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20/02/2022 19:27 Cores do Gótico na arquitetura. Bispo, A.A. (Ed.).

Revista BRASIL-EUROPA Correspondência Euro-Brasileira©

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Cores do Gótico na arquitetura. Revista BRASIL-EUROPA 128. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais

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BRASIL-EUROPA
Correspondência Euro-Brasileira©
 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 128/10 (2010:6)


Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
Doc. N° 2666

Luz e cores do Gótico da Sainte Chapelle de Paris


na arquitetura de orientação sulpiciana no continente americano


Ciclo "Indian Summer" preparatório aos 300 anos da ida ao Canadá de Joseph-François Lafitau (1681-1746)
pioneiro dos estudos culturais comparados, da Antropologia Cultural e disciplinas afins
Montréal: Notre-Dame-de-Montréal

A Basílica Notre-Dame de Montréal, até meados do século XIX a maior igreja da América do
Norte, representa ainda hoje um dos monumentos arquitetônicos e da história cultural mais
impressionantes de Montréal, que desperta nos seus visitantes ao mesmo tempo admiração e
perplexidade.

O fascínio que essa igreja exerce é devido sobretudo a seu interior, marcado por uma profusão
ornamental, de cores e de luzes, que surpreende aquele que nela entra pela impressão que
causa de contos de fadas da literatura do século XIX.

Esse deslumbramento une-se a sensações ambivalentes, não sabendo o observador como


apreciar adequadamente tal associação do sacral com o mundo encantado de lendas.

Para alguns, uma aproximação da religião e da história religiosa com o lendário através da
linguagem visual pode parecer inapropriado, uma vez que vincula o que se concebe como
verdade e realidade com a fantasia e o irreal.

Outros, podem ver nas tensões assim sentidas entre o verídico e o não-verídico, entre o
conteúdo e a forma, uma expressão suprema de kitsch.

A força da impressão que essa obra arquitetônica cria, porém, e a qualidade excepcional de sua
realização artesanal e artística revelam o risco de tais apreciações baseadas em concepções
atuais, apontando para falhas nos critérios de leitura do próprio observador.

Essas falhas apenas podem ser supridas através de uma consideração mais adequada do
contexto e dos pressupostos que levaram ao projeto, à realização dessa igreja e à tradição que
determinou trabalhos posteriores. Somente a partir do estudo das intenções e de sua inserção
numa determinada corrente do pensamento é que se pode reconhecer o significado de Notre-
Dame de Montréal para uma história cultural em relações globais.

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Notre-Dame du Sacré-Coeur e sua recente reconstrução


Em 1889, o pároco de Notre-Dame promoveu a edificação de uma capela para celebrações com
um número menor de pessoas, para matrimônios e funerais. Foi denominada de Notre-Dame du
Sacré-Coeur e inaugurada a 8 de dezembro de 1891. Foi erigida também em estilo neo-gótico,
rica em esculturas.

Um incêndio destruiu parte dessa capela a 7 de dezembro de 1978. Foi reconstruída pelos
arquitetos Jodoin, Lamarre, Pratte e associados. Inspiraram-se ao trabalho de esculturas do
passado. Foi inaugurada em 1982.

Sainte-Chapelle de Paris como fonte de inspiração


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Primeiramente, deve-se considerar que a decoração
interna da igreja de Notre-Dame-de-Montréal é
marcada por trabalhos posteriores à construção do
edifício. Originalmente, seguia mais proximamente
tradições de igrejas góticas inglêsas, possuindo um
grande vitral. Por motivos de economia, quadros e o
próprio altar da igreja anterior haviam sido
provisoriamente mantidos.

A decoração que marca o interno atual a igreja foi


realizada entre 1870 e 1900, tendo sido obra do pároco
Victor Rousselot e do arquiteto Victor Bourgeau (1809-
1888), um dos mais prestigiados arquitetos do Canada
francês. As colunas da nave foram pintadas imitando
mármore pelo artista italiano Angelo Pienovi, de New York.

Impressionado pelo simbolismo e pelo estilo da Sainte-Chapelle de Paris, o pároco Victor


Rousselot propôs a Bourgeau de nele inspirar-se. Explica-se assim a escolha das cores, a
decoração policrômica dos trabalhos plásticos em madeira e os motivos das folhas de ouro nas
colunas.

A Sainte-Chapelle, a mais antiga capela palacial da antiga residência real francesa, construída
entre 1244 e 1248 e dedicada a Nossa Senhora, teve no Canadá, não apenas a sua função
modelar no âmbito do Neo-Gótico como um dos principais monumentos do alto gótico de meados
do século XIII, mas sim também pela seu valor simbólico de identidade francesa. O fato de ter
sido construída por desejo de Luís IX (1214-1270), o Santo, adquiria extraordinário significado
para aqueles ao mesmo tempo imbuídos do espírito da restauração católica e da identidade
francesa baseada na sua história mais antiga. Lembrava da ação destruidora da Revolução
Francesa, época na qual sofreu atos estragos, profanações, tendo sido alvo de intentos de
demolições e venda. A sua revalorização deu-se a partir da Restauração, tendo sido restaurada
sob Louis Philippe (1773-1850)

Criou-se, assim, em Montréal, uma ponte àquela capela que conservava das mais preciosas
relíquias da Paixão, entre elas partes da Vera Cruz, da coroa de espinhos de Cristo e da lança de
Longinus. Para essas relíquias, a Sainte-Chapelle de Paris, como capela palacial de dois
andares, apresenta a sua parte superior particularmente marcada pela riqueza de vitrais que
inundam o espaço em luz multicolor.

A igreja de Montréal, porém, devido à arquitetura pré-existente, de inspiração na arquitetura


inglesa, revela maiores vínculos com a capela do andar inferior da Sainte-Chapelle. Os efeitos de
luz da capela superior, proporcionados pelos grandes vitrais, são recriados em Montréal não
apenas através dos vidros coloridos das janelas, mas sim também pela iluminação feérica do
interior da igreja, e que é, em parte, causa da perplexidade que exerce nos observadores de hoje.

A côr no Gótico e a côr do Gótico


A Notre-Dame de Montréal traz à consciência uma questão que possui muito maior relevância do
que à primeira vista sugere: a da côr no Gótico e na arte medieval em geral. Essa questão
despertou particular atenção em meados do século XIX em Paris e vinculou-se com uma
transformação da imagem do Gótico.

Esse debate foi particularmente incentivado pela restauração da Sainte-Chapelle nas décadas de
40 e 50, quando, com base em estudos histórico-artísticos, procurou-se recuperar e reconstruir
imagens e decorações. A imagem que se fazia de igrejas medievais era a de interiores austeros,
pintados de branco.  O Pe. Victor Rousselot, impressionando-se com a Sainte-Chapelle a ponto
de procurar recriá-la na Notre-Dame de Montréal, inseriu-se nesse movimento de transformação
de concepções relativas ao Medieval, transportou a discussão sobre a côr no Gótico e tornou-se
importante agente na introdução do Gótico colorido no continente americano.

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O impacto causado pela descoberta da côr no Gótico do século XIX não perdeu a sua atualidade
no decorrer das décadas, tendo-se apenas perdido a consciência de sua existência e
continuidade. Assim como o colorir templos da Antiguidade segundo vestígios arqueológicos
contraria imagens tradicionais do Classicismo, o mesmo ocorreu com o colorir de igrejas
medievais.

No decorrer do século XX, imagens coloridas e o colorido do interior das igrejas restauradas ou
edificadas no século XIX, sentidas como expressões de um passado a ser superado, foram
muitas vezes repintadas, em geral em branco ou cinza.

O observador europeu, hoje, acostumado com essa visão do Gótico, surpreende-se ao encontrar
o mundo multicolor do Gótico na Basílica Notre-Dame de Montréal e outras igrejas canadenses. A
perplexidade que causam essas obras ao observador, portanto, é, em parte, resultado de seu
próprio contexto histórico-cultural. O Canadá guardou, muito mais do que os países europeus, o
universo policrômico das suas igrejas neo-góticas. Esse colorido revela uma dimensão importante
dos anelos do historismo romântico do século XIX e das tentativas de redescoberta de uma
 
mística da luz e da côr.

Obra de arquiteto protestante e


veículo de sua conversão

Talvez a maior singularidade da Basílica de Notre-Dame de Montréal é a da transfiguração por


que passou uma arquitetura originalmente inspirada em modêlos ingleses pelo espírito da
restauração da Sainte-Chapelle de Paris.

Esse interrelacionamento de inserções histórico-culturais assume particular significado na


situação político-cultural específica do Canadá, marcada pelo campo de tensões de seus elos
com a França e com a Grã-Bretanha.

Se a metamorfose da igreja segundo modêlo inglês foi significativamente obra de um arquiteto de


Québec, o edifício original, levantado entre 1823 e 1829, foi o de um arquiteto de um imigrado de
origem da esfera britânico-americana, o irlandês James O‘Donnel (1774-1830), de New York.

Através da ação desse arquiteto, a Notre-Dame de Montréal insere-se no contexto da história


cultural marcada pela imigração irlandesa, de particular significado para New York e para o
Catolicismo na América do Norte de língua inglêsa.
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Embora sendo católica grande parte dos irlandeses imigrados, o arquiteto James O‘Donnel era
protestante. Assim, singularmente, a igreja de Montréal que deveria marcar, no Canadá, de forma
particular o movimento de reconscientização católica do período da Restauração na França, foi
obra de um protestante.

Antes de falecer, em 1830, O‘Donnel converteu-se ao Catolicismo, sendo sepultado na própria


igreja por êle construída. A sua obra surge em estreito relacionamento com um processo de
conversão e, portanto, de passagem do Protestantismo ao Catolicismo, de um retorno.

Pode ser vista como resultado de um aprofundado estudo de formas de expressão do


Catolicismo da Idade Média e de uma procura de compreensão profunda de um universo gótico
empreendida pelo arquiteto.

Após a morte de O‘Donnel, as duas torres de Notre-Dame, gêmeas, foram completadas pelo
arquiteto John Ostell (1813-1892). As suas designações indicam a simbologia baseada em
concepções de virtudes: La Persévérance e La Tempérance, concluídas respectivamente em
1841 e 1843. Tornaram-se conhecidas supra-regionalmente também e sobretudo pelos seus
jogos de sinos, a primeira abrigando o
sino grande-bordão batizado de São
João Batista, com ca. de 11000 quilos,
a segunda um carrilhão com dez sinos.

A decisão em construir-se a Notre-


Dame segundo o estilo neo-gótico,
substituindo uma igreja já existente, o
estudo de modêlos medievais e a
procura de captação do espírito do
Gótico foram expressões da força de
tendências historicistas e românticas já
no início da década de vinte no
Canadá.

Foram, porém, antes de mais nada,


resultado de uma corrente do
pensamento teológico e da
espiritualidade vigente no clero, em
particular no Seminário.
Significativamente, em 1829, a igreja foi
consagrada por Auguste Roux PSS,
superior do Seminário.

A tradição sulspiciana por êle


representada caracterizava-se pelo
intuito de formação dos sacerdotes e
religiosos segundo um espírito de
interiorização, ao qual servia também a
importância concedida ao culto mariano
e à Eucaristia, assim como à
dignificação e à melhoria da imagem e
da autoridade do clero. A igreja inseriu-
se, assim, na tradição de uma
congregação de clero secular, cuja
ação missionária era dirigida à
restauração e à conversão de
protestantes e „hereges“. A conversão
do arquiteto da igreja surge sob nova
luz sob o pano de fundo desse direcionamento.

Os Sulpicianos na França e no Canadá

A construção de uma nova, maior e mais representativa Notre-Dame de Montréal, de orientação


neo-gótica, correspondeu, na França, à nova situação que se colocava aos Sulspicianos com a
Restauração européia. Esses e seus 34 seminários existentes no Ancien Regime, haviam
experimentado perseguições e mortes na Revolução Francesa e haviam sido até mesmo
suspensos por Napoleão Bonaparte (1769-1821), em 1811. A igreja de Montréal, assim, tornou-
se um monumento da nova situação instaurada pelo seu restabelecimento, ocorrido em 1814, e
pela Restauração.

Tratou-se, também no Canadá, da recuperação de uma situação existente no período pré-


revolucionário. Os Sulspicianos contavam com uma antiga tradição na Nouvelle France. Estavam
presentes em Québec desde 1657, e, nos Estados Unidos, desde 1792, ou seja, após a
independência.

Essa congregação havia sido fundada poucos anos antes, em 1642, por Jean-Jacques Olier,
pároco da igreja de St-Sulpice, em Paris e confirmada em 1664, ou seja, após a sua presença no
Canadá, pelo Papa Alexandre VI. O seu objetivo primordial, o da formação do clero secular em
seminários, tendo como modêlo o Seminário de sacerdotes St. Sulpice, em Paris, fundado em
1642, teve a sua expressão no continente americano no Seminário de Québec.

Chegando os primeiros Sulpicianos, esses encontraram já uma igreja dedicada a Nossa Senhora,
desejaram, porém, já de início, construir uma igreja maior e mais representativa.

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A 30 de outubro de 1678,  bispo de Québec, Laval, criador do Seminário de Québec na tradição


sulspiciana (Veja artigo a respeito nesta edição), erigiu Notre-Dame em paróquia, sob o
patronímio do Santo Nome de Maria, ficando esta aos cuidados de Gilles Pérot, P.S.S..O
arquiteto da nova igreja foi o sulpiciano François Dollier de Casson P.S.S., superior do Seminário,
e a construção realizada entre 1672 e 1683.

Significado para o estudo das concepções de Joseph-François Lafitau

A obra e as concepções de Joseph-François Lafitau SJ, iniciador da Antropologia Cultural, da


Etnologia e Estudos Culturais em contextos globais, unindo em si Comparatística e Teologia
Simbólica, apenas podem ser adequadamente estudadas e valorizadas na sua inserção ha
história das idéias e do movimento religioso da França de sua época e sua influência na Nouvelle
France.

As suas intenções e o julgamento da sua obra pelos seus contemporâneos necessitam ser
estudados no âmbito de desenvolvimentos internos da Companhia de Jesus e de suas relações e
diferenças relativamente a outras tendências da história eclesiástica de sua época. Um dos
aspectos que deve ser particularmente salientado do contexto histórico em que se inseriu, na
França e no Canadá, diz respeito ao Sulpicianismo.

À época dos estudos de Lafitau na França e de sua ida ao Canadá, em 1711, a congregação dos
Sulpicianos estava em pleno florescimento. Como jesuíta, Lafitau inseria-se, porém, numa
tradição de pensamento, de método e de vida religiosa distinta, sob muitos aspectos, daquela dos
Sulpicianos. Enquanto a congregação de St. Sulpice era de clero secular, Lafitau pertencia à

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Companhia de Jesus, cujas origens remontavam a uma fase anterior e distinta da história cultural
e eclesiástica de início da era moderna.

Se os sulpicianos tinham a sua atenção dirigida sobretudo à formação do clero e, assim, ao


sacerdote como modêlo, Lafiteau pertencia a uma sociedade de missão, desenvolvendo
sobretudo a sua ação missionária entre não-cristãos, no caso os indígenas. Lafitau inseria-se
numa tradição de pensamento e ação que, pelo seu pragmatismo, era marcada pela procura de
conhecimento das línguas e das expressões culturais indígenas para a sua transfiguração
integradora na cultura cristã.

É sob o pano de fundo dessa tradição que se pode compreender o significado da observação
empírica na obra de Lafitau e o papel a que faz jus como fundador dos estudos comparados em
contextos globais e da Antropologia Cultural.

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Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.
Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. (ed.). "Luz e cores no Gótico da Sainte


Chapelle de Paris na arquitetura de orientação sulpiciana
no continente americano". Revista Brasil-Europa 128/10
(2010:6). www.revista.brasil-europa.eu/128/Cor-no-
Gotico.html

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