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Václav Havel

O PODER DOS SEM


PODER
I

Um fantasma assombra a Europa Oriental: o fantasma


do que no Ocidente é chamado de “dissidência”. Esta
assombração não apareceu do nada. É uma
consequência natural e inevitável da atual fase
histórica do sistema que ela está assombrando. Nasceu
numa época em que esse sistema, por mil razões, não
pode mais se basear na aplicação não adulterada,
brutal e arbitrária do poder, eliminando todas as
expressões de não conformidade. Além do mais, o
sistema tornou-se tão solidificado politicamente que
praticamente não há como essa não-conformidade ser
implementada dentro de suas estruturas oficiais.

Quem são os chamados dissidentes? De onde vem o


ponto de vista deles e que importância ele tem? Qual
o significado das “iniciativas independentes” nas
quais os “dissidentes” colaboram e que chances reais
essas iniciativas têm de ter sucesso? É apropriado
referir-se a “dissidentes” como oposição? Em caso
afirmativo, o que exatamente é essa oposição na
estrutura deste sistema? O que isso faz? Qual o papel
que desempenha na sociedade? Quais são as suas
esperanças e no que elas se baseiam? Está dentro do
poder dos “dissidentes” – como uma categoria de sub-
cidadão fora do establishment do poder – ter alguma
influência sobre a sociedade e o sistema social? Eles
podem realmente mudar alguma coisa?

Penso que um exame dessas questões – um exame do


potencial dos “sem poder” – só pode começar com um
exame da natureza do poder nas circunstâncias em que
essas pessoas impotentes operam.

II
O NOSSO SISTEMA é mais frequentemente
caracterizado como uma ditadura ou, mais
precisamente, como a ditadura de uma burocracia
política sobre uma sociedade que passou por
nivelamento econômico e social. Receio que o termo
“ditadura”, independentemente de quão inteligível
possa ser, tende a obscurecer ao invés de esclarecer a
natureza real do poder nesse sistema. Geralmente,
associamos o termo à noção de um pequeno grupo de
pessoas que assumem o governo de um determinado
país à força; seu poder é exercido abertamente, usando
os instrumentos diretos de poder à sua disposição e
eles são facilmente distinguidos socialmente da
maioria sobre a qual governam. Um dos aspectos
essenciais dessa noção tradicional ou clássica de
ditadura é a suposição de que é temporária, efêmera,
sem raízes históricas. Sua existência parece estar
ligada à vida daqueles que a estabeleceram.
Geralmente é local em extensão e significado e,
independentemente da ideologia que utiliza para se
garantir legitimidade, seu poder deriva, em última
análise, dos números e do poder armado de seus
soldados e policiais. A principal ameaça à sua
existência é sentida como a possibilidade de que
alguém mais bem equipado nesse sentido possa
aparecer e derrubá-lo.

Mesmo este panorama muito superficial deve deixar


claro que o sistema em que vivemos tem muito pouco
em comum com uma ditadura clássica. Em primeiro
lugar, nosso sistema não é limitado em um sentido
local, geográfico; em vez disso, domina um enorme
bloco de poder controlado por uma das duas
superpotências. E, embora exiba naturalmente
inúmeras variações locais e históricas, o alcance
dessas variações é fundamentalmente circunscrito por
uma estrutura única e unificadora em todo o bloco de
poder. Não apenas a ditadura em todos os lugares é
baseada nos mesmos princípios e estruturada da
mesma maneira (isto é, na maneira desenvolvida pela
superpotência dominante), mas cada país foi
completamente penetrado por uma rede de
instrumentos manipuladores controlados pelo centro
de superpotências e totalmente subordinado aos seus
interesses. No mundo estagnado da paridade nuclear,
é claro, essa circunstância confere ao sistema um grau
sem precedentes de estabilidade externa em
comparação com as ditaduras clássicas. Muitas crises
locais que, em um estado isolado, levariam a uma
mudança no sistema, podem ser resolvidas através da
intervenção direta das forças armadas do resto do
bloco.

Em segundo lugar, se uma característica das ditaduras


clássicas é a falta de raízes históricas (frequentemente
parecem não mais do que loucos históricos, a
consequência fortuita de processos sociais fortuitos ou
de tendências humanas e de multidões), o mesmo não
pode ser dito com tamanha facilidade sobre o nosso
sistema. Pois, embora nossa ditadura tenha se alienado
completamente dos movimentos sociais que a
originam, a autenticidade desses movimentos (e estou
pensando nos movimentos proletários e socialistas do
século XIX) lhe confere uma inegável historicidade.
Essas origens forneceram uma base sólida de tipos
sobre as quais ela poderia construir até se tornar a
realidade social e política totalmente nova que é hoje,
que se tornou tão inextricavelmente parte da estrutura
do mundo moderno. Uma característica dessas origens
históricas era a compreensão “correta” dos conflitos
sociais no período em que esses movimentos originais
surgiram. O fato de que no cerne desse entendimento
“correto” havia uma disposição genética em relação à
alienação monstruosa característica de seu
desenvolvimento subsequente não é essencial aqui. E,
de qualquer forma, esse elemento também cresceu
organicamente a partir do clima da época e, portanto,
pode-se dizer que tem sua origem lá também.

Um legado desse entendimento “correto” original é


uma terceira peculiaridade que diferencia nossos
sistemas de outras ditaduras modernas: ele comanda
uma ideologia incomparavelmente mais precisa,
estruturada logicamente, geralmente compreensível e,
em essência, extremamente flexível que, em sua
elaboração e completude, é quase uma religião
secularizada. Teme uma resposta pronta a qualquer
pergunta; dificilmente pode ser aceito apenas em
parte, e aceitá-lo tem implicações profundas na vida
humana. Numa época em que as certezas metafísicas
e existenciais estão em estado de crise, quando as
pessoas estão sendo desenraizadas e alienadas e
perdendo a noção do que este mundo significa, essa
ideologia inevitavelmente tem um certo charme
hipnótico. Para a humanidade errante, ela oferece um
lar imediatamente disponível: tudo o que precisamos
fazer é aceitá-lo e, de repente, tudo fica claro mais
uma vez, a vida ganha um novo significado, e todos
os mistérios, perguntas não respondidas, ansiedade e
solidão desaparecem. É claro que se paga caro por
essa casa de aluguel baixo: o preço é a abdicação da
própria razão, consciência e responsabilidade, pois um
aspecto essencial dessa ideologia é a remessa da razão
e da consciência a uma autoridade superior. O
princípio envolvido aqui é que o centro do poder é
idêntico ao centro da verdade. (No nosso caso, a
conexão com a teocracia bizantina é direta: a
autoridade secular mais alta é idêntica à autoridade
espiritual mais alta.) É verdade que, com tudo isso, a
ideologia não exerce mais grande influência sobre as
pessoas, pelo menos dentro do nosso bloco (com a
possível exceção da Rússia, onde a mentalidade de
servos, com seu respeito cego e fatalista pelos
governantes e suas regras automáticas) a aceitação de
todas as suas reivindicações ainda é dominante e
combinada com um patriotismo de superpotência que
tradicionalmente coloca os interesses do império mais
altos do que os da humanidade). Mas isso não é
importante, porque a ideologia desempenha muito
bem seu papel em nosso sistema (uma questão à qual
voltarei) precisamente porque é o que é.

Quarto, a técnica de exercer poder nas ditaduras


tradicionais contém um elemento necessário de
improvisação. Os mecanismos para exercer o poder
geralmente não são estabelecidos com firmeza, e há
considerável espaço para acidentes e para a aplicação
arbitrária e não regulamentada do poder. Socialmente,
psicologicamente e fisicamente, ainda existem
condições para a expressão de alguma forma de
oposição. Em resumo, existem muitas costuras na
superfície que podem se separar antes que toda a
estrutura de energia consiga se estabilizar. Nosso
sistema, por outro lado, vem se desenvolvendo na
União Soviética há mais de sessenta anos e por
aproximadamente trinta anos na Europa Oriental;
além disso, várias de suas características estruturais
estabelecidas há muito tempo derivam do absolutismo
czarista. Em termos dos aspectos físicos do poder, isso
levou à criação de mecanismos tão intrincados e bem
desenvolvidos para a manipulação direta e indireta de
toda a população que, como base física do poder,
representa algo radicalmente novo. Ao mesmo tempo,
não devemos esquecer que o sistema se torna
significativamente mais eficaz pela propriedade do
Estado e pela direção central de todos os meios de
produção. Isso confere à estrutura de poder uma
capacidade inédita e incontrolável de investir em si
mesma (nas áreas da burocracia e da polícia, por
exemplo) e facilita a estrutura, como único
empregador, de manipular a existência do dia-a-dia de
todos os cidadãos.
Finalmente, se uma atmosfera de excitação
revolucionária, heroísmo, dedicação e violência
violenta de todos os lados caracteriza as ditaduras
clássicas, os últimos vestígios dessa atmosfera
desapareceram do bloco soviético. Já faz algum tempo
que esse bloco deixou de ser uma espécie de enclave,
isolado do resto do mundo desenvolvido e imune aos
processos que nele ocorrem. Pelo contrário, o bloco
soviético é parte integrante desse mundo maior e
compartilha e molda o destino do mundo. Isso
significa, em termos concretos, que a hierarquia de
valores existentes nos países desenvolvidos do
Ocidente apareceu, em essência, em nossa sociedade
(o longo período de convivência com o Ocidente
apenas acelerou esse processo). Em outras palavras, o
que temos aqui é simplesmente outra forma de
sociedade industrial e de consumo, com todas as suas
consequências sociais, intelectuais e psicológicas
concomitantes. É impossível entender a natureza do
poder em nosso sistema adequadamente, sem levar
isso em conta.

A profunda diferença entre o nosso sistema – em


termos da natureza do poder – e o que
tradicionalmente entendemos pela ditadura, uma
diferença que espero que seja clara, mesmo nessa
comparação bastante superficial, me levou a procurar
algum termo apropriado para o nosso sistema,
exclusivamente para os fins deste ensaio. Se me refiro
a ele daqui em diante como um sistema “pós-
totalitário”, tenho plena consciência de que esse talvez
não seja o termo mais preciso, mas não consigo pensar
em um melhor. Não desejo sugerir pelo prefixo “post”
que o sistema não é mais totalitário; pelo contrário,
quero dizer que é totalitário de uma maneira
fundamentalmente diferente das ditaduras clássicas,
diferente do totalitarismo como geralmente a
entendemos.
As circunstâncias que mencionei, contudo, formam
apenas um círculo de fatores condicionais e uma
espécie de estrutura fenomenal para a composição real
do poder no sistema pós-totalitário, vários aspectos
dos quais tentarei agora identificar.

III

O gerente de uma loja de frutas e legumes coloca em


sua vitrine, entre as cebolas e as cenouras, o slogan:
“Trabalhadores do mundo, uni-vos!” Por que ele fez
isso? O que ele está tentando se comunicar com o
mundo? Ele está realmente entusiasmado com a ideia
de unidade entre os trabalhadores do mundo? Seu
entusiasmo é tão grande que ele sente um impulso
irreprimível de familiarizar o público com seus ideais?
Ele realmente pensou mais do que um momento em
como essa unificação poderia ocorrer e o que isso
significaria?

Penso que se pode supor com segurança que a


esmagadora maioria dos lojistas nunca pensa nos
slogans que colocam em suas janelas, nem os usa para
expressar suas opiniões reais. Esse pôster foi entregue
à nossa mercearia da sede da empresa, juntamente
com as cebolas e as cenouras. Ele colocou todos eles
na janela simplesmente porque isso é feito há anos,
porque todo mundo faz e porque é assim que deve ser.
Se ele recusasse, poderia haver problemas. Ele poderia
ser repreendido por não ter a decoração adequada em
sua janela; alguém pode até acusá-lo de deslealdade.
Ele faz isso porque essas coisas devem ser feitas para
se dar bem na vida. É um dos milhares de detalhes que
lhe garantem uma vida relativamente tranquila “em
harmonia com a sociedade”, como eles dizem.
Obviamente, o verdureiro é indiferente ao conteúdo
semântico do slogan em exposição; ele não coloca na
sua janela o slogan de qualquer desejo pessoal de
familiarizar o público com o ideal que ele expressa.
Isso, é claro, não significa que sua ação não tenha
motivo ou significado algum, ou que o slogan não
comunique nada a ninguém. O slogan é realmente um
sinal e, como tal, contém uma mensagem subliminar,
mas muito definida. Verbalmente, pode ser expresso
assim: “Eu, o verdureiro XY, moro aqui e sei o que
devo fazer. Eu me comporto da maneira esperada de
mim. Eu posso confiar e estou além da censura. Sou
obediente e, portanto, tenho o direito de ser deixado
em paz. “Esta mensagem, é claro, tem um destinatário:
ela é dirigida acima, ao superior do quitandeiro e, ao
mesmo tempo, é um escudo que protege o quitandeiro
de informantes em potencial. O significado real do
slogan, portanto, está firmemente enraizado na
existência do quitandeiro. Isso reflete seus interesses
vitais. Mas quais são esses interesses vitais?

Observemos: se o quitandeiro tivesse sido instruído a


exibir o slogan “Estou com medo e, portanto,
inquestionavelmente obediente”, ele não ficaria tão
indiferente à sua semântica, embora a declaração
refletisse a verdade. O quitandeiro ficaria
envergonhado e envergonhado por colocar uma
declaração tão inequívoca de sua própria degradação
na vitrine da loja, e com bastante naturalidade, pois ele
é um ser humano e, portanto, tem um senso de sua
própria dignidade. Para superar essa complicação, sua
expressão de lealdade deve assumir a forma de um
sinal que, pelo menos em sua superfície textual, indica
um nível de convicção desinteressada. Deve permitir
que o verdureiro diga: “O que há de errado com a
união dos trabalhadores do mundo?” Assim, o sinal
ajuda o verdureiro a esconder de si os baixos
fundamentos de sua obediência, ao mesmo tempo em
que oculta os baixos fundamentos do poder. Esconde-
os atrás da fachada de algo alto. E que algo é
ideologia.

A ideologia é uma maneira ilusória de se relacionar


com o mundo. Oferece aos seres humanos a ilusão de
uma identidade, de dignidade e de moralidade,
facilitando ao mesmo tempo que eles se separem
deles. Como repositório de algo supra pessoal e
objetivo, ela permite às pessoas enganar sua
consciência e ocultar sua verdadeira posição e seu
inglório modus vivendi, tanto do mundo quanto de si
mesmos. É uma maneira muito pragmática, mas, ao
mesmo tempo, aparentemente digna de legitimar o
que está acima, abaixo e de ambos os lados. É
direcionado para as pessoas e para Deus. É um véu por
trás do qual os seres humanos podem esconder sua
própria existência decaída, sua banalização e sua
adaptação ao status quo. É uma desculpa que todos
podem usar, desde o verdureiro, que esconde seu
medo de perder o emprego por trás de um suposto
interesse na unificação dos trabalhadores do mundo,
até o mais alto funcionário, cujo interesse em
permanecer no poder pode ser oculto. frases sobre
serviço à classe trabalhadora. A principal função
escusatória da ideologia, portanto, é fornecer às
pessoas, como vítimas e pilares do sistema pós-
totalitário, a ilusão de que o sistema está em harmonia
com a ordem humana e a ordem do universo.

Quanto menor a ditadura e menos estratificada pela


modernização da sociedade, mais diretamente pode
ser exercida a vontade do ditador. Em outras palavras,
o ditador pode empregar uma disciplina mais ou
menos nua, evitando os processos complexos de se
relacionar com o mundo e de auto-justificação que a
ideologia envolve. Mas, quanto mais complexos os
mecanismos de poder se tornam, maior e mais
estratificada a sociedade que eles abraçam, e quanto
mais eles operam historicamente, mais indivíduos
devem ser conectados a eles de fora e maior a
importância atribuída à desculpa ideológica. Funciona
como uma espécie de ponte entre o regime e o povo,
através da qual o regime se aproxima do povo e o povo
se aproxima do regime. Isso explica por que a
ideologia desempenha um papel tão importante no
sistema pós-totalitário: que máquinas complexas de
unidades, hierarquias, correias de transmissão e
instrumentos indiretos de manipulação que garantem
de inúmeras maneiras a integridade do regime, não
deixando nada ao acaso, seriam simplesmente
impensáveis sem a ideologia agir como sua desculpa
abrangente e como desculpa para cada uma de suas
partes.

IV

Entre os objetivos do sistema pós-totalitário e os


objetivos da vida existe um abismo: enquanto a vida,
em sua essência, se move em direção à pluralidade,
diversidade, autoconstituição independente e auto-
organização, enfim, em direção à realização por sua
própria liberdade, o sistema pós-totalitário exige
conformidade, uniformidade e disciplina. Enquanto a
vida sempre se esforça para criar estruturas novas e
improváveis, o sistema pós-totalitário tenta forçar a
vida a seus estados mais prováveis. Os objetivos do
sistema revelam que sua característica mais essencial
é a introversão, um movimento em direção a ser cada
vez mais completo e sem reservas, o que significa que
o raio de sua influência também está aumentando
continuamente. Esse sistema atende as pessoas apenas
na extensão necessária para garantir que elas sejam
atendidas. Qualquer coisa além disso, ou seja,
qualquer coisa que leve as pessoas a ultrapassar seus
papéis predeterminados é considerada pelo sistema
como um ataque a si mesma. E, a esse respeito, está
correto: toda instância de tal transgressão é uma
genuína negação do sistema. Pode-se dizer, portanto,
que o objetivo interno do sistema pós-totalitário não é
mera preservação do poder nas mãos de uma
camarilha dominante, como parece ser o caso à
primeira vista. Pelo contrário, o fenômeno social da
autopreservação está subordinado a algo mais
elevado, a um tipo de automatismo cego que
impulsiona o sistema. Independentemente da posição
que os indivíduos ocupem na hierarquia de poder, eles
não são considerados pelo sistema como valiosos, mas
apenas como coisas destinadas a alimentar e servir
esse automatismo. Por esse motivo, o desejo de poder
de um indivíduo é admissível apenas na medida em
que sua direção coincida com a direção do
automatismo do sistema.

A ideologia, ao criar uma ponte de desculpas entre o


sistema e o indivíduo, abrange o abismo entre os
objetivos do sistema e os objetivos da vida. Ele finge
que os requisitos do sistema derivam dos requisitos da
vida. É um mundo de aparências tentando passar pela
realidade.

O sistema pós-totalitário toca as pessoas a cada passo,


mas o faz com suas luvas ideológicas. É por isso que
a vida no sistema é tão permeada de hipocrisia e
mentiras: governo por burocracia é chamado governo
popular; a classe trabalhadora é escravizada em nome
da classe trabalhadora; a degradação completa do
indivíduo é apresentada como sua libertação final;
privar pessoas de informação é chamado de
disponibilização; o uso do poder para manipular é
chamado de controle público do poder, e o abuso
arbitrário de poder é chamado de observação do
código legal; a repressão da cultura é chamada de
desenvolvimento; a expansão da influência imperial é
apresentada como apoio aos oprimidos; a falta de
liberdade de expressão se torna a mais alta forma de
liberdade; eleições ridículas tornam-se a mais alta
forma de democracia; banir o pensamento
independente torna-se a mais científica das visões de
mundo; ocupação militar torna-se assistência fraterna.
Como o regime é cativo de suas próprias mentiras,
deve falsificar tudo. Isso falsifica o passado. Ele
falsifica o presente, e falsifica o futuro. Ele falsifica as
estatísticas. Ele finge não possuir um aparato policial
onipotente e sem princípios. Pretende respeitar os
direitos humanos. Ele finge não perseguir ninguém.
Finge não temer nada. Finge fingir nada.

Os indivíduos não precisam acreditar em todas essas


mistificações, mas devem se comportar como se
fossem, ou devem pelo menos tolerá-las em silêncio,
ou se dar bem com aqueles que trabalham com elas.
Por esse motivo, porém, eles devem viver dentro de
uma mentira. Eles não precisam aceitar a mentira.
Basta que eles aceitem sua vida com ela e nela. Por
esse fato, os indivíduos confirmam o sistema,
cumprem o sistema, fazem o sistema, são o sistema.

Vimos que o verdadeiro significado do slogan da


quitanda não tem nada a ver com o que o texto do
slogan realmente diz. Mesmo assim, esse significado
real é bastante claro e geralmente compreensível
porque o código é tão familiar: o quitandeiro declara
sua lealdade (e ele não pode fazer outro se sua
declaração for aceita) da única maneira que o regime
é capaz de ouvir; isto é, aceitando o ritual prescrito,
aceitando as aparências como realidade, aceitando as
regras do jogo. Ao fazer isso, no entanto, ele próprio
se tornou um jogador no jogo, possibilitando que o
jogo continuasse, para que ele existisse em primeiro
lugar.

Se a ideologia era originalmente uma ponte entre o


sistema e o indivíduo como indivíduo, no momento
em que ele passa por essa ponte, torna-se ao mesmo
tempo uma ponte entre o sistema e o indivíduo como
componente do sistema. Ou seja, se a ideologia
originalmente facilitou (agindo externamente) a
constituição do poder, servindo como desculpa
psicológica, a partir do momento em que a desculpa é
aceita, ela constitui poder interior, tornando-se um
componente ativo desse poder. Começa a funcionar
como o principal instrumento de comunicação ritual
dentro do sistema de poder.

Toda a estrutura de poder (e já discutimos sua


articulação física) não existiria se não houvesse uma
determinada ordem metafísica unindo todos os seus
componentes, interconectando-os e subordinando-os a
um método uniforme de prestação de contas,
fornecendo a combinação operação de todos esses
componentes com as regras do jogo, isto é, com certos
regulamentos, limitações e legalidades. Essa ordem
metafísica é fundamental e padroniza toda a estrutura
de poder; integra seu sistema de comunicação e
possibilita a troca e transferência interna de
informações e instruções. É como uma coleção de
sinais de trânsito e sinais direcionais, dando forma e
estrutura ao processo. Essa ordem metafísica garante
a coerência interna da estrutura totalitária de poder. É
a cola que a mantém unida, seu princípio vinculativo,
o instrumento de sua disciplina. Sem essa cola, a
estrutura como estrutura totalitária desapareceria;
desintegrar-se-ia em átomos individuais colidindo
caoticamente uns com os outros em seus interesses e
inclinações particulares não regulamentados. Toda a
pirâmide de poder totalitário, privada do elemento que
o une, entraria em colapso sobre si mesma, por assim
dizer, em uma espécie de implosão material.

Como interpretação da realidade pela estrutura de


poder, a ideologia está sempre subordinada, em última
análise, aos interesses da estrutura. Portanto, tem uma
tendência natural a se desvencilhar da realidade, a
criar um mundo de aparências, a se tornar ritual. Nas
sociedades em que existe concorrência pública pelo
poder e, portanto, controle público desse poder,
também existe naturalmente um controle público da
maneira como o poder se legitima ideologicamente.
Consequentemente, em tais condições, sempre
existem certos corretivos que efetivamente impedem
a ideologia de abandonar completamente a realidade.
No totalitarismo, no entanto, esses corretivos
desaparecem e, portanto, nada impede que a ideologia
se afaste cada vez mais da realidade, transformando-
se gradualmente no que já se tornou no sistema pós-
totalitário: um mundo de aparências, um mero ritual,
uma linguagem formalizada privada de contato
semântico com a realidade e transformada em um
sistema de sinais rituais que substituem a realidade
pela pseudorrealidade.
No entanto, como vimos, a ideologia se torna ao
mesmo tempo um componente cada vez mais
importante do poder, um pilar que lhe confere
legitimidade escusatória e coerência interna. À
medida que esse aspecto cresce em importância, e à
medida que perde gradualmente o contato com a
realidade, adquire uma força peculiar, mas muito real.
Torna-se a própria realidade, embora seja uma
realidade completamente independente, que em certos
níveis (principalmente dentro da estrutura de poder)
pode ter um peso ainda maior do que a realidade como
tal. Cada vez mais, o virtuosismo do ritual se torna
mais importante do que a realidade oculta por trás
dele. O significado dos fenômenos não deriva mais
dos próprios fenômenos, mas de seu lugar como
conceitos no contexto ideológico. A realidade não
molda a teoria, mas o contrário. Assim, o poder
gradualmente se aproxima mais da ideologia do que
da realidade; extrai sua força da teoria e se torna
inteiramente dependente dela. Isso inevitavelmente
leva, é claro, a um resultado paradoxal: ao invés de
teoria, ou melhor, ideologia, servindo ao poder, o
poder começa a servir à ideologia. É como se a
ideologia tivesse se apropriado do poder, como se
tivesse se tornado ditador. Parece então que a própria
teoria, o próprio ritual, a própria ideologia, toma
decisões que afetam as pessoas, e não o contrário.

Se a ideologia é a principal garantia da consistência


interna do poder, torna-se ao mesmo tempo uma
garantia cada vez mais importante de sua
continuidade. Enquanto a sucessão ao poder na
ditadura clássica é sempre um assunto bastante
complicado (os pretendentes nada tendo para dar
legitimidade razoável a suas reivindicações, forçando-
os a recorrer sempre a confrontos de poder nu), no
sistema pós-totalitário o poder é passado de pessoa a
pessoa, de camarilha em camarilha, e de geração em
geração de uma maneira essencialmente mais regular.
Na seleção de pretendentes, um novo “fazedor de reis”
participa: é a legitimação ritual, a capacidade de
confiar no ritual, cumpri-lo e usá-lo, permitir-se, por
assim dizer, ser sustentado por ele. Naturalmente, as
lutas pelo poder também existem no sistema pós-
totalitário, e a maioria delas é muito mais brutal do que
em uma sociedade aberta, pois a luta não é aberta,
regulamentada por regras democráticas e sujeita ao
controle público, mas oculta por trás das cenas. (É
difícil recordar uma única instância em que o Primeiro
Secretário de um Partido Comunista no poder foi
substituído, sem que as várias forças militares e de
segurança estivessem ao menos em alerta.) Essa luta,
no entanto, nunca pode (como nas ditaduras clássicas)
ameaçar a própria essência do sistema e sua
continuidade. No máximo, abalará a estrutura de
poder, que se recuperará rapidamente precisamente
porque a substância vinculativa – ideologia –
permanece inalterada. Não importa quem é
substituído por quem, a sucessão só é possível no
contexto e dentro da estrutura de um ritual comum.
Isso nunca pode acontecer negando esse ritual.

Por causa dessa ditadura do ritual, no entanto, o poder


se torna claramente anônimo. Os indivíduos são quase
dissolvidos no ritual. Eles se deixam levar por ela e,
frequentemente, parece que apenas o ritual leva as
pessoas da obscuridade à luz do poder. Não é
característico do sistema pós-totalitário que, em todos
os níveis da hierarquia de poder, os indivíduos sejam
cada vez mais afastados por pessoas sem rosto,
fantoches, aqueles servis uniformizados dos rituais e
rotinas de poder?
A operação automática de uma estrutura de poder
assim desumanizada e tornada anônima é uma
característica do automatismo fundamental deste
sistema. Parece que são precisamente os ditames deste
automatismo que selecionam pessoas sem vontade
individual para a estrutura de poder, que é
precisamente o ditame da frase vazia que convoca ao
poder as pessoas que usam frases vazias como a
melhor garantia de que o automatismo da o sistema
pós-totalitário continuará.

Os sovietologistas ocidentais muitas vezes exageram


o papel dos indivíduos no sistema pós-totalitário e
ignoram o fato de que as figuras dominantes, apesar
do imenso poder que possuem, através da estrutura
centralizada de poder, muitas vezes não passam de
executores cegos do próprio sistema interno leis – leis
sobre as quais eles próprios nada podem e nunca
refletem. De qualquer forma, a experiência nos
ensinou repetidamente que esse automatismo é muito
mais poderoso do que a vontade de qualquer
indivíduo; e, se alguém possui uma vontade mais
independente, deve ocultá-la atrás de uma máscara
ritualmente anônima para ter a oportunidade de entrar
na hierarquia do poder. E quando o indivíduo
finalmente ganhar um lugar lá e tentar fazer sentir sua
vontade dentro dele, esse automatismo, com sua
enorme inércia, triunfará mais cedo ou mais tarde e o
indivíduo será expulso pela estrutura de poder como
um organismo estranho, ou ele será obrigado a
renunciar gradualmente à sua individualidade,
misturando-se novamente com o automatismo e
tornando-se seu servo, quase indistinguível daqueles
que o precederam e dos que o seguirão. (Recordemos,
por exemplo, o desenvolvimento de Husák ou
Gomukka.) A necessidade de se esconder
constantemente e se relacionar com o ritual significa
que mesmo os membros mais esclarecidos da
estrutura de poder são frequentemente obcecados com
a ideologia. Eles nunca são capazes de mergulhar
direto no fundo da realidade nua e sempre a
confundem, em última análise, com pseudorrealidade
ideológica. (Na minha opinião, uma das razões pelas
quais a liderança de Dubček perdeu o controle da
situação em 1968 foi justamente porque, em situações
extremas e em questões finais, seus membros nunca
foram capazes de se libertar completamente do mundo
das aparências.)

Pode-se dizer, portanto, que a ideologia, como


instrumento de comunicação interna que assegura a
estrutura de poder da coesão interna, é, no sistema
pós-totalitário, algo que transcende os aspectos físicos
do poder, algo que o domina a um grau considerável
e, portanto, tende a garantir sua continuidade também.
É um dos pilares da estabilidade externa do sistema.
Este pilar, no entanto, é construído sobre uma base
muito instável. É construído sobre mentiras. Funciona
apenas enquanto as pessoas estão dispostas a viver
dentro da mentira.

VI

Por que nosso vendedor de hortaliças teve que mostrar


sua lealdade na vitrine? Ele já não o exibira
suficientemente de várias maneiras internas ou
semipúblicas? Afinal, nas reuniões sindicais, ele
sempre votou como deveria. Ele sempre participou de
várias competições. Ele votou nas eleições como um
bom cidadão. Ele até assinou o “anti-Carta”. Por que,
além de tudo isso, ele deveria declarar publicamente
sua lealdade? Afinal, as pessoas que passam pela
janela certamente não param para ler que, na opinião
do quitandeiro, os trabalhadores do mundo deveriam
se unir. O fato é que eles não leem o slogan e pode-se
supor que nem o vêem. Se você perguntasse a uma
mulher que havia parado em frente à sua loja o que ela
viu na vitrine, ela certamente poderia dizer se hoje
havia ou não tomates, mas é altamente improvável que
ela tenha notado o slogan, quanto mais o que dizia.

Parece sem sentido exigir que o verdureiro declare


publicamente sua lealdade. Mas faz sentido, no
entanto. As pessoas ignoram seu slogan, mas o fazem
porque esses slogans também são encontrados em
outras vitrines, postes de luz, quadros de avisos,
vitrines de apartamentos e prédios; eles estão em toda
parte, de fato. Eles fazem parte do panorama da vida
cotidiana. É claro que, embora ignorem os detalhes, as
pessoas estão muito conscientes desse panorama
como um todo. E o que mais é o slogan da quitanda, a
não ser um pequeno componente naquele imenso
cenário da vida cotidiana?

O quitandeiro teve que colocar o slogan em sua janela,


portanto, não na esperança de que alguém pudesse lê-
lo ou ser persuadido por ele, mas para contribuir,
juntamente com milhares de outros slogans, para o
panorama de que todo mundo está ciente. Esse
panorama, é claro, também tem um significado
subliminar: lembra as pessoas onde elas moram e o
que se espera delas. Diz a eles o que todos os outros
estão fazendo e indica a eles o que devem fazer, se não
querem ser excluídos, se isolar, se afastar da
sociedade, quebrar as regras do jogo e arriscar a perda
de sua paz e tranquilidade e segurança.
A mulher que ignorou o slogan da quitanda pode
muito bem ter pendurado um slogan semelhante
apenas uma hora antes no corredor do escritório onde
trabalha. Ela fez isso mais ou menos sem pensar,
assim como nosso verdureiro, e pôde fazê-lo
precisamente porque estava fazendo isso no contexto
do panorama geral e com alguma consciência disso,
isto é, no contexto do panorama da qual a vitrine da
mercearia faz parte. Quando o verdureiro visita seu
escritório, ele também não notará o slogan dela, assim
como ela não notou o dele. Não obstante, seus slogans
são mutuamente dependentes: ambos foram exibidos
com alguma consciência do panorama geral e,
poderíamos dizer, sob seu ditame. Ambos, no entanto,
auxiliam na criação desse panorama e, portanto,
auxiliam na criação desse diktat. O quitandeiro e o
funcionário do escritório se adaptaram às condições
em que vivem, mas, ao fazê-lo, ajudam a criar essas
condições. Eles fazem o que é feito, o que é para ser
feito, o que deve ser feito, mas ao mesmo tempo – por
esse motivo – eles confirmam que isso deve ser feito
de fato. Eles estão em conformidade com um requisito
específico e, ao fazê-lo, eles próprios perpetuam esse
requisito. Metafisicamente falando, sem o slogan do
quitandeiro, o slogan do trabalhador de escritório não
poderia existir e vice-versa. Cada um propõe ao outro
que algo seja repetido e cada um aceita a proposta do
outro. Sua indiferença mútua com os slogans um do
outro é apenas uma ilusão: na realidade, exibindo seus
slogans, um obriga o outro a aceitar as regras do jogo
e confirmar com isso o poder que exige os slogans em
primeiro lugar. Simplesmente, cada um ajuda o outro
a ser obediente. Ambos são objetos em um sistema de
controle, mas ao mesmo tempo são também seus
sujeitos. Ambos são vítimas do sistema e de seus
instrumentos.
Se uma cidade distrital inteira está repleta de slogans
que ninguém lê, é por um lado uma mensagem do
secretário distrital para o secretário regional, mas
também é algo mais: um pequeno exemplo do
princípio da autototalidade social no trabalho. Parte da
essência do sistema pós-totalitário é que ele atrai todos
para a sua esfera de poder, não para que se realizem
como seres humanos, mas para que entreguem sua
identidade humana em favor da identidade do sistema.
Ou seja, assim eles podem se tornar agentes do
automatismo geral do sistema e servos de seus
objetivos autodeterminados, para que participem da
responsabilidade comum por ele, para que sejam
atraídos e enredados por ele, como Fausto por
Mefistófeles. Mais do que isso: para que eles possam
criar através do seu envolvimento uma norma geral e,
assim, pressionar os seus concidadãos. E mais: para
que eles aprendam a se sentir confortáveis com seu
envolvimento, a se identificarem como se isso fosse
algo natural e inevitável e, finalmente, para que eles –
sem necessidade externa – passem a tratar qualquer
não-envolvimento como uma anormalidade, como
arrogância, como um ataque a si mesmos, como uma
forma de abandonar a sociedade. Ao puxar todos para
dentro de sua estrutura de poder, o sistema pós-
totalitário faz de todos um instrumento de uma
totalidade mútua, a autototalidade da sociedade.

Todos, no entanto, estão de fato envolvidos e


escravizados, não apenas os quitandeiros, mas
também os primeiros-ministros. Diferentes posições
na hierarquia apenas estabelecem diferentes graus de
envolvimento: o verdureiro está envolvido apenas em
menor grau, mas ele também tem muito pouco poder.
O primeiro ministro, naturalmente, tem maior poder,
mas em troca ele está muito mais envolvido. Ambos,
no entanto, não são livres, cada um apenas de uma
maneira um pouco diferente. O verdadeiro cúmplice
desse envolvimento, portanto, não é outra pessoa, mas
o próprio sistema.

A posição na hierarquia de poder determina o grau de


responsabilidade e culpa, mas não confere
responsabilidade e culpa ilimitadas, nem absolve
completamente ninguém. Assim, o conflito entre os
objetivos da vida e os objetivos do sistema não é um
conflito entre duas comunidades socialmente
definidas e separadas; e apenas uma visão muito
generalizada (e mesmo que apenas aproximada) nos
permite dividir a sociedade entre os governantes e os
governados. A propósito, aqui está uma das diferenças
mais importantes entre o sistema pós-totalitário e as
ditaduras clássicas, nas quais essa linha de conflito
ainda pode ser traçada de acordo com a classe social.
No sistema pós-totalitário, essa linha passa de fato por
cada pessoa, pois todos à sua maneira são vítimas e
apoiadores do sistema. O que entendemos pelo
sistema não é, portanto, uma ordem social imposta por
um grupo a outro, mas algo que permeia toda a
sociedade e é um fator para moldá-la, algo que pode
parecer impossível de entender ou definir (pois é na
natureza de um mero princípio), mas que é expresso
por toda a sociedade como uma característica
importante de sua vida.

O fato de os seres humanos terem criado, e


diariamente criarem, esse sistema autodirigido através
do qual se despojam de sua identidade mais íntima não
é, portanto, o resultado de algum incompreensível
mal-entendido da história, nem a história de alguma
forma se desvaneceu. Tampouco é o produto de
alguma vontade diabólica superior que decidiu, por
razões desconhecidas, atormentar uma porção da
humanidade dessa maneira. Isso pode acontecer e
aconteceu apenas porque, obviamente, na humanidade
moderna existe uma certa tendência para a criação, ou
pelo menos a tolerância, de tal sistema. Obviamente,
existe algo nos seres humanos que responde a esse
sistema, algo que eles refletem e acomodam, algo
dentro deles que paralisa todo esforço de seus
melhores seres para se revoltar. Os seres humanos são
compelidos a viver dentro de uma mentira, mas só
podem ser compelidos a fazê-lo porque, de fato, são
capazes de viver dessa maneira. Portanto, o sistema
não apenas aliena a humanidade, mas, ao mesmo
tempo, a humanidade alienada apoia esse sistema
como seu próprio plano mestre involuntário, como
uma imagem degenerada de sua própria degeneração,
como um registro do próprio fracasso das pessoas
como indivíduos.
Os objetivos essenciais da vida estão presentes
naturalmente em todas as pessoas. Em todos, há um
desejo da legítima dignidade da humanidade, da
integridade moral, da livre expressão do ser e de um
senso de transcendência sobre o mundo da existência.
No entanto, ao mesmo tempo, cada pessoa é capaz, em
maior ou menor grau, de aceitar a vida dentro da
mentira. Cada pessoa de alguma forma sucumbe a
uma banalização profana de sua inerente humanidade
e, também, sucumbe ao utilitarismo. Em todos, existe
uma certa disposição de fundir-se com a multidão
anônima e fluir confortavelmente junto com ela no
caudal da pseudolife. Isso é muito mais do que um
simples conflito entre duas identidades. É algo muito
pior: é um desafio à própria noção de identidade.

Em termos altamente simplificados, pode-se dizer que


o sistema pós-totalitário foi construído sobre
fundamentos lançados pelo encontro histórico entre a
ditadura e a sociedade de consumo. Não é verdade que
a ampla capacidade de adaptação a viver uma mentira
e a expansão sem esforço da autototalidade social
tenham alguma conexão com a falta de vontade geral
das pessoas orientadas para o consumo em sacrificar
algumas certezas materiais em prol de sua própria
integridade espiritual e moral? Com a vontade de
renunciar a valores mais elevados quando
confrontados com as tentações triviais da civilização
moderna? Com sua vulnerabilidade às atrações da
indiferença em massa? E, no final, não é o cinza e o
vazio da vida no sistema pós-totalitário apenas uma
caricatura inflada da vida moderna em geral? E, de
fato, não permanecemos (embora nas medidas
externas da civilização estamos muito atrasados)
como uma espécie de aviso ao Ocidente, revelando
suas próprias tendências latentes?
VII

Imaginemos agora que um dia algo no nosso


verdureiro se rompe e ele para de colocar os slogans
apenas para agradar a si mesmo. Ele para de votar nas
eleições que sabe serem uma farsa. Ele começa a dizer
o que realmente pensa em reuniões políticas. E ele
ainda encontra forças para expressar solidariedade
àqueles a quem sua consciência o ordena apoiar. Nesta
revolta, o verdureiro deixa de viver dentro da mentira.
Ele rejeita o ritual e quebra as regras do jogo. Ele
descobre mais uma vez sua identidade e dignidade
reprimidas. Ele dá à sua liberdade um significado
concreto. Sua revolta é uma tentativa de viver dentro
da verdade.
A conta não demorará a chegar. Ele será dispensado
do cargo de gerente da loja e transferido para o
armazém. Seu salário será reduzido. Suas esperanças
de férias na Bulgária evaporarão. O acesso de seus
filhos ao ensino superior será ameaçado. Seus
superiores o perseguirão e seus colegas de trabalho se
perguntarão sobre ele. A maioria dos que aplicam
essas sanções, no entanto, não o fará por qualquer
convicção interna autêntica, mas simplesmente sob
pressão das condições, as mesmas condições que
pressionaram o quitandeiro a exibir os slogans
oficiais. Perseguirão o verdureiro, porque é esperado
deles, ou demonstram sua lealdade, ou simplesmente
como parte do panorama geral, ao qual pertence a
consciência de que é assim que são tratadas situações
desse tipo, que isso, de fato, é assim que as coisas
sempre são feitas, principalmente se alguém não
quiser se tornar suspeito. Os executores, portanto,
comportam-se essencialmente como todos os demais,
em maior ou menor grau: como componentes do
sistema pós-totalitário, como agentes de seu
automatismo, como instrumentos mesquinhos da
autototalidade social.

Assim, a estrutura de poder, através da ação de quem


executa as sanções, os componentes anônimos do
sistema, expelirá o verdureiro de seu corpo. O sistema,
através de sua presença alienante no povo, o punirá
por sua rebelião. Isso deve ser feito porque a lógica de
seu automatismo e autodefesa o dita. O quitandeiro
não cometeu uma ofensa simples e individual, isolada
em sua própria singularidade, mas algo
incomparavelmente mais sério. Ao quebrar as regras
do jogo, ele interrompeu o jogo como tal. Ele o expôs
como um mero jogo. Ele destruiu o mundo das
aparências, o pilar fundamental do sistema. Ele
perturbou a estrutura de poder, destruindo o que a
mantém unida. Ele demonstrou que viver uma mentira
é viver uma mentira. Ele rompeu a fachada exaltada
do sistema e expôs os verdadeiros fundamentos
básicos do poder. Ele disse que o imperador está nu. E
como o imperador está de fato nu, algo extremamente
perigoso aconteceu: por sua ação, o verdureiro se
dirigiu ao mundo. Ele permitiu que todos espiassem
atrás da cortina. Ele mostrou a todos que é possível
viver dentro da verdade. Viver dentro da mentira pode
constituir o sistema somente se for universal. O
princípio deve abraçar e permear tudo. Não há termos
em que ele possa coexistir com a vida dentro da
verdade e, portanto, todo mundo que sai da linha nega-
a em princípio e a ameaça por completo.

É compreensível: enquanto a aparência não é


confrontada com a realidade, ela não parece ser
aparência. Enquanto viver uma mentira não for
confrontado com viver a verdade, falta a perspectiva
necessária para expor sua mentira. Assim que a
alternativa aparece, no entanto, ela ameaça a própria
existência da aparência e vive uma mentira em termos
do que eles são, tanto sua essência quanto sua
inclusividade total. E, ao mesmo tempo, é
absolutamente sem importância o tamanho do espaço
que essa alternativa ocupa: seu poder não consiste em
seus atributos físicos, mas na luz que lança sobre os
pilares do sistema e sobre seus fundamentos instáveis.
Afinal, o verdureiro era uma ameaça ao sistema, não
por causa de qualquer poder físico ou real que ele
possuía, mas porque sua ação ia além de si mesma,
porque iluminava seu ambiente e, é claro, por causa
das consequências incalculáveis dessa iluminação. No
sistema pós-totalitário, portanto, viver dentro da
verdade tem mais do que uma mera dimensão
existencial (retornando a humanidade à sua natureza
inerente), ou uma dimensão noética (revelando a
realidade como ela é) ou uma dimensão moral (dando
um exemplo para outras). Ele também tem uma
dimensão política inequívoca. Se o pilar principal do
sistema está vivendo uma mentira, não é de
surpreender que a ameaça fundamental a ele esteja
vivendo a verdade. É por isso que deve ser suprimido
com mais severidade do que qualquer outra coisa.

No sistema pós-totalitário, a verdade no sentido mais


amplo da palavra tem uma importância muito
especial, desconhecida em outros contextos. Nesse
sistema, a verdade desempenha um papel muito maior
(e, acima de tudo, muito diferente) como fator de
poder ou como uma força política definitiva. Como o
poder da verdade opera? Como funciona a verdade
como fator de poder? Como o seu poder como poder
pode ser realizado?
VIII

Os indivíduos podem ser alienados de si mesmos


apenas porque há algo neles a alienar. O terreno desta
violação é a sua existência autêntica. Viver a verdade
é, portanto, tecido diretamente na textura de viver uma
mentira. É a alternativa reprimida, o objetivo autêntico
ao qual viver uma mentira é uma resposta inautêntica.
Somente contra esse pano de fundo viver uma mentira
faz algum sentido: existe por causa desse pano de
fundo. Em seu enraizado escusatória e quimérico na
ordem humana, é uma resposta a nada além da
predisposição humana à verdade. Sob a superfície
ordenada da vida das mentiras, portanto, adormece a
esfera oculta da vida em seus objetivos reais, em sua
abertura oculta à verdade.O poder político singular,
explosivo e incalculável de viver dentro da verdade
reside no fato de que viver abertamente dentro da
verdade tem um aliado, invisível para ter certeza, mas
onipresente: essa esfera oculta. É dessa esfera que a
vida vivida abertamente na verdade cresce; é a essa
esfera que ele fala, e nela encontra o entendimento. É
aqui que existe o potencial de comunicação. Mas este
lugar está oculto e, portanto, do ponto de vista do
poder, muito perigoso. A fermentação complexa que
ocorre dentro dela continua na escuridão e, quando
finalmente surge na luz do dia como uma variedade de
surpresas chocantes para o sistema, geralmente é tarde
demais para encobri-las da maneira usual. Assim, eles
criam uma situação em que o regime é confundido,
causando invariavelmente o pânico e levando-o a
reagir de maneira inadequada.

Parece que o principal terreno fértil para o que pode,


no sentido mais amplo possível da palavra, ser
entendido como uma oposição no sistema pós-
totalitário é viver dentro da verdade. O confronto entre
essas forças da oposição e os poderes que obviamente
terão uma forma essencialmente diferente daquela
típica de uma sociedade aberta ou de uma ditadura
clássica. Inicialmente, esse confronto não ocorre no
nível do poder real, institucionalizado e quantificável
que se baseia nos vários instrumentos de poder, mas
em um nível completamente diferente: o nível da
consciência humana e do consciente, o nível
existencial. O alcance efetivo desse poder especial não
pode ser medido em termos de discípulos, eleitores ou
soldados, porque está espalhado na quinta coluna da
consciência social, nos objetivos ocultos da vida, no
anseio reprimido dos seres humanos por dignidade e
direitos fundamentais, para a realização de seus reais
interesses sociais e políticos. Seu poder, portanto, não
reside na força de grupos políticos ou sociais
definíveis, mas principalmente na força de um
potencial que está oculto por toda a sociedade,
incluindo as estruturas oficiais de poder dessa
sociedade. Portanto, esse poder não depende de
soldados próprios, mas sim dos soldados do inimigo –
ou seja, de todos os que vivem na mentira e que podem
ser atingidos a qualquer momento (em teoria, pelo
menos ) pela força da verdade (ou que, por um desejo
instintivo de proteger sua posição, possa pelo menos
se adaptar a essa força). É uma arma bacteriológica,
por assim dizer, utilizada quando as condições estão
maduras por um único civil para desarmar uma
divisão inteira. Esse poder não participa de nenhuma
luta direta pelo poder; ao contrário, faz sua influência
ser sentida na obscura arena do ser em si. Os
movimentos ocultos que para lá emergem, no entanto,
podem resultar (quando, onde, em que circunstâncias
e em que medida são difíceis de prever) em algo
visível: um ato ou evento político real, um movimento
social, uma explosão repentina de agitação civil, um
conflito agudo dentro de uma estrutura de poder
aparentemente monolítica ou simplesmente uma
transformação irreprimível no clima social e
intelectual. E como todos os problemas e questões de
importância crítica estão ocultos sob uma grossa
camada de mentiras, nunca fica claro quando a última
gota d’água proverbial cairá, ou qual será tal gota. É
também por isso que o regime processa, quase como
uma ação reflexiva preventiva, mesmo as tentativas
mais modestas de viver dentro da verdade.

Por que Solzhenitsyn foi expulso de seu próprio país?


Certamente não porque ele representou uma unidade
de poder real, isto é, não porque algum dos
representantes do regime sentiu que poderia derrubá-
los e tomar seu lugar no governo. A expulsão de
Solzhenitsyn foi outra coisa: uma tentativa
desesperada de obstruir a terrível fonte da verdade,
uma verdade que pode causar transformações
incalculáveis na consciência social, que por sua vez
podem um dia produzir desastres políticos
imprevisíveis em suas consequências. E, assim, o
sistema pós-totalitário se comportou de maneira
característica: defendeu a integridade do mundo das
aparências para se defender. Pois a crosta apresentada
pela vida das mentiras é feita de coisas estranhas.
Desde que sele hermeticamente toda a sociedade, ela
parece ser feita de pedra. Mas no momento em que
alguém entra em um lugar, quando uma pessoa grita:
“O imperador está nu!”- quando uma única pessoa
quebra as regras do jogo, expondo-o como um jogo –
tudo repentinamente aparece sob outra luz e toda a
crosta parece então ser feita de um tecido a ponto de
rasgar e desintegrar-se incontrolavelmente.

Quando falo em viver dentro da verdade, naturalmente


não tenho em mente apenas produtos do pensamento
conceitual, como um protesto ou uma carta escrita por
um grupo de intelectuais. Pode ser qualquer meio pelo
qual uma pessoa ou um grupo se revolte contra a
manipulação: qualquer coisa, desde uma carta de
intelectuais até uma greve dos trabalhadores, de um
show de rock a uma demonstração estudantil, de se
recusar a votar nas eleições ridículas para fazer um
discurso aberto em algum congresso oficial, ou
mesmo uma greve de fome, por exemplo. Se a
supressão dos objetivos da vida é um processo
complexo e se baseia na manipulação multifacetada de
todas as expressões da vida, da mesma forma, toda
expressão de vida livre indiretamente ameaça
politicamente o sistema pós-totalitário, incluindo
formas de expressão às quais, em outros sistemas
sociais, ninguém atribuiria qualquer significado
político potencial, sem mencionar o poder explosivo.
A primavera de Praga costuma ser entendida como um
confronto entre dois grupos no nível do poder real:
aqueles que queriam manter o sistema como ele era e
aqueles que queriam reformá-lo. É frequentemente
esquecido, no entanto, que esse encontro foi apenas o
ato final e a consequência inevitável de um longo
drama originalmente representado principalmente no
teatro do espírito e na consciência da sociedade. E que,
em algum momento do início desse drama, havia
indivíduos dispostos a viver dentro da verdade,
mesmo quando as coisas estavam em seu pior estado.
Essas pessoas não tinham acesso ao poder real, nem
aspiravam a ele. A esfera em que viviam a verdade não
era necessariamente a do pensamento político. Eles
poderiam igualmente ter sido poetas, pintores,
músicos ou simplesmente cidadãos comuns que foram
capazes de manter sua dignidade humana. Hoje em dia
é naturalmente difícil identificar quando e através de
qual canal sinuoso e oculto uma determinada ação ou
atitude influenciou um determinado meio, e rastrear o
vírus da verdade conforme ele se espalha lentamente
pelo tecido da vida das mentiras, gradualmente
fazendo com que se desintegre. Uma coisa, no entanto,
parece clara: a tentativa de reforma política não foi a
causa do “despertar da sociedade”, mas o resultado
final desse despertar.

Penso que o presente também pode ser melhor


compreendido à luz dessa experiência. O confronto
entre mil cartistas e o sistema pós-totalitário parece ser
politicamente impossível. Isso é verdade, é claro, se
olharmos para ela através das lentes tradicionais do
sistema político aberto, no qual, naturalmente, toda
força política é medida principalmente em termos das
posições que ocupa no nível do poder real. Dada essa
perspectiva, uma minipartidária como a Carta
certamente não teria chance. Se, no entanto, esse
confronto é visto no contexto do que sabemos sobre
poder no sistema pós-totalitário, aparece sob uma luz
fundamentalmente diferente. Por enquanto, é
impossível dizer com precisão o impacto que a
aparência da Carta 77, sua existência e seu trabalho
tiveram na esfera oculta, e como a tentativa da Carta
de reavivar a autoconsciência e a confiança cívica é
vista lá. Se, quando e como esse investimento
eventualmente produzirá dividendos na forma de
mudanças políticas específicas é ainda menos possível
prever. Mas isso, é claro, faz parte da vida dentro da
verdade. Como solução existencial, leva os indivíduos
de volta ao terreno sólido de sua própria identidade;
como política, lança-os em um jogo de azar, onde as
apostas são tudo ou nada. Por esse motivo, é realizado
apenas por aqueles para quem vale a pena arriscar o
primeiro, ou que chegaram à conclusão de que não há
outra maneira de conduzir políticas reais na
Tchecoslováquia hoje. Que, a propósito, é a mesma
coisa: essa conclusão pode ser alcançada apenas por
alguém que não está disposto a sacrificar sua própria
identidade humana à política, ou melhor, que não
acredita em uma política que exija tal sacrifício.

Quanto mais completamente o sistema pós-totalitário


frustra qualquer alternativa rival no nível do poder
real, bem como qualquer forma de política
independente das leis de seu próprio automatismo,
mais definitivamente o centro de gravidade de
qualquer potencial ameaça política muda para a área
do existencial e do pré-político: geralmente sem
nenhum esforço consciente, viver dentro da verdade
se torna o único ponto de partida natural para todas as
atividades que trabalham contra o automatismo do
sistema. E mesmo que tais atividades acabem
crescendo além da área de vida dentro da verdade (o
que significa que elas são transformadas em várias
estruturas paralelas, movimentos, instituições, elas
passam a ser vistas como atividade política,
pressionam de verdade as estruturas oficiais e de fato,
exercem certa influência sobre o nível do poder real),
elas sempre carregam consigo a marca específica de
suas origens. Portanto, parece-me que nem mesmo os
chamados movimentos dissidentes podem ser
adequadamente compreendidos sem sempre ter em
mente esse contexto especial de onde emergem.

IX

A crise profunda da identidade humana provocada por


viver dentro de uma mentira, uma crise que por sua
vez torna essa vida possível, certamente possui
também uma dimensão moral; aparece, entre outras
coisas, como uma profunda crise moral na sociedade.
Uma pessoa que foi seduzida pelo sistema de valor do
consumidor, cuja identidade se dissolve em um
amálgama dos apetrechos da civilização de massa, que
não tem raízes na ordem do ser e nenhum senso de
responsabilidade por algo maior que sua própria
sobrevivência pessoal, é uma pessoa desmoralizada. O
sistema depende dessa desmoralização, o aprofunda, é
de fato uma projeção dele na sociedade.

Viver dentro da verdade, como revolta da humanidade


contra uma posição forçada, é, pelo contrário, uma
tentativa de recuperar o controle sobre o próprio senso
de responsabilidade. Em outras palavras, é claramente
um ato moral, não apenas porque é preciso pagar
muito caro por isso, mas principalmente porque não
serve a si próprio: o risco pode trazer recompensas na
forma de uma melhoria geral na situação, ou talvez
não. A esse respeito, como afirmei anteriormente, é
uma aposta de tudo ou nada, e é difícil imaginar uma
pessoa razoável embarcando em tal curso
simplesmente porque acha que o sacrifício hoje trará
recompensas amanhã, seja apenas na forma de
gratidão geral. (A propósito, os representantes do
poder invariavelmente chegam a um acordo com
aqueles que vivem na verdade, atribuindo-lhes
persistentemente motivações utilitárias – um desejo de
poder, fama ou riqueza – e, assim, tentam, pelo menos,
implicá-los em seu próprio mundo, o mundo da
desmoralização geral.)

Se viver dentro da verdade no sistema pós-totalitário


se torna o principal ponto de partida para ideias
políticas alternativas e independentes, todas as
considerações sobre a natureza e as perspectivas
futuras dessas ideias devem necessariamente refletir
essa dimensão moral como um fenômeno político. (E
se a crença marxista revolucionária sobre a
moralidade como um produto da “superestrutura”
inibe qualquer um de nossos amigos de perceber o
pleno significado dessa dimensão e, de uma maneira
ou de outra, de incluí-la em sua visão de mundo, é em
seu próprio prejuízo: uma ansiosa fidelidade aos
postulados daquela visão de mundo os impede de
entender adequadamente os mecanismos de sua
própria influência política, paradoxalmente tornando-
os precisamente o que eles, como marxistas, muitas
vezes suspeitam que outros sejam vítimas de “falsa
consciência.”). O significado político muito especial
da moralidade no sistema pós-totalitário é um
fenômeno que é pelo menos incomum na história
política moderna, um fenômeno que pode muito bem
ter – como tentarei mostrar em breve – consequências
de longo alcance.
X

Inegavelmente, o evento político mais importante na


Tchecoslováquia após o advento da liderança de
Husák em 1969 foi o aparecimento da Carta 77. O
clima espiritual e intelectual em torno de sua
aparência, no entanto, não foi o produto de nenhum
evento político imediato. Esse clima foi criado pelo
julgamento de alguns jovens músicos associados a um
grupo de rock chamado “O povo plástico do
universo”. Seu julgamento não foi um confronto de
duas forças ou concepções políticas diferentes, mas
duas concepções diferentes de vida. Por um lado,
havia o puritanismo estéril do establishment pós-
totalitário e, por outro, jovens desconhecidos que não
queriam mais do que poder viver na verdade, tocar a
música de que gostavam, cantar canções que eram
relevantes para suas vidas e para viver livremente em
dignidade e parceria. Essas pessoas não tinham
histórico passado de atividade política. Eles não eram
membros altamente motivados da oposição com
ambições políticas, nem eram ex-políticos expulsos
das estruturas de poder. Eles tiveram a oportunidade
de se adaptar ao status quo, de aceitar os princípios de
viver dentro de uma mentira e, assim, de gozar a vida
sem serem perturbados pelas autoridades. No entanto,
eles decidiram seguir um caminho diferente. Apesar
disso, ou talvez justamente por isso, o caso deles teve
um impacto muito especial em todos que ainda não
haviam perdido a esperança. Além disso, quando o
julgamento ocorreu, um novo clima começou a surgir
após os anos de espera, de apatia e ceticismo em
relação a várias formas de resistência. As pessoas
estavam “cansadas de estar cansadas”; eles estavam
fartos da estagnação, da inatividade, mal aguentando
a esperança de que as coisas pudessem melhorar,
afinal. De certa forma, o julgamento foi a gota d’água.
Muitos grupos de tendências diferentes, que até então
haviam permanecido isolados um do outro, relutantes
em cooperar ou comprometidos com formas de ação
que dificultavam a cooperação, foram subitamente
atingidos pela poderosa percepção de que a liberdade
é indivisível. Todos entendiam que um ataque ao
underground musical tcheco era um ataque a algo
mais elementar e importante, algo que de fato unia a
todos: era um ataque à própria noção de viver dentro
da verdade, aos objetivos reais da vida. A liberdade de
tocar rock era entendida como uma liberdade humana
e, portanto, essencialmente a mesma que a liberdade
de se envolver em reflexões filosóficas e políticas, a
liberdade de escrever, a liberdade de expressar e
defender os vários interesses sociais e políticos da
sociedade. As pessoas foram inspiradas a sentir um
genuíno senso de solidariedade com os jovens
músicos e perceberam que não defender a liberdade
dos outros, independentemente de quão remotos seus
meios de criatividade ou sua atitude perante a vida,
significava renunciar à própria liberdade. (Não há
liberdade sem igualdade perante a lei, e não há
igualdade perante a lei sem liberdade; a Carta 77 deu
a essa noção antiga uma dimensão nova e
característica, que tem implicações imensamente
importantes para a história moderna da República
Tcheca. O que Sládeček, autor do livro Sessenta e
Oito, em uma análise brilhante, chama de “princípio
da exclusão”, está na raiz de toda a nossa miséria
moral e política atual. Esse princípio nasceu no final
da Segunda Guerra Mundial naquela estranha coalizão
entre democratas e comunistas e foi
subsequentemente desenvolvido mais e mais, até o
amargo fim. Pela primeira vez em décadas, esse
princípio foi superado pela Carta 77: todos os que
estão unidos na Carta tornaram-se, pela primeira vez,
parceiros iguais. A Carta 77 não é apenas uma
coalizão de comunistas e não comunistas – isso não
seria nada historicamente novo e, do ponto de vista
moral e político, nada revolucionário – mas é uma
comunidade que é a priori aberta a qualquer pessoa, e
ninguém nela é atribuído a priori uma posição
inferior.) Era então o clima em que a Carta 77 foi
criada. Quem poderia prever que a acusação de um ou
dois grupos obscuros de rock teria consequências tão
abrangentes?

Penso que as origens da Carta 77 ilustram muito bem


o que já sugeri acima: que no sistema pós-totalitário,
o contexto real dos movimentos que gradualmente
assumem significado político não costuma consistir
em eventos políticos abertos ou confrontos entre
diferentes forças ou conceitos que são abertamente
políticos. Esses movimentos geralmente se originam,
na maior parte das vezes, em outros lugares, na área
mais ampla do “pré-político”, onde viver dentro de
uma mentira confronta viver dentro da verdade, isto é,
onde as demandas do sistema pós-totalitário conflitam
com os objetivos reais da vida. Esses objetivos reais
podem naturalmente assumir muitas formas. Às vezes,
aparecem como interesses materiais ou sociais básicos
de um grupo ou indivíduo; outras vezes, podem
aparecer como certos interesses intelectuais e
espirituais; ainda em outros momentos, elas podem ser
as demandas existenciais mais fundamentais, como o
simples desejo das pessoas de viver suas próprias
vidas com dignidade. Tal conflito adquire um caráter
político, portanto, não por causa da natureza política
elementar dos objetivos que exigem ser ouvidos, mas
simplesmente porque, dado o complexo sistema de
manipulação do qual o sistema pós-totalitário se
baseia e do qual também depende todo ato ou
expressão humana livre, toda tentativa de viver dentro
da verdade deve necessariamente aparecer como uma
ameaça ao sistema e, portanto, como algo político por
excelência. Qualquer eventual articulação política dos
movimentos que emergem deste interior “pré-
político” é secundária. Ele se desenvolve e amadurece
como resultado de um confronto subsequente com o
sistema, e não porque começou como um programa
político, projeto ou impulso.

Mais uma vez, os eventos de 1968 confirmam isso. Os


políticos comunistas que estavam tentando reformar o
sistema apresentaram seu programa não porque
repentinamente experimentaram uma iluminação
mística, mas porque foram levados a fazê-lo pela
contínua e crescente pressão de áreas da vida que não
tinham nada a ver com política na o sentido tradicional
da palavra. De fato, eles estavam tentando, de maneira
política, resolver os conflitos sociais (que de fato eram
confrontos entre os objetivos do sistema e os objetivos
da vida) que quase todos os níveis da sociedade
vivenciavam diariamente, e pensavam com o aumento
da abertura por anos. Apoiados por essa ressonância
viva em toda a sociedade, estudiosos e artistas
definiram o problema de várias maneiras e os alunos
exigiam soluções.

A gênese da Carta 77 também ilustra o significado


político especial do aspecto moral das coisas que
mencionei. A Carta 77 seria inimaginável sem esse
poderoso senso de solidariedade entre grupos
amplamente diferentes, e sem a súbita percepção de
que era impossível continuar esperando mais, e que a
verdade tinha que ser falada em voz alta e
coletivamente, independentemente da virtual certeza
de sanções e a incerteza de quaisquer resultados
tangíveis no futuro imediato. “Há algumas coisas
pelas quais vale a pena sofrer”, escreveu Jan Patočka
pouco antes de sua morte. Penso que os cartistas
entendem isso não apenas como o legado de Patočka,
mas também como a melhor explicação de por que
eles fazem o que fazem.

Visto de fora e principalmente do ponto de vista do


sistema e de sua estrutura de poder, a Carta 77 foi uma
surpresa, como um raio do nada. Não foi um raio do
nada, é claro, mas essa impressão é compreensível,
uma vez que o fermento que levou a isso ocorreu na
“esfera oculta”, naquela semiescuridão onde as coisas
são difíceis de mapear ou analisar. As chances de
prever a aparência da Carta eram tão pequenas quanto
as chances de prever para onde ela levará. Mais uma
vez, foi aquele choque, tão típico dos momentos em
que algo da esfera oculta explode repentinamente na
superfície moribunda da vida dentro de uma mentira.
Quanto mais alguém fica preso no mundo das
aparências, mais surpreendente é quando algo assim
acontece.

XI

Nas sociedades do sistema pós-totalitário, toda a vida


política no sentido tradicional foi eliminada. As
pessoas não têm oportunidade de se expressar
politicamente em público, muito menos de se
organizar politicamente. A lacuna resultante é
preenchida por um ritual ideológico. Em tal situação,
o interesse das pessoas em questões políticas diminui
naturalmente e o pensamento político independente,
na medida em que existe, é visto pela maioria como
irrealista, forçado, uma espécie de jogo
autoindulgente, irremediavelmente distante de suas
preocupações cotidianas; algo admirável, talvez, mas
completamente inútil, porque é, por um lado,
totalmente utópico e, por outro, extraordinariamente
perigoso, tendo em vista o vigor incomum com que
qualquer movimento nessa direção é perseguido pelo
regime.

No entanto, mesmo nessas sociedades, existem


indivíduos e grupos de pessoas que não abandonam a
política como vocação e que, de uma maneira ou de
outra, se esforçam para pensar de forma independente,
para se expressar e, em alguns casos, até para se
organizar politicamente, porque isso é parte de sua
tentativa de viver dentro da verdade.

O fato de essas pessoas existirem e trabalharem é


imensamente importante e que vale a pena. Mesmo
nos piores momentos, eles mantêm a continuidade do
pensamento político. Se algum impulso político
genuíno emerge desse ou daquele confronto “pré-
político” e é adequadamente articulado cedo o
suficiente, aumentando assim suas chances de sucesso
relativo, então isso se deve frequentemente a esses
generais isolados sem um exército que, por manterem
a continuidade do pensamento político diante de
enormes dificuldades pode, no momento certo,
enriquecer o novo impulso com os frutos de seu
próprio pensamento político. Mais uma vez, há muitas
evidências para esse processo na Tchecoslováquia.
Quase todos aqueles que eram prisioneiros políticos
no início dos anos 1970, que aparentemente sofreram
em vão por causa de seus esforços quixotescos de
trabalhar politicamente numa uma sociedade
totalmente apática e desmoralizada, pertencem hoje –
inevitavelmente – aos cartistas mais ativos. Na Carta
77, o legado moral de seus sacrifícios anteriores é
valorizado, e eles enriqueceram esse movimento com
sua experiência e esse elemento do pensamento
político.

E, no entanto, parece-me que o pensamento e a


atividade daqueles amigos que nunca desistiram do
trabalho político direto e que estão sempre prontos
para assumir a responsabilidade política direta muitas
vezes sofrem de uma falha crônica: uma compreensão
insuficiente da singularidade histórica de o sistema
pós-totalitário como realidade social e política. Eles
têm pouco entendimento da natureza específica do
poder que é típica para esse sistema e, portanto,
superestimam a importância do trabalho político
direto no sentido tradicional. Além disso, eles falham
em apreciar o significado político desses eventos e
processos “pré-políticos” que fornecem o húmus vivo
do qual geralmente surgem mudanças políticas
genuínas. Como atores políticos – ou melhor, como
pessoas com ambições políticas – eles frequentemente
tentam retomar o ponto em que a vida política natural
parou. Eles mantêm modelos de comportamento que
podem ter sido apropriados em circunstâncias
políticas mais normais e, portanto, sem realmente
estar cientes disso, trazem uma maneira obsoleta de
pensar, velhos hábitos, concepções, categorias e
noções para suportar circunstâncias bastante novas e
radicalmente diferente, sem primeiro pensar
adequadamente no significado e na substância de tais
coisas nas novas circunstâncias, no que a política
como tal significa agora, em que tipo de coisa pode ter
impacto e potencial político e de que maneira. Porque
essas pessoas foram excluídas das estruturas de poder
e não são mais capazes de influenciá-las diretamente
(e porque permanecem fiéis às noções tradicionais de
política estabelecidas em sociedades mais ou menos
democráticas ou nas ditaduras clássicas)
frequentemente perdem, em certo sentido, o contato
com a realidade. Por que estabelecer compromissos
com a realidade, dizem eles, quando de forma alguma
nossas propostas serão aceitas? Assim, eles se
encontram em um mundo de pensamento
genuinamente utópico.

Como já tentei indicar, porém, eventos políticos


genuinamente abrangentes não surgem das mesmas
fontes e da mesma maneira no sistema pós-totalitário
que em uma democracia. E se grande parte do público
é indiferente, mesmo cético, a modelos e programas
políticos alternativos e ao estabelecimento privado de
partidos políticos da oposição, isso não ocorre apenas
porque há um sentimento geral de apatia em relação
aos assuntos públicos e uma perda daquele senso de
maior responsabilidade; em outras palavras, não é
apenas uma consequência da desmoralização geral.
Há também um pouco de instinto social saudável em
ação nessa atitude. É como se as pessoas sentissem
intuitivamente que “nada mais é o que parece”, como
diz o ditado, e que a partir de agora, portanto, as coisas
devem ser feitas de maneira totalmente diferente
também.

Se alguns dos impulsos políticos mais importantes nos


países do bloco soviético nos últimos anos ocorreram
inicialmente – isto é, antes de serem sentidos no nível
do poder real – de matemáticos, filósofos, médicos,
escritores, historiadores, trabalhadores comuns, etc.
mais frequentemente do que dos políticos, e se a força
motriz por trás dos vários movimentos dissidentes
vem de tantas pessoas em profissões não-políticas,
isso não ocorre porque essas pessoas são mais espertas
do que aquelas que se consideram principalmente
políticas. É porque aqueles que não são políticos
também não estão tão ligados ao pensamento político
tradicional e aos hábitos políticos e, portanto,
paradoxalmente, estão mais conscientes da realidade
política genuína e mais sensíveis ao que pode e deve
ser feito nessas circunstâncias.

Não há como contornar: não importa quão belo seja


um modelo político alternativo, ele não pode mais
falar com a “esfera oculta”, inspirar pessoas e
sociedade, exigir fermentação política real. A
verdadeira esfera da política em potencial no sistema
pós-totalitário está em outro lugar: na tensão contínua
e cruel entre as demandas complexas desse sistema e
os objetivos da vida, isto é, a necessidade elementar
de seres humanos de viver, em certa medida pelo
menos, em harmonia consigo mesmo, ou seja, viver
de maneira suportável, não ser humilhado por seus
superiores e oficiais, não ser vigiado continuamente
pela polícia, ser capaz de se expressar livremente,
encontrar uma saída para sua criatividade, para
usufruir de segurança jurídica e assim por diante.
Qualquer coisa que toque concretamente esse campo,
qualquer coisa que esteja relacionada a essa tensão
fundamental, onipresente e viva, inevitavelmente
falará às pessoas. Projetos abstratos para uma ordem
política ou econômica ideal não os interessam na
mesma extensão – e com razão – não apenas porque
todo mundo sabe como têm poucas chances de
sucesso, mas também porque hoje as pessoas sentem
que menos políticas são derivadas de um concreto e
humano aqui e agora e quanto mais eles fixam suas
vistas em um “dia” abstrato, mais facilmente podem
degenerar em novas formas de escravidão humana. As
pessoas que vivem no sistema pós-totalitário sabem
muito bem que a questão de saber se um ou vários
partidos políticos estão no poder e como esses partidos
se definem e se rotulam é de muito menos importância
do que a questão de saber se é possível ou não viver
como um ser humano.

Derrubar o fardo das categorias e hábitos políticos


tradicionais e abrir-se plenamente ao mundo da
existência humana e tirar conclusões políticas
somente depois de analisá-lo: isso não é apenas
politicamente mais realista, mas ao mesmo tempo a
partir do ponto de vista de um “estado ideal de coisas”,
politicamente mais promissor também. Uma mudança
genuína, profunda e duradoura para melhor – como
tentarei mostrar – não pode mais resultar da vitória (se
tal vitória fosse possível) de qualquer concepção
política tradicional em particular, que pode ser apenas
externa, ou seja, uma concepção estrutural ou
sistêmica. Mais do que nunca, essa mudança terá que
derivar da existência humana, da reconstituição
fundamental da posição das pessoas no mundo, de
seus relacionamentos entre si e entre si e com o
universo. Se um melhor modelo econômico e político
deve ser criado, talvez mais do que nunca seja o
resultado de profundas mudanças existenciais e
morais na sociedade. Isso não é algo que pode ser
projetado e introduzido como um carro novo. Se é
para ser mais do que apenas uma nova variação da
velha degeneração, deve acima de tudo ser uma
expressão da vida no processo de transformação. Um
sistema melhor não garante automaticamente uma
vida melhor. De fato, o oposto é verdadeiro: somente
criando uma vida melhor um sistema melhor pode ser
desenvolvido.

Repito mais uma vez que não estou subestimando a


importância do pensamento político e do trabalho
político conceitual. Pelo contrário, acho que o
pensamento político genuíno e o trabalho
genuinamente político é precisamente o que
continuamente falhamos em alcançar. Se eu digo
“genuíno”, no entanto, tenho em mente o tipo de
pensamento e trabalho conceitual que se livrou de
todos os esquemas políticos tradicionais que foram
importados para nossas circunstâncias de um mundo
que nunca voltará (e cujo retorno, mesmo fosse
possível, não forneceria uma solução permanente para
os problemas mais importantes).

A Segunda e a Quarta Internacionais, como muitas


outras potências e organizações políticas, podem
naturalmente fornecer apoio político significativo a
vários esforços nossos, mas nenhum deles pode
resolver nossos problemas para nós. Eles operam em
um mundo diferente e são produtos de diferentes
circunstâncias. Seus conceitos teóricos podem ser
interessantes e instrutivos para nós, mas uma coisa é
certa: não podemos resolver nossos problemas
simplesmente identificando-nos com essas
organizações. E a tentativa em nosso país de colocar o
que fazemos no contexto de algumas das discussões
que dominam a vida política nas sociedades
democráticas muitas vezes parece pura loucura. Por
exemplo, é possível falar seriamente sobre se
queremos mudar o sistema ou apenas reformá-lo? Nas
circunstâncias em que vivemos, esse é um
pseudoproblema, uma vez que, por enquanto,
simplesmente não há como alcançarmos qualquer um
desses objetivos. Nem sabemos ao certo onde termina
a reforma e começa a mudança. Sabemos de uma série
de experiências duras que nem a reforma nem a
mudança são em si uma garantia de nada. Sabemos
que, em última análise, é tudo a mesma coisa para nós
se o sistema em que vivemos, à luz de uma doutrina
específica, parece alterado ou reformado. Nossa
preocupação é se podemos viver com dignidade nesse
sistema, se ele serve às pessoas e não às pessoas que o
servem. Estamos nos esforçando para conseguir isso
com os meios disponíveis e os meios que faz sentido
empregar. Jornalistas ocidentais, submersos nas
banalidades políticas em que vivem, podem rotular
nossa abordagem como excessivamente legalista,
como arriscada, revisionista, contrarrevolucionária,
burguesa, comunista ou de extrema direita ou
esquerda. Mas esta é a última coisa que nos interessa.

XII

Um conceito que é uma fonte constante de confusão


principalmente porque foi importado para nossas
circunstâncias de circunstâncias inteiramente
diferentes é o conceito de oposição. O que exatamente
é uma oposição no sistema pós-totalitário?
Nas sociedades democráticas com um sistema de
governo parlamentar tradicional, a oposição política é
entendida como uma força política no nível do poder
real (mais frequentemente um partido ou coalizão de
partidos), que não faz parte do governo. Oferece um
programa político alternativo, tem ambições de
governar e é reconhecido e respeitado pelo governo no
poder como um elemento natural da vida política do
país. Ele procura espalhar sua influência por meios
políticos e compete pelo poder com base em
regulamentos legais acordados.

Além dessa forma de oposição, existe o fenômeno da


“oposição extraparlamentar”, que novamente consiste
em forças organizadas mais ou menos no nível do
poder real, mas que operam fora das regras criadas
pelo sistema, e que empregam meios diferentes dos
habituais nesse contexto.

Nas ditaduras clássicas, o termo “oposição” significa


as forças políticas que também lançaram um programa
político alternativo. Eles operam legalmente ou dentro
dos limites externos da legalidade, mas, em qualquer
caso, não podem competir pelo poder dentro dos
limites de alguns regulamentos acordados. Ou o termo
“oposição” pode ser aplicado a forças que se preparam
para um confronto violento com o poder dominante,
ou que já se sentem nesse estado de confronto, como
vários grupos de guerrilha ou movimentos de
libertação.
Em nenhum desses sentidos existe uma oposição no
sistema pós-totalitário. De que maneira, então, o
termo pode ser usado?

1) Ocasionalmente, o termo “oposição” é aplicado,


principalmente por jornalistas ocidentais, a pessoas ou
grupos dentro da estrutura de poder que se encontram
em um estado de conflito oculto com as mais altas
autoridades. As razões para esse conflito podem ser
certas diferenças (diferenças não muito acentuadas,
naturalmente) de natureza conceitual, mas mais
frequentemente é simplesmente um desejo de poder
ou uma antipatia pessoal para outras pessoas que
representam esse poder.

2) A oposição aqui também pode ser entendida como


tudo o que faz ou pode ter um efeito político indireto
no sentido já mencionado, ou seja, tudo o que o
sistema pós-totalitário se sente ameaçado, o que de
fato significa tudo o que é ameaçado. Nesse sentido, a
oposição é toda tentativa de viver dentro da verdade,
da recusa do quitandeiro em colocar o slogan em sua
janela a um poema escrito livremente; em outras
palavras, tudo em que os objetivos genuínos da vida
vão além dos limites impostos a eles pelos objetivos
do sistema.

3) Mais frequentemente, no entanto, a oposição é


geralmente entendida (novamente, em grande parte
pelos jornalistas ocidentais) como grupos de pessoas
que tornam públicas suas posições não-conformistas e
opiniões críticas, que não escondem seu pensamento
independente e que, em maior ou menor grau,
consideram-se uma força política. Nesse sentido, a
noção de oposição se sobrepõe mais ou menos à noção
de dissidência, embora, é claro, haja grandes
diferenças no grau em que esse rótulo é aceito ou
rejeitado. Depende não apenas da extensão em que
essas pessoas entendem seu poder como uma força
diretamente política e se têm ambições de participar
do poder real, mas também de como cada uma delas
entende a noção de oposição.

Novamente, aqui está um exemplo: em sua declaração


original, a Carta 77 enfatizou que não era uma
oposição porque não tinha a intenção de apresentar um
programa político alternativo. Ele vê sua missão como
algo completamente diferente, pois não apresentou
tais programas. De fato, se a apresentação de um
programa alternativo define a natureza de uma
oposição nos estados pós-totalitários, a Carta não pode
ser considerada uma oposição.
O governo da Checoslováquia, no entanto, considerou
a Carta 77 como uma associação expressamente
oposicionista desde o início e a tratou em
conformidade. Isso significa que o governo – e isso é
natural – entende o termo “oposição” mais ou menos
como eu o defini no ponto 2, isto é, como tudo que
consegue evitar a manipulação total e, portanto, nega
o princípio de que o sistema tem uma reivindicação
absoluta sobre o indivíduo.

Se aceitarmos essa definição de oposição, é claro que,


juntamente com o governo, devemos considerar a
Carta uma oposição genuína, porque representa um
sério desafio à integridade do poder pós-totalitário,
fundamentado na universalidade. de viver com uma
mentira.
No entanto, é uma questão diferente quando olhamos
até que ponto os signatários da Carta 77 se consideram
uma oposição. Minha impressão é que a maioria deles
baseia o entendimento do termo “oposição” no
significado tradicional da palavra tal como se
estabeleceu nas sociedades democráticas (ou nas
ditaduras clássicas); portanto, eles entendem a
oposição, mesmo na Tchecoslováquia, como uma
força politicamente definida que, embora não opere no
nível do poder real, e menos ainda no âmbito de certas
regras respeitadas pelo governo, ainda não rejeitaria a
oportunidade de participar do poder real porque
possui, de certo modo, um programa político
alternativo cujos proponentes estão preparados para
aceitar responsabilidade política direta por ele. Dada
essa noção de oposição, alguns cartistas – a grande
maioria – não se vêem assim. Outros – uma minoria –
o fazem, mesmo que respeitem plenamente o fato de
que não há espaço na Carta 77 para atividades “de
oposição” nesse sentido. Ao mesmo tempo, no
entanto, talvez todo cartista esteja familiarizado o
suficiente com a natureza específica das condições no
sistema pós-totalitário para perceber que não é apenas
a luta pelos direitos humanos que possui seu próprio
poder político peculiar, mas atividades
incomparavelmente mais “inocentes” também e,
portanto, elas podem ser entendidas como um aspecto
de oposição. Nenhum cartista pode realmente se opor
a ser considerado uma oposição nesse sentido.

Há outra circunstância, no entanto, que complica


consideravelmente as coisas. Por muitas décadas, a
sociedade governante do poder no bloco soviético
usou o rótulo “oposição” como a mais negra das
acusações, como sinônimo da palavra “inimigo”.
Marcar alguém como “membro da oposição” equivale
a dizer que ele está tentando derrubar o governo e pôr
um fim ao socialismo (naturalmente pago pelos
imperialistas). Houve momentos em que esse rótulo
levou direto à forca e, é claro, isso não incentiva as
pessoas a aplicar o mesmo rótulo a si mesmas. Além
disso, é apenas uma palavra, e o que é realmente feito
é mais importante do que como é rotulado.

A razão final pela qual muitos rejeitam tal termo é


porque há algo negativo na noção de “oposição”. As
pessoas que assim se definem o fazem em relação a
uma “posição” anterior. Em outras palavras, eles se
relacionam especificamente ao poder que governa a
sociedade e, por meio dela, se definem, derivando sua
própria posição da posição do regime. Para as pessoas
que simplesmente decidiram viver dentro da verdade,
dizer em voz alta o que pensam, expressar sua
solidariedade com seus concidadãos, criar o que
querem e simplesmente viver em harmonia com seu
eu melhor, é naturalmente desagradável sentir
necessário definir negativamente sua própria posição
original e positiva, em termos de outra coisa, e pensar
em si mesmos principalmente como pessoas que são
contra algo, não simplesmente como pessoas que são
o que são.

Obviamente, a única maneira de evitar mal-


entendidos é dizer claramente – antes que alguém
comece a usá-los – em que sentido os termos
“oposição” e “membro da oposição” estão sendo
usados e como eles devem de fato ser entendidos em
nossas circunstâncias.

XIII
Se o termo “oposição” foi importado das sociedades
democráticas para o sistema pós-totalitário sem um
acordo geral sobre o que a palavra significa em
condições tão diferentes, então o termo “dissidente”
foi, pelo contrário, escolhido por Western jornalistas
e agora é geralmente aceito como o rótulo de um
fenômeno peculiar ao sistema pós-totalitário e quase
nunca ocorre – pelo menos não dessa forma – nas
sociedades democráticas.

Quem são esses “dissidentes”?

Parece que o termo é aplicado principalmente a


cidadãos do bloco soviético que decidiram viver
dentro da verdade e que, além disso, atendem aos
seguintes critérios:
1) Eles expressam suas posições não-conformistas e
opiniões críticas de forma pública e sistemática,
dentro dos limites muito rígidos à sua disposição e,
por isso, são conhecidos no Ocidente.

2) Mesmo não sendo capazes de publicar em seu


próprio país e apesar de todas as formas possíveis de
perseguição por parte de seus governos em virtude de
suas atitudes, conseguiram obter certa estima, tanto do
público como de seu governo e, portanto, desfrutam
de um muito limitado e estranho grau de poder
indireto e real em seu próprio meio também. Isso os
protege das piores formas de perseguição ou, pelo
menos, garante que, se forem perseguidos, significará
certas complicações políticas para seus governos.
3) O horizonte de sua atenção crítica e seu
compromisso ultrapassa o contexto estreito de seu
entorno imediato ou interesses especiais para abraçar
causas mais gerais e, portanto, seu trabalho se torna de
natureza política, embora o grau em que se
considerem uma força diretamente política possa
variar bastante.

4) São pessoas que se inclinam para atividades


intelectuais, isto é, são “escritores”, pessoas para
quem a palavra escrita é a principal – e muitas vezes a
única – mídia política que eles dominam, e que pode
chamar a atenção, principalmente do exterior. Outras
maneiras pelas quais eles procuram viver dentro da
verdade ou escapam aos olhos do observador
estrangeiro no meio local ou – se eles ultrapassam essa
estrutura local – parecem ser complementos apenas
um pouco menos visíveis daquilo que escreveram.
5) Independentemente de suas vocações reais, essas
pessoas são mencionadas com mais frequência no
Ocidente em termos de suas atividades como cidadãos
comprometidos, ou em aspectos críticos e políticos de
seu trabalho, do que em termos do trabalho real que
realizam por conta própria. Por experiência pessoal,
eu sei que há uma linha invisível que você cruza – sem
querer ou tomando consciência dela – além da qual
elas deixam de tratá-lo como um escritor que passa a
ser um cidadão preocupado e começa a falar de você
como um ” dissidente” que quase por acaso (em seu
tempo livre, talvez?) passa a escrever peças também.

Inquestionavelmente, existem pessoas que atendem a


todos esses critérios. O que é discutível é se devemos
usar um termo especial para um grupo definido de
maneira tão acidental e, especificamente, se eles
devem ser chamados de “dissidentes”. Isso acontece,
no entanto, e claramente não há nada que possamos
fazer sobre isso. Às vezes, para facilitar a
comunicação, usamos até mesmo o rótulo, embora
seja feito com aversão, ironicamente, e quase sempre
entre aspas.

Talvez agora seja apropriado delinear algumas das


razões pelas quais os próprios “dissidentes” não estão
muito felizes em serem mencionados dessa maneira.
Em primeiro lugar, a palavra é problemática do ponto
de vista etimológico. Um “dissidente”, nos diz a
imprensa, significa algo como “renegado” ou
“retrocesso”. Mas os dissidentes não se consideram
renegados pela simples razão de que não estão
principalmente negando ou rejeitando nada. Pelo
contrário, eles tentaram afirmar sua própria identidade
humana e, se rejeitam alguma coisa, é apenas o que
era falso e alienante em suas vidas, esse aspecto de
viver dentro de uma mentira.

Mas isso não é a coisa mais importante. O termo


“dissidente” frequentemente implica uma profissão
especial, como se, junto com as vocações mais
normais, houvesse outra especial – resmungando
sobre o estado das coisas. De fato, um “dissidente” é
simplesmente um físico, um sociólogo, um
trabalhador, um poeta, indivíduos que estão fazendo o
que acham que devem e, consequentemente, que se
encontram em conflito aberto com o regime. Esse
conflito não ocorreu por nenhuma intenção consciente
da parte deles, mas simplesmente pela lógica interna
de seu pensamento, comportamento ou trabalho
(geralmente confrontado com circunstâncias externas,
mais ou menos fora de seu controle). Em outras
palavras, eles não decidiram conscientemente ser
descontentes profissionais, e sim como alguém decide
ser alfaiate ou ferreiro.

De fato, é claro, eles geralmente não descobrem que


são “dissidentes” até muito tempo depois de se
tornarem realmente um. “Dissidência” brota de
motivações muito diferentes do desejo por títulos ou
fama. Em resumo, eles não decidem se tornar
“dissidentes” e, mesmo se devessem dedicar vinte e
quatro horas por dia, isso ainda não seria uma
profissão, mas principalmente uma atitude existencial.
Além disso, é uma atitude que não é de modo algum
propriedade exclusiva daqueles que conquistaram o
título de “dissidente” apenas porque cumprem as
condições externas acidentais já mencionadas.
Existem milhares de pessoas sem nome que tentam
viver dentro da verdade e milhões que querem, mas
não podem, talvez apenas porque, nas circunstâncias
em que vivem, precisariam de dez vezes a coragem
daqueles que já deram o primeiro passo. Se várias
dezenas são escolhidas aleatoriamente dentre todas
essas pessoas e colocadas em uma categoria especial,
isso pode distorcer totalmente o quadro geral. Isso
acontece de duas maneiras diferentes. Ou sugere que
“dissidentes” são um grupo de pessoas proeminentes,
uma espécie protegida que tem permissão para fazer
coisas que os outros não podem e que o governo pode
até estar cultivando como prova viva de sua
generosidade; ou apoia a ilusão de que, como não há
mais do que um punhado de descontentes a quem não
está realmente sendo feito muito, todo o resto está,
portanto, contente. Pois, se não o fizessem, também
seriam “dissidentes”.

Mas isso não é tudo. Essa categorização também


involuntariamente apoia a impressão de que a
principal preocupação desses “dissidentes” é algum
interesse que eles compartilham como um grupo,
como se todo o seu argumento com o governo não
passasse de um conflito bastante obscuro entre dois
grupos opostos, um conflito que deixa a sociedade
completamente de fora. Mas essa impressão contradiz
profundamente a real importância da atitude
“dissidente”, que permanece ou cai sobre seu interesse
pelos outros, no que aflige a sociedade como um todo,
em outras palavras, sobre o interesse de todos aqueles
que não se manifestam. Se os “dissidentes” têm algum
tipo de autoridade e se não foram exterminados há
tempo como insetos exóticos que apareceram onde
não deveriam estar, então não é porque o governo
mantém esse grupo exclusivo e suas ideias exclusivas
em tal admiração, mas porque está perfeitamente
ciente do potencial poder político de viver dentro da
verdade enraizada na esfera oculta, e bem ciente
também do tipo de mundo em que “a dissidência”
cresce e o mundo a que se dirige: o mundo humano
cotidiano , o mundo da tensão diária entre os objetivos
da vida e os objetivos do sistema. (Pode haver melhor
evidência disso do que a ação do governo após o
surgimento da Carta 77, quando lançou uma
campanha para obrigar todo o país a declarar que a
Carta 77 estava errada? Esses milhões de assinaturas
provaram, entre outras coisas, que exatamente o
oposto era verdadeiro.) Os órgãos políticos e a polícia
não prestam tanta atenção aos “dissidentes” – o que
pode dar a impressão de que o governo não os teme,
pois temem uma camarilha alternativa do poder –
porque na verdade são uma camarilha do poder, mas
porque são pessoas comuns, com afazeres comuns,
diferindo do resto apenas pelo fato de dizerem em voz
alta o que o resto não pode dizer ou tem medo de dizer.
Já mencionei a influência política de Solzhenitsyn: ela
não reside em algum poder político exclusivo que ele
possui como indivíduo, mas na experiência daqueles
milhões de vítimas de Gulag que ele simplesmente
amplificou e comunicou a milhões de outras pessoas
de boa vontade.

Institucionalizar uma categoria seleta de “dissidentes”


conhecidos ou proeminentes significa, de fato, negar
o aspecto moral mais intrínseco de sua atividade.
Como vimos, o movimento “dissidente” cresce a
partir do princípio da igualdade, fundamentado na
noção de que direitos e liberdades humanos são
indivisíveis. Afinal, nenhum “dissidente” conhecido
se uniu no KOR para defender trabalhadores
desconhecidos? E não foi exatamente por esse motivo
que eles se tornaram “dissidentes conhecidos”? E os
“dissidentes” conhecidos não se uniram na Carta 77,
depois de terem sido reunidos em defesa daqueles
músicos desconhecidos, e não se uniram na Carta
precisamente com eles, e não se tornaram “dissidentes
conhecidos” precisamente por isso? É realmente um
paradoxo cruel que, quanto mais alguns cidadãos se
levantam em defesa de outros cidadãos, mais eles são
rotulados com uma palavra que, na verdade, os separa
daqueles “outros cidadãos”.

Espero que esta explicação esclareça o significado das


aspas que coloquei em torno da palavra “dissidente”
ao longo deste ensaio.

XIV

Na época em que as terras tchecas e a Eslováquia eram


parte integrante do Império Austro-Húngaro, e
quando não existiam nem as condições históricas nem
políticas, psicológicas e sociais que permitiriam aos
tchecos e eslovacos buscar sua identidade fora da
estrutura deste império, Tomáš Garrigue Masaryk
estabeleceu um programa nacional da Checoslováquia
com base na noção de “trabalho em pequena escala”
(drobna práce). Com isso, ele quis dizer trabalho
honesto e responsável em áreas da vida amplamente
diferentes, mas dentro da ordem social existente,
trabalho que estimularia a criatividade nacional e a
autoconfiança nacional. Naturalmente, ele deu ênfase
especial à educação inteligente e esclarecidas, e aos
aspectos morais e humanitários da vida. Masaryk
acreditava que o único ponto de partida possível para
um destino nacional mais digno era a própria
humanidade. A primeira tarefa da humanidade foi
criar as condições para uma vida mais humana; e, na
visão de Masaryk, a tarefa de transformar a estatura da
nação começou com a transformação dos seres
humanos.
Essa noção de “trabalhar para o bem da nação” se
enraizou na sociedade da Checoslováquia e, sob
muitos aspectos, foi bem-sucedida e ainda hoje está
viva. Junto com aqueles que exploram a noção como
uma desculpa sofisticada para colaborar com o
regime, ainda existem muitos, ainda hoje, que
realmente defendem o ideal e, em algumas áreas, pelo
menos, podem apontar conquistas incontestáveis. É
difícil dizer o quanto as coisas seriam piores se não
houvesse muitas pessoas trabalhadoras que
simplesmente se recusam a desistir e tentam
constantemente fazer o melhor que podem, pagando
um mínimo inevitável de viver dentro de uma mentira
para que possam dar o máximo possível para as
necessidades autênticas da sociedade. Essas pessoas
assumem, corretamente, que todo trabalho bom é uma
crítica indireta a más políticas e que há situações em
que vale a pena seguir esse caminho, mesmo que isso
signifique renunciar ao direito natural de fazer críticas
diretas.

Hoje, no entanto, existem limitações muito claras a


essa atitude, mesmo em comparação com a situação
na década de 1960. Cada vez mais, aqueles que tentam
praticar o princípio do “trabalho em pequena escala”
se deparam com o sistema pós-totalitário e se vêem
diante de um dilema: ou a pessoa se retira dessa
posição, dilui a honestidade, a responsabilidade e a
consistência em que se baseia, e simplesmente se
adapta às circunstâncias (a abordagem adotada pela
maioria), ou a pessoa continua o caminho iniciado e
inevitavelmente entra em conflito com o regime (a
abordagem adotada por uma minoria).
Se a noção de trabalho em pequena escala nunca foi
concebida como um imperativo para sobreviver na
estrutura social e política existente a qualquer custo
(nesse caso, indivíduos que se permitiram ser
excluídos dessa estrutura pareceriam necessariamente
ter desistido de “trabalhar para a nação”), então hoje é
ainda menos significativo. Não existe um modelo
geral de comportamento, ou seja, nenhuma maneira
clara e universalmente válida de determinar o ponto
em que o trabalho em pequena escala deixa de ser para
o bem da nação e se torna prejudicial para a nação. É
mais do que claro, no entanto, que o perigo de tal
reversão está se tornando cada vez mais agudo e que
o trabalho em pequena escala, com crescente
frequência, está chegando a esse limite além do qual
evitar conflitos significa comprometer sua própria
essência.
Em 1974, quando eu trabalhava em uma cervejaria,
meu superior imediato era um certo Š, uma pessoa
bem versada na arte de fazer cerveja. Ele tinha orgulho
de sua profissão e queria que nossa cervejaria fizesse
uma boa cerveja. Ele passava quase todo o tempo no
trabalho, continuamente pensando em melhorias, e
frequentemente fazia o resto de nós se sentir
desconfortável, porque supunha que gostávamos tanto
de fazer cerveja quanto ele. Em meio à indiferença
desleixada ao trabalho que o socialismo encoraja,
seria difícil imaginar um trabalhador mais construtivo.

A própria cervejaria era administrada por pessoas que


entendiam menos seu trabalho e gostavam menos
dele, mas que eram politicamente mais influentes.
Eles estavam arruinando a cervejaria e não apenas
falharam em reagir às sugestões de Š, como também
se tornaram cada vez mais hostis a ele e tentaram de
todas as maneiras frustrar seus esforços para fazer um
bom trabalho. Eventualmente, a situação ficou tão
ruim que Š se sentiu obrigado a escrever uma longa
carta ao superior do gerente, na qual ele tentou
analisar as dificuldades da cervejaria. Ele explicou por
que a cerveja era a pior do distrito e apontou para os
responsáveis.

Sua voz pode ter sido ouvida. O gerente, que era


politicamente poderoso, mas ignorava a cerveja, um
homem que detestava trabalhadores e era dado a
intrigas, poderia ter sido substituído e as condições na
cervejaria poderiam ter sido melhoradas com base nas
sugestões de Š. Se isso acontecesse, teria sido um
exemplo perfeito de trabalho em pequena escala em
ação. Infelizmente, ocorreu exatamente o contrário: o
gerente da cervejaria, membro do comitê distrital do
Partido Comunista, tinha amigos em lugares mais
altos e cuidou para que a situação fosse resolvida a seu
favor. A análise de Š foi descrita como um
“documento difamatório” e o próprio Š foi rotulado de
“sabotador político”. Ele foi expulso da cervejaria e
transferido para outra onde recebeu um emprego que
não exigia nenhuma habilidade. Aqui, a noção de
trabalho em pequena escala se deparara com a barreira
do sistema pós-totalitário. Ao falar a verdade, Š saiu
da linha, quebrou as regras, se auto excluiu e acabou
como um sub-cidadão, estigmatizado como inimigo.
Agora ele podia dizer o que quisesse, mas nunca
podia, por uma questão de princípio, esperar ser
ouvido. Ele se tornara o “dissidente” da Cervejaria
Boêmia Oriental.

Penso que este é um caso modelo que, de outro ponto


de vista, ilustra o que já disse na seção anterior: você
não se torna um “dissidente” apenas porque decide um
dia seguir essa carreira incomum. Você é atraído por
seu senso pessoal de responsabilidade, combinado
com um conjunto complexo de circunstâncias
externas. Você é expulso das estruturas existentes e
colocado em uma posição de conflito com elas.
Começa como uma tentativa de fazer bem o seu
trabalho e termina com a marca de um inimigo da
sociedade. É por isso que nossa situação não é
comparável ao Império Austro-Húngaro, quando a
nação tcheca, no pior período do absolutismo de Bach,
tinha apenas um “dissidente” real, Karel Havlíček, que
estava preso em Brixen. Hoje, se não queremos ser
esnobes quanto a isso, devemos admitir que
“dissidentes” podem ser encontrados em todas as
esquinas.

Repreender os “dissidentes” por terem abandonado o


“trabalho em pequena escala” é simplesmente
absurdo. “Dissidência” não é uma alternativa à noção
de Masaryk, é frequentemente seu único resultado
possível. Digo “frequentemente” para enfatizar que
esse nem sempre é o caso. Estou longe de acreditar
que as únicas pessoas decentes e responsáveis são
aquelas que se vêem em desacordo com as estruturas
sociais e políticas existentes. Afinal, o mestre
cervejeiro Š pode ter vencido sua batalha. Condenar
aqueles que mantiveram suas posições simplesmente
porque as mantiveram, em outras palavras, por não
serem “dissidentes”, seria tão absurdo quanto
sustentá-las como um exemplo para os “dissidentes”.
De qualquer forma, contradiz a inteira atitude
“dissidente” vista como uma tentativa de viver dentro
da verdade – se alguém julga o comportamento
humano não de acordo com o que é e se é bom ou não,
mas de acordo com as circunstâncias pessoais que tal
tentativa levou uma pessoa a tanto.
XV

A tentativa de nosso verdureiro de viver dentro da


verdade pode limitar-se a não fazer certas coisas. Ele
decide não colocar bandeiras em sua janela quando
seu único motivo para colocá-las lá em primeiro lugar
seria evitar ser denunciado pelo diretor da casa; ele
não vota nas eleições que considera falsas; ele não
esconde suas opiniões de seus superiores. Em outras
palavras, ele pode ir além de “meramente” recusar-se
a cumprir certas exigências impostas a ele pelo
sistema (o que obviamente não é um passo
insignificante a ser seguido). No entanto, isso pode se
transformar em algo mais. O quitandeiro pode
começar a fazer algo concreto, algo que vai além de
uma reação autodefesa pessoal imediatamente contra
a manipulação, algo que manifestará seu novo senso
de maior responsabilidade. Ele pode, por exemplo,
organizar seus colegas verdureiros para agirem juntos
em defesa de seus interesses. Ele pode escrever cartas
para várias instituições, chamando sua atenção para
casos de desordem e injustiça ao seu redor. Ele pode
procurar literatura não oficial, copiá-la e emprestá-la
a seus amigos.

Se o que chamei de viver dentro da verdade é um


ponto de partida existencial básico (e, é claro,
potencialmente político) para todas essas “iniciativas
de cidadãos independentes” e “dissidentes” ou
“movimentos de oposição”, isso não significa que
toda tentativa de viver dentro da verdade pertence
automaticamente a esta categoria. Pelo contrário, no
seu sentido mais original e mais amplo, viver dentro
da verdade cobre um vasto território cujos limites
externos são vagos e difíceis de mapear, um território
cheio de modestas expressões de vontade humana,
cuja grande maioria permanecerá anônima e cuja o
impacto político provavelmente nunca será sentido ou
descrito de maneira mais concreta do que
simplesmente como parte de um clima social ou
humor geral. A maioria dessas expressões permanece
revolta elementar contra a manipulação: você
simplesmente endireita sua espinha dorsal e vive com
maior dignidade como indivíduo.

Aqui e ali – graças à natureza, às suposições e às


profissões de algumas pessoas, mas também graças a
várias circunstâncias acidentais, como a natureza
específica do meio local, dos amigos e assim por
diante – uma mais coerente e visível iniciativa pode
emergir deste vasto e anônimo meio, uma iniciativa
que transcende “apenas” a revolta individual e é
transformada em um trabalho mais consciente,
estruturado e intencional. O ponto em que viver dentro
da verdade deixa de ser uma mera negação de viver
com uma mentira e se torna articulado de uma maneira
particular é o ponto em que nasce algo que pode ser
chamado de “vida espiritual, social e política
independente da sociedade”. Essa vida independente
não é separada do resto da vida (“vida dependente”)
por alguma linha bem definida. Ambos os tipos
coexistem frequentemente nas mesmas pessoas. No
entanto, seu foco mais importante é marcado por um
grau relativamente alto de emancipação interna.
Navega sobre o vasto oceano da vida manipulada
como pequenos barcos, lançados pelas ondas, mas
sempre voltando como mensageiros visíveis de viver
dentro da verdade, articulando os objetivos
suprimidos da vida.
O que é essa vida independente da sociedade? O
espectro de suas expressões e atividades é
naturalmente muito amplo. Inclui tudo, desde a
autoeducação e o pensamento sobre o mundo, através
da atividade criativa gratuita e sua comunicação com
os outros, até as mais variadas atitudes cívicas e livres,
incluindo exemplos de auto-organização social
independente. Em suma, é uma área na qual viver
dentro da verdade se articula e se materializa de
maneira visível.

Assim, o que mais tarde serão chamadas de


“iniciativas dos cidadãos”, “movimentos dissidentes”
ou mesmo “oposições”, emergem, como o proverbial
décimo do iceberg visível acima da água, daquela
área, da vida independente da sociedade. Em outras
palavras, assim como a vida independente da
sociedade se desenvolve vivendo na verdade no
sentido mais amplo da palavra, como a expressão
distinta e articulada dessa vida, o “dissenso”
gradualmente emerge da vida independente da
sociedade. No entanto, há uma diferença marcante: se
a vida independente da sociedade, pelo menos
externamente, pode ser entendida como uma forma
superior de viver dentro da verdade, é muito menos
certo que movimentos “dissidentes” são
necessariamente uma forma superior da vida
independente da sociedade. Eles são simplesmente
uma manifestação e, embora possam ser a expressão
mais visível e, à primeira vista, a expressão mais
política (e mais claramente articulada) dela, estão
longe de ser necessariamente as mais maduras ou até
as mais importantes, não apenas no sentido social
geral, mas também em termos de influência política
direta. Afinal, “dissidência” foi artificialmente
removida de seu local de nascimento por ter recebido
um nome especial. De fato, porém, não é possível
pensar nele separado de todo o contexto do qual se
desenvolve, do qual é parte integrante e da qual extrai
toda a sua força vital. De qualquer forma, segue-se do
que já foi dito sobre as peculiaridades do sistema pós-
totalitário que o que parece ser a mais política das
forças em um determinado momento, e o que se pensa
em tais termos, não precisa necessariamente de fato
ser uma força assim. A extensão em que é uma força
política real é devida exclusivamente ao seu contexto
pré-político.

O que se segue desta descrição? Nada mais e nada


menos que isso: é impossível falar sobre o que de fato
os “dissidentes” fazem e o efeito de seu trabalho sem
antes falar sobre o trabalho de todos aqueles que, de
uma maneira ou de outra, participam do processo de
vida independente da sociedade e que não são
necessariamente “dissidentes”. Podem ser escritores
que escrevem como desejam, sem levar em
consideração a censura ou demandas oficiais, e que
emitem seu trabalho – quando editores oficiais se
recusam a publicá-lo – como samizdat. Podem ser
filósofos, historiadores, sociólogos e todos aqueles
que praticam bolsas independentes e, se for
impossível por canais oficiais ou semioficiais,
também circulam seus trabalhos no samizdat ou
organizam discussões privadas, palestras e
seminários. Eles podem ser professores que ensinam
em particular aos jovens coisas que lhes são sonegadas
nas escolas estaduais; clérigos que estão no cargo ou,
se são privados de suas acusações, fora dele, tentam
levar uma vida religiosa gratuita; pintores, músicos e
cantores que praticam seu trabalho,
independentemente de como é encarado pelas
instituições oficiais; todos que compartilham essa
cultura independente e ajudam a divulgá-la; pessoas
que, usando os meios à sua disposição, tentam
expressar e defender os reais interesses sociais dos
trabalhadores, devolver o significado real aos
sindicatos ou formar interesses independentes;
pessoas que não têm medo de chamar a atenção dos
funcionários para casos de injustiça e que se esforçam
para garantir que as leis sejam observadas; e os
diferentes grupos de jovens que tentam se livrar da
manipulação e vivem à sua maneira, no espírito de sua
própria hierarquia de valores. A lista poderia
continuar.

Poucos pensariam em chamar todas essas pessoas de


“dissidentes”. E, no entanto, os “dissidentes”
conhecidos não são simplesmente pessoas como eles?
Todas essas atividades não são de fato o que os
“dissidentes” também fazem? Eles não produzem
trabalhos acadêmicos e os publicam no samizdat? Eles
não escrevem peças, romances e poemas? Eles não
fazem palestras para estudantes de “universidades”
privadas? Eles não lutam contra várias formas de
injustiça e tentam apurar e expressar os genuínos
interesses sociais de vários setores da população?

Depois de tentar indicar as fontes, a estrutura interna


e alguns aspectos da atitude “dissidente” como tal,
mudei claramente meu ponto de vista de fora, por
assim dizer, para uma investigação do que esses
“dissidentes” realmente fazem , como suas iniciativas
se manifestam e para onde levam.

A primeira conclusão a ser tirada, então, é que a esfera


de atividade original e mais importante, que
predetermina todas as outras, é simplesmente uma
tentativa de criar e apoiar a vida independente da
sociedade como uma expressão articulada do viver
dentro verdade. Em outras palavras, servir a verdade
de maneira consistente, intencional e articuladamente
e organizar esse serviço. Afinal, isso é natural: se viver
dentro da verdade é um ponto de partida elementar
para toda tentativa feita por pessoas de se opor à
pressão alienante do sistema, se é a única base
significativa de qualquer ato independente de
importância política e se em última análise, é também
a fonte existencial mais intrínseca da atitude
“dissidente”; então, é difícil imaginar que mesmo a
“dissidência” manifesta possa ter outra base que não o
serviço da verdade, a vida verdadeira e a tentativa de
abrir espaço para os objetivos genuínos da vida.

XVI
O sistema pós-totalitário está montando um ataque
total a humanos e os humanos se opõem a ele
sozinhos, abandonados e isolados. Portanto, é
inteiramente natural que todos os movimentos
“dissidentes” sejam explicitamente movimentos
defensivos: eles existem para defender os seres
humanos e os objetivos genuínos da vida contra os
objetivos do sistema.

Hoje, o grupo polonês KOR é chamado de “Comitê de


Autodefesa Social”. A palavra “defesa” aparece nos
nomes de outros grupos semelhantes na Polônia, mas
mesmo o grupo de monitoramento soviético de
Helsinque e nossa própria Carta 77 são de natureza
claramente defensiva.

Em termos de política tradicional, esse programa de


defesa é compreensível, embora possa parecer
mínimo, provisório e, finalmente, negativo. Não
oferece nova concepção, modelo ou ideologia e,
portanto, não é política no sentido apropriado da
palavra, pois a política sempre assume um programa
positivo e dificilmente pode se limitar a defender
alguém contra alguma coisa.

Penso que tal visão revela as limitações da maneira


tradicionalmente política de ver as coisas. O sistema
pós-totalitário, afinal, não é a manifestação de uma
linha política específica seguida por um governo
específico. É algo radicalmente diferente: é uma
violação complexa, profunda e de longo prazo da
sociedade, ou melhor, a auto violação da sociedade.
Opor-se apenas estabelecendo uma linha política
diferente e, depois, buscando uma mudança de
governo não seria apenas irreal, seria totalmente
inadequado, pois nunca chegaria perto de tocar a raiz
do assunto. Há algum tempo, o problema não reside
mais em uma linha ou programa político: é um
problema da própria vida.

Assim, defender os objetivos da vida, defender a


humanidade não é apenas uma abordagem mais
realista, pois pode começar agora e é potencialmente
mais popular porque diz respeito à vida cotidiana das
pessoas; ao mesmo tempo (e talvez justamente por
isso), é também uma abordagem incomparavelmente
mais consistente, pois visa a própria essência das
coisas.

Há momentos em que devemos ir ao fundo de nossa


miséria para entender a verdade, assim como devemos
descer ao fundo de um poço para ver as estrelas em
plena luz do dia. Parece-me que hoje, esse programa
“provisório”, “mínimo” e “negativo” – a “simples”
defesa das pessoas – é em um sentido particular (e não
apenas nas circunstâncias em que vivemos) um ótimo
e programa mais positivo porque força a política a
retornar ao seu único ponto de partida adequado, isto
é, se todos os velhos erros forem evitados: pessoas
individuais. Nas sociedades democráticas, onde a
violência praticada contra os seres humanos não é tão
óbvia e cruel, essa revolução fundamental na política
ainda precisa acontecer e algumas coisas
provavelmente terão que piorar antes que a
necessidade urgente dessa revolução se reflita em
política. Em nosso mundo, justamente por causa da
miséria em que nos encontramos, parece que a política
já passou por essa transformação: a preocupação
central do pensamento político não é mais a visão
abstrata de um modelo “positivo” que se resgata (e de
claro, as práticas políticas oportunistas que são o
inverso da mesma moeda), mas as pessoas que até
agora foram meramente escravizadas por esses
modelos e suas práticas.

Toda sociedade, é claro, requer algum grau de


organização. No entanto, para que essa organização
sirva as pessoas, e não o contrário, as pessoas terão
que ser liberadas e criar espaço para que possam se
organizar de maneira significativa. A desonestidade
da abordagem oposta, na qual as pessoas são
organizadas pela primeira vez de uma maneira ou de
outra (por alguém que sempre sabe melhor “o que as
pessoas precisam”), para que então possam ser
libertadas, é algo que conhecemos apenas em nossa
própria pele bem demais.

Em resumo: a maioria das pessoas que está muito


ligada ao modo de pensar político tradicional vê as
fraquezas dos movimentos “dissidentes” em seu
caráter puramente defensivo. Por outro lado, vejo isso
como sua maior força. Acredito que é precisamente
aqui que esses movimentos substituem o tipo de
política de cujo ponto de vista seu programa pode
parecer tão inadequado.

XVII

Nos movimentos “dissidentes” do bloco soviético, a


defesa dos seres humanos geralmente assume a forma
de defesa dos direitos humanos e civis, pois estão
entrincheirados em vários documentos oficiais, como
a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os
Pactos Internacionais. Direitos Humanos, o Ato Final
do Acordo de Helsinque e as constituições de cada
país. Esses movimentos pretendem defender quem
está sendo processado por agir no espírito desses
direitos e, por sua vez, agem no mesmo espírito em
seu trabalho, insistindo repetidamente que o regime
reconheça e respeite os direitos humanos e civis, e
chamando a atenção para as áreas da vida em que esse
não é o caso.

Seu trabalho, portanto, baseia-se no princípio da


legalidade: eles operam publicamente e abertamente,
insistindo não apenas que sua atividade esteja em
conformidade com a lei, mas que alcançar o respeito à
lei seja um dos seus principais objetivos. Esse
princípio de legalidade, que fornece o ponto de partida
e a estrutura para suas atividades, é comum a todos os
grupos “dissidentes” no bloco soviético, mesmo que
grupos individuais nunca tenham chegado a um
acordo formal sobre esse ponto. Essa circunstância
levanta uma questão importante: por que, em
condições em que um abuso generalizado e arbitrário
de poder é a regra, existe uma aceitação tão geral e
espontânea do princípio da legalidade?

No nível primário, essa ênfase na legalidade é uma


expressão natural de condições específicas existentes
no sistema pós-totalitário e a consequência de um
entendimento elementar dessa especificidade. Se
existem essencialmente duas maneiras de lutar por
uma sociedade livre – isto é, por meios legais e por
meio de revoltas (armadas ou desarmadas) -, deve ser
óbvio ao mesmo tempo o quão inadequada é a última
alternativa no sistema pós-totalitário. A revolta é
apropriada quando as condições estão clara e
abertamente em movimento, durante uma guerra, por
exemplo, ou em situações em que conflitos sociais ou
políticos estão chegando ao seu limite. É apropriado
em uma ditadura clássica que está apenas se
preparando ou está em estado de colapso. Em outras
palavras, é apropriado que forças sociais de força
comparável (por exemplo, um governo de ocupação
versus uma nação lutando por sua liberdade) estejam
se confrontando no nível do poder real, ou onde exista
uma distinção clara entre os usurpadores do poder e
da população subjugada, ou quando a sociedade se
encontra em um estado de crise aberta. As condições
no sistema pós-totalitário – exceto em situações
extremamente explosivas como a da Hungria em 1956
– são, é claro, precisamente o oposto. Eles são
estáticos e estáveis, e as crises sociais, na maioria das
vezes, existem apenas recentemente (embora sejam
muito mais profundas). A sociedade não é fortemente
polarizada no nível do poder político real, mas, como
vimos, as linhas fundamentais de conflito correm
através de cada pessoa. Nesta situação, nenhuma
tentativa de revolta poderia esperar criar um mínimo
de ressonância no resto da sociedade, porque essa
sociedade é soporífica, submersa em uma corrida
desenfreada e sem fim pelo consumidor e totalmente
envolvida no sistema pós-totalitário (ou seja,
participando e agindo como agentes de seu
automatismo), e simplesmente consideraria algo como
uma revolta inaceitável. Ela interpretaria a revolta
como um ataque a si mesma e, em vez de apoiar a
revolta, provavelmente reagiria intensificando sua
tendência ao sistema, uma vez que, na sua opinião, o
sistema pode pelo menos garantir uma certa quase
legalidade. Acrescente a isso o fato de o sistema pós-
totalitário ter à sua disposição um mecanismo
complexo de vigilância direta e indireta que não tem
igual na história e fica claro que não apenas qualquer
tentativa de revolta chegaria a um beco sem saída
politicamente, mas também seria quase tecnicamente
impossível de executar. Muito provavelmente, seria
liquidado antes que tivesse a chance de traduzir suas
intenções em ação. Mesmo que a revolta fosse
possível, no entanto, continuaria sendo o gesto
solitário de alguns indivíduos isolados e eles se
oporiam não apenas a um aparato gigantesco de poder
nacional (e supranacional), mas também pela própria
sociedade em cujo nome estavam montando sua
revolta em primeiro lugar. (Essa, aliás, é outra razão
pela qual o regime e sua propaganda atribuem
objetivos terroristas aos movimentos “dissidentes” e
os acusam de métodos ilegais e conspiratórios).

Tudo isso, no entanto, não é a principal razão pela qual


os movimentos “dissidentes” apoiam o princípio da
legalidade. Essa razão está mais profunda, na estrutura
mais interna da atitude “dissidente”. Essa atitude é e
deve ser fundamentalmente hostil à noção de mudança
violenta – simplesmente porque coloca sua fé na
violência. (Geralmente, a atitude “dissidente” só pode
aceitar a violência como um mal necessário em
situações extremas, quando a violência direta só pode
ser enfrentada pela violência e onde permanecer
passivo na verdade significaria apoiar a violência:
lembremos, por exemplo, que a cegueira do Pacifismo
Europeu foi um dos fatores que preparou o terreno
para a Segunda Guerra Mundial.) Como já mencionei,
“dissidentes” tendem a ser céticos em relação ao
pensamento político com base na fé de que mudanças
sociais profundas só podem ser alcançadas
provocando (independentemente do método)
mudanças no sistema ou no governo, e na crença de
que tais mudanças – porque são consideradas
“fundamentais” justificam o sacrifício de coisas
“menos fundamentais”, em outras palavras, vidas
humanas. O respeito por um conceito teórico aqui
supera o respeito pela vida humana. No entanto, é
exatamente isso que ameaça escravizar a humanidade
novamente.
Os movimentos “dissidentes”, como tentei indicar,
compartilham exatamente a visão oposta. Eles
entendem a mudança sistêmica como algo superficial,
algo secundário, algo que por si só não garante nada.
Assim, uma atitude que se afasta das visões políticas
abstratas do futuro em relação aos seres humanos
concretos e às maneiras de defendê-los efetivamente
no aqui e agora é naturalmente acompanhada de uma
antipatia intensificada a todas as formas de violência
realizadas em nome de um futuro melhor e com uma
profunda crença de que um futuro garantido pela
violência pode ser realmente pior do que o que existe
agora; em outras palavras, o futuro seria fatalmente
estigmatizado pelos próprios meios utilizados para
protegê-lo. Ao mesmo tempo, essa atitude não deve
ser confundida com conservadorismo político ou
moderação política. Os movimentos “dissidentes” não
se esquivam da ideia de derrubada política violenta
porque a ideia parece radical demais, mas, pelo
contrário, porque não parece suficientemente radical.
Para eles, o problema é profundo demais para ser
resolvido através de meras mudanças sistêmicas,
governamentais ou tecnológicas. Algumas pessoas,
fiéis às doutrinas marxistas clássicas do século XIX,
entendem nosso sistema como a hegemonia de uma
classe exploradora sobre uma classe explorada e,
operando a partir do postulado de que os exploradores
nunca renunciam a seu poder voluntariamente, eles
veem a única solução em uma revolução para varrer
os exploradores. Naturalmente, eles consideram
coisas como a luta pelos direitos humanos algo
irremediavelmente legalista, ilusório, oportunista e,
no final das contas, enganoso, porque supõe
duvidosamente que você possa negociar de boa fé com
seus exploradores com base em uma falsa legalidade.
O problema é que eles são incapazes de encontrar
alguém determinado o suficiente para realizar essa
revolução, com o resultado de se tornarem amargos,
céticos, passivos e, finalmente, apáticos – em outras
palavras, acabam precisamente onde o sistema deseja
que eles estejam. Este é um exemplo de quão longe
alguém pode ser enganado aplicando mecanicamente,
em circunstâncias pós-totalitárias, modelos
ideológicos de outro mundo e de outra época.

Certamente, não é preciso ser um defensor da


revolução violenta para perguntar se um apelo à
legalidade faz algum sentido quando as leis – e
particularmente as leis gerais sobre direitos humanos
– não passam de fachada, um aspecto do mundo das
aparências, um mero jogo por trás do qual existe
manipulação total. “Eles podem ratificar qualquer
coisa porque ainda seguirão em frente e farão o que
quiserem” – essa é uma opinião que frequentemente
encontramos. Não é verdade que constantemente
cumpri-las, apelar às leis qualquer criança sabe que
são vinculativas apenas pelo tempo que o governo
desejar, é no final apenas uma espécie de hipocrisia,
um obstrucionismo Švejkiano e, finalmente, apenas
outra maneira de jogar o jogo, outra forma de auto
ilusão? Em outras palavras, a abordagem legalista é
compatível com o princípio de viver dentro da
verdade?

Esta questão só pode ser respondida examinando


primeiro as implicações mais amplas de como o
código jurídico funciona no sistema pós-totalitário.

Numa ditadura clássica, em uma extensão muito


maior do que no sistema pós-totalitário, a vontade do
governante é realizada diretamente, de forma não
regulamentada. Uma ditadura não tem motivos para
esconder seus fundamentos, nem ocultar o
funcionamento real do poder, e, portanto, não precisa
se sobrecarregar em grande medida com um código
legal. O sistema pós-totalitário, por outro lado, é
totalmente obcecado pela necessidade de vincular
tudo em uma única ordem: a vida em tal estado é
completamente permeada por uma densa rede de
regulamentos, proclamações, diretivas, normas,
ordens e regras. (Não é chamado de sistema
burocrático sem uma boa razão.) Uma grande
proporção dessas normas funciona como instrumentos
diretos da manipulação complexa da vida, intrínseca
ao sistema pós-totalitário. Os indivíduos são
reduzidos a pouco mais que pequenas engrenagens em
um mecanismo enorme e seu significado é limitado à
sua função nesse mecanismo. Seu trabalho,
acomodação em moradias, movimentos, expressões
sociais e culturais, tudo, em resumo, deve ser cercado
o mais firmemente possível, predeterminado,
regulado e controlado. Toda aberração do curso da
vida prescrito é tratada como erro, permissão e
anarquia. Desde o cozinheiro no restaurante que, sem
a permissão difícil do aparato burocrático, não pode
cozinhar algo especial para seus clientes, até o cantor
que não pode tocar sua nova música em um show sem
a aprovação burocrática, todos, em todos os aspectos
de sua vida, estão presos nesse emaranhado
regulatório de burocracia, o produto inevitável do
sistema pós-totalitário. Com consistência cada vez
maior, vincula todas as expressões e objetivos da vida
ao espírito de seus próprios objetivos: os interesses
adquiridos de sua própria operação suave e
automática.

Em um sentido mais restrito, o código jurídico


também serve diretamente ao sistema pós-totalitário,
ou seja, ele também faz parte do mundo de
regulamentos e proibições. Ao mesmo tempo, no
entanto, ele executa o mesmo serviço de outra maneira
indireta, que o aproxima notavelmente – dependendo
de qual nível da lei está envolvido – da ideologia e, em
alguns casos, o torna um componente direto dessa
ideologia.

1. Como a ideologia, o código jurídico funciona como


uma desculpa. Envolve o exercício básico do poder no
vestuário nobre da letra da lei; cria a agradável ilusão
de que a justiça é feita, a sociedade protegida e o
exercício do poder regulado objetivamente. Tudo isso
é feito para ocultar a verdadeira essência da prática
jurídica pós-totalitária: a manipulação total da
sociedade. Se um observador externo que nada sabia
sobre a vida na Tchecoslováquia estudasse apenas
suas leis, ele seria totalmente incapaz de entender do
que estávamos reclamando. A manipulação política
oculta dos tribunais e dos promotores públicos; as
limitações impostas à capacidade dos advogados de
defender seus clientes; a natureza fechada, de fato, dos
julgamentos; as ações arbitrárias das forças de
segurança; sua posição de autoridade sobre o
judiciário; a aplicação absurdamente ampla de várias
seções deliberadamente vagas desse código; e, é claro,
a total desconsideração do estado pelas seções
positivas desse código (os direitos dos cidadãos): tudo
isso permaneceria escondido do nosso observador
externo. A única coisa que ele tiraria seria a impressão
de que nosso código jurídico não é muito pior que o
código legal de outros países civilizados, e também
não é muito diferente, exceto, talvez, por certas
curiosidades, como o entrincheiramento na
constituição de um único o domínio eterno do partido
político e o amor do estado por uma superpotência
vizinha.
Mas isso não é tudo: se nosso observador tivesse a
oportunidade de estudar o lado formal dos
procedimentos e práticas policiais e judiciais, como
eles parecem “no papel”, ele descobriria que, na
maioria das vezes, as regras comuns do processo
criminal são observadas: as acusações são feitas
dentro do prazo prescrito após a prisão e o mesmo
ocorre com as ordens de detenção. As acusações são
entregues adequadamente, o acusado tem um
advogado e assim por diante. Em outras palavras,
todos têm uma desculpa: todos eles observaram a lei.
Na realidade, porém, eles arruinaram de forma cruel e
sem sentido a vida de um jovem, talvez por nenhuma
outra razão senão porque ele fez cópias samizdat de
um romance escrito por um escritor proibido, ou
porque a polícia falsificou deliberadamente seu
testemunho (como todos sabem, desde o juiz até o
réu). No entanto, tudo isso permanece em segundo
plano. O testemunho falsificado não é
necessariamente óbvio nos documentos do
julgamento e a seção do Código Penal que trata do
incitamento não exclui formalmente a aplicação dessa
acusação à cópia de um romance proibido. Em outras
palavras, o código jurídico – pelo menos em várias
áreas – não passa de uma fachada, um aspecto do
mundo das aparências. Então, por que está lá? Pelo
mesmo motivo que existe na ideologia: ela fornece
uma fonte de desculpas entre o sistema e os
indivíduos, facilitando a entrada na estrutura de poder
e atendendo às demandas arbitrárias do poder. A
desculpa permite que os indivíduos se auto enganem
ao pensar que estão apenas defendendo a lei e
protegendo a sociedade dos criminosos. (Sem essa
desculpa, quanto mais difícil seria recrutar novas
gerações de juízes, promotores e interrogadores!) No
entanto, como um aspecto do mundo das aparências,
o código jurídico engana não apenas a consciência dos
promotores, engana o público, engana os
observadores estrangeiros e até engana a própria
história.

2. Como a ideologia, o código jurídico é um


instrumento essencial da comunicação ritual fora da
estrutura de poder. É o código legal que dá ao
exercício do poder uma forma, uma estrutura, um
conjunto de regras. É o código legal que permite que
todos os componentes do sistema se comuniquem, se
posicionem de maneira adequada e estabeleçam sua
própria legitimidade. Ele fornece todo o jogo com suas
regras e engendra com sua tecnologia. O exercício do
poder pós-totalitário pode ser imaginado sem esse
ritual universal tornar tudo isso possível, servindo
como uma linguagem comum para unir os setores
relevantes da estrutura de poder? Quanto mais
importante a posição ocupada pelo aparato repressivo
na estrutura de poder, mais importante é que ele
funcione de acordo com algum tipo de código formal.
Como, de outro modo, as pessoas poderiam ser tão
fácil e discretamente trancadas por copiar livros
proibidos se não houvesse juízes, promotores,
interrogadores, advogados de defesa, estenógrafos de
tribunais e arquivos espessos, e se tudo isso não fosse
mantido por alguma ordem firme? E, acima de tudo,
sem aquela Seção 100 de aparência inocente, incitada?
Tudo isso poderia ser feito, é claro, sem um código
legal e seus acessórios, mas apenas em alguma
ditadura efêmera dirigida por um bandido ugandense,
não em um sistema que abraça uma parcela tão grande
da humanidade civilizada e represente uma integral,
estável e parte respeitada do mundo moderno. Isso não
seria apenas impensável, seria simplesmente
impossível tecnicamente. Sem o código jurídico
funcionando como uma força ritualmente coesa, o
sistema pós-totalitário não poderia existir.

Todo o papel do ritual, fachadas e desculpas aparece


com mais eloquência, é claro, não na seção proscritiva
do código jurídico, que define o que um cidadão não
pode fazer e quais são os motivos para a acusação, mas
na seção declarando o que ele pode fazer e quais são
seus direitos. Aqui não há realmente nada além de
“palavras, palavras, palavras”. No entanto, mesmo
essa parte do código é de imensa importância para o
sistema, pois é aqui que o sistema estabelece sua
legitimidade como um todo, diante de seus próprios
cidadãos, diante de crianças em idade escolar, diante
do público internacional e diante da história. O
sistema não pode se dar ao luxo de desconsiderar isso,
porque não pode se permitir pôr em dúvida os
postulados fundamentais de sua ideologia, que são tão
essenciais para sua própria existência. (Já vimos como
a estrutura de poder é escravizada por sua própria
ideologia e seu prestígio ideológico.) Fazer isso seria
negar tudo o que tenta se apresentar como e, portanto,
um dos principais pilares sobre os quais o sistema
repousa seria comprometido: a integridade do mundo
das aparências.

Se o exercício do poder circula por toda a estrutura de


poder à medida que o sangue flui pelas veias, o código
legal pode ser entendido como algo que reforça as
paredes dessas veias. Sem ele, o sangue do poder não
poderia circular de maneira organizada e o corpo da
sociedade teria hemorragias aleatoriamente. A ordem
entraria em colapso.
Um apelo persistente e interminável às leis – não
apenas às leis relativas aos direitos humanos, mas a
todas as leis – não significa de modo algum que
aqueles que o fizeram sucumbiram à ilusão de que em
nosso sistema a lei é qualquer coisa diferente do que
é. Eles estão bem cientes do papel que desempenha.
Mas precisamente porque eles sabem o quão
desesperadamente o sistema depende dele – ou seja, a
versão “nobre” da lei – eles também sabem quão
enormemente significativos são esses recursos. Como
o sistema não pode prescindir da lei, porque é
irremediavelmente amarrado pela necessidade de
fingir que as leis são observadas, ele é obrigado a
reagir de alguma forma a esses apelos. Exigir que as
leis sejam respeitadas é, portanto, um ato de viver
dentro da verdade que ameaça toda a estrutura
mentirosa no seu ponto máximo de mentira. Repetidas
vezes, esses apelos tornam clara a natureza puramente
ritualística da lei para a sociedade e para aqueles que
habitam suas estruturas de poder. Eles chamam a
atenção para a sua substância material real e, assim,
indiretamente, obrigam todos os que se refugiam atrás
da lei a afirmar e tornar credível essa agência de
desculpas, esse meio de comunicação, esse reforço das
artérias sociais fora das quais sua vontade não poderia
ser feito para circular pela sociedade. Eles são
compelidos a fazê-lo em prol de suas próprias
consciências, pela impressão que causam em pessoas
de fora, a se manterem no poder (como parte do
mecanismo de autopreservação do sistema e de seus
princípios de coesão), ou simplesmente por medo de
que sejam criticados por serem desajeitados ao lidar
com o ritual. Eles não têm outra escolha: porque não
podem descartar as regras de seu próprio jogo, só
podem seguir com mais cuidado essas regras. Não
reagir aos desafios significa minar sua própria
desculpa e perder o controle de seu sistema de
comunicações mútuas. Assumir que as leis são uma
mera fachada, que não têm validade e que, portanto,
não faz sentido recorrer a elas, significaria continuar
reforçando os aspectos da lei que criam a fachada e o
ritual. Significaria confirmar a lei como um aspecto do
mundo das aparências e permitir que aqueles que a
exploram descansem facilmente com a forma mais
barata (e, portanto, a mais mentirosa) de sua desculpa.

Testemunhei frequentemente policiais, promotores ou


juízes – se eles estavam lidando com um Cartista
experiente ou um advogado corajoso e se foram
expostos à atenção do público (como indivíduos com
um nome, não mais protegidos pelo anonimato do
aparato) ) – de repente e ansiosamente começam a
tomar um cuidado especial para que nenhuma
rachadura apareça no ritual. Isso não altera o fato de
que um poder despótico se esconde por trás desse
ritual, mas a própria existência da ansiedade dos
oficiais necessariamente regula, limita e atrasa a
operação desse despotismo.

Isso, é claro, não é suficiente. Mas uma parte essencial


da atitude “dissidente” é que ela sai da realidade do
humano aqui e agora. Dá mais importância a ações
concretas repetidas e consistentes – mesmo que seja
inadequada e possa aliviar apenas insignificantemente
o sofrimento de um único cidadão insignificante – do
que em alguma solução fundamental abstrata em um
futuro incerto. De qualquer forma, isso não é de fato
apenas outra forma de “trabalho em pequena escala”
no sentido masarykiano, com o qual a atitude
“dissidente” parecia a princípio estar em contradição
tão acentuada?
Esta seção seria incompleta sem enfatizar certas
limitações internas à política de tomá-las em sua
própria palavra. A questão é a seguinte: mesmo no
mais ideal dos casos, a lei é apenas uma das várias
maneiras imperfeitas e mais ou menos externas de
defender o que é melhor na vida contra o que é pior.
Por si só, a lei nunca pode criar nada melhor. Seu
objetivo é prestar um serviço e seu significado não
está na própria lei. Estabelecer respeito pela lei não
garante automaticamente uma vida melhor, pois,
afinal, é um trabalho para as pessoas e não para as leis
e instituições. É possível imaginar uma sociedade com
boas leis que sejam totalmente respeitadas, mas na
qual é impossível viver. Por outro lado, pode-se
imaginar a vida bastante suportável, mesmo quando as
leis são imperfeitas e imperfeitamente aplicadas. O
mais importante é sempre a qualidade dessa vida e se
as leis aumentam ou reprimem a vida, não apenas se
elas são mantidas ou não. (Muitas vezes, a estrita
observância da lei pode ter um impacto desastroso na
dignidade humana.) A chave para uma vida humana,
digna, rica e feliz não está nem na constituição nem no
Código Penal. Eles apenas estabelecem o que pode ou
não ser feito e, assim, podem tornar a vida mais fácil
ou mais difícil. Eles limitam ou permitem, punem,
toleram ou defendem, mas nunca podem dar
substância ou significado à vida. A luta pelo que é
chamado de “legalidade” deve manter constantemente
essa legalidade em perspectiva no contexto da vida
como ela realmente é. Sem manter os olhos abertos
para as reais dimensões da beleza e miséria da vida, e
sem uma relação moral com a vida, essa luta, mais
cedo ou mais tarde, sofrerá nas rochas de algum
sistema autojustificativo de escolásticos. Sem
realmente querer, seria assim cada vez mais parecido
com o observador que chega a conclusões sobre nosso
sistema apenas com base em documentos de teste e
fica satisfeito se todas as regulamentações apropriadas
forem observadas.

XVIII

Se o trabalho básico dos movimentos “dissidentes” é


servir a verdade, isto é, servir aos objetivos reais da
vida, e se isso se desenvolver necessariamente em
defesa dos indivíduos e seu direito a uma vida livre e
verdadeira (isto é, , uma defesa dos direitos humanos
e uma luta para que as leis sejam respeitadas), então
outro estágio dessa abordagem, talvez o estágio mais
maduro até agora, é o que Václav Benda chamou de
desenvolvimento de “estruturas paralelas”.

Quando aqueles que decidiram viver dentro da


verdade tiveram negada qualquer influência direta
sobre as estruturas sociais existentes, sem mencionar
a oportunidade de participar delas, e quando essas
pessoas começaram a criar o que eu chamei de vida
independente da sociedade , essa vida independente
começa, por si só, a se estruturar de uma certa
maneira. Às vezes, existem apenas indicações muito
embrionárias desse processo de estruturação; outras
vezes, as estruturas já estão bem desenvolvidas. Sua
gênese e evolução são inseparáveis do fenômeno da
“dissidência”, mesmo que alcancem muito além da
área de atividade arbitrariamente definida, geralmente
indicada por esse termo.

Quais são essas estruturas? Ivan Jirous foi o primeiro


na Tchecoslováquia a formular e aplicar na prática o
conceito de “segunda cultura”. Embora, a princípio,
ele estivesse pensando principalmente no rock não-
conformista e apenas em determinados eventos
literários, artísticos ou de performance, próximos às
sensibilidades desses grupos musicais não-
conformistas, o termo segunda cultura rapidamente
passou a ser usado rapidamente em toda a área da
cultura independente e reprimida, isto é, não apenas
para a arte e suas várias correntes, mas também para
as humanidades, as ciências sociais e o pensamento
filosófico. Essa segunda cultura, naturalmente, criou
formas organizacionais elementares: edições samizdat
de livros e revistas, performances e concertos
particulares, seminários, exposições e assim por
diante. (Na Polônia, tudo isso é muito mais
desenvolvido: existem editoras independentes e
muitos outros periódicos, até periódicos políticos; eles
têm outros meios de proliferação que não cópias de
carbono, e assim por diante. Na União Soviética, o
samizdat tem uma tradição mais longa e claramente
suas formas são bem diferentes.) A cultura, portanto,
é uma esfera na qual as estruturas paralelas podem ser
observadas em sua forma mais altamente
desenvolvida. Benda, é claro, também pensa em
formas potenciais ou embrionárias de tais estruturas
em outras esferas: de uma rede paralela de
informações a formas paralelas de educação
(universidades privadas), sindicatos paralelos,
contatos paralelos estrangeiros, a uma espécie de
hipótese sobre uma economia paralela. Com base
nessas estruturas paralelas, ele desenvolve a noção de
uma “polis paralela” ou estado, ou melhor, vê os
rudimentos de uma polis nessas estruturas.

Em um certo estágio de seu desenvolvimento, a vida


independente da sociedade e os movimentos
“dissidentes” não podem evitar uma certa quantidade
de organização e institucionalização. Esse é um
desenvolvimento natural e, a menos que essa vida
independente da sociedade seja de alguma forma
radicalmente suprimida e eliminada, a tendência
aumentará. Junto com isso, uma vida política paralela
também necessariamente evoluirá e, em certa medida,
já existe na Tchecoslováquia. Vários agrupamentos de
natureza mais ou menos política continuarão a se
definir politicamente, a agir e se confrontar.

Pode-se dizer que essas estruturas paralelas


representam as expressões mais articuladas até o
momento de viver dentro da verdade. Uma das tarefas
mais importantes que os movimentos “dissidentes” se
propuseram é apoiá-los e desenvolvê-los. Mais uma
vez, confirma o fato de que todas as tentativas da
sociedade de resistir à pressão do sistema têm seu
início essencial na área “pré-política”. Pois o que mais
são estruturas paralelas do que uma área onde uma
vida diferente pode ser vivida, uma vida que está em
harmonia com seus próprios objetivos e que por sua
vez se estrutura em harmonia com esses objetivos? O
que mais são essas tentativas iniciais de auto-
organização social do que os esforços de uma certa
parte da sociedade para viver – como uma sociedade
– dentro da verdade, para se livrar dos aspectos
autossustentáveis do totalitarismo e, assim, se livrar
radicalmente de seu envolvimento no sistema pós-
totalitário? O que mais é senão uma tentativa não
violenta das pessoas de negar o sistema dentro de si
mesmas e de estabelecer suas vidas em uma nova
base, a de sua própria identidade? E essa tendência
não confirma mais uma vez o princípio de retornar o
foco aos indivíduos reais? Afinal, as estruturas
paralelas não surgem a priori de uma visão teórica das
mudanças sistêmicas (não há seitas políticas
envolvidas), mas dos objetivos da vida e das
necessidades autênticas das pessoas reais. De fato,
todas as eventuais mudanças no sistema, mudanças
que podemos observar aqui em suas formas
rudimentares, ocorreram como se fossem de fato, “de
baixo”, porque a vida as compeliu a fazê-lo, e não
porque vieram antes da vida; ou forçar alguma
mudança nele.

A experiência histórica nos ensina que qualquer ponto


de partida genuinamente significativo na vida de um
indivíduo geralmente possui um elemento de
universalidade. Em outras palavras, não é algo parcial,
acessível apenas a uma comunidade restrita e
intransferível a qualquer outra. Pelo contrário, deve
ser potencialmente acessível a todos; deve prenunciar
uma solução geral e, portanto, não é apenas a
expressão de uma responsabilidade introvertida e
independente que os indivíduos têm para e para si
mesmos, mas também pelo e para o mundo. Assim,
seria completamente errado entender as estruturas
paralelas e a polis paralela como uma retirada para um
gueto e como um ato de isolamento, voltando-se
apenas para o bem-estar daqueles que decidiram
seguir esse caminho e que são indiferentes ao
descansar. Seria errado, em suma, considerá-la uma
solução essencialmente de grupo que nada tem a ver
com a situação geral. Tal conceito iria, desde o início,
alienar a noção de viver dentro da verdade a partir de
seu ponto de partida adequado, que é preocupação
para os outros, transformando-o em última análise em
apenas outra versão mais sofisticada de viver dentro
de uma mentira. Ao fazê-lo, é claro, deixaria de ser um
ponto de partida genuíno para indivíduos e grupos e
recordaria a falsa noção de “dissidentes” como um
grupo exclusivo com interesses exclusivos, mantendo
seu próprio diálogo exclusivo com os poderes que são.
De qualquer forma, mesmo as formas de vida mais
desenvolvidas nas estruturas paralelas, mesmo a
forma mais madura da polis paralela só pode existir –
pelo menos em circunstâncias pós-totalitárias –
quando o indivíduo está ao mesmo tempo alojado na
“primeira”, estrutura oficial de milhares de
relacionamentos diferentes, embora possa ser apenas
o fato de que se compra o que é necessário em suas
lojas, usa seu dinheiro e obedece suas leis.
Certamente, pode-se imaginar a vida em seus aspectos
mais básicos florescendo na polis paralela, mas essa
vida, se vivida deliberadamente dessa maneira, como
um programa, seria apenas outra versão da vida
esquizofrênica dentro de uma mentira que todos os
outros devem viver de uma maneira ou outro? Não
seria apenas mais uma evidência de que um ponto de
partida que não é uma solução modelo, que não é
aplicável a outros, também não pode ser significativo
para um indivíduo? Patočka costumava dizer que a
coisa mais interessante sobre responsabilidade é que a
carregamos conosco em todos os lugares. Isso
significa que a responsabilidade é nossa, que devemos
aceitá-la e compreendê-la aqui, agora, neste lugar no
tempo e no espaço em que o Senhor nos colocou, e
que não podemos nos desviar disso movendo-nos para
outro lugar, seja para um ashram indiano ou para uma
polis paralela. Se os jovens ocidentais descobrem com
frequência que o recuo para um mosteiro indiano os
equivoca como uma solução individual ou de grupo,
isso é obviamente porque, e somente porque, falta esse
elemento de universalidade, pois nem todos podem se
retirar para um ashram. O cristianismo é um exemplo
de uma saída oposta: é um ponto de partida para mim
aqui e agora – mas apenas porque alguém, em
qualquer lugar, a qualquer momento, pode se valer
disso.

Em outras palavras, a polis paralela aponta para além


de si mesma e faz sentido apenas como um ato de
aprofundar a responsabilidade de um e para o todo,
como uma maneira de descobrir o local mais
apropriado para essa responsabilidade, não como uma
fuga a ela.

XIX

Eu já falei sobre o potencial político de viver dentro


da verdade e sobre as limitações em prever a
possibilidade de como e quando uma determinada
expressão dessa vida dentro da verdade pode levar a
mudanças reais. Mencionei também o quão
irrelevante é tentar calcular os riscos a esse respeito,
pois uma característica essencial das iniciativas
independentes é que elas sempre são, pelo menos
inicialmente, uma aposta de tudo ou nada.

No entanto, esse esboço de parte do trabalho realizado


por movimentos “dissidentes” seria incompleto sem
considerar, ainda que de maneira geral, algumas das
diferentes maneiras pelas quais esse trabalho poderia
realmente afetar a sociedade; em outras palavras,
sobre os modos pelos quais a responsabilidade para e
pelo todo pode (sem necessariamente significar que
deve) ser realizada na prática.

Em primeiro lugar, deve-se enfatizar que toda a esfera


que compreende a vida independente da sociedade, e
mais ainda o movimento “dissidente” como tal, está
naturalmente longe de ser o único fator potencial que
pode influenciar a história de países que vivem sob o
sistema pós-totalitário. A crise social latente nessas
sociedades pode, a qualquer momento,
independentemente desses movimentos, provocar
uma ampla variedade de mudanças políticas. Isso
pode perturbar a estrutura de poder e induzir ou
acelerar vários confrontos ocultos, resultando em
pessoal, mudanças conceituais ou, pelo menos,
“climáticas”. Pode influenciar significativamente a
atmosfera geral da vida, evocar distúrbios sociais
inesperados e imprevistos e explosões de
descontentamento. As mudanças de poder no centro
do bloco podem influenciar as condições nos
diferentes países de várias maneiras. Os fatores
econômicos naturalmente exercem uma influência
importante, assim como as tendências mais amplas da
civilização global. Uma área extremamente
importante, que pode ser uma fonte de mudanças
radicais e perturbações políticas, é representada pela
política internacional, pelas políticas adotadas pela
outra superpotência e por todos os outros países, pela
estrutura mutável dos interesses internacionais e pelas
posições adotadas pelo nosso bloco. Mesmo as
pessoas que terminam nas posições mais altas não são
irrelevantes, embora, como eu já disse, não deva
superestimar a importância de liderar personalidades
no sistema pós-totalitário. Existem muitas dessas
influências e combinações de influência, e o eventual
impacto político do movimento “dissidente” é
pensável apenas contra esse pano de fundo geral e no
contexto que esse pano de fundo fornece. Esse
impacto é apenas um dos muitos fatores (e longe do
mais importante) que afeta os desenvolvimentos
políticos, e difere dos outros fatores, talvez apenas
pelo fato de seu foco essencial refletir sobre esse
desenvolvimento político do ponto de vista de uma
defesa das pessoas e buscando uma aplicação imediata
dessa reflexão.

O principal objetivo da direção externa desses


movimentos é sempre, como vimos, ter um impacto
na sociedade, não afetar a estrutura de poder, pelo
menos não direta e imediatamente. Iniciativas
independentes abordam a esfera oculta; demonstram
que viver dentro da verdade é uma alternativa humana
e social e lutam para expandir o espaço disponível
para essa vida; eles ajudam – mesmo que seja, é claro,
ajuda indireta – a aumentar a confiança dos cidadãos;
eles destroem o mundo das aparências e desmascaram
a natureza real do poder. Eles não assumem um papel
messiânico; eles não são uma vanguarda social ou
elite que, por si só, conhece melhor, e cuja tarefa é
“elevar a consciência” das massas “inconscientes”
(essa autoproteção arrogante é, mais uma vez,
intrínseca a uma maneira essencialmente diferente de
pensamento, do tipo que sente que tem uma patente
em algum projeto ideal e, portanto, que tem o direito
de impor à sociedade). Nem querem liderar ninguém.
Eles deixam que cada indivíduo decida o que ele tirará
ou não de sua experiência e trabalho. (Se a propaganda
oficial da Checoslováquia descreveu os cartistas como
“autonomeados”, não era para enfatizar quaisquer
ambições vanguardistas reais da parte deles, mas sim
uma expressão natural de como o regime pensa, sua
tendência de julgar os outros de acordo com ele desde
que, por trás de qualquer expressão de crítica, vê
automaticamente o desejo de expulsar os poderosos de
seus assentos e governar em seus lugares “em nome
do povo”, o mesmo pretexto que o próprio regime usa
há anos.)

Esses movimentos, portanto, sempre afetam


indiretamente a estrutura de poder, como parte da
sociedade como um todo, pois se dirigem
principalmente às esferas ocultas da sociedade, uma
vez que não se trata de confrontar o regime no nível
do poder real.

Já indiquei uma das maneiras pelas quais isso pode


funcionar: a conscientização das leis e a
responsabilidade de garantir que elas sejam
respeitadas são indiretamente fortalecidas.
Naturalmente, essa é apenas uma instância específica
de uma influência muito mais ampla, a pressão
indireta sentida por viver dentro da verdade: a pressão
criada pelo pensamento livre, valores alternativos e
comportamento alternativo, e pela autorrealização
social independente. A estrutura de poder, quer queira
ou não, deve sempre reagir a essa pressão em certa
medida. Sua resposta, no entanto, é sempre limitada a
duas dimensões: repressão e adaptação. Às vezes um
domina, às vezes o outro. Por exemplo, a “flying
university” polonesa sofreu crescente perseguição e os
“professores voadores” foram detidos pela polícia. Ao
mesmo tempo, no entanto, os professores das
universidades oficiais existentes tentaram enriquecer
seus próprios currículos com várias disciplinas até
então consideradas tabu e isso foi resultado da pressão
indireta exercida pela “flying university”. Os motivos
para essa adaptação podem variar do ideal (a esfera
oculta recebeu a mensagem e a consciência e a
vontade da verdade é despertada) até o puramente
utilitarista: o instinto de sobrevivência do regime o
obriga a perceber as ideias em mudança e as mudanças
mentais e de clima social e reagir com flexibilidade a
eles. Qual desses motivos predomina em um dado
momento não é essencial em termos do efeito final.

A adaptação é a dimensão positiva da resposta do


regime e pode, e geralmente tem, um amplo espectro
de formas e fases. Alguns círculos podem tentar
integrar valores das pessoas do “mundo paralelo” nas
estruturas oficiais, apropriá-los, tornar-se um pouco
parecidos com eles enquanto tentam torná-los um
pouco parecidos com eles mesmos e, assim, ajustar
um desequilíbrio óbvio e insustentável. Na década de
1960, os comunistas progressistas começaram a
“descobrir” certos valores e fenômenos culturais não
reconhecidos. Foi um passo positivo, embora não sem
seus perigos, uma vez que os valores “integrados” ou
“apropriados” perderam algo de independência e
originalidade e, tendo recebido um manto de
oficialidade e conformidade, sua credibilidade foi um
pouco enfraquecida. Em uma fase posterior, essa
adaptação pode levar a várias tentativas por parte das
estruturas oficiais de reforma, tanto em termos de seus
objetivos finais quanto estruturalmente. Tais reformas
são geralmente medidas intermediárias; são tentativas
de combinar e coordenar realisticamente servir a vida
e servir ao automatismo pós-totalitário. Mas eles não
podem ser de outra maneira. Eles confundem o que era
originalmente uma linha de demarcação clara entre
viver dentro da verdade e viver com uma mentira. Eles
lançam uma cortina de fumaça sobre a situação,
mistificam a sociedade e dificultam o controle das
pessoas. Evidentemente, isso não altera o fato de que
sempre é essencialmente bom quando acontece
porque abre novos espaços. Mas torna mais difícil
distinguir entre compromissos “admissíveis” e
“inadmissíveis”.

Outra – e mais alta – fase de adaptação é um processo


de diferenciação interna que ocorre nas estruturas
oficiais. Essas estruturas se abrem para formas mais
ou menos institucionalizadas de pluralidade, porque
os objetivos reais da vida a exigem. (Um exemplo:
sem alterar a base centralizada e institucional da vida
cultural, novas editoras, periódicos de grupos, grupos
de artistas, institutos de pesquisa e locais de trabalho
paralelos etc. podem aparecer sob pressão a partir de
baixo. Ou outro exemplo: a única organização
monolítica de jovens administrada pelo Estado como
uma típica “correia de transmissão” pós-totalitária se
desintegra sob a pressão de necessidades reais em
várias organizações mais ou menos independentes,
como a União de Estudantes Universitários, a União
de Alunos do Ensino Médio, a Organização da
Juventude Trabalhadora e assim por diante.) Existe
uma relação direta entre esse tipo de diferenciação,
que permite sentir iniciativas de baixo, e o surgimento
e a constituição de novas estruturas que já são
paralelas, ou melhor, independentes, mas que ao
mesmo tempo são respeitadas ou, pelo menos,
toleradas. em diferentes graus, pelas instituições
oficiais. Essas novas instituições são mais do que
estruturas oficiais liberalizadas, adaptadas às
necessidades autênticas da vida; eles são uma
expressão direta dessas necessidades, exigindo uma
posição no contexto do que já está aqui. Em outras
palavras, são expressões genuínas da tendência da
sociedade a se organizar. (Na Tchecoslováquia, em
1968, as organizações mais conhecidas desse tipo
eram o KAN, o Clube de Não Comunistas
Comprometidos, e o K231, uma organização de ex-
presos políticos.)

A fase final deste processo é a situação na qual as


estruturas oficiais – como agências do sistema pós-
totalitário, existindo apenas para servir ao seu
automatismo e construídas no espírito desse papel –
simplesmente começam a murchar e a morrer, para ser
substituídos por novas estruturas que evoluíram de
baixo e são montadas de uma maneira
fundamentalmente diferente.

Certamente, muitas outras maneiras podem ser


imaginadas, nas quais os objetivos da vida podem
provocar transformações políticas na organização
geral das coisas e enfraquecer em todos os níveis o
domínio que as técnicas de manipulação exercem
sobre a sociedade. Aqui, mencionei apenas a maneira
pela qual a organização geral das coisas foi alterada,
como a experimentamos na Checoslováquia por volta
de 1968. Deve-se acrescentar que todas essas
instâncias concretas faziam parte de um processo
histórico específico que não deve ser pensado como a
única alternativa, nem necessariamente repetível
(particularmente não em nosso país), fato que, é claro,
não tira nada de a importância das lições gerais que
ainda são buscadas e encontradas até hoje.

Ainda sobre a questão de 1968 na Tchecoslováquia,


pode ser apropriado apontar para alguns dos aspectos
característicos dos desenvolvimentos da época. Todas
as transformações, primeiro no humor geral, depois
conceitual e finalmente estrutural, não ocorreram sob
pressão do tipo de estruturas paralelas que estão se
formando hoje. Tais estruturas – que são antíteses
nitidamente definidas das estruturas oficiais –
simplesmente não existiam na época, nem havia
“dissidentes” no sentido atual da palavra. As
mudanças ocorridas foram simplesmente uma
consequência de pressões do tipo mais variado,
algumas profundas, outras parciais. Houve tentativas
espontâneas de formas mais livres de pensamento,
criação independente e articulação política. Houve
esforços de longo prazo, espontâneos e discretos para
promover a interpenetração da vida independente da
sociedade com as estruturas existentes, geralmente
começando com a institucionalização silenciosa dessa
vida e em torno da periferia das estruturas oficiais. Em
outras palavras, foi um processo gradual de despertar
social, um tipo de processo rastejante no qual as
esferas ocultas se abriram gradualmente. (Há alguma
verdade na propaganda oficial que fala sobre uma
“contrarrevolução crescente” na Tchecoslováquia,
referindo-se a como os objetivos da vida prosseguem.)
A força motriz por trás desse despertar não teve que
vir exclusivamente da vida independente da
sociedade, considerada um meio social definível
(embora, é claro, tenha vindo daí, um fato que ainda
não foi totalmente apreciado). Também poderia ter
simplesmente vindo do fato de que as pessoas nas
estruturas oficiais que mais ou menos se identificaram
com a ideologia oficial se depararam com a realidade
como ela realmente era e que gradualmente se tornou
claro para elas através de crises sociais latentes e suas
próprias experiências amargas com a verdadeira
natureza e operações do poder. (Penso aqui
principalmente nos muitos comunistas da reforma
antidogmática que cresceram e se tornaram, ao longo
dos anos, uma força dentro das estruturas oficiais.)
Nem as condições adequadas nem a raison d’être
existiam para aquelas iniciativas independentes
limitadas e “auto estruturantes”, conhecidas da era
atual dos movimentos “dissidentes”, que se destacam
tão fortemente fora das estruturas oficiais e não são
reconhecidas por elas em bloco. Naquela época, o
sistema pós-totalitário na Tchecoslováquia ainda não
havia petrificado para as formas estáticas, estéreis e
estáveis que existem hoje, formas que obrigam as
pessoas a recorrer às suas próprias capacidades de
organização. Por muitas razões históricas e sociais, o
regime em 1968 foi mais aberto. A estrutura de poder,
exausta pelo despotismo stalinista e tateando
desesperadamente por reformas indolores, estava
inevitavelmente apodrecendo por dentro. Era incapaz
de oferecer qualquer oposição inteligente às mudanças
de humor, à maneira como seus membros mais jovens
encaravam as coisas e às milhares de expressões
autênticas de vida no nível “pré-político” que surgiu
naquele vasto terreno político entre o oficial e o não
oficial.
Do ponto de vista mais geral, outra circunstância
típica parece ser importante: o fermento social que
veio à tona em 1968 nunca – em termos de mudanças
estruturais reais – foi além da reforma, da
diferenciação ou da substituição de estruturas que
eram realmente apenas de importância secundária.
Não afetou a própria essência da estrutura de poder no
sistema pós-totalitário, ou seja, seu modelo político,
os princípios fundamentais da organização social,
nem mesmo o modelo econômico no qual todo poder
econômico está subordinado ao poder político.
Também não foram feitas mudanças estruturais
essenciais nos instrumentos diretos de poder (exército,
polícia, judiciário etc.). Nesse nível, a questão nunca
foi mais do que uma mudança de humor, pessoal, linha
política e, acima de tudo, mudanças na forma como
esse poder foi exercido. Todo o resto permaneceu na
fase de discussão e planejamento. Os dois programas
oficialmente aceitos que foram mais longe nesse
sentido foram o Programa de Ação de abril de 1968
do Partido Comunista da Tchecoslováquia e a
proposta de reformas econômicas. O Programa de
Ação – não poderia ter sido diferente – estava cheio
de contradições e medidas intermediárias que
deixaram intocados os aspectos físicos do poder. E as
propostas econômicas, embora tenham percorrido um
longo caminho para acomodar os objetivos da vida na
esfera econômica (eles aceitaram tais noções como
uma pluralidade de interesses e iniciativas, incentivos
dinâmicos, restrições ao sistema de comando
econômico), deixaram intocado o pilar básico do
poder econômico, isto é, o princípio do estado, em vez
da propriedade social genuína dos meios de produção.
Portanto, existe uma lacuna aqui que nenhum
movimento social no sistema pós-totalitário jamais
conseguiu superar, com a possível exceção daqueles
poucos dias durante o levante húngaro.
Que outra alternativa de desenvolvimento pode surgir
no futuro? Responder a essa pergunta significaria
entrar no reino da pura especulação. Por enquanto,
pode-se dizer que a crise social latente no sistema
sempre (e não há razão para acreditar que não
continuará assim) resultou em uma variedade de
distúrbios políticos e sociais. (Alemanha em 1953,
Hungria, URSS e Polônia em 1956, Checoslováquia e
Polônia em 1968 e Polônia em 1970 e 1976), todos
eles muito diferentes em seus antecedentes, curso de
evolução e consequências finais. Se olharmos para o
enorme complexo de fatores diferentes que levaram a
tais distúrbios e à impossibilidade de prever que
acúmulo acidental de eventos fará com que a
fermentação na esfera oculta penetre na luz do dia (o
problema da “gota d’água”); e se considerarmos como
é impossível adivinhar o que o futuro reserva, dadas
tendências opostas como, por um lado, a integração
cada vez mais profunda do “bloco” e a expansão do
poder dentro dele e, por outro lado, as perspectivas da
URSS se desintegrando sob pressão do despertar da
consciência nacional nas áreas não-russas (nesse
sentido, a União Soviética não pode esperar
permanecer para sempre livre da luta mundial pela
libertação nacional), então devemos ver a
desesperança de tentar previsões de longo prazo.

De qualquer forma, não creio que esse tipo de


especulação tenha significado imediato para os
movimentos “dissidentes”, pois esses movimentos,
afinal, não se desenvolvem a partir de pensamentos
especulativos e, assim, estabelecer-se nessa base
significaria alienar-se a partir da própria fonte de sua
identidade.
No que diz respeito às perspectivas dos movimentos
“dissidentes”, parece haver muito pouca
probabilidade de que desenvolvimentos futuros levem
a uma coexistência duradoura de dois corpos isolados,
mutuamente não interativos e mutuamente
indiferentes – a polis principal e a polis paralela.
Enquanto permanecer o que é, a prática de viver
dentro da verdade não pode deixar de ser uma ameaça
ao sistema. É completamente impossível imaginar que
ele continua a coexistir com a prática de viver dentro
de uma mentira sem tensão dramática. A relação do
sistema pós-totalitário – enquanto permanecer o que é
– e a vida independente da sociedade – enquanto
permanecer o local de uma responsabilidade renovada
para o todo e para o todo – sempre será ou conflito
latente ou conflito aberto.
Nesta situação, existem apenas duas possibilidades:
ou o sistema pós-totalitário continuará se
desenvolvendo (isto é, será capaz de continuar se
desenvolvendo), aproximando-se assim
inevitavelmente de alguma visão orwelliana terrível
de um mundo de manipulação absoluta, enquanto
todas as expressões mais articuladas de viver dentro
da verdade são definitivamente apagadas; ou a vida
independente da sociedade (a polis paralela),
incluindo os movimentos “dissidentes”, lenta mas
seguramente se tornará um fenômeno social de
crescente importância, participando da vida da
sociedade com maior clareza e influenciando a
situação geral. Certamente, esse será sempre apenas
um dos muitos fatores que influenciam a situação e
funcionará mais em segundo plano, em conjunto com
os outros fatores e de maneira apropriada ao segundo
plano.
Se se deve focar na reforma das estruturas oficiais ou
no incentivo à diferenciação, ou na sua substituição
por novas estruturas, se a intenção é melhorar o
sistema ou, pelo contrário, derrubá-lo: estas e outras
questões semelhantes, na medida em que como não
são pseudoproblemas, podem ser colocados pelo
movimento “dissidente” apenas dentro do contexto de
uma situação específica, quando o movimento é
confrontado com uma tarefa concreta. Em outras
palavras, deve colocar questões, por assim dizer, ad
hoc, a partir de uma consideração concreta das
necessidades autênticas da vida. Responder a essas
perguntas de maneira abstrata e formular um
programa político em termos de um futuro hipotético
significaria, acredito, um retorno ao espírito e aos
métodos da política tradicional, e isso limitaria e
alienaria o trabalho de “dissidência” onde está em si,
intrinsecamente, e tem as perspectivas mais genuínas
para o futuro. Eu já enfatizei várias vezes que esses
movimentos “dissidentes” não têm seu ponto de
partida na invenção de mudanças sistêmicas, mas em
uma luta real e cotidiana por uma vida melhor aqui e
agora. Os sistemas políticos e estruturais que a vida
descobre por si mesma sempre serão claramente – por
algum tempo, pelo menos – limitados, a meio
caminho, insatisfatórios e poluídos por táticas
debilitantes. Não pode ser de outra maneira, e
devemos esperar isso e não ser desmoralizados por
ele. É de grande importância que a principal coisa – a
luta cotidiana, ingrata e interminável dos seres
humanos para viver mais livremente, com sinceridade
e com uma dignidade silenciosa – nunca imponha
limites a si mesma, nunca seja desanimada,
inconsistente, nunca se prenda a si mesma em táticas
políticas, especulando sobre o resultado de suas ações
ou fantasias divertidas sobre o futuro. A pureza dessa
luta é a melhor garantia de ótimos resultados quando
se trata de interação real com as estruturas pós-
totalitárias.

XX

A natureza específica das condições pós-totalitárias –


com a ausência de uma vida política normal e o fato
de que qualquer mudança política de longo alcance é
totalmente imprevisível – tem um aspecto positivo:
nos obriga a examinar nossa situação em termos de
suas coerências mais profundas e considerar nosso
futuro no contexto de perspectivas globais de longo
prazo do mundo do qual fazemos parte. O fato de que
o confronto mais intrínseco e fundamental entre os
seres humanos e o sistema ocorra em um nível
incomparavelmente mais profundo do que o da
política tradicional parece, ao mesmo tempo,
determinar também a direção que essas considerações
tomarão.

Nossa atenção, portanto, inevitavelmente se volta para


a questão mais essencial: a crise da sociedade
tecnológica contemporânea como um todo, a crise que
Heidegger descreve como a ineptidão da humanidade
frente a frente com o poder planetário da tecnologia.
A tecnologia – aquele filho da ciência moderna, que
por sua vez é filho da metafísica moderna – está fora
de controle da humanidade, deixou de nos servir, nos
escravizou e nos obrigou a participar da preparação de
nossa própria destruição. E a humanidade não pode
encontrar saída: não temos ideia nem fé, e menos
ainda temos uma concepção política para nos ajudar a
trazer as coisas de volta ao controle humano. Nós
olhamos impotentes como a máquina que criamos,
funcionando friamente, nos envolve inevitavelmente,
afastando-nos de nossas afiliações naturais (por
exemplo, de nosso habitat no sentido mais amplo
dessa palavra, incluindo nosso habitat na biosfera),
assim como nos remove da experiência do Ser e nos
lança no mundo das “existências”. Essa situação já foi
descrita de muitos ângulos diferentes e muitos
indivíduos e grupos sociais procuraram, muitas vezes
dolorosamente, encontrar maneiras de sair dela (por
exemplo, através do pensamento oriental ou da
formação de comunidades). A única tentativa social,
ou melhor, política, de fazer algo a respeito que
contenha o elemento necessário da universalidade
(responsabilidade para com o todo) é o desesperada e,
dada a turbulência em que o mundo está, enfraquecida
voz do movimento ecológico, e mesmo lá, a tentativa
é limitada a uma noção específica de como usar a
tecnologia para se opor à ditadura da tecnologia.
“Somente um Deus pode nos salvar agora”, diz
Heidegger, e enfatiza a necessidade de “uma maneira
diferente de pensar”, isto é, um afastamento do que a
filosofia tem sido há séculos e uma mudança radical
no caminho no qual a humanidade entende si mesma,
o mundo e sua posição nele. Ele não conhece saída e
tudo o que pode recomendar é “preparar as
expectativas”.

Vários pensadores e movimentos acham que essa


saída ainda desconhecida pode ser caracterizada de
maneira geral como uma ampla “revolução
existencial: ‘eu compartilho essa visão e também a
opinião de que uma solução não pode ser buscada de
alguma maneira tecnológica isto é, em alguma
proposta externa de mudança ou em uma revolução
que é meramente filosófica, meramente social,
meramente tecnológica ou mesmo meramente
política. São todas as áreas em que as consequências
de uma revolução existencial podem e devem ser
sentidas; mas seu lócus mais intrínseco só pode ser a
existência humana no sentido mais profundo da
palavra. É somente a partir dessa base que ela pode se
tornar uma reconstituição geralmente ética – e, é claro,
em última análise política – da sociedade.

O que chamamos de sociedade de consumo e


industrial (ou pós-industrial), e Ortega y Gasset uma
vez entendeu como “a revolta das massas”, bem como
a miséria intelectual, moral, política e social no mundo
de hoje: tudo isso é talvez apenas um aspecto da
profunda crise na qual a humanidade, arrastada
impotente pelo automatismo da civilização
tecnológica global, se encontra.
O sistema pós-totalitário é apenas um aspecto – um
aspecto particularmente drástico e, portanto, ainda
mais revelador de suas origens reais – dessa
incapacidade geral da humanidade moderna de ser o
mestre de sua própria situação. O automatismo do
sistema pós-totalitário é apenas uma versão extrema
do automatismo global da civilização tecnológica. O
fracasso humano que reflete é apenas uma variante do
fracasso geral da humanidade moderna.

Esse desafio planetário à posição dos seres humanos


no mundo também está ocorrendo, é claro, no mundo
ocidental, a única diferença são as formas sociais e
políticas que ele assume. Heidegger refere-se
expressamente a uma crise da democracia. Não há
evidências reais de que a democracia ocidental, ou
seja, a democracia do tipo parlamentar tradicional,
possa oferecer soluções mais profundas. Pode-se até
dizer que quanto mais espaço houver nas democracias
ocidentais (em comparação com o nosso mundo) para
os objetivos genuínos da vida, melhor a crise é
escondida das pessoas e mais profundamente elas
ficam imersas nela.

Parece que as democracias parlamentares tradicionais


não podem oferecer oposição fundamental ao
automatismo da civilização tecnológica e à sociedade
industrial-consumidora, pois elas também estão sendo
desesperadamente arrastadas por ela. As pessoas são
manipuladas de maneiras infinitamente mais sutis e
refinadas do que os métodos brutais usados nas
sociedades pós-totalitárias. Mas esse complexo
estático de partidos políticos de massa rígidos,
conceitualmente desleixados e politicamente
pragmáticos dirigidos por aparelhos profissionais e
liberando o cidadão de todas as formas de
responsabilidade concreta e pessoal; e esses focos
complexos de acumulação de capital envolvidos em
manipulações e expansão secretas; a onipresente
ditadura do consumo, produção, publicidade,
comércio, cultura do consumidor e toda essa
enxurrada de informações: todas, tantas vezes
analisadas e descritas, só podem ser imaginadas com
grande dificuldade como a fonte da redescoberta da
própria humanidade. Em sua palestra em Harvard em
junho de 1978, Solzhenitsyn descreve a natureza
ilusória das liberdades não baseadas em
responsabilidade pessoal e a incapacidade crônica das
democracias tradicionais, como resultado, de se opor
à violência e ao totalitarismo. Em uma democracia, os
seres humanos podem usufruir de muitas liberdades e
valores pessoais desconhecidos para nós, mas, no
final, eles não lhes servem de nada, pois também são
vítimas do mesmo automatismo e são incapazes de
defender suas preocupações sobre suas próprias
identidades ou prevenindo sua superficialização ou
transcendendo preocupações sobre sua própria
sobrevivência pessoal para se tornarem membros
orgulhosos e responsáveis da polis, dando uma
contribuição genuína à criação de seu destino.

Como todas as nossas perspectivas de uma mudança


significativa para melhor são, de fato, de longo
alcance, somos obrigados a tomar nota dessa profunda
crise da democracia tradicional. Certamente, se
fossem criadas condições para a democracia em
alguns países do bloco soviético (embora isso esteja
se tornando cada vez mais improvável), pode ser uma
solução transitória apropriada que ajudaria a restaurar
o sentido devastado da consciência cívica, a renovar a
discussão democrática, permitir a cristalização de uma
pluralidade política elementar, uma expressão
essencial dos objetivos da vida. Mas apegar-se à noção
de democracia parlamentar tradicional como ideal
político e sucumbir à ilusão de que apenas essa forma
testada e verdadeira é capaz de garantir aos seres
humanos uma dignidade duradoura e um papel
independente na sociedade estaria, na minha opinião,
míope.

Vejo um foco renovado da política nas pessoas reais


como algo muito mais profundo do que simplesmente
retornar aos mecanismos cotidianos da democracia
ocidental (ou, se você preferir, burguesa). Em 1968,
senti que nosso problema poderia ser resolvido com a
formação de um partido da oposição que competiria
publicamente pelo poder com o Partido Comunista.
Há muito tempo percebi que, no entanto, isso não é tão
simples e que nenhum partido da oposição por si só,
assim como nenhuma nova lei eleitoral por si só,
poderia tornar a sociedade à prova de alguma nova
forma de violência. Nenhuma medida organizacional
“seca” por si só pode fornecer essa garantia, e seria
difícil encontrar neles que Deus, ele sozinho pode nos
salvar.

XXI

E agora posso me fazer corretamente a pergunta: O


que então deve ser feito?

Meu ceticismo em relação a modelos políticos


alternativos e a capacidade de reformas ou mudanças
sistêmicas nos redimir não significam, é claro, que sou
totalmente cético em relação ao pensamento político.
Nem minha ênfase na importância de focar a
preocupação em seres humanos reais me desqualifica
de considerar as possíveis consequências estruturais
decorrentes dele. Pelo contrário, se A foi dito, B deve
ser dito também. No entanto, vou oferecer apenas
algumas observações muito gerais.

Acima de tudo, qualquer revolução existencial deve


proporcionar esperança de uma reconstituição moral
da sociedade, o que significa uma renovação radical
da relação dos seres humanos com o que chamei de
“ordem humana”, que nenhuma ordem política pode
substituir. Uma nova experiência de ser, um
enraizamento renovado no universo, um novo senso
de responsabilidade mais elevado, um novo
relacionamento interno com outras pessoas e com a
comunidade humana – esses fatores indicam
claramente a direção em que devemos seguir.
E as consequências políticas? Muito provavelmente,
poderiam refletir-se na constituição de estruturas que
derivarão desse novo espírito, de fatores humanos e
não de uma formalização particular de relações e
garantias políticas. Em outras palavras, a questão é a
reabilitação de valores como confiança, abertura,
responsabilidade, solidariedade, amor. Acredito em
estruturas que não visam o aspecto técnico da
execução do poder, mas o significado dessa execução
em estruturas mantidas unidas mais por um
sentimento comum da importância de certas
comunidades do que por ambições expansionistas
comumente voltadas para o exterior. Pode e deve
haver estruturas abertas, dinâmicas e pequenas; além
de um certo ponto, laços humanos como confiança
pessoal e responsabilidade pessoal não podem
funcionar. Deve haver estruturas que, em princípio,
não limitem a gênese de diferentes estruturas.
Qualquer acumulação de poder, qualquer que seja
(uma das características do automatismo) deve ser
profundamente estranha a ele. Seriam estruturas não
no sentido de organizações ou instituições, mas como
uma comunidade. Sua autoridade certamente não
pode se basear em tradições há muito vazias, como a
tradição dos partidos políticos de massa, mas sim em
como, em termos concretos, eles compõem uma
determinada situação. Em vez de uma aglomeração
estratégica de organizações formalizadas, é melhor ter
organizações surgindo ad hoc, infundidas de
entusiasmo por um propósito específico e
desaparecendo quando esse objetivo foi alcançado. A
autoridade dos líderes deve derivar de suas
personalidades e ser pessoalmente testada em seu
ambiente particular, e não de sua posição em nenhuma
nomenklatura. Eles devem gozar de grande confiança
pessoal e até de grandes poderes legislativos baseados
nessa confiança. Essa parece ser a única saída da
impotência clássica das organizações democráticas
tradicionais, que frequentemente parecem mais
baseadas na desconfiança do que na confiança mútua
e mais na irresponsabilidade coletiva do que na
responsabilidade. É apenas com o apoio existencial
completo de todos os membros da comunidade que
um anteparo permanente contra o totalitarismo
rastejante pode ser estabelecido. Essas estruturas
devem surgir naturalmente de baixo como
consequência da auto-organização social autêntica;
eles devem derivar energia vital de um diálogo vivo
com as necessidades genuínas das quais elas surgem,
e quando essas necessidades desaparecem, as
estruturas também devem desaparecer. Os princípios
de sua organização interna devem ser muito diversos,
com um mínimo de regulamentação externa. O
critério decisivo dessa auto-constituição deve ser o
significado real da estrutura, e não apenas uma mera
norma abstrata.
A vida política e econômica deve basear-se na
cooperação variada e versátil de tais organizações que
aparecem e desaparecem dinamicamente. Quanto à
vida econômica da sociedade, acredito no princípio da
autogestão, que é provavelmente a única maneira de
alcançar o que todos os teóricos do socialismo
sonharam, ou seja, a participação genuína (isto é,
informal) de trabalhadores na tomada de decisões
econômicas, levando a um sentimento de
responsabilidade genuína por seu trabalho coletivo.
Os princípios de controle e disciplina devem ser
abandonados em favor do autocontrole e da
autodisciplina.

Como talvez seja claro a partir de um esboço geral, as


consequências sistêmicas de uma revolução
existencial desse tipo vão significativamente além da
estrutura da democracia parlamentar clássica. Tendo
introduzido o termo “pós-totalitário” para os
propósitos desta discussão, talvez eu devesse me
referir à noção que acabei de descrever – puramente
no momento – como as perspectivas de um sistema
“pós-democrático”.

Sem dúvida, essa noção poderia ser desenvolvida


ainda mais, mas acho que seria uma tarefa tola, para
dizer o mínimo, porque lenta mas seguramente toda a
ideia se alienaria, separada de si mesma. Afinal, a
essência de uma “pós-democracia” também é que ela
só pode se desenvolver via facti, como um processo
derivado diretamente da vida, de uma nova atmosfera
e um novo espírito (o pensamento político, é claro,
teria um papel aqui, embora não como diretor, apenas
como guia). Seria presunçoso, no entanto, tentar
prever as expressões estruturais desse novo espírito
sem que esse espírito estivesse realmente presente e
sem conhecer sua fisionomia concreta.

XXII

Eu provavelmente teria omitido toda a seção anterior


como um assunto mais adequado para meditação
particular, não fosse por uma certa sensação
recorrente. Pode parecer um pouco presunçoso e,
portanto, vou apresentá-lo como uma pergunta: essa
visão de estruturas “pós-democráticas” não lembra de
alguma maneira um dos grupos “dissidentes” ou
algumas das iniciativas de cidadãos independentes,
como já sabemos eles do nosso próprio ambiente?
Essas pequenas comunidades, unidas por milhares de
tribulações compartilhadas, não dão origem a algumas
dessas relações e laços políticos humanamente
significativos que estamos falando? Não são essas
comunidades (e são comunidades mais do que
organizações) – motivadas principalmente por uma
crença comum no profundo significado do que estão
fazendo, uma vez que não têm chance de sucesso
externo direto – unidas por precisamente o tipo de
atmosfera em que os laços formalizados e ritualizados
comuns nas estruturas oficiais são suplantados por um
senso vivo de solidariedade e fraternidade? Essas
relações “pós-democráticas” de confiança pessoal
imediata e os direitos informais dos indivíduos com
base nelas surgem do contexto de todas essas
dificuldades comumente compartilhadas? Esses
grupos não emergem, vivem e desaparecem sob
pressão de necessidades concretas e autênticas,
sobrecarregadas pelo lastro de tradições vazias? A
tentativa deles de criar uma forma articulada de viver
dentro da verdade e renovar o sentimento de maior
responsabilidade em uma sociedade apática é
realmente um sinal de algum tipo de reconstituição
moral rudimentar?

Em outras palavras, não são essas comunidades


informadas, não burocráticas, dinâmicas e abertas que
compõem a “polis paralela” uma espécie de
prefiguração rudimentar, um modelo simbólico das
estruturas políticas “pós-democráticas” mais
significativas que podem se tornar o fundamento de
uma sociedade melhor?

Eu sei de milhares de experiências pessoais como a


mera circunstância de ter assinado a Carta 77
imediatamente criou um relacionamento mais
profundo e aberto e evocou sentimentos repentinos e
poderosos de genuína comunidade entre pessoas que
antes eram estranhas. Esse tipo de coisa acontece
apenas raramente, se é que acontece, mesmo entre
pessoas que trabalham juntas por longos períodos em
alguma estrutura oficial apática. É como se a mera
conscientização e aceitação de uma tarefa comum e
uma experiência compartilhada fossem suficientes
para transformar as pessoas e o clima de suas vidas,
como se desse ao trabalho público uma dimensão mais
humana do que raramente é encontrado em outros
lugares.

Talvez tudo isso seja apenas a consequência de uma


ameaça comum. Talvez, no momento em que a
ameaça termine ou diminua, o clima que ajudou a criar
também comece a se dissipar. (O objetivo daqueles
que nos ameaçam, no entanto, é precisamente o
contrário. Repetidamente, alguém fica chocado com a
energia que dedicam a contaminar, de várias maneiras
desprezíveis, todas as relações humanas dentro da
comunidade ameaçada.)

Mesmo assim, nada mudaria na pergunta que eu


propus.

Não sabemos a saída do marasmo do mundo, e seria


uma expressão de orgulho imperdoável se víssemos o
pouco que fazemos como uma solução fundamental
ou se apresentássemos a nós mesmos, à nossa
comunidade e às nossas soluções para problemas
vitais como a única coisa que vale a pena fazer.

Mesmo assim, penso que, considerando todos esses


pensamentos anteriores sobre condições pós-
totalitárias e dadas as circunstâncias e a constituição
interna dos esforços em desenvolvimento para
defender os seres humanos e sua identidade em tais
condições, as perguntas que eu propus são adequadas.
Se nada mais, eles são um convite para refletir
concretamente sobre a nossa própria experiência e
refletir um pouco sobre se certos elementos dessa
experiência não apontam – sem que tenhamos
realmente consciência disso – para algum lugar mais
adiante, além dos aparentes limites, e se exatamente
aqui, em nossa vida cotidiana, certos desafios ainda
não estão codificados, aguardando silenciosamente o
momento em que serão lidos e compreendidos.

A verdadeira questão é se o futuro mais brilhante é


realmente sempre tão distante. E se, pelo contrário, já
está aqui há muito tempo, e apenas nossa própria
cegueira e fraqueza nos impediram de vê-lo ao nosso
redor e dentro de nós, e nos impediram de desenvolvê-
lo?

Outubro de 1978.

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