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A gosto e capricho dos primeiros

proprietários: A trajetória de uma cidade


brasileira nos séculos XVIII e XIX

Por Magnus Roberto de Mello Pereira

l 1. UMA CIDADE SEM RIGOR E SEM MÉTODO?

Ao longo dos últimos 150 anos, a organização (ou desorganização)


da cidade brasileira tomou-se uma das questões mais frequentemente
revisitadas pela historiografia de língua portuguesa. Desde o século
passado, como veremos, tomou-se senso comum a noção de que as
cidades brasileiras eram "muito defeituosas por se haverem levantado
sem plano a gosto e capricho dos primeiros proprietános".'
A historiografia brasileira, quando trata do aspecto especifico da
forma urbana, costuma tomar as cidades hispano-americanas como
conuaponto: em oposição ao plano em tabuleiro de xadrez utilizado
I Irias colônias espanholas, a ocupaçáo caótica dos assentamentos luso-
americanos. Para alguns isto provaria a ausência do estado colonial
português, para outros o fato é representativo da própria 'maneira de
ser' lusitana da qual os brasileiros seriam herdeiros.
De acordo com o historiador Sergio Buarque de Holando, a cidade
I sem rigor e sem método que os portugueses construiram na América
não é um "produto mental". Ela não chegaria a contradizer o quadro da
natureza e seria expressiva de uma convicção intima de que "não vale
I a pena ...".2 Em oposição a este quadro, as cidades espanholas seriam as
I
I ' O Dezenove de Dezembro, Curitiba. 29 abr.1854. pp. 3 4 .
Sergio Buarque de Holanda, Raizes do Brasil (3.ed. Rio de laneim 1956), p. 152.
I A tmetóriu de uma cidade brasileira rios séçul<isXVIII ç XIX 335
primeiras cidades abstratas que os europeus edificaram no continente séculos XVIII e XIX. Tomou-se como exemplo a cidade de Curitiba,
americano. capital do Paraná, um dos três estados (províncias) situados no extremo
"Já à primeira vista, o próprio traçado dos centros urbanos da América Espanhola sul brasileiro.
denuncia o esforço determinado de vencer e relificar a fantasia caprichosa da paisagem As origens desta cidade podem ser buscadas nos arraiais de ga-
agreste: é um aio definido da vontade humana. As ruas não se deixam modelar pela
sinuosidade e pela aspereza do solo; impõem-lhe o acento voluntário da linha reta."3
rimpeiros de ouro que se instalaram na região nos meados do século
XVII. Em 1693 ela sena elevada à categoria de vila, para, em 1854,
Entretanto, esta não tem sido a única maneira de apreender os tomar-se capital da nova Província do Paraná, recém desmembrada
assentamentos urbanos coloniais do Brasil. Um artigo recente de Silvio da de São Paulo. Ainda durante o século XIX, Curitiba foi atingida
Zanchetti busca demonstrar a constituição de um sistema de cidades por dois processos que influenciariam na sua configuração espacial.
como aspecto importante da colonização portuguesa na A m é r i ~ a . ~ A cidade veio a tomar-se o grande centro de produção de erva-mate
Em outro artigo, também de publicação recente, o historiador o qual monopolizaria os mercados da região platina. Por outro lado,
Ronald Raminelli, ao tratar dos assentamentos urbanos nordestinos dos ela tomou-se um dos polos de acolhimento da corrente migratória
primeiros séculos da conquista, procura mostrar que as cidades coloniais européia em direção ao Brasil. A partir da década de 1830 ela passou
ultrapassam a visão simplificadora que, sobre elas, foi estabelecida a receber um contingente expressivo de imigrantes de língua alemã
pela histonografia bra~ileira.~Contrariando os procedimentos correntes, (alemães, suíços e austríacos). Mais para as duas últimas dkcadas do
ele vale-se da cidade hispano-americana não para reforçar a clássica século ela passaria a abrigar imigrantes do norte da Itália além de um
dicotomia mas, justamente, para quebrá-la. forte contingente de eslavos (polacos e ucranianos) vindos dos impérios
É bom lembrar que o investimento que nossos historiógrafos fizeram Russo, Alemão e Austro-Húngaro.
no sentido de reforçar as diferenças não têm uma contrapartida ne- É bom lembrar que, antes mesmo da institucionalização do povoado,
cessária entre os autores hispano-americanos. Basta que tomemos como ou seja, a sua elevação à vila, os moradores organizaram o espaço
exemplo as obras de Angel Rama e José Luis Romero para percebemos urbano nascente dentre o modelo previsto na legislação portuguesa e
um enfoque assimilacionista. Em ambos os casos mencionados, a cidade espanhola. Cuntiba teve como núcleo de fundação uma praça retangular
brasileira aparece, guardadas algumas peculiaridades, no quadro mais onde foi consuuida uma capela e as edificaçóes residenciais urbanas
amplo da cidade ibérica do continente ameri~ano.~ dos primeiros moradores. Desta forma, o vilarejo foi organizado em
Nesta senda, Raminelli nos mostra como o conhecimento das cidades tomo de um espaço que pode ser entendido como uma plaza mayor.
hispano-americanas pode representar um ganho na intelegibilidade de O único senão diz respeito à localização do templo em um dos cantos
suas correspondentes luso-brasileiras. A visão dos núcleos urbanos que da praça. O que, no futuro, provocaria um olhar de reprovação em
o autor nos apresenta, procura ultrapassar aquele quadro de desolação mais de um observador. Aquela não.era a localização condigna de uma
e desimportância ao qual fomos acostumados por nossa histonografia. igreja. O que só vem a reforçar que os moradores, independentemente
Seguindo a mesma tendência, o presente artigo, através de um estudo do projeto legal da cidade, eram portadores de um modelo de espaço
de caso, procura acompanhar os diversos conceitos de cidade que urbano que pouco diferenciava-se deste. Entre a cidade da lei e a cidade
informaram a produção dos espaços urbanos brasileiros durante os concreta não pareciam haver maiores conflitos.

' Ibidem. p. 127


Silvio M. Zanchetti, "A cidade e o estado no Brasil colonial. Colocações para um 1.1. Proveu o Doutor Pardinho
debate": Espaço & Dehrrfe, 6 1 9 (1986). p.5-29.
i Ronald Raminelli, "Simbolismos do espaço urbano colonial": R. Vainfas (Hg.),
América em tempo de conquisfa (Rio de Janeiro 1992). pp. 163-75. Em 1721, chegaria a Curitiba o ouvidor Rafael Pires Pardinho,
Ver Angel Rama. A cidade dns /erras (São Paulo 1985) e I. L. Romero. importante funcionáno colonial que veio para correicionar os atos da
Lorinoamérica, Ias ciudades y Ias ideias (Buenas Aires 1976).
vereança do novo município. Face a um aparente mau funcionamento
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das instituições municipais ele encarregar-se-ia de recompilar, a partir de dar à cidade uma configuração formalmente definida, eliminando a
das Ordenações Filipinas, uma seleta de leis que desse conta das interpenetração entre o rural e o urbano.
atribuições e do correto funcionamento de uma câmara municipal. Contrariando a 'forma', pode-se supor que uma cidade com definição
Os provimentos assim compostos foram transcritos num dos livros da menos compacta seria mais operacional para essas populações setecen-
vereança, sendo deixada a ordem expressa de que eles deveriam ser tistas. Um terreno maior permitiria conjugar habitações e atividades
lidos pelos novos oficiais da câmara no início de cada legislatura. econômicas de subsistência, como a criação de galinhas e porcos, ou
Entre os diversos aspectos abordados pelo ouvidor ocupam um lugar o plantio de pomares e hortas. Ocoma que, do ponto de vista da
de destaque o do ordenamento do espaço urbano. A concepção de legislação portuguesa, estas não eram atividades apropriadas ao espaço
cidade veiculada pela legislação unha como módulo constitutivo a urbano. A cidade deveria comportar apenas atividades comerciais e
quadra retangular, perfeitamente adensada, vista a partir da rua como artesanais, bem como as residências de quem estava ligado a tais
um conjunto compacto de fachadas, delimitadas por ruas em grade. Os afazeres. Ela também abrigaria a segunda habitação dos senhores rurais.
quatro planos definidos por essas fachadas deveriam separar o público O quadragésimo-terceiro provimento do ouvidor previa justamente a
do privado. Por essa ótica, qualquer espaço livre entre uma casa e demarcação de um pasto para as montarias dessas pessoas que espora-
outra comprometia a visão do conjunto. Uma quadra em que houvesse dicamente iam à vila.
espaços vagos, fosse um lote ainda não ocupado, ou ocupado por uma Os agricultores de subsistência teriam, na melhor das hipóteses, de
habitação em ~ í n oua fora do alinhamento predial, era uma quadra morar nos r o c i ~ s Entretanto,
.~ a ocupação de Curitiba, desde o seu
incompleta, o que prejudicava a definição espacial da cidade como início, comportou uma população pobre que não se encaixava em
um todo. Como veremos, esta concepção de cidade, com ran'ssimas nenhuma classificação sócio-profissional rígida e que, para sobreviver,
modificações, sobreviveria até o final do século XIX. somava atividades urbanas e mrais. Na prática, era essa população que
Detenhamo-nos, agora, em alguns dos provimentos do ouvidor a legislação buscava enquadrar. O provimento de n 9 9 reforçava a
Pardinho. questão do adensamento, além de introduzir uma outra preocupação do
37 - "Proveu que daqui por diante nenhuma pessoa com pena de seis mil r6is para o estado, a separação entre o público e o privado.
conselho faça casas de novo na vila sem pedir licença h Câmara. que lho dará. e lhe 39 - "Pmveu que dando o conselho chãos para quintais aos vizinhos será conforme a
assinará chãos em que as fa$a continuando as ruas que estão principiadas e em forma testada das suas casas e com tanto fundo como os mais tiverem, e serão obrigados os
que vão todas direitas por corda, e unindo-se umas com as outras, e não consintam vizinhos a fazerem neles seus cercados para ficarem fechados e livres de desastres e
que daqui por diante, se façam casas separadas e sós como se acham algumas, porque ofensas de Deus que resultam dos quintais estarem abertos e mal tapados. E por esta
al6m de fazerem a vila e povoação disfome ficam os vizinhos nela mais expostos mesma razão obrigarão aos vizinhos a que tenham as portas das suas casas fechadas,
a insultos e desviados dos ouuos vizinhos para lhe paderem acudir em qualquer sempre e que não haja na vila pardieims e ranchos abertos de que se seguem os
necessidade que de dia ou de noite lhe sobrevenha."' desseiviços de Deus que se têm visto neste povo, sobre o que farão suas posturas e
acórdüos.'"
Esse provimento deixa explícito como o estado português concebia
a ocupação do solo urbano. O próprio ato de consuuir deveria estar Com o condicionamento dos quintais às testadas, este provimento
condicionado a uma concessão do poder público que, ao ser feita, obrigava as edificações a serem contíguas, parede a parede, o que
obrigava o solicitante com as demais normas ditadas à Câmara pelo resultava numa quadra compacta, onde não havia a possibilidade sequer
Ouvidor. As mas deveriam ser contínuas e retilíneas "de forma que vão de pátios ou corredores laterais. Delimitada pelos quatro planos de
direitas por corda". Dever-se-ia impedir a c o n s ~ ç ã ode casas isoladas fachadas, a quadra deveria comportar-se como um volume único,
para não tomar a cidade disforme. O emprego do termo "disforme" separando o público do privado. Essa separação era reforçada por
não foi acidental, uma vez que os provimentos tinham o propósito
Reseivas de t e m da municipalidade. mantida para usa comum dos moradores.
' Boletim do Arquivo Municipal de Curitiba, vol. I p. 19 (Doravante referenciado Equivalente ao ejido das cidades hispano-americanas.
como B.A.M.C.). B.A.M.C., vol. 1 , p.20.
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minúcias, tal como a obrigatoriedade de cercar os quintais e de No sul do Brasil, onde a norma, na criação das cidades, foi o
manter as portas fechadas. Procurava-se, assim, impedir que, mesmo habitante antecipar-se ao estado, este encontrou uma dificuldade muito
visualmente, os vizinhos compartilhassem entre si, ou com quem maior em fazer valer a ocupação 'racional'. Isso não quer dizer que
passasse pela rua, o cotidiano desenrolado no interior de suas casas. o conceito barroco de ocupação não fosse conhecido pelas câmaras
Os provimentos de n" 40, 41 e 42 reforçavam ainda mais o deline- municipais, mas apenas que ele era seguido menos à risca do que
amento das ruas e das quadras, enfrentando a questão das habitações gostaria o estado português. Pode-se dizer, concordando em parte com
em ruína e dos terrenos desocupados, prevendo a pena de perda da J. T. da Silva, que a implantação da cidade, tendo como ponto de
terra urbana para quem não a ocupasse efetivamente ou deixasse suas partida a rua, se deu de fato no Brasil meridional a partir do século
edificações em estado de ruína. XIX. Até então, a grade ortogonal, a quadra e a rua eram virtualidades
Através desses artifícios legais, que aos olhos de hoje parecem que norteavam a criação e a ampliação dos espaços urbanos, mas sendo
muito simples, o estado português procurava fazer com que as câmaras burladas a todo momento.
municipais assumissem como sua a tarefa de impor à população Até o século XVIII, o antagonismo manifesto entre câmaras e estado
brasileira uma espacialidade urbana específica e, com ela, uma divisão central fez com que os vereadores não pusessem grande empenho em
de tarefas entre a cidade e o campo. fazer respeitar a legislação portuguesa, inclusive no que dizia respeito
Tratando de São Paulo, Janice Theodoro da Silva nega que para o ao espaço urbano. No momento em que autorizavam, ou faziam vista
Brasil do s6culo XVIII sejam válidos os conceitos de público e privado grossa a uma constmção fora de alinhamento, as câmaras estavam,
e de amamento tal como os concebemos hoje, o que só seria cabível de fato, disputando poder com o estado português. Ao atender às
a partir do século XIX. conveniências imediatistas de algum apaniguado em detrimento da 'lei',
"Deve-se, todavia tomar um certo cuidado quando se trata desse tema, porque se tende os vereadores tentavam manter os laços pessoais sobre os quais seu
a ver a cidade sempre como uma rede de ruas que delimitariam o lugar de implantação poder estava fundado.
das edifícios. Entretanto isso carreswnderia. na história do Brasil, h ótica do século
XIX. Por esse ângulo, &-selevado a atribuir prioridade na implantação de uma cidade
a partir da rua. Pelo que pudemos observar ao longa da leitura das Atas da Câmara,
a opção dos colonizadores at6 o final do século XVIII não era em momento algum 1.2. O Exterminar-se desta vila os porcos
marcada por 'um projeto urbanístico, mas apenas pela concessão de datas, nas quais
se viam obrigados a edificar."1° Tentemos, agora, acompanhar a atuação dos vereadores curitibanos
Os provimentos aos quais nos reportamos dão uma excelente mostra quanto à ordenação do espaço urbano durante o século XVIII. Os dois
de que as restrições colocadas pela autora são apenas parcialmente aspectos que mais ocupavam os camaristas referem-se à presença de
animais soltos nas ruas e à conservação das casas. Ambas as questões
pertinentes. Uma política de ocupação do solo baseada na concessão
já haviam sido alvo dos provimentos do Ouvidor Pardinho e, ao longo
de datas não significa necessariamente uma ocupação aleatória do
espaço urbano. É preciso ter em mente o acanhamento dos núcleos do século XVIII e XIX, seriam reiteradamente tratadas em diversos
urbanos sobre os quais recaía o efeito nomatizador dos provimentos. provimentos e posturas.
A primeira vista, a recorrente preocupação com animais soltos no
As disposições que acompanhavam a distribuição de datas de terra,
na medida em que explicitavam uma concepção específica de quadra quadro urbano pode ser tomada como expressão de uma mentalidade
e de rua, de público e de privado, de divisão de funções entre excessivamente voltada h minúcia. Alguns autores vão abordar esta
cidade e campo, procuravam conformar o espaço urbano a um modelo questão como parte da tentativa do estado português em estabelecer
previamente estabelecido. uma economia de mercado. Expulsando porcos e galinhas do quadro
urbano, estes animais sairiam da produção de auto-subsistência para
'" Janice Theodoro da Silva, Sáo Paulo: 1554-1880. Discurso ideol6gico e organiza- tomarem-se mercadoria. Quero crer, no entanto, que a presença dos
çáo espacial (São Paulo 1984), p. 110. animais afrontava os vereadores e ouvidores justamente por provocar
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um quadro de indefinição entre o urbano e o rural, contrariando o Todavia não eram os porcos as únicas ameaças à cidade nascente.
próprio modelo de urbano que se procurava instaurar. Portanto, não é Naquele momento, o urbano era tão precáno que a presença de qualquer
de se estranhar que uma das primeiras posturas emanadas da Câmara animal era considerada daninha. Em primeiro lugar, essa ameaça era
de Curitiba buscasse a expulsão de porcos do quadro urbano. sentida no nível do simbólico. Cheia de animais, a cidade poderia deixar
Na sessão de 19 de agosto de 1748, os camaristas procuravam reunir de parecer cidade. As vacas soltas no quadro urbano deveriam ser
os homens bons da vila para deliberarem justamente sobre expulsas por "estar o dito gado fazendo curral na Igreja Matriz desta
"o exterminar-se desta vila os porcos e fazer-se sobre eles posturas e acordão para que vila com tão pouca decência". O fato de a igreja parecer um curral
quem os tivesse os pusesse fora desta vila ou os enchiqueirasse de sorte que nunca punha em risco a concretização da imagem urbana perseguida pelos
mais tomassem a andar soltos pela vila pelo grande prejuízo e dano que faziam em senhores camaristas.
m m b a r os quintais e ainda as paredes das casas desta vila de que os moradores que Por outro lado, os animais provocavam, como já vimos, a própria
nela têm casas têm experimentado grande dano tanto nas ditas casas e quintais como
nas Roças vizinhas desta vila." (Sessão da Câmara Municipal de Curitiba) (S.C.M.C.,
destmição física das edificações que asseguravam este urbano. Em
19 de agosto de 1748).11 1737, os vereadores determinariam "mandar retirar as cavalgaduras
assim dos ausentes como dos moradores desta dita vila para fora dela
A postura seria elaborada e aprovada na sessão subsequente do dia e gados por fazerem dano nesta vila denubando casas".
7 de setembro.
Entretanto, nem a criação de porcos nem a ação dos vereadores
contra esses animais encerrar-se-ia naquele momento. Tanto pela 1.3. Não ponham portal nem janela em beco esquisito
dificuldade de abandonarem um hábito arraigado, como por necessidade
de subsistência, os moradores da vila continuariam a criar porcos soltos Junto a medidas que buscavam controlar e expulsar os animais do
pelas ruas. Por outro lado, os próprios chefes de polícia, os alcaides quadro urbano, era preciso punir os próprios moradores por incúria na
da vila, não se preocupavam em fazer valer a determinação legal, o conservação dos seus imóveis. Periodicamente, a Câmara ordenava uma
que, alguns anos depois, geraria uma crise entre os diversos oficiais da correição geral na vila. Um dos'objetivos era evitar que edificações se
Câmara. Em 1770, por conta desses animais, o procurador do Conselho transformassem em pardieiros, ou seja, casas em mínas.
iria requerer aos vereadores a prisão do alcaide e do porteiro por "Condenaram os ditos oficiais da Câmara a Maria de Escudeiro em seis mil d i s por
omissão no cumprimento de suas atribuições. esta ter as suas moradas de casas e um lanço delas estar feito pardieiro as quais casas
"Requereu o Procurador deste Conselho a eles oficiais que sendo deteminado por estão citas nesta vila e assim condenamm Antônio Alves Martins em seis mil réis por
esta Câmara que se matassem os porcos que andassem nesta vila e cachoms bravos este ter umas moradas de casas nesta vila e ter feito o Almotac6 Antônio Francisco
e daninhos por queixas que tinham ouvido dos donos dos porcos e distúrbios e de Siqueira j i feito aviso ao dito para as mandar consertar e como nesta correição
malfeitorias dos cachoms e se tendo por esta Câmara mandado botar edita1 para se achou as ditas casas incapms em modo que serviram de pardieiros houveram os
o mesmo efeito de se recolherem os porcos e determinarem os ditos cães para fora ditos oficiais por condenar ao dito Antônio Alves Martins nos ditos seis mil d i s e
desta vila e os oficiais e Alcaide e Porteiro os matassem ou outra qualquer pessoa que assim mais condenaram os ditos oficiais da Câmara aos herdeiros de defunto João
recebesse algum prejuízo [...I, e como nem as moradores desta vila nem os oficiais Ribeiro Cardoso em seis mil réis por terem umas moradas de casas nesta vila e
têm satisfeit? a sua obrigação de que no dito mandado lhe foi determinado requeria a estarem incapazes." (S.C.M.C., 1 de julho de 1744).13
eles ditos oficiais da Câmara fossem servidos mandarem prender aos ditos Alcaide e
Porteiro pelo pouco casa que fizeram do que Ihes foi mandado [...I e ouvido por eles
Alguns anos depois, a Câmara produziria o que pode ser chamado
ditos oficiais seu requerimento ser justo mandaram se cumprisse tudo o requerido e de primeiro código de posturas de Curitiba. A diferença entre os artigos
que para constar mandaram se cumprisse tudo o requerido e para constar mandaram de posturas que seriam então criados e os anteriores provimentos dos
fazer este t e m o como acordão [...I." (S.C.M.C., 19 de maio de 1770).12 ouvidores está na origem local dos primeiros. As posturas acompanha-
vam a legislação portuguesa, está claro, mas não eram ditadas de fora
" B.A.M.C., vol. 19. p.37.
l2 lbidem. vol. 29, p. 54. '' Ibidem, vol. 18, pp. 18-19
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como os provimentos. Elas nasciam da decisão dos próprios vereadores Apenas o abastecimento de água foi assumido, desde muito cedo, como
de enfrentar questões urbanas como o desaiinhamento dos lotes e, mais tarefa do poder municipal.
uma vez, a presença de animais na cidade.
"Desde hoje em diante todos os quintais que se fizerem de novo e os desmanchados
que se reformarem se farão com as paredes fronteiras todas por alinhamento na forma 1.4. Os ecos do Doutor Pardinho
da lei com pena dos que o contrário fizerem pagar para este conselho seis mil réis
e trinta dias de cadeia e se lhe botar abaixo a que de novo fizerem e renovar a sua Em 1829, nos debates que se travaram na Câmara de Curitiba
custa r...] e bem assim se não ponha janela nem portal em beco esquisito o que nisso por ocasião da redação do primeiro código de posturas do período
terão os Almotacés grande cuidado [...I como também junto as casas desta vila nem imperial, os vereadores teriam em mãos justamente os provimentos, já
ao pé dela se não façam currais de gado por ser contra o bem comum e o que o então célebres, do Dr. Ouvidor Rafael Pires Pardinho. Com algumas
contrário fizer pagará seis mil Ais para o conselho pela primeira vez e dois meses de
cadeia sendo por duas testemunhas denunciado ou sendo por n6s visto ou quem nos
adaptações aos novos tempos, foram eles que serviram de arcabouço
suceder e pela segunda se procederá criminalmente para ser punido como de direito para a legislação municipal de Curitiba do século XIX. Tanto que a
for." (S.C.M.C., 18 de novembro de 1747).14 comissão encarregada de propor as novas normas recebeu o nome de
Comissão de Revisão dos Provimentos.
No ano seguinte, podemos acompanhar, novamente, a Câmara A cidade pensada por essa Comissão, em 1829, em nada diferia
utilizando-se de seu poder de polícia contra os que deixavam as suas
da cidade colonial proposta pelo Dr. Pardinho em 1721. Para os
edificações minarem-se.
vereadores do início do Império, a cidade ainda se definia em oposição
"Correndo as ditas mas houveram por condenado a José Palhano de Azevedo em três ao campo, ou seja, pelo m a m e n t o retilíneo em grade ortogonal,
mil réis por não ter as suas casas nesta vila concenadas antes as ter cheias de buracos
como tamb4m condenaram a João Rodrigues da Rio grande fazendeiro da fazenda
pelo adensamento, por quadras em volumetria única, pela ausência
do defunto Tenente General Manoel Gonçalves de Aguiar por não ter consertado as de vegetação, pela arquitetura luso-brasileira e pela separação entre
casas que estão nesta vila pertencentes às mesmas fazendas sendo administrador delas o público e o privado.
o qual condenaram em outros três mil réis e assim mais houveram por condenado ao A eliminação dos espaços vazios no interior das quadras foi uma
Sareento-mor Felix Ferreira Neto em ouims t&s mil Ais Dor ter o seu auintal todo das primeiras preocupações dessa legislatura da Câmara quanto h
descomposto e cheio de buracos e assim mais condenaram a Manoel Pinto do Rego
por não ter as suas casas nesta vila consertadas e estarem também cheias de buracos."
conformação do espaço urbano.
(S.C.M.C., 29 de fevereiro de 1748).15 "Entrando em discussão o artigo segundo adiado do Capítulo quarto sobre os
pardieiros o Sr. Marques pediu a palavra, produziu um longo discurso em que citou
É interessante lembrar que no século XVIII a Câmara ainda não os Provimentos do Doutor Pardinho. que determinava que os Pardieiros que em
estava organizada para prover a cidade de serviços públicos. Ela exercia certo tempo não fossem reparados ficassem devolutos e que as Câmaras os dessem a
quem os pedissem com todos seus materiais em vinude do que propunha a emenda
um poder de fiscalizaçáo, impondo o modelo urbanístico vigente.
que diz - citados os donos dos Pardieiro3 e suas mulheres para que dentro em um
Mas, obras públicas, com raras exceções, eram atribuiçáo direta dos ano os repare: levantando casa na forma do competente Artigo e não a fazendo a
moradores. Veja-se o caso da pavimentação das ruas. Em 1786, os Câmara os dari a quem os pedir - O Senhor Presidente combateu a doutrina daquele
vereadores "determinaram aos moradores que fizessem as suas calçadas antigo Provimento e da emenda por serem anticonstitucionais e atentatórios contra o
até o meio da rua e outra parte cada um a sua testada". No s&culoXIX, Direito de propriedade que a necessidade pública verificada que exige a propriedade
do cidadão lhe não tira sem que ele seja indenizado que aqueles Pardieiros são
a Câmara assumiria como sua a tarefa de pavimentar o terço central das
propriedades legítimas, que a constituição manda respeitar - que o proprietária [...I
vias públioas. Os terços'restantes seriam pavimentados pelos moradores que não pode ou não quer reparar o pardieiro, que seja sim constrangido a vendê-lo
de ambos os lados das ruas. Somente no final do século XIX, a Câmara pelo seu razoável preço com que fica remediada a pública necessidade, mas que nunca
passaria a ser encarada majoritariamente como provedora de serviços. lhe fosse arrancada; e finalmente que a segurança pessoal, e a direito de propriedade
eram as bases em que. rewusavam
. o edifício social aue destmídas aauelas dcstmída
estava o Edifício." (S.C.M.C., 7 de setembro de 1829).16
" Ibidem. vol. 19, p. 25.
" Ibidem, p. 32. l6 Ibidem, vol. 42, p. 87.
344 Magnus Kobeno de Mella Pereira 1 A trajetória de urna cidade brasileira nus séculos XVIII e XlX 345

Embora os efeitos práticos das leis fossem os mesmos em 1721 e A tarefa de impor um traçado urbano 'racional' não era das mais
em 1829, ou seja, a eliminação de ruínas no quadro urbano, em simples. Para conseguir realizá-la, ainda que parcialmente, os verea-
1829a penalização dos infratores curvava-se aos novos preceitos dores enfrentavam os mais diversos obstáculos. Em alguns momentos,
constitucionais. A legislação colonial previa a perda não só do terreno, os empecilhos eram de ordem topográfica, pois a hidrografia e ou-
mas dos materiais de consuução de que se compunham as ruínas. tros obstáculos dificultavam a implantação do traçado reticular. Mais
Já os vereadores de 1829 reconheciam estes mesmos materiais como frequentemente, porém, o obstáculo consistia, pura e simplesmente,
legítima propriedade privada, passível de indenização, caso fosse na falta de dinheiro para indenizar os proprietários atingidos pela
apropriada pelo Estado. Do ponto de vista político, a grande maioria da deliberação de retificar alguma rua.I8
população não era reconhecida em sua cidadania. Não obstante, do lado A solução encontrada pelos vereadores foi dar tempo ao tempo,
econômico, a câmara demonstrava reconhecer o direito à propriedade. regularizar a cidade à medida que fosse sendo reconstruída e controlar
A preocupação em tomar as quadras completas se expressava não a sua expansão, enquadrando-a progressivamente nos cânones vigentes
só na legislação que obrigava à reconstrução das ruínas, mas através na legislação. Nas novas áreas que iam-se acrescentando à cidade, a
do estabelecimento de um prazo máximo para edificar nos terrenos câmara conseguiu tomar a dianteira e passou a demarcar as ruas antes
concedidos pelas câmaras. Inspiravam-se os vereadores na legislação mesmo que a ocupação se efetivasse.
portuguesa do ancién régime, que previa um prazo-limite para o "Leu-se um parecer da comissão encarregada de examinar o requerimento de
aproveitamento dos terrenos, o qual, se não fosse cumprido, implicaria Theodoro Süesser. em que pede 80 palmos de terreno para edificar na extremidade
na perda do mesmo. da rua das flores-: 6 de parecer que se lhe conceda o dito terreno com fundos de
metade da rua das flores, h rua nova que se acha demarcada: posto em discussão foi
Título 2'. Capítulo 1'. Artigo 5? "As mencionadas Cartas de data serão Concedidas
aprovado. e nesse sentido despachado o requerimento." (S.C.M.C., 10 de outubro de
sempre com a precisa cliusula sem prejuízo de terceiro, e a obrigação de aproveitar o
1847).19
terreno pedido, dentro do tempo de um ano. no fim do qual seri, ipso facto. devoluto,
salvo se por motivos legítimas obtiver promgaçb do prazo." (Curitiba, 20 de outubro A rua nova mencionada nesta citação existiu antes de sua ocupação.
de 1829)."
Ela existia como idéia antes de se tomar concretamente rua, e,
enquanto idéia, já condicionava a ocupação de outra rua, a das Flores.
Antecipando-se As consuuções, a câmara buscava garantir que elas
11. A BATALHA DAS RUAS fossem retilíneas e paralelas, conforme as prescriçóes barrocas.

Insistindo nas propostas coloniais barrocas quase até o final do século


XIX, a câmara curitibana se ocuparia fundamentalmente em estabelecer 11.1 Quem fiscaliza o fiscal?
os comportamentos admissíveis nos espaços urbanos, na padronização
da arquitetura e em fazer valer os velhos cânones do urbano. Além A preocupação com o amamento também transparece na criação
de insistirem no adensamento das quadras, valendo-se da legislação dos empregos públicos. Um dos primeiros previstos pelas posturas foi
t
que acabamos de comentar, os vereadores estavam empenhados em justamente o de piloto ou amador, um típico 'cartório' baseado nos
superpor a retícula b q o c a , tipo tabuleiro de xadrez, ao traçado um moldes do ancién régime. O piloto, assim como ouuos empregados da
pouco mais orgânico que se configurara historicamente na cidade, em municipalidade, era alguém que, por estar em boas graças com as forças
virtude da negligência na aplicação da legislação hispano-portuguesa. dominantes na câmara, recebia o privilégio de explorar um serviço então

" Câmara Municipal Curitiba, Posturos Municipais de Curiiiba: 1829-52, fol. 3 Ver: B.A.M.C., vol. 47, p. 60
(manuscrito). (Doravante referenciado como P.C.C.). l9 Ibidem, vol. 55, pp. 89-90.
346 Magnus Roberto de Mello Pereira A trajcrória de uma cidade brasileira nos séculos XVIII e XIX 347

considerado como público.20 Cabia ao piloto proceder à demarcação 11.2. Os talentos e luzes dos dignos engenheiros
dos armamentos determinados pela câmara, serviço pelo qual não era
remunerado. Em compensação, ele detinha o monopólio dos serviços A partir da década de 1850, os antigos funcionários responsáveis
de demarcação das terras urbanas e do rocio. Todos os proprietários, pelo traçado urbano começaram a perder terreno. Com a instalação
antes de tomar posse de alguma área ou iniciar uma consirução ou do governo da Província, ganhariam espaço na administração os profis-
reforma, deveriam solicitar os prkstimos do piloto na demarcação das sionais com formação técnico-acadêmica. Aos bacharéis reuniram-se os
terras, no alinhamento dos alicerces das casas pelo traçado das ruas, engenheiros, que viriam a ser os profissionais do urbano por excelência.
bem como na determinação do nível das soleiras. As taxas cobradas As pessoas da época estavam perfeitamente conscientes de que mui-
por tais serviços constituíam a sua renda. tas das decisões estatais eram condicionadas pelos interesses pessoais
Quem ocupasse terra ou iniciasse construção ou reforma sem a de certos gmpos: os partidos. O engenheiro era visto como alguém
presença do piloto deveria ser chamado à ordem pelo Fiscal da que, por não ser dominado pelas paixões partidárias, poderia encontrar
Câmara, o grande responsável pelo cumprimento das posturas. Esse soluções 'científicas', conua as quais não haveria argumentos. Em vez
empregado, dono do principal 'cartório' da administração municipal, de estarem submetidos ao arbítrio do político, certos segmentos urbanos
também recebia proventos para acompanhar o trabalho do piloto. preferiam submeter-se ao arbítrio da objetividade científica.
Nas zonas mais antigas de Curitiba, onde o traçado era mais livre, Em 1854, o jornal O Dezenove de Dezembro publicou o depoimento
a reorganização do espaço urbano não se deu sem conflitos. Como de um leitor que é extremamente elucidativo sobre a questão. O assunto
o processo de retificação muitas vezes feria interesses cristalizados, era a eterna disputa entre as cidades costeiras de Antonina e Paranaguá
com os quais o fiscal, o piloto ou mesmo alguns vereadores estavam pelo traçado da estrada que deveria demandar ao litoral. Desde o
comprometidos, frequentemente criavam-se situações de litígio. Em final do skculo XVIII, os dois 'partidos das estradas' esgrimiam os
1839, o alinhamento de algumas 'casas que seriam reedificadas abriu mais variados argumentos de ordem tkcnica e econõmica, mas nenhum
uma crise entre o fiscal e os vereadores de Curitiba, a qual redundou desses argumentos merecia confiança, pois estavam maculados pelo
no pedido de demissão do primeiro. partidarismo. O leitor foi acusado de pertencer à facção antoninense,
"Declarou o Senhor Presidente haverem-se reedificado Pardieiros nesta vila sem que que defendia a estrada da Graciosa, e respondeu nos seguintes termos:
se tenha observado os artigos de Posturas a tal respeito, e resolveu-se que o Fiscal "Estranho completamente aos partidos locais das estradas, aguardamos o resultado do
informe circunstanciadamente quantos Pardieiros se têm reedificado na rua do fogo, úabalho dos hibeis engenheiros encarregados de as examinar, para, depois de tudo
e outras em contravenção ao artQ7 das Posturas de 7 de Março de 1836 ficando sem bem ventilado, poder formar o nosso juizo: e alheio A profissão de engenheiros não
efeito desde já a deliberação desta Câmara - Resolveu-se mais oficiar ao Juiz de Paz profanaremos a sua ciência, empenhando-nos em uma pretensiosa discussão científica
do Zq Distrito para que faça embargar a obra de Antonio Jose de Almeida na rua sobre semelhante objeto. Confiamos demasiadamente nos talentos e luzes dos dignos
do Lisboa, o qual se acha reedificando um Pardieiro em contravenção ao Artigo 7 engenheiros encarregados desse trabalho, è na sabedoria do governo provincial. para
acima declarado inscrevendo-se no embargo o estado da obra como atualmente se duvidamos de que semelhante neg6cio será resolvido da maneira mais proveitosa
acha. -Sob proposta do Sr. Pacheco Lanhoso se resolveu nomear uma comissão para diversas povoações interessadas na questáo, e à prosperidade de toda a província do
hoje mesmo examinar o alinhamento feito nas casas que se acha edificando Miguel Paran6:n'
Marques dos Santos na rua do Fogo, e passando a fazer a nomeaç2o nas pessoas
dos Senhores Loureiro, e Negrão; D. Lourenço de Macatraga, e Fidelis José da Silva Embora com laivos de ironia, o autor expressava pontos de vista
Carráo, aos quais se mandou avisar para hoje mesmo examinarem, e amanhã dar muito característicos da época. A crença na objetividade técnica e
seu parecer: deixando de votar o Senhor Presidente pela suspeição jurada. Leu-se um científica instituía-se enquanto senso comum. O engenheiro civil era
requerimento do Fiscal desta vila pedindo a sua Demissão, e ficou adiada para Sessão
Ordinária." (S.C.M.C., 9 de abril de 1839).21 o responsável pela parte mais visível do conhecimento científico. As
pontes, estradas e edifícios consuuídos sob o comando dessa nova
'"Os demais funcionários das câmaras municipais da primeira metade do s6culo X K
eram o secretário, o fiscal, o aferidor e o porteiro.
" B.A.M.C., vol.50, p.94. 22 O Dezenove de Dezembro, Curitiba, lQju1.1854,pp. 1-2
348 Magnus Roberto de Mello Pereira A trajeiória de uma cidade brasileira nos séculos XVIII e XIX 349

personagem transformavam a ciência em algo palpável. Se havia lama A rua não mais seria aquela demarcada pelo piloto e calçada por
nas ruas, o engenheiro saberia acabar com ela. Se o deslocamento escravos empreiteiros. Os novos construtores agora deveriam dominar
entre. uma cidade e outra era uma aventura perigosa, o engenheiro a linguagem técnica, para conseguir executar as obras segundo os planos
poderia transformá-lo num passeio. A adesão dos moradores das cidades fornecidos pelos engenheiros.
paranaenses aos engenheiros foi imediata, mesmo porque eles estavam "Declara~ão:Tendo de proceder-se à construção da calçada da rua da Assembléia
predispostos a tudo o que representasse 'progresso'. A receptividade era se faz público a quem convier, que em meu poder existe o plano levantado pelo
tanta que o primeiro engenheiro 'importado' pelo governo provincial, engenheiro para a fatura da referida calçada, as pessoas que quiserem arrematar a
dita obra deverão apresentar as suas propostas dentro do prazo de um mês, a contar
ao sair de seu emprego público, permaneceu na cidade para vender seus
desta data. além de levar ao conhecimento da câmara." (Curitiba, 17 de julho de
serviços no mercado urbano. 1858 IErmelino Marques dos Santos, Secretário da Câmara).26
"Anúncios: O Engenheim civil e técnico Carlos Stoppan, demissionado agrimensor
desta província, oferece-se ao respeitável pública desta capital para lecionar as A transformação das obras públicas em objeto do conhecimento
línguas italiana. alemã, inglesa e francesa. o desenho linear e livre, e todas as científico especializado também teve as suas mazelas, e não demorou
ciências matem&ticas; também se oferece aos senhores proprietários para levantar para que os engenheiros se vissem envolvidos nas eternas arengas
com perfeição, elegância e prontidão a planta de qualquer propriedade, de toda forma provocadas pelo amamento. Porém, as causas dos conflitos agora eram
e tamanho."23
outras e refletiam justamente o descompasso entre a cientificidade do
A câmara municipal não poderia ficar fora desse movimento. A projeto e os métodos rotineiros empregados pelos que empreitavam
demarcação de terras já não poderia estar a cargo de funcionários, a execução. A propósito da urbanização na rua da Assembléia, cujo
em princípio corruptos, como os pilotos. Em 1854, a pretexto da edita1 de concorrência acabamos de ver, houve um desentendimento
demarcação do rocio, a Câmara de Cuntiba solicitmia insistentemente entre o responsável pelo planejamento e aqueles que o executaram. O
ao governo provincial que lhe cedesse o seu único engenheiro contra- engenheiro, suspeito de incompetente, veio a público apresentar suas
tado." A população urbana insuuída, comos veremos adiante, também justificativas, culpando o empreiteiro. Após um arrazoado técnico sobre
pressionava a municipaiidade para que adotasse os serviços desses a obra, ele explicava que:
profissionais. A atuação corriqueira da câmara, empreitando pequenas "[ ...I Pouca depois adceci, e s6 agora tenho notícia de ser designado como diretor de
obras, executadas de acordo com o saber corrente, já não satisfazia. tal obra, na qual não reconheço o projeto que dei. e encontro irregularidades que não
A burguesia ervateira, a pequena-burguesia e a burocracia queriam permitiria. Pedindo-lhe, sr. redator, a publicação destas linhas, tenho por fim destmir
a opinião que me atribui a direção dos trabalhos a que me tenho referido." (Curitiba,
obras de grande porte que transfigurassem o espaço urbano, e tais 7 de janeiro de 1859 / A . A. Santos Souza, engenheiro da provín~ia).~'
obras s6 poderiam ser executadas de forma 'científica'. A presença dos
engenheiros na administração pública logo se fez sentir na legislação.
[An. 16.1 "São os proprietários obrigados a calçar as frentes de suas propriedades na
largura de dez palmos [2.2m] nas mas e largos, e oito [1.76ml nas travessas e becos, IL3. A geometria não é um bom fundamento
dentro do prazo que Ihes for marcado pelo fiscal, que nunca será menor de seis meses
e maior de doze, seguindo-se no calçamento o nivelamento que, em vista do plano Mais para o final do século, os conflitos provocados pelo amamento
do engenheiro, for deteminado pelo fiscal: os contraventores multa de 201F000. e
ser a obra feita a sua custa. por encarregados da Câmara." (Curitiba, 11 de julho de
começaram a refletir questões ainda mais complexas. Não se tratava
1861).25 mais das polêmicas criadas por fiscais corruptos ou pelas diferenças
entre projeto e execução em alguma obra pública. O objeto dos
questionamentos seriam agora os próprios fundamentos geometrizantes,
l3 Ibidem, 28 nav.lX55, p. 4.
" Ibidem. 15 abr.1854, pp. 1-2.
" Coleção de Leis Paraná, Decretos e Regulamentos do Província, 1861, pp. 60-1. 26 O üerenove de Dezembro, Curitiba, 17 ju1.1858, p. 4
(Doravante referenciado como C.L.D.R.P.). Ibidem, 8 jan.1859, p. 4.
350 Magnus Roberto de Mello Pereira A trajetória de uma cidade brasileira nus séculos XVIII e XIX 35 1

adotados oficialmente para definir o urbano. Dentro do próprio estado, a reincorporar a vegetação de modo que as pessoas, quando a passeio
conceitualização do espaço urbano deixara de ser unitária, o que gerava pelas praças e 'squares', travassem contato com uma atmosfera purifi-
atritos administrativos entre os adeptos de diferentes concepções de cada pela presença das árvores, o que Ihes faria bem à saúde. Contra
cidade. a cidade da ordem abstrata da geometria, ele propunha a 'salubridade'
Em 1885, a eliminação da rua da Matriz, conforme o plano urbana.
apresentado pelo engenheiro da câmara, provocou um áspero debate A cidade colonial que adentrou no século XIX, além de ser con-
entre esta e o presidente da província. A câmara ainda estava imbuída formada pelo traçado quadricular, era caracterizada pela esterilidade.
da intenção de tomar as mas paralelas e as praças retangulares, e tentava Isso porque ela se definia em oposição ao ~ r a de l forma tão cabal,
acabar com a rua em questão devido ao seu traçado diagonal. Frente que os vereadores rejeitavam qualquer presença vegetal na cidade.
a discordância do presidente da Província - Alfredo d'Escragnolle Lugar de árvore era no campo. Os senhores mrais que dominavam
Taunay -, os vereadores procuravam justificar os seus motivos com as câmaras trabalhavam, como já dissemos, com uma noção barroca de
base numa noção ainda barroca de cidade. cidade, mas dela eliminaram a concepção de natureza desnaturada que
"I ...I há mais de um ano foi indicado na Câmara o fecho da rua existente entre a rua lhe era própria. Entretanto, nem a árvore barroca, podada em formas
de S. José e Gonçalves dos Santos por inútil e prejudicial ao plano da paite nova geométricas, era aceita. Apenas muito lentamente a vegetação foi sendo
da cidade, não s6 porque o espaço entre estas ruas é pequeno 26.80m,como porque incorporada ao espaço urbano, até adotar-se, mais para o final do século,
não era paralela a nenhuma outra rua cortando todo o seu percurso na linha diagonal,
de sorte que na praça Sete de Setembro estava muito próxima ma Gonçalves dos
o conceito romántico de vegetação renaturalizante.
Santos e na rua do Visconde de Guarapuava, ia cortar a ma de S. Jose. A Câmara
resolveu na ocasião que o fecho fosse feito na rua da Misericórdia, a primeira que fica
além da praça Sete de Setembro. Mais tarde aprovou a planta desta praça que havia 11.4. Suavíssimas emanações tropicais
sido projetada pela qual o fecho seria desde a face da rua Conselheiro Marcondes.
Assim, sem prejuízo do público e com vantagens para a Câmara ficava a praça mais
~imétrica.'"~ A ação mais espetacular nessa área foi a consúução do Passeio
Público, o jardim botânico da cidade.
Existia um plano para a parte nova da cidade que fora desenvolvido Em 1857, numa primeira versão, ele foi concebido como espaço de
no papel, tendo por base os conceitos geométricos de paralelismo divulgação de novas técnicas de agricultura e silvicultura. Versão que
e simetria. Visando implementá-10, a câmara distribuíra terrenos que nunca chegou a sair do papel. Apenas na década de 1880 o projeto seria
ocupavam o espaço da antiga rua, a qual, por sua diagonalidade, retomado, justamente no período de governo de Taunay, o presidente
contrariava o planejamento. Para o presidente da província, o traçado da província que mais se preocupou com a 'salubridade atmosférica'.
'cartesiano' adotado pelos vereadores não servia de justificativa. Isso Em seu parecer ao projeto do Passeio Público, apresentado pela câmara
porque ele já havia incorporado uma outra noção de espaço urbano. em 1886, ele diria que:
"Sinceramente náo acho bom fundamento nas razóes expedidas. Todo empenho das
"A cidade de Curitiba ressente-se de uma grande falta, que já deveria ter sido motivo
Câmaras Municipais deve ter e conservar o maior número possível de largos e praças
de algumas medidas por parte dessa Municipalidade: a de um passeio ou Jardim
w m o áreas de saneamento da população e futuros locais ajardinados e arborizados
Público, que servindo h população de ameno e frequentado logradouro, mostrasse
formando 'squares' e pontos de recreio."2Y
a quantos procuram ou visitam esta localidade que ela compreende devidamente
Ao 'paralelismo' e à 'simetria' propostos pelos vereadores de Cu- a importância de certos melhoramentos cuja ligação com a saúde e higiene gerais
são hoje indiscutíveis e que nos centros de aglomeração de gente se tomam até
ritiba, o presidente da província contrapunha o 'saneamento', o 'ajar- indi~pensiveis."~"
dinamento' e o 'recreio'. Para ele, a cidade deveria, como prioridade,

Boletim do Arquivo do Pamá, vol. 15, p. 7. (Doravante referenciado como B.A.P.).


Ibidem,
lY p. 8. " ibidem, vol. 13, p.40
352 Miignus Roberto de Mello Pcrcira

As obras foram administradas e parcialmente custeadas por dois


i A trajetória de uma cidade brasileira nos séculos XVIII e XIX

111. QUEBRARAS VENTAS NAS MAL CALÇADAS RUAS


353

dos maiores magnatas da erva-mate. principalmente pelo Barão do


Serro Azul e pelo Comendador Fontana. Na face noroeste do parque, Até agora temos acompanhado os conceitos de urbano adotados
foi construído o 'Boulevard' 2 de Julho, no qual localizava-se a principalmente pelas autoridades governamentais. A partir do apareci-
residência recém-edificada do próprio Comendador Fontana e onde mento dos jornais, pode-se ter uma noção das reivindicações da 'opinião
outros industriais do mate, como os Leão, construiriam os palacetes pública' ou, melhor dizendo, dos pequenos e médios burgueses letrados.
celebrativos do seu sucesso empreskal, em meio a amplas áreas verdes. Um artigo publicado n'O Dezenove de Dezembro, em 1854, deixa
O conjunto formado pelo Passeio Público e pelo Boulevard 2 de Julho, muito claro quais eram as expectativas destes moradores da cidade em
com suas residências palacianas, expressava exemplarmente uma das relação ao espaço urbano.
facetas da cidade burguesa da virada do século. [Folhetim /Revista mensal]: "A nossa câmara municipal, que tão solícita se mostra no
Nessa região da cidade, a nova maneira burguesa de morar, a desempenho das suas importantes funçóes, permitirá que de passagem lhe lembremos.
qual, como mostraremos mais adiante, vinha lentamente se difundindo que logo que o governo [provincial] ponha à sua disposição algum engenheiro, é
pelas cidades paranaenses desde a década de 1850, ganharia ares preciso Vam de dar a esta nossa capital um plano. a que se sujeitem as novas
construções. que nela se estão levantando quase todos os dias. As nossas grandes
espetaculares. As casas-monumentos que ali foram construídas pelos capitais, inclusive a corte do Rio de janeiro, são cidades muito defeituosas por se
grandes industriais posteriormente se difundiriam através de cópias haverem levantado sem plano a gosto e capricho dos primeiros proprietários. Se
reduzidas adotadas pela pequena burguesia urbana. No Boulevard 2 ao principio se houvesse tratado a tempo de prover de pronto remédio esta falta.
de Julho morariam, rodeadas de árvores, algumas importantes famílias teríamos hoje no Brasil, com o progresso em que têm ido as coisas, bellssimas
da burguesia ervateira. cidades. A largura das mas, que não deve ser menos de 7 a 8 braças [12.6 a 14,41111,
a uniformidade da extensão dos quaifeirões. cenas condiç&s de arquitetura nas casas,
Em tal zona residencial, o burguês bem-sucedido apresentava a que ponham um freio ao mau gosto e à péssima rotina de construçóes aleijadas, e
sua face tranquila. Longe do mundo dos negócios, ele e sua família um sistema de esgoto das Quas para evitar-se a monstruosa quantidade de lama que
poderiam ir ao Passeio Público. Dentro do parque, os industriais, como entulham as mas depois de qualquer chuva: tudo isso merece séria atenção da nossa
que reconciliados com a natureza, fizeram construir caminhos sinuosos municipalidade. Não temos ainda iluminação, as calçadas são horríveis: ninguém se
entre uma vegetação cuidadosamente criada com espécimes de diversos atreve a sair à noite a passeio. porque tem medo de cair em algum barranco, ou ir
abraçar-se aos chavelhos de algum boi."'2
países do mundo. A própria natureza tomara-se cosmopolita, para que
não houvesse a mínima possibilidade de ser confundida com o 'mato' A população letrada desejava um projeto explícito de cidade que
caótico que circundava a cidade. No centro do parque, os industriais antecipasse o crescimento urbano, comgisse as ruas mais antigas,
que o administravam propunham-se a construir um "chalet apropriado melhor controlasse a arquitetura privada e dotasse a cidade de uma certa
para servir ao público, café, sorvetes, licores, cerveja, etc., debaixo infra-estrutura. Lembremos que o engenheiro era visto como o portador
de frondosas árvores, ao abrigo do sol e aspirando as suavíssimas dos conhecimentos 'objetivos' necessários h empreitada, conhecimentos
emanações dos dias tropicais esses que estariam acima dos interesses 'partidários' dos vereadores ou
A cidade, agora, acolhia a vegetação em nome de seus efeitos dos antigos funcionários cartoriais.
benéficos. A "saúde" e a "higiene", daí em diante, conviveriam De acordo com o artigo citado, a municipalidade deveria conse-
pacificamente com a ordem abstrata da geomehia urbana através da guir por emprkstimo os serviços do engenheiro provincial e este, em
arborização das ruas, chegando mesmo a suplantá-la nos parques e primeiro lugar, deveria formular um "plano". Mas em que medida
praças da cidade. os elementos que deveriam constituir o planejamento proposto pelo
articulista d'O Dezenove de Dezembro ultrapassavam o plano da ci-
dade quadricular barroca latino-americana? Questões como a largura

" Ibidem, p. 43 O Dezenove de Dezembro, Curitiba, 29 abr. 1854, pp. 3 4


354 Magnus Roberto de Mello Pereira
I A trajetória de uma cidade brasileira nos séculos XVIII e XIX 355

das ruas, a regularidade das quadras e a normatização da arquitetura O 'flâneur' do século XIX não vivia apenas em Paris ou em
prendiam-se ainda à antiga concepção de cidade, e em nada ultrapassa- outras grandes cidades européias. Em Curitiba, desde a década de
vam as propostas e a atuação da câmara. A rigor, não eram mais que a 1850, 'flanadores' em potencial reivindicavam os largos, as praças, os
expressão de idéias sobre o espaço urbano vindas dos séculos anteriores, 'squares' e os 'boulevards', onde pretendiam assistir ao espetáculo das
retidas apenas no seu aspecto formal e reivindicadas como 'progresso'. vitrines e das edificações personalizadas ou sair à noite para o 'footing',
As demandas mais características dos novos tempos não eram estas, o baile ou o teatro.
mas as que propunham uma nova dimensão às cidades. Do ponto de Resumidamente, o anigo de jornal ao qual nos referimos sugere
vista da legislação colonial, ainda adotada pelas câmaras municipais, o uma síntese entre duas concepções de cidade. Em nenhum momento
traçado racional deveria expresar a ordem abstrata do estado absolutista, foi proposto o abandono da geometria barroca, muito pelo contrário.
coisa que no Brasil não parece ter passado de intenção. Para a nova Ela deveria ser reforçada, mas a cidade, ainda que totalmente definida
burguesia urbana, aquele traçado deveria dar espaço ao trânsito e a uma por essa geometria, deveria atender às 'necessidades' modernas de seus
forma específica de lazer urbano: o passeio. novos usuários.
Curitiba, pouco a pouco, deixava de ser aquele povoado acanhado Esta parece ser a questão-chave. O morador da cidade transformava-
descrito pelo naturalista francês Saint-Hilaire no começo do século se num consumidor de serviços urbanos, gerando uma forte pressão
XIX.33 Vilarejo que permanecia quase sempre vazio, e que adquiria sobre o poder público. O artigo sugere, por exemplo, que as cidades
aspecto movimentado somente nos dias de ofícios religiosos, com a paranaenses ainda não contavam com iluminação pública. Entre 1849 e
presença dos proprietários mrais e suas famílias. Principalmente a partir 1850, Curitiba assistiu à instalação de uns tantos lampiões a óleo em
da década de 1850, com o boom dos engenhos de mate, formou-se na suas mas.34 A iluminação pública então existente concentrava-se na
cidade uma camada populacional tipicamente citadina. Tal processo frente de alguns prédios públicos e das moradias de alguns 'figurões'
foi acentuado com a escolha da cidade para capital da nova provincia locais. Do ponto de vista barroco de teatralização do poder, isso era
do Paraná, recém desmembrada de São Paulo. Juntaram-se então, aos perfeitamente natural e suficiente. Contudo, essa iluminação não atendia
industriais e comerciantes de mate, com seus empregados burocráticos às necessidades do citadino e, portanto, não era considerada como tal.
e trabalhadores jornaleiros, os profissionais liberais e os funcionários A iluminação precária náo permitia que ele fosse ao baile sem correr o
públicos. Na onda da economia ervateira, expandiu-se o comércio risco de "ir abraçar-se aos chavelhos de algum boi", ou sem "quebrar
varejista, dando espaço a muitas outras personagens urbanas, desde as ventas nas mal-calçadas
os caixeiros aos grandes comerciantes enriquecidos. A aglomeração Em 1859, a Câmara de Curitiba solicitou o apoio financeiro do
urbana criou ainda um mercado de pequenos serviços e de criadagem governo provincial para uma série de obras públicas: o cemitério, a
doméstica. estrada do Assungui, algumas pontes, o mercado público e o Paço
Para todas essas personagens tipicamente urbanas, a cidade, além de Municipal. Porém, em relação A pavimentação e à iluminação, os
ser o lugar da habitação, do comércio, dos serviços ou da indústria, serviços públicos mais reivindicados através da imprensa, os vereadores
era o lugar do divertimento. As classes baixas insistiam em diversões diziam o seguinte:
consideradas menos nobres nas tabernas, bilhares e fandangos. Já os "Muitas outras necessidades como sejam encanamento d'água potável. calqamento
segmentos médios e abastados concentravam seus esforços em exigir e iluminação das mas e matadouro público existem; mas na presença dos recursos
da municipalidade a pavimentação da cidade, de modo que os passeios, pecuniários da Província, esta Câmara aguarda ocasião mais oportuna para pedir a
as idas às compras e aos bailes fossem menos penosos.
3' B.A.M.C.. vol. 56, p. 65.
'"este momento, o baile era encarado como assunto de suma imponância. Acredita-
vam alguns em seu poder de pacificar o cenário político local, dividido entre industriais do
?'Ver Auguste de Saint-Hilaire, Viagem a Curitiba e província de Sanra Cararina mate e latifundiários os quais, por acasiáo de eleiçks, não poucas vezes, enfrentaram-se
(Belo Horizonte 1978). a bala.
356 Magnus Rabcrto de Mello Pereira A trojetória de uma cidade brasileira 110sseculos XVIII c XIX 357

atençáo de V. Exu." [Paço da Câmara Municipal da Capital aos 06 de junho dc 111.1. A vida afanosa de um grande centro
18591:'

Quer dizer, iluminação e pavimentação não eram considerados Ante a persistência das "tartarugas de La Fontaine", aos poucos
prioridades, e a população urbana estava perfeitamente consciente da Curitiba foi ganhando as tão esperadas melhorias. Os anos 1880 podem
posição dos vereadores, o que gerava frequentes protestos. ser considerados a década da transformação urbana, onde se realizaram
os sonhos utilitários de muitos habitantes. A partir de 1885, a cidade
"Sr. redator - Agora que já temos biblioteca, sociedade do Bem Público - e verba
decretada na orgamento para jardim botânica, lembramos a criação de uma sociedade
estaria ligada ao litoral por estrada de ferro. Em 1884, foi inaugurado o
que auxilie a câmara municipal no calçamento e limpeza da cidade, na construção teatro São Theodoro. Mais ou menos na mesma época, Curitiba passou
de chafarizes e na iluminação pública. Embora essas necessidades sejam de segunda a contar com água encanada e, antes do fim do século, com eleuicidade.
ordem. todavia será bom que se cuide também delas para evitar que nos apresentemos Também são do mesmo período o Passeio Público e os 'bonds', puxados
nesses iluminados salóes cobenos de lama. e que quando tivemos de sair nos achemos a burro. Antes de acabar o século, a cidade, pelo menos em suas ruas
em profundas trevas aniscando-nos a quebrar as ventas nas mal calsadas mas. A essa
associa~ãopoder-se-á dar a titulo de -Bem de todos- se outro não preencher melhor
mais centrais, estaria finalmente pavimentada com paralelepípedos ou
o fim. Haja quem se ponha à testa, que o público apesar da carestia dos géneros, está macadamizada.
sempre disposto a concorrer para os melhoramentos morais e materiais." (O tartaruga As queixas contra a má qualidade dos serviços públicos não acaba-
de La Fontaine)." riam aí, mas uma parte dos habitantes da capital paranaense deixaria de
As queixas em relação à falta de pavimentação foram uma constante pintá-la com as cores da precariedade. Uma boa mostra é a descrição
na imprensa paranaense. Os jomais trazem exemplos, como o que ufanista produzida pelo historiador Rocha Pombo exatamente em 1900,
acabamos de ver, desde o início de sua circulação, em 1854, até o que, embora à época residisse no Rio de Janeiro, é representativo das
término do século. Para os senhores rurais, que se dirigiam à cidade 'classes médias' letradas de Curitiba.
esporadicamente, isso não constituía um grande problema, mas para o "Quem viu aquela Curitiba, acanhada e sonolenta, de 1853, não reconhece a Curitiba
suntuosa de hoje, com suas grandes avenidas e boulevards, as suas amplas mas
morador da cidade, que se via obrigado a conviver com o lamaçal, era
alegres, as suas praças, os seus jardins, os seus edifícios magnificos. A cidade é
importantíssimo. iluminada a luz eléuica. 6 servida por bonds entre o Batel e o Fontana e a estacão da
Mesmo insistindo na manutenção da geometria barroquizante do estrada de f e m , aproveitando a quase toda a irea urbana. O tráfego diário conta, além
traçado das ruas, os moradores das cidades queriam obras que alteras- do que fazem os bonds, com mais de 1.000 veículos diversos. Há em plena atividade,
sem radicalmente as feições das mesmas. Os costumeiros processos dentro do quadro urbano, mais de hezentas fábricas e oficinas e no município todo,
peno de MX)! [...I O movimento da cidade é extraordinário, e a vida de Curitiba 6 já
de pavimentação e a iluminação precária deveriam ser substituídos por
a vida afanosa de um grande centm."39
uma atuação das câmaras que confirmasse, na conformação espacial das
cidades e nos serviços urbanos, o sentimento de pertinência ao universo Ao acabar o século, o centro de Curitiba transformara-se numa
da revolução industrial européia. Os segmentos urbanos e letrados da espécie de síntese de várias propostas de cidade. O traçado racional
sociedade paranaense não escondiam suas intenções cosmopolitizantes. se impusera muito mais por questões formais do que por qualquer
Tudo o que se passava na Europa, ou mesmo no Rio de Janeiro, era outro motivo, e agora se prestava principalmente ao tráfego dos
acompanhado com avidez. bondes e aos 1.000 veículos diversos. As árvores e a água encanada
"6 um gosto ler agora os jornais da corte! Sessões de parlamento: iluminqão a gás: garantiam a salubridade urbana. Enfim, não era mais preciso viver
estrada de ferro: companhia lirica italiana! tudo o que 6 belo, útil e agradivel ali acha apenas das notícias de Paris ou Rio de Janeiro. A erva-mate tomara
o seu element~!"'~ possível trazer à cidade todos os signos mais evidentes da condição
modema: o boulevard, a fábrica, a iluminação e o burburinho urbano
" B.A.P., vol. 16, p. 17.
'' O Dezenove de Dezembro. Curitiba, 2 iun. 1858, ri. 4 l9 José Francisco da Rocha Pombo. O Parand no cenrenório (Rio de Janeiro 1980).
Ibidem, 3 jun. 1854, p. 2. p. 141.
358 Magnus Robeno de Mello Pereira A trajetória de uma cidade brasileira nos séculos XVIII e XIX 359
das ruas. A comemoração à cidade, que pemeia a documentação Título 2P,Capítulo I', Artigo 6? "A nenhum indivíduo ser6 permitido erigir choupanas
paranaense entre as ddcadas de 1890e 1920, não era vazia. Afinal, nas principais mas desta Vila, devendo guardar a regularidade e elegância [enquanto
a principal reivindicação política dos letrados, que se valiam dos meios ao exterior] que tiverem os Edifícios daquela rua, ou praça em que a casa fm
consuuída observando-se a mesma ordem com aqueles pardieims que se houverem
de comunicação para pressionar o poder público, tinha sido justamente
de reedificar." (Curitiba, 20 de outubro de 1829).'
a cidade 'moderna',
Todavia, há uma questão que a maior parte destes intelectuais Na concepção daqueles vereadores, as edificações residenciais da
se esquece de mencionar. Por detrás das fachadas ecléticas que 6poca dividiam-se em duas espécies. A primeira englobava as habitações
começavam a tomar conta das ruas centrais de Curitiba, como a que, no seu entender, eram mais caracteristicamente urbanas. Nessa ca-
XV de Novembro, proliferavam os cômodos onde se empilhavam os tegoria enquadravam-se as construções em pedra e cal, taipa de pilão ou
caixeiros e as costureirinhas. Pelos boulevards da cidade perambulavam mesmo estuque, desde que devidamente cobertas de telha capa-e-canal.
imigrantes andrajosos. A cidade fora tocada definitivamente por esse O espaço da cidade estava reservado para tais habitações. No outro
processo de modemidade universal capaz de arrancar camponeses de extremo, havia a choupana de pau-a-pique coberta de palha, construção
lugares inimagináveis como a Renânia, a Galícia, a Cracóvia, o Vêneto, rudimentar e barata. Estas choupanas, utilizadas pelos setores mais
o Tirol ou até mesmo a Islândia, para atirá-los numa localidade ainda pobres da população, não deveriam ter lugar no quadro urbano da vila,
mais inimaginável da América do Sul, que atendia pelo nome de ou pelo menos em suas ruas principais. Com o dispositivo que impedia
Curitiba. a construção de choupanas em algumas ruas, os vereadores criaram um
primeiro código de 'zoneamento', surpreendentemente eficaz em sua
IV. AS REGRAS D'ARCHITECTLTRA simplicidade. Num momento em que a especulação imobiliária ainda
não tomara proibitivo o acesso à terra nas partes centrais da cidade, o
Simultaneamente à batalha das ruas, desenrolou-se na Curitiba binômio ruas principais e sistemas conshutivos de maior custo deveria
do século XIX uma completa revisão da f o m a aquitetônica. Se encarregar-se de selecionar a vizinhança, afastando os indesejáveis para
buscássemos caracterizar a arquitetura local, dos três primeiros quartéis a periferia da cidade ou para o rocio.
do século XIX, seria mais apropriado defini-la como tardo-medieval
portuguesa. E foi justamente a partir dessa arquitetura que os vereadores
do começo daquele século procuraram construir uma espécie de IV.1. A regularidad e elegância dos edifícios
cânone arquitetônico legal, buscando uma progressiva padronização das
edificações. No interior do espaço urbano, os fazendeiros dos Campos Feito esse primeiro zoneamento, não se percebem na documentação
Gerais, na sua função de vereadores, não reconheciam a possibilidade maiores disputas entre a Câmara e o restante da população quanto ao
de que uma edificação residencial assumisse volumetria própria. Isso objeto arquitetônico. Como reconheciam os próprios vereadores, neste
era uma característica do meio rural, própria das sedes de fazenda. Nas período o 'costume' ainda era suficiente para garantir a forma da arqui-
cidades, como já dissemos, a volumetiia deveria ser dada pelas quadras. tetura. A legislação previa simplesmente que as novas habitações não
A legislação tinha por alvo não o objeto arquitetônico, mas as fachadas, deveriam quebrar a regularidade (padronização) e a elegância proposta
que, agrupadas, compóriam o plano definidor do volume das quadras. pelas casas vizinhas. Porém, em 1831, quando de sua aprovação pelo
Resumidamente, o que os vereadores propunham em relação à Conselho Provincial, o código onde aparecia esta recomendaçáo sofreu
arquitetura era o enquadramento das fachadas no plano reticular algumas alterações dignas de nota.
barroco, uma certa hierarquização do espaço, um pequeno aumento Artigo oitavo = Os propriet6nos: "Serão igualmente obrigados a rebocar e caiar, e
vertical das edificações, além de impedirem construções 'rurais' no cobrir de telha as frentes de suas casas e mums, sob pena de quatrocentos a mil e
quadro urbano. As posturas de 1829 tratavam da edificação urbana nos
seguintes termos: " P.C.C., f0l. 3.
360 Magnus Roberto de Mello Pereira A trajetória de uma cidade brasileira nos séculos XVIII e XIX 361

duzentos réis. Artigo doze = A Ninguém é permitida erigir choupanas nas principais O passo seguinte foi uma tentativa ainda mais explícita de padro-
Ruas da Vila, e as casas tefio pelo menos dezoito palmos de altura. Os contraventores nização. Entre os artigos de postura aprovados em 1836, constava o
- a fazer a obra que faltar ou ser6 esta feita a sua custa, e pagarão oito
serão obrieados seguinte:
mil réis." (Curitiba, I P de fevereiro de 1831).4'
Artigo 7" "NinguAm p d e r á abrir alicerces para edifício algum novo. nas faces das
Se os vereadores curitibanos ainda confiavam no consuetudinário, mas desta Vila sem que primeiro tenha obtido licença da Câmara, a qual será gratuita,
não poderá ser negada e conteri a precisa Ordem, para que o Amador do Município
os deputados paulistas não mais o faziam e procuravam definir melhor dê alinhamento, altura da frente, nivelamento das soleiras, e testadas, bem como a
preceitos vagos como o de elegância. Uma casa elegante, conforme as altura, e largura das portas, janelas, e peitoris, pelo padrão do Conselho, que deverá
novas normas, seria aquela que fosse rebocada, caiada e coberta de ser permanente, e apresentado à Assembl6ia Provincial para sua aprova@o [...I. O
telhas. E que, al6m disso, tivesse pelo menos 18 palmos (3,96 m) de contraventor será multado de seis mil d i s a doze mil dis, além de ser demolido a
altura. sua custa o que em contravenção tiver feito." (Curitiba. 7 de março de 1836).M
A delimitação precisa da altura das casas parece ter aberto um novo O padrão previsto foi aprovado pela Assembléia da Província em
campo de disputa entre o 'costume' e a 'lei'. Algumas evidências levam 1837.
a supor que, até então, as casas tinham um pé-direito menor do que o ArtQ 1.: "O alinhamento das Casas ser6 feito pela direção das extremidades da ma.
preconizado pela 'intromissão' paulista na legislação. A partir da data em que se houver de levantar algum edifício: o nivelamento das soleiras seri tomado
da aprovação do c6digo de posturas de 1831, passaram a ser frequentes do meio do alicerce da frente e teri um palmo acima da superflcie da terra, servindo
as solicitações à Câmara de Curitiba para a construção de habitações este nível de Base para a dimensão da altura do edifício cuja altura na frente ser8 de
com altura menor que o estabelecido pelas posturas. 17 palmos até o algerozds ; do mesmo nível. ao peitoril das janelas haver6 4 palmos
e meio de altura: do peitoril à soleira superior 7 e 1 12. As janelas bem como as
"Leu-se um requerimento de Roberto Jacinto Lanhoso em que pedia permissão para portas, terão se o terreno permitir sem detrimento da propriedade 5 palmos e meio da
levantar casa com menos de dezoito palmos de Altura o que entrando em discussão largura, e estas 12 palmos da soleira inferior à superior. Os transgressores incorrem
resolveu a Câmara se indeferisse seu requerimento." (S.C.M.C.. 24 de setembro de na multa de 3 a $9000 demolida a obra a sua custa." (Curitiba, 6 de fevereiro de
1831).42 1837).46
Se, em 1831, o aumento do pé-direito das edificações foi uma medida Acompanhando as transformações sofridas pelas posturas relativas
criada em São Paulo, a partir de então a própria Câmara Municipal de à edificação urbana, é possível ver como foi breve o processo de
Curitiba se encarregana de elevar ainda mais a altura das construções. codificação jurídica da arquitetura urbana. Apenas oito anos separam
Oficialmente, 'o belo' passou a ser confundido com 'o alto'. Em 1834, 1829, quando o 'costume' ainda valia para definir o padrão construtivo
a Câmara, por sua própria iniciativa, encarregou-se de fazer aprovar na cidade, de 1837, quando o estado acabou por dispor minuciosamente
mais um aumento na altura das moradias. sobre a padronização das fachadas.
Attq4*: "Ninguém pied erigir choupanas dentro da Vila; as Casas terão vinte palmos Mas por que somente as fachadas? Porque a legislação, mantendo
de altura. Os contraventores serão multados em 8$WOrs e obrigadas a levantar a a ótica dos séculos anteriores, tratava fundamentalmente da relação
obra." (Curitiba, 4 de fevereiro de 1834)."
entre rua e edifício. Não era a arquitetura em si que preocupava os
Em relação aos afiteriores, esse artigo de postura trouxe duas vereadores, mas uma dada configuração dos espaços urbanos. Assim, o
alterações significativas. A altura mínima autorizada para as casas local privilegiado da ação nomatizadora era o plano de mediação entre
passou de 18 para 20,palmos (4.4m), e a proscrição das choupanas a ma e a casa, isto é, as fachadas, cujos elementos constitutivos tiveram
estendeu-se para toda a vila. Não mais haveria lugar para elas no quadro sua conformação codificada. Não que essa preocupação específica
urbano, nem mesmo fora das ruas principais. não trouxesse implicações para o restante do espaço edificado. A

'I Ibidem. fols. 1 7 4 . Ibidem, fol. 15.


B.A.M.'~.,"01.44, p.41. " última fieira de telhas, por extensão, a pane mais baixa da telhado.
P.C.C., fol. 13. " P.C.C. fol. 15.
362 Magnus Raberta de Mello Pereira A trajetória de uma cidade brasileira nos séculos XVIII e XIX 363

imposição de um pé-direito maior que o de costume trazia consigo aos poucos, começavam a ser utilizados no Brasil como novos signos
uma alteração nas proporções dos cômodos internos, introduzindo uma da modemidade.
nova percepção e uma nova vivência do espaço constmído.

V. 1. Christiano alemão
V. QUEBRANDO AS REGRAS
Além da difusão do ecletismo arquitetônico, havia um outro processo
A partir da metade do século, alguns setores da população curiti- em andamento, o qual viria exercer pressão considerável sobre a
bana começaram a colocar empecilhos a essa onda de padronização. unidade formal e a padronização arquitetônica da cidade. Na década de
Nessa época, apareceu em algumas cidades um outro tipo de postura, 1830, a cidade recebeu um pequeno contingente de alemães reimigrados
indicando claramente que abrira-se um novo campo de atrito. Não de Rio Negro, localidade ao sul de Curitiba. Posteriormente, o processo
se tratava mais daquele iniciado pelas Câmaras, ao impingir um pé se aceleraria com o acréscimo dos reimigrados da província de Santa
direito mais elevado e padronizar os vãos de abertura das edificações. Catarina e com a imigração direta. Esses estrangeiros trouxeram consigo
Naquele primeiro momento, os segmentos politicamente dominantes outras concepções de espaço urbano e de arquitetura. Troxeram também
e o restante da população compartilhavam de uma mesma concepção novos métodos construtivos baseados em alvenaria de tijolo e madeira,
de arquitetura, e os conflitos ficavam restritos a certas medidas das em oposição às construções locais de taipa e de pedra.
constmções. Em tais conflitos, os vereadores assumiram um papel de A posição da Câmara em relação ao imigrante era ambígua. Se
'vanguarda'. O estado antecipava-se ao cidadão com uma proposta consideramos apenas a introdução de novos métodos construtivos,
explícita de arquitetura, pensada h partir da fachada. Entretanto, essa a documentação estudada demonstra que os pedreiros alemães eram
proposta em pouco alterava a constnição vernácula portuguesa dos apreciados. Em 1839, os vereadores solicitaram que o governo provin-
séculos anteriores, largamente difundida entre a população local. cial providenciasse a vinda de alguns deles para Curitiba, mostrando
As Câmaras, porém, acabariam sendo ultrapassadas no seu papel os benefícios que representava a vinda desses trabalhadores para o
'vanguardeiro', e começariam a legislar contra certas inovações ar- municípi0.~8
quitetônicas que alguns moradores, inspirados no ecletismo reinante no Por outro lado, a documentação aponta a existência de conflitos entre
mundo ocidental, pretendiam utilizar. A introdução dessas modificações os imigrantes e a Câmara, provocados por concepçóes divergentes em
coincidiu com o fortalecimento de cenas camadas urbanas, pnnci- matéria de arquitetura. Em 1838, o fiscal da Câmara propôs que se
palmente as ligadas ao beneficiamento da erva-mate. Em Curitiba, multasse um alemão que estava constmindo em desrespeito h legislação
alguns artigos de postura expressavam a preocupação da Câmara em vigente.
conter tais novidades, que tinham como objetivo a personalização e a QP ao 3 O =artigo do relat6rio do fiscal: "em que trata de haver o Alemão Christiano
busca de uma volumetria específica para cada habitação, acarretando, infringido o arP 7' das Posturas de 7 de MçQde 1836 que se recomende ao Rocurador
que faça efctiva a multa e promova sua arrecadação." (S.C.M.C., 5 maio de 1838).49
conseqüentemente, a ruptura da quadra compacta.
An. 15.: "6 pmibido cunhais, colunas, etc., em seguimento de ruas que estorvem Os alemães, assim como outros imigrantes, tinham uma proposta de
a vista das casas que ficam no alinhamento: os wntraventores, multa de 10$0oOe espaço urbano contrária à dos vereadores. Por motivos que trataremos
demolição sua custa." (Curitiba, 1 1 de julho de 1861).47 adiante, eles procuravam cercar suas casas de jardins, hortas e pomares,
A legislação deixava claro quais eram as inovações polêmicas. Eram reintroduzindo o mral no espaço urbano, opondo-se com sua arquitetura
os cunhais, colunas e outros elementos decorativos do ecletismo que, aos princípios do que a Câmara estatuira como urbano. Em 1851, os

B.A.M.C., voI.51, pp.24e 3&5


" C.L.D.R.P., 1861. p. 60. 49 Ibidem, vol. 49, p. 98.
364 Magnus Koberto de Mello Pereira A trajetória de uma cidade brasileira lios stculos XVIII e XIX 365

vereadores andavam As voltas com um, talvez novo, talvez o mesmo, européia. Aí utilizou-se em larga escala uma arquitetura em tábuas de
Christiano alemão que insistia em não respeitar o alinhamento predial. madeira, vedadas por meio de mata-juntas.51 Ao contrário das casas
Muito provavelmente o imigrante pretendia deixar espaço em sua casa de troncos ou mesmo de taipa, encontradas em algumas colõnias, a
para um jardim, isolando-a da volumetria pré-determinada da quadra. solução constmtiva que se desenvolveu nos subúrbios foi caracterizada
"Leu-se um ofício do Fiscal desta cidade participando que embargo" a obra que a pela utilização intensiva de materiais previamente processados pela
Alemão Christiano está fazendo fora do alinhamento. pelo alinhamento de sua casa e indústria. As paredes, pisos, forros e esquadrias utilizados nesse tipo
que o mesmo não fez caso e está continuando, posto em discussão, deliberou-se que de constmção eram produzidos pela nascente indústria madeireira do
o procurador requeira já à autoridade competente o embargo da obra e requerendo
Paraná, a qual, por sua vez, era grande empregadora da mão-de-obra
a demolição do que esta feito fora do alinhamento." (S.C.M.C., 27 de outubro de
1851).J0 assalariada dessa população periférica.
O que acabou sendo composto pode ser caracterizado como uma
espécie de paisagem campestre que alguns observadores tingiram com
as do romantismo alemão. O impacto, sobretudo visual, dessa 'pastoral'
V.2. Paisagem campestre proletária suburbana ajudaria a construir o mito do trabalhador pobre,
mas com a mesa farta. No jardim, as flores; no quintal, árvores fmtíferas
Mais que na região central da cidade, a peculiaridade de Curitiba e uma pequena produção doméstica de legumes. No galinheiro, além
se apresentaria em toda a sua expressividade nas zonas suburbanas. A das próprias, os patos, gansos e marrecos que iriam complementar
partir do final do século XIX, com a chegada em massa de imigrantes a dieta familiar. O jardim e o quintal do imigrante eram a própria
europeus, começou a se formar um 'cinturão colonial' que envolveria expressão da força do trabalho que levaria qualquer um à prosperi-
o núcleo urbano primitivo. Na maioria das cidades brasileiras, a con- dade. Mais do que como realidade, essa paisagem "mrbana" pintada
tinuidade do modelo colonial, mesmo quando travestido em pequeno paradisiacamente deve ser de fato entendida como uma visão mítica,
ecletismo, iria se dar justamente nos bairros pobres da periferia. Em produtora de uma nova imagem do trabalhador paranaense baseada na
Curitiba e em outras cidades do Paraná e do sul do Brasil, a ocupação morigeração. Tal imagem foi vendida A exaustão. Inclusive para os
da periferia urbana se afastaria desse modelo. Aí, disseminou-se um próprios imigrantes, que pensavam estar construindo no Paraná um
lote urbano mais ou menos amplo, ocupado por uma pequena casa destino diferente daquele que os esperava, caso permanecessem na
de madeira tratada volumetricamente, nos moldes da nova arquitetura Europa, o que, em muitos casos, não era verdade.
burguesa, mas deixando muito visível o comprometimento com sua
origem mral.
A solução espacial que se desenvolveu foi bastante original. Os V.3. Não se alistem para fazendas ou fábricas
padróes luso-brasileiros foram completamente ignorados, sem que hou-
vesse a simples reprodução dos modelos provenientes das regiões De qualquer modo, seria ingenuidade pensar esses espaços apenas
européias de onde partiram os emigrantes. Tal reprodução se daria do ponto de vista de uma imagem produzida pelas burguesias para-
apenas em algumas colônias propriamente ditas. Tomás Coelho (Po- naenses em seu próprio benefício. Na realidade, eles são o resultado
loneses), Muricy (Poloneses) ou mesmo Santa Felicidade (Italianos) historicamente determinado de um conjunto de projetos, muitas vezes
são ricas em edificações européias, tanto na forma quanto no processo conflitantes, que interagiram na sua conformação singular.
constmtivo. No cinturão suburbano, onde se imbricaram as iniciativas Os imigrantes polacos podem ser tomados exemplmente para a
oficiais de assentamento e a ocupação espontânea por imigrantes, não explicitação desse processo, pois nesse gmpo encontravam-se poucos
são comuns os exemplos de transposição pura e simples da arquitetura indivíduos de 'vocação urbana', estando a grande maioria envolvida

" Ibidem, vol. 57, p. 80.


1
B
" Ripa usada para iapar a fresta entre duas tábuas na constnição de casas de madeira.
366 Magnus Roberto de Mello Pereira A uajetúria de uma cidade brasileira nos séculos XVIII e XIX 367

num projeto de preservação de sua identidade mral. Uma demonstração Ocorreu que, em sua ânsia povoadora, as autoridades provinciais
bastante precisa deste aspecto já foi dada pelo historiador polaco Marcin instalaram muitos imigrantes em locais inacessíveis e carentes dos
Kula, que utilizou como fonte historiográfica as cartas desses imigrantes requisitos básicos para a fixação dessas pessoas. As colônias que
para os seus parentes na P ~ l Ô n i a ?Tais
~ cartas foram apreendidas pela não contavam com um mercado urbano próximo, que absorvesse a
polícia czarista, que procurava estancar o processo migratório. sua produção agrícola, acabaram por se dissolver. Em outros casos,
Nessa correspondência. evidencia-se que os emigrantes que se a qualidade da terra deixava a desejar ou não era própria para as
deslocavam para o sul do Brasil faziam-no com o objetivo expresso culturas a que eles estavam acostumados. Entre os imigrantes com
de se manter, ou voltar a ser, 'camponeses'. São sugestivas as pretensões camponesas, vieram uns tantos que eram artesãos urbanos
recomendações de que não se deveria emigrar para São Paulo, pois o ou simplesmente proletários tentando voltar a vida mral, mas que não
risco seria tomar-se um trabalhador mral assalariado ou um proletário se adaptaram a realidade das colônias. Por todos esses motivos, muitos
industrial urbano. Nenhuma dessas alternativas apresentava interesse imigrantes acabaram por se instalar na periferia das cidades, onde
para tais emigrantes. "No navio não se alistem para fazendas ou reencontraram-se com seu destino histórico europeu.
fábricas", recomendava um imigrante a seus parentes que estavam para Os industriais do mate não tinham maiores interesses no trabalhador
embarcar?' estrangeiro. Portanto, a exploração dessa mão-de-obra européia acabou
Outro, que nos primeiros anos da república foi desavisadamente sendo feita por alguns artesãos imigrantes bem-sucedidos ou mesmo
parar em São Paulo, descrevia a sua luta para não se tomar um proletário por alguns burgueses imigrantes, que já se transferiram ao Brasil com
mral: essa F~nalidade.~'A produção do mate gerou uma demanda por diversos
"Comunico-vos que ao chegarmos ao Brasil, h Província de São Paulo, permanecemos insumos e equipamentos, que passaram a ser produzidos localmente nas
em casas para imigrantes, semelhantes a quartéis. Lá recebemos a manutenção e fábricas dessa burguesia imigrante em formação, a qual normalmente
pouso durante 8 dias. Durante estes dias quiseram tirar-nos de IA e atirar fora porque preferia trabalhadores de sua mesma origem étnica. Suíços, como os
não aceitamos inscrições para fazendas. isto 6 para trabalhar para a nobreza, que
cultiva cafk [...I. Nas fazendas desta nobreza é assim, em sua fazenda o dono, por
Muller, especializaram-se na fabricação do maquinário utilizado no
desobediência pode mandar fuzilar, não há nenhuma lei que impede, porque no Brasil beneficiamento do mate e na dos pilares e gradis de ferro fundido,
é República o que significa liberdade de nobreza."54 necessários a nova arquitetura urbana. Alemães, como os Schrapp,
vieram a dominar a indústria da impressáo, que fornecia os rótulos para
A indústria não era estranha a esses imigrantes. A Polônia, desde
as banicas de mate. Os engenhos de mate consumiam essas banicas em
aquela época, era mais industrializada do que o Brasil, e muitos estavam
grande quantidade, e muitos imigrantes dedicavam-se à sua fabricação.
justamente fugindo da fábrica.
Nas memórias de João de Mio, as banicarias ocuparam um lugar de
"Peso-te que venha porque ficará bem melhor do que na fábrica."5J
destaque.
"Podes chegar, pois se eu trabalhar durante três ou quatro anos estarei bem melhor "A principal que conheci em 1888, estava em terreno situado na quadra das hoje,
do que na fábri~a.'"~ ruas Dr. Pedrosa, Avenida Visconde Guarapuava, Buenos Aires e Dezembargador
Mota, era gerente e mesm um sueco; Emesto Bengtsson. mais tarde proprietáIio
O que os atraía para o sul do Brasil era a possibilidade de se tomarem da Fábrica Provid€ncia.[...] Havia muitas pequenas em maior número. no Batel e
pequenos proprietários mrais livres. Mas nem todos atingiriam esse no Portáo. Já de madhugada, ouvia-se o bater dos barrique~msque, devido o preço
objetivo. baixo das mesmas eram obrigados a trabalhar desde madmgada para ganhar o dia
[...I. Havia canoças especiais para conduzir as barricas. das que vinham do Umbará
J1 Marcin Kula. "Cartas dos emigrantes do Brasil", Anais da comunidade brasileiro-
lembro o Vicente Negrello, e da capital o velho Conrado Metzger r.. ].
Lembro os
polonesa, 8 (1977). pp. 9-1 17.
" Ibidem, p. 108. I' Sobre a composição étnica da burguesia paranaense ver: Altiva P. Balhana; Cecília
I' Ibidem, p. 115. M. Westphalen, "Demografia e economia; o empresariado paranaense: 1829-1929: Iraci
'JIbidem, p. 54. de1 Nero da Costa (Hg.), Brasil: hisrdria econ6mica e dernográfico (São Paulo 1986),
' 6 Ibidem, p. 54. pp. 245-93.
368 Magnus Kobcrto de Mello Pereira A trajetória de uma cidade hrasilcira nos séculos XVIII e XIX 369
cmceiros que transportavam as banicas dos engenhos Miranda e David Carneiro, que em relação ao alinhamento a Câmara ganhou a batalha, mas
entre eles figurava o Agostinho Merlin pai dos atuais indusuiais Merlin, de hoje. esta não seria uma vitória duradoura. Se em Curitiba a burguesia
Mais os bondecos que, no Batel e do Alto da Glória, conduziam as banicas e os
surróes, eram puxados por burros; um rebocava dois outros ou mais."ss
enriquecida pelo mate ainda demoraria até o final do século para solapar
a regulamentação da arquitetura, em outras cidades o processo atingiria
Outros europeus iriam tomar-se pequenos industriais, produzindo o seu desfecho previsível com maior rapidez.
sapatos e vestuário para o crescente mercado urbano. Alguns chegaram Por motivos não muito claros, o processo teve início em Guarapuava.
a possuir indústrias de grande porte, como os Wenske, que produziam Esta cidade era uma recente filial da burguesia agrária paranaense, que
fitas, ou os Hurlimann, que construíram uma imensa fábrica de fósforos, seria oficialmente estimulada a ocupar os campos da região. Todavia,
que chegou a empregar mais de 800 moças. contra todas as expectativas, e contrariando a maré que assolava o resto
A presença de tantos operários europeus nas fábricas indica o da Província, a câmara daquela vila desregulamentaria precocemente a
fracasso das aspirações daqueles imigrantes que, atraídos para o Brasil forma da arquitetura, tomando Guarapuava o primeiro município a dar
pela perspectiva de se tomarem pequenos proprietários rurais livres, forma legal à maneira de ocupar o solo urbano que viria a predominar
acabaram por se tomar uma figura híbrida entre agricultor, criado em todo o Paraná, e que ainda vige nos dias de hoje.
doméstico e operário. O mundo suburbano construído por essas pessoas Art. 18.: "Fica revogado a Z9 do art. 28 das posturas de 5 de Setembro de 1854,
era exatamente aquilo que os funcionános coloniais setecentistas ou os permitindo-se a construçáo de casas de tacaniça em qualquer ponto da vila, toda vez
vereadores do começo do século XIX execravam. Os imigrantes vindos que as Aguas dos telhados destas não escoem em terreno alheio."
para a perifieria urbana transformaram-na no espaço da interpenetração
Art. 20.: "O indivíduo que obtiver terrenos da câmara para edificar seri obrigado a
do rural com o urbano. O verde que circundava suas casas, no qual uns construir mum de pedra e caia-10 na parte que na frente não ocupar com casa; tendo
enxergavam a salubridade e outros a morigeração, para eles próprios este muro 12 palmos de altura; assim como será permitido construir para dentro
era uma demonstração palpável de que a derrota não tinha sido total. do alinhamento da rua, fazendo o mesmo muro nas condições acima declaradas, ou
Bem ou mal, eles eram 'proprietários rurais'. gradil de ferro." (Guarapuava, 14 de abd de 1862).59
Todavia, os vereadores do final do século já não estavam mais Com esses dois dispositivos muito simples, os vereadores guara-
dispostos a investir contra isso, mesmo porque, do ponto de vista da puavanos inverteram completamente a lógica da relação entre rua e
indústria, esses espaços eram operacionais, pois baixavam as pressões casa. Se, até então, as legislações dos diversos municípios procuravam
por maiores salários. Neles viviam famílias que é difícil saber se compactar as habitações compondo o volume da quadra, as alterações
complementavam seus salários com uma produção agrícola, ou se introduzidas em Guarapuava iriam desvincular uma moradia da outra
complementavam a renda obtida na agricultura com os salários de permitindo que cada uma se apresentasse como um volume isolado.
alguns de seus membros, empregados como operários ou criados Apesar de manter padronizada a altura dos muros em 12 palmos
urbanos. (2,64m), a Câmara deixaria em aberto a possibilidade da utilização
de gradil de ferro. Este é um detalhe importante, pois só assim o novo
'projeto' urbanístico poderia se realizar em sua plenitude. Para que
VI. COMO UM BOLO NUMA TRAVESSA ele se completasse, a rua deveria tomar-se uma espécie de vitrine de
casas-monumento, expondo na sua totalidade a volumetria peculiar a
Observando-se o que hoje ainda resta das edificações da época nas cada uma delas. O gradil de ferro veio para cumprir um duplo papel:
zonas centrais da cidade, onde predominavam os alemães, percebe-se além de manter rigidamente a separação entre o espaço público e o
privado, ele, na sua transparência, permitia a visibilidade quase total
João de Mio, "Noticias hist6ricas sobre a erva-mate e seus engenhos de benefi- da casa pela qual o burguês se fazia representar.
cimento": Boletim do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Poranaense, 5, 3 4
Qul.-dez. 1951). p. 4 7 4 7 ; p p . 5 5 4 . 59 C.L.D.R.P.,1862, p.38.
370 Magnus Roberto de Mello Pereira A trajetória de uma cidade brasileira nos séculos XVIII e XIX 371

A Câmara de Curitiba resistiu por um bom tempo a essas inovações. Francisco Fasce Fontana iriam desencadear uma espécie de comda
Apenas em 1895 elas seriam adotadas. Os latifundiários, ou seus entre os industriais do mate que, ao construir suas residências, iriam
prepostos bacharéis, que por muitas legislaturas dominaram a Câmara, afirmar definitivamente em Curitiba o novo conceito de arquitetura
não pareciam dispostos a dar aos habitantes da cidade a prerrogativa da urbana burguesa residencial, que até hoje permanece em vigor. Algumas
residência volumétrica, quer aos imigrantes quer à burguesia industrial das constmções mais significativas dessa 'corrida' foram, além das
do mate que aos poucos dominou economicamente a cidade. Restava citadas, as de Bemardo da Veiga (1896), Manuel Miró, Ascânio Miró,
às novas classes urbanas recorrer a dois tipos de expedientes, na Zacarias de Paula Xavier, Manoel Macedo (1902) e Agostinho Ermelino
tentativa de personalizar as suas habitações. A primeira possibilidade de Leão (1906).60Como se percebe pelas datas das constmções, o
era submeter-se ao padrão legalmente vigente na décima urbana, porém processo apenas tem seu início no penodo abrangido pela baliza
acrescentando às fachadas uma parafemália de elementos decorativos cronológica deste estudo, porém sua continuidade segue pelo século
que tomasse cada casa 'única e inconfundível'. A outra hipótese era XX adentro. Segundo essa nova concepção arquitetônica, as edificações
fugir do quadro urbano e constmir nas regiões do rocio, contíguas residenciais deveriam desligar-se do alinhamento predial, passando a ser
ao núcleo central da cidade. Como a legislação referente h edificação tratadas como objetos isolados. "Oferecendo-se como um bolo numa
não incluía o rocio, considerando-o área mral, aí era possível a travessa", no dizer de Camilo Sitte que, na metade do século XIX,
construção de residências com volumetria própria, conforme aspiravam comentava a nova arquitetura que se desenvolvia em Viena.6' A cidade
as novas camadas urbanas. Ambas as possibilidades foram largamente resultante dessa nova forma de conceber a edificação urbana aparecia
empregadas. aos olhos do transeunte como um conjunto de fragmentos, os lares
Embora anteriormente já existissem algumas construções 'modemas' burgueses. Cada habitação passaria a investir-se de uma individualidade
isoladas nos arrabaldes da cidade, as duas últimas décadas do século que, antes, só era admissível às igrejas e a alguns raros edifícios
XIX seriam para Curitiba as décadas da consolidação do projeto fin- públicos.
de-siécle de arquitetura e urbanismo. A cidade, até então conformada
ao modelo de arquitetura colonial, começou a assistir à introdução
em massa de novos elementos decorativos. A prioridade do enfoque
espacial, que antes estava voltada para a rua, passou a recair sobre os
objetos arquitetônicos. São características da época as fachadas ecléticas
edificadas no alinhamento predial das ruas mais centrais da cidade.
Entre as residências construídas no período, a do Barão do Serro
Azul (1885) pode ser considerada uma síntese entre duas épocas.
O projeto em linhas 'renascentistas', atribuído aos mestres Angelo
Vendramin e Batista Casagrande, embora respeitasse a imposição de se
construir no alinhamento predial, conseguiu, mesmo assim, expressar
a 'vontade de volume' que seria uma das marcas mais evidentes da
arquitetura residencial da período seguinte. A solução encontrada pelos
arquitetos foi deixar afastamentos em ambas as laterais do sobrado e
estender a elas o tratamento da fachada. O objetivo manifesto era soltar
a edificação de sua conexão com a quadra, para que ele se apresentasse,
a quem passasse pela rua, como um volume isolado, e não como mais
um plano de fachada entre outros. Cf. João de Mio, op. cit.. pp. 53-5.
A construção dessa residência e, simultaneamente, a do industrial 6' In Carl E. Schorske. Vie~fin-de-siPcle.Política e culrura (São Paulo 1989). p. 81.

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