de um amplo e orga-
nizado setor eclesiástico à moda ocidental. E mantendo um alto nível moral
naqueles territórios. A carta insiste em que lá não havia nem adultério, nem
mentira, nem avareza, e todos viviam num ambiente de paz">. A própria locali-
zação do império de Preste João indicava a alta qualidade moral e material
de seus territórios. De acordo com uma tradição muito antiga, as regiões mais
belas e melhores seriam as mais próximas do ParaÍso;'G. Mas aquele império
era herético aos olhos da Igreja, pois Preste João era nestorianof". Logo, o jul-
gamento de Roma parecia não corresponder ao julgamento de Deus. Como
interessava a Barba-Ruiva - excomungado em 1160 - ressaltar.
Mas curiosamente, contrariando a tradição que via Preste João e seus
súditos como muito virtuosos, Marco Polo relata um episódio no qual servido-
res de Preste JO~lOrecorreram traição para prender um certo rei e entregá-
à
10 a seu senhor'". Aliás, o mercador veneziano demonstra não ter grande sim-
patia por Preste João, não lamentar a vitória de Gêngis-Khan que culmina com
a morte do rei-sacerdote, narrada secamentet''. Além da admiração de Polo
pelos orientais, entre os quais viveu muitos anos, talvez pesasse o ressenti-
mento do cidadão de uma comuna italiana diante das freqüentes pretensões
germano-imperiaís (que ele percebia calcadas no modelo joânico) sobre o
norte peninsular. Talvez também na sua época, um século após a morte de
Barba-Ruiva, os contatos mais freqüentes dos ocidentais com o Extremo Oriente
15. Der Priestcrjobnnnes: Text des Brtefes, n. 51 e 52, r. 916; cd. Jubinal, pp. 368-369. Em função
disso, "Preste João" teria sido um título atribuído :l diversos reis em diferentes países para desig-
nar um soberano ideal, possuidor de todas as virtudes, scgundo ]. l'ircnnc, t.a 1.p'~e/l("J du "Prêtre
[ean", Estrasburgo, Prcsscs lInivcrsitaircs de Strashourg, 1992.
!J6. Gn 1, JIí-16; Graf, "11 ,'vlirodcl Paradiso Terrestre", em suu, rr. )7-;'7.
!J7. Oro de Freising, Cbronica, VII, 3" 12, p. 365. Para o cronista armênio do século XII, Samucl d'Ani,
ncsroríanos sínos teriam chegado ~l Armênia em 5~)"I, propagando ali suas doutrinas c traduzindo
alguns apócrilos sobre Adâo: "Tcmporum usquc ad Suam Acr.ucm Rario", em ec;, "19, col. 685-686.
Entre esses textos estava a Caverna dos Tesouro .•.•
·, que teria sido escrita no começo do século VI
ror UIll ncstoriano, A. Gôtzc, "Dic Schatzhôhlc. Vcbcrlicfcrung und Qucllcns", e111 Sitzungsbericbte
der 1 teidelbcrgerAleadentie der lfIissenscba./íel1, 1922, rr. 39-91. Talvez o Ocidente atribuísse caráter
ncsroriano ao império de Preste João ror idcnrificá-lo com a terra descrita naquele apócrifo,
-18. Le t.iure de Marco 1'010, cd. T' Scrstcvcns, r. 180; 11Milione, cd. Allulli, rr. 177-'179.
19. Ed. T' Scrstcvcns, r. 12!J; cd. Allulli, p. 9).
97
tenham esvaziado o mito de certos significados que ele tinha no século XII: a
pax mongolica tinha tornado possível o contato direto com as regiões pro-
dutoras de especiarias, dispensando os inúmeros e encarecedores intermediários
do século anterior. Quando, mais tarde, o avanço turco dificultou novamente
os contatos Ocidente-Extremo Oriente, voltou-se a sonhar com o império de
Preste João.
De toda maneira, a caracterização de Preste joão como nestoriano parece
ter resultado da harmonização de dados sobre o nestoríanisrno conhecidos no
Ocidente de então, com uma interpretação específica que a chancelaria impe-
rial fazia daquela doutrina. De um lado, sabia-se que a seita nestoriana, conde-
nada pelo Concílio de Éfeso em 431, tinha sobrevivido no Oriente, pois havia
penetrado na Pérsía desde fins do século v, na Índia no começo do século
seguinte e na China em meados do século VII. Em 1141 os turcos seldjúcidas
foram derrotados pelos khara-khitai provenientes da China, não-cristãos que
no seu avanço tinham incorporado grupos nestorianos. Foi possivelmente de
alguns desses indivíduos que Hugo de Gabala ouviu o relato depois transmi-
tido a Oto de Freising, o que na verdade apenas confirmava para os ociden-
tais a existência de países nestorianos no Oriente.
De outro lado, parece ter ocorrido um interessante reaproveitamento de
idéias anteriores, ortodoxas mas pouco usuais. Os concílios vísigótícos tinham
falado em gemina natura e gemina substantia de Cristo, coerentemente com
o dogma que via Nele una persona, dtiae iiaturae. Mas, potencialmente pro-
blemático, o termo gemina ficou esquecido nos séculos seguintes. Por volta
de 1100, contudo, o autor conhecido por Anônimo Normando referia-se ao
rei como um ser gerninado, humano e divino como Cristo, mas tendo esta
condição pela graça, isto é, por sua unção e sua sagração. Idéias que, segun-
do Kantorowicz, n~IOencontraram eco por pertencerem mais ao passado que
ao futuro daquela época'v. No entanto as estranhas tonalidades nestoríanas
daquela teoria monárquíca ortodoxa devem ter impressionado os ídeólogos
de Frederico, E a idéia foi levada adiante, cruzada com () mito: Preste João,
rei-sacerdote por si próprio e não pela intermediação eclesiástica, era o mode-
lo desejado pelo Hohenstaufen.
Reforçando as qualidades sacerdotais de Preste João, a carta aproveita-
va a antiga tradição segundo a qual o apóstolo Tomás teria evangelízado as
índias. Fato importante, pois aquele apóstolo fora o único que conhecera a
ressurreição do Senhor de dupla forma, pela visão e pelo tato, formulando
um ato de fé pessoal>'. A crença acrítica de Pedro, isto é, da Igreja romana,
opunha-se ~l fé especulatíva e pessoal ele Tomás, postura que sensibilizava o
século XII admirador dos clássicos e revalorizador de um certo racionalismo
mesmo nas questões religiosas. Ademais, estabelecendo uma importante articu-
50. E. Kantorowicz, l.es Deu» corps du roi, (rrad.), Paris, Gallimarcl, 1989, pp. 55-63.
51. t.egenda, 5, prólogo, p, 32.
9S
lação com outros ângulos do mito, havia a crença registrada depois na Legenda
Aurea, segundo a qual Tomás teria hatizado os MagosS2 Nesse quadro, alguns
anos depois da divulgação da carta de Preste João, () belga S~lO Bernardo
Penitente peregrinou até o sepulcro de TomásS5, sem dúvida o exemplo mais
famoso, mas não único, de uma espiritualidade crescente em torno do apósto-
lo da dúvida.
Aparece assim outra razão para a transferência dos corpos santos dos
Magos de Milão para Colônia. Reinaldo de Dassel, chanceler imperial e desde
1159 também arcebispo de Colônia, homem ambicioso e servidor dedicado
do projeto imperial fredericiano, é que parece ter tido a iniciativa da traslação.
Esta redundaria em maior prestígio e riqueza para sua cidade. Se em princí-
pios do século XlI, mesmo antes de receber as relíquias dos Magos, acredita-
va-se que Colônia era a maior cidade alemã graças ~lexistência, ali, de impor-
tantes sanctorum patrocintis'n, a posse daquelas relíquias aumentaria ainda
mais seu prestígio. O silêncio sobre aquela rraslação por parte de alguns cro-
nistas ligados ~lIgreja romana talvez se tenha devido exatamente ao perigoso
fortalecimento daquela sede episcopal.
Roma j{ltinha, desde princípios do século XII, o exemplo de Compostela,
que sob a direção do ambicioso bispo Diego Gelmirez, e graças posse do à
5J. Viii' S. Bcruardi Poenitcntis; 1. 7, em Acttt Sanctorum, uprilis, t. li, Bruxelas, Culrurc CI Civilisation,
rccmpr, 1969, p. 676.
51. Guilherme de Malmcsbury, De G'eslis Hmli/lclllll Anglonun, V, /1, 1'1., 179, col. H;70.
55. CO/,(J1/ica de ,\'(/111(/ Maria de iria, cd. J. Carro Garcia, Compostcla, CS1C-Tnslilulo Padre Sarmicnto
de FSludios (;allegos,195·1, p. 81; 11. Franco júnior, I'ereg,.il/o.,~ MOl/ges e (,'lIerreims: l'cudo-cleri-
calisnto e Hel(~iosid{/de em Casteln l1/edie/.'(/I, São Paulo, l Iucircc, 1990, pp, ílj-89.
'56. tiistona c.onrposudana, lI, 3, 3, rrud. M. Suárcz el J. Campclo, Composrclu, I'OlTO,1950, pp. 2iH-2i9.
57. Annales Colonieusis l\1a.\'ill/i, cd. G. Pcrtz, MC·//.SS, 17, p. 779.
99
gia eram acompanhados por progressos no culto a eles. Um dos primeiros
exemplos de um mistério (peças teatrais que seriam depois muito populares)
sobre os Reis Magos, é de 106058. O número de milagres realizados pela inter-
cessão deles aumentava, muitas orações lhes eram dirigidas, sobretudo escritas
em fitas que se acreditava proteger seus portadores>".
Justamente para combater o projeto imperial de uma República Cristã
não dirigida pela Igreja, é que o papa respondeu ~l carta de PresteIoào somente
depois de Frederico ter sido derrotado em 1176 em Legnano. Apesar de lhe
reconhecer a condição monárquica e sacerdotal, Alexandre III trata Preste joão
da maneira hierárquica convencional, e exorta-o a se converter ao cristianis-
mo romanow. Na mesma linha, no século seguinte franciscanos foram manda-
dos ao Oriente em busca do império mítico para torná-lo um aliado do P"qX:d061.
Ou seja, aquela utopia não era negada pela Igreja, pois esta própria era pro-
duto, mais do que de dogmas e hierarquias, das estruturas mentais de sua
época. O Papado não negava a utopia por se identificar com ela. O império
paradisíaco do rei-sacerdote oriental era, também do ponto de vista eclesiás-
tico, a sociedade ideal. O modelo oriental servia perfeitamente aos propósi-
tos da Igreja, apenas naturalmente depurado de nestorianismo e com o papa
no papel de rei-sacerdote.
Um terceiro aspecto da utopia a ser considerado é o escatológico, muito
vivo naquele contexro de lutas internas no Ocidente cristão e de avanço muçul-
mano sobre os territórios latinos do Oriente Médio. Aliás, o papel mais ime-
diato que se atribuía ao Preste joão era () de um poderoso aliado dos oci-
dentais, o que possibilitaria um ataque aos muçulmanos em duas frentes. Como
a pressão da Pérsia e do Egito islâmicos sobre os Estados cruzados era em
parte compensada pela contrapressão elo soberano cristão da Geórgia, Davi Il
0089-1125), pensou-se nele como sendo Preste João. Isso era reforçado pelo
mito que localizava os povos de Gog e Magog no Cáucaso, aprisionados por
Alexandre Magno, antiga tradíção'i? registrada na primeira metade do século
XII por Honório Augustodunensis'ô e aproveitada pouco mais tarde pela carta
atribuída a Preste JoãoM
SH. I.. Dclislc. "l.c Mystcrc dcs Rois Mages dunx Ia carhédralc de Ncvcrs", /(IIIII(/lIi(/. 11, 1875. pp. 1-2;
veja-se também Hiblio/!J,'l/lIe de l Ecok: rtes Cbanes, 3i, 1H73, pp, 657-65H.
59. Eliss:tgar:ty. ojJ, cit., p. 55.
60. Alexandre 111, "Pis/ol(/". 1322, 1'/.• 200, col, 'I HH-1150.
61. J. Í\'1.POLIY M:irfí. "I.a l.cycnda dcl Prcstc lunn entre los Franciscanos de Ia J'dad Media". Antonlanunt,
20. 19~5, rr. 65-96-
62. A.IC Andcrson, Alexander's Gat«; (,'og anel JI1(/gog, and tbo lncloscd Nations, Cambridgc (Mass.),
Thc Medieval Acndcmy of Amcric.i, 1932. pp. 15-57.
63. l Ionório Augustoduncnsis. Ou lnutgi ne Mil ndi, I, '11. 1'/.• 172. coI.12:1.
()!i. Oer Prtestcrtobannes. Tcxt eles Hrh:r"s. n. 16 e 17, p. 911, t.nrrc as fontes da carta estava a tqnstotr:
Alexanclri stacedouts ad Aristotuletn M((gis/rtllI/ .\111/'" de ttincre SI/O et de Si/I/ lndiae, muito po-
pular na Idade ,Vlédia segundo C. Gnry, Tbc il-/ediC'{){{1 Alexanrler, Cam;)ridgc. Cl Jl', 1956. r. 15;
veja-se também r. 13tJ.
10n
Também neste ponto várias referências míticas se entrecruza vam, acen-
tuando a identificação simbólica entre Frederico e Preste João. O mito do
Imperador dos Últimos Dias, surgido provavelmente no século IV, juntava-se
ao de Carlos Magno cruzado, de fins do século XI<í\ e se projetava em Barba-
Ruiva naquela situação fortemente escatológíca e cruzadística de meados do
século XII. Nesse contexto a canonizacão do imperador carolíngio, os termos
c as comparações da Cesta Friderici e de uma série de outras obras destinadas
a celebrar o Hohenstaufen, claramente pretendiam fazer deste "um novo Carlos
Magno", ou mais exatamente, "fazer reviver Carlos Magno em Frederico 1"66.
Daí a comparação feita pelo bispo de Freising entre Ecbátana - a velha capi-
tal imperial persa conquistada por Alexandre e Preste João - e Aix-la-Chapelle,
a capital imperial ocidental desde Carlos Magn<P.
Este último, como se sabe, era aos olhos ela Idade Média comparado
várias vezes ao Davi bíblico. Ora, mesmo as tradições que imaginavam os
povos do Anticristo em outro local que n~IOo Cáucaso, atribuíam a um descen-
dente de Davi o dever de vigiar os povos impuros fechados atrás de poderosas
portas de ferro. Aliás, o deslocamento geográfico do império mítico deveu-se
em pane a isso, pois além da dinastia Bagrátída da GeórgiaÚ8 também a Zagwe
da Etiópia reivindicava uma origem salomônica'é'. De toda forma, mantinha-
se o caráter escatológico daquele Davi-Alexandre-Carlos Magno-Preste João.
Um elo importante nessa cadeia mítica, e que reforçava a faceta escatológica
da personagem, foi registrado pelo cronista Salimbene de Adam em fins do
século XIII, mas aproveitando material existente cem anos antes: o enigmáti-
co soberano Davi era descendente dos Magos e pretendia ir até o Ocidente
resgatar os corpos de seus ancestrais?".
Frederico Barba-Ruiva, como vimos, estava simbolicamente ligado a todas
aquelas personagens. Mas, enquanto os demais eram de forma geral bem vis-
tos tanto pela cultura vulgar quanto pela erudita, Alexandre Magno era visto
de dupla maneira. Para o imaginário popular, tratava-se de uma personagem
atraente, existindo diversas narrativas que descreviam viagens dele ao Paraíso?".
Para os eclesiásticos, tratava-se de um homem reprovável, cuja morte prema-
tura se devera ~ISsuas falhas moraís'". Talvez por isso, o imperador germâní-
73. N. Coim, Tbc t'ursuit oftbo sl itknrnnn, l.ondrcs. Scckcr and W;IJ·hurg, 1<)';7, pp. 16, 57l: 377.
71. Oro til: I'rcising, ojJ. clt., VIII, [lJ1. 39(H~7.
7~. Tbe 1'1(/.1'ofAnticbrist, cd . .J. Wright, Toronto, Thc I'ontifical l nstitutc "f Medieval Sruclics, 1<)67.
76. Cardini, ojJ. cit .• p. 2W.
77. R. Kôhlcr, "1." Nouvcllc irnlicnnc du I'rêtrc jcan ct de lcmpcrcur l-réclénc ct un r(·cit isianduis".
Rontania, '5, 1876, pp. 76-81.
1112
uma síntese de três personagens: do apóstolo JO~lO, que segundo uma dífun-
(lida lenda não estava morto e preparava a guerra ao Anticristo?"; do rei-sacer-
dote Melquisedeque, que em textos apócrifos judaicos e cristãos primitivos
tinha clara conotação esc ato lógica e estava estreitamente associado a crenças
milenaristas?"; do Último Imperador do Mundo. Não por acaso os franciscanos,
desde o século XIII, saíam em várias missões no Oriente, pois uma tradição
popular falava na crístianização de toda a Terra antecedendo o juízo Final,
daí aqueles pregadores, muitos deles imbuídos de forte espírito joaquimita,
buscarem o império cristão de Preste joão para ter ajuda na sua tarefa. Como
bem percebeu Martin Gosman, "o Preste é a prefiguração tipológica do Cristo.
Seu reino anuncia o do Padre-Rei por excelência'<",
Um último nível de análise a ser considerado é o econômico-social. Aqui
a ansiedade coletiva básica a que o império mítico respondia era o sonho de
uma situação de fartura a qualquer tempo e independentemente da procedência
social do indivíduo. Apesar dos progressos nas técnicas agrícolas desde princí-
pios do século XI, o fantasma da fome não deixara de rondar o Ocidente
cristão. É verdade que os períodos de carestia no século XII não eram tão fre-
qüentes, tão prolongados e tão abrangentes geograficamente quanto antes.
Mas dificilmente se passava um ano sem que algumas regiões fossem vítimas
da escassez. De certa forma, o crescimento populacíonal absorvia boa parte
da produção. Se a qualidade média de vida crescera, o mesmo ocorrera com
as desigualdades entre as regiões e os níveis sociais.
A Alemanha - no sentido de territórios que tinham uma forte unidade
cultural. se bem que não-polítíca - conheceu, entre () século XI e princípios
do XIV, uma taxa de crescimento populacional de mais de 3'YÚ, superior ~l de
outros países europeus'!'. Por isso a pressão dernográfica por novas terras era
grande, o que explica, além da significativa participação gerrnâníca nas Cruzadas
do Oriente Médio, o avanço sobre os territórios eslavos da Europa oriental.
Ademais, o desenvolvimento urbano e comercial do século XII tornava pre-
mente a necessidade de metais preciosos a serem amoedados. Se isso era ver-
dade para as cidades-república italianas, com mais razão o era para os cen-
tros comerciais alemães, mais recentes e de menor tradição mercantil. Ou
seja, também nesse aspecto o império de PresteIoão revelava-se atraente para
os ocidentais.
É interessante lembrar que o Ocidente do século XII, que assistia ao
aparecimento do mito de Preste joão, foi ainda o do surgimento de outros
mitos correlatos. Preste JO~lO, Graal, Cocanha e Virgem Negra eram intercambiá-
veis em diversos aspectos exatamente por responderem a algumas das rnes-
82. \XIolfran von Eschcnbach. Parztuat, trad. E. Tonnclat, (2 vols.), Paris, Auhicr, 1977, \'01. I, pp. 20f;-
209.
85. Chréticn de Troycs, I.e conte clu (;/1/(// (Pcrccual), v, 6208, ccl. F. l.ccoy, (2 vols.), Paris, l Ionoré
Cluuupion, 197'5, \'01. 11,p. 11.
8i. Os trabalhos muis recentes são os de E. Begg, Tbe CI/II oftb« Blaci: Vilgil/, Londres, Arlcana,19Wi,
e S. Cassagncs-Brouqucr. Vieq.~(!snoircs, reg(frd el.!(!,',-ciJl(/lioll. Rodcz, Ed. du Roucrguc, 2. cd.
1990. que contudo pouco ucrcsccnram :t ~.1.Durand-Lcfcbvrc. Etude SI/r l'originc eles Vi<,/g<,sNoircs:
Paris, Durasxié. 19j7.
8'5. Durand-Lcfchvrc, op.cit., p. ·1 '52 e SS.; Ilt:gg, op.cit., p. 108: Cass:lgnes-Brouquct, op.cit., pp. ,12-50
e 20')-235.
86. t'nrziual, cd. cir., \'01. I, p. 1f9, e \'01. 11,p. 337.
101
mas sem dúvida anterior (a palavra é da primeira metade do século XII), tinha
vários pontos de contato com o de Preste João. De fato, a Cocanha era uma
terra de fartura sem limites, existindo nas suas ruas mesas preparadas, cheias
de comidas variadas das quais todos podiam se servir livremente. O rio que
atravessa a região é metade de vinho tinto, metade de vinho branco. Lá as
pessoas são corteses, a vida é uma festa, com quatro Páscoas e quatro Natais
cada ano. Quaresma, apenas uma a cada vinte anos, e mesmo assim nesses
dias come-se carne, além de então chover pudins quentes três vezes por sema-
na. Mas o supremo bem da Cocanha era a fonte da juventude, que possibili-
tava a quem ali se banhasse manter sempre trinta anos de idadetl7.
Ora, o império de Preste João de certa forma sintetizava todo esse imagi-
nário da abundância, fosse agrária, como o Graalss, fosse urbana, como a
Cocanha'", Suas fronteiras estendiam-se do Extremo Oriente ~l Mesopotâmia,
territórios de proverbial riqueza para a comparativamente pobre Europa de
entâo?''. Lá "o leite flui abundante", há muito cereal, couro e tecido'". A prodi-
galidade da natureza manifestava-se mesmo na existência de "todo tipo de
animais" e seres estranhos, com a carta enumerando 28 deles, de elefantes e
panteras a grifos e fênix, de centauros e cinocéfalos a pigmeus e gigantes!)2.
Os rios que nascem no Paraíso levavam até as terras de Preste João metais e
pedras preciosas em enorme quantidade'ô. O neto de Barba-Ruiva, Frederico II,
que teria trocado embaixadas com o rei-sacerdote, teria ganho deste um ele-
fante, uma roupa de pele de salamandra, um elixir da juventude, um anel que
torna a pessoa invisível, pedras preciosas e, mais valioso que tudo, a pedra
filosofal?",
Enfim, aquela era indubitavelmente "a mais rica terra que existe em todo
() 111undo"9S, E a carta supostamente escrita por Preste João não se mostrava
modesta em falar a esse respeito, discorrendo longamente sobre aquelas riquezas.
O palácio do rei-sacerdote, feito de pedras preciosas e cristal - como a Ieru-
87. l.e Fubluur de c.ocogne. vv. 15-<)<) e 153-160, cd. v. Vã'l'iIll:n. NelljJ!Ji!%gisc!Je Mitíeilungen, 18,
19'í7. pp. 22-2/; e 27-28.
SS. 11. l'ranco júnior, Ils Vlo/lias Medtcuats, ojl. cit, pp, 33-38.
B9. .J. l.c Goff, "l.'Uropic médiévulc: l.c Pays de Cocagnc", keun« eJ/J'ojJúellllC! dcs scicnces socinles, 27,
p. 279,1989"
90. a p:lssageJ1l do século XII para XIII, uma escultura de bronze no candelabro da catedral de
l lildcshcim associava a Europa :1 guerra, a África 'I ciência e :1 Ásia :1 riqueza: J.-c. Schmitt e M.
Pastoureau, 1!IIJ'OjJe:Méllloires ('I etnbténtes, P:lris, Fel. de l'I'pargne,1990, pp. 31 e 35.
91. /J('r l'riesterjolmnncs: '1 cx! des Hriejes, n. 21 e 2/i, p. 9"12.
<)2. Idem, n. JIi, p. 910-91"1, n. li2 e 11, pp. 9"15. Ainda nas primeiras décadas do século XIV, Odorico
de Pordcnonc considerava o império de Preste JO;lO "a terra dos pigmeus": t.e \.'())'age e11Asie d u
bienbenreuxjrere Odoric de Porclenone. religicu»: de SaintFmnçois. cd. 11.Cordicr, Paris, Lcroux,
1891, pp. }i5-355.
9.1. Idem, n. 22, p. 912, n. 33, 58, 59, p. 91~ c n. 1ft, p. 915.
9"1. I,. Kantorowicz. 1.'limjlerel/r Flt'{h'ric li, (trad.), Paris, Gallimard, 1987, pp. 186, 287, 299 e 326.
95. t.etuv, cd . jubinal, p. :;57.
105
salém Celeste'v, o palácio de Isolda'? e o castelo paradísiaco visto por São
Brandão98 - era comparado ao que () apóstolo Tomás construíra para o rei
Gondoforoz'. Nele a cada dia comiam 30 mil pessoas, o que dá idéia de seu ta-
manho e ela fartura que ali relnavat?". Ademais, toda aquela riqueza, toda aque-
la beleza, toda aquela paz, eram gozadas plenamente pelos seus habitantes,
pois a fonte da juventude ali existente permitia a quem bebesse de sua água
manter-se sempre com 32 anos de idade!'!'. O próprio Preste joâo, apesar de
seus quase 600 anos, podia continuar a governar com saúde e sabedoria.
Em suma, Preste .João fazia parte de toda uma rede mítica ativada pelas
condições concretas do século XII ocidental. As dificuldades materiais, as
indefinições políticas e as transformações espirituais encontravam .naquele
mito suas possibilidades de superação. Ou seja, aquele era o espaço imagi-
nário privilegiado para a cicatrização das físsuras que cada vez mais dividiam
os cristãos ocidentais em eclesiásticos e leigos, campesinos e citadinos, ricos
e pobres, católicos e hereges, nacionais e estrangeiros. O império de Preste
.João era o mundo ideal de todos. Contudo, para o professor Le Goff a Cocanha
seria "a única verdadeira utopia medieval" 11J1, porque ela teria sido a única
crítica global ~l realidade social da Idade Média. Crítica que CHl uma visão de
mundo coerente e estruturada, abolindo a oposição entre natureza e culturalO·o.
Mas, como vimos, o império de PresreIoão representava igualmente uma
crítica global às estruturas da sociedade feudal. Da mesma forma, naqueles
mítícos territórios coabitavam perfeitamente a natureza (pródiga, exuberante,
cheia de seres humanos, de animais, de árvores e de pedras de todos os tipos)
e a cultura (grandes cidades e palácios, ricos em objetos de metal, de couro,
de tecidos). É verdade que nas terras do rei-sacerdote não existia a permis-
sividade sexual ela Cocanha, porém a ausência total de vícios no império orien-
tal equivalia também a uma crítica à sociedade ocidental. O império ele Preste
joüo significava uma inversão daquela sociedade, ele constituía, tanto quan-
to a Cocanha, uma resposta ~IS necessidades profundas da época. Era uma
utopia que a Cristandade construía para superar suas deficiências, mas era
também uma utopia que contribuía para a construção da Cristandade, à medi-
da que sonhar em grupo ajuda a estabelecer a identidade coletiva desse grupo.
A realidade criava a utopia. A utopia recriava a realidade.
96. Ar 21,11.
97. l.a Folie '/i'iSI(/1I dOxford, \'V. 300-308, cd. J c. I'aycn, Paris. Bordas, 1989, r. 271.
98. Bcncdcir. I.e \{)ragede Saint-Hrcndan, VI'. 1675-1708, cd. I':. l(ul1e, Munique, WilheJlll l'ink, 1977,
rp. 128 c 130.
99. DerL'riesterfobnn nes: Tcxt eles Briefo« n. 56-5H, pp. 9'17-91K; i.ege/ld(/. CIJ). 5, 3, p. 35.
10(). Idem, n. 65, p. 91H.
101. tdeni, n. 2H, p. 913 e n. 81, p. 921. Na versão francesa a ,igua da juventude d.rvu trinta anos a quem
dela bebia; cd. jubínul, pp, :l63-:i6i.
102. I.e Goff, "1.'Utopie médiévalc", pr. 276 e 2R6.
103. Idem, pp. 277-280.
MITO E ORALIDADE
o PODER DA PALAVRA
ADÃO E OS ANIMAIS
NA TAPEÇARIA DE GERONA
1. Gn 2. 19.
2. 1'. Palol, "Une Brodcric carulanc d'époquc romanc: La Gcncsc de Géronc", Cabiers arcbéologtques.
8, 1956, p. 190 e 9, 1957, pp. 218-219; 1'. Palol, tilTapis de Ia Creacion de Ia Catedral de Girona,
Barcelona, Artcstudi, 1986, pp. 70-71 e 151.
no
j, "ln principio Crc.rvit Deus Cclum cr Tcrr.un NI~lrL'cr omni.r Quo(..' in l.lix Sunr Et Vidir Deus Cuncr.i
Que t-cccrat I'r Eranr Valdc 110m", cf. (;11 1, 1-2; 10-12: li!; 20-21: 2+25;)1.
:1:
'I. .1. 1'1:\ Cargol, (,'1!/'()/1II l listúrica, Gcron.i-Madrid, Daim:11I Carlcs, 1'1:1,1 Y'Ío, p. 27 i.
). O poder llltlgico das palavras é "lima dcsr~ls ~lssoci:I~'i)L'sde idéias rào ~Inriga:-;c remontando tão
longe nos .mais (b ra~::I,qlle das bzclll parte do p.urimõnio hereditário do qu:li os próprios indi-
vkluos csrào pouco conscicrucs, tanto ele Se irucgra. por assim dizer, :1 SlI:1 narurt ...·z:I.~' (;. Bcrguer,
"t.a Puissancc du nom. Scs Origines psychologi'llles", Arcbiccs ele psvcbologt«; 25, lYj6, p. j13.
Sobre ~I importância reiigiosa do nome rara \'~írias socícd.rdcs, pode-se ver F. M. Dcnny, "Names
.md Numing", em M. Eliudc (ccl.), 'fZ)(Jlil1cyclojJedi[{ oj'/{e!i8io/l, Ncw York, Macmillan, IYH7, \'01.
10, pp, 300-307.
6. Poeina Babitonico de 1(/ Crcaciún, vv, 7-8, tr:«l. F. 1.. l'cinado c M. C. Cordcro, Madrid, Nacional,
lYH1, p. Y2; M. 11. Trindade l.opcs, Ü l lonunn I~~íj)cjo I!SII[{ I/I{egmçdo 110COSI1IOS, I.isboa, Tcorcma,
lYHY, 1'1'. 17-22 e 76-77.
112
ria implicar submissão da pessoa". Isso ocorrera mesmo com o deus Há, que,
forçado pelas artes mágicas de Ísis, revelara seu nome secreto a ela, que de
simples feiticeira passou então a ser uma poderosa deusa". Entre os gregos,
os heróis mudavam de nome quando um rito iniciático marcava a passagem
para outro estágio de vida, caso por exemplo de jasào, Aquíles e Héracles''.
Mesmo para a filosofia o nome estava ligado à essência da coisa, daí a eti-
mologia ser então considerada reveladora tanto em relação a deuses quanto
a astros ou conceitos morais!".
No judaísmo, segundo a expressão bíblica, "a morte e a vida estão em
poder da língua"!", como demonstra o fato de o universo ter sido criado pela
palavra de Deus. Contudo a expressão mais clara daquele princípio estava no
próprio nome de Deus, tão forte que era impronunciável!". Todos os nomes
divinos eram pode~/sos: "Quem evocar o nome do Senhor será salvo'".'. O
cristianismo, inseri[~~ na mesma estrutura mental, também acreditava no poder
da palavra, sobretudo da palavra de Deus, que é como uma "espada"!", e dos
nomes divinos, qL~ "ienhuma boca de homem deve pronunciar se não esti-
ver em perigo de \.Wa"15. O islamismo aceitava igualmente esse poder mági-
co, sobretudo a corrente sufista, para cujos adeptos o caráter sagrado das
palavras de Alá era tal que elas deveriam ser repetidas independentemente
de o homem compreendê-Ias. Para os celtas, um dos principais heróis da corte
de Artur era Gwrhyr Gwalstawt Ieithoedd, literalmente "intérprete de línguas",
aquele que conhecia todos os idiomas existentes 16
Herdeira de todas essas tradições, a sociedade cristã ocidental também
reservava lugar importante ~l palavra na sua visão de mundo. Ela era conside-
rada criadora, mas também destrutíva, como para egípcios!", judeus 18 e celtas!''.
Mal utilizada, ela poderia levar ao aparecimento do Diabo sob forma animal,
7. G. Conrcnuu, 1.(/ \fie quotidien ne ti Habylone et el1l1s.~r,.ie, Paris, l Iachctrc, 1950, pp. 167-173.
8. E.A. Wallis lludgc, ":"..ljili({ll HeI(<;io/l, Londres, Rourlcdgc anel Kcgan I'aul, rccd, 1'!79, pp. lj7-H 1.
9. J. Souza Brunclâo. Mitologia (;,.<,g(/, (3 vols.), Pctrópolis, Vozes, 1987,1'01. 111,p, 31.
10. Plarão, Cratvle, 383ab,IJOOe-'í08d, Ij09a-110e,111 .:-121 c, cd-rracl. L.l'vléridier, Paris, Bcllcs Lcttrcs,
1931, pp. 4H e 77-107.
11. 1'1'1H, 21.
12. Sobre o nome divino no Anligo Testamento veja-se A.-M. Bcsnard, l.e J1.~)'Sle}'(' clu /10/1/, I'aris, Ccrf,
1962, c na Cabala, S. G. \Vald, Tbe Doctrine of' tbe Diuiue Nante. 1111lntroduction 10 Classical
Kabbalistic 'lbeologv; l.ouvain, l'cctcrs, 19HH.
J:). JI 3, 5.
H. Por exemplo, Ef 6,17; IIb IJ, 12; Ap 1,16.
15. Chréticn de Troycs, Le conte du Graal (Perceual), 1'1'. 6263-6266, cd. 1'. l.ccoy, Paris, l Ionoré
Champion, 1979, 1'01. li, p. lj.
16. Mabinogion, rrad, M. V. Cirlor, Madrid, Nacional, 19H2, p. 198.
17. Trindade l.opcs, op. cit., pp. 7»-81.
18. A. Boudarr, "Malédicrion", em Dictionnaire encvclopédtqu« de 1(/ Hibl«; Turnhour, Brcpols, 19H7,
pp, 773-775.
19. Muircbertacb, [ils cl'tirc, rrad. C. J. Guyonvarc'h, II":\'C; ~8, 19HJ, p, 991.
113
como faziam os hereges de Orleans em princípios do século XI20. Mas pode-
ria também dominar os demônios, como fez S~IOMarcial de Limoges, segun-
do uma hagiografia da mesma época.": conhecedor de todas as línguas, o
santo conjura os anjos maus e força-os a dizerem seus nomes, forma de domi-
ná-Ios e de poder então ordenar que desapareçam para sempre no deserto.
Assim como possuir um nome é existir, conhecer o nome é controlar aquilo
que ele designa. Por isso mesmo, certos objetos recebiam nomes, caso das
espadas de alguns heróis, como Cid, Rolando, Olivier, Turpin, Ganelão, Carlos
Magno e Artur-". Enfim, saber usar as palavras equivalia a lima prática de
poder, por essa razão Deus tinha feito de Moisés um orador o.
O poder da palavra era visto como algo efetivo, daí por que a sociedade
medieval tin ta um vasto campo semântico de violência verbal>'. O modelo
era bíblico, ais a própria Divindade havia amaldiçoado a serpente responsá-
vel pelo pe ado de Adão e Eva25. A maldição de oé sobre Cam era conside-
rada a origei do fenômeno social da escravidão-v. De acordo com essa visão
- apesar de S, o Pedro falar em "bendizer aqueles que te maldizem" e de S~IO
Bento ter recornêndado aos monges "benzer, não maldizer" - a documenta-
ção monástica medieval mostra diversos exemplos de fórmulas de maldição-".
Reconhecendo a eficácia simbólica da palavra e desejando restringir seu uso,
em meados do século XI Pedro Damiano relernbrava as advertências bíblicas
contra o "vício da língua"; de fins do século XII a meados do XIII os teólogos
sistematicamente discutiram, avaliaram e classificaram diversos "pecados da
língua"2H; na segunda metade do século XIII, o poder monárquico recém-forta-
lecido legislava contra a blasfêmia, como fizeram Luís IX na França e Afonso
X em Castela-".
20. Paulo ele Chartrcs, t.iber Aganonis, Vl, 3, em Ccnt ulaire de l'Abbave de Saint-Pêre de Cbartres, cd.
B. Guérard, Paris, Crapclcr, JH10, 1'01. I, p, 112.
21. 1.(/ Vil' de Saint Martial de t.imogos, XV, rrad. C. Paupert, Turnhout , Brcpols, 1991, pp. 69-71.
22. Poema de Mio Cid, cd. I. Michacl, Madrid, Castulin, 1980, vv. 10l0, 2126 e 2575; l.a Cbanson de
Roland, cd. J. Bédicr, Paris, I'iazza, 1928, vv. 316, 926, 988, 1055, \065, 1079, 1120, 1324, 1339,
1363,1162, 1It63, 1550, 1583, lH70, 1953, 2089, 2H3, 2261, 23Wi, 2316,2780, 250l e 2508; Gcoffrcy
de Monmourh, t Itstoire eles rois de Bretagne, 117, rrad, r.. Marhcy-Maillc, Paris, Bcllcs Lctrrcs, 1992,
p.20H.
23. Ex'í.IO-12.
21. Como mostraram recentemente os truhalhos apresentados no colóquio internacional "l.Tnvcctivc
au Moycn Age (Paris, 1-6 fcv. 1993).
25. Gn 3. H-15.
26. Gn 9, 25-27; Santo Agostinho, IJe Ciuiutt« nct, XIX, 15, PI., 11, col. 6{).
27. I..K. l.ittlc, "Formules monastiqucs de malédiction aux IX" ct X" sicclcs", keoue Mabillon, 5H, 1975,
pp. 577-399; "l.a Morphologic dcx malédictions monastiqucs", III!~~'C;31, 1979, pp. 13-60. () mesmo
fenômeno acontecia na Caralunha, como mostrou '''I. Zinuncrrnann, "Lc vocabulairc latiu de Ia
malédiction du IX" au XIIC sicclcs: Consrrucrion d'un discours cscharologiquc", no colóquio cita-
do na nota 21.
28. C. Cusagrandc e S. Vccchio, l.es l'rJcbés de Ia langue, (trad.), Paris, Ccrf, '1991.
29. Legenda, 213, p. 917; l.as Siete Partidas, VII, 28, 1, Madrid, Atlas, 1972, 1'01.111,p. 6H9. Para o Antigo
Testamento a blasfêmia era punida com a morte: 1.1'2'1,16.
lJi!
Bem empregada, como na confissão, a palavra salva. Com exceção de
Graciano, todos os teólogos do século XII consideravam a confissão obriga-
tória, o que o Concílio de Latrão de 1215 regulamentou ao impô-Ia ao menos
anualmente a todo cristão. Apesar de a cultura eclesiástica insistir em que a
confissão deve ser dirigida a um sacerdote, na ausência deste ela podia ser
feita mesmo a um leigo'lO. A necessidade mítica da expiação pela palavra era
mais forte do que as restrições ideológicas. A palavra salva mesmo a posterio-
ri, como nas preces e missas rezadas pelas almas dos morros. Porque a palavra
é poderosa, quando não pronunciada ela se torna perigosa. O silêncio de
Percival, que não fez a pergunta adequada, prolongou os sofrimentos do Rei
Pescador e lle sua terra+'. Misteriosa e ambígua, a palavra estava na base de
tudo. Comoklíssera o próprio Cristo, "por tuas palavras serás justificado e por
tuas palavras serás condenado'w
Segund~'Lombardo, o rito central da transubstancíação ocorre no
momento em que a fórmula litúrgica é pronunciada, ou seja, a transformação
do pão e do -ínho em carne e sangue de Cristo se dá "pela força das palavras",
na expressão de Pedro Comestoru. Entende-se assim por que as idéias de
Berengário de Tours foram condenadas por vários concílios na segunda metade
do século XI. Ao negar a realidade da transubstanciação eao defender a livre
interpretação das Escrituras, ele não apenas ameaçava no essencial a ativida-
de sacerdotal como também contrariava a crença geral no poder mágico das
palavras. Sentido semelhante teve no começo do século seguinte a heresia de
Tanchelm de Antuérpia, para quem a eficácia do sacramento depende da
condição moral de quem o mínístra+t. Nesse quadro mental, os debates teo-
lógicos sobre o norninalismo e o realismo eram a expressão erudita de preo-
cupações e interesses profundos, que tocavam em questões fundamentais para
'0 homem da Idade Média.
30. l'. Vacandard, "Confcssiou't.cm Dlctíonnaire de tbéolouie catboltque, Paris, i.ctouzcy ct Ané, 1938.
\'01. 111-1, col. 875-HH2.
31. t.e contc du Graal, vv, 329'1-3297, 3538-3557 e lí628-1613. \'01. I, pp. i01-105, 1'12 e 1-15.
;\2. Mt 12, 37.
:53. Citados [)or,l.-<:' Schmitt, /.a /({liS011 elos g""les d(/!IS lOcciclent 11/l'dir'I'(/!. Paris. Gallimard, 1990,
[)[). 511-:l-15. Pedro I.omhardo (1095-1"160) c Pcdro Comcsror (1100-117H) nâo foram fontes dire-
tas da tapeçaria, mas testemunham idéi:ts que não eram novas ou exclusivas do Norte europeu.
3,1. Vila Sancti Norberti, XIII, 79, Pt.• 170, col. ] 31].
ao se tornar papa, a pessoa mudava de nome. Por isso também um cristão
não utilizava nomes próprios pagãos55. Por isso, enfim, não se adotava o nome
de Cristo36 O nome é sempre imagem de um modelo.
Nos bestiários do século XII, as iluminuras mostram que ao dar nome
aos animais Adão revela o essencial deles, de acordo com a concepção de
que o nome exprime a natureza da coisa: "A natureza primitiva e a própria
essência das coisas se reconhecem pela etimologia dos nomes que as desig-
nam"}7. Daí a preocupação com a etimologia por parte dos medievais, de
Isidoro de Sevilha no século VII a ]acopo de Varazze no XIII. Ao atribuir nome
aos animais, Adão de certa forma criava-os. Ao sopro de Deus que dera vida
ao homem, cdrrespondla a fala de Adào, espécie de sopro que concretizava
a existência d!)s animais.
De fato,
I
10
poder sagrado e criador do vento era um dado religioso bas-
tante difundido e aparentado ao conceito mítico de pássaro-vento existente
em diversas d~turas, inclusive a hebraica vétero-restamentáría's'. Na tapeçaria
de Gerona, o cfrçLtio da Criação aparece cercado pelos ventos cardeais, qua-
tro figuras aladas de jovens imberbes como () Pantocrator criador representa-
do no centro. Ora, o Adão que fala aos animais está posicionado entre Deus,
de um lado, e o vento austral, de outro. Como eles, o homem é ali um cria-
dor, reina sobre a natureza, pois é a única criatura que possui o dom da palavra.
Um sentido semelhante era atribuído a uma personagem mítica grega
sem dúvida bem conhecida pelos artesãos da tapeçaria, e que de certa forma
se identificava com o Primeiro Homem judaico-cristão: Orfeu. De fato, a iiga-
Ç~LO de Gerona com a cultura antiga está atestada no seu próprio nome, pois
acreditava-se que ela tinha sido fundada pelo mítico Gérion-v. Mais especifica-
mente, como Pere Paiol demonstrou, a cultura clássica "é muito importante
na íconografia do bordado de Gerona"?", Apesar de esse autor não aceitar a
hipótese, algumas vezes a penúltima figura do friso superior da tapeçaria foi
interpretada como sendo Héracles ' I. Ainda que seja difícil de provar, essa idéia
não é absurda, pois para a Idade Média Héracles tinha certo caráter cristão e
35. Essa rr:lrica cultural medieval foi regulamentada no século XVI pelo Concílio de Trcnro, que deter-
minou que rodos lxuizaclos recebessem nome de santo; Dcnny, ojJ. cit .• p. jWi.
36. Dantc Alighicri jamais rimava Cristo com outra palavra que não tosse Cristo, pois LIma rima é uma
espécie de espelho da palavra c certas imagens clcvcrí.uu ser cvitadas: Conunedia. Paraíso XII, 71,
73,75; XIV,lOlJ, 106,10H; XIX.\lH,106. WH; XXXII. H:', 1-1';. 87.
37. E. Gilson, I.{/ Ptnlosopbíe (111 Moven /lge. Paris. Payot, 1962. p. 152;. X Murarova, "Adum donnc
lcurs norns aux unimaux. L'lconographíc de Ia sccnc dans l'art du j\loycn Agl:: l.es Manuscrits eles
lx-stiuircs cnluminés du XIIC cr du XI W siõclcs", em Snuli Mediel'ali. 18.1977. 1'1'. 9:\1-960.
38. T. 11. Gastcr, Mito, Leyencla y Costumbre en "I t.ibro clel ciencsts; (trad.), Barcelona. Barral,I'!73.
1'1'.11-12; L. l.cclcrcq-Max, "Entre Angcs ct démons: l.cs Vents dans l'iconographic médiévalc", em
Annalcs dbistoire de lart ('I darcbéologie, 12, 1990, pr. 31-!t2.
39. Pia Cargol, oj). cit., r. '!.
10. Paiol. li! Topis de I{/ Crcacion. 1'1'. 1!t1-150.
li 1. Iden), p, 2H.
116
mesmo cristológico, e, deste ponto de vista, ao vencer o monstro Gérion ele
de certa maneira combatera o paganismo local+'.
De qualquer forma, o que nos interessa agora é que inegavelmente Orfeu
era bem conhecido dos cristãos, e mesmo de alguns Pais da Igreja que acredi-
tavam na sua existência histórica, caso de São ]ustino, Clemente de Alexandria,
Eusébio e Santo Agostinho-o. A iconografia cristã dos primeiros séculos repre-
sentou diversas vezes a cena na qual uma personagem ambígua, misto de
Orfeu e Adão, domina os animais que o cercam. Tal representação era pos-
sível porque entre aquelas duas figuras míticas havia claros pontos de conta-
to. Por exemplo, assim como Orfeu tinha descido até ao mundo infernal para
não perder sua mulher, Eurídice, morta por uma picada de serpente, também
Adão tinha conscientemente cometido o pecado e deixado o mundo para-
disíaco para poder acompanhar Eva, que, seduzída pela serpente, havia comi-
do o fruto proibldo+'. Mas sem dúvida o ponto comum mais importante esta-
va na voz, na palavra, com a qual tanto um quanto outro dominavam o mundo
natural, sobretudo o mundo animal.
O segundo nível de leitura daquela cena, nível da média duração históri-
ca, era o exegético. Este baseava-se sobretudo em Santo Agostinho, para quem
todas as espécies de animais foram recolhidas na Arca de Noé não tanto para
sua preservação "quanto para representar os diferentes povos por causa do
mistério da Igreja"15. Para ele, "os animais foram realmente apresentados a
Adão para que lhes desse nome, mas esse fato prefígura outra coisa"1G. Em
função dessa interpretação, desde os primeiros tempos a arte cristã preferia
tratar aquela cena de forma alegóríca+'. No século XII foi comum os comentá-
rios exegéticos alegorizarem os animais, cuja existência e significado eram
relacionados ao ser humano-e.
'i2. I'ara A. Toynbcc, /l Studv oft Hstorv. Oxford, Oxford Univcrsity I'ress, '19IJO,vol. VI, r. 'i75, o mito
de Hérculcs foi uma das fontes dos relatos evangélicos. IVI.Simon, l Iercule e/ le cbristianisme,
Esrrasburgo, Univcrsiré de Strasbourg, J 955, pp. 62-63, concorda com isso e lembra que "dentre
as divindades clássicas rouco a rouco reabilitadas pelo pensamento cristão, Ilérculcs conheceu
um sucesso particularmente brilhante" ~como demonstra o fato de ter sido muito representado na
arte medieval" (1'1'. ] 69-173),
/í3. 11. I.eclereq, "Orphéc", em IJ/lU., \'01. XII-2, col. 2736-2737.
11/1. Este mito judaico (R Graves e R. Patai, l.es Mvtbes bébreux, (rrad.), Paris, l'ayard, 1987, r. 93) não
devia ser desconhecido dos clérigos da catedral de Ccrona, em cujo claustro a cena do Pecado
Original adotara uma interpretação rabínica (Miclrasb kabb«. Genese Rabba, xv, 7, trad. B. Maruani
e A. Cohcn-Arazi, Paris, Vcrdicr, 1987, r. 181J) e representara o fruto proibido como sendo um
cacho de uvas.
líS. Oe Ciouate IJei, XVI, 7, 1'1., fJ1, col. I(H5.
/16. IJe Genesi ad t.iueram, IX, 12, 1'1., 31, eol. 100.
1:7. i I. tvlaguire, "Adarn anel rhe Animais: Allegory anel thc Literal Sense in Ear1y Christian Art", em
Oales Papet s, 51,1987, 1'1'. 363-373.
IJu17I!Jm1e!l1
!J8. W. Cizewski, "Bcauty and thc Bcasrs. Allegorical /'oology in Twclfth-ccnrury l lcxacmcral I.itcraturc",
em 11. J. Westra (cd.), Fremi Atbcns /0 Cbartres. Neoplatonism and Medieual Tbougbt. Studies in
f tonou r ofudouardtcan neau, l.cidcn, Ilrill,1992, 1'1'. 289-j()().
117
Contemporaneamente ao bordado de Gerona, Guibert de Nogent 0053-
1124) foi o maior representante daquela corrente, vendo nos pássaros e pei-
xes alegorias das almas, enquanto os animais terrestres representariam a Igreja?".
Para Pedro Abelardo 0079-1142), as aves correspondiam aos celibatários, os
répteis aos casados e os animais terrestres aos que governamv'. A partir disso,
tudo é perfeitamente plausível que os animais fossem vistos na tapeçaria como
alegorias dos diferentes grupos sociais. N~IOé por acaso, portanto, que os ani-
mais aparecem ali individualizados, e não em casais, como fazia de forma
geral a íconografía. Por exemplo, o episódio foi assim representado no afres-
co de Ferentilio em fins do século XlI, assim aparece algumas décadas depois
na cúpula do átrio da catedral de São Marcos de Veneza, ou ainda, em mea-
dos do século XVI, numa tapeçaria flarnenga> I. Reforça essa hipótese o fato
de mesmo os manuscritos bizantinos - um dos quais foi possivelmente o
modelo iconográfico da tapeçaria52 - quase sempre representarem os ani-
mais aos pares.
Dessa forma, a analogia animais-grupos sociais não foi aleatória, e sim
construída sobre o simbolismo atribuído a cada um deles. Mesmo o posício-
namento dos animais parece ter tido ali um significado. Destacados, um pouco
acima dos outros, quase na altura da cabeça do homem, estão um cervo e um
unicórnio, logo abaixo, enfileirados da esquerda para a direita e de um plano
superior para um inferior, aparecem dois cães, um carneiro, um cabrito, um
boi e um cavalo; posicionados atrás de Adão e abaixo dos outros animais,
estão um pequeno cervo e pouco acima dele um dragão-serpentes5. Ou seja,
a estrutura da composição faz com que a leitura da cena ocorra do alto para
baixo, da direita de Ad~IO para a esquerda.
Leitura que segue portanto a hierarquia social, passando elos oratores
para os bellatores, os laboratores, os grupos urbanos e os grupos marginais.
Evidentemente, trata-se aqui apenas de uma hipótese, porém ela nos parece
plausível: a tapeçaria de Gerona era contemporânea das novas estruturas soci-
ais, econômicas e políticas que acompanhavam no Ocidente medieval a implan-
ração do esquema trífuncíonal>". O fato ele inexistir na Catalunha um rei para
19. Moraliunt Genescos, I, Hl-21 , I'/., ·156.col. /iR-51, COIll () que concordava o contemporâneo (c. lW,O-
1123) IIruno de Segni, Expositio in Gcnesnn, ·1, FI., 161, col. 156 C As idéias desse bispo, conse-
lheiro de Vitor 111, Urbano 11 e I'ascoal li. pap"s reformistas. cr.un em runl.·:io disso provavelmente
conhecidos <..'111 Gcrona,
50. tixpositio in lIe ..xaenteron, {'I., 17R, col. 77 I 1).
51. Esta úlrima peça conservada cm t-lorcnça, Galeria dcll'Ac.rdcmia, esr;Í rcproduzida por J. IkluIllcau,
Une t tistoire du paradis, Paris, layard, 1992, prancha 6, entre pp. 16H e 169.
52. I'alol, 1:'1Tapis de Ia Creactõn, pp. 91-100; "Une Brodcric", pp. 195·202.
53. Contudo. devido às caracrcrlsticas artísticas da época, nenhuma idcntilicuçüo pode pretender grande
cxarklão. j , I'ijoan e j. Gudiol, Les Peintures 1I1111nls roma niques ti Catctiu nvrt. Barcelona, 191JiJ,p.
71 (eirado por Paiol, "Une Brodcric", p. 2(2), acreditam ver UIll camelo dentre aqueles animais;
Paiol fala em cavalo, touro. carneiro, cervo!'>,unicórnio c urso ('~LJnL'Broclcric", p. 2(2).
5/i. l.c Gorr," ore SUl' sociéré rripartic, icléologie monarchiquc cr rcnouvcau économiquc dans ia chré-
ticnté du IX" au XW sicclc", em j '11tlI/1 , pp. HO·90.
118
servir de árbitro entre os grupos sociais, não nos deve fazer esquecer a situa-
ção do nordeste ibérico que, devido ~IS necessidades da Reconquista e do
Repovoamento, atribuía ao conde de Barcelona um papel quase monárquico.
Graças ao seu caráter cristológico, a dupla cervo-unicórnio'ó aparece
naquela cena como alegoria das ordens eclesiásticas. Por isso aqueles animais
estão afastados dos demais e se constituem nos pontos intermediários de uma
linha imaginária que vai do livro divino ~l cabeça de Adâo. Reforçam essa idéia
a posição dos olhos do cervo na mesma altura dos olhos do Primeiro Homem
e a ponta do chifre do unicórnio quase encostada no nome "Adarn", borda-
do na legenda. Essa proximidade talvez ainda fizesse referência ~l virgindade
simbolizada pelo unicórnio e que caracterizava o Adão pré-Pecado. Ademais,
para Honório Augustodunensis a coragem de Cristo é comparável à do
unicórnio'v, analogia que deveria sensibilizar os clérigos envolvidos na vio-
lência social contemporânea à confecção do tapete. Como em todo o Ocidente
cristão, também na Catalunha a aristocracia laica procurava apropriar-se dos
frutos do crescimento econômico, e para isso não poupava a Igreja, inclusive
o bispado de Gerona, de suas pressões>".
Talvez por isso aquela aristocracia tenha sido figurada como cão, ani-
mal fiel e caçador (valores importantes para a nobreza feudal), mas também
predador e símbolo demoníaco do ponto de vista clericalv'. Como na Catalunha
da viragem do século XI para o XII existiam duas nobrezas, a de sangue e a
cavaleiresca>", a tapeçaria de Gerona mostra dois cães, posícionados lado a
lado, quase superpostos. O primeiro deles, mais alto, mais próximo da dupla
cervo-unicórnio (da qual está, contudo, separado pela linha que representa
uma espécie de pequena elevação), tem significativamente a mesma cor que
o cervo e que Adão, É a nobreza tradicional. O outro do, em posição um
55. Devido a isso eles eram mesmo frcqücntcmcntc confundidos na Idade Média. cf. A. Maury, Cro)'(/IIWS
ellégendes du Mo)'e" ,1ge, Paris, l Ionoré Chamrion,IH96. r. 260. o cervo é Cristo, dentre outros,
para Rupcrr de Dcutz, De ntoints ((II/dis. VII,15, cd. 11. l laackc, Turnhout, Brcpols, 1967, p. 212,
e rara llugo de Saint-Victor, D« Bestiis, I'/., 177, col. 61. () unicórnio é Cristo para Ambrósio, Justino,
írincu, Tcrtuliano, Orígcncs, Basílio, l lonório Augustodunensis, l.e HOII/(1/1 cl'Alcxan drc (cf. J.-P.
jossuu, l.a l.icorne, bistoirc d'u u couple , Paris, Ccrf, 1985, pr. 22-2'5), para o mais antigo bcstiário
francês, de Philippc de 'l'haon, na primeira metade do século XII (Hesliario Medieval, cd. I.
Malaxcchcvcrria, Madrid, SirucIa, 19B6, pp. H7-HB) e para U111bcsriarío inglês de fins do século
XII (Hcstiairc Asbmolc 1511, rrad. M. 1'. Dupuis e S. I.ouis, I'aris, l'hilippc l.chaud, J988, pr. 61-
62).
56. speculinn ttcclcstae, 1'1., 172, <:01.8/07 A li.
'57. 1'. Ilonnassie, l.a Catalogne du milicu du xe ii Ia ./111du Xt" siécle, (2 vols.), Toulousc, Univcrsiré
de Toulousc-I.c Mirail, ]975, \'01. 11,pp. 537-552 e 636-6/01. O concílio de 106s precisara ameaçar
de cxcomunhâo aqueles que destruíssem ou roubassem propriedades eclesiásticas tSacronnn
Concilioru m NO/J(/('I Amplissinut, ed . .J.-D. Mansi, Vcncza, Antonio Zatta, 177/0, \'01. 19, cânon 12,
col. 1072) e exigir a restituição dos bens (cânon 13, col. 1(72). e ainda, e111fins do século, () con-
cílio de 1097 reunia-se "pro vcckrsiastica libertnte' (r. 20, col. 953-95'0.
58. Maury, op. cil., p. 251.
59. Bonnassic, 01'. cit .. 1'01. 11,pp. 806-808.
119
pouco inferior, tem uma coloração averrnelhada que o aproxima simbolica-
mente do cabrito e do cavalo. É a nobreza recente.
O carneiro e o cabrito eram animais camponeses por excelência. A fecun-
dídade de um e a resistência do outro, ambos muito aproveitadas no plano
econômico, os tornava símbolos naturais da terceira função indo-européia.
Isto é, dos laboratores vigiados e conduzidos pelos seus senhores, como os
cães faziam com carneiros e cabritos. O temperamento mais calmo do primeiro
animal e o mais rebelde do outro talvez fizessem referência à dupla realidade
social do campesinato, dividido, grosso modo, em um vasto grupo que fora
servilizado com o avanço da sociedade feudalGo e outro, bem menor, que ainda
mantinha certa independência. Suas etimologias pareciam confirmar tais carac-
terísticas. O carneiro existia para ser sacrificado Caries derivaria de aras,
altaresvl), pois era um animal medroso como os servos que, na Catalunha,
eram considerados descendentes daqueles que por covardia não tinham ajuda-
do Carlos Magno contra os muçulmanos-é. O cabrito, por sua vez, era visto
como um animal lascivo, impudico, sempre a copular'o. Enfim, caracteriza-
ções negativas comuns na Idade Média, que tendia a animalizar a aparência
e o comportamento dos camponesesv'.
O boi, geralmente associado aos trabalhos agrícolas, pode ter sido visto
como LIma terceira imagem dos laboratores (nesse caso os escravos muçul-
manos), porém mais provavelmente, como no Hortus De/ic ia rit 1J1, como
G5
imagem do povo judeu . Nessa hipótese, sua presença ali estaria expres-
sando o crescimento numérico que a colônia judaica conhecia na Catalunha
a partir do ano mil, com o progresso econômico e urbano'v. E crescimento
também em importância, como demonstra o fato de o concílio de Gerona de
1068 estipular que os judeus deveriam pagar o dizimo sobre os bens com-
prados de crisrãos-". A mesma dupla tendência parecia verificar-se especifi-
camente em Gerona, onde ao longo do século XII existiam muitas lojas de
propriedade deles(k'l, havendo mesmo, pelo menos desde 1160, uma "rua dos
69. D. Romano, "[ucus a b Caralunya Carolingia i dcls Primcrs Cornrcs (876-1 "100)", em E\jJosició
Girona dins Ia lorntacit; de lEuropa Medieval, Gcronu, Ajuntarncnt de Girona, 1985, Pf>- 113-119.
70. 1:/;1II010g1"s, XVII,I, 1j3-~1, vol. I, p. 61; Bcstiaire Asbntole 1511, p. 90.
71. Bonnassic, ojJ. cit., \'01. I, p. 'í95.
72. 11. l.cclcrcq, "Chcval", em /);10., vol. 111-'1,col. 12H6-128\!.
73. l.narrationos inPsnhni, 1-16, 19, 1'1.,37, col. 1912. aprt«! t.cclcrcq, col. 1289.
71. I'!>ys;ologlls, VI, 9-1-1, ccí-rr.«}. 1'. T. t.dcn, l.cidcn, Brill, 1\!72, p.1R; lililllrJlogí(/s, XII, '1, 18, \'01. 11,
p. 60; Bcsticnre Ashmole, p. 68. o mosaico de Otranro (Pugli«, lráliu), posterior de quatro ou cinco
décadas ao bordado de Gcronu, Saran:'s e o cervo cstào lado a lado, também I:' como símbolos
opostos.
7). SI ~2, 2; jcrônimo, Breuiariurn ;11 1~"{/lIIo\ 1j1, Pl., 26. col. 919 AB; Rupcrt de Dcurz, De nioinis
Q!liciis, VII. 9, p. 2:\1.
76. i Iort ns Deliciarum, fól. 25\', cf, Carnes, op. cil., p. !10.
77. Connnentarta in Ctnuica Canticontm. 11, :\86, 1'1., 168, col. 8671\. Este paralelo rói utilizado por
joão Crisóstomo no século lV c repetido durante séculos, are: aos teólogos contemporâneos, scgun-
do ]. M. lliggins, "Thc Myrh of El'e: 'lhc Tcmptrcss", [onrnol oftb« /llIIeriCIIII /lc({c/em)' f!/i<eligi(l1I.
1j~,1976, pp. 63\!-(,~7.
l2l
a dupla cervo-serpente está colocada do lado simbolicamente negativo da
cena, abaixo e à esquerda do homem feito ~I imagem de Deus.
As considerações dos dois níveis anteriores remetem-nos ao terceiro,
pertencente ao contexto local, à curta duração histórica. Nível que podemos
chamar de eclesiástico, pois estava ligado ~I implantação local da Reforma
Gregoriana. Nessa hipótese, é a legitimidade da utilização eclesiástica do poder
da palavra que estaria sendo lembrado iconograficamente. De fato, no momen-
to da confecção e aquisição do tapete, a catedral de Gerona estava fortemente
imbuída do espírito reformista. Já no concílio de 981 o bispo de Gerona e
conde de Besalú, Miro, tinha sido encarregado pelo papa de difundir uma
carta universal contra a simonia. O concílio de Gerona de 106B, presidido pelo
legado papal Hugo de Romans, além de proclamar a Trégua de Deus centrou-
se no combate ~I simonia, ao nicolaísrno e aos casamentos incestuosos?". Para
aplicar essas determinações, o bispo de Gerona, Berenguer Guifré, foi encar-
regado pelo papa de intervir no arcebispado de Narbonne. Outros concílios
reformistas reuniram-se ainda em Gerona em 107B, 1097 e 1143.
Como se sabe, o ponto de partida daquele projeto papal fundava-se na
clara e irreversível separação entre clérigos e leigos, marcada pela veste (bati-
na), pelo corpo (tonsura) e pelo comportamento (celibato)?", E sobretudo, o
que articulava os pontos anteriores, pela reivindicação do uso exclusivo do
poder mágico da palavra, concepção que estava presente na Catalunha medieval
tanto através das "crenças pré-crístãs" do "velhíssimo fundo cultural pré-
romano" da regiãoXU, quanto através da célebre formulação bíblica que atribuía
aos clérigos o poder de ligar e desligar as coisas na terra e no CéU81. Poder
realizado através de ritos e preces, isto é, de gestos e sobretudo de palavras.
Por isso na tapeçaria de Gerona o Adão que dá nome aos animais olha em
direção ao livro aberto que se encontra na mão de Deus.
Ademais, no contexto reformista o idioma utilizado ritualmente, portan-
to magicamente, tornava-se uma das mais importantes fronteiras entre cléri-
gos e leigos. Idioma que era considerado de origem divina, paradisíaca. É ver-
dade que a língua falada por Aclão no Éden teria sido o hebraico, segundo
Santo Agostínho'", Isidoro de Sevilha8j e Rábano Mauro+'. Também para um
apócrífo judeu, do qual existia tradução latina desde o século VI, "a língua da
S5. Ginbilv], 111,2H; XII, 26, trad. I.. 1'1Isdla, em 1'.Sacchi (cd.), Apocrifi tlell'Antico 'lestantento, (2 vols.),
Turim, UTET, 19HI-1989, vol. I, pp. 2,2 e 27S.
H6. 1.11 I'ie de: Saiut starttn), XV, p. 71.
87. Por exemplo, I'edro Damiano, hjJis/olae, VI, ~, 179, 1'1., 11,1, coi. ,7;', e Ilonório Augusroduncnsís,
Genuna Aniniae, 119, FI., 172, col. 59011.
8S. Eclo 19, 19; Sb 10, 1.
H9. Midrasb Rabba, XVII, ;" p. 200.
90. Cf. B. Smallcy, '!ZJeS/UtZI' otHib!« in tbe Midd/e 11,~es,,. cd., Oxford, lIasil'lIlackwcll, 1983, pp, 86
e SS., e 121-12H.
91. t texuemeron, 3, 1'1., 172, coi. 258 C. Para um sermão do século XIII, Adão era t'IO sábio quanto
Noé, Abraâo, Moisés, Davi e Salomào: Gra nt malfist Adant. e.120 ad, cd. 11. Suchicr, Neil11jJl'edi.l5l,
11"lIe, Nicmcycr, lH79, p. 60.
92. Contmedia, I'arabo XIII, 13-;'/í.
93. Paiol, N Tapis, pp. "151-155.
aquele tipo de trabalho artesanal fazia com que ele dependesse estreitamente
de seu comanditário?". Isso ficava reforçado pela posição da tapeçaria, atrás
do altar, fazendo daquela cena um espelho do que os fiéis viam durante a
liturgia: um sacerdote falando e gesticulando para seu público, isto é, forman-
do consciências, salvando almas, dirigindo a sociedade.
Mas, para que a cena fosse assim entendida, a identificação de Adão como
clérigo deveria fazer parte da cultura laica local. Ora, havia pelo menos um
texto não-eclesiástico a tal respeito. Trata-se de um apócrifo cristão então conhe-
cido numa versão latina (atualmente perdida), e desde o século VIII ou IX numa
tradução árabe. Naquela região fortemente habitada por moçárabes (cristãos
culturalmente arabizados), o referido apócrifo deveria ser bem conhecido, fosse
num ou noutro idioma. Segundo aquele texto, antes do pecado Adão via longe,
sua inteligência era muito grande, superior mesmo à dos anjos''>. Expulsos do
Paraíso, o primeiro alimento dos primi parentes foram figos enviados por Deus,
frutas com sabor de "pão e sangue"9ú. Portanto uma espécie de eucaristia, rece-
bida significativamente no octogésimo dia da Expulsão, ou seja, após um duplo
período penitencial de quarenta dias. E depois de terem aprendido a rezar, em
pé, com as mãos para () alto e voltados para oriente?".
Doze dias depois da comunhão, eles fizeram um sacrifício a Deus sobre
um altar que haviam erguido anteriormente e prometeram repetir o rito três
vezes por semana, às quartas, sextas e domíngosw. Mais tarde, 142 dias após
a Expulsão, quando Adão oferecia novo sacrifício a Deus, Satanás o feriu do
lado direito, do qual saiu sangue e água99. Assim, ao mesmo tempo Adão ante-
cipava o Crucificado e o ritual destinado a perpetuar e a celebrar o auto-sacri-
fício da Cruz. Ele era o Primeiro Cristo e o Primeiro Sacerdote. Por isso Isídoro
de Sevilha e Rábano Mauro puderam comparar a imposição de nome aos ani-
mais ~l Ressurreição dos Mortos e ~l Salvação dos Ressuscitadox'v'. Por isso na
tapeçaria de Gerona o Adào colocado em pé diante dos animais, rendo a boca
aberta e o braço direito senti-estendido, possivelmente lembrava aos obser-
vadores um sacerdote que pelas palavras e pelos gestos realiza a líturgía diante
de seus paroquianos. Gesto do Adão-sacerdote que de cerra forma reproduz
o da Divindade colocada no círculo central. Gesto que organiza o caos, gesto
que cria, gesto que estabelece a vida social. Como a Reforma Gregoriana pre-
tendia fazer na Europa cristã.
91. K. Sr.milund, Les Artisans du Moven /Ige, t.cs Brodeurs, (rrad.), Turnhour, Brcpols, 1991, pp. 55 ss.
95. Il Contbattíntento di Aclamo, I{ e 33, ccl-rrucl. A. lIanist:1 e 11. lIag:mi, Jerusalém, Franciscan I'rinting
Prcss, 1982, pp. !to c 91.
96. ldcm. liO, p. 110.
97. Idem, 28, pp. 81; 31, pp. 99; 35, pp. 99; 36, pp.11J1.
9S. Idem, 16, pp. 117-111{; 1ft, pp. 53-55; 1t7, p. l1S.
99. Idem, 17, pp.119-120,cf . .1019, Yí.
lOO. Isidoro de Sevilha, QII(/eSlionesin Vetus "/(·sl(/11/(,I1II./1I/. 111,6, 1'1., 1{3, col. 217; IUbano Mauro, COIII-
1. tat de (,'Uil1g{/I1I()/~ cd. c. Paris, Rontania, H, 1H19, ['['. )0-59; ediçl0 crítica em 1'. M. Tobin, tcs Lais
(/11011.1'/1/eS eles Xli" e/ XffP siédes, Genebra, Droz, 1976, ['['. 127-155; texto original com tradução em
francês moderno em Laisféenques de» Xli" e/ XffF siêdes; cd.-rrad. A. Micha, Paris, Fkuumarion, 1992, pp.
61-103.
2. A palavra parece ser de origem irlandesa, provavelmente de fins do século VIU ou começo do IX,
segundo D'Arhois de jubainvillc, "Lai", Romania, H, 1879, ['. li22. Sobre a clcfiniçâo e as caracterís-
ticas do gênero, veja-se ).-1'. Paycn, Le I.ai nurratl], Turnhout, Brcpols, 1975.
126
contexto de novos interesses políticos e econômícos>. Graças àquele movi-
mento socíocultural, o folclore medieval, oral por definição, pôde sobreviver
na literatura através de textos compostos por "clérigos alimentados de cultura
erudita, em intenção de um público preciso, em um quadro literário preciso:
portanto, necessariamente, o testemunho não é senão um espelho deforrnante.
Todavia os próprios clérigos, tanto quanto seu público nobre, não escapam a
essa cultura popular na qual se resume o imaginário coletivo?".
O outro fenômeno era a literatura cortesã, uma das expressões da "reação
folclórica". Se de um lado ela n~IOdeixou de sofrer certa cristianização (idea-
lização do amor, dama comparada ~l Virgem, amor carnal sublimado etc.), de
outro opunha-se ao processo eclesiástico de sacrarnenralização do matrimônio,
preferindo combater o casamento e erotizar o amor. Por fim, o terceiro ele-
mento era a literatura de visões que, ao narrar contatos humanos com o mundo
supranatural, retomava e fundia a apocalíptica judaico-cristã com relatos bár-
baros, sobretudo célticos e mais especificamente irlandeses>. Contempora-
neamente ao lai que agora nos interessa, gozavam de grande popularidade a
Nauigatio sancti Brendatii e a Visio Tiuigdaii, relatos sobre a trajetória daque-
las personagens ao Outro Mundov.
O autor anônimo, que Iiterarizou a aventura de Guingamor, aproveitou
elementos daquelas três procedências, mantendo-se muito próximo às raízes
orais e laicas do conto que transcrevia. Sua estrutura é simples e pode ser
decomposta em sere panes. No prólogo, () poeta insiste em que vai contar uma
aventura verdadeira, ocorrida outrora, e apresenta o herói, Guingamor, so-
brinho e herdeiro de um rei cujo nome foi esquecido. A seguir, a descrição da
situação inicial mostra a rainha se apaixonando pelo personagem-título, que
a repele por lealdade ao rei e por não se preocupar com o amor. Ofendida e
temendo ser delatada, a rainha desafia Guingamor a caçar o javali branco que
já provocara () desaparecimento de inúmeros cavaleiros. A contragosto o rei
concorda e empresta ao sobrinho sua matilha, seu cão de caça e seu cavalo.
O outro momento da narrativa é o do primeiro contato com o Além: o
herói é acompanhado pela corte até fora da Cidade, ernbrenha-se na floresta,
localiza o javali, persegue-o, atravessa um rio e depara com um rico e belís-
simo castelo desabítado. Perto dele, em uma fonte, encontra uma mulher lindís-
sima que o chama pelo nome e promete entregar-lhe o javali se ele aceitar
sua hospedagem por dois dias. Apaixonado, ele a acompanha até o castelo
7. l.ai de C;1I inga 1lI o1", 1'1'. 275-276, cd. Michu, p. 7H.
128
rei copulava com uma égua branca, depois sacrifícada, e cuja carne era con-
sumida em um festim ritual do qual o rei estava excluído. Entretanto, ele se
banhava em um caldeirão com o caldo que cozinhara o animal, de forma a
reproduzir simbolicamente sua presença no útero (caldeirão) e no líquido
uterino (caldo) tal ato era um renascimento que lhe permitia deixar a condição
humana e se sacralizar".
O segundo elemento a considerar são as fadas. O termo, derivado de
fata, correspondente à Moira grega e ~ISParcas romanas, tornou-se no século
XII designativo de "divindade silvestre ligada a um culto da abundância e da
fertilidade":'. Era uma figura mítica nova, nascida naquele momento, apesar
de os textos entre 1160 e 1220 quase n~IO usarem ainda a palavra!". Mas era
figura original apenas na forma, pois na verdade se tratava de mais uma das
inúmeras hípóstases da Mãe-Terra. A fada de Guingamor, como as dos lais
em geral, lembra uma senhora feudal com sua corte e suas terras, mas sobre-
tudo reconstitui miticarnente uma ordem matriarcal arcaica, diante da ordem
patriarcal expressada pelos romancexl '. A fada, com sua beleza extraordinária,
seduz Guingamor - o que a rainha, apesar de "esguia, elegante e bela"!",
não conseguira - pois oferece uma feminilidade mais atraente, de essência,
permanente. Oferece todo um mundo de riqueza e de eternidade. Ela é a sen-
hora do Outro Mundo, daí ninguém poder capturar o javali branco sem sua
ajuda 1.).
O terceiro elemento, por fim, é o tempo. De um lado, a tradição cristã
concebia um tempo humano e um tempo divino diferentes e isolados. De
outro, se a tradição folclórica também pensava em tempos diferenciados, aceita-
va contudo a possibilidade da passagem, ainda em vida, de um para outro.
Na base dessas concepções estavam a linearidade e a circularidade temporal,
que porém se mesclavam na Idade Média, quando os "cristãos não são, afi-
nal de contas, senão pagãos banzados"!". Dessa forma, dentre muitos outros
exemplos possíveis">, lembremos um do século XII, quando o bispo Maurício
de Sully refere-se a um homem que seguira um pássaro e que ao voltar depois
16. 1'. Meyer, "Lcs Manuscripts des scrmons françaiscs de Mnuricc de Sully", Ronranirt. 5. 1876, pp.
lí66jiH7, transcreve diversas versões daquela narrativa.
17. A. Gruf, "11 Miro dcl Paradiso Terrestre". em Mili, pp. 1'13·115; G. Gano, "I.c Voyage au Paradis: I.a
Christianisation dcs tr:tditions folkloriques ali Moyen Age", I1/iSC; 31, 1979, pp. 929-~H2.
1H. t.ai de (,'lIillgrll1l()/; 1'. '5, p. 61.
19. ldent, 1'. 3, p. 61.
20. Para a mentalidade arcaica, () retorno dcsritu.ilizndo ao mundo profano podia ser rào perigoso
quanto () contato direto com () sagrado. () companheiro afoito de Bran que desceu do barco na
volta tio Além foi pulverizado ao tocar o solo de seu país: I.({ Naoigntlc»: de tsran.Ttls de Fcbal.
65, rrad. C. Cuyonvarc'h. Og(/III, 9, 1957, p. 309.
21. /J.\)'11I b, p. 776. (t importante também o significado simbólico do:t\O de comer, que prende o indi-
víduo ao local em que isso ocorre, como no miro grego de Pcrsétouc. No caso do nosso lai, talvez
a fruta comida por Guingamor tenha sido maçã por assocíação com (IU({! (nome cclra daquela
fruta) e a ilha de Avalon (terra das maçãs, das fadas e dos monos): segundo um poema C0l1te111-
porânco de Chréticn de Troycs - tirei: ct tiuidc, VI'. 1l)Wr·1907. cd. 1\1. Roques, Paris, l lonoré
Cluunpion, 197H, pp. 5H-59 - Guingamor era o senhor daquela ilha mítícu.
22. l.a i de G'lIing({1II0r, \'V. 102·105, p. 6H.
ijO
recusa o amor vassálico que ele lhe deve. Mas não se trata apenas de uma
negação da feudalídade ditada pela fraqueza feminina. O próprio rei, diante
da decisão de Guingamor em partir para a perigosa caçada, lamenta mais a
possível perda de seu cão e de seu cavalo do que a de seu sobrinho. Os inte-
resses luxuriosos da rainha e materiais do rei estavam acima dos laços de
fidelidade, alicerces do feudalismo.
Por isso mesmo. dos vinte cavaleiros que se acreditava terem desapare-
cido na busca do javali, dez estavam no Além, numa decisão que implicara
na rejeição à sociedade feudal por parte deles. Sobre os demais o texto nada
fala, mas fica implícito que haviam morrido na tentativa de passar de um
mundo para o outro. Eles nem mostraram condições de viver entre as fadas,
nem quiseram permanecer entre os homens. Dessa forma, tanto os que chegaram
ao Outro Mundo quanto os que morreram na sua busca, manifestavam a fragi-
lidade, a efernerídade da sociedade feudal, destinada a ser historicamente
ultrapassada. Quando Guingamor pede informações ao carvoeiro que encon-
tra na floresta, ouve não apenas que o rei e sua corte não mais existiam, como
também que os seus castelos "estão há muito tempo todos destruídos'vs. Não
somente a sociedade feudal desaparecera, mas também seus símbolos.
Essa referência aos castelos feudais tinha como contra ponto na narrati-
va o castelo das fadas, sólido, rico, imponente, ainda que à primeira vista pare-
cesse deserto aos desavísados. FI se mostrou que no romance medieval "o
motivo do castelo deserto pode ser considerado como um ponto de cristali-
zação de uma seqüência narrativa que leva ~I libertação":". No caso de
Guingamor, não se tratou da libertação de uma princesa ou de um cavaleiro
aprisionado por monstros ou gigantes, e sim, em uma metáfora facilmente
compreensível para os medievais, de o castelo das fadas ter libertado o herói
das limitações do castelo de onde ele provinha. O castelo das fadas era a liber-
dade que o arrancava da prisão da História. É significativo que a própria me-
mória coletiva da sociedade feudal seja preservada, no lai, através de um car-
voeiro, que relata aqueles fatos a Guingamor e ouve por sua vez as aventuras
vividas pelo herói, permitindo que elas fossem depois registradas e perpetua-
das. O que sobrevivia daquela sociedade aristocrática era apenas uma lembran-
ça, e graças a um elemento socialmente inferior, explorado por ela.
O lai refletia, portamo, as profundas transformações que em fins do sécu-
lo XII prenunciavam a decadência feudal. Mas não podia negar suas ligações
com o mundo feudal. É o que revelam outras passagens do texto, quase que
simétricas àquelas vistas anteriormente. Diante da tentativa de sedução por
parte da rainha, Guingamor insiste em que "vos devo honrar/como esposa do
1. V. Bullough e: C. Campbcll, "Fcmulc l.onge:l'ily and Dict in lhe: Middle:s Ages", Sj)('WIIlIll, 55, 1980,
pp, 317-325.
2. C. Duby, l.es Tois orares 011 linmgtnairc <111
féodutismc, l'nris, Gallimard, 1978, pp. j09-3lU.
3. 1 Cor 11, ;I.
/1. Santo Agostinho, l.a Ciurlacl de Dias, XIX, H, cd.vtrud. S. Santamartu dcl Rio c: M. Fucrtcs l.ancro,
(2 vols.), Madrid, BAC, 1977,1'01. 11, p. )9/1.
Vitry ainda considerava que "entre Adão e Deus no Paraíso não havia senão
uma mulher, mas ela não teve um momento de descanso até conseguir a expul-
são do marido do jardim das delícias e a condenação de Cristo no suplício da
cruz">. Algumas décadas mais tarde, por sua vez, um cronista franciscano, den-
tre os cinco tipos de mando que desgraçariam um homem, colocava em
primeiro lugar o mando das mulheresv.
A realidade social, porém, era outra. As transformações provocadas pela
dinâmica feudal revalorizavarn a mulher, como mostra o desenvolvimento do
culto a Maria e da concepção de amor cortesão. Fenômenos estreitamente li-
gados, pouco nos importa aqui saber se o amor trovadoresco possibilitou ()
amor marianista? ou se este é que gerou aquele". Interessa, isto sim, notar
como em ambos se conjugavam, de forma aparentemente contraditória, a
espírítualização e a erotízação do amor. De um lado, o lamento do trovador
pelo desprezo de sua amada era, em última análise, um louvor sua casti- à
). Citado por E. Powcr, I.es lcnnnes (111 Mo)"ell Age. ÚI~,d.), I':lris. Aubicr, "1979, pp. lH-20.
6. Salimhcnc de Adam, Crontca, cd. O. l Ioldcr-Eggcr, Meill..\:\ ;52, p. 6).
7. A. l Iauscr, t tistôria Social da t.iterat nra e d({ Ar/e, (rrad.), 2 vols., São Paulo. Mestre jou, 2. cci.,
1972, \'01. L, pp. 302-301; LI. I. Marrou, l.es 't'roubadours, Paris. Senil, 197L, p. 176.
8. A. \V. Schlcgcl, vortesungen uetsrr dranuttisbc KIIIISI, I, H, (/Jilld l lauscr, op. cit, p. 302.
9. l.(lIlg(/lIc! lijorn .1011lonc en nuti, cd. fl.1.Riqucr, !.OSTrooadorcs, (3 vols.), Barcelona, Planeta, 1975.
\'01. I, pp.163-166.
10. Legetul«), 181, 6, p. 592; Les I\'el(jjoir!s Nos/ri! Danie. A IJoi!1I/ /ulribntcd /0 Rutebeu], v. 127, cd, T.
I'. Mustanoja, 1lclsinki, Suomalaiscn 't'icdcakurcmí.m Toimituksiu, 1952, p. 50: l.a Deuxiênu: col-
Iecticn: anglo-normcnulc tles ntiracles de Ia Saiu/e Viel:~e e! .1011ongiu«! latin, cd, 11. Kjcllman,
Purix-Llppsala, Champion-Akudcmixku Bokhandcin, 1922, n. 11, 30, -16.
·1·1. M. Eliade, () Mito rio titeruo Retorno, (trad.), Lisboa. Edil,·iks 70, 197H, pp. 12-50.
139
Daí por que na Idade Média a procissão dos rogantes e a bênção da terra
eram vistas como práticas que incrementariam as colheitas da mesma forma
que todos os ritos de fertilidade utilizados pelas sociedades tradicionais. Elas
faziam parte das forças produtivas tanto quanto qualquer instrumento agríco-
la. Naquele contexto mental, a relação homem-mulher lÜO era apenas um
contrato sexo-social, mas trazia em si uma carga mágica que não foi elimina-
da pela clericalização do ato, através do sacramento do matrimônio!". Com
efeito, preocupado desde sua implantação em combater () paganismo oficial,
o cristianismo não levou muito em consideração os antigos resíduos culturais
que a própria civilização romana não absorvera!". Por isso eles puderam reapa-
recer no século XI, paralelamente ~IS grandes manífestações heréticas, como
pane de um movimento anticlerical mais amplo a "reação folclórica".
Apesar disso, claro está, o substrato folclórico continuou a ser filtrado
pela cultura clerical, conquanto que de forma menos rígida que anteriormente.
Essa relativa autonomia dos motivos folclóricos tinha seu terreno privilegia-
do na chamada "matéria da Bretanha", proveniente do imaginário celta, pois
a "matéria de França", ou seja, a das canções de gesta, refletia forte clericali-
zação da cavalaria, enquanto a "matéria antiga", adaptação de temas clássi-
cos, há muito já sofrera uma significativa cristianização. É verdade que mesmo
a rica mitologia céltíca, com sua atmosfera de encantamento e sensualidade,
tinha sido bastante transformada no seu cruzamento com a mitologia cristã,
como o testemunha a literatura do ciclo do rei Artur e seus cavaleiros em
busca do Santo Graal.
Contudo o mito de Tristào e Isolda se manteve menos atingido pelo
processo de clericalização: enquanto La Qtteste dei Saiut Graal faz 9 referên-
cias aos sacramentos ele maneira geral, 16 ~IS virtudes da confissão, 8 às ela
penitência, 31 à missa e 12 ao sinal da cruz!", nada disso existe nas várias ver-
soes de Tristão e Isolda. O eremita que ali aparece - estranha personagem
que compra ricas roupas para Isolda, negocia com o rei Marcos a volta dela
à corte, não impõe nenhuma penitência aos amantes e até aconselha-os a
mentir para evitar escândalo - lembra mais um druida celta que um sacer-
dote cristão.
Assim, para compreender as versões medievais daquele relato mítico,
mais importante do que os dados da cultura erudita é a análise do rico sim-
bolismo presente na cultura Intermediária"? da época. De fato, o ambiente
essencialmente religioso da psicologia coletiva medieval, de aguçada sensibi-
lidade diante das coisas de caráter sagrado, expressava-se através de símho-
los. O sentido literal era considerado pobre, vulgar e até mesmo "indigno de
12. J.-c' Schmirt, "Rcligion populairc ct culturc folkloriqlle", /I/:'S(,', :11,1976, pp. 9;'5-9;'H.
Ij . .J. l.c Goff, "Culturc clériralc ct traditions Iolkloriqucs (blls Ia civilisation mcrovinuicnnc", em 1'11M/I ,
p. 22H, 11. 17.
H. 1.1/ Q//csie dei SI/IIII (,'J'i/(I/, cd. A. l'uuphilcr, Purix, t lonoré Ch.unpíon, 19HO, [utssitn.
15. O .. supra, ensaio n. 1.
110
ser recebido na Escritura tão santa e tão autêntica", como afirmou São Bernardo 16.
O mesmo acontecia, reconhecidamente, com nosso objeto de estudo: "Todas
as forças impulsivas da alma, inclusive a sexualidade, participam da elabora-
ção dos produtos simbólicos" 17. A linguagem simbólica era a única possível
para aquela concepção de mundo caracterizada pela integralidade, pela insepara-
bilidade de suas diferentes esferas, ligadas entre si por analogias simbólicas.
Não poderia ser de outra forma, pois pensava-se que cada coisa terrestre pos-
suía um modelo transcendental, arquetípico: "A'i coisas visíveis são transitó-
rias, as invisíveis, eternas"!", O próprio homem era um símbolo, com a palavra
que o designava, persona, sendo vista como derivada de per se una ("unido
por seus próprios meios"), isto é, criado imagem da tripla pessoa de Deus!v,
à
25. E. Lc Roy l.adurtc, Montaillou, uillaue occitan, Paris, Gallimard, 1975, [1. 265.
26. Rougcmcnt, op. cit., [1. 11H.
27. João de Salisbury, Polvcraticus, VIII, 1"1, 1'1., 199. col. 719_
28_ J. c:. Paycn, "l.ancclot conrrc Tristan: !~lConjuration d'un mythc subvcrsif", em Mél(//Iges Cffens ii
Pierre l.e Gentil, Paris. SEDES-C!)\J, 1973, [1[1. 61 H e 632.
H2
desejo de purificaçâo-". Para Erich Kóhler, na versão cio poeta anglo-norrnando
Thomas, Tristão aparece como uma crítica violenta, uma visão pessimista cio
homem, uma negação cio otimista espírito cortesão. Enquanto neste o amor
é um instrumento de perfeição e nobreza moral, em Tristão não há motivação
social, e em vez de superar a alienação entre indivíduo e sociedade ele a apro-
funda, em vez de reconduzir o herói ao seio da sociedade ele faz com que as
exigências desta o destruamw.
Interpretações deste tipo não levam suficientemente em conta o sim-
bolismo e a religiosidade laicas contidos no mito c nas suas literarizações. É
fundamental considerar que o público a que Tristâo e Isolda se destinava IÚO
era menos religioso por ser laico, mas apenas de uma sensibilidade diversa
da eclesiásticaõ '. Na realidade, como veremos, Tristão e Isolda fundem o amor
profano no sagrado, porém isso só pode ser percebido através da análise da
linguagem simbólica, que nos revela () subsrrato espiritual comum à mitolo-
gia céltica e ao cristianismo, pois "o simbolismo é a expressão estética da par-
ticipação onrológica'w. Assim, por exemplo, aquilo que ~l primeira vista parece
ser perjúrio era tão-somente desrespeito a um formalismo social. As falsas
garantias de inocência não partiam dos amantes, pois, como apaixonados
entregues totalmente ao seu amor, eles estavam literalmente em éktasls, isto
é, "fora ele si":i5.
Portanto não eram eles, no sentido da essência de suas almas, que juravam
falso. Tanto no episódio conhecido por "juramento ambíguo" quanto no de
Tristão disfarçado de louco, a ação foi determinada pela necessidade gerada
pelo amor, de maneira que quem agia socialmente, diante da corte, não eram
eles próprios, cujas essências permaneciam intocadas. Por isso mesmo, num
desses momentos em que Tristão está dissimulado em mendigo para poder
ver Isokla, ele não foi reconhecido por ela, mas apenas por seu cão:ii. C01110
para a tradição celta esse animal é psícopornpo, ou seja, transportador de
29 . .J. I(ih;rrd, t.c i\/(~)·e/l /Ige: t.iüératur« et symboiisme. I',u·i", l lonoré Ch.trnpion, 19Hi, pp. 9S. 'I Ir l-I /í2
c "I'i7-'I·'10.
30. !~.!-.:ühicr "li Sistema
1 Sociologico dei ROIll:IIlI.O Fr.mccxc Mcdicv.ilc". A/edioeuo !<0l1Uf1lZ0, 3~ 1976,
pp. )}1-335.
31. As versões do miro utilizadas neste estudo foram: a) Béroui, Tristan ('I Ysettt; b) Thomas, Trista it
('I 1:'('1/1; c) as anônimas l.a Foh« de Beru« e /.lI Folic Tristnn de Oxforcl, todas editadas por]. Ch.
I';rl'en, Paris, Garnicr, 1971; cl) Gorrfricd von Srrassburg, Tristan e tsoida, rrad. B. Dictz, Madrid,
Nacional, -19R2.Algumas vezes recorremos ainda ~lS rcconsriruiçõcs tcnrndas a partir de diversos
h·;rgmentos por joscph Bédicr, t.e R0l71l1l1de Tristan et tseut, Paris, Union (;énérale dÉditions, rccd.
1981; e por René l.ouis, Tristn n et lseut, Paris, l.ibrniric Cénérale l'rançaisc, .1972 ttr.rd., Lisboa,
Europa-Amóric.r, '1975, pcl.: qual citamos), O fato de mesclarmos ess,rs diferentes verse)es na nossa
argumenta<;Jo fundamenta-se na idéia proposta por C. l.évi-Straus». - IIl1lbmjl%gie structurate.
I',rris, I'lon, I 95H, p. 252 e sobretudo Jl/ylb/l//I.~itJl/("s (~ vols.), Paris. I'lon,196n-1975 - pura quem
não existem vcrsõc» boas ou mús de um miro, pois sua cssl'n('i~t "L'st~Í na his[()ria que ck; conta",
:;2. !'. de Hruyrtc, I. "!:"sl"dliqlle tI/I Jl/o)"(,/l Age, l.ouvuin, Instítul Supéricur de I'hílosophie, 19''Í7, p. 95.
33. Plurão jú observara que "n~io existe juramento amoroso": Banquet«, H)3h, trnd. L. Gil, em Obras
C/I/llfiíellls, Madrid. Aguilar, '1972, p. 571.
:li. I.lI Folie de Bernc. VI'. 51O-51J2.
113
almas, somente ele poderia ver Tristão em seu âmago. Reforçando esse ponto
de vista, noutra versão literária do mito aparece um cão que não precisava
comer ou beber e que era proveniente da ilha de Avalon, o repouso celta dos
rnortosõ>. Em suma, Tristão e Isolda, mudados pelo amor, faziam aqueles jura-
mentos sem má intenção, sem culpa no coração. Ao se despedir de sua amada,
dirigindo-se para () estrangeiro, o último pedido de Tristão, relembrando o
que eles consideravam a essência de sua relação, foi: "Conservar em vossa
memória quão puro foi nosso a111or"56.
Daí por que Deus, isto é, () próprio Amor, inúmeras vezes protegeu os
amantesõ". O caso mais célebre, fornecido pela versão de Gottfried von
Strassburg, é o da cena de ordálio na qual, apesar de um juramento de duplo
sentido, malicioso, Isolda saiu ilesa ao segurar o ferro em brasa, provando
assim sua inocência-s'. Coerentemente com essa idéia de que os amantes não
cometiam perjúrio perante Deus, os nobres cortesãos que instigavam o rei
contra eles eram chamados de traídoresw, quando na verdade, pelo costume
feudal, estavam sendo fiéis ao zelar pelo interesse de seu senhor. No mesmo
sentido, a personagem que, procurando agradar Marcos, vigiava os amantes,
dificultando seus encontros, não podia ser, segundo o poeta, senão um "instru-
mento do demônio"!".
Assim, é importante tentar uma interpretação que leve em conta a
espiritualidade profunda (e não apenas da elite eclesiástica) do século XII. Ou
seja, lima explicação que considere a emergência de elementos pré-cristãos
reaproveitados pelo cristianismo da Idade Média Central. Deste ponto de vista,
por exemplo, vemos que na versão de Béroul () amor de Tristâo e Isolda não
os afasta de Deus - pelo contrário, já que Ele é Amor e lÚO importam os
caminhos para atingi-Io. Dessa forma negava-se o caráter pecaminoso da
relação extramatrirnonial, valorizando-se apenas a intenção, a sinceridade do
sentimento, de acordo com a postura menos formalista da época e sobre a
qual insiste particularmente Gottfried" i. Atitude, aliás, presente na religiosida-
de popular, que via muitos milagres da Virgem beneficiarem pessoas que ha-
viam pecado, mas que lhe tinham uma devoção genufna't-.
No mito de Artur, a rainha Guenievre é a Soberania, a Prostituta Sagrada
que busca o melhor guerreiro, no caso Lancelot, já que o rei, pela tradição
celta, não combate, não é ação, mas equtlíbrío+'. Ora, o mesmo se aplica a
~1I10 Arrur coloca a rainha nua num banco alto, perguntando se alguém conhecia mulher mais bela,
dando-se assim um dos modos do exercício do poder real: C. Marchcllo-Nizia, "Amour courtois,
sociéré masculino ct figures de pouvoir", /I/IS(,: 36, 19~1'1, p. 9RO.
IJ/j. Pela filiação marrtlincar cclru, o sobrinho pelo lado da mãe vinha em primeiro lugar na linha
succssória, antes mesmo que o filho do sucedido: Markulc, cit., p. 265; M. Dillon e N. K.
O/I.
77. Béroul, v. 1883; 11. e L. Marin, "Croix ruralcs cr sacralísarion de l'cspacc", em Arcbiues de SCiel1(X,\'
to de madeira já corrada-", isto é, ~IS forças da natureza. Foi num local de culto
a essa deusa-santa, superficialmente cristianizada, que o rei Marcos ergueu
uma capela dedícada ~l Virgern'", completando na órbita do mundo celta a
assimilação de Maria às Grandes Mães pré-cristãs.
Por tudo isso, o culto da Virgem teve terreno favorável entre os celtas,
que sempre haviam colocado o princípio feminino no mesmo plano do mascu-
lino. Em função disso, já se disse mesmo, com certo exagero, que nos seus
aspectos populares aquele culto é de origem celta?", É verdade que na Bretanha
a estatuáría representava com freqüência a Virgem, o Filho e Ana, tríade corres-
pondente ~IS Três Matronas gaulesas, coerentemente com as muitas hipóstases
celtas da Deusa-Mãe'". Exilado na Bretanha, Tristão recorda-se de Isolda e das
coisas ligadas a ela montando a chamada Sala das Imagens?», uma gruta que
decorou corri diversas estátuas, com as quais conversava e passava várias horas
por dia. A mais importante delas naturalmente era a de Isolda, representada
à semelhança das imagens de santas, com coroa, cetro e o anel que ela lhe
dera. Mais expressiva ainda era uma pequena cavidade na boca da escultura,
onde era colocado perfume que se espalhava por todo o ambiente, como se
fazia em algumas estátuas da Virgem?", lembrando que dela emanam "odores
de flores matutínas'v''.
Também a linguagem utilizada em relação a Isolda reforça essa idéia,
seguindo de perto os textos marianistas da época. A rainha da Cornualha,
como a rainha dos céus, é um "prodígio deste mundo"?". Mais ainda, ela "é
luminosa e brilhante, tão pura como o ouro da Arábia", por isso "quem con-
temple Isolda sentirá purificar-se tanto seu coração como seu espírito". Depois,
acentuando o paralelo, o mesmo poeta afirma que da é exer.iplo de humil-
dade e "a seu lado nenhuma mulher se vê humilhada eu diminuída em seu
valor, C01110 se poderia estar tentado a pensar". Na verdade Isokla, assim como
109. G. Duby, l.es Trois ordrcs, pp. lltl-151; .I. l.c Goff, 1.(/ Cioilisatton de I 'Occident médtéual, Paris,
Arrhaud, 1967, p, 210,
110. Paraíso XXXIII, 67" 121.
«iI1l111C'di(/.
J 11. J.
E. Cirlor, Diccionario de Símbolos, Barcelona, Labor, -i.cd., 19H1, p. 77. Sobre essas associações,
veja-se sobretudo Brossc, op. cit, pp.110-152, 167-179.91-95,152-1")6.
112. M. Eliadc, 'tratado d« t ttstária elas Neligi(jes, (trad.) , Lisboa, COSI110S, 1977, pp. 311-315.
115. Jz 9, 12.
u-; Is 5. 7.
115. Jo 1"), t.s.
116. O.\)"IIlb, p. 1(1).
153
entronizado entre cachos de uvas, como aquele deus helênicol!". De forma
significativa, tal milagre ocorreu durante uma festa de casamento, isto é, na
comemoração propiciatória da Iecundidade de um novo casal. Em função da
embriaguez que provoca, () vinho, nas tradições serníticas, era símbolo de co-
nhecimento e de iniciaçâo '!", por isso não poderia faltar naquele momento.
Em razão disso, mesmo lembrando que "minha hora ainda não chegou'T'",
ou seja, a de demarrar seu sangue, o vinho do mundo, Cristo transformou a
água em vinho, água da vida.
Portanto o arquétipo Cristo, divindade que morre e ressuscita, estava
profundamente relacionado com as forças da natureza, da fecundídade. Da
mesma maneira que Osíris renasce todo ano nos cereaist-", Cristo o faz no
pão, pois Ele é o "pão da vida"121. Logo, por coerência com a lógica interna
do pensamento mítico, também Cristo deveria ser filho-amante da terra, isto
é, da Virgem. E a própria videira era um dos elementos dessa relação, já que,
segundo Eliade, primitivamente a Deusa-Mãe era chamada de "Deusa tronco
de vldeira'T". Ademais, há uma estreita ligação no pensamento místico entre
o leite materno e o vinhot-". Como as demais divindades que morrem e ressus-
citam, Cristo associava-se ao Sol pelo simbolismo do ressurgimento, da imor-
talidade e da luz. Sendo o Solo centro do céu, como o coração é o centro
do ser, e sendo o coração uma vinha segundo o texto bíblicot-+, os dois sím-
bolos fundiam-se em Cristo. Logo, duplo caráter do morrer e renascer, fazen-
do de Cristo uma divindade ctônico-celeste que na mitologia celta aparecia
sob a forma de uma tríade. Esses deuses eram o filho da aveleira, o filho do
arado, o filho do So1125.
Ora, Tristão encarnava aquela tríade, e assim () próprio Cristo. Ele mesmo,
como vimos, comparava-se a uma aveleira, árvore de claro significado sim-
bólico para celtas e germanos. De um lado, a aveleira expressava o desen-
volvimento da experiência mística, com a vara feita de sua madeira sendo
atributo druídíco e instrumento de feiticeiros, que a utilizavam para localizar
mananciais e minérios no ventre da Mãe-Terra. Estava assim ligada à fertili-
dade, e por tal motivo associada aos ritos nupciais. Por outro lado, enquanto
árvore no seu significado mais amplo, a aveleira evocava a verticalídade, a
ascensão para o céu. Lembrava o caráter cíclico da natureza, a morte e a rege-
neração periódicas. Ligando os três níveis, subterrâneo com as raizes, terrestre
com o tronco, celeste com a copa, toda árvore vincula-se ao simbolismo da
117. A. Romano de Sant'anna, () Canibalismo Amoroso. Sâo Paulo, Bruxilicnsc, "19H1, p. 27H.
118. m)'l1/b, [l.1016.
119. Jo 2, /1.
120. 11.lrankforr, Re)'s,l' Dioses, (trnd.), Madrid, Alíanza, 1'.18;;, p. 207.
J 21 . ./0 6, ;;5.
122. Eliadc, op. cit., p. 31J-i.
123. (;. Durand, 1.(/.1'tistntcturas Antropológicas de to III/(/gil1C11'io, (trad.), Madrid, Taurus, 198], p. 2!J8.
12/1. Ct 1, 6.
125. Powcll, ojJ. cit., p. 12'.1.
15/1
cruz. Orígenes via Cristo, por metonímia, tornado árvore do mundo, enquan-
to São Boaventura afirmava que "a cruz é uma árvore de perfeição; sacrali-
zada pelo sangue de Cristo, é farta de todos os frutos"126.
Tristão ligava-se ainda ao arado, instrumento de civilização, pelo episó-
dio da destruição do dragão127. Enquanto o simbolismo clerical procurava
identificar aquele monstro ao Diabo, as tradições folclóricas atribuíam-lhe um
caráter ambíguo, de forças incontroladas da natureza '>'. Isto é, a vitória sobre
ele representava a submissão daquelas forças, portanto um feito civilizacional,
coerente inclusive com o significado da videira, planta cultivada pelo homem
e que não se desenvolve bem espontaneamente. Reuniam-se assim nas ver-
sões literárias do mito duas vertentes do século XII. De um lado, na tradição
celta o arado participava do simbolismo do começo do mundo, com a relha
lembrando o falo ao penetrar a terra, ao abrir um sulco análogo ao órgão se-
xual feminino. De outro, na tradição cristã a madeira e o ferro com os quais
era feito o arado simbolizavam a união das duas naturezas de Cristol-".
Por fim Tristão, pela força, pela beleza, pelos cabelos loiros 150, vincula-
va-se ao Sol. Ao saber de sua morte, Isolda voltou-se para o Oriente, local do
ressurgimento diário do Sol, dirigindo seus lamentos diretamente ao amado,
como que a esperar que ele ali reaparecesse 1:$1.Por isso Marcos, ao encon-
trar os amantes dormindo na floresta, cobriu - com uma luva, insígnia de
poder, nas versões de Béroul e das Palies, com folhas e flores na de Gottfried
- um raio de sol que tocava o rosto de Isolda, iluminando-o e tornando-o
mais belo. O marido se interpunha dessa forma entre os apaixonados, corta-
va a luz que os aproximava, a mesma luz que no pensamento cristão unia
Cristo e Maria e na concepção celta o Sol e a t1oresta. Não por acaso, pouco
depois daquele episódio cessou o efeito do filtro mágico. Em síntese, a tríade
divina aveleira-arado-Sol estava presente simbolicamente tanto na cultura célti-
ca quanto na cristã. Por essa razão, ao se identificar com uma, automatica-
mente a imagem de Tristão se identificava com a outra, tornando possível afir-
mannos que ele era uma hípóstase de Cristo.
Na verdade, tal papel se revelara desde o nascimento, com sua mãe
Brancaflor sendo aproximada figura da Virgem. De um lado, por seu nome
à
denotar pureza, de outro por ela ser descrita - como era comum em apolo-
gias rnarianistas - como inspiradora de devoção, levando todos a terem "em
maior consideração as mulheres" graças àquele "prodígio terreno" 1.'12A analo-
gia com a descrição que se fazia de Isolda é clara e não deve causar estranhe-
Anu (céu) e Ninhursag (terra), que engendraram Enlil, que ao se unir à sua
mãe formou a vida vegetal e animal. A manutenção dessa vida dava-se através
de outra hierogamia, entre a Mãe-Terra e seu filho Tarnmuz, () jovem rei que
morria e ressuscitava para benefício dos homens ao agir sobre o ciclo da vege-
tação. O mesmo esquema existia na região sírio-palestina e sobreviveu por
muito tempo, mesmo depois da introdução do monoteísmo judaico. Sua pre-
sença é igualmente atestada nas culturas da Ásia Menor e da área egeu-
cretense 15'j. Ainda da mesma maneira, na concepção grega os deuses surgi-
ram da hierogamia entre o casal primordial, Gaia (terra) e Urano Ccéu)lltlJ.
Enraízadas portanto na mentalidade, na longuíssima duração, tais con-
cepções não poderiam deixar de estar presentes no cristianismo desde suas
origens. A Virgem, como sabemos, é a terra, o princípio feminino, que foi
fecundada pelo poder celeste, masculino, do Espírito Santo. Assim, Maria é
mãe-esposa de Deus, repetindo o protótipo hierogârnico pelo qual Deus quer
se renovar no mistério das núpcias celestes, como ocorria no caso egípcio.
Para tanto foi escolhida uma virgem, vaso puro para o futuro nascimento de
Deus. Contudo ela se afastava assim da humanidade, cuja característica é o
Pecado Original, ganhando então aspecto divino, estabelecendo-se a identida-
de entre Mãe e Filho atestada em diversas mitologias. Isto é, para gerar um
Deus do Deus, ela deveria ser pura como Ele. Nesse sentido, já nos séculos
III-IV um texto fala de como Cristo dirigiu-se a um monte (símbolo ele ascen-
S~lO mística), produziu uma mulher, tirando-a de seu próprio flanco, e uniu-
se carnalmente a ela. Ao fazê-lo, Ele era concebido como segundo Adão e
ela, alegoricamente, como a Igreja, sua esposa 1ft 1
Também entre os ceitas a renovação da fecunc.lidade, e por conseguinte
a manutenção do equilíbrio universal, dava-se através de um casamento sagra-
do, entre o deus Dagda e a deusa Morrigan 112. Assim, é natural que os persona-
H3. Ar 21,2.18.
H'Í. 1.(/ Folie de Berne, \'V. 528-5'Í2.
115. Gortfricd, r. 21H.
\'1'. 300-308; t.a t-olte de Bcrnc. \'1'. 166-169.
116. 1.(/ l-olie dOxford,
I~7. Cotrfricd, p. 235.
H8. A. Vauchcz, t.a Sptrit uahté <111 Moveu /Ige occidental, I'"ris, I'lJF, 1975, rp. 159-·160.
15H
co: "Isolda, minha amada, minha amiga, em vós minha morte, em vós minha
vida" 119. Por isso, na hora da partida de Tristão para o exílio, para a separa-
ção terrena, Isolda lembra ao amado que tinham formado um só coração e
que "assim continuará sendo eternamente, e durará pelos séculos dos sécu-
los". A união mística é completa, Isolda acrescenta, pois "somos um só corpo
e uma só vida ['..l Tristão e Isolda, vós e eu, ambos somos para a eternidade
um só ser, sem diferença alguma'">".
A antecipação dessa união celeste e eterna ocorreu na Gruta do Amor,
símbolo fundamental, representando a volta ~ISorigens, ao útero da Grande
Mãe, mas também um novo início enquanto gruta da Natividade de Cristo.
Antecipação que é uma regressão, ou melhor, uma re-atualizaçào do gesto
primordial que se projetava no futuro. A realização da dialética hierogârnica.
Um eterno retorno. Essa gruta é descrita na versão de Gottfried von Strassburg
como uma catedral gótica nos seus vários detalhes, tendo no centro, em vez
de um altar, uma cama "talhada em cristal com grande esplendor e pureza,
alta e larga, belamente construída"151 No mesmo local em que ocorre o misté-
rio do amor eucarístico ocorre o da eucaristia do amor. Com a união espiri-
tual e carnal, Tristão e Isolda tornavam-se a hóstia e o Graal, administrando-
se mutuamente o verdadeiro sacramento: "Levavam consigo, oculto sob suas
vestes, o melhor alimento que cabe encontrar no mundo'T'". E esse amor, na
vida e depois dela, é que sustenta os homens, por isso "sua vida e sua morte
são nosso pão. Assim vive sua vida, assim vive sua morte. Assim continuam
vivendo, ainda que tenham morrido. Sua morte é pão para os ViVOS"153.
Concluamos. Se o incesto é desejo de união com a essência de si próprio,
o incesto simbólico entre Tristào-Cristo e Isolda-Virgem é o encontro da essên-
cia divina no ser humano e do humano na Divindade, o que correspondía aos
anseies e necessidades profundas da espiritualídade do século XII. A melhor
expressão dessa realidade psíquica está sintetizada numa fórmula do próprio
mito. Nela se reflete não apenas a condição amorosa no plano humano, de
companheirismo e atração sexual, mas também no plano celeste, fonte e obje-
to de amor. Mais que isso, espelha a díalética do amor profano e do amor
sagrado. Sacraliza novamente a sexualidade, resgatando sua beleza e pureza.
Despindo-a de sua roupagem de lado menor da afetividade. "Ne VlfS satiz tnei,
tte tnei SCl7lZ VIlS."
1. 1'. Cardini, M(/gi({, SIregolle/'ÍCI. Superstizioni nell'Occidente Medieoah), Florença, I.a Nuova ltalia,
1979, pp. 150-151.
S. Decret unt, XIX,S. P/., 110, col. 976.
6. IL S. l.opcz, O Nascimento da /!IITOJI(I, (trad.), Lisboa, Cosmos, '1965, p. 201.
7. Karlonurni Principis Capitulare Liptinense, cd. A. Borctius, MGII Capit nlnria Rcgtnn I'mnco/'UIII,
p. 26, citado por Cardini, OJ1. cit., p. 197.
8. M. Goodich, Vi/a Perfecta. 'lbe Ideal (!/ Sctintbood in tbe Tbtrteentb C(111111)',Stutrgart, Anton
l Iicrscmann, '\982, rp. 21-28. A normarízação e controle eclesiástico sobre a canonização não
impediram contudo o aparecimento de novos santos populares, como mostra o caso do cachorro
santo magnificamcnrc estudado por J.-c. Schmitt, I.e Saitu léorier, Paris, l-lammarion, 1979.
161
mesmo, variante paroxístíca do processo, um mago que se torna santo". Ainda
em meados do século XIII, a Legenda Aurea precisava citar vários exemplos
dessas vitórias sobre o paganismo e as forças folclóricas!''. Mas, de forma geral,
até princípios do século XI os santos encontravam-se predominantemente no
âmbito de uma religiosidade profunda, socialmente indiferenciada. Como
Oronzo Giordano observou com razão, nas conversões "a nova profissão de
fé não vinha geralmente substituir, mas sobrepor-se a um bacleground de reli-
giosidade: havia atitudes espirituais enraízadas, sedimentos profundos de uma
interioridade índetenninada, sobrevivências indestrutíveis de práticas e de'
crenças que continuavam informando e condicíonando, inclusive sem o indiví-
duo sabê-lo, sua nova profissão religiosa" 11.
No entanto, as transformações relacionadas com a "revolução feudal"
criaram uma espírítualídade monástica ligada ú prece e liturgia, como for- à
16. Wal/barius. cd, K. Strcckcr, MGII. Poetae t.atini Medii /leui, Weimar, l lcrmann Bohlaus Nachfolgcr,
1951, vol. VI, p.I-H5; citamos pela tradução de L. A. de Cucnca, Madrid, Siruela,19H7.
17. La Cbanson de Roland, cd . .J. lscdicr, l'aris, Piazza, 71. cd. 192H. A duração e a autoria desse texto
suscitaram muitos debates e uma abundante bibliografia, na qual se destacam ainda os clássicos,
de ínrcrprcraçõcs opostas,.J. Bédicr, l.e: h{qendes éjJiques: Recbercbes sur laformaticm eles cban-
SOl!Sde geste, (1 vols.), Paris, l Ionoró Champion, 1913 e 1(, Mcnéndcz Pidal, l.a Ch(//IS(1Il de No/anel
y cl Neotradicionalismo, Madrid, Espasa-Calpc. 1959.
1H. M. l Iclin, l.a t.ütércuure [atine (/11 M0.l'en /lge, Paris, PUI', 1972, p, 33.
19. \f'alibarius, p. 28.
20. idem, pp, 13, 15, 17, 21, 23, 30, 33, 35, 38, 10, 13, 15, 17, 19, 50-51 e 51. Talvez por isso ll. F.
l luppc, "Thc Conccpt 01'thc Ilero in rhe Eariy Middle Ages", em N.T. Burns e C. J Rcagan (cds.),
COllu1JIS 11/ tbe Ilero in tbe Middle /Iges and tbe kcnaissancc; Albany, State Univcrsity of thc New
York I'r<:ss, 1975, p. 1, tenha considerado Wa[/harius "um exercício acadêmico qu<: n.io pode scri-
amcntc ser considerado lima obra de arte", Naturalmente essa apreciação, alíás injusta, não afeta
o valor do texto enquanto fonte para o historiador da mitologia medieval.
2"1. Não nos interessa aqui seguir os longos e eruditos debates sobres a autoria daquelas obras: regis-
tre-se apenas a grande possibilidade do Wa//hal'ills ter sido escrito por I,kkhard (910-973), ou por
algum outro 1110ngc do mosteiro suíço de Saint-Gall.
22. E.1<. Curtius, Literatura liuropea y lidtul Media I.atina, trad., (2 vols.), México, l'ondo de Cultura
Econômica, 1975, \'01. I, pp. 5H-59, e vol, li, pp. 519 e 629.
23. p. 3.
Waflbarius,
21. 1.(/Cbanson de Roland, v. 1129.
163
"odiosa terra" dos hunos-" para retomar "doce pátria"2(;; nascido aquitano,
à
ele não tem outros povos em alta conta, mas refere-se a eles comedidamente:
os francos são chamados apenas de "fanfarrões", os saxões de "gozadores'<".
Ou seja, o sentimento nacional que acompanhava a feudalização estava, como
esta, na sua fase de gestação-s. De seu lado, se o poeta de Rolando pensa em
termos de Cristandade, ele vive a realidade cotidiana da "doce Prança'<", naque-
le momento mais uma entidade espiritual do que político-territorial, Talvez
por isso suas opiniões são mais radicais: para ele os francos são o povo eleito
de Deus)!), sua terra é a "santa França">'.
O mundo econômico revelado pelos dois textos é o mundo nobiliárquico,
de riquezas obtidas através de tributos, saques e butinsõ", mundo de mentali-
dade perdulária, expressa pela prática socioeconômica do dom e do con-
tradom'r'. Essa era a forma de realizar certa redístríbuíção social da riqueza, e
ao mesmo tempo ritos propiciatórios para que os poderes extra-humanos
favorecessem a comunidade. A quebra desse equilíbrio delicado era proble-
mática, daí o longo lamento do poeta de 1Valtharius sobre a excessiva e injusti-
ficada cobiça dos francos em relação ao tesouro trazido da terra dos hunos
pelo herói: "Insaciável apetite de possuir, abismo da avareza, entranha de
todos os males! l...] Quanto mais têern, mais os consome a ânsia de possuir='.
As novidades que ocorriam no século XI no plano econômico não aparecem
na história de Rolando, seja pela fidelidade do poera às suas fontes orais, ante-
riores àquelas novidades, seja pelo caráter arcaizante próprio àquele gênero
literário.
Quanto aos aspectos sociais, além da óbvia diferença da fidelidade vassáli-
ca, mais importante e explícita no caso de La Cbansoii de Roland, chama a
atenção o papel da mulher. Naquele texto de uma época crescentemente cleri-
calizada e portanto misógina, há apenas uma referência ~IS "gentis esposas=>
e outra às mães e esposasw, isto é, às mulheres que desempenhavam os papéis
vez, diante dos corpos dos inimigos que acabara de matar e voltado para
Oríentev-, o que poderia estar relacionado com o antiqüíssimo culto ao Sol,
C0111 seu sentido de renovação, de morte e ressurreição diárias. Elementos
obviamente presentes também no cristianismo, de forma que fica difícil saber
o sentido real daquela passagem da narrativa. Ou melhor, seu sentido parece
estar exatamente na ambivalência, revelando a proximidade entre as religio-
sidades oficial e popular naquela época. Diferentemente de La Cbanson de
Roland, em que diversos dados apontam a importância da religiosidade eclesiás-
tica para o meio e o momento em que o poema foi literarizado. Importância
que cresce se lembrarmos que, como tudo indica, o autor daquela versão foi
um leigoG5.
Ali fala-se de míssav', de absolvíção'ó, de confíssão'v, do aparecimento
de anjos a Carlos MagnoG7, de intervenções de São Miguel(,8 e do arcanjo
Gabrielw, de juramento sobre relíquias?". Rolando, segundo a visão que feudali-
zava a religião, estende sua luva para Deus?", tornando-se vassalo do verda-
59. J. 1.<:Coff, 1.(/ Ciuilisation de lOccident ntédiéual, Paris, Arthaud, 1967, p. 211.
60. Wall/Jr{/'ills, pp, 3, 7, 22, 23, 2~, 1j1 (três vezes) c 55.
61. I.a 0)(111.1'0/1 de Rolancl, 1'1'. 123, 137, 15~, 289, 339, 358, 1]20, !t28, 535, 676, 698, 7] 6, 788, Si O, 888,
J015, 1062, 107:), 1089, 1137, 1177, ]183, 1196, 1259, ]3]6, 1'173, 1516, 1511, 1579, ]632, ]689,
1733,1837,1819, 185!t, 1865, 1898,2006,2016,2096,2183,2296,2338,2241, 22!J5, 2253, 2261,
2j19, 23j7, 2j65, 2j7j, 2j83, 2389, 239j, 2j97, 2112, 2!J29, 2139, 2119, 2155, 2'158, 2180, 2505,
2518,2526,2568, 28!t7, 2887, 2933, 2998, 301j, 3099, 3165, 32!t7, 3261, 3277, 39'58, 3368, 3139,
3'538,3597,3609,3625,3638,3657,3666, 369!J, 3718, 3768, 3891, 3898, 3906, 3923, 3931, :\980,
3993 c !tooo.
62. \Valll)({ril.l.l', p. 1'..
63. Mcnéndcz I'idal, op, cit., pp. 129-130.
6!J. I.{/ Cbanson de Rolancl, V\'. 161, 670 c :\860.
65. Idem, V\'. 31'0, 1133 c 3859.
66. ldeni, \'1'. 2011, 2239, 2361 c 3859.
67. idem, VI'. 2152 c 2568.
68. Idem, v. 2391.
69. Idem, \'1'. 2262, 2390, 2526, 2817, 3610 c 3993.
70. Idem, v. 607.
7 J. Idem, VI'. 2365, 2373 c 2389.
i67
deiro Senhor. Assim, há uma ambigüidade proposital quando ele diz que "por
seu senhor deve-se sofrer grandes males e suportar os grandes calores e os
grandes frios, e deve-se perder sangue e carne'?". De um lado seu senhor é
Carlos Magno, que lhe entrega riquezas e terras. De outro é Deus, que lhe dá
um feudo no Paraíso em troca de sua morte na luta contra os Infiéis?". Mas a
dualídade é falsa, pois Carlos Magno aparece no poema como uma figura
sagrada, que fala com anjos, que é ajudado por eles em batalha, que como o
josué bíblico é beneficiado pelo milagre de () sol interromper seu curso para
poder liquidar os inimigos?". Recorrendo a uma imagem que a religiosidade
oficial sempre utilizou para mostrar a superioridade de seu Deus sobre os
demais, o poeta conta que os pagãos invocaram uma de suas divindades para
escapar de Carlos Magno, mas continuaram desprotegídos e muitos morreram">.
A comunhão, porém, aparece apenas uma vezl», o que é compreensí-
vel numa época em que o hábito de os leigos comungarem estava em desu-
so havia muitos séculos e em que a administração da Eucaristia sofria.mudanças?",
Um aspecto que ganhava peso na religiosidade oficial era a belícosídade, ele-
mento há muito presente na mentalidade medieval/" e que, a partir da feu-
dalização da sociedade, passou a int1uir mais claramente no comportamento
da elite eclesiástica. É verdade que, por ir contra o tabu do derramamento de
sangue, surgiram críticas por parte dos setores mais conservadores do clero.
O bispo Adalberon de Laon, preso às tradições carolíngias, recriminava em
1027-1031 a "ordem belicosa dos monges" 79, isto é, Cluny e sua política de
guerra justa.
Esta última corrente, contudo, ganhava terreno apesar das críticas e contri-
buía para a concepção de Guerra Santa, tão importante para o projeto que a
Reforma Gregoriana teria pouco depois para a sociedade ocidental cristã.
Elaborada nessa atmosfera mental, a gesta de Rolando chama várias vezes de
"mártires" aqueles que morrem na luta contra os muçulmanos, estabelecendo
uma relação de causalidade entre Guerra Santa e ida ao Paraísos", Nada disso
RL M. 1II0ch, I.a Socü!/é/éotÍale. l'aris. Albin Michcl, rccd., 196R, pp. 116-117; 1'. Rousscr, "Rcchcrchcs
sur I'émorivité :1 I' ('PO<l"" romano", (;01-1, 2, 1959, pp. 5:5-67.
82. \r'(//Ibarius, pp. /í7-;/L
83. /.({ Cl}{II1S0l1 de Roland. 1'1'. 1017-1187. 1691-1736, 19S2-20}1.
SI!. Idem \'V. 766-77"., H1S-H6(), 1396-1111, 221'5-2221, 2375-2!J17, 2!J1H-2!JfJ2,2827-2H11, 2855-21069,
2870-29IJ1, )096-3120, 3625-3617, 3705-3722, 372:;-)733, :5H7j-j8H3 c 3988-1002.
H5. wattbarius. p. 25; 1.(/ Cbanson de No/aliei. \'V. 719-723, 725-735, 252H-2551 c 2555-2569.
H6. ldent pp. 51-52.
169
nascesse morto e disforme e fosse recuperado pela mãe'". Por outro lado,
desde o cristianismo primitivo "o urso não gozou absolutamente do favor da
simbólica cristã" e, ao lado do javali, aparece perseguindo mártires's',
Paralelamente aos sonhos premonitórios encontravam-se os augúrios e
presságios, práticas sabidamente antiqüíssimas e que continuaram presentes
ao longo de toda a Idade Média. Nos dois textos que agora nos interessam,
tais crenças aparecem mesmo em pequenos fatos: uma lança mal arremessa-
daR9 ou uma luva que cai ao chão?" eram interpretados como prenúncios de
eventos ruins. O lado esquerdo, de "mau agouro", como o define o autor de
1,ValtbarÍus91, prolongava uma tradição arcaica presente em Parmênides, em
Platão, entre os romanos, na Bíblia, no Corão e no folclore medieval. Se para
os homens anteriores ao ano mil a origem dos eventos nefastos era algo
indefinida, a partir daquele momento a figura do Diabo passou cada vez mais
a sintetizar () problema filosófico-teológico do Mal.
Com a reorganização do Ocidente promovida pela "revolução feudal",
a figura distante e repressora do Deus Pai foi sendo ofuscada pela do Filho,
mais adequada espiritualidade
à de uma sociedade que se estabilizava e se
suavizava. Dessa forma, a faceta punitiva da Divindade foi exteríorizada na
personagem antiga, mas até então pouco importante, Satanás. Enquanto ele
não merece sequer uma citação em Wallbarills, aparece na gesta de Rolando
cumprindo um papel que depois se tornaria comum, o de punir e/ou se identi-
ficar com os inimigos da sociedade cristã. É assim que, enquanto anjos bons
levam as almas dos mártires da luta antiislâmica para o Paraíso, Satanás ou
seus demônios arrebatam as almas dos muçulmanosv-. Se um anjo do Senhor
dera a Carlos Magno a espada com que este presenteou Rolandov'', um demônio
é que deu ao emir muçulmano um escudo ornado de pedras preciosas?". Em
suma, ocorria uma demonização dos muçulmanos: um deles era entendido
em "artes maléficas" 95, outro jú estivera no Inferno levado por Júpiter'JG, outro
ainda habitava a mesma região que os dernônios'".
Contra tais forças os homens podiam recorrer ao sinal da cruz, "sinal
poderoso'vs utilizado desde os primeiros tempos do cristianismo. Com efeito,
H7. I.e Besttatr«; trad, NI.-F. Dupuis e S. I.ouis, Paris, Philippc Lcbaud, 19fiH, pp.72-75.
HH. 11. I.cclcrcq, "Ours", em f)/lC/., vol, 13, col. 153. No sentido de animal selvagem, o urso aparece
ainda, além dos sonhos, em outras duas passagens de l.a Cbanson de Roland, v. 30 (e suas
repetições) e I R27.
W). Wa/l!Jarills, p. 19.
90. La CballSOI1 de Roland, vv, 333-335.
91. Wallbarills, p. 5/1.
92. l.a Cbanson de Rolancl, \'V. '126H, 1553 e 3617.
93. Idem, v. 2319.
9/1. Idem, v.1502.
LJS. (riel1l, 'i. \\\\6.
96. Idem, vv . \:'9\-):'9'2,
97. Idem, v. 9H3.
98. idem, v. 3111; cf. também vv. 3,iO, 220), 2HIJH e 3111.
170
já no século IV, Prudência afirma que os soldados cristãos faziam o sinal da
cruz ames de entrar em combate')') Outro recurso, de origens mais antigas, era
a bênção. Por isso ela aparece ta mo na gesta de Valtário quanto na de Rolandol''",
A diferença marcante é que o herói aquítano benzeu a si próprio, enquanto
no segundo texto são sacerdotes (ou () imperador com sua faceta sacerdotal)
que benzem alguém. Ou seja, o ato de benedicere. de atrair o favor de Deus
para uma criatura ou um objeto, entrava predominantemente no campo das
atribuições clericais. Tanto assim que, das acepções medievais da palavra, três
designavam atos de competência exclusiva dos eclesiásticos (consagrar uma
igreja, ordenar um padre, sagrar um rei), outras três eram atos mais clericais
que laicos (abençoar, rezar, adorar) e apenas uma era de uso geral (saudar)!'!'.
É interessante notar que se na canção rolandíana as bênçãos já se apre-
sentam clericalizadas, as orações e as confissões podem ocorrer de forma laíca.
Sentindo-se morrer, Rolando deita-se debaixo de um pinheiro, com o rosto
encostado na terra, e confessa seus pecados diretamente a Deus, pedindo
perdão 102. Carlos Magno, preparando-se para a batalha decisiva, também deita-
se na relva verde com o rosto no chão e voltado para Oriente 10.1. Nos dois
episódios, o coma to direto com a Mãe-Terra parece ser o essencial, aproximan-
do o homem do mundo divino, estabelecendo uma relação que dispensava
intermediários. No evento que envolve o imperador, isso era reforçado pela
sua posição, de frente para o sol nascente, para uma das mais arcaicas divinda-
des existentes e que no cristianismo se identificava com o próprio Cristo. No
caso de Rolando, o reforço era dado pela presença de uma árvore, com seu
simbolismo de axis mundi, de elemento de ligação entre instâncias subterrâ-
neas e celestes"?". Ademais, era especificamente um pinheiro, árvore ligada
no passado ao culto da deusa Cibele e seu filho-amante Átis, que morre e res-
suscita períodícamentetv>, sendo portanto a própria atureza e prefiguração
de Cristo. Rolando se integrava assim, por seus próprios meios, ao Sagrado.
Em Waltharílls, com seus poucos elementos clericalizados, há apenas
uma oração, feita pelo herói diante dos corpos dos inimigos mortos. Nesse
único episódio aparece um terço das referências feitas a Deus em todo o texto.
Na mesma oração Valtário fala em "coração contrito" e "definir o pecado",
conceitos estranhos ao conjunto do poema e a todo o clima de sensibilidade
que ele revela. Tudo isso indica que tal passagem ou é uma interpelação poste-
rior, ou uma rara tentativa clericalizante do autor. E tanto numa hipótese quan-
to noutra, não se anula a sensação de o herói estar se dirigindo às suas dívinda-
99. 11. í.cclcrcq, "Croix (signo de la)", em osa, "(li. 3, col. 3139-31~O.
100. Wllllb(/rius, p. 11; I.a C!)(I11S071 de f<O/tIIlC/, VI'. 3IíO, 2957, 3066 e 3859.
101. .J. F. Nicrmcycr, Mediae l.atinitatis t.exicon Minus, Lcídcn, Brill, 1981i,p. 89.
102. Lu OWI1S01l de Roland, \'V. 2357-2358.
103. Idem, VI'. 3096-3099.
101. IV!. Lliudc, Tratado de t tistúna das Reltgiôes, (rrad.), Lisboa, Cosmos, 1977, pp, 323-351.
105. Dsvmb, p, 761.
171
eles germânicas. Ele está em pleno bosque, no qual passará a noite numa gruta,
e seu pedido de encontrar os outros heróis mortos no "reino dos céus"1IJ6 soa
mais como o desejo de juntar-se um dia a eles no Walhala, a residência celes-
tial de Odin para onde iam todos os guerreiros mortos em batalha.
As bênçãos, as orações e as confissões eram manifestações de um fenô-
meno de longuíssima duração, o poder mágico da palavra, presente em várias
civilizações, inclusive na Europa medieval'v", A concepção de que só existem
as coisas que tem nome está exemplificada pelas espadas de Rolando, Carlos
Magno, Olivier, Turpin e Ganelonlw. Mais do que isso, Rolando fala longa e
amigavelmente com sua espada Durendaltw. Temendo que ela caísse em mãos
indignas com sua morte, Rolando tenta inutilmente quebrá-Ia contra uma
pedra 110. Por outro lado, a espada de Valtário, que se quebrou durante a luta 111,
lembra o relato da espada fíncada por Odin no freixo que sustentava o mundo
e que só pôde ser tirada e usada por Sigmund. Após inúmeras vitórias com
essa espada, que nada quebrava, um dia o próprio Odin partiu-a, e o herói
morreu. Ou seja, enquanto para o pensamento mítico germânico a vida do
herói estava ligada à vida da espada, para o pensamento mítíco cristão elas
eram coisas próximas, porém independentes. A espada de Rolando era um
objeto sagrado, trazída por um anjo e cheia de relíquias dentro do cabol12.
Dessa forma a Canção de Rolando clericalizava o maior símbolo da condição
laica de acordo com a pretensão da Igreja do século XI de disciplinar a cava-
laria cristã e pô-Ia a seu serviço.
Não por acaso surgiu desde então uma iconografia religiosa de Rolando,
Na catedral compostelana ela materializava as tradições orais existentes desde
o século VIII e levadas para a Galícia pelos peregrinos 113. Entre 1120 e 1140
ele aparece com traços de santidade nos portais das igrejas de Angoulême,
Limoges e São Zeno de Verona, em 1148 numa pequena igreja perto de Bari,
em fins da década de 1170 num mosaico de Brindisi e na Ghirlandini, torre
próxima à catedral de Módena, No século XIII ele passa para o interior das
igrejas, como em Saint-Faron de Meaux e num vitral do coro da catedral de
Chartres, no qual, após derrotar o gigante Ferragut, símbolo do paganismo,
'l I-i. R. Lcjcunc, "La I.ógcndc de Roland dans l'art iralicn du Moycn Age", em t.a Poesia Iipica e Ia Sua
Forniazione, Roma, Accaclcmí.r Nazionalc dei Lincci, 1970, pp. 300-301:l; H. l.cjcunc e P. Sticnnon,
"I.c l Iéros Roland, 'ncvcu de Charlcmagnc', dans l'iconographic médiévalc". em W. Israunfcls e
I'.E. Schramm (cds.), Karl der Grosse.l.ebensuxrri: 1//1(1 Nacbleben, Düsscldorf, Schwarin, 1967, pp.
216 e 223-225.
115. MrIO, 31.
MITO E IMAGEM
.s.->
No último meio século, o campo abrangido pela História não tem dei-
xado de se alargar, seja pela construção de novos conceitos, seja pela incor-
poração de instrumentos de análise tomados de empréstimo a áreas afins, seja
pela ampliação das temáticas estudadas, seja pela utilização de novas fontes.
Quanto a este último ponto, Lucien Febvre já chamara a atenção para o valor
do folclore 1, usado, para ficarmos restritos ao campo do medievalismo, sobre-
tudo por ]acques Le Goff2 e ]ean-Claude Schmítte. Reconhece-se igualmente
a importância das fontes íconográfícas". Contudo, ainda não se tornaram
comuns trabalhos voltados para a análise das relações entre imagem e fol-
clore. De um lado porque os historiadores têm observado os traços deixados
Lettre e/Ia uoix de 10 littércüurc mâdiéuale, Paris, Scuil, "987. pr. 37-~6.
6. c. Brcmonr, J. I.c Goff e j.-C. Schmirr, L'Iixemplunt. Turnhour, Brcpols, 1982.
----
177
nal dos leigos - e nem poderia o ser, pois ninguém nasce eclesiástico - eles
não ficavam imunes à cultura erudita, cujos traços essenciais lhes eram trans-
mitidos pelo próprio clero".
Assim como a sobrevivência de dados folclóricos contidos nos textos
escritos é "a expressão de uma relação de dominação ideológica'", o mesmo
se poderia dizer a propósito das representações iconográficas ligadas à Igreja,
isto é, a quase totalidade das que nos foram legadas pela Idade Média. Como
é próprio da ideologia absorver e desnaturar os elementos contrários que ela
não pode simplesmente negar, fica difícil, e muitas vezes impossível, determi-
nar a exata extensão e função dos dados da cultura folclórica presentes em
imagens religiosas. Trata-se então de, a partir do contexto sociocultural-psi-
cológico da produção da imagem, procurar interpretar as leituras possíveis
que ela recebia. Trata-se de pensar sobre as funções da imagem, que não são
necessariamente explicitadas pelas suas formas. Trata-se de tentar retirar o véu
que recobre o símbolo, isto é, de verificar as relações entre significante e signi-
ficado". Estas rápidas considerações teóricas vêm a propósito de uma determi-
nada imagem que nos propomos analisar.
Na parte oriental do Poitou, 41 quilômetros a oeste de Poitiers, na margem
esquerda do rio Garternpe, ergueu-se em fins do século VIII ou começo do IX
a abadia de Saint-Savin. Colocada sob a direção prestigiosa de Bento de Aniane
ou de Ulll discípulo deste, ela contribuiu para a renovação monástica da região,
abrigou as relíquias de vários outros mosteiros atacados pelos normandos e,
parece, seus monges participaram da fundação de Cluny, cujo primeiro abade,
Bernon, talvez tenha sido monge de Saint-Savin 10. A igreja abacial, recons-
truída em fins do século XI e princípios do século seguinte, recebeu então
uma rica decoração de afrescos, "o conjunto mais importante, mais represen-
tativo e mais belo de todas as pinturas românicas conservadas na França e
mesmo em todo o Ocidente"!'. Nesse vasto conjunto, a abóbada da nave rece-
7 C0ll10 ponderou 1'. c. Bcgotti, "Sulla Origini Mcdicvali dclla Cultura l'opolnrc", em Quaderni
Medicoali, 3, 1977, r. 88, "com a devida cautela, rodemos generalizar o seguinte esquema: quan-
do uma classe está no poder, através da propaganda, da escola, das instituições públicas, da obra
de intelectuais e de oradores persuasivos, procura impor sua visão de mundo e de vida :IS classes
subalternas (para bloquear a porcncíalídadc revolucionária). e estas recebem as concepções domi-
narucs inserindo-as na sua própria cultura rradicional, L .. l fruto de sucessivas modificações da estru-
tura social e mental durante a história".
R. Schmitr, L'Exemplum, op. cit., p. 107.
9. J. Wirrh, "Introduction",CIll F. Dunand,J.-M. Spiescr c ]. Wirth (di r.), L'lmage et la production du
sacré, Paris, Méridtcns Klincksieck, 1991, pr. R-15.
]0. 1'. Mcriméc, No/ice SUl' lespcintures de l'église de Saint-Sauin, Paris, lmprimeric Royale, 1815, pp.
19-22; 1'. A. Lcbrun, l.Abbaye e! i église de Saint-Sauin, Poit icrs, Oudin, 1888, pp. 14-17,90-92 e
123-129. Para outros, essa Iiliação teria sido apenas indireta: G. Valous, I.e Monacbisme clunisien
des origines ali XVt! stécle, (2 vols.), Paris, I'icard, 1935, \'01. I, p. 19, n. 2.
11. G. Gaillard, l.es Fresques de Saint-Saoin, Paris, Chcnc, 1911, p. 3.
178
beu 58 cenas do Antigo Testamento, inclusive, no lado norte, uma famosíssi-
ma Apresentação de Eva a Adão,
Na primeira parte da seqüência narrativa sobre a criação da mulher,
aparecem Adão adormecido e, inclinado sobre ele, Deus, que com uma mão
levanta o braço esquerdo do Primeiro Homem e com a outra faz o gesto de
extrair dele uma costela. Na cena seguinte estão figuradas as três personagens,
Deus entre os outros dois, voltado para Adão, que tem os braços serní-estendi-
dos e olha para Eva, posicionada ~l esquerda do Criador. Por fim, prosseguin-
do o relato bíblico, na cena seguinte Eva está diante da serpente, enorme, que
a domina pela altura. Estruturalmente, portanto, uma representação clássica.
Mas que mostra a Eva apresentada a Adão tendo barba. Este detalhe, absoluta-
mente antíconvencíonal, sem ponto de apoio escríturístíco, foi por isso sem-
pre interpretado pela hístoríografia como decorrência de engano ou de irreverên-
cia por parte do artista ou de um restaurador.
Prosper Mérimée, que em 1845 chamava a atenção para a beleza e o
estado de abandono dos afrescos, pensava que o artista, depois de ter pinta-
do Adão, resolvera mudar as personagens de lugar e cobrira a barba dele,
transformando-o em Eva, pintando então um novo Adão do outro lado. Porém
aquela cobertura teria posteriormente caído, revelando a barba e criando assim
uma falsa "Eva barbada"12 Mais de oitenta anos depois, Elise Maillard afirma-
va que "foi por descuido que o fresquista atribuiu uma barba a Eva: ele ten-
tou cobri-Ia, mas o gesso seco não fixou a tinta" 13. Quase quarenta anos mais
tarde, George Henclerson considerava aquela cena "convencional", negando
implicitamente que nela Eva tivesse barba!". Pouco mais tarde, jean Taralon
atribuiu a presença da barba a uma restauração de fins do século XIV, "muito
malfeita" porque o restaurador não pudera contar com o modelo do desenho
original, que teria desaparecido completamente 15. Acatando essa proposta,
pouco depois Yvonne Labande-Mailfert afirmava que "a barba malfeita de Eva
[".l não podia ter sido produzida por um ateliê româníco='v. Mais recente-
mente, Píerre Dubourg-Noves!? falava em uma intervenção do século XIII,
quando "o restaurador, que não compreendia mais o episódio danificado,
dotou Eva de barba". A publicação mais recente, de Yves-Iean Riou, retoma
a tese de uma restauração malfeita em fins da Idade Média!".
19. Por exemplo, uma grande especialista nos afrcscos de Saint-Savin como l.abandc-Mailfcrt atribuiu
o "retoque" primeiro ao século XIV ou xv (ojJ. cit., p. 11), depois ao século XIX: "te Cyclc de
I' Ancicn Tcstamcnr 11 Saint-Savin", Reuue d'bistoire de Ia spiritnalité, 50, 1974, p. 370.
20. Mesmo a simples idcnrificação das personagens é problemática. Tradicionalmente pensa-se que a
figura ~l direita de Deus é Adâo, mas o inverso seria possível, se não preferível: pela lógica da com-
posição, a Eva recém-formada deveria estar próxima do Adão adormecido. e de fato a gestualiza-
çào de Deus faz mais sentido se considerarmos aquela figura como sendo Eva. Aliás essa dis-
posição espacial das personagens não era nem rara nem nova sendo atestada já em fins do século
IX na Biblia de Carlos, o Calvo, fól. Tv . De qualquer forma, essa questão não afeta nossos obje-
tivos e argumentação, esteja líva posicionada na pintura de um lado ou de outro.
2]. Mériméc, op. cit., p. 101, idéia aceita por Gaillard, op. cit., p. 7. Contudo, como \Xfirth, "Iutroduction",
ojJ. cit., p. ]0, comentou, "a dificuldade de perceber um fenômeno não é um argumento contra
sua existência". Desde fins do século XIX o abade de Saint-Savin jú entendera isso, e descrevia
aquela cena com simplicidade e objetividade (Lcbrun, ojJ. cit., p. 50, n.J): "Eva inocente tem barba
como Adão, E,'a culpada não. Tudo na primeira, a fisionomia, a atitude, transpira inocência; tudo
na outra exprime o contrário". Essa idéia foi acompanhada alguns anos depois por P. Gclis-Didor
íSO
não tivesse um esboço da composição, resolvendo mudar as personagens ele
lugar depois de pintá-Ias.
Se a tese de Mérimée é insustentável, poder-se-ia acompanhar Taralon,
que alega uma intervenção bem posterior, comprovada segundo ele pelas
cabeças das personagens, diferentes das da primeira pane da cena, o sono de
Adão. Cabeças, ele acrescenta, desproporcionais aos corpos, que seriam os
da pintura original. É verdade que o volume daquelas cabeças é maior que
em outras cenas da abóbada, porém ali trabalharam vários artistas ao longo
de uma geraçào-". Poder-se-ia tentar acompanhar a explicação de Dubourg-
Noves, próxima à de Taralon. Mas dessas duas hipóteses seríamos levados a
concluir que o pretenso restaurador - bem menos distanciado do original do
que nós - considerava possível e natural que o primeiro pintor tivesse colo-
cado barba em Eva. Assim, mesmo que se pudesse provar que a polêmica
barba é produto de uma restauração, seja do século XIII, seja do XIV, restaria
a questão central: por que aparece ali aquele detalhe anatômico aparente-
mente deslocado?
Não poderíamos atribuí-lo a um suposto devaneio pictórico, pois, como
já se observou com razão, as pinturas de Saint-Savin revelam o "gênio simpli-
ficador" do artista, que executa sua obra, salvo em dois ou três casos, ele forma
clara e pouco carregada: "Todo detalhe inútil é omitído'<'. Além disso, temos
o caso da Eva barbada de S~lOZeno de Verona, esculpida no lado direito da
fachada ocidental da igreja pouco antes de 1138: naturalmente, em função do
material ali utilizado, não se pode pensar nessa barba como um acréscimo
posterior. Dessa forma, devemos procurar a explicação da presença da barba
de Eva na cultura folclórica da época, e não num mero acidente de trabalho
ou numa brincadeira irresponsável do artesão. Até porque, nesses casos, caberia
perguntar a razão da omissão dos monges diante daquela pintura suposta-
mente, de forma voluntária ou involunrária, "irreverente",
Podemos, então, considerar como hipótese explicativa daquela imagem
um elemento cultural conhecido na região de Saint-Savin daquela época: a
lenda da santa barbada, Trata-se porém de um fenômeno cultural complexo e
e 11. l.atfilléc, La Pcinture déconuuie Vil t-rance da XI" au XI/le siêde, Paris, l.ibrairics-lmprimcrics
Réunis, 'IH99, s/p, (160): "Não se deve ver nela Ia Eva barbadal um comentário às palavras elc Santo
Agostinho: .Barba signuiu perfecttontsi", No entanto tal ínrcrprctação Foi desprezada até hoje, com
exceção da cautelosa afirmação de 1'. [I. Michcl, I.a Fresque rontane, Paris, Gallimard, 1961, p. 90,
para quem, "por mais estranha que da Ia hipótese] pareça, continua sedutora".
22. P. Dcschamps; "Lcx Pcinturcs de l'églisc de Saint-Savin", em Congres arcbéologiques de t-rance,
}09, 195"1, pp. Lj37-~i9. Para J. Wcttstcin, 1.(1Fresque /"0/1/(/111'.: Etude; UJ/IIjJtIIWivcs 11, Genebra,
Droz, 197H, pp. 19-20, as pinturas da nave foram feitas em poucos anos. mas por cinco mestres
diferentes, cada um responsável por um subciclo (Criação. Noé, Abruão, Moisés, José). Por sua
Peintures rCJl1/{I71VS eles églises de Freme!', Paris, FIa111111arion,
vcz.Tl. Focillon, 1967 (cd, orig., 1938),
p, 'Í2, (10 comentar a diferença de formas entre a história de Adão c Eva c a Criação dos astros,
observava que "a qualidade despojada não pertence indistintamente a todo ateliê de Saint-Savin".
23. E. Malc, "La Peinturc murale cn l-rance", em A. Michcl (dir.), ltistoirc de l'att, Paris, Armand Colin,
1905, vol, I, p. 767,
1S1
mal documentado, difícil de ser acompanhado. Jé'iem meados do século II um
texto apócrífo, o Evangelho de Tomás, afirmava que "toda mulher que se fizer
homem entrará no Reino de Deus'?". Duas ou três décadas depois, com outro
apócrífo, Atas de Paul025, surgia o tema da mulher dísfarçada de homem para
levar uma vida espiritualmente superior. Tema que conheceu grande sucesso
no monasticismo primitívo-é. Talvez originário de ritos pagãos, o uso de roupas
de outro sexo fazia parte do contexto mítico greco-romano, no qual o cris-
tianismo se desenvolveu-". Daí, na tradição bízantina dos séculos VI-VIII, os
muitos exemplos de santas que se disfarçaram de homem para fugir de sua
condição feminina28. No Ocidente cristão do século XII, temos ao menos o caso
de Santa Híldegunda, que visitou Jerusalém em 1188 dísfarçada de homem-v.
O caso extremo de mulher travestida de homem foi o de joana, em mea-
dos do século IX. Ela se teria vestido de forma masculina para acompanhar
seu amante e, assim fazendo, acabou por ter acesso ~l Cúría romana e por ser
eleita papa, segundo narra uma lenda surgida em fins do século XII e magni-
hCdn,ente 'dWàh~'àU'à pm .M'<\\.n1)\)'üYl::a'ü:'o. Ma3 corno, 111::331::
C'à30, tratava-se úe
um disfarce para fins pecaminosos, ocorreu () retorno condição feminina à
quando joana deu à luz uma criança, em público, durante uma procissão. O
episódio ilustrava bem o caráter negativo da passagem da androginia (sim-
bólica no caso da papisa e dos clérigos em geral) para a sexualízação, e talvez
por isso não tenha sido abafado pela Igreja medieval, apesar de escandaloso.
Na mesma linha, valorizava-se a recuperação da situação edênica representa-
da pela passagem da condição feminina para a condição andrógina - simbó-
lica com as monjas, comportamental com as virgens e continentes, física com
as mulheres barbadas.
De fato, no Ocidente cristão a androginização feminina ocorria através
da barba, quase sempre associada à negação da sexualidade. Gregório Magno
narra o caso de Santa Gala, jovem viúva que ganhou barba ao recusar um
novo casamentoõ". Também do ponto de vista médico acreditava-se na possi-
bilidade de uma mulher barbada, caso houvesse problemas com a menstrua-
ção, cujo papel é o de eliminar os excessos do corpo feminino, como fazem
2~. I. '1iL'tll1gile de Tbonuts. 111, trad ,1.- Y. Lcloup, I'aris, Albin Michcl, 19H6, p. ;,;,.
25. T.es i\cles ele {'mil el ses !ellres crpoCI)lJ1ws, fiO, cd. Irad. \ .. Vml<\lIx. Paris. \.cto\.\'J.cy ct An0, 191:\,
Q. 22~.
26. J. Anson, "Thc Femalc Transvcstirc in Early Monasticism: Thc Origin anel Dcvclopmcnt of a Motif",
Via/ar, 5, 1971(, pp. 1-32.
27. M. Dclcourr, "I.c Complexo de Di.me dans l'hagiogruphic chréricnnc", keouc de l'bistoire des reli-
gions, 77, 1958, p. H.
2H. E. I'arlagean, "L'l Iistoirc de Ia fcuunc déguiséc cn moinc ct l'évolution de Ia saínreté fémininc "
Byzancc", siuat Medteuali, 17, 1976, pp. 597-623.
29. Vi/a S. l lildegurulis, I, 5, em /IUa S(/IlC/OI'lIllI, aprilis, 11,(l675), Bruxelas, Culturc cr Civilisation,
rccmpr, 1969, p. 783.
30. 1.(/ Papessejeanne. Paris, Aubicr, 1988.
31. Grcgório Magno, Dialogonnn, 1. IV, n, 1)1.,77, eol. 'lIJO BC; /let(/ Snnctorunt, ocrobris 111 (1770),
p.162.
181
mal documentado, difícil de ser acompanhado. J't em meados do século II um
texto apócrifo, o Euangelbo de Tomás, afirmava que "toda mulher que se fizer
homem entrará no Reino de Deus">'. Duas ou três décadas depois, com outro
apócrifo, Atas de Paulo», surgia o tema da mulher disfarça da de homem para
levar uma vida espiritualmente superior. Tema que conheceu grande sucesso
no monasticismo primitivo-v. Talvez originário de ritos pagãos, o uso de roupas
de outro sexo fazia parte do contexto mítico greco-romano, no qual o cris-
tianismo se desenvolveu" Daí, na tradição bizantina dos séculos VI-VIII, os
muitos exemplos de santas que se disfarçaram de homem para fugir de sua
condição feminina-e. No Ocidente cristão do século XII, temos ao menos o caso
de Santa Hildegunda, que visitou Jerusalém em 1188 disfarçada de homem-".
O caso extremo de mulher travestída de homem foi o de joana, em mea-
dos do século IX. Ela se teria vestido de forma masculina para acompanhar
seu amante e, assim fazendo, acabou por ter acesso à Cúria romana e por ser
eleita papa, segundo narra uma lenda surgida em fins do século XII e magni-
ficamente analisada por Alain Boureau'v. Mas como, nesse caso, tratava-se de
um disfarce para fins pecaminosos, ocorreu o retorno ~l condição feminina
quando joana deu à luz uma criança, em público, durante uma procissão. O
episódio ilustrava bem o caráter negativo da passagem da androginía (sim-
bólica no caso da papisa e dos clérigos em geral) para a sexualízação, e talvez
por isso não tenha sido abafado pela Igreja medieval, apesar de escandaloso.
Na mesma linha, valorizava-se a recuperação da situação edênica representa-
da pela passagem da condição feminina para a condição andrógina - simbó-
lica com as monjas, comporta mental C0111 as virgens e continentes, física C0111
as mulheres barbadas.
De fato, no Ocidente cristão a androginização feminina ocorria através
da barba, quase sempre associada à negação da sexualidade. Gregório Magno
narra o caso de Santa Gala, jovem viúva que ganhou barba ao recusar um
novo casamento+t. Também do ponto de vista médico acreditava-se na possi-
bilidade de uma mulher barbada, caso houvesse problemas com a menstrua-
ção, cujo papel é o de eliminar os excessos do corpo feminino, como fazem
2/i. I. 'Éuangile de '1/)011/(/\ 111, rrad. ).- Y. l.cloup, Paris, Albin Michcl."] 986, p. IJIJ.
25. t.cs /leles de Paul et scs lcttres apocrypbes, ;'0, cd. tr;rd. I.. Vouaux. Pnrix, l.erouzcy cr AIl\:', 19 1::1,
p.223.
26. ). Anson, "Tlic tcmalc Transvcstite in Early Monaxtícism: 'I'hc Origin anel Dcvciopmcnr of a Motif",
Virttt»; 5, 197-1, pp. 1-32.
27. M. Dclcourr, "te Complexo de Dianc dans l'haglographlc chréricnnc", keoue de lbistoire des reli-
gions, 77, 1958, p.11.
28. E. l'arJagean, "1.'1lisroirc de Ia fcnuuc déguíséc cn moinc ct l'évolurion de Ia saintcró fémlninc 'I
Byzancc", Studi Medieualt. 17, 1976, pp. 597-623.
29. Vi/a S. l lilclcgundis, I, 5, em /lua Sanctorum, aprilis, li, (1675), Bruxelas, Culrure ct Civilisation,
rccmpr, 1969, p. 78::1.
30. I.a Papessejcannc, Paris, Aubicr, 1988.
31. Grcgório Magno. lJialogorIllII,I, IV, '13, 1'1.,77, col. j/jO IIC; /leltl Sanctonnn, octobris 111(1770),
p.162.
182
a barba e o suor no homemv. Concordando com Beda35 e Aelred de Rievaulxõ",
para quem a barba é indicação de virtude, na primeira metade do século XII
o monge beneditino e bispo Bruno de Segni considerava que a mulher dota-
da de força de espírito é "barbada".'I5.
A partir desses precedentes hagiográficos, científicos e morais, novos
casos de mulheres barbudas podiam ser construídos. O exemplo mais bem
conhecido é talvez o da lenda de Santa Wilgeforte36, chamada ainda, con-
forme a região, ele Kümmerrnis, Ontcommer e Liberara (ou Livraele). Seu nome
derivaria ele uirgo fortis, já que aquela virgem e mártir, pé!ra escapar ao casamen-
to, obteve de Deus uma barba, sendo então crucificada pelo pai, profundamen-
te irritado pelo fato. A documentação mais antiga existente sobre seu culto
remonta, parece, a fins do século XIV e é restrita aos Países Baixosõ", A origem
da veneração estaria ligada a uma colônia de comerciantes de Lucca, que
levara para aquela região um crucifixo de estilo antigo, anterior ao século X
- o chamado Volto Santo, provavelmente originário da Catalunha e ali reve-
renciado desde o século VIII - no qual Cristo aparece coberto por longa túni-
ca, tendo por isso sido confundido com uma mulherõ". Essa confusão estava
também na base do nome da santa, pois uirgo fortis era o epíteto dado pelos
italianos ao Volto Santo.
Talvez também tenha exercido certa influência na formação da lenda da
santa barbada, o grande crucifixo de madeira da catedral de Colônia, conhe-
cido por Gerokreuz. Encomendado pelo arcebispo São Gereão entre 970 e
976, essa peça mostra um Cristo andrógino, de cabelos bastante longos, barba
bem curta, seios femininos, pequenos, mas claramente pronunciados, ventre
que lembra uma gravidez nos primeiros mesesw. Entre os dois crucificados,
o Cristo de Gerokreuz e Wilgeforte, havia uma relação estrutural. A santa, para
32. "Uma mulher sofrendo de retenção menstrual pode ganhar uma pequena barba": G. Consrablc,
"Inrroduction", em Burchard de lscllcvaux, Apologia de barbis, cd. R. 1\. C. IIuygcns, Turnhout,
Brcpols. 1985, [l. 59, n. 58.
33. Bcda, ln Esdrum et Nebemiant Propbetas Allegortca Expositic, 1[, 12, 1)/., 91, col. 875 B.
31. Aclrcd de Ricvaulx, Serntones, 25, F/., 195, cal. 465 A.
35. Exposuio in l.eoitic, 19, 161, F/., 161, col. 444 n.
36. Aela Sanctorum, julii V (1727), r. 50-70.
37. J. Gcssler, "Une Version inéduc de Ia légcndc de Saintc Wilgcfortis", Reuue d'bistoire ecclésiastique,
31, 1935, pp, 93-99. Contudo para A. Bouvcnnc, "Saintc WilgefoI1e", Reuue de l'art cbrétien, 10,
1866, p. 115, no século Vil! Carlos Magno erguera uma igreja dedica ela àquela santa, cuja mais
amiga representação está em um trfprico de marfim do século XIII (r. 119); rara A. Dcmain, Beaux-
Artsplastiques, Paris, 1873, p. H5, (/jJudCasrex cop. cito infra. nota 11), p, 90, a mais antiga imagem
dela é um crucifixo em um baixo relevo em pedra, provavelmente do século Xl.
38. 11. Dclchayc, t.es I,égendes bagiograpbiques, Bruxelas, Société eles Bollandistes, 3. cd., 1927, r. 103;
G. Schnürcr c ], Ritz, Santzi Kúmntermis und volto Santo Studien urul Ri/der, Düsscldorf, Schwann,
1931; j.-c. Schmitt, "Cendrillan crucifié: A propos du volte Santo ele Luques", em Miracles, prodi-
ges et merueilles au Moven Age, Paris, Publicarions de Ia Sorbonne, 1995, pp. 211-269.
39. Reproduzido por I'. Thoby, I.e Crucifix des origines au concite de Trente, Nantcs, Bellangcr, 1959,
figs. 102-101 elo Supplémcnt.
IS3
se aproximar de Deus e obter a salvação, ganhou um atributo masculino
(barba) sem ter perdido a morfologia feminina (escondida porém sob amplas
roupas). O Filho de Deus, para salvar os seres humanos de ambos os sexos,
assumiu uma morfologia herrnafrodita (revelada por sua curta túnica) e exer-
ceu uma função feminina, a procriação. A barba de Wilgeforte é física (talvez
resultante de uma retenção menstrual), mas sobretudo simbólica, expressão
de suas virtudes. O hermafroclitismo cio Cristo é físico, mas sua gravidez, simbó-
lica, pois foi de seu corpo aberto pela lança do legionário que nasceu a Igreja í''.
No mesmo momento em que se desenvolvia a lenda de Santa Wilgeforte,
e provavelmente ligada a ela, aparecia a de uma virgem de Ávila, Santa Paula,
que fugindo às intenções amorosas de um homem, refugiara-se numa capela
onde, abraçada ao crucifixo, pedira a Cristo uma barba que afastasse seus pre-
tendentes+l. Temos ainda, contemporaneamente, em uma adição Legenda à
Aureafeita nas primeiras décadas do XIV, a história de Santa Barba (ou Bárbara),
mártir do século IV que se recusara a casar e fora decapitada pelo pai12 Apesar
de esse relato nada falar de uma barba da personagem, o nome dela revela
que em versões anteriores, provavelmente mais ligadas cultura folclórica, a
à
10. Tcrtuliano, De Anima, !J3,lO, cd . .J. 11. Waszink, Turnhout, Brcpols, J951J, p. 817; IIdefonso de
Toledo, Liber de Cognüione Baptismi, P/., 96, col. 111. tconografícamcnrc, talvez o mais famoso
exemplo da Igreja nascendo do /lanco aberto de Cristo esteja na Biblia Moralisadu Latina, de mea-
dos do século XIJI (Paris, Bibl iorcca Nacional, ms. Iar. 11560, tól, 186r).
11. Acla Sanctorum, fcbruarius, 111,(1758), p, 171.
42. legenda, p. 898.
43. B. ele Gaifficr, "La l.égcndc latino de Sainrc Ilarbc p.ujcan ele Wackerzecle", em Analecta Bollandiana,
77,1959, pp. 11 c 15-18.
,H. H. Castcx, Sainte t.ioradc: tüude bistorique et critique sur sa uie, son tnartyre, ses reliques e/ SOIl
-15. Bcda, Manyrotogtinn, /}I., 9~, col. 11:Vi; Mtlr/yru/ogilll1l Adonis, 1'1., 12:1,col. ~ 15; /lela StIIICIOrUI1l,
maii, r. I (16HO), p. XXVI.
~6. R. Van Doren, "Vilgcforris", em Bibliotbcca S{//ICIOJ7/III, (13 volx.), ROlHa. tsriruro Giovanni XXIII
dcllu Pontificia Univcrsità l.atcrancnsc, ·1961-1970. vol. 12, col. 1097.
'í7. G.D. Gordini, "lkrrbara", em Hihliotbeca Sanctorunt, "01. 2, col. 76~, Van Dorcn, loc. cit., col. J096.
~8. I.. Ginzberg, Tbe t.egends oftbcjetos, (6 vols.), Filadélfia, 'I'hc jcw Sodety of Amcrica, 1910-19~6,
vol. v. p. HI1, n. 115.
-19. C:L, supra, nora 32.
50. Consrablc, op. cu., p. 110.
5"1. A barba de Santa Gulla cresceu devido ~l intcrrupçâo de sua vida sexual decorrente da viuvez,
segundo Gregório Magno (cf., supra, nora 31).
52. /1jJ%gitl ele Barbis, 2, 339-3~6, cd. cit., p. 170.
185
Iher barbada, considerando-a monstruosa e motivo de riso>>. Existem casos
ambíguos, tipicamente folclóricos, como a íconografía românica de sereias
barbudas, catorze em toda a França, dez das quais no Poítou+'.
A barba da Eva de Saint-Savin, contudo, estava sem dúvida relacionada
com a androginia do Primeiro Homem e com a tradição hagiográfica da assexua-
lidade (e, portanto, de certa forma da androginia) de algumas santas conhecidas
na região. Sobretudo de Livrade ou Liberara, nome pelo qual a futura Wilgeforte
era desde o século VIII cultuada na Aquitânia, onde havia muitas capelas dedi-
cadas a ela55. Essa santa era objeto de reverência eminentemente popular, sem
tumba conhecida nem culto lítúrgíco». Naquela região, seu templo mais impor-
tante localizava-se em Casseneuil, na díocese de Agen, a alguns dias de dis-
tância de Saint-Savin, mas dentro do mesmo espaço político-cultural do duca-
do da Aquitânia. Provavelmente construída por Carlos Magno, essa igreja foi
depois entregue, em 1117, aos benedítinos da abadia de Chaise-Dieu>".
Portanto, entre aquelas duas igrejas abaciais havia uma possível origem
comum (que a tradição atribuía a CarIos Magno), uma mesma ordem monás-
tica (beneditina) e um culto de caráter popular a santas locais (Livrade e
Savine's'). A partir desses pontos comuns, não seria estranho que no espírito
dos habitantes ele Saint-Savin algumas características de Livrade fossem proje-
tadas sobre uma santa local cujo perfil possibilitasse certa identificação entre
elas. Poder-se-ia pensar em Santa Fleur, ausente de qualquer martirológio'",
e que aparece ao lado de Santa Barba em preces populares que pedem prote-
ção contra ternpestadesw. Preces folclóricas, presentes na longa duração históri-
ca, atestadas pelo menos desde o século XIV e ainda hoje existentes no Poitou.
Reforça essa possibilidade o fato de a festa de Santa Fleur ser no mesmo dia
da de Santa Galla e apenas três dias antes da de Ontcommer (cujo nome é a
tradução flamenga de Liberata, "libertada"). Contudo, não há indícios que rela-
cionem claramente Santa Fleur e a abadia de Saint-Savin,
53. G iraldus Cambrcnsis, Topograpbia l libernica, 11, 20, ed. J. F. Dinock, Londres, Longman, 1867, p.
107: "Mulícr ista, duplici prodígio monstruosa, non hcrmaphrodira tamcn, scd alias mulicbri naru-
ra rantum cmollita, ad intucntium rarn risum quarn stuporcm, curiam assiduc scqucbatur".
51. Conforme os dados fornecidos pela Fototeca do Ccntre d'Erudcs Supéricurcs de Civilisation Médiévalc
de Poiricrs. Tais representações estão em Aulnay, Chnizc-lc-Vicomrc, Chauvigny, l laimps, Sallcs-
lcs-Aulnay c Villicrs-sur-Chizé.
55. Bouvcnnc, 01'. cit., p. 115.
56. Van Dorcn, 01'. cit., col. 1096-1097.
57. Casrex, op. cit., 1'1'. 118-128; Bouvcnnc, oJ). cu., 1'1'. 115-116.
58. A mártir e virgem Savinc é conhecida apenas em Sainr-Savin, onde um dos altares registra seu
nome: Corpus eles inscriptions de Ia Francc médiéuale. Vienne. cd, R. Favrcau c ]. Michaud, Poiticrs,
CNRS-Universiré de Poiticrs, 1975, n. 59, p. 100.
59. J-L. Lc Qucllec, "I.a I-ormulerrc de Saintc Barhc conrrc I'orage: Variantes ct motivations", em
Méntoircs du cercle de/lides rnytbologiques, 1, 1991, 1'.59.
60. Idem, 1'1'. 51-80. A proteção contra tempestades eleve-se ao fato de um raio ter fulminado o pai
de Barba logo após ele a ter martirizado.
186
Devemos então lembrar que, na concepção dos afrescos da nave, tive-
ram papel central os textos lítúrgícos lidos ou cantados da Septuagésírna à
Páscoavl. Isto é, na etapa do ano Iitúrgico na qual aparecem referências a Adão
e Eva. De fato, na semana da Septuagésima lêem-se os primeiros capítulos do
Gênese, quando da Circuncisão e da Epifania, passagens da Epístola aos
Romanos, e no tempo da Paixão, versículos da Primeira EPístola aos Corintios,
textos que se referem ao Primeiro Homem, além de antífonas, responsórios e
hinos que também o citamG2. Ademais, o momento-chave da Paixão é tam-
bém o equinócio da primavera e () dia da criação do mundo'», portanto momen-
to no qual os primeiros afrescos da nave mereciam especial atenção. Dentre
eles o da Eva barbada, que inaugurava ali, no lado norte da igreja, um eixo
imaginário que terminava exatamente no primeiro altar da absidíola do dearn-
bulatório, o altar das virgens, erguido em meados do século XI, pouco antes
de começarem os trabalhos de pintura da abóbada.
Assim, não é despropositado pensar que havia uma "festa" de Eva6\ que
de maneira informal se inseria no calendário martirológico local. As santas do
altar das virgens eram celebradas a 5 de fevereiro (Agata), 13 de maio (Agnes),
15 de julho (Savine), 12 de agosto (Cecília), 19 de setembro (Lúcia) e 13 de
novembro (Percincrer». Duas santas barbadas completavam os últimos meses
do ano, Ontcommer (8 de outubro) e Bárbara (4 de dezembrojw. Ficavam
descobertos apenas junho, mês de trabalhos agrícolas imensos, no qual já
havia a festa do segundo patrono da abadia, Cipriano; e os meses ligados às
festas cristológicas, janeiro (Circuncisão e Epifania, esta por muito tempo con-
siderada mais importante que o Natal) e março-abril (Páscoa, a principal data
do cristianismo, festa móvel que se desloca de 22 de um mês a 25 do outro).
No período da Ressurreição do Senhor, lembrava-se aquela que intro-
duzira o pecado no mundo e que assim tornara necessária a Encarnaçâo e a
Paixãos". Aquela que fora em certo sentido a primeira mártir, atormentada
Sliba", cd. 1'. Pcctcrs, em Analecta Bollandiana, 27, 1908, [1. 178, Como os [acobitas, isto é, mem-
bros da Igreja crisrâ síría ocidental, sempre peregrinaram de forma continua a Jerusalém" - cf. J.
Fiey, "Lc Pêlcrinagc eles ncstoricns ct jacohites il jérusalcm, COH, 12, 1969. pp. 113-126 - não é
impossível que os cruzados, dos quais muitos eram originúrios do Poitou, tenham tomado conhe-
cimento das tradições religiosas daquele grupo.
68. O tema da vida sofrida de l.va e de seu comportamento santo após o Pecado Original aparece frc-
qücnrcmcnrc nos apócritos, em especial no II Comhattimento di Adanio, cd.-trad. A. Battista c B.
Bagarti, jcrusalém, l-ranciscan l'rinting I'ress, 1982.
69. lI. de Lubac, I!xégese médiéuale: Les Quutre sens de l'ticriture, (4 vols.), Paris, Aubier, 1959-1964;
B. Smallcy, 'I1JeSIUC~}' oftbe Bible inibe Middle Ages, Oxford, lIasil Blackwcll, 1983.
70. G. Dahan, "L'Intcrprétation de I'Ancien Tcstamcnt dans lcs drames religieux (Xlv-Xl llv sícclcs)",
RO/1/ll11ia, 100, 1979, rp. 71-103.
188
tradições bíblicas que circulavam de forma oral e literária sem entraves codi-
ficadores. Tradições que, devido exatamente a essa plasticidade, adequavam-
se melhor sensibilidade e ao comportamento
à dos leigos: os apócrifos.
Apesar de considerar tais narrativas sem autoridade divina, isto é, não
ditadas pelo Espírito Santo e por isso excluídas da Bíblia canonicamente acei-
ta, a Igreja não as combatia. Várias vezes mesmo, autoridades eclesiásticas
citavam-nas. Freqüenternente textos de pregação e a decoração iconográfica
recorriam aos apócrifos. Como Paul Zumthor constatou, "desde os séculos XI-
XII, e mais ainda no XIII, os livros bíblicos apócrifos entraram no domínio dos
conhecimentos correntes"?". E da mesma forma que desde os primeiros Pais
da Igreja as relações entre Antigo e Novo Testamentos eram objeto da exegese
erudita.", faziam-se aproximações e comparações entre os relatos apócrifos.
Esse simbolismo tipológico Iaico incluía personagens bíblicas - vistos mesclada-
mente a partir dos textos canônicos e apócrífos - e personagens provenientes
da mitologia clássica ou do folclore local.
No caso da Apresentação de Eva de Saint-Savin, a exegese popular dava-
se sobretudo a partir da forte presença de elementos míticos de origem judaica
incorporados ao folclore. De fato, desde a época de Carlos Magno os judeus
gozavam de boa situação no reino franco, com aquele soberano tendo mesmo
trazido da Itália e de Bagdá alguns eruditos conhecedores da fé mosaica, aos
quais se seguiram outros nos reinados de Luís, o Pio, e de Carlos, o Calvo?".
Ora, a tradição local atribuía a fundação de Saint-Savin a Carlos Magno e conside-
rava Bento de Aniane, que tinha sido homem de confiança de LUÍS, o Pio, um
dos primeiros a dirigir a abadia. Assim, pelas próprias condições históricas de
sua fundação, ela desde o início não deve ter desconhecido a cultura judaica.
Os contatos entre judeus e cristãos no reino franco de forma geral, inclu-
sive no Poitou, não foram incomuns. Mais do que isso, até vésperas das Cruzadas,
apesar da diferença central que representavam as respectivas religiões, judeus
e cristãos geralmente conviviam bem. Apesar do confisco dos bens hebraicos
ordenado por Filipe I (1060-1108), em meados do século XII os judeus do
Poitou já estavam novamente em boa situação, que melhorou ainda mais com
o advento dos Plantagenetas. Naquela época havia em Poitiers uma comu-
nidade judaica organizada, concentrada em uma das mais importantes ruas da
cidade, fato indicativo de estar ali instalada há muito tempo>'. Até mesmo ativi-
dades militares eram praticadas em comum por cristãos e judeus. As polêmi-
cas religiosas não significavam conflito, e alimentavam mesmo os espíritos">.
71. 1'. Zlllllthor, t tistoire littémire de Ia France ntédiéual, VI"-XII!<J siêclcs, Paris, PUI', '1951, p. 99.
72. Lubnc, op. cit., vol. I, pp. :128-355.
73. E. Kukcnhcim Iizn, "judco-Gnllk'a Neopbi/ologus, 17, 1963, pp. 8{)-91.
ou Gallo-judaict?",
71. ])1'. Vinccnr, '"es./uij'· du Poitou au bas /lge, Paris. Mareei Rivicrc, 1931, pp, 2-6.
iltO,1'1J1/
75. B. Blumcnkranz, ./uij.i et cbrétiens dons le monde occidental, 430-JO'J(j, Paris, Mouron, 1960, pp.
376 c 383. Daí que, ainda nos séculos XII-XliiI os cristãos tivessem bons conhecimentos das inrcr-
189
Saint-Savin pôde perfeitamente ter sentido os efeitos dessa convivência
tranqüila. Das 96 colônias judaicas existentes no reino franco, havia uma pró-
xima a Poitiers, outra em Loudun e outra ainda em Loches?ó. Portanto a peque-
nas distâncias (cerca de 50, 96 e 130 quilômetros respectivamente) de Saint-
Savin, o que o homem da Idade Média, de "mobilidade desconcertante"?",
podia cobrir entre um e quatro dias, conforme o caso. Na própria Saint-Savin
deve ter existido uma comunidade judaica, pois mesmo com os arquivos da
abadia quase totalmente destruídos no século XVI, subsistem indícios naque-
le sentido. Conhecemos documentadamente pelo menos um caso de judeu
habitando a cidade?", fato que sem dúvida não era isolado, como comprova
a existência de uma sinagoga?".
Apesar de esses fragmentos documentais serem do século XIII, eles permi-
tem pensar numa presença judaica anterior em Saint-Savin. Na passagem do
século XI ao XII havia ao menos, com certeza, grupos judaicos próximos a
Saint-Savin e em contato com ela. A influência da cultura judaica pôde atraves-
sar os muros da abadia e se fixar nos afrescos da abóbada da nave, não ape-
nas por estar enraizada na região mas também por não ter encontrado oposição
dos monges de Saint-Savin. De um lado, isso se deveu naturalmente ao fato
de aqueles monges serem produtos da cultura local, ou ao menos não poderem
ficar isentos dela. De outro, aqueles monges, devido à história da abadia,
estavam tocados pelo espírito cluniacense, que valorizava mais os trabalhos
litúrgicos que o estudo'v. No próprio programa iconográfico da abadia poitevi-
na percebe-se, como bem notou Yvonne Labande-Mailfert'". nítido caráter
pedagógico e litúrgico, no qual se revela a influência de Cluny. Ora, essa or-
dern monástica, de acentuado cunho aristocrático, mantinha forte ligação com
a cultura laica, que contemporaneamente ~lqueles afrescos ganhava terreno
com o fenômeno que ]acques Le Goff chamou de "reação folclórica'w.
Aquele convívio talvez tenha - ao lado da herança carolíngia, valoriza-
dora de temas vétero-testamentários - inconscientemente exercido alguma
prctaçõcs bíblicas judaicas: G. Dahan, Les tntellectucls cbréttens et lesjuifs au Moveu Age, Paris,
Ccrf, 1990, pp. 289-307; "I.a Connaissance de l'cxégcsc juivc par lcs chréricns du XII" au XIV" sie-
ele", Recue eles etuclesjuiues, 119, 1990, p, -183.
76. Conforme o mapa de \Veinreich publicado na Rotn. Pbil., 9, 1956. p. li09 e reproduzido por
Kukcnhcim, ojJ. cii., p. 90. Em I.oudun, ainda em princípios do século XVII, havia mais de sessen-
ta epitáfios judaicos medievais atestando a forte presença deles naquela região: '''I. Schwab,
"l.pitaphcs hébraíqucs " l.oudun'', Reuue eles étudesjuioes, 69,1919, pp. 221-22-1.
77. J. Lc Goff, La Cunliscuion de lCccident médtéoal, Paris, Arthaud, 1961, p. 172.
78. Vinccnt, ojJ. cit., p. 30.
79. ]1 o que revela um texto de 1266, no qual o abade se queixa ao conde de Poitlcrs de que "a sina-
goga dos judeus atrapalhava a celebração do serviço divino da igreja": citado por G. Nahon,
"L'Archéologic juive de Ia lrancc médiévalc", Arcbéologie médtéuale, 5, 1975, p. 1-15,
80. Valous, op. cit., 1'01. I, Pf>- 312-372.
81. Labandc-Mailfert, "Le Cyclc de I'Ancien Testamcnr'', pp. 391-395.
82. l.c Goff, "Culturc cléricalc ct traditions folkloriqucs duns Ia civilisation mérovingicnnc", em FAMA,
p. 233, n. 26.
190
influência na decisão de se cobrir 412 m? de afrescos apenas com cenas do
Antigo Testamento. De qualquer forma, é inegável que a convivência resul-
tou na penetração de elementos míticos judaicos no imaginário cristão local,
ou ao menos reforçou a presença deles ali. Foi o caso da concepção da
androginia inicial de Adão, que aparece, ainda que de forma ambígua, no
próprio texto do Beresbit. "Deus criou o homem sua imagem; à imagem de
à
Deus ele o criou. Macho e fêmea foram criados ao mesmo tempo"8.i. Esse "ao
mesmo tempo" tinha permitido comentários rabínicos segundo os quais, quan-
do o texto sobre a criação de Eva fala em Deus extraindo de Adão "uma de
suas costelas", isso significaria "um de seus dois lados"81. A mesma interpre-
tação que via em Ad~IOum andrógino depois dividido apareceria também no
Zobarõ>, texto tardio que reunia, contudo, tradições bem anteriores. Enfim,
era uma idéia muito difundida no mundo judaico a de que "a criação da mu-
lher, a partir do homem, foi possível porque originalmente Adão tinha duas
faces, que foram separadas para o nascimento de Eva"8ú.
Na verdade, as especulações sobre a androginia primitiva de Adão não
eram estranhas ao cristianismo medieval. Apesar de negada oficialmente pela
Igreja, a idéia foi aceita ao longo da Idade Média por vários teólogos importan-
tes, de Gregório de Nissa a Nicolau de Cusa. Quando Santo Agostinho, talvez
a maior autoridade teológica para o homem medieval, refere-se a Eva como
"masculi latere creata est'í", ele involuntariamente deixava para os séculos
seguintes a possibilidade da aceitação da interpretação andrógina. Adepto de
uma explicação literal e não alegórica das Escrituras, Santo Agostinho ao
preferir falar em tatus e não em costa, como aparece na Vulgata, não fazia ne-
nhuma opção exegética, mas isso seria entendido diferentemente pelos
medievais. Se no latim clássico costa, desde o século III a. c., significava igual-
mente "lado"88, no latim medieval tatus, além de sua acepção originária, ga-
nhou ainda o sentido de "união conjugal", de "concubinagem'w.
Visto dessa maneira, o afresco de Saint-Savin correspondía bem ao sen-
tido que o pensamento mítico atribuía ao texto bíblico: () Pecado que levara
o Ser humano a ser retirado do Paraíso era um fato paralelo retirada do lado- à
83. Beresbití . 27: La Bible, édition bilingue, rrad. Grand-Rabbin Zadoc Kahn, Paris, Caibo, 3. cd., 1983,
voi.I, p. 2.
81. Midrasb Rabba. Genêse, 8, 1, trad. li. Maruani e A. Cohcn-Arazi, Paris, Verdicr, 1987, p. 101.
85. Zobar, 31b, rrad, C. Mopsik, Paris, Verdier, 1981, vol. I, p. 193.
86. Ginzberg, ojJ. cit., vol. I, p, 66, e vol, V, pp. 88-89, n. 12.
87. f)e Ciuitute lJei, XIV, 22, n, 11, col. 1\30.
88. A. Ernout, A. Mcillct e J. Anclré, Dictionnuire étymologiqne de! la langue lutine. Paris, Klincksicck,
1979, p. 11\6.
89. A. Blaisc, t.extcon Latinitatts Medi! /leui, 'I'urnhout, l írcpols, ]975, p. 525. É interessante observar
que a versão bfblica grega dos Setenta também fala em pleurà, "lado', c não em "costela": La Bible
d'Alexandrie: 1.0 Genêse, rrad. M. l larl, Paris, Cerf, 1986,pp. lO'Í-105.
191
ligar à descrição do capítulo anterior do Gênese, que fala no homem criado à
imagem de Deus, criado "macho e fêmea". Enfim, bem de acordo com a men-
talidade medieval e suas expressões culturais globalízadoras, tratava-se de uma
leitura circular da Bíblia. Em função disso, a pintura mostra as três persona-
gens com traços bastante semelhantes, inclusive todas barbadas, pois os dois
indivíduos colocados nos lados (Adão e a pretensa Eva) são reflexo daquele
que se encontra no centro, são na verdade uma mesma e única criatura: o ser
humano criado à imagem e semelhança do Criador.
No plano social, a questão central colocada pela imagem era a do casa-
mento que, aliás, naquele momento, ganhava importância em todo o Ocidente
cristão. Para a Igreja tratava-se, no quadro da Reforma Gregoriana, de estabe-
lecer a atividade sexual como fronteira diferenciadora básica entre eclesiásti-
cos e Ieígos'v. Aos primeiros impunha-se o celibato obrigatório, aos segundos
que quisessem manter uma vida sexual ativa impunha-se o matrimônio. Fazendo
deste um sacramento, a Igreja retirava o sexo e a procriação da esfera do priva-
do, como tinha sido na Antiguidade, e colocava-o na esfera do público, isto
é, da comunidade cristã dirigida pela própria Igreja. Ora, a imagem de Deus
apresentando Eva a Adão era, do ponto de vista eclesiástico, lembrar o ato
fundador do sacramento. E dotar Eva de barba era lembrar a igualdade exis-
tente entre os cônjuges naquele sacramento, era insistir na necessidade do
consentimento mútuo para que ele fosse válido.
Para a monarquia francesa, a questão se colocava no mesmo momento
da execução dos afrescos de Saint-Savin, pois Filipe I ao repudiar sua esposa
para fazer um novo casamento foi excomungado (1095-11 05), ficando assim
impedido de participar da Primeira Cruzada. Este fato repercutiu por toda a
Cristandade, inclusive no POitOLl, cuja região vizinha estava naquele mesmo
momento (o Berry, em 1100) sendo anexada aos domínios reais capetíngios.
Para a nobreza feudal, enfim, a regulamentação do matrimônio interferia nas
questões de sucessão e herança e tornava-se por isso um tema de grande inte-
resse para ela. Especialmente a reafirmação das regras sobre consangüinidade
limitavam o mercado matrimonial daquela aristocracia fortemente aparentada
entre si por laços biológicos e espirituais. Para ela, a imagem de Saint-Savin
evocava antes de tudo uma relação incestuosa?". Mas do ponto de vista eru-
dito, como incesto é a intrusão da sexualidade numa relação espiritual, ele
não acontecera no Paraíso, apenas depois, como decorrência do Pecado Ori-
ginal. A prática do incesto era uma reprodução da Quedav-.
90. Chama a atenção uma curiosa sincronia, que mereceria ser estudada: o celibato clerical como ele-
mento difendador entre cléngos e leigos dava-se no momento em que se generalizava o hábito
destes últimos de raspar a barba, como faziam os primeiros. IIá interessantes dados para se pen-
sar a questão em 11. Platcllc, "Lc Problêmc du scandalc. l.cs Nouvellcs medes masculines aux Xlc
ct XII" siõclcs", J<HJ>lf, 53, 1975, pp. 1071-1096.
91. E. Leach, "Ia Gcnõsc comme mythc", cvo L'Unité del'bommect autres essais, (tracl.), Paris, Gallimard,
]980, pp. 151-156.
92. Agradecemos a Anita Gucrrcau-jalabcrt seus comentários sobre essa passagem de nosso texto e a
gentileza de ter colocado " nossa disposição trabalhos seus ainda em via de publicação.
192
Essa faceta social do Nascimento de Eva mostra, talvez mais que outras,
o fato de a leitura de uma imagem ser uma forma de manipulação dela'):\.
Freqüentemente o casamento representava interesses contrários para Igreja,
monarquia e nobreza?". Sobretudo naquele contexto de Cruzadas e de cresci-
mento demográfico, o que deixava muitos senhorios temporária ou definiti-
vamente sob o comando de mulheres. O próprio Poitou era um exemplo disso:
herdado em 1137 por Eleonor de Aquitânia, ela no mesmo ano o transmitiu
por casamento a Luís VII de França e, por um novo casamento, em 1152, ao
futuro Henrique II da Inglaterra. Da mesma forma, a transmissão de bens
fundiários por via feminina era um elemento importante no mais famoso mito
do Poitou, o de Melusina, fada que levou prosperidade material para a família
do marido e a retirou quando retornou ao Outro Mund095.
A melhoria da condição social feminina na primeira metade do século
XII, recolocava na ordem do dia algumas questões aparentemente definidas
pelo relato do Gênese. O fato de Eva ter nascido da costela de Adão, era geral-
mente interpretado como origem da inferioridade e da submissão femininas.
Além disso, ao dar nome a Eva, como fizera aos animais, AcElO passava a ter
poderes sobre ela<J6,segundo a antiga e difundida crença no poder criador e
dominador das palavras. Poderes, portanto, anteriores mesmo ao Pecado.
Porém o afresco de Saint-Savin, ao mostrar Eva com barba, em tudo seme-
lhante a Adão, colocava em xeque aquela pretensa superioridade masculina.
E de certa forma apenas fazendo uma leitura literal do texto bíblico: Eva "é
osso dos meus ossos e carne da minha carne", e por isso "eles se tornam uma
só carne"?", Leitura, aliás, que era a justificativa teológica do matrimônio
enquanto sacramento.
No plano antropológico, devemos considerar sobretudo a mudança entre
a Eva pré-pecado (barbada) e a Eva pós-pecado (imberbe). Podemos ver nisso
a expressão de um rito de passagem, como os existentes em grande número
nas sociedades arcaicas, inclusive na feudal. Conhecemos muitos casos, talvez
comparáveis, nos quais o corte de cabelo marcava o deslocamento do indiví-
duo de uma condição para outra, fosse social, etária ou sexual98. Mais especi-
ficamente, a imagem parece lembrar um rito de iniciação, dado cultural cen-
99. ]. G. Frazer, Tbe Golden Bougb, (8 vols.), Londres, Macmillan, 1907-1927, vol. lI, p. 278; Lcach,
"Chcveux, poils, magic'', em L'Unité de l'bomme, op. cit., pp. 321-361.
100. A. Zcmpleni, "Initiation", em 1'. Bonre e M. lzard (dir.) Dictionnaire de l'eib nologie et de l'anibro-
pologie, Paris, PUF, 1991, p. 375.
101. Ginzbcrg, op. cit., vol. I, pp, 75-83.
1(12. Gn 3, n.
103. Gn 3, 16.
104. Gn 4,1.
105. Burchard ele Bellevaux, op. cit., 11I,XXIV, 836-81t1, p. 200, associa barba e roupa, considerando-
as elementos revcladorcs das características espirituais de seus portadores, como demonstra o caso
de Santa Galla (111,VI; p. 177-178).
106. Los Capítulos de Rabbi Iiliezer, 14, 2, trad. M. Pérez Fcrnández, Valência, Institución S. jcrónimo,
1984, p, 125.
107. Midrasb Rabba, 20, 12, p. 235.
108. La \fie grecque d'Adam e/ Eoe, 20, cd-rrad. D. A. Bcrtrand, Paris, Maisonncuve, 1987, p. 85.
109. Cal 3,27; 1(11113, H; Cal 3,10 e Ef 4,24: sobre esses vcrsículos ver E. J Iaulottc, Svntbolique du vê/e-
meru selem laBible, Paris, Aubicr, 1966, pp, 221-233.
194
Símbolo do pecado, a nudez revela o outro lado do homem. Antes a alma
pura e radiante recobria o corpo, depois o corpo tornou-se a veste da alma.
O Pecado virou o homem do avesso. Assim, foi para cobrir o interno tornado
externo que ele passou a usar roupas. Roupas que protegem dos extremos do
frio e do calor o frágil corpo feito de argila, mas sobretudo que protegem o
corpo do poder de atração exercido por outro corpo. Não é casual que pelo
relato bíblico, Deus tenha entregue túnicas de pele aos primeiros seres humanos
logo após Adão ter lembrado a função sexual de Eva, cujo nome significa "mãe
de todos os ViVOS"llU.Como a barba de Eva era símbolo de assexualídade, e a
roupa seu inverso, faz sentido a leitura psicanalítica que vê na roupa uma repre-
sentação do útero, da gravidez e mais especificamente das membranas fetais!' t.
Assim, o rito de iniciação permite a passagem do uno ao dual e, pela
fusão da dualidade, o retorno à unidade através de uma terceira identidade.
Por isso O rito implica lima mudança física, uma pequena mutilação (dente,
orelha, nariz, circuncisão, subincisão) que marca definitivamente a inserção
do indivíduo na nova categoria social. Rito que gera ainda uma socialização
antagônica entre o mundo de dentro da nova categoria e o mundo de fora
dela112. Sem dúvida o casamento é uma das melhores expressões desse tipo
de rito por implicar separação (em relação às famílias originárias), marginalí-
zação (do mundo dos solteiros), mutilação (defloramento), reagregação (através
da maternidade/paternidade). Para a sociedade cristã medieval, naturalmente,
o protótipo dos casamentos (e de outras formas de iniciação) era encontrado
no mito de Adão e Eva. Esse é um dos fatos que a versão iconográfica de
Saint-Savin pretende acentuar, com a perda da barba de Eva metaforízando a
passagem da situação paradisíaca para a terrestre.
Como vimos, apesar das dificuldades em se acompanhar a formação das
lendas das santas barba das, a associação entre barba feminina e santidade é
bastante clara. Essa criação medieval tinha fontes bem anteriores. Na Antiguidade,
atribuía-se uma barba postiça a homens imberbes e a mulheres que tivessem
demonstrado coragem e sabedoria lU. Entre os semitas ela era muito valorizada,
sobretudo pelos hebreus, para quem cortar a barba de alguém era uma enorme
afronta, ou então sinal de luto e desolação!". Para os romanos do século I
110. Cn 5, 20-21.
111. A. Garma, "Origine cr symbolismc des vêrcmcnts". Reuucfrançaisc de psvcbanalvse, 11, 1950, pp.
60-81.
112. A expressão medieval disso eram os juvenis, homens núbcis c solteiros que buscavam um casa-
monto proveitoso em famílias socialmente mais bem colocadas. No contexto do crescimento
dcmográflco dos séculos XI-XII, esses membros da pequena c média aristocracia rcprcscnruvam
um furor de tensão social c insrahilidadc política, cf G. Duby, "I.cs jcuncs dans Ia sociéré arisro-
cratiquc duns ia Francc du Nord-Oucst au XII" sicclc", /l/;5e; 19, 1961, pp. 835-816; Guillaunte le
Marécbul ou le nteilleur cbeuatier du 11Iol1d<" I'aris, layurd. 19!H.
113. fJSymb, p. 107.
111. I'. Vigouroux, "Barbc", em F. Vigouroux (di r.), Dicttonimire de la Bible ( 10 vols.), I':tris, l.etouzcy
ct Ané, 1926-1928, vol, 1-2, col. H50-J156.
195
ela significava juventude, e deixava-se de usá-Ia aos 40 anos de idade. Entre
os primeiros cristãos, por influência romana, ela era considerada um símbo-
lo de eterna juventude e, para alguns Pais da Igreja, era preferível que os fiéis
usassem barba!t>. Entre os francos, um largo bigode era sinal de força e de
condição social superiorU". Para o monge Burchard de Bellevaux, no começo
da segunda metade do século XII, ela era sinal de força, sabedoria, maturida-
de e religiosidade! 17.
Para a sociedade medieval, o fato de um pai matar uma filha que se
recusava a aceitar o casamento (como nas lendas de Santa Barba, de Santa
Liberata e de Santa Wilgefone) era uma questão moral e jurídica, mas tam-
bém dizia respeito ao campo que atualmente chamaríamos de antropológico.
Realmente, o episódio se relacionava com a questão da parentela, que repre-
senta uma realidade cultural de peso para inúmeras sociedades. No caso da
sociedade feudal, os elementos essenciais estavam nos conceitos de filiação
e aliança. Elementos intimamente articulados, pois os dados da filiação eram
manipulados para formar ou consolidar alianças, e estas, por sua vez, gera-
vam novas filiações, que seriam depois utilizadas na construção e manutenção
das redes de aliança.
No entanto as regras matrimoniais que a Igreja passava então a impor
dificultavam o jogo das relações feudo-vassálicas através de casamentos.
Dificultavam, portanto, a preservação do sutil e delicado equilíbrio entre filia-
ção e aliança. O fato de a Igreja classificar como incesto, isto é, como tabu,
as uniões entre indivíduos aparentados até o sétimo grau, punha limites difí-
ceis de serem respeitados por aquela aristocracia de práticas matrimoniais mais
ou menos endogâmicas. Nesse contexto, o afresco de Saint-Savin lembrava
que o primeiro casamento do mundo fora entre Adão e sua filha Eva1J8. Isto
não era, claro, exclusividade da pintura de Saint-Savin, mas a barba de Eva,
ao dar uma nova força à cena, ressaltava a questão do incesto. Questão que
falava de perto à nobreza feudal do Poitou, pois em 1103 o duque Guilherme
IX fora excomungado por incesto, e em 1152 sua neta Eleonor e Luís VII de
França divorciavam-se alegando laços próximos de parentesco entre eles.
115. 11. Lcclcrcq, "]\arb<:", <:111/JAU., vol, 11-1, col. ~79-180 c 182.
J 16. J. Iloyoux, "Iü:g<:s criniti. Chevclurcs, tonsurcs cr scalps chcz lcs Mérovingicris", NHPI/, 26, 1918,
rr. 1J79-508; A. Camcron, "llo\\' J)id rhc Mcrovingian Kings Wear 'I'hcir Ilair''', 1<8['[[. 13, 1965, pp.
120j-1216.
117. Apologia de barbis, 111,XVI, rp. 190-191, e XVIII, pp. 193-195; XIX-XX, pp. 195-197; XXI-XXII, pp.
197-199; XXIII-XXIV, pp, 199-201.
1!8. Como foi mostrado por Rohcrto Zapperi em um interessante estudo, a partir da segunda mcradc
do século XI a iconografia passa a representar o nascimento de Eva não em dois momentos, a
extração da costela de Adào c a moldagcm da mulher naquela costela, mas <:111
uma só cena, com
Eva nascendo diretamente de Adão, COIllO em um parto: I. Tknnnte enceittt, (rrad.), Paris, PUI', 1983,
pp. 21 c ss. Assim, no plano mítico, a EV~I barlxrd« era o correspondente L' o complemento do
Adão grávido.
196
No plano psicológico, por fim, já se aventou uma hipótese sobre o mito
adâmico que se poderia aplicar ao afresco que examinamos U". Segundo
Theodor Reik e sua "psicanálise arqueológica", o mito, na sua versão bíblica,
registra de maneira deformada um rito de iniciação tal como era praticado
pelas tribos hebraícas primitivas. Tratar-se-ia de um rito clássico de puber-
dade: Adão adormecido (em êxtase) é circuncidado (extração da costela), des-
perta física, social e psiquicamente em condições de se casar (renascimento
simbólico que é o eixo do ritual), tem sua primeira experiência sexual (co-
nhece Eva), integra-se, enfim, ao mundo masculino adulto de sua sociedade.
Deste ponto de vista, ao sair de seu sono iniciático, Adão encontrou um novo
Adão graças à intervenção de um homem mais velho que conduzira o ritual.
Logo, na pintura de Saint-Savin as duas figuras barbadas que ladeiam
Deus, igualmente barbado, poderiam estar se referindo a Adão. Não existiria,
assim, uma Eva barbada. A cena pretenderia mostrar o iniciador, o pai sim-
bólico, apresentando o iniciado a si mesmo, isto é, ao indivíduo "morto" e
"renascido" pelo rito. Indivíduo representado basicamente com as mesmas
feições do mais velho, para expressar sua nova condição, sua igualdade diante
daquele. Plausível primeira vista, essa sobreposíção da teoria de Reik e do
à
119. Til. Rcik, La Création de ia femme, (trad.), Paris, Complexo, 1975, sobretudo pp. 81-123.
197
levava os ocidentais, primeiro a reagirem com violência contra o diferente, e
depois a refletirem sobre si mesmos. As Cruzadas punham aqueles homens
diante de outras sociedades, com as quais os contatos anteriores tinham sido
indiretos ou pouco intensos. Através dos cronistas e viajantes da época percebe-
se bem os sentimentos contraditórios de admiração, ódio, estranheza e atração
que bizantinos e muçulmanos provocavam nos ocidentais. Os judeus, presen-
tes havia tantos séculos no Ocidente, passavam a ser vistos como o outro, o
estrangeiro por excelência.
Esses novos sentimentos despontavam mesmo no seio da sociedade
cristã. O crescimento demográfico, ao provocar a derrubada de florestas, a
drenagem de pântanos, a construção de cidades, a intensificação das trocas
comerciais, não aproximava os grupos humanos? Não se percebia que as
regiões vizinhas, tão parecidas em vários aspectos, também tinham suas parti-
cularidades? Não se descobria cada vez mais a existência de dialetos dife-
rentes, de gente vinda de todas as partes? Não começava a se desenvolver o
sentimento que depois seria chamado de nacionalista? Apesar de todas essas
novidades, naquele mundo em transformação acelerada, os maiores contrastes
e as maiores semelhanças entre o Eu e o Outro continuavam a estar na com-
paração homem/mulher. E nisso, como em muitos outros fenômenos sociais,
o mito de Adão fornecia os elementos essenciais de reflexão, conscientes ou
não. Nesse quadro é que a concepção da androginia adâmica ganhava nova-
mente força.
Tal leitura do texto bíblico e de sua representação-interpretação pelos
artistas de Saint-Savin era perfeitamente plausível para a cultura da época. Na
narrativa bíblica, a proibição de comer o fruto fora implicitamente feita a um
ser andrógino. A interdição fora anterior ao nascimento de Eva, e se esta foi
depois punida por uma proibição que Deus não lhe dirigira nomeadamente,
é porque enquanto costela de Adão a proibição também dizia respeito a ela.
Costela era então claramente uma metáfora da parte feminina do Andrógino
Primordial. Mesmo autores eclesiásticos, desde Santo Ambrósio, reconheciam
que, se o espírito é masculino e a alma feminina, "o espírito é como Adão, a
sensibilidade como Eva"120. Ademais, no relato do Gênese, o elemento femini-
no somente recebe nome - Eva -logo após o Pecadot-", fato fundamental,
pois para a mentalidade arcaica um ser OLl uma coisa ganha existência ape-
nas a partir do momento em que tem um nome122.
123. Desde os primeiros tempos do monasrícísmo, costumava-se comparar o monge ao Aclào paradi-
siaco e o claustro ao 1;(I<.:n,o que era feito ainda por volta de 1130 por Ilonório Augusroduncnsis,
Gemnta Anintae. 119, FI., 172, col. 590 n. Esse sentido transmitido pela "Eva barba da" era reforça-
do alguns metros adiante pela cena da embriaguez de Noé, segundo pai da humanidade, que t.un-
bém ganhara contornos andróginos <':0111 a cmasculaçào: a Arca é um símbolo da Igreja) c o 1110ngt.:
é tanto o Adào pró-Queda quanto o Noé pós-castração.
12ft. Graf, "11 Mito dei I'aradiso Terrestre", em Mili, p. 92; 11. Franco júnior, IIs Utopias Medieoais, São
Paulo, Brasilicnsc, 1992, pp, 113-139.
o OUVIDO DE ADÃO
ESCULTURA E MITO
NO CAMINHO DE SANTIAGO
I. R. Dei Arco y Garay, Calâlogo Monumerual de Iispaiia. lIucsca, Madricl, CSIC, 1942, p, 191; A.
Ubieta Altera, "La Consrrucción de Ia Colegiata de Alquézar", Pirineos, 5, 1949, p, 259. A. San
Vicente, Aragol1 ronian, l.a Picrrc-qui-virc, Zodiaque, 1971, pp. 26 e 309.
2. I J.Franco júnior, Peregrinos, Monges e Guerreiro.": Peudo-dericalismo e Religiostdade e111 Castelo
Medieval, São Paulo, Ilucitec, 1990, pp. 35-81.
200
do Pecado Original está figurada de maneira absolutamente convencional. De
outro, porque as versões bíblicas às quaís os cristãos de então podiam ter
acesso descreviam o ato divino da criação de Adão de forma diferente.
Com efeito, assim como faz a tradução grega dos Setenta", a Vulgata
latina também fala no gesto criador como sendo um sopro divino sobre a face
de Adão: "Deus formou o homem do pó do solo, e insuflou sobre seu rosto
um sopro de vida e o homem tornou-se um ser vívo'", O original hebraico,
por sua vez, refere-se a Deus soprando "nas suas narinas">, Além disso, o ar-
tista de Alquézar rompia a tradição iconográfica segundo a qual o caráter sagra-
do de Deus deveria estar sempre figurativamente indicado, fosse por uma
auréola, por um nimbo ou por algum outro signo. Trata-se portanto de uma
imagem única e que não foi até hoje, que saibamos, objeto de um estudo
especffícov.
Quais teriam sido as fontes daquela imagem? Unicamente a imaginação
do escultor anônimo? Como Reto Bezzola observou com razão há já muitos
anos, "o poeta da Idade Média [...l, como o escultor, o pintor, o arquiteto, o
músico e mesmo o pensador e o filósofo, cria segundo um modelo que nasce
da própria alma da obra com a qual ele sonha, e não para exprimir em primeiro
lugar seus sentimentos individuais [...l. O autor da Idade Média, como o da
Antiguidade, não é somente um indivíduo perdido num mundo caótico e hos-
til; ele é uma pessoa, isto é, ele se sente indivíduo, mas também e sobretudo,
membro de um organismo, a sociedade humana. O estilo que ele adota, ao
qual se submete sem se sentir forçado, é a expressão desse organísrno'".
Portanto, criava-se de acordo com as possibilidades de criação e de com-
preensão desta, contidas no artista, no patrocinador e no público. Se no caso
de Alquézar quase nada sabemos sobre o primeiro, conhecemos suficienternen-
te os outros dois elementos dessa relação interdependente geradora de obras
artísticas. Sabemos da força da cultura oral naquela sociedade em grande parte
iletrada. A partir dela, muito provavelmente sem ter consciência disso, o que
o escultor ali realizou foi uma interessante metáfora do seu próprio trabalho
de criador. Vox populi, vox Dei. Ou, diz () apóstolo, "a fé nasce da audição'<.
3. Gn 2, 7, ia Bible d'Alexandrie: ia Genêsc. trad. M. Ilarl, Paris. Cerf, 1986, pp. 100-101.
1. Gn 2, 7, Biblia vutgata, cd, A. Colunga e L. 'l'urrado, Madrid, llAC, 7. cd., 1985.
5. Beresbit Z, 7, La Bible, édition bilingue, trad. Grand-Rabbin /:adoc Kahn, Paris. Coíbo, 3. cd., 1983,
vol. I, p. 3.
6. Estranhamente, mesmo as referências ao capitel ele Alquézar não são comuns: ele não aparece
recenseado no imenso levantamento do lndex cfCbrisiian Art ele Princcton, G. Pamplona, Iconografia
de Ia Santisinut Trinidad en e/ /lrle Medieual lN){11701,Madrid, Instituto Dicgo Vclázqucz-Côlt.,
1970, e F. Bocspflug, Dieu dans lart, Paris, Ccrf, 19811, também não o citam. Mesmo a identifi-
cação da cena às vezes gerou problemas: J. Lacoste,"La Sculpturc romane du cloitre d'Alquézar",
em XII Semana de Estutlios Medieuales, Pamplona, Insrírucíón Príncipe de Viana-CSIC, 1976, p.
226, vê ali uma Ascensão da Virgem.
,. IL Bezolla, Le Sens de l'auenture et de l'amour, Paris, La jeune Pâque, 1917, pp. 82-83.
8. Rrn 10, ]7.
201
o fato de não conhecermos atualmente textos que façam referência explí-
cita a uma cena como aquela não significa que eles não tenham existido, ao
menos sob forma oral, o primeiro estágio de toda literatura medieval. Como
Paul Zumthor observou, "o conjunto de textos que nos legou os séculos x,
XI, XII e, numa medida talvez menor, o XIII e o XIV, transitou pela voz não de
maneira aleatória, mas em virtude de uma situação histórica que fez desse
trânsito vocal o único modo possível de realização - de socialização - des-
ses textos'". De fato, o artista parece ter tirado da cultura oral a concepção da
imagem que esculpiu sobre a formação de Adào. Por isso seu tratamento do
tema, ainda que incomum, não chocou nem os cônegos seus contratantes nem
o público local, pois ambos partilhavam das mesmas tradições orais.
Não se pode esquecer que a oralidade era na Idade Média um elos traços
marcantes ela cultura intermediária, isto é, do universo cultural comum a todos
os membros da sociedade, da área de intersecção entre a cultura erudita e a
cultura vulgarlO. Deve-se ainda ter sempre em conta a aguda observação de
Lucien Febvre!", retomada por ]acques Le Gofft-, segundo a qual antes do
século XVI os homens valorizavam mais o que ouviam do que o que viam.
Ou melhor, os medievais tendiam a identificar as coisas que viam com valo-
res e conhecimentos adquiridos previamente, quase sempre por ouvir-dizert:'.
O cristianismo tivera papel central na formação dessa mentalidade ao valo-
rizar a realidade transcendente sobre a realidade material, ao colocar a fé
acima das comprovações concretas: "Felizes aqueles que acreditaram sem
terem visto"!".
A imagem que não correspondesse a fatos, coisas Oll pessoas sobre os
quais se ouvira algo não era reconhecida. A pequena preocupação da arte
medieval com o naturalismo expressava exatamente essa preponderância do
ouvido sobre o visto. Por ter fundamentos na oralídade, é que a arte români-
15. Mesmo ° gótico, tocado por uma sensibilidade coletiva mais naturalista, continuaria sempre liga-
do ao universo do maravilhoso, como mostrou muito bem j. Baltrusaitis, I.e Moven Agefantas-
tique: Antiquités et exotismes clans /'(//"1gotbique, Paris, l-larnmurion, 1981.
16. San Viccnrc, ojJ. cit., p. 26.
17. lI. l.cclcrcq, figuras 2~00 (detalhe) e 33~2 (conjunto), em /J/lCl, vai. 11I-1, col. 10, c 111-2, cal. 3021-
203
No entanto esse tipo de figuração não conheceu grande sucesso nos
séculos seguintes. Ele colocava problemas teológicos difíceis de serem resolvi-
dos a contento do ponto de vista da hierarquia eclesiástica. Talvez por isso,
como observou Adelheid Heírnann, existem poucos exemplos iconográficos
de Deus tricéfalo criador, dentre eles apenas um do século XII (além do de
Alquézar, que aparentemente aquela autora desconhecia), em uma Bíblia do
mosteiro de Michelbeuren IH Expressando a importância relativamente peque-
na que tivera até então, apenas em 1334 passou a existir no calendário Iitúrgi-
co uma festa da Santíssima Trindade. Significativamente, a partir daquele
momento cresceu o número de representações rrícéfalas da Divindade, surgin-
do dezenas delas ao longo dos séculos XIV e XVi'). Mas suas raízes míticas
sempre causaram desconfiança no clero e, em meados do século XVIII, o papa
Bento XIV condenava as representações antropomorfas da Trindade e consi-
derava monstruoso figurá-Ia como uma pessoa de três cabeças-v.
Em Alquézar as resistências a esse tipo de representação foram peque-
nas. No piano eclesiástico, porque o mistério da Trindade tinha sido uma preo-
cupação constante de Santo Agostinho, sob cuja regra viviam os cônegos da
colegiada. De fato, para ele a Trindade é o fundamento da vida espiritual e,
concretamente, da vida comunitária. Nessa leitura, ele enfatizava o texto bíbli-
co que explicava a unidade da Trindade pelo fato de todos os crentes terem
uma só alma e um só coração em Deus-I: se a caridade transforma a multi-
dão de fiéis em um só homem, com mais razão isso ocorre entre as Pessoas
Divinas. Como o homem foi criado à imagem de Deus, é preciso conhecer
Deus para se conhecer o homem, é preciso ver o modelo para ver a imagem.
Modelo que é um mistério, mas acessível porque ele próprio se revelou ao
homem através do amor e da caridade. Somente em comunidade e a partir da
comunidade, se pode alcançar Deus e o próprio homemss.
Dessa maneira, do ponto de vista dos cônegos que dirigiam a abadia de
Alquézar, aquele capítel, ao representar o ato da Criação, lembrava a unidade
essencial existente entre a Trindade e a própria comunidade agostiniana. Figu-
rar Deus como tricéfalo era apenas uma forma de insistir em seu caráter trini-
tário. Se as representações artísticas ocidentais geralmente evitavam uma solu-
3022, vê naquela imagem a "criação do homem" (vol. 111-1,col. 3i:n. Para A. l1eimann, "Triniras
Crcator Mundi", [ournal oftbe rr;arIJlJl:~ lnstüute, 2, 1938-1939, p. /t3, "O assunto é indubiravcl-
mente a criação de Eva".
18. l lcirnann, "Trinitas Crcator Mundi", op. cit., p. ~5. Nessa iluminura, a página está dividida em seis
cenas, cada uma correspondente a um dia da Criação. Em cinco delas a obra criadora é feita pela
Trindade (três figuras aurcoladas que estão sempre juntas), enquanto, curiosamente, na cena da
criação do homem Deus é representado sob uma forma única.
19. Bocspflug, (li), cit., pp. 285-286.
20. Idem, pp. 39-1t7.
21. Ar «, 32.
22. J. García Alvurcz, "El Misterio de Ia Trinidad y Ia Comunidad en San Agustín", Reuista Agustiniana,
33, 1992, pp. 613-637.
201
ção semelhante, ela não punha maiores problemas para os agostinianos, sem-
pre conscientes dos limites de qualquer tipo de figuração divina: "Quem pen-
sas que é Deus? Como pensas que ele é? Qualquer coisa que chegues a figu-
rar não é ele. Qualquer coisa que compreendas com tua mente não é ele"2.ô.
No plano da cultura laica aquela representação era vista com naturali-
dade, porque pelo menos desde o século IX existia um texto latino de fundo
mítico que sugeria a Criação pela Trindade. Nele, ao lado do Deus criador e
do Espírito Santo (este citado como o sétimo elemento constitutivo de Adão),
aparecia como oitavo elemento a lux mundi, interpretada como sendo Cristo>'.
Ademais, as transformações sociais, culturais e espirituais que acompanhavam
a consolidação da sociedade feudal geravam referências iconográficas ao princí-
pio trinitário da Divindade, especialmente do último terço do século XI ao
primeiro quartel do século seguinte-o. Por fim, os artistas espanhóis do sécu-
lo XII estavam bem familiarizados com as figurações bizantinas da Trindade-v.
As origens pagãs da concepção do Deus tricéfalo de Alquézar eram muito
antigas. Elas remontavam à cultura do substrato populacional celta, que aceita-
va a existência de várias divindades tricéfalas, como ocorria, aliás, com ou-
tros povos bárbaros europeus-". A posterior presença dos gregos em território
ibérico reforçou aquele dado: eles tinham na sua mitologia seres tricéfalos
como a deusa Hécate e o cão Cérbero, além de um gigante de três cabeças,
Gérion, cujos domínios localizavam-se na ilha de Erítia, provavelmente a região
de Cádiz-". Posteriormente a conquista romana, com suas tríades divinas, tam-
bém ajudou a manter em terra hispânica aquele elemento cultural.
Por fim, o sincretismo realizado por aquela imagem dependeu muito da
situação local, eclesiástica e política. Paralelamente ao antiqüíssirno simbolis-
mo do número três, a referência a ele no Aragão da época ligava-se a um im-
portante fenômeno religioso, a substituição do rito moçárabe pelo rito romano.
De fato, ao lado de várias pequenas práticas típicas de cada uma, a diferença
central, cheia de implicações simbólicas, era o fato de a liturgia hispânica dividir
a hóstia em sete partes (ou nove, conforme a região) e a romana em três-".
30. A. Ubieto Arteta, "La Introducción dei Rito Romano en Aragón y Navarra", Hlspania Sacra, 1, 1918,
pp. 299-324; A. Durán Gudiol, t.a Iglesia de Aragõn durante Ias Reinados de Sancbo Ramirez y
Pedro I, Roma, Iglesia Nacional Esp'1I101a, ] 962.
31. Gn 2,7. Le Coran, trad, H. Blancherc, Paris, Maisonneuve ct Larosc, 1966: 6, 2; 7, 11; 15,26,33;
17,63; 23, 12; 32, 6; 38, 7], 77; 55,13. Outros versículos falam em "terra" (11, 6'1; 20, 57), "pó"
(18, 35; 30, 19; 40, 69) e "água" (25, 56).
32. R. Graves e R. Patai, Los Mitos Hebreos, (trad.), Maclrid, Alianza, 1986, pp. 55-56; J. Knappcrt,
Islarnic Legends, (2 vols.), l.cidcn, J3rill, 1985, vaI. I, p. 3. Tabari, Cbronique. De 1(/ Création. à
Dauid, tracl. H. Zotenberg, Paris, Simbacl, 1981, pp, 74-75, transmite uma variante segundo a qual
Alá enviou Gabriel para recolher argila de todo tipo para sua obra mas, diante do lamento da terra,
o anjo não cumpriu a tarefa, o mesmo acontecendo com o segundo enviado, Migucl, até que o
seguinte, Izrâil, o anjo da morte, cumpriu a ordem e Deus pôde assim criar o homem.
33. c:. Lévi-Strauss, Antbropologie structurale, Paris, Plon, 1958, p. 232.
31. Oracula Sybillina, 3, 21-26 e H, 321, trad. E. Suárcz de Ia Torre, em A. Dícz Macho e/ alii (cds.),
Apôcrtfos dei Antiguo Testamento, Madrid, Crisriandad, 1982, \'01. 11I, pp, 287-288 c 355.
206
Depois o mito foi retomado pelo Livro dos segredos de Henoc », por Pais da
Igreja como Agostinhow, e por autores medievais como Beda57, Alcuino-f e
Honório Augustodunensis-".
O mesmo relato mítico fala em Aclão formado por oito elementos - ter-
ra, mar, sol, nuvens, vento, pedra, espírito de Deus, luz do mundo - motivo
conhecido no Ocidente pelo menos desde Plutarcow. Disso decorriam as oito
características humanas, quatro vindas do mundo celeste (o homem tem porte
vertical, fala, inteligência e visão, como os anjos), quatro do mundo inferior
(o homem come, se reproduz, defeca e morre como qualquer animal)!'. Esse
duplo relato sobre o nome e os elementos constitutivos de Adão, teve na
Europa medieval versões em latim e em idiomas vulgares e sobrevive ainda
no folclore de vários países12. As oito cabeças que aparecem na escultura de
Alquézar (quatro de anjos, três de Deus e a de Adào) fariam alguma referên-
cia a isso?
Sustentado pelo braço esquerdo de Deus, o Adão ainda inerte toca o
lado oriental do círculo com sua cabeça e o ocidental com os pés. Sendo o
círculo símbolo cio Uníverso+', a imagem lembra uma antiga tradição mítica
- ele origem hebraíca+', mas presente em fontes cristãs15 e sobretudo muçulma-
nas - que atribuía ao Adão paradisíaco uma enorme estatura. Falavam nisso,
por exemplo, as célebres narrativas das aventuras de Sindbad, texto escrito
na primeira metade do século IX e logo popular por todo o mundo muçul-
mano. Segundo esse relato, havia no Ceilão uma montanha sobre a qual Adão
caíra ao ser expulso do Paraíso, deixando na rocha a marca de seu pé, sufí-
cientemente profunda para um homem poder dormir ali dentro sem ser visto16
Essa marca, especifica outro relato da mesma época, tinha 70 codos de
comprimento, isto é, 35 metrost". Outro texto ainda, de fins do século X, consí-
35. Libro de los Secretos de l Icnoc, 65-61, trud. A. de Santos Otcro, em Díez Macho, ojJ. cit., vol, IV, p.
178.
36. Santo Agostinho, [11.'/o([l111istiuangelíum, X, 12, 1'1., 35, col, 11,75.
37. Bcda, In S.[oannis Iiuangelium tixposruo, ll, Pl., 92, col. 666-667.
38. Alcuino, C0111I1/el1ll//'io in S.]om1l1is Iioangeliunt, li, 1, 1'1., 100, col. 777 A.
39. IIon6rio Augusroduncnsís, tüuctâartnnr. 1,11, 1'1., 172, col. 1117 A.
1n. Grnf, em Mili, p. 79.
11. Midrasb Rabba. Genõse, 8,11 e 11, 5, trud. B. Maruani e A. Cohcn-Arazí, Paris, Vcrdicr, 19H7, pp.
112-113 e 172.
'i2. S. 'I'hompson, Tbc Mutif-index ofFolle-lttemturc. (6 vols.), Bloomingron, Indiana Univcrsiry Prcss,
19'55-195H, 1'01. I, A. 1260, 1. 3; Turdcanu, ojJ. cit., 2. cd., pp. 165-191.
13. O. Bcígbcdcr, t.cxique eles svmboles, l.a Pierre-qui-vire, Zodiaque,1989, p. 152. O círculo era ainda,
para a tradição islâmica, a mais perfeita forma existente: f),\)'IIIb, p. 191.
-í-i. Mulrasb Rabba, 8, 1, p.I01; l.. Ginzberg, Tbe I.egentls oftbcjeios. (6 vols.), l'iladélfia, Thc jcw
Socicry 01' Amcrica, 1910-1916, 1'01. I, p. 59, e vol. V, p. 79, n. 22.
15. Por exemplo, de fins do século XII, \Valtcr Map, De Nugis Cu/'i(/1i1/111, I, I, cd. M. R. jumcs, Oxford,
Clarcndon, 1911, p. 2.
46. Les Auentures de Sindbad le ntarin, rrad. H. H. Khawam, Paris, Phébus, Z. cd., 1990, p. 191.
17. Retatton eles oovages faits par les Arabes et les Persans dans [h/de et il Cbine (/(//1S le IXe siécte de
207
derava a grande estatura de Adão como uma das características dos habitantes
do Paraíso+'. Nenhum desses textos era originário de al-Andalus, porém é
preciso lembrar que a Espanha muçulmana, ao menos até o desmembramento
político de 1031, mantinha-se muito ligada cultural e espiritualmente às regiões
íslãmícas orientais. Os muçulmanos andaluzes dirigiam-se com freqüência ao
Oriente, em peregrinação ou a negócios, e havia em Córdoba uma pequena
mas influente colônia de muçulmanos originários do Oriente t''. Além disso,
o "aspecto delíberadarnente conservador ou mesmo arcaizante" do califado
Omíada>', sem dúvida contribuiu para enraizar ali dados míticos de pro-
cedência oriental.
Quanto à posição do corpo de Adão, chama a atenção uma referência
de fins do século IX ou começo do X, feita por Tabari, talvez o mais impor-
tante e mais conhecido dos cronistas muçulmanos medievais. Segundo ele,
após a criação Adão ficou "estendido no chão, de uma grandeza tal que seu
corpo ia do Oriente ao Ocidente">'. Exatamente como aparece no capitel
aragonês. Essa disposição corporal cio Primeiro Homem adotada pelo escul-
tor não era casual, mas expressava o rico simbolismo do eixo Oriente-Ocidente,
importante tanto para cristãos quanto para muçulmanos. Para estes a questão
ganhou nova importância com a corrente sufísta, que via o Ocidente ligado
ao corpo e o Oriente à Alma uníversal--.
O mesmo cronista lembra ainda outra tradição mítica muçulmana que
ajuda a explicar a postura rígida do Ad~IO de Alquézar. Este é representado
estático diante do Criador, pois Alá depois de modelar o Primeiro Homem
olhou-o por quarenta anos antes de lhe insuflar vida 55. A cena esculpida no
capítel relembra esse momento, no qual o toque divino transformará o boneco
em um ser vivo. Logo depois disso começou a revolta de Iblis, que não quis
prosternar-se diante da nova criatura>", o que dividiu a comunidade angélica
l'êre cbrétienne, i, 7, cd-rrad. J.. M. Langlcs c). '1'. Rcinaud. (2 vols.), l'urix. lmprimcric Royalc,
1815, pp. 5-6. () local passou desde () século X a ser objeto de pcrcgrinaçâo por parte dos muçul-
manos: li, 9, n. 11;.
~8. Abou-Zeid Ahmed lIen Sahl cl-Bnlkhi, I.e t.iure de Ia Création et de l'histoire, rrnd. C. J íu.ur (5 vols.),
Paris, Ernest l.croux, 1899-1919, \'01. I, Cup. 6, p. 179.
/i9. E. Lcvi-Provcncal, Histoirc dellispagne musulnutne: l.eSiiJc/edu caltfat de Cottknte, Paris, Mnisonncuvc
cr l.arosc, 1967, pp, 467-170 c 1H8-190.
50. tdem, p. 155.
51. Tabari, op. cit., p. 75.
52. n.\)'IIIb, p. 711. Conrcmporancamcntc 'I escultura de Alquézar. difundia-se o pcnsamcruo de al-
Ghazali (1058-1111), que foi o maior representante do sufismo. mas sem se afastar da ortodoxia
sunira, o que facilitoll a divulgação de suas idéias. Esras, apesar de condenadas pelo tradicionalis-
mo dos almorávídas em ·1109, em Córdoba, não foran: eliminadas da l lispânia muçulmana c ganha-
rum nova t()I"\:adécadas mais tarde, com a dinastia dos almôadas, cujo fundador feria entrado pes-
soalmcntc <.:111 contato com o célebre teólogo.
53. Tahari, op. cit., p. 75; Abou-Zcid, 01'. cit., vol. 11,Cap, 7, p. 7'1.
)li. I.e Coran 2, 511-36;7,11-18; 15, 30-1t2; 17,61-65;18, 1j1)-50;20, 116; 38, 73-81.
208
entre os que acataram a criação do homem e outros que a desaprovaram.
Diante disso, pode-se perguntar se o escultor não se referia a esse relato quan-
do colocou em posições opostas os anjos que assistem à cena.
Portanto, o material mítico islãmico parece ter-se constituído na princi-
pal fonte para a representação de Adão realizada pelo escultor. Tal fato, é
claro, decorria das condições históricas aragonesas, que tinham na cultura
muçulmana um componente de peso. A influência exercida por ela naquela
região foi grande e se manteve na longa duração histórica, permitindo que
ainda em princípios do século XX se pudesse observar que "a cidade de
Alquézar, os costumes e o modo de vestir de seus moradores lembram os tem-
pos da dominação muçulmana'o>. Recuperada mais de três séculos depois da
conquista moura da região, Alquézar não poderia naturalmente negar aquela
prolongada presença islârnica. Seu próprio nome era uma prova disso, pois
vinha de al-Qasr Banú laia}; "o castelo dos descendentes de ]alaf", chefe
muçulmano local.
A convivência próxima e cotidiana entre reconquistadores e dominados
permitia uma constante troca cultural, na qual a parcela islâmica era preponde-
rante, ou quase, em função da situação demográfica local e do poder de atração
daquela cultura. Tal poder era tão grande que o rei Pedra I (1094-1104), suces-
sor do reconquistado r de Alquézar, assinava suas atas em árabe apesar de ser
fervoroso adepto da luta antimuçulmana. Quanto à importância demográfica
da população rnudéjar, isto é, muçulmana vivendo em território cristão, sem
dúvida ela se manteve grande em Aragão até o século XVI. Aqueles indivídu-
os eram majoritariamente camponeses dependentes, mas também proprietários
rurais, artesãos e comerciantes urbanos'é. Enfim, a supremacia político-mili-
tar cristã resultante da Reconquista da região, não se refletiu de imediato em
uma inversão da condição social e cultural dos mudéjares.
Como ocorria em todo Aragão reconquistado, também na zona de influên-
cia do castelo de Alquézar a maioria dos muçulmanos que ali habitavam ante-
riormente permaneceu no localv. Pela documentação ainda existente, "pode-
se pensar que eles coabitavam com cristãos e judeus em completa igualdade,
sem serem confinados fora ela muralha, e que seu número era superior ao dos
cristãos"58. Vários deles elevem ter acabado por se converter ao cristianismo,
55. R. Dei Arco e L. Labastida, RI Alto Aragôn Monumentaly Pintoresco, Iluesca, Justo Martlnez, 191;$,
p. 32. Veja-se também H. Dei Arco, No/as de Polelore Altouragones. Madrid, CSIC, 191;$.
56. J. M. l acarra, "Introducción ai Esrudio de los Mudéjares Aragoncscs", em Aragól1 en Ia tidud Media,
Zaragoza, Universidad de Zaragoza, 1979, pp. 7-10.
57. A. Durán Gudiol, Historta de Alquézar, Zaragoza, Guara, 1979, p. 123. Ainda no século XIV, os
mudéjares se constituíam em um terço da população aragonesa e conviviam bastante bem com os
outros segmentos religiosos, pois "de fato, na época, a simbiosc aragonesa parecia quase utópi-
ca": J. Boswcll, 77.?eRoyal Treasure: Muslitn Communities u.nder lhe Crown ofAragon in lhe
Fourteentb Century, New l lavcn, Yale Univcrsity Press, 1977, pp. 7 e 373.
58. J .-G. l.iauzu, "L" Condition des musulmans dans I'Aragon chréticn aux Xc ct Xll" sicclcs", l Iespéris-
Ta/muda, 9, 1968, p. 185.
209
como ocorreu em 1081 com seis servos, então alforriados>", Indivíduos nessa
situação tornavam-se intermediários culturais privilegiados, pois sem poder, mes-
mo que quisessem, negar sua herança muçulmana, levavam-na para a socie-
dade cristã, na qual tinham passado a ser mais bem aceitos graças à conversão.
Ademais, não se deve esquecer que a cultura popular muçulmana mescla-
va lendas bíblícas, outros relatos míticos cristãos e narrativas folclóricas das
regiões conquístadasv'. Sobretudo na península Ibérica, onde as tradições orais
hebraicas, cristãs e muçulmanas estavam fortemente entretecidasc'. Em função
desse estreito parentesco, quando determinados elementos não estavam pre-
sentes em um daqueles universos, podia-se recorrer aos de outro para com-
por um novo relato ou enriquecer um tradicional. Por exemplo, os quarenta
anos de hesitação de Deus antes de vivificar sua escultura não tinham parale-
los judaico-cristãos, mas se harmonizavam perfeitamente com a narrativa da
revolta do anjo por ciúmes de Adão, contida em um dos mais conhecidos
apócrifos vétero-testamentários, a Vila Adae et Euae=.
A mesma profunda interpenetração de material mítico das três culturas
ocorria no elemento mais original do capitel, a vivificação de Adão através do
ouvido. O toque no ouvido de Adão é feito pela mão direita de Deus, lembran-
do o gesto ritual ou sacramental que aparece várias vezes na Bíblia com o
significado de transmissão de uma bênção, de um poder, de um direito: a
imposição da mão65. Com tais sentidos, o gesto foi utilizado pela Igreja nos
seus rituais desde os primeiros tempos. Devido a uma carga simbólica positi-
va muito antiga, quase sempre se utilizava nesses ritos a mão direita, coloca-
da pelo oficiante sobre a cabeça do fiel. Para os cristãos, a mão era ainda um
importante instrumento na realização de milagres. Através dela Cristo ressusci-
tou uma pessoa, isto é, devolveu-lhe a vida, e através do dedo colocado no
ouvido de um surdo restituiu-lhe a audíçãov', ou seja, permitiu-lhe ter conta-
to com a vida.
De certa forma é a síntese disso tudo que aparece no capitel de Alquézar,
A mão de Deus sobre Ad~IO é uma bênção, uma concessão de poder, uma
65. SI 117,16.
66. I i. Lcsctrc, "Orcillc", <:111 F. Vigouroux (dir.), Diction naíre de /0 Bible, (10 vols.), Paris, Lcrouzcy cr
AnO, I 926-192H, vol. IV-2, col. 1857-1860.
67. "O Verbo de Deus penetrou nela, passando pela sua orelha. 1 ... 1 No mesmo instante começou a
gravidez da Santa Virgem.": ll vangelo dell'tnfanzta Arntenio, V, 9, em IVJ. Erberta (cd.), Gli Apocrifi
dei Nuouo Testcunento, (2 vols.), Casale Monferrato, Maricrti, 1981. 1'01. 11,p. 13'1.
61l. Citado por I{. Gourmonr, I.e Latin ntvsiique. Les Poétes de lantipbonairc et la symbolique au Moyen
Age, Paris, Gcorgcs Crês, 2. ed. 1913, p. 315.
69. J. Surcda, t.a Pintura Românica eti Catatu ãa, Madrid, Alianza, ]981, p. 103.
70. lJ.~l'11/b, p. 709. 11 um dado antropologicamente bem conhecido a comparação entre hírncn e tím-
pano, clitóris c concha auditiva, lábios vaginais c pavilhão auditivo, em suma, entre vulva c ouvi-
do: ].-T. Macrtcns, Ritanaiyses J, s/c, jcromc Millon, 1987, p. 12. A partir disso poder-se-ia talvez
tentar construir lima hipótese que pensasse naquela cena da Criação como lima cena ele inscmi-
nação, na qual o decio de Deus (símbolo fálico) penetra o ouvido (vulva) de um ser feito de terra,
elemento feminino e rcprodutor por excelência.
211
71. W. Dconna, "t.c Dieu gullo-romuín 'I l'orcillc animalc", 1.'l1l1liqui/é Classiquo, 2'5, 1956, pp. 8'5-99.
72. "Cum a uiro Dei diligcnri cura cducarcrur, solitus crar, ur marrís m.unillan saneti ('rcgii auricularn
sugere dcxrram . Sicquc tactum cst nuru illius, qui mel de pctra porcos cst produccrc, ut conractu
auriculc uiri Dei pucr crcsccrct, ranquarn ornncm lacris marcrní cxubcranriam ld.Ch. habcrct."
Plumrncr, Vi/aeSaI1C/OI7l111 I Iibern iae, Oxford, 1910, "01. I, p. 76, apucl ], Gricourr, "L'Orcillc droitc
de Saint I'racch", CJgUlII, 9,1957, p, 191.
73. o.. supra, ensaio n. 5.
71. Santo Agostinho, COI1'/essioI1UI11, IV, XI, 16, 1'1" 32, col, 700.
212
vra redentora de Cristo. Assim, ao valorizar o ouvido de Adão o artista subli-
nhava a dualidade humana.
Da mesma forma, pode-se aproximar um texto de S~lOBento que tam-
bém fala no "ouvido do coraçào"75 a uma representação escultórica de Adão
na catedral de Compostela. Tal escultura localizava-se na porta Francigena,
no lado norte da catedral, por onde entravam os peregrinos. Quando esse
portal foi substituído na segunda metade do século XVIII pelo atual, neoclás-
sico, a escultura românica foi levada para a entrada meridional da catedral,
conhecida hoje por Puerta de Ias Platerías. Nesse relevo, Deus dá vida a Adão
através do toque de sua mão direita espalmada sobre o coração do homem
(Fig. 10). Esculpido provavelmente em 1103, pode-se perguntar se a idéia da
escultura compostelana, levada por peregrinos, não teria também exercido
certa influência na concepção do capitel de Alquézar?», Ou talvez essa influên-
cia tenha mesmo sido exercida diretamente por uma fonte inspiradora do rele-
vo compostelano, um manuscrito elaborado por volta de 1100 na abadia de
Saínt-Martial de Limoges?". De fato, essa abadia desde 1063 estava ligada a
Cluny, que mantinha relações estreitas com a catedral compostelana e que
teve um papel fundamental no estabelecimento e organização da rota santia-
guista78. Como já se observou, "as peregrinações exerceram um grande papel
na extensão das relações exteriores da abadia do Limousin"?",
De qualquer maneira, os cônegos de Alquézar sabiam que Santo Agostinho,
com sua exegese desmitificante, tinha insistido em que o homem fora criado
pelo poder de Deus, e não por sua mão, como teria feito um derniurgo'v. No
entanto a linguagem iconográfica, por suas próprias características de forma
e de conteúdo, preferia geralmente seguir o relato mítico do Gênese, e ver na
criação do homem um trabalho escultórico tformauu, [ortnauerat) de Deus.
O capitel de Alquézar seguia essa tendência, mas dando-lhe uma feição parti-
cular. Como toda a Criação fora feita pela Palavra Divina, e somente o homem
pela Mão Divina, representar a vívífícaçãc de Adão com o toque no ouvido
era uma forma de harmonizar a interpretação agostiniana com a interpretação
mítica do relato bíblico.
75. "Ausculta, o fili, prucccpta mugistri, cr inclina aurcm cordis rui": Regula, Prologus 1, I.J/., 66, col,
2151).
76. Essa data, sugerido por S. Moralcjo, "I.a Primitiva Fachada orrc de Ia Catedral de Santiago",
C011l1'ostel/(/1111111, 1-1, 1969, 1'1'. 661-662, foi considerada muito recuada por M. Durliat, "I.a 1'0I1e
de Ia l-rance à Ia Cathédralc de Compostcllc", Bulletin Monumental, 130, 1972, p. 1-13.
77. Breuiariuni ad /lSU11I S. Martialis, Bibliorhcquc Nationalc de Paris, ms, lar. 713, f. 112v.
78. Franco júnior, 01'. cit., 1'1'. 121-128.
79. D. Gaborir-Chopin, La Décoration eles 7I1Cl1111scrils ii Snint-Martial de l.il11oges et en Limousin du.
lXe au xue siécle, Paris-Genebra, Droz, 1969, p. 25.
80. Santo Agostinho, De Ctuitate Dei, XII, 23, 1'1., 11, col. 373. Fssa posição loí seguida por muitos,
inclusive, conrcmporancamcntc 'I
construção do claustro de Alquézar, pelo popular tilucidariunt,
0J!. cit., 11, 11, col. n"17 A.
213
o toquede Deus no ouvido de Adão relembra ainda a presença da cultu-
ra muçulmana entre as fontes daquela imagem, Na verdade, o Corão fala ape-
nas em Alá insuflando em Adão seu "sopro de vida" e seu "espírito'"!", sem
especificar por qual via. Porém quando, mais adiante, () texto corâmico relem-
bra ao homem que foi Deus "que vos fez nascer", acrescenta que foi Ele que
deu ao ser humano "o ouvido, a vista, as vísceras'<'. Mais do que isso, segun-
do um baditb, Deus afirmou a Adão que ".. eu sou seu ouvido, sua vista, sua
mão." "105. Essas citações do ouvido em primeiro lugar não são casuais. A
seqüência correspondia à hierarquia do corpo do ponto de vista muçulmano,
para o qual as vísceras, ligadas às funções sexuais, digestivas e defecatívas,
eram consideradas pouco nobres. A vista, importante porém pouco precisa
na vastidão do deserto, relacionava-se com as miragens, as ilusões.
O ouvido, por sua vez, para uma sociedade oral e tradicional como a
árabe, era a principal via de comunicação com o Universo'". Por isso as ativida-
des adâmicas iniciais tiveram por base a audição. A primeira vez que o Corão
cita Adão é para dizer que o Senhor lhe ensina todos os nomes, os quais o
homem deveria repetir aos anjosH5 Para as crenças populares muçulmanas,
Adão era alguém ligado ao poder mágico da palavra, alguém que conhecia
certas falas que podiam dominar espíritos maus; ele foi o inventor do Budub,
o quadrado mágico que servia de talísmã por combinar de formas especiais
determinadas letrasHÚ Mais ainda, entre as principais características do Deus
muçulmano está o fato de ele ser "aquele que ouve"H7, Aliás, essa valorização
do oral e do auditivo por parte dos árabes era anterior ao Islã, e manteve-se
mesmo em um texto árabe cristão, para o qual a serpente foi condenada
primeiro a rastejar e depois - punição maior devida a uma segunda desobe-
diência - a perder a voz&;,
Buscando, talvez inconscientemente, manter um certo equilíbrio entre
suas fontes, o artista incluiu alguns dados inequivocamente cristãos diante
daqueles vários elementos de clara inspiração islârnica. a estrutura da com-
posição, o escultor colocou o corpo do Criador e o da criatura formando uma
89. M. M. Davy, Initiation Ü Ia symbolique rotnane, Paris, Hammarion, 1977, 1'1'. 166 e 186.
90. Esta ctirnologia é negada por E. Lipinski, Dictionnaire encvclopéd ique de Ia Bible, Turnhour,
Brcpols, 1987, r. 15, mas era aceita pelo pensamento mítico. Para os babilônicos, o deus Ea cri-
ara o homem com argila e com sangue do deus Qingu:]. Bottero, "L'Epopéc de Ia Création", em
Mythes et rües de Babvlone, Genebra-Paris, Slatk inc-Champion, 1985, 1'1'. 139-110. Para o judaís-
mo, a água que Deus misturou 'I
terra rara moldar Adão era comparável ao sangue da Aliança
derramado na circuncisão, após o que o recém-nascido é submetido a ur.i banho ritual. Para o
cristianismo, o verdadeiro ato de nascimento se dá com a água do bat isr.ro, que prolonga ritual-
mente o sangue purificador derramado por Cristo. Sobre as diversas tradições folclóricas que
aceitam a criação do homem a partir da argila, ver J G. Frazcr, Folls-Lore in tbe Old Testament.
Londres, Macmillan, 1923, pp. 1-15. Um exemplo medieval daquela ctimologia temos no famoso
ardo Representacionis Ade, de meados elo século XII, segundo ° °
qual o ator que 1:IZ papel de
Adão deve estar vestido de vermelho: cd, P. Acbischcr, Genebra-Paris, Droz-Minard, 1964, r. 27.
91. 1 Cor 15, 15.
92. Cf., supra, nota 67.
93. 1.. F Ladaria, "Adán y Cristo: Un Motivo Soteriológico dei 11/ Mattbaeuni ele Ililario de Poitiers",
Compostellanutn, 35, 1990, 1'1'. 1It5-162.
94. J. Brosse, Mytbologie eles arbres; Paris, Plon. 1989, r. 68.
215
cionada pela iconografia C0111 a Árvore de Jessé, cujos grandes frutos eram a
Virgem (à qual estava dedicada a igreja de Alquézar) e o Cristo. I o caminho
de Santiago pelo menos em dois casos a Trindade tinha sido iconograficamen-
te incorporada ~l Árvore de Jessé: em um relevo do claustro de Santo Domin-
go de Silos e em uma coluna do Pórtico da Glória da catedral compostelana.
E assim a imagem de Alquézar remetia a outro tema caro à Idade Média,
e sobretudo ao norte ibérico, o Fim dos Tempos. A cruz formada pelos cor-
pos das duas personagens, Deus e homem, é uma cruz latina invertida, de
caráter escatológico''>. Caráter acentuado pelos quatro anjos em torno do
círculo, que lembram a profecia apostólica: o Filho do Homem "enviará seus
anjos ao som da grande trombeta, e eles reunido seus eleitos dos quatro pon-
tos do horizonte, de uma extremidade à outra do Céu"9G. Clima escatológico
bem conhecido da cultura cristã espanhola da época, que continuava a pro-
duzir e a admirar as iluminuras dos manuscritos dos Comentários ao Apocalipse
do Beato de Liébana.
Geralmente a iconografia daquele momento mostrava a Divindade colo-
cada na mandorla cercada pelos evangelístas, representados sob o símbolo
dos tetramorfos. Mas na Espanha era mais comum - possivelmente como
reflexo daquele versículo bíblico de sentido apocalíptíco - figurar a cena com
:i~
~-):~~,~;.~'
....
..
;':'~
;~~fª}
I. C. Brcmond, J. I.e Goff e). C. Schmirr, L'Iixentplunt, Turnhour, lIrcpols.1982, pp. 37-38.
2. ). Lc Goff, "As Mentalidades, uma História Ambígua", em). l.c Goff e 1'. Nora (dir.), J ltstoria: Novos
Objetos, (trad.), Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976, p. 72.
3. A. Bourcau, La Lcgende t.iorée.t.e .~)'S/el11enarraujdejacques de Voragine; Paris, Ccrf, 1981, pp. 25,
38, 11 et passim.
li. J I. Franco júnior, A Idade Média, Nascimento do Ocidente, Silo Paulo, Brasilicnsc, 5. cd., 1991,
pp. 119-169.
222
belicismo e o contratualismo. O primeiro significa que o universo era visto
como palco da luta enrre as forças do Bem e do Mal, a qual somente se encer-
raria com o Iuízo Final. Nesse conflito, os santos, cujas vidas são narradas pelo
frade de Varazze, eram armas importantes para a vitória final do Bem. O segun-
do traço expressa a participação naquela luta de todos os elementos da natureza,
mas sobretudo do homem, que necessariamente se posiciona de um lado ou
de outro, já que a neutralidade ética era inviável para aquela visão de mundo.
Aí o papel dos santos era, pelo exemplo do martírio e das virtudes, conquis-
tar novos adeptos para a causa de Deus.
A concepção atualmente mais difundida de santidade, que a interpreta
como um sagrado acessível e benéfico, apesar de considerar aqueles dois
traços da psicologia coletiva medieval, não explícita um aspecto fundamental
e aparentemente contraditório: as intervenções punitivas dos santos. É ver-
dade que estes dominam a natureza em si mesmos e à sua volta, é verdade
que põem tal poder a serviço dos homens, já que ser santo é viver em função
dos outros e pelos outros, é ser mediador homem-Deus, é ser integra dor do
homem com sua sociedade, ao curar, exorcizar e harmonizar interesses gru-
pais'. Mas também é preciso acrescentar, ser santo é punir alguns para recolo-
car outros no caminho correto. Assim, expressando de forma mais completa
o belicismo e o contratualismo, os santos eram vistos na Legenda Aurea como
"escravos de Deus" que preparavam a humanidade para o Juízo Final.
De fato, a espiritual idade dos séculos XII-XIII centrava-se em três ele-
mentos fortemente articulados, a pobreza evangélica, a pregação apostólica
e as especulações escatológicas. O primeiro deles representava uma preparação
para o Fim dos Tempos, tanto para quem vivia em pobreza quanto para os
que davam esmolas, praticando a caridade cristã. O segundo elemento, reali-
zado sobretudo nas cidade e por mendicantes como Jacopo de Varazze, cons-
cientizava os homens dos perigos que rondavam suas almas, especialmente,
naquele contexto, as heresias. O último componente daquela tríade espiri-
tual, a expectativa pelo Iuízo, era constantemente reforçado pela prática da
pobreza - a avareza é a "raiz de todos os males'< - e da pregação anti-heré-
tica, pois uma das atividades do Anticristo, cuja presença anuncia a proximida-
de do Fim dos Tempos, é difundir uma falsa interpretação das Sagradas
Escrituras".
O significado escatológico, essencial nos exempla», tão importantes na
Legenda Aurea, transparecía, dentre outras formas, através do papel de punidores
desempenhado pelos santos. Da mesma maneira que, pela visão totalízadora
9. TOl11asde Ccluno, Vita Secunda di San Francesco d'Assisi, 81, 120, em Fonti Francescane, I'áelua,
Mcssagcro, 4. cd. 1990, p. 650; J.egrtenc/a Perugina, 76, idem, p. 12'Í2.
10. Legenda, 12, 1, p. 70.
11. Idem, 2/;, 1, p, l I-í.
12. 2 Sm 6, 6-7.
13. Ovídio, t.esMétnmorpboses, 111,295-310, eel.-trad. G. Lafayc, Paris, Bcllcs I.crtrcs, 1969, p. 79.
11. J. l.c Coff, "Culturc cléricalc et traelitions folkloriqucs dans Ia civilisation mérovingicnnc", em P/lM/I,
p. 231, n. 22.
15. 1'. Géary, "L'í lumiliation eles sainrs", /lliSC; 34, 1979, pp. 36-38. A punição aos santos era forma de
fidúcia, de afeto e de confidência, segundo G. Cocchiara, "Sopravvivcnze Folkloríchc dcl Pagancsimo
Siciliano", em Preistoria e l'olhlore, Palcrrno, Sellcrio, 1978, p. 116. Na legenda /lurea há o intercs-
santc exemplo de um judeu que mandou fazer uma imagem de São Nicolau para guardar seus
bens enquanto se ausentava, ameaçando o santo de espancamento se não cumprisse direito sua
tarefa. Tendo sido assaltado, o judeu efetivamente passou a "açoitar furiosamente a imagem do
santo", que em função clisso interveio para que os ladrões devolvessem o produto do roubo (Cap,
3, 9, p. 27). Atitude semelhante adorou uma mulher cujo filho fora sequestrado: de uma estátua
da Virgem, ela retirou a imagem de Jesus, afirmando que só devolveria o Filho a Maria se esta
intercedesse pela volta do seu filho (Cap. 131, 1, pp. 59]-592).
o processo de cristianização de festas e divindades pagãs que ocorria
desde a Alta Idade Média não era apenas uma estratégia de conversão, mas
também expressão da permanência da sensibilidade antiga, que via o divino
habitando a natureza. Ao insistir repetidamente naquele processo!o, a Legenda
Aurea reforçava a visão belicista e contratualista do mundo e sobretudo mani-
festava sua vínculação a uma espiritualidade que ia sendo ultrapassada. Os
milagres punitivos na Legetida Aurea, apesar de dirigidos população urbana, à
16. r.egendo, Caps. 2, 3, 5, 8, 9,12, 19, 23, 2~, 26, 36, iJ2, iJ3, 1[/1, li5, li6, 1Í7, 1[9, 52, 58, 59, 63, 65, 71,
71,75,77,79,86,87,89,90,93,97,99, lOO, 102, 107, ]]0, 113, 115, 116, 117, 118, 121, 123, 12iJ,
127,129, ]32, 136, 139, 110, 112, 153, 15~, 157, 158, 159, 161, 166, 169, 170, 172 e 180.
17. l'.-A. Sigal, "Un Aspect du culte dcs saints. Le Chãumcnt divin aux XI" ct XII" e sleclcs d'aprcs Ia
littératurc hagiographique du Midi de Ia France", Cabiers de Fanjeaux, 11, 1976, pp. 39-59.
]8. t.egenda, Capo. 2; ]0; 30; 117,2 (dois milagres) e 166.
19. Idem, Caps. li9, 3; iJ9, 13-H; 113 e 111, 5.
20. Idem, Caps. 2, 5; 6, 2; 11, 3; 27, 3; 50; 57, 5; 76; 92; 113; 115, I; 119; 159, 1 e 168, 1.
21. idem, Caps. 2, 2; n, 6; 12, 2; 21, 6; 30, 3; 30, 5; li5; 58; 63, 7, 10, 17, 18; si: 82; 99, 8; 105; 116;
123, li; ]25, 1; 138; H2;155, iJ e 170.
22. ldent, Caps. 2,8 (dois milagres); 3, 9; 5, 1; 6,1 (dois milagres); 7; 12, 1; 19; 2-i, 1-2; 26, IJ; 27, 3;
39; /11 (doi, milagres); iJ3; iJ6, 13; 57, 2, 3, /1, li (dois milagres); 58; 59, 2,8; 61; 63, 5,10; 81; 82;
86, 1; 98 (dois milagres); 100; 111; 113; 117, 7; 119, 1 (dois milagres); 123,1; 125, 1; 127; 137; 138
(doi, milagres); 139 (três milagres); HO; 153; 159,2; 161 e 168, 8.
23. C. W. Bynulll,jes/Ls as Motber: Stuclies in tbe sptritualttv oftbe lligb Middle Ages. lscrkclcy, llniversity
of Califorriia Prcss, 1982.
21. G. l luor-Girard, "Lu )ustice ímmancnrc dano Ia I.egencle Doree", CI.1 Cabiers cletuclcs ntcdtéoales,
1,1975, r- 117.
._--._'.---. ---~--~-~
225
melhor, esta faceta divina, que não desaparecera da religiosidade ocidental,
sem dúvida mantinha na Legenda Aurea U111 peso significativo, maior que em
outras obras da mesma época. Seguindo o texto vétero-testarnentário, aquela
obra afirma, C01110 uma espécie de conclusão, que Cristo chama os homens
com benefícios, conselhos e castígoss>. Aliás, como já se notou, aquele legen-
dárío apresenta um notável equilíbrio entre casos de castigo e de salvação-v.
Os castigos terrenos que ali se narram parecem antecipar os da danação
eterna, com a força da exernplarídade procurando afastar outros homens do
pecado. Por isso mesmo o recurso aos exetnpla é freqüente, já que estes trazem
fatos autênticos do ponto de vista histórico, ao contrário dos miracula, que
o fazem pelo ângulo da fé27. Na verdade, () poder dos exemplo estava num
esquema narrativo e de categorias morais relativamente simples, opondo Bem
e Mal, esperança na Salvação para os convertidos e medo do castigo para os
pecadores: o cristianismo de então já era, e seria cada vez mais nos séculos
seguintes, urna religião do medo-s. De fato, "o verdadeiro sujeito da Legenda
Aurea é o conflito no qual Deus e o Espírito do Mal são os protagonistas"?",
com o primeiro agindo sobretudo através dos santos. Assim, as punições aos
pecadores revelavam-se uma prática salutar para a comunidade cristã. Na lin-
guagem evangélica, "caso a tua mão direita te leve a pecar, corte-a e lance-a
para longe de ti, pois é preferível que se perca um dos teus membros do que
todo o teu corpo vá para o Inferno=v. Na fórmula da Legenda Aurea, "os con-
trários se curam com seus contráriox'vu.
Para Alain Boureau, os castigos revelam a orientação eclesiástica da
Legenda Aureatâ. Realmente, é significativo que a maior parte daquelas punições
atingisse atos de desrespeito aos santos. Isto é, de figuras até então vistas com
certa desconfiança pelas elites eclesiásticas, e que apenas naquele momento,
século XIII, passavam a ser melhor definidas pela Igreja, cuja dogrnatízação
implicava também a normatízação dos processos de canonízaçào:». A unifor-
mização dos elementos folclóricos dos exempla por parte da cultura erudita,
transformando-os num dos "instrumentos mais eficazes do poder ideológi-
31. Brcmond, Lc Goff c Schmitt, ojJ. cit., pp. 105, 107 e 164.
35. C. Carozzi e J I. Taviani-Carozzi, La Fin des temps. Terreurs et propbéties au Moyen Age, Paris, Stock,
1982, pp. 176-180.
36. Legenda. 5, 1, p. 33.
37. 11. I'ranco júnior, "O Diabo no Ocidente Feudal: A Versão Iconográfica de Conqucs", l Iistúria:
Questões e Debates. 7, 1986, pp, 119-137.
38. Legenda, 6, 1, p. 42.
39. Idem, 82, p. 350.
'ÍO. Idem. 57, 3, p. 252.
11. Idem, 125, 1, p. 573.
42. Idem,! 39, p. 621 (duas punições).
13. idem, 2, 8, p, 18.
11. Idem, 63, 18, p. 288.
ti5. Idem, 119, 1, p. 508.
16. idem, 2, 5, p. 15.
17. Idem, 6, 1, p. 42.
48. Idem, 39, p. 172.
227
martírio de santos-v, tentativa de assassínio>", decapitação de uma santa>",
resistência de pagãos à pregaçãow, tentativa de corromper mongeso, orgulho
da riqueza material>", imposição ele cristãos adorarem ídolos pagãos>, não-
celebração ela festa do santo'v, comemoração ele festa pagã>", substituição da
estátua do Cristo pela de uma personagem pagã58, desterro e morte do santo
no exílio?', prática simoníaca por parte de um clérígow, invocação de júpiter
por parte ele U.l1 sacerelote pagãov'. egoísmo de um moleiro que não quis par-
tilhar seu rnoini.o com o sant062, prisão de um devoto elo santo6j
Os motivos de castigo eram, portanto, variados, mas na maioria das vezes
relacionavam-se com práticas pagãs ou perseguições ao cristianismo nascente.
Sabendo-se ela insistência ele J acopo ele Varazze sobre o papel elos santos como
evangelízadoresv", e de sua preocupação com a atualização desses fatos históri-
cos através da conversão dos hereges - tarefa essencial elos pregadores mendi-
cantes 65 -, pode-se pensar que aqueles milagres punitivos, semelhantes à
atuação elos eleuses pagãos, deveriam funcionar como forma ele díssuasão dos
segmentos sociais mal catolicizaelos.
No entanto, o tipo de punição mais freqüente - 37% do total - era o
da morte do pecador. Especialmente a morte súbita, que para a mente medieval
era infamante e vergonhosa, pois impedia os preparativos adequados, os ritos
de passagem para a outra vida. Havia ainda uma circunstância agravante, caso
a morte repentina se desse de forma clandestina, sem testemunhas. De toda
maneira, a rnors repentina significava maldíção'v. A causa mortis variava,
podendo resultar de possessão dernoníacaõ", febreGH, ataque de leãoG9 e ani-
~9. Idem, Caps. 24, 2, pp. lI5; 58, pp. 261; 159, 2, pp. 710-711.
50. Idem, 41, p. 175.
51. idem, 43, p. 178.
52. Idem, 15, p. 18H.
53. Idem, 19, 3, p. 207.
51. idem, 57, 5, pp. 253-254.
55. idem, Caps, 58, pp. 263; 111, p. 461.
56. Idem, 59, 8, p. 270.
57. Idem, 81, p. 319.
58. Iclent, 105, p. 'í1S.
59. Idem, 138, p, 619.
60. Idem, 11 1, 5, p. 632.
61. Idem, 142, p. 636.
62. Idem, 147, pp. 659-660.
63. Idem, 155, ;" pp, 690-691.
61. idem, Capo 6, 1, c também nota 16.
65. Idem, Cap. 149.
66. 1'11. Arié«, O Homem diante da Morte, (trad.), (2 vols.), Rio de janeiro. Francisco Alvos, 1981, voi.
I, p. 12.
67. Legenda, Caps, 2, 8, pp. 19; 41, pp. 175; 61, pp. 273; 123,1, p. 5'í3.
68. Idem, 2, 10, pp. 21-22; 30, 2, p. 111.
69. Idem, 5, 1, p. 33.
228
mais venenosos?", espinho de peixe na garganta?", queda do cavalon, queda
da galeria da casa7.i, estrangulamento por demônio?", acidentes naturaísz>,
lepra e suicídio?", instrumento de tortura que atinge torturador?", desmorona-
mentos e fatores não-especificados?". De forma geral, a punição com a morte
era proporcional aos desvios castigados: 17 casos dentre os 54 de ofensas aos
santos, 11 em 23 de desrespeito ~l autoridade da Igreja, 5 em 13 ligados a
questões morais, 2 em 5 de prejuízo ao patrimônio eclesiástico e 2 em 5 de
inobservância da disciplina eclesiástica.
De toda maneira, cegando, emudecendo, paralisando, esmagando, mutilan-
do, endemoniando, enlouquecendo, queimando, adoecendo, acidentando,
matando, os milagres punitivos expressavam bem a concepção da Legenda
Aurea, para a qual a trajetória da humanidade se colocava entre méritos e
pecados, oposição, como bem viu Boureau, mais escatológica que moral?".
Muitas vezes os milagres punitivos anunciavam o início de uma nova era.
Numa das mais longas uitae da coletânea, a de São Pedro Mártir, quase con-
ternporâneo de jacopo de Varazze e dominicano como ele, três intervenções
do santo castigaram hereges e fizeram-nos a partir disso se convertere". Isto
é, conseguia-se uma vitória sobre o Anticristo e assim dava-se um passo impor-
tante em direção à Parusia e ao Milênio.
Em conclusão, há três pontos a marcar sobre os milagres punitivos na
Legenda Allrea. Primeiro, eles revelam a ambivalência dos santos, com seus
atos benéficos e/ou maléficos para os homens reforçando a velha e discutida
tese de os santos cristãos terem sido sucessores dos deuses ou ao menos dos
semideuses pagãosl:n, tese aceitá vel desde que seja feita a ressalva fundamental
de os santos não terem poder próprio como as entidades pagãs, sendo ape-
nas intermediários. Segundo, aquele tipo de milagre representava uma tentati-
va de valorizar os santos num momento em que a Igreja - cada vez mais
centralizada, porém também arneaçada pelas heresias - passava a controlar
a canonização, de forma a aproveitar um traço da cultura vulgar para afirmar
a superioridade da cultura clerical. Terceiro, os milagres punitivos funcionavam
I. I I. Franco júnior, "A Trindade do Mal e a Demonizaçâo Social em Dantc Alighieri", História, ~,
1985, pp. 7]-78.
2. C. Crisciani e C. Gagnon, Alcbintie et pbilosopbie au. Moyel1 Age: Perspectiues et jJroblemes,MontreaI,
Univcrs, 1980, pp, 24 e 72; J-C Margolin c S. Mauon (dir.), A tcbimte et phtlosopbie à Ia Renaissance,
Paris, Urin, 1993.
232
época. A falsificação de metais era objeto de preocupação dos próprios alquimis-
tas". Juristas como Oldrado da Ponte (1270-1335) interessavam-se pela alquimia
enquanto expressão do fenômeno sociocultural da íntegraçào entre filosofia
e medicina, considerando algumas de suas práticas legais e outras não". O Pa-
pa João XXII, adepto das idéias alq uimistas, condenou em 1317 a prática delas,
temeroso de que pudessem levar ~l falsificação da moeda>,
Dante coloca aqueles indivíduos, com lepra, ao lado de outros falsifica-
dores, os de identidade punidos com loucura, os de moedas com hidropisia,
os de palavras com febre ardente». Também Tomás de Aquino n~LOcondena-
va a prática alquímica, mas a falsificação de metal precioso. Para ele, "se a
alquimia fizer ouro verdadeiro não será ilícito vendê-lo como tal, pois nada
impede a arte de usar de certas causas naturais para produzir efeitos naturais
e verdadeiros'". Um dos mais populares textos do século XIII, Le Roman de
Ia Rase, traduzido para () italiano por um certo Durante Fiorentino, possivel-
mente o próprio poeta, também aceitava a transmutação de outra matéria em
ouro, mas lembrava que só teriam sucesso nessa tarefa "os que, de fato, são
mestres em alquimia/I ...] a este resultado n~LOsaberiam chegar/os que se ocu-
pam apenas de falsa ciência'f'. Por ter-se dedicado a esta é que Capocchio de
Siena, colega de estudo de Dante, condenado e queimado vivo em 1293, foi
chamado por ele de "bom imitador da natureza":'.
O verdadeiro alquimista não pretendia realizar essa mera imitação, e sim
reordenar a natureza. Daí o contemporâneo Arnaldo de Villanova (1240-1313)
afirmar que "esta ciência não outra coisa que a perfeita inspiração de Deus'"",
é
Nascido no mesmo ano, o poeta Jean de Meun concordava com ele: "Alquimia
é uma técnica verdadeira/quem sabiamente a estudar/ grandes maravilhas aí
pode encontrar" I:' Alberto Magno Cl193-12BO), que Dante coloca no Paraíso
e a quem se atribuíam diversos trabalhos no campo da alquimia, provavel-
mente compartilhava da mesma idéia. Ainda que não esteja confirmada a au-
tenticidade de todas as obras atribuídas àquele importante teólogo, elas pelo
3. c. Criscinni. "l.a Quaestio de Alchimia Ira Ducccnro e Trcccnto", stedtocro. 2, 1976, rp. 119-168.
'1. j'. Migiiorino, "Alchimia i.ccira c lllccira ncl Trcccnro", QlIademi Mcclieuali; 11, 1981, pr. 6-11.
5. 1.. Thorndikc, /I l listorv o/Magic aiut lL\yJcrill/el1[al Scicnce, Ncw York, Colurnbia Unlvcrxlty Prcss,
19)';, voi. 111,pr. HH8.
6. Connncdia. Inferno XXIX, J:í7.
7 Tomás de Aquino, Su ma 'l'eo!ôgiul, li-li, q. 77. a. 2. ccf-rrad. A. Correu. ( ll vols.), Porto Alegre,
Escola Superior de Teologia Sào Lourenço de Brindes ~ Universidade de Caxias do Sul-Sulina
Editora. 1980-1981, 1'01.V, rI'. 2618-26zo.
8. jcun de Mcun, l.c KOll1(11f ele Ia kos«. VI'. 16 105 c 16115-16116, cd. A. l.anly, (i vols.), Paris,
l Ionoré Chamrion,197j-1976, 1'01. IV, rI'. 112-113.
9. Connnedia, Inferno XXIX. ]39.
1O, Citado por S. l Iutin, l.a l'ie qnotidicnnc eles alcbtnustes ali J1{o)'en Age, Paris, l luchcrrc, 1977, p.
.i 11. Nào é improvável que Dant« tenha conhecido a obra ou mesmo a pessoa de Arnaldo, médl-
co, teólogo e alquimista que viveu na Catalunha, em Paris, Monrpcllicr, Florcnca, Bolonha, Nápoles
c Palcrmo: DI'. l loffcr, Nourelk: biogmjJbie u ntoersetle, Paris, Didot, 1852.1'01. 111.col. 279-281.
1 i. le lêoman de 10 lIose, \'1'.16 05-í-16 056,1'01. IV. p.liO.
233
menos indicam "um parentesco conceptual entre seu pensamento e certas pers-
pectivas alquímícas"!-. De fato, distinguindo entre magia natural e magia peca-
minosa, ele defendia a descoberta de virtudes ocultas nos elementos, tendo
realizado para isso diversos experimentos 15. Postura endossada por Dante, que
faz Beatriz dizer que a experiência "é na terra a nutriz da melhor arte"!".
Não somente Dante com certeza tivera contato com aquelas idéias, como
alguns indícios nos sugerem certo domínio desse saber por parte dele. No que
diz respeito à obtenção daqueles conhecimentos, deve-se lembrar que a
alquimia foi introduzida no Ocidente por influência árabe">, cultura com a
qual o tlorentino tinha contato e que estava presente em sua obra 16. Se a
alquimia cristã for compreendida como uma forma de aristotelismo heterodo-
xo saído das traduções latinas do século XII17, fica reforçada a idéia do aces-
so de Dante a ela, ele que considerava Aristóteles o "mestre do pensamen-
to"lll e a quem conhecia através daquelas traduções por não saber grego.
O peso disso fica evidenciado quando lembramos que no conjunto de
sua obra, Alighieri fez mais de duas centenas e meia de citações dos clássi-
cos, sendo quase metade delas do Estagirita. Acrescente-se a isso que quan-
do, em 1295, forçado pela situação política, precisou filiar-se a alguma das
muitas corporacões profissionais de Florença, Dante o fez na dos médicos e
farmacêuticos, opção estranha para um literato e filósofo, porém compreensí-
vel para alguém interessado pela alquimia. De acordo, aliás, com o crescente
interesse que aquele campo do conhecimento então despertava e que fez com
que no século XIV o número de obras alquímicas se multiplicasse!''.
Quanto à elaboração daquele conhecimento, é importante observar que
alquimia e filosofia não se opunham, como muitas vezes se disse - pelo con-
trário, se complementavam. Não somente os alquimistas eram chamados de
fílósofos-? - e buscavam por isso a pedra "fílosofal" - como a sua arte era
"a tentativa de junção entre o discurso científico e o simbólico'?". O alquimista
se apresentava entre o sábio e o ignorante, entre os procedimentos espirituais
e os materiais, pretendendo atuar como uma ponte que os aproximasse. A
alquimia implicava um processo cognitivo em dois planos, um racional e expe-
29. M. I.. Von l'ranz, Alquimia: Introdução ao Simbolismo e ii Psicologia, ( trad.), São Paulo, Cultrix,
1985, p. 213.
30. Idem, p. 216.
31. Commedia, Paraíso XXXI, 85.
32. Dante Alighieri, Vila Nuooa, 11, 3. cel. M. Barbi, Enctclopedia Dantesca. Appendice, p. 623.
33. Commedia. Purgatório XXX, 130-132.
34. Idem, XXX, 115-117.
35. Idem, Inferno VI, 68 et passim.
36. idem, Purgatório XXX, 109-111.
37. Idem, ParaísoXXTT, 112-111.
38. Idem, VII, 111.
236
Obra deve ser corneçada por volta do equinócio da prírnaveraw, a viagem de
Dante pelo Outro Mundo ocorre em abril de 1300, exatamente naquele momen-
to, ou pelo menos próximo a ele?",
Em suma, ou tendo sido um alquimista (hipótese não descartável) ou
apenas tendo tido certo contato com aquele tipo de conhecimento - o que
seria coerente com o enciclopedismo da época - a verdade é que Dante
encontrou na alquimia mais um elemento para a construção de seu sonho de
uma sociedade perfeita?". Sabemos que a AI:, Magna buscava mudanças na
natureza espiritual do homem a partir de alterações na composição química
das coisas, não estando portanto associada ~l feitiçaria+". Por isso mesmo, ela
era a ciência ou a arte da imortalidade, pretendendo possibilitar o reencon-
tro do estado anterior ~l Quedaí". É interessante que as duas etimologias admiti-
das para alquimia estejam ligadas a essa idéia: a palavra viria de Kemia, for-
mada do egípcio Kem, "terra negra", que era um dos nomes do Egito, ou do
chinês Kiam-oile, "suco de ouro", um dos nomes do elixir da imortalidade
naquela cívílízação+'. De qualquer forma, as duas possibilidades falam da
mesma coisa, uma adotando o ponto de partida (a terra da qual foi feito o
homem, matéria a ser purificada), outra o de chegada (o ouro, a luz, a essên-
cia divina).
Pela Tábua Esmeralda, que os medievais atribuíam a Herrnes Trimegisto,
a realização da Grande Obra era análoga à origem do mundo, ~l organização
do caos primitivo, daí ser para os alquimistas um processo sagrado ". Isto é,
a prática alquímica apenas aceleraria os processos da natureza, revelando a
verdade essencial: "O que está embaixo é como o que está em cima e o que
está em cima é igual ao que está embaixo, para realizar os milagres de uma
única coisa"IJG.Por isso o local em que se tentava realizar tal obra era um labo-
ratório, lugar de trabalho (!abOJ~ e de oração Coratorium). Para os alquimis-
tas, o cristianismo libertara o homem do pecado, mas não lhe restituíra a
natureza primordial, daí pretenderem alcançar a pedra filosofal, identificada
"55. Gn 3,19.
56. H. Graves e R. Purai, /.0.1' Mitos l lebreos, (rrad.), Madrid, Alianza, 1986, rr. 56-57; I I. Franco júnior.
As Utopias Medieoais, S. Paulo, Brasilicnsc, 1992, rr. 125-128.
57. Segundo o miro grego, I1ermafrodito, filho de IIcrmcs e Afrodirc, teria sido criado nas florestas de
Ida, na Frígia, cf. 1'. Grimal, Dictionnaire de mvtbologie grecque et rontaine, Pari>, PUF, í990, p.
206. Contudo ° rapto de Ganimcdc ror Zcus, mito lembrado ror Dantc (Purgatório IX, 22-2~), era
localizado ora em Ida da Frígia, ora em Ida de Crera (Grimal, p. ]64). Como Canimcdcs era ° "mais
belo dos mortais" e ganhava traços andróginos na sua relação com Zcus, ele era comparável ao
Adão paradisiaco, de forma que a identificação mítica lIermafrodito/Ganimedes/ Adão e sua asso-
ciação com a ilha de Crcta pareciam dados naturais a Danrc Alighieri.
58. M. Eliaclc, Tratado de l Iistoria das Reltgtôes, (trad.), Lisboa, Cosmos, 1977, pp, 1Í~~-fJfJ8.
59. Duval, op. ctt., rp. 250-251.
60. jung, Aion, r. 188.
61. 1 Cor 15, 15.
62. Gn 2, 10-11.
63. COl1111/edia, Inferno XIV, 105.
6~. Idem, Purgatório XXXII, Jlí9.
65. Idem, XXX, 76-78.
66. Idem, XXX, 33.
239
ta. Ele é o Grande Velho, que é Cristo, que é Adão. ele próprio, Dante, o exi-
lado, resume-se a história do Homem, exilado em busca do Paraíso perdido.
O tema ressurge quando o poeta lembra os versos de Virgílio na IV Éclo-
ga, que ele reescreve assim: "O século se renova/ volta a justiça e os primeiros
tempos do homem/e uma nova raça desce do céu"67. Portanto, essa "nova
raça" era na verdade a dos "primeiros tempos do homem", ou seja, a do ser
humano enquanto andrógino. De fato, partindo da tradição judaica, a androginia
mantinha-se presente no cristianismo: "Não há homem nem mulher, pois todos
vós sais um só em Cristo"68 Na verdade essa concepção era muito antiga e
difundida, era parte integrante das estruturas mentais arcaicas, para as quais
as próprias divindades eram geralmente andróginas. A presença dessas idéias
é atestada em diversas sociedades pré-industriaísôv, inclusive a cristã medieval/v.
Ora, a reintegração dos opostos, a conjunctio oppositorum eie exatamente
a pedra fílosofal, chamada de "andrógina hermética"?'. Ou melhor, conforme
afirmaria mais tarde Nicolau de Cusa (1401-1464), a coincidentia oppositorum
é a definição menos imperfeita de Deus72. Assim, tudo indica que, apesar de
rejeitada pela Igreja na sua formulação original, a concepção andrógina do
homem primordial continuava viva na psicologia coletiva medieval. Para ela, a
recuperação do Paraíso e a da androginia andavam juntas. Essa crença era ali-
mentada pelos textos bíblicos apócrifos, que gozavam de imenso prestígio. O
Evangelho de Tomás, por exemplo, afirmava que "só entrareis no Reino L ..]
quando fízerdes do masculino e do feminino um único ser, quando o masculino
não for mais um homem, quando o feminino não for mais uma mulher'<". O
Evangelho de Filipe considerava a separação dos sexos o início da morte?".
Na sua perspectiva fortemente escatológica, Dante via a recuperação da
androginia primordial como condição básica para voltar à justiça dos primeiros
tempos. Acreditava-se que Adão tinha sido uma totalidade, daí seu nome,
segundo um apócrifo do Antigo Testamento, ter sido formado pelas letras ini-
ciais dos nomes de quatro estrelas vistas por anjos nos quatro cantos do
mundo">, Logo, tratava-se do simbolismo universal do número quatro como
plenitude, como globalídade?ó. Mas, como fora a similitude do homem com
a Divindade que gerara a revolta de Lúcífer?", a separação dos sexos por parte
78. Gn 1,27.
79. Connnedia, Paraíso XV, 97 e ss.
80. Idem, XXX, 131-132.
8"1. Cf. Eliadc, Mejislti/eles, [J. 1j J.
H2. C011/11/edia, Inferno I, 100-102; Purgatório XXXIII, 1010.
83. Zolla, ojJ. cit., [J[J. 7~-~'1; M. líliadc, Ferreiros (' Alqulnitstas, (rrnd.), Rio de Janeiro, Zahar, 1979,
[Jr>. 2~-35.
81. Le Roman de Ia kos», 1'1'. 16059-16061 c 16 OM-16 06'5,1'01. IV, [J. 111.
85. Vila Adae, 28, [J. 136.
86. C011/11Iedia, Paraíso X;"''VI,116.
87. Gn 3, 7.
88. Gn 3, 3.
2·11
com que Deus ameaçara o homem caso tocasse no fruto proibido. Contudo
a própria Árvore do Conhecimento aprovara a opção do homem pela sabedo-
ria, ao invés de pela imortalidade'?'. Logo, esta só poderia ser alcança da pela
renúncia da consciência, refundindo-se as partes do homem separadas pelo
pecado. Quer dizer, desde que ele volte os olhos para Deus, que Adão define
para Dante como o "espelho verdadeiro/que reflete semelhante mente a si as
outras coisas/mas que em coisa alguma pode ser refletido'v",
O homem superaria assim outro problema colocado pela Expulsão, a
dificuldade na obtenção de alimentos?". No entanto esse aspecto é mais dífí-
cil ele ser detectado em Dante. As razões disso S~IO pouco claras, sobretudo
se se pensar nas dificuldades materiais sofridas pelo poeta: "Verás quão amar-
go/é o pão alheio e quão duro o caminho/quando se deve subir e descer esca-
da alheia'v-. Talvez a aparente despreocupação elo florentino pelo tema se
devesse ao fato de o pensamento rnítíco de sua época oferecer algumas
respostas àquelas necessidades. A principal delas era o país da Cocanha, local
de abundância onde, sem esforço, todos satisfazem aos seus sonhos de praze-
res materiais. Local também da fonte da juventude, onde a vida longa e saudá-
vel permite o pleno gozo daqueles prazeres'o. Provavelmente devido ao indivi-
dualismo, materialismo e anarquismo daquele lugar rnítícovt é que Dante não
tenha incorporado à sua utopia características da Cocanha, tão conhecida na
Itál.a de então.
Em suma, o que ele descreve na Comtnedia é o processo de transmu-
tação espiritual que operações de tipo alquímico produziram em si mesmo. E
que poderiam, por isso, servir de modelo para a humanidade. Daí sua obra
ser uma Grande Obra, um "poema sacro/ao qual puseram a mão o Céu e a
Terra'v>. Isto é, para cuja elaboração utilizou a oração e o trabalho. Formas
de acelerar as transformações necessárias, de "transmutar as espécies naturais
em tempo curto"'JG, de obter ouro a partir de metais grosseiros e impuros.
Noutros termos, de caminhar em direção a uma nova época de Saturno, a uma
nova Idade de Ouro. Foi depois de passar pelo sétimo céu, o de Saturno, que
Dante ganhou nova compreensibilidade das coisas divinas. Realmente, pela
mentalidade simbólica, SatUf110 tem uma função definídora, representando um
fim e um começo, a passagem de um ciclo para outro?". Se antes Beatriz não
era da obra do pseudo Dioniso Areopagita com sua teoria da luz em gradações,
levou mais tarde, na primeira metade do século XIII, ~IS experiências óticas
realizadas por Roberto Grosseteste para comprovar aquela idéia. A partir de
tais estudos, aquele franciscano inglês atribuiu à luz uma propriedade de
difusão múltipla e coexistente, bem como uma atividade criadora. Adotando
uma visão neoplatônica da Divindade, ele afirmava que todas as mudanças
ocorridas no Universo partiriam de movimentos da luz, forma corpórea fun-
damental l!li, Tal concepção científica e teológica expressava a visão de mundo
do século XIII, na qual também a estética "se desenvolve num clima particu-
lar, o de uma mística da IUZ"I!)5.
Participe dessa mística, Dante define a Divindade como "luz eterna que
é fonte de si mesma"lOG e que, pela teoria neoplatônica da propagação e da
difusão, "move o sol e as outras estrelas" 107. Tudo é ret1exo da idéia divina,
"luz viva" que sem se desunir, como num jogo de espelhos, atinge todos os
elementos, mas a cada grau com menor intensidadew. A natureza humana
ÍNDICES MÍTICOS
247
Messias, 77 Satanás i cerrambõni Diabo c Lúcifcr), 59,63,
Miguel (S:IO), 64, 166, 205 120,123,169
Morholt, 155 Saturno, 237, 241
Morrigan, 156 Sêrnclc, 59, 223, 242
Nínhursag, 57, 149, 156 Siduri, 152
Ninti,57 Sicgfricd, 60, 162
Noé, 56, 71-87,]]3 Sigmund, 171
Odin,171 Tarnmuz, 156
Og,74 Tânt.ilo, 58
Olivicr, 113, 168, 171
Tescu,60.
Orfeu, 60, 115-6
Tiamat,56
Osiris , 55, 58, 63, J 52-3, J 55-6
Tifon,56
Paula (Santa), 1H3
Tirésias, 61
Pélops,58.
Trindade, 62, 72, 203-4
Pcrcival, 86, 114, 161.
Tristâo, 86,137-58, 162
Pcrscu, 60
Turpin, 113, 171
Preste joão, 86, 89-105
Urano, 56, 156, 159
Prometeu, 57
Vnltário, 159-72
Quingll,214
!{ahab, 56 Veltro,242