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CENA 9 (Entra uma mulher correndo, com dois guarda-chuvas nas méos, um aberto e um (fechado. Traz também uma mala. Entrega o guarda-chuva fechado a Diogo ¢ fica ‘parada ao seu lado. De vez em quando ela 0 olha como quem estranha 0 fato de ele nao abrir 0 guarda-clniva. Ela parece estar se abrigando de uma chuva que ele nao ve.) MULHER DESLOCADA - (Finalmente.) Que chuva, hein? DIOGO - Como? O que disse? MULHER DESLOCADA - A cantaros, nao é mesmo? Que dia ¢ hoje? DIOGO - Nao sei . Chuva? (Abre o guarda-chuva sobre si e tenta também / proteger Marilia,) Sabe que até agora eu nem tinha reparado nela, na chuva. MULHER DESLOCADA - Pois ¢... a8 vezes isso acontece... Nao reparar na chuva, quero dizer... (Pausa longa.) Ha muito-tempo que est aqui? y DIOGO - Desde antes..Desde muito antes da chuva. MULHER DESLOCADA - Ora, mas se me disse que nem tinha reparado na chuva... Acho que deve ser segunda...ou terga. °—\DIOGO - Certamente... quando chegamos nao havia chuva. Certamente. MULHER DESLOCADA - Certamente segunda? Ou certamente terga? DIOGO - Certamente néo havia chuva. Acho. Bom... € claro que nfo posso estar de todo certo... MULHER DESLOCADA - Claro que nao! Especialmente por que as certezas na vida sfio como a chuva. DIOGO - Sao? MULHER DESLOCADA - Sao. (Confidencialmente.) Passam. (Pausa longa.) O que fez durante todo o tempo que esteve aqui sem nem sequer notar a existéncia da chuva, hein? DIOGO - Eu? Nada de especial: acordei, comi, dormi, fiz café, bebi café, dei café pra ela. MULHER DESLOCADA - Sua vida ¢ assim sempre tio animada? DIOGO - Nao nem sempre... as vezes s6 dormimos, ou s6 sonhamos, ou s6 tomamos café. Ha vezes em que tentamos nao dormir ou no temos o que comer. Ai sim € que fica animado. (Confidenciando,) Temos visdes MULHER DESLOCADA - Que tipo de visdes. DIOGO - Sabe como é: homens carregando outros homens por coleiras... MULHER DESLOCADA - 0 Senhor...? Entio ¢ segunda: ele sempre inspeciona a propriedade depois de fins de semana... Ele esteve aqui?! DIOGO - Esteve. E também 0 cego, com a mulher. MULBER DESLOCADA - Isso nao é bom... DIOGO - Nao €? MULHER DESLOCADA - (Solenemente.) Nao. Nada bom mesmo. O cego s6 passa as tergas... A nafio se... a ndo ser que... (Mudando completamente de tom.) Outro dia fui ao cinema! Ir ao cinema é melhor do que ter visdes; muito mais seguro... (Confidenciando.) E higiénico. Uma pelicula muito boa! DIOGO - E mesmo? Conta! MULHER DESLOCADA - A mocinha chorava. O mocinho consolava a mocinha, O bandido fazia maldades. Todo mundo acabava feliz. (Pequena pausa de reflexdo.) O de sempre DIOGO - Que mais? MULHER DESLOCADA - Que mais 0 qué? DIOGO - Que mais voce faz? MULHER DESLOCADA - Nada. Como pipoca de vez em quando. Vou a0 cinema de vez em quando. Espero, espero, espero, espero, espero... Bu costumo ficar muito ocupada esperando. As vezes, eu quase enlouquego de tanto esperar. Depois como mais um pouco de pipoca, vejo outra pelicula... Segunda ou terga, terga ou segunda... DIOGO - Nao é muito, nado é mesmo? MULHER DESLOCADA -(4spera,) Melhor do que s6 andar, dormir e tomar café, Hoje mesmo fiquei horas tentando decidir que roupa colocava pra vir te ver. Nao pude decidir que sapato calgaria: preto ou branco, branco ou preto... por isso pus um pé de cada, Depois: uma luta pra escolher o batom. Fiquei muito ocupada decidindo se vinha ou nio... DIOGO -E veio. MULHER DESLOCADA - Ainda nao sei ao certo, Ah! talvez a resposta esteja ‘no fim de semana! (Marilia acorda. ) MARILIA - Dormindo desse jeito jamais chegaremos. DIOGO - Algum pesadelo? MARILIA - Incrivel... acho que n&o. Nao consigo me lembrar do que sonhei. DIOGO - Nao sei o que é pior: viver um pesadelo ou no conseguir lembrar de um, MULHER DESLOCADA - Hi dias em que seria melhor morrer, nao acha? DIOGO - Nio sei. MULHER DESLOCADA - Talvez se morréssemos os trés, de amor. DIOGO - De amor? Morrer de amor? MULHER DESLOCADA - Ou por amor? MARILIA - Ou pelo amor. MULHER DESLOCADA - Eu morro. Se vocés prometerem morrer também. Acabaria assim toda a espera. MARILIA - O que faz aqui, esperando? MULHER DESLOCADA - As explicagées seriam tantas... Por exemplo, eu poderia dizer que vou de um lugar a outro, por motivos pessoais; ou que meu carro pifou; ou que vou para o camipo na casa de meus pais e espero que acioite passe porque o local é deserto; ow ainda... DIOGO - Ou ainda? MULHER DESLOCADA - Nada. 0 tédio. 0 écio, MARILIA - Quem é a senhora? i MULHER DESLOCADA - Uma mulher deslocada. (Chora mansamente,) DIOGO - Por que chora? MULHER DESLOCADA - Nao estou chorando. (Pausa.) B aquela velha historia de sempre: um amor que queria ter vivido, pelo qual queria ter morrido. MARILIA - Com quem? MULHER DESLOCADA - Bilhdes de homens, Todos do mundo. (Suspira profunda e amargamente.) MARILIA - Esta cansada? MULHER DESLOCADA - Nao. Sabe que dia é hoje? Da semana, quero dizer. DIOGO - Ela nao sabe se hoje é segunda ou terga. MARILIA - Quer alguma coisa? [ULHER DESLOCADA - Nao. Logo estarei 1. DIOGO - Sim. MARILIA - Quem é a senhora? MULHER DESLOCADA - Eu nd sei the responder. Todas as noites venho aqui, a este mesmo lugar, pra ser outra pessoa. DIOGO - Nao entendo. MULHER DESLOCADA - Eu também nio, as vezes. Hoje nao sou a pessoa que era ontem, porque ontem, aqui, cu encontrei um velho mas¢ate turdo que pensou 4 que eu era outra pessoa diferente da pessoa que o senhor pensa que sou. Mas ontem eu fui a mulher de ontem, com todas a verdades do ontem; como hoje sou a mulher de hoje. Entende? DIOGO - Nao estou certo... MULHER DESLOCADA -(Siléncio,) Tenho que ir. Preciso ver na folhinha se 0 fim de semana foi prolongado... Passou? DIOGO - 0 qué? MULHER DESLOCADA - A sua incerteza? DIOGO - Nio sei ao certo. MULHER DESLOCADA - O certo é que ela passou. DIOGO -(4pontando para Marilia,) Ele? MULHER DESLOCADA - Nao. Ela. A chuva. DIOGO - Passou? Tem certeza? MULHER DESLOCADA - As vezes sim, as vezes nfo... (Sente um forte cheiro no ar.) Esto sentindo? E ele. Ele esté a caminho, nao desiste. E melhor irmos emboral DIOGO - Ele? MARILIA - Quem? MULHER DESLOCADA - 0 Senhor. Esté vindo! Adeus! (Sai. Para, volta e pega 0 guarda-chuva que ficou com Diogo. Saindo ¢ surpreendida pelo senhor que vem agora com cinco servos em coleiras,) SENHOR - laa algum lugar? Nao é educado... DIOGO - Ela jé nad Sin SENHOR - Nao lhe perguntei nada. Onde pensa que vai? Nao se cansou de resistir a0 meu chamado? Ao meu amor? 2 MULHER DESLOCADA - Amor?!?!? O Senhor nao ama. E amado e sé! PRIMEIRO SERVO - Quem ela pensa que €? SEGUNDO SERVO - Uma grandississima filha da puta! TERCEIRO SERVO - Nao diga puta... puta... diga. Quarto SERVO - Meretriz! £ mais polido. SEGUNDO SERVO - Uma grandississima meretriz! PRIMEIRO SERVO - Pra mim é puta mesmo. (Inicia-se um jogo de palavras que € profundamente estimulante ao senhor e seus servos, mas assustador aos outros irés, especialmente & Mulher Deslocada que vai sentindo-se cada vez mais acuada a ponto de usar seus guarda-chuvas como armas, como espada e escudo para defender-se dos servos do Senhor.) TERCEIRO SERVO - Fua, crdia, galdéria. PRIMEIRO SERVO - Aiiiiii..... que ddio! Quem ela pensa que é? ousfo SERVO - Uma vagabunda, vaca, piranha. SEGUNDO SERVO - Gandaia. QU) £0 SERVO - Cachorra, cadela... Biraia! Que tal esse? TERCEIRO SERVO - Esgoto da ala fresca! SEGUNDO SERVO - Ai... esse é bom que déi. auto SERVO - Rulara, barrega, sentina... mulher de vida facil. PRIMEIRO SERVO - Que mais, hein? QuaxtTo SERVO - Qualquer coisa, menos puta. PRIMEIRO SERVO - Respondam: quem ela pensa que €? auto SERVO - Uma paneleira, sifilitica, marafona, B TERCEIRO SERVO - Nossa! Quanta coisa! SENHOR - Espero nao estarmos ferindo nenhum coragozinho sensfvel por aqui... Estamos? Nao? Ah... tanto melhor! Manda brasa! Quito SERVO - Ribombeira. QUARTO SERVO - Pederasta, ribalda... SEGUNDO SERVO - E tem mais: comborga dos lupanares! SENHOR - Puxa... que lindo... no, otha, lindo mesmo... parabéns PRIMEIRO SERVO - Hei! Mas-quem-€-que-e-la-pen-sa-que-€? QUINTO SERVO - Marafona. SENHOR - Ja foi. Qu TO SERVO - Ja? SENHOR - Ja! TERCEIRO SERVO - E... ribombeira... SENHOR - Também. MARILIA - O Senhor nio pode... SENHOR - Nao posso o qué? DIOGO -... tratar alguém assim. MULHER DESLOCADA - Vio embora! Fujam! Eu me entendo com ele... DIOGO - A senhora nao pode ficar aqui com ele... Deixa ela em paz! SENHOR - Vejo est mais corajoso que da ‘itima vez... Parou de se borrar diante dos fantasmas? MARILIA - Como tem coragem de tratar pessoas... seres humanos assim? SENHOR - Mas eles gostam. Eles querem. Eles pedem por isso, MARILIA - Duvido! SENHOR - 0 que disse? MARILIA - Duvido que prefiram ficar assim, E que no conhecem outro jeito. SENHOR - Estavam soltos no mundo, sem ninguém que os amparasse. Eu thes dei tudo que tém e permiti que fossem quem sao! Eu recebo muitas criticas, sabe? Sou muito incompreendido... E verdade... H4 quem me diga: “O Senhor nao trata bem as suas criaturas...” E eu pergunto: “Nao?” Mas meninos assim como os meus, se a gente dé a mao, eles querem logo o brago! Na minha modesta opiniao... DIOGO - £ claro... SENHOR - Por exemplo... eles no sabem que é perigoso se andar por ai, soltos? DIOGO - E... perigoso...? SENHOR - Claro que é! Pode-se morrer ou matar! Por isso no podem ficar 4 solta...Amar em liberdade pode ser muito arriscado...! Mas no seu caso, é claro que a senhora faz 0 que quiser. Cada um sabe de si. MULHER DESLOCADA - E. Cada... um... sabe... de...si.. SENHOR - Um sapato de cada cor? MULHER DESLOCADA - Sim, por qué? SENHOR - Minha santa maezinha — descanse em paz — sempre me ensinou que nao se pode calgar meias de cores diferentes, imagine sapatos! Mas cada um termina levando a vida que quer... nao é mesmo? MULHER DESLOCADA - E. E que cu nao podia decidir sozinha. SENHOR - Ah! Ai esta: sozinha no podia decidir nem que sapato colocar, Aposto que nem sabe que dia é hoje! Da semana... MULHER DESLOCADA hoje... é segunda! SENHOR - Ou terga? Ou quinta?! Ou sabado? 45 MULHER DESLOCADA - Nao! Sabado nao é, O senhor no caga nos finais de semana, S6 faz inspegdio as segundas... e 0 cego, bom, 0 cego s6 esmola por estas paragens nas tergas... Segunda ou terga, segunda ou terga, segunda ou terga! E se 0 fim de semana foi prolongado? Ai seria terca e o senhor estaria fazendo a primeira ispegao... Segunda ou terga? Terga ou segunda? Minha cabeca jé no é mais a mesma! E 0 senhor me confunde. SENHOR - Estiio vendo? Visivelmente desequilibrada, Precisa de um homem ao seu lado. Se vivesse comigo saberia... A senhora continua muito esquisita... Eu vou liemensa-verumecoisa, mas logo volt. (Vai saindo,) MULHER DESLOCADA - Se estiver muito ocupado nao precisa voltar... DIOGO - Ouviu? Ela disse que se estiver muito ocupado... SENHOR - Volto logo. Logo. E vocés nao perdem por esperar. MARILIA - Ele me da calafrios. MULHER DESLOCADA - Ele joga fantasticos perigosos jogos. Ele me persegue com suas fantasias. E eu tenho muito medo porque sou uma mulher & antiga, Eu nao consigo conviver com o que ele deseja. DIOGO - E 0 que é? MULHER DESLOCADA - Poder viver numa casa cheia de servos, homens ¢ mulheres, fazer com que lhe contem todos os seus segredos,). (Leniamente entra Missena que se posiciona ao lado de Marilia e the sopra palavras ao ouvido. Marilia, como num transe parece falar do SenhoF como se falasse de Miguel.) depois amar a todas as criaturas num rodizio frenético,. MULHER DESLOCADA - Finalmente, cansado das velhas criaturas, comega a procurar novas... DIOGO - E 0 que faz com as velhas? 6 MARILIA - Mata. Vende. Para algumas encontra noivos, maridos para outras... E das que casam costuma... MULHER DESLOCADA -..costuma pedir o primogénito de presente DIOGO - Pra qué?! >~MARILIA - Para transformar numa de suas criaturas. MULHER DESLOCADA - Fisiologicamente ele nfo tem mais que 25 anos, mas cronologicamente ja passou dos 80. DIOGO - Mas afinal de contas, o que ele pretende conosco!? MULHER DESLOCADA - Escravizar-nos... MARILIA - Chantagear-nos. MULHER DESLOCADA - Devorar-nos... MARILIA - Amar-nos. MULHER DESLOCADA - Eu me sinto muito 4 vontade com vocé, mas preciso ir, Nao quero desfrutar mais a alegria e o prazer de estar ao seu lado, MARILIA - Por qué? MULHER DESLOCADA - As endorfinas... viciam. DIOGO - Como? MULHER DESLOCADA - Alguns cientistas acreditam na existéncia de substancias quimicas no organismo, que siio secretadas em grandes quantidades quando as pessoas esto apaixonadas: as endorfinas. Elas causam dependéncia e, depois quando 0 amor acaba, sindrome de auséncia, semelhante a produzida por poderosas drogas quimicas como a cocaina, a heroina ou a morfina. MISSENA = (Falando diretamente com Marilia.) Como acontece com os dependentes, custei muito a recuperar a saiide depois que te perdi e, apesar disso, como todos os viciados em amor, fico a procura de alguém que me ajude a produzir cada vez maiores quantidades de endorfina no meu proprio corpo... (Sai.) a7 MULHER DESLOCADA - Chore... Conter 0 choro ¢ 0 que nos torna feias. Chorar é uma fungao biolégica como sentir fome ou sede. Uma fungdo que precisa ser satisfeita, Uma pessoa faminta ¢ uma coisa muito feia de se ver. MARILIA - Eu 36 queria scr livre. MULHER DESLOCADA - Vocé sera. Sabe tricotar? MARILIA - Sei. Por qué? MULHER DESLOCADA - Quando erramos um ponto e continuamos a tecer, ali, bem no meio do trabalho, fica um rombo, um erro irrepardvel € aos poucos nosso trabalho sera perdido desmanchando-se em nossas maos sem que possamos fazer nada, Quando se erra um ponto o melhor a fazer ¢ desmanchar tudo e recomegar... Finalmente sei que dia é hoje: quarta-feira, meio da semana, 0 dia mais dificil de ser vivido... (Sai, oe MARILIA - Vamos voltar. DIOGO - 0 qué? MARILIA - Vamos voltar. DIOGO - Nao. MARILIA - Até quando? Fugir? Até quando? DIOGO - Miguel. MARILIA - Eu sei. DIOGO - Entio. MARILIA - Nao importa. Importamos nés. DIOGO - Medo. MARILIA - Eu sei. Nada aproxima mais duas pessoas do que o fato de sentirem medo juntas. DIOGO - Fantasmas.

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