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vinte e sete de

agosto
Copyright © 2021 by Vila Rica Editora / Adriano Silva
Título Original: Vinte e sete de agosto

Essa é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas. Nomes,


personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da
imaginação do autor — mesmo que alguns fatos sejam baseados em
fatos reias.
Essa obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
Todos os direitos reservados.

São proibidos o armazenamento e/ ou a reprodução de qualquer parte


dessa obra, através de quaisquer meios — tangível ou intangível —
sem o consentimento escrito do autor.

SILVA, Adriano
Vinte e sete de agosto | Adriano Silva 1ª Ed
Adriano Silva, 2020. 210 p.
1. Literatura. 2. Romance. I. Título
ISBN: 978-65-86379-01-3
Literatura Brasileira
CDD: B800
CDU: S-61

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Vila Rica Editora

CNPJ: 36.035.213/0001-04
Rua Joaquim Eugênio de Mesquita, s/n Bairro Dom Bosco
São João del-Rei – MG / CEP: 36301-104
Dedicado a Marcos, o garoto dos cabelos de fogo.
A Fred, que me permitiu contar sua história.
PREFÁCIO

Durante os dois anos de todo o processo de


escrita de Vinte e sete de agosto me perguntei se esta
é uma história que deveria ser contada.
Talvez o leitor, assim que conclua essa lei-
tura, pense que poderia eu ter conduzido a história
com um final mais agradável. Mas o ponto é que
este livro nasceu de uma história real.
Personagens que ilustram este livro existi-
ram e existem realmente.
Frederico um dia me convidou para um
café, após uma abordagem em rede social. Não nos
conhecíamos. Agora posso dizer, sem nenhuma
sombra de dúvidas, que nos tornamos amigos.
Entre cafés e pães de queijo fui conhe-
cendo a complexa trama de sua história de amor.
Fred relatou-me sua infância. Me conduziu pelas
lembranças que possuía de sua casa. Do abandono
materno, contado logo no início do livro, o carinho
pela madrasta e o amor que desabrochou de forma
intensa, como tudo que vivemos aos dezesseis ou
dezessete anos.
Queria poder dizer que este livro é uma fic-
ção. Ficção pura e simplesmente. Mas infelizmente
não.
Fred reside hoje em Buenos Aires. Rara-
mente vem ao Brasil. Faz terapia. Tem trinta e cinco
anos. Está morto, mas ainda não foi enterrado.

O autor
O ano em que foi escrito este romance está muito
distante deste tempo que você leitor o abre.
A temperatura está acima dos 38°C. O céu está
azul as noites continuam estreladas e o vento
ausente.
O dia é 27, uma sexta-feira de um mês de agosto.
De desgosto. Sem gosto.
O amor está muito distante deste livro.

(Citação inspirada no livro O amor dos homens avul-


sos de Victor Heringer)
CAPÍTULO 01

Minha avó conta que quando eu nasci


minha mãe havia feito uma escolha muito difícil.
Ela se chamava Júlia e descobriu no terceiro
mês de gravidez que estava com câncer de laringe.
Os médicos a orientaram que seria melhor inter-
romper a gravidez e começar o tratamento com
quimioterapia o mais rápido possível.
Mesmo contra a vontade de toda a famí-
lia, ela continuou com a gravidez. Eu nasci num
setembro chuvoso de 1987. Ela não veio a fale-
cer. Mas sumiu no mundo me deixando para trás
ainda na maternidade.
Vivo com minha avó, minha madrasta e
meu pai. Minha avó Lilia é uma senhora portu-
guesa de sessenta e cinco anos de idade. Sempre
alegre. Sempre sorrindo. Ela também, assim como
eu, gosta muito de Sheila, a minha madrasta.
Meu pai, Augusto, é um homem muito ocu-
pado, trabalha quase o dia todo numa fábrica de
calçados e não temos um bom relacionamento.
Ele nunca disse, mas sinto que me odeia pela pelo
sumiço de minha mãe biológica.
Meu nome é Frederico. Todos me chamam
de Fred. Gosto desse nome, minha avó quem o
deu por ser o mesmo nome de meu avô.
Completarei dezessete anos em breve. A
minha vida não é fácil, assim como de nenhum
adolescente da minha idade, se não fosse por esse
detalhe, tudo seria bem mais tranquilo.
O sonho do meu pai é que eu curse Direito
ADRIANO SILVA

no Instituto Viana Junior, uma renomada uni-


versidade aqui da cidade e tenho, é claro, total
desinteresse por este curso. Sempre quis cursar
veterinária e este também é um dos motivos pelos
quais sempre temos longas discussões em casa.
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Não tenho nenhuma aptidão para cursar Direito,
mas meu pai acha que sendo advogado minha
vida será bem melhor que a dele.
Sheila é estéril, para ela sou como o filho
que nunca terá. Sempre conversamos por horas
na sala, deitados no tapete felpudo, sobre todos
os assuntos que se possa imaginar. Além de uma
mãe é uma amiga e nunca tive aqueles problemas
que sempre ouço falarem por aí: de que madrasta
é maldrasta.
Meus dias se resumem a basicamente estu-
dar. Não levo uma vida desconfortável, mas não
tenho grandes luxos como meus amigos Marcos
e Tati.
Marcos mora na rua da frente, tem cabe-
los avermelhados e muitas sardas no rosto. Nos
conhecemos desde o jardim de infância.
Tati conheci no colégio em que estudamos,
a Escola Piaget, uma das escolas públicas da nossa
pequena cidade. Tem um cabelo preto muito longo
e um sorriso que transmite uma calmaria, mesmo
quando está sendo irônica em alguma situação, o
que é quase sempre, sua casa fica dois quarteirões
depois da de Marcos, bem no caminho da escola.
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Acordar para ir à escola as sete da manhã
sempre foi uma árdua tarefa. O relógio desperta

VINTE E SETE DE AGOSTO


às seis, minha avó prepara o café enquanto me
arrumo para descer do segundo andar para a
cozinha, no térreo. Meu pai sempre está à mesa
quando desço. Saímos juntos de casa e nunca
temos muito o que conversar. Sheila não toma
o café conosco, neste horário já está acordada
há muito tempo fazendo sua caminhada pelas
ruas do bairro com duas de nossas vizinhas mais
mexeriqueiras.
— Depois da aula quero que venha direto
para casa! — ordena meu pai sem tirar os olhos
dos jornais que fica a folhear na sessão de esportes
todos os dias, enquanto toma seu café.
— Sempre venho, não é! — respondo
olhando para minha vó que coloca mais um pouco
de leite na xícara amarela que ganhei de Tati no
Natal do ano retrasado. Certo de que entendi o
recado meu pai não fala mais nenhuma palavra,
apenas se levanta e se dirige ao banheiro para
escovar os dentes.
— Não demore que já está atrasado! — fala
ele com rispidez.
— Não ligue para ele Fred, — cochicha
minha vó passando a mão nos meus cabelos ense-
bados de oleosidade — na sua idade ele também
nunca saía de casa sem antes levar umas palma-
das do seu avô, como sinto falta do seu avô... — e
dá um suspiro longo.
Minha Vó Lilia foi casada por mais de 40
anos com meu Vô. Ele morreu tem muitos anos, de
enfisema pulmonar, o conheci um pouco, era um
senhor esquio de cor pálida e que se sentava no
jardim todas as manhãs para fumar seu cigarro de
ADRIANO SILVA

palha. Meu avô tinha cheirinho de fumo de rolo.


Quando tomava água ou bebia alguma coisa na
cozinha o cheiro ficava impregnado nos copos.
Pelo que sei, nós sempre moramos aqui desde que
meu vô adoeceu e veio a falecer dois meses depois
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de internado na Santa Casa, no centro da cidade.
— Vamos Frederico, a aula é às sete e
meia e não às oito! – esbraveja meu pai ajeitando
o cabelo no espelho e acertando a camisa azul
por dentro da calça jeans, enquanto ajeito alguns
livros na mochila.
Sheila chega à porta, com os cabelos presos
a vestida com uma camiseta curta.
— Bom dia para os homens da minha vida
– E sai andando depois de um beijo rápido nos
lábios de meu pai.
Sheila realmente é uma pessoa boa, e
gosto muito dela, mas nunca entendi como se
apaixonou por um homem tão seco como meu
pai. Minha avó disse uma vez que ele não era
assim, que antes da minha mãe sumir no mundo
sempre tinha um sorriso no rosto e fazia piadas
sobre qualquer coisa, mas que depois que ela
desapareceu teve que assumir que era pai solteiro.
Falar sobre minha mãe é um assunto quase
proibido dentro de casa. Às vezes gostaria de ver
uma foto dela, de saber sobre detalhes de sua vida,
do que gostava de fazer, quais eram suas músicas
preferidas, seus sonhos, mas isso é assunto que
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na maioria das vezes causa um silêncio absurdo
quando pergunto. Por isso, Augusto, meu pai não

VINTE E SETE DE AGOSTO


gosta de mim, ele me odeia porque eu, de certa
forma, sou a causa de tudo isso.
— Vamos Frederico, vamos que não posso
chegar atrasado no trabalho — reclama meu pai
consultando novamente o relógio no pulso. Pego
minha mochila sobre o sofá e saio logo depois que
ele. Vó Lilia fica na janela acenando com uma das
mãos enquanto rega umas violetas quase sem vida
pelo sol intenso.
—Vai com Deus — abençoa ela com o
mesmo semblante tranquilo de todos os dias.
Sheila está provavelmente no banho.
Às vezes tenho nítida impressão de que
Sheila tem fugido de estar com meu pai durante o
café. Pelo que sei eles se conheceram no trabalho,
depois que minha mãe caiu fora sem dizer porquê
e meu pai foi transferido para outra filial que fica
mais perto da casa de meus avós. Desde então
moramos nós quatro na zona norte, por sorte o
colégio fica bem pertinho de casa e vou a pé com
Tati e Marcos. Até a metade do trajeto, passando
por uma rua quase deserta, sigo logo atrás do
meu pai que vez ou outra resmunga para que eu
apresse o passo.
— Anda Fred, moleza sô! — reclama nova-
mente averiguando às horas, dessa vez no celular
tijolo bem surrado pelo tempo. Meu pai não é um
homem moderno, suas coisas geralmente acabam
de velhice — ele seria o exemplo que a sociedade
precisaria espelhar para não ser tão consumista.
— Anda garoto, anda, lembre-se do que te
falei, direto para casa! — recomenda novamente
antes de seguir pela rua com grandes galpões e
ADRIANO SILVA

pequenas lojas de peças automotivas. Finjo que


não ouvi enquanto sigo com passos mais apres-
sados em direção a Marcos.
— Quebrou novamente o despertador,
Fred. — Brinca Marcos levantando-se da calçada
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quando me vê aproximando.
Marcos sempre com o cabelo despenteado,
parecendo que acabou de sair de um vendaval
e os olhos arregalados exibindo a cor castanho
amendoado muito claro.
— Fala Marcos! — cumprimento dando
uma leva batida com os punhos de encontro aos
seus. — Desculpe te fazer esperar, mas tentei fazer
o máximo para sair de casa sem meu pai — digo
ajeitando a mochila pesada nas costas.
— Sabe que a Tati vai nos matar – retruca
enquanto caminha no meu ritmo. — Tati sempre
nos espera do lado de fora de sua casa a duas
quadras de onde estamos.
— Ainda não se entendeu com seu velho?
— Não temos o que conversar Marcos,
somos dois estranhos — respondo olhando para
o chão, fitando meus sapatos All Stars azul, com
uma estrela branca de cada lado, surrados, claro.
— Todos os dias vocês chegam atrasados,
amanhã não irei esperar! – diz Tati assim que
paramos em frente à sua casa. Ela está ainda mais
bonita essa manhã, os cabelos muito negros pare-
cem brilhar com o a luz do sol da manhã.
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— Desculpe – respondemos quase em
uníssono.

VINTE E SETE DE AGOSTO


— Ah, desculpe... sempre o desculpe —
me imita —. Sorri nos afastando com as mãos
para que fique bem no meio de nós enquanto
caminhamos.
Tati tem a mania de falar me colocando as
mãos. Fala constantemente em um ritmo quase
alienante. Seus pais, o senhor Antônio e a Dona
Maria, se divorciaram recentemente e Tati nos
conta quase todos os dias como é ser filha de pais
separados.
Na semana passada nos contou novamente
que quando a mãe chegou em casa do trabalho
mais cedo encontrou o senhor Antônio na cama
nu com a vizinha viúva da rua de cima.
Sempre que via o pai da Tati, um senhor de uns
55 anos, de porte atlético com uma pequena bar-
riguinha de cerveja, imaginava que vivia às mil
maravilhas com a Dona Maria, mãe de Tati. A
gente sempre tem a impressão que a família dos
outros é sempre melhor e mais feliz que a nossa.
— Sua mãe como está? — pergunta Mar-
cos olhando o cachorrinho deitado debaixo de
um carro estacionado não demonstrando muito
interesse.
— Vai melhorar — responde ela sacudindo
a cabeça para tentar afastar uma mecha de cabelos
que tapam insistentemente seus olhos. — Agora
que ele foi embora, — continua ela — as coisas
irão se acertar.
O engraçado é que depois que aconteceu a
traição do senhor Antônio, Tati passou somente a
chamá-lo de Ele e não mais de pai. O bairro inteiro
ficou sabendo da surra que a Dona Maria deu na
ADRIANO SILVA

Joana, a vizinha viúva da rua de cima, quando


flagrou ela com o seu marido. Sô Antônio agora
vive num sobradinho perto da fábrica que meu
pai trabalha, próximo à casa de Marcos.
— Ele tem tentado consertar as coisas —
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Enfatiza Tati sem nos encarar. Não falamos mais
nada sobre isso durante todo o restante do trajeto.
Paramos na calçada contrária à escola. Fica-
mos encostados na beirada do gradil de uma resi-
dência a conversar sobre as provas que se aproxi-
mavam. Tati distraiu-se observando uma garota
de cabelo azul que acabou de comprar umas balas
na barraquinha do Sô Fábio.
— Menina nojenta essa Renata — resmun-
gava Tati enquanto fazia uma bola de chiclete que
ao estourar fez um barulho atraindo a atenção de
Marcos.
— Cisma sua, não vejo nada de mais
— concluí amarrando o cadarço do tênis que aca-
bou ficando molhado e sujo da poça d’água que
não notei estar ao meu lado.
— Tati e sua mania de criticar todo mundo!
Não ligue Fred, já até me costumei.
Tati fingiu não se importar com o comentá-
rio de Marcos e saiu caminhando para atravessar
à rua e a acompanhamos. Faltavam cerca de dez
minutos para o início das aulas. A primeira seria
com o professor Sérgio. Isso me fez lembrar como
são desagradáveis as aulas com este professor. A
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forma irônica e debochada com que entrega as
avaliações, depois de corrigidas, é algo que me

VINTE E SETE DE AGOSTO


deixa irritado, principalmente porque percebo o
olhar de terrorista, sentindo prazer depois de um
ato de extrema maldade.
— Anda gente! — diz Tati nos apressando.
— Não tem como transpassar os carros.
Não sou o homem invisível — implica Marcos
olhando na direção de um fusca velho que vaga-
rosamente se aproxima.
— Engraçadinho! Sempre com piadinhas.
— Ih, gente! Vão começar? — os reprimo
ajeitando a mochila nas costas novamente e per-
cebo que o sapato está desamarrado outra vez.
Assim que chegamos dentro da escola nos
dirigimos para o segundo andar, onde estão loca-
lizadas as turmas do terceiro ano. A nossa fica
bem no finzinho do corredor e, para nossa falta
de sorte, o professor Sérgio iniciou a aula antes da
sirene soar e anunciar que são sete e meia.
— Novamente os três — diz ele nos
encarando com o ar costumeiro de deboche —
Impossível para vocês chegarem no horário. Não
é?
— Desculpe professor, mas ainda são sete
e vinte e cinco — responde Marcos com a voz
vacilante. Nesse momento todos os alunos da
sala estão acomodados em seus assentos com os
olhares atentos a nos observar. Sinto meu rosto
queimar. Como odeio este professor!
— Entrem e se sentem, mas na próxima
aula não permitirei que a assistam sem passar
pela Ana Maria — diz enfatizando bastante no
Ana Maria. Esta é a diretora da escola, uma gor-
ducha que nunca sorri e nunca deixa ninguém
ADRIANO SILVA

questionar sua autoridade.


A última vez que visitei a sala da diretoria
foi por um motivo besta; Marcelo, — o retardado
que sempre implica com todo mundo — jogou
uma bolinha de papel no ventilador acertando em
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cheio meu olho esquerdo, justamente no momento
em que o professor Sérgio entrava em sala. Não
teve nem como argumentar, com o dedo em riste
nos mostrou a porta. Geralmente, nesses momen-
tos, ele nunca falava nada, simplesmente saímos
e fomos ao encontro da sala da diretoria onde
levamos um sermão e uma advertência por mau
comportamento.
Marcelo desde então me deu uma trégua,
mas sempre percebo sua cara de sarcasmo. Ele
é apaixonado pela Tati, mas ela tem verdadeiro
pavor das investidas que em vão tenta.
Nos sentamos na fileira encostada na
parede, com vista pela janela.
— Ei bobão! — Cochicha Marcelo rindo
— não consegue acordar sem a mamãe te cha-
mar?! – Não era uma pergunta, mas sim mais uma
das ofensas. Sempre ignorávamos os surtos de
infantilidade dele, mas isso parece que sempre
o motivava a criar ainda mais e mais situações
inconvenientes.
— Acho que você quer novamente visitar a
Ana Maria, Marcelo Moraes! — alerta o professor
em voz firme.
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— Não senhor, professor — responde em
voz quase inaudível manuseando a caneta sobre

VINTE E SETE DE AGOSTO


o livro de Química de capa azul fosco.
Durante a aula não se ouviu nenhuma con-
versa. Renata era de longe a queridinha do pro-
fessor e sempre lia a maior parte dos textos nas
aulas de Literatura, o que fazia dela uma aluna
insuportavelmente nojenta, como dizia sempre
Tati. Marcos e eu evitávamos concordar, sabíamos
que assim nossa amiga ficaria possessa de raiva e
isso renderia boas risadas pelo caminho de casa.
O dia ocorreu sem grandes problemas,
na saída esperei Tati do lado do canteiro, pró-
ximo à secretaria, enquanto Marcos havia ido ao
banheiro.
— Tati preciso passar na biblioteca — apres-
sei-me em dizer assim que ela surgiu comendo
um saquinho de Fandangos.
— Hãã... eu também tenho que passar lá!
Você vai pegar o livro para o nosso trabalho de
Biologia, não é?
— Não Tati, este o Marcos já pegou para a
gente — digo olhando para a direção de Marcos
que se aproxima com a camisa molhada.
— Novamente molhou a camisa no bebe-
douro, Marquinhos?! — implica Tati sorrindo.
— Isso sempre acontece... — reponde
encabulado esfregando a parte molhada sobre a
barriga.
— Temos que passar na biblioteca, vamos?
— falo caminhando para o prédio da biblioteca.
O engraçado na nossa escola é que o pré-
dio da biblioteca fica isolado do restante dela, no
segundo andar sobre os vestiários esportivos. No
caminho, não poderia ser diferente, encontramos
ADRIANO SILVA

Marcelo acompanhado de Lucas e Fábio, ambos


da nossa turma.
— Não entendo como uma garota tão
bonita vive sempre acompanhada de dois idio-
tas — late Marcelo as gargalhadas.
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— Deve ser porque se sente entre meni-
nas — gesticula de forma afeminada com as
mãos Fábio, causando ainda mais gargalhadas
em Marcelo.
— Aff...não deem confiança — diz Tati
no último degrau da escada enquanto nos
entreolhamos.
— Vão meninas, pegar os livros de contos
de fadas, vão! — grita Lucas, gargalhando mais
alto enquanto seguem caminhando até alcança-
rem a saída do lado direito das quadras de vôlei.
— São insuportáveis! — penso em voz alta.
— Três imbecis de merda — resmunga
Marcos.
— Esqueçam eles. — Branda Tati apoian-
do-se nos meus ombros e mastigando os biscoitos
em forma de conchinhas, sendo logo repreendida
pela bibliotecária.
— Que livro vai pegar hoje? — pergunta
Marcos passando as mãos em vários exemplares
da coleção Vaga-Lume.
— A Marca de Uma lágrima do Pedro Ban-
deira — digo puxando o exemplar da prateleira.
— Hum... — espero que não esteja que-
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rendo escrever cartas de amor para nenhuma
amiga sua. — brinca Tati folheando um livro de

VINTE E SETE DE AGOSTO


poesias de Drummond.
— Tati!!! Vai me contar toda a história? —
finjo ficar chateado com o comentário.
— Ah! Tanto faz. — diz ela enrolando um
montinho de cabelos nos dedos finos, enquanto
com a outra mão continua lendo um livro que
acaba de lhe chamar a atenção.
— Vamos então? — pergunta Marcos — Tô
morrendo de fome!
— Isso não é uma novidade — ironizo diri-
gindo-me com Tati para registrar o livro com a
bibliotecária.
No Caminho para casa conversamos sobre
o trabalho de Biologia. Marcos queria fazer o tra-
balho hoje mesmo, mas me lembro que tenho de ir
para casa. Contrariar uma ordem do meu pai seria
uma péssima ideia. Um sermão demorado sobre
responsabilidades e o quanto ele e Sheila tentam
manter nossa casa em harmonia trabalhando
muito para levar o sustento.
Chegando em casa, cansado e suado pelo
sol quente do meio dia, encontro minha avó na
sala com a tevê ligada assistindo ao jornal local.
Todos os dias quando chego ela está a me esperar
para que possamos juntos almoçar. Sheila sai para
o trabalho uma hora antes da minha chegada. Ela
trabalha do outro lado da cidade em um escritó-
rio de engenharia, por este motivo devo todos os
dias vir direto para casa e não deixar minha avó
sozinha. Estas são as recomendações que Augusto
me faz quase todos os dias.
Antigamente não havia essa necessidade
de vir diretamente para casa, mas como minha
ADRIANO SILVA

avó está a cada dia mais velha e mais frágil,


acharam melhor, Sheila e meu pai, que eu ficasse
em casa durante à tarde, até por volta de umas
dezoito horas. Horário este que meu pai chega
do trabalho.
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— Oi vó! — digo dando-lhe um beijo nas
bochechas e jogando a mochila pesada sobre o
sofá.
— Demorou hoje, filho — me diz num sor-
riso carinhoso preparando-se para levantar e me
acompanhar até à cozinha.
— Tive de passar na biblioteca — respondo
enquanto pego dois pratos e quatro talheres no
armário para almoçarmos. — O cheiro está ótimo
vó, o que fez de almoço hoje?
— Ah, Fred, quem cozinhou hoje foi a
Sheila. Ela fez um prato que você gosta. Adivinha?
— Estrogonofe de frango — respondo
abrindo a panela e me servindo com arroz.
— Você viu antes, assim fica fácil de acertar
— argumenta ela me servido um copo limonada.
Tanto minha avó quanto Sheila cozinham
e são excelentes nesta arte. Minha avó senta-se
ao meu lado para almoçarmos. Ficamos conver-
sando um bom tempo depois que terminamos,
sobre coisas da vida e lembranças do tempo de
menina dela. Ter vó é a melhor coisa do mundo.
Depois de lavar a louça e secá-las, subo
para meu quarto. Vó fica deitada no sofá com a
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tevê ligada, cochilando. Durante a tarde ligo o
som em uma estação de rádio qualquer e ouço

VINTE E SETE DE AGOSTO


músicas num volume baixinho enquanto separo o
material para estudar. Esse ritual se repete todos
os dias.
Quando meu pai chega do trabalho estou
ainda no quarto, mas o ouço enquanto conversa
com minha avó na sala. Sempre faz as mesmas
perguntas, quase sempre são sobre mim. A porta
do quarto ao lado faz um barulho ao ser fechado e
então sei que ele foi para o banho. Pego um casaco
no guarda-roupas e desço correndo as escadas.
Não gosto de manter nenhum diálogo com meu
pai. Não teríamos mesmo muito o que conversar
também.
Minha avó está à cozinha. Provavelmente
preparado o jantar. Abro a porta que dá acesso aos
fundos e me esquivo sem fazer nenhum barulho
ou ser notado. Quando me encontro estando do
lado de fora de casa, pego minha bicicleta e saio
pedalando o mais rápido que posso.
A noite cai rapidamente. O céu encontra-se
numa mistura de cores. Gosto muito disso! Sigo
pedalando pela avenida principal e corto caminho
pela linha férrea, passando pelo Bairro Industrial,
que meu pai trabalha, saindo pela rua atrás do
colégio.
Chego ao meu destino. No auto do Morro
do Cimento, consigo visualizar todo o bairro de
cima. Isso é realmente incrível. Aqui me sinto abri-
gado de todos.
Desço da bicicleta e me sento sobre uma
viga de concreto com várias rachaduras. Muito
tempo atrás toda essa planície era uma fábrica
de cimento que foi desativada quando o bairro
ADRIANO SILVA

cresceu muito e a prefeitura atestou que o pó da


poluição não era saudável à população. Fico con-
templando o céu estrelado. Parece um céu dese-
nhado. A ausência das luzes artificiais dos postes
de iluminação pública faz com que o brilho das
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estrelas seja facilmente visto de onde estou.
Poderia ficar à noite toda por aqui refle-
tindo, tentando entender o porquê me sinto tão
diferente dos outros garotos da minha idade. Será
que é o fato de não ter uma mãe? Ou quem sabe
ter um pai que realmente se importe comigo? Eu
não sei, sinto uma solidão e a falta de algo que
ainda não sei bem o que é.
Pego a bicicleta que ficou jogada sobre uma
moita de capim. Desço o morro empurrando-a
calmamente, sei que o local não é muito seguro à
noite, mas isso realmente não me assusta. Estou
tão absorto em pensamentos que não percebo
que estou sendo seguido por um rapaz branco e
magro. Quando dou pela presença do rapaz ele
está a uma distância razoável de mim. Aperto o
passo segurando firme o guidão da bicicleta ver-
melho sangue. Noto que ele aperta o passo, quase
a correr. Começo a sentir as batidas do meu cora-
ção num ritmo que nunca senti antes. Posso ouvir
o sangue correndo nas minhas veias e o suor frio
descendo pela minha coluna.
Tenho que pensar rápido. Aperto ainda
mais o passo e num giro preciso sento na bici-
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cleta e saio em disparada. Consigo escutar o baru-
lho dos sapatos do cara batendo forte no chão e

VINTE E SETE DE AGOSTO


alguma coisa semelhante a um palavrão sendo
berrado.
Pedalo em disparada até as minhas per-
nas ficarem dormentes e me sentir cansado o sufi-
ciente para reduzir a velocidade. O coração desa-
celera aos poucos quando me sinto mais seguro e
distante do Morro do Cimento.
— Se meu pai souber disso — falo comigo
mesmo em voz alta assim que me aproximo da
casa amarela ao fim da rua. Guardo a bicicleta na
garagem, que a muito tempo serviu para guardar
o fusquinha branco ano 69 do meu avô. Nem abro
bem a porta da sala e encontro meu pai com a cara
fechada e os braços cruzados. Sheila e minha avó
estão sentadas no sofá. Pela cara de preocupadas
que me olham, sei que estou encrencado.
— Você sabe que horas são Frederico? —
percebo que não é uma pergunta e que pelo tom
de voz devo ficar quieto para não piorar ainda
mais as coisas. Vó Lilia levanta-se e se põe à frente
de meu pai.
— Fred, você saiu sem nos avisar, filho.
Estamos preocupados, são mais de dez horas —
diz em tom sério, mas com a voz mais delicada
que conseguiu.
— A senhora sempre acobertando as maze-
las dele, mãe! — retruca Augusto enquanto me
olha furiosamente.
— Apenas dei uma saída, não precisam
fazer esse drama todo — digo eu tentando mini-
mizar as coisas e indo em direção à cozinha para
pegar um copo d’água. Mas meu pai me segura
firme pelo braço nesse momento. Sheila se levanta
ADRIANO SILVA

e pede para que me solte. Por um tempo perma-


neço ali, entre as mãos fortes com as unhas cra-
vadas na minha pele. Até que ele me solta depois
da vó entrar no meio e intervir uma vez mais com
Sheila.
28
— Você não me entende, nunca entendeu
e agora ainda quer me bater! — resmungo quase
chorando, vacilando um medo mais profundo,
mas tentando me manter firme e não deixar as
lágrimas rolarem, o que foi em vão já as sentindo
brotado no canto dos olhos e escorrendo quentes
pela face. Subo as escadas correndo e bato a porta
do quarto com toda a força que consigo.
— Ele me deve satisfação Sheila, vocês
duas acobertam tudo de errado que esse moleque
faz — posso ouvir meu pai aos berros na sala e
Sheila tentando o acalmar.
— Calma querido, essa idade é assim
mesmo, você também já foi jovem, não foi?
— Não fui criado assim, a mãe pode dizer
como era ...
— Calado, Augusto! Não quero ouvir mais
nenhuma palavra, ainda é minha casa e mando
aqui — ordena minha avó em tom rígido.
Peguei meus fones de ouvido e os coloquei
Usher cantando Yeah! no volume máximo, mas é
impossível prestar atenção nas batidas da canção.
Estou tão triste, sentindo uma leve dor no braço
pelo apertão do meu pai e penso que poderia ter
29
sido pior se estivesse tido a bicicleta roubada, ou
se meu pai viesse a descobrir que fui no Morro do

VINTE E SETE DE AGOSTO


Cimento sozinho e ainda por cima fui perseguido
por um bandidinho qualquer.
Adormeci sem jantar deitado sobre o edre-
dom com os surrados All Stars azuis de estrelas
brancas impregnados de terra vermelha.
CAPÍTULO 02

Acordo com as batidas da minha avó à


porta. Os fones de ouvido estão caídos ao chão.
Confiro as horas no despertador na cabeceira,
marcando sete e vinte e cinco.
Estou atrasadíssimo para ir ao colégio.
Tomo um banho rápido e escovo os dentes
debaixo do chuveiro. Tomar café com meu pai à
mesa, será desgastante, de certo irá me ignorar, o
que não chega a ser uma grande novidade, afinal
faz isso praticamente todos os dias.
Visto o uniforme azul e guardo a camisa
de educação física dentro da mochila. Às quartas-
-feiras temos aula nas quadras poliesportivas. Na
semana anterior havia chovido e isso tinha sido
um alívio. Educação Física não é uma das coisas
que mais gosto de praticar.
—Na verdade, eu odeio praticar esportes
— digo amarrando firmemente o cadarço dos
sapatos.
Desço torcendo para que meu pai já esteja
fora da mesa. Para minha sorte ele só não está,
como também se foi para o trabalho sem minha
companhia, o que significa que estou ainda mais
encrencado do que imaginava. O pior de tudo isso
é que o motivo foi uma simples saída à noite sem
avisar, passa pela minha cabeça o cara branco me
perseguindo a pé. Balanço a cabeça na tentativa
31
de afastar este pensamento.
— Pensei que teria de derrubar a porta,

VINTE E SETE DE AGOSTO


Fred. — brinca minha avó quando chego à cozi-
nha. — Seu pai está furioso pela sua saída ontem
— a interrompo antes que conclua a frase;
— Estou de castigo o resto da vida? —
questiono de forma irônica enquanto beberico o
café preto muito quente.
— Sim, está! — responde ela colocando a
cadeira mais perto da minha — você não pode
continuar desafiando seu pai o resto da vida, Fred.
As coisas a cada dia ficam mais complicadas entre
vocês — minha vó tem toda razão quando diz
que nossa relação passou de uma simples formali-
dade para quase inexistente no último ano. O fato
de exigir que curse Direito apenas piorou toda a
situação.
— A culpa não é minha. A culpa é toda dele
que me trata como uma coisa — digo verificando
as horas no velho relógio Cassio no pulso — tenho
que ir, estou atrasado.
— Continuaremos essa conversa mais tarde
— diz em tom categórico tentando fazer o rosto
ficar com um semblante de autoridade, mas isso
era impossível para minha avó, os olhos verdes
brilhantes a denunciavam e acabava sempre por
soltar um sorriso — direto para casa, não piore
as coisas!
Sheila está à porta assim que a abro, com
sua legging e camiseta ensopados de suor.
— Oi, mocinho! — diz em tom que não con-
segui distinguir se era uma ironia ou uma brinca-
deira — seu pai, ontem...
— Ah não, Sheila! Você também? — digo
passando por ela e caminhando em direção ao
ADRIANO SILVA

portão — tenho dezesseis anos e completarei


dezessete, mas mesmo assim me tratam como se
tivesse menos da metade.
— O fato não é ter dezesseis ou dezessete,
Fred! O fato é que você saiu sem avisar e voltou
32
tarde, sabe que esse bairro é perigoso, não esta-
mos mais morando no Recanto — pondera aguar-
dando uma resposta minha, o que não acontece,
fecho o portãozinho que dá acesso à rua e aperto
o passo.
Recanto era o bairro que morávamos antes
de nos mudarmos para a casa da minha avó. De
fato, o bairro é muito mais perigoso e de frente
para o Morro do Cimento existe uma favelinha,
resultado de uma invasão que passou por uma
revitalização na tentativa de se tornar uma área
saneada.
O dia está ensolarado, quente e estou mais
que atrasado para encontrar Marcos e Tati que
provavelmente estão furiosos comigo e já não
estão esperando mais por mim.
Sigo andando com os fones de ouvido
conectados no meu walkman— presente de vovó
em suaves prestações a perder de vista nos carnês
das Casas Bahia — cantando “Boys don’t cray”, do
The Cure, uma banda dos anos 80 e que adoro,
fazendo todo o sentido enquanto contorno a rua
da Fábrica em passos mais apressados. Como
imaginei nem Tati e nem Marcos estão à minha
33
espera. Quando chego ao colégio os portões estão
sendo fechados e tenho que correr para não ficar

VINTE E SETE DE AGOSTO


do lado de fora.
— Vamos garoto — diz o magro porteiro
acenando com a mão em forma de uma concha
para me apressar, por sorte as primeiras aulas são
de Matemática e o professor sempre chega atra-
sado. Atrasado não...muito atrasado.
A escola possui um amplo pátio onde se
localiza os banheiros e os bebedouros. Atravesso
rapidamente para subir as escadas rumo ao ter-
ceiro andar. Encontro Fábio, Marcelo e Lucas de
costas no parapeito, caminho na direção deles sem
fazer qualquer barulho que possa lhes chamar a
atenção, o que foi em vão.
— Olha a mocinha chegando – diz Lucas
alertando os outros dois — chegando atrasado
novamente — repete e cutuca Marcelo com o
cotovelo. Lucas provavelmente tem uns dezenove
anos, levando pelas contas a quantidade de vezes
que já reprovou no ensino médio. Possui porte
atlético, cabelo de um preto raleado e uma voz
que tem timbre vacilante entre o fino da adoles-
cência e o dissonante do efeito de anabolizantes
que a maioria dos garotos da escola compram do
Caio, o aluno do terceiro ano que vende de maco-
nha a produtos para bombar o corpo.
— Como se isso fosse da sua conta! — res-
pondo caminhando em direção à sala de aula.
Sinto apenas uma dor seca nas minhas costas
provocadas pelo soco de punhos fechados sobre
a mochila.
— Você é um idiota! – digo empurrando
Lucas em cima de Marcelo que vem logo atrás.
— Venha Lucas! Deixe ele, aqui não é o
ADRIANO SILVA

momento nem o melhor lugar para isso – orienta


Fábio com um risinho perverso.
— Não irá ficar assim, seu estranho! – grita
Lucas sob os olhares dos poucos alunos que me
observam.
34
— Era o que faltava — digo baixinho
quando me sento na cadeira. Agora tenho dois
problemas ao invés somente de um. Terei de
aguentar meu pai falando na minha cabeça por
dias e ainda enfrentar os valentões da escola.
Tati e Marcos olham emburrados em minha
direção. Estou com a cara vermelha e segurando
para não chorar, parece que tudo resolveu dar
errado.
—Fred te esperamos e você não apareceu, o
que houve? — pergunta Tati com a mão tocando
delicadamente meu ombro, mas sem desamarrar a
cara, enquanto Marcos se vira da carteira à minha
frente para escutar.
— Depois conto a vocês, me desculpem,
tive problemas em casa e agora a pouco tomei um
murro nas costas do Lucas — digo no momento
em que o professor de Matemática entra em sala
esbaforido, atrasado como sempre.
— Ah, esses idiotas! — cochicha Tati —
você precisa ir na Ana Maria e denunciá-los —
completa se ajeitando na cadeira para o início da
aula.
— Como se fosse adiantar alguma coisa —
35
resmunga Marcos se virando para a frente.
—Pois é, como se fosse adiantar

VINTE E SETE DE AGOSTO


— concordo.
Meu atrito com os valentões vem desde o
sétimo ano, por ter uma estatura mediana e ser
mais fraco, em vista dos outros alunos, fui sor-
teado para ser perseguido. Sorteado não seria a
palavra certa, mas imagina que ao invés de ter um
inimigo, tenho logo três. É muita falta de sorte!
Marcelo e sua paixonite por Tati faz da
nossa amizade um ingrediente para que me odeie
ainda mais. Fábio é um enfeite que mais ri e conta
piadas que não tem nenhuma graça. Lucas me
causa arrepios. Este sim é o típico delinquente
juvenil, com aparência sempre desleixada, calça
caindo e usa de seu corpo grande e anabolizado
para intimidar quem quer que seja.
Assim que o sinal soa para o intervalo
desço na frente e espero Tati e Marcos na sombra
da figueira atrás das quadras.
— Ontem fui no Morro do Cimento, à
noite, sem avisar lá em casa — confidencio de
cara, assim que se aproximam — meu pai me deu
aquela bronca e estarei de castigo até segunda
ordem.
— Uai?! — Começa Marcos mastigando
uns biscoitos — novamente você foi no Morro do
Cimento, não combinamos que só iríamos lá agora
os três? Minha mãe disse que lá é muito perigoso,
que é boca de fumo.
— Eu sei, mas queria dar uma volta, ver
as estrelas — falo sentado no chão com as costas
encostadas na árvore, avaliando se contava sobre
o cara que me deu um galope.
— Não adianta Marcos, esse aí é cabeça
ADRIANO SILVA

dura mesmo — diz sorrindo Tati bagunçando


meus cabelos.
— Mas o pior não foi a bronca que tomei
em casa — começo a contar ajeitando os cabelos
com as mãos — foi um cara branquelo que come-
36
çou a me seguir e que por pouco não me alcança
— concluo os deixando de boca aberta.
— Não falei! — diz Marcos — minha mãe
está certa, lá não é um bom lugar para irmos mais.
Eu não vou e vocês também deveriam não ir mais
para aqueles lados!
— Concordo! Eu nem gosto muito de ir lá.
— Eu sei Tati... — o sinal soou e limpando
a calça suja de poeira de onde nos sentamos se
levanta dando uma mão para mim e outra a Mar-
cos para nos puxar do chão.
— Eu não contei essa parte para meu pai
— completo enquanto andamos para a sala de
aula — e peço para você, que é muito bocudo,
para não contar ao seu pai — todos para a quadra
e desvio o olhar para Marcos.
— Okay! Como se eu fosse o fofoqueiro —
diz ironicamente — é preciso dizer, pois Marcos
sempre conta quase tudo que acontece em casa,
seu pai sendo amigo do meu seria uma bomba e
que iria explodir lá em casa.
Educação Física. Este é meu pior momento.
Minha tortura semanal. Odeio esportes, mas o
professor Sampaio, um senhor de uns cinquenta
37
anos, branco e que usa uma bermuda azul como
a dos alunos, nos obriga a participar sempre de

VINTE E SETE DE AGOSTO


todas as atividades. Preferia ficar sentado olhando
ou que chovesse. Pois se chover não tem como ter
atividades, já que as quadras não são cobertas.
Mas, hoje tem sol.
— Todos para a quadra — diz professor
Sampaio assim que todos estão em sala na volta
do intervalo — quem trouxe o uniforme de educa-
ção física direto pro vestiário para trocar a roupa
e, os demais, para a quadra.
Noto que estou de calça jeans e que na cor-
reria de sair de casa apenas guardei a bermuda
sem a vestir. Seria a primeira vez que iria usar o
vestiário em anos. Sempre tive vergonha do meu
corpo e sabia que trocar de roupa no vestiário era
pedir para ser zoado.
Por sorte a maioria dos alunos vieram uni-
formizados de casa, o que quer dizer que terei de
dividir o vestiário apenas com uns poucos cole-
gas. Desço vagarosamente as escadas do segundo
andar.
— Fred, espera a gente! — Apressa-se Tati
e Marcos ao meu encontro no corredor.
— Odeio essa aula! — digo em voz alta —
para piorar esqueci de vestir o uniforme.
— Ah! Eu adoro, são duas aulas que não
temos de esquentar a cabeça — diz sorrindo
Marcos, desenrolando uma bala e colocando-a
na boca.
— Eu não ligo, acho que tanto faz, mas por-
que você odeia tanto as aulas assim? — pergunta
Tati colocando a mão sobre meu ombro esquerdo
enquanto caminhamos pelo pátio em direção às
quadras.
ADRIANO SILVA

— Não tem porquê. Apenas não gosto, sou


desajeitado para esportes — digo com os olhos
fitando o chão evitando encarar os olhos de Tati
que pareciam me analisar profundamente.
— Nos encontramos daqui a pouco — diz
38
se despedindo e entrando na segunda porta do
vestiário feminino.
— Irei estar na quadra — informa Marcos.
Entro no vestiário confirmando com um
aceno de cabeça. Coloco a bermuda azul sobre o
banco e começo a me despir. Outros colegas che-
gam assim que começo a retirar a calça jeans do
corpo, para minha tristeza Lucas e Marcelo estão
entre eles. Finjo que não os vi e visto rapidamente
a camiseta.
— Olha Lucas — diz Marcelo olhando para
mim — como esse mosquito é magrelo — Fico
vermelho, não sei se mais de raiva ou de vergonha
por estar apenas de cueca.
— Não enche Marcelo! — revido com a voz
vacilando. Odeio quando isso acontece.
— Que medo da bonequinha! — provoca
Fábio tomando o meu short e jogando para Mar-
celo. Outros colegas param para olhar e se diver-
tirem com a cena, o que me faz ficar ainda mais
furioso.
— Me dê isso aqui!
— Vem pegar — diz em meio aos gritos
de incentivo dos outros garotos enquanto tento
39
tomar o short que é jogado a cada momento para
alguém diferente. Marcelo pega o short e o coloca

VINTE E SETE DE AGOSTO


entre as pernas;
— Pega aqui, agora! — as gargalhadas
aumentam e sinto o rosto cada vez mais quente
de ódio. Marcelo realmente é um idiota e colocar
o short entre as pernas foi uma atitude para me
ridicularizar ainda mais, já que seria impossível
pegá-lo sem praticamente encostar em seu corpo.
— Parou! Podem parar com essa bagunça,
agora mesmo! — grita de forma enérgica o pro-
fessor da porta de entrada do vestiário — o que
pensam que estão fazendo? Rápido para a qua-
dra! — ordena enquanto fita Marcelo que nesse
momento retira o meu short de entre as pernas e
o joga no meu peito.
— Não escutaram? Para a quadra agora!
— fala ele enquanto termino de calçar o tênis e
observo com a visão periférica os poucos cole-
gas, que ainda não trocaram de roupa, de cueca.
Percebo que a maioria tem o corpo já bem
desenvolvido. Lucas tem o corpo bem torneado,
também pudera, faz uso das porcarias que o Caio,
o garoto da outra turma, lhe vende.
— Tá olhando o que, veadinho? — inquire
me fuzilando com os olhos Lucas — finjo que
não é comigo e termino de amarrar os cadarços
e logo me ponho de pé caminhando para a saída
do vestiário.
— Anda molecada! — grita o professor
batendo com força na porta — as aulas de Edu-
cação Física são um pesadelo — penso em voz alta
enquanto me aproximo da quadra aonde estão
sentados no para peito Tati, Marcos e mais umas
meninas que conversam animadamente sobre algo
ADRIANO SILVA

que não consigo ouvir bem. Não me sai da cabeça


a imagem dos meninos de cueca. Não entendo
o motivo. Busco me entrosar na conversa e logo
acabo me perdendo em meio aos risos e assuntos
variados.
40
CAPÍTULO 03

Não esperei Tati e nem Marcos ao término


das aulas. Coloquei os fones de ouvido e caminhei
o mais rápido para o portão de saída da escola.
Fui refletindo no que havia acontecido no vesti-
ário. Odeio a escola. E odeio o fato de me sentir
sempre humilhado.
Peguei uma rua diferente e que não per-
mitiria ser alcançado por Tati e nem Marcos. À
tarde havíamos combinado de montar o trabalho
de biologia, lá em casa. Eu estaria de castigo para
todo o restante de outras atividades que não fosse
estudar.
Os pensamentos foram ficando cada vez
mais entorpecidos pelo som da música que estava
ouvindo; Skank, cantando toda positividade em
Vou deixar. O sol com a claridade ofuscando minha
visão, poucas pessoas andando ao redor e, as que
estavam, encontravam-se mais absortas em suas
próprias insignificâncias.
— Olha o picolé! — grita o rapaz de fisiono-
mia exausta — vai um picolé aí garoto? — pergun-
tou enquanto analisava se eu conseguia escutá-lo
por de trás dos fones de ouvido.
— Quanto está custando? — falei procu-
rando moedas nos bolsos.
— Um e cinquenta — respondeu abrindo o
tampo do carrinho refrigerado — tenho morango,
goiaba, leite condens...
— Me vê esse — e apontei para o de choco-
ADRIANO SILVA

late. Já lhe entregando o valor em muitas moedas


de dez centavos com uma mão e pegando o picolé
com a outra.
Como o calor estava insuportável, tive que
ir comendo e lambendo o mais rápido possível.
42
Foi quando notei que estava sendo observado.
Numa fração de segundo reconheci a fisionomia
de um homem branco e com roupas sujas do outro
lado da rua, onde existiam umas árvores muito
grandes e um terreno baldio com muito entulho.
O coração acelerou e o primeiro impulso foi
apertar o passo ainda mais. Durante todo o trajeto
segui sem olhar para trás, mas sentia o olhar do
homem em minha nuca até o momento em que
virei a esquina. Joguei o picolé ao chão e saí cor-
rendo o mais rápido que consegui. Não parava de
lembrar de quando o homem havia corrido atrás
de mim no Morro do Cimento. Não tinha como
me enganar, era o mesmo e estava nítido que ele
também me reconheceu. O olhar não estava ami-
gável, havia algo de anormal, de cruel.
— Por que está correndo tanto assim, Fred?
— perguntou minha vó estendendo roupas no
varal.
— Nada vó — respondo sem encará-la.
Entro dentro de casa e vou direto para o quarto
tomar um banho e me trocar. Enquanto tiro a
roupa grudada de suor do corpo e jogo os sapatos
de qualquer jeito para debaixo da cama escuto o
43
telefone tocar, sei quem está do outro lado, mesmo
antes de retirar o telefone do gancho.

VINTE E SETE DE AGOSTO


— Fred, por que não nos esperou? Fiquei lá
com o Marcos, parecíamos dois idiotas pensando
que havia ido ao banheiro ou sei lá.
— Desculpe Tati, queria ficar sozinho e
pensar um pouco durante o caminho — falei em
tom mais baixo para desarmá-la, já que falava
quase que gritando do outro lado da linha.
— Espero que seja pensamentos relaciona-
dos ao trabalho de Biologia! Ah... Fred! — con-
cluiu num longo suspiro desanimado.
— É. São sim, Tati. Podem vir daqui a
pouco aqui pra casa. Irei almoçar agora e dentro
de uma hora podem aparecer por aqui! — digo
querendo encerrar a conversa o mais rápido para
ir para o banho— até mais Tati, daqui a pouco a
gente conversa mais, tá?
— Está bem Fred, está bem! — encerrando
a ligação de forma abrupta. Pude imaginar sua
cara com as mãos apoiando o rosto enquanto
desligava o telefone sem que me deixasse falar
mais nenhuma palavra.
— Fred, desce para comer, vai esfriar!
— Já estou indo vó, respondo enquanto me
seco descalço no banheiro. Me olhando no espe-
lho, percebo como meu corpo vai mudando. A
barba crescendo e os pelos vão tomando conta
de pernas e braços. Não me sinto bem com tantas
mudanças no corpo, me lembro que os colegas do
colégio estão bem mais desenvolvidos que eu, e
de certa forma isso é bem frustrante. Visto uma
camisa qualquer e uma bermuda xadrez e desço
a escada. Sheila entra em casa no exato momento
que chego ao térreo.
ADRIANO SILVA

— Oi Fred! — cumprimenta fechando a


porta por detrás de si — trouxe uma coisa pra
você — e me entrega uma sacola contendo dentro
uma embalagem dourada com um pequeno cartão
amarrado em um laço de mesma cor.
44
— O que é? — quase grito sorrindo
enquanto puxo uma das pontas do laço — ha!
Sheila! — digo no exato momento que minha avó
chega à sala impaciente com a demora para que
eu almoce.
— Vamos almoçar gente, vai esfriar!
— Olha vó o que ganhei — digo segurando
o livro volume único de Guia dos Mochileiros das
Galáxias virado para ela — obrigado, Sheila!
—Vamos almoçar, depois você me
agradece.
Se existe coisa melhor que ganhar livro,
eu ainda não sei. Sheila é uma ótima pessoa, não
entendo o que ela viu no meu pai. Não consigo
entender.
No quarto após o almoço, folheei o novo
livro e abri o cartãozinho que em uma caligrafia
perfeita dizia:

“Para meu Mochileiro querido!


Dê asas à sua imaginação.”

Enquanto estava lendo, Tati e Marcos che-


garam para fazer o trabalho escolar. Minha avó
45
pediu para que subissem. Marcos foi logo para o
meu quarto. Tati ainda permaneceu na sala con-

VINTE E SETE DE AGOSTO


versando com Sheila e era possível ouvi-las de
onde estávamos.
— Não nos esperou! — resmungou Marcos
segurando uma enorme enciclopédia de Botânica
e me encarando seriamente.
— Não deu, tive que vir voando para casa
— menti desviando olhar para a enciclopédia
— alguém ainda usa isso depois da invenção da
internet?
— Ha-ha-ha! Muito engraçado — rebate
Tati entrando pela porta e se dirigindo até meu
livro do Mochileiro das Galáxias— presente novo
Fred?
—Ah, sim, Sheila quem me deu hoje. — Ela
recolocou-o no lugar novamente — Então vamos
começar a fazer este trabalho, né!
Pesquisamos mais algumas coisas na inter-
net sobre gimnospermas e angiospermas, eu
estava claramente entediado. Tati estava sentada
em minha cama com as costas apoiadas em meu
travesseiro e Marcos comigo, sentado de frente
paro o computador antigo que mais travava que
acessava a internet.
— Hoje, na volta da escola, aquele cara
branquelo esquisito estava me observando — digo
sem encará-los, certo de que Tati ficaria muito ner-
vosa. De nós três é a mais medrosa.
— Nós te falamos que não era para ir no
Morro do Cimento sozinho.
— Eu sei Marcos, mas dessa vez eu não
estava lá no Morro.
— Mas se não tivesse ido até lá ele não teria
marcado sua cara. Melhor coisa a se fazer é contar
ADRIANO SILVA

para o seu pai.


— Está louca Tati?! Meu pai iria me dei-
xar de castigo pelo resto da vida. Não basta eu
ter dezesseis e ainda ficar de castigo? — fico em
silêncio por alguns segundos fitando as imagens
46
de árvores na tela do computador — vocês dois
estão proibidos de comentar isso com alguém, e
Marcos já sabe...
— Marcos já sabe — me imita ele — como
se tudo o que acontece eu contasse pro meu pai e
para minha mãe!
— Qualquer hora ele vai te abordar e te
roubar ou quem sabe até te matar, te dar uma
surra ou sei lá mais o quê.
— Pronto a Tati viaja nas coisas, Fred. Aqui
é vida real, talvez seja só uma coincidência, pode
ser, não pode?
— Não sei Marcos— respondo lembrando
que o olhar do homem não me parecia amigável.
— Gente vamos adiantar que preciso ir
embora, hoje tenho dentista e minha mãe irá me
pegar aqui em frente à sua casa.
***
Continuamos a fazer o trabalho. Tati per-
maneceu em silêncio absoluto todo o tempo. Por
volta de umas dezessete horas Marcos foi embora.
Minha avó insistiu para que lanchasse conosco,
mas disse que não iria sujar os dentes pois não
havia trazido a escova. Meu pai apareceu à porta
47
e cumprimentou Tati com um sorriso.
— Tati.

VINTE E SETE DE AGOSTO


— Olá, senhor Augusto — respondeu ela
levantando para dar um abraço em meu pai, que
ao sair me olha de modo sério o que faz Tati me
encarar também.
— Nada de sair, Frederico! Está de castigo!
— não respondo, finjo que não foi comigo e assim
que não estou mais em seu campo visual sacudo
os ombros com desdém — para mim tanto faz,
ser teu filho já é um castigo!
— Fred! — O que está havendo entre
vocês? — fala baixinho colocando uma de suas
mãos sobre meu ombro.
— Na verdade o que não está havendo, não
é? Ele sempre foi assim. Me culpa pela fuga da
minha mãe. Como se eu realmente tivesse alguma
culpa.
— Talvez não seja isso Fred, pode ser só um
momento de estresse ou sei lá, quem sabe se você
também baixar a guarda, conversar mais com ele.
— Sem chance! — Me volto a digitar as
informações que Marcos havia fichado. Tati per-
manece do meu lado, sentada na cadeira e vez ou
outra esbarra seus joelhos em minhas canelas. Seu
corpo está tão perto dos meus que consigo sentir
o perfume dos seus cabelos. Enquanto a observo
ela se volta de repente para mim e tenho um beijo
roubado.
— Que isso Tati? — digo no susto me
levantando rapidamente — ela fica sem jeito, me
observando, então levanta-se e sai correndo pela
porta do meu quarto, descendo as escadas, pas-
sando pela sala onde está meu pai, Sheila e Vó
Lilia assistindo à TV.
ADRIANO SILVA

— Já vai Tati?
— O que aconteceu com ela? Esses jovens!
— Não foi nada, Sheila — digo com a voz
falhando do topo da escada — ela teve que ir
correndo para casa, esquecemos um livro para
48
as anotações do trabalho que estamos fazendo — e
volto novamente para o quarto — droga, que foi
isso?!
Organizo o restante do material para levar
para a escola, mas fico o tempo todo lembrando
do beijo.
Agora, depois disso, como que iria ficar
nossa amizade. Sempre fomos amigos, a vejo
assim, apenas como uma amiga de muitos anos.
Eu sempre percebi a forma de Tati me olhar, de
sempre querer estar ao meu lado quando volta-
mos da escola, mas nunca tinha me passado pela
cabeça que ela estava gostando de mim.
CAPÍTULO 04

A chuva cai vagarosamente sobre o telhado


do meu quarto no segundo andar. As gotas fazem
um barulho como o tamborilar de dedos numa
canção romântica dos anos vinte.
Deitado em minha cama, com a porta
fechada e as cortinas levemente puxadas, abro os
olhos que com a luz do dia doem na tentativa frus-
trada de se manterem abertos. São pouco mais das
dez horas de um sábado típico do mês de maio.
Aos sábados meu pai trabalha meio expe-
diente na Fábrica. Sheila fica de folga, correndo
pela manhã bem cedo e, durante à tarde, conver-
sando com minha avó na cozinha. Me levanto
cambaleando, ainda entorpecido pelo sono que
insiste em não me deixar.
Dias de sol são meus dias preferidos,
principalmente aos sábados quando não preciso
ir à escola e posso ficar o dia todo por conta de
minhas coisas, entre elas meus passeios de bici-
cleta com Marcos. Em dias de chuva isso é impos-
sível, e ir ao Morro do Cimento estava fora de
cogitação. Não iria retornar lá tão cedo depois do
ocorrido com o cara estranho e mesmo que não
estivesse chovendo, sair de casa estaria terminan-
temente proibido pelo grande ditador, meu pai.
Enquanto estou de pé no banheiro, na ten-
tativa frustrada de urinar de pau duro e com a
sensação de uma bexiga prestes a estourar, me
lembro que Tati me roubou um beijo, balanço a
cabeça sem conseguir dissipar os pensamentos.
ADRIANO SILVA

Vou relaxando e enfim a urina bate nas bordas


do vaso sanitário fazendo um barulho desagradá-
vel. Escovo os dentes no lavabo, observando pelo
espelho à minha frente as espinhas e muitos pelos
de barba que despontam espaçados na face.
50
Sinto novas sensações, novos desejos que
ainda não compreendo muito bem. Pensar em
sexo me toma boa parte do dia e, inevitavelmente
a outra, por ereções involuntárias que me levam
aos mesmos pensamentos.
— Estou mais ou menos fodido — digo em voz
alta enquanto desajeitadamente endireito uns fios
de cabelos rebeldes.
Coloco uma música aleatória tocar numa
estação de rádio e A head full of Dreans, lentamente
toma conta do quarto com seus acordes que pare-
cem realmente me transportar para outro lugar.
Ligo o computador, dou uma zapeada pelo Orkut
e rolando a linha do tempo vejo uma postagem
da Tati com o status de frase:

“Sentindo-se envergonhada. Sentimentos que


a gente não pede para sentir”

— Ah, se ela se sente envergonhada já é


um bom começo — penso coçando a cabeça, des-
ligando o rádio.
Não entendo o que aconteceu com a Tati.
Sempre fomos bons amigos, senhor Antônio, pai
51
da Tati, e meu pai são conhecidos desde que se
entendem por gente e por isso sempre convivi

VINTE E SETE DE AGOSTO


com ela. Maria, mãe de Tati, e minha avó são
muito amigas, logo Tati sempre esteve presente
em minha casa e, junto com Marcos, brincávamos
no quintal de terra solta por debaixo de uma man-
gueira frondosa.
Estes pensamentos são boas recordações.
Lembro que tínhamos um cachorrinho, o Brin-
quedo, sei que o nome parece engraçado, mas esse
era o nome do meu amigo inseparável. Marcos,
Tati e eu brincávamos durante a tarde inteira e
Brinquedo era nosso mascote — eram realmente
bons tempos — digo num suspiro longo enquanto
desligo o computador.
Brinquedo era um cãozinho vira-lata de pelo
branco e bolinhas pretas pelo corpo. Fomos numa
tarde brincar com ele, pensávamos que estava des-
cansando em sua casinha debaixo da mangueira.
Mas ao chegarmos perto, notamos que estava sem
vida, deitado sobre as patas dianteiras não parecia
estar morto. Mas estava! E isso foi o bastante para
que chorássemos o restante do dia. Meu pai nunca
quis outro cão em casa, mesmo que eu insistisse
apenas dizia “já conversamos sobre isso, Frederico!”.
E assim nosso quintal ficou vazio e nem
Tati e nem Marcos quiseram brincar por ali mais.

***
Quando a chuva parou de cair, passava
pouco mais das dezesseis horas da tarde. Olhei
pela janela que dava do meu quarto para a rua e
vi Marcos chegando ao meu portão.
Enfim, eu poderia desabafar com ele sobre
o que havia acontecido. Desci as escadas para
ADRIANO SILVA

abrir a porta e quando o fiz de imediato Marcos


já estava se preparando para bater com as pontas
dos ossos dos dedos.
— Agora é adivinho? — disse ele.
— Engraçado, Marcos. Eu lhe vi pela janela.
52
Simples assim.
O puxei pelas mãos para que entrasse e
fossemos logo para meu quarto. Assim que dei
o primeiro passo na escada, já com Marcos me
seguindo, minha avó aparece o rosto à porta que
dividia a sala com cozinha.
— Marquinhos, querido, você por aqui? —
disse ela em tom carinhoso.
— Sim, Dona Lilia — respondeu ele com
aquele sorriso que era uma mistura de fofura com
alegria.
—Temos umas coisinhas para resolver
para aula de amanhã — disse eu — e já estamos
atrasados.
— Sempre correndo. Essa juventude parece
que vai viver a vida toda de uma vez! — resmun-
gava ela mais para si, que para nós que havíamos
terminado de chegar ao meu quarto. Marcos me
olhava com aquela curiosidade bem típica de
quem já me conhece.
— Okay. Nem é necessário dizer que pre-
cisa me contar alguma coisa muito importante,
Fred.
Ele logo se sentou à cama e eu puxei a
53
pequena cadeira da escrivaninha.
— Eu nem sei por onde começar, meu

VINTE E SETE DE AGOSTO


amigo.
Ponderei sem saber se seria realmente certo
me abrir com ele. Claro que Marcos era de con-
fiança. Mas parecia algo constrangedor demais
para dizer assim. Ficava uma sensação de que eu
estava traindo a confiança de Tati falando algo tão
íntimo sem sua presença. Mas é um pensamento
que não faz sentido já que irei falar justamente
sobre ela. Quem me beijou foi ela. Logo, não havia
mal nenhum em contar para Marcos. Ou havia?
Eu esperava beijar um dia alguém. Mas eu
nem entendia o que se passava dentro de mim.
Esse alguém não era a Tati.
— Beijei a Tati! — disse eu — na verdade,
ela me beijou.
Marcos ficou estático, com a boca aberta
por alguns segundos que pareceram eternas
horas. Fiquei observando seus dentes tão bran-
cos e suas bochechas levemente avermelhadas e
sardentas.
— Diz alguma coisa, Marquinhos.
Ele fechou a boca levemente e emitiu um
som que parecia um gaguejo.
— Eu não sei o que dizer. Você a beijou?
O que você chama de beijo? — perguntou ele —
Beijo no rosto, não foi?
— Não. Beijo na boca. Não foi bem um
beijo, beijo, entende? Foi um estalinho roubado.
Bem rápido. Ela quem beijou...
Percebi que Marcos franziu um pouco a
testa. Parecia ainda um pouco desconcertado com
a minha revelação. Ainda não consigo dizer o que
se passa na cabeça do meu amigo. Por alguns ins-
ADRIANO SILVA

tantes fiquei olhando para seus olhos castanhos,


seu cabelo fogo e suas sardas. Pensei ter feito a
coisa errada e me ocorreu logo que Marcos era
apaixonado por Tati.
— Me desculpe, Marcos — me apressei em
54
dizer — eu não sabia que você gostava da Tati, e
eu...
— Ah, não. Não mesmo! — disse ele bai-
xinho. Parece decepcionado ou prestes a chorar.
Não sei ao certo, mas sinto a tensão em sua voz.
Era o que me faltava. Havia jogado gelo em
minha amizade com Marcos. A reação não parece
de alguém que não sente nada por outra pessoa. E
no caso essa outra pessoa era a Tati. Nossa amiga
que mais cedo me roubou um beijo.
— Se não gosta dela o que foi então?
— perguntei.
Era muita coisa para um dia só. Marcos
ficou meio cabisbaixo, meio aéreo e eu querendo
desabafar e tudo parecia agora um imenso erro.
Girei a cadeira levemente de um lado para o outro.
Parecia que assim eu descarregava um pouco da
tensão que agora, dei por mim, me consumia.
— Eu não gosto dela, Fred. Não deste jeito
que você está pensando. Isso você já sabe ou se
não sabe deveria ter percebido faz tempo — disse
ele. E você o que sentiu?
— Então, eu não senti nada. Foi estranho,
rápido e molhado. Mas com toda certeza, eu não
55
gostei.
— Conta outra! Claro que gostou e agora

VINTE E SETE DE AGOSTO


irão namorar e fazer planos de se casar e ter um
monte de filhos.
Marcos fala tão rápido e os olhos parecem
se encher de lágrimas prestes a se desaguarem. Eu
não estava entendendo nada. Até porque Marcos
sabia que éramos, Tati e eu, apenas amigos. Não
existia a possibilidade de outra coisa que não fosse
amizade.
— Marcos, está louco? Já me arrependi de
ter lhe falado sobre isso. Não estou entendendo.
— Eu que não estou entendendo porque
beijou a Tati! – disse ele.
Toda conversa já está me deixando muito
mais chateado. Queria desabafar, mas claramente
Marcos não estava entendendo o que eu dizia. Me
levantei. Fui até a janela e observei a leve fumaça
da evaporação da chuva que caiu a pouco no
asfalto quente pelo pouco sol que saiu entre as
nuvens.
— Qual seu problema Marcos? — perguntei.
— Qual o meu problema, Fred? Você é tão
distraído que até hoje não percebeu qual o meu
problema. — disse ele se levantando — meu pro-
blema, caso não tenha percebido, é você, Fred.
Meu problema, aliás meus problemas todos, se
resumem a você.
Marcos fez um movimento tão rápido que
eu apenas senti o encostar de seus lábios nos
meus. O hálito quente e macio. Meus olhos tam-
bém se fecham e retribuo aquilo que não parece
certo. Mas também longe de ser errado, porque
está gostoso. Está gostoso e logo o abracei e senti
seus braços a envolverem meu corpo. E o mundo
parece ter parado. Eu sentindo o gosto dos lábios
ADRIANO SILVA

e o calor agora do seu corpo colado ao meu.


E muita coisa está passando pela minha
cabeça. Marcos continua a me beijar e a cada
minuto eu quero mais e mais sentir seu gosto em
minha boca.
56 Ele se afasta de uma vez de mim. Seus
olhos castanhos buscando os meus.
— O meu problema, sempre foi você. Fred!
Eu fiquei parado aqui, no meio do meu
quarto enquanto Marcos saía pela porta.
Completamente estático ouvi quando
fechou a porta e logo depois o portãozinho que
dava para a rua. Pela janela o vi voltando para sua
casa e uma chuvinha que começou a cair vaga-
rosamente fazendo um barulhinho novamente
sobre o telhado.
— O problema sou eu? — eu repeti em voz
alta tantas e tantas vezes que a frase quase se
transformou em um mantra.

CAPÍTULO 05


Abri os olhos e passava das dez horas da
manhã. O sol, incrivelmente, havia aparecido e
fiquei olhando as partículas de poeira em suspen-
são contra a luz que entram pela pequena fresta
do basculante.
Um sábado que será de grandes emoções.
Como eu já podia supor, fiquei deitado ainda por
mais algum tempo, remoendo e revivendo tudo
que tinha acontecido na noite anterior. Eu nem
sei quando havia pegado no sono.
A única coisa que tive certeza é que minha
vida não seria mais a mesma coisa a partir daquele
momento, ou melhor, daquele beijo para frente.
Se antes eu tinha dúvida do turbilhão de
coisas que se passavam em minha cabeça, agora
parece que tudo faz completamente sentido.
Eu gosto de meninos. E isso explica o por-
quê de meus olhos não me obedecerem no ves-
tiário. Insistirem em ficar concentrados quase
estáticos ali, bem no meio do short dos meninos
da minha turma.
Eu me sinto estranho. Não quero perder a
amizade de Tati, mas também não quero mentir
para ela. E não quero complicar nada.
Me levantei. Apenas naquele momento per-
cebi que estava apenas de cueca e sem camisa.
Meu amigo, aqui em baixo, entumecido. Coloco a
mão por dentro da cueca. Seguro mais forte e uma
sensação de prazer misturado com as lembranças
ADRIANO SILVA

da noite anterior me tomam. Marcos beija bem! E


é o gosto de seus lábios que me vem à mente nesse
momento. Tiro ele para fora e antes de começar
a me aliviar a porta se abre e meu pai entra sem
bater. O movimento é rápido e preciso, mas pelo
58
volume que ficou, suficiente para não ser escon-
dido ou disfarçado.
—Vem, precisamos conversar, estamos
aguardando você na sala — disse ele olhando dis-
plicente e fingindo não entender o que eu estava
prestes a fazer. Ao menos isso era um ponto posi-
tivo, quase um código entre nós. Digo nós todos os
homens — claro se você for um homem. — Depois
você termina isso!
Se eu tinha alguma dúvida de que ele não
tinha entendido nada, agora já tinha a dúvida
caída por terra e meu amigo, agora também con-
valescido dentro da cueca, tão envergonhado
quanto eu.
O que será que estava acontecendo. Será
que Marcos havia contado para meu pai que nos
beijamos ou quem sabe Tati contou para o pai e
ele estava na sala querendo lavar a honra da sua
filha. Que ideias estúpidas!, dou por mim. Claro que
nem uma coisa e nem outra. Tati não contaria para
ninguém. Pelo que vi ficou apenas desabafando
no Orkut com uma escrita quase em código Morse.
Era uma indireta. Melhor dizendo. Eram diretas
e certeiras para mim. Mas que culpa eu tenho de
59
não corresponder aquele beijo? E agora me dou
ainda mais conta de que foi péssimo. Horrível.

VINTE E SETE DE AGOSTO


Com Marcos foi diferente. O hálito. O
cheiro do seu corpo próximo ao meu. Só de pen-
sar eu já fico novamente de p...
— Não demore que estamos lhe esperando
– falou meu pai, que por alguns longos minu-
tos esqueci que estava ainda aqui com seu olhar
curioso e reprovador ao mesmo tempo.
— Nós quem?
— Sua vó e Sheila. Quem mais seria? —
jogou as palavras de forma agressiva. Estava
demorando. Augusto nunca conversa comigo por
muito tempo sendo uma pessoa cordial.
Apenas nesse momento que uma luzinha
se acendeu em minha cabeça e me dei conta de
que alguma coisa estava acontecendo. E claro,
tinha a ver com as constantes dores de cabeça de
Sheila e sua ida ao médico.
A porta se fecha com uma batida. Me
levanto e me dirijo ao banheiro. A bexiga está
explodindo. Enquanto a esvazio me encaro no
espelho — É, até que não sou muito feio. Tirando
as espinhas. Tirando esse nariz que é um pouco
grande e essa magreza peculiar adolescente...é.
Não vou mentir.
— Sou feio para caralho! — constato em
alto e bom som.
Escovo os dentes. Jogo uma água no rosto
e ajeito os cabelos com as mãos. Uma camiseta em
cima da cadeira e uma bermuda me aguardam do
dia anterior. Me visto e desço para ver o que está
rolando na sala.

***
ADRIANO SILVA

Minha avó está sentada com as mãos segu-


rando as de Sheila que quando me vê abre um
pequeno sorriso. Logo, percebo que nada está
bem. Será que eles sabem? Claro que não sabem!
Aquela vozinha que nós todos temos den-
60
tro da cabeça fica falando cada vez mais e mais e
quase não consigo ouvir meus pensamentos.
— Bom dia. — digo.
Meu pai expira tão alto que parece que falei
algo que não devia. Sua voz de trovão corta todo
o silêncio.
— Se sente que precisamos conversar com
você.
Obedeço. Me sento ao lado de Sheila que
segura minha mão. Agora eu realmente estou
preocupado.
Apenas neste momento percebo que ela
ainda está de camisola. Uma camisola de cetim
rosa que ela ama e quase sempre está vestida
andando pela casa, mesmo em horários pós
manhã.
Minha avó parece que está se contro-
lando...bem...seria se controlando para não cho-
rar? Então fico ainda mais ansioso com o que está
acontecendo.
— Vocês estão me assustando — digo
— Fique quieto e apenas escute — vô Lilia
pede de forma amena.
Sheila que até aquele momento não havia
61
dito palavra olha para meu pai sentado contrário
a posição que estamos, do outro sofá.

VINTE E SETE DE AGOSTO


— Eu prefiro que você conte — disse ela
com a voz parecendo que iria sumir junto com ela
mesma. Seu corpo me pareceu mais frágil. — Pode
ser apenas uma impressão —, as vozes que todos
temos dentro da própria cabeça decide opinar.
Augusto parece não concordar com isso.
Mas não se opõe.
— Queremos conversar com vocês sobre
um probleminha que estamos passando. Bem...
Vejo que ele está com as mãos sobrepostas
e inquietas. Respira. Parece escolher as melhores
palavras para continuar. Mas meu pai sempre foi
péssimo com palavras e em falar o que quer que
seja.
Sheila aperta a minha mão e minha avó
agora deixa as lágrimas desaguarem livremente
pelas faces.
—Faz um tempo que venho sofrendo que-
das constantes. Sentindo tonturas. Desânimos e
dores de cabeça e pelo corpo – diz Sheila tomando
as apalavras.
Eu logo imagino que possa estar com den-
gue. Talvez com anemia.
— Fomos ao médico hoje buscar os resul-
tados dos exames e Sheila está doente — diz meu
pai no mesmo momento que minha avó dá uma
fungada alta.
— Então ela vai se cuidar e ficará boa nova-
mente — digo.
Sheila aperta minha mão. Percebo que elas
estão frias e um poucos esbranquiçadas nas pon-
tas dos dedos. Estranho, pois estamos em maio.
Quase no fim do mês e está fazendo um calor de
ADRIANO SILVA

fritar ovos no asfalto.


— Não é tão simples assim, meu neto.
— Eu estou com uma doença rara, Fred —
diz Sheila.
—Tudo ficará bem, meu amor. Você irá se
62
curar — acalma meu pai num tom de voz que até
me surpreendo.
— Você sabe tão bem quanto eu que essa
doença irá avançar cada dia mais e mais, até que...
até que eu não consiga mais nem respirar sozinha.
Eu fico assustado. Ouço meu coração pul-
sando cada vez mais rápido e é como se pudesse
escutar cada batimento nos ouvidos.
Sheila agora começa a chorar e não sei o
que fazer a não ser abraçá-la.
— O que você tem, Sheila? — pergunto
agora sentindo minha voz vacilar.
— Esclerose múltipla — ela responde
baixinho. Sinto as lágrimas que caem de seus
olhos molharem minha camiseta e a abraço mais
forte.
Eu não sabia o que era Esclerose múltipla.
Mas sabia que não aguentaria mais uma perda
em minha vida.
Sempre tenho dificuldades para expressar
o que eu sinto.
Eu digo baixinho em seu ouvido a aper-
tando um pouco mais forte entre meus braços.
— Eu te amo.
63
Nenhuma palavra naquele momento mais preci-
sou ser dita. Não sei quanto tempo ainda perma-

VINTE E SETE DE AGOSTO


necemos desse jeito. Mas pareceu uma eternidade.
CAPÍTULO 06

O dia parece mais quente. É um mês de


maio típico, eu diria. Não tive uma boa noite de
sono. Acabei ficando muito triste com a conversa
de ontem à noite.
Do meu quarto, depois que não havia mais
nada a ser falado e o silêncio se tornou constran-
gedor, era possível escutar o choro abafado de
Sheila. Meu pai tentava acalmá−la.
Acabei fazendo algumas pesquisas pela
internet e descobri que Esclerose múltipla é uma
doença que destrói o sistema nervoso central e
acarreta vários problemas que afetam diretamente
a qualidade de vida de seus portadores. Nos
casos mais graves a pessoa pode parar de falar e
andar. Isso me deixou muito triste e preocupado.
Sheila tem uma vida bem ativa e nem sei o que
significaria para ela se tornar uma pessoa depen-
dente de outras, mas pelo que li este seria o menor
dos problemas. Dores. Dores todo tempo. Isso que
a esclerose faz.
Visto o uniforme. Recolho todo material
que está espalhado na escrivaninha. Escovo os
dentes e me encaro no espelho.
— Ai, meu Deus!
Exclamo para mim mesmo horrorizado
de que tenho outros assuntos ainda mais urgen-
65
tes para resolver. Não que a doença da minha
madrasta não seja. Não é isso que estou dizendo.

VINTE E SETE DE AGOSTO


Claro que é um puta problema. Mas e o Marcos?
O beijo de ontem!
— Claro que não foi um sonho né...
Aí me lembro que não é somente com Mar-
cos que tenho que lidar. Digo, a situação. Tem a
Tati e logo vamos descobrir.
Desço as escadas de duas a duas e meu pai
já está sentado à mesa com a cara enfiada no seu
jornal.
Augusto é meio averso a tecnologias e acho
tão interessante que ainda existem pessoas que
leiam jornais pela manhã. Claro que existe, porem
meu pai ainda é um homem relativamente jovem
e sei lá, talvez as pessoas mais antigas tenham
mais dificuldade com tecnologia e não aceitem
bem que tudo está na tela do celular, mesmo que
seja um Nokia “tijolo”.
Minha avó está sentada passando manteiga
em um pedaço de bolo, a mesa está impecável,
mas um clima pesado paira no ar.
— Bom dia.
Apenas minha avó responde. Novidade...
é assim todos os dias.
— Sheila já saiu?
Pergunto me sentando e me servindo de
leite para preparar o achocolatado. Logo, percebo
que foi uma pergunta infeliz. Óbvio que Sheila
não havia saído da cama e nem iria caminhar hoje.
Por tudo, o diagnóstico estava sendo como
um atestado de morte. Mesmo que com um acom-
panhamento e tratamento possa se levar uma vida
com qualidade em nenhuma página da internet
encontrei algum artigo que falasse sobre cura.
ADRIANO SILVA

Assim que chegasse da escola iria pesquisar mais


um pouco.
— Ela ainda está no quarto, meu amor.
Minha avó responde de forma carinhosa
e pesarosa ao mesmo tempo. Meu pai nem se dá
66
ao trabalho de retirar os olhos dos jornais. Prova-
velmente lendo a coluna de esportes. Jornal para
ele é somente a coluna de esporte. Não poderia
ver isso pela TV? Pelo celular seria impossível,
o aparelho está escangalhado de velho, por um
milagre ainda funciona.
— Bora logo com isso aí que já estamos em
cima da hora, Fred!

***
Meu pai vai andando à minha frete. Não
andamos lado a lado, assim evitamos manter
qualquer tipo de diálogo. Falar o quê um com o
outro? Tem sido assim faz tanto tempo, que nem
me lembro mais quanto. Às vezes desconfio que
sempre foi assim desde sempre. Imagine duas
pessoas que sequer se parecem fisicamente ter
algo em comum para conversar nas duas qua-
dras de trajeto.
De tempo em tempo ele, Augusto, olha
para trás para ver se estou o acompanhando.
Ajeito ainda mais os fones de ouvido, que apesar
de desligados me ajudam a não ter que come-
çar uma discussão ou responder alguma ordem
67
para quando retornar da escola. Na verdade, ele
quando se dirige a mim é sempre para cobrar

VINTE E SETE DE AGOSTO


alguma coisa. É como se eu não existisse, não
fosse seu único filho. Realmente não sou.
— Direto para casa! — diz ele. Apenas
meneio a cabeça positivamente.
Marcos está sentado na calçada me espe-
rando, como sempre. Parece mais sério. Eu estou
bem sem graça e à medida que me aproximo sinto
que minhas pernas parecem vacilar.
Eu sempre tive essas dúvidas a respeito da
minha condição sexual. Não é algo que me deixa
frustrado. Não por mim. Eu sou assim e isso me
é bem natural.
Marcos sorri assim que fico em pé, frente
a ele. A luz do sol parece lhe atrapalhar a me ver
bem e me posiciono melhor, projetando uma som-
bra sobre ele, que deveria se levantar para seguir-
mos para a escola. Seu cabelo brilha como labare-
das e meu coração também parece se incendiar.
— Olá Fred?
Percebo que sua voz vacila. Um pouco de
hesitação, as palavras parecem que levaram uma
eternidade para chegarem aos meus ouvidos. Ou
fui eu quem custei a decifrá-las para a resposta.
Resposta essa que não veio.
Estendo-lhe a mão e o puxo num movi-
mento preciso o colocando de pé.
— Olá Marcos — lhe dou um sorriso de
cumplicidade.
Vamos seguindo pelas ruas em silêncio.
Sinto que temos algo para falar um paro o outro.
Porém, ninguém quer ser o primeiro. Ouço nossos
passos que parecem ritmados. Lado a lado.
— Você está chateado comigo por ontem?
ADRIANO SILVA

— o silêncio é quebrado.
— Por que deveria estar, Marcos?
— respondo.
Fico imaginando o que possa ter passado
na cabeça de Marcos durante toda à noite depois
68
que saiu apressado do meu quarto.
Será que ficou deitado, rodando pela cama
sem conseguir pregar os olhos? Eu poderia lhe
perguntar, mas e a coragem para fazê-lo.
— Não sei. Eu nunca tinha beijado um
menino antes, — diz ele baixinho, apesar de estar-
mos sozinhos num raio de mais de cem metros
— eu fiquei com medo que me odiasse, sabe? Sua
amizade é muito valiosa pra mim.
Eu escutava e encarava seus olhos casta-
nhos tão intensos.
— Acho que foi a coisa mais linda que já
aconteceu comigo até hoje, Marcos.
— Sério?
— Muito sério.
Nossos ombros se encostaram por alguns
breves segundos e uma onda eletrizante percor-
reu todo meu corpo, Marcos deu um sorriso tão
grande que se o mundo acabasse agora, estaria
tudo bem. Parece a coisa mais clichê do mundo.
Mas não disseram uma vez em algum lugar que
o amor é clichê?
— A gente pode conversar depois da aula.
O que acha?
69
— Acho que depois da aula não vai dar.
Você pode ir lá para casa, deixe-me ver... quem

VINTE E SETE DE AGOSTO


sabe depois das dezesseis, o que acha?
Ao sair da escola eu precisarei ir direto
para casa e ajudar minha avó com alguns afaze-
res domésticos. Sheila geralmente cuidava desta
parte, porém o fim de semana foi de grandes sur-
presas. E nem foram surpresas boas.
— Por mim está okay — respondeu ele me
parecendo desapontado.
— Não é porque não queira, mas acontece-
ram algumas coisas em casa e precisarei ir direto
para lá. Depois lhe conto.
Com mais calma explicarei a ele o que
havia acontecido no dia seguinte à que foi embora
quase correndo lá de casa.
A casa de Tati se aproxima. Ela no portão,
como sempre. Marcos me encara sério e antes que
diga alguma coisa eu lhe interrompo.
— Com toda certeza!
— Mas eu nem disse nada.
— E precisa?
Tati parece estar analisando nós dois. Fica-
mos parados como duas estátuas até que Marcos
abre os braços.
— Então, vai ficar aí parada?
—Bom dia para você também,
engraçadinho!
Eu estou completamente sem saber como
agir. Sabe quando estamos fazendo alguma coisa
sozinho e de repente sentimos que alguém nos
observa e é como se ficássemos todo desconfor-
tável e as coisas começassem a desandar? Pois é
bem assim que estou me sentindo.
— Bom dia, Tati – cumprimento e é como se
ADRIANO SILVA

as palavras tivessem ficado engasgadas saindo um


pouco bem mais alto do que eu calibrara. Marcos
me encara com um leve sorriso e Tati parece des-
confiar que ele saiba de alguma coisa que tenha
rolado.
70
Começamos a andar em direção à escola.
Temos ainda um bom tempo de folga antes das
aulas iniciarem, mas caminhamos monossilábicos.
Marcos me dando olhadinhas e sorrisinhos e eu
sem saber bem como me comportar. Não sei, sin-
ceramente se continuo em silêncio, se devolvo o
sorriso em código para Marcos. Na dúvida acabo
lhe retribuindo o sorriso com uma piscada de
olho.
— Está rolando alguma coisa que não tô
entendendo bem..., mas se eu estiver atrapalhando
vocês, pelo amor de Deus, me avisem — resmun-
gou Tati sem nos encarar. Jurei que nem estava
nos observando, mas claro, a visão periférica dela
captou muito bem.
— Que bobagem, Tati! — me apresso em
dizer.
—Bobagem nada. Você e o Marquinhos
estão de piadinhas e eu tenho certeza que é
comigo. E não se faça de sonso, por favor.
— Nem estamos fazendo piadinhas, Tati.
Na verdade, nem falamos nada nesse trajeto todo
ainda — diz marcos — vocês dois que estão estra-
nhos. Nem se olham. Conversam sempre muito
71
e hoje...
Marcos é um exímio dissimulado, mas devo

VINTE E SETE DE AGOSTO


admitir que é bem inteligente, assim, ao menos,
Tati não ficará pensando que contei alguma coisa e
tudo segue em paz. A única coisa que não preciso
agora é lidar com uma amiga e um beijo roubado
nada correspondido e um amigo que roubou um
beijo todo correspondido.
— Eu não conheço vocês? Aliás a vida toda
né...
— Gente, eu nem estou falando muito
por causa de uns problemas lá em casa, mas que
depois eu conto direitinho pra vocês — de fato
não era de toda uma mentira. É apenas uma meia
mentirinha. Usar a doença de Sheila para escapar
de uma discussão não é muito certo, mas como
disse, não é de todo uma inverdade. Eu estou real-
mente bem preocupado com a minha madrasta.
—Eu sinto muito pelo que está aconte-
cendo — diz Tati.
Imagino que a minha avó tenha falado
alguma coisa para a mãe de Tati. Como são amigas
de muitos anos não me surpreendo — vai tudo
ficar bem — completa docemente me colocando
uma das mãos nos ombros.
E eu queria tanto que isso fosse realmente
verdade. Queria acreditar que tudo ficará bem.
Que as coisas serão como sempre foram. Mas algo
já estava mudando. Nada seria como antes. Nunca
mais seria.
— Obrigado, Tati — digo eu.
— Parece que a única pessoa que não sabe
o que está acontecendo aqui sou mesmo eu — se
ofende Marcos. Como havíamos de nos encontrar
mais tarde, não vi nenhum motivo para lhe expli-
ADRIANO SILVA

car o que estava acontecendo. Estamos de frente


para a escola e prestes a atravessar a rua.
— Depois conversamos Marquinhos, aí te
falo o que está havendo, mas não se preocupe,
não é nada comigo, mas me envolve direta e
72
indiretamente.
Marcos concorda levemente com a cabeça.
Assim que chegamos do outro lado, Tati
sai apressada abrindo a mochila e já bem à frente
se vira para nós.
— Vou à biblioteca entregar uns livros.
Vejo vocês lá dentro da sala — grita e assim que
se vira dá uma topada em Marcelo.
— Muito bom dia, Tati!
— Há não, você! Como ter um bom dia já
começando assim em plena manhã?
— Mas você não me dá mesmo um des-
conto hem, Tati!
Marcos e eu ficamos observando a cena
que dura poucos segundos. Tati sai andando e
deixa Marcelo falando sozinho. Antes que ele se
dê conta de que estamos quase no seu campo de
visão, puxo Marcos pela mochila e seguimos por
um dos corredores, mas não adianta muito.
— Olha Fabio, quem temos aqui — diz
Marcelo.
— O casalzinho mais lindo da escola — iro-
niza Fábio.
— Me erra! — digo já preparado para acer-
73
tar um murro na cara de Marcelo, caso ele parta
pra cima.

VINTE E SETE DE AGOSTO


Todos estes anos sempre correndo dos
valentões da escola me cansaram. Chegou final-
mente a hora de enfrenta-los. Marcos está em
silêncio ao meu lado. Alguns alunos olham
curiosos, mas como a sirene de aviso do início
da primeira aula soou acabam não dando muita
importância. Marcelo parece surpreendido e sinto
minha perna bambear um pouco.
— O que você disse? Acho que não estou
escutando direito.
— Então o problema é teu, Marcelo. Pro-
cure um otorrino — vocifero agressivo. Nem eu
me reconheço e, pelo que parece, Marcelo e Fábio
também se surpreendem.
— Aguarde que vou...
— Você vai o que, seu filho de uma puta?
Vai me bater? Vai quebrar algum objeto meu? Vá
em frente que estou esperando, seu delinquente
juvenil!
— Mas ele está atrevido hoje — provoca
Marcelo se aproximando um pouco mais de mim.
— Você cale a sua boca que todo mundo
sabe que é um babaca apaixonado pela menina
mais gata da escola e que ela caga pra você.
— Vamos embora, me puxa Marquinhos.
Marcelo segura minha camisa pela gola
com a mão fechada. Consigo ver sua íris preta
reluzindo ódio. Fábio está vermelho e um pequeno
círculo de alunos começa a se formar.
— Solta ele, Marcelo! Agora!
Nos viramos para procurar de onde vem
a voz.
Ana Maria sai de trás de uns alunos e só
ADRIANO SILVA

então percebemos que estava por ali fazia algum


tempo.
— Quero os quatro na direção, A−G−O−
R−A! — ordena ela nos dando as costas e não sem
antes concluir — e vocês, para a sala se não qui-
74
serem vir junto!
***
Ana Maria sentou-se na sua cadeira, fica-
mos de frente para ela. Marcos estava ao meu lado
e Marcelo e Fábio separados por um muro invisí-
vel que nos colocava quase num campo de guerra.
— Quem vai me explicar o que estava acon-
tecendo? Cedo e iniciamos o dia assim. Quem
começa a falar então?
— Dona Ana Maria foram eles que come-
çaram. Assim que passamos pelo corredor come-
çaram a nos provocar.
— Mas é muito sínico mesmo!
— contradiz Marcos a Marcelo que esboça um
sorriso provocativo.
Eu estou escutando, mas ainda sem
nenhuma reação. A única coisa que me falta
mesmo hoje é uma advertência. Meu pai iria sur-
tar em casa.
— Dona Ana, foi tudo um grande mal
entendido — digo afim de contornar toda a situ-
ação e escapar de uma sova em casa. Fábio, por
incrível que pareça resolve concordar, para minha
surpresa.
75
— Ele tem razão Dona Ana, foi apenas uma
brincadeira de amigos.

VINTE E SETE DE AGOSTO


— Olha meninos, eu sei bem o que vi e
ouvi. Precisam se comportar como pessoas res-
ponsáveis, o mundo lá fora não é como imaginam
que seja. É cruel e bem diferente dos filmes ame-
ricanos que assistem na Sessão da tarde. Poderia
chamar os pais de vocês para uma conversa...
— Por favor Dona Ana Maria, não é neces-
sário se apressa Fábio — Se eu já estava atônito
com o comportamento de Fábio, agora então
estava realmente bem curioso. Se estava tão
agressivo e valente conosco nos corredores, agora
parecia um ratinho encurralado pelo gato. Mar-
celo estava prestes a abrir a boca, mas Fábio o
interrompeu apressadamente — não será preciso,
não é Marcelo? Prometemos que nada disso irá
acontecer novamente.
— Sim, prometemos – concordou Marcelo.
Marcos me olhou e nos comunicamos pelo
olhar. Ele também não estava entendendo nada,
mas era sim melhor que nossos pais não fossem
chamados à coordenação.
— Então está bem — disse Ana Maria.
Ficou calada por um tempo ponderando o que
iria fazer em relação a situação. — Como já ini-
ciou as aulas e não quero que percam mais tempo
vocês podem voltar à sala de aula, mas quero que
façam algo por mim.
— Eu sabia que não seria assim tão fácil –
cochichou Marcos.
— O que disse, senhor Marcos? – trovejou
Ana – talvez uma suspenção seja bem mais inte-
ressante, não é?
— Não senhora...
ADRIANO SILVA

Marcelo parecia ter segurado a respiração


por muito tempo e ainda não havia soltado o ar.
Fábio me olha como se suplicasse uma interven-
ção. Não estou entendendo nada, mas concordo
que não é uma boa alternativa. Aliás, péssima
76
alternativa comunicar nossos pais.
— Dona Ana, por favor – começo a falar e
sou interrompido antes de concluir.
— Quero que se organizem, os quatro, para
que façam uma palestra para os alunos do sétimo
ano em duas semanas. Todos os quatro ou tere-
mos que conversar novamente e na presença dos
seus pais dessa vez.
Parecia fácil, mesmo não sendo algo que eu
goste de fazer — falar em público — poderíamos
tirar facilmente de letra. Uma palestra...
— Essa palestra será sobre qual assunto,
Dona Ana?
— Sobre algo que sei que todos os quatro
entendem muito bem; violência.
Um tema interessante, confesso. Marcelo
me olhou como se fizesse uma análise do que se
passava em minha mente. Marcos permanecia em
silêncio com a cabeça um pouco baixa.
—Está bem, Dona Ana Maria... – surpre-
ende Fábio com a voz embargada.
— Agora é com vocês! Quero que arrasem
com essa palestra! Tem bastante tempo para se
prepararem. Vou deixar a salinha da biblioteca
77
agendada para vocês a partir de amanhã. Boa
sorte — disse em meio sorriso — sanem essas dife-

VINTE E SETE DE AGOSTO


renças e trabalhem em equipe. Agora vão para a
sala e rápido — disse em pé à porta nos enxotando
— Me surpreendam!
Ah pronto! — pensei — Marcos eu sei que
é bem inteligente, mas Fábio e Marcelo...será um
desafio mesmo.
Caminhamos os quatro em silêncio até a
sala. Marcelo parecia indignado em ter que apre-
sentar o que quer que fosse, mas pelo lado posi-
tivo, nenhum pai ou mãe foi chamado à escola.
“Será uma pegação” de mico, as vozes da minha
cabeça pareciam gritar.
— O que importa, daria certo! — pensei
alto antes de abrir a porta da sala de aula ao fim
do corredor. Todos se voltaram para à porta.
Explicamos ao professor que estávamos com a
Diretora. Ouvimos alguns risinhos e Tati estava
já com aquele olhar bem curioso para saber o que
havia acontecido.
— Te contamos depois, no intervalo —
Marcos disse assim que passou por ela na fileira.
Eu nem sei se conseguia encarar quem quer que
fosse. Me sentei e fiquei o restante da aula e as
próximas apenas de corpo presente.

***
No intervalo Tati vem andando apressada-
mente atrás de mim pelo corredor. Tenho a certeza
que quer conversar comigo em particular. Mal
sabia ela que nem precisava correr atrás de mim.
Marcos também já havia percebido que precisá-
vamos conversar e ficou conversando com outra
colega de turma para que ficássemos à vontade.
ADRIANO SILVA

— Queria falar com você sobre sábado —


disse ela já ao meu lado. Concordei com a cabeça
permitindo que continuasse a falar, mas ela ficou
em silêncio até sairmos do corredor e seguir para
debaixo de uma das árvores que ficam no pátio,
78
próxima as quadras poliesportivas.
Nos dois estávamos desconfortáveis um
com o outro. Não que houvesse alguma coisa
muito errada com o que aconteceu, na verdade,
para mim não significou nada e poderíamos seguir
nossas vidas sem precisar debater este assunto.
— Olha Tati, você me surpreendeu, mas
sinceramente — digo ponderando as palavras que
parecem se atropelar umas nas outras dentro da
minha boca — eu não estou na mesma vibe que
você, saca?
— Ah, sim, e vai dizer agora que o pro-
blema não sou eu e sim você e aquela mesma
baboseira que todos os homens dizem — diz ela
com os olhos fixos nos meus. Perece me escanear
a procura de alguma coisa — Não precisa dizer
mais nada, Fred. Eu só queria pedir desculpas
mesmo.
— E eu aceito suas desculpas. Mas não
quero estragar a nossa amizade. Você é uma
amiga muito querida, e não tem nada a ver a
gente, você sabe...ficar se beijando.
— Eu sempre achei, Fred que você sabia
que eu gosto de você. Isso sempre ficou muito
79
claro, mas eu entendo que não seja o suficiente-
mente atraente para você.

VINTE E SETE DE AGOSTO


Fico novamente sem reação. Em momentos
assim fico sem saber o que dizer. Me sinto tão
distraído, mas não quero verbalizar isso e deixar
ainda pior e mais constrangedor do que já está
sendo justificar porque não rola de a gente ficar se
pegando. Tati é uma ótima pessoa, mas nunca a vi
com outros olhos. Aliás eu acho que nunca olhei
nenhuma mulher com nenhum outro interesse
que não fosse de amizade.
— Tati, você é linda, tem uma penca de
meninos apaixonados por você aqui mesmo na
escola e tenho certeza que poderiam ser muito
melhor partido que eu. Eu sou uma confusão
danada — respiro fundo — sempre vou ter você
como uma amiga que eu amo indefinidamente
para todo sempre — ela sorri — mas eu nem sei
o que se passa aqui dentro do meu coração. E lá
em casa as coisas não estão muito bem. Sheila
está adoentada e mesmo que a doença esteja no
início, em algum momento a gente terá que fazer
algumas escolhas e priorizar os cuidados com ela.
— Eu entendo, Fred, mas eu sei que no
fundo o problema que você tem nem é definitiva-
mente um problema, mas eu estarei aqui sempre.
Quando quiser conversar a gente pode sentar e
conversar até as horas parecerem infinitas e no
seu tempo, no seu mundo.
— Eu sei. — Assenti.
— O amanhã é sempre hoje, Fred. Talvez
nem tenhamos todo o tempo do mundo por ser-
mos jovens, como diz naquela canção, sabe? Então
é hora de viver o agora.
— Você não é esfinge, mas está cheia de
ADRIANO SILVA

enigmas — a fiz gargalhar e por fim estávamos


abraçados.

80
CAPÍTULO 07

Caminhando para casa seguimos os três,


quase que em passos sincronizados. Tati me pare-
cia mais leve e tudo estava como sempre normal-
mente foi. Marcos falou sobre o projeto que deve-
ríamos apresentar ao sexto ano como castigo pela
discussão nos corredores.
— Mas o pior você nem imagina, Tati —
disse ele não se aguentando mais para fazer os
comentários — O Fábio até concordou com o Fred,
isso depois de quase se estapearem lá na entrada
assim que você deu uma lavada no Marcelo.
Eu achei aquilo também muito estranho.
Fábio concordando comigo em alguma coisa
sendo que a maior parte do tempo é mais agres-
sivo que o Marcelo.
— Pois eu não acredito que perdi essa
— respondeu Tati curiosa.
— Você escapou foi de uma boa, sabia? Eu
nem tô acreditando que teremos de apresentar um
trabalho sobre violência.
— Pois achei foi é bem coerente — disse
ela — vocês meninos realmente demoram muito
para entender as coisas.
Parei rapidamente de andar e eles me
acompanharam.
— Como assim? Perdemos alguma coisa?
— Perderam alguma coisa...fala sério né
Fred, você nem consegue perceber que o Fáb...
— Interrompe a frase olhando para o Marcos que
se surpreende imediatamente.
ADRIANO SILVA

— Que tem eu, com essa história?


Tati muda imediatamente de assunto, mas
me deixa com uma leve desconfiança. Melhor,
uma desconfiança imensa. Será que ela sacou
alguma coisa?
82
— Meninos, não me digam que nunca
notaram que o Fábio sempre aprece para as aulas
com várias manchas roxas nos braços. As canelas,
quando está de bermuda, exibe sempre vergões
enormes. Nunca perceberam isso?
— Já vi algumas marcas — respondi cho-
cado com a revelação.
Marcos parecia tão surpreso quanto a
mim. Como poderíamos ficar reparando marcas
e hematomas no Fábio?
— Eu sempre achei que eram coisas de
futebol, ou daquelas brincadeirinhas ridículas
que fica com Marcelo — diz Marcos.
Volto a andar e coloco minha mão por trás
das costas dos dois impulsionando-os para que
me acompanhem. Olho o relógio suspenso na
praça que marca quase treze horas. Como com-
binado com meu pai, preciso ajudar minha avó.
— Então, eu já o vi trocando de roupa no
vestiário para as aulas de educação física e jurava
que aqueles roxos nas pernas era exatamente por
causa desses esportes violentos que ele, com os
demais meninos da sala, parecem amar — paro
de falar tentando me lembrar de alguma outra
83
situação — então é por isso que ele é o primeiro
a entrar no vestiário e o último a sair.

VINTE E SETE DE AGOSTO


— “Elementar, meu caro Watson” ... – diz Tati
referenciando uma série de livros de investigação
— ele não quer que vejam as marcas. Durmam
com essa e boa sorte com o trabalho em grupo.
— Boa sorte mesmo, tendo o Marcelo
envolvido com qualquer coisa já será algo que se
precise de um esforço sobre-humano.
Tati dá uma corridinha à frente e se des-
pede sem nos olhar.
— Vocês dois não façam nada que eu não
faria, okay!? E dá um abraço na Sheila e na sua
avó por mim!
— Não tô entendendo nada.
Marcos diz me encarando com um sorriso
confuso.
— Não se preocupe, eu também não estou
entendendo muita coisa. Acha que ela desconfia
de alguma coisa?
— Desconfiar de que se nem tem nada
— digo eu.
No fundo eu sei que tem muita coisa.
Tati havia dito lá debaixo da árvore que eu custo
a perceber as coisas, mas agora eu já percebi.
— Será que está tão evidente que nos tra-
tamos diferente hoje o dia todo, Marcos?
— Nos tratamos foi ótima, Fred. Eu te trato
diferente todos os dias...
— Ah, Marcos, se esqueceu que eu sou
uma confusão? — ele sorri e seu cabelo parece
se incendiar ainda mais ao sol. — Te espero logo
mais lá em casa, tá bem — digo lhe bagunçando
os cabelos
— Sabe que eu não perderei isso por nada,
ADRIANO SILVA

né?
— Eu sei — digo enquanto se afasta
olhando todo tempo para mim.
Me sinto como se estivesse com uma chuva
de estrelas caindo sobre meu corpo.
84
***
Vou caminhando pensando em como me
sinto feliz. Dá para acreditar que tudo pode se
desenrolar de uma forma bem tranquila? É, real-
mente não tão tranquila assim né...
A sociedade é muito preconceituosa, nem
tenho que pensar sobre isso agora, mas preciso
tomar cuidado com meu pai. Imagina só se ele
sonhar que eu gosto de meninos? No mínimo uma
surra e no máximo me colocará para fora de casa.
Claro que sei que isso nos dias de hoje é
muito retrocesso, mas o que posso esperar de
um pai que sequer aceita que o mundo se trans-
formou, imagina entender que não importa com
quem eu me relacione, desde que me sinta feliz.
Sempre me senti diferente dos demais
meninos, mas nesses últimos dias eu consigo
olhar para dentro de mim e entender melhor. No
fundo eu não sou essa confusão toda.
As ruas estão com crianças correndo de um
lado para o outro. Várias escolas próximas nesse
bairro e nesse horário quase todas as crianças
estão ou saindo para ir à escola ou chegando em
85
casa para almoçar.
Jovens à toa sentados na esquina. Senhoras

VINTE E SETE DE AGOSTO


caminhando apressadas para pegar o ônibus e ao
passo que me aproximo mais de casa vou perce-
bendo coisas que nunca houvera antes notado.
O caminhão coletor de lixo ainda não pas-
sou. Um cheiro desagradável de chorume chega
às minhas narinas. Cães correm com sacos de lixo
na boca, enquanto outros espalham ele todo dos
latões por toda calçada. Um homem está agachado
recolhendo recicláveis. Meu coração acelera de
imediato assim que me dou conta de quem é. Ele
está hoje com a barba desgrenhada e o cabelo em
tufos sujos. Levanta a cabeça e seu olhar parece
me retalhar. Se antes eu estava feliz e pensando
em Marcos, agora sinto apenas um arrepio tomar
conta de todo meu corpo.
Estamos de lados opostos, mas terei que
passar mesmo assim por ele. Finjo que não estou
o vendo e aperto o passo, minha casa está logo à
frente o que me proporciona um certo alívio.
Quem é esse homem? Por que me encara
dessa forma?
Quando chego ao portão me sinto mais
calmo e solto a respiração aliviado. Vó Lilia
abre a porta quando houve o barulho do trinco
rangendo.
— Viu como sei quando sempre chega?
— Hoo, sim Vó, a senhora é uma adivinha!
— sorrio.
Me passa pela cabeça perguntar a minha
avó quem é aquele homem estranho, mas tomo
cuidado para não dizer nada que a venha deixar
preocupada. O que não precisa neste momento é
de mais um problema.
ADRIANO SILVA

— Vó, a senhora conhece aquele homem


ali do outro lado da rua?
— Você diz aquele que está separando as
latinhas de cerveja? — assinto positivamente —
não sei quem é, mas ele sempre está por aqui às
86
segundas, terças e sextas para separar o reciclado
dele.
— A senhora não acha estranho ele sempre
encarar as pessoas? Sempre vejo ele encarando as
pessoas, sabe?!
— Eu nunca notei, Fred, impressão sua
não? Você acha que ele pode ser uma pessoa que
está rondando as casas para roubar? Aí meu Deus,
Fred, será que quer roubar a nossa casa. A gente
com esse portãozinho tão baix...
— Não, vó! Apenas perguntei por achar ele
estranho. A senhora não o acha esquisito?
— Eu não sei, não havia botado atenção
— responde ela passando a chave à porta.
Não quero deixar minha avó encucada.
Como ela está tão velhinha, fica mais dentro de
casa que nem deva ter se atinado a respeito do
homem. Imagina como ficaria preocupada se eu
contasse que este mesmo homem já me deu um
galope a pé quando fui de bicicleta no Morro do
Cimento. Mudo logo de assunto, o que não pre-
ciso agora é do meu pai me proibindo de vez de
ir ao Morro.
— Cadê a Sheila?
87
— Ela ainda está no quarto. Levantou
apenas para tomar o café e novamente se deitou.

VINTE E SETE DE AGOSTO


Disse que está se sentindo desanimada e que des-
ceria assim que você chegasse para o almoço.
Subo as escadas de duas em duas, é um
hábito, passo pelo meu quarto deixando a mochila
sobre a cadeira, troco o uniforme por um short
e uma camisa fina e vou até o quarto do meu
pai e Sheila. A porta está entreaberta e a cortina
fechada. Dou umas leves batidas antes de me
anunciar. Sheila não responde.
Entro e abro parcialmente as cortinas. O
sol invade o quarto, Sheila está deitada coberta
com o edredom até o pescoço, mesmo fazendo
um calor tremendo.
— Oi — diz ela
Noto que parece mais velha, pode ser ape-
nas uma impressão, quem acorda bem? Mas na
verdade, eu sei, passa quase das treze horas.
— Olá — respondo — vovó está lhe espe-
rando para o almoço. Então levante, jogue uma
água no rosto e vem comigo.
Ela puxa um pouco mais o edredom para
mais próximo do queixo. Parece uma criança
pequena quando a mãe vem acordar cedo para
fazer alguma coisa importante ou ir para a escola.
Me sento na beiradinha da cama e coloco minha
mão nos seus cabelos.
— Vamos Sheila, não pode ficar aqui o dia
todo, vem almoçar comigo — ela me olha séria e
ao mesmo tempo confusa, parece refletir sobre e
por fim concorda.
— Estou indo querido, pode ir descendo
que já, já desço.
Sheila segura minha mão e percebo que está
ADRIANO SILVA

um pouco fria o que me parece de fato estranho.


— O que foi?
— Sua mão está um pouco gelada, mas sua
testa está quente.
— Normal agora, será assim sempre.
88
Eu havia pesquisado algumas coisas sobre
a doença, algumas matérias e artigos falavam que
o processo de avanço da doença inclui perda de
fala, dormência, perda da força, fadiga e depres-
são. Basicamente é o corpo contra ele mesmo.
Uma doença autoimune.
— Mas se cuidando e... vamos cuidar de
você, terá uma vida saudável — disse eu mais
para me convencer disso que para Sheila. Com
toda certeza, meu pai não havia dito tudo que os
médicos os disseram, mas a internet já foi inven-
tada, logo tudo que se queira saber está a um cli-
que de distância.
— Você é um garoto muito especial — diz
ela — vai ter uma vida e um futuro brilhante,
amo muito você. Agora desce para que eu possa
levantar e me trocar.
Sheila prefere ignorar o assunto sobre sua
doença neste momento. Eu respeito. Este é seu
momento, a maioria de nós nem conseguirá ima-
ginar o que é ter a vida totalmente mudada por
um diagnóstico. Por mais que a medicina esteja
em constante desenvolvimento, com novas drogas
e tratamentos surgindo a todo momento, eu sei
89
que não é fácil ter uma doença incurável e que
vai limitar a sua vida em todos os sentidos, não

VINTE E SETE DE AGOSTO


somente física, mas como também psicológica e
social.
— Estarei esperando você e não irei comer
nenhuma batatinha antes que desça!
Ela me devolve um sorriso sincero.
— Acredito, Fred! Todo mundo sabe que é
louco por batatas fritas, mas já estou indo mesmo.
Só me dar o tempo de me trocar.
Sheila é incrível e sinto uma admiração
profunda por ela. Me sinto impotente.
— A vida não é justa! – eu disse.
— Se acostume, afinal ninguém nunca
disse que seria.
Ela bagunça meus cabelos, me levanto
deixando-a em silêncio olhando a luminosidade
entrar pela janela projetando-se sobre o tapete
purpura.
A vida não é mesmo para amadores...
Eu ainda não sabia naqueles dias, mas
seriam constantes as idas de Sheila aos hospitais
públicos. Muitos remédios receitados para impe-
dir as dores e que os anticorpos atacassem o pró-
prio corpo. Sheila teve um avanço de Esclerose de
forma rápida e progressiva. Quase não saía mais
de casa. Se tornou muitas vezes esquecida. Crises
de ansiedade se tornaram constantes.
A relação de Augusto com Sheila se dete-
riorava conforme a doença avançava.

***
Após o almoço meu corpo dá sinais cla-
ros que algo não estava muito certo. Esse algo se
chama ansiedade. Não queria despertar nenhuma
ADRIANO SILVA

suspeita, mas não via mais a hora de Marcos


chegar.
Pode parecer muito estranho para quem
está lendo. Imaginar que solucionei grandes
problemas em um piscar de olhos com um beijo.
90
Claro que não é tão simples assim, mas nunca me
vi como um garoto que é diferente dos demais.
Na verdade, me acho até muito comum. Gosto de
videogames, de pipoca, de filmes de super-heróis,
então não existe nada errado em gostar de meni-
nos, não é?
As coisas são simples. Não precisam de
complicações. Eu não vou perder tempo me
martirizando sobre isso. Todo mundo deveria se
apaixonar por pessoas, não por órgãos sexuais. Li
sobre isso em uma matéria em um fórum na inter-
net, sendo bem honesto, me faz muito sentido.
Lógico que é um problema lidar com isso
em uma família que tem um homem das caver-
nas como provedor do lar. Meu pai. Não sei se
minha avó encararia bem se eu...bem se eu fosse
gay. Eu sou gay? Beijar um menino me faz gay?
Não estou dizendo, já me confundi todo. Sou uma
verdadeira confusão.
Augusto não iria levar isso de boa. Nem
para ser um pai decente ele serviu nestes quase
dezoito anos. Melhor coisa que faço é manter isso
em segredo.
“Minha casa minhas regras” é isso que
91
Augusto diz sempre. Mesmo que a casa não seja
realmente dele, mas o sentido era que enquanto

VINTE E SETE DE AGOSTO


eu dependesse financeiramente dele, teria que
seguir suas regras.
Como se não bastasse nossa relação quase
inexistente e o fato de projetar suas ambições em
minhas costas, teria agora também o agravante
de Sheila estar doente e minha avó cada dia mais
velhinha. O que de certa forma, direta ou indireta-
mente, tornava tudo muito mais delicado. Então,
tomar cuidado para que Augusto não descubra
que eu gosto de meninos é mais que uma ques-
tão de manter tudo tranquilo em casa, mas como
também minha integridade física.
Não quero tomar uma surra e se me colocar
para fora de casa nem tenho para onde ir. Imagina
só. Talvez fazer Direito no Instituto Viana Junior
não seja tão ruim assim. Poderia fazer Veteriná-
ria, algo que sempre quis, depois. Ter meu canto,
minhas coisas. Longe de Augusto qualquer coisa
já seria a melhor do mundo.
— Sonhando acordado, Fred?
— Ah, eu? Não vó, só pensando. Terei um
trabalho com Fábio e Marcelo amanhã na escola
e tipo, já contei a senhora como são escrotos.
— E porque fará então trabalho com eles
se não são bons amigos?
Minha avó pareceu curiosa. Já havia men-
cionado que Fábio e Marcelo eram as piores pes-
soas desse mundo e isso provocou estranhamento
de forma imediata.
— É um trabalho que envolve o Marcos
também.
— Sei – percebo o tom desconfiado — e
qual o tema desse trabalho?
ADRIANO SILVA

— Não se preocupe vovó, será apenas uma


apresentação de trabalho sobre violência.
—E que tipo de violência? Porque existem
muitos tipos — perguntou vovó de forma retórica.
Eu ainda não havia pensado direito sobre
92
como montaríamos o trabalho, mas de fato vio-
lência pode incluir uma vasta gama de tipos, mas
sabemos que a Ana Maria quer algo mais sobre
violência do tipo bullying, porém isso me dá
uma boa ideia que pretendo ver se Marcos está
de acordo e possa me ajudar nessa parte.

***
Cozinha lavada. Vasilhas ariadas. Roupas
ao varal. Subo para meu quarto. Minha avó já está
novamente deitada no sofá de três lugares, mais
cochilando que acordada, assistindo pela terceira
ou quarta vez uma novela no “Vale a pena ver de
novo”. Sheila também está deitada novamente e
pretendo não a incomodar tão cedo, assim tam-
bém consigo ficar tranquilo conversando com
Marcos, que olhando o relógio na parede do cor-
redor, está demorando a chegar.
Pego um livro na prateleira da escrivani-
nha e começo a folhear procurando algum conto
que me agrade. No Natal do ano passado Tati me
presenteou com o volume único de contos com-
pletos do Caio Fernando Abreu. Sou apaixonado
pela escrita dele, quase sempre abro de forma
93
aleatória e leio o conto que estiver ali. Mas hoje
não. Hoje eu quero ler “Aqueles Dois”. Raul e Saul

VINTE E SETE DE AGOSTO


poderiam ser Fred e Marcos, claro, não fosse o
principal ponto: não iriamos ter um final trágico.
Ou iriamos ter?
— Melhor não ler esse... — folheei mais
umas páginas — pronto, aqui está; Mel e Girassóis,
este sim parece muito mais com Fred e Marcos —
divaguei baixinho.

***
Estava quase terminando o conto, olhei para
a porta do meu quarto e Marcos estava parado a
me observar. De chinelos, bermuda e camiseta,
cabelo como sempre; revolto como se estivesse
passado por um vendaval enquanto pedalava. Os
cabelos vermelhos pareciam brilhar como fogo.
— Pensou que eu não viria, não é? — disse
ele em um sorriso que parecia iluminar tudo à sua
volta.
Eu estou sorrindo como se o mundo
hovesse parado e só restássemos nós dois.
Levanto e o puxo pela cintura.
― Você parece mel.
Ele responde:
― E você, um girassol.
— Hah, Marcos, você estragou tudo
brinco surpreso.
— E achou o quê? Que eu não iria conhecer
esse trecho tão famoso?
— E não conhece, não é? — digo sorrindo
desconfiado, agora mais que surpreso.
— Eu sou imprevisível, oxe! Então nunca
escutou a música na rádio?
— Já escutei, mas não sabia que...
ADRIANO SILVA

— Que eu iria procurar o conto... viu, como


sou imprevisível – Marcos diz me beijando. Seu
hálito é tão fresco e seus lábios macios.
O afasto delicadamente para fechar a porta
e passar a chave.
94
—Temos que tomar cuidado.
— Eu sei — diz ele desanimado.
— O que foi? Ficou chateado de repente —
me volto para ele assim que tranco a porta.
— Não é nada, fico só pensando que isso é
tão chato. Não vejo as demais pessoas precisando
esconder seus sentimentos.
— Eu te entendo, juro, mas garanto que
Sr. Augusto — friso bem a última palavra — não
entenderia se nos pegasse com o beiço colado um
no outro — ele ri — o que foi agora?
— Nada, é que achei engraçado como
disse beiço colado — ele fica sério novamente
— eu entendo. Nem me refiro ao seu pai, mas ao
mundo, as pessoas. A gente não deveria se apai-
xonar por pessoas, sem que isso esteja atrelado
ao seu sexo?
É incrível como Marcos é um garoto tão
evoluído e inteligente. Mas as pessoas geralmente
não pensam assim.
—E você se apaixona por pessoas indepen-
dente do sexo delas? — verifico o que ele pensa
sobre o assunto.
Ele me puxa pela mão e nos deitamos na
95
minha cama ainda desarrumada.
—Sim, Fred. Não deveria ser assim? — ele

VINTE E SETE DE AGOSTO


me pergunta me beijando novamente e deitando
no meu peito enquanto passo a mão em seus cabe-
los avermelhados.
—Acho que sim. Amar as pessoas sem
olhar a casca, apenas a essência. Mas a gente sabe
que não é assim que funciona, não? — Marcos se
vira para me encarar. Seu rosto com sardas quase
da cor de seus cabelos é fascinante.
— Talvez um dia as coisas mudem e todos
sejam respeitados. Eu acho que a mudança vem
de nós, dessa nossa geração muito mais aberta a
conviver com as diferenças.
Marcos tem novamente razão. Nós somos
as mudanças que esperamos que aconteçam nos
outros.
— Acredito que sim. Mas tudo e toda
mudança leva tempo. Imagine para meu pai res-
peitar que seu filho gosta de meninos. Some a isso
que meu pai é amigo do seu pai e isso poderia ser
um terremoto também para você.
Marcos novamente se aconchega em meus
braços subindo um pouco da minha camisa e aca-
riciando próximo ao meu umbigo. Uma sensação
gostosa de arrepio ao toque suave eriça os pelos
de todas as partes do meu corpo.
— Olha, eu acho que para meus pais é
um assunto muito tranquilo. Digo, referente à
sexualidade. Tanto minha mãe, quanto meu pai,
são muito abertos e conversamos sobre todos os
assuntos. Todos os assuntos mesmo.
Fico em silêncio refletindo sobre isso. Meu
pai é tão distante de mim que quase nunca nos
falamos. Conversar cobre sexualidade seria uma
ADRIANO SILVA

coisa que nem consigo imaginar. Bem surreal


mesmo, seria.
Marcos apruma o corpo se sentando. Eu o
sigo ficando de frente para ele com nossos joelhos
se tocando.
96
— Digamos que eu tenho bastante sorte,
Fred. Minha mãe fala abertamente sobre tudo.
Meu pai me deu os primeiros preservativos e
ainda me ensinou como se usa — Eu fiquei cho-
cado com a informação e ele logo se apresou —
claro que não bobo! Ele me explicou como se
usava desenrolando numa banana. Foi algo que
você precisava ter visto, meu pai estava muito
constrangido, mas logo o clima ficou descontra-
ído, porque comecei a rir e tudo terminou em
gargalhadas.
Eu estou com um pouco de inveja de Mar-
cos, meu pai jamais faria isso.
—Você sabe que meu pai jamais faria algo
assim né?
—Olha, Fred — Marcos se compadece — as
pessoas são diferentes. Imagina se fossemos todos
iguais. O legal é ser diferente. Não se preocupe
se seu pai não tem essa abertura, sabe. É apenas
o jeito dele.
Concordo balançando a cabeça. Marcos
não imagina como é ser filho de um homem que
é incapaz de demonstrar afeto e carinho. Meu
pai é diferente. Diferente até demais dos outros
97
pais. Para que o assunto não se prolongasse
mais eu aproximo meu rosto do dele e o beijo

VINTE E SETE DE AGOSTO


demoradamente.
—A gente precisa conversa sobre como
vamos ficar. Já pensou em contar para a Tati sobre
a gente? — ele diz
—Acha que precisamos conversar com ela
sobre nós? Eu não sei se é uma boa ideia agora,
ainda mais depois de descobrir que ela mistura
amizade com outra coisa.
—Acredito que ela vá trabalhar isso melhor
dentro dela, não acha? E além do mais se desco-
brir pode se sentir traída por nós.
Será que Tati se sentiria traída por nós, digo
no sentido de amizade? Não sei, acho que talvez
possa não receber bem essa novidade.
— Olha Fred, não foi você mesmo quem
disse que o mundo será um lugar melhor e tem
que ser a partir dessa nova geração?
— Na verdade, quem disse foi você — lhe
dou outro beijo.
— Hah, é, pois é! — ele finge estar confuso
— acho a Tati muito aberta a essas coisas e outra
coisa, depois de hoje cê acha mesmo que ela não
captou nada? Só se for cega.
—Entre desconfiar, ou captar como você
disse, e ter certeza é um abismo de possibilida-
des. Acho que poderíamos esperar um pouquinho
mais e depois contamos, juntos. O que acha?
—Por mim já chamávamos ela aqui e
contávamos.
Isso não me agrada muito, sendo sincero.
Tudo muito novo para mim. Talvez eu sempre
tenha sido apaixonado por Marcos e isso tenha
ficado sob uma película fina encoberto na poeira
ADRIANO SILVA

da amizade e que tenha aflorado desde nosso


primeiro beijo. Mas quanto menos pessoas sou-
berem, eu acho melhor. Não quero deixar Mar-
cos chateado, porém se isso chegar aos ouvidos
do meu pai eu nem imagino como será, aliás...eu
98
imagino.
— A gente tem algo mais importante para
acertar hoje, não temos? — corto a conversa
fazendo com que nos concentremos em outra
coisa.
— Está certo — diz ele entendendo —
trouxe algumas coisas anotadas aqui e veja o que
acha — me estende uma folha dobrada em várias
partes retirada do bolso — não repare esse amas-
sado, foi você mesmo quem causou isso.
Marcos tem uma letra muito bonita, parece
desenhar as palavras.
— Acha então que devemos falar sobre
Violência doméstica?
— Fred, não é nenhum mistério que tem
algo errado acontecendo com o Fábio. Por mais
escroto que ele seja com a gente todos os dias,
não podemos fingir que não sabemos que tem
apanhado...
— Apanhado é bondade sua. Ele não me
parece que apanha. Me parece que leva uma surra,
aquelas manchas roxas pelos braços, pernas e
costas...
— Se todo mundo sabe disso, pelo que
99
parece, porque ninguém faz nada, Fred?
— Talvez por não querer se envolverem

VINTE E SETE DE AGOSTO


com a forma que os outros eduquem seus filhos.
Não acha que poderia ser? Mesmo eu achando
que isso passe longe de se educar, saca?
— Eu saco, me parece conivência..., mas...
está certo, amanhã debatemos com os meninos
isso, agora vamos aproveitar mais um pouco —
digo o puxando para mais perto.
CAPÍTULO 08

Quando meu pai chega do trabalho faz


poucas horas que Marcos foi para casa.
Ouço ele conversando com Sheila no
quarto, suas vozes ecoam pelo corredor e chegam
até mim. No começo não estava prestando muita
atenção, mas a tensão pairava no ar que me pus
a ouvir.
— Meu amor, eu não estou dizendo que
você está com preguiça — disse meu pai.
— Mas foi o que pareceu, Augusto — Sheila
responde nervosa — eu não sinto nenhuma von-
tade de fazer coisa alguma. Talvez seja difícil para
você entender.
— O que está dizendo Sheila? Eu sou sem-
pre compreensivo com você, acha que algum
homem ficaria sem sexo como tenho ficado há
tanto tempo.
— Sua vida gira em torno disso, Augusto.
Em eu estar disponível para você. E se diz com-
preensivo. Chama isso de compreensivo? Me
faz um favor Augusto, vai para o diabo que lhe
carregue!
Meu pai e Sheila já discutiram algumas
vezes, mas essa é a primeira vez que ouvia Sheila
tão nervosa e parecendo não se preocupar se eu e
minha avó estaríamos ouvindo ou não.
— Oh, querida, não faz assim, eu sei que
101
está sendo difícil, mas vamos superar isso juntos
— ele disse tentando acalmar a situação.

VINTE E SETE DE AGOSTO


— Juntos, Augusto, é sério mesmo isso?
Desde quando é algo que vamos resolver juntos?
— Sheila estava chorando.
Ouço passos na escada e sei que é minha
avó vindo para tentar acalmar os ânimos. Mas,
não sei se é uma boa hora para isso. Talvez fosse
melhor deixar que eles resolvessem sozinhos e,
de certa forma, confesso que foi bom ver meu pai
levando uma lavada de Sheila.
— Augusto, vem comigo, depois vocês
resolvem isso de cabeça fria — diz minha avó — é
possível ouvir vocês lá da esquina e não acho que
seja necessário inteirar os vizinhos dos problemas
aqui de casa.
Meu pai parece tentar dizer ainda alguma
coisa, mas minha avó é enfática novamente e
o escuto descendo as escadas. Alguns minu-
tos depois, a porta sendo aberta e fechada com
violência.
— Se acalme, minha filha, não pode ficar
nervosa desse jeito, isso pode até prejudicar sua
saúde, olha como está tremendo.
—Dona Lilia, Augusto pensa somente nele
e nas coisas que inferem somente na própria vida.
É um péssimo marido, isso não é uma novidade
para a senhora e sabemos que é um pai ainda pior.
— Sheila, ele é cabeça dura, mas sei que
tem um bom coração. Depois você conversa com
ele com mais calma, tá bem — disse ela com a voz
passando tranquilidade.
— A senhora realmente é um amor de
pessoa, Dona Lilia, mas tenho certeza que sabe
que Augusto tem problemas que precisa resolver
ADRIANO SILVA

consigo.
Pouco tempo depois minha avó aparece à
porta do meu quarto com um sorriso que expres-
sava uma tentativa vã de passar tranquilidade.
— As coisas esquentaram um pouquinho
102
— ela diz.
— Parece que meu pai não consegue enten-
der algumas coisas nesse momento difícil da
Sheila, Vovó — respondi sem querer entrar nos
detalhes que escutei.
— Assim que ele voltar irei conversar um
pouco com ele — disse ela — mas o motivo de eu
estar aqui é outro.
Meu coração disparou por alguns segun-
dos, será que vovó escutou alguma coisa pelos
corredores entre mim e Marcos? Ou pior, quem
sabe tenha visto alguma coisa — cocei a cabeça
e parei de folhear o livro que estava realizando
uma pesquisa — não, tomamos todos os cuidados
e precauções. A porta estava fechada e não tem
como olhar pela fechadura, na hipótese de vovó
ser curiosa, coisa que posso garantir que não é.
— Por que Marcos não ficou para jantar
conosco?
— Ah, era isso? — digo aliviado.
— O que mais seria?
— Hum, não sei — me apressei em dizer —
talvez algum outro assunto, não sei mesmo. Mas o
Marcos e eu temos aquele trabalho sobre violência
103
que falei para a senhora mais cedo, se lembra?
Vovó ficou em silêncio me avaliando. Eu

VINTE E SETE DE AGOSTO


conheço esse olhar que parece me ler, o que não
é nenhuma coisa espantosa, levando em conside-
ração que me criou desde pequeno.
— Fred tem alguma coisa lhe incomodando
e que queira me dizer – disse ela – sabe que pode
contar comigo para qualquer coisa e qualquer
assunto, não é? – ela saiu de onde estava parada
aquele tempo todo e veio até mim se sentando
ao meu lado na cama, colocando sua mão sobre
a minha a apertando em seguida – é como meu
filho.
— Não Vó, não existe nada me incomo-
dado, ou sei lá. Esse trabalho com o Marcelo e o
Fábio que tem me preocupado um pouco e gerado
tensão – disse eu sendo realmente sincero parcial-
mente. O fato é que o trabalho com os valentões
da escola era realmente algo que estava sendo
complicado e pioraria no dia seguinte com nossa
primeira reunião.
— Eu sei que a situação que estamos pas-
sando e iremos passar daqui por diante – refe-
riu-se à doença de Sheila – será algo que mudará
algumas coisas em nossa rotina, mas não quero
que se preocupe com isso – disse ela ciente de que
o problema de minhas rugas na testa não era com
o trabalho sobre Violência doméstica que teríamos
que apresentar na próxima semana.
Vovó passa a mão em meus cabelos e segue
novamente para a porta — irei descansar e você
não fique aí agarrado à noite toda no computador,
ouviu? – orientou indo embora e fechando a porta
por trás de si.
ADRIANO SILVA

***
Não existe nada mais desconcertante do
que precisar esconder o que se é. Foi algo que
fiquei remoendo por longas horas depois que
minha avó me deixou sozinho.
104
— Ser quem se é — eu disse em voz alta e o
som das palavras ficou ecoando ainda mais pelo
quarto. Guardei o livro junto com os demais mate-
riais que separei na mochila e tranquei a porta
para que não fosse surpreendido. Tirei a camisa
e fiquei somente de cueca samba−canção, o meu
preferido de desenhos de bob esponja.
Se eu fosse um garoto heterossexual, com
toda certeza, seria algo mais normal. Manifesta-
ria meus desejos heterossexuais e atenderia às
expectativas do meu pai, avó e madrasta, mas por
outro lado eu não irei corresponder essas expec-
tativas, de modo que não será muito fácil para
minha família aceitar muito bem ter um filho que
gosta de outros homens – no meu caso um homem
somente; o Marcos – dizem que a adolescência é
difícil passar sem crises ou medos. Terei de con-
cordar com isso.
Eu consigo lidar comigo mesmo. Consigo
me entender e aceitar quem eu sou, por outro
lado tenho colegas gays na escola e vejo a forma
como são hostilizados. Confesso que nunca fiz
nada para evitar essas agressões com eles, mas a
partir do momento que eu tome partido, mesmo
105
que seja o certo a se fazer, eu também passarei a
ser alvo destes ataques. Mas ficar em silêncio

VINTE E SETE DE AGOSTO


não é ser conivente? Não é também ser um agres-
sor passivo? Acredito que eu seja até pior que os
agressores diretos, pois eu vejo acontecer e parti-
cipo como plateia. Óbvio que existem outros que
além de plateia incitem para que as agressões não
parem. E se fosse a mim no lugar desses gays? Ou
até mesmo Marcos e eu?
Escuto um estampido bem leve à vidraça,
penso ser o galho do ipê amarelo que temos na
calçada de frente para o meu quarto e que passa
da marquise e esbarra na vidraça sempre que o
vento sopra seus galhos.
— Precisamos fazer uma poda nesses
galhos ou qualquer hora terei a vidraça quebrada
– digo me lembrando que Augusto fez um pedido
à prefeitura para essa poda.
— E eu chegaria até aqui no seu quarto
como? – diz alguém do lado de fora me
assustando.
Rapidamente eu sigo para a janela e puxo
a cortina vendo Marcos em pé me sorrindo.
— Vai ficar aí parado me olhando, ou vai
abrir a janela para que eu entre – disse baixinho.
Balanço a cabeça tendo a certeza de que
Marquinhos é mesmo uma criatura maluca.
— Como chegou até aqui? – perguntei
sabendo a resposta e lhe ajudando a entrar para
meu quarto, averiguando ao mesmo tempo se
alguém na rua o estava observando.
— Não se preocupe, eu olhei bem olhado
se tinha alguma vizinha fofoqueira à espreita. E
respondendo à sua pergunta – disse ele me dando
um beijo e um forte abraço – eu subi pela árvore,
ADRIANO SILVA

como mais eu iria chegar aqui no segundo andar?


Voando que não.
Fiz uma careta o encarando agora nos
olhos. Ele sorria e suas sardas pareciam iluminar
todo o rosto em cores de vermelho realçadas pela
106
luz.
— Meu ruivinho, você é mesmo maluqui-
nho de tudo. Mas me diga o que lhe deu de vir
aqui uma hora dessas – passava das onze e meia
– fechei a janela e puxei a cortina, foi só então que
percebi que estava com uma mochila nas costas –
não me diga que...
— Só se você quiser – Marcos me inter-
rompeu – eu tomei cuidado para que meus pais
não percebam que não estarei essa noite em casa.
Fechei a porta com a chave e saí pela janela.
Marcos coloca a mochila sobre a mesa do
computador e nos beijamos. A boca de Marcos
tem o sabor mais gostoso e essa sensação de se
sentir amado, desejado e não sozinho no mundo,
responde todas as minhas dúvidas sobre como é
ser um garoto gay na adolescência.
Único medo que nós temos é o de não
sermos aceitos, medo de sermos abandonados e
perdermos o amor de nossos pais. É isso que nos
faz mentir e ocultar a verdade acerca de nós.
— A porta está trancada? – ele se afasta de
mim.
— Fechei pouco antes de você chegar
107
– digo.
— Como irá resolver um pequeno detalhe

VINTE E SETE DE AGOSTO


do seu plano amanhã? – digo me referindo ao fato
de que todos os dias passo em sua casa e a tira
colo com meu pai no meu encalço.
— Não se preocupe, pensei em tudo. Vou
deixar o celular despertar por volta de umas seis
e meia e volto para minha casa e saio de lá como
sempre, para te encontrar ao portão – ele bate o
dedo na cabeça – já tenho tudo aqui oh, achou
que essa cabeça enorme era somente para carregar
esses cabelos?!
Marquinhos sempre me surpreende e isso
é o que faz dele ser um garoto tão especial.
— Acho que estou apaixonado por você,
Marquinhos – falo puxando-o novamente para
mais perto de mim e sentindo seu hálito quente e
perfumado. Seus olhos castanhos ficam brilhantes
e nossos lábios se tocam novamente. Sinto meu
membro rijo querendo se libertar do short.
Retiro a camisa de marcos sem perder a
conexão com seus olhos, desfivelo o cinto e abro
seu zíper, deixando que a calça jeans caia lenta-
mente por suas coxas até ser livrada por um movi-
mento preciso dos pés. Me afasto de seus lábios
e olho para baixo. Sua cueca branca boxer exibe
um volume que não é diferente do que está sob
meu short.
— Eu nunca fiz isso – digo envergonhado.
— Eu também nunca fiz, Fred. Mas eu
acredito que não tenha nenhum mistério em se
entregar para quem a gente ama – respondeu ele
e a palavra ama dita tão pertinho me causou um
arrepio gostoso – é só deixar nossos corpos entre-
gues que o restante a gente vai se conhecendo
ADRIANO SILVA

intuitivamente.
Marcos colocou a mão no elástico de meu
short e o desceu o suficiente para segurar meu
pau. A sensação da mão macia tocando o órgão
rijo me fez beijá−lo mais intensamente. O levei
108
para minha cama e o deitei com a cabeça apoiada
sobre o travesseiro.
— Marcos, você é um cara lindo – digo
enquanto puxo sua cueca delicadamente e seu
corpo fica todo à mostra. Seu membro está tão
rijo quanto o meu e o seguro firme enquanto ele
geme baixinho. Marcos me puxa para cima de
seu corpo e nossos paus se tocam apertando for-
temente um contra o outro. A sensação é deliciosa
e posso sentir que eles estão úmidos. Marcos leva
a mão na cabeça do meu pau e retira um pouco
da baba, que sai pela excitação, com um dedo e
o leva até minha boca a beijando em seguida. O
gosto é adocicado.
— Marcos, eu também quero sentir seu
gosto – ele leva a minha mão até seu pau e eu
me apresso – não assim...
— Então como? — desço seu corpo com
a boca dando leves mordiscadas até chegar aqui
embaixo. Seu pau roseado está tão duro quanto
o meu. Seguro com uma mão enquanto dou leves
beijos em sua cabeça também úmida e babada
pelo líquido que sai da excitação. Marcos aperta
nossas mãos entrelaçadas.
109
Estou entre suas pernas e vou engolindo
seu pau lentamente enquanto sinto seu corpo

VINTE E SETE DE AGOSTO


todo se contorcer — geme mais baixo para não
nos ouvirem – alerto para que não sejamos fla-
grados — volto a colocar seu membro em minha
boca e vou descendo até a base – delicioso! – digo
passando a língua por suas bolas e chegando na
área entre o pau e o seu rabo.
— Quer mesmo fazer isso, Fred? – pergunta
ele me interrompendo. Olho para seu rosto lindo,
os cabelos ruivos e passo a língua levemente em
sua bunda o fazendo gemer e se contorcer mais
e mais. Vou levantando suas pernas delicada-
mente e me aconchego lentamente, fazendo com
que se entrelace ao meu corpo. Meu membro vai
forçando sua entrada lentamente, enquanto beijo
seus lábios. Ele me interrompe e passa um pouco
de saliva para facilitar a entrada.
— Devagar – ele geme num misto de dor
e prazer. Forço a entrada vagarosamente até que
sinto meu pau deslizar para dentro dele e seu
corpo relaxar. A sensação é quente e prazerosa.
Espero que se acostume mais um pouco com o
volume e ele me aperta mais sobre seu corpo sina-
lizando que posso me movimentar. Começo esto-
cando lentamente e aos poucos vou aumentando
a intensidade. Sinto que vai ficando relaxadinho.
Levanto meu corpo suspendendo um poucas mais
suas pernas. O encaixe é perfeito!
— Quero também conhecer seu corpo –
Marcos diz invertendo rapidamente nossos corpos
e me colocando de bruços.
Sua língua percorre pela minha orelha e a
sensação quente e úmida é deliciosa. Sua língua
continua percorrendo todo o caminho da minha
ADRIANO SILVA

coluna até chegar na minha bunda. Marcos abre


as nádegas com carinho e sinto sua língua dançar
no meu rabo.
— Eu também quero sentir você − ele sus-
surra e eu apenas concordo com um hunhrun
110
positivo.
Marcos vai deitando lentamente sobre meu
corpo e eu empino minha bunda para que consiga
ir penetrando. O peso do seu corpo e a mistura
de prazer com dor me faz gemer gostoso. Estou
em completo êxtase. Nunca imaginei que seria tão
gostoso.
— Quer que pare? — ele me pergunta bai-
xinho entre seus gemidos.
— Por favor, não pare! — ordeno — colo-
que ele todo, peço e sou atendido de imediato.
Assim como fiz com ele, ele faz comigo, me esto-
cando lentamente até aumentar o ritmo.
Depois de algum tempo Marcos me vira de bru-
ços e segurando meu pau o conduzindo até seu
rabinho que está ainda lubrificado se posiciona
sentando sobre mim em reboladas precisas que
me deixam louco. Vejo seu rosto sentindo prazer.
Olhos semicerrados e a boca gemendo baixinho. É
a coisa mais linda que já vi em minha vida. Seguro
seu pau que pulsa em minhas mãos.
— Goza comigo, meu amor — digo sen-
tindo que estou prestes a soltar meu leite dentro
dele. Minha mão está ritmando os movimentos
111
com uma punheta em seu pau que lateja.
— Agora Fred! Goza comigo! – ele diz

VINTE E SETE DE AGOSTO


segundos antes de jatos de porra saírem do seu
pau e cair sobre minha barriga e peito ao mesmo
tempo que eu lhe encho com meu leite também.
A sensação é como se estivéssemos explodindo
em milhares de estrelas.
— Eu sou louco por você. Sempre fui –
Marcos me diz caindo sobre mim e me dando um
beijo sem retirar meu pau de dentro dele. Me sinto
tão feliz que não consigo dizer nenhuma palavra,
apenas o aconchego em meus braços.
CAPÍTULO 09

Quando acordo Marcos não está mais ao


meu lado. No travesseiro em que dormiu agarrado
a mim encontro apenas um bilhetinho dobrado.

A noite foi maravilhosa.


Te encontro daqui a pouquinho,
Beijo
M.

É tudo tão novo e desafiador, mas não


estou assustado. Nem sinto nenhum medo disso
tudo. Estou apaixonado? Eu acho que estou.
Minha avó bate à porta depois de tentar
abri-la e perceber que se encontrava com trinco.
— Já estou descendo vó — Me apresso
em dizer já me vestindo depois de perceber que
dormi nu. Não quero tomar um banho. Sinto o
cheirinho do corpo de Marcos em minha pele.
Antes de descer para o café vou até à janela, o sol
lá fora começa a iluminar tudo à volta. Marqui-
nhos poderia ter me acordado, mas entendo que
se talvez o fizesse estaríamos juntos até agora.
Na mesa meu pai não está presente, o que
nem é uma surpresa depois da discussão de con-
113
tem. Sheila está sentada à mesa e quando me vê
abre um sorriso.

VINTE E SETE DE AGOSTO


— Bom dia querido!
— Bom dia, Sheila.
Ela parece estar ótima, nem parece que
não esteve bem nos últimos dias. Mas sei que a
doença será assim em dias de luta e outros, como
diz aquele ditado, dias de glória.
Vovó está em pé esperando o leite ferver
e parece preocupada, como sei o motivo, melhor
dizendo, com quem, prefiro nem perguntar. O que
nem se faz necessário já que Sheila começa a falar.
— Fred, seu pai já foi para o trabalho, então
assim que você terminar seu café se apresse.
Sheila aparenta querer dizer algo mais, mas
pela cara da minha vó, novamente nem precisaria
perguntar, na certa meu pai não voltou pra casa e
como tem poucos amigos nem é difícil imaginar
onde passou à noite; na casa do pai de Tati.
Tomo meu café em silêncio e assim que ter-
mino me despeço da minha avó. Sheila sai comigo.
Fará sua caminhada e aproveito para perguntar
se está tudo bem longe dos olhos preocupados de
minha avó.
— Você está bem?
— Sim eu me sinto bem hoje – responde
ela.
Sei que ela imagina que pergunto sobre sua
saúde, mas não é sobre isso. Ela está vestida com
sua legging e uma camiseta azul com os cabelos
soltos.
— Digo por ontem, Sheila. Sobre, bem... —
digo eu sem saber se estou sendo invasivo. Antes
de me responder ela olha para mim e sorri e con-
tinuamos caminhando.
ADRIANO SILVA

— Não se preocupe com isso Fred. Apro-


veite sua vida e deixe os adultos com seus
problemas.
Nos aproximamos da rua de Marcos e vejo
algo que me deixa sem voz. Revirando os lixos um
114
homem separa alguns objetos. É aquele homem
que sempre vejo rodeando a nossa casa e que cor-
reu atrás de minha bicicleta no Morro do Cimento.
Sheila percebe como mudei de repente.
— Algum problema querido, o que foi, algo
que eu disse?
O homem percebe nossa presença. Seu
olhar me transmite uma sensação que não é das
melhores. Eu sei que tem alguma coisa errada,
porém não consigo ainda ter a certeza do que seja,
antes eu pensava que fosse uma impressão, mas
é longe disso. Ele realmente está nos lugares que
sempre passo e nos horários exatos.
— Não é nada Sheila – digo para não pre-
ocupa−la. Ela já tem tantos problemas com meu
pai e agora a saúde que não é justo mais um.
Avisto Marcos saindo ao portão. O sol ilu-
mina seus cabelos que parecem labaredas de fogo,
sua estatura pequena e sua barriguinha marcando
a camisa me deixam ainda mais animado ao vê-lo.
Como é estranho a gente gostar tanto de alguém
que parece até doer. Marcos está tão lindo que até
esqueço do homem que está em todos os lugares.
— Vai com cuidado para a escola – Sheila
115
se despede me dando um beijo e acenando para
Marcos antes de seguir por outra rua que dará

VINTE E SETE DE AGOSTO


na avenida principal onde muitas pessoas, assim
como ela, fazem sua caminhada pela manhã e
também no finzinho da tarde.
— Obrigada, nos vemos à noitinha – res-
pondo sem ter muita certeza de que ela iria ou
não para o trabalho.
Quando me aproximo mais de Marcos ele
me sorri e diz em tom de brincadeira.
— Olá Fred, como foi a sua noite?
— Pois se eu te disser, você nem vai acre-
ditar, Marquinhos.
Ele dá uma risada gostosa e seguimos em
direção à casa de Tati nas próximas ruas.
—Pois, experimente me dizer que eu ten-
tarei julgar se acredito ou não, ué!
Ele estava me testando. Eu me controlando
para não lhe dar um abraço, mas o máximo que
está sendo possível é deixar nossos braços e mãos
se esbarrarem “sem querer” e deixar a sensação de
um friozinho com arrepio percorrer todo nosso
corpo.
—Então você é quem pediu! Você acredita
que não consegui dormir muito bem essa noite?
— ele ficou atento me olhando bem nos olhos, lá
no fundinho mesmo – fui visitado por um anjo
ruivo – eu cochichei depois de me certificar que
ninguém poderia me ouvir.
Marcos sorria ainda mais. Eu, mais ainda.
— Sei... esse anjo deixou você assim, né...
– disse ele.
Eu iria responder, mas era tarde demais
para uma resposta sem que Tati nos escutasse.
— Os homens da minha vida, atrasados
ADRIANO SILVA

como sempre!
— A mulher de nossas vidas, exagerada
como sempre! – brincou marcos devolvendo.
Estou apenas sorrindo e sentindo uma alegria
imensa, mesmo sabendo que essa alegria vai
116
durar pouco quando me lembro que ficaremos
depois da aulas para discutir a apresentação do
trabalho sobre violência. Andamos os três quase
em passos sincronizados e em poucas quadras já
estamos próximos à escola.
— Como está a preparação para o trabalho
meninos? – Tati pergunta quase que lendo o que
se passava pela minha mente. Ela poderia imagi-
nar como tudo aquilo seria horrível?
— Estamos preparados para esta apresen-
tação – se apressou Marcos em responder.
— É bom que estejam mesmo! Dar conta
de desenvolver um trabalho com Marcelo e Fábio
vai ser um desafio e tanto – disse ela deixando
transparecer que era um alívio não estar presente
no pátio no dia em que a Ana Maria nos pegou
discutindo.
— Não se preocupe, Tati, planejamos
como faremos e vamos apresentar aos meninos
hoje após a aula. Nada mirabolante, até porque o
tempo é de trinta a quarenta minutos, no máximo
– fiquei olhando Marcos falando e as palavras
pareciam sair de uma forma tão linda de seus
lábios, seu olhar e seu sorriso que pareciam abar-
117
car um universo inteiro – Fred? Ei Fred, você não
concorda? – nesse momento que me dei conta de

VINTE E SETE DE AGOSTO


que não estava mais prestando atenção ao que ele
dizia e sim no movimento de sua boca.
— Claro, eu concordo com você. Plena-
mente – digo e Tati me faz uma careta.
— Vocês dois estão tão estranhos hoje.
Parecem que o tempo todo estão desconectados.
– Marcos troca um olhar de cumplicidade comigo
e começamos a rir antes de atravessarmos os três
a rua e adentrar no colégio.

***

A primeira aula é a de Educação Física


com o Professor Sampaio. Deixamos nossas
mochilas e materiais na sala e descemos para
os vestiários. Como todas as vezes caminho
com Marcos e deixamos Tati caminhando logo
atrás com outra colega de turma que a pegou de
conversa.
Marcos está de bermuda e precisa só trocar
a camisa e eu, por algum motivo, estou vestindo
uma calça jeans e precisarei trocá-la pela bermuda
e vestir a camiseta branca. Quando entramos no
pequeno vestiário o cheiro de toalhas molhadas
sem pegar sol tomam o ambiente com o fedor de
homens suados, o que na nossa idade não é difícil
de entender pela combustão de hormônios por
todos os cantos do corpo.
Marquinhos tem o armário atrás da fileira
em que o meu se encontra, de modo que precisa-
mos nos separar.
— A gente se fala lá na quadra – eu assinto
positivamente. Temos um banco desses de
ADRIANO SILVA

madeira onde podemos nos sentar para tirar os


sapatos ou colocar as roupas e assim que desfaço
um cadarço Marcelo se senta ao meu lado.
— Então bichinha, marcado aquela merda
depois da aula? – diz ele e fico observando por
118
alguns segundos seu corpo com muitos músculos
e seu cabelo preto até que ele me encara – então,
tô falando contigo?
— Espera a gente lá na sala da biblioteca
que a Tati agendou um horário para a gente
lá – respondo me levantando e tirando a calça,
dobrando e a guardando no meu armário. Mar-
celo agora está me olhando com um sorriso satis-
feito e fico na dúvida se está rindo de mim ou
para mim.
— A Tati vai estar lá, Fred? – ele pergunta
animado e alguns colegas começam a fazer uma
zoação enquanto o vestiário vai aos poucos se
esvaziando – estou só perguntando galera, vocês
são uns fodidos – ele grita batendo a camisa nas
costas de um dos garotos.
—Vai – eu respondo e logo algo me chama
a atenção; próximo da área dos chuveiros Fábio
está isolado e pensativo — o que tá rolando com
seu amiguinho?
— Cara, deixa quieto que o bagulho é
brabo! – Marcelo responde e isso me causa certo
incômodo, pois se ele sabe o que está acontecendo
com o amigo, deveria estar ao lado dele, certo?
119
— Você sabe o que tá pegando então, Mar-
celo? – pergunto enquanto ele se levanta já pronto

VINTE E SETE DE AGOSTO


para ir embora.
— Não sei ao certo, mas posso imaginar
– Marcelo responde olhando para Fábio que nos
encara ciente de que o assunto é ele. Marcelo está
todo amistoso por que Tati estará na biblioteca e
antes que possa perguntar mais alguma coisa o
professor Sampaio entra no vestiário e Marcelo
me dá as costas seguindo para a quadra junto com
os demais garotos que restaram. Me dou conta
que estamos só nós três ali, Fábio, Professor Sam-
paio e eu.
— Vamos! Vamos...o que estão esperando!
– grita o professor. Fábio então retira a calça jeans
e o blusão de moletom, que somente agora me dei
conta de que está usando. Sampaio está em um
dos chuveiros tomando uma ducha e resmunga
alguma coisa.
— Vamos Fábio e Frederico, estão aí ainda!
Estou bastante assustado com o que vejo.
Não, não é o fato do Professor está tomando banho
virado para nós e eu estar bastante constrangido
de olhar seu corpo nu e seu membro exposto, mas
sim o fato de as costas de Fábio estar cheias de
vergões vermelhos em sua pela branca. Ele veste
a camiseta rapidamente e se vira para se certificar
de que eu não estava lhe olhando. Mas eu estava.
— Fábio veste logo a bermuda, pega essas
bolas ali e leva junto com você, por favor, ok? –
Sampaio mais ordena com sua voz grave do que
necessariamente pede.
— Sim, senhor – responde ele tirando a
calça e revelando nas pernas e na altura das coxas
grandes marcas vermelhas e roxas. Olho para
ADRIANO SILVA

o professor para verificar que ele está vendo o


mesmo que eu, porém ele está como uma criança
deixando a água cair na boca com o pescoço em
direção ao jato de água que sai da ducha. Fábio se
troca rapidamente, me encara, mas não diz nada.
120
Parece envergonhado e só então me dou conta
que estava ali aquele tempo para que nenhum dos
colegas o visse com tantos hematomas.
Assim que Fábio sai em direção ao local em
que estão as bolas eu ajeito minhas coisas deva-
gar, de modo que seja o suficiente para ficar com
o professor a sós.
— Fred, vai rapaz, vai ficar aí enrolando?
Parece até que... – antes que conclua alguma pia-
dinha, coisa que certamente sei que irá fazer, eu
me apresso.
— É que eu fiquei por último para conver-
sar com o senhor — Sampaio desliga a ducha,
pega uma toalha branca muito encardida que
está no banco e começa a se secar. Observo
seu corpo com muitos músculos ganhos por anos
praticando esportes, muito pelo e a cabeça com
poucos cabelos e vários fios brancos despon-
tando no peito. É um homem muito bonito, devo
admitir. Disfarço mantendo sempre os olhos na
altura dos seus. Este é um dos códigos de conduta
masculino; se entrar em um banheiro com vários
mictórios e tem alguém, use sempre o que estiver
distante de onde o outro está mijando. Se ficar
121
perto ou ao lado pode não pegar bem. E neste
caso, homens trocando de roupa, você não tem

VINTE E SETE DE AGOSTO


que baixar os olhos. Mesmo que fique curioso.
Curioso é diferente de ter interesse! Coisas bem
diferentes.
O professor continua se secando. Agora
está próximo ao banco e em frente do armário que
Fábio estava. Que é local mais afastado da porta,
de modo que quem estiver passando pelo pátio
não consiga ter a visão do interior. Uma estraté-
gia para evitar que algum aluno desatento seja
visto nu por algum colega ou docente. Como a
biblioteca está localizada em cima, no segundo
andar, as chances de isso acontecer, caso não fosse
observado este cuidado, seria o tempo inteiro.
— Diga Logo, Frederico. Não pode ficar aí
parado o dia todo – ele diz agora com uma das
pernas em cima do banco e a outra no chão sobre
um tapete que colocou para pisar.
— Eu não sei como dizer, mas acho que o
Fábio precisa de ajuda – digo sem muita convicção
de que esteja fazendo a coisa certa. Antes parecia
uma boa ideia. Agora não mais.
— Que tipo de ajuda – ele pergunta desin-
teressado, agora colocando a perna seca ao chão
e levantando a outra para repetir o mesmo pro-
cesso – não sei ao certo, mas acredito que esteja
apanhando.
Sampaio agora parece que ficou interes-
sado no assunto. Pelo espelho, que está distante
de nós, vejo que ele está secando o pau.
— Tá, mas quem está batendo no Fábio?
– ele pergunta e sei que imagina que um garoto
daquele tamanho não deva estar apanhando dos
colegas – Fábio é forte, corpulento. Seria algo para
ADRIANO SILVA

resolver com a diretora Ana Maria...


Me sinto frustrado. Sampaio parece não se
importar ou tem muita dificuldade de entender as
coisas. Lógico que já tenha visto Fábio surrando
os colegas em suas brincadeiras brutas.
122
— Mas acho que é algo que aconteça em
casa...
— Hum... – ele resmunga – pega para mim
aquele short que está no armário 32 – Sampaio me
aponta. Me viro para trás para pegar E dou alguns
passos. O armário está semiaberto. Um maço de
cigarro em cima do short azul marinho com o
emblema da escola. Uma mochila no comparti-
mento inferior. Puxo, antes retirando com cuidado
o maço de cigarros que repousa por cima. Assim,
que retiro totalmente o short do armário, algo cai
do bolso ao chão e me abaixo para pegar. É um
isqueiro com bandeirinhas de time de futebol.
— Vai demorar muito? – resmunga ele –
quando levanto meu olhar, antes de me levantar,
Sampaio está à minha frente. Me assusto com o
que vejo.
— Fred? – ouço alguém me chamar e Sam-
paio rapidamente pega o short da minha mão
enquanto eu ainda tomado pelo susto do que vejo
saio rapidamente do vestiário sem olhar para trás.

123

VINTE E SETE DE AGOSTO


CAPÍTULO 10



Saio rapidamente do vestiário. Estou sem
conseguir falar.
— Aí, por que não responde? – diz Marqui-
nhos me encarando – tem um tempão já que esta-
mos te esperando na quadra – ele diz com impa-
ciência. Seguro seu braço e saio o conduzindo.
Professor Sampaio sai logo atrás e diz
alguma coisa que não consigo decifrar.
— Sim professor – Marcos responde a ele.
Estou muito assustado para dizer qualquer coisa,
apenas continuo andando para me afastar mais
rápido dali. – Está doendo! – reclama Marcos e só
neste momento percebo que minhas unhas estão
encravadas em seu antebraço enquanto quase o
arrasto comigo.
— Desculpa, Marquinhos...eu...eu...
— O que foi Fred? Agora você está me
assustando. Está se sentindo mal? – pergunta ele
preocupado. Sampaio já está mais distante de nós
bem à frente. É possível o ver já na quadra dis-
tribuindo as bolas entre os diferentes grupos de
alunos.
— Não é nada, Marquinhos. Estou bem,
não se preocupe.
— Como se eu não o conhecesse, não é?
Venha, vamos sentar ali – diz ele me levando
125
para próximo da última quadra, onde existe uma
árvore que projeta uma sombra onde costumamos

VINTE E SETE DE AGOSTO


nos reunir nas aulas de Literatura para discutir
poesias.
Alguns alunos correm jogando peteca,
outros mais estão se dividindo em grupos para
Handball e Queimada. Uma das quadras, onde
está o professor Sampaio, ele está em uma gritaria
com os garotos jogando futebol.
Tati conversa com uma das meninas da
outra turma próximo de onde decidimos nos sen-
tar, na sombra da árvore projetada no muro que
rodeia por todo colégio. Ela nos acena sorrindo,
como sempre enrolando uma mecha de cabelos.
Devolvemos o aceno e ela volta a dar atenção à
colega.
— Tá bem, agora pode me dizer o que está
havendo. Você está tão pálido Fred, que estou
realmente preocupado — Penso em contar o que
houve para ele, mas Marquinhos com toda certeza
não iria ficar tranquilo e iria tentar resolver o que
aconteceu ali naquela hora mesmo. E eu? Eu estou
sentindo algo de gosto salgado na minha boca.
Me dou conta que estou chorando descontrola-
damente quando Marquinhos me abraça. — Meu
amor – escuto as batidas de seu coração me afa-
gando os cabelos – acalme-se, vai ficar tudo bem.
Foi um abraço tão forte e sincero. Tudo
parecia ter sumido ao redor dentro de algum
buraco que milagrosamente tenha se aberto. Eu
queria somente ir para casa. Entrar no meu quarto
e ficar ali, sozinho com Marquinhos, sem mais
ninguém.
— O que houve com ele? — escuto a voz
de Tati atrás de nós.
ADRIANO SILVA

— Ainda não sei... — Marcos responde sem


me soltar de seu abraço.
— Não foi nada Tati — digo com a voz
embargada.
— Foi o Marcelo e o Fábio, Fred – per-
126
gunta Marcos. Balanço a cabeça negativamente e
me solto enfim de seu abraço, com a sensação de
que poderia ficar assim, sentindo seu cheiro e as
batidas de seu coração, por toda a tarde.
— Olha, não irei insistir com você, mas
lógico que aconteceu alguma coisa. Quando você
estiver preparado para desabafar e quiser conver-
sar saiba que pode contar conosco, seus amigos.
Ouviu? – Tati diz me abraçando.
— Eu sei que sim, gente – respondo me cer-
tificando que nenhuma lágrima ficou perdida pela
minha face. – Eu converso com vocês depois sobre
isso, agora estou bastante assustado e chateado,
mas falarei.
Marcos fica sério e se Tati não estivesse ali
com certeza não me deixaria em paz até saber o
que houve.
— Está bem, mas depois você me dirá direi-
tinho o que está rolando, okay? Se for algo com
sua madrasta ou seu pai, a gente tá sempre aqui.
Pode confiar. — diz ele em tom amistoso.
— Eu sei que sempre estarão comigo. Obri-
gado – decido não os preocupar mais – posso estar
sensível com a situação lá de casa mesmo. Mas
127
vamos para a quadra – digo andando e parando
bruscamente assim que vejo o professor Sampaio.

VINTE E SETE DE AGOSTO


— Venham logo para cá – diz ele e parece
agir com naturalidade – sinto um arrepio tomar
conta de mim e a sensação de nojo e revolta toma
conta neste momento. Antes estava assustado,
porém agora sinto vontade de esmurrar sua cara.
— Estamos indo! — responde Marcos.
Logo estamos os três seguindo para junto do
grupo de colegas que jogam peteca.

***
Fernanda, a secretária, aponta a sala de Lei-
tura e laboratório de informática reservada para
nós à esquerda, próximo as prateleiras dos roman-
ces. Marcelo está calado, mas não para de olhar
Tati que pegou um dos livros na estante antes de
entrar à sala. Fábio está introspectivo, o que é algo
bem raro, geralmente está agredindo alguém.
— Sabemos que não é algo agradável para
nenhum de nós – Tati diz sem tirar os olhos do
livro enquanto se ajeita em uma das mesas. Tam-
bém sei que isso se deva ao fato de sua visão peri-
férica captar os olhares de Marcelo.
— Diga isso por si só – ele devolve ciente
que o comentário foi para ele.
Marquinhos está retirando algumas anota-
ções da mochila. Puxo algumas cadeiras para que
possa me sentar próximo a ele. Organizando as
demais de tal forma que Marcelo e Fábio também
estejam em formato circular para que os quatro
conversem sobre o tema proposto como castigo
por Ana Maria e Marquinhos possa digitando as
ideias, que for surgindo, no computador antigo
da escola à nossa frente.
ADRIANO SILVA

— A gente vai falar sobre violências e pen-


sei em discutirmos sobre as diferentes nuances
disso... – fala Marquinhos abrindo o editor de
texto – para não perdermos tempo, fiz algumas
anotações e seria legal que possamos dividir e
128
cada um apresentar uma parte.
— Estou de acordo! — diz Fábio pela pri-
meira vez, seu olhar parece vazio e distante —
assim terminamos logo isso.
— Eu quero o tema menor – opina Marcelo
fazendo Tati soltar o ar como uma censura.
— Olha, o importante é que cada um saiba
desenvolver o assunto do slide. Quanto mais
rápido decorarem as partes de vocês, melhor –
explica Marquinhos – para o Marcelo separei o
bullying escolar, afinal entende bem disso.
— Pronto, já começou! Viu como não
tem como a gente se entender! — resmunga
contrariado se levantando e indo para o fundo
da sala onde Tati está lendo.
— Esse é caidinho pela Tati – ironiza Mar-
quinhos e fico observando Marcelo caminhando
até onde Tati está. – Fábio, você fica com a violên-
cia doméstica, o que acha?
Por alguns instantes se fez um silêncio. Eu
sabia o que Marcos estava fazendo. Apesar de
achar que era algo um pouco cruel, por deixar
justamente o tema que acreditávamos ser o caso
dele, para que apresentasse. No fundo sabia que
129
era um mal necessário.
— Eu acho que prefiro pegar outro tema,

VINTE E SETE DE AGOSTO


Marcos. Quero trocar, qual seriam os outros? –
perguntou Fábio e parecia um misto de desin-
teresse com pavor. Por pior que Fábio fosse na
escola com seu comportamento sempre ameaça-
dor com os colegas, naquele momento parecia
somente um animalzinho amuado num canto
qualquer.
— O outro tema é a violência contra as
minorias sexuais e, – respirou Marquinhos – divi-
direi a apresentação com o Fred, mas podemos
deixa-lo para você sem nenhum problema. – Mar-
cos disse surpreendendo até mesmo a mim. Pode
ser só uma estratégia? Pode. Mas estou realmente
surpreso com essa possibilidade ser real.
— O que você chama de minorias sexuais,
Marcos?
— Os veados, as sapatão e todo o restante do
alfabeto que compõem o arco íris, ora. – respon-
deu Marcos.
— Ah, eu não quero falar sobre as bichas,
não. Se meu pai sonhar... – inicia a frase e inter-
rompe bruscamente deixando Marquinhos e eu
atentos.
— Olha Fábio – eu começo a falar num tom
mais baixo chegando à cadeira mais próximo dele
– acredito que você já tenha percebido que nós sai-
bamos o que tem rolado com você. Na verdade, eu
até acredito que a escola inteira saiba... – ele fica
desconfortável e encara os próprios tênis. – Não
precisa ficar sem graça, não somos seus amigos e
sabemos que começamos tudo de um jeito muito
ruim e nem sei como, para te falar a verdade, mas
seja o que for que aconteça na sua casa, isso não
ADRIANO SILVA

está certo.
— Exatamente. A gente quer tentar ajudar
você de alguma forma, mas para isso precisamos
de saber realmente o que tem acontecido – Marcos
fala e Fábio parece ainda mais chateado.
130
— Isso não é da conta de vocês! – disse ele
se excedendo.
— A partir do momento que a gente está
aqui fazendo um trabalho sobre violência, Fábio,
sim, é um problema nosso também. Essas mar-
cas roxas pelas pernas, nas costas... nós vimos
no vestiário. Todo mudo tem visto. Todo mundo
tem comentado e a gente quer te ajudar. Agora
você tem que falar ou nós vamos contar a Ana
Maria para que ela resolva! – Fábio parecia agora
apavorado.
— Vocês não fariam isso comigo, fariam?
Ele me mataria. – Marcos me olha e troco com ele
um olhar de cumplicidade.
— Não faremos, mas nos conte o que tem
acontecido – respondo. Fábio está tão fragilizado
que não consegue nem manter o olhar nos nossos
enquanto falamos. Olho ao fundo da sala e vejo
Marcelo e Tati conversando animadamente e isso
também me surpreende, por fim acabo achando
que isso ajudará para que Fábio nos conte o que
está acontecendo. – Então? – digo o incentivando
a falar.
— Meu pai – inicia ele com a voz engas-
131
gada – ele bebe muito e acaba chegando em casa
todas às vezes embriagado e bate em mim. Bate na

VINTE E SETE DE AGOSTO


minha mãe. – Marcos e eu não estamos surpresos
que era o pai de Fábio que o espancava, mas o fato
de a mãe também sofrer a violência nos assustou.
Fábio começa a chorar e tenho o impulso de o
abraçar – eu não aguento mais – ele soluça. Tenho
vontade de me matar todos os dias.
— Você não precisa se matar, Fábio — Mar-
quinhos interfere colocando uma das mãos sobre
os joelhos dele, precisa procurar ajuda para sua
mãe e você.
— Não é tão simples assim, Marcos. Ele
quem sustenta a casa, minha mãe não pode tra-
balhar fora, iríamos viver de quê, fora isso ele nos
mataria se contarmos a alguém.
— Fábio, – digo – ele irá matar vocês real-
mente, mas se continuarem sob o mesmo teto que
ele. Precisam de ajuda e para ontem isso.
— Não se tem o que fazer Fred. Ele é uma
pessoa boa.
— Mas é claro que se tem o que fazer,
Fábio. Agora se é uma pessoa boa eu não tenho
certeza. O agressor destrói a autoestima e deixa
todos ao redor vulneráveis de tal forma que pas-
sam a pensar que não existe outra saída. Mas
sim, Fábio, existe uma saída. Vamos ajudar você
a resolver isso e confie em nós.
— Eu não sei...acho melhor que esqueçam
disso e cada um segue sua vida – responde ele
com temor. Marcos olha para mim novamente e
estamos com a mesma ideia em mente. Agora nos
comunicamos com o olhar.
— Olha, Fábio, deixa que a gente vai pen-
sar uma maneira de te ajudar. Pode ter certeza
ADRIANO SILVA

que não iremos colocar você em perigo e nem a


sua mãe. Mas você concorda com a gente que ser
espancado não é algo que alguém deva ser sub-
metido? — ele assentiu — então confie em nós.
Fábio iria dizer alguma coisa, mas foi logo
132
interrompido.
— Então pronto? – Tati pergunta – mas o
que houve, Fábio? – Marcelo está ao seu lado e
fico confuso com o que está acontecendo. Tati e
Marcelo tão pertinhos sem sair faíscas.... estranho.
— O que houve, Tati? Nós que pergunta-
mos curiosos o que está rolando entre vocês dois
– digo evadindo de dar alguma resposta — não se
suportam, mas nós vimos os dois lá no fundo da
sala trocando risinhos – Marcelo entreolha para
Tati.
— Aí gente, qual é... a gente agora é amigo.
— Ah tá, não precisa exagerar também
Marcelinho – diz Tati.
— Marcelinho? – falamos os três em unís-
sono chocados.
— Hoje é realmente um dia atípico – res-
mungou Fábio — mas agora eu tenho que ir, está
tarde e estou varado de fome – despede-se levan-
tando e desaparecendo por trás de nós.
— Eu não estou entendendo nada mais.
Antes nenhum de vocês se entendiam. Era uma
troca de ofensas por minuto, quase – questionou
Tati – mas agora está todo mundo love.
133
— Cala a boca Tati! – Marquinhos diz des-
ligando o computador e se levantando – você e

VINTE E SETE DE AGOSTO


Marcelo só faltam ir juntos para casa — provocou
ele e como resposta recebeu um olhar de Marcelo
para Tati.
— Ah, gente...pra mim já deu – vem Fred
– me puxou ele me tirando de um transe de incre-
dibilidade. – Um trabalho com Fábio e Marcelo.
Uma conversa com Fábio sem ser chamado de
veadinho e outros termos, mas agora Marcelo e Tati
indo juntos pra casa é a cereja do bolo.
Todos nós começamos a rir e as risadas se
transformaram logo em gargalhadas fazendo a
Fernanda chamar a nossa atenção nos colocando
de vez para fora do laboratório.
CAPÍTULO 11

Ficamos aguardando numa salinha pequena


e branca.
Tudo era branco e com cadeiras geminadas de
seis lugares. À nossa frente um balcão onde uma
recepcionista séria de meia idade estava atenta ao
computador e ao telefone, que tocava praticamente
a cada vez que o fone era reposto em seu lugar.
— Temos quarta às nove. Tudo bem para você
— um silêncio e ela novamente falava — entendo,
mas teríamos horário então na próxima semana,
pode manter a quarta? Okay, então. Até mais e não
se esqueça de trazer um documento de identifica-
ção com foto. Pra você também, obrigada.
Uma janelinha mostrava o jardim lá fora, uns
bancos de concreto com enfermeiras tomando
banho de sol. Familiares com seus entes conver-
sando. Olhei o relógio afixado à parede. Quinze
horas. Provavelmente o horário das visitas. Alguns
riem e parecem felizes, outros estão tristonhos,
cabisbaixos com suas mãos unidas.
Meu pai parece perdido no espaço dos pró-
prios pensamentos. Sentado do lado contrário
a mim, consigo o ver e analisar suas expressões
corporais. Agita o pé sobre uma das pernas num
balanço constante de impaciência. Os cabelos gri-
salhos. Os olhos castanhos, sem expressividade.
135
O que será que está pensando? Começo a cogitar
algumas coisas. Será que está arrependido de ter

VINTE E SETE DE AGOSTO


tratado Sheila com tanta frieza nesses últimos dias,
ou ainda, remorso?
Minha vó diz que remorso é a pior coisa que
alguém pode carregar ao longo da vida, sabe, por-
que simplesmente o que está feito, está feito e não
há nada que você possa dizer ou fazer que repare
isso. O ato de perdoar é um fardo que alivia a dor
de quem o oferta, mas não muda muito de quem
se feriu. Ali tem uma cicatriz e por mais que o
tempo passe toda vez que você olhar para ela se
lembrará de como foi causada. Se tem uma coisa
que posso dizer, que tenho absoluta certeza, é que
Augusto ama Sheila. Talvez mais a ela do que a si
próprio. Mas é possível amar uma outra pessoa
tão sincera e profundamente sem antes amar a si
mesmo? Eu não sei.
Ainda estamos esperando que a enfermeira nos
chame para que possamos falar com o médico.
Sheila se sentiu mal pela manhã e sofreu um
desmaio que provocou uma queda no quarto.
Estávamos na cozinha e apenas um barulho seco
foi ouvido e, não sei como, mas instintivamente
sabíamos o que havia acontecido. Vó Lilia chamou
o vizinho que estava em casa, por uma sorte, espe-
rar o SAMU ou Resgate seria uma demora danada
e o Celta do João foi uma salvação.
Eu estava assustado. Sheila havia caído com a
cabeça na quina da cama. Não estava mais ao chão,
Augusto já a havia colocado sobre a cama. Um
corte comprido na lateral do rosto estava sendo
pressionado por vovó com uma toalha, mas havia
sangue para todo lado, inclusive no uniforme de
meu pai, que havia chegado horas antes e ainda
ADRIANO SILVA

não havia trocado de roupas.


Estávamos, de verdade, todos muito assusta-
dos e quando ouvimos o João estacionar o carro
na porta de casa Augusto colocou Sheila ainda
desacordada nos braços, com uma força que ainda
136
não imaginava que pudesse ter pela idade, e a
carregou.
Eu não sei, mas tudo mudou naquela noite,
foi a partir dela que nossas vidas mudariam para
sempre. Definitivamente.
O que é a vida? O que é a vida quando se tem
apenas 17 anos e ainda não se sabe muito bem a
imensidão das possibilidades que existem e como
o mundo pode ser assustador e cruel?
A minha vida estava ainda começando, mas
eu só saberia que era o começando, mas não iria
muito longe.
Sheila já tinha um diagnóstico muito duro para
lidar, praticamente sozinha. Sim, porque mesmo
que tenhamos pessoas ao nosso lado e que pos-
sam nos dar suporte, estamos e estaremos sempre
sozinhos.
Se o remorso é algo terrível, como disse a
minha avó, a solidão a dois e os pensamentos que
nos assombram todas as noites quando deitamos
a cabeça no travesseiro é algo muito maior e tortu-
rante. Assim era para Sheila, e assim seria para ela
muitos anos depois com a partida de vovó para,
como dizia a religião dela, “a morada do senhor”.
137
A porta se abriu. Meu pai logo se levantou.
Eu o segui instintivamente fazendo o mesmo. Um

VINTE E SETE DE AGOSTO


enfermeiro pediu para que o acompanhássemos.
Um corredor longo, metade das paredes com
cor azul e a parte superior até o teto pintado de
branco, num creme envelhecido pelo tempo. O
enfermeiro foi à frente, Augusto atrás e eu mais
atrás ainda. De alguma forma sabia que nos-
sas vidas iriam mudar novamente com o que o
médico teria para nos falar. Estava sendo como
se tudo fosse filmado em câmera lenta e nós, os
personagens da vida real, em velocidade normal.
Não é estranho quando nossa vida parece com
um musical dos anos trinta, em preto e branco e
descolorido?
O enfermeiro abriu uma porta ao fim do corre-
dor. Meneou a cabeça para que entrássemos. Um
homem de uns 60 anos, calvo e de roupa branca
estava sentado detrás de uma mesinha pequena
com um computador de aparência encardida sobre
ela. Levantou-se da cadeira parcialmente e voltou
a se sentar desistindo do ato de nos cumprimentar
de pé. Meu pai apertou sua mão e o médico então
sinalizou que poderíamos nos sentar em uma das
três cadeiras azuis à sua frente.
— Boa noite senhor Augusto, chamei-o aqui
para que possamos conversar sobre o estado de
saúde de sua esposa — as feições do Dr. Maurício
eram de uma calma como as de pessoas que dissi-
mulam de forma teatral a gravidade de qualquer
assunto. Eu sabia que aquele era um caso destes.
— Então doutor, me diga, sem esconder nada,
o verdadeiro estado de Sheila — por instantes
passou pela minha cabeça o porquê as pessoas
imaginam que os médicos escondem informações
ADRIANO SILVA

reais ou muito graves de seus pacientes e de seus


familiares. Me senti mal por pensar isso. — Como
ela está?
O médico colocou as mãos sob a mesa, entrela-
çou os dedos, depois pegou uma caneta e ficou a
138
segurando olhando para meu pai nos olhos, com
a cumplicidade de quem vai ser o anjo da anun-
ciação, só que dessa vez com notícias não tão boas.
— Sr. Augusto, Sheila está bem, não se preo-
cupe. Está sedada, assim que terminarmos aqui
poderão irem vê-la no quarto. Quando acontece
um acidente em que o paciente bateu a cabeça
sempre é importante que o acidentado nos res-
ponda a dois comandos principais; abrir os olhos
e nos relatar o que houve, Sheila assim que chegou
no centro cirúrgico acordou e realizamos todos os
procedimentos para identificar se havia alguma
abertura ou fissuras no crânio provocados pela
queda e que pudessem, dizendo a grosso modo,
‘’vazar’’ sangue para seu interior. — Augusto ficou
assustado e o médico logo o tranquilizou nova-
mente — não se preocupe, como disse, está tudo
bem com a paciente. Deixaremos em observação
pelas próximas horas e em alguns dias poderão
buscá-la para ir para casa.
Uma luzinha acendeu em minha mente, se
estava tudo bem, como o Dr. Maurício estava
dizendo, então porque estávamos ali em sua sala?
Se não era algo grave porque essa informação não
139
havia sido repassada pela enfermagem ou até
mesmo num boletim na recepção? E de fato tinha

VINTE E SETE DE AGOSTO


algo mais.
— Mas o motivo que lhe trouxe aqui, Sr.
Augusto não tem a ver especificamente somente
com o acidente que sua esposa foi acometida, mas
sim pelo que pode ter desencadeado. — Meu pai
ficou mudo e se remexeu impaciente na cadeira.
Por um momento parecia uma criança acuada.
Eu? Eu estava ali, mas era como se não estivesse.
O médico me considerava novo demais, prova-
velmente, para entender tudo que estava aconte-
cendo e Augusto, meu pai, bem… acho que não
preciso dizer muito sobre — Sheila tem diagnós-
tico fechado para Esclerose múltipla, como acre-
dito que ela tenha os contado pelos acompanha-
mentos que vem fazendo conosco, mas precisamos
que vocês saibam — neste momento meu pai o
interrompe.
— O que podemos fazer para a cura, doutor?
— perguntou Augusto, mesmo eu tendo a certeza
que ele já sabia a resposta. Afinal, todos lá em casa
já sabiam que era uma doença autoimune. Penso,
que meu pai esperava o avanço da medicina
naqueles últimos meses, coisa que não aconteceu.
— Senhor Augusto, acredito que num futuro
próximo tenhamos medicamentos ainda mais efi-
cazes para tratar a doença, mas neste momento a
esclerose é uma doença crônica — fiquei obser-
vando as feições do meu pai e interferi pela pri-
meira vez.
— Isso quer dizer que é uma doença incurável?
— Doutor Maurício me dirigiu o olhar, parecia que
estava me notando pela primeira vez ali naquela
sala.
ADRIANO SILVA

— Exatamente, Fred — me surpreendeu ele


saber meu nome. Não me lembro de ter mencio-
nado, pode ter sido minha madrasta em algum
momento, concluí que sim, pode ser isso — mas
existe tratamento e este deve ser realizado por
140
toda a vida. Por isso os chamei aqui, a queda de
Sheila faz parte do quadro de sintomas que aco-
mete a doença. Basicamente, a Esclerose múlti-
pla é uma doença neurológica, caracterizada pela
perda da bainha de mielina dos neurônios — a
cada vez que o médico dizia algo mais clínico eu
ficava mais confuso, mas sabia o que é um neurô-
nio e, por sorte, meu pai também sabia e assim
sabíamos também que era algo nada bom — por
isso podem surgir sintomas de forma repentina,
como fraqueza das pernas e dos braços, inconti-
nência urinária ou fecal, cansaço extremo…perda
de memória e dificuldade de concentração.
Augusto ficou mudo enquanto o médico avan-
çava nas explicações do diagnóstico. Eu senti,
como poucas vezes na vida, pena dele. Lógico
que sentia muito pelo que estava acontecendo com
Sheila, até então não tínhamos uma dimensão tão
ampla do que estava ainda por vir.
Depois daquele dia tudo mudou em nossas
vidas. Fomos ver Sheila no quarto, ela ainda estava
dormindo pelos remédios e lembrei das receitas
que o médico entregou a meu pai. Eram tantos
remédios e para tantas coisas que sem a ajuda
141
minha e de minha avó, Sheila por si jamais daria
conta de toma-los todos nos horários corretos.

VINTE E SETE DE AGOSTO


Sheila estava ali, à nossa frente, coberta por
um lençol azul, a cabeça enrolada em ataduras
e faixas. Sua fisionomia era serena, calma, mas
ali dentro, debaixo daquela pele o corpo estava
lutando contra si mesmo e, pior, estava perdendo a
batalha. Eu fui para mais perto, a abracei e chorei.
A vida era injusta. Eu saberia que poderia ser
muito mais tempos depois.
CAPÍTULO 12

Em algum momento da sua vida talvez já


tenha pensando sobre o dia da sua partida. Sim,
de sua morte. A morte é a nossa única certeza,
diria também vovó. A vida é uma dádiva fatal.
Alguém sai vivo daqui? Então estou certo! Mas o
que pensamos sobre a morte nunca tem a ver com
morrermos jovens.
A gente nunca pensa que poderá ser amanhã,
que hoje pode ser nosso último dia. O que faría-
mos se pudéssemos ter algum tipo de dispositivo
que nos mostrasse o dia “D”? Abraçaríamos quem
amamos, ou ainda, sairíamos com os amigos para
um bar e jogaríamos conversa fora? Iríamos na
casa de todos os nossos afetos? Será que o dia será
de sol ou de chuva? porque temos aquela ideia de
que somos sempre insubstituíveis. Mas no fundo
a gente sabe que não é. Todo mundo é substituí-
vel! Mas um dia de sol seria um dia feliz, não
seria? Todo mundo não diz isso. Morrer num dia
de chuva, nublado e frio seria meio que um dia
triste — ou por outra perspectiva poderia ser um
dia em que o céu estivesse chorando pela sua par-
tida, não?
Muitas coisas se seguiram naqueles dias, algu-
mas interessantes, outras nem tanto. A semana da
apresentação do nosso trabalho já se aproximava
e continuávamos conversando como ele deveria
143
ocorrer. Se eu e Marcos estávamos cada vez mais
apaixonados, o mesmo também acontecia com

VINTE E SETE DE AGOSTO


Tati e Marcelo, que agora era Marcelinho para cá
e para lá.
— Gente, como ficaremos em relação ao Fábio,
pensei muito sobre – disse eu parando repentina-
mente – precisamos falar com a direção a respeito,
o que acham?
Tati apontou com o indicador uma praça e a
seguimos até lá.
Marcos ficou de pé em volta de uma mesa de
concreto que possuía dois bancos, também de con-
creto fixados ao chão, o ambiente se encontrava
bem fresco pela quantidade de árvores que som-
breavam tudo à volta. Algumas poucas crianças
estavam brincando numa área com areia, circun-
dada por um alambrado esburacado e que, pro-
vavelmente, por onde entravam cães e a sujavam
com suas necessidades. Alguns adultos estavam
distraídos em seus próprios mundos e vez ou
outra levantavam a cabeça ou gritavam o nome
de alguma criança.
— O que vocês pensaram sobre o Fábio?
— Sinceramente, Tati eu ainda não pensei mui-
tas coisas — disse eu — estamos com alguns pro-
blemas lá em casa, o que nem é uma novidade.
Meu pai está cada dia mais chato e desconfiado,
não sei ainda se sobre Marquinhos e eu.
— Acho que é cisma sua, Fred — falou Mar-
cos se sentando ao meu lado e com um olhar de
cumplicidade por toda fase difícil que sabe que
venho passando — não tem como Seu Augusto
estar desconfiado se nem nunca demos motivos
para isso. Bobagem sua.
— É pode ser — concordei mais para não enve-
ADRIANO SILVA

redar pelos motivos que achava, mas já era tarde,


Tati se antecipou para participar.
— Hum, acho que todo mundo já sabe mais ou
menos o que está rolando aí, com vocês dois. Essa
luz que emitem quando estão juntos é ofuscante.
144
— Eitah, agora somos uma árvore de Natal que
emite luz e pisca chamando a atenção?
— Praticamente, Marcos. Eu percebi assim
que vi os olhares de cumplicidade de um com o
outro todos os dias no caminho da escola. Olha
que conheço vocês desde de sempre.
Marquinhos coloca o dedo mindinho sobre o
meu, levanto-o para que se enrosquem. Senti que
foi uma espécie de “não se preocupe, estou aqui”. As
coisas não ficariam tranquilas se Augusto desco-
brisse. E dependendo de como descobrisse seria
ainda pior.
— Vamos voltar ao Fábio, gente?
— Eu penso que com a apresentação do nosso
trabalho muitas coisas começarão a fazer sentido
na cabeça do Fábio.
— Não sei se vai acontecer isso, Tati. Até por-
que ele está dentro da situação de violência. Não
é algo tão simples para ele e a mãe.
— Isso eu concordo gente — interferiu Marcos
— a mãe do Fábio também é culpada pelo que
acontece.
Eu fiquei pensando se realmente a mãe de
Fábio teria responsabilidade sendo que também
145
era vítima de todo mal que o marido os fazia.
— Marquinhos, ela é tão vitima quanto o filho.

VINTE E SETE DE AGOSTO


Imagina o que eles vivem lá. O agressor destrói
a autoestima das suas vítimas — disse eu me
lembrando do material disponibilizado pela Ana
Maria.
Tati fica olhado uma criança que passa andando
de bicicleta à nossa frente. Está com os olhos para-
dos daquele jeito de quem está focada em um
ponto, não o focando e sim refletindo. Ficamos,
Marcos e eu, esperando que ela diga algo.
— Pode ser isso também. Para o agressor é
sempre muito interessante que as vítimas se sin-
tam dependentes deles.
— Acho que neste caso é total isso — concorda
Marquinhos — mas e então, como ajudaremos? —
Olha, Marcelo me disse que o Fábio se sente muito
constrangido a respeito disso e que é constante ver
o amigo machucado e sempre com uma desculpa
diferente no vestiário quando vão jogar bola. Uma
vez caiu no banheiro. Outras foi briga com um
primo. Outra que caiu da cama. Mas todos sabe-
mos a verdade.
— A verdade é que é espancado, né? — falo
pensando na minha própria situação. Estamos
aqui sentados tentando encontrar uma solução ou
um caminho para ajudar o Fábio, mesmo que eu
mesmo nem consiga lidar com os meus próprios
problemas dentro de casa. A violência não precisa
deixar marcas físicas para ser violência. Algumas
outras deixam cicatrizes até mais profundas.
— Sugiro que apresentamos este trabalho e
depois podemos conversar com a Ana Maria e ver
o que ela pode fazer. Sozinhos, sem a ajuda de um
adulto, não vamos conseguir ajudar o Fábio. Nem
ADRIANO SILVA

muito amigos fomos nesses anos todos de escola,


mas me compadeço dessa situação.
— Concordo — Tati responde — assim pode-
mos ver como vai ser também. Essa apresentação
vai ser bem emotiva — completa ela e sei que se
146
referia também a minha situação com meu pai.
— Acho que estamos todos de acordo então.
Já podemos aproveitar o restinho do sábado, né?!
— digo eu.
— Eu já estou aproveitando — Marquinhos
me olha e devolvo um sorriso de cumplicidade
— agora só falta você Tati. Nem bem concluí a
frase e vemos se aproximar Marcelo. Vestindo uma
bermuda verde, uma camiseta quase de mesma
tonalidade. Estava parecendo um pé de alface
ambulante, mas guardei este comentário maldoso
para mim.
— E quem disse que não irei? — nos responde
se levantando e abraçando Marcelo, dando lhe um
selinho. Ele nos olha e parece outra pessoa, bem
longe do babaca que nos atormenta no colégio ano
após ano.
— Oi gente! — diz ele e logo encaro Marcos.
— Olá, nossa que evolução, hem Marcelo!
— Tá vendo Tati, não tem como ser legal com
esses dois!
— Ah, Marquinhos, dá um desconto. Marceli-
nho está tentando.
— Desculpe.
147
— Tá tudo okay — responde ele — vamos Tati,
quero te levar para tomar um sorvete. Só nós dois

VINTE E SETE DE AGOSTO


— pontua ele rindo.
— Topo, vamos! Tá muito quente mesmo e
assim aproveito para te reiterar do que conversa-
mos sobre o trabalho de vocês.
— Nem queríamos, mesmo — devolvo brin-
cando. Na verdade, estava sendo sincero. Não
iríamos sair dali para um outro lugar, que não
fosse para que ficássemos sozinhos por um tempo.
Estava morrendo de saudades de poder beijar e
abraçar Marcos.
Assim que Tati e Marcelo vão embora para a
sorveteria, que ficava do outro lado da praça, com-
binamos de ir cada um para sua casa.
— Nos vemos dentro de uma hora, o que acha?
— Acho perfeito! Tempo suficiente para almo-
çar e te encontrar, Fred.
— Certo, vem de bike e a gente pode ir lá para
o Morro do Cimento, o que acha? — disse ele. Eu
quis ser contra e não irmos mais para lá, afinal
estava cada vez mais perigoso por ser um local
mais isolado e distante do nosso bairro, mas como
estaríamos em dois não vi nenhum problema caso
aparecesse, sei lá, um drogado mais exaltado.
— Então certo, daqui a uma hora em frente à
minha casa!
— Combinadíssimo! Até daqui a pouco — nos
despedimos.
***

Meu pai não trabalha aos sábados. E isso não é


algo que eu possa dizer que é agradável. Acredito
que para minha vó seja, mas até mesmo ela anda
perdendo a paciência com ele.
ADRIANO SILVA

Sheila tem ficado mais no quarto. Às vezes, vai


até o jardim e fica por lá, sentada em um tronco
da nossa antiga mangueira que foi cortada para
que, em dias de algum temporal, não caísse sobre
a nossa casa.
148
Assim que cheguei fui até Sheila e sentei um
pouco ao seu lado. Ela segurava em uma das mãos
uma flor de dente de leão, sem ainda ser aquele
tufo branco que parece um algodão tão leve que
o vento pode até carregar e espalhar.
— Você está aí, querido — ela sorri — olha o
que achei, pouca gente conhece o dente de leão
antes de secar e ser aquelas sementes que a gente
sopra — ela ficou aguardando que eu dissesse
algo, mas apenas assenti — um belo exemplo de
delicadeza e força — disse ela.
— Força e delicadeza não parecem ser duas
palavras que combinam, Sheila — eu discordei
sem saber ainda direito o porquê o fiz. Ela balança
a cabeça em desacordo.
— Bobo, dente de leão era tida como uma erva
daninha, sabia? Mas tem diversos benefícios, um
deles como chá para afastar um resfriado — ela
diz orgulhosa.
Fico observando Sheila. As mãos estão com
pequenas manchinhas avermelhadas. As pontas
dos dedos estão um pouco brancas, como se fosse
um dia frio, mas está no mínimo fazendo uns 38
graus. O cabelo está solto e é tão fino e castanho
149
que aparenta ser de uma princesa.
— Mas Sheila, me diga, qual é um outro bene-

VINTE E SETE DE AGOSTO


fício — perguntei mais para que continuásse-
mos conversando do que realmente interessado
na planta que tem quase pelo jardim inteiro. Ela
parece distraída e não me ouve, porém me surpre-
endo novamente.
— A outra, é quando a planta está naquela
haste já seca e com os flocos branquinhos em
forma de uma coroa. Então você o segura e faz
um pedido com muita fé e o sopra jogando toda
a energia ao universo — fico intrigado — então se
o universo te atender é porque era para ser.
— Incrível! — digo eu, não que eu acredite,
mas vai que seja verdade e, se não for, eu não
perco nada, não é? Procuro ao redor uma haste
de dente-de-leão pronto para ser dispersado e vou
até ele — então vamos fazer nossos pedidos ao
universo, o que acha? — Apanho a haste e a levo
até aonde Sheila está e a seguramos juntos.
— Feche os olhos Fred — obedeço — agora
vamos fazer nossos pedidos e soprar as pluminhas
brancas ao universo — ela me orienta — vou con-
tar até três e no três a gente abre os olhos e sopra,
só memorize o que vai pedir. Um, Dois, Três!
Quando abro os olhos e sopramos o dente-
-de-leão uma corrente de vento surge e os flocos
branquinhos parecem bailar no ar. Foi a coisa mais
linda.
— Acho que é um bom sinal — digo a Sheila e
ela sorri — o que pediu?
— Não pode falar, Fred, ou não se realizará
— eu finjo uma careta — não seja curioso — ela
me abraça.
Poucos dias foram como aqueles para Sheila.
ADRIANO SILVA

Para mim não foi diferente.


Por fim, meu pedido, soprado naquele dente
de leão nunca se realizou e acredito que o dela
também não.
150
***

A bicicleta está um pouco velhinha, faz tempo


que a vó me deu e quase fica desproporcional
ao meu tamanho comparado ao tamanho dela.
Tomo cuidado para passar com ela pelo espaço
apertado da garagem sem que arranhe o carro do
meu pai, um Chevette cinza da década de 70 e
que ele cuida e considera mais que a mim, isso
sem dúvida alguma, muito mais. Este carro é tão
importante para meu pai que sempre aos sábados
pela manhã, como hoje, ele sempre o lava, retira
todos os assentos e o lustra com cera até que seja
possível ver o seu reflexo na lataria.
Todas as lembranças que tenho de mais jovem
passam, quase que necessariamente, pelo Che-
vette. A lembrança que tenho de termos tido uma
viagem em família deve ter muitos anos. Quando
eu tinha uns dez ou onze anos. Era uma sexta-feira
à noite. Augusto chegou em casa animado e disse
que tinha ganhado um bônus-férias na fábrica e
que era para todos arrumarem as malas que pega-
ríamos a estrada para a praia.
Foi uma das poucas vezes que me senti tão
151
feliz. Eu nunca tinha ido à praia antes e sempre
me imaginava construindo castelos na areia, ou

VINTE E SETE DE AGOSTO


ainda, brincando nas ondas do mar.
Estávamos no Chevette cinza pela BR040, a vó,
Sheila e eu, meu pai estava ao volante ouvindo
uma música, que tentava acompanhar por cima
da letra cantando tudo errado. Foi um dos poucos
dias mais felizes que tive na vida. A viagem foi
mais mercante que ter pisado na areia e visto o
mar pela primeira vez.
— O que está pensando? — me pergunta Mar-
cos. Seu cabelo reflete os raios do sol e parecem
em chamas.
— Nada demais. Esperando você chegar — res-
pondo sem querer falar sobre meu pai — então
vamos? — digo eu me ajeitando novamente na
bicicleta.
A rua está vazia. Nenhum vizinho está sentado
na calçada ou de conversa fiada com algum outro
vizinho.
— Vamos! — diz ele, enquanto pedalamos pela
rua e seguimos para a avenida que margeia o rio
que corta a cidade. Quando cruzamos a esquina
e já estamos mais longe da minha rua sinto que
estamos sendo observados e olho para trás.
— Olha quem está lá — alerto Marcos — atrás
daquela árvore, viu?
— Vi, mas o que tem? Este cara está sempre
aqui pela rua, Fred.
— Não sei Marquinhos, me arrepio sempre
que o vejo. Parece que está sempre à espreita, não
acha? — digo eu esperando que Marcos concorde
comigo.
— Se não me engano você já me falou sobre ele.
Acho que pode ser coisa da sua cabeça. Tipo, como
ADRIANO SILVA

você tem medo do seu pai, fica mais cuidadoso.


Pedalamos mais rápido, mas insisto no assunto.
— Eu acho é muito estranho que este cara
esteja sempre na nossa rua, mesmo quando não é
o dia que o caminhão da prefeitura faz a coleta de
152
lixo — tentei mostrar para Marcos que era inco-
mum que alguém estivesse numa rua tão morta de
movimento como a nossa em dias que não eram
destinados a coleta, assim não poderia ele estar
separando recicláveis.
—Ah, Fred, esquece isso! Um sujeito que não
oferece perigo a ninguém. Minha mãe me falou
que ele pede água quase sempre lá e que numa
dessas vezes disse que mora aqui perto. Acho que
foi isso, não tenho muita certeza.
— Hum, eu não sei. Pode até não te deixar
encafifado, mas eu acho tão estranho que sempre
que estamos indo à aula, voltando dela, saindo
para algum lugar, sempre o vemos em locais e
pontos que parecem estratégicos nos observando,
— Nós ou observando você? Melhor dizendo,
você quem acha isso, Fred.
— Acho o quê Marquinhos? — digo dando
um de desentendido. Na verdade, acho sim, mas
não quero mais falar sobre isso. Chegamos ao por-
tão que dá para o Morro do Cimento. Descemos
das bicicletas e as empurramos por debaixo de
um alambrado que ostenta acima uma placa de
“entrada proibida - risco de morte”.
153
De fato, o local é perigoso. O Morro do Cimento
não tinha esse nome, mas assim ficou conhecido

VINTE E SETE DE AGOSTO


depois que a Cimentilit decretou falência. O local
está abandonado no mínimo há trinta anos.
Uma construção parcialmente destruída
erguida do pé do morro e sustentada por pilares
que seguem por uma altura de mais de 50 andares,
do seu alto é possível de ter uma vista incrível de
todo o bairro que moramos, Basta uns minutos
subindo pela rua íngreme, ou o que resta da pavi-
mentação que lembre isso, para se chegar lá em
cima de onde os caminhões despejavam o calcá-
rio extraído e que servia de matéria prima para a
fábrica.
O fato é que Augusto, e quase todos os pais que
tem juízo, não deixam os filhos irem ao Morro do
Cimento, basicamente por motivos que Marcos e
eu estávamos desconsiderando neste momento.
Um dos motivos é que muitos usuários de drogas
costumam ir até ele, já que a Polícia dificilmente
viria ali ou, ainda, pela facilidade de ver a giroflex
das patrulhas. O outro motivo é o risco de queda
da estrutura, que não possui guarda-corpo.
— Já estou colocando os pulmões para fora!
— Só mais um pouquinho, Marquinhos — digo
incentivando-o a continuar andando — quer que
eu leve a sua bicicleta? — ele sorri balançando
negativamente a cabeça.
Damos uma paradinha no platô e sentamos nas
bicicletas para pedalarmos mais uns metros até a
espécie de mirante. O vento está soprando fresco,
mesmo a sensação do sol sobre a pele estar desa-
gradável. Marcos está um pouco mais vermelho
nas bochechas pelo sol e pelo cansaço da subida.
— Quer um gole de água — me oferece reti-
ADRIANO SILVA

rando uma garrafinha da mochila.


— Quero, junto com um beijo teu — digo dei-
xando a bicicleta encostada sob uma árvore e o
beijando. Nossos lábios se encaixam na perfeição
da urgência.
154
— Fiquei o dia todo esperando isso — diz ele
— enfim sozinhos.
Olhamos ao redor, ninguém e nenhum usuário
de drogas. Mais alguns passos e estamos à beira
do precipício da estrutura. Antigamente cami-
nhões despejavam o calcário extraído da jazida
por uma espécie de tobogã que o conduzia até
as caçambas transportadoras para a fábrica da
Cimentilit.
— Agora a espera acabou — digo colocando
um braço sobre seu ombro e sinto seu braço envol-
ver minha cintura. — Você tem me feito muito
feliz, Marcos.
— Eu estou apaixonado por você também,
Frederico.
— Ah, eu não disse que estou apaixonado —
falo brincando e fazendo careta de dúvida — tal-
vez um pouquinho, mas um pouquinho somente.
— Ah! Acredito, pode confessar que não conse-
gue mais dormir sem mim! — ele fala olhando um
ponto qualquer no bairro, que se projeta distante,
onde o sol começa a caminhar para se pôr.
— Nem dormir e acho que nem viver mais.
— “Eu sou uma confusão” — imita ele — parece
155
que não tão confuso assim né?
Nos afastamos da beira do mirante e vamos

VINTE E SETE DE AGOSTO


mais para trás, onde há um pequeno barranco e
umas carcaças de caminhões enferrujados muito
velhos. Ficamos ali nos beijando debaixo da
árvore. Os lábios de Marcos tão macios. Nossas
bermudas finas com os paus ralando um contra
o corpo do outro, pedindo para serem libertos de
suas cuecas.
— Quero te dar uma coisa — digo.
— Oba! Já estou preparado para te dar ele —
Marcos pega minha mão e coloca sobre seu short e
sinto o pau latejando em pulsadas, imediatamente
meu corpo todo se arrepia de tesão e desejo.
— Não…não é isso. Apesar de eu querer isso
também, Marquinhos. — Afasto minha mão de
seu pau e retiro do bolso um pequeno embrulho
— trouxe para você. Percebo seu rosto iluminar
quando pega de minha mão e o abre.
— Que lindo Fred, eu não te trouxe nada.
É lindo e ainda tem meu nome nele — diz ele
colocando a fitinha com seu nome no braço — eu
não sabia que tinha como grafar o nome das pes-
soas nas fitinhas de Senhor do Bonfim — eu ado-
rei, de verdade. Essa cor é linda!
— Na verdade, não colocam nomes mesmo —
Marcos franziu a testa curioso — mas não, não
fui eu quem bordou o seu nome aí. Pedi para que
a Tati fizesse pra você. E o amarelo foi coisa dela
também que me disse ser sua cor favorita — deixa
eu amarrar para você — dou duas voltas da fita
no braço dele e peço que faça um pedido a cada
nozinho que dou nela — não pode me dizer o que
vai pedir, okay?!
— Um dos pedidos já se realizou — ele res-
ADRIANO SILVA

ponde. Então se dá conta, quando termino de atar


os nós, que cada ponta das extremidades da fita
tem uma letra — M e F…que lindo Fred!
Percebo que Marcos ficou com os olhos leve-
mente marejados e o abraço contra meu corpo.
156
Olho ao redor para me certificar que estamos sozi-
nhos. Ninguém.
— Olha quero te dar outro presente — falo e
me abaixo ficando apoiado em um pé e o outro
levemente estabilizado nas nádegas. Abaixo um
pouco o short de Marcos e deixo que seu pau saia
da cueca azul. Um pau lindo. Branco com pelos
curtos e avermelhados — é lindo, Marcos — cons-
tato enquanto deixo suas bolas saírem também da
cueca — e essas aqui são maiores que as minhas
— falo afastando uma parte das pernas do meu
short e liberando também meu pau da cueca.
Seguro firme seu pau e ele curva um pouco o
corpo para trás projetando mais o quadril para
frente deixando-o mais duro.
— Está babando — coloco a mão na base do
seu membro e faço um movimento de deslizar os
dedos trazendo mais do esperma translúcido para
a cabeça. Tiro com o indicador e coloco à boca —
está adocicado, quer sentir? — ele assente. Retiro
mais um pouco de líquido no dedo e me levanto,
levando agora meu dedo à boca dele.
Marcos lambe meu dedo devagar, os lábios
rosados e macios.
157
— Está mesmo — responde,
— Este é o líquido pré ejaculatório…não se

VINTE E SETE DE AGOSTO


preocupe, a parte melhor guardei para agora —
digo me abaixando e colocando dessa vez todo seu
pau em minha boca. Ele arfa novamente e geme
gostoso. Coloco minha mão em sua bunda e puxo
mais seu corpo contra minha boca.
O sol começa a se pôr por detrás dos morros
à nossa frente. Marcos está delicioso e derretido
entre minhas mãos. O local é arriscado, ambos
sabemos disso, ainda mais agora que uma penum-
bra se projeta parcialmente no morro, deixando-o
parte iluminado e a outra semiescura.
Sinto as mãos de Marcos segurar minha cabeça.
Acaricio também meu membro que está pulsando,
apenas aguardando o aviso, que pelos tremores
das pernas dele está prestes a sair pela boca.
— Vou gozar, Fred! — ele sussurra gemendo
gostoso e sinto o seu pau pulsando em minha boca
e um sabor amargo tomando conta de minha lín-
gua. Gozo em jatos que me deixam quase a perder
os sentidos de tamanho êxtase.
— Delicioso! — ele diz assim que me levanto
e beijo sua boca ainda com seu sabor.
— Sinto seu cheiro no toque de nossos lábios.
Nos recompomos. Está ficando escuro e o
Morro do Cimento é perigoso à noite. Pegamos
as bicicletas e descemos sentindo o frio do vento
tocando nossas faces.
— Nunca estive tão feliz! — ele grita pedalando
mais à minha frete.
— Eu também não, Marquinhos! — grito de
volta.
ADRIANO SILVA

158
CAPÍTULO 13

O dia fatídico chegou. Eu não queria ser pes-


simista, mas quando acordei sentia que o dia não
prometia grandes coisas. Ao menos o que se refe-
ria para a apresentação do trabalho na escola.
— Trabalho não, castigo! — disse eu a vó Lilia
quando me perguntou se havíamos nos preparado
para a apresentação. — Estamos com tudo deco-
rado vó. Vai dar certo, acho.
Meu pai estava sentado à mesa, com o jornal
enfiado na cara na parte dos esportes. Levantou
uma sobrancelha e resmungou qualquer coisa
inaudível. Eu ignorei imaginando que era alguma
crítica. O que poderia partir dele?
Sheila estava sentada de frente para mim e
comia um iogurte natural com açúcar. Um hábito
dela desde sempre e que confesso ter aprendido
também a amar.
— Tenho certeza que se sairão muito bem no
teatro — ela incentivou — teatro, não é?
— Não querida, castigo — corrigiu Augusto —
espero que não esteja me envergonhando ainda
mais, Frederico! — fiquei congelado perplexo com
a xícara de café que estava levando à boca.
— Envergonhando com o que, Augusto? —
interveio minha avó — eu estava atento à resposta.
O coração deu uma acelerada e baixei a xícara para
não começar a tremer. Será que meu pai tinha visto
ou escutado algo sobre mim e Marcos? Não, não
teria como, teria? Sempre somos cuidadosos, essa
ADRIANO SILVA

noite nem dormimos juntos aqui em casa, mas


mesmo assim nunca fizemos nenhum ruido que
se propague pelo silêncio da madrugada.
— No meu tempo castigo era de frente para a
parede, atrás da porta ou ajoelhada no milho —
160
disse Sheila quebrando o clima tenso — que bom
que as coisas mudaram. Mas o que isso tem a ver
com o teatro?
— Sheila, é uma apresentação de trabalho —
minha avó explicou — os meninos irão apresentar
um trabalho sobre tipos de violência — disse ela
e encarou meu pai séria.
— Bem, eu vou indo, não quero chegar atra-
sado — digo eu me apressando e desfazendo o cli-
mão desde a pergunta que vovó fez e Augusto não
respondeu. Não estou nenhum pouco interessado
em ouvir no que eu o envergonho. Ainda mais se
for referente a Marquinhos, apesar de achar que
nós não temos dado na cara. Pelo menos não muito.
Pego a mochila e dou um beijo no rosto de
Sheila. Apesar de bem, anda está muito confusa
em relação a alguns assuntos. O médico disse que
é normal e que durante a medicação de alguns
imunossupressores, para diminuição de surtos,
Sheila esquecerá algumas coisas e fará confusão
com outras nesse início de tratamento.
— Bom teatro!
— Obrigado — agradeço.
Errada não está. Essa apresentação nada mais
161
será que um grande teatro, chego à conclusão. O
que vamos fazer durante as apresentações para

VINTE E SETE DE AGOSTO


as turmas é somente isso. Se eu pensar assim será
melhor.
Pego a rua principal e de longe já vejo que Mar-
cos está sentado na calçada me esperando. Está
distraído mexendo em alguma coisa no chão e o
sol iluminando o seu corpo. Os cabelos, como sem-
pre, em chamas...
Quando percebe que estou indo sem sua dire-
ção ele sorri. O sorriso mais lindo e capaz de fazer
me esquecer de tudo.
O uniforme deixa Marcos mais bonito. Branco
da camisa favorece a cor de sua pele e o ruivo
do cabelo. A bermuda azul marinho, pouca coisa
abaixo dos joelhos, marca seu corpo, tanto atrás
quanto na frente, deixando um volume bem apa-
rente. Confesso que é quase hipnotizante.
— Olha ele, chegou mais cedo! Bom dia!
— Bom dia, flor do dia — respondo e ele
começa a rir mais alto — vamos, antes que te dou
um beijo aqui.
— Vamos, Fred. Está lindo!
— O dia?
— Engraçadinho! — ele faz uma careta e me dá
uma olhada com o castanho dos olhos brilhando
pelos raios do sol.
Vejo que meu pai está vindo, longe de nós, mas
caso não apertamos o passo ele irá nos alcançar. E
mesmo que o percurso com ele junto seja pequeno,
será muito desagradável, com toda certeza. Não
preciso nem dizer isso a Marcos, que parece adi-
vinhar o que estou prestes a dizer.
— Vamos então… — Tati não tem nos acompa-
nhado neste caminho para a escola. Marcelo tem
ADRIANO SILVA

passado antes de nós à frente de sua casa e, como


estão naquela empolgação do primeiro amor,
como nós, acabam indo na frente. Não acho ruim.
Não achamos. Assim é um momento que temos,
Marcos e eu, de conversarmos mais à vontade.
162
— Você pensa na gente junto?
Não foi uma pergunta com algum motivo
aparente, mas percebi que uma curiosidade de
Marcos.
— Muito.
— Muito quanto? — ele me encara curioso.
— O tempo todo.
E era verdade e me lembraria disso novamente
num futuro que não foi muito longe deste dia em
que me perguntou “você pensa em mim?”.
***
Talvez a calma que eu tentava transparecer
tenha ido totalmente embora assim que cruzamos
os portões da escola. Até gaguejar eu comecei.
Marquinhos ficou mudo de repente. Caminhamos
lado a lado, cada um imerso em seus pensamentos.
Para a apresentação ficou dividido que Marcos
e eu falaríamos sobre violência contra as minorias,
um tema que para nós era muito mais que um
assunto qualquer. Não isentando a importância
de se falar da violência doméstica. Na verdade,
essa era a minha maior preocupação.
Marcelo se sairia bem falando sobre bullying,
ninguém conhecia mais o lado do agressor como
163
ele. Agora iríamos ver se conseguiria falar sobre
as consequências na vida das vítimas.

VINTE E SETE DE AGOSTO


Não teria dificuldades em falar sobre o tema.
Tati durante a semana havia repassado com ele
várias vezes o que deveria pontuar e até sugeriu
que, caso ficasse nervoso, poderia ficar com um
objeto nas mãos, uma caneta, por exemplo, para
aliviar a tensão de falar em público.
Fábio, por outro lado, iria falar sobre a vio-
lência doméstica. Falar sobre o que se sofre sem
dizer que isso faz parte dos seus dias. Marcos me
olha enquanto cruzamos o pátio para pegarmos a
escada e seguirmos pelo corredor onde fica loca-
lizada nossa sala de aula.
— Será que isso vai dar ruim, Fred? — per-
gunta ele.
Outros alunos estão apressados indo para suas
respectivas turmas à nossa frente.
— Eu não sei. Antes eu achava que seria uma
boa ideia, mas agora não tenho muita certeza
disso. Não sabemos nem se Fábio irá comparecer
para essa apresentação.
— Se sua dúvida era essa — diz ele me mos-
trando com o queixo que Fábio estava sentado
num dos canteiros de flores que ornamentam o
pátio — então não precisa mais a ter, porque ele
está ali.
— Hum, então vamos ver o que vai rolar, não
é?
Fábio se levanta e espera para que nos apro-
ximemos mais um pouco. Seu olhar está vago,
de modo que não consigo decifrar muito bem se
está triste ou preocupado. Com a mesma cara dos
outros dias não está, isso é possível identificar.
— Oi gente! — cumprimenta Fábio.
ADRIANO SILVA

Marquinhos me olha e devolvo um olhar de


“realmente a coisa está complicada mesmo”. Fábio nos
cumprimentar sem nos agredir já é de estranhar.
— Olá — devolvemos em resposta.
Marquinhos tenta não o encarar e mantém seu
164
olhar no imenso corredor com mais de trinta salas
do primeiro andar à nossa frente. Os demais alu-
nos estão dispersos pelos corredores, esperando os
professores surgirem na entrada para saírem em
disparada para seus lugares dentro da sala. Nossa
sala é a última ao fim do corredor do segundo
andar e é por ela que iniciaremos a apresentação
do trabalho. Trabalho não. Castigo. Me corrijo.
— Não sei se consigo fazer isso gente — diz ele
mais alto para que o ouçamos enquanto risadas e
empurrões são trocados nas escadas pelos demais
— sei lá. Acho que foi uma péssima ideia eu ter
vindo à escola hoje.
— Se acalme, Fábio. Estaremos todos ao seu
lado, de modo que se empacar na sua parte a gente
te ajuda — ponderou Marquinhos.
— Sim, Fábio, não se preocupe com isso. A pri-
meira turma é a mais difícil por ser a primeira e
ainda por cima a nossa. Mas depois nas demais
seis turmas estaremos afiados para falar — digo,
mas sei que o motivo do desconforto que ele sente
para falar sobre este tema não parte especifica-
mente da timidez.
Fábio parece um menino daqueles que pisam
165
na escola pela primeira vez aos seis anos de idade
e sinto vontade de abraçá-lo. Coloco uma mão em

VINTE E SETE DE AGOSTO


seu ombro, assim que seguimos pelo nosso corre-
dor, e digo olhando em seus olhos.
— A gente agora é uma equipe. Assim como
nos jogos de futebol. Então não se preocupe, esta-
remos ali com você — pelo olhar que Marquinhos
nos deu percebi que estava sendo ridículo na com-
paração já que odeio futebol. Por fim, Fábio apenas
meneou a cabeça num gesto de agradecimento.
À porta estava Tati nos aguardando e, claro,
Marcelo. Assim que nos avistou, entre meio a tan-
tos alunos de bermudas de brim azul e camisas
brancas com o emblema da escola, veio sorrindo
ao nosso encontro. Pelo seu sorriso não dava para
saber se estava feliz por estar com Marcelo ou se
porque agora seu plano, que nem sabíamos direito,
iria funcionar.
— Olha meu casal favorito! — ela diz e Fábio
está tão imerso em si mesmo que não ouviu, ou
se ouviu não deu tanta importância mais. — Olá
Fábio?
— Oi — responde ele sem entusiasmo algum.
— Ei, meu chapa, vai dar tudo certo nessa apre-
sentação. Imagina que eu falarei sobre bullying e
nem estou assim desesperado!
— MARCELO! — Gritamos ao mesmo tempo
com ele, apenas assim percebeu que tinha dado
um vacilo.
— Hah, me desculpa, Fabinho.
— Não se preocupe, Marcelo — ponderou
ele — tá de boa, sério mesmo. — Apenas neste
momento que notamos algo que havia passado
despercebido por Marquinhos e eu; Fábio estava
com um corte no supercílio esquerdo e ao notar
ADRIANO SILVA

que Tati está olhando o ferimento se antecede em


responder — hum, se eu disser que caí vocês nem
acreditariam mesmo, não é?

***
166
O alarme soou e entramos todos para a sala.
Marcelo se sentou próximo a Fábio e Tati foi para
perto de onde estava Marquinhos, duas carteiras
de distância de onde eu estava em pé no quadro
colocando data e título da nossa apresentação.

Violência Doméstica, Violência contra


Minorias e Bullying

Escrevi com uma caligrafia horrível. Olho para


traz após um silêncio repentino. Todos estavam
olhando Ana Maria, a diretora, que havia acabado
de adentrar à sala juntamente com a Professora
Cintia que leciona a disciplina de Biologia.
— Bom dia Turma 3M1. Hoje iremos ter uma
palestra com quatro dos colegas de vocês e o tema
será — aponta ela o que escrevi no quadro —
espero que todos vocês aproveitem este momento
para aprender um pouco sobre respeitar a vida e
individualidades do nosso próximo. Professora
Cintia cedeu o horário dela para esse evento e irá
acompanhar a apresentação com vocês — ponde-
rou séria — e espero que prestem mesmo atenção
167
e não atrapalhem os colegas.
Marcelo e Fábio se levantam e seguem para

VINTE E SETE DE AGOSTO


onde estou. Marcos vem caminhando logo atrás
na mesma fileira. Tati nos dá um sorriso de incen-
tivo. Nos dividimos de forma que ficamos de um
lado; Marquinhos e eu próximos à janela com vista
para os fundos do refeitório. Marcelo e Fábio se
posicionam próximos à porta de entrada da sala,
na outra extremidade do quadro.
A nossa preparação não incluiu muitos apa-
ratos técnicos, até porque a escola não dispõe
de muitos recursos de áudio e vídeo e seria uma
tragédia toda vez que mudássemos de sala para
a próxima apresentação ter que carregarmos ou
contar com algum funcionário para isso. Logo, vai
ser tudo no gogó mesmo e com algumas anotações
que fizemos em papéis avulsos.
— Bom dia. Essa é a apresentação sobre Vio-
lência contra minorias — Marquinhos inicia se
posicionando no meio do quadro — essa pri-
meira parte da apresentação falaremos de como
a violência afeta minorias no Brasil.
Me direciono para perto de Marquinhos. Todos
os colegas estão atentos ao que estamos falando.
Ana Maria sentou-se no meu lugar, com Profes-
sora Cintia ao lado, e está anotando algo numa
agenda azul.
— Um atlas atualizado de 2003 indica que
75% de homicídios no Brasil tem como vítimas a
população negra e periférica — digo controlando
a respiração para não esquecer o que decorei e
atropelar o restante da apresentação.
— Mas também traz dados importantes sobre a
violência contra mulheres e a comunidade LGBT.
— Exatamente, Fred. O Brasil registra mais
ADRIANO SILVA

de 83 mil homicídios segundo dados deste


levantamento.
— E não somente, Marcos — me organizo pro-
curando a anotação que fiz — mais de 31 mortes
para cada 100 habitantes anualmente.
168
Para não entrarmos nas falas de Marcelo e
Fábio nos atemos apenas à comunidade LGBT e
Marcos toma novamente à frente na apresentação.
— É um desafio histórico saber qual o tama-
nho da violência contra as minorias sexuais, pois
o IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís-
tica, sequer pergunta a condição sexual dos entre-
vistados em suas pesquisas — Observo a turma e
a metade me parece estar mais dispersa que pres-
tando atenção, apesar de estarem em silêncio.
— Exatamente Marcos, — tomo a palavra —
estima-se que a violência contra minorias sexuais
gire em torno de 64% e acreditem se quiser, essa
violência é praticada quase sempre por autores do
sexo masculino.
— O Brasil é o país que mais mata homosse-
xuais e mulheres no mundo — interrompe Tati e
Ana Maria a olha com desaprovação.
— Sim Tatiane. Especificamente o quinto país
mais violento para mulheres e homossexuais no
mundo — agora quem interrompe é Marcelo sur-
preendendo a todos e até mesmo Ana Maria fica
boquiaberta.
— Exatamente gente. E um dado muito impor-
169
tante é que os homens, em comparação ao sexo
feminino, morrem 10 vezes mais em situações de

VINTE E SETE DE AGOSTO


violência.
— E não se enganem — digo — homens mor-
rem mais por estarem envolvidos em mais situa-
ções violentas que mulheres, certo? — me dirijo
à turma — mas errado! Os homens não são as
vítimas.
— É evidente que o jovem negro, assim como
eu — inicia a apresentação de sua parte Fábio e
se posiciona ao lado de Marcos e ao meu — sofre
mais com a violência que o homem branco, pri-
meiro porque a sociedade brasileira se declara,
em sua maioria, negra ou parda. E segundo —
continua ele com a voz mais embargada e tenho a
sensação que vai desabar a qualquer momento —
porque os negros estão nas camadas mais pobres
da sociedade, logo mais suscetíveis à violência.
— A causa é a pobreza e não a etnia — auxilia
agora Marcelo — dizer que no Brasil morrem 318
homossexuais por ano não significa ao pé da letra
que o Brasil seja um país intolerante, mas sim que
seja um país violento.
Fábio faz uma careta de desacordo e recomeça
a sua fala;
— Marcelo, não se pode pautar em simples
estatísticas sem uma análise profunda sobre as
causas efetivas, os métodos de pesquisas e a ido-
neidade dos institutos.
— Sim, Fábio, eu te entendo, mas não tem como
diluir as responsabilidades para toda a sociedade,
entende?
— Por outro lado — diz Fábio com os olhos
agora marejados e tive a nítida sensação que ele
iria desaguar a qualquer momento. Tati do seu
ADRIANO SILVA

lugar nos encarava atentamente, prevendo o que


se seguiria — Não tem como justificar violência
como simples crimes de ódio, Marcelo — fala exas-
perado — nem como ódio e nem como intolerân-
cia, cada caso é um caso — conclui a sua fala não
170
contendo mais o choro.
Ana Maria se levanta com Cíntia enquanto a
turma toda começa a sussurrar tentando entender
o que está acontecendo. No fundo sabemos que
a maioria imagina o que acontece com Fábio nas
mãos de um pai violento.
Sinto um pouco de raiva de termos conduzido
toda a situação até culminar no choro incontrolá-
vel de Fábio. Tati está sentada sem se mexer, tenho
a sensação que não conseguiu nem soltar o ar na
respiração.
Marquinhos está abraçando Fábio enquanto
Professora Cintia agora o conduz delicadamente
para fora de sala com Ana Maria.
— Vem querido, se acalme. Vamos conver-
sar um pouco em minha sala, okay — acalenta
a Diretora, consigo ouvir um “tá bem” proferido
por Fábio. No fundo a gente sabe que não está
nada bem. Que talvez nunca fique nada bem, mas
quem sabe possa melhorar um pouco a vida dele
e da mãe.
Marcelo vai até Tati assim que ficamos nova-
mente sem a presença de Cintia e de Ana Maria.
— Você está satisfeita agora, Tatiane!
171
— O que você queria que eu fizesse, Marcelo?
— levanta ela nervosa e aos gritos — que espécie

VINTE E SETE DE AGOSTO


de amigo é você que assiste a tudo isso e nunca
fez nada?
Marcelo iria abrir a boca para dizer mais
alguma coisa, mas Marquinhos foi até ele e o
puxou pelo braço falando baixinho.
— Agora não é hora de fazer este assunto cir-
cular pela escola. Fábio nunca falou sobre isso
pelo motivo simples de se envergonhar como se
assumisse uma culpa pela violência e vícios do
pai — Marcos respira e retoma — por pessoas
iguais a você, que pessoas como o Fábio nunca se
abrem e buscam ajuda, aproveite que se preparou
para falar sobre o bullying e coloque em prática
a resiliência!
De fato, não existe maior sofrimento que o de
sofrer violência física e psicológica de quem se
ama e que deveria zelar pela sua integridade e
segurança.
CAPÍTULO 14

A gente sempre espera que as histórias que


lemos tenham um final feliz e emocionante. Que
os livros consigam de alguma forma ter o poder
de mudar o mundo. Seria muita responsabilidade
e ingenuidade acreditar nisso.
Os livros podem mudar pessoas, mas são
somente as pessoas individualmente que são capa-
zes de mudar o mundo. A soma dessas ações indi-
vidualmente que fazem a diferença.
Se você, leitor, espera que todas as histórias
contidas aqui tenham um final feliz, digo que
poderá encerrar sua leitura nessa linha.
A vida não é apenas de alegrias e este livro é
baseado em uma história real de vida. A minha
história de vida. Escrevê-la é exorcizar os meus
demônios. Mas caso siga adiante, na leitura das
próximas páginas, lhe prometo que serei breve e
te deixarei marcado com minhas palavras.
Como disse, as histórias podem mudar as pes-
soas e as pessoas, bem, as pessoas, caso queiram,
podem fazer o mundo um lugar melhor.
Fábio não voltou para a escola naquela semana.
Na próxima também não. Nem o restante do mês
todo. Quando voltou estava diferente. Seus olhos
transmitiam uma calmaria e uma paz.
— Oi — Eu disse a ele quando nos reunimos
173
debaixo da árvore, próxima a entrada da escada
da biblioteca. Ele estava distraído olhando para a

VINTE E SETE DE AGOSTO


quadra poliesportiva, mas era como se nada esti-
vesse enxergando.
— Oi Fábio? — Marquinhos cumprimentou
do meu lado.
Tati descia a escada da biblioteca acompa-
nhada de Marcelo e vieram caminhando em nossa
direção.
— Quero agradecer vocês por não espalha-
rem o que estava acontecendo — disse ele sem
nos encarar, ainda perdido olhando o nada à sua
frente.
Marcelo e Tati ficam calados quando já estão
ao nosso lado. Marcelo parece desconfortável,
durante as semanas que se seguiram nem ele con-
seguiu se comunicar com o amigo.
— Todos nós temos alguma coisa a qual nos
envergonhar, não se preocupe e nem pense nisso
— respondeu Marcos.
— Eu sei…, mas agora eu entendo que é muito,
não sei a palavra que utilizar, talvez desafiador.
Isso, desafiador, lidar com situações as quais não
temos culpa, entende?
Eu entendia muito bem o que ele estava ten-
tando dizer. Era sobre a violência ser algo que
constrange as vítimas, isso explicaria porque mui-
tas pessoas não buscam ajuda. Sentem-se culpadas
e envergonhadas.
Marcelo sentou-se ao lado dele.
— Eu senti muito a sua falta, Fábio. De ver-
dade. É um amigo especial, talvez o único amigo
que tenho e que me conheça realmente.
Ninguém esperava que Marcelo fosse dizer
algo do tipo. Marquinhos só me olhou. Agora
ADRIANO SILVA

estávamos numa nova fase da nossa relação,


apenas nos comunicávamos com o olhar. Era
assim durante as aulas, ou até quando se apro-
ximava alguém que não simpatizávamos muito.
Eu sorri levemente. Ele me devolveu um piscar e
174
coçou o nariz indicando que era para deixarmos
Fábio e Marcelo à vontade. No pulso a fitinha do
Senhor do Bonfim com nossas iniciais em cada
extremidade.
— Lindo! — eu balbuciei sem que nos escu-
tassem e ele sorriu devolvendo um “eu te amo”.
Agora estávamos mais adiantados na nossa rela-
ção e dizer que um amava o outro era algo que
acontecia a todo instante.
— Tati, estou com sede, o que acha de irmos à
lanchonete e pedir um suco e algo para comermos?
— Ah, brigada, não estou com…
Antes que completasse eu a interrompo;
— Então vamos, falta pouco tempo para reco-
meçar o segundo turno de aulas! — A puxei leve-
mente pelos ombros e Marquinhos riu da situação.
Tati era a mais esperta de nós três, mas custava a
pegar algumas coisas óbvias.
— Ah… — disse ela. — Marcelinho, nos vemos
na sala.
Marcelo levantou e deu um beijinho nela.
— Pronto, agora já era meu suco com coxi-
nha… — apressou Marquinhos fazendo Fábio rir
da brincadeira.
175
***

VINTE E SETE DE AGOSTO


Fomos os três para a lanchonete.
Tati estava a cada dia mais feliz. Marcelo havia
amadurecido muito no último mês. O ocorrido
com Fábio mudou ainda mais sua forma de agir
e do Marcelo ácido e maldoso não restava mais
nada. Poderia até dizer que eu gostava dele, até
mais bonito poderia dizer que estava ficando.
— Hum…alguém entre nós está amando de
verdade o rapaz dos negócios escusos da escola…
— brinquei, mesmo sabendo que fazia tempo que
Marcelo não mais vendia maconha e anabolizantes
para os meninos que estavam descobrindo a nova
febre da vez; as academias.
— Para Fred, você sabe que ele parou com essas
coisas desde que Lucas foi expulso por isso?! —
respondeu fingindo impaciência.
— Tá gente, eu não sei vocês, mas estou muito
curioso com o desenrolar de tudo que aconteceu.
E aí, sabe de alguma coisa Tati?
— Sei algumas coisas que o Marcelo me con-
tou. A mãe do Fábio esteve com a dona Carmem.
— A mãe do Marcelo?
— Isso, Fred, elas se tornaram muito próximas
agora, pelo que entendi antes eram muito amigas,
mas o pai do Fábio vocês já sabem — confirma-
mos com a cabeça que sim— então, Marcelinho
me contou que naquele dia da apresentação Fábio
ficou na sala da diretoria com a Ana Maria e a
coordenadora de ensino.
— Deve ter demorado muito, pois quando saí-
mos ele ainda estava lá dentro com elas — com-
pletou Marquinhos.
Pedimos três sucos e três coxinhas na lancho-
ADRIANO SILVA

nete e fomos nos sentar mais distante dos demais


alunos, em uma mesinha que estava disponível
parecendo nos esperar.
— Então, lembra que quando saímos passou
por nós quatro uma viatura da polícia e Marcelo
176
havia dito que poderia ser a escola quem tinha
chamado? Pois então, era isso mesmo.
Ficamos, Marcos e eu, em silêncio escutando
o restante das informações de Tati. O que veio a
acontecer depois que a Polícia foi solicitada é que
a mãe de Fábio foi chamada à escola e confirmou
tudo que sofria com o filho nas mãos do marido.
— Então o Sebastião foi preso?
— Alguém vai preso neste país, Marquinhos?
— Também não é assim, Fred — interveio Tati
— preso ele não foi, mas vai responder por agres-
são e violência contra menor de idade, também
não poderá se aproximar do Fábio e nem da mãe
dele.
— Mas então temos um problema, certo?, por
que se o pai do Fábio foi preso, quem irá sustentar
eles?
— Marcos, a mãe do Fábio, pelo que entendi,
vai receber um auxílio aqui da nossa cidade, for-
necido por uma ONG, o legal é que essa instituição
também vai capacitar ela para que possa conseguir
dar um novo rumo à sua vida.
— Isso me deixa mais aliviado, imagina que
situação ter que se submeter a ser agredida por
177
um prato de comida e um teto?
— Mas, Marquinhos, isso tem tudo a ver com

VINTE E SETE DE AGOSTO


o trabalho que apresentamos naquele dia, se lem-
bra…o agressor destrói as relações da vítima e a
coloca em um estado de total dependência, saca?
— Saco, quero!
— Ah, não, será que eu estou atrapalhando o
casalzinho aqui?
— NÃO! Gritamos os dois juntos rindo e Tati
nos acompanhou.
— Vocês dois não tem mesmo jeito. Não se des-
grudam. Precisam tomar cuidado — disse ela sem
citar o motivo, mas bem claro que seria meu pai.
— A gente tem tomado cuidado Tati — tran-
quilizou Marcos.
— Oh, sim, muito cuidado, olha onde está sua
mão — disse ela e apontou para minha mão com
os dedos entrelaçados aos de Marquinhos. — Sério
meninos, tomem cuidado!
CAPÍTULO 15

Estava quente quando saímos da escola.


Parecia que à tarde possuía o Segundo sol que a
Cássia Eller tanto cantou.
— O que acha de comprarmos um sorvete de
casquinha? — Marcos disse e eu achei que era
uma ótima ideia, se não fosse pelo horário.
— Podemos, mas não posso demorar muito —
suspirei desanimado, teria de ir para casa e ajudar
a minha avó com os afazeres e com Sheila ainda
com a doença em instabilidade e testando quais
medicamentos surtiriam mais efeito para conter o
avanço da Esclerose.
— Uma casquinha só, para refrescar, depois
te libero — sorriu com carinha de menino
abandonado.
Marcos sabia que as coisas não andavam muito
legais lá em casa. Meu pai conversava somente o
indispensável comigo, na maioria das vezes man-
dava vó me repassar os recados. Quase nunca coi-
sas que envolviam minha vida, mas sim limpar
alguma coisa, buscar remédios, comprar alguma
verdura ou legume no mercado.
— Ah, não precisa fazer essa cara de cão aban-
donado — respondi acariciando seu braço de leve
— Viu, foi isso que falei com vocês mais cedo…
A voz vinha de trás de nós.
— Ai, Tati, parece uma sombra — digo e
179
começo a rir.
— Vocês tomem cuidado, já disse — comple-

VINTE E SETE DE AGOSTO


tou ela séria de mãos dadas com Marcelo — essa
cidade aqui no fim do mundo onde Judas perdeu
as meias, porque as botas, essas perdeu bem mais
atrás, é cheia de gente preconceituosa.
— Então Fred e Marcos, eu terei de concordar
com a Tati, acho que vocês estão dando muito na
cara e, tipo, — ele parou por um instante e Marcos
o interrompeu;
— Tipo?
— Tipo apanhar… eu já fui um babaca com
vocês e que bom que mudei bastante nesses últi-
mos meses, mas como disse a Tati — completa e
olha com cumplicidade para a namorada — eu não
me arriscaria de demonstrar afeto em público se
eu gostasse de meninos, sabe.
— Mas acho isso muito injusto — Marcos
retruca — vocês podem se abraçar e se beijar em
todo lugar e a gente?
— Olha, não quer dizer que precisem viver
para sempre escondidos. Mas olhe para nós
Marcos — Tati faz um sinal com o dedo abran-
gendo nós quatro — somos muito novos, dezes-
seis, dezessete anos, não estamos trabalhando…
entende o que digo?
— O que a Tati está dizendo é que não somos
independentes. Dependemos dos nossos pais e
no caso de vocês a coisa é diferente — Marcelo se
corrige — tem a questão do preconceito, não sei
como é os pais de vocês.
Um silêncio abrupto ocorre por alguns ins-
tantes. Marcos estava numa situação muito mais
tranquila que eu no que diz respeito à sexualidade.
— Seus pais são muito mais abertos e tran-
ADRIANO SILVA

quilos — digo eu — em comparação, meu pai


é muito conservador e alheio as mudanças dos
padrões convencionais — Acho que me mataria
se soubesse.
— Só sejam cuidadosos. Nem todos são nossos
180
amigos e por mais que a gente pense que ninguém
está nos observando, sempre tem alguém — disse
Marcelo nos surpreendendo ainda mais.
De certa forma eles, Tati e Marcelo, estavam
com a razão, mas por fim, não foi nenhum desco-
nhecido que nos entregou o que tínhamos juntos.
— A gente agradece a preocupação de vocês.
De verdade — Marcos diz quando paramos os
quatro na esquina que nos separaríamos para
seguirmos lados opostos. Marcelo e Tati haviam
combinado de estudar juntos.
— A gente não fala por mal, só não queremos
que se machuquem…ou machuquem vocês.
— Obrigado Tati — digo.
— Vamos comprar um sorvete ali no Frigel’s,
querem ir com a gente?
— Não Marcos, agradecemos, outro dia a gente
faz um programa de casais, o que acham?, pode
ser lá em casa, só combinar!
— Altas surpresas mesmo — digo me referindo
ao novo Marcelo e todos caem na gargalhada.
Nos despedimos e caminho com Marcos até a
sorveteria. Do outro lado da rua o cara que parece
sempre estar onde estou, está sentado na calçada
181
nos observando. Seu olhar está fixo em Marcos e
sinto um arrepio descer por toda a coluna e tam-

VINTE E SETE DE AGOSTO


bém arrepiar os pelos do braço.
— Essa cara — digo e peço que Marcos não
olhe em sua direção — está sempre onde estamos,
me parece algo tão estranho.
— Já conversamos sobre isso, Fred, isso é coisa
da sua cabeça — diz ele sem dar importância —
claro que esse homem estará em todo lugar que
andamos, ele vive aqui, nas ruas, logo nos depa-
raremos com ele sempre. Agora venha! — ordena
me puxando — vamos logo tomar nossa casquinha
e correr pra casa.
— Certo — obedeço — mas à noite você já
sabe; direto lá pra casa que quero te mostrar uma
coisa… — digo malicioso.
— Hum, Sr. Frederico, pensei que iríamos
seguir os conselhos da Tati e agora do Marcelo.
— Mas vamos, quem disse que não?
***
Não nos demoramos na sorveteria, foi mesmo
pedir a casquinhas e saímos andando conversando
até nos separarmos cada um para sua casa.
Minha avó estava colocando umas roupas no
varal e pensei que estava bem tarde, mas não, pas-
sava pouca coisa das treze horas. Provavelmente,
almoçou com Sheila um pouco mais cedo e não
me esperou como todos os dias. Assim que abro
o portãozinho da rua para nossa casa ela me nota.
— Esse portão precisa de óleo nas dobradi-
ças — diz ela depois do ranger irritante — que
bom que chegou, eu deixei sua comida separada
no forno, ainda está quentinha. Corre lá! — diz
ela abaixando-se para pegar mais umas calças no
balde ao chão — essas minhas costas estão me
ADRIANO SILVA

matando!
— Ai, vovó, deixe aí que depois estendo para
a senhora.
— Ah, mas diz isso agora que só tem mais duas
peças — ela brinca — agora vai logo e não faça
182
barulho que Sheila foi se deitar novamente.
Sheila não havia comido muito. Na verdade,
quando comia muito era alguma sobremesa doce
que ela amava, mas comida mesmo era muito difí-
cil. Maior parte do tempo estava exausta e desa-
nimada para fazer qualquer coisa.
Alguns medicamentos deixavam Sheila con-
fusa. Não eram raros os dias que não se lembrava
do que havia feito no dia anterior, ou até mesmo,
em situações em que estava iniciando algum novo
medicamento, que pensava que o pai já falecido
a viria visitar.
Uma vez, Sheila se sentou na entrada da nossa
casa e ficou arrancando os matinhos que nasciam
entre o concreto rachado e esperando a chegada
do Papai Noel. Foi neste dia que Augusto ficou
realmente preocupado. Sheila não lembrava nem
o nome dele.
A tarde as coisas foram bem tranquilas. Não
tive muitas coisas a fazer. Arrumei a cozinha, ariei
algumas panelas. Arrumar a cozinha é umas das
poucas coisas que sempre gostei de fazer. Os pen-
samentos vão sendo desprendidos aos poucos e
a gente vai ficando imerso em nós mesmo, num
183
fundo vazio que a gente nem sabe explicar.
Quando acabei a ter-a-pia fui para o andar de

VINTE E SETE DE AGOSTO


cima. Pela sala vó Lilia já estava deitada no sofá,
a televisão reprisando pela primeira vez O Clone
e ela dormindo com a boca aberta roncando.
Retirei os chinelos e subi as escadas na ponta
dos dedos dos pés para que não a acordasse. A
idade e dar conta de cuidar da casa e de estar
atenta à Sheila e seus horários de medicação devia
a estar deixando exausta.
Peguei alguns livros, na semana que vem
teremos um trabalho em duplas para entregar.
Lógico que farei com Marcos e preciso iniciar logo
para que ele depois arremate as páginas finais.
Sempre fazemos assim, cada um faz uma parte e
depois só arrematamos, uma maneira de deixar o
tempo juntos apenas para ficarmos agarradinhos
namorando.
O sol estava começando a se pôr no Morro do
Cimento. Pela janela, em que Marquinhos entrará
logo mais, o ipê amarelo se expunha radiante em
milhões de pequenas flores amarelas e que aos
raios avermelhados projetados pelo sol no hori-
zonte deixava tudo como um destes filmes antigos
que a gente já rodou muito no aparelho de video-
cassete e que quando estamos assistindo é tomado
por falhas de luz em múltiplas cores pelo desgaste.
No térreo escutei a vó tossindo. Barulho de tor-
neira com água enchendo a chaleira para o pre-
paro do café. Sheila conversando animadamente.
A Rádio estava tocando uma música baixinha
da Avril Lavigne que falava sobre alguém te pegar
pela mão e levar para casa e roubar beijos e logo
o sorriso de Marquinhos me veio à mente.
Meu corpo respondia aos pensamentos que
ADRIANO SILVA

tomaram conta de mim. Liguei o velho compu-


tador que ainda rodava o Windows 95 e o deixei
carregando. Levaria longos minutos. Fechei a
porta, puxei as cortinas e deitei sobre a cama. Eu
tinha ainda algumas horas até que Marquinhos
184
chegasse para dormirmos juntos. Depois termina-
ria de fazer as anotações do trabalho e, se sobrasse
algum tempo, daria uma olhadinha no Orkut, uma
rede social que havia surgido há pouco e era uma
sensação entre os jovens.
— Meu ruivinho — gemi já deitado e sem a
camisa. Meu pau está muito duro — é meu que-
rido, não vou conseguir te esperar dessa vez, mas
depois tem mais para você. Começo segurando
minhas bolas, estão moles e quase enchem minhas
duas mãos. Arquei um pouco o corpo e coloco
mais um travesseiro sob a cabeça. Movimentos
leves, descubro a cabeça do pau que está rosado
e flexionando o corpo deixo um pouco da minha
saliva cair da minha boca sobre ele e continuo com
os movimentos leves e aumentando as ritmadas
gradativamente. Não demoro muito — porra, tô
com muito tesão! — os dedos dos pés estão estica-
dos, assim como toda a musculatura das pernas,
sinto meu cacete se contraindo e me seguro para
não gritar de prazer imaginando Marquinhos sen-
tado sobre mim. Os jatos saem com uma pressão
tão incrível que espirra esperma na minha barriga,
rosto e até umas pequenas gotas na cabeceira da
185
cama — caramba. Marcos!
Fico deitado de olhos fechados curtindo um

VINTE E SETE DE AGOSTO


pouco este relaxamento pós esporrada e acabo
pegando no sono só acordando quase oito horas
da noite.
Ouço Augusto no quarto ao lado conversando
com Sheila. Apenas consigo entender algumas
palavras, que funcionam para mim como pala-
vras-chave de um texto destes de inglês que temos
de traduzir para o português nas aulas no colégio.
‘’— (não sei o que lá) o Fred precisa tomar
jeito”.” (Não sei o quê) essa amizade dele eu não
sei não” “(não sei o que lá) na idade dele eu já
estava…” — não consegui entender quase nada,
mas não me surpreende eu ser o assunto na boca
de Augusto.
— Melhor tomar logo um banho. Deixe
Augusto com as frustrações dele — digo eu
pegando a toalha e saindo descalço em direção
ao banheiro para tomar uma ducha. A porra já
está seca e esbranquiçada sobre os pelos da minha
barriga e saco. Não quero me demorar muito antes
de descer para jantar e fazer aquela social com a
família e não tentar despertar desconfianças.
Eu sei que meu pai, ou qualquer outra pessoa,
não tem como descobrir que Marcos tem vindo
dormir aqui em casa quase que todos os dias da
semana. — Não tem como descobrir, tem? — per-
gunto a mim mesmo enquanto a água cai sobre
meus cabelos levando embora toda a espuma do
shampoo — impossível! Marquinhos sempre vem
depois da meia noite, quando não tem mais nin-
guém à rua. Sobe pelo ipê amarelo, que dá aqui
na janela, e não faz um mínimo barulho.
Afasto os pensamentos. Mas me sinto estranho,
ADRIANO SILVA

uma sensação de aperto no peito. Minha avó disse


que isso se chama angústia.
Visto uma camisa azul e um short branco que
pego na gaveta. Está cheirando amaciante e me
vem uma lembrança aleatória do cheiro da roupa
186
de Marquinhos. Aquele cheirinho de roupa limpa
que a gente sente quando abraça alguém que ama-
mos, sabe?
Abra o Orkut no velho Itautec amarelado pelo
tempo. A rede social azul exibe minha foto com
um sorriso grande e do lado direito uma solicita-
ção de depoimento para ser aceita escrita quase
que naquele exato segundo;

“Fred, o que dizer desse carinha que muda a minha


vida todos os dias? É o melhor amigo que eu poderia
ter encontrado nessa vida. Que sejamos amigos para
sempre”.
Consigo decifrar o código por detrás da pala-
vra amigo perfeitamente. Para mim está mais que
explícito o implícito. Como disse Tati mais cedo,
não podemos dar tanto na pinta assim e ainda
mais com um Depoimento que ficará disponível
para qualquer um ler no Orkut quando eu o aceitar.
Para agradecer deixo um outro Depoimento em
retribuição;

“Ah, seu chato. Melhor amigo ruivinho do mundo.


Quase um irmão, mas ainda bem que não! Seremos
187
amigos para sempre. Além deste tempo e para além
dessa vida!”

VINTE E SETE DE AGOSTO


Envio. Sei que assim como eu, ele captará cada
palavrinha não escrita.
— Frederico. Desça! — grita Augusto e de um
salto me levanto apenas desligando a tela do com-
putador. Depois, quando voltar, fecharei as abas
e deslogarei da conta do Orkut.
— Indo… — respondo de volta já nas escadas.
CAPÍTULO 16

O jantar foi como sempre. Perguntas de como


havia sido o meu dia. Cobranças de coisas que eu
já havia feito e que meu pai queria não perder o
hábito de ser chato e pontuar que eu não as havia
feito com capricho. Minha avó sempre sendo fofa
e gentil para que as coisas não tomassem propor-
ções grandes e causassem uma discussão. Mas
nem precisava.
— Está tudo bem, vovó — eu disse baixinho
colocando minha mão sobre a sua num gesto
rápido de carinho e que transmitisse a ela gratidão.
Fiquei durante um bom tempo ainda à mesa,
com Sheila e com minha avó, depois que Augusto
se retirou dizendo que precisava deitar mais cedo.
Subiu as escadas pisando com tanta força que pen-
sei que cada pé pesava uma tonelada ou ainda, que
estivesse irritado com alguma coisa.
— Está tudo bem com ele? — perguntei mais
por educação que por interesse genuíno. As coisas
de meu pai não me diziam respeito, assim como
sei que as minhas, que não dissessem respeito à
escola, pouco lhe interessavam. Vez ou outra per-
guntava alguma coisa para minha avó, ou Sheila,
mas nunca diretamente a mim.
— Você está com um sorriso tão lindo no rosto,
Fred?
— Obrigado Sheila, impressão sua — menti.
189
— Hum, sei…eu conheço este sorriso. Vamos,
quem é que está colocando este sorriso apaixonado

VINTE E SETE DE AGOSTO


na sua cara, hem? — insistiu Sheila novamente
e dessa vez eu estava acuado. Poderia negar e
ser desagradável, ou inventar alguma coisa que
fizesse mais sentido.
— Então, juro que não é uma pessoa. Estou
feliz porque amanhã tem uma palestra na escola
sobre a feira de profissões e estou muito empol-
gado — pela cara que minha avó fez antes de
começar a gargalhar eu tive a certeza que não fui
convincente.
— Ah, sei, Fred…eu não quase te criei para
não saber quando está nos escondendo alguma
coisa, não é?
— Uma hora a gente conversa, Sheila — digo
eu me dando por vencido — prometo.
— Quando você quiser, sempre estarei aqui
para te ouvir. — disse ela e senti algo mais além
de um simples “conte comigo”. Será que ela sabia?
Não…só uma impressão.
— Comigo também! Hum! — resmungou vó
Lilia enciumada.
Levanto e lhes dou um abraço enquanto ainda
estão sentadas.
— Eu sei que poderei sempre contar com vocês.
Amo muito vocês duas!

***
Quando chego ao quarto o relógio já está mar-
cando zero hora. Exatamente meia noite.
Vou em direção ao computador para o desli-
gar. Não me lembrava, mas eu o desliguei antes
de descer. Apesar de não ter essa lembrança clara-
mente. Organizo os cadernos, as poucas anotações
ADRIANO SILVA

que fiz sobre o trabalho e coloco tudo dentro da


mochila.
Escovo os dentes e espero até que Marquinhos
chegue. Eu sempre fico apreensivo, mesmo sendo
relativamente tranquilo que ele faça o trajeto da
190
quadra da frente até à minha casa e da calçada
suba pelo ipê e caia dentro do meu quarto.
Quando o avisto na esquina começo a sorrir
por dentro e essa alegria transborda no meu rosto.
Marquinhos para em frente à arvore e olha para
mim. Veste uma calça de moletom cinza e uma
camisa também na mesma cor. Imagino que seja
para não chamar tanta atenção enquanto escala
para meu quarto. A rua como sempre vazia.
— Vem logo — digo eu baixinho gesticulando
para que suba. Ele finge que irá embora dando
alguns passos para frente — venha Marquinhos,
quer que alguém te veja?
— Tô subindo! — responde ele já colocando o
pé nos primeiros galhos e catapultando o corpo
para cima de um galho mais alto. Rapidamente
ele está sentado no peitoril e o puxo pela camisa
para dentro de vez.
— Quer mesmo ser pego hoje — resmungo lhe
dando um beijo — deixa eu fechar a janela. Foi
neste momento, quando já puxava uma das corti-
nas, que tive a sensação de ver uma sombra mais
à frente de onde Marcos veio.
— O que foi? — pergunta Marquinhos me
191
agarrando por trás. Coloco minhas mãos sobre as
suas que contornam meu corpo.

VINTE E SETE DE AGOSTO


— Não sei, parece que vi alguém lá na frente.
— Na frente onde?
— Ali — mostro com o dedo o lugar de onde
ele veio.
—Hum, deve ser impressão sua. Não havia
ninguém na rua quando vim. Na verdade, só
aquele catador de recicláveis deitado sob a mar-
quise e com uma garrafa de cachaça nas mãos.
— Deve ter sido impressão minha mesmo
então, apesar de eu não gostar nada dessa cara que
parece sempre estar onde estamos, ou passamos.
— Cisma sua. Ele está em todo lugar, vive disso
e de pequenos favores que faz para as senhori-
nhas. Até sua vó já contou com a ajuda dele. Agora
chega desse papo. Fecha logo isso — diz ele orde-
nando, me apertando contra seu corpo.
— Caramba, Marquinhos… o seu treco está
parecendo uma barra de ferro — digo eu descendo
a mão e a enfiando por dentro da sua calça.
— Espera — diz ele me puxando mais para
próximo à cama — fechou a porta?
— Assim que voltei do jantar e fiquei a te espe-
rar. Não se preocupe, hoje Augusto estava mais
mal humorado que o de costume e logo subiu para
dormir, disse que estava cansado.
— Novidade seria se não estivesse cansado,
né Fred, trabalhar naquele inferno de fábrica não
é para qualquer um — responde ele — por isso
temos que concluir logo esse ensino médio e entrar
logo numa facul. — Entendi exatamente o que
Marquinhos queria dizer.
— Eu também não quero ter como opção tra-
balhar lá, Marquinhos — digo eu — mas vem logo
ADRIANO SILVA

aqui me mostrar o que trouxe para mim.


— Safado! Trouxe o de sempre — ele responde
tirando a minha camisa, acompanhando o meu
corpo o puxa sobre ele já deitado na cama.
— Eu amo você — ele fica em silêncio e eu fico
192
constrangido em ter dito.
— Bobo! Eu te amo. Te amo tem muitos anos.
Faz muito tempo que esperei para ouvir isso e
cada vez que o diz é como se fosse a primeira vez.
— Então direi todos os dias e em todos os
momentos. Eu te amo Marquinhos! Eu te amo…
te amo…te amo… — vou dizendo enquanto lhe
beijo suavemente os lábios. Nada nunca vai nos
separar.
— Nada nunca, Fred.
Dormimos abraçadinhos depois de fazermos
amor.
***
Quando acordei pela manhã Marquinhos já
havia ido para sua casa e assim poderíamos repe-
tir o nosso encontro para ir à escola sem levantar
suspeitas.
O bilhetinho estava sob o travesseiro que ele
dormiu. Dessa vez estava escrito;

“Te amo, para sempre e todos os dias da minha vida.


Teu Ruivinho”

Li respondendo mentalmente; “amo você por


193
toda a vida, Marquinhos”

VINTE E SETE DE AGOSTO


À cozinha minha avó estava correndo para
levar Sheila ao cardiologista
— Bom dia! Café pronto. Bolo no forno. Leite
quente no fogão e benção e tchau que estamos
atrasadas — quase gritou olhando para Sheila que
logo se levantou e me deu um sorrisinho.
— Fred, seu pai já foi mais cedo para o trabalho.
— Sério Sheila? — questiono achando estra-
nho. Augusto nunca sai antes de se certificar que
vai me atarefar o dia todo.
— Sim, sim, ele foi ficar na fila do postinho de
saúde para guardar a vaga pra gente.
— Mas não se engane que ele não deixou o que
você deve fazer hoje recomendado — diz minha
vó e eu logo reviro os olhos antes de notar o papel
dobradinha no lugar onde eu iria me sentar para
o café.
— Ah, claro. Se não for assim não é o Augusto
— resmungo fazendo Sheila e Vó Lilia rirem
enquanto saem apressadas.
Sirvo um pouco mais de café com leite, mais
uma fatia de bolo. Estou faminto e um pouco atra-
sado para encontrar com Marquinhos.

***
Chego à rua onde me encontro com Marqui-
nhos uns minutinhos atrasados. Ele ainda não che-
gou. Fico aguardando mais um tempo. Isso talvez
atrase também Tati que está nos esperando na pró-
xima rua com Marcelo. Como não quero ficar sem
ir com meu ruivinho prefiro que Marcelo e Tati
sigam sem nós.
Olho no relógio, passa um pouco mais de seis
ADRIANO SILVA

e quarenta. Me sento na calçada, no mesmo lugar-


zinho que meu ruivinho fica quando me atraso.
Espero mais um pouco.
Seis e cinquenta.
Sete horas.
194
Sete e vinte.
Tenho que ir ou chegarei em cima da hora da
aula e serei barrado no portão, podendo só entrar
no segundo horário.
— Será que Marquinhos já foi sem mim? —
penso em voz alta — Talvez eu tenha demorado
muito e ele tenha ido sem mim, como sempre me
atraso… ou será que está doente? Não! Ele estava
ótimo…
Não podendo esperar mais, sigo para à escola
em passos rápidos — Marquinhos deve ter ido
mesmo sem mim ou até perdido o horário. Pode
ter se deitado em casa até dar a hora de ir para o
colégio e acabou pegando no sono pra valer — crio
teorias em minha mente andando cada vez mais
rápido.
As ruas estão movimentadas de carros que
sobem a avenida em sentido-centro. Crianças
do maternal e que tem as aulas um pouco mais
tarde estão sendo levadas pelos pais para as cre-
ches. Senhoras já estão voltando da feira puxando
carrinhos de rodinhas abarrotados de legumes e
verduras. O sol começa a tomar conta de tudo e a
deixar um dia feliz. Eu não sei, mas sempre tive
195
para mim que dias assim são dias felizes.
O catador de recicláveis está alocando umas

VINTE E SETE DE AGOSTO


caixas no seu carrinho de recicláveis. Dois cachor-
rinhos magros estão ao lado sentados coçando as
pulgas nos pelos. Assim que ele se dá conta de que
eu o estou observando me encara. Os olhos são
penetrantes e sinto todo o corpo arrepiar. Desvio
o olhar rapidamente, atravessando a avenida e me
apressando antes que seja impedido de entrar pelo
porteiro que começa a fechar o gradil.
A sensação de angustia volta a tomar conta
de mim.
Os corredores estão movimentados, alunos
apressados em direção às salas, algumas turmas
indo para as quadras poliesportivas. A primeira
aula do professor Sérgio de Física. Desagradável,
como de costume.
— Entre logo, vamos! — diz ele acenando para
que feche a porta.
A turma está ainda se ajeitando nas cadeiras.
Marcelo e Tati estão conversando animadamente.
Quando passo pelo corredor e vou me sentar atrás
deles fico mais preocupado.
— Oi, pessoal. Pensei que haviam vindo na
frente com o Marquinhos — pergunto notando
que o lugar do meu ruivinho está vazio.
— Pensamos que vocês haviam vindo na frente
— responde Tati
— Esperamos por alguns minutos e como não
apareceram... — completa Marcelo.
Agora eu estava preocupado de verdade. Tudo
isso transparecia no meu rosto. O que poderia ter
acontecido. Será que Marquinhos perdeu mesmo
o horário. Tati percebendo tenta me acalmar.
— Não se preocupe, ele deve chegar para a
ADRIANO SILVA

segunda aula. Pode ter dormido e perdido a hora


— diz ela baixinho sem saber que Marquinhos
passa quase todas as noites comigo e pela manha-
zinha vai para sua casa para que ninguém o veja
lá em casa.
196
— Pode ser… — concordo ainda confuso e abro
os exercícios que foram repassados na aula ante-
rior de Exercícios de fixação.
A aula se arrastando a passar, até a turma
estava mais silenciosa que de costume. Profes-
sor Sérgio corrigiu os mais de vinte exercícios no
quadro negro. Estive tão imerso em meus próprios
pensamentos que copiava a resolução dos que não
havia conseguido fazer de forma automática.
Não me lembro de ter dito nada que pudesse
fazer Marquinhos ficar chateado, ou disse? Não. Se
tivesse dito ele não teria me escrito um bilhetinho
carinhoso.
— É pode ser alguma coisa na casa dele. Tal-
vez com a mãe — digo sem perceber que estava
falando sozinho.
— Alguma dúvida, Frederico?
—Não, professor. Desculpe, apenas resolvendo
uma equação em voz alta — me esquivei envergo-
nhado quando a turma começou a rir.
— Sabemos qual foi essa equação — provocou
Fábio.
— E como sabemos — disse outro aluno, o qual
também ignorei.
197
O intervalo para a segunda aula soou e assim
que Professor Sérgio deixou a sala fui para a porta

VINTE E SETE DE AGOSTO


ver se Marquinhos estava vindo.
— Calma, Fred. Meu Deus! Parece que nasce-
ram agarrados agora.
— É que isso nunca aconteceu antes Tati e con-
fesso que estou um pouco preocupado.
Como não deveria de estar, Marcos não disse
nada que não viria à aula, pelo contrário, havía-
mos combinado de nos encontrarmos no mesmo
lugar de sempre para virmos todos juntos.
— Acho que está exagerando — Marcelo con-
cordou com Tati e aproveitei a algazarra feita pelas
outras turmas no corredor para fingir que não con-
segui escutar e assim não precisar explicar que
Marquinhos esteve comigo essa noite. Não estava
com saco para mais um sermão de como corremos
riscos se nos pegarem e blábláblá.
— Vamos! Vamos, meninos! A aula não será
nos corredores! — ralhou Sônia, a professora de
Geografia.
Não consegui me concentrar em nenhuma
aula. Tive vontade de fugir no intervalo da pri-
meira parte do turno de aulas e ir até a casa de
Marquinhos ver se estava tudo bem.
O amor é algo avassalador, a presença dele está
me fazendo tanta falta que já estou morrendo de
saudades do seu sorriso e do brilho do sol em seus
olhos castanhos.
Estou na cantina sentado com Marcelo, Fábio
e Tati, que ficou pertinho de mim com um dos
braços entre os meus.
— Vocês dois e esse grude, gente.
— Está tudo bem Tati. É só saudade — eu a
disse devolvendo um sorriso de cumplicidade.
ADRIANO SILVA

— Eu sei bem como é — se enfiou na conversa


Fábio — Marcelo agora nem tem muito tempo
mais para mim.
— Não exagera também, Fábio — resmungou
Marcelo.
198
— Agora é minha vez de falar para vocês: —
falou Tati debochada — espero não estar atrapa-
lhando esse casalzinho!
— Hooo, tá me estranhando Tati — protestou
Fábio sendo endossado por Marcelo;
— Deus me livre. Esse menino tem nem carne,
só pele e osso — levando até a mim a rir do comen-
tário — não que eu goste de machos…bem….
ahhh.
— Melhor ficar quieto, Marcelinho. Está
ficando pior agora — falou Tati entre gargalhadas
e balançando levemente meu corpo junto ao dela.
As duas últimas aulas são de Inglês e a
professora Mônica está agarrada no verbo “be”
desde a quinta série do fundamental, entre os alu-
nos que estão desmotivados, mas não sabem nada,
e os demais alunos que sabem inglês porquê fazem
aulas em cursinhos.
— Turma, por favor! — pede Mônica quando
o barulho de bate papo se torna insuportável. É
muito comum que durante a aula os alunos que
tem mais afinidade se juntem, colocando as car-
teiras pareadas em duplas, triplas e até mais, para
conversarem.
199
Professora Mônica permite, por considerar que
o ensino assim se faz mais efetivo pelas trocas de

VINTE E SETE DE AGOSTO


saberes. Sinceramente, neste caso, acho que não é
a mesma troca de saberes que ela espera. Preferi
ficar isolado em mim mesmo e deixar que Fábio,
Marcelo e Tati ficassem juntos. Perceberam que
estou muito chato hoje e não insistiram.
A porta se abre e Ana Maria entra à sala. A
turma falante faz um silêncio tão repentino quanto
a presença da diretora. Seu rosto está com um sem-
blante ainda mais sério que o de costume.
— Mônica, preciso dar uma palavrinha com
você por alguns instantes — diz ela fazendo todos
se sentirem culpados por talvez termos criado
alguma situação desconfortável referente ao fala-
tório e que pode ter incomodado algum professor
de outra turma.
Mônica assenti e acompanha a diretora para
o corredor. A turma sempre fervorosa desta vez
não manifesta uma palavra. Exceto Tati que se vira
para mim — será que deu ruim pra professora?
— Acho que não — respondo eu.
A porta se abre depois de breves segundos e
professora Mônica está abalada. Parece que seus
olhos estão úmidos, mas não tenho muita certeza
sobre isso.
— Frederico — se dirige a mim Ana Maria —
arrume suas coisas e me acompanhe, por favor.
— Agora estou assustado e fico paralisado até que
consigo expressar alguma reação.
— Aconteceu alguma coisa com minha
madrasta? — pergunto, ciente de que Sheila
necessita de cuidados com o avanço da esclerose
múltipla.
— Não, querido, queremos conversar um
ADRIANO SILVA

pouco com você na minha sala — Ana Maria diz


em voz vacilante e ao mesmo tempo tentando
transmitir uma calmaria que apenas se mostrou
falha, me deixando ainda mais preocupado.
— Aconteceu alguma coisa com minha avó? —
200
eu perguntei já me levantando, enfiando os livros,
canetas, lápis e cadernos de qualquer jeito dentro
da mochila.
— Me acompanhe que tem umas pessoas que-
rendo falar com você — respondeu ela desta vez
mais autoritária, porém ainda tentando ser mais
delicada que usualmente seria — Tatiane, por
favor, nos acompanhe também — Tati, diferente
de mim, não questionou. Apenas se levantou e
seguimos para a direção. Não pude deixar de
notar que Professora Mônica estava visivelmente
abalada, tentando segurar as mãos uma sobre
as outras que tremiam descontroladamente. Foi
neste momento que tive a certeza de que nada
havia acontecido com Sheila, nem com minha avó
e muito menos com Augusto.

***
Na diretoria dois policiais nos aguardavam.
Um deles, um sujeito alto e magro de sorriso
amistoso, trazia na farda o nome de M.J Rafael e
o outro, um careca baixinho de fisionomia car-
rancuda, logo se apresentou me estendendo uma
das mãos.
201
— Você deve ser o Frederico — disse ainda
segurando firme minha mão — pode me chamar

VINTE E SETE DE AGOSTO


de Resende e essa moça é…
— Sou a Tati, senhor — disse ela também séria.
Ana Maria pediu para que sentássemos e
nos deixou à vontade para que conversássemos,
ficando em uma distância que poderia nos ouvir.
Toda situação estava muito estranha e eu pressen-
tia que algo ruim havia acontecido.
— O que aconteceu para que nos chamem
aqui? — questionou Tati.
M.J Rafael se apressou em respondê-la — preci-
samos saber algumas informações sobre um amigo
de vocês — ele disse e neste momento eu tive cer-
teza que se tratava de Marquinhos.
— O que aconteceu com Marquinhos? — agora
eu exasperei com a voz preocupada.
— Quando estiveram com o amigo de vocês
pela última vez? — interveio o policial carrancudo
— precisamos saber quando ou que horas estive-
ram com Marcos Rodrigues pela última vez.
— Mas ele está desaparecido? — pergunto.
— Não está desaparecido — M.J Rafael res-
ponde e não sei porque, isso não me deixou menos
preocupado. Não seria algo grave para que poli-
ciais viessem até a escola para saber de Marcos.
— Ontem fomos juntos para casa — Tati ini-
cia— conversamos um pouco, nós quatro. Mar-
celo, meu namorado, estava junto — completa Tati
percebendo a cara do policial magro de questiona-
mento de quem mais — mas fomos juntos até meio
caminho, depois disso Fred seguiu com Marcos
até a sorveteria.
— Sim, estava muito calor — eu completei
— depois fomos cada um para sua casa para o
ADRIANO SILVA

almoço, era por volta de umas treze horas. Mas o


que houve, estão nos deixando preocupados.
— E assustados — grunhiu Tati
— Algo mais que queiram nos dizer? — per-
gunta Resende — não tiveram mais nenhum con-
202
tato com Marcos Rodrigues após este horário.
— Bem…— eu digo e me calo.
— Por favor, Frederico. Qualquer informação é
importante, não se preocupe em nos contar qual-
quer coisa — fala impaciente M. J. Rafael e busca
complacência olhando Ana Maria que intervém:
— Frederico, os policiais precisam de algumas
informações que são muito importantes para a
investigação. Pode responder sem medo, okay…
antes de chegarem aqui para falar com vocês liga-
mos para suas famílias, de modo que estão cientes
que iriamos conversar com vocês.
— Eu respondo apenas se me disserem o que
está acontecendo — falo quase num suspiro, — o
que houve com Marcos, ele foi sequestrado? Cadê
ele? — o policial carrancudo retira a boina e coça
uma barba rala no queixo. M.J assenti positivo
para que ele fale.
— Marcos sofreu um acidente.
Tati segura minha mão e sinto que estou
suando frio e parece que meu corpo vai desabar
a qualquer momento. Aperto a mão dela e faço a
última pergunta que me lembrarei por anos depois
antes de perder os sentidos.
203
— Mas que tipo de acidente. Ele está bem?
Preciso de ir vê-lo… — digo sentindo as lágrimas

VINTE E SETE DE AGOSTO


brotarem no fundo dos meus olhos.
— Não vai ser possível, Frederico. Infeliz-
mente
Marcos faleceu.
CAPÍTULO 17

Acordei em casa. Tudo parecia um pesadelo.


Mas não era.
O que aconteceu depois de Marquinhos morto
e enterrado? Nada! Nada aconteceu. Absoluta-
mente nada.
Naquele mesmo dia que Marquinhos foi jogado
do Morro do Cimento no precipício um catador
de recicláveis foi embora da nossa rua sem deixar
vestígios. Foi uma simples coincidência. Para a
polícia, Marcos se matou. Nunca faria e nunca fez
sentido algum. Porque meu ruivinho se mataria?
Não haviam motivos.
Nenhum outro policial veio falar comigo, nem
gordos, nem carecas e nem carrancudos. A mãe e o
pai de Marcos se mudaram. Nunca se despediram.
Todo mundo acreditou que Marquinhos se
matou! Meu pai me deu um abraço. Uma das pou-
cas demonstrações de afeto de uma vida quase
toda.
Sheila me afagou e disse “— sei o que você está
sentindo”. E eu sei que ela não sabia. Ninguém
sabe. Minha avó preferiu ficar em silêncio. O silên-
cio também é uma forma de dizer algo.
Marcos foi sepultado no Parque da Saudade.
Nome condizente com um lugar de adeus. Eu não
iria. Na última hora peguei a bicicleta e fui peda-
205
lando até chegar ao cemitério.
Muitas pessoas estavam presentes. Muitos

VINTE E SETE DE AGOSTO


colegas de escola, professores, primos, tios. A mãe
de Marcos estava amparada pelo irmão dela, que
eu apenas havia conhecido dos porta-retratos.
Fiquei ali, atrás de uma árvore distante, apenas o
suficiente para me despedir, até que desceram o
caixão. A mãe de Marcos jogou uma rosa e senti
as lágrimas queimando toda minha face.
Covardia? Não. Eu queria apenas manter a
lembrança do meu ruivinho como naquela sexta-
-feira, vinte e sete de agosto. O calor do seu corpo
junto ao meu, seus cabelos cor de fogo bem pró-
ximos ao meu nariz me fazendo sentir o perfume
de banho e pele frescos. “Eu te amo” eu ouvi o
vento soprando nos meus ouvidos. Ou pensei ter
escutado.
— Eu também te amo, Marcos — respondi para
o vazio.
As pessoas começaram a ir embora e, antes de
me virar, os olhos de Tati se encontraram com os
meus. Um olhar de cumplicidade e dor. Passa-
ram-se anos até que eu a reencontrei novamente.
A morte de Marcos mudou todas as nossas vidas.
Aquele ano eu não mais voltei ao colégio.
Aquele ano ficou marcado para sempre em
minha vida.
ADRIANO SILVA

206
CAPÍTULO 18

O que eu poderia esperar da vida e de tan-


tas coisas que vivi? Eu não sei. Tudo passou tão
rápido, me sinto tão diferente. Ainda carrego as
mesmas lembranças e os mesmos sentimentos.
Eu fico pensando no “se” todos os dias.
“Se” a gente não tivesse ido ao Morro do
Cimento. “Se” a gente não tivesse se apaixonado.
O “se” ... e sempre essa possibilidade que não
podemos mais ter.
Quanto Tempo faz?
A minha vida estacionou. As coisas continua-
ram caminhando e o mundo não parou para que
eu colasse todos os caquinhos do meu coração.
Deixei meu cabelo crescer um pouco mais.
No rosto, que possuía algumas espinhas, agora
uma barba grossa cobre toda a minha face e uso
óculos. Você iria rir se me visse agora, Marquinhos.
Eu sinto tanto a sua falta. Seu sorriso e seus
olhos tão castanhos que brilhavam à luz do sol. Às
vezes parece que eu consigo sentir teu cheiro, mas
sei que é uma memória de alguma coisa que ficou
guardada aqui dentro e não se perdeu no tempo.
Como seria se você ainda estivesse aqui?
Você queria uma casa, com cachorro para todo
lado e uma mesa grande na sala para reunir todos
os nossos amigos. Adotar uns filhos, um quintal
com piscina e muitas árvores frutíferas que você
mesmo iria plantar. É dolorido compreender que
alguém te roubou de mim.
ADRIANO SILVA

Faz vinte anos hoje, Marquinhos. Vinte anos


sem você com seus cabelos vermelhos subindo
pelo ipê amarelo para entrar de forma sorrateira
em meu quarto. Vinte anos que não posso mais
dormir abraçado a você. Nem o beijar. Nem ouvir
208
sua gargalhada que parecia iluminar o mundo. O
meu mundo.
Muita coisa mudou aqui sem você. Sheila
ainda luta contra a esclerose múltipla, sente ainda
muitas dores, mas a medicina evoluiu um pouco
e novas drogas a ajudam a ter uma melhor quali-
dade de vida.
Me conforta saber, mesmo que eu nunca
tenha sido tão crédulo como agora, que a gente
vai se encontrar novamente. Eu sinto tanta falta
de você!
Tati me enviou um convite para sua forma-
tura em Medicina alguns anos atrás. Eu não fui e
nunca mais nos vimos ou nos falamos, nem por
telefone e nem por redes sociais. Ainda somos ami-
gos, mas nosso trio falta a peça mais importante...
Augusto faleceu, mas isso você já deva
saber, faz alguns meses. Infarto. Fiquei de passar
na casa de Sheila e vovó para separar as poucas
coisas dele para a caridade. Não senti absoluta-
mente nada quando finalmente tive coragem de ir
até lá, além de um vazio do que ele nunca me foi e
nunca fomos um para o outro. No guarda-roupa,
dentro de uma caixa azul desbotada pelo tempo
209
sob pilhas e pilhas de casacos que ele nunca usou,
haviam umas fotos de família. Vovô e vovó sor-

VINTE E SETE DE AGOSTO


ridentes. Fotos de minha mãe, que nunca soube
como era o rosto até então — você ficaria impres-
sionado de como me pareço com ela. No fundo
da caixa, num fundo falso, encontrei outra coisa.
Tudo fez sentido, Marquinhos.
No fundo da caixa, enrolada em uma fla-
nela laranja, estava a fitinha do Senhor do Bonfim
que lhe presenteei no Morro do Cimento. Nossas
iniciais F e M em cada uma das pontas. Tudo fez
sentido…
Todos os dias eu me lembro de você, Mar-
cos. Estar vivo também é um castigo para quem
já morreu, mas não foi sepultado.

Com amor,
do seu Fred.
AGRADECIMENTOS

Concluir um livro não é uma tarefa fácil.


Todos sabemos. Exige-se dedicação, paciência,
tempo, escrita e reescrita.
Costumava sempre agradecer uma grande
quantidade de pessoas, porém cheguei à conclu-
são que as pessoas mais importantes a quem eu
poderia agradecer são vocês, os leitores. Vocês
que compraram essa obra e chegaram até aqui,
na última página deste Romance. Muito obrigado.
Agradecer a Tathiane Rodrigues que
me incentivou a concluir Vinte e sete de agosto
quando pensei que não mais teria como, devida à
carga emotiva grande despendida para a escrita
e a minha quase cegueira durante a concepção da
obra. Este livro existe por leitoras e amigas como
você. Obrigado.
A minha mãe, Maria, que sempre me incen-
tivou a seguir os estudos. Obrigado por tudo.
Um agradecimento especial para minha
oftalmologista, Dra. Deborah F. Peres Gobetti que
me propiciou qualidade de vida com o uso de len-
tes rígidas gás permeáveis (RGP) na luta contra o
ceratocone. Eternamente grato.

O autor
@adrianosilvaautor

@facebook/adrianosilva

Papel de miolo: Polén Soft 80 G/m²


Capa: Papel supremo 250G/m²
Tipografia: Century Schoolbook 12,5
1ª Edição Vila Rica Editora
VILA RICA EDITORA,
TRANSFORMANDO SONHOS EM LIVROS

WWW.EDICOESVILARICA.COM.BR

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