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Reflex6es sobre na¢ao, Estado social e soberania PAULO BONAVIDES Conceito idealista de nagao AGAO é alma, consciéncia, sentimento, humanismo, cidadania € apoteg- ma de valores. Nagio ¢ 0 povo na intuigto da fraternidade, da justiga e da liberdade; nacao ¢ direito, integridade e dignidade civi do destino, na solidez. compacta dos valores, no patriménio dos tempos onde jaz a grandeza das tradicoes; na meméria perpétua e coletiva da identidade, na correnteza das idéias que perenizam a energia do povo em se manter uno na ad- versidade e estdico na amargura dos reveses. Nagao é a marcha para a universalidade, 0 caminho moral do homem em diregdo as apoteoses do triunfo ¢ a bem-sucedida convivéncia de todas as parce- las sociais. Nagio € sactificio, abnegagio ¢ sangue nas causas que confinam com o herofsmo do género humano; é também a expressio da imortalidade do povo calcinado de dores, mas resgatado de esperangas. Nagio € 0 culto do solo, o génio da lingua, a inspirago da poesia, a misica do patriotismo, a fé da religido, a forca da ideologia, a vocagio da liberdade ¢ do direitos todos e da esperanga, ¢ do propésito ¢ do pensamento de fazé-los eternos & tiveis como as forgas supremas da natureza, sobre as quais nao tem o homem jurisdig3o para cominar-lhes a pena capital ¢ extingui-las. Nagao é a patria que gera os bravos, os justos, os artesdos do progresso 10, tecendo o fio da igualdade para estendé-lo a todas as esferas so: ; nagio é a patria mesma dizendo nao 4 soberbia, a0 ddio, a0 privilegio, a0 cito, 4 discriminagao. Nagio é o breviitio que psicologicamente liberta o ser humano dos cati- veiros espirituais ¢ das sujeigdes materiais por onde se Ihe corrompe a indole; é do mesmo passo compromisso pela causa dos oprimidos; o pavilhido dos com- batentes patriotas soerguendo © bra para colocar © Estado ao servigo dos magninimos interesses sociai dignidade do homem elevar-se as alturas da frui mentais possiveis. Nagao é a histéria e 0 idioma forjando 0 elo de uniao das geragdes passa- das, coevas e porvindouras, projetando assim a imortalidade da patria e a eterni dade do dircito natural na consciéncia dos homens.! ana comunhao 6 valores que as geragdes memorizam e consagram, movidas ndestru- ma ‘0 € a voz das resisténcias constitucionais que fiz ‘30 de todos os direitos funda- ma EsTupos AVANCADOS 22 (62), 2008 195 Nagao, entre os povos periféricos, representa a luta pelo Estado da cida- dania livre, democritica e participativa, garantindo a paz, distribuindo justiga, conciliando classes, proegendo categorias do corpo social Nagio é a t6pica nos tribunais solvendo com a hermenéutica da eqilidade, por via ponderativa, os casos em que capital, seguindo a esteira da ambig0, da cupidez ¢ da injustica, comprime ¢ esmaga a causa do trabalho ¢ destréi com a guerra criminosa a harmonia, a cooperagio ea paz social dos povos. Nagao, segundo 0 conceito anteriormente exarado, ja se vincula, pelos no- ‘vos métodos e instrumentos interpretativos, com o principio, a nogio a idéia de Estado social; em breve sera esse objeto de desenvolvimento no conspecto das presentes reflexdes, Conduzido a0 dominio juridico, 0 conceito de nagio se prende ao de soberania constitucional, porque essa € a raiz. contemporinea mais profunda do direito; é, em certa maneira, a forma suprema e absoluta de criar, exercitar e concretizar os poderes constituintes como drgios de soberania que se legitimam, como expressio da vontade nacional. Nagio incorpora, por conseg mulgando as constituigdes democratic: te, a legitimidade do povo s do contrato so pberano pro- Levando, porém, mais longe, como urge, a especificidade de uma prefe- réncia fundamental derivada da ideologia e da pré-compreensio axiolégica, ele- ja-se por conceito de nag3o nao apenas o que acabamos de exarar, versando-the a dimensio jusociologica também jusfiloséfica, sendo este que, a seguir, flui do pluralismo, e da generalidade das suas fontes existenciais de matéria e espirito € nos diz numa sintese substancial ser a nagio 0 solo, a patria, o povo, cristalizados € condensados no tempo € no exspago como vontade ¢ determinagio de vida. Nessa longa seqiiéncia de reflexdes sobre o sentido € © conceito axioma- tico de nagao, colhido da histéria, da tradig20 e das suas raizes moras, cultu- rais ¢ espirituais, é possivel estabelecer a identidade ¢ a vocagio dos povos para perpetuar elementos de cultura, de vida, de solidariedade, de consenso ¢ valor, que a retérica de Renan resumiu e condensou nesta expressio célebre: “a nagio plebiscito de todos os dias”. Com o desenvolvimento da doutrina, 0 conceito complexe de nagio, antes de chegar a inteligéncia, & razdo ¢ ao cérebro ja cursou a intuicao, © sentimento € o coragio. E ai fez, por muito tempo, sua morada, ¢ no ali, porque é no mé culo nobre da vida, nas suas palpitagdes, que a nagio nasce com o patriotismo € fenece com as circunstincias e vicissitudes do tempo, pelo agoite das disc6rdias ¢ das dissidéncias, pela fereza dos édios s, pelo separatismo secessio que acendem as labaredas da guerra civil, pela traigao das elites extre mistas ¢ radicais que nao raro atraem aos rincoes do solo patrio a intervengao. das armas estrangeiras. Armas, em geral, desagregadoras e perpetuadoras habituais do quebran- tamento da unidade nacional, desfeita na colisto ideolégica, arruinando na is inconciliivei 196 EsTUubOs AVANCADOS 22 (62), 2008 espargindo rancores, abrindo as feridas do passionalismo ressentido. Essas, nem ‘© tempo, que tudo apaga ¢ cicatriza com a distancia historica, logra fechar. Com efeito, tais desastres acontecem sempre, mediante o rompimento da coesio, do equilibrio ¢ da unidade dos sistemas, dissolvidos na fragilidade das bases de anuéncia ¢ contratualismo. Isso quando 6 bom senso ja no tem lin- guagem nem forga nem capacidade para opor-se, vitorioso, a degeneragao ¢ a fa- Iéncia que os mergulhou na corrupgio; quando aqueles dois poderes, a saber, 0 Executivo e o Legislativo, se eximiram de exercitar sobre a cidadania a jurisdigao da legitimidade; quando o Legislativo, convertido numa assembléia de capitu- lagdes e de desergdes aos deveres da legislatio, € apenas a sombra funesta de um parlamento que abdicou competéncias de érgao de soberania ¢ se rendeu a pre- poténcia e soberba de um poder rival; quando o Executivo, nas suas expansoes de arbitrio, invade prerrogativas dos poderes constitucionais de agio paralela no exercicio da soberania, quando os dois poderes mais ativos dessa mesma sobe1 nia — um que faz leis, outro que as executa —, desfalcados da ética dos governan- tes e da fé dos governados, se retraem da senda democritica por resvalarem no abismo da tirania ¢ na fatalidade das ditaduras; quando aquele Executivo, enfim, faz das Medidas Provisérias 0 salvo-conduto de todas as usurpacoes ¢ violagoes 20 principio da separagio de poderes, € 0 poder governante despedagando a Lei ‘Maior se transfigura em fantasma da Constituigi0 ¢ oprébrio da demoeracia ¢ do Estado de Direito. A formagao da nacionalidade, desde o Brasil colonial ao Brasil monarquico Na época do Brasil colbnia as guerras coloniais de fundo nativista foram, por sem diivida, as primeiras manifestagées embrionarias da nacionalidade em gestacao. E 0 foram por obra social de luta, de resistencia, de adesio do elemen- to humano aglutinado no processo assimilativo por onde se ia formando e defi- nindo com lentidio uma conjungao de bens, interesses e valores, que abrigavam precursoramente o sentimento de autodeterminacao. Mas foi a tragédia da Inconfidéncia, o cadafilso de Tiradentes, o degredo de patriotas nas selvas ¢ asperezas dos sertée cega desencadeada da metropole com o brago-de-ferro dos seus prepostos, que convergiam para a formacio de u to um tanto autonomista, do elemento colonial. africanos, bem como a repressio 1a consciéncia tosca ¢ rudimentar, de substra- Com efeito, tudo dantes confluia para 0 estudrio da violencia ¢ da opres s80. Mas a forga feroz do colonialismo fora impotente em riscar ou apagar da memoria a brasilidade nativa de Porto Calvo ¢ dos Guararapes, coroada de feitos que culminaram na expulsio dos invasores holandeses e no estabelecimento de fortes lacos de comunhao de sangue € cooperagao, das trés etnias constiutivas do primitivo tecido da nacionalidade. Essa uniao, a historiografia hi celebrado por um dos fatores que criaram 0 germe da conse n periodo ainda recuado da colonizagao. cia nacional nu EsTupos AVANCADOS 22 (62), 2008 197 Na guerra surda do Brasil colénia, aparelhou-se a substituigio do espfri- to colonial de vassalagem das populagdes nativas por um espirito diverso, que alentava © animo secessionista da emancipagio, conforme ficara patente nas tri- bulagdes da Inconfidéncia Mineira, desde o final do século XVIII. Desse derra- deiro espirito vingaram depois duas sementes: a de Estado, que elevou 0 Bras de colénia a reino unido, sob o pilio da coroa bragantina, € a de nagio com a Revolucdo Pernambucana de 1817, debaixo do influxo republicano e federativo da Unido Americana. A fase imediatamente precursora da emancipagio formal, contudo, s6 transcorre quando se da a transmigracao da corte portuguesa 4 colénia, com a fuga de D. Joao VI aos exércitos invasores de Napoledo, comandados por Junot. Ese estende até a volta do rei a Portugal, em 1821. Nao podemos deixar de ter, porém, na vinda de 1D. Joao VI e sua comitiva de fidalgos um dos episddios que mais aceleraram 0 proceso constitutivo das nacionalidade. Passos fundamentais se deram nesse sentido. A trasladagao, por exemplo, il sede provisoria da monarquia portuguesa, gerando efeitos positivos de progresso na organizagio administrativa do pais emergente. Do mesmo modo, 0 decreto de abertura dos portos, seguido alguns anos mais tarde da Carta Régia de 1815, que estabelecia o reino unido, passando a certidio do nascimento de um novo ramo institucional da monarquia portu- guesa, erguido no continemte, pareciam inculcar um certo grau de autonomia com © propésito de pér freio As iminentes erupgdes do vuleao separatista, que D. Joao VI tao bem intuiu na despedida saudosa ao aconselhar o filho a cingir a coroa imperial. A seguir, houve o grito do Ipiranga, que proclamou a independéncia, dis- solveu o reino unido e pds termo 3 unio politica dos dois povos; unio desigual que encobria a continuidade do vinculo colonialista 4 velha metrépole, con- forme ficou comprovado pelos decretos reacionsrios € restauradores das corte: de Lisboa, os quais precipitaram o movimento da independéncia, consumada formalmente em 7 de setembro de 1822. Despontava o Estado sob a forma de Império, mas a nagio prosseguia a caminhada rumo a definigao e consolidagio da identidade? Com a independéncia, José Bonificio era a Monarquia; com a Confede- ragio do Equador, em 1824, Frei Caneca era a Reptiblica. Mas essa s6 veio 67 anos depois. A primeira ocupa quase todo 0 século XIX; a segunda chega até aos nossos dias: sio cinco repiiblicas, com a de 1988, desde a queda do Império. O Império constituiu a menoridade; a Repiiblica, a maioridade na forma- 20 do nosso povo como nagao e Estado. Maioridade alcangada, sem embargo. do feudalismo branco dos coronéis. Durante a Primeira Reptiblica prevaleceu © fendmeno social e politico do coronelismo, em substituigio da sociedade de senhores ¢ escravos, ou seja, da casa grande e senzala, cujos tragos de hegemonia desapareceram com a aboli¢ao. 198 EsTUubOs AVANCADOS 22 (62), 2008 Os coronéis, sucessores dissimulados dos senhores do cativeiro, manti- nham, porém, em servidio branca, consideriveis contingentes da populagio ru- ral, privada do exercicio da legitima cidadania, porque nao era cidadania 0 voro de quem assinava em cruz atas eleitorais falsificadas Os bragos do campesinato sustentavam, assim, nos sertdes € nas faixas litorineas a economia do campo, que fizia a riqueza dos donos da terra, a opu- lencia dos estamentos privilegiados, © desequilibrio da organizagio social, que perdurava injusta, desigual, desumana e atroz. Finda a Monarquia, abolida a escravidao, suprimidas as instituigdes do tema, inspiradas do modelo europeu, o sacrificio do parlamentarismo, a partir da introdugao da forma presidencial de governo, constituiu 0 maior erro politico da Repiiblica nascente. Desse erro, responsivel maior foi Rui Barbosa, Dislate que logo arruinow a legitimidade representativa, de tiltimo abalada também pelo volume de corrupgio ¢ decadéncia ética do corpo legislativo nas duas Casas do Congresso Nacional, traduzindo a miséria do presidencialismo, donde brota- ram, pelo golpe de Ao tragar a estrutura politica da Repiiblica, Rui Barbosa, principal reda- tor da Carta Republicana, inspirou-se no modelo americano que associava tres novidades desconhecidas 4 América lusitana: a repfiblica, o presidencialismo € © regime federal; os dois derradeiros foram, em verdade, criag6es originais do génio constituinte dos autores da Magna Carta americana O golpe de Estado, de 1889, que alterou todo 0 quadro institucional do Brasil, fora tio imprevisivel para os monarquistas do gabinete de Ouro Preto € para outras figuras do regime, incluindo o proprio imperador, que cuidavam todos eles estar unicamente em presenga de crise ministerial, de manifesta gravi- dade; nunca, porém, suscetivel de derrubar o Império. Aagio fulminante do golpe, determinando a ruptura do sistema imperial, surpreendeu também em certa maneira o proprio Deodoro. Parece nao haver tido ele consciéncia plena e imediata de seu ato, ao mon- tar o cavalo na cena militar do Campo de Santana. O herdi da Guerra do Paraguai, 0 amigo do imperador, talvez cuidasse estar sendo protagonista de um desagravo do exército, tendo por conseqiién- cia, mais uma vez, a simples queda do gabinete, e nio a revolugio silenciosa da dissolucio de um império; porque revolugdes silenciosas ao pé do trono, a ‘Monarquia jé as vira, sem perda de sua continuidade, no 7 de abril de 1831, com a abdicagio de D. Pedro I, que pés termo ao Primeiro Reinado, e, do mesmo modo, em 1840, com o decreto da Maioridade, cingindo a coroa na cabega de D. Pedro II ¢ inaugurando © Segundo Reinado. stado, as piores ditaduras militares do continente. O advento das bases nacionais de um Estado social © Brasil, desde a segunda metade do século XIX, deixara de ser apenas Estado ou Império para mostrar o rosto de uma nagio j4 constituida ou pelo menos assim encarada, EsTupos AVANCADOS 22 (62), 2008 199 Entrara, portanto, a gravitar ao redor de causas nacionais, como a da abo- liggo, de cunho social; ow as da federacio ¢ da reptiblica, de carater institucional. Todas debaixo da bandeira dos elementos mais organizados e supostamente ¢a- pacitados a abrir © canal de comunicagio da sociedade e do Estado com 0 corpo politico da cidadania em gestagao. Quando vamos 3 historia buscar 0 pensamento precursor do Estado social no Brasil, a grande surpresa que nos depara é verificar que ele nasceu no Tmpério € nao na Repiblica Em rigor, a omissio a neutralidade social da Constituigio de 1891, a Primeira da Republica, se faz mais patente, retrograda e sentida, se a cotejarmos com 0 que constou do Projeto constituinte de 1823, bem como da Constituiga0 Politica do Império, outorgada por D. Pedro Tem 1824. O Titulo XIII do Projeto de Constituig3o que Antonio Carlos, depois de redigir as Bases de outro para a malograda Revolugao Pernambucana de 1817, submeteu & Constituinte dissolvida pelo imperador, era deste teor: Da instrusao piiblica, estabelecimentos de caridade, casas de corresio e trabalho. Rezava a letra do art. 250: “Havera no Império escolas primarias em cada termo, gindsios em cada comarca e universidades nos mais apropriados locais”. E fechava o Titulo XIII com 0 art. 255, no menos perpassado da vocasio precursora do Estado social, como se infere de seu contetido, em qu “Erigir-se-o casas de trabalho para os que mio acham emprego...”. A Constituigao outorgada em 1824 por D. Pedro I trazia por igual o ger- me das regras sociais no art. 179, afiangando que a Constituigio também garan- te 08 socorros pablicos, que a instrugao priméria € gratuita, que em colégios € universidades serio ensinados os elementos das ciéncias, belas-letras ¢ artes, A profecia do Estado social do porvir parecia estar posta, delineada ¢ in- troduzida nesses dois textos de larga visto prospectiva. se dizia: Aligs, desde 1934 se intenta edifici-lo, em bases constitucionais, mas em ritmo tio vagaroso que parece ter analogia com a lentidio do cristianismo quan- do erguia no Ocidente as suas caedrais. Havia, portanto, naqueles primeiros elementos da razio constitucional em nosso pais, disposigdes expressas de protesio social, dilatada 4 educagio e 20 emprego, conforme j4 nos fora dado assinalar em 1992, ao proferirmos o dis curso de recepgio da Medalha Rui Barbosa num Congresso Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil. Com efeito, aquele testemunho documental claramente demonstra que 0 constitucionalismo da Monarquia, apesar de inspirado e embebido dos cinones da doutrina liberal, em toda a pureza de s das, fora, todavia, muitas décadas antes, menos conservador que o da Repablic em matéria social Jas fontes mais auténticas e autoriza- a O siléncio constitucional de Rui se mostrava, contudo, tardio e ~ singular ironia! — ficara paralitico na retaguarda das idéias por contrastar com um final 200 EsTUubOs AVANCADOS 22 (62), 2008

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