2 O QUE É PSICANÁLISE?.................................................................. 3
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1 HISTÓRIA E EPISTEMOLOGIA DA PSICANÁLISE
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Fonte: www.fronteiras.com
2 O QUE É PSICANÁLISE?
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Segundo Dr. Freud, a psicanálise é um procedimento para a investigação
de processos mentais que são quase inacessíveis de outra maneira. É um
método para o tratamento de distúrbios neuróticos que proporciona uma série de
informações psicológicas, e que se tornou uma nova disciplina científica. A
psicanálise é a ciência do inconsciente e a terapia do autoconhecimento. A arte
da construção de qualidade de vida: saúde física e emocional.
A psicanálise surgi por meio da genialidade do Dr. Freud que centrou seus
trabalhos nos pacientes com sintomas neuróticos e/ou histéricos. Ao falar com
seus pacientes Freud acabou descobrindo casualmente que a maioria dos seus
problemas era originada nos conflitos culturais, sendo então reprimidos seus
desejos inconscientes e suas fantasias da libido. A contribuição de Freud para o
conhecimento humano e para os estudos mentais são inegáveis. O verdadeiro
choque moral provocando pelas ideias de Freud serviu para que a humanidade
rompesse seus tabus e preconceitos na compreensão da sexualidade.
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dúvidas persistentes, abulias, fobias, obsessões, neurastenias (inorgânicas),
medos, depressões, neuroses de conflitos psíquicos e histeria feminina. Atua
nas perturbações psíquicas de origem inorgânicas de fundo psicossomático. Nas
incompatibilidades de fantasias íntimas e na obsessão de pensamentos
negativos.
O bem-estar adquirido pela terapia psicanalítica é um processo longo,
consistente e gradativo. Conectados com a educação alimentar, exercícios
físicos e espiritualidade.
Afirmou Dr. Sigmund Freud: “A psicanálise nos ensina não apenas o que
podemos suportar, mas também o que devemos evitar. Ela nos diz o que deve
ser eliminado”.2
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são praticamente inacessíveis, trata-se de um método baseado na investigação
para o tratamento de distúrbios neuróticos e uma série de concepções
psicológicas adquiridas por esse meio e que se somam umas às outras para
formarem progressivamente uma nova disciplina científica.
Denomina-se psicanálise o trabalho pelo qual leva-se à consciência do
doente o psíquico recalcado por ele. Ao analisar o Analisado, Freud observa-se
durante o seu falar livre, denominado por ele mesmo como Associação Livre,
tudo que o sujeito expressa por meio de palavras e sensações manifestas
durante o processo analítico.
Ele se deu conta quando um de seus pacientes, diante de suas inúmeras
perguntas, respondeu-lhe também questionado o que por que de ele, Freud, não
deixar que ela falasse, e que parasse de interromper seu pensamento. Freud
começou a dar conta de que o analista atua como um ator cujo papel principal é
direcionar, orientar e algumas vezes dar respostas ao sujeito durante sua
experiência analítica.
3 CONSCIENTE E INCONSCIENTE
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um dos progenitores e elege ao final de todo o processo o seu objeto de desejo
sexual.
O menino por medo da castração se une ao pai com a finalidade de
seduzir de alguma forma o sexo oposto, o menino se posiciona como aquele que
é portador do falo, o objeto de desejo que a mãe tinha e que alguém cortou
(castração) e a menina se une a mãe como aquela que se une a mãe com a
finalidade de seduzir o portador do que ela um dia teve e foi
castrado/cortado/extirpado.
No final do desenvolvimento se entende que ninguém cortou nada e que
tudo não passou de uma fase de identificação como o sexo oposto, e por que
não dizer, com o mesmo sexo, no caso da homossexualidade. Não posso deixar
de mencionar as fases infantis e de dar uma definição sustentada às mesmas.
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embasam nas teorias de Freud e muitos sujeitos têm suas vidas melhoradas pelo
fato de vivenciarem uma experiência analítica. Ao ser analisado, o sujeito acessa
suas nuances psíquicas, permite-lhe visualizar sua própria pessoa e a si mesmo
como ser pensante-desejante, uma vez que a ética da psicanalise é com o
desejo do sujeito.3
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Fonte: plus.google.com
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libertar do domínio das matemáticas aquelas que a partir dele se chamariam
ciências do espírito. Essa divisão, embora posteriormente criticada, tornou-se
fecunda pelo debate internacional que ela abriu. As ciências do espírito têm
como método a compreensão hermenêutica, enquanto a física, a matemática
tem a explicação.
Freud, contudo, não se atém a essa divisão: sem medo de usar os
modelos da economia, da biologia nem dos estudos da linguagem, Freud os
adota. Por exemplo, o modelo de conflito entre polos que se opõem, tão central
para nós, vem da economia, oriundo da oposição entre pobres e ricos, entre
classe dominante e classe dominada; Freud adotou da biologia o modelo de
função, ou seja, a ideia de estímulo-resposta, evolução no tempo, busca de
regularidade; adotou a análise genética, a ideia de desenvolvimento temporal,
por exemplo, fases de desenvolvimento da libido; adotou da física toda a
sua teoria energética; adotou da linguística a noção, também fundamental,
de símbolo. Por outro lado, o surgimento da psicanálise foi de fundamental
importância para a ruptura com a predominância de modelos que levavam a uma
dualidade de tipo maniqueísta entre normal e patológico – entendido como
aberração –, entre produções humanas com e sem sentido, entre civilizados e
primitivos. Adota o modelo de análise estrutural, de sincronismo em vez de
diacronismo, que se solidifica no início do século xx.
Marc-André Bouchard (1995), psicanalista canadense, ao se incluir nas
discussões sobre os problemas epistemológicos e metodológicos que a
psicanálise apresenta, chama atenção para a complexidade do tema. Considera
que Freud nos legou uma ambivalência epistemológica. Baseando-se em textos
de Ahumada (1994) e Laplanche (1991), que vão apresentar posições distintas
sobre a questão da posição epistemológica da psicanálise, Bouchard afirma que
o próprio Freud em "Construções em análise"(1937/1975), ao refletir e
caracterizar o trabalho do analista, suporta, ao mesmo tempo, tanto um ponto de
vista empirista, como um outro, hermenêutico e construtivista. Bouchard vai
chamar atenção para o fato de ser o próprio Freud quem "falha" nesse momento
em alertar seus leitores a respeito do imenso salto entre essas duas posições
epistemológicas: descobrir e/ou construir, o que mais uma vez aponta para a
importância, tensão e complexidade dessas questões para cada psicanalista.
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O esforço de fundamentação da nossa disciplina se renova a cada
proposta de releitura de Freud ou de ampliação/reformulação de conceitos
psicanalíticos. Essas releituras que marcam o surgimento de novas escolas
renovam o propósito de outorgar à psicanálise um lugar no campo científico.
Grosso modo essa determinação continua a se expressar na incerteza entre
tomar como fundamento as ciências empíricas do homem – como a biologia – e
as ciências da natureza – como a física e a matemática – ou se postar ao lado
das humanidades, tais como as ciências do símbolo ou a hermenêutica.
A última década do século passado foi extremamente fértil no que diz
respeito ao debate quanto aos fundamentos da interpretação psicanalítica dentro
do âmbito da IPA. De um lado os psicanalistas hermeneutas, de outro os seus
críticos alinhados com a defesa da busca de fundamentos nas ciências da
natureza. A intervenção de J. Laplanche – que já vinha, desde meados da
década de 1980, revendo essa questão – por meio de seu texto "A interpretação
entre determinismo e hermenêutica: re-enunciando o problema"(1991) engrossa
o caldo da polêmica. Também Donald Spence, Merton M. Gill, Robert Steele,
Daniel Gil se incluem com artigos e livros, nesse debate. Em 1994 aparece o
artigo de Jorge Ahumada "O que é um fato clínico? A psicanálise clínica como
método indutivo" no Livro Anual de Psicanálise. Em 1995, no The International
Journal of Psycho-Analysis, Steiner polemiza com os psicanalistas da linha
hermenêutica em seu artigo "Hermeneutics or hermes-mess". No ano 2000
Friedman publica, no Psychoanalytic Quarterly, o artigo "Modern hermeneutics
and psychoanalysis". Também no ano 2000, no xxiii Congresso da Fepal foi
organizado um importante debate entre o psicanalista nova-iorquino Roy Shafer
e Jorge Ahumada: "Narrativa ou descrição: uma questão atual".
Citamos apenas algumas produções feitas nesse campo e que continuam
a ressoar. Quase continuamente, nos debates e escritos psicanalíticos, essas
questões ressurgem, deixando os psicanalistas não afeitos a tal domínio, como
assinalamos, sem instrumental para uma profícua participação, ou seja, o debate
fica restrito a pequenos círculos.
A epistemologia trata dos fundamentos em que se sustenta o
conhecimento, suas bases, seu tipo de racionalidade.
O estudo da epistemologia da psicanálise pode cumprir dois propósitos.
Primeiro: compreender a presença e predominância de uma ou outra ciência na
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constituição dos conceitos psicanalíticos e suas consequências em nossa
prática. Segundo: nos ajudar a entender que não estamos na psicanálise de
posse de um corpo de conhecimentos definitivo, estável, não isento de
ambivalência.
Há ainda uma terceira razão: ter uma noção dos fundamentos das
correntes da psicanálise confere mais solidez, mais segurança ao psicanalista
em sua escolha do caminho a seguir em sua prática, lugar que ele privilegia
acima de tudo. Ocorre que toda prática psicanalítica é investigativa e aberta para
a cultura da instituição em que está inserido o psicanalista e para a cultura mais
ampla, uma vez que não há um modo de acesso único ao homem. Novas
compreensões, novas leituras de postulações de Freud anguladas por uma
escolha epistemológica se formam ao logo do tempo. Um olhar atento e
informado talvez possa evitar a dissolução do campo psicanalítico na filosofia,
na linguística, na biologia, na literatura.4
Muito se fala e ouve sobre Freud, mas você conhece outras escolas e
autores da psicanálise?
Desde uma concepção mágico-religiosa até o divã de Freud, ocorreram
certos indícios de escuta ativa e preocupação com pessoas com faculdades
mentais prejudicadas. Desde o Padre Joan Jofré em Valencia com seu hospício
para doentes mentais até o tratamento por parte da comunidade de escutar o
doente não como um louco, mas como um mensageiro da palavra de Deus.
Há muitas tentativas de fazer psicologia, pois, como dizia Skinner, na
verdade a política não vai nos salvar, apenas com o conhecimento sobre nós
mesmos teremos uma chance. Nós evoluímos como espécie quase por tentativa
e erro, sem fazer grandes esforços para separar tudo que, não sendo verdade,
foi tomado como tal nesse processo.
Por isso, vamos analisar uma visão que pode ser considerada como uma
das primeiras aproximações formais da psicologia. Muitas vezes atacada e
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ignorada, mas que, devido ao seu interesse por analisar certos casos clínicos,
plantou a semente para que surgisse essa ciência apaixonante.
A fascinação que Freud e sua obra provocaram têm limites tão amplos
quanto difusos. Atualmente muitos consideram que ele foi um mero especulador,
distante da luz que emana do método científico. No entanto, outros o consideram
um visionário que soube enxergar o ser humano e seus problemas a partir de
uma perspectiva revolucionária.
Devemos a Freud a primeira aproximação séria com a subjetividade
humana, algo revolucionário. O que nos diferencia, por que nos comportamos de
uma maneira e não de outra. Ao mesmo tempo, também lhe devemos o
entendimento da causa e do alimento da neurose.
Explicações como o complexo de Édipo, o medo da castração, a origem
de todos os problemas psicológicos por uma libido sexual mal definida, estão
completamente excluídas de um estudo sério e científico de uma teoria
psicológica, e todas elas coincidentemente fazem mais referência ao estudo da
origem do transtorno na infância do que ao estudo de um adulto em consulta.
No entanto, devemos agradecer a Freud pela descrição minuciosa de
casos clínicos. Também pela identificação de certos fenômenos inconscientes,
como a sugestão, a lei da atenção flutuante, a resistência ou a transferência e
contratransferência que hoje estão bem articuladas no âmbito da terapia.
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Além disso, Adler defende a força do eu contra a fraqueza “natural” do eu
freudiano. Ele fala do estilo de vida individual marcado pelas primeiras relações
com a família, os valores familiares e a constelação familiar. Adler se refere ao
desenvolvimento do indivíduo não como uma resposta à libido, mas como um
desejo de poder para superar sua inferioridade orgânica.
Por outro lado, Jung difere de Freud no seu conceito do inconsciente: para
Jung, este transcende o individual. O tratamento vai buscar uma visão mais
ampla na maneira de entender o processo de individualização. Ele fala de
diferentes arquétipos coletivos e tipos psicológicos. Sua leitura é recomendável
e apaixonante.
“A solidão não vem de não haver pessoas ao seu redor, mas de não
conseguir comunicar as coisas que são importantes para si mesmo ou de
sustentar certos pontos que os outros acham inadmissíveis. ” Carl Jung
Por outro lado, muitos dos seguidores de Freud que se identificaram com
parte do seu legado minimizaram, em maior ou menor grau, a importância da
sexualidade no desenvolvimento da neurose. Alguns dos seguidores também
menosprezaram o papel do inconsciente, enfatizaram a área cultural e social, as
relações interpessoais ou prestaram mais atenção às experiências e às
circunstâncias que estavam acontecendo no momento com o paciente. Alguns
desses neofreudianos seriam Erich Fromm, Karen Horney e Harry S. Sullivan.
Na tradição analítica do eu, outra corrente da psicanálise, encontramos
sua filha Anna Freud, Melanie Klein, Erik Erikson e Bolwlby. Esse grupo dá
especial relevância às funções do eu, atribuindo-lhe uma grande importância nas
relações interpessoais, precisamente como motor para a construção desse eu.
Vale destacar autores como Melanie Klein e seu desenvolvimento do jogo
na terapia ou a teoria do objeto transicional de Winnicott, tão estudada e
reconhecida por outras correntes.
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Fonte:www.asdap.com.br
Além disso, Anna Freud se destaca nessa corrente psicanalítica por seus
famosos mecanismos de defesa: a repressão, a regressão, a formação reativa,
a anulação retroativa, a introjeção, a projeção, o isolamento, a volta contra si
mesmo e a transformação no seu contrário ou a sublimação.
“As mentes criativas são conhecidas por serem capazes de sobreviver a
qualquer tipo de mau aprendizado. ” Anna Freud
Erik Erikson encontrou a fama e o prestígio ao descrever os estágios do
eu e sua teoria é amplamente aceita devido a sua utilidade clínica. No quadro
definido por Erikson existiriam oito etapas do ser humano e sua antítese:
confiança/desconfiança, autonomia/vergonha, iniciativa/culpa,
construtividade/inferioridade, identidade/confusão de papéis,
intimidade/isolamento, generatividade/estagnação, integridade do
eu/desespero.
Para finalizar esse ponto, destacamos que John Bowlby teve uma grande
influência com a sua teoria do apego. A articulação da sua teoria goza de uma
ampla aceitação como quadro de referência útil para entender como as crianças
se relacionam com as suas figuras de referência. Além disso, explica, a partir
desse tipo de relação tão importante e suas dinâmicas, como construímos
nossas outras relações à medida que crescemos.
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4.4 Outros desenvolvimentos e autores da psicanálise
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epistemológicas, em que emergem e avultam as questões da fundamentação, e
do método, reflete uma nova posição do homem [...]". Voltando à proposta
original da ciência moderna em seu principal autor, apresentamos a afirmação
de Descartes (1641/2008), segundo a qual a dúvida hiperbólica é o
encaminhamento da certeza, sendo o sujeito enquanto resultante do cogito uma
"coisa que pensa" e, expandindo a definição a partir da noção de coisa: "uma
coisa que duvida, entende, concebe, afirma, nega, quer, não quer, e também
imagina e sente" (p. 92). Logo, segundo Descartes, tudo isso faria parte do que
o autor chama de "natureza humana". Por consequência, Descartes propõe um
método científico que pudesse orientar essa coisa pensante, que expurgasse as
variabilidades desse sujeito para que não incorresse em erros. O rigor do método
serviria para controlar, o que pode ser notado no seguinte trecho:
Mas vejo bem o que se passa; meu espírito é um vagabundo que gosta
de se perder e não poderia suportar que o prendam nos justos limites da
verdade. Soltemos-lhe, pois, mais uma vez as rédeas e, dando-lhe todo tipo de
liberdade, permitamos-lhe considerar os objetos que lhe aparecem
externamente, para que, vindo mais tarde a retirá-la lenta e convenientemente e
a detê-lo na consideração de seu ser e das coisas que encontra em si mesmo,
ele se deixe depois disso mais facilmente governar e conduzir. (Descartes,
1641/2008, p. 93)
A ciência moderna, tendo como marco a obra cartesiana, propôs a ênfase
no sujeito como fruto de um método de expurgo, do rigor científico, em que o
objetivo principal das correntes epistemológicas era o de buscar um sujeito
epistemológico pleno, consciente de si e senhor absoluto de sua vontade. Nesse
sentido, temos a proposta de um sujeito que seria conduzido pela razão em
oposição às paixões mundanas. A partir deste rigor temos, conforme Figueiredo
(1995), uma cisão entre um sujeito ascético e tudo aquilo que comprometesse a
confiabilidade desse sujeito, ou seja, tudo que pudesse remeter aos seus
desejos e afetos, bem como sua variabilidade e singularidade. De acordo com o
autor, afirmamos que é possível notar o fracasso reiterado dessa cisão, a partir
da história construída sobre o projeto epistemológico moderno e suas diferentes
versões.
Consideramos a psicanálise fazendo parte, segundo Garcia-Roza (2009),
de um "conjunto de saberes sobre o homem, que se formou a partir do século
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XIX" com a proposta de descentramento da razão (p. 22). Isso não quer dizer
que a psicanálise desconsidere a razão consciente, fruto da purificação do
método, mas esta passa a não ser mais a base primordial do saber na teoria
psicanalítica. Portanto, nesta temos uma razão calcada no inconsciente, que
sobredetermina a consciência, sendo que a teoria freudiana apontaria para a
sobredeterminação inconsciente, o que implica dizer que o sujeito não é senhor
em sua própria morada, ou seja, não tem pleno controle de seus desejos,
pensamentos, sentimentos e afetos. Assim, a psicanálise enfatiza a variabilidade
em detrimento da regularidade e generalização dos fenômenos, o que implica
em repensar a relação com os modelos científicos. Nesse sentido, a citação
abaixo apresenta um panorama das questões a serem abordadas no artigo,
quais sejam, a constituição do estatuto epistemológico da psicanálise e a
construção dos conceitos a partir de uma teoria do inconsciente, que aponta para
o sujeito, a seu modo, desejante:
Significa apenas dizer que, reorientada através dos esforços, como os de
Lacan, para uma leitura inovante de Freud, a psicanálise pode se tornar uma
teoria bem posicionada epistemicamente para substituir uma certa visão
'ortopédica' do sujeito da ciência - forjado nas cadeiras do cogito cartesiano - por
uma visão 'profilática', das relações entre um ego cogitante e
um sujeito desejante, entre o imaginário da sua cognição e a verdade do seu
desejo. Tal convicção significa, pois, apenas querer ver o campo da ciência
inclinar-se 'epistemologicamente' à evidência do inconsciente. (Beividas, 2000,
p. 17, itálicos do autor)
O caráter inventivo da releitura lacaniana da teoria de Freud, ao propor
uma subversão do cogito cartesiano a partir da invenção do inconsciente em
função do desejo se sobressair em relação à razão consciente, destaca-se
também pelo reposicionamento do analista diante do seu objeto de pesquisa e
as características que delimitam sua práxis. É nesse sentido que destacamos a
seguinte passagem do texto lacaniano a respeito do caráter fugidio do objeto de
pesquisa em psicanálise: "Mas esse princípio, ao articulá-lo de um modo que, ao
longo da análise, não se apresenta jamais como encerrado, fechado, completo,
satisfatório, esse perpétuo movimento, deslizar dialético, que é o movimento e a
vida da pesquisa analítica" (Lacan, 1958-59, p. 259). Ao contrário das tentativas
de implicar o texto freudiano em abordagens realistas do mundo externo, seja
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por meio das reduções biologizantes do aparelho psíquico, seja pelo retorno a
um inatismo de ordem instintual, Lacan nos propõe uma leitura do estatuto
epistemológico psicanalítico marcado pelo papel estruturante da linguagem em
todo o seu caráter dialético e inatural. É nessa conexão que retomaremos, ao
longo do texto, o questionamento feito por Freud, nos limites da teoria
psicanalítica, a respeito da prevalência da observação (haja vista que o
inconsciente não pode ser observado se não pelos seus efeitos: os lapsos,
chistes, sonhos e atos falhos) e a reflexão lacaniana quanto ao sujeito da ciência.
Lacan (1998), em A ciência e a verdade, afirma ser "impensável que a
psicanálise como prática, que o inconsciente, o de Freud, como descoberta,
houvessem tido lugar antes do nascimento da ciência" e que não foi um pretenso
rompimento de Freud com o "cientificismo de sua época" (p. 871), mas esse
mesmo cientificismo o teria conduzido à produção das bases da teoria
psicanalítica. Porém, ainda que tenha surgido nesse contexto de expurgo da
variabilidade dos sujeitos pelo rigor do método, segundo Figueiredo (1995), a
psicanálise se ocupa justamente do que é colocado de lado pela ciência, pois o
desconsiderado é algo que não cessa de se escrever, ou seja, de se fazer
presente por meio das formações do inconsciente: sonhos, lapsos, chistes e
sintomas. Isso implica que, mesmo sendo suprimido pela ciência moderna, o
"resto" dessa ciência está presente em nossas ações cotidianas por meio das
manifestações do inconsciente. Se para Lacan (1998) o sujeito da psicanálise
não pode ser outro se não o mesmo da ciência, trata-se aqui do sujeito "não da
desrazão e sim da razão inconsciente, cuja lógica é também apreendida através
do método psicanalítico" (Quinet, 2000, p. 12).
Voltando à história da construção do saber psicanalítico, segundo defende
Assoun (1983), ela teria seu nascimento marcado pelo conflito entre saberes
pertencentes às ciências da natureza (Naturwissenschaften) e às do
espírito (Geisteswissenschaften). Enquanto as últimas ainda buscavam o
reconhecimento da comunidade científica, o estatuto epistemológico das
primeiras já estava bem estabelecido de acordo com os critérios de validação da
época. Embora a formação de Freud como pesquisador tenha se dado sob a
lógica naturalista, o quanto tal formação foi ou não abandonada é um problema
complexo e de contornos difíceis de precisar, uma vez que o texto freudiano
apresenta, como pano de fundo, o conflito entre diferentes matrizes
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epistemológicas referentes aos dois modelos de ciências. Foi nesse contexto
que Freud (1895) escreveu o seu Projeto para uma psicologia científica (1895)
que, segundo Assoun (1983), seria um escrito de base fisicalista no qual se
buscava na diferença entre tipos de neurônios, ou seja, na matéria "sistema
nervoso", as explicações para eventos psíquicos, tais como os da sexualidade e
da psicopatologia. Ainda segundo esse autor, no período inicial de sua obra,
Freud faz uma analogia entre o objeto da psicanálise e o da química, dizendo
que o determinante químico é subjacente ao determinante psíquico. Conforme
Assoun (1983), a intenção inicial de Freud era a de colocar "o saber psicológico
sob o rótulo de provisório, aguardando que o saber químico tome seu lugar,
fornecendo-lhe seu substrato. Uma química integral seria, pois, o futuro da
psicanálise" (p. 65). Nesse sentido, seu argumento aponta para o aspecto
político do argumento freudiano, já que a comprovação material dos fenômenos
psíquicos, em conformidade com o que era exigido como científico à época,
tornaria o próprio modelo de pesquisa passível de validação. Para Assoun, é
somente a partir da ruptura com a base fisicalista que a psicanálise passa a ter
uma "epistemologia própria": a metapsicologia como tentativa de "reconstrução
exaustiva do edifício metapsicológico que vai condicionar a elucidação dessa
identidade" (p. 84). Entretanto, convém questionar o que seria uma
epistemologia própria.
Fonte: www.minutopsicologia.com.br
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O ponto de partida do argumento não poderia ser outro senão a maneira
como Freud (1915/1996) vai paulatinamente se aproximando das estruturas
discursivas de seus pacientes, de sua clínica, diferente de propostas de redução
do fenômeno em seus determinantes de cunho biológico. Assim, estabelece uma
nova posição epistemológica de ultrapassagem em relação aos projetos iniciais
de instauração da psicologia centrada na consciência: a metapsicologia.
Devido às críticas recebidas, o autor faz um questionamento quanto ao
que define uma ciência, para tanto, em seu artigo metapsicológico As pulsões e
seus destinos ele diz:
Ouvimos com frequência a afirmação de que as ciências devem ser
estruturadas em conceitos básicos claros e bem definidos. De fato, nenhuma
ciência, nem mesmo a mais exata, começa com tais definições. [As] ideias [...]
devem, de início, possuir necessariamente certo grau de indefinição; [...]. O
avanço do conhecimento, contudo, não tolera qualquer rigidez, inclusive em se
tratando de definições. A física proporciona excelente ilustração da forma pela
qual mesmo 'conceitos básicos', que tenham sido estabelecidos sob a forma de
definições, estão sendo constantemente alterados em seu conteúdo. (p. 123)
Isso implica que, "nem mesmo a mais exata" das ciências teria o poder (e
quiçá a pretensão) de construir verdades absolutas na elaboração de seus
conceitos. Freud aposta no movimento atribuído por ele à ciência, de revisão
conceitual sistemática, dando a sua teoria status de ciência e não de dogma
(imutável). Nesse sentido, Beividas (2000) aponta que "a obra de Freud é tão
polivalente e a investigação da realidade psíquica o levou a atravessar tantos
domínios da mente humana que há sempre flancos, nas entrelinhas do seu texto"
(p. 27). Um exemplo da revisão teórico-conceitual tal como operada por Freud
(1897/1996) é quando ele, na Carta 69, escreve a Fliess que não acredita mais
em sua neurótica, que é a primeira teoria das neuroses como teoria da sedução,
passando a formular a teoria da fantasia. Vale ainda acrescentar que Freud
(1905/1996) faz adendos consideráveis ao texto na forma de notas de rodapé
nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, sendo mais um exemplo de
revisão teórica do autor de seus próprios textos. Porém, para Freud, neste
momento, a construção do conceito diferencia-se da constatação da realidade,
ou da coisa em si, mas sim, enfatiza-se o corte radical feito pela psicanálise,
seguindo a leitura lacaniana, entre saber e verdade. Um encaminhamento
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possível nesse caso seria o retorno ao conceito freudiano de realidade psíquica,
que traz a possibilidade de evitar a construção de elementos mentais que sejam
vistos como simulacros do externo, os quais, a verdade ou erro seriam medidas
por critérios de aproximação. A nosso ver, este é o encaminhamento dado por
Freud, o que pode ser notado na citação a seguir:
A distinção nítida entre neurose e psicose, contudo, é enfraquecida pela
circunstância de que também na neurose não faltam tentativas de substituir uma
realidade desagradável por outra que esteja mais de acordo com os desejos do
indivíduo. Isso é possibilitado pela existência de um mundo de fantasia, de um
domínio que ficou separado do mundo externo real na época da introdução do
princípio de realidade. (Freud, 1924/1996, p. 208)
Por outro lado, a disjunção entre saber e verdade, tal como consta na
releitura lacaniana sobre o tema, possibilita uma abordagem da realidade
psíquica como regime de existência independente do que seria uma realidade
externa. Sua relação com a verdade, nesse sentido, não se daria em termos de
aproximação positiva com um objeto existente e independente da realidade
psíquica, mas sim obedecendo aos critérios de desejo e investimento, o que leva
Freud a supor o inconsciente como "verdadeira realidade psíquica" e
sobredeterminante em relação à consciência (Freud, 1900/1996). Nesse caso, o
discurso clínico em psicanálise coloca o saber proferido pelo analisando como
real, factual e presentificado na medida da intensidade de sua expressão. Assim,
a experiência do discurso analítico enquanto método clínico possibilitou a Freud
sua construção teórica, tomando os casos clínicos como dados passíveis de
interpretação, uma vez que toda clínica produz teoria e toda teoria visa produzir
dispositivos clínicos. Tal intersecção entre teoria e clínica está presente desde
os primórdios da psicanálise, como no texto Estudos sobre a histeria (1893), no
qual se nota que a pretensão freudiana estava para além da cura, ou seja,
remissão dos sintomas histéricos.
No processo de construção da teoria freudiana, o movimento de revisão
conceitual permitiu, igualmente, a mudança dos critérios de legitimidade e das
formas de compreensão dos fenômenos epistemológicos. Se Freud buscava
inicialmente em sua pesquisa uma correspondência orgânica para o aparelho
psíquico, conforme uma base inicial fisicalista, na posição acima descrita como
a da busca da verdade por aproximação, a teoria vai gradualmente apontar para
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os indícios da impossibilidade dessa correspondência. Um exemplo disso é a
passagem do texto O inconsciente, na qual Freud (1915/1996) defende a
impossibilidade de localização cerebral do inconsciente enquanto substância ou
matéria objetivável e observável enquanto tal.
Portanto, se a construção teórica das relações entre aparelho psíquico e
realidade vai paulatinamente abandonar a possibilidade de uma relação ponto a
ponto entre representação e objeto representado, a consequência
epistemológica é a necessidade de apresentar os parâmetros por meio dos quais
esta, então, se daria. Isso porque, ressaltamos, a hipótese do inconsciente como
verdadeira realidade psíquica é contraditória com a posição de um realismo
representacionista que acabaria por colocar a similaridade com o externo como
prioridade na construção do psicológico. Assim, Freud defende um regime de
realidade psíquica autônomo, porém, não totalmente alheio ao externo. Neste, o
conceito de determinismo psíquico possibilita uma abordagem tanto entre os
sistemas (inconsciente, pré-consciente, consciente) como também no que diz
respeito à reconstrução psíquica dos elementos externos. Ao afirmar que o
inconsciente é a verdadeira realidade psíquica, Freud (1900/1996) aponta para
uma gradativa alteração de uma matriz de pensamento realista para uma matriz
discursiva. Em A perda da realidade na neurose e na psicose, o autor
(1924/1996) aponta mais uma vez para a máxima da realidade psíquica, uma
vez que assevera que tanto na neurose como na psicose "em ambos os casos
serve ao desejo de poder do id, que não se deixará ditar pela realidade" (p. 206).
Desse feito, para Lacan (1966/1998), o conceito de realidade psíquica de Freud
"deve ser lido como de fato é designado, ou seja, como a linha de experiência
que o sujeito da ciência sanciona" (p. 871), reafirmando que esta cria um sujeito
autônomo, artificial e provisório. Nesse sentido, a releitura operada por Lacan
nos possibilitaria pensar a ciência como estando na origem de uma ordem
peculiar de regime de existência imanente ao desejo como estruturante do
sujeito.
Assim, Freud (1923/1996) formula claramente a definição de psicanálise
no início do artigo Dois verbetes de enciclopédia, em que o autor afirma que a
psicanálise é o nome:
a) do procedimento para a investigação de processos mentais que, de
outra forma, são praticamente inacessíveis;
23
b) do método, baseado nessa investigação, para o tratamento de
distúrbios neuróticos;
c) da série de concepções psicológicas adquiridas por esse meio e que
se somam umas às outras para formarem progressivamente nova disciplina
científica. Diferencia a psicanálise da filosofia e defende que, apesar de primeira
se aproximar de uma ciência do espírito, não pode ser equiparada com a
segunda.
A partir disso, podemos afirmar que o advento da psicanálise freudiana
propôs uma revisão epistemológica das ciências existentes até então quanto ao
estudo do ser humano. Isso não quer dizer que as ciências daquele tempo foram
forçadas a se reestruturarem epistemologicamente com finalidade de serem bem
empregadas no estudo da mente humana, seguindo os parâmetros freudianos,
mas sim que a suposição do inconsciente e a sua entrada no universo da
pesquisa questiona os parâmetros de construção dos critérios epistemológicos
das ciências de maneira geral. Isso ocorre em função do questionamento
sistemático que a psicanálise faz ao sujeito do saber e da lógica da razão.
Lacan (1964/2008), ao destacar os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise - o inconsciente, a repetição, a transferência e a pulsão - questiona
o status científico da psicanálise e argumenta contra a suposição de que toda
ciência possuiria objeto definido, considerando que esse objeto muda. Interroga,
portanto, sobre a necessidade da causa para os filósofos e afirma que "entre a
causa e o que ela afeta, há sempre claudicação" (p. 29). O autor indica com o
inconsciente e com a repetição que "nossa concepção de conceito implica ser
este sempre estabelecido numa aproximação que não deixa de ter relação com
o que nos impõe, como forma, o cálculo infinitesimal" (p. 27). É nesse sentido
que se dá a retomada crítica quanto ao pensamento de Descartes e a
necessidade de subversão de um sujeito da racionalidade consciente. Segundo
Lacan:
O termo maior, com efeito, não é a verdade. É Gewissheit, certeza. O
encaminhamento de Freud é cartesiano - no sentido de que parte do fundamento
do sujeito da certeza. Trata-se daquilo de que se pode estar certo. Para este fim,
a primeira coisa a fazer é superar o que conota tudo que seja do conteúdo do
inconsciente - especialmente quando se trata de fazê-lo emergir da experiência
do sonho - de superar o que flutua por toda parte, o que pontua, macula, põe
24
nódoas no texto de qualquer comunicação de sonho - Não estou certo, tenho
dúvidas. (Lacan, 1964/2008, p. 41)
Descartes é retomado por Lacan não necessariamente pela ênfase na
razão derivada do cogito - "penso, logo existo", - uma vez que há uma inversão
lacaniana do cogito cartesiano "sou onde não penso". Nesse sentido, a proposta
lacaniana é a de subversão do sujeito, o que implicaria em pensar o sujeito do
inconsciente não como o da razão do pensamento, mas sim um efeito da
linguagem que o estrutura, ou seja, uma consequência do encadeamento
significante. Lacan, por fim, recupera a dúvida como apoio da certeza, uma vez
que a certeza que interessa à experiência analítica é a de que tenho dúvidas as
quais comportam um desejo, dito de outra forma, o inconsciente seria do âmbito
da certeza antecipada. Nessa perspectiva, não podemos considerar a
antecipação da certeza como avessa ao conceito de ciência, pois, como
podemos destacar na citação do texto freudiano feita anteriormente, toda ciência
seria igualmente constituída de elementos antecedentes e impostos à pesquisa,
tais como hipótese, intuição, ideia, implicados na construção conceitual. Dito de
outro modo, a teoria torna-se anterior ao objeto de estudo, na medida em que é
vista como um fenômeno discursivo. A afirmação referente ao sonho e sua
relação com uma certeza da dúvida pode ser estendida para os demais
processos inconscientes, quais sejam, lapso, chiste, ato falho e sintoma.
Retomando a perspectiva de constante reelaboração, Lacan propõe um
retorno à teoria freudiana, cuja consequência é o axioma do inconsciente
estruturado como linguagem, também influenciado pelo diálogo com a linguística
de sua época. Freud, a partir da teoria do inconsciente, questiona a concepção
filosófica do sujeito de saber ocidental. Somemos a esses dois processos de
rompimento com os saberes estabelecidos a proposta lacaniana de
reposicionamento da causalidade psíquica quando movida pelo desejo,
o desidero, ou seja, o desejo como causa. Desse feito, o estatuto da psicanálise
diante da epistemologia deve ser visto como paradigmático justamente na
medida em que implica numa concepção de sujeito diferenciada: a do sujeito do
inconsciente como efeito do significante, o falante assujeitado e torturado pela
linguagem, que aborda a verdade na fala a partir de seu lugar na hiância, tendo
o desejo como causa. Portanto, em teoria psicanalítica, não se trata de buscar o
real natural e externo à experiência, mas sim de construir os conceitos a partir
25
da verdade da operação do desejo, já que o campo da verdade seria
reestruturado de forma subversiva por meio dos sintomas, atos falhos, sonhos e
chistes.
Assim, Lacan propõe que a forma de acesso à verdade seria pelo discurso
e não a partir da razão e do pensamento necessariamente consciente. Assim,
uma possibilidade de articulação entre as teorias de Freud e de Lacan sob o
ponto de vista epistemológico reside na subversão do cogito cartesiano a partir
da invenção do inconsciente. Tal posição lacaniana é afirmada no texto da
seguinte forma: "função mais digna de ser enfatizada na fala que a de disfarçar
o pensamento (quase sempre indefinível) do sujeito: a saber, a de indicar o lugar
desse sujeito na busca da verdade" (p. 508), ou ainda, "é com o aparecimento
da linguagem que emerge a dimensão da verdade" (p. 529).
O fundamento disso é que Lacan sustenta o axioma do sujeito do
inconsciente estruturado como uma linguagem, a qual aponta para a verdade
peculiar do inconsciente. Surge, daí a questão, a saber, sobre o papel de
imanência designado ao campo da linguagem nas obras de Freud e de Lacan.
Nossa hipótese seria a de que tanto para Freud quanto para Lacan, a linguagem
transcende tanto a possibilidade de redução a fatores materiais e exteriores ao
campo em questão quanto a concepção simplista de ser apenas uma ferramenta
na mediação entre o pensamento e os objetos do mundo. Se na obra do primeiro
estão presentes os conceitos de representações e associação livre, e na do
segundo temos uma preponderância dos conceitos de significante, linguagem,
discurso e deslizamento dos significantes como articuladores e substratos da
clínica, é igualmente fundamental afirmar que, em nenhum dos dois casos, a
prática analítica se ordene em função de reduções biologizantes ou
materializantes do psiquismo, às quais o conceito de observação serviria como
fiador de sua existência objetificada. A partir de tal semelhança que é apontada
em Garcia-Roza (2008) e na própria obra de Lacan (1957-58/1998), que a
assume diversas vezes durante seu ensino, por exemplo, em "ainda que Freud,
em seu tempo, está no ponto onde as coisas podiam se dizer em um discurso
científico - esse Vorstellungsreprasentanz é estritamente equivalente à noção e
ao termo significante" (p. 34). Nesse caso, o mais importante a ser ressaltado é
que tanto na teoria freudiana quanto na lacaniana os conceitos respectivos de
representação e significante levam ao questionamento radical da materialidade
26
da coisa em si no psiquismo. Em ambos os casos, trata-se da autonomia do
fenômeno de linguagem em detrimento da reprodução da realidade externa.
A partir da discussão sobre o escopo da ciência moderna, notamos que
não se pode situar a psicanálise em nenhum campo preexistente, mas, em
alguns aspectos, podemos encontrar algumas aproximações. Temos na dialética
idealista hegeliana, por exemplo, a partir das contribuições de Lacan, uma
possibilidade de releitura da epistemologia da psicanálise. Podemos citar o
conceito de potência no sujeito hegeliano, na medida em que a potência é o que
ainda se tornará, por isso o sujeito é visto como um vira-ser: ele é enquanto
negatividade. Para Savioli e Zanotto (2007), a negatividade em Hegel "coloca
em oposição aquilo que os seres são e suas potencialidades, sugerindo um
estado de limitação, bem como a necessidade de superar tal estado em direção
a outro" (p. 366-367). Esse conceito se aproxima da psicanálise pelo fato de que
o sujeito desta também se constitui enquanto negatividade, ou seja, é a partir do
que lhe falta que se constitui seu desejo, que o faz mover-se. A concepção
estruturalista de Lacan permite justamente a suspensão do questionamento
ontológico sobre a realidade positiva do ser em oposição a sua definição ética
como sujeitos desejantes demarcados por uma verdade da ordem da falta:
somos falta-a-ser.
A concepção filosófica hegeliana, assim como a psicanálise, caminhou na
contramão das tentativas de estabelecimento de um "sujeito epistêmico
ascético". Ambas subvertem a concepção de sujeito pleno. Segundo Garcia-
Roza (2009), "o que a Fenomenologia do Espírito nos ensinou é que não é pela
Razão que o indivíduo se tornou humano, mas pelo Desejo. [...] O homem seria,
pois, esse efeito-desvio do Desejo" (p. 16). Temos aqui mais uma aproximação
possível nas duas concepções de sujeito, pois em Hegel encontramos um sujeito
cuja estruturação está calcada no desejo. No contexto em que surgiu, a teoria
de Hegel também subverte a ideia da época: de que o desejo era da ordem do
que deveria ser expurgável. Mas é importante ressaltar que, apesar da marca
hegeliana da constituição de um sujeito a partir do desejo, Garcia-Roza (2009)
afirma que "não há lugar para a Selbstbewusstsein toda consciente na teoria
psicanalítica" (p. 23). A expressão Selbstbewusstsein significa
autoconhecimento, a diferença está, portanto, no fato de que este não pode ser
alcançado segundo a psicanálise. E sobre o selbstbewusstsein hegeliano, o
27
autor afirma que "o fim da história é o saber absoluto" (p. 95), não há
concordância desse aspecto da teoria com a psicanálise, pois nesta estamos no
campo do inconsciente, daquilo que é unbewusste (não sabido), desconhecido
pelo sujeito. Sobre esse aspecto, Freud afirma que o eu, não é senhor em sua
própria casa, isso quer dizer que existem conteúdos inconscientes que não são
passíveis de serem observados em sua face positiva e material de objeto de uma
existência plena.
Para Lacan, o corte é feito pela entrada do sujeito no discurso social. Essa
entrada se dá com o advento de um significante paterno: o significante Nome-
do-pai, que barra o desejo da mãe (mostrando a falta materna), permitindo à cria
humana se constituir como sujeito desejante por si e não mais atado ao desejo
da mãe. Conforme dito anteriormente, nós desejamos porque somos seres de
falta, então, só podemos desejar depois que for inaugurada em nós uma falta.
Isso ocorre no momento em que miramos no Outro uma falta também. Assim
nos constituímos como sujeitos e, nessa experiência, a partir do corte radical
feito pela linguagem, há algo que significamos como perdido (ao que Lacan
chamou de objeto a). O objeto é da ordem da miragem, já que na verdade nunca
existiu, portanto, não temos como reencontrá-lo. Assim, o selbstbewusstsein
hegeliano não tem correspondência na teoria psicanalítica porque nunca
teremos acesso aos conteúdos inconscientes, ou a um autoconhecimento.
Cabe ressaltar que Lacan compartilha do entendimento de verdade para
Hegel, no qual a verdade surge a partir da negação e não numa consciência
ingênua e não crítica, mas, sim, a partir da dialética do desejo. Assim como pode
ser destacado na obra freudiana (1925/1996), o acesso à verdade do sujeito
pode se dar por meio do caráter performativo da negação. É a partir desse ponto
que o filósofo hegeliano Jean Hyppolite, por ocasião de um debate com Lacan
(1955) publicado nos Escritos, relaciona o conceito negação - Auphebung - para
Hegel, com o conceito a Negativa, ou Denegação - Verneinung - para Freud, e
resume:
Não se encontra na análise nenhum "não" vindo do inconsciente, mas o
reconhecimento do inconsciente, pelo lado do eu, mostra que o eu, é sempre
desconhecimento; mesmo no conhecimento, sempre encontramos do lado do
eu, numa fórmula negativa, a marca da possibilidade de deter o inconsciente, ao
mesmo tempo recusando-o (Lacan, 1955/1998, p. 902)
28
O conceito de verdade para a teoria lacaniana é complexo, peculiar e
ambíguo justamente por esta ser tributária da concepção estruturalista (a mesma
que embasa os movimentos linguísticos de sua época) em sua principal
proposta: a substituição das tentativas de redução aos objetos supostamente
reais pelo estudo das relações ordenadas e encadeadas, como forma de
suspensão da orientação direta da realidade, sendo essa perspectiva derivada
diretamente da tese saussuriana da arbitrariedade do signo. Dessa forma, "no
momento em que digo eu minto (da metalinguagem), digo-o a respeito do eu
minto da linguagem-objeto: se minto, dizendo que minto, é que estou dizendo a
verdade. Mas como digo não a estar dizendo, é que estou mentindo" (Arrivé,
1994, p. 120). No entanto, a verdade como busca do conhecimento tem seus
limites apontados também na filosofia de Kant (1787) e em seu questionamento
quanto à verdade: estaria ela relacionada com o conhecimento empírico ou com
o conhecimento puro?
Cabe ressaltar que o conceito de verdade por nós aqui utilizado perpassa
o caminho de Freud, sobretudo o fato de a psicanálise operar na realidade
psíquica. No percurso freudiano, o autor conclui que os relatos de cenas
supostamente de sedução de suas pacientes estariam atrelados ao desejo
inconsciente delas, sendo que uma parcela considerável dos relatos indicaria
acontecimentos ocorridos apenas no plano psíquico, porém, não menos reais de
acordo com o peso dado à fantasia na consideração freudiana. Caberia à
psicanálise, portanto, o trabalho diante do papel do inconsciente na relação com
o desejo e com o princípio de prazer, sem colocar em evidência se determinada
lembrança aludia ou não a acontecimentos reais na infância, o que Lacan
(1964/2008) destaca:
Freud, em sua sede de verdade diz - O que quer que seja, é preciso
chegar lá - porque, em alguma parte, esse inconsciente se mostra. É isso que
ele diz dentro de sua experiência daquilo que era para o médico, até então, a
realidade mais recusada, mais coberta, mais contida, mais rejeitada, a da
histérica, no que ela é - de algum modo, de origem - marcada pelo signo do
engano. (p. 40)
Primeiramente, tal citação nos remete às histéricas, começando por seu
histórico em que por muitos anos foram consideradas pelos leigos e pela
medicina como farsantes, fingidoras. Contudo, a fantasia ou realidade psíquica
29
é formada inconscientemente com resquícios de realidade, o que a diferencia da
mentira ou da invenção. Freud comenta sobre o período em que consideravam
os neuróticos, principalmente as histéricas, como farsantes:
Mas nunca nos devemos permitir ser levados erradamente a aplicar aos
padrões da realidade a estruturas psíquicas reprimidas e, talvez por causa disso,
a menosprezar a importância das fantasias na formação dos sintomas, sob o
pretexto de elas não serem realidade, ou a remontar um sentimento neurótico de
culpa a alguma outra fonte, por não haver provas de que qualquer crime real
tenha sido cometido. Somos obrigados a empregar a moeda-corrente do país
que estamos explorando; em nosso caso uma moeda neurótica. (Freud,
1911/1996, p. 285)
Entretanto, Freud (1920/1996), apesar de sua sede de verdade, como
aponta Lacan, apresenta-se antipragmático ao colocar em primeiro plano não o
fato observável, mas uma condição ética de posicionamento diante do próprio
descentramento. Contudo, o mote das ciências ditas modernas ainda é buscar
uma resposta única que, tal qual um conhecimento religioso, apaziguaria nossas
angústias. A psicanálise caminha, portanto, na contramão desta postura dos
"sábios de laboratório", pois propõe como objeto de estudo justamente o
rebotalho desta ciência "normal". Roudinesco (2000) conta a história de um
psicólogo norteamericano que propôs a Freud medir a libido dando-lhe o nome
de "um freud" (p. 34), no que o autor recusa e solicita "não dê meu nome a sua
unidade. Espero poder morrer, um dia, com uma libido que não tenha sido
medida" (p. 35). Destarte, fica claro que Freud não só desacreditava no homem
como máquina, como também sabia que a pulsão, o desejo, o inconsciente, a
angústia, só são possíveis de se conhecer por seus efeitos, e isso é o que Lacan
teorizou como metáfora, uma vez que os processos simbólicos funcionam à
revelia dos sujeitos em relações de arbitrariedade com o que poderia vir a ser
uma realidade natural e objetiva.
No entanto, seja como ciência material ou do espírito, é inegável que
Freud não abandona o desejo de que a psicanálise fosse reconhecida como
ciência: "não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo
que a ciência não nos dá podemos conseguir em outro lugar" (Freud, 1927/1996,
p. 63). Notório torna-se, então, o peso da revolução freudiana como forma de
rompimento com os saberes estabelecidos pela racionalidade científica e
30
filosófica, já que aponta para a racionalidade do desejo inconsciente em
detrimento da razão da consciência. E ainda, permanece a suportar inúmeras
tentativas de refutação:
É bem possível que esta primeira parte do nosso estudo psicológico dos
sonhos nos deixe um sentimento de insatisfação. Mas podemos consolar-nos
com a ideia de que fomos obrigados a construir nosso caminho nas trevas. Se
não estamos inteiramente errados, outras linhas de abordagem hão de levar-nos
aproximadamente a essa mesma região, e então poderá vir um tempo em que
nos sintamos mais à vontade nela. (Freud, 1900/1996, p. 579)
Devemos levar em consideração que o abandono da pretensão, da parte
de Freud, da instituição de uma ciência orientada pelo abarcamento da realidade
e pela instituição de verdades paradigmáticas e invariáveis que pudessem
orientar a práxis sem risco de erro seja muito provavelmente um traço de
distinção da teoria psicanalítica. Vale ressaltar que, quando o autor diz da
insatisfação dos estudos do sonho, não são apenas estes que estão em voga
nessa problemática, mas sim toda formulação de sua teoria do inconsciente e,
por consequência, o que viria a ser sua metapsicologia.
Pode-se considerar, então, que a abordagem psicanalítica se constitui a
partir da dúvida como apoio da certeza na organização do campo da verdade. A
psicanálise pode ser concebida, então, como instrumento ou até mesmo um
método para se pensar a ciência e sobre sua busca de conhecimento, se
convertendo em busca de uma verdade, enquanto ética (Silva, 2012). Esse
aspecto metodológico da psicanálise culminou por atribuir-lhe um estatuto de
inacabamento e de renovação constante ao seu corpo teórico, permitindo-nos
questionar e defender a revisão acerca de seus princípios epistemológicos. 6
31
definição e enquadre da psicanálise como uma disciplina específica do
conhecimento — a ponto de borrar as características definidoras do que deve
ser incluído como pertencendo ao campo da psicanálise e o que deveria ser
excluído dele.
Nas inúmeras tentativas de diálogos, as dificuldades de entendimento
entre os membros de diferentes grupos de psicanalistas têm sido uma constante:
as dissonâncias, mal-entendidos, erros de interpretação, mal-uso de termos e
conceitos mais parecem a regra do que a exceção. Pode-se, pois, afirmar que a
psicanálise tem vivido diversas experiências de colapso na comunicação.
O reconhecimento de que os psicanalistas têm vivido numa espécie de
Babel é admitido já de longa data. André Green, por exemplo, diz:
No início dos anos 1980, eu me lembro de ter lamentado com Bion sobre
a situação babeliana da psicanálise. Na sua sabedoria, ele me respondeu que
antes de chegar a uma linguagem comum e única na psicanálise, dever-se-ia
chegar aos extremos de cada idioma singular; teoricamente falando, isso é uma
decorrência natural. Hoje a psicanálise parece com uma linguagem falada em
diversos idiomas. Mas, na maior parte do tempo, as pessoas pretendem se
compreender ou, ao menos, dar a impressão de que se compreendem com a
finalidade de salvar a própria cara, sobretudo nos congressos regionais e
internacionais. Na realidade, não há uma verdadeira discussão [...]. (Green
2005b, p. 44)
Talvez a noção de paradigma de Thomas Kuhn, já utilizada por diversos
estudiosos da psicanálise, possa contribuir para estabelecer parâmetros para o
entendimento e a comunicação entre os diversos sistemas teóricos da
psicanálise. Mas de que maneira? A análise das características desse conceito,
bem como do seu uso no estudo da psicanálise, pode esclarecer essa questão.
32
Fonte:cursosdepsicanalise.com.br
33
soluções indicam, através de exemplos, como devem realizar seu trabalho”
(Kuhn 1970a, p. 232);
2. generalizações simbólicas: conjuntos de compromissos teóricos que
podem ser expressos por símbolos, por exemplo, F = m.a, ou, ainda, por
palavras, por exemplo, “a uma ação corresponde uma reação igual e contrária”,
etc., aplicáveis a todos os problemas (ou todos os quebra-cabeças), “que
funcionam em parte como leis e em parte como definições de alguns dos
símbolos [ou palavras] que elas empregam” (Kuhn 1970a, p. 228);
3. modelos metafísicos: crenças coletivas tais como “o calor é a energia
cinética das partes constituintes dos corpos; todos os fenômenos perceptivos
são devidos à interação de átomos qualitativamente neutros no vazio ou,
alternativamente, à matéria e à força ou aos campos” (Kuhn 1970a, p. 230), bem
como “crenças em determinados ‘modelos’ de modo a incluir também a
variedade heurística: o circuito elétrico pode ser encarado como um sistema
hidrodinâmico em estado de equilíbrio” (Kuhn 1970a, p. 230); esses modelos
servem para auxiliar a organização e sistematização dos dados empíricos;
4. conjunto de valores, os quais contribuem para dar à comunidade o
sentimento de pertinência a um determinado grupo, referindo-se, em geral, às
características das predições (por exemplo: “devem ser acuradas; predições
quantitativas são preferíveis às qualitativas; qualquer que seja a margem de erro
permissível, deve ser respeitada regularmente numa área dada; e assim por
diante” [Kuhn 1970a, p. 229]); também podem ser de outro tipo, tais como os que
se referem ao julgamento das teorias como completas (“estes precisam, antes
de mais nada, permitir a formulação de quebra-cabeças e de soluções; quando
possível, devem ser simples, dotadas de coerência interna e plausíveis, vale
dizer, compatíveis com outras teorias disseminadas no momento” [Kuhn 1970a,
p. 229]) ou, ainda, relativo à questão da utilidade da ciência (por exemplo, se a
ciência deve ou não ter uma utilidade social). Kuhn considera que, “embora os
valores sejam amplamente compartilhados pelos cientistas e este compromisso
seja ao mesmo tempo profundo e constitutivo da ciência, algumas vezes a
aplicação dos valores é considerada afetada pelos traços da personalidade
individual e pela biografia que diferencia os membros do grupo (Kuhn 1970a, p.
230).
34
Quando uma ciência ainda não está madura ou quando há nela uma crise
caracterizada pelo acúmulo de problemas anômalos e sem solução, então ocorre
um confronto entre seus praticantes. Se a ciência ainda não está madura a ponto
de ter constituído um paradigma, as diversas propostas práticas e teóricas se
enfrentam numa disputa de hegemonia; se há um paradigma em crise, então
dois ou mais paradigmas se enfrentam tendo em vista os problemas em voga e
sua solução.
Kuhn declara-se um kantiano, considerando, então, que as características
do paradigma ou o léxico de um paradigma são análogos às categorias
kantianas, mas, diferentemente de Kant, estas não seriam dados universais sem
história; pelo contrário, seriam produzidas e modificadas historicamente. Cito
Kuhn:
[...] a posição que estou desenvolvendo é um tipo de kantismo pós-
darwiniano. Como as categorias kantianas, o léxico fornece as precondições da
experiência possível. Mas as categorias lexicais, ao contrário de seus
predecessores kantianos, podem mudar e mudam, tanto com o passar do tempo
quanto com a passagem de uma comunidade a outra. (Kuhn 1990, p. 131).
Ao reconhecer que uma disciplina ou matriz disciplinar tem sempre um
léxico específico, compartilhado por um grupo ou comunidade, Kuhn também
está afirmando que os referentes de seus conceitos estão correlacionados a
fatos e fenômenos diferentes. Ou seja, não se trata de um problema de
nomenclatura, mas de formulação dos fatos e problemas empíricos a serem
considerados. Ao confrontar paradigmas, ocorre, pois, o problema da
tradutibilidade entre eles. É o que comumente acontece no diálogo entre a
filosofia e as ciências, sempre fracassado se tais precauções semânticas não
são respeitadas. No caso de uma mesma disciplina, na qual há paradigmas
díspares, o problema pode ser ainda maior, dado que, além de termos novos, há
termos comuns que têm seu sentido modificado, ainda que o significado de
outros termos comuns seja mantido. Quanto à psicanálise, que, no seu
desenvolvimento, nem sempre manteve tais precauções, seja na importação de
conceitos e termos de outras disciplinas, seja no uso não crítico dos termos
comuns de diversos de seus grupos, temos um campo propício para o fracasso
na comunicação.
35
Cada paradigma e seu léxico correspondente constituem, para Kuhn, a
consideração de mundos diferentes. Ou seja, não se trata de um problema
terminológico, em que existem nomes diferentes para os mesmos referentes,
mas, diferentemente disso, muitos dos referentes mudam, exigindo um novo
léxico e a redefinição do léxico antigo. Noutros termos, na passagem de um
paradigma para outro, mudam os problemas e as soluções de referência,
fazendo com que seus praticantes vejam um novo conjunto de fenômenos.
É interessante notar que Kuhn considera que um membro individual pode
ser “bilíngue” ou “trilíngue”, dominando os sentidos específicos dos paradigmas
em questão, ainda que, em termos práticos, essa possibilidade não exista. Ou
seja, para ele, a prática efetiva de formulação de problemas e o encaminhamento
de suas soluções não podem ser realizados como se o praticante se
comportasse como uma estação de rádio, ora num mundo ora noutro; ainda,
segundo Kuhn, principalmente no caso da psicanálise, para a qual a solução de
problemas clínicos corresponde a um longo processo de comunicação entre
analista e analisando.
A utilização da proposta de Kuhn, em termos metodológicos, corresponde
a um tipo de exigência de uma ética da terminologia, mas avança um pouco mais
do que apenas fornecer uma mera orientação geral, uma vez que, além de exigir
a constante preocupação em relacionar os termos teóricos a seus referentes
específicos, possibilita, por meio das características que delimitam e
estabelecem o que é um paradigma, quais são os aspectos centrais a serem
considerados para que disciplinas e propostas díspares possam ser comparadas
e compreensíveis umas às outras.
Cabe perguntar qual é a posição do próprio Kuhn no que se refere à
aplicabilidade de suas concepções a outros ramos do saber que não as ciências
naturais. Previdente, mas confiante no poder da aplicabilidade de seu
instrumento às ciências humanas, ele escreveu, em 1989:
As ciências naturais, portanto, embora possam requerer o que eu chamei
de uma base hermenêutica, não são, elas próprias, atividades hermenêuticas.
As ciências humanas, por sua vez, frequentemente o são e podem não ter outra
alternativa. Mesmo que esteja correto, contudo, pode-se, ainda, perguntar, com
procedência, se elas estão restritas à hermenêutica, à interpretação. Não seria
possível que aqui e ali, com o passar do tempo, um número crescente de
36
especialistas encontrasse paradigmas que viabilizassem a pesquisa normal,
solucionadora de quebra-cabeças?
Quanto à resposta a essa pergunta, estou totalmente incerto. Mas
arriscarei duas observações que apontam para direções contrárias. Em primeiro
lugar, não estou ciente de qualquer princípio que barre a possibilidade de uma
ou outra parte de alguma ciência humana encontrar um paradigma capaz de
viabilizar a pesquisa normal, solucionadora de quebra-cabeças. E a
probabilidade da ocorrência dessa transição é, para mim, aumentada por forte
sentimento de déjà-vu. Muito do que ordinariamente é dito para defender a
impossibilidade de uma pesquisa solucionadora de quebra-cabeças nas ciências
humanas já foi mencionado, há dois séculos, para negar a possibilidade de uma
ciência da química, e repetido, um século depois, para mostrar a impossibilidade
de uma ciência dos seres vivos. Muito provavelmente [segunda observação], a
transição que eu estou sugerindo já está em andamento em algumas
especialidades atuais das ciências humanas. Minha impressão é a de que, em
partes da economia e da psicologia, isso já possa ter ocorrido. (1989, pp. 272-3)
E, especificamente, sobre a psicanálise, o que Kuhn disse explicitamente?
Sua posição crítica advém tanto da sua análise histórico-epistemológica, quanto
de sua experiência pessoal como paciente. Na sua última entrevista, em 1997,
ele comenta:
Minhas relações com mulheres eram praticamente inexistentes. Mas isso
em parte porque meu ambiente era um ambiente masculino. O resultado é que
fui persuadido, sem muita dificuldade, a ir fazer psicanálise. Quando criança,
tinha tido alguma experiência com psiquiatria infantil, experiência que não tinha
em grande conta e de que não trago lembranças agradáveis. Fiz análise
naqueles anos em Harvard com um sujeito que, em retrospecto, odeio, porque
acho que se comportou de maneira extremamente irresponsável comigo. Ele
costumava pegar no sono e, quando eu o surpreendia roncando, ele agia como
se eu não tivesse nenhum motivo para estar furioso ou perturbado com isso. Por
outro lado, eu tinha lido anteriormente a Psicopatologia da vida cotidiana de
Freud. Nem por um momento gosto das categorias teóricas que ele apresenta,
nem sinto que, para mim, ao menos, elas tenham alguma importância. Mas
a técnica de compreender as pessoas e capacitá-las a se compreender melhor
não estou certo de que produza algum tipo de terapia é, com certeza, para lá de
37
interessante. Eu mesmo acho que teria muita dificuldade em documentar isso,
mas acho que muito do que comecei a fazer como historiador, ou o nível de
minha capacidade para fazê-lo “entrar na cabeça das pessoas” é uma expressão
que eu usei vez ou outra, veio de minha experiência com a psicanálise. Assim,
nesse sentido, acho que devo muitíssimo a ela. Lastimo que esteja ganhando a
péssima reputação que está adquirindo atualmente, embora pense que ela muito
a mereceu; mas acho que o que acaba sendo esquecido é que há um ofício, um
aspecto prático nela, para o qual não conheço nenhuma outra rota, e que tem
uma enorme relevância intelectual. (1997, p. 339).
Ao afirmar que não gosta das proposições teóricas de Freud e que,
pessoalmente, não tem nenhum interesse nelas, poder-se-ia supor que Kuhn
julga que a teoria psicanalítica ainda não alcançou o estatuto de uma teoria
científica. Além disso, ele reconhece na psicanálise uma prática (um ofício) que
leva a conhecer as pessoas e fazer com que se conheçam melhor, ainda que
não esteja seguro de que ela seja uma terapia. Mais ainda, mesmo que não seja
claro em que lugar ele a coloca — certamente não está no rol das ciências
maduras, mas também não parece ser um ramo da arte ou da filosofia —,
reconhece que uma parte importante do que fez como historiador da ciência foi
influenciado por seu contato com a teoria e a clínica psicanalítica. Convém
lembrar, nesse ponto, que Kuhn considera possível a utilização de sua noção de
paradigma para a compreensão de outras disciplinas do conhecimento, tal como,
por exemplo, a arte e sua história (Kuhn 1970a, “Posfácio”, pp. 255-6). Sendo
assim, é possível que o conceito de paradigma possa ser aplicado também à
psicanálise.
38
Fonte:oselfeosoutros.blogspot.com
39
O primeiro, Adam Phillips, refere-se a Winnicott como tendo formulado um
novo paradigma para a psicanálise. Ao não utilizar o conceito kuhniano, mas o
termo no seu sentido familiar ou cotidiano, como sinônimo de modelo, ele
reconhece que grandes mudanças ocorreram na psicanálise quando Winnicott
tomou o relacionamento mãe-bebê como o modelo de referência para pensar a
situação analítica. Diz Phillips: “Winnicott fez derivar tudo, em sua obra, inclusive
uma teoria das origens da objetividade científica e uma revisão da psicanálise,
do seu paradigma da relação mãe-bebê” (2006 [1988], p. 5). No seu livro, ele
comenta muitas transformações que a proposta de Winnicott representa, quando
comparadas com as de Freud e de Melanie Klein. No entanto, ao não tomar o
termo paradigma no seu sentido técnico dado por Kuhn, não organiza nem
sistematiza essas diferenças da maneira como ocorreria caso usássemos o
conceito de Kuhn. Ao não fazê-lo, a questão da mudança de paradigma na
psicanálise não fica claramente colocada, uma vez que o uso do termo nesse
sentido coloquial não fornece parâmetros específicos para avaliar se outras
propostas de psicanalistas pós-freudianos também correspondem a mudanças
de paradigmas.
O segundo exemplo refere-se ao livro Les états limites. Nouveau
paradigma pour la psychanalyse? de 1999, com textos de André Green, Pierre
Fédida, Daniel Widlöcher, Catherine Chabert e Jean-Luc Donnet, precedidos de
uma introdução de Jacques André (organizador do livro). O nome de Kuhn não
foi citado uma única vez! Trata-se, evidentemente, de uma opção de não utilizar
o termo como um conceito específico, que tem uma história já estabelecida. As
razões dessa opção não foram apresentadas pelos autores.
Creio que tal uso é um desserviço aos estudos e às pesquisas sobre o
desenvolvimento e a história da psicanálise, dado que o termo, assim usado,
nada acrescenta às análises feitas, apenas dão-lhe um qualificativo; se fosse
mantido seu sentido técnico, levaria os autores a considerarem diferenciações e
comparações com o conceito kuhniano. O uso do termo paradigma como um
conceito faz dele um instrumento para observação e análise das teorias
psicanalíticas, enquanto que, noutro sentido, é apenas um adjetivo. Não creio
que os psicanalistas, talvez os mesmos que usam o termo paradigma sem
referência a Kuhn, aceitariam que os termos inconsciente ou sexualidade fossem
utilizados sem a devida referência a Freud e à psicanálise.
40
Circunscrevendo, agora, minha análise aos autores que procuram usar o
termo paradigma com base na definição kuhniana, indico alguns psicanalistas,
historiadores e filósofos da psicanálise que tentam aplicar o conceito de Kuhn a
seus estudos.
O artigo de Ricardo Bernardi, “The Role of Paradigmatic Determinants in
Psychoanalytic Understanding” (1988 pp. 341-55), foi uma tentativa explícita de
uso da ferramenta khuniana. Bernardi percebe que há dissonância entres as
diversas teorias psicanalíticas, seja no uso de termos comuns com sentidos
díspares &— tais como inconsciente, complexo de Édipo, ego &—, seja na
proposta de conceitos e termos intraduzíveis de uma teoria para outra &— tais
como posição, significante, elemento alfa. Ele considerou, então, que um
paradigma é um conjunto de crenças compartilhadas, autorreguladas
internamente, que orientam uma prática psicanalítica específica. Certamente,
esse é um dos sentidos do conceito, mas apenas em seu aspecto mais geral.
Permanecendo, assim, restrito a esse sentido, Bernardi considerará que há três
paradigmas na psicanálise: o de Freud, o de Klein e o de Lacan. Diz Bernardi:
No tocante à unidade e à diversidade do nosso campo, procuramos
mostrar que esses diferentes paradigmas são irredutíveis uns aos outros, pois
não há acordo entre eles nem quanto às premissas gerais (que não partilham),
nem quanto à experiência (que não veem do mesmo modo) [...]. Tal situação de
incomensurabilidade coloca questões interessantes, embora também
preocupantes. (1988, pp. 353-4)
Para exemplificar sua hipótese, ele tentará diferenciar os três paradigmas
caracterizando como Freud, Klein e Lacan entenderam o caso do Homem dos
Lobos. No entanto, não faz distinção entre os paradigmas, especificando as
características desses em termos das noções de exemplar, generalização
simbólica, partes metafísicas e valores. Ao proceder dessa maneira, Bernardi
comete ao menos dois erros, que tornam insustentável sua proposta: primeiro,
ele não usa o conceito de paradigma com todas as suas nuanças e
possibilidades de aplicação; segundo, ele não considera que o caso do Homem
dos Lobos já é uma narrativa e apreensão de dados que está sujeita às
determinações teóricas que tornaram possível a sua observação. Mezan (1990),
ao comentar o artigo de Bernardi, mostra a inconsistência das diferenciações
propostas, e isso sem precisar referir-se ao mal-uso do termo ou conceito de
41
paradigma, analisando apenas o resultado das análises de Bernardi. Assim, é
forçoso, pois, admitir que esse é um caso de uso parcial e inadequado do
conceito kuhniano de paradigma.
Uma proposta mais cuidadosa, dedicada ao emprego da noção kuhniana
de paradigma ao estudo da psicanálise, foi feita por Jay R. Greenberg e Stephen
A. Mitchell, no livro Relações objetais na teoria psicanalítica, de 1983. Eles
comentam que, num paradigma, segundo Kuhn, há diversos modelos, alguns
servindo simplesmente como metáforas ou artifícios heurísticos, enquanto outros
ocupam um papel mais profundo e penetrante na comunidade científica,
fornecendo “um arcabouço básico de orientação e crença, servindo como
objetos de compromisso metafísico” (Greenberg e Mitchell 1983, p. 12). É nessa
característica do paradigma, e só nessa, que eles se apoiam para
desenvolverem seu estudo:
É precisamente em torno deste tipo de modelo que a teorização
psicanalítica se organiza; assim, ao falar de modelos na teoria psicanalítica,
estamos empregando o termo para nos referirmos ao tipo de compromisso
metafísico que Kuhn descreve. Ao empregar sua abordagem, não estamos
necessariamente inferindo sua aplicabilidade como uma explicação geral de
todas as ciências, nem estamos entrando na complexa confusão filosófica que
se preocupa com as questões de objetividade, subjetividade e verificação de
teorias. Estamos sugerindo que a abordagem de Kuhn ao desenvolvimento de
idéias científicas e sua definição de modelos como compromissos metafísicos
têm grande aplicabilidade história do pensamento psicanalítico e constituem um
caminho útil de abordagem das diferentes estratégias na construção das teorias.
(Idem)
Eles propõem, então, que sejam considerados dois paradigmas para a
compreensão da psicanálise e sua história: o pulsional e o relacional. Cito-os:
A tensão mais significativa na história das ideias psicanalíticas tem sido a
dialética entre o modelo freudiano original, que toma como seu ponto de partida
as pulsões instintivas, e um amplo modelo alternativo iniciado no trabalho de
Fairbain e Sullivan, segundo a estrutura se desenvolve tão-somente a partir das
relações do indivíduo com outras pessoas. De acordo com isso, designamos o
modelo original de modelo estrutural-pulsional e a perspectiva alternativa de
modelo estrutural-relacional. Escolhemos estes termos como um meio de
42
iluminar as diferenças entre os modelos nos seus compromissos metafísicos
quanto ao subjacente conteúdo da mente. (Ibid., p. 13)
Em primeiro lugar, é necessário perguntar por que eles optam por reduzir
os paradigmas a apenas uma de suas características — o modelo metafísico —
, deixando de lado as outras, as quais são, para Kuhn, de suma importância para
a determinação de uma matriz disciplinar. Tal atitude corresponderia, por
exemplo, a analisar um rio apenas em função das pedras que dão sustentação
a seu leito. Não se pode dizer, nesse caso, que há erro, mas que é uma
perspectiva extremamente parcial e redutora. Além disso, pode-se, ainda,
colocar em discussão se a distinção entre a perspectiva das pulsões e a do
objeto constitui paradigmas específicos ou, ainda, se elas dizem respeito, com
rigor, aos aspectos metafísicos da psicanálise. Certamente, há aspectos
metafísicos associados a essas perspectivas, mas Greenberg e Mitchell acabam
por misturar aspectos empíricos e puramente teóricos, ou propriamente
metafísicos, quando propõem que essas duas posições sejam tomadas como
paradigmas. Convém, ainda, notar que Greenberg e Mitchell, nos seus
desenvolvimentos teóricos, não estão preocupados com os aspectos
epistemológicos e metodológicos da psicanálise, mas sim com a sua história.
Tudo isso faz com que seja possível afirmar que eles usaram apenas
parcialmente o conceito kuhniano de paradigma, apoiando-se neste para chamar
a atenção para um dos aspectos da estrutura conceitual e da história do
desenvolvimento das idéias na psicanálise. Acabam, portanto, deixando lacunas
significativas no que se refere à caracterização dos paradigmas na compreensão
epistemológica e metodológica da psicanálise, para uma compreensão da
história das idéias.
Joyce McDougall (2001 [1995]) notou que a noção de paradigma poderia
ser útil para a compreensão da psicanálise e de sua diversidade teórico-clínica:
O original livro de Thomas Kuhn (1962) The Structure of Scientific
Revolutions formula o importante conceito de “paradigma”, que define uma
constelação de crenças, técnicas e valores que são compartilhados por todos os
membros de uma dada comunidade científica. A questão de um desvio
paradigmático a propósito de nossa metapsicologia merece um estudo mais
profundo do que aquele que sou capaz de realizar no atual estágio de minha
reflexão. A pesquisa psicanalítica pode bem-estar num período de transição, a
43
partir do qual novos paradigmas vão emergir. Embora os criadores das principais
escolas do pensamento psicanalítico tenham trazido modificações importantes
aos conceitos básicos de Freud — algumas vezes estendendo seu pensamento;
outras, reduzindo-o em seu alcance —, na minha opinião não houve nenhum
verdadeiro desvio paradigmático (de acordo com a definição de Kuhn) na teoria
psicanalítica desde a publicação do trabalho da vida toda de Freud. (MacDougal
2001 [1995], p. 255).
Percebendo a importância dos exemplares como definidores dos
paradigmas, McDougall afirma, logo em seguida à sua consideração de que o
paradigma freudiano continua soberano, que o desenvolvimento da psicanálise
significa uma mudança no seu paradigma:
Entretanto, se considerarmos as categorias diagnósticas como fazendo
parte de um paradigma psicanalítico, então houve um “desvio”, uma vez que a
psicanálise originalmente estava destinada a estudar as chamadas neuroses
“clássicas” e não os estados fronteiriços, psicóticos, aditivos e psicossomáticos.
(Ibid.)
Reconhecendo que não domina totalmente esse instrumento teórico,
McDougall não se arrisca a continuar sua análise sobre a questão de saber se a
psicanálise tem um ou mais paradigmas e se há guerra entre eles. Essa
prudência no uso de um termo consagrado, porém, nem sempre foi adotada por
outros pesquisadores que se propuseram a falar sobre os paradigmas ou a
mudança de paradigmas na psicanálise.
Outro autor importante na história da psicanálise a referir-se a Kuhn foi
John Bowlby, psicanalista que teve sua pertinência ao campo da psicanálise
colocada em dúvida por seus colegas, em função de suas propostas serem
próximas aos estudos de etólogos. Ao desenvolver sua teoria do apego, ele
reconhece estar modificando a estrutura teórica da psicanálise, e se apoia em
Kuhn para comentar essa mudança estrutural:
De 1957, quando A Natureza do Laço da Criança à sua Mãe foi
inicialmente apresentado, até 1969, quando Apego apareceu, e até 1980, com a
publicação de Perda, me concentrei nesta tarefa [compreensão dos “instintos”
na psicanálise com base nos estudos de etologia animal, especialmente os de
Lorentz]. A estrutura conceitual resultante é configurada para acomodar todos os
fenômenos para os quais Freud chamou a atenção, por exemplo, relação de
44
amor, ansiedade de separação, luto, defesa, raiva, culpa, depressão, trauma,
separação emocional, períodos sensíveis no início da vida, e, então, oferecer
uma alternativa para a metapsicologia tradicional da psicanálise e ainda
adicionar uma outra variante às outras tantas variantes da teoria clínica agora
existente. Somente o tempo irá provar o sucesso de tais ideias. (Bowlby 1989
[1988], p. 38).
A referência a Kuhn, como tendo abandonado o termo “paradigma”,
substituindo-o pelo termo “estrutura conceitual”, corresponde a um erro de
Bowlby na compreensão dos comentários de Kuhn, talvez levado pelo título do
artigo de Kuhn, de 1974, “Reconsideração acerca dos paradigmas”, que pode
sugerir uma mudança que não se realizou, considerando-se a totalidade de sua
obra. Logo depois da segunda edição de seu livro (1970a), Kuhn, respondendo
a críticas, afirmou que o conceito de paradigma deve ser mantido, ainda que o
termo possa ser deixado de lado — “Este artigo foi, sobretudo, um esforço para
isolar, clarificar e levar a bom termo esses pontos essenciais. Se eles puderem
ver-se, seremos capazes de dispensar o termo ‘paradigma’, embora mantendo
o conceito que conduziu à sua introdução” (1974, pp. 381-2). Ao lermos essa
coletânea, na qual estão reunidos seus principais trabalhos desde A estrutura e,
especialmente, sua última entrevista, percebe-se que ele não substitui o termo
ou conceito de paradigma pelo de estrutura conceitual, mas sim procura
explicitar seu conceito-chave, dando-lhe sinônimos que completassem ou
dessem maior clareza ao que propusera inicialmente (cf. Kuhn 1970a,
“Posfácio”; e Kuhn 2000).
O que importa aqui não é a precisão conceitual de Bolwby, mas a
referência que ele fez a Kuhn e ao conceito de paradigma, como um apoio para
comentar a mudança estrutural que estaria propondo, opondo a psicanálise
tradicional (ou freudiana) à sua. Diz Bowlby:
Como Kuhn enfatizou, qualquer estrutura conceitual nova é difícil de ser
aprendida, especialmente por aqueles que já estão há muito tempo
familiarizados com outras anteriores. Descrevo, somente, algumas das muitas
dificuldades encontradas na compreensão da estrutura defendida. Uma delas é
que, ao invés de começar com uma síndrome clínica dos últimos anos e tentar
traçar suas origens retrospectivamente, comecei com uma classe de trauma
infantil e tentei traçar suas sequelas prospectivamente. Uma segunda dificuldade
45
é que, ao invés de começar com os pensamentos e sentimentos particulares de
um paciente, expressos no jogo ou na livre associação e tentar construir uma
teoria do desenvolvimento da personalidade partindo desses dados, comecei
com a observação do comportamento de crianças em certos tipos de situações
definidas, incluindo gerações dos sentimentos e pensamentos que elas
expressavam e tentei construir uma teoria do desenvolvimento da personalidade
partindo desses dados. Outras dificuldades surgiram em relação ao uso de
conceitos, tais como sistema de controle (ao invés de energia psíquica) e
caminho desenvolvimental (ao invés de fase libidinal) que, embora hoje em dia
estejam firmemente estabelecidos como conceitos-chave em todas as ciências
biológicas, ainda são estranhos para o pensamento corrente da maioria dos
psicólogos e clínicos. (Bolwby 1989 [1988], p. 38).
Fonte: www.fasdapsicanalise.com.br
46
Alguns psicanalistas considerarão, no entanto, que é inadequado o uso
dessa noção para o estudo da psicanálise ou, ainda, têm sérias dúvidas de que
esse seja um caminho frutífero. Renato Mezan, por exemplo, tem uma posição
que oscila entre uma recusa dessa aplicabilidade e a sua aceitação. Ao analisar
a proposta de Bernardi, aqui já comentada, Mezan (1990) argumenta que as
distinções entre paradigmas — referindo-se a Freud, Klein e Lacan —, para a
compreensão de modelos teóricos díspares na psicanálise, não são
sustentáveis:
Contudo, esta tensão [entre as divergências entre paradigmas e a sua
incomensurabilidade, apontando para direções de desenvolvimento opostas]
sugere que a própria noção de paradigma talvez seja pouco apropriada para
pensar a diversidade/unidade do campo psicanalítico. Repito que não se trata de
uma implicância lexical: um conceito tem um campo de abrangência específico,
e o conceito de paradigma, ao incluir certos aspectos e predicados, exclui
necessariamente outros [...]
Tudo parece indicar que a situação atual da psicanálise é mais complexa
do que se depreende do artigo de Bernardi, e, para esboçar esta complexidade,
o emprego do conceito de paradigma não é tão elucidativo quanto pareceria à
primeira vista. Por um lado, as divergências teóricas e clínicas, são grandes; por
outro, a afirmação de que a psicanálise é uma só se enraíza visivelmente em
algo mais do que diplomacia e boa vontade. (1990, pp. 49-50).
Conclui Mezan, então, que a noção de paradigma deveria mesmo ser
abandonada em prol de outros modos de análise epistemológica da psicanálise.
Cito-o:
[...] talvez convenha deixar completamente de lado a terminologia
sugerida por Kuhn para a história das ciências naturais, cedendo à evidência de
que a psicanálise não é uma ciência como as que comportam o uso desta noção,
e procurar discernir do modo mais exato possível como se organiza em
psicanálise a dispersão das perspectivas teórico-clínicas. Em outros termos,
talvez convenha elaborar uma epistemologia regional da psicanálise que faça
justiça ao tipo de pluralidade que se observa no nosso campo, que não é
equivalente nem ao verificado na esfera das ciências naturais, nem ao
proporcionado pela história da filosofia. (Ibid., p. 52)
47
Deve-se notar que a crítica de Mezan a Bernardi não focou a questão do
uso superficial ou inadequado do conceito de paradigma, mas sim os frutos
daquele uso.
Em 2002, Mezan explicita sua proposta para o estudo epistemológico da
psicanálise, apoiando-se num artigo ocasional de Gérard Lebrun, “L’idée
d’épistemologie” (1977). Mezan defende, então, que a melhor maneira de
abordar uma epistemologia da psicanálise é pensar na ideia
de epistemologia ou racionalidades regionais. Diz Mezan:
A investigação epistemológica se preocupa com o modo de produção dos
conceitos, com o funcionamento dos dispositivos teóricos estabelecidos pela
disciplina, com a forma pela qual ela constrói, válida ou refuta suas hipóteses.
Seu objetivo é, portanto, a teoria concebida como armação racional, enquanto o
objeto da teoria é o campo de fenômenos do qual ela deve dar conta. (Mezan
2002b, p. 437)
Mezan dirá, então, que “cada ciência constitui a sua própria racionalidade”
(p. 438), levando-o a considerar que cada disciplina deveria ser analisada como
um texto, cujo interesse epistemológico deve recair na análise de sua coerência
e funcionamentos internos, como se a epistemologia devesse ser uma
explicação apenas regional, solipsista, de um determinado sistema. Ele diz, por
exemplo: “O que faz então a epistemologia da química? Trata-a como um texto,
com um aparelho retórico que pode ser descrito e analisado” (p. 438). E, ainda,
nesse mesmo sentido: “É esse o tipo de estudo a que convém
determinar epistemologia: ele se interessa pelo funcionamento da cadeia de
enunciados da disciplina, mas também mostra por que ela exclui a formulação
de determinadas hipóteses” (p. 440). Com base nessa concepção, Mezan
desenvolve o que seria uma epistemologia dedicada ao esclarecimento do que
é a psicanálise. Claramente, nesse desenvolvimento, ele deixa de lado todas as
outras discussões relativas à epistemologia enquanto uma disciplina específica,
a qual não se quer regional e solipsista, mas tem como objetivo a universalidade
que respeita as singularidades.
A epistemologia como disciplina, no sentido clássico, pretende não só
esclarecer as leis e dinâmicas internas de determinado sistema teórico de uma
disciplina específica, mas também busca critérios que tornem possível a
avaliação dessas disciplinas, o julgamento entre o tipo de relações que cada
48
disciplina estabelece entre os fatos de que trata e as teorias que propõe para
tratar desses fatos, a compreensão do seu desenvolvimento não só em termos
de cada disciplina, mas também em função do conjunto mais amplo dos
conhecimentos que a ciência, a filosofia ou a arte produzem.
Mezan opta por não abordar as discussões com outros epistemólogos que
tomaram a psicanálise como objeto, tal como fez Popper, mas, reiterando sua
posição, que considera como inadequado o uso do conceito kuhniano de
paradigma, constrói sua argumentação apoiado neste ponto Lebrun de partida.
Nesse caminho, que coloca o tema dos paradigmas na psicanálise como
questão, seria necessário desenvolver uma discussão que cotejasse Lebrun e
Kuhn, no que se refere à proposta de considerar, para cada disciplina, uma
“epistemologia regional”. Kuhn, provavelmente, criticaria Lebrun por não
considerar que toda ciência é uma atividade de resolução de problemas
empíricos que compartilham certos princípios racionais e metodológicos. Para
Kuhn, ainda que existam especificidades em cada uma das matrizes
disciplinares (física, química, biologia, história, economia, etc.), todas essas
ciências (em estado maduro ou não) compartilham um mesmo horizonte
epistemológico, que as configuram como ciências e não como filosofia ou
literatura; ou seja, como práticas de resolução de problemas empíricos,
desenvolvidas segundo critérios racionais de observação e sistematização dos
dados empíricos, formulação de teorias, retorno aos fatos, etc. Isso não significa
dizer que há uma epistemologia única para todas as ciências, como também que
existam epistemologias regionais. Assim, para Kuhn, não teria sentido falar em
epistemologias regionais, ainda que seja possível colocar a questão de saber se
haveria uma epistemologia possível para as ciências humanas.
Essa é uma questão que fica aqui em aberto, dado que não corresponde
ao foco deste artigo; nesta análise, trata-se de explicitar a posição de Mezan
quanto ao uso da noção de paradigma na compreensão da psicanálise. Em
2006, após os desenvolvimentos anteriormente comentados, Mezan colocou-se
ao lado de Greenberg e Mitchell, afirmando:
A leitura do livro de Greenberg e Michell, somada à crítica de meu próprio
argumento para recusar a ideia dos paradigmas em psicanálise, sugeriu-me uma
outra solução para o problema: situá-lo num nível de abstração mais elevado do
que aquele em que os discerne o autor uruguaio [Bernardi]. (Mezan 2006, p. 55)
49
Mezan esclarece seu novo ponto de vista:
Creio ser mais interessante reservar o termo “paradigma” para esse grau
de abrangência e de abstração, ao invés de se falar, como sugere Bernardi, em
paradigmas kleiniano, freudiano e lacaniano. A vantagem dessa terminologia
consiste, a meu ver, em poder incluir no mesmo paradigma diversos autores e
mesmo diversas escolas, atentando mais para o parentesco das problemáticas
do que para o nome dos autores. Em minha opinião, conviria denominar o
segundo paradigma objetal, porque o termo “relações de objeto” vem sendo
empregado para designar um grupo de teorias mais específico, o dos
“independentes ingleses” (de Fairbain a Guntrip e a Winnicott, passando por
Balint e outros). (2006, pp. 59-60)
Mezan diz, ainda, que talvez Lacan devesse ser considerado como
representando mais um paradigma, além do pulsional e relacional propostos por
Greenberg e Mitchell: “Assim, considerarei, provisoriamente, que, com Lacan,
estamos diante de um terceiro paradigma, sem dúvida a partir da problemática
do real, muito provavelmente a partir do problemática do simbólico, e quase
certamente não na época do imaginário” (2006,
p. 61). Não cabe aqui analisar se essa hipótese de Mezan é ou não sustentável,
mas tão-somente indicar a direção de sua utilização do conceito de paradigma
na compreensão da história da psicanálise.
As críticas aqui feitas a Bernardi e a Greenberg e Mitchell, quanto ao uso
do conceito de Kuhn, se aplicam também a Mezan: o uso parcial do conceito de
paradigma deixa grandes lacunas na compreensão (que poderiam advir de um
uso mais pleno desse instrumental teórico) da história e da estrutura da
psicanálise, podendo mesmo levar a conclusões imprecisas. Para usar uma
analogia, é como usar um carro de cinco marchas, optando por andar sempre na
segunda marcha.
Um uso mais pleno das concepções de Kuhn para o estudo da psicanálise
tem sido desenvolvido por Zeljko Loparic. Talvez esse uso mais rigoroso se deva
à sua formação clássica como filósofo, acrescida de uma longa prática de ensino
e pesquisa de história e filosofia da ciência Ao verificar as publicações de
Loparic, nota-se que Kuhn sempre teve um papel central no desenvolvimento de
seu pensamento, desde o seu primeiro artigo, intitulado “Descartes segundo as
ordens das dificuldades”, publicado em 1975. Na sua tese de doutorado (1982),
50
especialmente na segunda parte, publicada como artigo em 1984, “Problem-
Solving and Theory Structure in Mach”, Kuhn tem um lugar decisivo na
articulação entre a postura de Mach e Kant, caracterizando a ciência no seu
ponto de vista heurístico, pondo em evidência a definição de ciência como prática
de resolução de problemas empíricos; o mesmo pode-se dizer de seu trabalho
posterior sobre Descartes, de 1988, “Paradigmas cartesianos”, no qual a filosofia
de Descartes foi analisada em termos de uma exposição da ordem dos
problemas, estabelecendo a relação entre hipóteses falsas e ciências
verdadeiras. Dedicando-se explicitamente a Freud, Loparic publicou seu artigo
“Resistências à psicanálise”, de 1985, no qual se refere à comunidade e
aos quebra-cabeças, optando por não citar explicitamente o nome de Kuhn, mas
utilizando-o de forma evidente.
Apesar de ter proposto, desde o início de seus estudos sobre a história e
a epistemologia da psicanálise, uma aplicabilidade do conceito de paradigma,
ele parece manter também uma determinada prudência: “Mesmo que a
psicanálise tradicional não possa ser considerada uma ciência factual madura,
parece-me frutífero olhar para ela na perspectiva kuhniana, procurando por
formas incipientes de um paradigma e por crises, seguidas de pesquisa
revolucionária” (2006, p. 23). Ao usar esse instrumento teórico, procurando
tornar mais operativo o uso desse conceito para o estudo da história e da
estrutura da psicanálise, altera um pouco a terminologia de Kuhn e desmembra
certas características do conceito: ao invés de falar em generalizações
simbólicas, tendo em vista que na psicanálise não há símbolos tais como na
física, ele propôs usar o termo generalizações-guia; no que se refere aos
aspectos metafísicos do paradigma, propôs separá-lo em modelos
metafísicos ou ontológicos e modelos heurísticos;9 e, no que se refere aos
valores, ele os caracterizou basicamente como sendo de dois tipos,
os teóricosou epistemológicos e práticos (cf. Loparic 2001). Assim, ao
apresentar uma compreensão da psicanálise de Freud, organizada por meio das
características que definem um paradigma, ele afirma:
[...] é possível dizer que o exemplar principal da disciplina criada pela
pesquisa revolucionária de Freud é o complexo de Édipo, a criança na cama da
mãe às voltas com os conflitos, potenciais geradores de neuroses, que estão
relacionadas à administração de pulsões sexuais em relações triangulares.
51
Fonte: psicanalisedemocracia.com.br
52
especial o reconhecimento do complexo de Édipo como um problema exemplar,
torna possível uma compreensão unitária dessas perspectivas, caracterizando-
as como expressões de um mesmo paradigma: da psicanálise tradicional. Diz
Loparic: “Considerando a importância do exemplar do Édipo na psicanálise de
Freud, convém chamar o seu paradigma de edípico ou triangular. Se levarmos
em conta a natureza sexual da situação edípica, a matriz disciplinar de Freud
pode ser designada como sexual” (Loparic 2006, p. 24).
Essa perspectiva para a análise da psicanálise, seja focada em Freud seja
noutros autores pós-freudianos, tem sido desenvolvida também por outros
autores que têm trabalhado com base nas propostas de Loparic, especialmente
os que compõem o Grupo de Pesquisa em Filosofia e Práticas Psicoterápicas
(GFPP) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-
SP, fundado em 1995. Outro resultado dessa maneira de estudar a psicanálise
e sua história é a consideração de que, com Winnicott, estamos ante uma
mudança profunda em cada uma das características que definem um paradigma,
o que o leva a afirmar, apoiado em Kuhn, que uma revoluçãoestá em andamento.
Nessa direção, diversas pesquisas têm reiterado a diferença entre as
propostas da psicanálise tradicional e as de Winnicott, as quais retomarei
sucintamente, tendo em vista que é um resultado expressivo do uso desse tipo
de instrumental teórico, tanto para a compreensão da história da psicanálise,
quanto para o estabelecimento de parâmetros que possam ajudar na
comunicação entre as diversas perspectivas teóricas em jogo. No que se refere
ao exemplar, para Winnicott, não se trata mais de considerar o Édipo, mas de
outro tipo de perspectiva para a compreensão das relações inter-humanas do
ponto de vista da psicanálise:
Em oposição a Freud, Winnicott não definiu os relacionamentos externos
como sexuais, nem como sociais ou mesmo psicológicos, mas em termos
“pessoais”, tomando como modelo as formas especiais de mutualidade e
íntímidade entre as mães e seus bebês. Dessa maneira, ele operou o Gestalt
switchpara o seu novo paradigma dual que eu chamo de “paradigma do bebê-
no-colo-da-mãe”. (Loparic 2001, p. 42)
O complexo de Édipo passa a ser, então, apenas um momento tardio do
processo de amadurecimento, quando a criança amadureceu o suficiente para
ser uma pessoa inteira que se relaciona com os outros como pessoa inteira.
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Dadas as mudanças estruturais reconhecíveis no paradigma
winnicottiano, fica perceptível também a questão do desenvolvimento da
psicanálise como uma ciência, que pode, inclusive, passar por crises e
revoluções sem que isso signifique a sua destruição, mas sim um
amadurecimento, e sem que para isso ela precise transformar-se em filosofia,
arte, literatura ou até mesmo um mero jogo retórico.
Tal como ocorreu na passagem da física newtoniana para a einsteiniana,
trata-se de uma expansão e redescrição da possibilidade de a psicanálise
resolver problemas empíricos. A proposta de Winnicott de fazer da psicanálise
uma ciência objetiva da natureza humana requer abandono de algumas partes
da velha teoria, redescrição de outras e novas formulações. A respeito disso,
escreve Loparic:
Que modificações seriam necessárias para assegurar o progresso da
psicanálise nos campos assinalados? Em primeiro lugar, era preciso abandonar
o paradigma edípico, baseado, conforme vimos, no papel estruturante do
complexo de Édipo e na teoria da sexualidade concebida como a teoria-guia da
psicanálise. O novo exemplar proposto por Winnicott é o bebê no colo da mãe,
que precisa crescer, isto é, constituir uma base para continuar existindo e
integrar-se numa unidade. A generalização-guiamais importante é a teoria do
amadurecimento pessoal, da qual a teoria da sexualidade é apenas uma parte.
Se supusermos que a mudança winnicottiana do paradigma freudiano
aconteceu, como diria Kuhn, de forma análoga a um Gestalt switch, ela não
podia limitar-se a pontos isolados, devendo abranger todo o campo teórico da
psicanálise. É fácil mostrar que, de fato, Winnicott também introduziu um
novo modelo ontológico do objeto de estudo da psicanálise, centrado no
conceito de tendência para a integração, para o relacionamento com pessoas e
coisas e para a parceria psicossomática. A sua metodologia preserva a tarefa de
verbalização do material transferencial, admitindo, contudo, apenas
interpretações baseadas na teoria do amadurecimento, sem recurso à
metapsicologia freudiana, e incluindo também o manejo da regressão à
dependência e do acting-out dos anti-sociais. O valor principal é a eliminação de
defesas endurecidas, paralisadoras do amadurecimento, e a facilitação para que
agora aconteça o que precisava ter acontecido, mas não aconteceu; bem como
que se junte o que permaneceu ou se tornou dissociado, ou mesmo cindido. O
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sofrimento decorrente de conflitos, internos ou externos, deixa de ser o
fundamental, fica em segundo plano, considerado parte da vida sadia. (Loparic
2006, pp. 314-5)
Ao reconhecer que entre paradigmas díspares (como o de Freud e o de
Winnicott) há elementos que se mantêm e outros que são redescritos, e que os
léxicos de um e outro não podem ser totalmente traduzíveis ou seja,
reconhecendo a tese da incomensurabilidade entre paradigmas, a análise
comparativa entre esses paradigmas (para comunicação e diálogo) não pode ser
feita buscando-se sinônimos, mas sim, indiretamente seja em termos das que
definem esses paradigmas, seja pelos problemas empíricos específicos que são
colocáveis em características ambos os casos (tais como a explicação do
surgimento do Eu no processo de desenvolvimento, a gênese da psicose, o
tratamento da atitude antissocial, etc.).
Uma figura já bem conhecida, comentada por Loparic, pode ajudar a
compreensão da passagem de um paradigma a outro:
Ao ver, ora pato ora coelho, mas não os dois ao mesmo tempo,
percebemos que há elementos que são os mesmos nas duas figuras ou
paradigmas, tomando aqui cada figura como um paradigma; mas, caso
fôssemos completar o desenho, seguiríamos caminhos totalmente diferentes se
temos a Gestalt de um coelho ou a de um pato em mente. Ao pensar na obra de
Freud e Winnicott, também estaríamos no mesmo caso em que haveria
elementos comuns, presentes nos dois paradigmas, tais como a sexualidade, o
complexo de Édipo, o inconsciente, etc.; mas estes recebem sentidos e
características diferentes em cada paradigma; mais ainda, há elementos que
surgem e outros que desaparecem ao completarmos essas gestalten com base
em elementos comuns.
Mesmo que, do ponto de vista de Loparic, o paradigma da psicanálise
tradicional possa incluir Klein, Bion e Lacan, convém notar que estes têm léxicos
diferentes. Ainda que possam haver dúvidas se cada um desses autores propõe
ou não um novo paradigma, caberia o mesmo tipo de estudo para uma análise
comparativa, tal como indicada nos parágrafos anteriores.
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Fonte: pt.slideshare.net
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abandonar o nicho da psicanálise como ciência para habitar outro lugar. Essa
atitude, porém, não resolve o problema, pois noutros nichos este será
recolocado: se a psicanálise, para um determinado grupo, pretende-se como
filosofia ou como literatura, ela terá, então, que discutir ou responder aos critérios
de existência daquele habitat. Ao que tudo indica, os filósofos não parecem
propensos a afrouxar suas convicções identitárias (estabelecidas a custo de tão
longas disputas, com imenso dispêndio de trabalho intelectual) para aceitar a
psicanálise como uma corrente filosófica. E os literatos também, talvez de uma
maneira menos ostensiva (dado que isso não parece ser necessário), não julgam
a psicanálise como mais um estilo literário ou, se a julgam, não a têm em boa
conta como literatura.
Sempre há, no entanto, a possibilidade de propor a psicanálise como um
novo tipo de conhecimento, uma nova forma de saber que não é uma ciência,
nem uma filosofia, nem religião, nem arte, nem ideologia, mas um não sei que
inominável ou vagamente nominável, como uma prática de entretenimento, um
passatempo, um lazer, um jogo, uma forma de bate-papo interessante, mas cujo
objetivo não é o de nenhuma das formas clássicas do conhecimento
anteriormente descritas. Tudo isso é possível, mas não se deveria vender gato
por lebre, cabendo a seus praticantes explicitar o que dizem e o que vendem.
Traçado esse quadro geral, e retomando uma análise da consistência das
posições de Kuhn no que se refere à compreensão da constituição e da história
das ciências, também é possível objetar que não é ainda possível avaliar se há
ou não revoluções em andamento na psicanálise, e que, até mesmo nas outras
ciências mais maduras, isso não é assim tão evidente; e que só um futuro
distante poderia decidir se Kuhn tem razão quanto às revoluções, etc.
No entanto, mesmo que Kuhn esteja enganado quanto à consideração de
que a história e o desenvolvimento da ciência e das disciplinas do saber em geral
ocorram em termos da constituição de paradigmas e seus consequentes
enfrentamentos, com crises e revoluções, isso não tornaria sem interesse o uso
do seu conceito de paradigma para a compreensão de uma determinada matriz
teórica, pois possibilita formular perguntas importantes para entender uma
determinada prática. Ao fazermos as perguntas sobre as características que
definem um paradigma ou uma determinada matriz disciplinar a saber, repito:
se há um problema exemplar que serve de referência, se há e qual é a
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generalização aplicável a todos os casos, qual é o modelo ontológico que lhe
serve de fundamento, quais seus modelos heurísticos, e quais seus valores
epistemológicos e metodológicos, estamos certamente bem encaminhados na
compreensão do que é, como funciona e o que procura uma determinada
disciplina específica do saber, no caso a psicanálise nas suas diversas
propostas.
O uso da noção de paradigma no seu sentido mais pleno e rigoroso, tal
como Kuhn a formulou, parece tornar possível colocar os problemas de
comunicação e de desenvolvimento da psicanálise de uma maneira que possam
contribuir para que a crise de comunicação atual e o enfrentamento entre as
diversas propostas de teorização na psicanálise encontrem um termo de diálogo,
buscando o desenvolvimento dessa disciplina.7
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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