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ANTONIO COLBACCHINI E A

ETNOGRAFIA SALESIANA*
Paula Montero

O vasto problema das relações histórico- de fôlego – a produção material e simbólica da


políticas entre índios e missionários cristãos tem alteridade cultural. Se toda cultura formula um
como pano de fundo uma questão antropológica modo de pensar o outro – seja como inimigo, sel-
vagem, bárbaro, seja como igual – refletir sobre a
atividade missionária é compreender o modo
* Este texto é parte de uma pesquisa maior, ainda como ela construiu, historicamente, uma perspec-
em andamento, na qual se pretende analisar as tiva antropológica particular da diversidade cul-
etnografias salesianas sobre os Bororo, Xavante e tural. Com efeito, em todos os continentes em
os povos do Uapés. O quadro teórico geral que lhe
que ela se desenvolveu, e em todas as épocas,
dá sustentação vem sendo elaborado no grupo de
essa atividade foi constantemente pautada pelo
pesquisa sobre missões, coordenado por mim e
objetivo de produzir passagens materiais e sim-
sediado no Cebrap e na USP. Trata-se de com-
bólicas entre um “outro” irredutível em suas dife-
preender o trabalho missionário no contexto de
renças para um “outro” pensável e universalizá-
processos de mediação políticos e simbólicos. Os
vel. Neste esforço produziu uma obra etnográfica
principais resultados serão publicados no volume
considerável, fonte de inspiração para histori-
Deus na aldeia: missionários, índios e mediação
adores, lingüistas e antropólogos.
cultural (Globo, 2006).
Neste trabalho tomarei como objeto de
minha reflexão as etnografias missionárias dos
padres salesianos, em particular do Padre Antonio
Artigo recebido em março/2006 Colbacchini, produzida entre os anos de 1920 e
Aprovado em dezembro/2006 1930 no Brasil, sobre os índios Bororo do Mato

RBCS Vol. 22 nº. 64 junho/2007


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Grosso.1 A questão principal que move o exame A Congregação Salesiana tinha, naquela
desta literatura etnográfica é compreender a es- época, uma história recente. Criada em 1859 por
pecificidade e a particularidade de sua construção Dom Bosco em um contexto europeu de cres-
textual. Para tanto, será preciso revelar também cente secularização, escolheu uma forma de
seus interlocutores intrínsecos no contexto históri- piedade laica e especializou-se em educar jovens
co particular em que foi produzida. Se o operários de origem rural e dar assistência aos
empreendimento for bem-sucedido, compreen- enfermos. Nesse período, a industriosa cidade de
deremos os mecanismos simbólicos e políticos Turim sofria a pressão social da população pobre
que são postos em ação em um determinado de imigrantes rurais recentes, atraídos pelo seu
momento para produzir uma determinada ima- dinamismo industrial. Essas massas de desempre-
gem do índio e construir – para a sociedade brasi- gados urbanos que viviam em condições violen-
leira – uma visão convincente e assimilável sobre tas eram percebidas como uma ameaça à ordem
seu modo de vida e sobre o que poderia ser social. Como em tantas outras experiências desse
entendido como sua “cultura”. tipo ao longo do século XIX, protestantes e católi-
Como base desta análise, proponho, em cos contribuíram para desenvolver um interesse
primeiro lugar, um breve esboço do contexto humanitário que, em casos como o dos metodis-
sociopolítico da época em que se inicia a ativi- tas analisados por Jean e John Comaroff (1991),
dade missionária salesiana no Brasil. concorreu para a construção de uma visão
não conformista das relações instauradas pelo
industrialismo. No caso particular da vocação
O projeto salesiano no Brasil reformista salesiana, ela voltou seus esforços
filantrópicos para o cuidado dos jovens, sobre-
Os Congregados de Dom Bosco chegaram tudo os mais pobres, percebidos como abando-
ao Brasil no final do Império de D. Pedro II, em nados e em situação de risco. Seu objetivo maior
1883, com o beneplácito do Imperador.2 Embora era o de integrá-los às novas formas de civilidade
ainda prevalecesse o trabalho escravo, idéias pro- urbana. Trabalhando segundo um método orato-
gressistas começavam a mover-se em torno dos riano, no qual se promoviam diversões variadas
grandes plantadores de café. O impacto na im- para meninos de todas as idades nos dias santos
prensa da primeira exposição industrial, inaugu- e aos domingos, os padres procuravam progressi-
rada na corte em 1881, indica que as idéias de vamente retirá-los das ruas, orientando seus rela-
progresso e modernidade, que vinham associadas cionamentos sociais. A esse estilo pedagógico,
à introdução de máquinas industriais na manu- voltado inteiramente para a gestão do cotidiano
fatura têxtil e cafeeira, já começavam a sensibi- mediante atividades continuadas – recreio, músi-
lizar as elites proprietárias. As idéias liberais e ca, ginástica, teatro –, Dom Bosco dera o nome de
republicanas enfraqueciam o regime; ainda assim, “sistema preventivo”. Assim, ao lado dos inter-
alguns dos objetivos que o imperador tinha em natos e das escolas profissionalizantes, os ora-
mente quando pediu ao Vaticano a vinda dos tórios pretendiam gerenciar de maneira mais
salesianos não perderam sua premência com a completa e sistemática possível o tempo do alu-
República: 1) oferecer uma boa educação para os no, fazendo-o abandonar a vagabundagem e o
filhos dessa elite modernizadora e uma profissão perigo das más companhias. Com os internatos
para os jovens migrantes urbanos; 2) assegurar, suprimia-se a promiscuidade doméstica dos mais
com a ajuda dos missionários, a “pacificação” dos pobres; com as escolas de artes e ofícios garantia-
“selvagens” para permitir a introdução de ativi- se uma profissão; com os oratórios festivos ofere-
dades econômicas produtivas nos territórios do ciam-se atividades para o tempo livre.
interior do país. Foi, portanto, com esse modelo de civilidade
Mas quem eram os salesianos e por que essa urbana moderna e de formação integral da juven-
congregação foi escolhida pelo governo brasileiro tude que a congregação chegou ao Brasil. En-
para realizar esse empreendimento naquele controu aqui uma classe burguesa liberal em fase
momento? de afirmação, para a qual os liceus pareciam um
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instrumento importante na tarefa de suprimir os homens/natureza que, por meio do valor atribuí-
hábitos ainda rústicos da juventude, incutir-lhes do à técnica e ao trabalho humano, estendeu o
boas maneiras e desenvolver neles os valores plano da história (isto é, as relações propriamente
urbanos. Para o trato com esta camada jovem, humanas) para o mundo natural. Assim, a obra
os salesianos desenvolveram um estilo cordial missionária desse período teve que enfrentar um
que se desenvolvia longe do púlpito, do confes- novo dilema: em contraposição ao positivismo,
sionário e da igreja, abandonando o padrão deveria ressacralizar a natureza (e a razão), recu-
estilizado do clérigo tradicional. Assim, apesar da perando no selvagem a “razão natural” que com-
resistência inicial dos liberais, que percebiam na preende o mundo natural como obra divina; em
chegada dos salesianos – caracterizados como contraposição à “religião natural” dos indígenas
versão atualizada do jesuitismo – um fortaleci- que adoram a natureza, deveria civilizá-la, de
mento do clericalismo no país, os colégios e os modo a torná-la parte da ordem social.
institutos multiplicavam-se nos principais pólos A rápida expansão da congregação salesiana
políticos e econômicos. No mesmo ano de sua na Europa e os bons resultados que obtiveram em
chegada, 1883, fundam o Colégio Santa Rosa em sua primeira incursão na Patagônia argentina
Niterói, Rio de Janeiro, e nos anos seguintes qua- indicam que, pelo menos aos olhos das autori-
tro novos liceus no estado de São Paulo. Em 1895, dades de alguns países da América Latina, tal
o presidente da República Prudente de Morais, como o Brasil, o Equador, o Chile e a própria
em carta endereçada a Dom Lasagna, então Argentina, ela parecia ter resolvido adequada-
responsável pela obra de Dom Bosco no Brasil, mente esse dilema ao associar os princípios do
expressa seu apreço pelos institutos, vendo neles catolicismo aos benefícios do cientificismo repre-
um instrumento para a transformação dos filhos sentados, então, pelo “vapor e a eletricidade”
das classes pobres “em cidadãos úteis à pátria”, (Botasso, 1991, p. 82).
uma vez que a “escola do trabalho é uma das Mas a obra missionária com as populações
importantes virtudes civis” (Apud Azzi, 2000). indígenas do território brasileiro, por circunstân-
O propósito salesiano de educação de cias políticas, esperou quase uma década. No
jovens, por meio de uma formação integral, com- plano da geopolítica mundial e sob influência do
partilhava a mentalidade então corrente que tinha Papa Pio IX, a Igreja Católica estimulava a cen-
como auto-evidente a universalidade da civiliza- tralização do comando da Igreja em Roma. No
ção como condição humana. Nesse sentido, es- Brasil, parte expressiva do episcopado percebia
tender o mesmo método pedagógico construído a nessa reafirmação da autoridade romana um re-
partir de uma experiência urbana para popu- forço de sua própria autoridade contra as peias
lações ainda “selvagens”, isto é, habitantes das impostas pelo regime do Padroado ainda vigente,
florestas e, portanto, privados de cultura e de que submetia a condução da vida da Igreja aos
civis, parecia não oferecer maiores dificuldades, desígnios do Imperador. Com o apoio da Cúria,
ao menos no plano das idéias. Como se sabe, o bispos brasileiros começam a solicitar a vinda de
fundamento clássico da missão é a construção de congregações religiosas fiéis a Roma. Tal é o caso,
uma civitas Dei neste mundo. A “selva” consti- por exemplo, do bispo Dom Macedo Costa do
tuiu-se no imaginário cristão moderno o con- Pará,3 que formaliza um pedido a Dom Bosco em
traponto à cidade/civilização cristã (Gasbarro, 1881, de envio de salesianos aptos a formar o
2006). Nos séculos XIX e XX, essa grade de leitu- clero local para o preenchimento de “quarenta
ra ainda está em operação na obra missionária: os paróquias vacantes e centenas de tribos selvagens
salesianos descrevem suas missões como “cidades a converter”, e do bispo de Cuiabá, Dom Carlos
luxuosas [...] obra definitiva, que não envergonha D’Amour, interessado na reforma do clero local
as realizações futuras dos tempos próximos [...] (Azzi, 2000, p. 69).
obra de conforto e bem-estar para os povos a Embora obedientes ao Papa, que em 1882
catequizar e atrair” (Nas fronteiras do Brasil, autoriza oficialmente sua entrada no Brasil, os
1950). O elemento novo nessa gramática é a salesianos têm um cálculo próprio com relação a
introdução do cientificismo no plano das relações seu projeto de expansão. Já instalados na Ar-
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gentina e no Uruguai, preferiam criar no Brasil Aproveitando a escuridão da noite, levaram con-
uma base menos isolada do que as dioceses do sigo as ferramentas que haviam recebido para tra-
Pará e Cuiabá e que, embora submetida à autori- balhar. Roubaram também, no campo dos reve-
dade episcopal como exigia Leão XIII, lhes garan- rendos salesianos, grande quantidades de milho
(Apud Azzi, p. 278).
tisse autonomia de ação e decidido apoio
econômico e político. Começaram, pois, pelo
colégio Santa Rosa na diocese do Rio de Janeiro, Fica aqui evidente que a irmã aceita as
Niterói. relações de autoridade do chefe sobre sua família
Quando Dom Lasagna é sagrado bispo em e dependentes e trata sua “deserção” como uma
1893, com a característica de prelado missionário, decisão com a qual deve consentir. Para descrevê-
a questão indígena começa a se tornar uma pri- la prefere o verbo “ausentaram-se” em vez de
oridade para a congregação no Brasil. Já tendo o “fugiram”. Suas críticas recaem sobre o entendi-
lastro de uma década de atuação bem-sucedida mento da propriedade das ferramentas e do mi-
no Rio de Janeiro e em São Paulo, ela se instala lho. Usa a imagem da “escuridão da noite” para
em Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso, marcar o que ela percebe como ilicitudes indi-
para tornar-se um ponto de apoio da atividade cadas pelos verbos de negatividade crescente:
missionária com os índios do sertão. Tendo como “levar” e, em seguida, “roubar”. As ferramentas
modelo os liceus de artes e ofícios, a missão pro- são em parte do índio – portanto não foram
jetava reunir os índios em torno de uma escola roubadas –, mas o são apenas na medida em que
agrícola bem equipada, que fizesse do trabalho ele aceita trabalhar: foram-lhes doadas apenas
com a terra o centro de sua autonomia e pros- nessa condição, portanto o que houve aqui foi o
peridade, bem como o meio de adestramento do rompimento de um acordo. Já a apropriação indi-
corpo e do espírito dos nativos. vidual do trabalho coletivo é claramente qualifi-
Com esse projeto em mente, para a fundação cada como roubo – o milho é dos salesianos
da colônia em Tachos, em 1902, o instituto con- responsáveis no que diz respeito às regras de sua
seguiu do governo provincial 4 mil ha de terra e distribuição e troca. A falta neste caso é mais
uma verba anual. Assim, desde o princípio o tra- grave porque indica uma confusão de códigos: o
balho catequético foi pensado em termos de índio tratara como objeto de coleta, dom divino,
“colônias agrícolas” (nome que as missões rece- o que fora produzido pelo trabalho humano.
biam) voltadas para uma agricultura moderna, Mas vejamos a seguir qual o contexto políti-
racionalizada, apoiada em princípios científicos de co mais amplo, dentro do qual procura se desen-
produtividade e na mais sofisticada tecnologia volver esse tipo de projeto missionário.
disponível. Podemos, pois, perceber claramente
que a relação de interculturalidade que então se
inicia tem como condições sociológicas um com-
A missão salesiana no contexto
plexo sistema de produção e circulação de bens e político governamental
alimentos, no qual o nativo é considerado parte
integrante, como aprendiz e produtor, e que entra Com a guerra contra o Paraguai (1865-1870)
em relações de conflito e aliança com sistemas ficou patente para o governo a vulnerabilidade
fundados na caça e na coleta. Nesta produção de das fronteiras do Mato Grosso. Em 1888, o gover-
vínculos recíprocos está em jogo um entendimen- no imperial criou a “Comissão Construtora de
to sobre a forma de apropriação dos bens, do uso Linhas Telegráficas” de modo a unir, pelo telé-
do tempo e do território. O relato de uma irmã grafo, o centro político da nação às fronteiras do
desta colônia de 1903 expressa bem a natureza Paraguai e da Bolívia. Dois anos mais tarde, uma
dessa disputa. Anota a irmã em sua crônica: comissão chefiada pelo major Antonio Ernesto
Gomes Carneiro, secundado pelo então alferes-
O cacique e o Bari Emanuel, com sua família de aluno Cândido Mariano da Silva Rondon, iniciava
sete pessoas, e alguns índios que estavam sob sua uma linha que atravessava 600km no sertão
dependência, ausentaram-se desta colônia. habitado pelos Bororo. Durante dois anos a
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comissão realizou seu trabalho observado de eram punidos. Rapidamente, a convivência de-
perto pelos índios. Os trabalhos posteriores de generou para bebedeiras, sexo e violência entre
conservação e expansão de novas linhas ficaram índios e soldados.4 Para controlar a situação, o
a cargo de Rondon que, ao longo de dez anos de governo cede a colônia aos salesianos em 1895.
atividade, estabeleceu uma relação amistosa e de Mas ao procurarem adequá-la ao seu modelo de
colaboração com os índios, aprendendo sua lín- colônia agrícola, enfrentaram a resistência dos
gua e tornando-se seu defensor (Gagliardi, 1989, Bororo, então pouco dispostos a abrir mão do
pp. 140-148). Veremos adiante que Rondon álcool, a trabalhar nos campos e a abandonar
acabou por representar um modelo militar de pa- seus ritos funerários. Em menos de quatro anos,
cificação secular e positivista que, de certo modo, os Bororo despovoaram a colônia; o novo presi-
se contrapunha ao projeto salesiano. dente da província Antonio Correa da Costa, dis-
Da parte do governo provincial de Mato pensou os serviços dos salesianos e realocou a
Grosso, a premência era integrar em um sistema administração da colônia a seus aliados políticos
econômico estável a extensa região que separa a (Marcigaglia, 1955).
capital do estado, Cuiabá, à capital do estado vi- Diante do fracasso dessa primeira tentativa
zinho, Goiânia (Vangelista, 1996). Para tanto, era missionária apoiada pelo governo, Dom Antonio
necessário liberar o território do vale do rio São Malan encarrega padre Balzola a procurar um
Lourenço da presença dos índios Bororo que, novo campo de trabalho independente, que sai
ainda na década de 1880, estavam em perma- em expedição, em 1901, pelo norte do estado de
nente conflito com fazendeiros e colonos. Em Mato Grosso, entre o rio Araguaia e o rio das
1887, o capitão Antonio José Duarte conseguira Mortes, região muito freqüentada pelos índios,
estabelecer relações pacíficas com alguns chefes onde funda no ano seguinte a sua primeira colô-
de diversas aldeias Bororo do rio São Lourenço, nia: Sagrado Coração. Em 1905, padre Malan fun-
os quais, guiados pelo famoso cacique Mugúio da uma nova colônia no rio das Garças – Colônia
Kúri, ingressam solenemente na cidade de Cuiabá Imaculada (fechada em 1918) e, no ano seguinte,
e entregam as armas ao capitão (Bordignon, funda uma terceira colônia, Sangradouro, pensa-
1986). Inspirado nos ideais de integração dos da para ser ponto de apoio na comunicação entre
índios ao sistema econômico nacional de José a capital, Cuiabá, e a colônia do Sagrado Coração.
Bonifácio, o governo funda, então, duas colônias Em 1907, com a finalidade de formação de
militares: Teresa Cristina, na confluência dos rios noviços, inclusive indígenas, ele também funda a
Prata e São Lourenço e Santa Isabel, entre o São casa de Palmeira que, no início, contava com
Lourenço e Piqueri (Viertler, 1972, 1982). A expe- oitenta índios5 (Turuzzi, 1985). De um modo
riência não foi bem-sucedida. De uma população geral, é possível afirmar que o processo de im-
geral de cerca de 3 mil índios, a vila militar Teresa plantação do sistema missionário salesiano no
Cristina abrigava em 1888 uma aldeia de trezentos Mato Grosso, apesar de uma grave crise de meios
bororo que viviam de modo semi-independente e pessoal entre 1918 e 1932, concluiu e consoli-
(Castilho, 2000, p. 44). Mais trinta aldeamentos dou-se nos anos de 1950 (Corazza, s.d.). Na déca-
instalaram-se nos seus arredores. Prevalecia ape- da de 1930, eles já recebiam do governo brasileiro
nas o princípio militar da “pacificação”, que re- a metade de todas as subvenções destinadas às
dundava, na prática, em não estimular conflitos instituições missionárias católicas. O formato de
com os índios (Viertler, 1982, p. 64). Faltava ainda sua institucionalização, inspirado no modelo das
à ação militar um modelo de integração. Em razão antigas reduções jesuíticas, não se modificou até
disso, a convivência na colônia torna-se progres- o Concílio Vaticano II, quando começa a perder
sivamente insuportável: os soldados deviam pro- grande parte de seu vigor e influência. O impacto
ver a alimentação desses índios, o que significava da crise ideológica dos anos de 1970, que colocou
que recaía sobre eles todo o esforço agrícola. A em xeque mate o paradigma tridentino de missão,
cachaça era distribuída gratuitamente (enquanto os obrigou a repensar inteiramente suas relações
os soldados tinham que pagá-la) e os “roubos”, com a política brasileira e com os índios. Mas
brigas e “homicídios” cometidos pelos índios não nesse processo, que recebeu o nome de “teologia
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da inculturação”, o saber etnológico acumulado se pode ferir adversários, não compreender uma
no passado foi importante, diria mesmo estratégi- situação histórica” (Paz, 1989, p. 26). Assim, a
co, para a construção dos direitos políticos e ter- análise das estruturas de significado que inter-
ritoriais dos índios neste período mais recente. medeiam as relações depende da historicização
Vimos, pois, que o encontro entre mis- das categorias teológico-antropológicas utilizadas
sionários salesianos e índios Bororo se deu em um pelos missionários e, também, não pode pres-
contexto determinado, de um lado, pelo projeto do cindir de uma atenção particular para o modo
Estado de ocupar política e economicamente o ter- como “a cultura Bororo” foi construída nessa
ritório em nome de sua soberania e, de outro, pelo relação por quase meio século. Veremos adiante
projeto missionário de conversão da juventude que as etnografias salesianas foram um poderoso
indígena por meio da virtude do trabalho,6 do con- instrumento dessa edificação. Mas, tendo em vista
trole do tempo e dos corpos em uma obra que vai que ela se fez em relação, seria preciso visualizar
muito além da exploração puramente econômica. minimamente com quem foi produzida e a partir
Mas como os índios Bororo entraram nessa de que tipo de vínculos.
equação? Quais as estratégias possíveis nesse con- Pode-se afirmar, em linhas gerais, que os
texto? Vejamos se é possível, com os poucos dados diversos grupos indígenas em suas relações com
de que dispomos, avançar um pouco no esclareci- o mundo colonial tiveram, historicamente, três
mento dos subterfúgios por eles utilizados para grandes alternativas: tentar uma vida indepen-
responder a essas determinações. dente, o mais longe possível do contato; tentar
uma aliança militar ou uma aliança com os co-
lonos; tentar um aldeamento no sistema mis-
sionário. Diferentes grupos domésticos Bororo
As estratégias bororo ensaiaram, em momentos distintos, cada uma
dessas três alternativas. É importante ressaltar
Grande parte da literatura sobre o contato,
também que, se levarmos em conta os dados
por não incluir na sua perspectiva de análise as
disponíveis na literatura, embora muito fragmen-
estruturas de significado que intermedeiam as re- tados e muitas vezes contraditórios, os variados
lações e seu papel na construção do mundo indí- agrupamentos indígenas não mantinham relações
gena, tende a avaliar a ação missionária com base sociais estáveis e recorrentes; no mais das vezes
em parâmetros ideológicos construídos na segun- viviam vidas independentes, segundo os nichos
da metade do século XX. Essa grade de leitura ecológicos em que habitavam, e apresentavam
não é capaz de apreender a densidade histórica características diferenciadas no que diz respeito à
das categorias antropológicas de “bárbaro” e “sel- pintura corporal, ao uso de matérias primas e a
vagem”, atribuindo-lhes o sentido depreciativo do padrões de aldeamento e de enterro (Viertler,
senso comum contemporâneo. Ao não ter em 1982, p. 20). Além disso, grande parte da popu-
conta o caráter construtivista de códigos de inter- lação Bororo – aquela que depois de décadas de
culturalidade, tais como o demônio – que como conflito armado buscou uma vida independente,
bem o demonstra Gasbarro (2006) é um instru- longe do contato com os colonos e atravessou
mento de reflexão sobre a diferença e de con- ainda no século XVIII o rio Paraguai em direção
strução de novas civilizações –, imputa aos sale- a atual Bolívia – parece ter desaparecido, mistu-
sianos o uso dessas imagens com o intuito rando-se a outras populações tribais. A parte dos
reducionista de apenas legitimar seu domínio e Bororo que pode ser reconhecida foi aquela que,
tutela dos índios. Ao não compreender o valor de um modo ou de outro, estabeleceu um modus
heurístico da oposição civilização versus barbárie, vivendi com o mundo colonial do século XIX.
percebe o horizonte civilizatório da missão como Esta porção também estava dividida em inúmeros
uma imposição arbitrária e ilusória, porque de grupos independentes entre si.7
fato apenas anula a cultura indígena. A colonização desse imenso território de
Parafraseando Octavio Paz, poderíamos cerca de 350 mil km se fez em duas grandes
dizer que o termo evangelização se converteu, etapas:
nesses casos, em um projétil. Ora, “com projéteis
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a) Ao longo do século XIX ocorre a expansão terríveis vinganças (Viertler, 1982, p. 67; Bor-
das grandes fazendas de gado sobre o oeste dignon, 1986, p. 28; Albisetti, 1962, p. 14).
do território Bororo na região do norte do
Pantanal São Lourenço, entre os rios Pa-
Ao final do século XIX, o decréscimo popu-
raguai e São Lourenço, ao sul da cidade de
lacional, o aumento da pressão ocupacional sobre
São Luiz de Cáceres. Após anos de conflitos,
seus territórios e o desequilíbrio das armas
os grupos Bororo remanescentes que a elas
estimulam alguns chefes a arriscar novas tentati-
foram incorporados mantiveram com os pro-
vas de aliança. Ela foi empreendida a partir da ini-
prietários relações de troca semi-indepen-
ciativa de chefes de clãs que, neste tipo de
dentes: viviam em suas aldeias, caçavam
sociedade, gozam de grande autonomia deci-
durante as chuvas, recebiam aguardente ou
sória.9 Alguns deles conviveram nas colônias
dinheiro pelo trabalho e presente em troca
militares, experiência esta que, como vimos, foi
de suas mulheres. Ao final do século, eles
rapidamente abortada. Entre 1892 e 1898, outros
estavam dispersos e miscigenados à popu-
Bororo entram em contatos esporádicos com o
lação local (Viertler, 1982, pp. 48-55).
tenente Cândido Mariano da Silva Rondon,
b) A região leste, entre Cuiabá e Goiás, começa responsável pelo distrito telegráfico de Mato
a ser penetrada já em meados do século, e Grosso Em 1901, o grande chefe Cadete começa
permanece um cenário de contínuas bata- a freqüentar em pequenas turmas os acampa-
lhas, perseguições e emboscadas com mentos de Rondon. A mando de Cadete, outros
grande perda de vidas de parte a parte até a dois chefes clânicos, acompanhados de seu grupo
década de 1880, quando se dá, em 1885, a doméstico, incorporaram-se à comissão, fazendo
deposição de armas de uma aldeia de qua- a derrubada e a limpeza da área em troca de ali-
trocentos Bororo do rio São Lourenço ao mentos por mais de um ano. Esse tipo de rela-
alferes Antonio José Duarte. Logo depois, cionamento, que supunha troca de trabalho por
uma segunda aldeia de 68 pessoas também presentes e reconhecimento legal do direito de
aderiu à aliança. A intenção era manter com propriedade dos índios sobre a terra, constituiu
eles um estado de contínua abundância de não só as bases de um humanismo positivista
meios de subsistência a fim de entabular muito influente na ideologia civilizatória republi-
relações amistosas e duradouras que permi- cana, mas também o fundamento do Sistema de
tissem o avanço do trabalho dos colonos. Proteção do Índio (SPI), criado pelo governo fe-
Mas o principal problema então era manter deral em 1910.
a regularidade deste provimento para uma Quando o primeiro grupo de 140 índios
população de “selvagens” estimada em 10 Bororo, chefiado por sete chefes clânicos e dois
mil pessoas, contando apenas com os meios Bari (xamãs), se arrancham nas instalações da
escassos enviados pelo governo (Idem, pp. Colônia Salesiana de Tachos, a aldeia estava fra-
62-63). Na verdade, a colônia militar não foi cionada:10 apenas uma metade (Tugarege), ainda
capaz de impedir a eclosão de novos confli- assim sem a adesão de um de seus clãs (Páiowe),
tos: em 1890 os Bororo assassinam a família aceitou viver na missão. A outra metade (Ecerae)
de Manuel Inácio em vingança pelo envene- reuniu-se com uma aldeia do alto Araguaia. A
namento de duzentos dos seus; no ano metade Tugarege instalou-se na missão à maneira
seguinte, matam três soldados do destaca- de um território clânico, colocando em operação
mento da recém-inaugurada linha telegráfi- o mesmo código utilizado na ocupação de seus
ca; em 1897 o chefe Bororo Clemente Jirie E- espaços de caça, onde edificaram uma aldeia pro-
kuréu8 assalta a fazenda Tatu, matando os visória. Assim, também no caso dos salesianos,
familiares do fazendeiro Clarismundo em sua relação com os Bororo se dava com uma
vingança pela morte de cem índios. Cons- fração bastante reduzida da população geral. A
tantemente o telégrafo acordava a cidade maior parte dos grupos vivia fora das missões e
com notícias de novos e ferozes assaltos e estabelecia com elas relações políticas e estraté-
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gicas que os missionários não eram capazes de Bororo viabiliza-se, segundo Viertler, em função
controlar inteiramente. Em suas cartas ao ministro dos meios de caça; ora, a produção constante e o
da congregação em Roma, por exemplo, Padre armazenamento de víveres na missão introduzem
Balzola, primeiro diretor de Tachos, queixava-se um dado novo nesta equação: ser beneficiário
que os Bororo, quando recebiam visitas de outros regular do abastecimento missionário permite, de
índios, davam de presente tudo o que haviam um lado, a reprodução material de unidades
recebido dos missionários, depois pediam insis- sociais menores do que a aldeia, sem necessaria-
tentemente aos missionários novos bens, deixan- mente interromper, de outro, sua unidade fun-
do a missão em estado permanente de carência cional, que pode sempre se valer de uma rede de
(Castilho, 2000, p. 78). relações mais ampla, externa ao universo físico da
Esse rápido panorama das diferentes es- missão. Dito de outro modo, a organização pro-
tratégias de aproximação entre chefes Bororo e dutiva da colônia agrícola possibilitou uma disso-
agentes coloniais permite perceber que a história ciação entre a função econômica da aldeia e sua
do contato, se é possível fazê-la, é constituída de função social e simbólica, introduzindo chefes e
pequenas histórias parciais e fragmentadas que xamãs em um novo sistema de relações.
dependem do encontro de clãs particulares, ou Essas considerações tornam bem evidente
mesmo grupos domésticos, com setores coloniais que a etnologia salesiana, ao reconstruir a cultura
particulares. Esse dado é determinante das con- indígena, não descreveu a vida indígena na mis-
dições de observação implícitas nas descrições são (que permanece invisível nesse tipo de narra-
etnográficas salesianas. Ainda que empreen- tiva), nem fundou sua observação na vida de uma
dessem viagens para conhecer outras aldeias, os aldeia “em funcionamento”. Veremos adiante
Bororo com os quais os missionários salesianos quais os suportes ideológicos que dão forma a
conviveram, e os que descreveram, foram aque- essa narrativa. O que nos interessa sublinhar neste
les grupos domésticos que, em função de cálcu- momento é o modo como, ao suprimir o relato da
los estratégicos diversos, decidiram estabelecer fragmentação das relações que embasavam o co-
com eles relações de aliança. E, na maior parte nhecimento da vida indígena a descrição projeta
das vezes, essa “redução” dizia respeito a grupos uma imagem de sociedade sobre a vida indígena
numericamente pequenos em relação à popu- que generaliza para um todo hipotético relações
lação geral, que podiam variar de cinqüenta a com grupos domésticos específicos. Na verdade, a
quatrocentas pessoas, embora este seja um con- literatura sobre os Bororo evidencia a autonomia
tingente elevado para uma aldeia Bororo. Muito de seus grupos domésticos, potencialmente auto-
provavelmente o núcleo urbano das missões com suficientes, ressaltando o fato de que qualquer
seus equipamentos – internatos, enfermarias, esforço coletivo só se exercia em contextos rituais
campos e igreja – nunca reproduziu o funciona- (Novaes, 1986, pp. 119-129). Isso indica a fluidez
mento desta unidade social que a aldeia repre- de qualquer ordem social mais abrangente, como,
sentava no mundo indígena, uma vez que, fre- por exemplo, a solidariedade clânica, que só
qüentemente, abrigou partes de vários grupos emerge em momentos formais, como nos funerais.
distintos. Foi preciso que forças externas se encarregassem
Assim, pode-se dizer que este artefato do comando das atividades coletivas econômicas
econômico, social e simbólico que a colônia agrí- e/ou políticas para que ordens sociais
cola missionária constituiu já representava, desde supradomésticas, tais como “comunidade”, “tribo”
o primeiro momento de sua existência, um arran- ou “sociedade”, pudessem emergir de modo mais
jo novo de relações que, diferentemente da expe- estável. Assim, como já havia feito os missionários
riência na colônia militar ou nas relações es- protestantes na África, como Henri Junod para os
porádicas de grupos domésticos com Rondon, Ba-ronga em Lourenço Marques, as etnografias
articulou unidades do sistema indígena a uni- missionárias constroem imaginariamente uma
dades do sistema colonial em uma convivência sociedade Bororo cuja experiência social os indí-
continuada e produtora de novas relações. A genas, na verdade, não poderiam ter tido, mas que
aldeia como unidade básica da organização social foram progressivamente adquirindo.
ANTONIO COLBACCHINI E A ETNOGRAFIA SALESIANA 57

Bem assentado o contexto de interlocução culta sociedade, um profundo abismo tivesse sido
ideológico e político da atuação salesiana, assim aberto que, talvez, nunca tivesse podido transpor
como o quadro das relações sobre o qual ela (1939, s.p.).
produziu seu ponto de vista sobre o mundo indí-
gena, detenho-me agora num dos produtos essen- Para expressar essa idéia de homem-ponte,
ciais dessa construção: as etnografias salesianas de tradutor, Colbacchini lança mão de perso-
sobre os Bororo e um de seus principais autores, nagens históricos disponíveis no imaginário políti-
Padre Antonio Colbacchini. co brasileiro. Tal como o antigo deus romano das
Portas, Janus, o missionário possui duas faces
opostas –apresenta-se ao mesmo tempo como
Antonio Colbacchini e a etnografia sertanejo e bandeirante. Por paradoxal que possa
salesiana parecer, esta combinação, que associa a imagem
do índio-vaqueiro a do caçador de índio, realiza
Em 1938, o presidente Getúlio Vargas ofe- duplamente a passagem entre opostos, reduzin-
rece a Colbacchini a mais alta condecoração do-a por meio da produção de um termo inter-
nacional conferida a um estrangeiro em reco- mediário. Vejamos rapidamente qual o repertório
nhecimento à sua obra de pacificação. Tinha, que essas duas imagens mobilizam.
então, 57 anos. Formado em filosofia e teologia, O sertanejo é o homem dos planaltos
transformou-se a partir de 1906 em pioneiro e agrestes do interior do país (o sertão). Vive uma
explorador do Mato Grosso. Sua primeira obra vida rústica e isolada acompanhando o gado sel-
sobre os Bororo foi publicada em Turim em 1925. vagem. A vida sertaneja entre o século XVII e boa
Foi diretor da colônia agrícola de Tachos a partir parte do XIX dependia da espingarda, elemento
de 1907. vital na defesa contra o índio e condição do
Missionário e etnógrafo, Colbacchini foi um assentamento das fazendas O heroísmo era reco-
personagem da transição do século XIX para o nhecido na valentia e nas qualidades do vaqueiro.
século XX – ao mesmo tempo explorador e homem Nesta parte do Novo Mundo, cada homem podia
de ciência, em um momento em que a antropolo- ser o rei de si mesmo, chefe de bando, admi-
gia não estava ainda consolidada como disciplina nistrador autônomo da justiça através da vin-
acadêmica. Ele escreveu para uma elite intelectual gança. Em muitas ocasiões, pode formar o exérci-
e para os homens políticos de seu tempo. to privado de um proprietário de terra. Assim, o
O modo como apresenta sua posição de homem do sertão construiu-se em nossa história
como irredento que carrega, contra o colonizador,
autor é também interessante: ele se quer o resul-
a vida primordial absoluta: homem da terra e
tado de uma síntese entre a vida selvagem e o
livre, conhecedor da paisagem e a ela integrado,
conhecimento do homem que não é outra coisa
freqüentemente mestiço de índio. Esse perso-
senão uma tradução para a linguagem humana da
nagem foi imortalizado no imaginário brasileiro
experiência inefável e indizível do paraíso. Col-
em meados do século XX na figura do cangaceiro
bacchini seria, pois, a ponte entre dois mundos
e seu personagem maior, o caboclo Lampião.11
aparentemente inarticuláveis entre si: o mundo da
“Quando a ordem pública começa a deitar seu
selvageria, que não pode ser dito nem pensado, e
longo braço no sertão”, observa o historiador
o mundo humano, que deve ser conhecido. Em
Frederico de Mello, “o que se vê é a paulatina
sua conferência de agradecimento à condeco-
condenação do viver pelas armas [...] e o emprego
ração que recebera, ele assim se apresenta:
da expressão cangaceiro para arcaizar esse modo
Missionário sertanejo que, já há mais de trinta
de vida” (2005, pp. 18-24).
anos, vive em constante consórcio com os filhos O bandeirante é o pioneiro paulista que, a
da selva, que, na aspereza da vida selvagem, partir do final do século XVI até meados do sécu-
revestem e refletem as belezas e os suaves encan- lo XVIII, se lança em expedições de resgate de
tos das virgens florestas, parecia-me que entre índios e de riquezas. Nessa faina terrível des-
mim e vós, Exmos. Srs, ou melhor, entre mim e a bravaram territórios e desbarataram as reduções
58 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 22 Nº. 64

jesuíticas do Uruguai. A metrópole muitas vezes mediadora: como o índio, ele é da terra e está em
recorreu a esses bandos aguerridos de mamelu- luta contra o governo em sua vida de cangaceiro.
cos e reinóis para se defender do gentio revolta- Mas, imediatamente, aparece seu contraponto: o
do, para policiar fronteiras e conquistar novas bandeirante. Quando se toma como referência o
terras para a colônia. Permaneceu no imaginário poder político, temos que o sertanejo está para
brasileiro como o conquistador intrépido, inde- índio assim como o bandeirante, para o colo-
pendente, que empurrou as linhas da fronteira nizador: o primeiro tem por inimigo o governo
portuguesa para o interior e que, sem o apoio do em seu irredentismo, o segundo tem por presa o
governo, conseguiu subtrair porções do território índio. Contudo, quando se assume o ponto de
às invasões espanholas do sertão meridional. vista da territorialidade, sertanejos e bandeirantes
Esse personagem foi redesenhado pelos in- pertencem à mesma categoria dos homens livres,
telectuais paulistas no contexto republicano do independentes, porque conhecedores do ter-
século XIX. O problema do índio estava, então, ritório; como herdeiros das habilidades indígenas,
no centro do debate sobre as relações entre raça estão igualmente distantes do índio bravio e do
e nacionalidade. Embora a oposição Tupi/Tapuia, colonizador estrangeiro. São eles os verdadeiros
expressão de nacionalidade mestiça do Império, homens de uma terra que deixa de ser natural e
tivesse se fragilizado em face das novas teorias se torna histórica (nacional) pela ação desses
raciais antimiscigenadoras, interessava aos paulis- novos guerreiros. São os verdadeiros filhos da
tas resgatar e idealizar suas origens Tupi – retrata- terra, o que de novo caracteriza a nação em for-
dos como guerreiros aliados dos colonos e dos mação. Tal como esses homens mestiços, inde-
missionários para caçar os Tapuias ferozes do pendentes dos poderes políticos e autônomos
sertão. Para amenizar a fama do bandeirante san- porque conhecedores do território, Colbacchini
guinário reaparece a imagem do herói mestiço. apresenta-se como expressão legítima da voz dos
Paulo Prado, em 1923, assim o retrata: gentios. Não foram os próprios Bororo que lhe
deram o nome de Boe Imegera, chefe dos Bororo?
[..] o cruzamento com o indígena corrigiu de A produção do discurso etnográfico de
modo feliz a excessiva rigidez, a dureza inteiriça Colbacchini constrói-se, portanto, como uma
e fagueira do colonizador europeu do século XVI; forma de conhecimento que expressa uma con-
o índio, nesse amálgama, trouxe o elemento mais fluência de interesses contraditórios – o desejo de
afinado, a agilidade física, os sentidos mais apu- eliminar o índio e tomar-lhes o território e a
rados, a intensa observação da natureza quase necessidade de conservá-lo como mão-de-obra,
milagrosa para o homem branco (2000, p. 148). guerreiro, conhecedor da paisagem e agente de
povoamento pela mestiçagem e aldeamento; o
Nessa apropriação interessada do passado in- desejo de domesticar os índios e a necessidade de
dígena paulista, produziu-se a representação do conservá-los naturais, donos da terra contra a
mestiço luso-indígena vulgarizado na forma do ocupação metropolitana. De qualquer modo, as
bandeirante. No contexto dos regionalismos dos imagens mobilizadoras do sertanejo e do bandei-
anos de 1930, que buscavam particularizar a nação rante caracterizam um processo de construção de
em seus tipos humanos e suas paisagens, as habil- uma sociedade que não se percebe como direta-
idades indígenas nutriram reiteradamente a des- mente nascida das sociedades indígenas nem em
crição do caboclo. O presidente Getúlio Vargas continuidade histórica com a metrópole. A cate-
retoma as representações caboclas do bandeirante quese, e não a corte como no caso da Nova
e o enaltece como símbolo de soberania territo- Espanha, representou nesse contexto ideológico e
rial e, portanto, de nacionalidade. político o instrumento da civilização, oferecendo
Colbacchini apresenta-se, pois, como ser- um modelo de sociabilidade que não tinha ainda
tanejo e bandeirante. Na aproximação dessas contraparte laica tendo em vista a brevidade da
duas imagens opostas e intermediárias, ele reduz corte portuguesa no Império e a inexistência de
a distância que separa a polaridade índio versus instituições universitárias. E civilização era antes
colonizador. O sertanejo é a primeira categoria de tudo urbanidade, isto é, produção de relações
ANTONIO COLBACCHINI E A ETNOGRAFIA SALESIANA 59

sociais, de civis, para homens pensados como do dessas relações privilegiadas com certos per-
naturais. As edificações missionárias represen- sonagens indígenas tomados como informantes –
tavam o modelo empírico dessa visão de mundo xamãs ou chefes, que estabeleceram relações de
ou, como diria Octávio Paz, “dessa visão dos troca com os missionários. E mais, personagens
homens no mundo e dos homens como mundo” que, como Akírio Bororo Kejéwu que escapou de
(1989, p. 52).12 Ao contrário do indigenismo mili- um infanticídio ordenado pelo chefe e foi educa-
tar republicano, baseado na idéia de “pacificação” do na Missão do Sagrado Coração, são capazes de
que vai se consolidando ao longo do século XX, um certo distanciamento em relação ao seu
para a qual civilizar era principalmente controlar próprio mundo, tornando-o comunicável.
o território e a população, base da soberania do A narrativa etnográfica, no entanto, torna
Estado, Colbacchini supõe a existência de uma invisível este ponto de vista e apresenta o relato
“nação clandestina” que só pode ser conhecida da cultura indígena como produto de uma vida
quando se toma o ponto de vista do sertão. Esta em comum com o nativo em geral, abstração esta
proto-nação edifica-se com os valores da liber- expressa com toda clareza nas legendas das fotos
dade, da fraternidade e da inocência primordial. de apoio: “índios Bororo com o pariko”; “jovens
Assim, compreender a obra etnológica de Bororo”; “índio Bororo na pesca com flecha” etc.
Colbacchini é analisar como sua descrição mobi- Lévi-Strauss já havia observado esse efeito de dis-
liza a imaginação para responder às contradições curso quando afirma em Cru e o cozido que as
aparentemente sem solução que a incorporação descrições salesianas eliminam as divergências
dos índios, com suas diferenças, se impõe à cons- nos testemunhos de seus informantes. “Educa-
ciência do homem de seu tempo. damente”, conta Lévi-Strauss, mas com decisão,
“pedia-se que os índios formassem um concílio e
*** se pusessem de acordo sobre o que deveria se
tornar a unicidade do dogma” (1971, p. 48). Esta
Se do ponto de vista de sua perspectiva a padronização da cultura em termos de doxa apre-
obra de Colbacchini olha para o mundo indígena senta-se como uma tradução literal da narrativa
na confluência das idéias de seu tempo, como pro- de um “sábio” nativo. Assim, ainda que o próprio
curei demonstrar, também do ponto de vista da informante algumas vezes modifique o mito para
construção interna sua narrativa etnológica tem um ajustá-lo ao que, na sua opinião, seria a realidade
estilo bastante particular. Em texto ainda em ela- etnográfica, “liberdade deplorável em relação a
boração, pretendo mostrar o modo como a cos- um texto mítico” segundo Lévi-Strauss (Idem, p.
mologia cristã produz uma grade de leitura para a 50), esse discurso adquire uma tripla natureza de
observação etnográfica de Colbacchini, e como verdade: é verdadeiro porque se constrói fora das
essa configuração se rearticula na versão registrada relações de contato – o nativo fala diretamente ao
na Enciclopédia Bororo. Veremos, então, como o leitor; é verdadeiro porque é a expressão original,
totemismo, o dilúvio e as almas operam como primordial, da voz desse povo, para a qual o mis-
códigos de mediação entre o universo indígena e sionário é apenas o tradutor invisível e silencioso;
o cristão. Mas em virtude dos limites que um arti- e, finalmente, porque constitui a transmissão de
go desta natureza impõe, concentrar-me-ei, por um saber tradicional que corre o risco de desa-
ora, menos no conteúdo da narrativa do que nas parecer para sempre – o chefe ou o xamã contam
suas formas de estruturação. como se ensinassem. O registro aqui se torna um
Dissemos que a descrição etnográfica de ritual iniciático. O esforço e o tempo que esses
Colbacchini não estava apoiada na observação índios dedicaram para ensinar sua língua, seus
cotidiana e sistemática da vida nas aldeias, uma mitos e ritos aos missionários foram extra-
vez que a organização social que a colônia agrí- ordinários. Muitas vezes a tarefa lhes custou toda
cola engendrava colocava em relação unidades uma vida de lealdade e dedicação. Por que
culturais em um novo sistema de relações. Com aceitaram fazê-lo?
efeito, se observarmos sua construção textual com Talvez nunca tenhamos resposta satisfatória
mais cuidado, perceberemos que ela é o resulta- para essa questão. É certo, no entanto, que du-
60 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 22 Nº. 64

rante muito tempo os Bororo se recusaram a fazê- uma mutação nas formas tradicionais de pro-
lo. Os missionários queixam-se que, por um lon- dução da memória. Essas narrativas mobilizam-se
go período, os chefes guardaram seu segredo e os pela necessidade de ao mesmo tempo preservar a
enganaram quanto aos sentidos de sua língua. No memória nativa e interromper seus processos de
entanto, também os índios queriam dominar a lín- transmissão. As etnografias salesianas, como parte
gua do branco. Na medida em que para eles a integral e fundadora do projeto de conversão,
palavra é criadora (e não a técnica e o trabalho universalizam o conhecimento do que é “ser
como pensavam os salesianos), possuir sua língua Bororo” de uma forma até então desconhecida
é possuir os segredos de sua riqueza em bens cul- para os próprios nativos, e, nesse mesmo movi-
turais, é domesticar o branco. Estabeleceu-se, mento, produzem uma espécie de “conversão” do
assim, um acordo no plano da troca de conheci- Bororo à cultura Bororo.
mentos, que tornou a acumulação, a organização
e a distribuição de saberes o topos privilegiado
dos processos de tradução. Notas
A questão que se impõe agora é a de saber
como esse quadro intercultural determinou o tipo 1 A literatura salesiana de cunho etnográfico sobre
de conhecimento produzido pelos salesianos as culturas indígenas, embora volumosa em nú-
sobre os Bororo. mero de páginas e muito rica em detalhes de
Dissemos que o missionário escolhia como observação, não é vasta nem variada no enfoque.
“mestre” os indivíduos que, a seu ver, tinham o Avaliada em seu conjunto, essa produção que se
conhecimento o mais completo possível de estende por mais de meio século – de 1919,
tradições, mitos e ritos. Para eles, a maior parte quando surge a primeira edição de Antonio
dos índios, salvo alguns chefes e determinados Colbacchini sobre os Bororo, até a recente publi-
xamãs, tinha apenas um conhecimento parcial e cação de Bartolomeu Giaccaria e Cosma Salvatore
aproximado de sua cultura. Nesse sentido, pode- sobre os Xavante em 2001 – é obra de poucos
se perceber que a “cultura nativa” não é aquela autores e se completa com a publicação de um
vivida e conhecida de todos os índios e que eles ou no máximo dois títulos de caráter quase sem-
não estão todos imersos nessas relações de troca pre enciclopédico. Com efeito, pode-se dizer que
de conhecimentos que a inscrição etnográfica o “estilo” missionário da escrita salesiana se sin-
inaugura. Nesse processo de organização da gulariza pelo fato de que o trabalho de tradução
memória e de classificação de ritos e costumes e inscrição que o move resulta em uma só obra
por comparação àqueles conhecidos dos mis- tecida ao longo de toda uma vida. Os Bororo ori-
sionários, a cultura Bororo vai ganhando siste- entais de Colbacchini e Albisetti ([1925] 1942), Os
maticidade e coerência. Sua inscrição monográfi- Xavante de Giaccaria e Heide (1952) e Os indí-
ca confere-lhe uma forma que se cristaliza na genas do Uaupés de Alcionílio Bruzzi (1977) são
história e se torna parâmetro do “ser” Bororo. três títulos capitais, três povos e três momentos
Assim, quando os mais velhos hesitam sobre a distintos que resumem a trajetória de décadas de
correção de certos passos ou gestos rituais, a et- observação, convívio, tradução e registro dos
nografia, o registro, está ali para dar a ver a cul- salesianos nos pontos de encontro com os povos
tura verdadeira. Temos, pois, que o registro e que se propuseram civilizar. Sobre os Bororo, em
a reprodução da memória por meio da etnogra- particular, cabe acrescentar a obra pioneira de A.
fia constróem um saber tradicional que se per- Tonelli de 1927 e as notas biográficas e teste-
petua no tempo e se generaliza na forma, no munhais de Dom Balzola recolhidos por A.
qual se inscreve uma significação coletiva de Cojazzi, Fra gli indi del Brasile-Matto Grosso e
perda a cada vez que esse patrimônio assim publicados em 1932, o resumo de Colbacchini da
imortalizado muda seu curso. obra supracitada, quando recebeu a condeco-
O paradoxo implícito na produção da etno- ração “Cruzeiro do Sul” em 1938, e, evidente-
grafia missionária reside no fato de que, para criar mente, a obra de fôlego que constituiu a Enci-
a imagem da cultura nativa, o etnógrafo provoca clopédia Bororo, cujo primeiro volume foi
ANTONIO COLBACCHINI E A ETNOGRAFIA SALESIANA 61

publicado em 1962. Embora pouco extensa em 7 Para esta porção, Albisetti e Venturelli sugerem a
número de títulos, esta obra é, no entanto, muito existência de pelo menos seis grupos diferentes:
rica e complexa em sua construção narrativa. os habitantes dos cerrados (Boku mogorege); os
habitantes da floresta (Itura mogorege); os habi-
2 Em carta a Dom Bosco em 1882, Dom Lasagna diz:
tantes das margens do peixe pintado (Orari
“O próprio imperador D. Pedro II, monarca sábio
mogorege); os habitantes da bacia inferior do rio
e ativíssimo como nenhum, dignou-se a admitir-
São Lourenço; os habitantes da montanha (Tori
me em audiência particular em seu palácio de
Okwa mogorege); os que usam longas flechas
Petrópolis, no dia de Pentecostes, e se entreteve
(Utugo kuridoge), habitantes do curso médio do
comigo por muito tempo em familiar conversação rio Taquari (Enciclopédia Bororo, 1962, pp. 281-
[...]. Depois de bem informado [...] sumamente sa- 283).
tisfeito, exprimiu seu desejo de ver brevemente
transplantada a nossa instituição para seu vasto 8 Jiríe Ekuréu acompanhou com relutância o chefe
Império prometendo-nos a sua augusta proteção e Meriri Otodúia, que decidira entrar na missão
despedindo-me com a maior benevolência e corte- salesiana Tachos em 1902. Sempre foi tratado
sia” (Apud Marcigaglia, 1955, p. 18). pelos missionários como inimigo, pois manteve
ao longo de toda sua vida uma atitude hostil.
3 Desde que fora designado para a diocese do Pará Ainda assim, permaneceu muitos anos na missão
em 1886, Dom Macedo Costa tornara-se um para se proteger contra a vingança de Claris-
defensor intransigente do catolicismo romanizado. mundo. Sua morte em 13 de agosto de 1913 teria
Em 1872, desencadeou, ao lado de Dom Vital de sido provocada por um feitiço de um dos mais
Oliveira, uma crise política ao enfrentar o Regime célebres feiticeiros Bororo – Kiége Etóre (Albisetti
do Padroado, que ficou conhecida como a e Venturelli, 1969, p. 1221).
“Questão Religiosa”.
9 Segundo Viertler, a aldeia é a unidade mínima de
4 Em 1888, Steinen assim descreve a situação: “bebe- aglutinação dos indivíduos. Para seu funciona-
deiras confraternizando soldados, mulheres e mento, ela deve garantir um número popula-
chefes Bororo presenteados com roupas e cober- cional mínimo necessário ao preenchimento dos
tores; rapazes robustos mimados com pinga e cargos ligados a rituais de iniciação e ao funeral
roupas pelos cuiabanos; homens Bororo que se (1990, pp. 5 e 206). Segundo Chiara Vangelista, a
negavam a plantar, embora de posse dos macha- aldeia é uma “‘estrutura aberta’ que pode, por
dos de ferro, que lhes haviam sido dados pela razões internas ou externas, desagregar-se e suas
colônia; o consumo de cana e mandioca pilhados partes juntar-se a outras” (1996, p. 171).
fora da época das plantações da colônia; [...] 10 Embora os próprios salesianos tenham redefinido
relações sexuais entre dirigentes da colônia e algu- várias vezes os seus esquemas da aldeia Bororo,
mas mulheres Bororo; brigas de Bororo em- ela é tradicionalmente descrita como um círculo
briagados com pinga distribuída gratuitamente dividido em duas metades no eixo leste-oeste: os
para estes, enquanto tinha de ser comprada pelos Tugarege, ao norte, e os Ecerae, ao sul. Cada
soldados que ainda mais se irritavam por terem metade é subdividida em quatro clãs, cada um
que cultivar para os Bororo e poderem ser presos deles, dono de um patrimônio de cantos, danças,
em casos de delito enquanto nada acontecia a seus enfeites, armas, nomes pessoais e detentores da
ofensores Bororo” (Apud Viertler, 1990, p. 66). primazia sobre certas matérias-primas (Viertler,
1972, p. 8). Croker enfatiza a hierarquia interna a
5 Esse noviciado fechou em agosto de 1920 em
cada clã, determinada pelos grupos de ascen-
função do assassinato de seu diretor José
dência, em detrimento das relações interclânicas,
Thanuber pelos índios Bororo (Turuzzi, 1985).
cujos arranjos seriam mais fluidos e flexíveis
6 “Os missionários trabalham muito e rezam pouco (idem, p. 17). Segundo Viertler, a aldeia empírica
porque eles vêem no trabalho a melhor oração freqüentemente não acompanha o modelo, pois
que possam fazer a Deus” (Nas fronteiras do depende do contingente de moradores em deter-
Brasil, 1950, p. 40). minado momento, sobras das transformações
62 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 22 Nº. 64

acarretadas por brigas, mortes e nascimentos NOVAES, Sylvia Caiuby. (1986), Mulhers, homens
(Idem, p. 208). e heróis: dinâmica e permanência
através do cotidiano da vida Bororo.
11 Virgulino Ferreira da Silva – o Lampião – repre-
Dissertação de mestrado, São Paulo,
senta a figura máxima do personagem do cangaço.
USP, FFLCH.
Nascido em 1898, em Pernambuco, filho de
pequeno proprietário rural, lutou contra grandes _________. (1993), Jogo de espelhos. São Paulo,
fazendeiros e contra as forças militares entre 1919 Edusp.
e 1938, quando foi derrotado. Dominou porções PAZ, Octavio. (1989), Sor Juana Inês de la Cruz, o
rurais de sete estados durante mais de vinte anos, las trampas de la fé. Barcelona, Seix
formando bandos armados que chegavam a 120 Barral.
homens. Sua astúcia militar residia na capacidade
de confederar bandos existentes sob seu co-
PRADO, Paulo. (2000), Paulística, etc. (org.
mando, ampliando, assim, sua influência. Foi
Carlos Auguto Calil). São Paulo,
Companhia das Letras.
imortalizado pela literatura e pelo cinema como o
símbolo do sertão nordestino (Mello, 2005, pp. VANGELISTA, Chiara. (1996), “Missões católicas e
18-24). políticas tribais na frente de expansão:
os Bororo entre o século XIX e XX!”.
12 Octavio Paz distingue civilidade, palavra de
Revista de Antropologia, 2.
origem cortesã que define o aristocrata que vive
na corte, de civilizado, palavra burguesa que VIERTLER, Renate Brigitte. (1972), As aldeias
caracteriza o homem ilustrado e progressista. Bororo e alguns aspectos e sua organi-
Segundo ele, a noção de civilidade na Espanha zação social. Tese de doutorado, São
tinha o sentido cristão de evangelização. Paulo, USP, FFLCH.
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190 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 22 Nº. 64

ANTONIO COLBACCHINI E A ANTONIO COLBACCHINI AND ANTONIO COLBACCHINI ET


ETNOGRAFIA SALESIANA THE SALESIAN ETHNOGRA- L’ETHNOGRAPHIE SALESI-
PHY ENNE

Paula Montero Paula Montero Paula Montero

Palavras-chave Keywords Mots-clés


Missão; Identidade; Cultura Mission; Identity; Culture. Mission; Identité; Culture.

Este trabalho tem como objeto as This paper studies the ethnogra- L’objet de ce travail sont les ethno-
etnografias dos padres salesianos, phies of Salesian priests, particularly graphies des prêtres salésiens, en par-
em particular a do Padre Antonio the ones of Father Antonio Colbac- ticulier celle de Père Antonio Colbac-
Colbacchini, produzida entre os chini, produced between the years chini, produite entre les années 1920
anos de 1920 e 1930 no Brasil, sobre of 1920 and 1930 in Brazil, about the et 1930 au Brésil, sur les indiens
os índios Bororo do Mato Grosso. Bororo Indians in Mato Grosso. It is Bororo du Mato Grosso. Il s’agit d’ex-
Trata-se de examinar esta literatura an examination of this literature to aminer cette littérature pour com-
para compreender a especificidade understand the specificity of its tex- prendre la spécificité de sa cons-
de sua construção textual e revelar tual construction as well as to reveal truction textuelle et révéler ses
seus interlocutores intrínsecos. its intrinsic interlocutors. Our analy- interlocuteurs intrinsèques. Notre
Nossa análise privilegiará os mecan- sis will favor both symbolic and analyse privilégiera les mécanismes
ismos simbólicos e políticos que são political mechanisms which are symboliques et politiques qui sont
postos em ação em um determinado used at a given moment to produce mis en action à un moment déter-
momento para produzir uma deter- a certain image of the Indian and miné pour produire une certaine
minada imagem do índio e construir construct – for the Brazilian society image de l’indien et construire – pour
– para a sociedade brasileira – uma – a convincing and absorbing view la société brésilienne – un point de
visão convincente e assimilável on their way of life and on what vue convainquant et assimilable sur
sobre seu modo de vida e sobre o could be understood as their “cul- leur mode de vie et sur ce qui pour-
que poderia ser entendido como sua ture.” rai être compris comme leur “cul-
“cultura”. ture”.
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