Você está na página 1de 12
Do que € feito eS eilicy 4 H ii i ge aoe By Hy & \ nig ed rode ea aN IENYAUN Do que € feito o encontro Ilustrages Ana Cartaxo ese oem U0) Ed AILTON, € de onde vocé veio até onde eu vim e de onde eu vim até onde vocé veio que acontece 0 encontro. Vocé trilhou 0 caminho da terra até 0 livro, eu percorti a estrada do livro até a terra. Vim de um povo que se dizia povo, mas sem terra e, ainda assim, povo, povo do livro. Vocé veio de um povo que so se diz povo com terra e faz da terra, 0 povo. E interessante pensar em como podemos sair de lugares tao distintos e chegarmos a esse ponto de encontro. Mas, temos, também, muita historia em comum... Enquan- to 0 seu povo, apesar de enraizado na América, nos gerais e nos meandros do vale do rio Doce, era perseguido, fugia, matava e morria, o meu, desenraizado, errava de canto em canto, procurando onde ficar, sem incomodar. Vagou das terras palestinas para a Mesopotamia, dali para o norte da Africa, e, com 0s mouros, para a Peninsula Ibérica. De 1d, expulso mais uma vez com o advento da reconquista da tegiao pelos cristaos, para a Turquia. Vocé conta que, além de chamarem de botocudos todos 95 indios das matas do rio Doce e até do Espirito Santo, ainda no comego do século XIX, os nomes que designa- ram, depois, os indios eram, em grande parte, nomes de lugares, Assim acontece também com o meu povo: além de serem chamados todos de judeus, os dessa minha ver- tente séo chamados de sefarditas, uma referéncia a Espa- nha - Sefarad, em hebraico -, de onde fomos expulsos na Do que ¢ feito © encontro 135 mesma €poca em que os europeus chegavam aqui, na América do Sul. Esse meu povo, de tanto ser proibido de ter terras, por sé- culos a fio, em qualquer lugar que andava, passou a acre- ditar que era composto de seres essencialmente urbanos, daqueles que nao pisam na terra e que acham que a natu- reza € de outra natureza que nao a deles. Foi assim que eu cresci, com essa musica nos ouvidos: saber linguas, estudar algo aplicavel em qualquer lugar do planeta e estar pronta para ir embora, a qualquer momento... Nenhum apego lo- cal, nenhuma atengao a natureza, a paisagem, as plantas ou aos passaros. Uma aposta na eterna errancia ou numa terra prometida que parece nado cumprir nunca a promessa. Vocé, por sua vez, diz que, quando pensa no territorio do ‘seu povo, pensa em um lugar onde a historia, os contos e as marratives dele acendem luzes nas montanhas, nos vales, Jugares e identificando o fundamento da sua ancestral do seu povo. Ha algo assim — | do meu povo, a ra 136 Eu quero acreditar que esse cenario, ou essa minha ancestra- lidade, me permite algum conforto nos labirintos que ligam as questdes da cultura aos assuntos espinhosos da identida- de. Sei que vocé acredita que os fundamentos de uma tradi- ¢40 nao sao leis, nem mandamentos que devem ser seguidos sob pena de nao sermos mais quem somos. As tradigGes es- tdo vivas e mudam 0 tempo todo, dinamicas, como a vida. Afinal, a vida € movimento. Vocé diz, inclusive, que ¢ isso que nos possibilita sermos contemporaneos uns dos outros, mes- mo vivendo de formas muito distantes: aqueles que fazem fogo friccionando uma varinha no terreiro de casa ou no meio da floresta com os que usam celulares com os aplicati- vos recém-lancados no mercado. Aqueles que sequer cozi- nham aos sdbados, dia oficial do descanso judaico, segundo os preceitos religiosos, com os que fazem cirurgias complexas nesse dia. Somos todos indios, somos todos judeus. Nao sdo, e néo podem ser, a meu ver, as manifestagdes culturais, as definidoras da identidade dos povos. Se voce mora em uma cidade, anda de carro, viaja mundo afora, escreve em um computador e conversa pelo celular, voce é menos Krenak? Se eu como carne de porco, trabalho aos sdbados, como pao na pascoa judaica e nao jejuo no dia do perddo, sou menos judia? Indio é quem diz que ¢ indio e ¢ assim reconhecido por seus pares. Judeu ¢ quem diz que € judeu e é assim reconhecido por seus pares. Mas 0 labirin- to é extenso e nem sempre podemos contar com 0S présti- mos de uma Ariadne... De que tome © encontre 137 Quando a identidade confere direitos, principalmente em cenarios onde nao é isso que se quer, os questionamentos afloram. Quando ¢ mais conveniente acreditar que todos querem viver da mesma forma e que nao ha espaco para viver, simultaneamente, de muitos jeitos diferentes, as jane- las para fora desse pensamento hegeménico sao trancadas. E ai, talvez, que se esconda o segredo do encontro. Mais uma vez, concordo com vocé, nossos encontros acontecem todos os dias. Nao ¢ possivel cravar 1500 como 0 ano do encontro entre os europeus e os indios que viviam nessa ‘terra, assim como nao faz sentido acreditar que o momento europeus e povos das Américas - é 0 momento do O encontro se faz no convivio, ou, como vocé hd uma espécie de roteiro do encontro que se da lite que reconhegamos 0 outro e, eu acres- reconhecamos também no outro. nem acredite no encontro. Re eR ea oR SLE Coren rer OREO SRC CCI Cet SCE ace acd PTS Is eRe ST Ok Stone Cac RST Red PESO MEER eso Oa I COR Tuts aad RUS eM COLA CeCe (aE PSS Moc Om] estabelecida em junho de 2008 e con- cluiu seus trabalhos. em 2015, Parte importante de seu mandato tinha relacdo com as Residential Schools, um con- junto de intematos para onde as ere Smt early mandadas, depois de arrancadas de suas familias. Acho que, de alguma forma, isso se parece com o tal Reformatoério Agricola Indigena para onde indios, inclusive Krenak, que Tesistiam aos desmandos dos administradores das aldeias CCl oe oe ec om POC ace tee bE Dil Se] ode] OL on lee) ele fee eat e OM ITC 0 sistema das Residencial Schools funcionou Te mUE SHS DOUE LRT INtc Om ome ra eCmer se ta Mri hemo ee (esr Tie mar elector Wee OES]: 0 eS re Smarl WOU aaa eer T eee et Nee Cirle Um Com ete men fate) originaria, Os casos de abuso BOCs an teen eit sabe, até hoje, quantas CC aor meee lugares. Nada diferente do que CSTE Car root ret eet gE TTR COROLLA WES Trae Jongo dos séculos no Brasil. SIE uUeU enna rr ene ene Lug foi feita 4 Comissao era derivada Comte Oana ceel COME OU COeme Lem eee TS CONC CMM [TE TS Oe aC ROOM UI ice Me Comer nd Te Leon Met ages (Oi eee Oa RTS McC RI CoS CSC (RST Eee urea Ea OR ema Ee 4 sua volta, 0 que fez esse irmao foi demarcar terras e en- TCR Or Om are ROEM LC a Cet ot ee RUS eC Om eR rT cme ON) DTM um (a Dele ON COMIC Mure Tae) SSO MMU OMe Sum oes TeC rn tats CRU ORO ORNS ORI ee m Toate ey) tem como finalidade acabar com a resisténcia e conduzir 4 aceitagdo da ordem imposta. Ainda assim, porém, a resisténcia nao acabou. Nossos po- vos sao resilientes. Judeus enfrentaram pogroms na Russia, na Polénia, na Ucrania e em varios outros lugares. Seis milhdes morreram na Segunda Guerra Mundial, em campos de concentragao e de exterminio. Mas, apesar de tudo isso, e do antissemitismo crescente e ubiquo, continuamos aqui. E uma forma de estar aqui, como judia, pode ser também lutar contra as agées dos proprios judeus que espelham o comportamento dos outros, discriminando, ameagando e matando. Vale sempre lembrar que ha diversas formas de ser judeu, sefardita, indio, branco ou qualquer outra coisa. Os indios, em sua pluralidade, seguem aqui também. Como vocé disse, houve, sim, uma descoberta do Brasil pelos brancos em 1500, mas houve, depois, uma descoberta do Brasil pelos indios nas décadas de 1970 e 1980. Nessa oca- sido, os indios descobriram que, apesar de eles serem sim- bolicamente os donos do Brasil, eles ndo tém lugar ne- nhum para viver nesse pais. Terao que fazer esse lugar existir dia a dia. E agora, cada dia mais, terdo que inventar © que é ser indio no Brasil. Saber, mesmo, eu nao sei, mas desconfio que essa inven¢4o Ja comegou e tem acontecido quando os indios chegam 45 Universidades e promovem um encontro ral de: Tem acontecido quando temos, entres Do que & feito 0 encontro 141 uma deputada federal indigena, Joénia Wapichana, articu- lada e combativa. Quando ha indios professores, médicos e advogados e, a0 mesmo tempo, ha aqueles que vivem nas aldeias, respirando os ritmos da natureza. Tem acontecido quando os indios se organizam e vao a Brasilia a cada ano, no Acampamento Terra Livre, fazer pressao pelas pautas de seus interesses. Tem acontecido quando um dos livros mais importantes do momento, A Queda do Céu, foi escrito por um indio Yanomami, Davi Kopenawa. Mas tem acontecido também quando os povos indigenas seguem lutando por seus direitos e territorios. Pelo direito de seguir sendo. Essa inven¢ao ¢ a multiplicagao da possibilidade do encon- tro. E aqui, eu abro paréntesis para te contar uma historia sobre encontros. Quero te falar sobre o encontro entre Edward Said e Daniel Barenboim. O primeiro, um palestino que nasceu em Jerusalém, em 1935, e acabou se tornando professor de inglés e de literatura comparada na Universi- dade de Columbia, em Nova York, sempre esteve engajado na luta dos palestinos contra a ocupagao israelense e con- tra aqueles que demonizam o Isla. Ele era um excelente pianista e, por meio do caminho da musica, conheceu Da- iiel Barenboim. Este, por sua vez, é um judeu nascido na !a que se mudou para Israel quando adolescente e ra em Berlim, Barenboim é pianista e maestro. Do eles, nasceu, em 1999, a orquestra West- ocidental-oriental, 0 nome da or- titulo de uma antologia de poemas 142 de Goethe, que tentava conciliar a tradigdo poética arabe com elementos da modernidade europeia. Originalmente, a sede da orquestra ficava em Weimar, na Alemanha, mas agora esta em Sevilha, na Espanha. Mas o que é€ de fato interessante nessa orquestra € que seu objetivo é promover 0 dialogo e o reconhecimento da humanidade do outro. Os musicos so arabes e judeus do Oriente Médio, que tocam juntos. Barenboim e Said disseram, mais de uma vez, que a orquestra abre uma brecha no desconhecimento que ju- deus e arabes, israelenses e palestinos, tem uns dos outros e, como diria vocé, cria um roteiro para o encontro. Acredito que encontros assim ajudam as pessoas a inven- tar seu lugar no mundo, contemplando mais possibilida- des e criando questdes que nem se colocavam antes. Como disse um dos musicos da orquestra: 0 que vai acontecer se eu encontrar um dos meus colegas de orquestra no campo de batalha? Vocé disse uma vez que, se os indios continuarem a ser vistos como os que estdo para ser descobertos e seguirem encarando cidades e tecnologias apenas como algo que ameaga e exclui, 0 encontro continuard a ser protelado. No entanto, estéo dando um importante passo em direc4o 4 cle, passando a se apropriar das tecnologias e a entender 0s riscados das cidades, mas sempre deixando claro que indios séo e indios permanecem. Acho que os outros, nao indios, talvez Por serem téo mais numerosos € tao imersos law | Do que ¢ feito 0 encontro 143 nas suas formas hegemdnicas de estar no mundo, ainda nao conseguiram dar o seu primeiro passo. Ou, talvez, nao quiseram e nem queiram, como sociedade, compreender que existem alternativas. Talvez a maioria es- teja confortavel nessa corrida sem fim para lugar nenhum, onde o que fica para tras é sé um rastro de destruicdo. Talvez nado tenham percebido que nao estamos acampados aqui provisoriamente, essa € a nossa casa. Talvez nado se tenham dado conta de que deveriamos nos reconhecer como um estado plurinacional e nao insistir em permane- cer como colonizadores oprimindo eternamente outros po- vos e outras formas de viver. Enfim, talvez nao tenham entendido que tudo tem consequéncias. Quando, porém, 0 encontro acontece, ele € avassalador e, porque nao dizer, sagrado. E assim, se encontro for, ele nos dé asas, nos permite mirar o futuro, o que esta por vir, o que podemos vir a ser. Mostra-nos que ha caminhos, por mais perdidos que estejamos; que o céu pode nao despencar sobre nossas cabecas e ali permanecer nos dando seu azul; e que o que passou é pouco diante do que pode passarinho. £ no territério do conhecimento umbilicalmente ligado a natureza que acontece 0 nosso encontro. Em uma terra _ que é fisica, mas é mitica. Geogrdfica, mas sagrada. Histé- : mas prenhe de devires. Tradicional, mas inovadora. ‘Nossa. Aqui e agora. Sempre.

Você também pode gostar