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PARTE

2
Principais manifestações e
apresentações das doenças
Seção 1 Dor
10
Dor: fisiopatologia e manejo
James P. Rathmell, Howard L. Fields

A medicina tem por objetivo preservar e restaurar a saúde, bem como aliviar o
sofrimento. O conhecimento sobre a dor é essencial a esses dois propósitos. Por
ser universalmente considerada como um sinal de doença, a dor é o sintoma que
mais comumente leva um paciente a procurar auxílio médico. O sistema
sensitivo relacionado com a dor tem a função de proteger o corpo e manter a
homeostase. Essa tarefa consiste em detectar, localizar e identificar os processos
que estejam causando ou possam vir a causar lesão tecidual. Como diferentes
doenças produzem padrões típicos de lesão tecidual, o caráter, a evolução
cronológica e a localização da dor do paciente fornecem indícios diagnósticos
importantes. É responsabilidade do médico avaliar cada paciente imediatamente
para todas as causas remediáveis subjacentes à dor, fornecendo analgesia rápida
e efetiva sempre que possível.
O SISTEMA SENSITIVO PARA A DOR
A dor é uma sensação desagradável restrita a alguma parte do corpo. Com
frequência, é descrita em termos relacionados com processos penetrantes ou
destrutivos dos tecidos (p. ex., em punhalada, em queimação, em torção,
dilacerante, compressiva) e/ou como uma reação corporal ou emocional (p. ex.,
pavorosa, nauseante, debilitante). Além disso, qualquer dor de intensidade
moderada ou alta é acompanhada de ansiedade e do desejo de escapar da
sensação ou de interrompê-la. Essas propriedades ilustram a dualidade da dor: é
tanto uma sensação quanto uma emoção. Quando aguda, a dor está associada a
uma reatividade comportamental e a uma resposta de estresse que consiste em
elevação da pressão arterial, da frequência cardíaca, do diâmetro da pupila e dos
níveis plasmáticos de cortisol. Além disso, muitas vezes há contração de
músculos locais (p. ex., flexão dos membros, rigidez da parede abdominal).

MECANISMOS PERIFÉRICOS
O nociceptor aferente primário O nervo periférico é constituído de axônios de
três tipos diferentes de neurônio: sensitivos aferentes primários, neurônios
motores e neurônios pós-ganglionares simpáticos (Fig. 10-1). Os corpos
celulares dos sensitivos aferentes primários localizam-se nos gânglios das raízes
dorsais nos forames vertebrais. O axônio aferente primário possui dois ramos:
um se projeta centralmente para a medula espinal e o outro em sentido periférico
para inervar os tecidos. Os aferentes primários são classificados com base no seu
diâmetro, grau de mielinização e velocidade de condução. As fibras aferentes de
maior diâmetro, A-beta (Aβ), respondem em grau máximo a estímulos de tato
e/ou de movimento leves, sendo encontradas principalmente nos nervos que
suprem a pele. Nos indivíduos normais, a atividade dessas fibras não provoca
dor. Existem duas outras classes de fibras nervosas aferentes primárias: os
axônios mielinizados de pequeno diâmetro A-delta (Aδ) e os axônios não
mielinizados (C) (Fig. 10-1). Essas fibras são encontradas nos nervos que
suprem a pele e as estruturas somáticas e viscerais profundas. Alguns tecidos,
como a córnea, são inervados apenas por fibras aferentes Aδ e C. Em sua
maioria, as fibras aferentes Aδ e C respondem em grau máximo apenas a
estímulos intensos (dolorosos) e, quando estimuladas eletricamente, produzem a
experiência subjetiva da dor, característica que as define como nociceptores
(receptores para dor) aferentes primários. A capacidade de detectar estímulos
dolorosos é totalmente abolida quando a condução pelas fibras axônicas Aδ e C
é bloqueada.

FIGURA 10-1 Componentes de um nervo cutâneo típico. Há duas categorias funcionalmente distintas de
axônios: aferentes primários, com corpos celulares localizados na raiz do gânglio dorsal, e fibras simpáticas
pós-ganglionares, com corpos celulares localizados no gânglio simpático. Entre as fibras aferentes
primárias, estão os axônios mielinizados de grande diâmetro (Aβ), os mielinizados de pequeno diâmetro
(Aδ) e os axônios não mielinizados (C). Todas as fibras pós-ganglionares simpáticas são do tipo não
mielinizado.

Os nociceptores aferentes primários individuais são capazes de responder a


diferentes tipos de estímulos nocivos. Por exemplo, a maioria dos nociceptores
responde a calor; frio intenso; estímulos mecânicos intensos, como um beliscão;
alterações no pH, particularmente aos ambientes ácidos; e aplicação de
substâncias químicas irritantes como trifosfato de adenosina (ATP), serotonina,
bradicinina (BC) e histamina. O receptor de canal de cátions de potencial
transitório subfamília V membro 1 (TrpV1), também conhecido como receptor
vaniloide, medeia a percepção de alguns estímulos nocivos, especialmente as
sensações de calor, pelos neurônios nociceptivos; ele é ativado por pH ácido, por
mediadores endógenos e por capsaicina, um componente da pimenta malagueta.

Sensibilização Quando são aplicados estímulos intensos, repetidos ou


prolongados a tecidos lesados ou inflamados, o limiar de ativação dos
nociceptores aferentes primários é reduzido, e a frequência de descarga torna-se
maior para estímulos de todas as intensidades. Os mediadores da inflamação,
como a BC, o fator de crescimento neural, algumas prostaglandinas (PGs) e os
leucotrienos, contribuem para esse processo denominado sensibilização. A
sensibilização ocorre ao nível da terminação nervosa periférica (sensibilização
periférica) assim como ao nível do corno posterior da medula espinal
(sensibilização central). A sensibilização periférica ocorre em tecidos lesados ou
inflamados, quando mediadores inflamatórios ativam a transdução de sinais nos
nociceptores intracelulares, determinando o aumento na produção, transporte e
inserção na membrana de canais iônicos ativados quimicamente e ativados por
voltagem. Tais alterações aumentam a excitabilidade dos terminais nociceptores
e reduzem seu limiar de ativação por estímulos mecânicos, térmicos ou
químicos. A sensibilização central ocorre quando a atividade, gerada por
nociceptores durante a inflamação, aumenta a excitabilidade das células nervosas
no corno posterior da medula espinal. Após uma lesão e a sensibilização
resultante, a aplicação de estímulos normalmente inócuos pode produzir dor
(alodinia). A sensibilização é um processo clinicamente importante que contribui
para a hipersensibilidade à palpação, sensibilidade dolorosa e hiperalgesia
(aumento de intensidade da dor em resposta a um mesmo estímulo nocivo; p.
ex., uma picada causando dor intensa). Um exemplo notável de sensibilização é
a pele queimada pelo sol. Nesses casos, é possível produzir dor intensa mesmo
com um tapinha delicado nas costas ou com o toque da água morna no chuveiro.
A sensibilização é particularmente importante para explicar a dor e a
sensibilidade nos tecidos profundos. Em condições normais, as vísceras são
relativamente insensíveis a estímulos mecânicos e térmicos nocivos, embora as
vísceras ocas, quando distendidas, produzam desconforto significativo. Porém,
quando afetadas por processo mórbido com componente inflamatório, as
estruturas profundas, como as articulações ou as vísceras ocas,
caracteristicamente adquirem notável sensibilidade à estimulação mecânica.
Uma grande proporção de fibras aferentes Aδ e C que inervam as vísceras é
totalmente insensível no tecido normal sem lesão e sem inflamação. Ou seja, elas
não são ativadas por estímulos mecânicos ou térmicos conhecidos, nem se
ativam espontaneamente. Contudo, na presença de mediadores inflamatórios,
esses aferentes tornam-se sensíveis a estímulos mecânicos. Tais aferentes foram
denominados nociceptores silenciosos, e suas propriedades características podem
explicar como estruturas profundas relativamente insensíveis podem, em
condições patológicas, tornar-se fonte de hipersensibilidade e dor intensas e
debilitantes. O pH baixo, as PGs, os leucotrienos e outros mediadores
inflamatórios, como a BC, desempenham um papel importante na sensibilização.

Inflamação induzida por nociceptor Os nociceptores aferentes primários


também desempenham uma função neuroefetora. Quando ativados, os
nociceptores, que, em sua maioria, contêm mediadores polipeptídicos, os
liberam de suas terminações periféricas (Fig. 10-2). Um exemplo é a substância
P, um peptídeo formado por 11 aminoácidos. A substância P é liberada de
nociceptores aferentes primários e possui múltiplas atividades biológicas. É um
vasodilatador potente, causa desgranulação de mastócitos, atua como
quimioatrator para leucócitos e aumenta a produção e liberação dos mediadores
inflamatórios. Curiosamente, a depleção da substância P nas articulações diminui
a gravidade da artrite experimental. Os nociceptores aferentes primários não são
simplesmente mensageiros passivos das ameaças de lesão tecidual, mas também
desempenham um papel ativo na proteção dos tecidos por meio de suas funções
neuroefetoras.
FIGURA 10-2 Eventos que levam à ativação, sensibilização e disseminação da sensibilização dos
terminais nociceptores aferentes primários. A. Ativação direta por pressão intensa e consequente dano
celular. A lesão celular reduz o pH (H+) e leva à liberação de potássio (K+) bem como à síntese de
prostaglandinas (PGs) e bradicinina (BC). As PGs aumentam a sensibilidade do terminal à BC e a outras
substâncias produtoras de dor. B. Ativação secundária. Os impulsos gerados no terminal estimulado se
propagam não apenas para a medula espinal, mas também para outros ramos terminais, onde induzem a
liberação de peptídeos, incluindo a substância P (SP). A SP produz vasodilatação e edema neurogênico com
acúmulo adicional de BC. Ela também provoca a liberação de histamina (H) pelos mastócitos e de
serotonina (5-HT) pelas plaquetas.

MECANISMOS CENTRAIS
Medula espinal e dor referida Os axônios dos nociceptores aferentes primários
penetram na medula espinal via raiz posterior. Eles terminam no corno posterior
da substância cinzenta da medula (Fig. 10-3). As terminações dos axônios
aferentes primários fazem contato com neurônios medulares que, por sua vez,
transmitem o sinal às áreas do cérebro envolvidas com a percepção da dor.
Quando ativados por estímulos nocivos, os aferentes primários liberam
neurotransmissores em suas terminações que excitam os neurônios da medula
espinal. O principal neurotransmissor liberado é o glutamato, que rapidamente
estimula os neurônios de segunda ordem do corno posterior. As terminações dos
nociceptores aferentes primários também liberam peptídeos, incluindo a
substância P e o peptídeo relacionado com o gene da calcitonina, que estimulam
os neurônios do corno posterior de forma mais lenta e prolongada. O axônio de
cada aferente primário estabelece contato com muitos neurônios medulares, e
cada um desses neurônios recebe impulsos convergentes de inúmeros aferentes
primários.
FIGURA 10-3 A hipótese de projeção convergente para a dor referida. De acordo com esta hipótese, os
nociceptores aferentes viscerais convergem para os mesmos neurônios de projeção da dor que os aferentes
advindos das estruturas somáticas nas quais a dor é percebida. O cérebro não tem como saber qual é a
verdadeira origem do impulso e equivocadamente “projeta” a sensação à estrutura somática.

A convergência de impulsos sensoriais para um único neurônio medular


transmissor da dor é muito importante, visto que está na base do fenômeno da
dor referida. Todos os neurônios medulares que recebem impulsos provenientes
das vísceras e das estruturas musculoesqueléticas profundas também recebem
impulsos da pele. Os padrões de convergência são determinados pelo segmento
medular do gânglio da raiz dorsal que supre a inervação aferente de uma
estrutura específica. Assim, por exemplo, os aferentes que suprem a parte central
do diafragma têm origem nos terceiro e quarto gânglios das raízes dorsais
cervicais. Os aferentes primários com corpos celulares nesses mesmos gânglios
inervam a pele do ombro e da parte inferior do pescoço. Assim, os impulsos
sensoriais que se originam na pele do ombro e na parte central do diafragma
convergem para neurônios transmissores da dor nos terceiro e quarto segmentos
medulares cervicais. Em razão dessa convergência e do fato de que os neurônios
medulares são frequentemente ativados por impulsos oriundos da pele, a
atividade despertada nos neurônios medulares por impulsos provenientes de
estruturas profundas é equivocadamente localizada pelo paciente em uma região
que corresponde aproximadamente à área de pele inervada pelo mesmo
segmento medular. Logo, uma inflamação localizada na proximidade da região
central do diafragma é frequentemente relatada como uma sensação de
desconforto no ombro. Esse deslocamento espacial da sensação da dor em
relação ao local da lesão que a produz é conhecido como dor referida.

Vias ascendentes para a dor A maioria dos neurônios medulares com os quais
os nociceptores aferentes primários fazem contato emite seus axônios para o
tálamo contralateral. Esses axônios formam o trato espinotalâmico contralateral,
que se localiza na substância branca anterolateral da medula espinal, na borda
lateral do bulbo bem como na ponte e no mesencéfalo laterais. A via
espinotalâmica é de suma importância para a sensação de dor nos seres
humanos. A interrupção dessa via provoca déficits permanentes na discriminação
da dor e da temperatura.
Os axônios do trato espinotalâmico ascendem para várias regiões do
tálamo. Há uma enorme divergência do sinal de dor desses locais talâmicos para
áreas distintas do córtex cerebral que participam em diferentes aspectos da
experiência da dor (Fig. 10-4). Uma das projeções talâmicas tem como destino o
córtex somatossensitivo. Essa projeção faz a mediação dos aspectos puramente
sensitivos da dor, ou seja, sua localização, intensidade e caráter. Outros
neurônios talâmicos projetam-se para regiões corticais ligadas a respostas
emocionais, como o giro do cíngulo e outras áreas dos lobos frontais, incluindo o
córtex insular. Tais vias para o córtex frontal atuam na dimensão afetiva ou
emocional desagradável da dor. A dimensão afetiva da dor provoca sofrimento e
exerce um potente controle sobre o comportamento. Em razão dessa dimensão, a
dor é constantemente acompanhada pelo medo. Como consequência, as lesões
traumáticas ou cirúrgicas em áreas do córtex frontal ativadas por estímulos
dolorosos podem reduzir o impacto emocional da dor. Ao mesmo tempo, porém,
preservam em grande parte a capacidade do indivíduo de reconhecer estímulos
nocivos como dolorosos.
FIGURA 10-4 Transmissão da dor e vias moduladoras. A. Sistema de transmissão de mensagens
nociceptivas. Os estímulos nocivos, por meio do processo de transdução, ativam as terminações sensitivas
periféricas do nociceptor aferente primário. Em seguida, a mensagem é transmitida pelo nervo periférico até
a medula espinal, onde faz sinapse com células originadas na principal via ascendente da dor, o trato
espinotalâmico. A mensagem é retransmitida no tálamo para o giro do cíngulo anterior (C), bem como para
os córtices insular frontal (F) e somatossensitivo (SS). B. Rede de modulação da dor. Os impulsos vindos do
córtex frontal e do hipotálamo ativam as células do mesencéfalo que controlam as células transmissoras da
dor da medula espinal por meio das células bulbares.

MODULAÇÃO DA DOR
A dor provocada por lesões de intensidades semelhantes varia notavelmente em
diferentes situações e indivíduos. Por exemplo, sabe-se que atletas sofrem
fraturas graves com dor mínima, e o estudo clássico de Beecher, realizado
durante a Segunda Guerra Mundial, revelou que muitos soldados em batalha não
perceberam ferimentos que teriam provocado dor excruciante em civis. Além
disso, mesmo a sugestão de que um tratamento irá aliviar a dor pode exercer um
efeito analgésico significativo (o efeito placebo). Por outro lado, muitos
pacientes consideram lesões mínimas (como uma punção venosa) como
apavorantes e insuportáveis, e a expectativa de dor é capaz de provocá-la mesmo
na ausência de estímulo nocivo. A sugestão de que a dor irá piorar com a
administração de uma substância inerte pode aumentar a percepção de
intensidade (o efeito nocebo).
O poderoso efeito da expectativa e de outras variáveis psicológicas sobre a
intensidade percebida da dor é explicado pela existência de circuitos cerebrais
que modulam a atividade das vias de transmissão da dor. Um desses circuitos
possui conexões no hipotálamo, mesencéfalo e bulbo, controlando seletivamente
os neurônios medulares transmissores da dor por meio de uma via descendente (
Fig. 10-4).
Estudos com imagens do cérebro humano relacionaram esse circuito
modulador com o efeito de alívio da dor produzido por atenção, sugestão e
medicamentos analgésicos opioides (Fig. 10-5). Além disso, cada uma das
estruturas componentes dessa via contém receptores de opioides e é sensível à
aplicação direta de tais agentes. Em animais, as lesões produzidas nesse sistema
modulador descendente reduzem o efeito analgésico de opioides administrados
por via sistêmica, como a morfina. Juntamente com o receptor dos opioides, os
núcleos componentes de tal circuito contêm peptídeos opioides endógenos, como
as encefalinas e a β-endorfina.
FIGURA 10-5 Ressonância magnética funcional (RMf) revelando atividade cerebral intensificada por
placebo em regiões anatômicas correlacionadas com o sistema descendente opioidérgico de controle
da dor. Painel superior: RMf frontal revelando atividade cerebral intensificada por placebo no córtex pré-
frontal dorsolateral (CPFDL). Painel inferior: RMf em corte sagital revelando aumento de resposta ao
placebo no córtex cingulado anterior rostral (CCAr), bulbo ventral rostral (BVR), substância cinzenta
periaquedutal (SCPA) e hipotálamo. A atividade induzida por placebo em todas as áreas foi reduzida com a
administração de naloxona, demonstrando haver ligação entre o sistema opioidérgico descendente e a
resposta analgésica ao placebo. (Adaptada com permissão de F Eippert et al.: Neuron 63:533, 2009.)

A maneira mais confiável de ativar esse sistema endógeno de modulação


mediado por opioides é pela sugestão de alívio da dor ou uma emoção intensa
que desvie a atenção para longe da lesão causadora de dor (p. ex., diante de uma
ameaça grave ou em uma competição atlética). De fato, os opioides endógenos
que aliviam a dor são liberados após procedimentos cirúrgicos, bem como em
pacientes que recebem placebo para alívio da dor.
Os circuitos de modulação da dor podem intensificar e também suprimir a
dor. Tanto os neurônios inibidores quanto os facilitadores da dor localizados no
bulbo projetam-se para os neurônios transmissores da dor medular e os
controlam. Como os neurônios transmissores da dor podem ser ativados por
neurônios moduladores, é teoricamente possível gerar um sinal de dor sem
estímulo nocivo periférico. De fato, estudos com exames de imagem funcional
realizados em humanos demonstraram aumento da atividade nesse circuito
durante episódios de migrânea (enxaqueca). A existência de um circuito central
facilitador explicaria a observação de que a dor pode ser induzida por sugestão
ou intensificada por expectativa, proporcionando um modelo para
compreendermos como os fatores psicológicos contribuem para a dor crônica.

DOR NEUROPÁTICA
As lesões nas vias nociceptivas periféricas ou centrais caracteristicamente
resultam em perda ou redução da sensação dolorosa. Paradoxalmente, a lesão ou
a disfunção dessas vias também podem provocar dor. Por exemplo, a lesão de
nervos periféricos, como a que ocorre na neuropatia diabética, ou de aferentes
primários, como no herpes-zóster, pode resultar em dor referida para a região do
corpo suprida pelos nervos afetados. A dor também pode ser produzida por lesão
do sistema nervoso central (SNC), por exemplo, em alguns pacientes após
traumatismo ou lesão vascular da medula espinal, tronco encefálico ou regiões
talâmicas contendo as vias nociceptivas. Essas dores são chamadas neuropáticas
e com frequência são graves e caracteristicamente resistentes aos tratamentos
convencionais.
A dor neuropática tem um caráter incomum, sendo descrita como em
queimação, formigamento ou semelhante a um choque elétrico, podendo ocorrer
espontaneamente, sem qualquer estímulo ou ser desencadeada por um toque
muito leve. Essas características são raras em outros tipos de dor. Ao exame
físico, é característica a presença de déficit sensitivo na área de dor do paciente.
A hiperpatia, uma resposta muito exagerada à dor produzida por estímulos
inócuos ou nociceptivos leves, especialmente quando aplicados repetidamente,
também é característica da dor neuropática; com frequência, os pacientes
queixam-se de que estímulos produzidos por movimentos muito suaves
provocam dor intensa (alodinia). Nesse aspecto, é clinicamente interessante o
fato de que uma preparação tópica de lidocaína a 5% sob a forma de adesivo é
eficaz para pacientes com neuralgia pós-herpética que apresentem alodinia
acentuada.
Diversos mecanismos contribuem para a dor neuropática. A exemplo dos
nociceptores aferentes primários sensibilizados, os aferentes primários lesados,
incluindo nociceptores, tornam-se altamente sensíveis à estimulação mecânica e
podem começar a gerar impulsos na ausência de estímulos. O aumento de
sensibilidade e de atividade espontânea ocorre, em parte, pela maior
concentração dos canais de sódio na fibra nervosa danificada. Os aferentes
primários lesados também podem desenvolver sensibilidade à norepinefrina.
Curiosamente, os neurônios medulares transmissores da dor, mesmo isolados de
seus impulsos aferentes normais, também podem se tornar espontaneamente
ativos. Por conseguinte, a hiperatividade de ambos os sistemas nervosos central
e periférico contribui para a dor neuropática.

Dor mantida simpaticamente Os pacientes com lesão nervosa periférica


ocasionalmente manifestam dor espontânea na região suprida pelo nervo. A dor
com frequência é descrita como sensação de queimação. Ela se inicia após
intervalo de horas a dias, ou mesmo semanas, e é acompanhada de edema do
membro, perda óssea periarticular e alterações inflamatórias nas articulações
distais. A dor pode ser aliviada com bloqueio anestésico local da inervação
simpática do membro afetado. Os nociceptores aferentes primários lesados
adquirem sensibilidade adrenérgica, podendo ser ativados por estimulação de
eferentes simpáticos. Essa constelação de dor espontânea e sinais de disfunção
simpática após uma lesão foi denominada síndrome de dor regional complexa
(SDRC). Quando ocorre após uma lesão nervosa identificável, a SDRC é dita do
tipo II (também conhecida como neuralgia pós-traumática ou, quando intensa,
causalgia). Quando um quadro clínico semelhante se instala sem qualquer lesão
nervosa evidente, a SDRC é dita do tipo I (também conhecida como distrofia
simpática reflexa). A SDRC pode ser produzida por diversas lesões, como
fraturas ósseas, traumatismo de tecidos moles, infarto agudo do miocárdio e
acidente vascular cerebral (AVC). A SDRC do tipo I caracteristicamente é
resolvida com tratamento sintomático; contudo, quando persiste, a investigação
detalhada frequentemente revela evidências de lesão de nervo periférico. Embora
a fisiopatologia da SDRC não seja bem compreendida, a dor e os sinais de
inflamação, quando agudos, podem ser aliviados rapidamente bloqueando-se o
sistema nervoso simpático. Isso significa que a atividade simpática é capaz de
ativar os nociceptores não lesados na presença de inflamação. Devem-se
pesquisar sinais de hiperatividade simpática em pacientes com dor e inflamação
pós-traumáticas sem outra explicação evidente.

TRATAMENTO
Dor aguda
O tratamento ideal para qualquer dor é eliminar sua causa; por essa razão, embora o tratamento possa ser
iniciado imediatamente, devem-se empregar esforços concomitantes para determinar a etiologia subjacente
no início da terapêutica. Algumas vezes, o tratamento do distúrbio subjacente não alivia imediatamente a
dor. Além disso, alguns distúrbios são tão dolorosos que é essencial obter uma analgesia rápida e eficaz (p.
ex., estado pós-operatório, queimaduras, traumatismo, câncer ou crise de anemia falciforme). Os
analgésicos são a primeira linha de tratamento nesses casos, e todos os médicos devem estar familiarizados
com o seu uso.

ÁCIDO ACETILSALICÍLICO (AAS), PARACETAMOL E


ANTI-INFLAMATÓRIOS NÃO ESTEROIDES (AINEs)
Esses fármacos são considerados em conjunto, por serem prescritos para problemas semelhantes e pela
possibilidade de terem um mecanismo de ação análogo (Tab. 10-1). Todos esses compostos inibem a
cicloxigenase (COX) e, à exceção do paracetamol, exercem ação anti-inflamatória, sobretudo quando
usados em doses mais altas. São particularmente efetivos para a cefaleia leve a moderada e para a dor de
origem musculoesquelética.

TABELA 10-1 ■ Fármacos para alívio da dor


Fármaco Dose (mg) Intervalo Comentários

Analgésicos não narcóticos: doses e intervalos habituais


Ácido acetilsalicílico 650 VO A cada 4 h Disponível em preparações com revestimento
entérico
Paracetamol 650 VO A cada 4 h Efeitos colaterais incomuns
Ibuprofeno 400 VO A cada 4-6 h Vendido sem prescrição
Naproxeno 250-500 VO A cada 12 h O naproxeno é o AINE comum com menor risco
cardiovascular, mas tem incidência um pouco
maior de hemorragia digestiva
Fenoprofeno 200 VO A cada 4-6 h Contraindicado em caso de doença renal
Indometacina 25-50 VO A cada 8 h São comuns os efeitos colaterais gastrintestinais
Cetorolaco 15-60 IM/IV A cada 4-6 h Disponível para uso parenteral
Celecoxibe 100-200 VO A cada 12-24 h Útil nas artrites
Valdecoxibe 10-20 VO A cada 12-24 h Retirado do mercado nos Estados Unidos em
2005
Fármaco Dose parenteral Dose VO (mg) Comentários
(mg)

Analgésicos narcóticos: doses e intervalos habituais


Codeína 30-60 a cada 4 h 30-60 a cada 4 h Náuseas são comuns
Oxicodona – 5-10 a cada 4-6 h Geralmente disponível com paracetamol ou AAS
Morfina 5 a cada 4 h 30 a cada 4 h
Morfina de liberação – 15-60 2 a 3 vezes/dia Apresentações VO de liberação lenta
retardada
Hidromorfona 1-2 a cada 4 h 2-4 a cada 4 h Ação mais curta que a do sulfato de morfina
Levorfanol 2 a cada 6-8 h 4 a cada 6-8 h Ação mais longa do que a do sulfato de morfina;
bem absorvida por VO
Metadona 5-10 a cada 6-8 h 5-20 a cada 6-8 h Devido à meia-vida longa, depressão respiratória
e sedação podem persistir após passar o efeito
analgésico; o tratamento não deve ser iniciado
com mais de 40 mg/dia e o aumento da dose não
deve ser feito com intervalos inferiores a 3 dias
Meperidina 50-100 a cada 3-4 h 300 a cada 4 h Mal absorvida por VO; um metabólito tóxico é a
normeperidina; não se recomenda o uso rotineiro
desse agente
Butorfanol – 1-2 a cada 4 h Spray intranasal
Fentanila 25 a 100 μg/h – Adesivo transdérmico de 72 h
Buprenorfina 5-20 μg/h Adesivo transdérmico de 7 dias
Buprenorfina 0,3 a cada 6-8 h Administração parenteral
Tramadol – 50-100 a cada 4-6 h Ação opioide/adrenérgica mista
Fármaco Bloqueio da Potência Potência Hipotensão Arritmia Dose média Variação da
captação sedativa anticolinérgica ortostática cardíaca (mg/dia) dose (mg/dia)

5- NE
HT
Antidepressivosa
Doxepina ++ + Alta Moderada Moderada Menos 200 75-400
Amitriptilina ++++ ++ Alta A mais alta Moderada Sim 150 25-300
Imipramina ++++ ++ Moderada Moderada Alta Sim 200 75-400
Nortriptilina +++ ++ Moderada Moderada Baixa Sim 100 40-150
Desipramina +++ ++++ Baixa Baixa Baixa Sim 150 50-300
Venlafaxina +++ ++ Baixa Ausente Ausente Não 150 75-400
Duloxetina +++ +++ Baixa Ausente Ausente Não 40 30-60
Fármaco Dose VO (mg) Intervalo Fármaco Dose VO Intervalo
(mg)

Anticonvulsantes e antiarrítmicosa
Fenitoína 300 Diariamente ao deitar Clonazepam 1 A cada 6 h
Carbamazepina 200-300 A cada 6 h Gabapentinab 600-1.200 A cada 8 h
Oxcarbazepina 300 2 vezes/dia Pregabalina 150-600 2 vezes/dia

aOs antidepressivos, anticonvulsivantes e antiarrítmicos não foram aprovados pela Food and Drug Administration (FDA) para tratamento de

dor. bA gabapentina foi aprovada pela FDA para ser usada em doses de até 1.800 mg/dia no tratamento da neuralgia pós-herpética.
Siglas: 5-HT, serotonina; NE, norepinefrina; AINE, anti-inflamatório não esteroide; AAS, ácido acetilsalicílico; VO, via oral; IM,
intramuscular; IV, intravenoso.

Como se mostram efetivos para esses tipos comuns de dor e podem ser comercializados sem prescrição
médica, os inibidores da COX constituem, sem dúvida alguma, os analgésicos mais comumente utilizados.
São bem absorvidos pelo trato gastrintestinal e, se usados ocasionalmente, apresentam efeitos colaterais
mínimos. Com uso crônico, a irritação gástrica passa a ser um efeito colateral comum tanto para o ácido
acetilsalicílico quanto para os AINEs, sendo este o fator que mais frequentemente limita a dose que pode
ser administrada. A irritação gástrica é mais grave com o ácido acetilsalicílico, que pode causar erosão e
ulceração da mucosa gástrica, levando ao sangramento ou à perfuração. Como o ácido acetilsalicílico
acetila irreversivelmente a COX plaquetária e, dessa forma, interfere com a coagulação sanguínea, a
hemorragia digestiva passa a ser um risco específico. Idade avançada e história de doença gastrintestinal são
fatores que aumentam os riscos relacionados com o AAS e os AINEs. Além da reconhecida toxicidade
gastrintestinal dos AINEs, a nefrotoxicidade também é um problema significativo para os que utilizam esses
fármacos de forma crônica. Os pacientes sob risco de insuficiência renal, particularmente aqueles com
depleção significativa do volume intravascular como costuma ocorrer com o uso crônico de diuréticos ou
nos casos com hipovolemia aguda, devem evitar os AINEs. Os AINEs também podem elevar a pressão
arterial em alguns indivíduos. O tratamento em longo prazo com AINEs exige monitoramento regular da
pressão arterial e tratamento, se necessário. Embora seja hepatotóxico quando tomado em altas doses, o
paracetamol raramente provoca irritação gástrica e não interfere com a função plaquetária.
A introdução das formas parenterais de AINEs, cetorolaco e diclofenaco, ampliou a utilidade dessa
classe de medicamentos no tratamento da dor aguda intensa. Ambos os agentes são suficientemente
potentes e rápidos em seu início de ação para suplantar os opioides no tratamento de muitos pacientes com
cefaleia e dor musculoesquelética agudas intensas.
Há duas classes principais de COX: a COX-1 é expressa constitutivamente, e a COX-2 é induzida nos
estados inflamatórios. Os fármacos seletivos para a COX-2 possuem ação analgésica semelhante e
provocam menos irritação gástrica que os inibidores não seletivos da COX. O uso de agentes seletivos da
COX-2 não parece reduzir o risco de nefrotoxicidade em comparação com os AINEs não seletivos. Por
outro lado, os fármacos seletivos para a COX-2 proporcionam significativos benefícios no tratamento da
dor pós-operatória aguda, uma vez que não afetam a coagulação sanguínea. Os inibidores não seletivos da
COX geralmente são contraindicados no período pós-operatório, já que comprometem a coagulação
sanguínea mediada por plaquetas e, portanto, estão associados a aumento do sangramento no sítio cirúrgico.
Os inibidores da COX-2, incluindo o celecoxibe, estão associados ao aumento de risco cardiovascular,
incluindo morte cardiovascular, infarto agudo do miocárdio, AVC, insuficiência cardíaca ou evento
tromboembólico. O efeito parece ser uma propriedade da classe dos AINEs, exceto o AAS. Tais fármacos
estão contraindicados nos pacientes que estejam no período pós-operatório imediato da instalação de bypass
coronariano e devem ser usados com cautela em pacientes idosos e naqueles com história de doença
cardiovascular ou fatores de risco significativos para tal.

ANALGÉSICOS OPIOIDES
Os opioides são os agentes mais potentes para o alívio da dor atualmente disponíveis. Entre todos os
analgésicos, são os que apresentam a maior abrangência de eficácia e representam o método mais confiável
e efetivo para o alívio rápido da dor. Embora comuns, os efeitos colaterais em sua maioria são reversíveis:
náusea, vômitos, prurido e constipação são os mais frequentes e incômodos. A depressão respiratória é
incomum em doses analgésicas padrão, mas pode representar uma ameaça à vida. Os efeitos colaterais
relacionados aos opioides podem ser rapidamente revertidos com a naxolona, um antagonista dos
narcóticos. Muitos médicos, enfermeiros e pacientes têm certo receio de utilizar opioides em razão do medo
de possível adição em seus pacientes. Na realidade, a probabilidade de um paciente se tornar dependente de
narcóticos em consequência do seu uso clínico apropriado é muito pequena. Para a dor crônica,
particularmente aquela não relacionada a câncer, o risco de adição em pacientes que usam opioides
cronicamente permanece pequeno, mas o risco parece aumentar com o escalonamento da dose. O médico
não deve hesitar em prescrever analgésicos opioides a pacientes com dor aguda intensa. A Tabela 10-1 lista
os analgésicos opioides mais comumente utilizados.
Os opioides produzem analgesia atuando no SNC. Eles ativam os neurônios inibidores da dor e inibem
diretamente os neurônios que a transmitem. A maioria dos analgésicos opioides comercialmente disponíveis
atua no mesmo receptor de opioides (receptor-μ), diferindo principalmente na sua potência, velocidade de
início, duração da ação e via ideal de administração. Alguns efeitos colaterais resultam do acúmulo de
metabólitos não opioides específicos de determinados fármacos. Um bom exemplo disso é a normeperidina,
um metabólito da meperidina. Com doses maiores de meperidina, normalmente acima de 1 g/dia, o acúmulo
de normeperidina pode produzir hiperexcitabilidade e crises convulsivas não reversíveis com a naloxona. O
acúmulo de normeperidina é maior nos pacientes com insuficiência renal.
A forma mais rápida de alívio da dor é a obtida com a administração intravenosa de opioides; a
administração por via oral produz alívio de forma bem mais lenta. Em razão da possibilidade de depressão
respiratória, os pacientes com qualquer forma de comprometimento da respiração devem ser mantidos sob
observação estrita após a administração de opioide; há indicação de uso de monitor da saturação de
oxigênio, mas somente se este monitor for mantido sob vigilância constante. A depressão respiratória
induzida por opioide é caracteristicamente acompanhada por sedação e por redução da frequência
respiratória. A queda na saturação de oxigênio indica nível crítico de depressão respiratória com
necessidade de intervenção imediata a fim de prevenir a ocorrência de hipoxemia potencialmente fatal.
Novos dispositivos de monitoramento que incorporam capnografia ou fluxo aéreo faríngeo podem detectar
a apneia em seu início, devendo ser usados nos pacientes hospitalizados. Deve-se manter assistência
ventilatória até que a depressão respiratória induzida pelo opioide tenha sido resolvida. O antagonista dos
opioides naloxona deve estar imediatamente disponível sempre que sejam utilizados opioides em doses
elevadas ou em pacientes com função pulmonar comprometida. Os efeitos dos opioides são dose-
dependentes, e observa-se grande variabilidade entre os pacientes quanto às doses que aliviam a dor e
produzem efeitos colaterais. É comum haver efeito sinérgico de depressão respiratória quando são
administrados opioides em conjunto com outros depressores do SNC, especialmente com
benzodiazepínicos. Em razão dessa variabilidade, a instituição da terapia requer titulação para a
determinação de dose e intervalo ideais. O objetivo mais importante é obter alívio adequado da dor. Logo, é
preciso determinar se o fármaco foi capaz de aliviar adequadamente a dor com reavaliações frequentes para
determinar o intervalo ideal entre as doses. O erro mais frequentemente cometido pelos médicos no
tratamento da dor intensa com opioides é a prescrição de dose inadequada. Como muitos pacientes relutam
em se queixar, essa prática leva a sofrimento desnecessário. Não havendo sedação no momento em que é
esperado o efeito máximo, o médico não deve hesitar em repetir a dose inicial para obter alívio satisfatório
da dor.
Uma abordagem atualmente padronizada para o problema do alívio adequado da dor é o uso da
analgesia controlada pelo paciente (ACP). A ACP utiliza um dispositivo de infusão controlado por
microprocessador capaz de fornecer uma dose contínua basal de um opioide assim como doses adicionais
pré-programadas toda vez que o paciente apertar um botão. O paciente pode, então, titular a dose até o nível
ideal. Essa técnica é mais amplamente utilizada no tratamento da dor pós-operatória, mas não há motivo
para que não seja utilizada por qualquer paciente hospitalizado com dor intensa e persistente. A ACP
também é utilizada no tratamento domiciliar a curto prazo dos pacientes com dor refratária, como a causada
pelo câncer metastático.
É importante compreender que o dispositivo para ACP fornece doses pequenas e repetidas para manter
o alívio da dor; nos pacientes com dor intensa, primeiro é necessário controlar a dor com uma dose de
ataque antes que se possa iniciar a ACP. A dose em bolus do fármaco (comumente, 1 mg de morfina, 0,2 mg
de hidromorfona ou 10 μg de fentanila) pode, então, ser administrada repetidas vezes de acordo com a
necessidade. Para impedir a superdosagem, os dispositivos para a ACP devem ser programados para
bloquear a administração durante um determinado período (normalmente começando em 10 min) após cada
injeção adicional e limitar a dose total infundida por hora. Conquanto haja quem defenda a infusão
simultânea contínua ou basal do mesmo fármaco usado para a ACP, tal prática pode elevar o risco de
depressão respiratória e não foi demonstrado que aumente a eficácia global dessa técnica.
A disponibilidade de novas vias de administração ampliou as possibilidades de utilização dos
analgésicos opioides. A mais importante é a possibilidade de administração espinal. Os opioides podem ser
infundidos através de cateter medular intratecal ou extradural. Ao aplicar opioides diretamente na medula
espinal ou no espaço epidural adjacente à medula espinal, obtém-se analgesia regional utilizando uma dose
total relativamente baixa. De fato, a dose necessária para a produção de analgesia efetiva quando se usa
morfina por via intratecal (0,1 a 0,3 mg) é uma fração daquela necessária para produzir analgesia
semelhante por via intravenosa (5 a 10 mg). Dessa maneira, é possível minimizar efeitos colaterais, como
sedação, náusea e depressão respiratória. Essa abordagem vem sendo extensamente utilizada durante o
trabalho de parto bem como para alívio da dor pós-operatória que se segue a procedimentos cirúrgicos. A
administração intratecal contínua via implante com sistema de infusão espinal atualmente é usada com
frequência, particularmente para o tratamento da dor relacionada com câncer a requerer doses sedativas para
seu controle caso o fármaco fosse administrado por via sistêmica. Os opioides também podem ser
administrados pelas vias intranasal (butorfanol), retal, transdérmica (fentanila e bupremorfina), ou através
da mucosa oral (fentanila), evitando-se, assim, o desconforto de injeções frequentes em pacientes que não
possam receber medicação oral. Os adesivos transdérmicos de fentanila e bupremorfina têm a vantagem de
proporcionar níveis plasmáticos bastante uniformes, o que pode melhorar o conforto do paciente.
Um acréscimo recente ao arsenal para tratamento dos efeitos colaterais induzidos por opioides são os
antagonistas periféricos dos receptores opioides, alvimopan e metilnaltrexona. O alvimopan está disponível
para administração por via oral e fica restrito à luz intestinal por limitação da absorção; a metilnaltrexona
está disponível para administração subcutânea, praticamente sem penetração no SNC. Ambos os agentes
atuam ligando-se aos receptores μ periféricos, inibindo ou revertendo os efeitos dos opioides nesses sítios
periféricos. A ação de ambos os agentes é restrita aos sítios receptores fora do SNC; assim, esses fármacos
revertem os efeitos adversos dos analgésicos opioides que sejam mediados pelos receptores periféricos sem
reverter seus efeitos analgésicos. O alvimopan mostrou-se efetivo para redução na duração de íleo
persistente seguindo-se à cirurgia abdominal em pacientes tratados com analgésico opioide para controle da
dor pós-operatória. A metilnaltrexona se mostrou efetiva para alívio da constipação induzida por opioide em
pacientes fazendo uso crônico de tal analgésico.

Combinações de opioides e inibidores da COX Quando utilizados em combinação, opioides e inibidores da


COX apresentam efeitos aditivos. Como é possível utilizar uma dose menor de cada um para alcançar o
mesmo grau de alívio da dor, e como seus efeitos colaterais não são aditivos, essas associações são
utilizadas para reduzir a gravidade dos efeitos colaterais relacionados com a dose. Entretanto, as
combinações de opioide com paracetamol em proporções fixas encerram um risco importante. A elevação
da dose em razão de aumento na intensidade da dor ou de diminuição do efeito do opioide em consequência
de tolerância desenvolvida ao fármaco pode resultar em níveis de paracetamol tóxicos para o fígado.
Embora a hepatoxicidade relacionada com o paracetamol seja rara, esse fármaco continua sendo uma causa
significativa de insuficiência hepática. Assim, muitos médicos abandonaram o uso da associação opioide-
paracetamol para evitar o risco de exposição excessiva ao paracetamol quando há necessidade de aumento
da dose analgésica.
DOR CRÔNICA
O manejo dos pacientes com dor crônica representa um desafio intelectual e
emocional. A sensibilização do sistema nervoso pode ocorrer sem uma causa
precipitante evidente, por exemplo, fibromialgia ou cefaleia crônica. Em muitos
pacientes, a dor crônica se torna uma doença própria. Costuma ser difícil ou até
impossível determinar com certeza o mecanismo de geração de dor; esses
pacientes exigem bastante tempo do médico e, muitas vezes, parecem estar
emocionalmente perturbados. A conduta médica tradicional de procurar uma
patologia orgânica obscura geralmente é inútil. Por outro lado, a avaliação
psicológica e os modelos de tratamento com base comportamental costumam ser
úteis, sobretudo quando realizados em um centro multidisciplinar para
tratamento de dor. Infelizmente, essa abordagem, embora efetiva, permanece
subutilizada na prática clínica atual.
Há diversos fatores capazes de causar, perpetuar ou exacerbar a dor crônica.
Em primeiro lugar, o paciente pode ser portador de uma doença
caracteristicamente dolorosa para a qual, atualmente, não existe cura. São
exemplos a artrite, o câncer, as cefaleias crônicas diárias, a fibromialgia e a
neuropatia diabética. Em segundo lugar, é possível que existam fatores
perpetuadores secundários que tenham sido desencadeados por alguma doença e
tenham persistido após a sua resolução. São exemplos a lesão de nervos
sensitivos, a atividade eferente simpática e a contração muscular reflexa
dolorosa (espasmo). Por fim, diversos estados psicológicos podem agravar ou
mesmo causar dor.
Há certas áreas às quais deve-se dedicar atenção especial na anamnese.
Como a depressão é o transtorno emocional mais comum nos indivíduos com
dor crônica, os pacientes devem ser inquiridos sobre humor, apetite, padrões de
sono e atividade diária. Um questionário padronizado simples, como o
Inventário de Depressão de Beck, constitui um instrumento útil para
rastreamento. Convém lembrar que a depressão maior é uma doença comum,
tratável e potencialmente fatal.
Outros sinais indicativos de que há um transtorno emocional relevante
contribuindo para a queixa de dor crônica são: ocorrência em múltiplos locais
não relacionados; padrão de episódios dolorosos recorrentes, porém distintos,
com início na infância ou na adolescência; o fato de a dor ter-se iniciado em uma
época de trauma emocional, como a perda de um dos pais ou do cônjuge;
história de maus-tratos físicos ou de abuso sexual; e uso abusivo, passado ou
presente, de drogas.
No exame físico, deve-se dar atenção especial ao fato de o paciente
proteger a área dolorosa e evitar certos movimentos ou posturas em função da
dor. A identificação de um componente mecânico para a dor pode ser útil para o
diagnóstico e o tratamento. Devem-se examinar as áreas dolorosas quanto à
presença de hipersensibilidade profunda à palpação, observando se a dor é
localizada em músculos, estruturas ligamentares ou articulações. A dor
miofascial crônica é muito comum e, nesses pacientes, a palpação profunda pode
revelar pontos desencadeantes altamente localizados que consistem em faixas ou
nós rígidos nos músculos. O alívio da dor após injeção de anestésico local em
tais pontos desencadeadores confirma o diagnóstico. O componente neuropático
da dor é indicado por evidências de lesão nervosa, como deficiência sensitiva,
pele hipersensível (alodinia), perda de força e atrofia muscular ou abolição dos
reflexos tendíneos profundos. As evidências que sugerem comprometimento do
sistema nervoso simpático são presença de edema difuso, alterações na cor e
temperatura da pele, bem como hipersensibilidade cutânea e articular em
comparação com o lado normal. O alívio da dor com bloqueio simpático
corrobora o diagnóstico, mas, uma vez que o quadro se torne crônico, a resposta
ao bloqueio simpático passa a ser variável em magnitude e duração; o papel dos
bloqueios simpáticos sucessivos no controle geral da SDRC não está claro.
Um princípio norteador na investigação dos pacientes com dor crônica é
avaliar os fatores emocionais e orgânicos antes de instituir o tratamento. A
análise conjunta desses fatores, sem que seja necessário aguardar a exclusão de
possíveis causas orgânicas antes de considerar os aspectos emocionais, melhora
a adesão do paciente ao tratamento, o que em parte pode ser explicado pela
tranquilização do paciente ao perceber que a avaliação psicológica não significa
que o médico esteja duvidando da validade de sua queixa. Mesmo quando se
pode identificar uma causa orgânica para a dor do paciente, ainda é prudente
investigar outros fatores. Por exemplo, os pacientes com câncer e metástases
ósseas dolorosas também podem apresentar dor decorrente da lesão nervosa e
estar deprimidos. O tratamento ideal exige que cada um desses fatores seja
investigado e tratado.

TRATAMENTO
Dor crônica
Uma vez concluído o processo de avaliação e identificados os prováveis fatores etiológicos e agravantes,
deve-se elaborar um plano terapêutico explícito. Uma parte importante desse processo é identificar
objetivos funcionais específicos e realistas para o tratamento, como obter uma boa noite de sono, ser capaz
de sair para fazer compras ou voltar a trabalhar. Pode ser necessária uma abordagem multidisciplinar que
utilize medicamentos, orientação psicológica, fisioterapia, bloqueio nervoso e até mesmo cirurgia para
melhorar a qualidade de vida do paciente. Também há alguns procedimentos recentes e minimamente
invasivos que podem ser úteis para alguns pacientes com dor refratária. Entre esses estão intervenções
guiadas por imagem, como injeção epidural de glicocorticoide para dor radicular aguda e tratamento com
radiofrequência nas facetas articulares para lombalgia e cervicalgia crônicas relacionadas com as facetas
articulares. Para os pacientes com dor intensa e persistente que não tenham respondido a tratamento
conservador, a aplicação de eletrodos no canal medular sobrejacente às áreas colunar-dorsais da medula
espinal (estimulação medular) ou o implante de sistemas para administração intratecal de medicamentos se
mostraram significativamente benéficos. Os critérios para predição de quais pacientes responderão a esses
procedimentos continuam sendo desenvolvidos. Em geral, ficam reservados aos pacientes que não tenham
tido uma resposta satisfatória aos tratamentos farmacológicos convencionais. O encaminhamento do
paciente a serviços multidisciplinares para tratamento de dor, a fim de que seja feita uma avaliação
completa, deve preceder qualquer procedimento invasivo. Evidentemente, esse encaminhamento não é
necessário para todos os pacientes com dor crônica. Para alguns, o tratamento farmacológico é suficiente
para proporcionar alívio adequado.

MEDICAMENTOS ANTIDEPRESSIVOS
Os antidepressivos tricíclicos (ADTs), particularmente nortriptilina e desipramina (Tab. 10-1), são úteis no
tratamento dos pacientes com dor crônica. Embora desenvolvidos para o tratamento da depressão, os ADTs
possuem um espectro de atividades biológicas relacionadas com a dose que inclui a analgesia em uma
variedade de distúrbios clínicos crônicos. Embora seu mecanismo seja desconhecido, o efeito analgésico
dos ADTs tem início mais rápido e ocorre com doses mais baixas que as necessárias para o tratamento da
depressão. Além disso, os pacientes com dor crônica que não estejam deprimidos obtêm alívio com
antidepressivos. Há evidências de que os antidepressivos tricíclicos potencializam a analgesia dos opioides,
por isso podem ser úteis como adjuvantes no tratamento da dor intensa e persistente, como a que ocorre na
presença de tumores malignos. A Tabela 10-2 lista alguns distúrbios dolorosos que respondem aos ADTs.
Os ADTs são particularmente úteis no tratamento das dores neuropáticas, como na neuropatia diabética e na
neuralgia pós-herpética, para as quais existem poucas opções terapêuticas.

TABELA 10-2 ■ Distúrbios dolorosos que respondem aos antidepressivos tricíclicos


Neuralgia pós-herpéticaa
Neuropatia diabéticaa
Fibromialgiaa
Cefaleia do tipo tensionala
Migrâneaa
Artrite reumatoidea,b
Lombalgia crônicab
Câncer
Dor central pós-AVC
aEnsaios controlados demonstraram analgesia. bEstudos controlados indicaram benefícios, mas não analgesia.

Sigla: AVC, acidente vascular cerebral.


Os ADTs que demonstraram efeito de alívio de dor apresentam efeitos colaterais significativos (Tab. 1
0-1; Cap. 444). Alguns desses efeitos, como hipotensão ortostática, sonolência, retardo da condução
cardíaca, perda de memória, constipação intestinal e retenção urinária, são particularmente problemáticos
em pacientes idosos, e vários são aditivos aos efeitos colaterais dos analgésicos opioides. Os inibidores
seletivos da recaptação de serotonina, como a fluoxetina, apresentam efeitos colaterais menos numerosos e
menos graves que os ADTs; todavia, são muito menos eficazes no alívio da dor. É interessante assinalar que
a venlafaxina e a duloxetina, antidepressivos não tricíclicos que bloqueiam a recaptação de serotonina e
norepinefrina, parecem manter a maior parte do efeito analgésico dos ADTs, com um perfil de efeitos
colaterais mais parecido com o dos inibidores seletivos da recaptação de serotonina. Esses fármacos podem
ser particularmente úteis para pacientes que não tolerem os efeitos colaterais dos ADTs.

ANTICONVULSIVANTES E ANTIARRÍTMICOS
Esses fármacos são utilizados primariamente em pacientes com dor neuropática. A fenitoína e a
carbamazepina foram os primeiros a produzir alívio da dor na neuralgia do trigêmeo (Cap. 433). Esta dor
tem as características de um choque elétrico breve e agudo. De fato, os anticonvulsivantes parecem ser
particularmente úteis para o alívio das dores que possuem esse caráter lancinante. Os anticonvulsivantes
mais recentes, os ligantes da subunidade alfa-2-delta dos canais de cálcio gabapentina e a pregabalina,
mostraram-se efetivos no tratamento de uma ampla variedade de dores neuropáticas. Além disso, em razão
do perfil favorável de efeitos colaterais, esses novos anticonvulsivantes têm sido usados com frequência
como primeira linha de tratamento.

MEDICAÇÃO OPIOIDE CRÔNICA


O uso de opioides em longo prazo é aceito para os pacientes com dor causada por câncer. Embora o uso de
opioide para dor crônica de origem não maligna seja controverso, está claro que, para muitos pacientes, os
opioides são a única opção capaz de produzir alívio significante na dor. Isto é compreensível considerando
que eles são mais potentes e apresentam eficácia mais abrangente do que todos os demais analgésicos.
Embora a dependência seja rara nos pacientes que utilizam opioides pela primeira vez para alívio de dor, é
provável que ocorra algum grau de tolerância e dependência física com o uso prolongado. Além disso,
estudos sugerem que esta terapia em longo prazo agrave a dor em alguns indivíduos, a chamada
hiperalgesia induzida por opioides. Por conseguinte, antes de recorrer ao tratamento com opioides, outras
opções devem ser exploradas, e suas limitações, bem como os riscos relacionados com seu uso, devem ser
explicadas ao paciente. Também é importante assinalar que alguns analgésicos opioides apresentam
propriedades agonistas-antagonistas mistas (p. ex., butorfanol e buprenorfina). Na prática, isso significa que
podem agravar a dor ao induzir síndrome de abstinência em pacientes com dependência física a outros
analgésicos opioides.
Para o uso ambulatorial prolongado de opioides administrados por via oral, pode ser desejável
prescrever compostos de ação prolongada, como o levorfanol, a metadona, a morfina de liberação
sustentada ou a fentanila transdérmica (Tab. 10-1). Os perfis farmacocinéticos dessas apresentações
permitem a manutenção de níveis sanguíneos analgésicos sustentados, potencialmente minimizando efeitos
colaterais, como a sedação, que estão associados a níveis plasmáticos elevados, e reduzindo a probabilidade
de dor como efeito rebote associado à queda rápida na concentração plasmática do opioide. Não obstante os
opioides de ação prolongada proporcionarem alívio superior da dor em pacientes com perfil de dor
contínua, outros que apresentam dor episódica intensa e intermitente evoluem com melhor controle da dor e
menos efeitos colaterais com o uso periódico de analgésicos opioides de ação curta. A constipação intestinal
é um efeito colateral praticamente universal dos opioides e deve ser tratado com conduta expectante. Como
observado anteriormente na discussão sobre o tratamento da dor aguda, uma evolução recente favorável aos
pacientes foi o desenvolvimento de antagonistas opioides de ação periférica capazes de reverter a
constipação associada ao uso de opioide sem interferir com a analgesia.
Logo após a introdução de uma apresentação de liberação controlada de oxicodona no final dos anos
1990, observou-se um aumento impressionante no número de atendimentos em emergência e de mortes
associadas à ingestão de oxicodona, direcionando a atenção pública ao uso indevido de medicamentos para
dor com prescrição médica obrigatória. O grau de uso abusivo de opioide vendido com prescrição médica
cresceu ao longo da última década, levando o Centers for Disease Control and Prevention dos Estados
Unidos a classificar o uso abusivo de opioide prescrito como uma epidemia. Aparentemente isto ocorre, em
grande parte, em razão de indivíduos utilizando um medicamento prescrito sem acompanhamento, na
maioria dos casos um analgésico opioide. As mortes induzidas por medicamentos aumentaram rapidamente
e atualmente figuram como a segunda causa de morte de norte-americanos, vindo logo a seguir das
fatalidades por acidente de veículo automotor. Em 2011, o Office of National Drug Control Policy
estabeleceu uma abordagem multifacetada para enfrentar o uso abusivo de medicamentos prescritos,
incluindo programas de monitoramento de medicamentos vendidos sob prescrição (Prescription Drug
Monitoring Programs [PDMPs]) que permitem determinar se os pacientes estão recebendo prescrições de
vários profissionais de saúde e servir-se do uso da lei para eliminar práticas de prescrição impróprias. Em
2016, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) lançou a CDC Guideline for Prescribing
Opioids for Chronic Pain, com recomendações para médicos da atenção primária que prescrevem opioides
para dor crônica não relacionada a câncer. As diretrizes se baseiam nas melhores evidências científicas
disponíveis e abordam (1) quando iniciar ou continuar os opioides para dor crônica; (2) seleção, dosagem,
duração, seguimento e suspensão de opioides; e (3) avaliação dos riscos e danos do uso de opioides. O
aumento recente no controle deixa muitos profissionais de saúde hesitantes no momento de prescrever
analgésicos opioides, exceto por períodos curtos para controle de dor associada a uma doença ou lesão. Por
enquanto, a opção de iniciar terapia crônica com opioide para um dado paciente é deixada a critério do
profissional. Diretrizes pragmáticas para a seleção e monitoramento adequados de pacientes que recebem
terapia opioide crônica são mostradas na Tabela 10-3; um checklist de prescrição de opioides para dor não
causada por câncer para médicos da atenção primária é mostrado na Tabela 10-4.

TABELA 10-3 ■ Diretrizes para seleção e monitoramento de pacientes para terapia crônica com opioide
(TCO) para dor crônica não causada por câncer
Seleção do paciente
• Anamnese, exame físico e testes apropriados incluindo avaliação do risco de uso abusivo ou indevido e de adição.
• Considere teste com TCO se a dor for moderada a intensa, se estiver produzindo impacto adverso na função ou na qualidade de vida e se os
possíveis benefícios terapêuticos sobrepujarem os potenciais malefícios.
• Deve-se realizar e documentar uma avaliação da relação entre benefício e dano, incluindo anamnese, exame físico e testes diagnósticos
apropriados antes e durante a TCO.
Consentimento informado e uso de planos de manejo
• Deve-se obter consentimento informado. A discussão permanente com o paciente acerca da TCO deve incluir metas, expectativas, riscos
potenciais e alternativas.
• Considere o uso de um plano de manejo escrito para documentar as responsabilidades e as expectativas do paciente e do médico e para
auxiliar na informação do paciente.
Início e ajuste da dose
• O tratamento inicial com opioides deve ser considerado um teste terapêutico para determinar se a TCO é apropriada.
• A escolha do opioide, a opção pela dose inicial e seu ajuste devem ser individualizados de acordo com estado de saúde do paciente,
exposição prévia a opioides, metas terapêuticas e malefícios previstos ou observados.
Monitoramento
• Os pacientes em TCO devem ser reavaliados periodicamente e de acordo com as mudanças circunstanciais. O monitoramento deve incluir
documentação da intensidade da dor e do nível funcional do paciente, avaliação do progresso em direção às metas terapêuticas, ocorrência
de eventos adversos e adesão ao tratamento prescrito.
• Nos pacientes em TCO considerados em risco ou que tenham tido comportamento inadequado relacionado com uso de drogas, os médicos
devem realizar periodicamente rastreamento de drogas na urina ou obter informações de outras fontes para confirmar a adesão ao plano de
cuidados da TCO.
• Nos pacientes em TCO que não sejam considerados de risco e sem antecedentes de comportamento inadequado relacionado com drogas, os
médicos devem considerar a possibilidade de realizar periodicamente rastreamento de drogas na urina ou obter informações de outras fontes
para confirmar a adesão ao plano de cuidado da TCO.
Fonte: Adaptada com permissão de R Chou et al: J Pain 10:113, 2009.

TABELA 10-4 ■ Checklist do Centers for Disease Control para a prescrição de opioides para dor crônica
Para profissionais da atenção primária que tratam adultos (18+) com dor crônica ≥ 3 meses, excluindo cuidados para câncer,
paliativos e terminais
CHECKLIST

AO CONSIDERAR A TERAPIA OPIOIDE DE LONGO PRAZO:


• Definir objetivos realistas para a dor e a função com base no diagnóstico (p. ex., caminhar ao redor do quarteirão).
• Confirmar que terapias não opioides foram tentadas e otimizadas.
• Discutir benefício e riscos (p. ex., adição, overdose) com o paciente.
• Avaliar o risco de dano ou uso indevido.
• Discutir os fatores de risco com o paciente.
• Verificar os dados do programa de monitoramento de medicamentos vendidos sob prescrição (PDMP).
• Verificar o rastreamento de drogas na urina.
• Definir critérios para interromper ou continuar os opioides.
• Avaliar a dor e a função basais (p. ex., escala de dor, prazer, atividade geral [PEG]).
• Programar reavaliação inicial dentro de 1-4 semanas.
• Prescrever opioides de ação curta usando a menor dosagem no rótulo do produto; combinar a duração com a reavaliação programada.
AO RENOVAR SEM UMA CONSULTA COM O PACIENTE
• Confirmar que a consulta de retorno está agendada para ≤ 3 meses desde a última consulta.
AO FAZER REAVALIAÇÃO EM CONSULTA COM O PACIENTE
• Continuar opioides apenas após confirmar melhora clinicamente significativa na dor e na função sem riscos ou danos significativos.
• Avaliar a dor e a função (p. ex., PEG); comparar com os resultados iniciais.
• Avaliar o risco de dano ou uso indevido:
• Observar o paciente quanto a sinais de sedação excessiva ou risco de overdose. Se houver: Reduzir gradualmente a dose.
• Verificar o PDMP.
• Verificar a presença de transtorno do uso de opioides se indicado (p. ex., dificuldade em controlar o uso). Se houver: Encaminhar para
tratamento.
• Confirmar que as terapias não opioides foram otimizadas. Determinar se continua, ajusta, reduz gradualmente ou suspende opioides.
• Calcular a dose de opioide em equivalente de miligramas de morfina (EMM).
• Se ≥ 50 EMM/dia no total (≥ 50 mg hidrocodona; ≥ 33 mg oxicodona), aumentar a frequência do acompanhamento; considerar a oferta
de naloxona.
• Evitar ≥ 90 EMM/dia no total (≥ 90 mg hidrocodona; ≥ 60 mg oxicodona) ou justificar cuidadosamente; considerar o encaminhamento
para especialista.
• Programar reavaliação a intervalos regulares (≤ 3 meses).
Fonte: Centers for Disease Control, disponível em: https://stacks.cdc.gov/view/cdc/38025, acesso em 25 de maio de 2017 (Domínio Público).

TRATAMENTO DA DOR NEUROPÁTICA


É importante que o tratamento dos pacientes com dor neuropática seja individualizado. Há diversos
princípios gerais que devem nortear a terapêutica: o primeiro é agir rapidamente para aliviar a dor, e o
segundo é minimizar os possíveis efeitos colaterais. Por exemplo, nos pacientes com neuralgia pós-
herpética e hipersensibilidade cutânea significativa, o uso tópico de lidocaína (em adesivo) pode produzir
alívio imediato sem efeitos colaterais. Os anticonvulsivantes (gabapentina ou pregabalina, ver
anteriormente) ou os antidepressivos (nortriptilina, desipramina, duloxetina ou venlafaxina) podem ser
usados como medicamentos de primeira linha nos pacientes com dor neuropática. Os agentes antiarrítmicos
de administração sistêmica como a lidocaína e a mexiletina têm menor probabilidade de serem efetivos;
embora a infusão intravenosa de lidocaína proporcione analgesia em pacientes com diversas formas de dor
neuropática, o alívio geralmente é transitório, normalmente durando apenas algumas horas após a suspensão
da infusão. O congênere da lidocaína para administração oral, a mexiletina, não é bem tolerado, produzindo
efeitos gastrintestinais adversos frequentes. Não há consenso quanto a classe de fármacos a ser usada como
primeira linha de tratamento para os diversos quadros de dor crônica. Contudo, como são necessárias doses
relativamente altas de anticonvulsivante para aliviar a dor, é comum haver sedação. A sedação também é
um problema com os ADTs, mas não tanto com os inibidores da recaptação de serotonina/norepinefrina
(IRSNs; p.ex., venlafaxina e duloxetina). Assim, nos pacientes idosos ou naqueles cujas atividades
cotidianas requerem níveis de atenção elevados, tais fármacos devem ser considerados os de primeira linha.
Já os opioides devem ser, nesses casos, considerados medicamentos de segunda ou terceira linhas.
Conquanto sejam altamente efetivos para muitos quadros dolorosos, os opioides são sedativos, e seus
efeitos tendem a diminuir com o tempo, levando a uma escalada de doses e, ocasionalmente, à piora da dor.
Medicamentos de diferentes classes podem ser utilizados em associações para otimizar o controle da dor.
Injeções repetidas de toxina botulínica são uma abordagem emergente que se mostra promissora no
tratamento de dor neuropática focal, particularmente na neuralgia pós-herpética, do trigêmeo e pós-
traumática.
Vale a pena enfatizar que muitos pacientes, especialmente aqueles com dor crônica, buscam
atendimento médico principalmente porque estão sofrendo e porque somente os médicos podem fornecer os
medicamentos necessários ao alívio da dor. É responsabilidade primária de todos os médicos minimizar o
desconforto tanto físico quanto emocional dos seus pacientes. O conhecimento acerca dos mecanismos da
dor e dos medicamentos analgésicos é um passo importante para que se possa atingir esses objetivos.

LEITURAS ADICIONAIS
Dowell D et al: CDC guideline for prescribing opioids for chronic pain—United
States, 2016. JAMA 315:1624, 2016.
Finnerup NB et al: Pharmacotherapy for neuropathic pain in adults: A systematic
review and meta-analysis. Lancet Neurol 14:162, 2015.
Sun EC et al: Incidence of and risk factors for chronic opioid use among opioid-
naive patients in the postoperative period. JAMA Intern Med 176:1286,
2016.
11
Dor torácica
David A. Morrow

A dor torácica está entre as razões mais comuns que levam os pacientes a
procurar assistência médica nas emergências ou nos consultórios médicos. A
avaliação da dor torácica não traumática é um desafio inerente, devido à
variedade de causas possíveis, uma minoria sendo condições potencialmente
fatais que não devem passar despercebidas. É importante estruturar a avaliação
diagnóstica inicial e o rastreamento dos pacientes com dor torácica aguda em
três categorias: (1) isquemia miocárdica; (2) outras causas cardiopulmonares
(doença pericárdica, emergências aórticas e condições pulmonares); e (3) causas
não cardiopulmonares. Embora a identificação rápida de condições de alto risco
seja uma prioridade da avaliação inicial, as estratégias que incorporam o uso
liberal rotineiro de testes têm o potencial de implicar efeitos adversos de
investigações desnecessárias.
EPIDEMIOLOGIA E HISTÓRIA NATURAL
A dor torácica é a terceira razão mais comum de idas a emergências nos Estados
Unidos, resultando em 6 a 7 milhões de consultas anuais a esses departamentos.
Mais de 60% dos pacientes com esse problema são hospitalizados para a
realização de exames mais detalhados e o restante é submetido a uma avaliação
adicional no próprio departamento de emergência. Apenas cerca de 15% dos
pacientes avaliados acabam recebendo o diagnóstico de síndrome coronariana
aguda (SCA), com índices de 10 a 20% na maioria das séries de populações não
selecionadas e uma taxa de apenas 5% em alguns estudos. Os diagnósticos mais
comuns são causas gastrintestinais (Fig. 11-1), e menos de 10% são de outras
condições cardiopulmonares potencialmente fatais. Em uma grande proporção
de pacientes com dor torácica aguda transitória, são excluídas a SCA ou outra
causa cardiopulmonar, mas a causa não é determinada. Portanto, os recursos e o
tempo dedicados à avaliação da dor torácica na ausência de uma causa grave
são substanciais. Apesar disso, um número surpreendente de 2 a 6% de pacientes
com dor torácica de etiologia presumivelmente não isquêmica que têm alta da
emergência depois são diagnosticados com infarto agudo do miocárdio (IAM).
Pacientes cujo diagnóstico de IAM passa despercebido correm um risco duas
vezes maior de morrer em 30 dias em comparação com os que são
hospitalizados.

FIGURA 11-1 Distribuição de diagnósticos definitivos na alta de pacientes com dor torácica aguda
não traumática. (Figura preparada com dados de P Fruergaard et al: Eur Heart J 17:1028, 1996.)

As histórias naturais da SCA, de doenças pericárdicas agudas, da embolia


pulmonar e de emergências aórticas são discutidas nos Capítulos 265, 268, 269,
273 e 274, respectivamente. Em um estudo realizado com mais de 350 mil
pacientes com dor torácica inespecífica presumivelmente não cardiopulmonar, a
taxa de mortalidade 1 ano após a alta foi < 2% e não diferiu de maneira
significativa da mortalidade ajustada para a idade na população geral. A taxa
estimada de eventos cardiovasculares importantes por 30 dias nos pacientes com
dor torácica aguda estratificada como baixo risco foi de 2,5% em um estudo
baseado em uma grande população, que excluiu pacientes com elevação do
segmento ST ou dor torácica não cardíaca definida.
CAUSAS DE DOR TORÁCICA
As principais etiologias da dor torácica são discutidas nesta seção e estão
resumidas na Tabela 11-1. Outros elementos da anamnese, do exame físico e dos
exames diagnósticos que ajudam a distinguir essas causas são discutidos em uma
seção posterior (ver “Abordagem ao paciente”).

TABELA 11-1 ■ Manifestações clínicas típicas das principais causas de dor torácica aguda
Sistema Condição Início/duração Qualidade Localização Características associadas

Cardiopulmonares
Cardíaco Isquemia Angina estável: Pressão, aperto, Retroesternal; em Galope de B4 ou sopro de
miocárdica Precipitada por compressão, peso, geral se irradia para insuficiência mitral (raro)
exercício, frio queimação o pescoço, a durante a dor; B3 ou estertores se
ou estresse; 2- mandíbula, os houver isquemia grave ou
10 min ombros ou braços; às complicação de infarto agudo do
Angina vezes epigástrica miocárdio
instável:
Padrão em
crescente ou
em repouso
Infarto agudo
do miocárdio:
Em geral > 30
min
Pericardite Variável; horas Pleurítica, aguda Retroesternal ou em Pode ser aliviada se o paciente
a dias; pode ser direção ao ápice sentar-se ereto e inclinar-se para
episódica cardíaco; pode frente; som de atrito pericárdico
irradiar para o ombro
esquerdo
Vascular Síndrome Início súbito de Lacerante ou Tórax anterior, Associada a hipertensão e/ou
aórtica aguda dor implacável lancinante; em frequentemente distúrbio subjacente do tecido
facada irradiando-se para as conectivo; sopro de insuficiência
costas, entre as aórtica; perda de pulsos
omoplatas periféricos
Embolia Início súbito Pleurítica; pode Frequentemente Dispneia, taquipneia, taquicardia
pulmonar manifestar-se com lateral, no lado da e hipotensão
embolia pulmonar embolia
maciça
Hipertensão Variável; em Pressão Subesternal Dispneia, sinais de aumento da
pulmonar geral com pressão venosa
exercício
Pulmonar Pneumonia Variável Pleurítica Unilateral, Dispneia, tosse, febre, estertores,
ou pleurite frequentemente às vezes atrito
localizada
Pneumotórax Início súbito Pleurítica No lado do Dispneia, diminuição dos sons
espontâneo pneumotórax respiratórios no lado do
pneumotórax
Não cardiopulmonares
Gastrintenstinal Refluxo 10-60 min Queimação Subesternal, Agravada por decúbito pós-
esofágico epigástrica prandial; aliviada por antiácidos
Espasmo 2-30 min Pressão, aperto, Retroesternal Pode se parecer bastante com a
esofágico queimação angina
Úlcera Prolongada; Queimação Epigástrica, Aliviada por alimentos ou por
péptica 60-90 min após subesternal antiácidos
as refeições
Doença na Prolongada Intensa ou em Epigástrica, Pode seguir-se a uma refeição
vesícula biliar cólica quadrante superior
direito; às vezes para
as costas
Neuromuscular Costocondrite Variável Intensa Esternal Às vezes edema, sensibilidade,
calor sobre a articulação; pode
ser reproduzida por pressão
localizada ao exame
Doença de Variável; pode Intensa; pode Braços e ombros Pode ser exacerbada pela
disco cervical ser súbita incluir dormência movimentação do pescoço
Trauma ou Geralmente Intensa Localizada na área Reproduzida por movimento ou à
estiramento constante de estiramento palpação
Herpes-zóster Geralmente Aguda ou em Distribuição por Exantema vesicular na área do
prolongada queimação dermátomo desconforto
Psicológico Transtornos Variável; pode Variável; em geral, Variável; pode ser Fatores situacionais podem
emocionais ser transitória se manifesta como retroesternal precipitar os sintomas; história
ou ou prolongada aperto e dispneia de ataques de pânico, depressão
psiquiátricos com sensação de
pânico ou morte
iminente

ISQUEMIA/LESÃO MIOCÁRDICA
A isquemia miocárdica que causa dor torácica, denominada angina pectoris, é
uma preocupação clínica primária em pacientes que se apresentam com sintomas
torácicos. A isquemia miocárdica é precipitada por um desequilíbrio entre a
necessidade miocárdica e o fornecimento miocárdico de oxigênio, resultando em
fornecimento insuficiente de oxigênio para satisfazer as demandas metabólicas
cardíacas. O consumo miocárdico de oxigênio pode estar elevado por aumentos
na frequência cardíaca, estresse da parede ventricular e contratilidade
miocárdica, enquanto o fornecimento miocárdico de oxigênio é determinado
pelo fluxo sanguíneo coronariano e pelo conteúdo de oxigênio arterial
coronariano. Quando a isquemia miocárdica é grave o suficiente e prolongada
(mesmo que apenas 20 minutos), ocorre lesão celular irreversível, resultando em
IAM.
A causa mais comum de cardiopatia isquêmica é uma placa ateromatosa
que obstrui uma ou mais artérias coronárias epicárdicas. A cardiopatia isquêmica
estável (Cap. 267) em geral resulta do estreitamento aterosclerótico gradual das
coronárias. A angina estável caracteriza-se por episódios isquêmicos que
costumam ser precipitados por um aumento superposto na demanda de oxigênio
durante exercício físico e aliviados com repouso. A cardiopatia isquêmica torna-
se instável mais comumente quando uma ruptura ou erosão de uma ou mais
lesões ateroscleróticas desencadeia trombose coronariana. A cardiopatia
isquêmica instável é classificada clinicamente pela presença ou ausência de lesão
miocárdica detectável e pela presença ou ausência de elevação do segmento ST
no eletrocardiograma (ECG) do paciente. Quando ocorre aterotrombose
coronariana aguda, o trombo intracoronariano pode ser parcialmente obstrutivo,
em geral ocasionando isquemia miocárdica sem elevação do segmento ST.
Acentuada por sintomas isquêmicos em repouso, com atividade mínima ou em
um padrão “em crescendo”, a cardiopatia isquêmica instável é classificada como
angina instável quando não há lesão miocárdica detectável e como IAM sem
elevação do ST (IAMSEST) quando há evidência de necrose miocárdica (Cap. 2
68). Quando o trombo coronariano causa obstrução aguda e completa, em geral
segue-se isquemia miocárdica transmural, com elevação do segmento ST no
ECG e necrose miocárdica, levando a um diagnóstico de IAM com elevação do
ST (IAMEST, ver Cap. 269).
Os médicos devem lembrar que sintomas de isquemia instável também
podem ocorrer predominantemente por aumento da demanda miocárdica de
oxigênio (p. ex., durante estresse psicológico intenso ou febre) ou por uma
liberação menor de oxigênio em decorrência de anemia, hipoxia ou hipotensão.
No entanto, a designação de síndrome coronariana aguda, que abrange angina
instável, IAMSEST e IAMEST, em geral é reservada para a isquemia precipitada
por aterotrombose coronariana aguda. Para orientar as estratégias terapêuticas,
um sistema padronizado de classificação do IAM foi ampliado para discriminar
o IAM que resulta de trombose coronariana aguda (tipo 1) do IAM que ocorre
secundário a outros desequilíbrios do fornecimento e da demanda miocárdicos
de oxigênio (tipo 2; ver Cap. 268).
Outros fatores podem contribuir para a cardiopatia isquêmica estável e a
instável, como disfunção endotelial, doença microvascular e vasospasmo,
sozinhos ou combinados com aterosclerose coronariana, e ser a causa dominante
de isquemia miocárdica em alguns pacientes. Além disso, processos não
ateroscleróticos, inclusive anormalidades congênitas dos vasos coronarianos,
ponte miocárdica, arterite coronariana e coronariopatia induzida por radiação,
podem acarretar obstrução coronariana. Condições associadas a uma demanda
miocárdica extrema de oxigênio e comprometimento do fluxo sanguíneo
endocárdico, como valvopatia aórtica (Cap. 274), miocardiopatia hipertrófica ou
miocardiopatia dilatada idiopática (Cap. 254), também podem precipitar
isquemia miocárdica em pacientes com ou sem aterosclerose obstrutiva
subjacente.
Características da dor torácica isquêmica As características clínicas da angina
pectoris, em geral citada simplesmente como “angina”, são altamente similares
se a dor isquêmica for uma manifestação de cardiopatia isquêmica estável,
angina instável ou IAM; as exceções são diferenças no padrão e na duração dos
sintomas associados a essas síndromes (Tab. 11-1). Heberden inicialmente
descreveu a angina como uma sensação de “aperto e ansiedade”. A dor torácica
característica da isquemia miocárdica é descrita geralmente como contínua,
intensa, excruciante, esmagadora ou constritora. Entretanto, em uma minoria
substancial de pacientes, a qualidade da dor é extremamente vaga e pode ser
descrita como um aperto leve ou meramente uma sensação desconfortável, às
vezes como dormência ou sensação de queimação. A localização da dor
geralmente é retroesternal, mas é comum ele irradiar-se para baixo da superfície
ulnar do braço esquerdo; o braço direito, ambos os braços, o pescoço, a
mandíbula ou os ombros também podem estar envolvidos. Essas e outras
características da dor torácica isquêmica pertinentes à discriminação de outras
causas de dor torácica são discutidas mais adiante neste capítulo (ver
“Abordagem ao paciente”).
A angina estável em geral começa gradualmente e atinge sua intensidade
máxima em questão de minutos antes de dissipar-se vários minutos depois com o
repouso ou a administração de nitroglicerina. É comum a dor ocorrer de maneira
previsível com um nível característico de exercício ou estresse psicológico. Por
definição, a angina instável manifesta-se por dor torácica anginosa que ocorre
com atividade física de intensidade cada vez mais baixa ou mesmo em repouso.
A dor torácica associada ao IAM costuma ser mais grave, é prolongada (em
geral, dura ≥ 30 minutos) e não é aliviada com o repouso.

Mecanismos da dor cardíaca As vias neurais envolvidas na dor cardíaca


isquêmica são pouco entendidas. Acredita-se que os episódios isquêmicos
excitem receptores locais sensíveis a estímulos químicos e mecânicos que, por
sua vez, estimulam a liberação de adenosina, bradicinina e outras substâncias
que ativam os terminais sensitivos de fibras simpáticas e vagais aferentes. As
fibras aferentes atravessam os nervos que se conectam aos cinco gânglios
simpáticos torácicos superiores e às cinco raízes torácicas distais superiores da
medula espinal. A partir daí, os impulsos são transmitidos para o tálamo. Na
medula espinal, impulsos cardíacos simpáticos aferentes podem convergir com
os impulsos vindos de estruturas torácicas somáticas, e essa convergência pode
ser a base da dor cardíaca irradiada. Além disso, fibras cardíacas vagais aferentes
fazem sinapse no núcleo do trato solitário do bulbo e então descem para o trato
espinotalâmico cervical superior, e essa rota pode contribuir para a dor anginosa
sentida no pescoço e na mandíbula.

OUTRAS CAUSAS CARDIOPULMONARES


Doenças pericárdicas e outras miocárdicas (Ver também Cap. 265) A
inflamação do pericárdio devido a causas infecciosas ou não infecciosas pode ser
responsável pela dor torácica aguda ou crônica. A superfície visceral e a maioria
da superfície parietal do pericárdio são insensíveis à dor. Assim, acredita-se que
a dor da pericardite surja principalmente da inflamação pleural associada. Por
causa dessa associação pleural, a dor da pericardite em geral é pleurítica e
exacerbada pela respiração, pela tosse ou por alterações na posição. Além disso,
devido ao suprimento sensitivo sobrejacente do diafragma central via nervo
frênico com fibras sensitivas somáticas originárias do terceiro ao quinto
segmentos cervicais, a dor da pericardite pleural costuma irradiar-se para o
ombro e o pescoço. O acometimento da superfície pleural do diafragma lateral
pode resultar em dor na parte superior do abdome.
Doenças inflamatórias agudas e outras miocárdicas não isquêmicas também
podem causar dor torácica. Os sintomas da miocardiopatia Takotsubo
(relacionada com estresse) em geral começam abruptamente, com dor torácica e
dificuldade respiratória. Essa forma de miocardiopatia, em sua apresentação
mais reconhecível, é desencadeada por um evento estressante e pode simular o
IAM pelas anormalidades comumente associadas do ECG, inclusive elevação do
segmento ST e dos biomarcadores de lesão miocárdica. Estudos de observação
confirmam uma predileção por mulheres > 50 anos de idade. Os sintomas de
miocardite aguda são extremamente variáveis. A dor torácica pode originar-se de
lesão inflamatória do miocárdio ou ser causada por aumentos severos no estresse
da parede miocárdica relacionados com mau desempenho ventricular.

Doenças da aorta (Ver também Cap. 274) A dissecção aórtica aguda (Fig. 11-
1) é uma causa menos comum de dor torácica, mas é importante pela história
natural catastrófica de certos subgrupos de casos, quando o diagnóstico é tardio
ou o problema não é tratado. As síndromes aórticas agudas abrangem um
espectro de doenças aórticas agudas relacionadas com a ruptura da camada
média da parede aórtica. A dissecção aórtica envolve uma laceração na íntima
aórtica, resultando em separação da média e criação de um lúmen “falso”
separado. Uma úlcera penetrante foi descrita como ulceração de uma placa
aórtica ateromatosa que se estende através da íntima e para a média aórtica, com
o potencial de iniciar uma dissecção intramedial ou ruptura na adventícia.
Hematoma intramural é um hematoma na parede aórtica sem flap ou laceração
da íntima demonstrável em radiografias e também sem lúmen falso. O hematoma
intramural pode ocorrer devido à ruptura dos vasa vasorum ou, menos
comumente, a uma úlcera penetrante.
Cada um desses subtipos de síndrome aórtica aguda costuma apresentar-se
com dor torácica em geral intensa, de início súbito e às vezes descrita como de
qualidade “dilacerante”. As síndromes aórticas agudas que envolvem a aorta
ascendente tendem a causar dor na linha média da parte anterior do tórax,
enquanto as síndromes aórticas descendentes manifestam-se com maior
frequência por dor nas costas. Assim, a dissecção que começa na aorta
ascendente e segue para a aorta descendente tende a causar dor torácica anterior,
estendendo-se para o dorso, entre as escápulas. As dissecções aórticas proximais
que envolvem a aorta ascendente (tipo A na nomenclatura Stanford) implicam
alto risco de complicações importantes que podem influenciar a apresentação
clínica, incluindo (1) comprometimento dos óstios aórticos das artérias
coronárias, que resulta em IAM; (2) ruptura da valva aórtica, causando
insuficiência aórtica aguda; e (3) ruptura de hematoma no espaço pericárdico,
ocasionando tamponamento pericárdico.
O conhecimento da epidemiologia das síndromes aórticas agudas pode ser
útil para lembrar esse grupo relativamente incomum de distúrbios (com
incidência anual estimada de 3 casos por 100 mil pessoas na população). As
dissecções aórticas não traumáticas são muito raras na ausência de hipertensão
ou condições associadas à deterioração dos componentes elásticos ou musculares
da média aórtica, incluindo gravidez, doença aórtica bicúspide ou doenças
hereditárias do tecido conectivo, como a síndrome de Marfan e a de Ehlers-
Danlos.
Embora os aneurismas aórticos sejam mais frequentemente assintomáticos,
os aneurismas da aorta torácica podem causar dor torácica e outros sintomas pela
compressão de estruturas adjacentes. Essa dor tende a ser constante, profunda e
ocasionalmente intensa. A aortite, seja de etiologia infecciosa ou não, na
ausência de dissecção aórtica, é uma causa rara de dor torácica ou nas costas.

Condições pulmonares As condições pulmonares e vasculares pulmonares que


causam dor torácica em geral o fazem em conjunto com dispneia e costumam
acarretar sintomas de natureza pleurítica.
EMBOLIA PULMONAR (VER TAMBÉM CAP. 273) Êmbolos pulmonares
(com incidência anual de aproximadamente 1 por 1.000) podem causar dispneia
e dor torácica de início súbito. Tipicamente de padrão pleurítico, a dor torácica
associada à embolia pulmonar pode resultar de (1) envolvimento da superfície
pleural do pulmão adjacente ao infarto pulmonar resultante; (2) distensão da
artéria pulmonar; ou (3), possivelmente, estresse da parede ventricular direita
e/ou isquemia subendocárdica relacionada com hipertensão pulmonar aguda. A
dor associada a pequenos êmbolos pulmonares geralmente é lateral e pleurítica, e
acredita-se que esteja relacionada com o primeiro dos três mecanismos. Em
contraste, a embolia pulmonar maciça pode causar dor subesternal intensa, que
pode simular um IAM e ser atribuída de maneira plausível ao segundo e ao
terceiro desses mecanismos potenciais. A embolia pulmonar maciça ou
submaciça também pode estar associada a síncope, hipotensão e sinais de
insuficiência cardíaca direita. Outras características típicas que ajudam no
reconhecimento de embolia pulmonar são discutidas adiante neste capítulo (ver
“Abordagem ao paciente”).

PNEUMOTÓRAX (VER TAMBÉM CAP. 289) O pneumotórax espontâneo


primário é uma causa rara de dor torácica, com incidência anual estimada nos
Estados Unidos de 7 por 100 mil homens e < 2 por 100 mil mulheres. Os fatores
de risco incluem sexo masculino, tabagismo, antecedentes familiares e síndrome
de Marfan. Os sintomas em geral têm início súbito e a dispneia pode ser discreta,
razões pelas quais a busca por atendimento médico às vezes é adiada. Pode
ocorrer pneumotórax espontâneo secundário em pacientes com distúrbios
pulmonares subjacentes, como doença pulmonar obstrutiva crônica, asma ou
fibrose cística, e em geral causa sintomas mais graves. O pneumotórax
hipertensivo é uma emergência clínica causada pelo aprisionamento intratorácico
de ar, que precipita colapso hemodinâmico.

Outras doenças do parênquima pulmonar, pleurais ou vasculares (Ver


também Caps. 277, 278 e 288) A maioria das doenças pulmonares que causam
dor torácica, incluindo pneumonia e câncer, o faz devido ao envolvimento da
pleura ou de estruturas adjacentes. A pleurisia costuma ser descrita como uma
dor semelhante à de uma facada, que é agravada à inspiração ou tosse. Em
contrapartida, a hipertensão pulmonar crônica pode manifestar-se por dor
torácica que pode ser muito similar à angina em suas características, sugerindo
isquemia miocárdica ventricular direita em alguns casos. Doenças reativas das
vias aéreas também podem causar dor torácica em aperto associada à dificuldade
respiratória, em vez de pleurisia.

CAUSAS NÃO CARDIOPULMONARES


Condições gastrintestinais (Ver também Cap. 314) Distúrbios gastrintestinais
são as causas mais comuns de dor torácica não traumática e em geral causam
sintomas difíceis de se discernir das causas mais graves de dor torácica,
incluindo isquemia miocárdica. Distúrbios esofágicos, em particular, podem
simular angina na característica e na localização da dor. O refluxo gastresofágico
e os distúrbios da motilidade esofágica são comuns e devem ser considerados no
diagnóstico diferencial de dor torácica (Fig. 11-1 e Tab. 11-1). O refluxo ácido
frequentemente causa dor em queimação. A dor do espasmo esofágico, em
contraste, costuma ser intensa, compressiva, de localização retroesternal e, como
a angina, pode ser aliviada por nitroglicerina ou pelos antagonistas do canal de
cálcio di-hidropiridínicos. A dor torácica também pode resultar de lesão ao
esôfago, como uma laceração de Mallory-Weiss ou mesmo uma ruptura
esofágica (síndrome de Boerhaave), causada por vômitos intensos. A localização
mais comum da dor de úlcera péptica é epigástrica, mas pode irradiar-se para o
tórax (Tab. 11-1).
Os distúrbios hepatobiliares, incluindo colecistite e cólica biliar, podem
simular doenças cardiopulmonares agudas. Embora a dor causada por esses
distúrbios em geral se localize no quadrante superior direito do abdome, ela é
variável, podendo ser sentida no epigástrio e se irradiar para as costas e para a
parte inferior do tórax. Às vezes, essa dor é sentida na escápula ou, em raros
casos, no ombro, sugerindo irritação diafragmática. A dor é constante, em geral
dura várias horas e passa espontaneamente, sem sintomas entre as crises. A dor
que resulta de pancreatite é normalmente epigástrica intensa e se irradia para as
costas.

Causas musculoesqueléticas e outras (Ver também Cap. 363) A dor torácica


pode ser causada por qualquer distúrbio musculoesquelético que envolva a
parede torácica ou seus nervos, o pescoço ou os membros superiores. A
costocondrite, que causa sensibilidade das articulações costocondrais (síndrome
de Tietze), é relativamente comum. A radiculite cervical pode manifestar-se
como uma dor intensa prolongada ou constante na parte superior do tórax e nos
membros. A dor pode ser exacerbada pela movimentação do pescoço.
Ocasionalmente, a dor torácica pode ser causada por compressão do plexo
braquial pelas costelas cervicais, e a tendinite ou a bursite que envolve o ombro
esquerdo pode simular a irradiação de angina. A dor na distribuição de um
dermátomo também pode ser causada por cãibra de músculos intercostais ou por
herpes-zóster (Cap. 188).

Transtornos emocionais e psiquiátricos Até 10% dos pacientes que chegam à


emergência com dor torácica aguda têm um transtorno do pânico ou condição
relacionada (Tab. 11-1). Os sintomas podem incluir aperto no tórax ou dor
associada a uma sensação de ansiedade e dificuldade respiratória. Os sintomas
podem ser prolongados ou transitórios.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Dor torácica
Ante a grande variedade de causas potenciais e o risco heterogêneo de
complicações graves em pacientes que se apresentam com dor torácica aguda
não traumática, as prioridades da avaliação clínica inicial incluem (1) a
estabilidade clínica do paciente e (2) a probabilidade de que ele tenha uma
causa subjacente da dor que seja potencialmente fatal. As condições de alto
risco mais preocupantes são processos cardiopulmonares agudos, incluindo
SCA, síndrome aórtica aguda, embolia pulmonar, pneumotórax hipertensivo
e pericardite com tamponamento. Entre as causas não cardiopulmonares de
dor torácica, é provável que a ruptura esofágica seja o diagnóstico mais
urgente a ser estabelecido. O estado dos pacientes com essas condições pode
deteriorar rapidamente, mesmo que inicialmente eles aparentem estar bem. A
população restante com condições não cardiopulmonares tem um prognóstico
mais favorável ao se completar a avaliação diagnóstica. Uma avaliação
rápida, voltada para uma causa cardiopulmonar grave, tem relevância
particular nos pacientes com dor aguda em andamento atendidos em
emergências. Entre os pacientes que se apresentam em ambulatórios com dor
crônica ou que se resolveu, é razoável fazer uma avaliação diagnóstica geral
(ver “Avaliação ambulatorial da dor torácica”, adiante). Uma série de
perguntas que podem ser feitas para estruturar a avaliação clínica de
pacientes com dor torácica é mostrada na Tabela 11-2.

TABELA 11-2 ■ Considerações na avaliação do paciente com dor torácica


1. A dor torácica pode se dever a uma condição aguda potencialmente fatal que requeira avaliação e tratamento urgentes?
Cardiopatia isquêmica instável Dissecção da aorta Pneumotórax Embolia pulmonar
2. Se não é o caso, a dor torácica deve-se a um distúrbio crônico passível de complicação grave?
Angina estável Estenose aórtica Hipertensão pulmonar
3. Se não é o caso, a dor torácica deve-se a um distúrbio agudo que requer tratamento específico?
Pericardite Pneumonia/pleurite Herpes-zóster
4. Se não é o caso, a dor torácica deve-se a outra doença crônica passível de tratamento?
Refluxo esofágico Doença de disco cervical
Espasmo esofágico Artrite de ombro ou coluna vertebral
Doença ulcerosa péptica Costocondrite
Doença da vesícula biliar Outros distúrbios musculoesqueléticos
Outros distúrbios gastrintestinais Ansiedade
Fonte: Desenvolvido por Dr. Thomas H. Lee para a 18ª edição do Medicina interna de Harrison.

HISTÓRIA
A avaliação da dor torácica não traumática baseia-se, em grande parte, na
anamnese clínica e no exame físico para orientar a realização dos exames
diagnósticos subsequentes. O médico deve avaliar a qualidade, a localização
(inclusive se há irradiação) e o padrão (incluindo o início e a duração) da dor,
bem como quaisquer fatores que a provocam ou aliviam. A presença de
sintomas associados também pode ser útil para estabelecer um diagnóstico.

Qualidade da dor A qualidade da dor torácica isoladamente nunca é


suficiente para estabelecer um diagnóstico. Porém, as características da dor
são primordiais para se ter uma impressão clínica inicial e avaliar a
probabilidade de um processo cardiopulmonar grave (Tab. 11-1), incluindo
SCA em particular (Fig. 11-2). Pressão ou aperto são consistentes com uma
apresentação típica de dor miocárdica isquêmica. Mesmo assim, o clínico
precisa lembrar que alguns pacientes com sintomas torácicos isquêmicos
negam qualquer “dor”, mas queixam-se de dispneia ou uma sensação vaga de
ansiedade. A gravidade da dor tem pouca acurácia diagnóstica. Em geral, é
útil perguntar sobre a semelhança da dor com sintomas isquêmicos prévios
definidos. É incomum a angina ser aguda, como uma facada, lancinante ou
pleurítica; no entanto, algumas vezes os pacientes usam o termo “agudo”
para explicar a intensidade da dor em vez de sua qualidade. A dor pleurítica é
sugestiva de um processo que envolve a pleura, incluindo pericardite,
embolia pulmonar ou processos do parênquima pulmonar. Com menos
frequência, a dor de pericardite ou embolia pulmonar maciça é uma pressão
constante grave ou intensa que pode ser difícil de distinguir de isquemia
miocárdica. Dor dilacerante ou “cortante” em geral é descrita por pacientes
com dissecção aórtica aguda. No entanto, as emergências aórticas agudas
também se manifestam comumente por dor intensa lancinante. Uma
qualidade em queimação pode sugerir refluxo ácido ou úlcera péptica, mas
também pode ocorrer com isquemia miocárdica. A dor esofágica, em
particular com espasmo, pode ser uma dor compressiva grave idêntica à
angina.

FIGURA 11-2 Associação das características da dor torácica com a probabilidade de infarto
agudo do miocárdio (IAM). Observe que um estudo maior subsequente mostrou uma associação não
significativa com a irradiação para o braço direito. (Figura preparada com dados de CJ Swap, JT
Nagurney: JAMA 294:2623, 2005.)

Localização da dor Uma localização subesternal com irradiação para


pescoço, mandíbula, ombros ou braços é típica da dor miocárdica isquêmica.
A irradiação para ambos os braços tem associação particularmente forte com
IAM como etiologia. Alguns pacientes têm como único sintoma da isquemia
uma dor contínua nos locais da dor irradiada. Entretanto, a dor altamente
localizada – por exemplo, a que pode ser demarcada pela ponta de um dedo –
é bastante incomum na angina. Uma localização retroesternal deve levar à
consideração imediata de dor esofágica, embora outras condições
gastrintestinais geralmente se manifestem com dor mais intensa no abdome
ou epigástrio e possível irradiação para o tórax. A angina também pode
ocorrer em localização epigástrica. Porém, a dor que ocorre exclusivamente
acima da mandíbula ou abaixo do epigástrio raramente é angina. A dor grave
que se irradia para as costas, em particular entre as escápulas, deve levar à
consideração imediata de uma síndrome aórtica aguda. A irradiação para a
crista do trapézio é característica de dor pericárdica e não costuma ocorrer
com angina.

Padrão A dor miocárdica isquêmica geralmente surge em questão de


minutos, é exacerbada por atividade e mitigada pelo repouso. Em contraste, a
dor que atinge o auge de intensidade imediatamente é mais sugestiva de
dissecção aórtica, embolia pulmonar ou pneumotórax espontâneo. Dor
passageira (que dura apenas alguns segundos) raramente é de origem
isquêmica. Similarmente, é improvável que a dor de intensidade constante
por um período prolongado (muitas horas a dias) represente isquemia
miocárdica se ocorrer na ausência de outras consequências clínicas, como
anormalidades do ECG, elevação de biomarcadores cardíacos ou sequelas
clínicas (p. ex., insuficiência cardíaca ou hipotensão). Tanto a isquemia
miocárdica como o refluxo ácido podem começar pela manhã.

Fatores que provocam e aliviam Pacientes com dor miocárdica isquêmica


em geral preferem ficar em repouso, sentados ou parar de caminhar.
Contudo, os clínicos devem lembrar o fenômeno da “angina do
aquecimento”, em que alguns pacientes têm alívio da angina à medida que
continuam com o mesmo nível de exercício ou até maior (Cap. 267).
Alterações na intensidade da dor com mudanças na posição ou à
movimentação dos membros superiores e do pescoço são menos prováveis
com isquemia miocárdica e sugerem uma etiologia musculoesquelética. A
dor da pericardite, no entanto, costuma ser grave na posição supina e aliviada
quando o paciente senta-se ereto e inclina-se para frente. O refluxo
gastresofágico pode ser exacerbado por álcool, alguns alimentos ou uma
posição reclinada. É possível ocorrer alívio ao sentar.
A exacerbação à alimentação sugere uma etiologia gastrintestinal, como
úlcera péptica, colecistite ou pancreatite. A doença ulcerosa péptica tende a
tornar-se sintomática 60 a 90 minutos após as refeições. Todavia, no contexto
de aterosclerose coronariana grave, a redistribuição do fluxo sanguíneo para
a vasculatura esplâncnica após a alimentação pode desencadear angina pós-
prandial. A dor do refluxo ácido e da úlcera péptica em geral diminui
imediatamente com tratamentos com antiácido. Em contraste com seu
impacto em alguns pacientes com angina, é muito improvável que o
exercício físico altere sintomas decorrentes de causas gastrintestinais de dor
torácica. O alívio da dor torácica minutos após a administração de
nitroglicerina é sugestivo, mas não suficientemente sensível ou específico
para um diagnóstico definitivo de isquemia miocárdica. O espasmo esofágico
também pode ser aliviado imediatamente com nitroglicerina. Uma demora de
> 10 minutos antes do alívio com nitroglicerina sugere que os sintomas não
são causados por isquemia ou são decorrentes de isquemia grave, como
durante um IAM.

Sintomas associados Os sintomas que acompanham a isquemia miocárdica


podem incluir diaforese, dispneia, náuseas, fadiga, desmaio e eructações.
Além disso, esses sintomas podem estar presentes isoladamente como
equivalentes anginosos (i.e., outros sintomas de isquemia miocárdica que não
a angina típica), particularmente em mulheres e idosos. Pode ocorrer dispneia
com várias condições consideradas no diagnóstico diferencial de dor
torácica, de modo que ela não é discriminativa, mas a presença de dispneia é
importante porque sugere uma etiologia cardiopulmonar. O início súbito de
dificuldade respiratória significativa deve levar à consideração de embolia
pulmonar e pneumotórax espontâneo. Pode ocorrer hemoptise na embolia
pulmonar ou como escarro espumoso sanguinolento na insuficiência cardíaca
grave, mas em geral indica uma etiologia pulmonar parenquimatosa de
sintomas torácicos. A apresentação com síncope ou pré-síncope deve levar à
consideração imediata de embolia pulmonar com repercussão hemodinâmica
ou dissecção aórtica, bem como arritmias isquêmicas. Embora náuseas e
vômitos sugiram um distúrbio gastrintestinal, esses sintomas podem ocorrer
no contexto de IAM (mais comumente IAM de parede inferior),
presumivelmente por causa da ativação do reflexo vagal ou da estimulação
de receptores ventriculares esquerdos como parte do reflexo de Bezold-
Jarisch.

História clínica pregressa Os antecedentes clínicos são úteis na avaliação


dos fatores de risco do paciente para aterosclerose coronariana e
tromboembolismo venoso (Cap. 273), bem como de condições que possam
predispor o paciente a distúrbios específicos. Por exemplo, uma história de
doenças do tecido conectivo, como a síndrome de Marfan, deve ser
considerada ante a suspeita clínica de uma síndrome aórtica aguda ou
pneumotórax espontâneo. Uma anamnese detalhada pode revelar indícios de
depressão ou crises prévias de pânico.
EXAME FÍSICO
Além de proporcionar uma avaliação inicial da estabilidade clínica do
paciente, o exame físico daqueles com dor torácica pode fornecer evidência
direta de etiologias específicas de dor torácica (p. ex., ausência unilateral de
sons pulmonares) e identificar fatores precipitantes potenciais de causas
cardiopulmonares agudas de dor torácica (p. ex., hipertensão não controlada),
comorbidades relevantes (p. ex., doença pulmonar obstrutiva crônica) e
complicações da síndrome de apresentação (p. ex., insuficiência cardíaca).
No entanto, como os achados ao exame físico podem ser normais em
pacientes com cardiopatia isquêmica instável, um exame físico sem nada de
notável não é definitivo no sentido de transmitir segurança.

Geral A aparência geral do paciente é útil para estabelecer uma impressão


inicial da gravidade da doença. Pacientes com IAM ou outros distúrbios
cardiopulmonares agudos em geral parecem ansiosos, desconfortáveis,
pálidos, cianóticos ou diaforéticos. Os que massageiam ou apertam seu tórax
podem descrever a dor com o punho cerrado contra o esterno (sinal de
Levine). Ocasionalmente, a constituição corporal é útil – por exemplo, em
pacientes com síndrome de Marfan ou homens prototípicos jovens altos e
magros com pneumotórax espontâneo.

Sinais vitais Taquicardia e hipotensão significativas são indicativas de


consequências hemodinâmicas importantes da causa subjacente da dor
torácica e devem levar a uma pesquisa imediata e rápida de condições mais
graves, como IAM com choque cardiogênico, embolia pulmonar maciça,
pericardite com tamponamento ou pneumotórax hipertensivo. Emergências
aórticas agudas em geral se apresentam com hipertensão grave, mas podem
estar associadas à hipotensão grave na vigência de comprometimento
coronariano ou dissecção no pericárdio. Taquicardia sinusal é uma
manifestação importante de embolia pulmonar submaciça. Taquipneia e
hipoxemia indicam uma causa pulmonar. A presença de febre baixa é
inespecífica porque pode ocorrer com IAM e com tromboembolismo, além
de infecção.

Pulmonares O exame dos pulmões pode localizar uma causa pulmonar


primária de dor torácica, como nos casos de pneumonia, asma ou
pneumotórax. Disfunção ventricular esquerda decorrente de isquemia/infarto
graves e complicações valvulares agudas do IAM ou dissecção aórtica
podem ocasionar edema pulmonar, um indicador de alto risco.

Sistema cardíaco O pulso venoso jugular costuma estar normal em pacientes


com isquemia miocárdica aguda, mas também pode revelar padrões
característicos com tamponamento pericárdico ou disfunção ventricular
direita aguda (Caps. 234 e 265). A ausculta cardíaca pode revelar uma
terceira bulha cardíaca ou, mais comumente, uma quarta, refletindo
disfunção miocárdica sistólica ou diastólica. Sopros de insuficiência mitral
ou de um defeito ventricular-septal podem indicar complicações mecânicas
de IAMEST. Um sopro de insuficiência aórtica pode ser uma complicação de
dissecção aórtica proximal. Outros sopros podem revelar distúrbios cardíacos
subjacentes que contribuem para isquemia (p. ex., estenose aórtica ou
miocardiopatia hipertrófica). Sons de atrito pericárdico refletem inflamação
do pericárdio.

Abdominal Sensibilidade localizada ao exame abdominal é útil para


identificar uma causa gastrintestinal da síndrome de apresentação. Achados
abdominais são infrequentes com problemas puramente cardiopulmonares
agudos, exceto no caso de doença cardiopulmonar crônica subjacente ou
disfunção ventricular direita grave que acarrete congestão hepática.
Déficits de pulsos vasculares podem refletir aterosclerose crônica, que
aumenta a probabilidade de coronariopatia. No entanto, evidência de
isquemia aguda em membro com perda do pulso e palidez, em particular nos
membros superiores, pode indicar consequências catastróficas de dissecção
aórtica. Edema unilateral de um membro inferior deve levantar suspeita de
tromboembolismo venoso.

Musculoesquelético A dor que surge das articulações costocondrais e


condroesternais pode estar associada a edema localizado, eritema ou
sensibilidade localizada acentuada. A dor à palpação dessas articulações em
geral é bem localizada e constitui um sinal clínico útil, embora a palpação
profunda possa desencadear dor na ausência de costocondrite. Ainda que a
palpação da parede torácica em geral provoque dor em pacientes com várias
condições musculoesqueléticas, é preciso lembrar que a sensibilidade na
parede torácica não exclui isquemia miocárdica. Déficits sensitivos nos
membros superiores podem ser indicativos de doença de disco cervical.
ELETROCARDIOGRAMA
O eletrocardiograma é crucial na avaliação do dor torácica não traumática. O
ECG é fundamental para identificar pacientes com isquemia em curso como
a razão principal de sua queixa, bem como complicações cardíacas
secundárias a outros distúrbios. As diretrizes de sociedades de especialidade
recomendam a realização de um ECG até 10 minutos após a chegada do
paciente, com o objetivo principal de identificar aqueles com elevação do
segmento ST diagnóstica de IAM que sejam candidatos a intervenções
imediatas para o restabelecimento do fluxo sanguíneo na artéria coronária
ocluída. Depressão do segmento ST e inversões simétricas da onda T de pelo
menos 0,2 mV de profundidade são úteis para detectar isquemia miocárdica
na ausência de IAMEST e também são indicativas de maior risco de morte
ou isquemia recorrente. Recomenda-se a realização de ECGs seriados (a cada
30-60 minutos) durante a avaliação de emergência ante a suspeita de SCA.
Além disso, nos pacientes com suspeita clínica de isquemia e um ECG-
padrão de 12 derivações não diagnóstico, deve-se considerar um ECG com
derivação à direita. Apesar do valor de um ECG em repouso, sua
sensibilidade para detectar isquemia é baixa – de apenas 20% em alguns
estudos.
Podem ocorrer anormalidades do segmento ST e da onda T em uma
variedade de condições, inclusive embolia pulmonar, hipertrofia ventricular,
pericardite aguda e crônica, miocardite, desequilíbrio eletrolítico e distúrbios
metabólicos. É importante observar que a hiperventilação associada ao
transtorno do pânico também pode causar anormalidades inespecíficas de ST
e ondas T. A embolia pulmonar está associada com mais frequência à
taquicardia sinusal, mas também pode ocasionar desvio para a direita do eixo
do ECG, que se manifesta como uma onda S na derivação I, com uma onda
Q e uma T na derivação III (Caps. 235 e 273). Nos pacientes com elevação
do segmento ST, a presença de acometimento difuso em derivações não
correspondente a uma distribuição anatômica coronariana específica e a
depressão do segmento PR podem ajudar a distinguir pericardite de IAM.

RADIOGRAFIA DE TÓRAX
(Ver Cap. A12) A radiografia simples do tórax é feita rotineiramente quando
os pacientes apresentam-se com dor torácica aguda e de maneira seletiva
quando aqueles avaliados no contexto ambulatorial têm dor subaguda ou
crônica. A radiografia de tórax é mais útil para identificar processos
pulmonares, como pneumonia ou pneumotórax. Os achados em geral nada
têm de notável nos pacientes com SCA, mas edema pulmonar pode ser
evidente. Outros achados específicos incluem alargamento do mediastino em
alguns pacientes com dissecção aórtica, corcova de Hampton ou sinal de
Westermark em pacientes com embolia pulmonar (Caps. 273 e A12) ou
calcificação pericárdica na pericardite crônica.

BIOMARCADORES CARDÍACOS
Os exames laboratoriais em pacientes com dor torácica aguda se concentram
na detecção de lesão miocárdica. Essa lesão pode ser detectada pela presença
de proteínas circulantes liberadas pelas células miocárdicas danificadas.
Devido ao tempo necessário para essa liberação, os primeiros biomarcadores
de lesão podem estar nos níveis normais, mesmo em pacientes com IAMEST.
Graças à especificidade tecidual cardíaca superior em comparação com a
creatina-cinase MB, a troponina cardíaca é o biomarcador preferido para o
diagnóstico de IAM e deve ser medida em todos os pacientes que chegam
com suspeita de SCA e repetida 3 a 6 horas depois. Só é necessário repetir o
exame após 6 horas quando não se tem certeza a respeito do início da dor ou
quando os sintomas forem vagos. Não é necessário nem recomendável medir
a troponina em pacientes sem suspeita de SCA, a menos que tal estimativa
seja usada especificamente para estratificação do risco (p. ex., na embolia
pulmonar ou na insuficiência cardíaca).
O desenvolvimento de ensaios para medir a troponina cardíaca com
sensibilidade analítica progressivamente maior facilitou a detecção de
concentrações sanguíneas de troponina substancialmente mais baixas do que
antes era possível. Tal evolução permite a detecção precoce de lesão
miocárdica, aumenta a acurácia global de um diagnóstico de IAM e melhora
a estratificação do risco na suspeita de SCA. O maior valor preditivo
negativo de um resultado de troponina negativa nos ensaios atuais é uma
vantagem na avaliação da dor torácica no contexto de emergência. Protocolos
rápidos de exclusão que usam exames seriados e alterações na concentração
de troponina em um período curto de 1 a 2 horas parecem promissores e têm
sido adotados em alguns centros onde ensaios de alta sensibilidade para
troponinas são rotineiramente usados. Nos pacientes que consultam > 2 horas
após o início dos sintomas, uma concentração de troponinas cardíacas abaixo
do limite de detecção usando um ensaio de alta sensibilidade pode ser
suficiente para excluir IAM com valor preditivo negativo > 99% no momento
da apresentação ao hospital. No entanto, essas vantagens tiveram uma
consequência: a lesão miocárdica agora é detectada em uma proporção maior
de pacientes com condições cardiopulmonares que não a SCA, comparada
com os ensaios menos sensíveis. Tal evolução nos exames para detectar
necrose miocárdica gerou outros aspectos da avaliação clínica que são
cruciais para a determinação da probabilidade de que os sintomas
representem SCA. Além disso, a observação de uma alteração na
concentração de troponina cardíaca entre amostras seriadas é útil para
discriminar as causas agudas de lesão miocárdica da elevação crônica devida
a cardiopatia estrutural subjacente, doença renal em estágio terminal ou
interferência de anticorpos. O diagnóstico de IAM é reservado para a lesão
miocárdica aguda assinalada por uma padrão de elevação e/ou queda – com
pelo menos um valor excedendo o percentil 99 do limite de referência – e
que é causada por isquemia. Outras lesões não isquêmicas, como miocardite,
podem resultar em lesão miocárdica, mas não devem ser consideradas IAM.
Outras avaliações laboratoriais podem incluir o teste de D-dímeros para
ajudar na exclusão de embolia pulmonar (Cap. 273). A estimativa de um
peptídeo natriurético do tipo B é útil quando considerada em conjunto com a
anamnese e o exame clínico para o diagnóstico de insuficiência cardíaca. Os
peptídeos natriuréticos do tipo B também fornecem informação prognóstica
sobre os pacientes com SCA e aqueles com embolia pulmonar.

FERRAMENTAS DE APOIO À DECISÃO


Foram desenvolvidos vários algoritmos clínicos para ajudar na tomada de
decisão durante a avaliação e a alta de pacientes com dor torácica aguda não
traumática. Essas ferramentas estimam duas probabilidades intimamente
relacionadas, mas não idênticas: (1) a de um diagnóstico definitivo de SCA e
(2) a de eventos cardíacos importantes durante o acompanhamento a curto
prazo. Elas são usadas mais comumente para identificar pacientes com baixa
probabilidade clínica de SCA que são candidatos a exames provocativos
precoces para detectar isquemia ou à alta da emergência. Goldman e Lee
desenvolveram uma das primeiras dessas ferramentas, usando apenas o ECG
e indicadores de risco – hipotensão, estertores pulmonares e cardiopatia
isquêmica conhecida – para classificar os pacientes em quatro categorias de
risco que variam de uma probabilidade < 1% a > 16% de alguma
complicação cardiovascular importante. O Acute Cardiac Ischemia Time-
Insensitive Predictive Instrument (ACI-TIPI) combina idade, sexo, presença
de dor torácica e anormalidades do segmento ST para definir uma
probabilidade de SCA. Ferramentas de apoio à decisão mais recentes são
mostradas na Figura 11-3. Os elementos comuns a cada uma dessas
ferramentas são (1) sintomas típicos de SCA; (2) idade avançada; (3) fatores
de risco para aterosclerose ou sua presença comprovada; (4) anormalidades
isquêmicas ao ECG; e (5) níveis cardíacos elevados de troponina. Embora,
devido à especificidade muito baixa, o desempenho diagnóstico geral de tais
ferramentas seja fraco (área sob a curva operacional do receptor, 0,55-0,65),
elas podem ajudar a identificar pacientes com uma probabilidade muito baixa
de SCA (p. ex., < 1%). Apesar disso, nenhuma ferramenta (ou fator clínico
isolado) é sensível o suficiente e bem validada para ser usada sozinha na
tomada de decisão clínica.

FIGURA 11-3 Exemplos de ferramentas de apoio à decisão usadas em conjunto com medidas
seriadas dos níveis de troponina cardíaca para a avaliação de dor torácica aguda (Figura
preparada a partir de dados de SA Mahler et al: Int J Cardiol 168:795, 2013.)

Os clínicos devem diferenciar entre os algoritmos mencionados e os


escores de risco derivados para a estratificação do prognóstico (p. ex.,
escores de risco TIMI e GRACE, Cap. 269) em pacientes com um
diagnóstico já estabelecido de SCA. Esses escores não foram designados para
uso na avaliação diagnóstica.

TESTES PROVOCATIVOS PARA ISQUEMIA


É comum empregar a eletrocardiografia de esforço (“teste de esforço”) para
completar a estratificação do risco de pacientes submetidos a uma avaliação
inicial que não revelou uma causa específica de dor torácica e os identificou
como de risco baixo ou seletivamente intermediário de SCA. O teste de
esforço inicial é seguro em pacientes sem achados de alto risco após 8 a 12
horas de observação e pode ajudar a aprimorar sua avaliação prognóstica. Por
exemplo, em pacientes de baixo risco submetidos a ele nas primeiras 48
horas após a apresentação, aqueles sem evidência de isquemia tiveram uma
taxa de 2% de eventos cardíacos em 6 meses, enquanto, entre aqueles com
evidência nítida de isquemia ou com um resultado duvidoso, a taxa foi de
15%. Os pacientes incapazes de fazer exercício podem ser submetidos ao
teste de esforço farmacológico com imagem nuclear da perfusão ou
ecocardiografia. É notável o fato de que alguns especialistas consideram que
o uso rotineiro do teste de esforço para pacientes de baixo risco não tem
evidência clínica direta e é uma potencial fonte de custos desnecessários.
As diretrizes de sociedades profissionais identificam a dor torácica em
andamento como uma contraindicação para o teste de esforço. Em pacientes
selecionados com dor persistente e ECG e biomarcadores não diagnósticos,
podem ser obtidas imagens da perfusão miocárdica em repouso; a ausência
de qualquer anormalidade da perfusão reduz bastante a probabilidade de
coronariopatia. Em alguns centros, a imagem da perfusão miocárdica é
realizada como parte de uma estratégia rotineira para avaliar pacientes de
risco baixo ou intermediário de SCA, simultaneamente com outros exames.
O tratamento de pacientes com imagens de perfusão normais pode ser
instituído com a liberação hospitalar mais precoce e um teste de esforço em
ambulatório, se indicado. Aqueles com imagens de perfusão anormais em
repouso, nos quais não se pode discriminar entre danos miocárdicos antigos
ou novos, geralmente precisam de avaliação hospitalar adicional.

OUTROS EXAMES NÃO INVASIVOS


Outros exames de imagem não invasivos do tórax podem ser usados de
maneira seletiva para se obter informação diagnóstica e prognóstica adicional
sobre pacientes com dor torácica.
Ecocardiografia A ecocardiografia não é um exame necessariamente
rotineiro em pacientes com dor torácica. No entanto, em pacientes com um
diagnóstico incerto, em particular aqueles com elevação não diagnóstica do
segmento ST, sintomas em andamento ou instabilidade hemodinâmica, a
detecção de um movimento anormal segmentar da parede é evidência de
possível disfunção isquêmica. A ecocardiografia é diagnóstica em pacientes
com complicações mecânicas do IAM ou naqueles com tamponamento
pericárdico. A ecocardiografia transtorácica é pouco sensível para dissecção
aórtica, embora um flap da íntima às vezes possa ser detectado na aorta
ascendente.

Angiotomografia (Ver Cap. 236) A angiotomografia está emergindo como


uma modalidade para a avaliação de pacientes com dor torácica aguda. A
angiotomografia coronariana é uma técnica sensível para a detecção de
coronariopatia obstrutiva, em particular no terço proximal das coronárias
epicárdicas principais. A TC parece melhorar a velocidade de distribuição de
pacientes com probabilidade entre baixa e intermediária para SCA, sendo sua
maior força o valor preditivo negativo como um achado de doença não
significativa. Além disso, a TC realçada por contraste pode detectar áreas
focais de lesão miocárdica no contexto agudo. Ao mesmo tempo, a
angiotomografia pode excluir dissecção aórtica, derrame pericárdico e
embolia pulmonar. Fatores a serem ponderados ao se considerar o papel
emergente da angiotomografia coronariana em pacientes de baixo risco são a
exposição à radiação e exames adicionais necessários ante resultados
anormais não diagnósticos.

Ressonância magnética (Ver Cap. 236) A ressonância magnética cardíaca


(RMC) é uma técnica versátil em evolução para a avaliação estrutural e
funcional do coração e da vasculatura torácica. A RMC pode ser realizada
como modalidade de exame de imagem com perfusão de estresse
farmacológico. A RMC realçada por gadolínio pode detectar IAM
precocemente, definindo com acurácia áreas de necrose miocárdica, além de
delinear padrões de doença miocárdica que geralmente são úteis para
discriminar lesão miocárdica isquêmica de não isquêmica. Embora não
costume ser prática para a avaliação urgente da dor torácica aguda, a RMC
pode ser uma modalidade útil para se avaliar a estrutura cardíaca de pacientes
com níveis cardíacos elevados de troponina na ausência de coronariopatia
definida. A RMC angiográfica coronariana está em seus primórdios. A
ressonância magnética (RM) também permite uma avaliação altamente
acurada de dissecção aórtica, mas é usada com pouca frequência como
primeiro exame, porque a TC e a ecocardiografia transesofágica em geral são
mais práticas.

PROTOCOLOS PARA A DOR TORÁCICA AGUDA


Os médicos enfrentam desafios inerentes para identificar com confiabilidade a
pequena proporção de pacientes com causas graves de dor torácica aguda sem
expor o número maior daqueles de baixo risco a exames desnecessários e uma
permanência prolongada na emergência ou avaliações hospitalares. Por causa
disso, muitos centros médicos adotaram protocolos para agilizar a avaliação e o
tratamento de pacientes com dor torácica não traumática, geralmente em
unidades de dor torácica especializadas. Tais protocolos em geral visam (1)
identificação, rastreamento e instituição rápidas do tratamento de condições
cardiopulmonares de alto risco (p. ex., IAMEST); (2) identificação acurada de
pacientes de baixo risco que possam ser observados com segurança em unidades
com monitoração menos intensiva, submeter-se ao teste de esforço precoce ou
ter liberação hospitalar; e (3) com protocolos diagnósticos mais eficientes e
sistemáticos ágeis, a redução segura nos custos associados ao uso excessivo de
exames e hospitalizações desnecessárias. Em alguns estudos, o fornecimento de
um protocolo voltado para os cuidados nas unidades de dor torácica diminuiu o
custo e a duração total da avaliação hospitalar, sem excesso detectável de
desfechos clínicos adversos.

AVALIAÇÃO AMBULATORIAL DA DOR TORÁCICA


A dor torácica é comum na prática ambulatorial, com uma prevalência de 20 a
40% na população geral. Mais de 25% dos pacientes com IAM consultaram um
médico de atenção primária no mês anterior. Os princípios diagnósticos são os
mesmos do departamento de emergência. Porém, a probabilidade pré-teste de
uma causa cardiopulmonar aguda é significativamente menor. Portanto, os
paradigmas em termos de exames são menos intensos, com ênfase na anamnese,
no exame físico e no ECG. Além disso, as ferramentas de apoio à decisão
desenvolvidas para contextos com alta prevalência de doença cardiopulmonar
significativa têm um valor preditivo positivo inferior quando aplicadas no
consultório médico. Todavia, em geral, se o nível de suspeita clínica de SCA for
alto o bastante para se considerar a estimativa da troponina, o paciente deve ser
encaminhado para avaliação de emergência.

LEITURAS ADICIONAIS
Amsterdam EA et al: Testing of low-risk patients presenting to the emergency
department with chest pain: A scientific statement from the American Heart
Association. Circulation 122:1756, 2010.
Fanaroff AC et al: Does this patient with chest pain have acute coronary
syndrome? JAMA 314:1955, 2015.
Hermann LK et al: Yield of routine provocative cardiac testing among patients in
an emergency department-based chest pain unit. JAMA Int Med 173:1128,
2013.
Mahler SA et al: The HEART Pathway randomized trial: Identifying emergency
department patients with acute chest pain for early discharge. Circulation
Cardiovasc Qual Outcomes 8:195, 2015.
Shah AS et al: High-sensitivity cardiac troponin I at presentation in patients with
suspected acute coronary syndrome: A cohort study. Lancet 386:2481,
2016.
12
Dor abdominal
Danny O. Jacobs

A interpretação correta da dor abdominal aguda pode ser um desafio. Poucas


situações clínicas exigem maior discernimento, considerando que o mais
devastador dos eventos pode ser antecipado por sinais e sintomas muito sutis.
Em todos os casos, o médico deve distinguir aqueles quadros que requerem
intervenção urgente de outros que podem ser conduzidos de maneira não
cirúrgica. A anamnese e o exame físico meticulosamente executados são
essenciais para abordar o diagnóstico diferencial a fim de permitir a avaliação
diagnóstica para uma condução rápida do caso (Tab. 12-1).

TABELA 12-1 ■ Alguns componentes-chave na história do paciente


Idade
Tempo de evolução e modo de instalação da dor
Características da dor
Duração dos sintomas
Localização e irradiação da dor
Sintomas associados e sua relação com a dor
Náusea, vômitos e anorexia
Diarreia, constipação ou outras alterações no hábito intestinal
História menstrual

A classificação etiológica apresentada na Tabela 12-2, embora incompleta,


proporciona um arcabouço útil à avaliação dos pacientes com dor abdominal.

TABELA 12-2 ■ Algumas causas importantes de dor abdominal


Dor originada no abdome
Inflamação do peritônio parietal Distúrbios vasculares
Contaminação bacteriana Embolia ou trombose
Apêndice perfurado ou outra víscera perfurada Ruptura vascular
Doença inflamatória pélvica Obstrução por compressão ou por torção
Irritação química Anemia falciforme
Úlcera perfurada Parede abdominal
Pancreatite Torção ou tração do mesentério
Mittelschmerz Traumatismo ou infecção nos músculos
Obstrução mecânica de víscera oca Distensão das superfícies viscerais, p. ex., por hemorragia
Obstrução dos intestinos delgado ou grosso Cápsulas hepática ou renal
Obstrução da via biliar Inflamação
Obstrução ureteral Apendicite
Febre tifoide
Enterocolite neutropênica ou “tiflite”
Dor referida de origem extra-abdominal
Cardiotorácica Pleurodinia
Infarto agudo do miocárdio Pneumotórax
Miocardite, endocardite, pericardite Empiema
Insuficiência cardíaca congestiva Doença esofágica, incluindo espasmo, ruptura ou inflamação
Pneumonia (especialmente lobos inferiores) Genitália
Embolia pulmonar Torção de testículo
Causas metabólicas
Diabetes melito Insuficiência suprarrenal aguda
Uremia Febre familiar do Mediterrâneo
Hiperlipidemia Porfiria
Hiperparatireoidismo Deficiência do inibidor da C1-esterase (edema angioneurótico)
Causas neurológicas e psiquiátricas
Herpes-zóster Compressão medular ou de raiz nervosa
Tabes dorsalis Distúrbios funcionais
Causalgia Transtornos psiquiátricos
Radiculite por infecção ou por artrite
Causas tóxicas
Saturnismo
Envenenamento por animais ou insetos
Picada da aranha viúva-negra
Picadas de cobra
Mecanismos desconhecidos
Abstinência de narcóticos
Intermação

Todo paciente com dor abdominal de início recente necessita de


investigação precoce e completa. As causas mais comuns de dor abdominal à
admissão são dor abdominal inespecífica, apendicite aguda, dor de origem
urológica e obstrução intestinal. O diagnóstico de “abdome agudo ou cirúrgico”
é inaceitável em razão de sua conotação muitas vezes enganosa e incorreta. A
maioria dos pacientes que se apresenta com dor abdominal aguda evolui com
processo autolimitado. Contudo, é importante lembrar que a intensidade da dor
não necessariamente mantém correlação direta com a gravidade da doença
subjacente. Além disso, a presença ou ausência de graus variados de “fome” não
é confiável como indicador único da gravidade da doença intra-abdominal. O
caso mais evidente de “abdome agudo” talvez não exija intervenção cirúrgica,
enquanto a mais discreta das dores abdominais pode anunciar uma doença que
deve ser solucionada com urgência.

ALGUNS MECANISMOS DA DOR DE ORIGEM ABDOMINAL


Inflamação do peritônio parietal A dor causada pela inflamação do peritônio
parietal tem caráter constante e incômodo, localizando-se diretamente sobre a
área inflamada, sendo possível estabelecer a sua referência exata, uma vez que é
transmitida pelos nervos somáticos que inervam o peritônio parietal. A
intensidade da dor depende do tipo e do volume do material ao qual as
superfícies peritoneais estão expostas em determinado período de tempo. Por
exemplo, a liberação súbita de uma pequena quantidade de suco gástrico ácido
estéril na cavidade peritoneal provoca muito mais dor do que o mesmo volume
de fezes neutras maciçamente contaminadas. O suco pancreático contendo
enzimas ativas suscita mais dor e inflamação do que a mesma quantidade de bile
estéril desprovida de enzimas potentes. Normalmente, o sangue produz irritação
leve e a reação à urina também é geralmente leve, de modo que a exposição a
sangue ou urina pode passar despercebida, a não ser que seja súbita ou maciça. A
contaminação bacteriana, como na doença inflamatória pélvica ou na perfuração
do intestino distal, causa dor de baixa intensidade até que sua multiplicação
libere uma quantidade significativa de mediadores inflamatórios. Nos pacientes
com úlcera perfurada do trato gastrintestinal superior, o quadro de apresentação
varia muito dependendo do quão rápido os sucos gástricos penetram na cavidade
peritoneal e do seu pH. Assim, a velocidade com que o material inflamatório
produz irritação peritoneal é um fator importante.
A dor da inflamação peritoneal sempre é agravada por compressão ou por
alterações na tensão do peritônio, alterações essas produzidas por palpação ou
por algum movimento, como a tosse ou o espirro. O paciente com peritonite
caracteristicamente permanece deitado quieto no leito, preferindo evitar
movimentos, diferentemente do paciente com cólica, que pode se contorcer em
razão do desconforto.
Outro aspecto típico da irritação peritoneal é o espasmo reflexo tônico da
musculatura abdominal, localizado no segmento corporal afetado. Sua
intensidade depende da integridade do sistema nervoso, da localização do
processo inflamatório e da velocidade em que ocorre. O espasmo sobre um
apêndice retrocecal perfurado ou sobre uma perfuração no saco peritoneal menor
pode ser mínimo ou estar ausente, em razão do efeito protetor das vísceras
sobrejacentes. Emergências abdominais devastadoras podem estar associadas a
dor ou espasmo muscular mínimos ou indetectáveis em pacientes obnubilados,
gravemente enfermos, debilitados, imunossuprimidos ou psicóticos. Em
processos de evolução lenta, muitas vezes o espasmo muscular também se
encontra bastante atenuado.

Obstrução de víscera oca A obstrução intraluminal classicamente desencadeia


dor abdominal intermitente ou em cólica que não é tão bem localizada quanto a
dor produzida por irritação do peritônio parietal. No entanto, a ausência da dor
em cólica pode induzir ao erro, pois a distensão de uma víscera oca também
pode produzir dor constante com paroxismos raros.
Os pacientes com obstrução de intestino delgado frequentemente se
apresentam com dor intermitente, mal localizada, periumbilical ou
supraumbilical. À medida que o intestino progressivamente se dilata e perde seu
tônus muscular, a característica em cólica da dor pode diminuir. Na presença de
obstrução com estrangulamento superposto, a dor pode propagar-se à região
lombar inferior se houver tração da raiz do mesentério. A dor em cólica da
obstrução colônica é menos intensa, comumente localizada na região
infraumbilical com irradiação frequente para a região lombar.
A distensão súbita da via biliar provoca um tipo de dor mais constante do
que em cólica; logo, o termo cólica biliar é enganoso. A distensão aguda da
vesícula biliar normalmente acarreta dor no quadrante superior direito, com
irradiação para a região posterior direita do tórax ou para a ponta da escápula
direita, mas o desconforto também pode ser encontrado próximo da linha média.
A distensão do ducto colédoco frequentemente causa dor epigástrica, que pode
irradiar para a região lombar superior. Contudo, variações expressivas são
comuns, de modo que a diferenciação entre doença da vesícula biliar ou do ducto
colédoco pode ser impossível.
Uma dilatação gradual da via biliar, como pode ocorrer no carcinoma da
cabeça do pâncreas, pode não causar dor ou apenas produzir uma sensação
incômoda leve no epigástrio ou no hipocôndrio direito. A dor da distensão dos
ductos pancreáticos assemelha-se à descrita para a distensão do colédoco, mas,
além disso, é frequentemente acentuada em decúbito e aliviada pela posição
ereta.
A obstrução da bexiga geralmente causa dor surda de baixa intensidade na
região suprapúbica. Inquietude sem queixa específica de dor pode ser o único
sinal de distensão vesical em paciente obnubilado. Por outro lado, a obstrução
aguda da parte intravesical do ureter caracteriza-se por dor intensa na região
suprapúbica e no flanco, que se irradia para o pênis, a bolsa escrotal ou a face
medial da parte superior da coxa. A obstrução da junção ureteropélvica
manifesta-se com dor próxima ao ângulo costovertebral, enquanto a obstrução
das demais regiões do ureter está associada a dor no flanco, que muitas vezes se
estende ao mesmo lado do abdome.

Distúrbios vasculares Um equívoco frequente é considerar que a dor causada


por distúrbios vasculares intra-abdominais tenha caráter súbito e catastrófico.
Determinados processos de doença, como embolia, trombose da artéria
mesentérica superior ou ruptura iminente de aneurisma da aorta abdominal,
podem certamente estar associados a dor intensa e difusa. Porém, com igual
frequência, o paciente com obstrução da artéria mesentérica superior se
apresenta apenas com dor difusa e leve, contínua ou em cólica, 2 ou 3 dias antes
do aparecimento de colapso vascular ou de achados de inflamação peritoneal. O
desconforto inicial e aparentemente insignificante é causado mais por
hiperperistalse do que por inflamação peritoneal. De fato, a ausência de dor à
palpação e de rigidez abdominal na presença de dor difusa e contínua (p. ex.,
“dor desproporcional aos achados no exame físico”) em paciente com provável
doença vascular é bastante característica de obstrução da artéria mesentérica
superior. A dor abdominal com irradiação para região sacra, flanco ou genitália
deve sempre sinalizar ao médico a possibilidade de ruptura de aneurisma da
aorta abdominal. Essa dor pode persistir por vários dias antes que a ruptura e o
colapso ocorram.

Parede abdominal A dor com origem na parede abdominal é habitualmente


constante e incômoda. Movimento, postura ereta prolongada e compressão
acentuam o desconforto e o espasmo muscular associado. No caso relativamente
raro de hematoma da bainha do reto, atualmente encontrado com maior
frequência em associação à terapia anticoagulante, é possível que haja uma
massa nos quadrantes inferiores do abdome. O comprometimento simultâneo de
músculos em outras regiões do corpo geralmente serve para diferenciar entre
miosite da parede abdominal e outros processos que causem dor na mesma
região.

DOENÇAS COM DOR REFERIDA AO ABDOME


A dor referida ao abdome proveniente do tórax, coluna vertebral ou órgãos
genitais pode representar um grande desafio para o diagnóstico, visto que
doenças da parte superior da cavidade abdominal, como colecistite aguda ou
úlcera perfurada, podem estar associadas a complicações intratorácicas. Um
aforismo de suma importância, porém muitas vezes esquecido, diz que, em todo
paciente com dor abdominal, deve-se considerar a possibilidade de doença
intratorácica, sobretudo quando a dor se localiza no abdome superior.
O inquérito sistemático e a realização de um exame orientado para a
detecção de infarto miocárdico ou pulmonar, pneumonia, pericardite ou doença
esofágica (as doenças intratorácicas que mais frequentemente simulam
emergências abdominais) muitas vezes fornecem indícios suficientes para selar o
diagnóstico correto. A pleurite diafragmática resultante de pneumonia ou de
infarto pulmonar pode causar dor no quadrante superior direito e na área
supraclavicular, devendo essa última irradiação ser diferenciada da dor
subescapular referida provocada por distensão aguda da via biliar extra-hepática.
A decisão final quanto à origem da dor abdominal pode exigir uma observação
deliberada e planejada do paciente ao longo de várias horas, durante as quais o
questionamento e o exame físico repetidos definirão o diagnóstico ou sugerirão
os exames apropriados.
A dor referida de origem torácica é frequentemente acompanhada de
imobilização do hemitórax afetado, com retardo respiratório e diminuição das
excursões mais acentuados do que os observados na presença de doença intra-
abdominal. Além disso, o aparente espasmo muscular abdominal produzido pela
dor referida reduz-se durante a inspiração, mas persiste durante ambas as fases
respiratórias se a origem for abdominal. A palpação da região com dor referida
no abdome não costuma acentuar a dor e, em muitos casos, parece até aliviá-la.
Com frequência, doenças torácicas e abdominais coexistem, podendo ser
difícil ou impossível diferenciá-las. Por exemplo, o paciente com doença
diagnosticada do trato biliar muitas vezes apresenta dor epigástrica durante o
infarto agudo do miocárdio, ou a cólica biliar pode ser referida ao precórdio ou
ao ombro esquerdo em paciente que já tenha tido angina pectoris. Para uma
explicação sobre a irradiação da dor para uma área previamente enferma,
ver Capítulo 10.
A dor referida proveniente da coluna vertebral, que habitualmente envolve
compressão ou irritação de raízes nervosas, é intensificada por certos
movimentos, como tosse, espirro ou esforço, e está associada à hiperestesia nos
dermátomos envolvidos. A dor referida ao abdome a partir dos testículos ou das
vesículas seminais costuma ser acentuada pela mais leve compressão desses
órgãos. O desconforto abdominal é de caráter surdo e difuso.

CRISES ABDOMINAIS METABÓLICAS


A dor de origem metabólica pode simular quase todos os tipos de doença intra-
abdominal. Diversos mecanismos podem atuar. Em certas situações, como na
hiperlipidemia, a própria doença metabólica pode ser acompanhada de um
processo intra-abdominal, como pancreatite, que, a menos que seja identificado,
pode levar a uma laparotomia desnecessária. A deficiência do inibidor de C1-
esterase associada a edema angioneurótico está frequentemente relacionada com
episódios de dor abdominal intensa. Toda vez que a causa da dor abdominal for
obscura, deve-se considerar a possibilidade de origem metabólica. A dor
abdominal também é a marca registrada da febre familiar do Mediterrâneo (Cap.
362).
Em geral, é difícil distinguir a dor da porfiria e da cólica saturnina daquela
causada por obstrução intestinal, visto que o hiperperistaltismo intenso é uma
característica proeminente de todas. A dor decorrente da uremia ou do diabetes é
inespecífica, sendo que a dor e a hipersensibilidade frequentemente mudam de
localização e de intensidade. A cetoacidose diabética pode ser precipitada por
apendicite aguda ou por obstrução intestinal, de modo que, se a correção das
anormalidades metabólicas não produzir alívio imediato da dor abdominal, deve-
se suspeitar de algum problema orgânico subjacente. As picadas de aranha
viúva-negra produzem dor intensa bem como rigidez dos músculos abdominais e
do dorso, região raramente afetada nas doenças intra-abdominais.

IMUNOCOMPROMETIDOS
A investigação e o diagnóstico das causas de dor abdominal em pacientes
imunossuprimidos ou com qualquer forma de imunocomprometimento são muito
difíceis. Nessa situação, estão os pacientes submetidos a transplante de órgão;
aqueles sendo tratados com imunossupressores para doença autoimune;
quimioterapia ou glicocorticoides; com diagnóstico de Aids; ou os muito idosos.
Nessas circunstâncias, as respostas fisiológicas normais podem estar ausentes ou
ocultas. Além disso, infecções incomuns podem causar dor abdominal tendo
como agentes etiológicos citomegalovírus, micobactérias, protozoários e fungos.
Todos esses patógenos podem afetar os órgãos gastrintestinais, incluindo
vesícula biliar, fígado e pâncreas, assim como o restante do trato gastrintestinal,
onde podem causar perfuração oculta ou francamente sintomática. Também se
deve considerar a possibilidade de abscesso esplênico causado por infecção por
Candida ou Salmonella, especialmente ao se investigar pacientes com dor no
quadrante superior esquerdo ou no flanco esquerdo. A colecistite acalculosa
pode ser observada em pacientes imunocomprometidos ou naqueles com Aids,
podendo, frequentemente, ocorrer em associação à infecção por criptosporídio
ou por citomegalovírus.
A enterocolite neutropênica é frequentemente identificada como causa de
dor abdominal e febre em alguns pacientes com supressão da medula óssea por
quimioterapia. A possibilidade de doença aguda do enxerto contra o hospedeiro
deve ser considerada nessas situações. O manejo ideal desses pacientes exige o
acompanhamento meticuloso, incluindo exames seriados para avaliar a
necessidade de mais intervenções cirúrgicas para, por exemplo, localizar a
perfuração.

CAUSAS NEUROGÊNICAS
As doenças com lesão de nervos sensitivos podem causar causalgia. Essa dor
tem caráter em queimação e geralmente limita-se à distribuição de determinado
nervo periférico. Os estímulos que normalmente não são dolorosos, como toque
ou mudança de temperatura, podem induzir causalgia e frequentemente ocorrem
mesmo em repouso. A constatação de dor em pontos cutâneos irregularmente
espaçados pode ser a única indicação da presença de lesão nervosa antiga.
Embora a dor possa ser precipitada por palpação suave, não há rigidez dos
músculos abdominais, e a respiração geralmente não é afetada. A distensão do
abdome é incomum, e a dor não apresenta relação com a ingestão de alimentos.
A dor que se origina de nervos ou raízes espinais aparece e desaparece
subitamente, sendo do tipo lancinante (Cap. 14). Pode ser causada por herpes-
zóster, compressão por artrite, tumores, hérnia de núcleo pulposo, diabetes ou
sífilis. Não está associada a ingestão de alimentos, distensão abdominal ou
alterações na respiração. Espasmos musculares intensos, quando presentes, são
aliviados, ou pelo menos não acentuados, pela palpação abdominal. A dor é
agravada pelo movimento da coluna vertebral e, em geral, limita-se a poucos
dermátomos. A hiperestesia é muito comum.
A dor provocada por causas funcionais não obedece a nenhum dos padrões
anteriormente mencionados. Os mecanismos da doença não estão claramente
definidos. A síndrome do intestino irritável (SII) é um distúrbio gastrintestinal
funcional caracterizado por dor abdominal e alteração no hábito intestinal. O
diagnóstico é feito com base em critérios clínicos (Cap. 320) e após a exclusão
de anormalidades estruturais demonstráveis. Os episódios de dor abdominal
muitas vezes são desencadeados por estresse, e a dor varia consideravelmente na
sua natureza e localização. Náuseas e vômitos são raros. Dor localizada à
palpação e espasmo muscular são inconsistentes ou estão ausentes. As causas de
SII ou de distúrbios funcionais relacionados não são completamente conhecidas.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Dor abdominal
São poucos os distúrbios abdominais que exigem intervenção cirúrgica tão
urgente a ponto de ser necessário abandonar uma abordagem sistemática,
independentemente do quanto o paciente esteja enfermo. Apenas os pacientes
com hemorragia intra-abdominal exsanguinante (p. ex., ruptura de
aneurisma) devem ser levados imediatamente à sala de cirurgia, mas, nesses
casos, são necessários apenas alguns minutos para avaliar a natureza crítica
do problema. Em tais circunstâncias, devem-se remover todos os obstáculos,
obter-se um acesso venoso adequado à reposição de volume e iniciar a
cirurgia. Infelizmente, muitos desses pacientes podem morrer no setor de
radiologia ou no departamento de emergência enquanto aguardam por
exames desnecessários. Não há contraindicação absoluta à cirurgia na
presença de hemorragia intra-abdominal massiva. Felizmente, essa situação
é relativamente rara. Essa afirmativa não necessariamente se aplica aos
pacientes com hemorragia intraluminal gastrintestinal que, frequentemente,
podem ser conduzidos de outra forma (Cap. 44). Nesses pacientes, a
obtenção de anamnese detalhada, quando possível, pode ser extremamente
útil mesmo que possa ser trabalhosa e demorada. A tomada de decisão sobre
as próximas etapas é facilitada e um diagnóstico razoavelmente acurado pode
ser feito antes da realização de qualquer exame diagnóstico.
Nos casos de dor abdominal aguda, o diagnóstico pode ser prontamente
definido na maioria dos casos, enquanto o sucesso é menos frequente em
pacientes com dor crônica. A SII é uma das causas mais comuns de dor
abdominal, devendo-se sempre tê-la em mente (Cap. 320). A localização da
dor pode auxiliar a restringir o diagnóstico diferencial (Tab. 12-3);
entretanto, a sequência cronológica de eventos na história do paciente é, com
frequência, mais importante do que a localização da dor. Deve-se dar muita
atenção às regiões extra-abdominais. O uso de narcóticos ou analgésicos não
deve ser adiado até que se tenha estabelecido o diagnóstico definitivo ou
elaborado um plano final; é improvável que a analgesia adequada dificulte o
diagnóstico.

TABELA 12-3 ■ Diagnóstico diferencial da dor abdominal por localização


Quadrante superior direito Epigástrica Quadrante superior esquerdo
Colecistite Doença ulcerosa péptica Infarto esplênico
Colangite Gastrite Ruptura esplênica
Pancreatite DRGE Abscesso esplênico
Pneumonia/empiema Pancreatite Gastrite
Pleurite/pleurodinia Infarto agudo do miocárdio Úlcera gástrica
Abscesso subdiafragmático Pericardite Pancreatite
Hepatite Ruptura de aneurisma aórtico Abscesso subdiafragmático
Síndrome de Budd-Chiari Esofagite
Quadrante inferior direito Periumbilical Quadrante inferior esquerdo

Apendicite Apendicite inicial Diverticulite


Salpingite Gastrenterite Salpingite
Hérnia inguinal Obstrução intestinal Hérnia inguinal
Gravidez ectópica Ruptura de aneurisma aórtico Gravidez ectópica
Nefrolitíase Nefrolitíase
Doença inflamatória intestinal Síndrome do intestino irritável
Linfadenite mesentérica Doença inflamatória intestinal
Tiflite
Dor difusa não localizada
Gastrenterite Malária
Isquemia mesentérica Febre familiar do Mediterrâneo
Obstrução intestinal Doenças metabólicas
Síndrome do intestino irritável Transtorno psiquiátrico
Peritonite
Diabetes
Sigla: DRGE, doença do refluxo gastresofágico.

Na mulher, a história menstrual precisa é imprescindível. É importante


lembrar que as relações anatômicas normais podem ser significativamente
alteradas pelo útero gravídico. A dor abdominal e pélvica pode ocorrer
durante a gravidez em razão de quadros que não requerem cirurgia.
Finalmente, alguns resultados laboratoriais que em outras condições seriam
significativos (p. ex., leucocitose) podem ser resultantes de alterações
fisiológicas normais da gestação.
Durante o exame físico, a simples inspeção crítica do paciente, como,
por exemplo, a fácies, a posição no leito e a atividade respiratória, fornece
indícios valiosos. A quantidade de informações reunidas é diretamente
proporcional à gentileza e à dedicação do médico. Se um paciente com
inflamação peritoneal tiver sido examinado bruscamente, a avaliação acurada
pelo médico seguinte torna-se quase impossível. É desnecessário e cruel
pesquisar a hipersensibilidade de rebote (sinal de Blumberg) pela liberação
súbita da palpação profunda em paciente com suspeita de peritonite. Obtém-
se a mesma informação por meio da percussão delicada do abdome (i.e.,
hipersensibilidade rebote em escala miniatura), manobra que pode ser muito
mais precisa e capaz de localizar o problema. Pode-se identificar a
hipersensibilidade de rebote pedindo ao paciente que tussa, sem a
necessidade de tocar no abdome. Além disso, a demonstração forçada de
hipersensibilidade de rebote assusta e induz espasmo protetor em pacientes
nervosos ou preocupados, mesmo que ela esteja ausente. Uma vesícula biliar
palpável pode passar despercebida se a palpação for agressiva a ponto de o
espasmo muscular voluntário superpor-se à rigidez muscular involuntária.
Como na anamnese, deve-se dispensar o tempo que for necessário para
a realização do exame físico. Os sinais abdominais podem ser mínimos;
entretanto, se forem acompanhados de sintomas consistentes, talvez sejam
excepcionalmente significativos. Os sinais abdominais podem estar prática
ou totalmente ausentes nos casos de peritonite pélvica, de modo que um
exame pélvico e de toque retal são imprescindíveis em todo paciente com dor
abdominal. A hipersensibilidade ao exame pélvico ou retal na ausência de
outros sinais abdominais pode ser causada por patologias de tratamento
cirúrgico, como apendicite perfurada, diverticulite, torção de cisto ovariano e
muitas outras. Muita atenção tem sido dispensada à presença ou ausência de
ruídos peristálticos, seu caráter e frequência. A ausculta do abdome é um dos
aspectos menos reveladores do exame físico de pacientes com dor
abdominal. Podem ocorrer catástrofes, como uma obstrução do intestino
delgado com estrangulamento ou apendicite perfurada, na presença de
peristalse normal. Por outro lado, quando a parte proximal do intestino acima
da obstrução torna-se acentuadamente distendida e edematosa, os ruídos
peristálticos podem perder as características de borborigmo, tornando-se
fracos ou inaudíveis, mesmo quando não há peritonite. Em geral, é a
peritonite química grave de início súbito que está associada a um abdome
verdadeiramente silencioso.
Os exames laboratoriais podem ser importantes na avaliação do paciente
com dor abdominal; todavia, com poucas exceções, eles raramente
estabelecem um diagnóstico. A leucocitose jamais deve ser o único fator
decisivo para indicar ou não a cirurgia. Pode-se observar uma contagem de
leucócitos > 20.000/μL na perfuração de uma víscera; contudo, pancreatite,
colecistite aguda, doença inflamatória pélvica e infarto intestinal são quadros
que também podem estar associados a leucocitose acentuada. Não é raro
obter-se uma contagem normal de leucócitos em casos de perfuração de
vísceras abdominais. Um diagnóstico de anemia pode ser mais importante do
que a contagem dos leucócitos, particularmente quando combinado com a
história clínica.
O exame de urina pode revelar o grau de hidratação ou excluir uma
doença renal grave, diabetes ou infecção urinária. Os níveis sanguíneos de
ureia, a glicemia e a bilirrubina sérica, além da função hepática, podem ser
úteis. Os níveis séricos de amilase podem estar aumentados em consequência
de muitas outras doenças que não a pancreatite, como, por exemplo, úlcera
perfurada, obstrução intestinal com estrangulamento e colecistite aguda;
logo, as elevações nos níveis de amilase sérica não confirmam nem afastam a
necessidade de cirurgia.
As radiografias de abdome simples e em ortostatismo ou decúbito
lateral têm utilidade limitada e podem ser desnecessárias em alguns pacientes
com evidências substanciais de algumas doenças, como apendicite aguda ou
hérnia externa estrangulada. Quando as indicações para intervenção cirúrgica
ou clínica não estiverem claras, a tomografia de baixa dose de radiação é
preferida em relação à radiografia de abdome na avaliação de dor abdominal
aguda não traumática.
Muito raramente, a seriografia do trato gastrintestinal superior com
bário ou contraste hidrossolúvel é a investigação radiográfica apropriada e
pode revelar uma obstrução intestinal parcial que tenha escapado do
diagnóstico por outros meios. Se houver a possibilidade de obstrução do
cólon, deve-se evitar a administração oral de sulfato de bário. Por outro lado,
nos casos suspeitos de obstrução do cólon (sem perfuração), o enema opaco
pode ser diagnóstico.
Na ausência de traumatismo, o exame de TC e a laparoscopia
substituíram o lavado peritoneal como instrumento diagnóstico. A
ultrassonografia mostrou-se útil na detecção de aumento da vesícula biliar ou
do pâncreas, cálculos biliares, aumento do ovário ou gravidez tubária. A
laparoscopia é particularmente útil para o diagnóstico de afecções pélvicas,
como cistos ovarianos, gravidez tubária, salpingite e apendicite aguda, além
de outras doenças. A laparoscopia tem uma vantagem particular em relação
aos exames de imagem no fato de que a condição etiológica subjacente pode
ser definitivamente abordada.
A cintilografia hepatobiliar com ácido iminodiacético pode auxiliar a
diferenciar a colecistite aguda e a cólica biliar da pancreatite aguda. A TC
pode revelar um pâncreas aumentado, ruptura de baço ou espessamento da
parede do cólon ou do apêndice, e estriação de mesocolo ou de
mesoapêndice, característicos de diverticulite ou apendicite.
Às vezes, mesmo na situação ideal, com todos os recursos
complementares disponíveis e o máximo de habilidade clínica, é impossível
estabelecer um diagnóstico definitivo no momento do exame inicial. Além
disso, a cirurgia pode, em alguns casos, ser indicada com base apenas nos
indícios clínicos. Se essa decisão for duvidosa, a espera vigilante com
inquérito e exame físico repetidos frequentemente elucidará a verdadeira
natureza da doença e indicará a conduta apropriada.
Agradecimento Agradecemos à enorme contribuição para este capítulo e à
abordagem adotada por William Silen, que escreveu este capítulo em várias
edições prévias.

LEITURAS ADICIONAIS
Bhangu A et al: Acute appendicitis: Modern understanding of pathogenesis,
diagnosis and management, Lancet 386:1278, 2015.
Cartwright SL, Knudson MP: Diagnostic imaging of acute abdominal pain in
adults. Am Fam Phys 91: 452, 2015.
Huckins DS et al: Diagnostic performance of a biomarker panel as a negative
predictor for acute appendicitis in acute emergency department patients
with abdominal pain. Available from http://dx.doi.org/10.1016/j.ajem.2016.
11.027. Accessed November 2016.
Nayor J et al: Tracing the cause of abdominal pain. N Engl J Med 375:e8, 2016.
Phillips MT: Clinical yield of computed tomography scans in the emergency
department for abdominal pain. J Invest Med 64:542, 2016.
Silen W, Cope Z: Cope’s Early Diagnosis of the Acute Abdomen, 22nd ed. New
York, Oxford University Press, 2010.
13
Cefaleia
Peter J. Goadsby

A cefaleia está entre as razões mais comuns pelas quais os pacientes procuram
atendimento médico, sendo responsável, em um nível global, por mais
incapacidade do que qualquer outro problema neurológico. O diagnóstico e o
tratamento baseiam-se em uma abordagem clínica cuidadosa, amplificada pelo
conhecimento da anatomia, fisiologia e farmacologia das vias do sistema
nervoso que medeiam as várias síndromes de cefaleia. Este capítulo irá
concentrar-se na abordagem geral ao paciente com cefaleia; a migrânea e outros
distúrbios primários da cefaleia são discutidos no Capítulo 422.

PRINCÍPIOS GERAIS
Um sistema de classificação desenvolvido pela International Headache Society (
www.ihs-headache.org/ichd-guidelines) caracteriza a cefaleia como primária ou
secundária (Tab. 13-1). As cefaleias primárias são aquelas em que a cefaleia e
suas manifestações associadas constituem o distúrbio em si, enquanto as
cefaleias secundárias são aquelas causadas por distúrbios exógenos (Headache
Classification Comittee of the International Headache Society, 2018). A cefaleia
primária frequentemente resulta em considerável incapacidade e redução da
qualidade de vida do paciente. A cefaleia secundária leve, como a observada em
associação a infecções do trato respiratório superior, é comum, mas raramente
preocupante. A cefaleia ameaçadora à vida é relativamente incomum, mas é
necessário ter vigilância a fim de reconhecer e tratar de maneira apropriada os
pacientes.

TABELA 13-1 ■ Causas comuns de cefaleia


Cefaleia primária Cefaleia secundária

Tipo % Tipo %

Tensional 69 Infecção sistêmica 63


Migrânea (enxaqueca) 16 Traumatismo craniano 4
Em facada idiopática 2 Distúrbios vasculares 1
Do exercício 1 Hemorragia subaracnóidea < 1
Em salvas 0,1 Tumor cerebral 0,1
Fonte: De J Olesen et al: The Headaches. Philadelphia, Lippincott Williams & Wilkins, 2005.
ANATOMIA E FISIOLOGIA DA CEFALEIA
A dor em geral ocorre quando nociceptores periféricos são estimulados em
resposta a lesão tecidual, distensão visceral ou outros fatores (Cap. 10). Nessas
situações, a percepção da dor é uma resposta fisiológica normal mediada pelo
sistema nervoso saudável. A dor também pode ocorrer quando as vias de
produção da dor do sistema nervoso central (SNC) ou periférico são lesionadas
ou inapropriadamente ativadas. A cefaleia pode originar-se de um ou ambos os
mecanismos. Relativamente poucas estruturas cranianas geram dor; elas incluem
o couro cabeludo, as artérias meníngeas, os seios durais, a foice do cérebro e os
segmentos proximais das grandes artérias da pia-máter. O epêndima ventricular,
o plexo corióideo, as veias da pia-máter e grande parte do parênquima cerebral
não geram dor.
As principais estruturas envolvidas na cefaleia primária parecem ser as
seguintes:

• Os grandes vasos intracranianos e a dura-máter e os terminais periféricos do


nervo trigêmeo que inervam tais estruturas;
• A porção caudal do núcleo trigeminal, que se estende até os cornos dorsais
da medula cervical superior e recebe impulsos da primeira e da segunda
raízes nervosas cervicais (complexo trigeminocervical);
• Regiões rostrais de processamento da dor, como o tálamo ventral
posteromedial e o córtex;
• Os sistemas moduladores da dor no cérebro que modulam o impulso dos
nociceptores trigeminais em todos os níveis de vias de processamento da
dor e influenciam as funções vegetativas, como as estruturas do hipotálamo
e tronco cerebral.

A inervação dos grandes vasos intracranianos e da dura-máter pelo nervo


trigêmeo é conhecida como sistema trigeminovascular. Os sintomas
autonômicos cranianos, como lacrimejamento, injeção conjuntival, congestão
nasal, rinorreia, edema periorbital, plenitude auricular e ptose, são
proeminentes nas cefaleias trigêmino-autonômicas (CTAs), como a cefaleia em
salvas e a hemicrania paroxística, podendo ser também observados na migrânea
(enxaqueca), mesmo em crianças. Tais sintomas autonômicos refletem ativação
das vias parassimpáticas cranianas, e exames de imagem funcionais indicam que
as alterações vasculares na migrânea e na cefaleia em salvas, quando presentes,
são igualmente conduzidas por tais sistemas cranianos autonômicos. Além disso,
eles frequentemente podem ser confundidos com sinais ou sintomas de
inflamação dos seios cranianos, a qual é, assim, sobrediagnosticada e tratada de
maneira inadequada. A migrânea e outros tipos de cefaleia primária não são
“cefaleias vasculares”; esses distúrbios não manifestam alterações vasculares de
maneira confiável, e os desfechos do tratamento não podem ser previstos por
efeitos vasculares. A migrânea é um distúrbio cerebral e é mais bem
compreendida e tratada como tal.

AVALIAÇÃO CLÍNICA DA CEFALEIA AGUDA DE INÍCIO RECENTE


O paciente que se apresenta com cefaleia grave recente tem um diagnóstico
diferencial bem diferente do paciente com cefaleias recorrentes durante muitos
anos. Na cefaleia intensa e de início recente, a probabilidade de se encontrar uma
causa potencialmente grave é bem maior do que na cefaleia recorrente. Os
pacientes com início recente da dor exigem avaliação imediata e tratamento
adequado. As causas graves a serem consideradas consistem em meningite,
hemorragia subaracnóidea, hematomas extradural ou subdural, glaucoma, tumor
e sinusite purulenta. Quando sinais e sintomas preocupantes estão presentes (Tab
. 13-2), o diagnóstico e o tratamento rápidos tornam-se cruciais.

TABELA 13-2 ■ Sintomas de cefaleia que sugerem um distúrbio subjacente grave


Cefaleia de surgimento súbito
Primeira cefaleia intensa
A “pior” cefaleia da vida
Vômitos precedem a cefaleia
Piora subaguda ao longo de dias ou semanas
Dor induzida por inclinação para frente, por levantar peso ou por tosse
Dor que perturba o sono ou se apresenta logo após o despertar
Doença sistêmica conhecida
Início após os 55 anos de idade
Febre ou sinais sistêmicos inexplicados
Exame neurológico anormal
Dor associada à hipersensibilidade local, p. ex., na região da artéria temporal

Um exame neurológico cuidadoso é a primeira etapa imprescindível na


avaliação. Na maioria dos casos, os pacientes com exame anormal ou história de
cefaleia de início recente devem submeter-se a uma tomografia computadorizada
(TC) ou ressonância magnética (RM) de cérebro. Como procedimento de
rastreamento inicial para patologia intracraniana nesse contexto, os métodos de
TC e RM parecem ser igualmente sensíveis. Em algumas circunstâncias, uma
punção lombar (PL) também é necessária, a menos que se possa estabelecer uma
etiologia benigna. Uma avaliação geral de cefaleia aguda pode incluir a palpação
das artérias cranianas; coluna cervical pelo efeito de movimento passivo da
cabeça e por imagem; investigação do estado cardiovascular e renal por
monitoramento da pressão arterial e exame de urina; e olhos por fundoscopia,
medição da pressão intraocular e refração.
O estado psicológico do paciente também deve ser avaliado, pois existe
relação entre cefaleia, depressão e ansiedade. Isso se destina a identificar a
comorbidade em vez de fornecer uma explicação para a cefaleia, porque a
cefaleia problemática raramente é apenas causada por mudança do humor.
Embora seja notável que os medicamentos com ações antidepressivas também
sejam eficazes no tratamento preventivo tanto da cefaleia do tipo tensional como
da migrânea, cada sintoma deve ser tratado de maneira ideal.
Distúrbios subjacentes às cefaleias recorrentes podem ser ativados pela dor
que ocorre após procedimentos cirúrgicos otológicos ou endodônticos. Assim, a
dor na cabeça em consequência de um tecido enfermo ou traumatismo pode
reativar uma síndrome de migrânea que de outra maneira estaria quiescente. O
tratamento da cefaleia é, em grande parte, ineficaz até que a causa do problema
primário seja abordada.
Os distúrbios subjacentes graves associados à cefaleia são descritos adiante.
O tumor cerebral é uma causa rara de cefaleia e, ainda menos comumente, de dor
intensa. A maioria dos pacientes que apresentam cefaleia grave tem uma causa
benigna.
CEFALEIA SECUNDÁRIA
O tratamento de cefaleia secundária concentra-se no diagnóstico e tratamento do
distúrbio subjacente.

MENINGITE
A cefaleia aguda e intensa com rigidez de nuca e febre sugere meningite. A PL é
obrigatória. Frequentemente há acentuação marcada da dor com os movimentos
dos olhos. É fácil confundir meningite com migrânea, pois os sintomas cardinais
de cefaleia latejante, fotofobia, náuseas e vômitos frequentemente estão
presentes, talvez refletindo a biologia subjacente de alguns pacientes.
A meningite é discutida nos Capítulos 133 e 134.

HEMORRAGIA INTRACRANIANA
Cefaleia intensa aguda, com pico em < 5 minutos e durando > 5 minutos, com
rigidez de nuca, mas sem febre, sugerem hemorragia subaracnóidea. Um
aneurisma roto, malformação arteriovenosa ou hemorragia intraparenquimatosa
também podem apresentar-se apenas com cefaleia. Raramente, se a hemorragia
for leve ou abaixo do forame magno, a TC de crânio pode ser normal. Portanto, a
PL pode ser necessária para estabelecer o diagnóstico definitivo de hemorragia
subaracnóidea.
A hemorragia subaracnóidea é discutida no Capítulo 302 e a
hemorragia intracraniana no Capítulo 421.

TUMOR CEREBRAL
Cerca de 30% dos pacientes com tumores cerebrais consideram a cefaleia sua
queixa principal. A cefaleia costuma ser comum – uma dor maçante, profunda,
intermitente, de intensidade moderada, que pode piorar aos esforços ou por
mudança de posição e pode ser acompanhada de náuseas e vômitos. Esse padrão
de sintomas é resultado de migrânea com frequência muito maior do que de
tumor cerebral. A cefaleia de um tumor cerebral perturba o sono em cerca de
10% dos pacientes. Os vômitos que precedem o início da cefaleia em semanas
são altamente típicos de tumores cerebrais da fossa posterior. Uma história de
amenorreia ou galactorreia deve levar à suspeita de adenoma hipofisário secretor
de prolactina (ou de síndrome dos ovários policísticos) como a origem da
cefaleia. A cefaleia que surge originalmente em paciente com câncer conhecido
sugere metástase cerebral ou meningite carcinomatosa, ou ambas. A cefaleia que
surge abruptamente após a inclinação ou elevação do corpo ou tosse pode ser
causada por uma massa na fossa posterior, malformação de Chiari ou baixo
volume de líquido cerebrospinal (LCS).
Os tumores cerebrais são discutidos no Capítulo 86.

ARTERITE TEMPORAL
(Ver também Caps. 28 e 356) A arterite temporal (de células gigantes) é um
distúrbio inflamatório das artérias que frequentemente envolve a circulação
carotídea extracraniana. Constitui um distúrbio comum em idosos; sua
incidência anual é de 77 por 100 mil indivíduos com 50 anos de idade ou mais.
A idade média de início é 70 anos, e as mulheres respondem por 65% dos casos.
Cerca de metade dos pacientes com arterite temporal não tratada desenvolve
cegueira causada por envolvimento da artéria oftálmica e seus ramos; na
verdade, a neuropatia óptica isquêmica induzida por arterite de células gigantes é
a principal causa de cegueira bilateral de rápido desenvolvimento em pacientes
com > 60 anos. Como o tratamento com glicocorticoides é eficaz na prevenção
dessa complicação, o imediato reconhecimento do distúrbio é importante.
Os sintomas típicos de apresentação incluem cefaleia, polimialgia
reumática (Cap. 356), claudicação mandibular, febre e perda de peso. A cefaleia
é o sintoma dominante e frequentemente aparece associada a mal-estar e
mialgias. A dor na cabeça pode ser unilateral ou bilateral e localizar-se
temporalmente em 50% dos pacientes, embora possa envolver qualquer uma ou
todas as áreas do crânio. A dor em geral surge gradualmente durante um período
de algumas horas antes de atingir intensidade máxima; ocasionalmente, é de
início explosivo. A dor é raramente latejante; quase sempre é descrita como
maçante e incômoda, com episódios sobrepostos de dores lancinantes
semelhantes às dores agudas que surgem na migrânea. A maioria dos pacientes
consegue reconhecer que a origem da sua dor de cabeça é superficial, externa ao
crânio, e não com origem profunda no crânio (local da dor geralmente
identificado por quem sofre de migrânea). Há hipersensibilidade no couro
cabeludo, frequentemente em grau acentuado; devido à dor, pode-se tornar
impossível escovar os cabelos ou deitar a cabeça no travesseiro. A cefaleia
costuma piorar à noite e muitas vezes é agravada por exposição ao frio. Achados
adicionais podem incluir nódulos avermelhados sensíveis ou estrias vermelhas
na pele sobre as artérias temporais e dor à palpação das artérias temporais ou,
menos comumente, das occipitais.
A velocidade de hemossedimentação (VHS) muitas vezes apresenta-se
elevada, porém nem sempre; uma VHS normal não exclui arterite de células
gigantes. A biópsia da artéria temporal, seguida de tratamento imediato com
prednisona, 80 mg/dia, nas primeiras 4 a 6 semanas, deve ser instituída quando a
suspeita clínica é alta. A prevalência de migrânea entre idosos é substancial, bem
mais alta que a de arterite de células gigantes. Os que sofrem com migrânea
geralmente relatam melhora de sua cefaleia com prednisona; assim, deve-se ter
cautela ao interpretar a resposta terapêutica.

GLAUCOMA
O glaucoma pode apresentar-se com cefaleia debilitante associada a náuseas e
vômitos. A cefaleia frequentemente começa com dor ocular intensa. Ao exame
físico, o olho costuma estar vermelho com pupila fixa e moderadamente
dilatada.
O glaucoma é discutido no Capítulo 28.

DISTÚRBIOS DE CEFALEIA PRIMÁRIA


As cefaleias primárias são distúrbios nos quais a cefaleia e as manifestações
associadas ocorrem na ausência de qualquer causa exógena. As mais comuns são
migrânea, cefaleia do tipo tensional e as CTAs, notavelmente a cefaleia em
salvas. Tais distúrbios são discutidos em detalhes no Capítulo 422.

CEFALEIA DIÁRIA OU QUASE DIÁRIA CRÔNICA


A descrição ampla de cefaleia diária crônica (CDC) pode ser aplicada quando o
paciente tem cefaleia por 15 dias ou mais por mês. A CDC não é uma entidade
única; ela abrange inúmeras síndromes diferentes de cefaleia, tanto primárias
como secundárias (Tab. 13-3). Juntamente com ela, esse grupo provoca
incapacidade considerável e é, portanto, tratado aqui de maneira especial.
Estimativas populacionais sugerem que cerca de 4% dos adultos apresentam
cefaleia diária ou quase diária.

TABELA 13-3 ■ Classificação da cefaleia diária ou quase diária


Primária Secundária
> 4 h/dia < 4 h/dia –
Migrânea crônicaa Cefaleia em salvas crônicab Pós-traumática
Traumatismo craniano
Iatrogênica
Pós-infecciosa
Cefaleia do tipo tensional crônicaa Hemicrania paroxística crônica Inflamatória, por exemplo:
Arterite de células gigantes
Sarcoidose
Síndrome de Behçet
Hemicrania contínuaa SUNCT/SUNA Infecção crônica do SNC
Cefaleia nova diária persistentea Cefaleia hípnica Cefaleia por uso excessivo de medicamentosa
aPode ser complicada pelo uso excessivo de analgésicos. bAlguns pacientes podem ter cefaleia por > 4 h/dia.

Siglas: SNC, sistema nervoso central; SUNA, crises de cefaleia neuralgiforme unilateral de curta duração com sintomas autonômicos
cranianos; SUNCT, crises de cefaleia breve, unilateral, neuralgiforme com hiperemia conjuntival e lacrimejamento.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Cefaleia diária crônica
O primeiro passo no tratamento dos pacientes com CDC é diagnosticar e
tratar qualquer cefaleia secundária (Tab. 13-3). Isso algumas vezes pode ser
um desafio, em que a causa subjacente desencadeia uma piora de uma
cefaleia primária. Para pacientes com cefaleias primárias, o diagnóstico do
tipo de cefaleia irá orientar a terapia. Os tratamentos preventivos, como os
tricíclicos, seja amitriptilina ou nortriptilina, com doses de até 1 mg/kg, são
muito úteis aos pacientes com CDC originada da migrânea ou da cefaleia do
tipo tensional ou em que a causa secundária ativou a cefaleia primária
subjacente. Os tricíclicos são iniciados em doses baixas (10-25 mg)
diariamente e podem ser administrados 12 horas antes da hora esperada para
acordar, a fim de evitar excesso de sono na manhã seguinte. Medicamentos
incluindo topiramato, valproato, propranolol, flunarizina (não disponível nos
Estados Unidos) e candesartana também são úteis na migrânea.

CEFALEIA DIÁRIA CRÔNICA PRIMÁRIA


INCAPACITANTE DE DIFÍCIL MANEJO CLÍNICO
O tratamento da cefaleia de difícil manejo clínico é complicado, embora
existam novidades terapêuticas. Foi relatado que os anticorpos monoclonais
contra o peptídeo relacionado ao gene da calcitonina (CGRP) ou contra o seu
receptor são efetivos e bem tolerados na migrânea crônica em ensaios
clínicos randomizados e controlados por placebo de fase II/III. Abordagens
neuromoduladoras não invasivas, como a estimulação magnética
transcraniana de pulso único e a estimulação não invasiva do nervo vago, que
parecem modular o processamento talâmico ou os mecanismos do tronco
encefálico, respectivamente, já entraram ou estão entrando na prática clínica
da migrânea, respectivamente. A estimulação não invasiva do nervo vago
também se mostrou promissora na cefaleia crônica em salvas, na hemicrania
paroxística crônica, nas crises de cefaleia neuralgiforme unilateral de curta
duração com sintomas autonômicos cranianos (SUNA), nas crises de cefaleia
neuralgiforme unilateral de curta duração com hiperemia conjuntival e
lacrimejamento (SUNCT) e na hemicrania contínua (Cap. 422). Outras
modalidades são discutidas no Capítulo 422.

CEFALEIA POR USO EXCESSIVO DE MEDICAMENTOS


O uso excessivo de analgésicos para cefaleia pode agravar a frequência da
doença, comprometer muito o efeito dos medicamentos preventivos e induzir
um estado de cefaleia refratária diária ou quase diária chamada de cefaleia
por uso excessivo de medicamentos. Uma proporção de pacientes que deixa
de tomar analgésicos tem substancial melhora na intensidade e frequência da
cefaleia. Entretanto, mesmo após a suspensão do uso de analgésicos, muitos
pacientes continuam tendo cefaleia, embora possam sentir-se clinicamente
melhores de alguma forma, especialmente se estavam usando opioides ou
barbitúricos regularmente. Os sintomas residuais provavelmente representam
o distúrbio de cefaleia primária subjacente e, mais comumente, isso ocorre
em pacientes propensos a ter migrânea.

Manejo do uso excessivo de medicamentos: pacientes ambulatoriais Para os


pacientes que fazem uso excessivo de medicamentos costuma ser útil que o
uso de analgésicos seja reduzido e depois eliminado. Uma abordagem é
reduzir a dose do medicamento em 10% a cada 1 a 2 semanas. A suspensão
imediata do uso de analgésicos é possível para alguns pacientes, desde que
não haja contraindicações. Ambas as abordagens são facilitadas pela
realização de um diário de uso de medicamentos mantido durante 1 ou 2
meses antes da suspensão, o que ajuda a identificar o tamanho do problema.
Uma pequena dose de fármacos anti-inflamatórios não esteroides (AINEs),
como naproxeno, 500 mg, 2 vezes/dia, se tolerado, ajuda a aliviar a dor
residual à medida que o analgésico é reduzido. O uso excessivo de AINE não
costuma ser um problema para pacientes com cefaleia diária quando o AINE
com uma meia-vida mais longa é tomado 1 ou 2 vezes por dia; entretanto,
problemas de uso excessivo podem desenvolver-se com esquemas de doses
mais frequentes ou AINEs de ação curta. Quando o paciente tiver reduzido
substancialmente o uso de analgésicos, uma medicação preventiva deve ser
introduzida, embora outra abordagem amplamente usada seja começar o
medicamento preventivo ao mesmo tempo que se inicia a redução do
analgésico. Deve-se enfatizar que os profiláticos geralmente não funcionam
na presença de uso excessivo de analgésicos. A causa mais comum de
refratariedade ao tratamento é a utilização de um profilático enquanto os
analgésicos continuam sendo usados regularmente. Para alguns pacientes, a
suspensão dos analgésicos é muito difícil; muitas vezes, a melhor abordagem
é informar o paciente de que algum grau de dor é inevitável durante esse
período inicial.

Manejo do uso excessivo de medicamentos: pacientes hospitalizados


Alguns pacientes necessitam de hospitalização para desintoxicação. Esses
pacientes já tentaram retirar os medicamentos no tratamento ambulatorial
sem sucesso ou têm um distúrbio clínico significativo, como diabetes melito
ou epilepsia, que complicaria a suspensão dos medicamentos em
ambulatório. Após a internação, os medicamentos de uso são completamente
retirados no primeiro dia, caso não haja contraindicações. Antieméticos e
líquidos são administrados quando necessário; a clonidina é usada para os
sintomas de abstinência de opioides. Para a dor aguda intolerável durante as
horas em que se está acordado, o ácido acetilsalicílico intravenoso, 1 g (não
aprovado nos Estados Unidos), é útil. A clorpromazina intramuscular pode
ser útil à noite; os pacientes têm de estar adequadamente hidratados. Três a
cinco dias após a admissão, à medida que o efeito da retirada da substância é
estabelecido, pode-se utilizar um esquema de di-hidroergotamina (DHE)
intravenosa. A DHE, administrada a cada 8 horas, durante 5 dias
consecutivos, pode induzir remissão significativa, possibilitando estabelecer
um tratamento preventivo. Antagonistas do receptor de serotonina 5-HT3,
como a ondansetrona ou granisetrona ou o antagonista do receptor de
neurocinina aprepitanto podem ser necessários com a DHE para evitar
náuseas significativas, e a domperidona (não aprovada nos Estados Unidos)
por via oral ou supositório pode ser muito útil. É útil evitar antieméticos
propensos à sedação ou a outro efeito colateral.

CEFALEIA PERSISTENTE DIÁRIA DESDE O INÍCIO


A cefaleia persistente diária desde o início (CPDI) é uma síndrome
clinicamente distinta com importantes causas secundárias; a Tabela 13-4 lista
suas causas.
TABELA 13-4 ■ Diagnóstico diferencial da cefaleia persistente diária desde o início
Primária Secundária

Tipo migranosa Hemorragia subaracnóidea


Sem característica (tipo tensional) Cefaleia por baixo volume de líquido cerebrospinal (LCS)
Cefaleia por hipertensão liquórica
Cefaleia pós-traumáticaa
Meningite crônica
aInclui formas pós-infecciosas.

Apresentação clínica O paciente com CPDI apresenta-se com cefaleia na


maioria dos dias, senão em todos, e consegue lembrar claramente, e com
frequência de maneira vívida, o momento do início. A cefaleia geralmente
começa de modo abrupto, mas o início pode ser mais gradual; a evolução
durante 3 dias foi proposta como o limite máximo para essa síndrome. Os
pacientes normalmente lembram o dia exato e as circunstâncias do início da
cefaleia; a dor de cabeça nova e persistente não diminui. A primeira
prioridade é distinguir entre causas primárias e secundárias para essa
síndrome. A hemorragia subaracnóidea é a mais grave das causas secundárias
e tem de ser excluída pela história ou por investigação apropriada (Cap.
302).

CPDI secundária • Cefaleia por baixo volume de LCS Nessas síndromes, a


cefaleia é posicional: começa quando o paciente se senta ou fica na posição
ortostática, e desaparece quando se deita. A dor, que é occipitofrontal,
costuma ser maçante, mas pode ser latejante. Os pacientes com cefaleia
crônica por baixo volume de LCS apresentam-se com história de cefaleia de
um dia para o outro, que geralmente não está presente quando se acorda, mas
piora durante o dia. Em geral, a posição deitada melhora a cefaleia em
minutos e a dor pode levar de apenas alguns minutos até 1 hora para retornar
quando o paciente volta à posição ortostática.
A causa mais comum de cefaleia por baixo volume persistente de LCS é
a fístula de LCS após PL. A cefaleia pós-PL, em geral, começa em um
período de 48 horas, mas pode ser retardada por até 12 dias. Sua incidência
situa-se entre 10 e 30%. Bebidas com cafeína podem fornecer alívio
temporário. Além da PL, o evento base pode incluir injeção epidural ou
manobra de Valsalva vigorosa, como as de levantamento de peso, esforço,
tosse, abertura das tubas auditivas em um avião ou orgasmos múltiplos.
Fístulas de LCS espontâneas são bem reconhecidas, e o diagnóstico deve ser
considerado sempre que a história de cefaleia for típica, mesmo quando não
há evento base evidente. À medida que o tempo passa, a partir do evento
base, a natureza postural pode tornar-se menos evidente; casos nos quais o
evento base ocorreu vários anos antes do diagnóstico final foram
reconhecidos. Os sintomas parecem resultar do baixo volume e não da
pressão baixa: embora se identifiquem pressões de LCS baixas, tipicamente 0
a 50 mm de LCS, uma pressão de até 140 mm de LCS foi observada com
extravasamento documentado.
A síndrome de taquicardia ortostática postural (STOP; Cap. 432) pode
apresentar-se com cefaleia ortostática semelhante à cefaleia por baixo
volume de LCS e é um diagnóstico que precisa ser considerado nesta
situação.
Quando o exame de imagem é indicado para identificar a fonte de uma
suposta fístula, a RM com gadolínio é o exame inicial de escolha (Fig. 13-1).
Um padrão marcante de captação difusa de contraste pela meninge é tão
típico que, no contexto clínico apropriado, o diagnóstico é estabelecido. As
malformações de Chiari às vezes são observadas na RM; nesses casos, a
cirurgia para descomprimir a fossa posterior não está indicada e, em geral,
piora a cefaleia. A RM de coluna vertebral ponderada em T2 pode revelar
uma fístula, e a RM da coluna vertebral pode demonstrar cistos meníngeos
espinais cujo papel nessas síndromes ainda tem de ser elucidado. A fonte da
fístula de LCS pode ser identificada por RM espinal com sequências
adequadas, por TC, ou cada vez mais por mielografia por RM. Menos usados
atualmente, os exames de LCS com 111In-DTPA na ausência de um local
diretamente identificado de vazamento podem demonstrar esvaziamento
precoce do marcador 111In-DTPA na bexiga ou progressão lenta do marcador
através do cérebro, sugerindo fístula de LCS.
FIGURA 13-1 Ressonância magnética mostrando captação meníngea difusa após administração de
gadolínio em paciente com cefaleia por baixo volume de líquido cerebrospinal (LCS).

O tratamento inicial da cefaleia por baixo volume de LCS é repouso no


leito. Para os pacientes com dor persistente, a cafeína intravenosa (500 mg
em 500 mL de solução salina administrada durante 2 horas) pode ser muito
eficaz. Deve-se realizar um eletrocardiograma (ECG) para rastreamento de
arritmia antes da administração. É razoável administrar pelo menos duas
infusões de cafeína antes de realizar exames adicionais para identificar a
origem da fístula de LCS. Como a cafeína intravenosa é segura e pode ser
curativa, ela poupa muitos pacientes da necessidade de investigações
adicionais. Se não for bem-sucedida, uma cinta abdominal pode ser útil. Se
uma fístula puder ser identificada, um patch sanguíneo autólogo geralmente é
curativo. Um patch sanguíneo também é eficaz para cefaleia pós-PL; nesse
caso, a localização é empiricamente determinada como o local de PL. Nos
pacientes com cefaleia de difícil manejo clínico, a teofilina oral é uma
alternativa útil; entretanto seu efeito é menos rápido que o da cafeína.

Cefaleia por hipertensão liquórica A hipertensão liquórica é bem


reconhecida como causa de cefaleia. Um exame de imagem do cérebro com
frequência revela a causa, como uma lesão expansiva. A CPDI causada por
hipertensão liquórica pode ser o sintoma de apresentação para pacientes com
hipertensão intracraniana idiopática (pseudotumor cerebral) sem problemas
visuais, particularmente quando o exame de fundo de olho é normal. A
pressão intracraniana persistentemente elevada pode desencadear migrânea
crônica. Esses pacientes geralmente apresentam-se com história de cefaleia
generalizada que está presente ao despertar e melhora à medida que o dia
passa. Geralmente, há piora em decúbito. Obscurecimentos visuais são
frequentes. O diagnóstico é relativamente evidente na presença de
papiledema, mas a possibilidade tem de ser considerada mesmo em pacientes
sem alterações fundoscópicas. O exame formal dos campos visuais deve ser
realizado mesmo na ausência de envolvimento oftálmico franco. A cefaleia
ao se levantar de manhã ou a cefaleia noturna também são típicas da apneia
obstrutiva do sono ou da hipertensão arterial mal controlada.
A avaliação dos pacientes com suspeita de hipertensão liquórica requer
exame de imagem cerebral. É mais eficiente obter-se primeiro uma RM,
incluindo venografia por ressonância magnética (VRM). Se não houver
contraindicações, a pressão liquórica deve ser medida por PL, o que deve ser
feito quando o paciente está sintomático, de modo que tanto a pressão quanto
a resposta à remoção de 20 a 30 mL de LCS possam ser determinadas. Uma
pressão de abertura elevada e melhora da cefaleia após a remoção do LCS
são diagnósticas na ausência de alterações no fundo de olho.
O tratamento inicial é feito com acetazolamida (250-500 mg, 2×/dia); a
cefaleia pode melhorar em um período de semanas. Se ineficaz, o topiramato
é o próximo tratamento de escolha; há muitas ações que podem ser úteis
nesse caso, como a inibição da anidrase carbônica, perda de peso e
estabilização da membrana neuronal, provavelmente mediada através dos
efeitos nas vias de fosforilação. Os pacientes gravemente incapacitados que
não respondem ao tratamento clínico requerem monitoramento da pressão
intracraniana, podendo requerer derivação liquórica.

Cefaleia pós-traumática Um evento traumático pode desencadear um


processo de cefaleia que dura muitos meses ou anos após o evento. O termo
traumatismo é usado aqui em sentido bem amplo: a cefaleia pode
desenvolver-se após uma lesão na cabeça, mas também pode surgir após um
episódio infeccioso, normalmente de meningite viral, doença gripal ou
parasitose. As queixas de tontura, vertigem e perda de memória podem
acompanhar a cefaleia. Os sintomas podem desaparecer após várias semanas
ou persistir durante meses e mesmo anos após a lesão. Em geral, o exame
neurológico é normal, e a TC ou a RM não são reveladoras. Hematoma
subdural crônico às vezes simula esse distúrbio. A cefaleia pós-traumática
também pode ser observada após a dissecção da carótida, após a hemorragia
subaracnóidea, bem como após cirurgia intracraniana. O tema subjacente
parece ser que um evento traumático envolvendo as meninges que produzem
dor pode desencadear um quadro de cefaleia que dura muitos anos.

Outras causas Em uma série, um terço dos pacientes com CPDI relataram
cefaleia que começa após uma doença gripal transitória caracterizada por
febre, rigidez de nuca, fotofobia e mal-estar acentuado. A avaliação
geralmente não revela nenhuma causa aparente para cefaleia. Não há
evidências convincentes de que a infecção persistente por Epstein-Barr
desempenhe um papel na CPDI. Um fator complicador é que muitos
pacientes se submetem à PL durante a doença aguda; a cefaleia iatrogênica
por baixo volume de LCS tem de ser considerada nesses casos.

Tratamento O tratamento é, em grande medida, empírico e direcionado ao


fenótipo da cefaleia. Os antidepressivos tricíclicos, sobretudo a amitriptilina,
e anticonvulsivantes, como topiramato, valproato e gabapentina, foram
usados com benefício relatado. O inibidor da monoaminoxidase fenelzina
também pode ser útil em pacientes cuidadosamente selecionados. A cefaleia
em geral melhora em 3 a 5 anos, mas pode ser bastante incapacitante.
ATENÇÃO PRIMÁRIA E MANEJO DA CEFALEIA
A maioria dos pacientes com cefaleia será observada primeiramente em um nível
de atenção primária. A tarefa do médico de atenção primária é identificar as
poucas cefaleias secundárias preocupantes em meio à maior parte das cefaleias
primárias e menos preocupantes (Tab. 13-2).
Se não houver quaisquer sinais de alerta, uma abordagem razoável é tratar
quando um diagnóstico é estabelecido. Como regra, a investigação deve
concentrar-se na identificação de causas preocupantes de cefaleia ou em obter
confiança caso nenhum diagnóstico de cefaleia primária puder ser feito.
Após o tratamento ser iniciado, o cuidado de acompanhamento é essencial
para se identificar se houve progresso contra a queixa de cefaleia. Nem todas as
cefaleias irão responder ao tratamento, mas, em geral, cefaleias preocupantes
irão evoluir e será mais fácil identificá-las.
Quando um médico de atenção primária percebe que o diagnóstico é um
distúrbio de cefaleia primária, vale a pena observar que mais de 90% dos
pacientes que se apresentam neste local e têm uma queixa de cefaleia irão
apresentar migrânea (Cap. 422).
Em geral, os pacientes que devem ser considerados para encaminhamento a
um especialista são aqueles que não têm um diagnóstico claro, aqueles que têm
um distúrbio de cefaleia primária que não a migrânea ou a cefaleia do tipo
tensional e aqueles que são refratários a duas ou mais terapias-padrão para o tipo
de cefaleia considerado. Na prática, o limiar para encaminhamento também é
determinado pela experiência do médico de atenção primária e pela
disponibilidade de opções de atenção secundária.

Agradecimento Os organizadores agradecem a Neil H. Raskin pela sua


contribuição em edições anteriores deste capítulo.

LEITURAS ADICIONAIS
Headache Classification Committee of the International Headache Society: The
International Classification of Headache Disorders, 3rd ed. Cephalalgia
33:629, 2018.
Kernick D, Goadsby PJ: Headache: A Practical Manual. Oxford: Oxford
University Press, 2008.
Lance JW, Goadsby PJ: Mechanism and Management of Headache, 7th ed. New
York, Elsevier, 2005.
Olesen J et al: The Headaches. Philadelphia, Lippincott, Williams & Wilkins,
2005.
Silberstein SD, Lipton RB, Dodick D: Wolff’s Headache and Other Head Pain,
8th ed. New York, Oxford, 2008.
14
Dor nas costas e no pescoço
John W. Engstrom

A importância da dor nas costas e no pescoço em nossa sociedade é ressaltada


pelo seguinte: (1) nos Estados Unidos, estima-se que o custo da dor nas costas
crônica seja de 177 bilhões de dólares por ano; aproximadamente um terço
desses custos são despesas com assistência direta à saúde e o restante
corresponde a custos indiretos resultantes da perda de salários e produtividade;
(2) os sintomas relacionados com o dorso são a causa mais comum de
incapacidade em pacientes < 45 anos de idade; (3) a lombalgia é a segunda razão
mais comum para consultas médicas nos Estados Unidos; e (4) mais de 80% das
pessoas apresentará dor nas costas significativa em algum momento de sua vida.
ANATOMIA DA COLUNA VERTEBRAL
A coluna vertebral anterior consiste em corpos vertebrais cilíndricos separados
por discos intervertebrais e mantidos unidos pelos ligamentos longitudinais
anterior e posterior. Os discos intervertebrais compõem-se de um núcleo pulposo
gelatinoso central, circundado por um anel cartilaginoso resistente, o ânulo
fibroso. Os discos são responsáveis por 25% da extensão da coluna vertebral e
permitem que as vértebras ósseas movimentem-se com facilidade umas sobre as
outras (Figs. 14-1 e 14-2). O ressecamento do núcleo pulposo e a degeneração
do ânulo fibroso aumentam com a idade e resultam em perda da altura do disco.
Os discos são maiores nas regiões cervical e lombar, onde os movimentos da
coluna se fazem mais amplos. A porção anterior da coluna absorve os impactos
dos movimentos corporais, como caminhada e corrida, e, junto com a porção
posterior, protege a medula espinal e raízes nervosas no canal medular.

FIGURA 14-1 Anatomia vertebral. (De A Gauthier Cornuelle, DH Gronefeld: Radiographic Anatomy
Positioning. New York, McGraw-Hill, 1998; com permissão.)
FIGURA 14-2 Coluna vertebral. (De A Gauthier Cornuelle, DH Gronefeld: Radiographic Anatomy
Positioning. New York, McGraw-Hill, 1998; com permissão.)

A coluna vertebral posterior consiste nos arcos e processos vertebrais. Cada


arco consiste em um par de pedículos cilíndricos anteriormente e um par de
lâminas posteriormente. O arco vertebral também dá origem a dois processos
transversos lateralmente, um processo espinhoso posteriormente, mais duas
facetas articulares superiores e duas inferiores. A justaposição de uma faceta
superior em uma inferior constitui a articulação facetária. A porção posterior da
coluna fornece ancoragem para músculos e ligamentos. A contração dos
músculos fixados aos processos espinhosos e transversos e às lâminas funciona
como um sistema de polias e alavancas que resulta nos movimentos de flexão,
extensão e inclinação lateral da coluna vertebral.
A lesão de raiz nervosa (radiculopatia) é uma causa comum de dor no
pescoço, no braço, na região lombar, nas nádegas e nas pernas (ver dermátomos
nas Figs. 22-2 e 22-3). As raízes nervosas saem em um nível acima de seus
respectivos corpos vertebrais na região cervical (p. ex., a raiz nervosa C7 sai no
nível de C6-C7) e abaixo de seus respectivos corpos vertebrais nas regiões
torácica e lombar (p. ex., a raiz nervosa T1 sai no nível de T1-T2). As raízes
nervosas cervicais seguem um trajeto intravertebral curto antes de saírem. Em
contraste, como a medula espinal termina no nível vertebral de L1 ou L2, as
raízes nervosas lombares seguem um longo trajeto intravertebral e podem sofrer
lesão em qualquer ponto, desde a coluna lombar superior até o forame
intervertebral ou o espaço extraforaminal. Por exemplo, uma hérnia de disco no
nível de L4-L5 pode ocasionar compressão lateral da raiz de L4, mas com maior
frequência causa compressão da raiz nervosa de L5 transversa (Fig. 14-3). As
raízes nervosas lombares são móveis no canal espinal, mas podem passar através
do estreito recesso lateral do canal espinal e do forame intervertebral (Figs. 14-
2 e 14-3). Os exames de neuroimagem da coluna devem incluir incidências
sagitais e axiais para a avaliação de possível compressão no recesso lateral ou no
forame intervertebral.
FIGURA 14-3 Compressão das raízes L5 e S1 por discos herniados. (De AH Ropper, MA Samuels:
Adams and Victor’s Principles of Neurology, 9th ed. New York, McGraw-Hill, 2009; com permissão.)

Começando ao nível de C3, cada corpo vertebral cervical (e o primeiro


torácico) projeta um processo ósseo lateral para cima – o processo uncinado. O
processo uncinado se articula com o corpo vertebral cervical acima através da
articulação uncovertebral. A articulação uncovertebral pode hipertrofiar com a
idade e contribuir para o estreitamento do forame neural e a radiculopatia na
coluna cervical.
As estruturas da coluna vertebral sensíveis à dor incluem o periósteo do
corpo vertebral, a dura-máter, as facetas articulares, o anel fibroso do disco
intervertebral, as veias e artérias epidurais e o ligamento longitudinal. A doença
dessas estruturas diversas pode explicar muitas causas de dor nas costas sem
compressão de raiz nervosa. Em circunstâncias normais, o núcleo pulposo do
disco intervertebral não é sensível à dor.
ABORDAGEM AO PACIENTE
Dor nas costas
TIPOS DE DOR NAS COSTAS
A compreensão sobre o tipo de dor descrita pelo paciente é a primeira etapa
essencial. É preciso se concentrar na identificação de fatores de risco para
uma etiologia grave subjacente. As causas graves mais frequentes de dor nas
costas são radiculopatia, fratura, tumor, infecção ou dor referida de estruturas
viscerais (Tab. 14-1).

TABELA 14-1 ■ Lombalgia aguda: fatores de risco que indicam uma causa estrutural importante
História
Dor piora em repouso ou à noite
História anterior de câncer
História de infecção crônica (especialmente pulmonar, urinária, cutânea)
História de traumatismo
Incontinência
> 70 anos de idade
Uso de drogas intravenosas
Uso de glicocorticoide
História de déficit neurológico rapidamente progressivo
Exame
Febre inexplicada
Perda de peso inexplicada
Dor à palpação/percussão sobre a linha média da coluna
Massa abdominal, retal ou pélvica
Rotação interna/externa da perna ao nível do quadril; sinal da percussão do calcanhar
Sinais de elevação da perna estendida ou da perna estendida inversa
Déficit neurológico focal progressivo

A dor local é causada por lesão de estruturas sensíveis à dor que


comprimem ou irritam as terminações nervosas sensitivas. O local da dor é
próximo à parte acometida do dorso.
A dor referida ao dorso pode originar-se de vísceras abdominais ou
pélvicas. Em geral, a dor é descrita como primariamente abdominal ou
pélvica, sendo, porém, acompanhada de dor nas costas e não costuma ser
afetada pela postura. Às vezes, o paciente queixa-se unicamente de dor nas
costas.
A dor de origem vertebral pode ser localizada nas costas ou referida às
nádegas ou pernas. Nas doenças que afetam a coluna lombar superior, a dor
tende a ser referida para a região lombar, virilha ou face anterior das coxas.
As doenças que acometem a coluna lombar inferior tendem a causar dor
referida para as nádegas, face posterior das coxas, panturrilhas ou pés. A dor
referida pode explicar síndromes álgicas que atravessam múltiplos
dermátomos sem evidência de lesão de nervos ou raízes nervosas.
A dor radicular é bem definida e irradia-se da região das costas para
uma perna no território de uma raiz nervosa (ver “Doença discal lombar”,
adiante). A tosse, um espirro ou uma contração voluntária dos músculos
abdominais (levantamento de objetos pesados ou esforço à evacuação)
podem provocar ou piorar a dor irradiada. A dor pode aumentar com posturas
que causam o estiramento de nervos e raízes nervosas. O ato de sentar com a
perna estendida faz tração sobre o nervo ciático e sobre as raízes L5 e S1,
visto que o nervo ciático passa posteriormente ao quadril. O nervo femoral
(raízes L2, L3 e L4) passa anteriormente ao quadril e não sofre estiramento
com a posição sentada. A descrição da dor de forma isolada não costuma
permitir a diferenciação entre dor referida e radiculopatia, embora uma dor
em queimação ou “em choque”’ favoreça a radiculopatia.
A dor associada a espasmo muscular está comumente associada a
muitos distúrbios da coluna vertebral. Os espasmos podem ser
acompanhados de postura anormal, músculos paravertebrais retesados e dor
surda ou dolente nessa região.
O conhecimento das circunstâncias associadas ao início da dor nas
costas é fundamental para a análise das possíveis causas graves subjacentes
da dor. Alguns pacientes que sofrem acidentes ou traumatismos no trabalho
podem exagerar a dor que sentem com a finalidade de serem indenizados ou
por motivos psicológicos.

EXAME
Recomenda-se um exame físico que inclua o abdome e o reto. A dor nas
costas referida de órgãos viscerais pode ser reproduzida durante a palpação
do abdome (pancreatite, aneurisma aórtico abdominal [AAA]) ou percussão
dos ângulos costovertebrais (pielonefrite).
A coluna vertebral normal exibe uma lordose cervical e lombar, bem
como cifose torácica. A exacerbação desses alinhamentos normais pode
resultar em hipercifose da coluna torácica ou hiperlordose da coluna lombar.
A inspeção pode revelar uma curvatura lateral da coluna (escoliose). Uma
assimetria na proeminência da musculatura paraespinal sugere espasmo
muscular. A dor na coluna que é reproduzida pela palpação de processos
espinhosos reflete lesão das vértebras afetadas ou de estruturas adjacentes
sensíveis à dor.
O espasmo dos músculos paravertebrais com frequência limita o
encurvamento para frente, podendo aplanar a lordose lombar usual. A flexão
dos quadris é normal em pacientes com doença da coluna lombar, porém a
flexão da coluna lombar se mostra limitada, sendo às vezes dolorosa. A
inclinação para o lado contralateral ao elemento vertebral lesionado pode
causar o estiramento dos tecidos danificados, agravar a dor e limitar a
mobilidade. A hiperextensão da coluna (com o paciente em decúbito ventral
ou na posição ereta) é limitada quando há compressão de raízes nervosas,
patologia da articulação facetária ou outra doença da coluna óssea.
A dor decorrente de doença do quadril pode simular a de doença da
coluna lombar. A dor no quadril pode ser reproduzida pela rotação passiva
medial e lateral no quadril, com o joelho e o quadril em flexão, ou quando o
médico percute com a palma o calcanhar enquanto o membro inferior está
estendido (sinal de percussão do calcanhar).
A manobra de elevação da perna estendida (EPE) é um teste simples à
beira do leito para a doença de raízes nervosas. Com o paciente em posição
supina, a flexão passiva da perna estendida sobre o quadril estira as raízes
nervosas de L5 e S1 e o nervo ciático; a dorsiflexão do pé durante a manobra
aumenta o estiramento. Em pessoas saudáveis, a flexão de pelo menos 80° é
normalmente possível sem causar dor, embora uma sensação de aperto ou
estiramento nos músculos isquiotibiais seja comum. O teste de EPE será
positivo se a manobra reproduzir a dor habitual do paciente nas costas ou no
membro. A produção do sinal da EPE na posição supina e sentada pode
ajudar a determinar se o achado é reproduzível. O paciente pode descrever a
ocorrência de dor na região lombar, nas nádegas, na parte posterior da coxa
ou na parte inferior da perna, porém a manifestação essencial é a reprodução
da dor habitual do paciente. O sinal da EPE cruzado estará presente quando
a flexão de uma perna reproduzir a dor na perna ou nádega oposta. O sinal da
EPE cruzado é menos sensível, porém mais específico, para hérnia de disco
que o sinal da EPE. O sinal da EPE reverso é suscitado ao pedir-se ao
paciente que fique de pé ao lado da mesa de exame e estenda passivamente
cada perna com o joelho completamente estendido. Essa manobra, que estira
as raízes nervosas L2-L4, o plexo lombossacro e o nervo femoral, será
considerada positiva se reproduzir a dor habitual do paciente nas costas ou no
membro. Em todos esses testes, a lesão do nervo ou da raiz nervosa é sempre
no lado da dor.
O exame neurológico inclui pesquisa de fraqueza focal ou atrofia
muscular, alterações de reflexos focais, sensibilidade diminuída nas pernas
ou sinais de lesão da medula espinal. O médico deve estar alerta quanto à
possibilidade de fraqueza de escape, definida como flutuações na força
máxima durante o exame muscular. A fraqueza de escape pode decorrer de
dor, de desatenção ou combinação de dor e fraqueza real subjacente. A
fraqueza de escape sem dor geralmente advém da falta de esforço. Em casos
incertos, uma eletromiografia (EMG) pode determinar se há fraqueza real
decorrente de lesão do tecido nervoso. Os achados nas lesões de raízes
nervosas lombossacrais específicas são apresentados na Tabela 14-2 e
discutidos adiante.

TABELA 14-2 ■ Radiculopatia lombossacral: manifestações neurológicas


Raízes nervosas Achados ao exame Distribuição da dor
lombossacrais
Reflexos Sensitivo Motor

L2a – Face Psoas (flexão de Face anterior da coxa


anterossuperior quadril)
da coxa
L3a – Face Psoas (flexão de Face anterior da coxa, joelho
anteroinferior quadril)
da coxa
Face anterior Quadríceps (extensão
do joelho do joelho)
Adutores da coxa
L4a Quadríceps (joelho) Panturrilha Quadríceps (extensão Joelho, panturrilha medial
medial do joelho)b
Adutores da coxa Face anterolateral da coxa
L5c – Superfície Fibular (eversão do pé)b Panturrilha lateral, dorso do pé, face
dorsal – pé posterolateral da coxa, nádegas
Panturrilha Tibial anterior
lateral (dorsiflexão do pé)
Glúteo médio (abdução
da perna)
Dorsiflexão de artelhos
S1c Gastrocnêmio/sóleo Superfície Gastrocnêmio/sóleo Face plantar, panturrilha posterior, face
(tornozelo) plantar – pé (flexão plantar do pé)b posterior da coxa, nádegas
Face lateral – Abdutor do hálux
pé (flexores dos artelhos)b
Glúteo máximo
(extensão da perna)
aPresença de sinal da elevação da perna inversa – ver Exame em “Abordagem ao paciente”. bEsses músculos recebem a maior parte da

inervação a partir dessa raiz. cPresença de sinal de elevação da perna estendida – ver Exame em “Abordagem ao paciente”.

EXAMES LABORATORIAIS, RADIOLÓGICOS E EMG


Os exames laboratoriais raramente são necessários para a avaliação inicial da
lombalgia aguda (LA) inespecífica (< 3 meses de duração). Os fatores de
risco para uma causa subjacente grave e para infecção, tumor ou fratura, em
especial, devem ser pesquisados pela história e exame físico. Na presença de
fatores de risco (Tab. 14-1), indicam-se exames laboratoriais (hemograma
completo, velocidade de hemossedimentação [VHS] e exame de urina). Se os
fatores de risco estiverem ausentes, o manejo é conservador (ver
“Tratamento”, adiante).
A tomografia computadorizada (TC) é superior aos raios X para a
detecção de fraturas que envolvem as estruturas posteriores da coluna,
junções craniocervicais e cervicotorácicas, vértebras C1 e C2, fragmentos
ósseos no canal vertebral ou desalinhamento. Os exames de TC estão sendo
cada vez mais usados como modalidade primária de rastreamento para
traumatismo agudo moderado a grave. A ressonância magnética (RM) e a
mielotomografia computadorizada (mielo-TC) são os exames radiológicos de
escolha para avaliar a maioria das doenças graves da coluna. A RM é
superior para a definição das estruturas das partes moles, enquanto a mielo-
TC fornece imagens ideais do recesso lateral do canal vertebral, define
anormalidades ósseas e é mais bem tolerada por pacientes claustrofóbicos.
Análises populacionais feitas nos Estados Unidos sugerem que os
pacientes com dor nas costas relatam maiores limitações funcionais nos
últimos anos, apesar de rápidos aumentos em exames de imagem da coluna,
prescrição de opioides, infiltrações e cirurgia de coluna. Isso sugere que o
uso mais seletivo de modalidades de diagnóstico e tratamento possa ser
razoável para muitos pacientes.
Os exames de imagem muitas vezes revelam anormalidades de
relevância clínica duvidosa que podem alarmar médicos e pacientes, levando
a novos exames e tratamentos desnecessários. Quando os exames de imagem
são relatados, é importante lembrar que alterações degenerativas são comuns
em pessoas normais e sem dor. Estudos randomizados e estudos
observacionais sugeriram que exames de imagem podem gerar um “efeito
cascata”, levando a cuidados desnecessários. Com base parcialmente nessas
evidências, o American College of Physicians e a North American Spine
Society fizeram uma parceira para tornar o uso parcimonioso dos exames de
imagem da coluna uma grande prioridade na sua campanha “Choosing
Wisely”, a qual visa reduzir os cuidados desnecessários. Os esforços bem-
sucedidos para reduzir os exames de imagem desnecessários normalmente
têm sido multifacetados. Alguns incluem educação médica e suporte
computadorizado à decisão para identificar exames de imagem prévios e para
exigir indicações específicas para a aprovação de exames de imagem. Outras
estratégias incluem auditorias e feedback em relação às taxas médicas
individuais de solicitações, e acesso mais rápido à fisioterapia ou consultoria
com especialista para pacientes sem indicação de exames de imagem.
Por exemplo, as ferramentas educacionais para pacientes e o público
têm incluído “Cinco coisas que os médicos e os pacientes devem perguntar”:
(1) Não recomendar exames de imagem avançados (p. ex., RM) da coluna
nas primeiras 6 semanas em pacientes com LA inespecífica na ausência de
“sinais de alerta”. (2) Não realizar injeções espinais eletivas sem orientação
por imagem, a menos que haja contraindicação. (3) Não usar proteínas
morfogenéticas ósseas (BMP) para a cirurgia de fusão vertebral cervical
anterior de rotina. (4) Não usar EMG e estudos da condução nervosa (ECN)
para determinar a causa de dor na coluna lombar, torácica ou cervical axial.
(5) Não recomendar repouso no leito por > 48 horas ao tratar a LA. Em um
estudo observacional, a aplicação dessa estratégia esteve associada a menores
taxas de repetição de exames, uso de opioides e encaminhamento para
fisioterapia.
Os exames eletrodiagnósticos podem ser usados para avaliar a
integridade funcional do sistema nervoso periférico (Cap. 438). Os ECN
sensitivos são normais quando a perda sensitiva focal confirmada pelo exame
é causada por lesão de raízes nervosas, visto que as últimas se localizam
proximalmente aos corpos celulares nos gânglios das raízes dorsais. A lesão
ao tecido nervoso distal ao gânglio da raiz dorsal (p. ex., plexo ou nervo
periférico) resulta em redução dos sinais sensitivos nervosos. A EMG com
agulha complementa os ECNs, ao detectar alterações de desnervação ou
reinervação em uma distribuição em miótomos (segmentar). São obtidas
amostras de múltiplos músculos inervados por diferentes raízes nervosas e
nervos; o padrão do comprometimento muscular indica a(s) raiz(raízes)
nervosa(s) responsável(is) pela lesão. A EMG com agulha fornece
informações objetivas sobre a ocorrência de lesão de fibras nervosas motoras
quando a avaliação clínica de fraqueza é limitada pela dor ou por um esforço
deficiente. A EMG e os ECNs serão normais quando a lesão ou irritação de
raízes nervosas sensitivas for a causa da dor.
CAUSAS DE DOR NAS COSTAS (TAB. 14-3)
DOENÇA DISCAL LOMBAR
É uma causa comum de lombalgia e dor na perna agudas, crônicas ou recorrentes
(Figs. 14-3 e 14-4). A doença discal tem mais probabilidade de ocorrer nos
níveis de L4-L5 ou L5-S1, mas os níveis lombares superiores também podem ser
acometidos. A causa costuma ser desconhecida, mas o risco aumenta em
indivíduos com sobrepeso. A hérnia discal não é comum antes dos 20 anos de
idade, sendo rara nos discos fibróticos dos idosos. Fatores genéticos complexos
podem ser importantes na predisposição. A dor pode localizar-se na região
lombar ou ser referida para o membro inferior, a nádega ou o quadril. Um
espirro, tosse ou algum movimento trivial podem resultar em prolapso do núcleo
pulposo, empurrando o anel desgastado e enfraquecido posteriormente. Na
doença discal grave, o núcleo pode projetar-se por meio do anel (herniação) ou
ser extrudido, aparecendo como fragmento livre no canal vertebral.

TABELA 14-3 ■ Causas de dor nas costas ou no pescoço


Doença discal lombar ou cervical

Doença degenerativa da coluna


Estenose do canal medular com ou sem claudicação neurogênica
Estreitamento de forame intervertebral ou recesso lateral
Complexo disco-osteófito
Hipertrofia de faceta ou articulação uncovertebral
Protrusão discal lateral
Espondilose (osteoartrite) e espondilolistese
Infecção espinal
Osteomielite vertebral
Abscesso epidural espinal
Disco séptico (discite)
Meningite
Aracnoidite lombar
Neoplasias – metastáticas, hematológicas, tumores ósseos primários, fraturas
Trauma/quedas, acidentes com veículos automotores
Fraturas atraumáticas: osteoporose, infiltração neoplásica, osteomielite
Traumatismo de pequeno porte
Entorse ou distensão
Lesão em chicote
Doença metabólica da coluna
Osteoporose – hiperparatireoidismo, imobilidade
Osteosclerose (p. ex., doença de Paget)
Congênitas/relacionadas com o desenvolvimento
Espondilólise
Cifoescoliose
Espinha bífida oculta
Medula espinal presa
Artrite inflamatória autoimune
Outras causas de dor nas costas
Dor referida de doença visceral (p. ex., aneurisma aórtico abdominal)
Postural
Transtornos psiquiátricos, simulação, síndromes de dor crônica

FIGURA 14-4 Radiculopatia L5 esquerda. A. A imagem ponderada em T2 sagital, à esquerda, revela


hérnia de disco no nível L4-L5. B. A imagem ponderada em T1 axial mostra hérnia de disco paracentral
com deslocamento do saco tecal medialmente e da raiz nervosa L5 posteriormente no recesso lateral
esquerdo.

O mecanismo pelo qual a lesão de discos intervertebrais provoca dor nas


costas é controverso. O anel fibroso interno e o núcleo pulposo normalmente são
desprovidos de inervação. A inflamação e a produção de citocinas pró-
inflamatórias no interior do núcleo pulposo rompido podem desencadear ou
perpetuar a dor nas costas. A invaginação de fibras nervosas nociceptivas (para
dor) para dentro do núcleo pulposo do disco acometido pode ser responsável por
alguns casos de dores “discogênicas” crônicas. A lesão de raiz nervosa
(radiculopatia) por herniação de disco costuma ser causada por inflamação, mas
a herniação lateral pode produzir compressão no recesso lateral ou no forame
intervertebral.
Um disco roto pode ser assintomático ou causar dor nas costas, limitação
dos movimentos da coluna vertebral (particularmente flexão), um déficit
neurológico focal ou dor radicular. Um padrão em dermátomos de perda
sensitiva ou a redução ou abolição de um reflexo tendíneo profundo são mais
sugestivos de lesão de raiz específica do que o padrão da dor. Os achados
motores (fraqueza focal, atrofia muscular ou fasciculações) são menos
frequentes que as alterações focais da sensibilidade ou dos reflexos. Os sinais e
sintomas costumam ser unilaterais, porém o comprometimento bilateral ocorre
nas grandes hérnias discais centrais que comprimem múltiplas raízes ou causam
inflamação de raízes nervosas dentro do canal vertebral. As manifestações
clínicas das lesões de raízes nervosas específicas estão resumidas na Tabela 14-
2.
O diagnóstico diferencial cobre uma variedade de distúrbios graves e
tratáveis, como abscesso extradural, hematoma, fratura ou tumor. Febre, dor
constante não influenciada pela posição, anormalidades esfincterianas ou sinais
de mielopatia sugerem outra etiologia que não a doença discal lombar. A
ausência dos reflexos aquileus pode ser um achado normal em pessoas com mais
de 60 anos de idade ou um sinal de radiculopatia de S1 bilateralmente. A
ausência de reflexo tendíneo profundo ou perda sensitiva focal pode indicar
lesão de raiz nervosa, mas outros locais de lesão ao longo do nervo também
devem ser considerados. Por exemplo, um reflexo patelar ausente pode dever-se
a uma neuropatia femoral ou lesão de raiz nervosa de L4, e uma perda de
sensibilidade sobre o pé e face lateral e inferior da panturrilha pode resultar de
neuropatia fibular ou ciática lateral ou de uma lesão de raiz nervosa de L5. A
atrofia muscular focal pode refletir lesão das células do corno medular anterior
da medula espinal, de raiz nervosa, nervo periférico ou desuso.
É necessário realizar uma RM ou mielo-TC da coluna lombar para
confirmar a localização e o tipo de patologia. A RM de coluna gera incidências
únicas da anatomia intraespinal e de tecidos moles adjacentes, enquanto as
lesões ósseas do recesso lateral ou do forame intervertebral são mais bem
visualizadas pela mielo-TC. A correlação dos achados neurorradiológicos com
os sintomas, em particular a dor, não é simples. As lacerações do anel fibroso ou
as protrusões discais que captam contraste são amplamente aceitas como fontes
comuns de dor nas costas; contudo, estudos concluíram que muitos adultos
assintomáticos apresentam achados semelhantes. Protrusões discais totalmente
assintomáticas também são comuns, ocorrendo em até um terço dos adultos, e
elas também podem realçar por contraste. Além disso, em pacientes com hérnia
de disco conhecida tratada clínica ou cirurgicamente, a persistência da hérnia 10
anos depois não tinha qualquer relação com o desfecho clínico. Em resumo, os
achados à RM de protrusão discal, lacerações no anel fibroso ou hipertrofia de
articulações facetárias são achados casuais comuns que, em si, não devem
influenciar as decisões terapêuticas para os pacientes com dor nas costas.
O diagnóstico de lesão de raiz nervosa é mais seguro quando há
concordância entre a anamnese, o exame físico, os resultados de imagens e a
EMG. Costuma haver boa correlação entre TC e EMG quanto à localização da
lesão de raiz nervosa.
O tratamento da doença discal lombar é discutido adiante.
A síndrome da cauda equina (SCE) é uma lesão de múltiplas raízes
nervosas lombossacrais dentro do canal vertebral, distal ao término da medula
espinal em L1-L2. Podem ocorrer lombalgia, fraqueza e arreflexia nas pernas,
anestesia em sela e perda da função vesical. O problema deve ser diferenciado de
distúrbios da medula espinal inferior (síndrome do cone medular), mielite
transversa aguda (Cap. 434) e síndrome de Guillain-Barré (Cap. 439). Pode
haver o envolvimento combinado do cone medular e da cauda equina. A SCE
advém mais comumente de ruptura de um grande disco intervertebral
lombossacro, mas outras causas incluem fratura de vértebra lombossacra,
hematoma dentro do canal vertebral (algumas vezes após punção lombar em
pacientes com coagulopatia), tumores ou outras lesões expansivas compressivas.
O tratamento é a descompressão cirúrgica, às vezes como procedimento urgente
na tentativa de restaurar ou preservar a função motora ou a esfincteriana, ou
radioterapia para os tumores metastáticos (Cap. 86).

DISTÚRBIOS DEGENERATIVOS
A estenose do canal vertebral lombar (ECVL) descreve um estreitamento do
canal vertebral lombar. Claudicação neurogênica consiste em dor, normalmente
nas costas e nádegas ou pernas, a qual surge ao caminhar ou ficar de pé, sendo
aliviada ao sentar. Os sintomas nas pernas costumam ser bilaterais.
Diferentemente da claudicação vascular, os sintomas costumam ser provocados
pela posição em pé sem deambulação. Ao contrário da doença discal lombar, os
sintomas geralmente são aliviados pela posição sentada. Os pacientes com
claudicação neurogênica costumam conseguir caminhar muito mais longe
inclinados sobre um carrinho de compras e podem pedalar sentados em bicicleta
ergométrica com facilidade. Essas posições de flexão aumentam o diâmetro
anteroposterior do canal vertebral e reduzem a hipertensão venosa intraespinal,
produzindo alívio da dor. Fraqueza focal, perda sensitiva ou alterações dos
reflexos podem ocorrer quando a estenose vertebral está associada à
radiculopatia. Apenas raramente ocorrem déficits neurológicos graves, como
paralisia e incontinência urinária.
A ECVL por si só é comum (6-7% dos adultos), sendo frequentemente
assintomática. A correlação entre a intensidade dos sintomas e o grau de
estenose do canal vertebral é variável. A ECVL costuma ser adquirida (75%),
mas também pode ser congênita ou causada por uma mistura de ambos os tipos.
As formas congênitas (acondroplasia e idiopática) caracterizam-se por pedículos
curtos e espessos que produzem estenose do canal vertebral e do recesso lateral.
Os fatores adquiridos que contribuem para a estenose do canal vertebral incluem
doenças degenerativas (espondilose, espondilolistese e escoliose), traumatismo,
cirurgia na coluna vertebral, distúrbios metabólicos ou endócrinos (lipomatose
epidural, osteoporose, acromegalia, osteodistrofia renal, hipoparatireoidismo) e
doença de Paget. A RM proporciona a melhor definição da anatomia anormal (Fi
g. 14-5).

FIGURA 14-5 Imagens ponderadas em T2 axiais da coluna lombar. A. A imagem mostra um saco tecal
normal dentro do canal vertebral lombar. O saco tecal é brilhante. As raízes lombares são pontos escuros no
saco tecal posterior, com o paciente em decúbito dorsal. B. O saco tecal não é bem visualizado devido à
estenose grave do canal vertebral lombar, em parte resultante de articulações facetárias hipertróficas.

A ECVL acompanhada por claudicação neurogênica responde à


descompressão cirúrgica dos segmentos estenóticos. Os mesmos processos que
levam à ECVL podem causar estreitamento do recesso lateral ou foraminal
lombar, resultando em radiculopatia lombar coincidente que também pode
necessitar de tratamento. Um ensaio clínico recente para ECVL acompanhada de
dor nas pernas não mostrou benefício global com o uso epidural de
glicocorticoides mais lidocaína, mas uma análise de subgrupos mostrou uma
discreta melhora nos escores de incapacidade em 6 semanas de significância
clínica incerta.
O tratamento conservador da ECVL sintomática pode consistir em anti-
inflamatórios não esteroides (AINEs), paracetamol, programas de exercícios e
tratamento sintomático dos episódios de dor aguda. Não há evidência suficiente
que confirme o uso rotineiro de injeções epidurais de glicocorticoide. A terapia
cirúrgica deve ser considerada quando o tratamento clínico não alivia os
sintomas o suficiente para permitir o retorno às atividades cotidianas ou quando
existem sinais neurológicos focais. A maioria dos pacientes com claudicação
neurogênica que recebe tratamento clínico não melhora com o tempo. O manejo
cirúrgico com laminectomia pode produzir alívio significativo da dor nas costas
e nas pernas aos esforços, levando a menor incapacidade e melhores desfechos
funcionais em 4 anos. Laminectomia e fusão costumam ser reservadas para
pacientes com ECVL e espondilolistese. Os preditores de desfecho cirúrgico
ruim incluem problemas para deambular no pré-operatório, depressão, doença
cardiovascular e escoliose. Até 25% dos pacientes tratados cirurgicamente
desenvolvem estenose recorrente no mesmo nível espinal ou em um nível
adjacente dentro de 7 a 10 anos; os sintomas recorrentes geralmente respondem a
uma segunda descompressão cirúrgica.
O estreitamento do forame neural com radiculopatia é uma consequência
comum de processos de osteoartrite que causam ECVL (Figs. 14-1 e 14-6),
incluindo osteófitos, protrusões discais laterais, disco-osteófitos calcificados,
hipertrofia de articulações facetárias, hipertrofia de articulação uncovertebral (na
coluna cervical), pedículos com encurtamento congênito ou, muitas vezes, uma
combinação desses processos. Neoplasias (primárias ou metastáticas), fraturas,
infecções (abscesso epidural) ou hematomas são outras causas menos comuns. O
mais comum é o estreitamento foraminal ósseo levando a isquemia de raiz
nervosa e sintomas persistentes, em contraste com a inflamação associada com
um disco herniado e radiculopatia. Tais condições podem desencadear sinais ou
sintomas unilaterais de raiz nervosa, devido à compressão no forame
intervertebral ou no recesso lateral; os sintomas, em geral, são indistinguíveis
dos da radiculopatia relacionada com discos, mas o tratamento pode diferir,
dependendo da etiologia específica. A história e o exame neurológico sozinhos
não conseguem diferenciar entre essas possibilidades. Um exame de
neuroimagem (TC ou RM) é necessário para identificar a causa anatômica. Os
achados neurológicos ao exame e à EMG podem ajudar a direcionar a atenção
do radiologista para raízes nervosas específicas, especialmente em imagens
axiais. No caso de hipertrofia de articulação facetária, a foraminotomia
cirúrgica resulta em alívio em longo prazo da dor nas costas e pernas em 80 a
90% dos pacientes. O bloqueio de articulações facetárias para a dor nas costas ou
no pescoço é algumas vezes usado para ajudar a determinar a origem anatômica
da dor nas costas ou para tratamento, mas não há dados clínicos que sustentem
sua utilidade. As causas clínicas de radiculopatia lombar ou cervical sem relação
com doença anatômica da coluna incluem infecções (p. ex., herpes-zóster e
doença de Lyme), meningite carcinomatosa e avulsão ou tração de raiz
(traumatismo).

FIGURA 14-6 Radiculopatia L5 direita. A. Imagem ponderada em T2 sagital. Há sinal hiperintenso


normal ao redor da saída da raiz de L4 direita no forame neural direito em L4-L5; a redução do sinal
hiperintenso no forame direito L5-S1 está presente um nível caudal à direita em L5-S1. B. Imagem
ponderada em T2 axial. Os recessos laterais são bilateralmente normais; o forame intervertebral é normal à
esquerda, mas com estenose grave à direita. *Estenose foraminal grave à direita em L5-S1.

ESPONDILOSE E ESPONDILOLISTESE
A espondilose, ou doença osteoartrítica da coluna vertebral, em geral ocorre em
uma época mais tardia da vida e acomete principalmente as colunas cervical e
lombossacral. Com frequência, os pacientes queixam-se de dor nas costas que
aumenta com o movimento e está associada à rigidez e que melhora em repouso.
A relação entre os sintomas clínicos e os achados radiológicos não costuma ser
direta. A dor pode ser proeminente quando os achados em radiografia, TC ou
RM são mínimos, e pode-se observar doença vertebral degenerativa proeminente
em pacientes assintomáticos. Osteófitos isolados ou combinados com discos,
bem como espessamento de ligamento flavo podem causar estenose central do
canal vertebral ou contribuir para ela, estenose do recesso lateral ou
estreitamento de forame neural.
A espondilolistese é o deslizamento anterior do corpo vertebral, dos
pedículos e das facetas articulares superiores, deixando para trás os elementos
posteriores. A espondilolistese pode estar associada com espondilólise,
anomalias congênitas, doença degenerativa da coluna ou outras causas de
fraqueza mecânica da pars interarticularis (p. ex., infecção, osteoporose, tumor,
trauma, cirurgia prévia). O deslizamento pode ser assintomático ou pode causar
lombalgia e contratura da musculatura posterior da coxa, lesão de raiz nervosa
(mais frequentemente em L5), estenose espinal sintomática ou SCE em casos
graves. Um “degrau” ou dolorimento à palpação podem ser suscitados próximo
ao segmento que “deslizou” para frente (com maior frequência, L4 sobre L5 ou,
às vezes, L5 sobre S1). Também pode ocorrer anterolistese ou retrolistese focais
em quaisquer níveis cervicais ou lombares e ser a origem da dor nesses locais.
Radiografias simples com o pescoço ou a região lombar em flexão e extensão
revelam o movimento no segmento anormal da coluna. A cirurgia é realizada
para a instabilidade espinal (deslizamento de 5-8 mm) e é considerada para os
sintomas de dor que não respondem a medidas conservadoras (p. ex., repouso,
fisioterapia) e nos casos com déficit neurológico progressivo ou escoliose.

NEOPLASIAS
A dor nas costas é o sintoma neurológico mais comum em pacientes com câncer
sistêmico e o sintoma de apresentação em 20%. A causa geralmente provém de
metástases dos corpos vertebrais (85-90%), mas também pode resultar da
disseminação de câncer pelo forame intervertebral (especialmente no caso de
linfoma), de meningite carcinomatosa ou de metástases para a medula espinal. A
coluna torácica é a mais comumente afetada. A dor nas costas relacionada ao
câncer tende a ser constante, surda, sem alívio com repouso e pior à noite. Por
outro lado, as causas mecânicas de lombalgia geralmente melhoram com
repouso. A RM, a TC e a mielo-TC são os exames de escolha nos casos em que
se suspeita de metástase vertebral. Assim que se detecta uma metástase, a
imagem de toda a coluna é fundamental, pois revela lesões tumorais adicionais
em cerca de um terço dos pacientes. A RM é preferida para definição de tecidos
moles, porém a modalidade de imagem mais rapidamente disponível é a melhor,
visto que o estado do paciente pode deteriorar rapidamente sem intervenção. O
diagnóstico precoce é fundamental. Um forte preditor de desfecho é a função
neurológica basal antes do diagnóstico. Entre 50 e 75% dos pacientes não
caminham no momento do diagnóstico e poucos recuperam a capacidade de
caminhar. O tratamento de metástases vertebrais é discutido em detalhes no
Capítulo 86.

INFECÇÕES/INFLAMAÇÃO
Em geral, a osteomielite vertebral é causada por disseminação hematogênica de
estafilococos, mas outras bactérias ou a tuberculose (mal de Pott) podem estar
implicadas. A fonte primária de infecção costuma ser a pele ou o trato urinário;
uso de drogas intravenosas, dentição ruim, endocardite, doença pulmonar,
cateteres intravenosos ou sítios de feridas no pós-operatório também podem ser
responsáveis. Os achados mais comuns na osteomielite vertebral são dor nas
costas em repouso, dor à palpação da vértebra acometida e elevação da VHS ou
proteína C-reativa. Em uma minoria de pacientes, ocorrem febre ou leucocitose.
A RM e a TC são sensíveis e específicas para a detecção precoce de
osteomielite. O disco intervertebral também pode ser afetado por infecção
(discite) e, quase nunca, por tumor. A extensão posterior da infecção a partir da
vértebra pode produzir um abscesso espinal epidural.
O abscesso espinal epidural (Cap. 434) apresenta-se com dor nas costas
(agravada por movimento ou palpação do processo espinhoso), febre,
radiculopatia ou sinais de compressão da medula espinal. O desenvolvimento
subagudo de dois ou mais desses achados deve aumentar a suspeita de abscesso
espinal epidural. O abscesso é mais bem delineado por RM da coluna e pode se
expandir para vários níveis espinais.
A aracnoidite adesiva lombar com radiculopatia resulta de fibrose pós-
inflamatória dentro do espaço subaracnóideo. A fibrose resulta em aderências
das raízes nervosas e apresenta-se como dor nas costas e nas pernas em
associação a alterações multifocais motoras, sensitivas ou dos reflexos. As
causas da aracnoidite incluem múltiplas cirurgias lombares (mais comum nos
Estados Unidos), infecções vertebrais crônicas (em especial tuberculose no
mundo em desenvolvimento), lesão da medula espinal, hemorragia intratecal,
mielografia (rara), injeção intratecal (glicocorticoides, anestésicos ou outros
agentes) e corpos estranhos. A RM mostra raízes nervosas aglomeradas na
incidência axial ou loculações do líquido cerebrospinal (LCS) no interior do saco
tecal. A aglomeração de raízes nervosas isoladamente não é diagnóstica e
também pode ocorrer com polineuropatia desmielinizante ou infiltração
neoplásica. O tratamento costuma ser insatisfatório. Lise microcirúrgica de
aderências, rizotomia dorsal, ganglionectomia da raiz dorsal e glicocorticoides
epidurais foram tentados, mas os resultados se mostraram medíocres. A
estimulação da coluna dorsal para o alívio da dor tem produzido resultados
variáveis.

TRAUMATISMO
O paciente que se queixa de dor nas costas e incapacidade de mover as pernas
pode estar com fratura ou luxação da coluna vertebral e, no caso das fraturas
acima de L1, há risco de compressão da medula espinal. É preciso ter cuidado
para evitar qualquer lesão adicional da medula espinal ou de raízes nervosas por
meio da imobilização do dorso e do pescoço enquanto se aguardam os resultados
das radiografias. É comum que ocorram fraturas vertebrais na ausência de
trauma em associação com osteoporose, uso de glicocorticoides, osteomielite ou
infiltração neoplásica.

Entorses e distensões Os termos entorse e distensão lombar e espasmo


muscular induzido mecanicamente referem-se a pequenas lesões autolimitadas
associadas ao levantamento de objetos pesados, queda ou desaceleração súbita,
como a que ocorre em um acidente automobilístico. Esses termos são usados de
forma imprecisa e não descrevem com clareza uma lesão anatômica específica.
A dor costuma estar confinada à região lombar. Os pacientes com espasmo dos
músculos paravertebrais costumam assumir posturas incomuns.

Fraturas vertebrais traumáticas A maioria das fraturas traumáticas dos corpos


vertebrais lombares resulta de lesões que produzem acunhamento anterior ou
compressão. Em caso de traumatismo grave, o paciente pode sofrer fratura-
luxação ou fratura “explosiva”, acometendo o corpo vertebral e os elementos
posteriores. As fraturas vertebrais traumáticas são causadas por quedas de altura,
desaceleração súbita em acidente de automóvel ou lesão direta. A ocorrência de
déficit neurológico é comum, sendo indicado o tratamento cirúrgico precoce.
Nas vítimas de traumatismo fechado, exames de TC do tórax, do abdome ou da
pelve podem ser reconstruídos para detectar fraturas vertebrais associadas.
Foram desenvolvidas regras para evitar exames de imagem desnecessários da
coluna em associação com trauma de baixo risco, mas esses estudos excluíram
pacientes com idade > 65 anos – um grupo que pode apresentar fraturas com
trauma mínimo.
CAUSAS METABÓLICAS
Osteoporose e osteosclerose Imobilização, osteomalácia, estado pós-
menopausa, doença renal, mieloma múltiplo, hiperparatireoidismo,
hipertireoidismo, carcinoma metastático ou uso de glicocorticoides podem
acelerar a osteoporose e enfraquecer os corpos vertebrais, levando a fraturas por
compressão e dor. Até cerca de dois terços das fraturas por compressão vistas em
imagens radiológicas são assintomáticas. As causas mais comuns das fraturas
não traumáticas de corpos vertebrais são a osteoporose pós-menopausa ou senil (
Cap. 404). O risco de uma outra fratura vertebral 1 ano após uma primeira
fratura vertebral é de 20%. A presença de febre, perda de peso, fratura em um
nível acima de T4, qualquer fratura em adulto jovem ou condições
predisponentes já comentadas deve aumentar a suspeita de outra causa que não a
osteoporose senil. A única manifestação de uma fratura por compressão pode ser
dor nas costas localizada ou radicular exacerbada com o movimento e
frequentemente reproduzida à palpação do processo espinhoso da vértebra
acometida.
Em geral, é possível obter alívio da dor aguda com paracetamol, AINEs,
opioides ou uma combinação desses medicamentos. Tanto a dor como a
incapacidade melhoram com o uso de órteses. Os fármacos antirreabsortivos não
são recomendados em casos de dor aguda, mas são o tratamento preferencial
para a prevenção de fraturas adicionais. Menos de um terço dos pacientes com
fraturas prévias por compressão são adequadamente tratados para osteoporose,
apesar do risco aumentado de futuras fraturas; ainda menos pacientes em risco
sem antecedentes de fratura são tratados de maneira adequada. A literatura para a
vertebroplastia percutânea (VPP) ou a cifoplastia para as fraturas osteoporóticas
por compressão associadas a dor incapacitante é variada, mas as metanálises não
sustentam a sua utilidade.
A osteosclerose, um aumento anormal da densidade óssea frequentemente
causado por doença de Paget, é facilmente identificável em radiografias de rotina
e, às vezes, pode ser uma fonte de dor nas costas. Pode estar associada a um
aumento isolado na fosfatase alcalina em uma pessoa saudável nos demais
aspectos. A compressão da medula espinal ou de raízes nervosas pode resultar de
pinçamento ósseo. O diagnóstico de doença de Paget como causa da dor nas
costas de um paciente é feito por exclusão.
Para uma discussão adicional desses distúrbios ósseos, ver Capítulos 40
3, 404 e 405.
ARTRITE INFLAMATÓRIA AUTOIMUNE
A doença inflamatória autoimune da coluna pode apresentar-se com início
insidioso de dor nas costas, nas nádegas ou no pescoço. Os exemplos incluem
artrite reumatoide (AR) (Cap. 351), espondilite anquilosante, artrite reativa,
artrite psoriásica ou doença inflamatória intestinal (Caps. 319 e 355).

ANOMALIAS CONGÊNITAS DA COLUNA LOMBAR


A espondilólise é um defeito ósseo na parte interarticular vertebral (um
segmento próximo à junção do pedículo com a lâmina) cuja causa em geral é
uma microfratura por estresse em um segmento congenitamente anormal. Isso
ocorre em até 6% dos adolescentes. O defeito (geralmente bilateral) é mais bem
visualizado em radiografias simples ou TC e costuma ser assintomático. Podem
ocorrer sintomas no contexto de traumatismo isolado, pequenas lesões de
repetição ou em esporões de crescimento. A espondilólise é a causa mais comum
de lombalgia persistente em adolescentes e com frequência está associada a
atividades relacionadas com esportes.
A escoliose significa a curvatura anormal da coluna no plano coronal
(lateral). Na cifoescoliose há, além disso, uma curvatura da coluna para frente. A
curvatura anormal pode ser congênita devido ao desenvolvimento anormal da
coluna, adquirida na idade adulta por doença degenerativa da coluna ou, algumas
vezes, progressiva por doença neuromuscular. A deformidade pode progredir até
comprometer a função respiratória e a capacidade de caminhar.
A espinha bífida oculta (disrafismo espinal fechado) é uma falha do
fechamento de um ou vários arcos vertebrais posteriormente; as meninges e a
medula espinal são normais. Pode haver uma depressão, ou lipoma pequeno,
acima do defeito, mas a pele é intacta. A maioria dos casos é assintomática e
descoberta por acaso durante a avaliação da dor nas costas.
A síndrome da medula presa (ou ancorada) geralmente apresenta-se como
um distúrbio progressivo da cauda equina (ver adiante), porém uma mielopatia
também pode ser a manifestação inicial. Com frequência, o paciente é uma
criança ou um adulto jovem que se queixa de dor perineal ou perianal, às vezes
após traumatismo leve. A RM geralmente mostra um cone em posição inferior
(abaixo de L1-L2) e um filamento terminal curto e espessado.

DOR REFERIDA POR DOENÇA VISCERAL


As doenças do tórax, do abdome ou da pelve podem causar dor referida ao
segmento vertebral que inerva o órgão enfermo. Em alguns casos, a dor nas
costas pode ser a primeira e única manifestação. As doenças na parte superior do
abdome costumam referir a dor para a região torácica inferior ou lombar superior
(oitava vértebra torácica à primeira e à segunda vértebras lombares), as doenças
da parte inferior do abdome para a região lombar média (segunda à quarta
vértebras lombares) e as doenças pélvicas para a região sacral. Não há sinais
locais (dor à palpação da coluna, espasmo dos músculos paravertebrais) e os
movimentos de rotina não estão associados a dor ou são acompanhados de pouca
dor.

Dor torácica inferior ou lombar em doenças abdominais Tumores da parede


posterior do estômago ou duodeno normalmente produzem dor epigástrica
(Caps. 76 e 317), mas pode ocorrer dor nas costas se houver extensão
retroperitoneal. Os alimentos gordurosos ocasionalmente induzem dor nas costas
associada às doenças biliares ou pancreáticas. Uma patologia nas estruturas
retroperitoneais (hemorragia, tumores e pielonefrite) pode ocasionar dor
paravertebral, que se irradia para a parte inferior do abdome, para a virilha ou
para a face anterior das coxas. A presença de uma massa na região do iliopsoas
pode induzir dor lombar unilateral com irradiação para a virilha, para os lábios
do pudendo ou para o testículo. O aparecimento súbito de lombalgia em paciente
tratado com anticoagulantes sugere hemorragia retroperitoneal.
A lombalgia isolada ocorre em alguns pacientes com ruptura contida de um
aneurisma de aorta abdominal (AAA). A tríade clínica clássica de dor
abdominal, choque e dor nas costas é observada em < 20% dos pacientes. O
diagnóstico pode passar despercebido, visto que os sinais e sintomas podem ser
inespecíficos. Os diagnósticos incorretos incluem lombalgia inespecífica,
diverticulite, cólica renal, sepse e infarto agudo do miocárdio. Um exame
cuidadoso do abdome que revela massa pulsátil (presente em 50-75% dos
pacientes) é um achado físico importante. Os pacientes em que se suspeita de
AAA devem ser avaliados com ultrassonografia, TC ou RM abdominal (Cap. 27
4).

Dor sacral nas doenças ginecológicas e urológicas Os órgãos pélvicos


raramente causam lombalgia. O mal posicionamento uterino (retroversão,
descida e prolapso) pode causar tração sobre o ligamento uterossacral. A dor é
referida para a região sacral, algumas vezes aparecendo após ficar muito tempo
de pé. A endometriose ou os cânceres do útero podem invadir os ligamentos
uterossacrais. A dor associada à endometriose é pré-menstrual e, com frequência,
continua até fundir-se com a dor menstrual.
A dor menstrual com cólicas mal localizadas pode se irradiar para as
pernas. Dor lombar que se irradia para uma ou ambas as coxas é comum nas
últimas semanas de gravidez. A dor contínua e progressiva que não é aliviada
pelo repouso ou à noite pode ser causada por infiltração neoplásica de nervos ou
raízes nervosas.
As fontes urológicas da dor lombossacral incluem prostatite crônica, câncer
de próstata com metástase vertebral (Cap. 83), bem como doenças do rim e do
ureter. As doenças renais infecciosas, inflamatórias ou neoplásicas podem gerar
dor lombossacral ipsilateral, assim como a trombose da artéria ou da veia renal.
Dor lombar paravertebral pode ser um sintoma de obstrução ureteral secundária
à nefrolitíase.

OUTRAS CAUSAS DE DOR NAS COSTAS


Dor nas costas postural Existe um grupo de pacientes com lombalgia crônica
(LC) inespecífica nos quais é impossível detectar qualquer lesão anatômica
específica, apesar de investigação exaustiva. Às vezes, os exercícios para
fortalecer os músculos paravertebrais e abdominais são úteis.

Doença psiquiátrica A LC pode ser observada em pacientes que buscam


compensação financeira, em simuladores ou naqueles com concomitante uso
abusivo de substâncias. Muitos pacientes com LC apresentam história de
transtorno psiquiátrico (depressão, ansiedade) ou trauma de infância (maus-
tratos físicos ou abuso sexual) que precede o início da dor nas costas. A
avaliação psicológica pré-operatória tem sido utilizada para excluir os pacientes
com acentuado comprometimento psicológico que predizem um desfecho
insatisfatório da cirurgia da coluna.

IDIOPÁTICA
A causa da lombalgia eventualmente permanece obscura. Alguns pacientes são
submetidos a múltiplas cirurgias para doença discal. As indicações originais para
a cirurgia podem ter sido duvidosas, com dor nas costas como único sintoma,
ausência de sinais neurológicos definidos ou pequena protuberância discal
observada em TC ou RM. Foram desenvolvidos sistemas de escores baseados
nos sinais neurológicos, fatores psicológicos, estudos fisiológicos e exames de
imagem para reduzir ao mínimo a probabilidade de insucesso das cirurgias.
CONSIDERAÇÕES GLOBAIS
Embora muitas características da anamnese e exame físico descritas neste
capítulo se apliquem a todos os pacientes, as informações referentes a
epidemiologia e prevalência globais da lombalgia são limitadas. O Global
Burden of Diseases Study 2010 relatou que a lombalgia estava em sexto lugar
geral como causa de anos de vida perdidos ajustados por incapacidade (AVAIs
[DALY, de disability-adjusted life years]), ficando em primeiro lugar geral
quanto a anos totais vividos com incapacidade (YLDs). Esses números
aumentaram substancialmente a partir das estimativas de 1990 e, com o
envelhecimento mundial da população, o número de pessoas sofrendo de
lombalgia deve aumentar ainda mais no futuro. Embora a posição da lombalgia
na lista de principais doenças fosse mais alta nos países desenvolvidos, esse não
foi uniformemente o caso; por exemplo, no Norte da África e no Oriente Médio,
a lombalgia ficou em segunda posição para AVAIs. Outra área de incerteza é a
extensão em que diferenças regionais existem em termos das etiologias
específicas de lombalgia e em como elas são manejadas. Por exemplo, a causa
mais comum de aracnoidite nos países em desenvolvimento é a infecção prévia
na coluna, mas nos países desenvolvidos são as múltiplas cirurgias na coluna
lombar. A história antiga e a aceitação da acupuntura na China também pode
explicar o grande número de estudos da China em relação à eficácia da
acupuntura em muitas situações de dor.

TRATAMENTO
Dor nas costas
Evidências crescentes de morbidade causada por terapia opioide de longo prazo (incluindo overdose,
adição, quedas, fraturas, riscos de acidentes e disfunção sexual) levaram à realização de esforços para
reduzir o seu uso para a dor crônica, incluindo a dor nas costas (Cap. 10). A segurança pode ser reforçada
com notificações automatizadas para doses altas, renovação precoce de receitas ou prescrições de múltiplas
farmácias ou sobrepostas de opioides e benzodiazepínicos. Um maior acesso a tratamentos alternativos para
dor crônica, como programas de exercícios personalizados e terapia cognitivo-comportamental (TCC),
também pode ajudar a reduzir a prescrição de opioides. A preocupação pública nos Estados Unidos resultou
na aprovação do Comprehensive Addiction and Recovery Act de 2016.
O custo elevado, amplas variações geográficas e o rápido aumento das taxas de cirurgia de fusão
espinal levaram a uma análise sobre a falta de padronização de indicações apropriadas. Algumas
seguradoras começaram a limitar a cobertura para as indicações mais controversas, como lombalgia sem
radiculopatia. Por fim, pode ser necessária a educação dos pacientes e do público sobre os riscos do
sobretratamento.
LOMBALGIA AGUDA (LA) SEM RADICULOPATIA
É definida como dor que dura < 3 meses. Espera-se recuperação completa em mais de 85% dos adultos com
LA sem dor nas pernas. A maioria exibe sintomas puramente “mecânicos” (i.e., dor agravada pelo
movimento e aliviada pelo repouso).
A avaliação inicial exclui as causas graves de patologia da coluna vertebral que exigem intervenção
urgente, como infecção, câncer ou traumatismo. Os fatores de risco para uma causa grave da LA são
mostrados na Tabela 14-1. Os exames laboratoriais e de imagens são desnecessários se não houver fatores
de risco. TC, RM ou radiografias simples da coluna vertebral raramente são indicadas no primeiro mês de
sintomas, a menos que haja suspeita de fratura, tumor ou infecção vertebral.
O prognóstico da LA costuma ser excelente, mas os episódios tendem a recorrer e até dois terços dos
pacientes experimentarão um segundo episódio dentro de 1 ano. Muitos pacientes não procuram assistência
médica e melhoram por conta própria. Mesmo entre aqueles examinados por médicos de atenção primária,
cerca de dois terços relatam melhora substancial após 7 semanas. A melhora espontânea pode confundir os
clínicos e os pacientes quanto à eficácia das intervenções terapêuticas, a menos que sejam sujeitas a ensaios
prospectivos rigorosos. Muitos tratamentos comumente usados no passado são agora considerados
inefetivos, incluindo repouso no leito e tração lombar.
Os médicos devem tranquilizar e orientar os pacientes no sentido de que a melhora é muito provável,
orientando-os ao autocuidado. A satisfação do paciente e a probabilidade de acompanhamento aumentam
quando os pacientes são orientados acerca do prognóstico, dos métodos de tratamento, das modificações nas
atividades e das estratégias empregadas para evitar exacerbações futuras. Pacientes que relatam não ter
recebido uma explicação adequada para seus sintomas têm mais chances de solicitar exames adicionais. Em
geral, o repouso no leito deve ser evitado para alívio de sintomas graves ou ser mantido no máximo por um
ou dois dias. Vários ensaios randomizados sugerem que o repouso no leito não acelera o ritmo da
recuperação. Geralmente, a melhor recomendação quanto à atividade é reassumir o mais cedo possível as
atividades físicas normais, evitando apenas trabalho manual cansativo. As vantagens possíveis da
deambulação precoce na LA incluem a manutenção do condicionamento cardiovascular, melhora da força
do osso, da cartilagem e do músculo, além de níveis maiores de endorfina. Exercícios específicos para as
costas ou exercícios vigorosos precoces não mostraram benefício na lombalgia aguda. A aplicação de
compressas ou cobertores quentes pode ser útil.
Diretrizes baseadas em evidência sugerem que medicamentos vendidos sem prescrição médica, como
os AINEs e o paracetamol, sejam opções de primeira linha para o tratamento da LA. Em pacientes de outro
modo saudáveis, um teste com AINE pode ser seguido por paracetamol por um período limitado de tempo.
Na teoria, os efeitos anti-inflamatórios dos AINEs podem fornecer uma vantagem sobre o paracetamol na
supressão da inflamação que acompanha muitas causas de LA, mas, na prática, não há evidências clínicas
que sustentem a superioridade dos AINEs. O risco de toxicidade renal e gastrintestinal com os AINEs
aumenta em pacientes com comorbidades preexistentes (p. ex., doença renal crônica, cirrose, hemorragia
digestiva prévia, uso de anticoagulantes ou glicocorticoides, insuficiência cardíaca). Alguns pacientes
preferem usar paracetamol e um AINE juntos na esperança de benefício mais rápido. Os miorrelaxantes,
como a ciclobenzaprina ou o metocarbamol, podem ser úteis, mas a sedação é um efeito colateral comum. A
limitação do uso de relaxantes musculares apenas ao período da noite pode ser uma opção para pacientes
com dor nas costas que interfere no sono.
Nâo há boas evidências que sustentem o uso de analgésicos opioides ou tramadol como terapia de
primeira linha para a LA. É melhor reservá-los para pacientes intolerantes ao paracetamol ou aos AINEs e
para aqueles com dor refratária grave. Como no caso dos relaxantes musculares, esses fármacos costumam
ser sedativos, podendo ser útil prescrevê-los apenas para uso à noite. Os efeitos colaterais do uso de
opioides em curto prazo incluem náuseas, constipação e prurido; os riscos em longo prazo incluem
hipersensibilidade à dor, hipogonadismo e dependência. Quedas, fraturas, acidentes automobilísticos e
impactação fecal são outros riscos. Não está comprovada a eficácia clínica dos opioides para dor crônica
além de 16 semanas de uso.
Não há evidências que sustentem o uso de glicocorticoides orais ou injetáveis, anticonvulsivantes,
antidepressivos, terapias para dor neuropática, como a gabapentina, ou fitoterápicos. Os tratamentos não
farmacológicos comumente usados para a LA também não têm benefício comprovado, incluindo
manipulação espinal, fisioterapia, massagem, acupuntura, terapia com laser, ultrassom terapêutico, coletes,
estimulação nervosa elétrica transcutânea (TENS), colchões especiais ou tração lombar. Embora
importantes na dor crônica, os exercícios para as costas na LA, em geral, não são apoiados por evidência
clínica. Também não há evidência convincente que comprove o valor da aplicação de gelo ou calor na LA;
porém muitos pacientes relatam alívio sintomático temporário com gelo ou bolsas de gel congelado, e o
calor pode proporcionar uma redução em curto prazo da dor após a primeira semana. Os pacientes
costumam relatar maior satisfação com o cuidado recebido quando participam de forma ativa na seleção das
abordagens sintomáticas.

LOMBALGIA CRÔNICA (LC) SEM RADICULOPATIA


A LC é definida como dor que dura > 12 semanas; ela representa 50% dos custos totais associados à dor nas
costas. Os fatores de risco incluem obesidade, sexo feminino, idade avançada, história pregressa de dor nas
costas, mobilidade restrita da coluna vertebral, dor que se irradia para uma perna, altos níveis de sofrimento
psicológico, avaliação da própria saúde como precária, atividade física mínima, tabagismo, insatisfação
profissional e dor difusa. Em geral, os mesmos tratamentos recomendados para a LA podem ser úteis em
pacientes com LC. No entanto, nesse contexto, o benefício do tratamento com opioides ou miorrelaxantes é
menos claro. Em geral, a tolerância à atividade é o principal objetivo, enquanto o alívio da dor é secundário.
As evidências sustentam o uso de exercícios para alívio da dor e melhora da função. Os exercícios
podem ser a base do tratamento da LC. Os regimes efetivos geralmente incluem uma combinação de
exercícios de reforço do core, alongamento e aumento gradual de exercícios aeróbicos. Um programa de
exercícios supervisionados pode melhorar a adesão. O exercício físico intensivo supervisionado ou
programas de treinamento para a execução de tarefas profissionais foram efetivos para os pacientes no
sentido de retorno ao trabalho, aumento da distância caminhada e redução da dor. Além disso, algumas
formas de ioga foram avaliadas em ensaios randomizados e podem ser úteis para pacientes que estejam
interessados. Não está comprovado nenhum benefício em longo prazo de manipulação espinal ou massagem
para a LC.
Os medicamentos para a LC podem incluir cursos breves de AINEs ou paracetamol. Os
antidepressivos tricíclicos podem fornecer alívio modesto da dor para alguns pacientes sem evidência de
depressão. Os ensaios clínicos não confirmam a eficácia dos inibidores seletivos da recaptação de
serotonina (ISRSs) para a LC. Entretanto, a depressão é comum em pacientes com dor crônica e deve ser
tratada de maneira apropriada.
A TCC se baseia em evidências de que fatores psicológicos e sociais, além de patologia somática, são
importantes na gênese da dor crônica e da incapacidade; a TCC se concentra em esforços para identificar e
modificar o pensamento do paciente em relação à sua condição. Em um ensaio clínico randomizado, a TCC
reduziu a incapacidade e a dor em pacientes com LC. Esses tratamentos comportamentais parecem fornecer
efeitos de magnitude semelhante à terapia com exercício.
A dor nas costas é a razão mais frequente para a busca de tratamentos complementares e alternativos,
mais comumente a manipulação espinal, a acupuntura e a massagem. Porém, o valor dessas abordagens
ainda não está claro. O biofeedback não foi estudado com rigor. Não há evidências convincentes de que a
manipulação espinal, a TENS, a terapia com laser ou o ultrassom sejam efetivos no tratamento da LC.
Ensaios rigorosos recentes sobre acupuntura sugerem que a acupuntura verdadeira não é superior à falsa
acupuntura, mas ambas podem oferecer uma vantagem sobre os cuidados rotineiros. Não se sabe ao certo se
isso decorre inteiramente do efeito placebo proporcionado mesmo pela pseudoacupuntura. Alguns estudos
sobre a massagem tiveram resultados promissores apenas para alívio em curto prazo.
Várias infiltrações, incluindo as epidurais de glicocorticoide, nas facetas articulares e nos pontos-
gatilho, foram usadas para tratar a LC. Todavia, na ausência de radiculopatia, não há evidência clara de que
essas abordagens sejam efetivas.
Estudos sobre infiltrações às vezes são usados com finalidades diagnósticas para ajudar a determinar a
origem anatômica da dor nas costas. O alívio da dor após uma injeção de glicocorticoide e anestésico em
uma faceta é comumente usado como evidência de que a articulação facetária seja a fonte da dor; porém a
possibilidade de que a resposta seja um efeito placebo ou causado por absorção sistêmica dos
glicocorticoides é difícil de se excluir.
Outras categorias de intervenção para a LC são as terapias eletrotérmica e de radiofrequência. A
terapia intradiscal foi proposta usando-se ambos os tipos de energia para termocoagular e destruir nervos no
disco intervertebral, usando-se cateteres ou eletrodos projetados especialmente para isso. As evidências
atuais não sustentam o uso da discografia para a identificação de um disco específico como fonte da dor
nem o uso de terapia intradiscal para a LC.
Às vezes, se utiliza a denervação por meio de radiofrequência para destruir nervos tidos como os
mediadores da dor, e a técnica também tem sido empregada para a dor em articulações facetárias (com o
nervo visado sendo o ramo medial do ramo dorsal primário), para a dor que se acredita surgir de um disco
intervertebral (ramo comunicante) e para a dor nas costas radicular (gânglios da raiz dorsal). Alguns
pequenos ensaios clínicos produziram resultados conflitantes sobre a dor na articulação facetária e dor
discogênica. Um ensaio feito com pacientes que tinham dor radicular crônica não revelou diferença entre a
denervação por meio de radiofrequência dos gânglios da raiz dorsal e o tratamento com placebo. Essas
terapias intervencionistas não foram suficientemente estudadas para que se tirem conclusões sólidas sobre
seu valor na LC.
A intervenção cirúrgica para a LC na ausência de radiculopatia foi avaliada em um pequeno número de
ensaios clínicos randomizados. As evidências para o uso de cirurgia de fusão para a LC sem radiculopatia
são fracas. Embora alguns estudos tenham mostrado benefício modesto, não houve benefício em
comparação a um braço de tratamento clínico ativo, frequentemente incluindo reabilitação rigorosa
altamente estruturada combinada com TCC. Foi demonstrado que o uso de BMP em vez de enxerto de
crista ilíaca para a fusão aumenta os custos hospitalares e a permanência hospitalar, mas sem melhora nos
desfechos clínicos. As diretrizes sugerem considerar o encaminhamento para uma opinião sobre fusão
vertebral para pessoas que tenham completado um programa de tratamento não cirúrgico ideal (incluindo
fisioterapia e tratamento psicológico) e continuaram a ter dor nas costas intensa para a qual considerariam
uma cirurgia.
A substituição de discos lombares por próteses discais está aprovada pela Food and Drug
Administration para pacientes não complicados que necessitam de cirurgia de um único nível entre L3-S1.
Os discos são geralmente projetados como placas de metal com uma almofada de polietileno entre elas. Os
estudos que levaram à aprovação desses dispositivos não eram cegos. Quando comparados com a fusão
espinal, os discos artificiais foram “não inferiores”. As complicações graves são um pouco mais prováveis
com o disco artificial. Esse tratamento permanece controverso na LC.
Os esquemas de reabilitação multidisciplinar intensiva podem incluir fisioterapia diária ou frequente,
exercícios, TCC, uma avaliação do local de trabalho e outras intervenções. No caso de pacientes que não
responderam a outras abordagens, tais esquemas parecem oferecer algum benefício. Revisões sistemáticas
sugerem que a evidência e os benefícios são limitados.
Alguns observadores levantaram a questão de que a LC, em geral, pode ser tratada de maneira
excessiva. Para a LC sem radiculopatia, múltiplas diretrizes são explícitas, não recomendando o uso de
ISRSs, qualquer tipo de injeção, TENS, apoios lombares, tração, denervação da articulação facetária por
meio de ultrarradiofrequência, terapia eletrotérmica intradiscal ou termocoagulação intradiscal por meio de
radiofrequência. Já a terapia com exercício e o tratamento da depressão parecem ser úteis e subutilizados.

LOMBALGIA COM RADICULOPATIA


Uma causa comum de dor nas costas com radiculopatia é um disco herniado afetando a raiz nervosa,
resultando em dor nas costas que se irradia para a perna. O termo ciática é usado quando a dor na perna se
irradia posteriormente na distribuição do isquiático ou L5/S1. O prognóstico da dor aguda lombar e na
perna com radiculopatia devido à herniação de disco em geral é favorável, com a maioria dos pacientes
demonstrando melhora substancial em questão de meses. Exames de imagem seriados sugerem regressão
espontânea da parte herniada do disco em cerca de dois terços dos pacientes em 6 meses. Apesar disso, há
várias opções importantes de tratamento para proporcionar alívio dos sintomas enquanto esse processo de
cura se desenvolve.
Recomenda-se o retorno às atividades normais. Evidência de ensaio clínico randomizado sugere que o
repouso no leito é inefetivo para tratar a ciática, bem como para a dor nas costas isolada. O paracetamol e os
AINEs são úteis para o alívio da dor, embora a dor grave possa requerer esquemas curtos de analgésicos
opioides. Os opioides são superiores para alívio da dor aguda no setor de emergência.
Infiltrações epidurais de glicocorticoides são úteis para alívio sintomático de radiculopatia lombar
aguda causada por um disco herniado. No entanto, não parece haver benefício em termos de redução das
intervenções cirúrgicas subsequentes. Um curso breve com alta dose de glicocorticoides orais por 5 dias
seguido por redução gradual por > 5 dias pode ser útil para alguns pacientes com radiculopatia aguda
relacionada a doença discal, embora este esquema específico não tenha sido estudado rigorosamente.
Os bloqueios diagnósticos de raiz nervosa foram defendidos para se determinar se a dor origina-se de
uma raiz nervosa específica. Entretanto, pode haver melhora mesmo quando a raiz nervosa não é
responsável pela dor; isso pode ocorrer como um efeito placebo, devido a uma lesão causadora de dor
localizada distalmente ao longo de um nervo periférico ou por efeito da absorção sistêmica.
A cirurgia de urgência é recomendada para pacientes que tenham evidência da SCE ou de compressão
da medula espinal, geralmente manisfestada como uma combinação de disfunção intestinal ou vesical,
sensibilidade diminuída em distribuição em sela, um nível sensitivo no tronco e fraqueza ou espasticidade
bilateral das pernas. A intervenção cirúrgica também está indicada para pacientes com fraqueza motora
progressiva causada por lesão de raiz nervosa demonstrada ao exame clínico ou por EMG.
A cirurgia também é uma opção importante para os pacientes com dor radicular incapacitante, apesar
do tratamento conservador otimizado. Como os pacientes com um disco herniado e ciática em geral
apresentam melhora rápida em questão de semanas, a maioria dos especialistas não recomenda considerar a
cirurgia, a menos que o paciente não tenha exibido resposta depois de pelo menos 6 a 8 semanas de
tratamento não cirúrgico. No caso de pacientes que não tenham melhorado, ensaios randomizados indicam
que, em comparação com o tratamento não cirúrgico, a cirurgia resulta em alívio mais rápido da dor.
Contudo, após 2 anos de acompanhamento, os pacientes parecem ter praticamente o mesmo nível de alívio
da dor e melhora funcional com ou sem cirurgia. Assim, ambas as abordagens terapêuticas são razoáveis e
as preferências e necessidades do paciente (p. ex., rápido retorno ao trabalho) influenciam muito a tomada
de decisão. Alguns pacientes vão querer o alívio mais rápido possível e consideram os riscos cirúrgicos
aceitáveis. Outros terão mais receio dos riscos e serão mais tolerantes aos sintomas, preferindo aguardar,
especialmente se entenderem que a melhora é provável no final.
O procedimento cirúrgico habitual é uma hemilaminectomia parcial com excisão do disco prolapsado
(discectomia). As técnicas minimamente invasivas ganharam popularidade nos últimos anos, mas as
evidências preliminares sugerem que elas sejam menos efetivas que as técnicas cirúrgicas padrão, com mais
lombalgia residual, dor nas pernas e maiores taxas de re-hospitalização. A fusão dos segmentos lombares
envolvidos deve ser considerada apenas se houver instabilidade significativa da coluna (i.e.,
espondilolistese degenerativa). Os custos associados à fusão entre corpos vertebrais lombares aumentaram
muito nos últimos anos. Não há grandes ensaios clínicos prospectivos randomizados comparando a fusão
com outros tipos de intervenção cirúrgica. Em um estudo, pacientes com lombalgia persistente, apesar de
uma discectomia inicial, não melhoraram mais com a fusão vertebral do que com um esquema conservador
de intervenção cognitiva e exercício. Os discos artificiais são usados na Europa; sua utilidade permanece
controversa nos Estados Unidos.
DOR NO PESCOÇO E NO OMBRO
A dor no pescoço, que geralmente se origina de doenças da coluna cervical e dos
tecidos moles do pescoço, é comum. A dor cervical que se origina da coluna
cervical é precipitada por movimentos, podendo ser acompanhada de dor focal à
palpação local e limitação dos movimentos. Muitos dos comentários anteriores
sobre as causas de lombalgia também se aplicam aos distúrbios da coluna
cervical. O texto adiante irá enfatizar as diferenças. A dor que se origina no
plexo braquial, no ombro ou em nervos periféricos pode ser confundida com
uma doença da coluna cervical (Tab. 14-4), porém a história clínica e o exame
físico geralmente identificam uma origem mais distal para a dor. Quando o local
de lesão do tecido nervoso não está claro, os exames de EMG podem localizar a
lesão. Traumatismo da coluna cervical, doença discal ou espondilose com
estreitamento de forame intervertebral podem ser assintomáticos ou dolorosos e
ocasionar mielopatia, radiculopatia ou ambas. Os mesmos fatores de risco para
uma causa grave de lombalgia se aplicam à dor no pescoço, além de também
poderem ocorrer sinais neurológicos de mielopatia (incontinência, nível
sensitivo, pernas espásticas). O sinal de Lhermitte, um choque elétrico ao longo
da coluna com o pescoço em flexão, sugere acometimento da medula espinal
cervical.

TRAUMATISMO DA COLUNA CERVICAL


O traumatismo da coluna cervical (fraturas, subluxação) submete a medula
espinal ao risco de compressão. Acidentes automobilísticos, crimes violentos ou
quedas são responsáveis por 87% das lesões de medula espinal cervical (Cap. 43
4). A imobilização imediata do pescoço é essencial para minimizar qualquer
lesão adicional da medula espinal em consequência do movimento de segmentos
instáveis da coluna cervical. A decisão de obter imagens deve basear-se na
natureza da lesão. Os critérios de baixo risco do National Emergency X-
Radiography Utilization Study (NEXUS) estabelecem que pacientes
normalmente alertas sem sensibilidade à palpação na linha média, intoxicação,
déficits neurológicos ou lesões dolorosas preocupantes têm uma probabilidade
muito baixa de lesão traumática significativa da coluna cervical. A diretriz da
Canadian C-spine recomenda que exames de imagem sejam obtidos após o
traumatismo da região do pescoço se o paciente tiver > 65 anos de idade,
parestesia de membro ou um mecanismo perigoso para a lesão (p. ex., colisão de
bicicleta com árvore ou carro estacionado, queda de altura > 1 metro ou cinco
degraus, acidente de mergulho). Essas diretrizes são úteis, mas devem ser
ajustadas às circunstâncias individuais; por exemplo, os pacientes com
osteoporose avançada, uso de glicocorticoides ou câncer podem necessitar de
exames de imagem mesmo após trauma leve. A TC é o procedimento
diagnóstico de escolha para a detecção de fraturas agudas após trauma grave;
radiografias simples podem ser usadas para graus menores de traumatismo.
Quando se suspeita de lesão traumática das artérias vertebrais ou da medula
espinal cervical, a visualização por RM com angiorressonância é preferida.
A lesão em chicote é causada por rápida flexão e extensão do pescoço,
geralmente em acidentes automobilísticos. O mecanismo exato para a lesão não
é conhecido. O diagnóstico não deve ser aplicado a pacientes com fratura,
herniação de disco, traumatismo craniano, achados neurológicos focais ou
alteração de consciência. Até 50% das pessoas que relatam lesão em chicote
aguda têm dor persistente no pescoço até 1 ano mais tarde. Quando a
indenização pessoal para dor e sofrimento foi abolida do sistema de saúde
australiano, o prognóstico para a recuperação em 1 ano melhorou. A realização
de exames de imagem da coluna cervical não é custo-efetiva agudamente, mas é
útil para detectar hérnias de disco quando os sintomas persistem por > 6 semanas
após a lesão. Os sintomas graves iniciais têm sido associados a desfecho precário
em longo prazo.

DOENÇA DISCAL CERVICAL


A doença degenerativa de disco cervical é muito comum e costuma ser
assintomática. Uma herniação de disco cervical inferior é uma causa comum de
dor ou formigamento no pescoço, no ombro, no braço e na mão. Dor no pescoço,
rigidez e limitação da amplitude dos movimentos pela dor são as manifestações
habituais. A hérnia de disco cervical é responsável por aproximadamente 25%
das radiculopatias cervicais. A extensão e a rotação lateral do pescoço estreitam
o forame intervertebral ipsilateral e podem reproduzir os sintomas radiculares
(sinal de Spurling). Em jovens adultos, a compressão aguda de raízes nervosas
por um disco cervical roto frequentemente decorre de traumatismo. Em geral, as
hérnias discais cervicais são posterolaterais, próximo ao recesso lateral. A Tabel
a 14-4 resume os padrões típicos de alterações sensitivas, motoras e dos reflexos
que acompanham lesões de raízes nervosas cervicais. Embora os padrões
clássicos sejam clinicamente úteis, há inúmeras exceções porque (1) há
superposição na função sensitiva entre raízes nervosas adjacentes, (2) os sinais e
sintomas podem ser evidentes em apenas parte do território da raiz nervosa
acometida e (3) a localização da dor é a mais variável das manifestações clínicas.

TABELA 14-4 ■ Radiculopatia cervical: manifestações neurológicas


Raízes Achados ao exame Distribuição da dor
nervosas
cervicais Reflexos Sensitivo Motor

C5 Bíceps Deltoide lateral Romboidea (extensão posterior do cotovelo Braço lateral, escápula medial
com a mão no quadril)
Infraespinala (rotação externa do braço
com cotovelo em flexão lateral)
Deltoidea (elevação lateral 30-45° do braço
lateralmente)
C6 Bíceps Polegar, dedo Bícepsa (flexão do braço no cotovelo em Antebraço lateral, polegar/dedo
indicador supinação) indicador
Dorso da Pronador redondo (pronação do antebraço)
mão/antebraço
lateral
C7 Tríceps Dedos médios Trícepsa (extensão do antebraço com Parte posterior do braço, dorso do
flexão do cotovelo) antebraço, dorso da mão
Dorso do antebraço Extensores dos dedos/punhoa
C8 Flexores Superfície palmar Abdutor curto do polegar (abdução do Quarto e quinto dedos, porção
dos dedos do dedo mínimo polegar) medial da mão e antebraço
Parte medial da Primeiro interósseo dorsal (abdução do
mão e antebraço dedo indicador)
Abdutor do dedo mínimo (abdução do
dedo mínimo)
T1 Flexores Axila e parte Abdutor curto do polegar (abdução do Parte medial do braço, axila
dos dedos medial do braço polegar)
Primeiro interósseo dorsal (abdução do
dedo indicador)
Abdutor do dedo mínimo (abdução do
dedo mínimo)
aTais músculos recebem a maior parte da inervação dessa raiz.

ESPONDILOSE CERVICAL
A osteoartrite da coluna cervical pode provocar dor no pescoço que se irradia
para a nuca, os ombros ou os braços, ou pode ser a origem de cefaleias na região
occipital posterior (suprida pelas raízes nervosas C2-C4). Osteófitos, protrusões
discais ou hipertrofia das articulações facetárias ou uncovertebrais podem,
isoladamente ou em conjunto, comprimir uma ou várias raízes nervosas nos
forames intervertebrais; essa compressão é responsável por 75% das
radiculopatias cervicais. As raízes mais comumente acometidas são C7 e C6. O
estreitamento do canal vertebral por osteófitos, a ossificação do ligamento
longitudinal posterior (OLLP) ou um grande disco central podem comprimir a
medula espinal cervical e produzir sinais de mielopatia isolada ou de
radiculopatia com mielopatia (mielorradiculopatia). Quando há pouca ou
nenhuma dor cervical no envolvimento da medula cervical, outros diagnósticos a
serem considerados incluem esclerose lateral amiotrófica (Cap. 429), esclerose
múltipla (Cap. 436), tumores da medula espinal ou siringomielia (Cap. 434). A
mielopatia espondilótica cervical deve ser considerada mesmo quando o paciente
apresenta apenas sinais da medula espinal ou sintomas nas pernas. A RM é o
estudo de escolha para definir os tecidos moles na região cervical incluindo a
medula espinal, enquanto a TC simples é ideal para identificar patologia óssea,
incluindo estenose do forame, do recesso lateral ou do canal medular. Na
mielopatia espondilótica pode haver realce focal na RM, às vezes em um padrão
característico de “panqueca”, no local da compressão máxima da medula.
Não há evidências que sustentem a cirurgia profilática na estenose espinal
cervical assintomática sem sinais de mielopatia ou achados anormais da medula
espinal na RM, exceto em casos de instabilidade dinâmica (ver espondilolistese
anteriormente). Se o paciente apresentar dor cervical postural, história prévia de
lesão em chicote ou de outro tipo na coluna/crânio, sinal de Lhermitte ou
presença de listese no segmento estenótico na RM ou TC cervical, então está
indicado fazer radiografias em flexão-extensão da coluna cervical para pesquisar
instabilidade hemodinâmica. A intervenção cirúrgica não está recomendada para
pacientes apenas com listese, sem instabilidade dinâmica.

OUTRAS CAUSAS DE DOR NO PESCOÇO


A AR (Cap. 351) das articulações facetárias cervicais produz dor cervical,
rigidez e limitação dos movimentos. A sinovite da articulação atlantoaxial (C1-
C2; Fig. 14-2) pode lesar o ligamento transverso do atlas, ocasionando um
deslocamento anterior do atlas sobre o áxis (subluxação atlantoaxial). Ocorre
evidência radiológica de subluxação atlantoaxial em até 30% dos pacientes com
AR, e as radiografias simples cervicais devem ser rotineiramente realizadas no
pré-operatório para avaliar o risco de hiperextensão cervical em pacientes que
necessitam de intubação. O grau de subluxação correlaciona-se com a gravidade
da doença erosiva. Quando houver subluxação, é importante uma avaliação
cuidadosa para identificar sinais precoces de mielopatia que poderia indicar uma
futura compressão da medula espinal potencialmente fatal. Deve-se considerar a
possibilidade de cirurgia quando há mielopatia ou instabilidade da coluna. A
espondilite anquilosante é outra causa de dor cervical e, menos comumente, de
subluxação atlantoaxial.
O herpes-zóster agudo apresenta-se como dor no pescoço ou occipital
posterior aguda antes do aparecimento de vesículas. Neoplasias metastáticas
para a coluna cervical, infecções (osteomielite e abscesso epidural) e doenças
ósseas metabólicas também podem causar dor cervical, conforme discutido
anteriormente. A dor no pescoço igualmente pode ser referida a partir do coração
na doença arterial coronariana (DAC) isquêmica (síndrome de angina cervical).

SÍNDROMES DO DESFILADEIRO TORÁCICO


O desfiladeiro torácico contém a primeira costela, a artéria e a veia subclávias, o
plexo braquial, a clavícula e o ápice pulmonar. Uma lesão nessas estruturas pode
resultar em dor no ombro e na região supraclavicular, induzida pela postura ou
pelo movimento e com as classificações a seguir.
A síndrome do desfiladeiro torácico (SDT) neurogênica verdadeira é um
distúrbio incomum que resulta da compressão do tronco inferior do plexo
braquial ou dos ramos ventrais das raízes nervosas C8 ou T1 por uma faixa
anormal de tecido que conecta um processo transverso alongado em C7 com a
primeira costela. A dor é leve ou pode estar ausente. Os sinais consistem em
fraqueza dos músculos intrínsecos da mão e sensibilidade diminuída na face
palmar do quinto dedo. Uma radiografia anteroposterior da coluna cervical
mostrará o processo C7 alongado (um marcador anatômico para a faixa
cartilaginosa anômala), e a EMG e os ECNs confirmam o diagnóstico. O
tratamento consiste na ressecção cirúrgica da faixa anômala. A fraqueza e a
emaciação dos músculos intrínsecos da mão não melhoram, porém a cirurgia
interrompe a progressão insidiosa da fraqueza.
A SDT arterial resulta de compressão da artéria subclávia por uma costela
cervical, que, por sua vez, resulta em dilatação pós-estenótica da artéria e, em
alguns casos, formação secundária de trombo. A pressão arterial fica reduzida no
membro acometido, podendo haver sinais de embolia na mão. Não há sinais
neurológicos. A ultrassonografia pode confirmar o diagnóstico de maneira não
invasiva. O tratamento consiste em trombólise ou anticoagulação (com ou sem
embolectomia) e excisão cirúrgica da costela cervical que comprime a artéria
subclávia.
A SDT venosa deve-se a trombose da veia subclávia, resultando em edema
do braço e dor. A veia pode ser comprimida por uma costela cervical ou um
músculo escaleno anômalo. A venografia é o exame de escolha para o
diagnóstico.
A SDT inespecífica ou disputada é responsável por 95% dos pacientes
diagnosticados com SDT; dor crônica no braço e ombro é proeminente e sem
causa clara. A ausência de achados sensíveis e específicos ao exame físico ou de
marcadores laboratoriais para esse distúrbio resulta em incerteza diagnóstica. O
papel da cirurgia na SDT inespecífica e controversa. Depressão maior, sintomas
crônicos, lesão relacionada ao trabalho e sintomas difusos no braço predizem
resultados cirúrgicos ruins. O tratamento multidisciplinar da dor é uma conduta
conservadora, embora o tratamento, com frequência, não tenha êxito.

PLEXO BRAQUIAL E NERVOS


A dor em decorrência de lesão do plexo braquial ou de nervos periféricos no
braço às vezes simula a dor referida que provém da coluna cervical, incluindo a
radiculopatia cervical. A infiltração neoplásica do tronco inferior do plexo
braquial pode provocar dor no ombro ou supraclavicular que se irradia pelo
braço, dormência dos quarto e quinto dedos da mão ou do antebraço medial, bem
como fraqueza dos músculos intrínsecos da mão inervados pelo tronco inferior e
cordão medial do plexo braquial. A lesão tardia por irradiação pode produzir
fraqueza na parte superior do braço ou dormência na face lateral do antebraço ou
braço devido ao envolvimento do tronco superior e cordão lateral do plexo. A
dor é menos comum e menos intensa do que na infiltração neoplásica. Um tumor
pulmonar de Pancoast (Cap. 74) é outra causa e deve ser considerada,
especialmente quando há síndrome de Horner concomitante. A neuropatia
supraescapular pode causar dor intensa no ombro, fraqueza e emaciação dos
músculos supra e infraespinhoso. A neurite braquial aguda é, muitas vezes,
confundida com radiculopatia; o início agudo de dor intensa no ombro ou na
escápula é seguido, no decorrer de dias, por fraqueza da parte proximal do braço
e dos músculos da cintura escapular inervados pelo plexo braquial superior. O
início pode ser precedido por uma infecção, vacinação ou procedimento
cirúrgico menor. O nervo torácico longo pode ser acometido e resultar em
escápula alada. Também pode haver neurite braquial como uma paralisia isolada
do diafragma ou com acometimento de outros nervos do membro superior. A
recuperação pode demorar até 3 anos, e pode-se esperar uma recuperação
funcional completa na maioria dos pacientes.
Casos esporádicos da síndrome do túnel do carpo acarretam dor e
parestesias que se estendem para o antebraço, o braço e o ombro, assemelhando-
se a uma lesão das raízes C5 ou C6. As lesões dos nervos radial ou ulnar também
podem simular radiculopatia em C7 ou C8, respectivamente. A EMG e os ECNs
podem localizar com precisão as lesões das raízes nervosas, do plexo braquial ou
dos nervos periféricos.
Para uma discussão mais completa dos distúrbios dos nervos
periféricos, ver Capítulo 438.

OMBRO
A dor que surge no ombro pode, algumas vezes, simular a da coluna. Na
ausência de sinais e sintomas de radiculopatia, o diagnóstico diferencial deve
incluir dor mecânica no ombro (tendinite, bursite, ruptura do manguito rotador,
luxação, capsulite adesiva ou impacto do manguito sob o acrômio) e dor referida
(irritação subdiafragmática, angina, tumor de Pancoast). A dor mecânica
costuma ser mais intensa à noite, associada à hipersensibilidade local do ombro e
agravada por abdução passiva, rotação medial ou extensão do braço. A
demonstração de movimentação passiva completa normal do braço no ombro,
sem piora da dor habitual, pode ajudar a excluir patologia mecânica do ombro
como causa de dor na região do pescoço. A dor de uma doença do ombro pode
irradiar-se para o braço ou a mão, mas não há sinais neurológicos focais
(alterações sensitivas, motoras e dos reflexos).

CONSIDERAÇÕES GLOBAIS
Muitas das considerações anteriormente descritas para a lombalgia também
se aplicam para a dor cervical. A dor cervical ficou em 21º lugar como causa
de AVAIs no Global Burden of Diseases Study 2010, sendo responsável por
cerca de 40% da carga total de AVAIs por lombalgia. Em geral, a dor cervical
também se situava em posição mais alta na lista em regiões desenvolvidas do
mundo.

TRATAMENTO
Dor cervical sem radiculopatia
A evidência acerca do tratamento da dor cervical é menos completa que a da lombalgia, mas a abordagem é
muito semelhante em vários aspectos. Como na lombalgia, a melhora espontânea é a regra para a dor
cervical aguda. Os objetivos habituais do tratamento são a promoção de um rápido retorno à função normal
e o alívio da dor enquanto ocorre a cura.
A dor cervical aguda costuma ser tratada com uma combinação de AINEs, paracetamol, bolsa de gelo
ou calor enquanto se aguarda pela recuperação espontânea. Para os pacientes que perdem o sono devido aos
sintomas, a ciclobenzaprina (5-10 mg) à noite pode ajudar a aliviar o espasmo muscular e causa sonolência.
Para pacientes com dor cervical não associada a traumatismo, o exercício supervisionado, com ou sem
mobilização, parece ser efetivo. Os exercícios, em geral, incluem apoio para os ombros e extensores para o
pescoço. A evidência a favor de tratamentos não cirúrgicos para distúrbios associados à lesão em chicote
geralmente é de limitada qualidade e não confirma nem refuta os tratamentos comuns usados para o alívio
da dor. A mobilização leve da coluna cervical, combinada com programas de exercício, pode ser benéfica.
As evidências são insuficientes para recomendar o uso de tração cervical, TENS, ultrassom, terapia
eletromagnética, infiltrações em pontos gatilhos, injeções de toxina botulínica, antidepressivos tricíclicos e
ISRSs para a dor cervical aguda ou crônica. Alguns pacientes obtêm discreto alívio da dor usando um colar
cervical flexível; o risco e o custo são baixos. A massagem pode produzir alívio temporário da dor.
Para pacientes com dor cervical crônica, os programas de exercícios supervisionados podem fornecer
alívio dos sintomas e melhora da função. A acupuntura forneceu benefício em curto prazo para alguns
pacientes em comparação com o procedimento simulado, sendo uma opção. Não foi demonstrado que a
manipulação espinal isoladamente seja efetiva e ela tem risco de causar lesões. O tratamento cirúrgico da
dor cervical crônica sem radiculopatia ou instabilidade espinal não é recomendado.

TRATAMENTO
Dor cervical com radiculopatia
A história natural da dor cervical com radiculopatia aguda causada por doença discal é favorável, e muitos
pacientes melhoram sem terapia específica. Embora não haja ensaios clínicos randomizados sobre os
AINEs na dor cervical, um curso com AINEs, paracetamol ou ambos, com ou sem miorrelaxantes, além de
evitar atividades que desencadeiem dor, pode ser uma terapia inicial razoável. Exercícios suaves
supervisionados e evitar inatividade também são razoáveis. Um curso breve de dose alta de glicocorticoides
orais com redução gradual rápida, ou a administração epidural de esteroides com orientação por exame de
imagem, podem ser efetivos na radiculopatia cervical aguda ou subaguda relacionada a doença discal, mas
isto não foi submetido a estudos rigorosos. O risco de complicações de infiltrações é maior no pescoço do
que na região lombar; foi relatada a ocorrência de dissecção de artéria vertebral, punção da dura-máter e
embolia de partículas injetadas. Os analgésicos opioides podem ser usados no setor de emergência e por
prazos curtos em nível ambulatorial. Os colares cervicais flexíveis podem ter alguma utilidade, porque
limitam os movimentos cervicais espontâneos e reflexos que exacerbam a dor; os colares duros não
costumam ser tolerados.
Se a radiculopatia cervical for causada por compressão óssea por espondilose cervical com
estreitamento foraminal, o acompanhamento periódico para avaliar a progressão está indicado e a
consideração de descompressão cirúrgica é razoável. O tratamento cirúrgico pode proporcionar alívio
rápido da dor, embora não esteja claro se os desfechos em longo prazo são melhores do que com a terapia
não cirúrgica. Indicações de cirurgia de disco cervical incluem um déficit motor progressivo devido à
compressão de raiz nervosa, dor que causa limitação funcional e não responde ao tratamento conservador
ou compressão da medula espinal.
Os tratamentos cirúrgicos incluem a discectomia cervical anterior isolada, a laminectomia com
discectomia ou a discectomia com fusão. O risco de radiculopatia ou mielopatia subsequente nos segmentos
cervicais adjacentes à fusão é de aproximadamente 3% ao ano e de 26% por década. Embora às vezes seja
considerado uma complicação tardia da cirurgia, esse risco pode refletir a história natural da doença
degenerativa do disco cervical.

LEITURAS ADICIONAIS
Agency for Healthcare Research and Quality (AHRQ): Non-invasive treatments
for low back pain. AHRQ Publication No. 16-EHC004-EF. February 2016,
https://effectivehealthcare.ahrq.gov/ehc/products/553/2178/back-pain-treat
ment-report-160229.pdf.
Benzon HT et al: Improving the safety of epidural steroid injections. JAMA
313:1713, 2015.
Friedly JL et al: A randomized trial of epidural glucocorticoid injections for
spinal stenosis. N Engl J Med 371:11, 2014.
Goldberg H et al: Oral steroids for acute radiculopathy due to a herniated lumbar
disk. JAMA 313:1915, 2015.
Hoy DG et al: Reflecting on the global burden of musculoskeletal conditions:
Lessons learnt from the global burden of disease 2010 study and the next
steps forward. Ann Rheum Dis 74:4, 2015.
Katz JN, Harris MB: Clinical practice. Lumbar spinal stenosis. N Engl J Med
358:818, 2008.
Lamb SE et al: Group cognitive behavioural treatment for low-back pain in
primary care: A randomised controlled trial and cost-effectiveness analysis.
Lancet 375:916, 2010.
Malmivaara A et al: The treatment of acute low back pain—Bed rest, exercises,
or ordinary activity? N Engl J Med 332:351, 1995.
Melanica J et al: Spinal stenosis. Handb Clin Neurol 109:541, 2014.
Serinken M et al: Comparison of intravenous morphine versus paracetamol in
sciatica: A randomized placebo controlled trial. Acad Emerg Med 23:674,
2016.
Zygourakis CC et al: Geographic and hospital variation in cost of lumbar
laminectomy and lumbar fusion for degenerative conditions. Neurosurgery
81:331, 2017.
Seção 2 Alterações na temperatura
corporal

15
Febre
Charles A. Dinarello, Reuven Porat

A temperatura corporal é controlada pelo hipotálamo. Os neurônios existentes no


hipotálamo anterior pré-óptico e no hipotálamo posterior recebem dois tipos de
sinais: o primeiro dos nervos periféricos que transmitem informações obtidas dos
receptores de frio/calor na pele e o segundo proveniente da temperatura do
sangue que irriga a região. Esses dois tipos de sinais são integrados pelo centro
termorregulador do hipotálamo, visando à manutenção da temperatura corporal.
Em um ambiente neutro quanto à temperatura, a taxa metabólica dos seres
humanos mais calor do que seria necessário para manter a temperatura corporal
central na faixa entre 36,5 e 37,5°C.
Em geral, a temperatura corporal normal é mantida apesar das variações
ambientais, tendo em vista que o centro termorregulador do hipotálamo equilibra
a produção excessiva de calor derivada da atividade metabólica dos músculos e
do fígado por dissipação do calor através da pele e dos pulmões. De acordo com
os estudos realizados em indivíduos sadios entre 18 e 40 anos de idade, a
temperatura oral média é de 36,8 ± 0,4°C, com níveis mais baixos às 6 horas e
mais altos entre 16 e 18 horas. A temperatura oral normal máxima é de 37,2°C às
6 horas e 37,7°C às 16 horas; tais valores definem o percentil 99 para os
indivíduos sadios. De acordo com esses estudos, temperaturas > 37,2°C pela
manhã ou > 37,7°C à tarde definiriam o estado de febre. A variação diária
normal da temperatura, também chamada ritmo circadiano, é normalmente de
0,5°C. Contudo, em alguns pacientes que estão se recuperando de uma doença
febril, a variação diária pode chegar a 1°C. Durante uma doença febril, as
variações diurnas geralmente são mantidas, porém em níveis mais altos, febris. A
variação da temperatura ao longo do dia parece ser estável na primeira infância;
por outro lado, é possível que indivíduos mais idosos tenham menor capacidade
de desenvolver febre, apresentando níveis modestos de temperatura mesmo
quando com infecções graves.
Em geral, as temperaturas retais são 0,4°C mais altas que as orais. As
leituras orais mais baixas provavelmente são atribuíveis à respiração oral, um
fator a ser considerado nos pacientes com infecções respiratórias e aumento da
frequência respiratória. As temperaturas do esôfago distal refletem com maior
precisão a temperatura central. Os termômetros para membrana timpânica
medem o calor radiante emitido pelo tímpano e canal auditivo adjacente,
apresentando esse valor de forma absoluta (modo sem ajuste) ou calculado
automaticamente a partir da aferição absoluta, com base em nomogramas que
relacionam a temperatura radiante medida com as temperaturas centrais obtidas
em estudos clínicos (modo ajustado). Embora sejam convenientes, tais aferições
podem ser muito mais variáveis que os valores retais, orais ou axilares
determinados diretamente. Estudos realizados em adultos mostraram que os
valores aferidos são menores com os termômetros para membrana timpânica em
modo sem ajuste do que com os aparelhos em modo ajustado, e que os valores
aferidos por termômetros em modo sem ajuste são 0,8°C menores do que as
temperaturas retais.
Nas mulheres que menstruam, a temperatura na parte da manhã geralmente
é menor nas 2 semanas que antecedem a ovulação; em seguida, a temperatura
aumenta cerca de 0,6°C com a ovulação e permanece nesse patamar até que se
inicie a menstruação. Durante a fase lútea, a amplitude do ritmo circadiano
permanece a mesma.
FEBRE VERSUS HIPERTERMIA
A febre é uma elevação da temperatura corporal que ultrapassa a variação diária
normal e ocorre associada a aumento do ponto de ajuste hipotalâmico (p. ex., de
37 para 39°C). Essa alteração do ponto de ajuste do estado “normotérmico” para
níveis febris assemelha-se bastante ao reajuste do termostato doméstico para um
nível maior, com o objetivo de elevar a temperatura ambiente em um cômodo da
casa. Quando o ponto de ajuste do hipotálamo está elevado, os neurônios do
centro vasomotor são ativados dando início à vasoconstrição. Inicialmente, o
indivíduo percebe essa vasoconstrição nas mãos e nos pés. O desvio de sangue
da periferia para os órgãos internos reduz a perda de calor através da pele e o
indivíduo sente frio. Na maioria dos pacientes com febre, a temperatura corporal
aumenta 1 a 2°C. Os tremores, que elevam a produção muscular de calor, podem
se iniciar nesse momento, mas serão desnecessários se os mecanismos de
conservação elevarem suficientemente a temperatura sanguínea. A termogênese
sem tremores que ocorre no fígado também contribui para elevar a temperatura
interna. As adaptações comportamentais (p. ex., vestir mais roupas ou se cobrir)
ajudam a elevar a temperatura corporal ao reduzir a perda de calor.
Os processos de conservação (vasoconstrição) e geração (tremores e
aumento da termogênese sem tremores) de calor continuam até que a
temperatura do sangue que irriga os neurônios hipotalâmicos atinja o novo ponto
de ajuste do termostato. Quando esse patamar é atingido, o hipotálamo mantém a
temperatura no nível febril pelos mesmos mecanismos de equilíbrio do calor que
funcionam no indivíduo sem febre. Quando o ponto de ajuste hipotalâmico é
reajustado para baixo (em resposta à redução da concentração dos pirogênios ou
ao uso de antipiréticos), os processos de perda de calor por vasodilatação e
transpiração são ativados. A perda de calor por transpiração e vasodilatação
continua até que a temperatura sanguínea no hipotálamo atinja o limite inferior
da regulação. Alterações comportamentais (p. ex., remoção de roupas) facilitam
a perda de calor.
A febre > 41,5°C é chamada hiperpirexia. Essa febre extremamente elevada
pode ocorrer em pacientes com infecções graves, porém é mais comum em
indivíduos com hemorragias do sistema nervoso central (SNC). Antes da era dos
antibióticos, a febre causada pelas diversas doenças infecciosas raramente
ultrapassava 41°C e, por essa razão, alguns pesquisadores especularam que esse
“limite térmico” natural seria mediado por neuropeptídeos atuando como
antipiréticos centrais.
Em casos raros, o ponto de ajuste do hipotálamo aumenta em consequência
de traumatismo localizado, hemorragia, tumor ou disfunção hipotalâmica
intrínseca. A expressão febre hipotalâmica algumas vezes é utilizada para
descrever elevações da temperatura causadas por disfunção do hipotálamo.
Contudo, a maioria dos pacientes com lesão hipotalâmica tem temperaturas
corporais abaixo e não acima do normal.
Ainda que a maioria dos pacientes que apresentam elevação da temperatura
corporal de fato tenha febre, há situações nas quais a elevação da temperatura
significa hipertermia (intermação) e não febre. A hipertermia caracteriza-se por
aumento descontrolado da temperatura corporal, que excede a capacidade do
organismo de perder calor. Não há alteração no ajuste do centro termorregulador
hipotalâmico. Ao contrário do que ocorre com a febre nas infecções, a
hipertermia não envolve a presença de moléculas pirogênicas. A exposição ao
calor exógeno e a geração de calor endógeno são dois mecanismos pelos quais a
hipertermia pode produzir temperaturas internas perigosamente altas. A
produção excessiva de calor pode facilmente causar hipertermia apesar dos
controles fisiológicos e comportamentais da temperatura corporal. Por exemplo,
o trabalho ou o exercício em ambientes aquecidos podem gerar calor mais
rapidamente do que os mecanismos periféricos conseguem dissipar. Para uma
discussão detalhada sobre hipertermia, ver Capítulo 455.
É importante distinguir entre febre e hipertermia, tendo em vista que a
última pode evoluir rapidamente para o óbito e caracteristicamente não responde
aos antipiréticos. Entretanto, em uma situação de emergência, tal distinção pode
ser difícil. Por exemplo, na sepse sistêmica, a febre (hiperpirexia) pode começar
rápido e a temperatura pode ser > 40,5°C. A hipertermia costuma ser
diagnosticada com base nos eventos imediatamente precedentes à elevação da
temperatura central – por exemplo, exposição ao calor ou tratamento com
fármacos que interferem na termorregulação. Nos pacientes com síndromes de
intermação e nos indivíduos que estejam usando fármacos que impeçam a
transpiração, a pele encontra-se quente e seca, enquanto, nos casos febris, a pele
pode estar fria em consequência da vasoconstrição. Os antipiréticos não abaixam
a temperatura na hipertermia, enquanto, nos casos de febre – e até mesmo na
hiperpirexia –, doses adequadas de ácido acetilsalicílico ou de paracetamol
geralmente produzem alguma redução da temperatura corporal.
PATOGÊNESE DA FEBRE
PIROGÊNIOS
O termo pirogênio (do grego pyro, “fogo”) é usado para descrever qualquer
substância que cause febre. Os pirogênios exógenos originam-se fora do
paciente; a maioria é composta de produtos microbianos, toxinas microbianas ou
microrganismos íntegros (incluindo vírus). O exemplo clássico de pirogênio
exógeno é o lipopolissacarídeo (endotoxina) produzido por todas as bactérias
Gram-negativas. Os produtos pirogênicos das bactérias Gram-positivas incluem
as enterotoxinas do Staphylococcus aureus e as toxinas dos estreptococos dos
grupos A e B, também conhecidas como superantígenos. Uma toxina
estafilocócica com importância clínica é aquela associada a cepas de S. aureus
isoladas de pacientes com síndrome do choque séptico. Esses produtos dos
estafilococos e estreptococos causam febre em animais de laboratório quando
injetados por via intravenosa em concentrações de 1 a 10 μg/kg. Em humanos, a
endotoxina é altamente pirogênica: quando injetada por via intravenosa em
voluntários, uma dose de 2 a 3 ng/kg produz febre, leucocitose, proteínas de fase
aguda e sintomas de mal-estar generalizado.

CITOCINAS PIROGÊNICAS
Citocinas são proteínas pequenas (peso molecular de 10.000-20.000 Da) que
regulam processos imunes, inflamatórios e hematopoiéticos. Por exemplo, a
leucocitose intensa com neutrofilia absoluta observada em diversas infecções é
atribuível à ação das citocinas interleucina (IL) 1 e IL-6. Algumas citocinas
também causam febre; no passado, eram conhecidas como pirogênios
endógenos, sendo atualmente chamadas citocinas pirogênicas. Entre as citocinas
pirogênicas estão IL-1, IL-6, fator de necrose tumoral (TNF) e fator neurotrópico
ciliar, membro da família da IL-6. A febre é um efeito adverso proeminente da
terapia com α-interferona. Cada citocina pirogênica é codificada por um gene
diferente, e todas se mostraram causadoras de febre em animais de laboratório e
em humanos. Quando injetadas em humanos em doses baixas (10-100 ng/kg), a
IL-1 e o TNF produzem febre; já para a IL-6, é necessária uma dose de 1 a 10
μg/kg para que se produza febre.
Um amplo espectro de produtos bacterianos e fúngicos induz a síntese e a
liberação das citocinas pirogênicas. Entretanto, a febre pode ser uma
manifestação de doença mesmo na ausência de infecção microbiana. Por
exemplo, processos inflamatórios, como pericardite, traumatismo, acidente
vascular cerebral (AVC) e imunizações de rotina, induzem a produção de IL-1,
TNF e/ou IL-6; isoladamente ou em conjunto, essas citocinas induzem o
hipotálamo a elevar o ponto de ajuste até níveis febris.

ELEVAÇÃO DO PONTO DE AJUSTE HIPOTALÂMICO PELAS


CITOCINAS
Durante a febre, os níveis de prostaglandina E2 (PGE2) aumentam nos tecidos
hipotalâmicos e no terceiro ventrículo cerebral. As concentrações de PGE2 são
mais altas nas proximidades dos órgãos vasculares periventriculares (órgão
vascularizado da lâmina terminal) – redes de capilares dilatados que circundam
os centros reguladores do hipotálamo. A destruição dessas estruturas diminui a
capacidade de os pirogênios causarem febre. Contudo, a maioria dos estudos
realizados com animais não mostrou que as citocinas pirogênicas passem da
circulação para o próprio cérebro. Assim, parece que ambos, pirogênios
exógenos e citocinas pirogênicas, interagem com o endotélio desses capilares e
que essa interação é a primeira etapa para a produção da febre – ou seja, para
elevar o ponto de ajuste a patamares febris.
Os principais eventos na produção da febre são ilustrados na Figura 15-1.
As células mieloides e endoteliais são os tipos celulares que primariamente
produzem citocinas pirogênicas. As citocinas pirogênicas, como a IL-1, a IL-6 e
o TNF, são liberadas por essas células e entram na circulação sistêmica. Não
obstante essas citocinas circulantes produzirem febre induzindo a síntese da
PGE2, elas também induzem a PGE2 em tecidos periféricos. O aumento da PGE2
na periferia explica as mialgias e artralgias inespecíficas que costumam
acompanhar a febre. Acredita-se que parte da PGE2 sistêmica escape da
destruição no pulmão e atinja o hipotálamo via carótida interna. Contudo, é a
elevação da PGE2 no cérebro que desencadeia o processo de elevação do ponto
de ajuste hipotalâmico para a temperatura central.
FIGURA 15-1 Cronologia dos eventos necessários à indução da febre. AMP, 5′-monofosfato de
adenosina; IFN, interferona; IL, interleucina; PGE2, prostaglandina E2; TNF, fator de necrose tumoral.

Há quatro receptores para a PGE2, e cada qual transmite sinais às células


por mecanismos diferentes. Entre esses quatro receptores, o terceiro (EP-3) é
fundamental para a produção da febre: quando o gene de tal receptor é deletado
em camundongos, esses animais não apresentam febre após a injeção de IL-1 ou
endotoxina. A deleção dos genes dos outros receptores da PGE2 não interfere no
mecanismo da febre. Embora seja essencial à febre, a PGE2 não funciona como
neurotransmissor. Em vez disso, sua liberação pelo lado cerebral do endotélio
hipotalâmico estimula seus receptores nas células gliais, e tal estimulação
determina elevação rápida no 5′-monofosfato de adenosina cíclico (AMPc), um
neurotransmissor. Como mostra a Figura 15-1, a liberação de AMPc pelas
células gliais ativa as terminações neuronais do centro termorregulador, que se
estendem até essa área. A elevação do AMPc parece explicar as alterações do
ponto de ajuste hipotalâmico de forma direta ou indireta (induzindo a liberação
de neurotransmissores). Há receptores distintos para produtos microbianos
localizados no endotélio hipotalâmico. Esses receptores são chamados receptores
semelhantes ao Toll e se assemelham, em muitos aspectos, aos receptores de IL-
1. Os receptores de IL-1 e os receptores semelhantes ao Toll compartilham o
mesmo mecanismo transdutor de sinal. Assim, a ativação direta de receptores
semelhantes ao Toll ou de receptores de IL-1 resulta na produção de PGE2 e em
febre.

PRODUÇÃO DAS CITOCINAS NO SNC


As citocinas produzidas no cérebro talvez sejam responsáveis pela hiperpirexia
observada nos casos com hemorragia, traumatismo ou infecção do SNC. As
infecções virais do SNC induzem a produção de IL-1, TNF e IL-6 pela micróglia
e, possivelmente, por neurônios. Em animais de laboratório, a concentração de
citocinas necessária para causar febre é muito menor quando é feita
administração direta na substância cerebral ou nos ventrículos cerebrais do que
quando é utilizada injeção sistêmica. Portanto, as citocinas produzidas no SNC
podem elevar o ponto de ajuste hipotalâmico, sem acionar os órgãos
circunventriculares. As citocinas produzidas no SNC provavelmente são
responsáveis pela hiperpirexia associada à hemorragia, ao traumatismo ou à
infecção do SNC.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Febre
EXAME FÍSICO
Deve-se estabelecer a cronologia dos eventos que precedem a febre,
incluindo exposição a indivíduos infectados ou a vetores de doenças. Os
dispositivos eletrônicos para medição da temperatura oral timpânica e retal
são confiáveis, mas o mesmo local de medição deve ser usado para o
acompanhamento da doença febril. Além disso, os médicos devem estar
cientes de que neonatos, idosos, pacientes com doença hepática crônica ou
insuficiência renal e aqueles que estejam fazendo uso de glicocorticoides ou
sendo tratados com anticitocina podem ter infecção ativa sem apresentar
febre, em razão da atenuação da resposta febril.

EXAMES LABORATORIAIS
A rotina deve incluir hemograma completo; a contagem diferencial deve ser
realizada manualmente ou com um instrumento sensível à identificação de
formas jovens ou em bastão, granulações tóxicas e corpúsculos de Döhle,
sugestivos de infecção bacteriana. Em algumas infecções virais, é possível
que haja neutropenia.
A medição das citocinas circulantes nos pacientes com febre não tem
utilidade uma vez que os níveis de citocinas, como IL-1 e TNF, na circulação
com frequência ficam abaixo do limite para o método de detecção ou não
coincidem com a febre. Contudo, em pacientes com níveis baixos de febre,
ou com suspeita de doença oculta, os parâmetros mais importantes são a
proteína C-reativa (PCR) e a velocidade de hemossedimentação. Esses
marcadores de processos infamatórios são particularmente úteis na detecção
de doenças ocultas. Pode ser útil a medida da IL-6 circulante, a qual induz a
PCR. Porém, enquanto os níveis de IL-6 podem variar durante uma doença
febril, os níveis de PCR permanecem elevados. Os reagentes de fase aguda
são discutidos no Capítulo 297.

FEBRE NOS PACIENTES SUBMETIDOS À TERAPIA


ANTICITOCINA
Os pacientes que recebem tratamento a longo prazo com esquemas a base de
anticitocina têm risco aumentado de infecção devido à redução nas defesas
do hospedeiro. Por exemplo, a infecção latente por Mycobacterium
tuberculosis pode se disseminar em pacientes que recebem terapia anti-TNF.
Com o uso crescente de anticitocinas para reduzir a atividade de IL-1, IL-6,
IL-12, IL-17 ou TNF nos pacientes com doença de Crohn, artrite reumatoide
ou psoríase, a possibilidade de que esse tratamento atenue a reação febril
deve ser lembrada.
O bloqueio da atividade das citocinas implica um problema clínico
específico: a redução no nível das defesas do hospedeiro contra infecções
bacterianas rotineiras e oportunistas, como M. tuberculosis e infecções
fúngicas. O uso de anticorpos monoclonais para reduzir a IL-17 na psoríase
aumenta o risco de candidíase sistêmica.
Em praticamente todos os casos relatados de infecção associada à
terapia anticitocina, a febre se encontra entre os sintomas de apresentação.
Entretanto, não se sabe o grau de atenuação da resposta febril nesses
pacientes. Assim, febre baixa em pacientes que recebem terapias anticitocina
é uma preocupação considerável. O médico deve proceder a uma
investigação diagnóstica precoce e rigorosa nesses pacientes. A resposta
febril também é reduzida em pacientes que recebem terapia crônica com
glicocorticoides ou agentes anti-inflamatórios, como os AINEs.
TRATAMENTO
Febre
A DECISÃO DE TRATAR A FEBRE
A maioria dos casos de febre está associada a infecções autolimitadas, como as doenças virais comuns.
Nessas infecções, o uso de antipiréticos não é contraindicado: não há evidências clínicas significativas
indicando que os antipiréticos retardem a resolução das infecções virais ou bacterianas, ou que a febre
facilite a recuperação de infecções ou atue como adjuvante ao sistema imune. Em resumo, o tratamento da
febre e dos seus sintomas com antipiréticos rotineiros não faz mal nem retarda a resolução das infecções
virais e bacterianas comuns.
Contudo, nas infecções bacterianas, a não utilização de terapia com antipirético pode ajudar na
avaliação da efetividade de um antibiótico específico, especialmente quando não houver culturas positivas
do organismo infectante, e o uso rotineiro de antipiréticos pode mascarar uma infecção bacteriana
inadequadamente tratada. Em alguns casos, a não utilização de antipiréticos pode facilitar o diagnóstico de
uma doença febril incomum. A dissociação temperatura-pulso (bradicardia relativa) ocorre em casos de
febre tifoide, brucelose, leptospirose, em algumas febres induzidas por medicamento e na febre factícia.
Como afirmado anteriormente, em neonatos, idosos, pacientes com doença hepática ou renal crônicas e
naqueles fazendo uso de glicocorticoides, a febre pode não estar presente a despeito de haver infecção. Em
pacientes com choque séptico, é possível haver hipotermia.
Algumas infecções apresentam padrões característicos nos quais os episódios febris ocorrem separados
por intervalos com temperatura normal. Por exemplo, o Plasmodium vivax causa febre a cada 3 dias,
enquanto com o P. malariae a febre ocorre a cada 4 dias. Outra febre intermitente é a relacionada com a
infecção por Borrelia, com dias de febre seguidos por vários dias afebris para, em seguida, reaparecer por
mais alguns dias. No padrão de Pel-Ebstein, o período febril dura 3 a 10 dias e é seguido por períodos
apiréticos de 3 a 10 dias; esse padrão é clássico para a doença de Hodgkin e outros linfomas. Na
neutropenia cíclica, as febres ocorrem a cada 21 dias e acompanham a neutropenia. Não há periodicidade
nos pacientes com febre familiar do Mediterrâneo. Contudo, esses padrões têm pouco ou nenhum valor
diagnóstico comparados aos exames laboratoriais específicos e rápidos.

TRATAMENTO COM ANTICITOCINA PARA REDUZIR A


FEBRE EM DOENÇAS AUTOIMUNES E
AUTOINFLAMATÓRIAS
A febre recorrente é documentada em algum momento na maioria das doenças autoimunes e em quase todas
as doenças autoinflamatórias. Embora a febre possa ser uma manifestação das doenças autoimunes, as
febres recorrentes são características das doenças autoinflamatórias (Tab. 15-1), incluindo doença de Still
do adulto e juvenil, febre familiar do Mediterrâneo e síndrome de hiper-IgD, mas também doenças comuns
como pericardite idiopática e gota. Além das febres recorrentes, neutrofilia e inflamação serosa
caracterizam as doenças autoinflamatórias. As febres associadas a essas doenças são significativamente
reduzidas bloqueando-se a atividade da IL-1 com anacinra ou canaquinumabe. Consequentemente, as
anticitocinas reduzem a febre em doenças autoimunes e autoinflamatórias. Ainda que as febres nas doenças
autoinflamatórias sejam mediadas pela IL-1β, os pacientes também respondem aos antipiréticos.

TABELA 15-1 ■ Doenças autoinflamatórias nas quais a febre é característica


Doença de Still juvenil e do adulto
Síndromes periódicas associadas à criopirina (CAPS)
Febre familiar do Mediterrâneo
Síndrome de hiper-IgD
Síndrome de Behçet
Síndrome da ativação de macrófagos
Vasculite urticariforme normocomplementêmica
Miosite antissintetase
Síndrome PAPAa
Síndrome de Blau
Artrite gotosa
aArtrite piogênica, pioderma gangrenoso e acne.

MECANISMOS DOS AGENTES ANTIPIRÉTICOS


A redução da febre por meio da diminuição do ajuste hipotalâmico anteriormente elevado varia diretamente
em função da redução do nível de PGE2 no centro termorregulador. A síntese de PGE2 depende da enzima
cicloxigenase (COX) expressa constitutivamente. O substrato da COX é a liberação do ácido araquidônico
da membrana celular, e essa liberação é a etapa limitadora da velocidade da síntese de PGE2. Assim, os
inibidores da COX são antipiréticos potentes. A potência antipirética dos diversos fármacos está
diretamente relacionada com a inibição da COX cerebral. O paracetamol é um inibidor fraco da COX nos
tecidos periféricos e não possui atividade anti-inflamatória significativa; no cérebro, entretanto, esse
fármaco é oxidado pelo sistema do citocromo P450, e a forma resultante inibe a atividade da COX. Além
disso, no cérebro, a inibição de uma outra enzima, a COX-3, pelo paracetamol, pode explicar o efeito
antipirético desse agente. Entretanto, a COX-3 não é encontrada fora do SNC.
O ácido acetilsalicílico e o paracetamol orais são igualmente efetivos para reduzir a febre em humanos.
Os AINEs, como o ibuprofeno e os inibidores específicos da COX-2, também são antipiréticos excelentes.
O tratamento crônico com doses elevadas de antipiréticos, como o ácido acetilsalicílico, ou de qualquer
AINE não reduz a temperatura corporal central normal. Assim, a PGE2 não parece desempenhar qualquer
função na termorregulação normal.
Na qualidade de antipiréticos efetivos, os glicocorticoides atuam em dois níveis. Em primeiro lugar, de
forma semelhante aos inibidores da COX, os glicorticoides reduzem a síntese da PGE2 inibindo a atividade
da fosfolipase A2, necessária à liberação do ácido araquidônico da membrana celular. Em segundo lugar,
eles bloqueiam a transcrição do mRNA para as citocinas pirogênicas. Há algumas evidências experimentais
indicando que o ibuprofeno e os inibidores da COX-2 reduzem a produção de IL-6 induzida pela IL-1 e
talvez contribuam para a atividade antipirética dos AINEs.

ESQUEMAS PARA O TRATAMENTO DA FEBRE


Os objetivos do tratamento da febre são reduzir o ponto de ajuste hipotalâmico elevado e facilitar a perda de
calor. A redução da febre com antipiréticos também atenua os sintomas sistêmicos, como cefaleia, mialgias
e artralgias.
O ácido acetilsalicílico e os AINEs orais são efetivos para reduzir a febre, mas também produzem
efeitos adversos sobre as plaquetas e o trato gastrintestinal. Portanto, deve-se dar preferência ao uso de
paracetamol como antipirético. Em crianças, o paracetamol ou o ibuprofeno oral devem ser usados porque o
ácido acetilsalicílico aumenta o risco de desenvolvimento da síndrome de Reye. Caso o paciente não possa
receber medicamentos VO, devem ser usadas as preparações parenterais dos AINEs ou os diversos
antipiréticos sob a forma de supositórios retais.
O tratamento da febre é altamente recomendável em alguns pacientes. A febre aumenta a demanda de
oxigênio (ou seja, para cada 1°C de elevação da temperatura acima de 37°C, o consumo de oxigênio
aumenta 13%) e pode agravar o estado de pacientes com disfunções cardíacas, pulmonares ou do SNC
preexistentes. Crianças com história de convulsões febris ou afebris devem ser tratadas rigorosamente para
reduzir a febre. Contudo, não foi esclarecido o fator que desencadeia a convulsão febril e não há qualquer
correlação entre a elevação absoluta da temperatura e o início de uma convulsão febril em crianças
suscetíveis.
Na hiperpirexia, o uso de cobertores de refrigeração facilita a redução da temperatura; contudo, nesses
pacientes, tais cobertores não devem ser usados sem antipiréticos orais. Nos pacientes com hiperpirexia
causada por doença ou traumatismo do SNC (sangramento no SNC), a redução da temperatura central
atenua os efeitos nocivos da temperatura alta sobre o cérebro.
Para uma discussão sobre o tratamento da hipertermia, ver Capítulo 455.

LEITURAS ADICIONAIS
Dinarello CA et al: Treating inflammation by blocking interleukin-1 in a broad
spectrum of diseases. Nature Rev 11:633, 2012.
Kullenberg T et al: Long-term safety profile of anakinra in patients with severe
cryopyrin-associated periodic syndromes. Rheumatology 55:1499, 2016.
16
Febre e exantema
Elaine T. Kaye, Kenneth M. Kaye

O paciente agudamente enfermo com febre e exantema costuma apresentar um


desafio diagnóstico para os médicos, ainda que o aspecto distinto de uma
erupção cutânea em conjunto com uma síndrome clínica possa facilitar um
diagnóstico imediato e a instituição de terapia que pode salvar a vida ou
intervenções críticas para o controle de infecção. Imagens representativas de
muitos dos exantemas discutidos neste capítulo são apresentadas no Capítul
o A1, “Atlas de exantemas associados à febre”.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Febre e exantema
Uma anamnese detalhada dos pacientes com febre e exantema inclui as
seguintes informações relevantes: estado imune, fármacos usados nos últimos
30 dias, história de viagens específicas, imunização, exposição a animais
domésticos e outros, história de picadas de animais (incluindo artrópodes),
exposições dietéticas recentes, existência de anormalidades cardíacas, uso de
próteses artificiais, exposição recente a outros pacientes enfermos e
exposições sexuais. A história também deve incluir o local de início do
exantema, bem como sua direção e velocidade de disseminação.
O exame físico completo implica na atenção cuidadosa ao exantema
com avaliação e definição precisa das suas principais características. Em
primeiro lugar, é fundamental determinar que tipo de lesão constitui a
erupção. Máculas são lesões planas definidas por uma área com alteração na
coloração (i.e., uma área de eritema). Pápulas são lesões sólidas elevadas
com < 5 mm de diâmetro; placas são lesões com > 5 mm de diâmetro com
superfície plana do tipo platô; e nódulos são lesões com > 5 mm de diâmetro
e configuração mais arredondada. Placas urticadas (urticária) são pápulas ou
placas de coloração rosa-claro, que podem assumir configuração anular à
medida que crescem; as placas urticadas clássicas (não vasculíticas) são
transitórias, persistindo por apenas 24 horas em qualquer área definida.
Vesículas (< 5 mm) e bolhas (> 5 mm) são lesões elevadas e circunscritas que
contêm líquido. Pústulas são lesões elevadas que contêm exsudato purulento;
distúrbios vesiculosos, como a varicela ou o herpes simples, podem produzir
pústulas. Púrpura impalpável é uma lesão plana decorrente de sangramento
intradérmico. Se tiverem diâmetro < 3 mm, as lesões purpúreas são
classificadas como petéquias; se > 3 mm, são descritas como equimoses.
Púrpura palpável é uma lesão elevada, produzida por inflamação da parede
vascular (vasculite) com hemorragia subsequente. Úlcera é uma falha da pele
que se estende pelo menos até a camada superior da derme, enquanto escara
(tâche noire) é uma lesão necrótica coberta por uma crosta negra.
Outras características importantes dos exantemas são sua configuração
(ou seja, anular ou em alvo), a disposição das lesões e sua distribuição (ou
seja, central ou periférica).
Para discussão adicional, ver Capítulos 52, 54, 117 e 124.

CLASSIFICAÇÃO DO EXANTEMA
Este capítulo faz uma revisão dos exantemas causados por doenças sistêmicas,
mas não inclui as erupções cutâneas localizadas (i.e., celulite, impetigo), que
também podem estar associadas à febre (Cap. 124). Neste capítulo, não
pretendemos abordar todas as possibilidades, mas sim aquelas doenças mais
importantes e comuns associadas à febre com exantema. Os exantemas serão
classificados com base na morfologia e distribuição das lesões. Por motivos
práticos, esse sistema de classificação baseia-se nas apresentações mais típicas
das doenças. Contudo, os aspectos morfológicos podem variar à medida que o
exantema evolui, e as manifestações clínicas das doenças que cursam com
exantemas podem apresentar algumas variações (Cap. 54). Por exemplo, o
exantema petequial clássico da febre das Montanhas Rochosas (Cap. 182) pode
inicialmente se apresentar na forma de mácula eritematosa que desaparece com
pressão com distribuição periférica; contudo, algumas vezes, o exantema
associado à doença pode não ser predominantemente acral, ou é possível que não
haja qualquer exantema.
As doenças que evoluem com febre e exantema podem ser classificadas de
acordo com o tipo de erupção: maculopapulosa com distribuição central,
periférica, eritematosa descamativa confluente, vesiculobolhosa, urticariforme,
nodular, purpúrea, ulcerada ou com escaras. As doenças estão listadas segundo
essas categorias na Tabela 16-1, e muitas estão destacadas no texto. Contudo,
para uma descrição mais detalhada de cada doença exantemática, o leitor deverá
consultar o capítulo dedicado àquela doença específica. (Os capítulos de
referência são citados no texto e relacionados na Tab. 16-1.)

Clique aqui para visualizar a tabela abaixo como imagem na vertical.

TABELA 16-1 ■ Doenças associadas à febre e ao exantema


Doença Etiologia Descrição Grupos Síndrome clínica Capítulo
afetados/fatores
epidemiológicos

Erupções maculopapulosas com distribuição central


Meningococemia – – – – 150
agudaa
Reação a – – – – 56
medicamentos com
eosinofilia e
sintomas sistêmicos
(DRESS) (também
denominada
síndrome de
hipersensibilidade
induzida por
medicamentos –
DIHS)b
Sarampo (primeira Paramixovírus Lesões isoladas que Indivíduos não Tosse, conjuntivite, 200
moléstia) se tornam imunes coriza, prostração
confluentes à grave
medida que o
exantema se
dissemina para
baixo a partir da
linha do couro
cabeludo,
geralmente
poupando palmas e
plantas; duração ≥
3 dias; manchas de
Koplik
Rubéola (sarampo Togavírus Dissemina-se para Indivíduos não Adenopatia, artrite 201
alemão, terceira baixo a partir da imunes
moléstia) linha do couro
cabeludo,
desaparecendo à
medida que se
espalha; manchas
de Forschheimer
Eritema infeccioso Parvovírus humano B19 Aspecto de Mais comum em Febre baixa; artrite nos 192
(quinta moléstia) “bochechas crianças entre 3 e 12 adultos; exantema após
esbofeteadas” anos; ocorre no a resolução da febre
vermelho-vivas, inverno e na
seguido por primavera
exantema reticular
rendilhado que vai
e volta durante 3
semanas;
raramente,
síndrome
papulopurpúrea nas
mãos e pés, em
“meia e luva”
Exantema súbito Herpes-vírus humano 6 Erupção Geralmente afeta Exantema surge após o 190
(roséola, sexta maculopapulosa crianças < 3 anos desaparecimento da
moléstia) difusa no tronco e febre; semelhante ao
pescoço; resolução exantema de Boston
em 2 dias (ecovírus 16); é
possível a ocorrência
de convulsão febril
Infecção primária HIV Máculas e pápulas Indivíduos Faringite, adenopatia, 197
pelo HIV difusas recentemente artralgias
inespecíficas; pode infectados pelo HIV
ter caráter
urticariforme; em
alguns casos,
úlceras orais ou
genitais
Mononucleose Vírus Epstein-Barr Erupção Adolescentes, Hepatoesplenomegalia, 189
infecciosa maculopapulosa adultos jovens faringite,
difusa (5% dos linfadenopatia
casos; 30-90% se cervical, linfocitose
for administrado atípica, anticorpos
ampicilina); heterófilos
urticária ou
petéquias em
alguns casos;
edema periorbitário
(50%); petéquias
no palato (25%)
Outros exantemas Ecovírus 2, 4, 9, 11, 16, 19 e Ampla variedade Mais comuns nas Síndromes virais 199
virais 25; coxsackievírus A9, B1 e de sinais cutâneos crianças do que nos inespecíficas
B5; etc. que podem ser adultos
semelhantes aos da
rubéola ou do
sarampo
Erupção Medicamentos (antibióticos, Máculas e pápulas Ocorre 2-3 dias após Achados variáveis: 56
exantemática anticonvulsivantes, diuréticos, vermelhas e a exposição em febre e eosinofilia
induzida por etc.) brilhantes, indivíduos
medicamentos intensamente previamente
pruriginosas, sensibilizados; ou
simétricas no após 2-3 semanas
tronco e nos (mas pode ocorrer a
membros; podem qualquer momento,
confluir mesmo logo após a
suspensão do
fármaco)
Tifo epidêmico Rickettsia prowazekii Erupção Exposição ao piolho Cefaleia, mialgias; 182
maculopapulosa do corpo; o tifo mortalidade de 10-
que surge nas axilas recrudescente pode 40% nos casos não
e se espalha pelo recidivar após 30-50 tratados; apresentação
tronco e, mais anos clínica mais leve na
tarde, pelos forma recrudescente
membros;
geralmente poupa
face, palmas das
mãos e plantas dos
pés; evolui de
máculas que
desaparecem à
digitopressão para
erupção confluente
com petéquias;
exantema
evanescente no tifo
recrudescente
(doença de Brill-
Zinsser)
Tifo endêmico Rickettsia typhi Erupção Exposição a pulgas Cefaleia, mialgias 182
(murino) maculopapulosa, de rato ou de gato
geralmente
poupando palmas e
plantas
Tifo rural Orientia tsutsugamushi Exantema macular Endêmica no Sul do Cefaleia, mialgias, 182
difuso que se inicia Pacífico, Austrália, adenopatia regional;
no tronco; escara Ásia; transmitida taxas de mortalidade
no local da picada por ácaros de até 30% nos casos
do ácaro não tratados
Febres maculosas Rickettsia conorii (febre Comum haver Exposição a Cefaleia, mialgias, 182
por riquétsia botonosa), Rickettsia australis escara no local da carrapatos; R. adenopatia regional
(febre de Queensland), mordida, erupção conorii nas regiões
Rickettsia sibirica (tifo maculopapulosa do Mediterrâneo,
siberiano), entre outras (raramente Índia, África; R.
vesiculosa e australis na
petequial) na região Austrália; R. sibirica
proximal dos na Sibéria e
membros, Mongólia
espalhando-se para
tronco e face
Erliquiose Ehrlichia chaffeensis Erupção Carrapato; com Cefaleia, mialgias, 182
monocítica humanac maculopapulosa maior frequência, leucopenia
(40% dos casos), nas regiões Sudeste,
envolvendo tronco Sul, Centro-Oeste e
e membros; pode Mesoatlântico dos
ser petequial Estados Unidos
Leptospirose Leptospira interrogans e Erupção Exposição à água Mialgias, meningite 179
outras espécies de Leptospira maculopapulosa; contaminada com asséptica; forma
conjuntivite; em urina de animais fulminante: síndrome
alguns casos, febril ictero-
hemorragia da hemorrágica (doença
esclerótica de Weil)
Doença de Lyme Borrelia burgdorferi (única Pápulas que Mordida do Cefaleia, mialgias, 181
causa nos Estados Unidos), evoluem para carrapato vetor calafrio e fotofobia
Borrelia afzelii, Borrelia lesões eritematosas Ixodes ocorrem na fase aguda;
garinii anulares com a em alguns casos,
região central clara semanas ou meses
(eritema mais tarde, podem
migratório; sobrevir doenças do
diâmetro médio de SNC e miocárdio, ou
15 cm), algumas artrite
vezes com anéis
concêntricos, em
outras com centro
endurecido ou
vesiculoso; em
certos casos,
múltiplas lesões
secundárias de
eritema migratório
Doença associada ao Desconhecida (possivelmente Semelhante ao Mordida do Em comparação com a 181
carrapato do Sul Borrelia lonestari ou outra eritema migratório carrapato vetor doença de Lyme:
(dos Estados espiroqueta Borrelia) da doença de Lyme, Amblyomma menos sintomas
Unidos) (STARI, incluindo: menor americanum, constitucionais, maior
doença de Master) probabilidade de frequentemente chance de haver
haver múltiplas encontrado em consciência da picada
lesões secundárias; regiões em que a do carrapato; não há as
lesões tendendo a doença de Lyme é sequelas da doença de
terem menor rara, incluindo a Lyme
diâmetro, ~8 cm); região Sul dos
maior Estados Unidos
probabilidade de
área central clara
Febre tifoide Salmonella typhi Máculas e pápulas Ingestão de Dor abdominal 160
eritematosas alimentos ou água variável e diarreia;
transitórias que contaminados (raro cefaleia, mialgias,
desaparecem à nos Estados Unidos) hepatoesplenomegalia
digitopressão, de 2-
4 mm, geralmente
sobre o tronco
(rosácea)
Dengued Vírus da dengue (quatro Exantema em 50% Ocorre nas regiões Cefaleia, dor 204
sorotipos; flavivírus) dos casos; tropical e musculoesquelética
inicialmente difuso; subtropical; (“febre quebra-ossos”);
no meio do transmitida por leucopenia;
processo de mosquito ocasionalmente, febre
doença, surge bifásica (“em dorso de
exantema sela”)
maculopapular que
se inicia no tronco
e se espalha em
direção centrífuga
para os membros e
a face; prurido;
hiperestesia em
alguns casos;
podem surgir
petéquias nos
membros após a
defervescência
Febre da mordedura Spirillum minus Escara no local da Mordida de rato; Adenopatia regional, 136
de rato (sodoku) mordida; a seguir, encontrado febres recorrentes nos
exantema violáceo principalmente na casos não tratados
ou vermelho Ásia; raro nos
amarronzado, Estados Unidos
envolvendo o
tronco e os
membros
Febre recidivante Espécies de Borrelia Exantema central Exposição a Febre recorrente, 180
no final do episódio carrapatos ou ao cefaleia, mialgias,
febril; petéquias em piolho do corpo hepatoesplenomegalia
alguns casos
Eritema marginado Streptococcus do grupo A Pápulas e placas Pacientes com febre Faringite que precede 381
(febre reumática) eritematosas reumática poliartrite, cardite,
anulares como nódulos subcutâneos,
lesões policíclicas coreia
que ocorrem em
ondas sobre o
tronco e região
proximal dos
membros; evolução
e resolução em um
período de horas
Lúpus eritematoso Doença autoimune Eritema macular e Mais comum em Artrite; doenças 352
sistêmico (LES) papuloso, com mulheres jovens e cardíaca, pulmonar,
frequência em na meia-idade; renal, hematológica e
regiões expostas ao exacerbações vascular
sol; lesões do lúpus desencadeadas por
discoide (atrofia exposição ao sol
local, descamação,
alterações na
pigmentação);
telangiectasias
periungueais;
exantema malar;
vasculite que
algumas vezes
causa urticária,
púrpura palpável;
erosões orais em
alguns casos
Doença de Still Doença autoimune Pápulas Crianças e adultos Febre alta em pico, —
eritematosas jovens poliartrite,
transitórias de 2-5 esplenomegalia;
mm que aparecem velocidade de
sobre o tronco e a hemossedimentação >
região proximal dos 100 mm/h
membros no pico
febril; lesões
evanescentes
Tripanossomíase Trypanosoma Exantema Picada da mosca tsé- Doença hemolinfática 222
africana brucei/rhodesiense/gambiense eritematoso tsé na África seguida por
mosqueado ou Oriental (T. brucei meningoencefalite;
anular maculoso e rhodesiense) ou sinal de Winterbottom
papuloso Ocidental (T. brucei (linfadenopatia
principalmente no gambiense) cervical posterior) (T.
tronco; prurido; é brucei gambiensi)
possível o
surgimento de
cancro no local da
picada da mosca
tsé-tsé precedendo
o exantema em
várias semanas
Faringite Arcanobacterium Erupção Crianças e adultos Faringite exsudativa, 145
arcanobacteriana (Corynebacterium) maculopapulosa jovens linfadenopatia
haemolyticum eritematosa difusa
que envolve o
tronco e a região
proximal dos
membros; pode
haver descamação
Febre do Nilo Vírus do Nilo Ocidental Erupção Picada de mosquito; Cefaleia, fraqueza, 204
Ocidental maculopapular raramente, mal-estar, mialgia,
envolvendo tronco, transfusão de sangue doença neuroinvasiva
membros, cabeça e ou transplante de (encefalite, meningite,
pescoço; exantema órgão paralisia flácida)
em 20-50% dos
casos
Infecção pelo vírus Vírus Zika Eritema Picada de mosquito; Artralgia 204
Zika pruriginoso menos comumente (especialmente de
macular e papular; transmissão sexual pequenas articulações),
o exantema pode ou transfusão de mialgia,
começar no tronco sangue linfadenopatia,
e descer para a cefaleia, febre baixa; a
porção inferior do doença na gestação
corpo; injeção pode causar defeitos
conjuntival; pode congênitos graves,
haver petéquias no incluindo microcefalia;
palato podem ocorrer
complicações
neurológicas,
incluindo Guillain-
Barré
Erupções periféricas
Meningococemia – – – – 150,
crônica, infecção 151, 192
gonocócica
disseminada,a
infecção pelo
parvovírus humano
B19e
Rickettsia rickettsii 182
Febre maculosa das Exantema que se O vetor é o Cefaleia, mialgias, dor
Montanhas inicia nos pulsos e carrapato; ocorre de abdominal; as taxas de
Rochosas tornozelos, forma disseminada, mortalidade chegam a
espalhando-se de mas principalmente 40% nos casos não
forma centrípeta; nas regiões Sudeste tratados
surge tardiamente e Sudoeste-Central
nas palmas e dos Estados Unidos
plantas; lesões que
evoluem de
máculas que
desaparecem à
pressão para
petéquias
Sífilis secundária Treponema pallidum Cancro primário Sexualmente Febre, sintomas 177
coincidente em transmissível constitucionais
10% dos casos;
erupção papulosa
cor de cobre e
descamativa, difusa
embora
concentrada nas
palmas e plantas;
nos adultos, o
exantema nunca é
vesiculoso;
condiloma plano,
placas mucosas e
alopécia em alguns
casos
Febre Chikungunya Vírus Chikungunya Erupção Picadas dos Poliartralgia migratória 204
maculopapular; mosquitos Aedes grave envolvendo
ocorre geralmente aegypti e A. pequenas articulações
no tronco, mas albopictus; regiões (p. ex., mãos, punhos e
também nas tropicais e tornozelos)
extremidades e face subtropicais
Doença mão, pé e Coxsackievírus A16 e Erosões e vesículas Verão e outono; Febre transitória; o 199
boca enterovírus 71 são as causas dolorosas na boca; primariamente enterovírus 71 pode
mais comuns; coxsackievírus pápulas de 0,25 cm crianças < 10 anos estar associado a
A6 associado a síndrome nas mãos e pés com de idade; vários encefalite de tronco
atípica borda de eritema membros na família; encefálico, paralisia
evoluindo para a infecção por flácida que lembra
vesículas coxsackievírus A6 poliomielite ou
dolorosas; pode também ocorre em meningite asséptica
haver queda das jovens adultos
unhas 1-2 meses
após a doença
aguda; as lesões
por coxsackievírus
A6 se estendem
para a região
perioral,
extremidades,
tronco, nádegas,
genitália e áreas
afetadas por
eczema
Eritema multiforme Infecção, fármacos, causas Lesões em alvo Infecção por herpes- 50% dos pacientes < –f
(EM) idiopáticas (eritema central vírus simples ou por 20 anos; febre comum
circundado por área Mycoplasma na forma mais grave,
esbranquiçada pneumoniae; uso de EM maior, que pode
seguida por outra fármacos (p. ex., ser confundido com
área circular de sulfa, fenitoína, síndrome de Stevens-
eritema) com até 2 penicilina) Johnson (mas nos
cm; simétricas em casos de EM maior
joelhos, cotovelos, não há descamação
palmas, solas; proeminente de pele)
disseminação
centrípeta; papular,
algumas vezes
vesicular; quando
extensa e
comprometendo
mucosas é
denominada EM
maior
Febre por Streptobacillus moniliformis Erupção Mordida de rato, Mialgia; artrite (50%); 136
mordedura de rato maculopapular em ingestão de alimento recorrência da febre
(febre de Haverhill) palmas e solas e contaminado em alguns casos
membros em geral;
tende a ser mais
intensa nas
articulações; a
erupção algumas
vezes se generaliza;
pode ser purpúrica;
pode descamar
Endocardite Streptococcus, Evolução subaguda Valva cardíaca Sopro cardíaco novo 123
bacteriana Staphylococcus, etc. (p. ex., anormal (p. ex., ou alterado
estreptococos estreptococos
viridans): nódulos viridans), uso de
de Osler (nódulos drogas intravenosas
dolorosos rosados
sobre a polpa dos
dedos das mãos ou
dos pés); petéquias
na pele e nas
mucosas;
hemorragias
puntiformes.
Evolução aguda (p.
ex., Staphylococcus
aureus): Lesões de
Janeway (máculas
eritematosas ou
hemorrágicas
indolores,
geralmente em
palmas e plantas)
Eritemas descamativos confluentes
Escarlatina (segunda Streptococcus do grupo A Eritema difuso que Mais comum em Febre, faringite, 143
moléstia) (exotoxinas pirogênicas A, B desaparece à crianças entre 2-10 cefaleia
e C) digitopressão, anos; geralmente,
iniciando-se na face segue-se a uma
e se espalhando faringite por
pelo tronco e Streptococcus do
membros: palidez grupo A
perioral, pele com
textura de “lixa”;
acentuação do
eritema linear nas
dobras cutâneas
(linhas de Pastia);
enantema da língua
saburrosa que
evolui para língua
“em morango”;
descamação na
segunda semana
Doença de Idiopática Exantema Crianças < 8 anos Adenopatia cervical, 54, 356
Kawasaki semelhante ao da faringite, vasculite nas
escarlatina artérias coronárias
(escarlatiniforme)
ou EM; fissura
labial, língua “em
morango”;
conjuntivite; edema
das mãos e dos pés;
descamação na fase
tardia da doença
Síndrome do choque Streptococcus do grupo A O exantema, Pode ocorrer em Falência de múltiplos 143
tóxico (associados às exotoxinas quando presente, é situações de órgãos, hipotensão,
estreptocócica pirogênicas A e/ou B, ou com frequência infecções graves por taxa de mortalidade de
determinados tipos M) escarlatiniforme Streptococcus do 30%
grupo A, (p. ex.,
fascite necrosante,
bacteremia,
pneumonia)
Síndrome do choque S. aureus (toxina 1 da Eritema difuso que Colonização com o Febre > 39°C, 142
tóxico estafilocócica síndrome do choque tóxico, envolve as palmas; S. aureus produtor hipotensão, disfunção
enterotoxinas B e outras) eritema marcante de toxina de múltiplos órgãos
nas mucosas;
conjuntivite;
descamação com 7-
10 dias de doença
Síndrome da pele S. aureus, grupo de fagos II Eritema difuso Colonização com o Irritabilidade; 142
escaldada doloroso, S. aureus produtor secreções nasal ou
estafilocócica frequentemente de toxina; ocorre em conjuntival
com bolhas e crianças < 10 anos
descamação; sinal (denominada doença
de Nikolsky de Ritter nos
neonatos) ou em
adultos com
disfunção renal
Síndrome da Psoríase, eczema, erupção por Eritema difuso Geralmente ocorre Febre, calafrio (i.e., 54, 56
eritrodermia fármacos, micose fungoide (frequentemente em adultos acima dificuldade de
esfoliativa subjacentes esfoliativo) dos 50 anos; mais termorregulação);
intercalado com comum nos homens linfadenopatia
lesões da doença
subjacente
DRESS (síndrome Anticonvulsivantes Erupção Indivíduos Linfadenopatia, 56
de aromáticos; outros fármacos, maculopapular geneticamente falência de múltiplos
hipersensibilidade incluindo sulfonamidas, (confundida com incapazes de órgãos (especialmente
induzida por minociclina exantema por eliminar óxidos de hepática), eosinofilia,
fármacos [DIHS]) fármaco), algumas areno linfócitos atípicos;
vezes evoluindo (anticonvulsivantes), quadro semelhante ao
para eritroderma pacientes com da sepse
esfoliante; edema redução da
profundo, capacidade de
especialmente da efetuar N-acetilação
fáscia; pode haver (sulfonamidas)
pústulas
Síndrome de Fármacos (80% dos casos; Máculas Incomum nas Desidratação e sepse, 56
Stevens-Johnson com frequência alopurinol, eritematosas e crianças; mais algumas vezes como
(SSJ), necrólise anticonvulsivantes, purpúricas, comum nos resultado da falta de
epidérmica tóxica antibióticos), infecção, algumas vezes em pacientes com integridade cutânea;
(NET) idiopática forma de alvo, ou infecção pelo HIV, taxa de mortalidade até
eritema difuso que LES, determinados 30%
evolui com bolhas, tipos de HLA ou em
descamação e acetiladores lentos
necrose de toda a
epiderme; sinal de
Nikolsky; envolve
as mucosas, NET
(> 30% de necrose
epidérmica) é
forma extrema;
SSJ: envolve <
10% da epiderme; a
forma mista
SSJ/NET envolve
10-30% da
epiderme
Erupções vesiculobolhosas ou pustulosas
Síndrome mão-pé- – – – – –f
bocag; síndrome da
pele escaldada
estafilocócica;
NETb; DRESSb
Varicela (catapora) Vírus varicela-zóster (VZV) Máculas (2-3 mm) Geralmente afeta Mal-estar; doença 188
que evoluem para crianças; 10% dos geralmente leve em
pápulas e, em adultos são crianças saudáveis;
seguida, vesículas suscetíveis; mais mais grave em caso de
(algumas vezes, comum no final do complicações em
umbilicadas) sobre inverno e na adultos e em crianças
base eritematosa primavera; imunocomprometidas
(“gotas de orvalho incidência reduzida
em uma pétala de em 90% dos Estados
rosa”); formam-se, Unidos como
em seguida, resultado da
pústulas e crostas; vacinação contra
as lesões surgem varicela
em grupos; podem
atingir o couro
cabeludo e a boca;
intensamente
pruriginosas
Foliculite da Pseudomonas aeruginosa Lesões Indivíduos que Dor de ouvido, dor nos 159
“banheira” por pruriginosas, frequentam banhos olhos e/ou garganta; a
Pseudomonas eritematosas ou piscinas públicas; febre pode estar
foliculares, ocorre em surtos ausente; geralmente,
papulosas, autolimitada
vesiculosas ou
pustulentas que
podem atingir
axilas, nádegas,
abdome e,
especialmente, as
regiões cobertas
pelas roupas de
banho; pode-se
manifestar como
nódulos isolados
dolorosos sobre as
superfícies
palmares e
plantares (esta
última denominada
“síndrome do pé
quente por
Pseudomonas”)
Varíola Vírus da varíola major Máculas vermelhas Indivíduos não Pródromo de febre, C2
sobre língua e imunes expostos à cefaleia, dor nas
palato que evoluem doença costas, mialgias;
para pápulas e vômitos em 50% dos
vesículas; máculas casos
cutâneas que
evoluem para
pápulas, vesículas
e, em seguida,
pústulas ao longo
de 1 semana, com a
subsequente
formação de
crostas; as lesões
aparecem
inicialmente na
face e se espalham
centrifugamente do
tronco para os
membros; difere da
varicela porque (1)
as lesões cutâneas
em qualquer região
encontram-se no
mesmo estágio de
evolução, e (2) as
lesões distribuem-
se
predominantemente
sobre a face e os
membros
(incluindo palmas e
plantas)
Infecção primária HSV Eritema A infecção primária Linfadenopatia 187
pelo herpes-vírus rapidamente é mais comum em regional
simples (HSV) seguido por crianças e jovens
dolorosas vesículas adultos para o HSV-
agrupadas 1 e em jovens
características que adultos sexualmente
podem evoluir para ativos para o HSV-
pústulas que 2; não há febre na
ulceram, infecção recorrente
especialmente
sobre as mucosas;
lesões no local de
inoculação:
comumente,
gengivoestomatite
para o HSV-1 e
lesões genitais para
o HSV-2; os
episódios
recorrentes são
mais leves (p. ex., o
herpes labial não
atinge a mucosa
oral)
Infecção VZV ou HSV Vesículas Indivíduos Envolvimento de 133,
disseminada pelo generalizadas que imunossuprimidos, órgãos internos (p. ex., 187, 188
herpes-vírus podem evoluir para eczema; neonatos fígado, pulmões) em
pústulas e úlceras; alguns casos; a doença
as lesões são neonatal é
semelhantes às do particularmente grave
VZV e HSV.
Disseminação de
zóster cutâneo: >
25 lesões
distribuídas fora do
dermátomo
envolvido. HSV:
lesões
cutaneomucosas
extensivas e
progressivas que
podem ocorrer na
ausência de
disseminação,
algumas vezes se
disseminam pela
pele eczematosa
(eczema herpético);
pode haver
disseminação
visceral do HSV
mesmo em casos
com lesões
mucocutâneas
localizadas; na
doença neonatal
disseminada, as
lesões cutâneas,
quando presentes,
ajudam no
diagnóstico, mas o
exantema está
ausente em uma
minoria substancial
de casos
Riquetsiose Rickettsia akari Escara encontrada Encontrada em áreas Cefaleia, mialgias, 182
variceliforme no local da picada urbanas; transmitida adenopatia regional;
do ácaro; exantema por ácaros de doença leve
generalizado que camundongos
envolve face,
tronco e membros;
pode atingir palmas
e plantas; < 100
pápulas e placas (2-
10 mm);
desenvolvem-se
vesículas na parte
superior das lesões
que podem evoluir
para pústulas
Pustulose Fármacos (principalmente Pequenas pústulas Surge 2-21 dias após Febre, prurido e 56
exantematosa anticonvulsivantes ou não foliculares o início do leucocitose agudos
generalizada aguda antimicrobianos); também estéreis sobre pele tratamento
pode ser viral eritematosa e farmacológico,
edemaciada; início dependendo de o
na face e nas paciente ter sido
dobras corporais previamente
para, em seguida, sensibilizado
generalizarem-se
Infecção V. vulnificus Lesões Pacientes com Hipotensão; taxa de 163
disseminada pelo eritematosas que cirrose, diabetes, mortalidade de 50%
Vibrio vulnificus evoluem para insuficiência renal;
bolhas exposição por
hemorrágicas e, em ingestão de água do
seguida, úlceras mar ou frutos do
necróticas mar contaminados
Ectima gangrenoso P. aeruginosa, outros Placa endurecida Geralmente acomete Sinais clínicos de 159
bastonetes Gram-negativos, que evolui para pacientes sepse
fungos bolha ou pústula neutropênicos;
hemorrágica com ocorre em até 28%
descamação dos indivíduos com
resultando na bacteremia por
formação de escara; Pseudomonas
halo eritematoso;
mais comum nas
regiões axilar,
inguinal e perianal
Erupções urticariformes
Vasculite Doença do soro, Placas eritematosas Pacientes com Febre variável; 356f
urticariforme frequentemente causada por e edemaciadas doença do soro artralgia/artrite
infecção (incluindo vírus da “urticariformes”, (incluindo hepatite
hepatite B, enterovírus, pruriginosas ou B), doença do tecido
ardentes; conectivo
parasitas), fármacos; doenças diferentemente da
do tecido conectivo urticária: lesões
duram > 24 h (até 5
dias) e não
desaparecem
completamente
com compressão
em razão de
hemorragia

Erupções nodulares
Infecção Infecções fúngicas (p. ex., Nódulos Hospedeiros As manifestações –f
disseminada candidíase, histoplasmose, subcutâneos (até 3 imunossuprimidos variam de acordo com
criptococose, esporotricose, cm); flutuação e (p. ex., receptores de o microrganismo
coccidiodomicose); drenagem são transplantes de
micobactérias comuns nas medula óssea,
infecções por pacientes
micobactérias; submetidos a
nódulos necróticos quimioterapia,
(membros, regiões pacientes HIV-
periorbital ou positivos)
nasal) comuns com
Aspergillus, Mucor
Eritema nodoso Infecções (p. ex., Nódulos Mais comum em Artralgias (50%); as –f
(paniculite septal) estreptococos, fungos, subcutâneos mulheres entre 15 e manifestações variam
micobactérias, Yersinia); grandes, não 30 anos de acordo com a
fármacos (p. ex., sulfas, ulcerados, doença associada
penicilinas, contraceptivos violáceos;
orais); sarcoidose; idiopática extremamente
dolorosos;
geralmente na parte
inferior das pernas,
embora possam
ocorrer nos
membros
superiores
Síndrome de Sweet Infecção por Yersinia; Nódulos dolorosos, Mais comum em Cefaleia, artralgias, 54
(dermatose infecção das vias áereas edematosos, mulheres e nos leucocitose
neutrofílica febril superiores; doença avermelhados ou indivíduos entre 30
aguda) inflamatória intestinal; azulados, dando a e 60 anos; em 20%
gravidez, câncer (geralmente impressão de dos casos, há
hematológico); medicamentos vesiculação; associação com
(G-CSF) geralmente, em doenças malignas
face, pescoço e (neste grupo,
membros homens e mulheres
superiores; quando são igualmente
se localizam nos afetados)
membros
inferiores, podem
ser confundidos
com eritema
nodoso
Angiomatose bacilar Bartonella henselae, B. Diversas formas, Indivíduos Em alguns casos, há 167
quintana incluindo nódulos imunossuprimidos, peliose do fígado e do
vasculares especialmente baço; as lesões podem
eritematosos de aqueles com atingir vários órgãos;
superfície lisa; infecção por HIV bacteremia
lesões friáveis e em estágio avançado
exofíticas; placas
eritematosas
(podem ser secas e
descamativas);
nódulos
subcutâneos
(podem ser
eritematosos)
Erupções purpúricas
Febre maculosa das – – – – –f
Montanhas
Rochosas, febre da
mordedura do rato,
endocardite;g tifo
epidêmico;e
dengue;d,e infecção
pelo parvovírus
humano B19e
Meningococemia Neisseria meningitidis Inicialmente, lesões Mais comum entre Hipotensão, meningite 150
aguda maculopapulosas crianças, nos (algumas vezes
cor-de-rosa que indivíduos com precedida por infecção
evoluem para asplenia ou respiratória alta)
petéquias; essas deficiência dos
últimas aumentam componentes
rapidamente de terminais do
número, algumas complemento (C5-
vezes crescendo e C8)
se tornando
vesiculosas;
acometem mais
comumente o
tronco e os
membros; podem
surgir na face,
mãos e pés; pode
haver púrpura ful-
minante (ver
adiante) secundária
à CIVD
Púrpura fulminante CIVD grave Grandes equimoses Indivíduos em sepse Hipotensão 150, 297
com formato (p. ex., causada por
bastante irregular N. meningitidis),
que evoluem para doença maligna ou
bolhas traumatismo grave;
hemorrágicas e, em pacientes em
seguida, para lesões asplenia com risco
necróticas negras elevado de sepse
Meningococemia N. meningitidis Diversas erupções Indivíduos com Febres, algumas vezes 150
crônica recorrentes, deficiências de intermitentes; artrite,
incluindo complemento mialgias, cefaleia
maculopapulosa
rosada, nodular
(geralmente nos
membros
inferiores);
petequial (às vezes,
com centro
vesiculoso); áreas
purpúreas com
centro pálido azul-
acinzentado
Infecção gonocócica Neisseria gonorrhoeae Pápulas (1-5 mm) Indivíduos (com Febre baixa, 151
disseminada que evoluem ao maior frequência no tenossinovite, artrite
longo de 1-2 dias sexo feminino)
para pústulas sexualmente ativos,
hemorrágicas com alguns com
centros necróticos deficiência de
acinzentados; complemento
raramente, ocorrem
bolhas necróticas;
as lesões
(geralmente < 40)
distribuem-se
perifericamente na
proximidade das
articulações (mais
comumente nos
membros
superiores)
Exantema petequial Geralmente ecovírus 9 ou Lesões petequiais Frequentemente Faringite, cefaleia; 199
enteroviral coxsackievírus A9 disseminadas ocorre em surtos meningite asséptica
(também podem ser por ecovírus 9
maculopapulosas,
vesiculosas ou
urticariformes)
Febre hemorrágica Arbovírus (incluindo dengue) Exantema petequial Residente ou Tríade formada por 204, 205
viral e arenavírus viajante em áreas febre, choque,
endêmicas ou outra hemorragia pelas
forma de exposição mucosas ou pelo trato
ao vírus gastrintestinal
Púrpura Diarreia sanguinolenta Petéquias Indivíduos com Febre (nem sempre 54, 96,
trombocitopênica idiopática, causada por gastrenterite pela E. presente), anemia 11, 156
trombótica/síndrome bactéria produtora da toxina coli O157:H7 hemolítica 161
hemolítico-urêmica Shiga (p. ex., Escherichia coli (especialmente microangiopática,
O157:H7), deficiência de crianças), em trombocitopenia,
ADAMTS13 (responsável quimioterapia para disfunção renal,
pela clivagem do fator de von câncer, infecção disfunção neurológica;
Willebrand), medicamentos pelo HIV, com provas de coagulação
(p. ex., quinina, doenças autoimunes; normais
quimioterapia, gestantes ou
imunossupressão) puérperas
Vasculite dos Infecções (incluindo infecção Lesões purpúreas Ocorre em amplo Febre (nem sempre 54
pequenos vasos por Streptococcus do grupo palpáveis que espectro de doenças, presente), mal-estar,
cutâneos (vasculite A, hepatite B ou C), surgem em grupos tais como as artralgias, mialgias;
leucocitoclástica) fármacos, fatores idiopáticos nas pernas ou em doenças do tecido vasculite sistêmica em
outras regiões conectivo, alguns casos; na PHS,
inferiores; podem crioglobulinemia, é comum o
se tornar câncer, púrpura de envolvimento de rins,
vesiculosas ou Henoch-Schönlein articulações e trato
ulcerativas (PHS); mais comum gastrintestinal
nas crianças
Erupções com úlceras e/ou escaras
Febre – – – – –f
tsutsugamushi,
febres maculosas
por riquétsias, febre
da mordedura do
rato;e riquetsiose
variceliforme,
ectima gangrenosoh
Tularemia Francisella tularensis Forma Exposição a Febre, cefaleia, 165
ulceroglandular: carrapatos, linfadenopatia
pápula eritematosa mosquitos e animais
dolorosa que evolui infectados
para úlcera
necrótica dolorosa
com bordas
elevadas; em 35%
dos casos, ocorrem
erupções
(maculopapulosas,
vesiculopapulosas,
acneiformes,
urticariformes,
eritema nodoso ou
EM)
Antraz Bacillus anthracis C2
Pápula pruriginosa Exposição a animais Linfadenopatia,
que cresce para se ou produtos animais cefaleia
transformar em infectados ou
úlcera indolor com qualquer outra
1 a 3 cm, exposição aos
circundada por esporos de antraz
vesículas, até que,
finalmente, surge
uma escara central
com edema;
cicatriz residual
aVer “Erupções purpúricas”. bVer “Eritemas descamativos confluentes”. cÉ raro haver exantema na erliquiose ou anaplasmose granulocitótropica

humana (causada pelo Anaplasma phagocytophila; mais comum no Centro-Oeste e Nordeste dos Estados Unidos). dVer “Febre hemorrágica viral”
em “Erupções purpúricas”, para dengue hemorrágica e síndrome de choque da dengue. eVer “Erupções maculopapulares de distribuição central”.
fVer os capítulos específicos das etiologias. gVer “Erupções periféricas”. hVer “Erupções vesiculobolhosas ou pustulosas”.

Siglas: SNC, sistema nervoso central; CIVD, coagulação intravascular disseminada; G-CSF, fator estimulador da colônia de granulócitos; HLA,
antígeno leucocitário humano.

ERUPÇÕES MACULOPAPULOSAS COM DISTRIBUIÇÃO CENTRAL


Os exantemas com distribuição central, aqueles em que as lesões predominam no
tronco, são a forma de erupção mais comum. O exantema do sarampo começa
na linha do couro cabeludo, 2 a 3 dias após o início da doença, e desce pelo
corpo, preservando as palmas e as plantas (Cap. 200). A erupção começa com
lesões eritematosas isoladas, que confluem à medida que o exantema se expande.
As manchas de Koplik (lesões brancas ou azuladas de 1-2 mm com um halo
eritematoso localizadas na mucosa oral) são patognomônicas do sarampo e
geralmente aparecem nos primeiros 2 dias dos sintomas. Essas lesões não devem
ser confundidas com as manchas de Fordyce (glândulas sebáceas ectópicas), que
não têm halos eritematosos e estão presentes nas cavidades orais de pessoas
sadias. As manchas de Koplik podem coexistir durante algumas horas com o
exantema do sarampo.
A rubéola (sarampo alemão) também se espalha da linha do couro cabeludo
para baixo; contudo, ao contrário do sarampo, o exantema da rubéola tende a
desaparecer das áreas acometidas inicialmente à medida que se expande e pode
ser pruriginoso (Cap. 201). É possível identificar as chamadas manchas de
Forchheimer (petéquias no palato), mas o sinal é inespecífico porque também
ocorre na mononucleose infecciosa (Cap. 189), febre escarlatina (Cap. 143) e
infecção pelo vírus Zika (Cap. 204). Linfadenopatia retroauricular e
suboccipital, bem como artrite, são comuns em adultos com rubéola. Deve-se
evitar o contato das gestantes com os indivíduos portadores da doença, uma vez
que a rubéola causa anomalias congênitas graves. Diversas cepas de enterovírus
(Cap. 199), especialmente ecoviroses e coxsackieviroses, causam síndromes
inespecíficas com febre e erupções que podem ser confundidas com rubéola ou
sarampo. Os pacientes com mononucleose infecciosa causada por vírus Epstein-
Barr (Cap. 189) ou com infecção primária por HIV (Cap. 197) podem
apresentar faringite, linfadenopatia e um exantema maculopapular inespecífico.
O exantema do eritema infeccioso (quinta moléstia), que é causado por
parvovírus humano B19, afeta primariamente crianças de 3 a 12 anos de idade;
ele se desenvolve após a resolução da febre como um eritema brilhante e que
desaparece à compressão nas bochechas (“bochechas esbofeteadas”) com palidez
perioral (Cap. 192). No dia seguinte, surge exantema (com frequência
pruriginoso) mais difuso no tronco e nos membros, que, em seguida, transforma-
se rapidamente em erupção reticular rendilhada, que desaparece e reaparece
(principalmente com as alterações da temperatura) nas 3 semanas seguintes. Os
adultos com a quinta moléstia costumam ter artrite, e, em mulheres grávidas, é
possível haver hidropsia fetal associada a esta doença.
O exantema súbito (roséola) é causado pelo herpes-vírus humano 6, sendo
mais comum em crianças < 3 anos (Cap. 190). Assim como ocorre com o
eritema infeccioso, o exantema geralmente aparece após a remissão da febre.
Consiste em máculas e pápulas cor-de-rosa, de 2 a 3 mm, que apenas raramente
coalescem, começando no tronco e, às vezes, nos membros (poupando a face) e
desaparecendo em 2 dias.
Embora as reações a medicamentos tenham muitas manifestações,
incluindo urticária, as erupções induzidas por fármacos exantematosas (Cap. 56
) são as mais comuns e costuma ser difícil a sua diferenciação dos exantemas
virais. Em geral, as erupções provocadas por fármacos são mais eritematosas e
pruriginosas que os exantemas virais, mas essa diferenciação não é confiável. A
história de novos fármacos e a ausência de prostração ajudam a diferenciar entre
farmacodermia e erupções de outras etiologias. Os exantemas podem persistir
por até duas semanas após a interrupção do uso do fármaco ofensivo. Algumas
populações são mais suscetíveis aos exantemas medicamentosos que outras.
Entre os pacientes HIV-positivos, 50 a 60% manifestam exantema em resposta às
sulfas; 30 a 90% dos pacientes com mononucleose causada pelo vírus Epstein-
Barr apresentarão exantema se receberem ampicilina.
As doenças causadas por riquétsias (Cap. 182) devem ser consideradas na
investigação de indivíduos com erupções maculopapulares de distribuição
central. O contexto habitual no qual o tifo epidêmico se desenvolve é uma região
de guerra ou desastre natural, na qual as pessoas são expostas ao piolho do
corpo. Tifo endêmico ou leptospirose (esta última causada por uma espiroqueta)
(Cap. 179) podem ser vistos em ambientes urbanos onde há proliferação de
roedores. Fora dos Estados Unidos, outras riquetsioses causam uma síndrome de
febre maculosa, devendo ser consideradas nos indivíduos que habitem em ou que
tenham viajado para áreas endêmicas. Da mesma forma, a febre tifoide, uma
doença não riquetsiose causada pela Salmonella typhi (Cap. 160), costuma ser
adquirida durante viagens para fora dos Estados Unidos. A dengue, causada por
um flavivírus transmitido por mosquito, ocorre em regiões tropicais e
subtropicais do mundo (Cap. 204).
Algumas erupções maculopapulosas com distribuição central têm aspectos
típicos. O eritema migratório, o exantema da doença de Lyme (Cap. 181),
geralmente se manifesta como lesões anulares únicas ou múltiplas. Em geral, as
lesões não tratadas do eritema migratório desaparecem em 1 mês, mas podem
persistir por mais de 1 ano. Doença associada ao carrapato do Sul (dos Estados
Unidos) (STARI) (Cap. 181) se apresenta com um exantema semelhante ao
eritema migratório, mas menos intenso do que o da doença de Lyme e
frequentemente ocorre em regiões não endêmicas para Lyme. O eritema
marginado, o exantema da febre reumática aguda (Cap. 352), tem um padrão
distintivo de lesões anulares transitórias crescentes e migratórias.
As doenças vasculares do colágeno podem causar febre e exantema. Os
pacientes com lúpus eritematoso sistêmico (Cap. 349) geralmente desenvolvem
uma erupção eritematosa bem definida, com distribuição em asa de borboleta na
região malar (exantema malar), assim como muitas outras manifestações
cutâneas. O paciente com doença de Still apresenta-se com um exantema
evanescente cor de salmão no tronco e nas partes proximais dos membros que
coincide com os picos febris.
O vírus Zika é um flavivírus transmitido por mosquito que é associado a
defeitos congênitos graves (Cap. 204). A doença por Zika está se espalhando
rapidamente em regiões tropicais e subtropicais do mundo. O exantema da
infecção pelo vírus Zika é geralmente pruriginoso e costuma se acompanhar de
injeção conjuntival.

ERUPÇÕES PERIFÉRICAS
Esses exantemas são diferentes porque se distribuem predominantemente nos
segmentos periféricos ou começam nas áreas periféricas (acrais), antes de se
espalharem em direção centrípeta. O diagnóstico e a terapia precoces são
fundamentais na febre maculosa das Montanhas Rochosas (Cap. 182) devido ao
seu prognóstico grave sem tratamento. As lesões evoluem de máculas para
petéquias, começam nos punhos e tornozelos, espalham-se em direção centrípeta
e aparecem nas palmas e plantas apenas nos estágios subsequentes da doença. A
possibilidade de exantema da sífilis secundária (Cap. 177), que pode ser
generalizado, mas se destaca em palmas e solas, deve ser considerada no
diagnóstico diferencial da pitiríase rósea, especialmente em pacientes
sexualmente ativos. A febre Chikungunya (Cap. 204), transmitida por picada de
mosquito em regiões tropicais e subtropicais, está associada a uma erupção
maculopapulosa e poliartralgia intensa de pequenas articulações. A doença mão-
pé-boca (Cap. 199), mais comumente causada por coxsackievírus A16 ou
enterovírus 71, se diferencia por vesículas dolorosas distribuídas nas mãos e pés
e na boca; o coxsackievírus A6 causa uma síndrome atípica com lesões mais
extensas. As lesões em alvo típicas do eritema multiforme aparecem
simetricamente nos cotovelos e joelhos, nas palmas das mãos, plantas dos pés e
face. Nos casos graves, essas lesões se espalham difusamente e envolvem as
mucosas. Na endocardite, também é possível ocorrer lesões nas mãos e nos pés (
Cap. 123).

ERITEMAS DESCAMATIVOS CONFLUENTES


Tais erupções consistem em eritema difuso, geralmente seguido de descamação.
As erupções causadas por Streptococcus do grupo A ou pelo Staphylococcus
aureus são mediadas por toxinas. Na escarlatina (Cap. 143), geralmente após
uma faringite, os pacientes evoluem com rubor facial, língua “em morango” e
petéquias acentuadas nas dobras do corpo (linhas de Pastia). A doença de
Kawasaki (Caps. 54 e 356) apresenta-se na população pediátrica como fissuras
labiais, língua em morango, conjuntivite, adenopatia e, em alguns casos,
anormalidades cardíacas. A síndrome do choque tóxico estreptocócica (Cap. 143
) manifesta-se com hipotensão, falência de múltiplos órgãos e geralmente uma
infecção grave por estreptococos do grupo A (p. ex., fascite necrosante). A
síndrome do choque tóxico estafilocócica (Cap. 142) também ocorre com
hipotensão e falência de múltiplos órgãos, mas geralmente comprova-se apenas
colonização, e não infecção grave, pelo S. aureus. A síndrome da pele escaldada
estafilocócica (Cap. 142) é vista primariamente em crianças e em adultos
imunocomprometidos. O eritema generalizado costuma aparecer durante o
período prodrômico de febre e mal-estar; nessa doença, é característica a
ocorrência de hiperestesia cutânea intensa. No estágio esfoliativo, é possível
haver formação de bolhas cutâneas quando se aplica pressão lateral suave (sinal
de Nikolsky). Nas formas leves, uma erupção escarlatiniforme simula a
escarlatina, mas o paciente não apresenta língua “em morango” nem palidez
perioral. Em contraste com a síndrome da pele escaldada estafilocócica, na qual
o plano de clivagem é superficial na derme, a necrólise epidérmica tóxica (Cap.
56), uma variante máxima da síndrome de Stevens-Johnson, envolve a
descamação de toda a epiderme, resultando em doença grave. A síndrome da
eritrodermia esfoliativa (Caps. 54 e 56) é uma reação grave caracterizada por
sintomas de toxemia sistêmica, frequentemente causada por eczema, psoríase,
reação medicamentosa ou micose fungoide. A reação medicamentosa com
eosinofilia e sintomas sistêmicos (DRESS), que costuma ser causada por agentes
antiepilépticos e antibióticos (Cap. 56), inicialmente aparece de maneira
semelhante a uma reação medicamentosa exantemática, mas pode progredir para
eritrodermia esfoliativa; ela se acompanha de falência de múltiplos órgãos e tem
taxa de mortalidade associada de cerca de 10%.

ERUPÇÕES VESICULOBOLHOSAS OU PUSTULOSAS


A varicela (Cap. 188) é altamente contagiosa, geralmente ocorrendo no inverno
ou na primavera, e se caracteriza por lesões pruriginosas que, em determinada
região do corpo, estão em diferentes estágios de desenvolvimento a qualquer
momento. Nos pacientes imunossuprimidos, as vesículas da varicela podem não
ter a base eritematosa típica ou podem apresentar aspecto hemorrágico. As
lesões de foliculite da “banheira” por Pseudomonas (Cap. 159) também são
pruriginosas e podem ser parecidas com aquelas da varicela. Porém, essa
foliculite geralmente ocorre em surtos após banhos em piscinas públicas, e as
lesões ocorrem nas regiões cobertas pelas roupas de banho. As lesões da varíola
(ver Cap. C2) também podem ser semelhantes às da varicela, mas encontram-se
todas no mesmo estágio de evolução em uma dada região do corpo. As lesões da
varíola são mais proeminentes na face e nos membros, enquanto as da varicela
são mais evidentes no tronco. A infecção pelo herpes-vírus simples (Cap. 187) é
caracterizada pela ocorrência de vesículas agrupadas sobre uma base
eritematosa. A infecção primária é acompanhada por febre e sintomas tóxicos,
enquanto as recorrências são mais leves. A riquetsiose variceliforme (Cap. 182)
é encontrada com maior frequência em áreas urbanas e caracteriza-se por
vesículas seguidas por pústulas. Diferencia-se da varicela por uma escara no
local da mordedura do ácaro de camundongo e pela presença de uma base na
forma de pápula/placa para cada vesícula. A possibilidade de pustulose
exantemática generalizada aguda deve ser considerada em indivíduos com
quadro agudo febril que estejam fazendo uso recente de medicamentos,
especialmente anticonvulsivantes ou antimicrobianos (Cap. 56). A infecção
disseminada por Vibrio vulnificus (Cap. 163) ou o ectima gangrenoso causado
por Pseudomonas aeruginosa (Cap. 159) devem ser considerados em pessoas
imunossuprimidas com sepse e bolhas hemorrágicas.

ERUPÇÕES URTICARIFORMES
Os pacientes com urticária clássica (“vergões”) geralmente apresentam reação de
hipersensibilidade sem febre associada. Quando há febre, as erupções
urticariformes na maioria dos casos são causadas por vasculite urticariforme (Ca
p. 356). Diferentemente das lesões isoladas da urticária clássica, que persistem
por até 24 horas, essa doença pode estender-se por 3 a 5 dias. Entre as etiologias
estão doença do soro (frequentemente causada por fármacos, como penicilinas,
sulfas, salicilatos ou barbitúricos), doenças do tecido conectivo (p. ex., lúpus
eritematoso sistêmico ou síndrome de Sjögren) e infecções (p. ex., vírus da
hepatite B, enterovírus ou parasitas). Os cânceres, principalmente os linfomas,
podem evoluir com febre e urticária crônica (Cap. 54).

ERUPÇÕES NODULARES
Nos pacientes imunossuprimidos, as lesões nodulares costumam ser causadas
por infecções disseminadas. Os indivíduos com candidíase disseminada
(geralmente causada pela Candida tropicalis) podem apresentar a tríade formada
por febre, mialgias e nódulos eruptivos (Cap. 211). As lesões por criptococose
disseminada (Cap. 210) podem se parecer com o molusco contagioso (Cap. 191
). A necrose dos nódulos deve levantar suspeita de aspergilose (Cap. 212) ou de
mucormicose (Cap. 213). O paciente com eritema nodoso se apresenta com
nódulos extremamente dolorosos nos membros inferiores. A síndrome de Sweet (
Cap. 54) deve ser considerada nos pacientes com vários nódulos e placas, às
vezes tão edematosos que assumem o aspecto de vesículas ou bolhas. A
síndrome de Sweet pode ocorrer em indivíduos com infecção, doença
inflamatória intestinal ou câncer, além de também poder ser induzida por
medicamentos.

ERUPÇÕES PURPÚRICAS
A meningococemia aguda (Cap. 150) classicamente ocorre em crianças na
forma de erupção petequial, mas as lesões iniciais podem ser máculas que
desaparecem à digitopressão ou urticária. A febre maculosa das Montanhas
Rochosas deve fazer parte do diagnóstico diferencial da meningococemia aguda.
A infecção por ecovírus 9 (Cap. 199) pode ser confundida com a
meningococemia aguda; os pacientes devem ser tratados para sepse bacteriana
porque talvez não seja possível diferenciar imediatamente essas duas doenças.
Grandes áreas de equimose da púrpura fulminante (Caps. 150 e 297) estão
associadas à coagulação intravascular disseminada grave subjacente, que pode
ser causada por processos infecciosos ou não infecciosos. As lesões da
meningococemia crônica (Cap. 150) podem ter várias morfologias, inclusive de
petéquias. Esses pacientes podem desenvolver nódulos purpúreos nas pernas,
que se assemelham ao eritema nodoso, mas não são muito dolorosos. As lesões
de gonococemia disseminada (Cap. 151) são pústulas hemorrágicas isoladas,
esparsas e contáveis, geralmente localizadas na proximidade de articulações. As
lesões da meningococemia crônica e da gonococemia podem ser indistinguíveis
quanto ao seu aspecto e distribuição. As febres hemorrágicas virais (Caps. 204 e
205) são uma possibilidade a ser considerada em pacientes com história de
viagem apropriada e exantema petequial. A púrpura trombocitopênica
trombótica (Caps. 54, 96 e 111) e a síndrome hemolítico-urêmica (Caps. 111, 15
6 e 161) estão intimamente relacionadas e são causas não infecciosas de febre e
petéquias. A vasculite dos pequenos vasos cutâneos (vasculite leucocitoclástica)
geralmente se apresenta como púrpura palpável e tem diversas etiologias (Cap. 5
4).

ERUPÇÕES COM ÚLCERAS E/OU ESCARAS


O desenvolvimento de uma úlcera ou escara em pacientes com erupções mais
generalizadas pode ser um indício diagnóstico importante. Por exemplo, uma
escara pode sugerir o diagnóstico de febre tsutsugamushi ou de riquetsiose
variceliforme (Cap. 182) no contexto apropriado. Em outras doenças (p. ex.,
antraz) (Cap. C2), uma úlcera ou escara talvez seja a única manifestação
cutânea.

LEITURAS ADICIONAIS
Cherry JD: Cutaneous manifestations of systemic infections, in Feigin and
Cherry’s Textbook of Pediatric Infectious Diseases, 7th ed. JD Cherry et al
(eds). Houston, Elsevier Saunders, 2014, pp 741–768.
Weber DJ et al: The acutely ill patient with fever and rash, in Principles and
Practice of Infectious Diseases, vol 1, 8th ed. JI Bennett et al (eds).
Philadelphia, Elsevier Saunders, 2015, pp 732–747.
Wolff K et al: Fitzpatrick’s Color Atlas and Synopsis of Clinical Dermatology,
7th ed. New York, McGraw-Hill, 2013.
Wolff K et al (eds): Fitzpatrick’s Dermatology in General Medicine, 8th ed. New
York, McGraw-Hill, 2012.
17
Febre de origem obscura
Chantal P. Bleeker-Rovers, Jos W. M. van der Meer

DEFINIÇÃO
Os médicos costumam se referir a qualquer doença febril sem uma etiologia
óbvia inicial como febre de origem obscura (FOO). A maioria das doenças febris
melhora antes que um diagnóstico possa ser feito ou que desenvolva
características que possibilitem o diagnóstico. O termo FOO deve ser reservado
para doenças febris prolongadas sem uma etiologia estabelecida apesar de
avaliação e exames diagnósticos intensivos. Este capítulo se concentra na FOO
clássica no paciente adulto.
A FOO foi originalmente definida por Petersdorf e Beeson em 1961 como
uma doença de > 3 semanas de duração, com febre ≥ 38,3°C em duas ocasiões e
incerteza diagnóstica apesar de 1 semana de avaliação hospitalar. Atualmente, a
maioria dos pacientes com FOO é hospitalizada apenas se sua condição clínica
necessitar, e não apenas com propósito diagnóstico; assim, a necessidade de
avaliação hospitalar foi eliminada da definição. A definição de FOO foi
modificada ainda pela exclusão de pacientes imunocomprometidos, cuja
avaliação necessita de uma abordagem diagnóstica e terapêutica completamente
diferente. Para uma comparação ideal de pacientes com FOO em diferentes
regiões geográficas, foi proposto que critérios quantitativos (incerteza
diagnóstica após 1 semana de avaliação) fossem alterados para um critério
qualitativo que necessita da realização de uma lista específica de investigações.
Assim, a FOO é atualmente definida como:

1. Febre ≥ 38,3°C em pelo menos duas ocasiões


2. Duração da doença ≥ 3 semanas
3. Ausência de imunocomprometimento conhecido
4. Diagnóstico que permanece incerto após anamnese e exame físico
detalhados e os seguintes exames obrigatórios: determinação da velocidade
de hemossedimentação (VHS) e proteína C-reativa; contagem de plaquetas;
contagem total e diferencial de leucócitos; medidas dos níveis de
hemoglobina, eletrólitos, creatinina, proteínas totais, fosfatase alcalina,
alanina-aminotransferase, aspartato-aminotransferase, lactato-
desidrogenase, creatina-cinase, ferritina, fatores antinucleares e fator
reumatoide; eletroforese de proteínas; exame comum de urina;
hemoculturas (n = 3); urocultura; radiografia de tórax; ultrassonografia
abdominal; e teste cutâneo com tuberculina (TCT) ou ensaio de liberação
de gamainterferona (IGRA).

ETIOLOGIA E EPIDEMIOLOGIA
A gama de etiologias da FOO evoluiu com o tempo como resultado de mudanças
no espectro de doenças que causam FOO, do amplo uso de antibióticos e
especialmente da disponibilidade de novas técnicas diagnósticas. A proporção de
casos causados por abscessos e tumores intra-abdominais, por exemplo,
diminuiu devido à detecção mais precoce por tomografia computadorizada (TC)
e ultrassonografia. Além disso, a endocardite infecciosa é uma causa menos
frequente devido a melhorias nas técnicas de hemoculturas e ecocardiografia.
Por outro lado, alguns diagnósticos, como infecção aguda por HIV, não eram
conhecidos há algumas décadas.
A Tabela 17-1 resume os achados de grandes estudos sobre FOO
conduzidos nos últimos 25 anos. Em geral, as infecções são responsáveis
por cerca de 20% dos casos de FOO em países ocidentais; a seguir, em
frequência, estão as doenças inflamatórias não infecciosas (DINIs, incluindo
“doenças do tecido conectivo ou doenças reumáticas”, síndromes vasculíticas,
distúrbios granulomatosos e síndromes autoinflamatórias) e as neoplasias. Fora
do Ocidente, as infecções são uma causa muito mais comum de FOO (43 vs.
17%), enquanto a proporção de casos causados por DINIs e neoplasias são
semelhantes. Até 50% dos casos causados por infecções em pacientes com FOO
fora das nações ocidentais se devem à tuberculose, a qual é uma causa menos
comum nos Estados Unidos e Europa Ocidental. É provável que o número de
pacientes com FOO diagnosticados com DINIs não diminua no futuro próximo,
pois a febre pode preceder as manifestações mais típicas ou as evidências
sorológicas em meses nessas doenças. Além disso, muitas DINIs podem ser
diagnosticadas apenas após uma observação prolongada e a exclusão de outras
doenças.

TABELA 17-1 ■ Etiologia da febre de origem obscura (FOO) nos últimos 25 anos: achados de grandes
estudos de FOO
Primeiro autor (país, N° de pacientes Porcentagem de casos conforme a causa indicada
ano de publicação) (período de
recrutamento) Infecções Doenças Neoplasias Outras Desconhecidas
inflamatórias não
infecciosas

Países ocidentais
De Kleijn et al. 167 26 24 13 8 30
(Países Baixos, 1997) (1992-1994)
Vanderschueren et al. 185 11 18 10 8 53
(Bélgica, 2003) (1990-1999)
Hot et al. 280 11 20 27 9 33
(França, 2005) (1995-2005)
Zenone et al. 144 23 26 10 15 26
(França, 2006) (1999-2005)
Bleeker-Rovers 73 16 22 7 4 51
(Países Baixos, 2007) (2003-2005)
Mansueto et al. 91 32 12 14 10 32
(Itália, 2008) (1991-2002)
Vanderschueren et al. 114 15 22 13 10 40
(Bélgica, 2009) (2003-2007)
Efstathiou et al. 112 30 33 11 5 21
(Grécia, 2010) (2001-2007)
Pedersen et al. 52 19 33 8 0 40
(Dinamarca, 2012) (2005-2010)
Robine et al. 103 12 30 3 5 51
(França, 2014) (2002-2012)
Vanderschueren et al. 436 17 24 11 10 39
(Bélgica, 2014) (2000-2010)
Total 1.757 19 24 12 8 38
Outras localizações geográficas
Tabak et al. 117 34 29 19 4 14
(Turquia, 2003) (1984-2001)
Saltoglu et al. 87 59 18 14 2 7
(Turquia, 2004) (1994-2002)
Ergonul et al. 80 52 16 18 3 11
(Turquia, 2005) (1993-1999)
Brahim et al. 97 36 8 16 5 35
(Turquia, 2005) (1990-2005)
Chin et al. 94 57 7 9 9 18
(Taiwan, 2006) (2001-2002)
Colpan et al. 71 45 27 14 6 9
(Turquia, 2007) (2001-2004)
Hu et al. 142 36 32 13 5 14
(China, 2008) (2002-2003)
Kucukardali et al. 154 34 31 14 5 16
(Turquia, 2008) (2003-2004)
Ali-Eldin et al. 93 42 15 30 0 12
(Egito, 2011) (2009-2010)
Bandyopadhya et al. 164 55 11 22 0 12
(Índia, 2011) (2008-2009)
Mete et al. 100 26 38 14 2 20
(Turquia, 2012) (2001-2009)
Ma et al. 397 49 18 16 7 10
(China, 2012) (2000-2009)
Ryuko et al. 174 41 27 7 6 19
(Japão, 2013) (2004-2010)
Mahmood et al. 205 49 20 13 2 17
(Paquistão, 2013) (2006-2011)
Alvi et al. 106 44 18 12 10 15
(Irã, 2013) (2007-2011)
Naito et al. 121 23 31 11 12 23
(Japão, 2013) (2011)
Yamanouchi et al. 256 28 18 10 15 29
(Japão, 2014) (1994-2012)
Moawad et al. 98 33 14 18 18 17
(Turquia, 2014) (1995-2008)
Yu et al. 107 30 17 18 14 22
(China, 2014) (2010-2011)
Mir et al. 91 44 12 12 4 27
(Índia, 2014) (2010-2012)
Kabapy et al. 979 79 17 1 1 2
(Egito, 2015) (2009-2010)
Montasser et al. 217 66 7 7 12 8
(Egito, 2015) (desconhecido)
Popovsa-Jovicic et al. 74 38 26 15 18 4
(Sérvia, 2016)
Total 4.024 43 20 14 7 16

No Ocidente, a proporção de pacientes que permanecem sem diagnóstico é


maior que nas populações não ocidentais e isto tem aumentado em relação aos
números relatados nos estudos anteriores à década de 1990. Um fator importante
que contribui para a taxa aparentemente alta de falhas no diagnóstico é que o
diagnóstico está sendo mais frequentemente estabelecido antes do período de 3
semanas, pois os pacientes com febre tendem a buscar atenção médica mais cedo
e há ampla disponibilidade de técnicas diagnósticas melhores, como TC e
ressonância magnética (RM); assim, apenas os casos de diagnóstico mais difícil
continuam a preencher os critérios para FOO. Além disso, a maioria dos
pacientes com FOO e sem diagnóstico atualmente evoluem bem e, assim, pode
ser usada uma abordagem diagnóstica menos agressiva nos pacientes
clinicamente estáveis após as doenças com consequências terapêuticas ou
prognósticas imediatas terem sido razoavelmente descartadas. Esse fator pode
ser especialmente relevante para pacientes com febre recorrente e assintomáticos
entre os episódios febris. Em pacientes com febre recorrente (definida como
episódios repetidos de febre intercalados com períodos sem febre de pelo menos
2 semanas e aparente remissão da doença subjacente), a chance de se obter um
diagnóstico etiológico é < 50%.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
O diagnóstico diferencial da FOO é extenso. É importante lembrar que a FOO é
com muito mais frequência causada por uma apresentação atípica de uma doença
comum do que por uma doença muito rara. A Tabela 17-2 apresenta um visão
geral das possíveis causas de FOO. Uma apresentação atípica de endocardite,
diverticulite, osteomielite vertebral e tuberculose extrapulmonar são os
diagnósticos de doenças infecciosas mais comuns. Febre Q e doença de Whipple
são muito raras, mas devem sempre ser lembradas como causa de FOO, pois os
sintomas podem ser inespecíficos. Os exames sorológicos para a febre Q, que
resulta da exposição a animais ou produtos animais, devem ser realizados
quando o paciente vive em áreas rurais ou tem história de doença cardíaca
valvar, aneurisma aórtico ou prótese vascular. Em pacientes com sintomas
inexplicados localizados no sistema nervoso central (SNC), trato gastrintestinal
ou articulações, o teste de reação em cadeia da polimerase (PCR) para
Tropheryma whipplei deve ser realizado. A viagem ou residência prévia em
países tropicais ou do Sudoeste Norte-Americano deve levantar a suspeita de
doenças infecciosas como malária, leishmaniose, histoplasmose ou
coccidioidomicose. A febre com sinais de endocardite e hemoculturas negativas
representa um problema especial. A endocardite com culturas negativas pode ser
causada por bactérias de difícil cultivo, como bactérias nutricionalmente
variantes, microrganismos HACEK (incluindo Haemophilus parainfluenzae, H.
paraphrophilus, Aggregatibacter actinomycetemcomitans, A. aphrophilus,
Cardiobacterium hominis, C. valvarum, Eikenella corrodens e Kingella kingae;
discutidos adiante), Coxiella burnetii, T. whipplei e espécies de Bartonella. A
endocardite marântica é uma doença trombótica estéril que ocorre como
fenômeno paraneoplásico, especialmente com adenocarcinomas. A endocardite
estéril também é vista no contexto de lúpus eritematoso sistêmico e síndrome
antifosfolipídeos.

TABELA 17-2 ■ Todas as causas relatadas de febre de origem obscura (FOO)a


Infecções
Bacterianas Abscesso abdominal, anexite, granuloma apical, apendicite, colangite, colecistite, diverticulite, endocardite, endometrite,
inespecíficas abscesso epidural, cateter vascular infectado, prótese articular infectada, prótese vascular infectada, artrite infecciosa,
mionecrose infecciosa, abscesso intracraniano, abscesso hepático, abscesso pulmonar, malacoplasia, mastoidite,
mediastinite, aneurisma micótico, osteomielite, doença inflamatória pélvica, prostatite, pielonefrite, pileflebite, abscesso
renal, flebite séptica, sinusite, espondilodiscite, infecção xantogranulomatosa do trato urinário
Bacterianas Actinomicose, infecção micobacteriana atípica, bartonelose, brucelose, infecção por Campylobacter, infecção por
específicas Chlamydia pneumoniae, meningococemia crônica, erliquiose, gonococemia, legionelose, leptospirose, listeriose, febre
recorrente transmitida por piolho (Borrelia recurrentis), doença de Lyme, melioidose (Pseudomonas pseudomallei),
infecção por Mycoplasma, nocardiose, psitacose, febre Q (Coxiella burnetii), riquetsiose, infecção por Spirillum minor,
infecção por Streptobacillus moniliformis, sífilis, febre recorrente transmitida por carrapato (Borrelia duttonii),
tuberculose, tularemia, febre tifoide e outras salmoneloses, doença de Whipple (Tropheryma whipplei), yersiniose
Fúngicas Aspergilose, blastomicose, candidíase, coccidioidomicose, criptococose, histoplasmose, infecção por Malassezia furfur,
paracoccidioidomicose, pneumonia por Pneumocystis jirovecii, esporotricose, zigomicose
Parasitárias Amebíase, babesiose, equinococose, fasciolíase, malária, esquistossomose, estrongiloidíase, toxocaríase, toxoplasmose,
triquinelose, tripanossomíase, leishmaniose visceral
Virais Febre dos carrapatos do Colorado, infecção por coxsackievírus, infecção por citomegalovírus, dengue, infecção pelo
vírus Epstein-Barr, infecção por hantavírus, hepatites (A, B, C, D, E), herpes simples, infecção por HIV, infecção pelo
herpes-vírus humano 6, infecção por parvovírus, infecção pelo vírus do Nilo Ocidental
Doenças inflamatórias não infecciosas
Doenças Espondilite anquilosante, síndrome antifosfolipídeo, anemia hemolítica autoimune, hepatite autoimune, doença de
sistêmicas Behçet, crioglobulinemia, dermatomiosite, síndrome de Felty, gota, doença mista do tecido conectivo, polimiosite,
reumáticas e pseudogota, artrite reativa, policondrite recidivante, febre reumática, artrite reumatoide, síndrome de Sjögren, lúpus
autoimunes eritematoso sistêmico, síndrome de Vogt-Koyanagi-Harada
Vasculite Vasculite alérgica, granulomatose eosinofílica com poliangeíte, vasculite de células gigantes/polimialgia reumática,
granulomatose com poliangeíte, vasculite de hipersensibilidade, doença de Kawasaki, poliarterite nodosa, arterite de
Takayasu, vasculite urticariforme
Doenças Hepatite granulomatosa idiopática, sarcoidose
granulomatosas
Síndromes Doença de Still do adulto, síndrome de Blau, CAPSb (síndrome periódica associada à criopirina), doença de Crohn,
autoinflamatórias DIRA (deficiência do antagonista do receptor de IL-1), febre familiar do Mediterrâneo, síndrome hemofagocítica,
síndrome de hiper-IgD (HIDS, também conhecida como deficiência de mevalonato-cinase), artrite idiopática juvenil,
síndrome PAPA (artrite piogênica estéril, pioderma gangrenoso e acne), síndrome PFAPA (febre periódica, estomatite
aftosa, faringite, adenite), pericardite idiopática recorrente, SAPHO (sinovite, acne, pustulose, hiperostose, osteomielite),
síndrome de Schnitzler, TRAPS (síndrome periódica associada ao receptor do fator de necrose tumoral)
Neoplasias
Cânceres Amiloidose, linfoma angioimunoblástico, doença de Castleman, doença de Hodgkin, síndrome hipereosinofílica,
hematológicos leucemia, granulomatose linfomatoide, histiocitose maligna, mieloma múltiplo, síndrome mielodisplásica, mielofibrose,
linfoma não Hodgkin, plasmacitoma, mastocitose sistêmica, crise vaso-oclusiva na anemia falciforme
Tumores sólidos A maioria dos tumores sólidos e metástases pode causar febre. Aqueles que mais comumente causam FOO são os
carcinomas de mama, cólon, hepatocelular, pulmão, pâncreas e de células renais
Tumores Angiomiolipoma, hemangioma cavernoso do fígado, craniofaringioma, necrose de tumor dermoide na síndrome de
benignos Gardner
Outras causas
ADEM (encefalomielite disseminada aguda), insuficiência suprarrenal, aneurismas, ducto torácico anômalo, dissecção
aórtica, fístula aortoentérica, meningite asséptica (síndrome de Mollaret), mixoma atrial, ingestão de levedura de cerveja,
doença de Caroli, embolia de colesterol, cirrose, estado de mal epiléptico parcial complexo, neutropenia cíclica, febre
medicamentosa, doença de Erdheim-Chester, alveolite alérgica extrínseca, doença de Fabry, doença factícia, pulmão do
engolidor de fogo, febre fraudulenta, doença de Gaucher, síndrome de Hamman-Rich (pneumonia intersticial aguda),
encefalopatia de Hashimoto, hematoma, pneumonite de hipersensibilidade, hipertrigliceridemia, hipopituitarismo
hipotalâmico, hidrocefalia de pressão normal idiopática, pseudotumor inflamatório, doença de Kikuchi, dermatose linear
por IgA, fibromatose mesentérica, febre dos fumos metálicos, alergia à proteína do leite, distrofia miotônica, osteíte não
bacteriana, síndrome da poeira orgânica tóxica, paniculite, POEMS (polineuropatia, organomegalia, endocrinopatia,
proteína M [monoclonal], alterações cutâneas), febre dos fumos de polímeros, síndrome pós-lesão cardíaca, cirrose biliar
primária, hiperparatireoidismo primário, embolia pulmonar, pioderma gangrenoso, fibrose retroperitoneal, doença de
Rosai-Dorfman, mesenterite esclerosante, embolização de silicone, tireoidite subaguda (de De Quervain), síndrome de
Sweet (dermatose neutrofílica febril aguda), trombose, síndrome de nefrite tubulointersticial com uveíte (TINU), colite
ulcerativa
Distúrbios da termorregulação
Central Tumor cerebral, acidente vascular cerebral, encefalite, disfunção hipotalâmica
Periférico Displasia ectodérmica anidrótica, hipertermia induzida por exercícios, hipertireoidismo, feocromocitoma
aEsta tabela inclui todas as causas de FOO descritas na literatura. bCAPS inclui a síndrome neurológica cutânea e articular infantil crônica

(CINCA, também conhecida como doença inflamatória multissistêmica de início neonatal ou NOMID), a síndrome autoinflamatória fria
familiar (FCAS) e a síndrome de Muckle-Wells.

Entre as DINIs, vasculite de grandes vasos, polimialgia reumática,


sarcoidose, febre familiar do Mediterrâneo e doença de Still do adulto são
diagnósticos comuns em pacientes com FOO. As síndromes autoinflamatórias
hereditárias são muito raras e geralmente surgem em pacientes jovens. A
síndrome de Schnitzler, que pode aparecer em qualquer idade, é incomum, mas
pode muitas vezes ser facilmente diagnosticada em um paciente com FOO que
apresenta urticária, dor óssea e gamopatia monoclonal.
Embora a maioria dos tumores possa apresentar febre, o linfoma maligno é
de longe o diagnóstico mais comum de FOO entre as neoplasias. Algumas vezes,
a febre até precede o surgimento de linfadenopatia detectável ao exame físico.
Além da febre induzida por fármacos e da hipertermia induzida por
exercícios, nenhuma das causas variadas de febre é encontrada muito
frequentemente em pacientes com FOO. Praticamente todos os fármacos podem
causar febre, mesmo após um longo prazo de uso. A febre induzida por
fármacos, incluindo DRESS (reação medicamentosa com eosinofilia e sintomas
sistêmicos; Fig. A1-48), costuma estar acompanhada por eosinofilia e também
por linfadenopatia, que pode ser extensa. As causas mais comuns de febre
induzida por fármacos são alopurinol, carbamazepina, lamotrigina, fenitoína,
sulfassalazina, furosemida, antimicrobianos (especialmente sulfonamidas,
minociclina, vancomicina, antibióticos β-lactâmicos e isoniazida), alguns
fármacos cardiovasculares (p. ex., quinidina) e alguns fármacos antirretrovirais
(p. ex., nevirapina). A hipertermia induzida pelo exercício (Caps. 15 e 455) se
caracteriza por uma temperatura corporal elevada associada a exercício
moderado a intenso, com duração de meia hora a várias horas, sem elevação nos
níveis de proteína C-reativa ou VHS; normalmente, esses pacientes suam
durante a elevação da temperatura. A febre factícia (febre artificialmente
induzida pelo paciente – por exemplo, por injeção IV de água contaminada) deve
ser considerada em todos os pacientes, mas é mais comum em mulheres jovens
que trabalham na área da saúde. Na febre fraudulenta, o paciente tem
temperatura normal, mas manipula o termômetro. Medidas simultâneas em
diferentes locais do corpo (reto, orelha, boca) devem rapidamente identificar
esse diagnóstico. Outra pista para a febre fraudulenta é um dissociação entre a
frequência de pulso e a temperatura.
Estudos prévios sobre FOO mostraram que a obtenção de um diagnóstico é
mais provável em idosos em comparação com pacientes mais jovens. Em muitos
casos, a FOO em idosos resulta da manifestação atípica de uma doença comum,
entre elas a arterite de células gigantes e a polimialgia reumática estando mais
frequentemente envolvidas. A tuberculose é a doença infecciosa mais comum
associada a FOO em idosos, ocorrendo muito mais frequentemente do que nos
pacientes mais jovens. Como muitas dessas doenças são tratáveis, vale a pena
buscar a causa da febre em pacientes idosos.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Febre de origem obscura
EXAMES DIAGNÓSTICOS DE PRIMEIRO ESTÁGIO
A Figura 17-1 mostra uma abordagem estruturada para pacientes com FOO.
A etapa mais importante na avaliação diagnóstica é a busca por pistas
potencialmente diagnósticas (PPDs) por meio de história e exame físico
completos e repetidos e de uma lista de exames obrigatórios (listados
anteriormente e na figura). As PPDs são definidas como todos os sinais,
sintomas e anormalidades localizadoras que podem indicar um diagnóstico.
Embora as PPDs possam levar a enganos, apenas com a sua ajuda é que uma
lista concisa de diagnósticos prováveis pode ser feita. A história deve incluir
informações sobre o padrão da febre (contínua ou recorrente) e sua duração,
história médica pregressa, uso atual e recente de fármacos, história familiar,
história sexual, país de origem, viagens recentes e remotas, exposição a
ambientes incomuns associados a viagens ou hobby e contato com animais.
Deve ser realizado um exame físico completo, com atenção especial aos
olhos, linfonodos, artérias temporais, fígado, baço, locais de cirurgias
prévias, toda a superfície da pele e membranas mucosas. Antes de novos
exames diagnósticos serem feitos, deve-se suspender o tratamento com
antibióticos e glicocorticoides, que podem mascarar muitas doenças. Por
exemplo, culturas de sangue e outros materiais não são confiáveis quando as
amostras são obtidas durante tratamento com antibióticos, e o tamanho de
linfonodos aumentados costuma diminuir durante o tratamento com
glicocorticoides, independentemente da causa da linfadenopatia. Apesar da
alta porcentagem de ultrassonografias falso-positivas e da relativa baixa
sensibilidade das radiografias de tórax, a realização desses exames simples e
baratos permanece obrigatória em todos os pacientes com FOO para separar
os casos que são causados por doenças facilmente diagnosticadas daqueles
mais difíceis. A ultrassonografia abdominal tem preferência sobre a TC
abdominal como exame obrigatório devido ao custo relativamente baixo, à
ausência de radiação e à ausência de efeitos colaterais.
FIGURA 17-1 Abordagem estruturada para pacientes com febre de origem obscura (FOO). ALT,
alanina-aminotransferase; AST, aspartato-aminotransferase; VHS, velocidade de hemossedimentação;
FDG-PET/TC, tomografia por emissão de pósitrons com 18F-fluorodesoxiglicose combinada com
tomografia computadorizada de baixa dose; IGRA, ensaio de liberação de gamainterferona; LDH,
lactato-desidrogenase; PPDs, pistas potencialmente diagnósticas (todos os sinais, sintomas e
anormalidades localizadores que podem indicar um diagnóstico); AINEs, anti-inflamatórios não
esteroides.

Apenas raramente os exames bioquímicos (além dos testes obrigatórios


necessários para classificar a febre de um paciente como FOO) levam
diretamente a um diagnóstico definitivo na ausência de PPDs. A chance de se
fazer um diagnóstico com sorologia imunológica além daquelas incluídas nos
testes obrigatórios é relativamente baixa. Esses testes têm mais chance de
gerar falso-positivos do que verdadeiro-positivos e têm pouca utilidade sem
PPDs que apontem para distúrbios imunológicos específicos. Considerando-
se a ausência de sintomas específicos em muitos pacientes e o custo
relativamente baixo do teste, a investigação de crioglobulinas parece ser útil
como rastreamento nos pacientes com FOO.
Múltiplas amostras de sangue devem ser cultivadas no laboratório por
tempo suficiente para permitir tempo de crescimento adequado para
quaisquer microrganismos fastidiosos, como os do grupo HACEK. É
indispensável informar o laboratório que o teste destina-se a detectar
microrganismos incomuns. Devem ser usados meios de cultura
especializados quando a história sugere microrganismos incomuns, como
Histoplasma ou Legionella. A realização de mais de três hemoculturas ou de
mais de uma urocultura é inútil em pacientes com FOO na ausência de IPDs
(p. ex., alto nível de suspeita clínica para endocardite). A repetição das
culturas de sangue e urina é útil apenas quando as amostras previamente
feitas tiverem sido coletadas durante tratamento com antibióticos ou dentro
de 1 semana após a sua suspensão. A FOO com cefaleia deve levar a um
exame microbiológico do líquido cerebrospinal (LCS) para microrganismos
incluindo o herpes-vírus simples (HSV; especialmente HSV-2), Cryptococcus
neoformans e Mycobacterium tuberculosis. Na tuberculose do SNC, o LCS
geralmente tem aumento de proteínas e redução de glicose, com pleocitose
mononuclear. Os níveis de proteína no LCS variam de 100 a 500 mg/dL na
maioria dos pacientes, a concentração de glicose no LCS é < 45 mg/dL em
80% dos casos e a contagem de células no LCS está entre 100 e 500 células/
μL.
A sorologia microbiológica não deve ser incluída na avaliação
diagnóstica em pacientes sem PPDs de infecções específicas. Um TCT é
incluído nas investigações obrigatórias, mas ele pode gerar resultados falso-
negativos em pacientes com tuberculose miliar, desnutrição ou
imunossupressão. Embora o IGRA seja menos influenciado por vacinação
prévia com o bacilo Calmette-Guérin ou por infecção por micobactérias não
tuberculosas, sua sensibilidade é semelhante àquela do TCT; um TCT
negativo ou um IGRA negativo não excluem um diagnóstico de tuberculose.
A tuberculose miliar é especialmente difícil de diagnosticar. A doença
granulomatosa em amostras de fígado ou medula óssea, por exemplo, deve
sempre levar à (re)consideração do diagnóstico. Se houver suspeita de
tuberculose miliar, biópsia hepática para pesquisa de bacilo álcool-ácido-
resistente (BAAR), cultura e PCR provavelmente ainda têm a maior chance
de confirmar o diagnóstico; biópsias de medula óssea, linfonodos ou outros
órgãos envolvidos também podem ser consideradas.
A chance de diagnóstico com ecocardiografia, radiografia de seios
paranasais, avaliação radiológica ou endoscópica do trato gastrintestinal e
broncoscopia é muito baixa na ausência de PPDs. Assim, esses exames não
devem ser usados como procedimentos de rastreamento.
Após a identificação de todas as PPDs descobertas na história, exame
físico e testes obrigatórios, uma lista limitada dos diagnósticos mais
prováveis deve ser feita. Como a maioria das investigações é útil apenas para
pacientes com PPDs para o diagnóstico pesquisado, procedimentos
diagnósticos adicionais devem ser limitados a investigações específicas que
visem confirmar ou excluir as doenças listadas. Na FOO, os indicadores
diagnósticos são numerosos e diversos, mas podem passar despercebidos ao
exame inicial, geralmente sendo detectados apenas com um exame muito
cuidadoso realizado subsequentemente. Na ausência de PPDs, a história e
exame físico devem ser repetidos regularmente. Uma das primeiras etapas
deve ser descartar a febre factícia ou fraudulenta, particularmente em
pacientes sem sinais de inflamação nos exames laboratoriais. Todos os
medicamentos, incluindo aqueles sem prescrição médica e os suplementos
nutricionais, devem ser suspensos precocemente na avaliação para a exclusão
de febre medicamentosa. Se a febre persistir além de 72 horas após a
suspensão do fármaco suspeito, é improvável que esse fármaco seja a causa.
Em pacientes sem PPDs ou apenas com PPDs duvidosas, o exame de fundo
de olho feito por oftalmologista pode ser útil nos estágios iniciais da
avaliação diagnóstica. Quando os exames diagnósticos da primeira etapa não
chegam a um diagnóstico, deve ser realizada uma cintilografia,
especialmente quando VHS e proteína C-reativa estiverem elevadas.
Febre recorrente Em pacientes com febre recorrente, a avaliação diagnóstica
deve consistir de anamnese abrangente, exame físico e testes obrigatórios. A
busca por PPDs deve ser direcionada para pistas de síndromes recorrentes
conhecidas (Tab. 17-3). Os pacientes devem ser solicitados a voltar durante
um episódio febril, de forma que história, exame físico e testes laboratoriais
possam ser repetidos durante uma fase sintomática. Testes diagnósticos
adicionais, como cintilografia (discutida adiante), devem ser realizados
apenas durante um episódio febril, pois as anormalidades podem estar
ausentes entre os episódios. Em pacientes com febre recorrente de duração >
2 anos, é muito improvável que a febre seja causada por infecção ou câncer.
Exames diagnósticos adicionais nessa direção devem ser considerados
apenas quando PPDs para infecções, síndromes de vasculite ou câncer
estiverem presentes ou quando a condição clínica do paciente estiver
deteriorando.

TABELA 17-3 ■ Todas as causas relatadas de febre recorrentea


Infecções
Bacterianas Granuloma apical, diverticulite, prostatite, bacteremia recorrente causada por neoplasia de cólon ou infecção focal
inespecíficas persistente, celulite recorrente, colangite ou colecistite recorrente, pneumonia recorrente, sinusite recorrente,
infecção recorrente do trato urinário
Bacterianas Bartonelose, brucelose, gonococemia crônica, meningococemia crônica, febre recorrente transmitida por piolhos
específicas (Borrelia recurrentis), melioidose (Pseudomonas pseudomallei), febre Q (Coxiella burnetii), salmonelose,
infecção por Spirillum minor, infecção por Streptobacillus moniliformis, sífilis, febre recorrente transmitida por
carrapatos (Borrelia duttonii), tularemia, doença de Whipple (Tropheryma whipplei), yersiniose
Fúngicas Coccidioidomicose, histoplasmose, paracoccidioidomicose
Parasitárias Babesiose, malária, toxoplasmose, tripanossomíase, leishmaniose visceral
Virais Infecção por citomegalovírus, infecção por vírus Epstein-Barr, herpes simples
Doenças inflamatórias não infecciosas
Doenças Espondilite anquilosante, síndrome antifosfolipídeo, anemia hemolítica autoimune, hepatite autoimune, doença de
sistêmicas Behçet, crioglobulinemia, gota, polimiosite, pseudogota, artrite reativa, policondrite recidivante, lúpus eritematoso
reumáticas e sistêmico
autoimunes
Vasculite Síndrome de Churg-Strauss, vasculite de células gigantes/polimialgia reumática, vasculite de hipersensibilidade,
poliarterite nodosa, vasculite urticariforme
Doenças Hepatite granulomatosa idiopática, sarcoidose
granulomatosas
Síndrome Doença de Still do adulto, síndrome de Blau, CANDLE (dermatose neutrofílica atípica crônica com lipodistrofia e
autoinflamatórias temperatura elevada), CAPSb (síndromes periódicas associadas à criopirina), CRMO (osteomielite multifocal
recorrente crônica), doença de Crohn, DIRA (deficiência do antagonista do receptor de interleucina 1), febre
familiar do Mediterrâneo, síndrome hemofagocítica, síndrome de hiper-IgD (HIDS, também conhecida como
deficiência de mevalonato-cinase), artrite idiopática juvenil, mutações ativadoras de NLRC4, síndrome PAPA
(artrite estéril piogênica, pioderma gangrenoso e acne), síndrome PFAPA (febre periódica, estomatite aftosa,
faringite, adenite), pericardite idiopática recorrente, SAPHO (sinovite, acne, pustulose, hiperostose, osteomielite),
SAVI (vasculopatia de início infantil associada a genes estimuladores da interferona [STING]), síndrome de
Schnitzler, TRAPS (síndrome periódica associada ao receptor do fator de necrose tumoral)
Neoplasias
Linfoma angioimunoblástico, doença de Castleman, carcinoma de cólon, craniofaringioma, doença de Hodgkin,
histiocitose maligna, mesotelioma, linfoma não Hodgkin
Outras causas
Insuficiência suprarrenal, fístula aortoentérica, meningite asséptica (síndrome de Mollaret), mixoma atrial,
ingestão de levedura de cerveja, embolia de colesterol, neutropenia cíclica, febre medicamentosa, alveolite
alérgica extrínseca, doença de Fabry, doença factícia, febre fraudulenta, doença de Gaucher, pneumonite de
hipersensibilidade, hipertrigliceridemia, hipopituitarismo hipotalâmico, pseudotumor inflamatório, febre dos
fumos metálicos, alergia à proteína do leite, febre dos fumos polímeros, embolia pulmonar, mesenterite
esclerosante
Distúrbios da termorregulação
Central Disfunção hipotalâmica
Periférico Displasia ectodérmica anidrótica, hipertermia induzida pelo exercício, feocromocitoma
aEsta tabela inclui todas as causas de febre recorrente descritas na literatura. bCAPS inclui a síndrome neurológica cutânea e articular

infantil crônica (CINCA, também conhecida como doença inflamatória multissistêmica de início neonatal ou NOMID), a síndrome
autoinflamatória fria familiar (FCAS) e a síndrome de Muckle-Wells.

Cintilografia A cintilografia é um método não invasivo que permite delinear


focos em todas as regiões do corpo com base nas alterações funcionais de
tecidos. Esse procedimento é importante para o diagnóstico de pacientes com
FOO na prática clínica. Os métodos convencionais de cintilografia usados na
prática clínica são a cintilografia com citrato de 67Ga e a cintilografia com
leucócitos marcados com In111 ou 99mTc. Os processos infecciosos ou
inflamatórios focais podem também ser detectados por diversas técnicas
radiológicas, como TC, RM e ultrassonografia. Porém, devido à ausência de
alterações patológicas substanciais na fase inicial, os focos infecciosos e
inflamatórios não podem ser detectados nessa fase. Além disso, a
diferenciação entre lesões infecciosas e inflamatórias ativas e alterações
residuais por processos curados ou cirurgia permanece sendo fundamental.
Por fim, a TC e a RM rotineiramente fornecem informações apenas em uma
região do corpo, enquanto a cintilografia permite a obtenção de imagens do
corpo todo.

Tomografia por emissão de pósitrons com fluorodesoxiglicose A tomografia


por emissão de pósitrons (PET) com 18F-fluorodesoxiglicose (FDG) tem se
tornado um procedimento de imagem estabelecido na FOO. O FDG se
acumula em tecidos com alta taxa de glicólise, como ocorre não apenas em
células malignas, mas também em leucócitos ativados e, assim, permite a
visualização de processos inflamatórios agudos e crônicos. A captação
normal pode obscurecer focos patológicos no cérebro, coração, intestino, rins
e bexiga. A captação de FDG no coração, que ocultaria uma endocardite,
pode ser evitada pelo consumo de uma dieta pobre em carboidratos antes da
investigação com PET. Nos pacientes com febre, a captação pela medula
óssea está frequentemente aumentada de maneira inespecífica devido à
ativação de citocinas, o que regula para mais os transportadores de glicose
nas células da medula óssea. Em comparação com a cintilografia
convencional, a FDG-PET/TC tem a vantagem de melhor resolução, maior
sensibilidade em infecções crônicas de baixo grau e maior grau de acurácia
no esqueleto central. Além disso, a captação vascular de FDG está
aumentada em pacientes com vasculite (Fig. 17-2). O mecanismo
responsável pela captação de FDG não permite a diferenciação entre
infecção, inflamação estéril e câncer. Porém, como todos esses distúrbios são
causas de FOO, a FDG-PET/TC pode ser usada para guiar exames adicionais
(p. ex., biópsias dirigidas) que podem levar ao diagnóstico final.

FIGURA 17-2 FDG-PET/TC em um paciente com febre de origem obscura (FOO). Esta mulher de
72 anos apresentava febre baixa e fadiga intensa de quase 3 meses de duração. Foi obtida uma
anamnese extensa, mas a paciente não tinha queixas específicas e não tinha viajado recentemente. A
história prévia nada tinha de marcante, e ela não usava medicamentos. O exame físico, incluindo a
palpação das artérias temporais, tinha resultados completamente normais. Os exames laboratoriais
mostravam anemia normocítica, nível de proteína-C-reativa de 43 mg/L e velocidade de
hemossedimentação de 87 mm/h, além de hipoalbuminemia leve. Os resultados de outros exames
obrigatórios eram todos normais. Como não havia pistas diagnósticas potenciais, foi realizada a FDG-
PET/TC. Este exame mostrou aumento da captação de FDG em todos as grandes vasos (carótidas,
jugulares e artérias subclávias; aorta torácica e abdominal; artérias ilíacas, femorais epoplíteas) e em
tecidos moles ao redor dos ombros, quadris e joelhos – achados compatíveis com vasculite de grandes
vasos e polimialgia reumática. Dentro de 1 semana após o início do tratamento com prednisona (60 mg
uma vez ao dia), a paciente tinha se recuperado completamente. Após 1 mês, a dose de prednisona foi
lentamente reduzida.
Nos últimos anos, muitos estudos de coorte e várias metanálises se
concentraram no rendimento diagnóstico da PET e da PET/TC na FOO.
Embora esses estudos sejam altamente variáveis em termos da seleção de
pacientes e da seleção de um padrão-ouro para o ponto de referência, todas as
metanálises relatam um rendimento diagnóstico alto para a PET e a PET/TC
na avaliação de pacientes com FOO, com valores agrupados de sensibilidade
e especificidade de cerca de 85% e cerca de 50%, respectivamente, e um
rendimento diagnóstico total de cerca de 50% para a PET/TC e de cerca de
40% para a PET. Em um estudo, a FDG-PET nunca foi útil no diagnóstico de
FOO em pacientes com nível normal de proteína C-reativa e com VHS
normal. Em uma metanálise sobre desempenho, rendimento diagnóstico e
decisões de manejo, o impacto dos exames de imagem nuclear em pacientes
com FOO, o rendimento diagnóstico da cintilografia com gálio variou entre
21 e 54%, e, na média, a localização de uma fonte para a febre foi
corretamente encontrada em cerca de 33% dos pacientes. Além disso, na
cintilografia com gálio, os resultados demoram dias para ficarem disponíveis,
enquanto os resultados da FDG-PET/TC ficam prontos em questão de horas.
Nessa metanálise, as estimativas do rendimento diagnóstico da cintilografia
com leucócitos marcados variou entre 8 e 31%, e a causa geral da FOO foi
corretamente identificada com base nos resultados do exame em apenas 20%
dos pacientes. Comparações indiretas do desempenho do teste sugeriram que
a FDG-PET/TC era melhor que a FDG-PET isoladamente, a cintilografia
com gálio e a cintilografia com leucócitos marcados. Da mesma forma,
comparações indiretas de rendimento diagnóstico sugeriram que a FDG-
PET/TC tinha mais chance de identificar corretamente a causa da FOO que
outros exames.
Embora as técnicas de cintilografia não forneçam diretamente um
diagnóstico definitivo, elas costumam identificar localizações anatômicas de
um determinado processo metabólico em andamento e, com a ajuda de outras
técnicas, como biópsia e cultura, facilitam o diagnóstico e o tratamento. A
captação patológica de FDG é rapidamente erradicada pelo tratamento com
glicocorticoides em muitas doenças, incluindo vasculite e linfoma; assim, o
uso de glicocorticoides deve ser suspenso ou postergado até depois da
realização da FDG-PET/TC. Os resultados relatados na literatura e as
vantagens oferecidas pela FDG-PET/TC indicam que as técnicas
cintilográficas convencionais devem ser substituídas pela FDG-PET/TC na
investigação de pacientes com FOO em instituições onde essa técnica está
disponível. A FDG-PET/TC é um procedimento relativamente caro cuja
disponibilidade é ainda limitada em comparação com aquela da TC e da
cintilografia convencional. Contudo, a FDG-PET/TC pode ser custo-efetiva
na avaliação diagnóstica de FOO se for usada em uma etapa inicial, ajudando
a estabelecer um diagnóstico precoce, reduzindo os dias de hospitalização
para fins de diagnóstico e evitando testes desnecessários e inúteis.

EXAMES DIAGNÓSTICOS EM ESTÁGIOS POSTERIORES


Em alguns casos, os testes mais invasivos são apropriados. As anormalidades
encontradas em técnicas cintilográficas geralmente devem ser confirmadas
por patologia e/ou cultura de amostras de biópsia. Se for encontrada
linfadenopatia, há necessidade de biópsia de linfonodo, mesmo quando os
linfonodos afetados são difíceis de se alcançar ou quando biópsias anteriores
foram inconclusivas. No caso de lesões de pele, a biópsia de pele deve ser
realizada. Em um estudo, a excisão pulmonar em cunha, o exame histológico
de uma tonsila excisada e a biópsia de peritônio foram realizados à luz de
PPDs ou de achados anormais na FDG-PET e confirmaram o diagnóstico.
Se nenhum diagnóstico for alcançado apesar de investigações
histológicas e culturas obtidas a partir de achados de cintilografia e PPDs,
devem ser considerados os exames diagnósticos de rastreamento de segundo
estágio (Fig. 17-1). Em três estudos, a utilidade diagnóstica do rastreamento
com TC de tórax e abdome em pacientes com FOO foi cerca de 20%. A
especificidade da TC de tórax foi aproximadamente 80%, mas aquela da TC
de abdome variou entre 63 e 80%. Apesar da especificidade relativamente
limitada da TC de abdome e do valor adicional provavelmente limitado da
TC de tórax após uma FDG-PET/TC normal, a TC de tórax e abdome pode
ser usada como rastreamento em estágios mais avançados do protocolo de
diagnóstico devido à sua natureza não invasiva e sua alta sensibilidade. A
aspiração de medula óssea raramente é útil na ausência de PPDs de distúrbios
da medula óssea. Com a adição da FDG-PET/TC, a qual é altamente sensível
para detectar linfoma, carcinoma e osteomielite, o valor da biópsia de medula
óssea como procedimento de rastreamento foi provavelmente ainda mais
reduzido. Vários estudos mostraram uma alta prevalência de arterite de
células gigantes entre pacientes com FOO, com taxas de até 17% em
pacientes idosos. A arterite de células gigantes costuma envolver grandes
artérias e, na maioria dos casos, pode ser diagnosticada pela FDG-PET/TC.
Porém, a biópsia de artéria temporal ainda é recomendada para pacientes ≥
55 anos de idade em um estágio mais tardio do protocolo diagnóstico: a
FDG-PET/TC não será útil na vasculite limitada às artérias temporais, pois
esses vasos têm calibre pequeno e há altos níveis de captação da FDG pelo
cérebro. No passado, biópsias hepáticas costumavam ser realizadas como
procedimento de rastreamento em pacientes com FOO. Em dois estudos
recentes, a biópsia hepática como parte do estágio posterior de um protocolo
de rastreamento diagnóstico foi útil apenas em um paciente. Além disso,
exames hepáticos anormais não são preditivos de uma biópsia hepática
diagnóstica na FOO. A biópsia hepática é um procedimento invasivo que tem
a possibilidade de complicações e até morte. Assim, ela não deve ser usada
apenas com propósito de rastreamento em pacientes com FOO, exceto
naqueles com PPDs de doença hepática ou tuberculose miliar.
Em pacientes com febre inexplicada após todos os procedimentos
descritos anteriormente, a última etapa na avaliação diagnóstica – com
utilidade diagnóstica apenas marginal – tem um custo extraordinariamente
alto em termos de gastos e desconforto para o paciente. A repetição de uma
anamnese completa e do exame físico e a revisão dos resultados laboratoriais
e exames de imagem (incluindo aqueles de outros hospitais) está
recomendada. O atraso no diagnóstico costuma resultar de uma falha em
reconhecer PPDs a partir de informações disponíveis. Nesses pacientes com
FOO persistente, a espera por novas PPDs parece ser provavelmente melhor
do que a solicitação de novas investigações de rastreamento. Apenas quando
a condição de um paciente piora sem o aparecimento de novas PPDs é que
mais avaliações diagnósticas devem ser realizadas.

TRATAMENTO
Febre de origem obscura
Tentativas terapêuticas empíricas com antibióticos, glicocorticoides ou agentes antituberculosos devem ser
evitadas na FOO, exceto quando a condição clínica do paciente estiver rapidamente piorando após os
exames diagnósticos descritos anteriormente não fornecerem um diagnóstico definitivo.

ANTIBIÓTICOS E TERAPIA ANTITUBERCULOSE


A terapia antibiótica ou antituberculosa pode reduzir de maneira definitiva a capacidade de cultivo de
bactérias de crescimento lento ou de micobactérias. Porém, instabilidade hemodinâmica ou neutropenia são
boas indicações para a terapia antibiótica empírica. Se o TCT ou o IGRA forem positivos ou se houver
doença granulomatosa com anergia e a sarcoidose parecer improvável, deve-se iniciar um teste terapêutico
para tuberculose. Especialmente na tuberculose miliar, pode ser difícil obter um diagnóstico rápido. Se a
febre não responder após 6 semanas de tratamento empírico contra a tuberculose, deve-se considerar outro
diagnóstico.

COLCHICINA, ANTI-INFLAMATÓRIOS NÃO ESTEROIDES


E GLICOCORTICOIDES
A colchicina é altamente eficaz na prevenção das crises de febre familiar do Mediterrâneo, porém ela nem
sempre é efetiva quando a crise já iniciou. Quando há suspeita de febre familiar do Mediterrâneo, a resposta
à colchicina não é uma ferramenta diagnóstica completamente confiável na fase aguda, mas, com o
tratamento com colchicina, a maioria dos pacientes mostra melhora marcante na frequência e intensidade
dos episódios febris dentro de semanas a meses. Assim, a colchicina pode ser tentada em pacientes com
achados compatíveis com febre familiar do Mediterrâneo, especialmente quando esses pacientes se
originam de uma região de alta prevalência. Se a febre persistir e a fonte permanecer obscura após se
completar as investigações da fase posterior da investigação, o tratamento de suporte com anti-inflamatórios
não esteroides (AINEs) pode ser útil. A resposta da doença de Still do adulto aos AINEs é surpreendente em
alguns casos. Os efeitos dos glicocorticoides na arterite de células gigantes e na polimialgia reumática são
igualmente impressionantes. Porém, testes empíricos precoces com glicocorticoides reduzem as chances de
se alcançar um diagnóstico para o qual o tratamento mais específico e que algumas vezes salva a vida do
paciente possa ser apropriado, como no linfoma maligno. A capacidade dos AINEs e dos glicocorticoides de
mascarar a febre, ao mesmo tempo em que permite a disseminação da infecção ou linfoma, exige que o seu
uso seja evitado, a menos que a possibilidade de infecção tenha sido em grande parte excluída e a doença
inflamatória seja provavelmente debilitante ou ameaçadora.

ANACINRA
A interleucina (IL) 1 é uma citocina fundamental na inflamação local e sistêmica e na resposta febril. A
disponibilidade de agentes dirigidos especificamente para a IL-1 revelou um papel patológico para a
inflamação mediada por IL-1 em uma lista crescente de doenças. A anacinra, uma forma recombinante do
antagonista do receptor de IL-1 (IL-1Ra) de ocorrência natural, bloqueia a atividade de IL-1α e IL-1β. A
anacinra é extremamente efetiva no tratamento de muitas síndromes inflamatórias, como a febre familiar do
Mediterrâneo, síndrome periódica associada à criopirina, síndrome periódica associada ao receptor do fator
de necrose tumoral, deficiência de mevalonato-cinase (síndrome de hiper-IgD) e síndrome de Schnitzler. Há
muitos outros distúrbios inflamatórios crônicos em que a terapia anti-IL-1 é altamente efetiva. Um teste
terapêutico com anacinra pode ser considerado em pacientes cuja FOO não foi diagnosticada após os testes
diagnósticos de estágio posterior. Embora a maioria das condições inflamatórias crônicas sem uma base
conhecida possa ser controlada com glicocorticoides, a monoterapia com o bloqueio da IL-1 pode fornecer
um melhor controle sem os efeitos colaterais metabólicos, imunológicos e gastrintestinais da administração
de glicocorticoides.

PROGNÓSTICO
As taxas de mortalidade relacionadas à FOO têm diminuído de forma contínua
nas últimas décadas. A maioria dos casos de febre é causada por doenças
tratáveis, e o risco de morte relacionado à FOO depende, obviamente, da doença
subjacente. Em um estudo de nosso grupo (Tab. 17-1), nenhum dos 37 pacientes
com FOO sem um diagnóstico morreu durante o período de acompanhamento de
pelo menos 6 meses; 4 de 36 pacientes com diagnóstico morreram durante o
acompanhamento devido a infecções (n = 1) ou câncer (n = 3). Um grande
estudo sobre o prognóstico da FOO (Vanderschueren et al., 2014; Tab. 17-1)
incluiu 436 pacientes e documentou uma taxa de mortalidade de 10%, dos quais
68% se relacionava com a doença febril – câncer na maioria dos casos. Neste
estudo, apenas 4 de 168 pacientes nos quais nenhum diagnóstico pôde ser feito
morreram, todos durante sua primeira hospitalização. Em dois desses pacientes,
o diagnóstico (linfoma e pneumonia) foi feito durante a necrópsia. Outros
estudos também mostraram que os casos de câncer são responsáveis pela maior
parte das mortes relacionadas à FOO. O linfoma não Hodgkin tem uma taxa de
mortalidade desproporcionalmente elevada. Na FOO não relacionada a câncer,
as taxas de morte são muito baixas. O bom desfecho em pacientes sem
diagnóstico confirma que doenças ocultas potencialmente letais são muito
incomuns e que a terapia empírica com antibióticos, agentes antituberculosos ou
glicocorticoides é raras vezes necessária em pacientes estáveis. Nas regiões com
menos recursos, as doenças infecciosas ainda são uma causa importante de FOO
e os desfechos podem ser diferentes.

LEITURAS ADICIONAIS
Bleeker-Rovers CP et al: A prospective multicenter study on fever of unknown
origin: The yield of a structured diagnostic protocol. Medicine (Baltimore)
86:26, 2007.
Knockaert DC et al: Fever of unknown origin in adults: 40 years on. J Intern
Med 253:263, 2003.
Mulders-Manders C et al: Fever of unknown origin. Clin Med 15:280, 2015.
Takeuchi M et al: Nuclear imaging for classical fever of unknown origin: Meta-
analysis. J Nucl Med 57:1913, 2016.
Vanderschueren S et al: Mortality in patients presenting with fever of unknown
origin. Acta Clin Belg 69:12, 2014.
Seção 3 Disfunções do sistema nervoso
18
Síncope
Roy Freeman

A síncope é uma perda transitória e autolimitada da consciência decorrente de


comprometimento global agudo do fluxo sanguíneo cerebral. O início é rápido, a
duração, curta, e a recuperação, espontânea e completa. Outras causas de perda
transitória da consciência precisam ser distinguidas de síncope, incluindo
convulsões, isquemia vertebrobasilar, hipoxemia e hipoglicemia. Um pródromo
de síncope (pré-síncope) é comum, embora possa ocorrer perda da consciência
sem qualquer sintoma de alerta. Os sintomas de pré-síncope típicos incluem
tontura, vertigem, fraqueza, fadiga e distúrbios visuais e auditivos. As causas de
síncope podem ser divididas em três categorias gerais: (1) síncope neuromediada
(também conhecida como síncope reflexa ou vasovagal), (2) hipotensão
ortostática e (3) síncope cardíaca.
A síncope neuromediada compreende um grupo heterogêneo de distúrbios
funcionais que se caracterizam por uma alteração transitória nos reflexos
responsáveis pela manutenção da homeostase cardiovascular. Ocorre
vasodilatação episódica (ou perda do tônus vasoconstritor) e bradicardia em
combinações variáveis, resultando em falha temporária do controle da pressão
arterial. Em contrapartida, nos pacientes com hipotensão ortostática decorrente
de insuficiência autonômica, esses reflexos cardiovasculares homeostáticos estão
comprometidos de maneira crônica. A síncope cardíaca pode ser decorrente de
arritmias ou cardiopatias estruturais que causam diminuição do débito cardíaco.
Os aspectos clínicos, os mecanismos fisiopatológicos subjacentes, as
intervenções terapêuticas e os prognósticos diferem acentuadamente entre essas
três causas.

EPIDEMIOLOGIA E HISTÓRIA NATURAL


A síncope é um problema comum, responsável por aproximadamente 3% de
todos os comparecimentos de pessoas ao departamento de emergência e 1% de
todas as internações hospitalares. O custo anual das hospitalizações relacionadas
à síncope nos Estados Unidos é de cerca de 2,4 bilhões de dólares. A síncope
tem incidência cumulativa durante a vida de até 35% na população geral. A
incidência máxima em jovens ocorre entre 10 e 30 anos de idade, com pico
mediano em torno dos 15 anos. A síncope neuromediada é a etiologia da grande
maioria desses casos. Em adultos idosos, há aumento agudo na incidência de
síncope após os 70 anos.
Em estudos baseados na população, a síncope neuromediada é a causa mais
comum da síncope. A incidência é ligeiramente maior em mulheres do que em
homens. Em indivíduos jovens, costuma haver história familiar em parentes de
primeiro grau. A doença cardiovascular devido a doença estrutural ou arritmia é
a próxima causa mais comum na maioria das séries, particularmente em
departamentos de emergência e pacientes idosos. A prevalência de hipotensão
ortostática também aumenta com a idade por causa da redução na responsividade
do barorreflexo e na complacência cardíaca, bem como da atenuação do reflexo
vestibulossimpático associada ao envelhecimento. Nos idosos, a hipotensão
ortostática é substancialmente mais comum em indivíduos institucionalizados
(54-68%) do que naqueles que vivem na comunidade em geral (6%); isso é
provavelmente explicado pela maior prevalência de distúrbios neurológicos
predisponentes, comprometimento fisiológico e uso de medicação vasoativa
entre pacientes institucionalizados.
O prognóstico após um único evento de síncope em todos os grupos etários,
em geral, é benigno. Em particular, a síncope de origem não cardíaca ou
inexplicada em indivíduos jovens tem prognóstico excelente; a expectativa de
vida não é afetada. Em contrapartida, a síncope de causa cardíaca, seja por
cardiopatia ou arritmia primária, está associada a um risco elevado de morte
súbita cardíaca e mortalidade por outras causas. Similarmente, a taxa de
mortalidade é maior em indivíduos com síncope decorrente de hipotensão
ortostática relacionada à idade e com condições comórbidas (Tab. 18-1).

TABELA 18-1 ■ Fatores de alto risco que indicam hospitalização ou investigação intensiva da síncope
Dor torácica sugestiva de isquemia coronariana
Características de insuficiência cardíaca congestiva
Valvopatia moderada ou grave
Cardiopatia estrutural moderada ou grave
Alterações isquêmicas no eletrocardiograma (ECG)
História de arritmias ventriculares
Intervalo QT prolongado (> 500 ms)
Bloqueio sinoatrial repetitivo ou pausas sinusais
Bradicardia sinusal persistente
Bloqueio bi ou trifascicular ou retardo da condução intraventricular com duração de QRS ≥ 120 ms
Fibrilação atrial
Taquicardia ventricular não sustentada
História familiar de morte súbita
Síndromes de pré-excitação
Padrão de Brugada no ECG
Palpitações no momento da síncope
Síncope em repouso ou durante exercícios

FISIOPATOLOGIA
A postura ereta impõe um estresse fisiológico único sobre os humanos; a maioria
dos episódios de síncope – mas não todos – ocorre na posição ortostática. Tal
postura resulta em um acúmulo de 500 a 1.000 mL de sangue nas extremidades
inferiores e na circulação esplâncnica. Há diminuição no retorno venoso para o
coração e no enchimento ventricular, que resulta em redução do débito cardíaco
e da pressão arterial. Essas alterações hemodinâmicas provocam uma resposta
reflexa compensatória iniciada pelos barorreceptores no seio carotídeo e no arco
aórtico, resultando em aumento do efluxo simpático e diminuição da atividade
nervosa vagal (Fig. 18-1). O reflexo aumenta a resistência periférica, o retorno
venoso para o coração e o débito cardíaco e, portanto, limita a queda na pressão
arterial. Se essa resposta falhar, como é o caso cronicamente na hipotensão
ortostática e transitoriamente na síncope neuromediada, ocorre hipoperfusão
cerebral.

FIGURA 18-1 O barorreflexo. Uma queda na pressão arterial descarrega os barorreceptores – terminais de
fibras aferentes dos nervos glossofaríngeo e vago – que estão situados no seio carotídeo e no arco aórtico.
Isso leva a uma redução nos impulsos aferentes liberados desses mecanorreceptores através dos nervos
glossofaríngeo e vago para o núcleo do trato solitário (NTS) na região dorsomedial do bulbo. A redução da
atividade aferente barorreceptora causa uma queda no estímulo nervoso vagal para o nó sinusal, que é
mediado pelas conexões do NTS para o núcleo ambíguo (NA). Há aumento na atividade eferente simpática,
que é mediada pelas projeções do NTS para o bulbo ventrolateral caudal (BVLC, uma via excitatória), e daí
para o bulbo ventrolateral rostral (BVLR, uma via inibitória). A ativação de neurônios pré-simpáticos do
BVLR em resposta à hipotensão deve-se predominantemente, portanto, à desinibição. Em resposta a uma
queda sustentada da pressão arterial, a liberação de vasopressina é mediada pelas projeções do grupo de
células noradrenérgicas A1 no bulbo ventrolateral. Essa projeção ativa os neurônios que sintetizam
vasopressina na porção magnocelular do núcleo paraventricular (NPV) e do núcleo supraóptico (NSO) do
hipotálamo. Azul denota os neurônios simpáticos, e verde, os parassimpáticos. (De R Freeman: N Engl J
Med 358:615, 2008.)

A síncope é uma consequência da hipoperfusão cerebral global e, assim,


representa uma falha dos mecanismos autorreguladores do fluxo sanguíneo
cerebral. Fatores miogênicos, metabólitos locais e, em menor extensão, o
controle autonômico neurovascular são responsáveis pela autorregulação do
fluxo sanguíneo cerebral (Cap. 301). A latência da resposta autorregulatória é de
5 a 10 segundos. É comum o fluxo sanguíneo cerebral variar de 50 a 60
mL/min/100 g de tecido cerebral e permanecer relativamente constante, com as
pressões de perfusão variando de 50 a 150 mmHg. A cessação do fluxo
sanguíneo por 6 a 8 segundos resulta em perda da consciência, embora ocorra
comprometimento da consciência quando o fluxo sanguíneo diminui para 25
mL/min/100 g de tecido cerebral.
Do ponto de vista clínico, uma queda na pressão sistólica sistêmica para
aproximadamente 50 mmHg ou menos resulta em síncope. Uma redução do
débito cardíaco e/ou da resistência vascular sistêmica – os determinantes da
pressão arterial –, portanto, é a base da fisiopatologia da síncope. As causas
comuns de comprometimento do débito cardíaco incluem diminuição do volume
sanguíneo circulante efetivo, aumento da pressão torácica, embolia pulmonar
maciça, bradiarritmias e taquiarritmias, cardiopatia valvar e disfunção
miocárdica. A resistência vascular sistêmica pode estar diminuída por doenças
do sistema nervoso autônomo periférico e central, medicações simpatolíticas e
transitoriamente durante uma síncope neuromediada. O aumento da resistência
vascular cerebral, mais frequentemente devido à hipocarbia induzida pela
hiperventilação, também pode contribuir para a fisiopatologia da síncope.
Dois padrões de alterações no eletrencefalograma (EEG) ocorrem em
pessoas com síncope. O primeiro é o padrão “lento-plano-lento” (Fig. 18-2), no
qual a atividade de fundo normal é substituída por ondas delta lentas de alta
amplitude. Isso é seguido pelo súbito achatamento do EEG – uma cessação ou
atenuação da atividade cortical – seguido pelo retorno de ondas lentas e, depois,
atividade normal. Um segundo padrão, o “padrão lento”, se caracteriza apenas
por aumento e diminuição da atividade de ondas lentas. O achatamento do EEG
que ocorre no padrão lento-plano-lento é um marcador de hipoperfusão cerebral
mais grave. Apesar da presença de movimentos mioclônicos e de outras
atividades motoras durante eventos de síncope, não são detectadas descargas
epilépticas no EEG.

FIGURA 18-2 Eletrencefalograma (EEG) na síncope vasovagal. Um segmento de 1 minuto de um teste


com mesa inclinada (tilt-test) com síncope vasovagal típica demonstrando o padrão “lento-plano-lento” no
EEG. É mostrada a pressão arterial digital a cada batimento, o eletrocardiograma (ECG) e canais
selecionados do EEG. A lentificação do EEG começa quando a pressão sistólica cai para cerca de 50
mmHg; a frequência cardíaca é, então, de aproximadamente 45 bpm. Ocorrência de assistolia com duração
de cerca de 8 segundos. O EEG fica plano por um período semelhante, mas com retardo. Foi observada uma
perda transitória de consciência com duração de 14 s. Houve abalos musculares logo antes e logo depois do
período plano do EEG. (Figura reproduzida, com permissão, de W Wieling et al: Brain 132:2630, 2009.)
CLASSIFICAÇÃO
SÍNCOPE NEUROMEDIADA
A síncope neuromediada (reflexa; vasovagal) é a via final de um arco reflexo
complexo dos sistemas nervosos central e periférico. Há uma alteração súbita e
transitória na atividade autonômica eferente com aumento do fluxo de saída
parassimpático mais inibição do simpático (resposta vasodepressora), resultando
em bradicardia, vasodilatação e/ou redução do tônus vasoconstritor. A queda
resultante na pressão arterial sistêmica pode, então, reduzir o fluxo sanguíneo
cerebral para abaixo dos limites compensatórios de autorregulação (Fig. 18-3).
Para gerar uma síncope neuromediada, há necessidade de um sistema nervoso
autônomo funcionante, em contraste com a síncope que resulta de falha
autonômica (discutida a seguir).

FIGURA 18-3 A. Uma resposta hipotensiva-bradicárdico paroxística, característica da síncope


neuromediada. A pressão arterial e a frequência cardíaca não invasivas a cada batimento são mostradas por
> 5 minutos (60-360 s) de uma inclinação da mesa para cima (tilt test). B. Mesmo traçado expandido para
mostrar 80 segundos do episódio (120-200 s). PA, pressão arterial; bpm, batimentos por minuto; FC,
frequência cardíaca.

Múltiplos gatilhos da alça aferente do arco reflexo podem resultar em


síncope neuromediada. Em algumas situações, estes podem ser claramente
definidos, por exemplo, seio carotídeo, trato gastrintestinal ou bexiga. Porém, é
comum que o gatilho não seja reconhecido e a causa seja multifatorial. Em tais
circunstâncias, é provável que diferentes vias aferentes convirjam para a rede
autonômica central dentro da medula que integra os impulsos neurais e medeia a
resposta vasodepressora-bradicárdica.

Classificação da síncope neuromediada A síncope neuromediada pode ser


subdividida com base na via aferente e no gatilho provocativo. A síncope
vasovagal (desmaio comum) é provocada por emoção intensa, dor e/ou estresse
ortostático, enquanto as síncopes reflexas situacionais têm estímulos específicos
localizados que provocam a vasodilatação reflexa e a bradicardia que levam à
síncope. Os mecanismos subjacentes da maioria dessas síncopes reflexas
situacionais foram identificados, e a fisiopatologia, delineada. O gatilho aferente
pode originar-se nos sistemas pulmonar, gastrintestinal e urogenital, no coração e
na artéria carótida (Tab. 18-2). A hiperventilação que acarreta hipocarbia e
vasoconstrição cerebral, mais a pressão intratorácica elevada, que prejudica o
retorno venoso para o coração, desempenham um papel central em muitas das
síncopes reflexas situacionais. A via aferente do arco reflexo difere entre esses
distúrbios, mas a resposta eferente via nervo vago e vias simpáticas é
semelhante.

TABELA 18-2 ■ Causas da síncope


A. Síncope neuromediada
Síncope vasovagal
Medo provocado, dor, ansiedade, emoção intensa, visão de sangue, visões e odores desagradáveis, estresse ortostático
Síncope reflexa situacional
Pulmonar
Síncope causada por tosse, do instrumentista de sopro, do levantador de peso, por espirro, instrumentação de via aérea ou por formas
de indução deliberada da síncope (mess tricka e faiting larkb)
Urogenital
Síncope pós-micção, por instrumentação do trato urogenital, massagem prostática
Gastrintestinal
Síncope da deglutição, neuralgia glossofaríngea, estimulação esofágica, instrumentação do trato gastrintestinal, exame retal, síncope
da defecação
Cardíaco
Reflexo de Bezold-Jarisch, obstrução do fluxo de saída cardíaco
Seio carotídeo
Sensibilidade do seio carotídeo, massagem do seio carotídeo
Ocular
Pressão ocular, exame ocular, cirurgia ocular
B. Hipotensão ortostática
Insuficiência autonômica primária decorrente de doenças neurodegenerativas idiopáticas centrais e periféricas – as “sinucleinopatias”
Doenças por corpos de Lewy
Doença de Parkinson
Demência por corpos de Lewy
Insuficiência autonômica pura
Atrofia de múltiplos sistemas (síndrome de Shy-Drager)
Insuficiência autonômica secundária devido a neuropatias periféricas autonômicas
Diabetes
Amiloidose hereditária (polineuropatia amiloide familiar)
Amiloidose primária (amiloidose AL; associada à imunoglobulina de cadeia leve)
Neuropatias hereditárias sensitivas e autonômicas (NHSA) (especialmente do tipo III – disautonomia familiar)
Neuropatia autonômica imunomediada idiopática
Ganglionopatia autonômica autoimune
Síndrome de Sjögren
Neuropatia autonômica paraneoplásica
Neuropatia pelo HIV
Hipotensão pós-prandial
Iatrogênica (induzida por drogas/fármacos)
Depleção de volume
C. Síncope cardíaca
Arritmias
Disfunção do nó sinusal
Disfunção atrioventricular
Taquicardias supraventriculares
Taquicardias ventriculares
Canalopatias hereditárias
Cardiopatia estrutural
Doença valvar
Isquemia miocárdica
Miocardiopatia obstrutiva e outras
Mixoma atrial
Derrame e tamponamento pericárdico
aHiperventilação por cerca de 1 minuto seguida por compressão torácica súbita. bHiperventilação (cerca de 20 respirações) em posição

agachada, o paciente levanta-se rapidamente e, em seguida, Valsalva.

Como alternativa, a síncope neuromediada pode ser subdividida com base


na via eferente predominante. Síncope vasodepressora descreve a síncope
predominantemente causada por falha vasoconstritora simpática eferente;
síncope cardioinibidora descreve aquela predominantemente associada a
bradicardia ou assistolia devido a aumento do efluxo vagal; e síncope mista
descreve aquela em que há alterações tanto vagais quanto reflexivas simpáticas.

Aspectos da síncope neuromediada Além dos sintomas de intolerância


ortostática, como tontura, vertigem e fadiga, pode haver aspectos premonitórios
de ativação autonômica em pacientes com síncope neuromediada. Tais fatores
incluem diaforese, palidez, palpitações, náusea, hiperventilação e bocejos.
Durante o evento da síncope, pode ocorrer mioclonia proximal e distal
(geralmente arrítmica e multifocal), levantando a possibilidade de epilepsia. Os
olhos costumam permanecer abertos e, em geral, desviam-se para cima. As
pupilas costumam estar dilatadas. Podem ocorrer movimentos oculares errantes.
Pode haver grunhidos, gemidos, roncos e estertores respiratórios. Pode haver
incontinência urinária. A incontinência fecal é muito rara. A confusão pós-ictal
também é rara, embora alucinações visuais e auditivas e sensação de morte
iminente ou experiências extracorpóreas sejam algumas vezes relatadas.
Embora alguns fatores predisponentes e estímulos provocativos estejam
bem estabelecidos (p. ex., postura ereta sem movimento, temperatura ambiente
quente, depleção do volume intravascular, ingestão de álcool, hipoxemia,
anemia, dor, visualização de sangue, venopunção e emoção intensa), não se
conhece a base subjacente dos limiares amplamente diferentes para síncope entre
indivíduos expostos ao mesmo estímulo provocativo. Pode ser que haja uma
base genética para a síncope neuromediada; vários estudos relataram incidência
elevada de síncope em parentes de primeiro grau de pessoas que desmaiam, mas
não foi identificado um gene ou marcador genético, e fatores ambientais, sociais
e culturais não foram excluídos por esses estudos.

TRATAMENTO
Síncope neuromediada
Tranquilizar, evitar estímulos provocativos e expandir o volume plasmático com líquido e sal são os
princípios fundamentais do tratamento da síncope neuromediada. Manobras isométricas de contrapressão
dos membros superiores (cruzar as pernas ou dar aperto de mão e tensionar o braço) podem elevar a pressão
arterial pelo aumento do volume sanguíneo central e do débito cardíaco. Ao manter a pressão na zona de
autorregulação, essas manobras evitam ou retardam o início da síncope. Ensaios clínicos controlados
randomizados corroboram essa intervenção.
Fludrocortisona, agentes vasoconstritores e antagonistas β-adrenorreceptores são usados em ampla
escala por especialistas para tratar pacientes refratários, embora não haja evidência consistente de ensaios
clínicos controlados randomizados sobre qualquer farmacoterapia para tratar a síncope neuromediada.
Como a vasodilatação é o mecanismo fisiopatológico dominante na síncope na maioria dos pacientes, o uso
de marca-passo cardíaco raramente é benéfico. Exceções possíveis são pacientes mais velhos (> 40 anos)
em que a síncope está associada a assistolia ou bradicardia grave e aqueles com cardioinibição proeminente
devido à síndrome do seio carotídeo. Nesses pacientes, o marca-passo de câmara dupla pode ser útil,
embora essa área continue incerta.
HIPOTENSÃO ORTOSTÁTICA
A hipotensão ortostática, definida como uma redução na pressão arterial sistólica
de pelo menos 20 mmHg ou na pressão arterial diastólica de ao menos 10 mmHg
dentro de 3 minutos com o paciente em pé ou com inclinação da mesa para cima
(tilt test), é uma manifestação de falha vasoconstritora simpática (autonômica) (F
ig. 18-4). Em muitos casos (mas não em todos), não há aumento compensatório
na frequência cardíaca, apesar da hipotensão; com insuficiência autonômica
parcial, a frequência cardíaca pode aumentar até certo ponto, mas isso não é o
bastante para manter o débito cardíaco. Uma variante da hipotensão ortostática é
a forma “tardia”, que ocorre depois que o paciente fica mais de 3 minutos na
posição ereta; pode ser que isso reflita uma forma discreta ou inicial de
disfunção simpática adrenérgica. Em alguns casos, ocorre hipotensão ortostática
dentro de 15 segundos em pé (a chamada hipotensão ortostática “precoce”),
achado que pode refletir um desajuste transitório entre o débito cardíaco e a
resistência vascular periférica, e não representa insuficiência autonômica.

FIGURA 18-4 A. Queda gradual na pressão arterial sem aumento compensatório na frequência cardíaca,
característica da hipotensão ortostática decorrente de insuficiência autonômica. A pressão arterial e a
frequência cardíaca são mostradas por 5 minutos (60-360 s) em uma inclinação para cima em uma mesa
inclinada. B. Mesmo traçado expandido para mostrar 40 s do episódio (180-220 s). PA, pressão arterial;
bpm, batimentos por minuto; FC, frequência cardíaca.

Os sintomas característicos de hipotensão ortostática incluem tontura e pré-


síncope (quase desmaio), ocorrendo em resposta a uma alteração súbita da
postura. No entanto, os sintomas podem estar ausentes ou ser inespecíficos,
como fraqueza generalizada, fadiga, lentidão cognitiva, falseio das pernas ou
cefaleia. Pode ocorrer borramento visual, provavelmente devido a isquemia
retiniana ou do lobo occipital. Dor no pescoço – tipicamente na região
suboccipital, cervical posterior e do ombro (“cefaleia do cabide”), mais
provavelmente devido à isquemia do músculo do pescoço – pode ser o único
sintoma. Os pacientes podem relatar dispneia ortostática (que se acredita refletir
desequilíbrio na ventilação-perfusão devido à perfusão inadequada dos ápices
pulmonares ventilados) ou angina (atribuída a comprometimento da perfusão
miocárdica, mesmo com artérias coronárias normais). Os sintomas podem ser
exacerbados por exercício, ficar muito tempo em pé, aumento da temperatura
ambiente ou pelas refeições. Em geral, a síncope é precedida por sintomas de
alarme, mas pode ocorrer subitamente, o que sugere a possibilidade de uma
convulsão ou causa cardíaca.
A hipertensão supina é comum em pacientes com hipotensão ortostática
devido à insuficiência autonômica, acometendo > 50% deles em algumas séries.
Pode haver hipotensão ortostática após o início do tratamento para hipertensão, e
sobrevir hipertensão supina após o tratamento da hipotensão ortostática.
Entretanto, em outros casos, a associação das duas condições não está
relacionada com a terapia e, em parte, pode ser explicada pela disfunção
barorreflexa na presença de efluxo simpático residual, particularmente em
pacientes com degeneração autonômica central.

Causas da hipotensão ortostática neurogênica As causas de hipotensão


ortostática neurogênica incluem disfunção dos sistemas nervosos autônomos
central e periférico (Cap. 432). A disfunção autonômica de outros sistemas
orgânicos (inclusive bexiga, intestinos, órgãos sexuais e sistema sudomotor) de
gravidade variável frequentemente acompanha a hipotensão ortostática nesses
distúrbios (Tab. 18-2).
Os distúrbios degenerativos autonômicos primários são a atrofia de
múltiplos sistemas (síndrome de Shy-Drager; Cap. 432), doença de Parkinson (
Cap. 427), demência por corpos de Lewy (Cap. 426) e insuficiência autonômica
pura (Cap. 432). Essas doenças costumam ser agrupadas como
“sinucleinopatias” devido à presença de α-sinucleína, uma pequena proteína que
se agrega predominantemente no citoplasma de neurônios nos distúrbios por
corpos de Lewy (doença de Parkinson, demência por corpos de Lewy e
insuficiência autonômica pura) e na glia na atrofia de múltiplos sistemas.
A disfunção autonômica periférica também pode acompanhar neuropatias
periféricas de fibras finas, como as observadas nas neuropatias diabética,
amiloide, imunomediada e nas neuropatias hereditárias sensitivas e autonômicas
(NHSA; em particular a tipo III, disautonomia familiar) (Caps. 438 e 439). Com
menos frequência, a hipotensão ortostática está associada às neuropatias
periféricas que acompanham a deficiência de vitamina B12, exposição
neurotóxica, HIV e outras infecções e porfiria.
Pacientes com insuficiência autonômica e os idosos são suscetíveis a
quedas na pressão arterial associadas às refeições. A magnitude da queda na
pressão arterial é exacerbada por refeições fartas, ricas em carboidratos e pelo
consumo de álcool. O mecanismo da síncope pós-prandial ainda não foi
completamente elucidado.
A hipotensão ortostática em geral é iatrogênica. Fármacos de várias classes
podem diminuir a resistência periférica (p. ex., antagonistas α-adrenorreceptores
usados para tratar a hipertensão e a hipertrofia prostática; agentes anti-
hipertensivos de diversas classes; nitratos e outros vasodilatadores; agentes
tricíclicos e fenotiazinas). A depleção de volume iatrogênica devido à diurese e
aquela de origem clínica (hemorragia, vômitos, diarreia ou baixo consumo de
líquido) também podem resultar em redução do volume circulatório efetivo,
hipotensão ortostática e síncope.

TRATAMENTO
Hipotensão ortostática
A primeira etapa é eliminar as causas reversíveis – em geral medicações vasoativas (Tab. 432-6). Depois
disso, devem ser introduzidas intervenções não farmacológicas. Essas intervenções incluem orientar o
paciente quanto a mudar da posição supina para a ereta, alertar sobre os efeitos hipotensivos das refeições
volumosas, instruir sobre as manobras de contrapressão isométrica que aumentam a pressão vascular (ver
anteriormente) e aconselhar a elevação da cabeceira no leito para reduzir a hipertensão supina. O volume
intravascular deve ser expandido pelo aumento do consumo dietético de líquido e sal. Caso essas medidas
não farmacológicas falhem, deve ser instituída uma intervenção farmacológica com acetato de
fludrocortisona e agentes vasoconstritores, como a midodrina, a L-di-hidroxifenilserina e a pseudoefedrina.
Alguns pacientes com sintomas difíceis de tratar requerem tratamento com agentes suplementares que
incluem piridostigmina, atomoxetina, ioimbina, acetato de desmopressina (DDAVP) e eritropoietina (Cap.
432).

SÍNCOPE CARDÍACA
A síncope cardíaca (ou cardiovascular) é causada por arritmias e cardiopatia
estrutural, podendo ocorrer de forma combinada, pois a doença estrutural deixa o
coração mais vulnerável à atividade elétrica anormal.

Arritmias As bradiarritmias que causam síncope incluem aquelas devido à


disfunção grave do nó sinusal (p. ex., parada sinusal ou bloqueio sinoatrial) e ao
bloqueio atrioventricular (AV) (p. ex., Mobitz tipo II e bloqueio AV de alto grau
e completo). As bradiarritmias decorrentes de disfunção do nó sinusal em geral
estão associadas a uma taquiarritmia atrial, distúrbio conhecido como síndrome
de taquicardia-bradicardia. Uma pausa prolongada após o término de um
episódio de taquicardia é uma causa frequente de síncope em pacientes com essa
síndrome. Medicações de várias classes também podem ocasionar bradiarritmias
de gravidade suficiente para causar síncope. A síncope devido a bradicardia ou
assistolia é conhecida como crise de Stokes-Adams.
As taquiarritmias ventriculares frequentemente causam síncope. A
probabilidade de síncope com taquicardia ventricular depende, em parte, da
frequência ventricular; frequências < 200 bpm são menos propensas a causar
síncope. A função hemodinâmica comprometida durante taquicardia ventricular
é causada por contração ventricular inefetiva, enchimento diastólico reduzido
devido a períodos mais curtos de enchimento, perda da sincronia AV e isquemia
miocárdica concomitante.
Vários distúrbios associados a instabilidade eletrofisiológica cardíaca e
arritmogênese devem-se a mutações em genes de subunidades de canais iônicos,
incluindo a síndrome do QT longo, a síndrome de Brugada e a taquicardia
ventricular polimórfica catecolaminérgica. A síndrome do QT longo é um
distúrbio geneticamente heterogêneo, associado à repolarização cardíaca
prolongada e a uma predisposição para arritmias ventriculares. Síncope e morte
súbita em pacientes com a síndrome do QT longo resultam de um tipo singular
de taquicardia ventricular polimórfica, denominada torsades des pointes, que
degenera em fibrilação ventricular. A síndrome do QT longo foi associada aos
genes que codificam as subunidades α e β dos canais de K+, o canal de Na+
controlado por voltagem e uma proteína estrutural, a anquirina B (ANK2). A
síndrome de Brugada caracteriza-se por fibrilação ventricular idiopática,
associada a anormalidades ventriculares direitas no ECG sem cardiopatia
estrutural. Esse distúrbio também é geneticamente heterogêneo, embora, na
maioria dos casos, esteja ligado a mutações na subunidade α do canal de Na+,
SCN5A. A taquicardia polimórfica catecolaminérgica é um distúrbio hereditário
geneticamente heterogêneo, associado a arritmias induzidas por exercício ou
estresse, síncope ou morte súbita. O prolongamento adquirido do intervalo QT,
mais comumente devido a fármacos, também pode resultar em arritmias
ventriculares e síncope. Esses distúrbios são discutidos em detalhes no Capítu
lo 249.

Doença estrutural Cardiopatias estruturais (p. ex., valvopatia, isquemia


miocárdica, miocardiopatia hipertrófica e outras, massas cardíacas como o
mixoma atrial e derrame pericárdico) podem ocasionar síncope por
comprometimento do débito cardíaco. A doença estrutural também pode
contribuir para outros mecanismos fisiopatológicos da síncope. Por exemplo, as
cardiopatias estruturais podem predispor à arritmogênese; o tratamento agressivo
da insuficiência cardíaca com diuréticos e/ou vasodilatadores pode acarretar
hipotensão ortostática; e pode ocorrer vasodilatação reflexa inapropriada com
distúrbios estruturais, como estenose aórtica e miocardiopatia hipertrófica,
possivelmente provocada por aumento da contratilidade ventricular.

TRATAMENTO
Síncope cardíaca
O tratamento da síncope cardíaca depende do distúrbio subjacente. As terapias para arritmias incluem
marca-passo cardíaco para doença do nó sinusal e bloqueio AV, e ablação, medicamentos antiarrítmicos e
cardioversores desfibriladores para taquiarritmias atriais e ventriculares. Esses distúrbios são melhor
manejados por médicos especializados nessa área.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Síncope
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
A síncope é facilmente diagnosticada quando os aspectos característicos
estão presentes, porém vários distúrbios com perda transitória real ou
aparente da consciência podem causar confusão diagnóstica.
Convulsões generalizadas e parciais podem ser confundidas com
síncope, mas há aspectos que as diferenciam. Embora movimentos tônico-
clônicos sejam característicos de uma convulsão generalizada, movimentos
mioclônicos e outros movimentos também podem ocorrer em até 90% dos
episódios de síncope. Os espasmos mioclônicos associados à síncope podem
ser multifocais ou generalizados. Em geral, eles são arrítmicos e de curta
duração (< 30 s). Também pode ocorrer postura flexora e extensora discreta.
Convulsões parciais ou parciais complexas com generalização secundária
costumam ser precedidas por uma aura, comumente um odor desagradável,
ansiedade, medo, desconforto abdominal ou outras sensações viscerais. Esses
fenômenos devem ser diferenciados dos aspectos premonitórios de síncope.
As manifestações autonômicas de convulsões (epilepsia autonômica)
podem gerar um desafio diagnóstico mais difícil. Convulsões autonômicas
têm manifestações cardiovasculares, gastrintestinais, pulmonares,
urogenitais, pupilares e cutâneas que são semelhantes aos aspectos
premonitórios de síncope. Frequentemente, as manifestações
cardiovasculares de epilepsia autonômica incluem taquicardias e bradicardias
que podem ser de magnitude suficiente para causar perda da consciência. A
presença de auras não autonômicas acompanhantes podem ajudar a
diferenciar esses episódios da síncope.
A perda da consciência associada a uma convulsão em geral dura > 5
minutos e está associada a sonolência e desorientação prolongadas pós-ictais,
enquanto após um evento de síncope ocorre quase imediatamente a
reorientação. Pode ocorrer dores musculares tanto após síncope como após
convulsões, mas elas tendem a durar mais e ser mais graves após uma
convulsão. As convulsões, ao contrário da síncope, raramente são provocadas
por emoções ou dor. Pode ocorrer incontinência urinária, tanto com
convulsões quanto com síncope, mas é muito raro ocorrer incontinência fecal
com síncope.
A hipoglicemia pode causar perda transitória da consciência,
tipicamente em indivíduos com diabetes tipo 1 ou 2 tratado com insulina. Os
aspectos clínicos associados à hipoglicemia iminente ou instalada incluem
tremor, palpitações, ansiedade, diaforese, fome e parestesias. Tais sintomas
devem-se à ativação autonômica que se contrapõe à glicemia em queda. A
fome, em particular, não é um aspecto premonitório típico de síncope. A
hipoglicemia também prejudica a função neuronal, acarretando fadiga,
fraqueza, tontura e sintomas cognitivos e comportamentais. Pode ocorrer
dificuldades no diagnóstico de indivíduos sob controle glicêmico estrito; a
hipoglicemia repetida prejudica a resposta contrarreguladora e leva a uma
perda dos sintomas de alarme característicos da hipoglicemia.
Pacientes com cataplexia apresentam perda abrupta, parcial ou completa
do tônus muscular, desencadeada por emoções fortes, em geral raiva ou riso.
Em contrapartida à síncope, a consciência é mantida durante os ataques, que
costumam durar entre 30 segundos e 2 minutos. Não há sinais premonitórios.
Ocorre cataplexia em 60 a 75% dos pacientes com narcolepsia.
A entrevista clínica e o interrogatório de testemunhas oculares em geral
permite diferenciar a síncope de quedas devido a disfunção vestibular,
doença cerebelar, disfunção do sistema extrapiramidal e outros distúrbios da
marcha. O diagnóstico de síncope pode ser particularmente difícil em
pacientes com demência que experimentam quedas repetidas e não
conseguem fornecer uma história precisa dos episódios. Se a queda for
acompanhada por traumatismo craniano, uma síndrome pós-concussão,
amnésia quanto aos eventos precipitantes e/ou perda da consciência também
podem contribuir para a dificuldade diagnóstica.
A perda aparente da consciência pode ser uma das manifestações de
doença psiquiátrica, como ansiedade generalizada, transtornos do pânico,
depressão maior e transtorno de somatização. Tais possibilidades devem ser
consideradas em indivíduos que desmaiam com frequência sem apresentar
sintomas prodrômicos. É raro esses pacientes sofrerem alguma lesão, apesar
das inúmeras quedas. Não há alterações hemodinâmicas significativas
concomitantes com esses episódios. Em contrapartida, a perda transitória de
consciência devido à síncope vasovagal precipitada por medo, estresse,
ansiedade e sofrimento emocional é acompanhada por hipotensão,
bradicardia ou ambas.

AVALIAÇÃO INICIAL
As metas da avaliação inicial são determinar se a perda transitória da
consciência foi causada por síncope, identificar a causa e avaliar a
possibilidade de futuros episódios e danos graves (Tab. 18-1). A avaliação
inicial deve incluir anamnese detalhada, questionário abrangente para as
testemunhas e exame físico e neurológico completo. A pressão arterial e a
frequência cardíaca devem ser medidas na posição supina e após 3 minutos
em pé, para se determinar se há hipotensão ortostática. Deve ser feito um
ECG se houver suspeita de síncope devido a arritmia ou cardiopatia
subjacente. Anormalidades eletrocardiográficas relevantes incluem
bradiarritmias ou taquiarritmias, bloqueio AV, isquemia, infarto do miocárdio
antigo, síndrome do QT longo e bloqueio de ramo. A avaliação inicial levará
à identificação de uma causa de síncope em aproximadamente 50% dos
pacientes e também permitirá a estratificação de pacientes em risco de
mortalidade cardíaca.

Exames laboratoriais Os exames laboratoriais de rotina raramente são úteis


para identificar a causa da síncope. Devem ser feitos exames de sangue
quando houver suspeita de distúrbios específicos, por exemplo, infarto agudo
do miocárdio, anemia e insuficiência autonômica secundária (Tab. 18-2).

Exame do sistema nervoso autônomo (Cap. 432) A avaliação autonômica,


incluindo o teste da mesa inclinada, pode ser realizada em centros
especializados. Os exames autonômicos são úteis para revelar evidência
objetiva de insuficiência autonômica e também demonstrar uma
predisposição para a síncope neuromediada. O exame autonômico inclui
avaliações da função do sistema nervoso parassimpático (p. ex., variabilidade
da frequência cardíaca à respiração profunda e manobra de Valsalva), função
simpática colinérgica (p. ex., resposta de sudorese termorreguladora e teste
quantitativo do reflexo axônico sudomotor) e função adrenérgica simpática
(p. ex., resposta da pressão arterial a uma manobra de Valsalva e teste de
mesa inclinada com medida da pressão arterial a cada batimento). As
anormalidades hemodinâmicas demonstradas ao teste da mesa inclinada
(Figs. 18-3 e 18-4) podem ser úteis para distinguir hipotensão ortostática
devido à insuficiência autonômica da resposta bradicárdica hipotensiva da
síncope neuromediada. De maneira semelhante, o teste da mesa inclinada
pode ajudar a identificar pacientes com síncope decorrente de hipotensão
ortostática imediata ou tardia.
Deve-se considerar a massagem do seio carotídeo em pacientes com
sintomas sugestivos de síncope do seio carotídeo e naqueles com > 50 anos
de idade e síncope recorrente de etiologia desconhecida. Esse teste só deve
ser feito com monitoração contínua do ECG e da pressão arterial, devendo
ser evitado em pacientes com sopros, placas ou estenose nas carótidas.

Avaliação cardíaca A monitoração com ECG está indicada para pacientes


com alta probabilidade pré-teste de arritmia como causa de síncope.
Pacientes com alta probabilidade de arritmia potencialmente fatal, por
exemplo, aqueles com doença estrutural ou doença arterial coronariana
grave, taquicardia ventricular não sustentada, bloqueio cardíaco trifascicular,
intervalo QT prolongado, padrão ECG da síndrome Brugada e história
familiar de morte súbita cardíaca (Tab. 18-1) devem ser monitorados no
hospital. A monitoração com Holter ambulatorial é recomendada para
pacientes que apresentam episódios frequentes de síncope (1 ou mais por
semana), enquanto o monitor de eventos (loop event recorder), que
continuamente registra e apaga o ritmo cardíaco, é indicado para pacientes
com suspeita de arritmias com baixo risco de morte súbita cardíaca. O
monitor de eventos pode ser externo (recomendado para a avaliação de
episódios que ocorrem com uma frequência > 1 por mês) ou implantável (se
a ocorrência de síncope for menos frequente).
Deve-se fazer uma ecocardiografia em pacientes com antecedentes de
cardiopatia ou caso sejam encontradas anormalidades ao exame físico ou no
ECG. Diagnósticos ecocardiográficos que podem ser responsáveis por
síncope incluem estenose aórtica, miocardiopatia hipertrófica, tumores
cardíacos, dissecção da aorta e tamponamento pericárdico. A ecocardiografia
também tem um papel na estratificação do risco com base na fração de ejeção
ventricular esquerda.
O teste de esforço com monitoração de ECG e pressão arterial deve ser
realizado em pacientes que experimentam síncope durante ou logo após
esforços. O teste de esforço na esteira pode ajudar a identificar arritmias
induzidas por exercícios (p. ex., bloqueio AV relacionado à taquicardia) e
vasodilatação exagerada induzida por exercícios.
Estudos eletrofisiológicos estão indicados em pacientes com cardiopatia
estrutural e anormalidades ao ECG em que as investigações invasivas não
levaram ao diagnóstico. Eles têm sensibilidade e especificidade baixas e só
devem ser realizados quando há alta probabilidade pré-teste. Atualmente, são
feitos raras vezes para avaliar pacientes com síncope.

Avaliação psiquiátrica O rastreamento de transtornos psiquiátricos pode ser


apropriado em pacientes com episódios recorrentes inexplicados de síncope.
O teste da mesa inclinada, com demonstração de sintomas na ausência de
alteração hemodinâmica, pode ser útil para reproduzir a síncope nos
pacientes em que se suspeita de síncope psicogênica.

LEITURAS ADICIONAIS
Al-Khatib SM et al: Risk stratification for arrhythmic events in patients with
asymptomatic pre-excitation: A systematic review for the 2015
ACC/AHA/HRS guideline for the management of adult patients with
supraventricular tachycardia: A report of the American College of
Cardiology/American Heart Association Task Force on Clinical Practice
Guidelines and the Heart Rhythm Society. J Am Coll Cardiol 67:1624,
2016.
Freeman R et al: Consensus statement on the definition of orthostatic
hypotension, neurally mediated syncope and the postural tachycardia
syndrome. AutonNeurosci 161:46, 2011.
Gibbons CH et al: The recommendations of a consensus panel for the screening,
diagnosis, and treatment of neurogenic orthostatic hypotension and
associated supine hypertension. J Neurol 264:1567, 2017.
Sheldon RS, Raj SR: Pacing and vasovagal syncope: Back to our physiologic
roots. Clin Auton Res 27:213, 2017.
Varosy PD et al: Pacing as a treatment for reflex-mediated (vasovagal,
situational, or carotid sinus hypersensitivity) syncope: A systematic review
for the 2017 ACC/AHA/HRS guideline for the evaluation and management
of patients with syncope: A report of the American College of
Cardiology/American Heart Association Task Force on Clinical Practice
Guidelines and the Heart Rhythm Society. J Am Coll Cardiol 70:664, 2017.
19
Tontura e vertigem
Mark F. Walker, Robert B. Daroff

A tontura é um sintoma inespecífico usado para descrever várias sensações


comuns que incluem vertigem, pré-síncope, sensação de desmaio iminente,
desmaio e desequilíbrio. Vertigem se refere a uma sensação de giro ou outro
movimento que pode ser fisiológica, ocorrendo durante ou após uma rotação
sustentada da cabeça, ou patológica, devido a uma disfunção vestibular. O termo
tontura é classicamente aplicado a sensações de desmaio iminente resultantes de
hipoperfusão cerebral, mas na forma usada pelos pacientes tem pouca
especificidade, pois pode também se referir a outros sintomas, como
desequilíbrio e instabilidade. Uma dificuldade para o diagnóstico é que os
pacientes em geral têm dificuldade para distinguir esses vários sintomas, e as
palavras que escolhem não descrevem de maneira confiável a etiologia
subjacente.
Há muitas causas de tontura. A tontura vestibular (vertigem ou
desequilíbrio) pode ser decorrente de distúrbios periféricos que afetam os
labirintos ou nervos vestibulares ou então do acometimento das vias centrais
vestibulares. Podem ser paroxísticas ou se dever a um déficit vestibular fixo uni
ou bilateral. Lesões unilaterais agudas causam vertigem por causa de um súbito
desequilíbrio nos impulsos vestibulares vindos de ambos os labirintos. As lesões
bilaterais causam desequilíbrio e instabilidade da visão quando a cabeça se move
(oscilopsia) devido a uma perda dos reflexos vestibulares normais.
A tontura pré-síncope ocorre por hipoperfusão cerebral causada por
arritmias cardíacas, hipotensão ortostática, efeitos de medicamentos ou outras
causas. A duração de tais sensações antes da síncope varia, e sua gravidade pode
aumentar até que ocorra perda da consciência, ou elas podem resolver-se antes
que isso aconteça, se a isquemia cerebral for corrigida. Síncope e sensação de
desmaio iminente, que são discutidos no Capítulo 18, sempre devem ser
considerados ao se avaliar pacientes com episódios breves de tontura ou a
tontura que ocorre na postura ereta. Outras causas de tontura incluem
desequilíbrio não vestibular, distúrbios da marcha (p. ex., perda da
propriocepção decorrente de neuropatia sensitiva, parkinsonismo) e ansiedade.
Ao se avaliar pacientes com tontura, as questões a serem consideradas
incluem: (1) É perigosa (p. ex., arritmia, ataque isquêmico transitório/acidente
vascular cerebral [AVC])? (2) É vestibular? (3) Se vestibular, é periférica ou
central? Anamnese e exame físico minuciosos, em geral, fornecem informação
suficiente para responder a essas questões e determinam se são necessários
outros exames ou encaminhamento para especialistas.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Tontura
HISTÓRIA
Quando um paciente apresenta-se com tontura, a primeira etapa é delinear
com mais exatidão a natureza do sintoma. No caso de distúrbios vestibulares,
os sintomas físicos dependem de a lesão ser uni ou bilateral e aguda ou
crônica. A vertigem, uma ilusão de que a própria pessoa ou o ambiente está
se movimentando, implica assimetria dos impulsos vestibulares vindos de
ambos os labirintos ou em suas vias centrais e, em geral, é aguda. A
hipofunção vestibular bilateral simétrica causa desequilíbrio, mas não
vertigem. Devido à ambiguidade dos pacientes ao descreverem seus
sintomas, o diagnóstico baseado simplesmente na característica do sintoma
não costuma ser confiável. Assim, a história deve se concentrar em outras
características, incluindo se é o primeiro ataque, a duração deste e de
episódios prévios, fatores desencadeantes e sintomas concomitantes.
A tontura pode ser dividida em episódios que duram segundos, minutos,
horas ou dias. As causas comuns de tontura breve (segundos) incluem
vertigem posicional paroxística benigna (VPPB) e hipotensão ortostática,
ambas provocadas por alterações na posição da cabeça e do corpo. Crises de
vertigem enxaquecosa e doença de Ménière, em geral, duram horas. Quando
os episódios têm duração intermediária (minutos), devem-se considerar
ataques isquêmicos transitórios da circulação posterior, embora a migrânea
(enxaqueca) e várias outras causas também sejam possíveis.
Os sintomas que acompanham a vertigem podem ser úteis para
distinguir lesões vestibulares periféricas de causas centrais. Perda auditiva
unilateral e outros sintomas auriculares (dor, pressão, plenitude na orelha)
apontam para uma causa periférica. Como as vias auditivas tornam-se
rapidamente bilaterais quando entram no tronco encefálico, é improvável que
as lesões centrais causem perda auditiva unilateral (a menos que a lesão se
situe perto da zona de entrada da raiz do nervo auditivo). Sintomas como
visão dupla, dormência e ataxia de membro sugerem lesão do tronco
encefálico ou cerebelar.

EXAME
Como a tontura e o desequilíbrio podem ser manifestações de uma variedade
de distúrbios neurológicos, o exame neurológico é importante na avaliação
desses pacientes. O foco particular deve ser na avaliação dos movimentos
oculares, da função vestibular e da audição. Deve-se observar a amplitude
dos movimentos oculares e se são iguais em ambos os olhos. Os distúrbios
periféricos dos movimentos oculares (p. ex., neuropatias cranianas, fraqueza
de músculo ocular) em geral são desconjugados (diferentes em cada um dos
olhos). Deve-se verificar o fenômeno de “perseguição” do olhar (capacidade
de acompanhar um alvo em movimento) e as sacadas (capacidade de olhar
para trás e para frente acuradamente entre dois alvos). Problemas no
fenômeno de perseguição ou sacadas inacuradas (dismétricas) em geral
indicam patologia central, quase sempre envolvendo o cerebelo. O
alinhamento dos dois olhos pode ser verificado com um teste de cobertura:
enquanto o paciente olha para um alvo, cobrir alternadamente os olhos e
observar a presença de sacadas corretivas. Um desalinhamento vertical pode
indicar uma lesão de tronco encefálico ou cerebelar. Por fim, deve-se
certificar se há nistagmo espontâneo, um movimento involuntário dos olhos
para trás e para frente. O nistagmo é mais frequentemente do tipo em
sacudida, em que um desvio lento (fase lenta) em uma direção alterna com
um movimento sacádico rápido (fase rápida) na direção oposta, que reajusta
a posição dos olhos nas órbitas. Exceto no caso de vestibulopatia aguda (p.
ex., neurite vestibular), se o nistagmo posicional primário for visto com
facilidade na luz, é provável que tenha uma causa central. Duas formas de
nistagmo características de lesões nas vias cerebelares são o nistagmo
vertical com fases rápidas para baixo (nistagmo inferior) e o nistagmo
horizontal, que muda de acordo com a direção do olhar (nistagmo evocado
pelo olhar). Por outro lado, as lesões periféricas tipicamente causam
nistagmo horizontal unidirecional. O uso de óculos de Frenzel (óculos
autoiluminados com lentes convexas que turvam a visão do paciente, mas
permitem que o examinador observe os olhos muito ampliados) pode auxiliar
na detecção do nistagmo vestibular periférico, pois reduz a capacidade do
paciente de usar a fixação visual na supressão do nistagmo. A Tabela 19-1
descreve as características fundamentais que ajudam a diferenciar as causas
de vertigem periféricas e centrais.

TABELA 19-1 ■ Aspectos da vertigem periférica e central


• O nistagmo por lesão periférica aguda é unidirecional, com as fases rápidas batendo para longe da orelha com a lesão. O nistagmo
que muda de direção com o olhar deve-se a uma lesão central.
• O nistagmo transitório misto vertical torcional ocorre na vertigem posicional paroxística benigna (VPPB), mas o nistagmo puro
vertical ou puro torcional é um sinal central.
• O nistagmo por lesão periférica pode ser inibido pela fixação visual, enquanto o nistagmo central não é suprimido.
• A ausência do sinal de impulso da cabeça em um paciente com vertigem aguda prolongada deve sugerir uma causa central.
• A perda auditiva unilateral sugere vertigem periférica. Achados como diplopia, disartria e ataxia de membro sugerem distúrbio
central.

O teste mais útil à beira do leito da função vestibular periférica é o teste


de impulso da cabeça, no qual o reflexo vestíbulo-ocular (RVO) é avaliado
com rápidas rotações da cabeça em pequena amplitude (cerca de 20 graus).
Enquanto o paciente fixa em um alvo, a cabeça é girada para a esquerda ou
para a direita. Se o RVO for deficiente, a rotação é acompanhada por uma
sacada na direção oposta (p. ex., uma sacada para a esquerda após uma
rotação para a direita). O teste do impulso da cabeça pode identificar
hipofunção vestibular unilateral (sacadas após rotação em direção ao lado
fraco) e bilateral (sacadas após rotações em ambas as direções).
Todos os pacientes com tontura episódica, em especial se provocada por
alterações na posição, devem ser testados com a manobra de Dix-Hallpike. O
paciente começa em posição sentada com a cabeça virada 45 graus;
segurando a parte de trás da cabeça, o examinador abaixa o paciente até a
posição supina com a cabeça em extensão para trás em cerca de 20 graus
enquanto observa seus olhos. A VPPB do canal posterior pode ser
diagnosticada de maneira confiável se for visto nistagmo transitório torcional
com batimento superior. Se nenhum nistagmo for observado após 15 a 20
segundos, o paciente é levantado até a posição sentada e o procedimento é
repetido com a cabeça virada para o outro lado. Novamente, os óculos de
Frenzel podem melhorar a sensibilidade do teste.
O teste de acuidade visual dinâmica é um teste funcional que pode ser
útil para se avaliar a função vestibular. Mede-se a acuidade visual com a
cabeça estática e com a cabeça do paciente sendo girada para trás e para
frente pelo examinador (cerca de 1-2 Hz). Uma queda na acuidade visual
durante a movimentação da cabeça de mais de uma linha de texto em um
cartão próximo ou na tabela de Snellen é anormal e indica disfunção
vestibular.

TESTES AUXILIARES
A escolha de testes complementares deve ser orientada pela anamnese e pelos
achados ao exame. Deve-se fazer audiometria se houver suspeita de um
distúrbio vestibular. Perda auditiva unilateral neurossensorial confirma a
existência de um distúrbio periférico (p. ex., schwannoma vestibular). A
perda auditiva predominantemente de baixa frequência é característica da
doença de Ménière. A eletronistagmografia ou a videonistagmografia
incluem registros de nistagmo espontâneo (se presente) e medidas do
nistagmo posicional. Os testes calóricos avaliam as respostas dos dois canais
semicirculares horizontais. A bateria de testes costuma incluir registros de
sacadas e do fenômeno de “perseguição” do olhar para avaliação da função
ocular motora central. Exames de neuroimagem são importantes se houver
suspeita de distúrbio vestibular central. Além disso, os pacientes com perda
auditiva unilateral inexplicada ou hipofunção vestibular devem ser
submetidos a uma ressonância magnética (RM) dos canais auditivos internos,
incluindo a administração de gadolínio, para excluir schwannoma.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL E TRATAMENTO


O tratamento dos sintomas vestibulares deve ser direcionado para o diagnóstico
subjacente. Tratar apenas a tontura com medicamentos supressores vestibulares
não costuma ser útil e pode agravar os sintomas e prolongar a recuperação. As
abordagens diagnósticas e terapêuticas específicas aos distúrbios vestibulares
encontrados mais comumente são discutidos adiante.

VERTIGEM AGUDA PROLONGADA (NEURITE VESTIBULAR)


Uma lesão vestibular unilateral aguda causa vertigem constante, náuseas,
vômitos, oscilopsia (movimento da cena visual) e desequilíbrio. Tais sintomas se
devem a uma assimetria súbita dos impulsos provenientes dos labirintos ou em
suas conexões centrais, simulando uma rotação contínua da cabeça. Ao contrário
da VPPB, a vertigem contínua persiste mesmo quando a cabeça não está em
movimento.
Quando um paciente apresenta-se com uma síndrome vestibular aguda, a
questão mais importante é definir se a lesão é central (p. ex., infarto ou
hemorragia cerebelar ou do tronco encefálico), a qual pode ser potencialmente
fatal, ou periférica, afetando o nervo vestibular ou o labirinto (neurite
vestibular). Deve-se dar atenção a quaisquer sintomas ou sinais que apontem
para disfunção central (diplopia, fraqueza ou formigamento, disartria). O padrão
de nistagmo espontâneo, se presente, pode ser útil (Tab. 19-1). Se o teste de
impulso da cabeça for normal, é improvável que haja lesão vestibular periférica
aguda. Nem sempre se pode excluir definitivamente uma lesão central com base
apenas nos sintomas e no exame; portanto, nos pacientes idosos com fatores de
risco vasculares que se apresentam com síndrome vestibular aguda, deve-se
avaliar a possibilidade de AVC quando não houver achados específicos que
indiquem uma lesão central.
A maioria dos pacientes com neurite vestibular tem recuperação
espontânea, mas os glicocorticoides podem melhorar o prognóstico, se
administrados até 3 dias a partir do início dos sintomas. Não há benefício
comprovado de medicações antivirais, a menos que haja evidência de herpes-
zóster ótico (síndrome de Ramsay Hunt). Os medicamentos supressores
vestibulares podem amenizar os sintomas agudos; porém, devem ser evitados
após os primeiros dias, pois impedem a compensação central e a recuperação. Os
pacientes devem ser estimulados a reassumir o nível normal de atividade assim
que seja possível, e a terapia de reabilitação vestibular dirigida pode acelerar a
melhora.

VERTIGEM POSICIONAL PAROXÍSTICA BENIGNA


A VPPB é uma causa comum de vertigem recorrente. Os episódios são curtos
(duram < 1 minuto e tipicamente entre 15-20 segundos) e sempre provocados
por alterações na posição da cabeça com relação à gravidade, como o paciente
deitar, rolar na cama, erguer-se da posição supina e estender a cabeça para olhar
para cima. Os ataques são causados por otolitos flutuantes livres (cristais de
carbonato de cálcio) deslocados da mácula utricular e que se movem para um
dos canais semicirculares, em geral o canal posterior. Quando a posição da
cabeça muda, a gravidade faz o otolito mover-se dentro do canal, ocasionando
vertigem e nistagmo. Na VPPB do canal posterior, o nistagmo bate para cima e é
torcional (os polos superiores dos olhos batem na direção da orelha acometida).
Menos comumente, o otolito entra no canal horizontal, resultando em um
nistagmo horizontal quando o paciente está deitado com a orelha para baixo. O
acometimento do canal superior (também chamado anterior) é raro. O tratamento
da VPPB é feito com manobras de reposicionamento que utilizam a gravidade
para eliminar o otolito do canal semicircular. Na VPPB do canal posterior, a
manobra de Epley (Fig. 19-1) é o procedimento mais comumente utilizado. Nos
casos mais refratários de VPPB, pode-se ensinar aos pacientes uma variante
dessa manobra que sejam capazes de fazer sozinhos em casa. Uma demonstração
da manobra de Epley está disponível online (http://www.dizziness-and-
balance.com/disorders/bppv/bppv.html).

FIGURA 19-1 Manobra de Epley modificada para tratamento da vertigem posicional paroxística benigna
dos canais semicirculares posteriores da direita (no alto) e da esquerda (embaixo). Etapa 1. Com o paciente
sentado, virar a cabeça dele em 45 graus para o lado da orelha afetada. Etapa 2. Mantendo a cabeça girada,
abaixar o paciente até a posição de cabeça pendente, mantendo essa posição por pelo menos 30 s e até o
nistagmo desaparecer. Etapa 3. Sem levantar a cabeça, virá-la 90 graus para o outro lado. Manter assim por
mais 30 s. Etapa 4. Girar o paciente de lado enquanto gira a cabeça mais 90 graus, de forma que o nariz
aponte para baixo em 45 graus. Manter assim por mais 30 s. Etapa 5. Sentar o paciente no lado da mesa.
Após breve repouso, a manobra deve ser repetida para confirmar o tratamento bem-sucedido. (Figura
adaptada de http://www.dizziness-and-balance.com/disorders/bppv/movies/Epley-480x640.avi.)

ENXAQUECA VESTIBULAR
A enxaqueca vestibular é uma causa muito comum, ainda que subdiagnosticada
de vertigem episódica. A vertigem algumas vezes precede uma enxaqueca típica,
mas mais comumente ocorre sem cefaleia ou com apenas com cefaleia leve.
Alguns pacientes com enxaquecas frequentes no passado apresentam-se mais
tarde com enxaqueca vestibular como problema predominante. Na enxaqueca
vestibular, a vertigem dura minutos a horas, e alguns pacientes também
apresentam períodos mais prolongados de desequilíbrio (com duração de dias a
semanas). Sensibilidade motora e para o movimento visual (p. ex., para filmes) é
comum. Mesmo na ausência de cefaleia, outras características de enxaqueca
podem estar presentes, como fotofobia, fonofobia ou aura visual. Embora
geralmente não haja dados de estudos controlados, o tratamento típico da
enxaqueca vestibular é feito com os medicamentos usados na profilaxia das
cefaleias da enxaqueca (Cap. 422). Antieméticos podem ser úteis para aliviar os
sintomas no momento de uma crise.

DOENÇA DE MÉNIÈRE
As crises da doença de Ménière consistem em vertigem, perda auditiva e dor,
pressão e/ou plenitude na orelha acometida. Os sintomas de aura ou perda
auditiva para baixas frequências são os aspectos mais importantes para distinguir
a doença de Ménière de outras vestibulopatias periféricas e da enxaqueca
vestibular. A audiometria no momento de uma crise mostra perda auditiva
assimétrica e de baixa frequência característica; a audição costuma melhorar
entre as crises, embora às vezes possa ocorrer perda auditiva permanente.
Acredita-se que a doença de Ménière se deva ao excesso de líquido (endolinfa)
na orelha interna, daí a designação hidropsia endolinfática. Os pacientes nos
quais se suspeite de doença de Ménière devem ser encaminhados para um
otorrinolaringologista para avaliação mais detalhada. Diuréticos e restrição de
sódio tipicamente constituem o tratamento inicial. Se as crises persistirem, pode-
se considerar o uso de injeções de glicocorticoides ou gentamicina na orelha
média. As opções cirúrgicas não ablativas incluem descompressão e derivação
do saco endolinfático. Raramente há necessidade de procedimentos ablativos
completos (secção do nervo vestibular, labirintectomia).

SCHWANNOMA VESTIBULAR
Os schwannomas vestibulares (às vezes denominados neuromas do acústico) e
outros tumores no ângulo cerebelopontino causam perda auditiva neurossensitiva
unilateral lentamente progressiva e hipofunção vestibular. Os pacientes não
costumam ter vertigem, porque o déficit vestibular gradual é compensado
centralmente à medida que se desenvolve. O diagnóstico, em geral, não é
estabelecido até que haja perda auditiva suficiente para ser notada. O exame
vestibular mostra uma resposta deficiente ao teste de impulso da cabeça quando
a cabeça do paciente é virada na direção do lado acometido, mas o nistagmo não
será proeminente. Conforme observado anteriormente, os pacientes com perda
auditiva neurossensitiva unilateral ou com hipofunção vestibular necessitam de
RM dos canais auditivos internos para a pesquisa de um schwannoma.

HIPOFUNÇÃO VESTIBULAR BILATERAL


Pacientes com perda bilateral da função vestibular também não costumam ter
vertigem, pois a função vestibular é perdida em ambos os lados
simultaneamente, de modo que não há assimetria do impulso vestibular. Os
sintomas incluem perda do equilíbrio, em particular no escuro, quando o impulso
vestibular é mais crítico, e oscilopsia durante a movimentação da cabeça, como
ao caminhar ou dirigir um carro. A hipofunção vestibular bilateral pode ser (1)
idiopática e progressiva, (2) parte de um distúrbio neurodegenerativo ou (3)
iatrogênica, devido à ototoxicidade medicamentosa (mais comumente por
gentamicina ou outros antibióticos aminoglicosídeos). Outras causas incluem
schwannomas vestibulares bilaterais (neurofibromatose tipo 2), doença
autoimune, siderose superficial e infecção ou tumor nas meninges. Também
pode ocorrer em pacientes com polineuropatia periférica, casos em que tanto a
perda vestibular como a propriocepção comprometida podem contribuir para a
dificuldade de equilíbrio. Por fim, processos unilaterais como neurite vestibular
e doença de Ménière podem acometer ambas as orelhas de modo sequencial,
resultando em vestibulopatia bilateral.
Os achados ao exame incluem diminuição da acuidade visual dinâmica (ver
anteriormente) devido à perda da visão estável quando a cabeça está em
movimento, respostas anormais ao impulso da cabeça em ambas as direções e
um sinal de Romberg. As respostas ao teste calórico estão diminuídas. Pacientes
com hipofunção vestibular bilateral devem ser encaminhados para terapia de
reabilitação vestibular. Medicamentos supressores vestibulares não devem ser
empregados, pois aumentam o desequilíbrio. A avaliação por um neurologista é
importante não apenas para confirmar o diagnóstico, como também para
considerar quaisquer outras anormalidades neurológicas associadas que possam
esclarecer a etiologia.

DISTÚRBIOS VESTIBULARES CENTRAIS


As lesões centrais que causam vertigem tipicamente envolvem vias vestibulares
no tronco encefálico e/ou cerebelo. Elas podem ser causadas por lesões isoladas,
como por AVC isquêmico ou hemorrágico (Caps. 419-421), desmielinização (C
ap. 436) ou tumores (Cap. 86), ou podem ser causadas por condições
neurodegenerativas que incluem o aparato vestibulocerebelar (Caps. 423-426).
A degeneração cerebelar subaguda pode ser causada por processos imunes,
incluindo os paraneoplásicos (Caps. 90 e 431). A Tabela 19-1 descreve as
características importantes da história e exame físico que ajudam a identificar os
distúrbios vestibulares centrais. A vertigem central aguda é uma emergência
médica devido à possibilidade de AVC ou hemorragia potencialmente fatal.
Todos os pacientes com suspeita de distúrbios vestibulares centrais devem ser
submetidos à RM do encéfalo e o paciente deve ser encaminhado para uma
avaliação neurológica completa.

TONTURA PSICOSSOMÁTICA E FUNCIONAL


Fatores psicológicos desempenham um papel importante na tontura crônica.
Primeiro, a tontura pode ser uma manifestação somática de uma condição
psiquiátrica, como depressão maior, ansiedade ou transtorno do pânico (Cap. 44
3). Em segundo lugar, os pacientes podem desenvolver ansiedade e sintomas
autonômicos em consequência ou como comorbidade de um distúrbio vestibular
independente. Uma forma particular disso é conhecida de maneira variável como
vertigem postural fóbica, vertigem psicofisiológica ou tontura subjetiva crônica,
mas é atualmente chamada tontura postural-perceptual persistente (TPPP).
Esses pacientes têm uma sensação crônica (3 meses ou mais) de tontura e
desequilíbrio flutuantes que está presente em repouso e piora ao ficar de pé. Há
maior sensibilidade à automovimentação e aos movimentos visuais (p. ex., ao
assistir filmes), bem como uma intensificação particular dos sintomas quando se
movem em ambientes visualmente complexos, como supermercados. Embora
possa haver antecedentes de um distúrbio vestibular agudo (p. ex., neurite
vestibular), o exame neuro-otológico e os testes vestibulares são normais ou
indicativos de um déficit vestibular compensado, indicando que a tontura
subjetiva em andamento não pode ser explicada por uma patologia vestibular
primária. Transtornos da ansiedade são particularmente comuns em pacientes
com tontura crônica e, quando presentes, contribuem de maneira substancial para
a morbidade. As abordagens terapêuticas para a TPPP incluem terapia
farmacológica com inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRSs),
psicoterapia cognitivo-comportamental e reabilitação vestibular. Medicamentos
supressores vestibulares em geral devem ser evitados.

TRATAMENTO
Vertigem
Na Tabela 19-2, há uma lista das medicações comumente usadas para supressão da vertigem. Conforme
observado, tais medicações devem ser reservadas para o controle em curto prazo da vertigem ativa, como
durante os primeiros dias de neurite vestibular aguda ou nas crises agudas doença de Ménière. Elas são
menos úteis para a tontura crônica e, como dito anteriormente, podem impedir a compensação central. Uma
exceção é que os benzodiazepínicos podem atenuar a tontura psicossomática e a ansiedade associada,
embora os ISRSs em geral sejam preferíveis para tais pacientes.

TABELA 19-2 ■ Tratamento da vertigem


Agentea Doseb
Anti-histamínicos
Meclizina 25-50 mg, 3×/dia
Dimenidrinato 50 mg, 1-2×/dia
Prometazina 25 mg, 2-3×/dia (também pode ser administrada por via retal e intramuscular)
Benzodiazepínicos
Diazepam 2,5 mg, 1-3×/dia
Clonazepam 0,25 mg, 1-3×/dia
Anticolinérgico
Escopolamina transdérmicac Adesivo
Fisioterapia
Manobras de reposicionamentod
Reabilitação vestibular
Outros
Diuréticos e/ou dieta baixa em
sódio (1.000 mg/dia)e
Fármacos que combatem a
enxaquecaf
Metilprednisolonag 100 mg/dia, dias 1-3; 80 mg/dia, dias 4-6; 60 mg/dia, dias 7-9; 40 mg/dia, dias 10-12; 20 mg/dia,
dias 13-15; 10 mg/dia, dias 16-18, 20, 22
Inibidores seletivos da recaptação
de serotoninah
aTodos os fármacos relacionados estão aprovados pela Food and Drug Administration, mas a maioria não está aprovada para o tratamento da

vertigem. bDose oral de início habitual para adultos (a menos que prescrito de outra maneira); a dose de manutenção pode ser alcançada com
aumento gradual. cApenas para a cinetose. dPara a vertigem posicional paroxística benigna. ePara a doença de Ménière. fPara a enxaqueca
vestibular. gPara a neurite vestibular aguda (iniciada dentro de 3 dias do começo). hPara a vertigem postural-perceptual persistente e a
ansiedade.

A terapia de reabilitação vestibular promove processos de adaptação central que compensam a perda
vestibular e também pode ajudar o paciente a acostumar-se com a sensibilidade ao movimento e outros
sintomas de tontura psicossomática. A abordagem geral consiste em uma série gradual de exercícios que
desafiam progressivamente a estabilização do olhar e o equilíbrio.

LEITURAS ADICIONAIS
Dieterich M, Staab JP: Functional dizziness: From phobic postural vertigo and
chronic subjective dizziness to persistent postural-perceptual dizziness.
Curr Opin Neurol 30:107, 2017.
Kim JS, Zee DS: Benign paroxysmal positional vertigo. N Engl J Med 370:1138,
2014.
von Brevern M, Lempert T: Vestibular Migraine. Handb Clin Neurol 137:301,
2016.
20
Fadiga
Jeffrey M. Gelfand, Vanja C. Douglas

A fadiga é um dos sintomas mais comuns na clínica médica. Ela é uma


manifestação proeminente em inúmeras síndromes sistêmicas, neurológicas e
psiquiátricas, embora uma causa precisa não seja identificada em uma minoria
substancial de pacientes. A fadiga se refere a uma experiência humana subjetiva
de cansaço físico e mental, lentidão, baixa energia e exaustão. No contexto da
clínica médica, geralmente a fadiga é definida de forma prática e usual como
uma dificuldade de iniciar ou manter uma atividade voluntária mental ou física.
Quase qualquer pessoa que já esteve doente com uma infecção autolimitada já
experimentou esse sintoma quase universal, e a fadiga geralmente é trazida à
atenção médica apenas quando ela não tem uma causa clara, não entra em
remissão ou a sua gravidade é desproporcional ao que seria esperado para a
causa associada.
A fadiga deve ser diferenciada de fraqueza muscular, uma redução da força
muscular (Cap. 21); a maioria dos pacientes que se queixam de fadiga não
apresenta fraqueza verdadeira quando a força muscular direta é testada. Fadiga
também é distinta de sonolência, que se refere a sonolência no contexto de
alteração na fisiologia de sono-vigília (Cap. 27), e da dispneia aos esforços,
embora os pacientes possam usar o termo fadiga para descrever esses sintomas.
A tarefa que os clínicos têm quando um paciente apresenta fadiga é identificar a
causa subjacente e desenvolver uma abordagem terapêutica, cuja meta é poupar
os pacientes de investigações diagnósticas dispendiosas e não efetivas e guiá-los
para terapias efetivas.

EPIDEMIOLOGIA E CONSIDERAÇÕES GLOBAIS


A variabilidade nas definições de fadiga e os instrumentos de pesquisa
usados em diferentes estudos tornam difícil chegar a dados precisos sobre o
ônus global da fadiga. A prevalência pontual da fadiga foi de 6,7% e a
prevalência por toda a vida foi de 25% em uma grande pesquisa do National
Institute of Mental Health com a população dos Estados Unidos. Em clínicas de
cuidados primários na Europa e nos Estados Unidos, entre 10 e 25% dos
pacientes pesquisados endossaram sintomas de fadiga prolongada (presentes há
> 1 mês) ou crônica (presente há > 6 meses), mas a fadiga foi o motivo primário
para a busca de atenção médica em apenas uma minoria de pacientes. Em uma
pesquisa comunitária com mulheres na Índia, 12% relataram fadiga crônica. Em
contrapartida, a prevalência de síndrome de fadiga crônica, como definida pelo
Centers for Disease Control and Prevention nos Estados Unidos, é baixa (Cap. 4
42).

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Doenças psiquiátricas A fadiga é uma manifestação somática comum de muitas
síndromes psiquiátricas maiores, incluindo depressão, ansiedade e transtornos
somatoformes. Os sintomas psiquiátricos são relatados em mais de três quartos
dos pacientes com fadiga crônica inexplicada. Mesmo em pacientes com
síndromes sistêmicas ou neurológicas nas quais a fadiga é reconhecida de forma
independente como uma manifestação de doença, sintomas ou transtornos
psiquiátricos comórbidos podem ser ainda uma fonte importante de interação.

Doenças neurológicas Pacientes com queixa de fadiga frequentemente dizem


que se sentem fracos, mas, em um exame cuidadoso, a fraqueza muscular
objetiva raramente é detectada. Quando encontrada, a fraqueza muscular deve,
então, ser localizada no sistema nervoso central, sistema nervoso periférico,
junção neuromuscular ou muscular e serem obtidos os exames de
acompanhamento apropriados (Cap. 21). A fatigabilidade da força muscular é
uma manifestação cardinal de alguns distúrbios neuromusculares, como a
miastenia gravis, e pode ser distinguida da fadiga pelo achado de uma
diminuição clinicamente aparente da quantidade de força que um músculo gera
com uma contração repetida (Cap. 440). A fadiga é um dos sintomas mais
comuns e incômodos relatados na esclerose múltipla (EM) (Cap. 436), afetando
quase 90% dos pacientes; a fadiga na EM pode persistir entre os surtos de EM e
não necessariamente se correlaciona com a atividade da doença na imagem de
ressonância magnética (RM). A fadiga também é cada vez mais identificada
como característica incômoda de muitas doenças neurodegenerativas, incluindo
a doença de Parkinson, disautonomias centrais e esclerose lateral amiotrófica. A
fadiga pós-acidente vascular cerebral (AVC) é uma entidade bem descrita, porém
mal compreendida, com prevalência amplamente variável. A fadiga episódica
pode ser um sintoma premonitório de enxaqueca. A fadiga também é um
resultado frequente de lesão cerebral traumática, ocorrendo frequentemente em
associação com depressão e distúrbios do sono.
Distúrbios do sono A apneia obstrutiva do sono é uma causa importante de
sonolência diurna excessiva em associação com fadiga e deve ser investigada
usando-se a polissonografia durante a noite, particularmente naqueles com
roncos proeminentes, obesidade ou outros preditores de apneia obstrutiva do
sono (Cap. 291). Não se sabe se a privação cumulativa de sono, que é comum na
sociedade moderna, contribui para a fadiga clinicamente aparente (Cap. 27).

Distúrbios endócrinos A fadiga, às vezes em associação com a fraqueza


muscular verdadeira, pode ser um sinal precursor de hipotireoidismo,
particularmente no contexto da perda de cabelos, pele seca, intolerância ao frio,
constipação e ganho de peso. A fadiga em associação com a intolerância ao
calor, sudorese e palpitações é típica do hipertireoidismo. A insuficiência
suprarrenal também pode se manifestar com fadiga inexplicada como um
sintoma primário ou proeminente, frequentemente com anorexia, perda de peso,
náusea, mialgias e artralgias; hiponatremia, hiperpotassemia e hiperpigmentação
podem estar presentes no momento do diagnóstico. A hipercalcemia leve pode
causar fadiga, que pode ser relativamente vaga, enquanto a hipercalcemia grave
pode levar à letargia, estupor e coma. Tanto a hipoglicemia quanto a
hiperglicemia podem causar letargia, frequentemente em associação com
confusão; diabetes melito, particularmente o diabetes tipo 1, também está
associado a fadiga independentemente dos níveis de glicose. A fadiga também
pode acompanhar a doença de Cushing, o hipoaldosteronismo e o
hipogonadismo. Baixos níveis de vitamina D também foram associados a fadiga.

Doenças hepáticas e renais Tanto a doença hepática crônica quanto a doença


renal crônica podem causar fadiga. Mais de 80% dos pacientes em hemodiálise
se queixam de fadiga, o que torna esse um dos sintomas mais comumente
relatados por pacientes na doença renal crônica.

Obesidade A obesidade está associada a fadiga e sonolência independentemente


da presença de apneia obstrutiva do sono. Pacientes obesos submetidos à cirurgia
bariátrica experimentam melhora na sonolência diurna mais cedo do que seria
esperado se a melhora fosse unicamente o resultado da perda de peso e da
resolução da apneia do sono. Inúmeros outros fatores comuns em pacientes
obesos provavelmente também contribuem, incluindo inatividade física, diabetes
e depressão.
Inatividade física A inatividade física está associada com fadiga, e o aumento
da atividade física pode melhorar a fadiga em alguns pacientes.

Desnutrição Embora a fadiga possa ser uma característica de apresentação de


desnutrição, o estado nutricional também pode ser uma comorbidade importante
e contribuir para a fadiga em outras doenças crônicas, inclusive a fadiga
associada ao câncer.

Infecção As infecções agudas e crônicas comumente levam à fadiga como parte


de uma síndrome infecciosa mais ampla. A avaliação de infecção não
diagnosticada como causa de fadiga inexplicada, e particularmente fadiga
prolongada ou crônica, deve ser orientada pela história, exame físico e fatores de
risco infecciosos, com particular atenção ao risco para tuberculose, HIV, hepatite
crônica e endocardite. A mononucleose infecciosa pode causar fadiga
prolongada que persiste por semanas a meses depois de uma doença aguda, mas
a infecção pelo vírus Epstein-Barr apenas raramente é a causa de fadiga crônica
inexplicada.

Medicamentos e substâncias de abuso Muitas medicações, uso de drogas


ilícitas, abstinência de drogas e uso crônico de álcool podem levar à fadiga. As
medicações mais prováveis de causar fadiga incluem antidepressivos,
antipsicóticos, ansiolíticos, opiáceos, agentes antiespasticidade,
anticonvulsivantes e betabloqueadores.

Doenças cardiovasculares e pulmonares A fadiga é um dos sintomas relatados


pelos pacientes como o mais desgastante na insuficiência cardíaca congestiva e
na doença pulmonar obstrutiva crônica, afetando negativamente a qualidade de
vida.

Neoplasia maligna A fadiga, particularmente em associação com perda de peso


inexplicada, pode ser um sinal de neoplasia oculta, mas o câncer apenas
raramente é identificado em pacientes com fadiga crônica inexplicada na
ausência de outros sinais e sintomas sugestivos. A fadiga relacionada ao câncer é
experimentada por 40% dos pacientes no momento do diagnóstico e em > 80%
dos pacientes em algum momento no curso da doença.

Doenças hematológicas A anemia crônica ou progressiva pode se apresentar


com fadiga, às vezes em associação com taquicardia de esforço e falta de ar. A
anemia também pode contribuir para a fadiga nas doenças crônicas. A ferritina
sérica baixa na ausência de anemia também pode causar fadiga, reversível com a
reposição de ferro.

Distúrbios sistêmicos inflamatórios/reumatológicos A fadiga é uma queixa


proeminente em muitos distúrbios inflamatórios crônicos, incluindo o lúpus
eritematoso sistêmico, polimialgia reumática, artrite reumatoide, doença
inflamatória intestinal, vasculite associada ao anticorpo anticitoplasma de
neutrófilo (ANCA), sarcoidose e síndrome de Sjögren, mas geralmente não é um
sintoma isolado. A fadiga também está associada a imunodeficiências primárias.

Gestação A fadiga muito comumente é relatada por mulheres durante todos os


estágios da gravidez e do pós-parto.

Distúrbios de causa indefinida A síndrome da fadiga crônica (Cap. 442) e a


fibromialgia (Cap. 366) incorporam a fadiga crônica como parte da definição
sindrômica quando presente em associação com inúmeros outros critérios de
inclusão e exclusão, como discutido em detalhes em seus respectivos capítulos.
A doença multissintomática crônica, também conhecida como síndrome da
Guerra do Golfo, é outro complexo sintomático com fadiga proeminente; ela é
mais comumente, embora não exclusivamente, observada em veteranos da
guerra do Golfo de 1991 (Cap. C6). A fadiga crônica idiopática é usada para
descrever a síndrome de fadiga crônica inexplicada na ausência de características
clínicas adicionais suficientes para atender os critérios diagnósticos para
síndrome de fadiga crônica.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Fadiga
Uma anamnese detalhada com foco na qualidade, padrão, evolução temporal,
sintomas associados e fatores de alívio da fadiga é fundamental para definir a
síndrome e ajudar a guiar a futura avaliação e tratamento. É importante
determinar se fadiga é a designação adequada, se os sintomas são agudos ou
crônicos e se o problema é primariamente mental, físico ou uma combinação
dos dois tipos. A revisão dos sistemas deve tentar distinguir a fadiga de
sonolência excessiva, dispneia de esforço, intolerância ao exercício e
fraqueza muscular. A presença de febre, calafrios, sudorese noturna ou perda
de peso deve levantar suspeita de uma infecção oculta ou neoplasia. Uma
revisão cuidadosa da prescrição, medicações de venda livre, medicações à
base de ervas, drogas recreativas e consumo de álcool é necessária. As
circunstâncias em torno da instalação dos sintomas e gatilhos potenciais
devem ser investigadas. A história social é importante, com atenção dada aos
fatores estressores da vida, horário de trabalho, rede de suporte social e
assuntos domésticos, inclusive um rastreamento de violência doméstica. Os
hábitos do sono e a higiene do sono devem ser questionados. O impacto da
fadiga no funcionamento diário é importante para se compreender a
experiência do paciente e estimar a recuperação e o sucesso do tratamento.
O exame físico dos pacientes com fadiga é orientado pela história e
diagnóstico diferencial. Um exame detalhado do estado mental deve ser
realizado com especial atenção aos sintomas de depressão e ansiedade. Um
exame neurológico formal é necessário para determinar se a fraqueza
muscular objetiva está presente. Isso geralmente é um exercício simples,
embora ocasionalmente os pacientes com fadiga tenham dificuldade em
manter o esforço contra resistência e, às vezes, relatem que a geração de uma
força completa necessite de esforço mental substancial. No teste de
confrontação, a força completa pode ser gerada apenas por um curto período
antes que o paciente subitamente desista do esforço. Esse tipo de fraqueza
frequentemente é chamado de fraqueza de ruptura e pode ou não estar
associada a dor. Isso contrasta com a fraqueza devida a lesões nos tratos
motores ou unidade motora inferior, na qual a resistência do paciente pode
ser superada de forma suave e firme e a força completa nunca pode ser
gerada. Ocasionalmente, um paciente pode demonstrar fraqueza fatigável, na
qual a potência é completa no primeiro teste, mas se torna fraca na repetição
da avaliação sem um intervalo de repouso. A fraqueza fatigável, que
geralmente indica um problema na transmissão neuromuscular, nunca tem a
súbita qualidade de ruptura que é possível observar ocasionalmente em
pacientes com fadiga. Se a presença ou a ausência de fraqueza muscular não
puder ser determinada pelo exame físico, a eletromiografia com estudos de
condução nervosa pode ser um teste auxiliar útil.
O exame físico geral deve rastrear sinais de doença cardiopulmonar,
neoplasia, linfadenopatia, organomegalia, infecção, insuficiência hepática,
doença renal, desnutrição, anormalidades endócrinas e doença do tecido
conectivo. Em pacientes com dor musculoesquelética disseminada associada,
a avaliação dos pontos de dor pode ajudar a revelar a fibromialgia. Embora o
produto diagnóstico do exame físico geral possa ser relativamente baixo no
contexto da avaliação de fadiga crônica inexplicada, elucidando a causa em
apenas 2% dos casos em uma análise prospectiva, a rentabilidade de uma
avaliação detalhada neuropsiquiátrica e do estado mental provavelmente será
muito mais alta, revelando uma explicação potencial para a fadiga em até 75
a 80% dos pacientes em algumas séries. Além disso, o exame físico completo
demonstra uma abordagem séria e sistemática às queixas do paciente e ajuda
a construir confiança e uma aliança terapêutica.
O exame laboratorial provavelmente identificará a causa da fadiga
crônica em apenas cerca de 5% dos casos. Além de uns poucos testes de
rastreamento padronizados, a avaliação laboratorial deve ser orientada pela
história e pelo exame físico; estender a avaliação provavelmente levará a
resultados falso-positivos que requerem explicação, investigação e
acompanhamento desnecessários e deve ser evitada em vez de um
acompanhamento clínico frequente. Uma abordagem razoável ao
rastreamento inclui hemograma completo com diferencial (para investigar
anemia, infecção e neoplasia), eletrólitos (incluindo sódio, potássio e cálcio),
glicose, função renal, função hepática e função tireoidiana. O teste para HIV
e função suprarrenal também pode ser considerado. Diretrizes publicadas
para a síndrome de fadiga crônica também recomendam uma velocidade de
hemossedimentação (VHS) como parte da avaliação para simuladores; mas, a
não ser que o valor seja muito alto, esse teste inespecífico, na ausência de
outras características, provavelmente não irá esclarecer a situação. O
rastreamento de rotina com um teste de fator antinuclear (FAN)
provavelmente também não será informativo por si só e, frequentemente, é
positivo em baixos títulos em adultos saudáveis em outros aspectos. Estudos
adicionais não direcionados, como imagens de corpo inteiro, geralmente não
estão indicados; além da sua inconveniência, riscos potenciais e custo, eles
frequentemente revelam achados casuais não relacionados que podem
prolongar a investigação desnecessariamente.

TRATAMENTO
Fadiga
A prioridade do tratamento é abordar o distúrbio ou distúrbios subjacentes que são responsáveis pela fadiga,
porque isso pode ser curativo em contextos selecionados e paliativo em outros. Infelizmente, em muitas
doenças crônicas, a fadiga pode ser refratária a terapias tradicionais modificadoras da doença, mas é sempre
importante, em tais casos, avaliar outros contribuintes potenciais, porque a causa pode ser multifatorial. O
tratamento com antidepressivos (Cap. 444) pode ser útil para o tratamento da fadiga crônica quando há
sintomas de depressão e pode ser mais eficaz como parte de uma abordagem multidimensional. Contudo, os
antidepressivos também podem ser causa de fadiga e devem ser descontinuados se não forem claramente
eficazes. A terapia cognitivo-comportamental também mostrou ser útil no contexto da síndrome de fadiga
crônica bem como da fadiga associada ao câncer. A terapia cognitivo-comportamental é a terapia com
exercícios graduados, na qual os exercícios físicos, mais tipicamente a caminhada, são aumentados
gradualmente com atenção à meta de frequência cardíaca para evitar o excesso de esforço, mostraram
melhorar modestamente os tempos de caminhada e as medidas de fadiga autorrelatadas em comparação
com o cuidado médico padrão em pacientes do Reino Unido com fadiga crônica. Esses benefícios foram
mantidos após um seguimento médio de 2,5 anos. Os psicoestimulantes, como as anfetaminas, modafinila e
armodafinila, podem ajudar a aumentar a vigilância e a concentração e a reduzir a sonolência diurna
excessiva em certos contextos clínicos, que podem, por sua vez, ajudar com os sintomas de fadiga em uma
minoria de pacientes, mas eles, em geral, provaram ser inúteis em estudos randomizados para tratar fadiga
em lesão cerebral pós-traumática, doença de Parkinson, câncer e esclerose múltipla. Em pacientes com
vitamina D baixa, a reposição de vitamina D pode levar a uma melhora da fadiga.
O desenvolvimento de uma terapia mais eficaz para a fadiga é dificultado pelo conhecimento limitado
das bases biológicas desse sintoma, incluindo a forma como a fadiga é detectada e registrada no sistema
nervoso. Citocinas pró-inflamatórias, como a interleucina-1α e 1β, e o fator de necrose tumoral α, podem
mediar a fadiga em alguns pacientes. Dados preliminares sugerem que as terapias biológicas que inibem a
IL-1 ou outras citocinas podem ajudar a melhorar a fadiga em alguns pacientes com condições inflamatórias
em adição a, ou como parte de, seu efeito modificador da doença; assim, os antagonistas de citocinas
representam uma possível futura abordagem.

PROGNÓSTICO
A fadiga aguda significativa o suficiente para necessitar avaliação médica é mais
provável de levar a uma causa médica, neurológica ou psiquiátrica identificável
do que a fadiga crônica inexplicada. A avaliação da fadiga crônica inexplicada
leva mais comumente ao diagnóstico de uma condição psiquiátrica ou
permanece inexplicada. A identificação de uma etiologia grave previamente não
diagnosticada ou com risco de morte é rara no acompanhamento longitudinal em
pacientes com fadiga crônica inexplicada. A resolução completa da fadiga
crônica inexplicada é incomum, pelo menos em curto prazo, mas as abordagens
de tratamento multidisciplinar podem levar a melhoras sintomáticas que podem
melhorar substancialmente a qualidade de vida.

LEITURAS ADICIONAIS
David A et al: Tired, weak, or in need of rest: Fatigue among general practice
attenders. BMJ 301:1199, 1990.
Kroenke K et al: Chronic fatigue in primary care. Prevalence, patient
characteristics, and outcome. JAMA 260:929–934, 1988.
Roerink ME et al: Interleukin-1 as a mediator of fatigue in disease: A narrative
review. J Neuroinflammation 14:16, 2017.
Sharpe M et al: Rehabilitative treatments for chronic fatigue syndrome: Long-
term follow-up from the PACE trial. Lancet Psychiatry 2:1067, 2015.
White PD et al: Comparison of adaptive pacing therapy, cognitive behaviour
therapy, graded exercise therapy, and specialist medical care for chronic
fatigue syndrome (PACE): A randomised trial. Lancet 377:823, 2011.
21
Causas neurológicas de fraqueza e
paralisia
Michael J. Aminoff

A função motora normal envolve uma atividade muscular integrada, que é


modulada pela atividade do córtex cerebral, dos núcleos da base, do cerebelo, do
núcleo rubro, da formação reticular do tronco encefálico, do núcleo vestibular
lateral e da medula espinal. A disfunção do sistema motor causa fraqueza ou
paralisia – discutidas neste capítulo –, ataxia (Cap. 431) ou movimentos
anormais (Cap. 428). Fraqueza é uma redução da força que pode ser exercida
por um ou mais músculos. Ela deve ser diferenciada do aumento de
fatigabilidade (i.e., incapacidade de manter a realização de uma atividade que
deveria ser normal para uma pessoa da mesma idade, tamanho e sexo), limitação
da função por dor ou rigidez articular ou alteração na atividade motora em que a
perda sensitiva proprioceptiva grave impeça o feedback adequado de
informações sobre direção e a força dos movimentos. Ela também é diferente da
bradicinesia (na qual há necessidade de um tempo maior para que a força total
seja exercida) e da apraxia, um distúrbio de planejamento e início de um
movimento conhecido ou aprendido sem relação com déficit motor ou sensitivo
significativo (Cap. 26).
A paralisia, ou o sufixo “plegia”, indica fraqueza tão intensa que o músculo
não consegue realizar nenhuma contração, enquanto a paresia se refere a uma
fraqueza menos grave. O prefixo “hemi” refere-se a uma das metades do corpo,
“para”, a ambas as pernas, e “tetra”, aos quatro membros.
A distribuição da fraqueza ajuda a indicar o local da lesão subjacente. A
fraqueza decorrente do acometimento de neurônios motores superiores ocorre
particularmente nos músculos extensores e abdutores dos membros superiores e
flexores dos membros inferiores. A fraqueza pelo neurônio motor inferior
depende se o envolvimento é no nível das células do corno anterior, da raiz
nervosa, do plexo dos membros ou do nervo periférico – apenas os músculos
inervados pela estrutura acometida ficam fracos. A fraqueza miopática costuma
ser mais acentuada nos músculos proximais. A fraqueza por comprometimento
na transmissão neuromuscular não tem padrão específico de envolvimento.
Geralmente, a fraqueza é acompanhada por outras anormalidades
neurológicas que ajudam a indicar a localização da lesão responsável (Tab. 21-
1).
TABELA 21-1 ■ Sinais que distinguem a origem da fraqueza
Sinal Neurônio motor Neurônio motor Miopática Psicogênica
superior inferior

Atrofia Ausente Grave Leve Ausente


Fasciculações Ausentes Comuns Ausentes Ausentes
Tônus Espástico Reduzido Normal/diminuído Variável/paratonia
Distribuição da fraqueza Piramidal/regional Distal/segmentar Proximal Variável/inconsistente com
atividades diárias
Reflexos de estiramento Hiperativos Hipoativos/ausentes Normais/hipoativos Normais
muscular
Sinal de Babinski Presente Ausente Ausente Ausente

Tônus é a resistência de um músculo ao estiramento passivo. Há vários


tipos de aumento de tônus. Espasticidade é o aumento no tônus associado a
doença do neurônio motor superior. Ela é velocidade-dependente, tem liberação
súbita após alcançar um nível máximo (o fenômeno de “canivete”) e acomete
predominantemente os músculos antigravitacionais (i.e., os flexores dos
membros superiores e extensores dos membros inferiores). Rigidez é a hipertonia
presente durante toda a amplitude de movimento (rigidez “plástica” ou em “cano
de chumbo”) e acomete igualmente os flexores e extensores, tendo, às vezes,
uma qualidade de “roda dentada” acentuada pelo movimento voluntário do
membro contralateral (reforço). A rigidez ocorre em certos distúrbios
extrapiramidais, como a doença de Parkinson. Paratonia (ou gegenhalten) é o
aumento do tônus que varia irregularmente, de forma aparentemente relacionada
com o grau de relaxamento, e está presente durante toda a amplitude de
movimento, acometendo igualmente flexores e extensores; em geral, resulta de
doença dos lobos frontais. Ocorre fraqueza com tônus diminuído (flacidez) ou
normal nos distúrbios das unidades motoras. Uma unidade motora consiste em
um único neurônio motor inferior e todas as fibras musculares que ele inerva.
O volume muscular costuma não ser afetado nos pacientes com lesões do
neurônio motor superior, embora possa ocorrer atrofia leve por desuso. Em
contrapartida, a atrofia é geralmente notável quando uma lesão do neurônio
motor inferior é responsável por fraqueza e também pode ocorrer com doença
muscular avançada.
Os reflexos de estiramento muscular (tendinosos) costumam estar
aumentados com lesões do neurônio motor superior, embora possam encontrar-
se diminuídos ou ausentes por um período variável imediatamente após o início
de uma lesão aguda. A hiper-reflexia é geralmente – mas nem sempre –
acompanhada de perda dos reflexos cutâneos (como os abdominais superficiais;
Cap. 415) e, em particular, de uma resposta plantar extensora (Babinski). Os
reflexos musculares de estiramento ficam deprimidos em pacientes com lesões
do neurônio motor inferior com acometimento direto de arcos reflexos
específicos. Eles costumam estar preservados nos pacientes com fraqueza
miopática, exceto em estágios avançados, quando, às vezes, se mostram
atenuados. Nos distúrbios da junção neuromuscular, a intensidade das respostas
reflexas pode ser afetada pela atividade muscular realizada previamente pelos
músculos acometidos; tal atividade pode acentuar reflexos inicialmente
deprimidos na síndrome miastênica de Lambert-Eaton e, em contrapartida,
causar depressão de reflexos inicialmente normais na miastenia gravis (Cap. 44
0).
Às vezes, a distinção clínica entre fraqueza neuropática (neurônio motor
inferior) e miopática é difícil, embora seja mais provável que a fraqueza distal
seja neuropática e a simétrica proximal seja miopática. Fasciculações
(contrações visíveis ou palpáveis dentro de um músculo decorrentes da descarga
espontânea de uma unidade motora) e atrofia precoce indicam que a fraqueza é
neuropática.

PATOGÊNESE
Fraqueza associada ao neurônio motor superior As lesões dos neurônios
motores superiores ou de seus axônios descendentes para a medula espinal (Fig.
21-1) produzem fraqueza por redução da ativação dos neurônios motores
inferiores. Em geral, os grupos musculares distais são acometidos mais
gravemente do que os proximais, e os movimentos axiais são poupados a menos
que a lesão seja grave e bilateral. A espasticidade é típica, mas pode não estar
presente na fase aguda. Os movimentos repetitivos rápidos são lentos e
grosseiros, mas a ritmicidade normal é mantida. Com acometimento
corticobulbar, ocorre fraqueza na parte inferior da face e na língua; tipicamente,
os músculos extraoculares, da parte superior da face, faríngeos e da mandíbula
são poupados. Nas lesões corticobulbares bilaterais, costuma ocorrer paralisia
pseudobulbar: disartria, disfagia, disfonia e labilidade emocional acompanham a
fraqueza facial bilateral e um reflexo mandibular exacerbado. A eletromiografia
(EMG) (Cap. 438) mostra que, na fraqueza relacionada ao neurônio motor
superior, as unidades motoras têm redução da frequência máxima de descarga.
FIGURA 21-1 Vias dos neurônios motores superiores corticospinais e bulbospinais. Os neurônios
motores superiores têm seus corpos celulares na camada V do córtex motor primário (giro pré-central ou
área 4 de Brodmann), bem como nos córtices pré-motor e motor suplementar (área 6). Os neurônios
motores superiores no córtex motor primário estão organizados de maneira somatotópica (lado direito da
figura). Os axônios dos neurônios motores superiores descem através da substância branca subcortical e do
ramo posterior da cápsula interna. Os axônios do sistema piramidal ou corticospinal descem pelo tronco
encefálico no pedúnculo cerebral do mesencéfalo, base da ponte e pirâmides bulbares. Na junção
cervicobulbar, a maioria dos axônios corticospinais decussam para o trato corticospinal contralateral da
medula espinal lateral, mas 10-30% permanecem ipsilaterais na medula espinal anterior. Os neurônios
corticospinais fazem sinapse com interneurônios pré-motores, mas alguns – especialmente no alargamento
cervical e aqueles que fazem conexão com neurônios motores para músculos distais dos membros – fazem
conexões monossinápticas diretas com os neurônios motores inferiores. Eles inervam mais densamente os
neurônios motores inferiores dos músculos da mão e estão envolvidos na execução de movimentos finos
aprendidos. Os neurônios corticobulbares são semelhantes aos corticospinais, mas inervam os núcleos
motores do tronco encefálico. Os neurônios motores superiores bulbospinais influenciam a força e o tônus,
mas não fazem parte do sistema piramidal. As vias bulbospinais ventromediais descendentes originam-se no
teto do mesencéfalo (via tectospinal), nos núcleos vestibulares (via vestibulospinal) e na formação reticular
(via reticulospinal). Essas vias influenciam os músculos axiais e proximais e estão envolvidas na
manutenção da postura e nos movimentos integrados de membros e tronco. As vias bulbospinais
ventrolaterais descendentes, que se originam predominantemente no núcleo rubro (via rubrospinal),
facilitam os músculos distais dos membros. O sistema bulbospinal às vezes é designado como sistema
extrapiramidal do neurônio motor superior. Em todas as ilustrações, os corpos celulares dos nervos e os
terminais axônicos são mostrados, respectivamente, como círculos fechados e forquilhas.

Fraqueza associada ao neurônio motor inferior Esse padrão resulta de


distúrbios dos neurônios motores inferiores nos núcleos motores do tronco
encefálico e do corno anterior da medula espinal, ou de disfunção dos axônios
desses neurônios à medida que passam aos músculos esqueléticos (Fig. 21-2). A
fraqueza se deve a uma redução no número de fibras musculares que podem ser
ativadas graças à perda de neurônios motores α ou à ruptura de suas conexões
com os músculos. A perda de neurônios motores γ não causa fraqueza, mas
diminui a tensão sobre os fusos musculares, o que reduz o tônus muscular e
atenua os reflexos de estiramento. A ausência de um reflexo de estiramento
sugere o acometimento de fibras aferentes do fuso muscular.
FIGURA 21-2 Os neurônios motores inferiores são divididos em tipos α e γ. Os maiores neurônios
motores α são mais numerosos e inervam as fibras musculares extrafusais da unidade motora. A perda de
neurônios motores α ou a ruptura de seus axônios produz fraqueza de neurônio motor inferior. Os neurônios
motores γ, menores em tamanho e em quantidade, inervam as fibras musculares intrafusais do fuso
muscular e contribuem para a normalidade do tônus e dos reflexos de estiramento. O neurônio motor α
recebe estímulo excitatório direto dos motoneurônios corticais e dos aferentes primários do fuso muscular.
Os neurônios motores α e γ também recebem estímulo excitatório de outras vias neuronais motoras
superiores descendentes, de estímulos sensoriais segmentares e de interneurônios. Os neurônios motores α
recebem inibição direta dos interneurônios das células de Renshaw, enquanto outros interneurônios inibem
indiretamente os neurônios motores α e γ. Um reflexo de estiramento (tendinoso) requer o funcionamento
de todas as estruturas ilustradas. A percussão em um tendão estira os fusos musculares (que são tonicamente
ativados por neurônios motores γ) e ativa os neurônios aferentes primários do fuso. Os neurônios estimulam
os neurônios motores α na medula espinal, produzindo uma breve contração muscular, que é o familiar
reflexo tendinoso.

Quando uma unidade motora fica doente, especialmente nas doenças de


células do corno anterior, ela pode disparar espontaneamente, produzindo
fasciculações. Quando os neurônios motores α ou seus axônios degeneram, as
fibras musculares denervadas também podem disparar espontaneamente. Essas
descargas de fibras musculares isoladas, ou potenciais de fibrilação, não podem
ser vistas, mas podem ser registradas com a EMG. A fraqueza leva a atraso ou
redução no recrutamento de unidades motoras, com um número menor que o
normal sendo ativado em uma determinada frequência de descarga.

Fraqueza da junção neuromuscular Os distúrbios da junção neuromuscular


produzem fraqueza com grau e distribuição variáveis. O número de fibras
musculares ativadas varia com o tempo, dependendo do estado de repouso das
junções neuromusculares. A força é influenciada pela atividade precedente do
músculo afetado. Na miastenia gravis, por exemplo, as contrações sustentadas
ou repetidas do músculo afetado diminuem de força apesar do esforço
continuado (Cap. 440). Assim, a fraqueza com fatigabilidade é sugestiva de
distúrbios da junção neuromuscular, que causam perda funcional de fibras
musculares devido a falhas na sua ativação.

Fraqueza miopática A fraqueza miopática é causada por uma diminuição no


número ou na força contrátil das fibras musculares ativadas dentro de unidades
motoras. Nas distrofias musculares, miopatias inflamatórias ou miopatias com
necrose de fibra muscular, o número de fibras musculares em muitas unidades
motoras fica reduzido. Na EMG, o tamanho de cada potencial de ação da
unidade motora é menor e as unidades motoras precisam ser recrutadas com
maior rapidez do que o normal para produzir a potência desejada. Algumas
miopatias resultam em fraqueza por perda da força contrátil das fibras
musculares ou pelo acometimento seletivo das fibras do tipo II (rápidas). Essas
miopatias podem não afetar o tamanho de potenciais de ação da unidade motora
individuais e são detectadas por uma discrepância entre a atividade elétrica e a
força de um músculo.

Fraqueza psicogênica A fraqueza pode ocorrer sem uma base orgânica


reconhecível. Ela tende a ser variável e inconsistente e a ter um padrão de
distribuição que não pode ser explicado com base na neuroanatomia. Nos
exames padrões, os antagonistas podem contrair quando o paciente está
supostamente ativando o músculo agonista. A intensidade da fraqueza é
incompatível com as atividades diárias realizadas pelo paciente.

DISTRIBUIÇÃO DA FRAQUEZA
Hemiparesia Resulta de lesão de neurônio motor superior acima da medula
espinal mediocervical; a maioria dessas lesões ocorre acima do forame magno. A
presença de outros déficits neurológicos ajuda a localizar a lesão. Assim,
distúrbios da linguagem, por exemplo, apontam para uma lesão cortical. Defeitos
homônimos do campo visual refletem uma lesão hemisférica cortical ou
subcortical. Uma hemiparesia “motora pura” da face, de um braço ou perna
geralmente deve-se a uma lesão pequena e discreta no ramo posterior da cápsula
interna, no pedúnculo cerebral mesenfálico ou na parte superior da ponte.
Algumas lesões do tronco encefálico causam “paralisias cruzadas”, consistindo
em sinais de nervo craniano ipsilateral e hemiparesia contralateral (Cap. 419). A
ausência de sinais de nervo craniano ou de fraqueza facial sugere que a
hemiparesia deve-se a uma lesão na medula espinal cervical alta, especialmente
se associada à síndrome de Brown-Séquard (Cap. 434).
A hemiparesia aguda ou episódica geralmente resulta de lesões estruturais
focais, particularmente lesões de crescimento rápido ou de processos
inflamatórios. A hemiparesia subaguda que evolui ao longo de dias ou semanas
pode estar relacionada com hematoma subdural, distúrbios infecciosos ou
inflamatórios (p. ex., abscesso cerebral, granumola ou meningite fúngica,
infecção parasitária, esclerose múltipla, sarcoidose) ou neoplasias primárias ou
metastáticas. A Aids pode se manifestar por hemiparesia subaguda decorrente de
toxoplasmose ou linfoma primário do sistema nervoso central (SNC). A
hemiparesia crônica que evolui durante meses, em geral, se deve a uma
neoplasia ou malformação vascular, a um hematoma subdural crônico ou a uma
doença degenerativa.
A investigação de hemiparesia (Fig. 21-3) de origem aguda começa com
uma tomografia computadorizada (TC) do cérebro e exames laboratoriais. Se a
TC for normal ou se for um caso subagudo ou crônico de hemiparesia, realiza-se
ressonância magnética (RM) do encéfalo e/ou coluna cervical (incluindo o
forame magno), dependendo da apresentação clínica.
FIGURA 21-3 Algoritmo para investigação diagnóstica inicial de um paciente com fraqueza. TC,
tomografia computadorizada, NMI, neurônio motor inferior; RM, ressonância magnética, NMS, neurônio
motor superior; ENMG, eletroneuromiografia.

Paraparesia A paraparesia aguda é causada mais comumente por uma lesão


intraespinal, mas sua origem espinal pode não ser reconhecida inicialmente se as
pernas estiverem flácidas e com arreflexia. Geralmente, entretanto, há perda
sensitiva nas pernas, com um nível sensitivo alto no tronco, uma perda sensitiva
dissociada sugestiva de síndrome espinal central (Cap. 434) ou hiper-reflexia
nas pernas com reflexos normais nos braços. Os exames de imagem da medula
espinal (Fig. 21-3) podem revelar lesões compressivas, infarto (a propriocepção
é geralmente poupada), fístulas arteriovenosas ou outras anomalias vasculares ou
mielite transversa (Cap. 434).
As doenças dos hemisférios cerebrais que causam paraparesia aguda
incluem isquemia da artéria cerebral anterior (também prejudica a elevação dos
ombros), trombose do seio sagital superior ou da veia cortical e hidrocefalia
aguda.
A paraparesia pode resultar de síndrome da cauda equina, por exemplo,
após trauma lombar, herniação de disco na linha média ou tumor intraespinal. Os
esfincteres geralmente são afetados, enquanto a flexão do quadril e a
sensibilidade das coxas anterolaterais são poupadas. Raras vezes, a paraparesia é
causada por doença das células do corno anterior de evolução rápida (como
infecção pelo poliovírus ou pelo vírus do Nilo Ocidental), neuropatia periférica
(como a síndrome de Guillain-Barré; Cap. 439) ou miopatia (Cap. 441).
A paraparesia espástica subaguda ou crônica é causada por doença do
neurônio motor superior. Quando associada a perda sensitiva em membros
inferiores e envolvimento de esfincteres, deve-se considerar um distúrbio
crônico da medula espinal (Cap. 434). Se houver sinais hemisféricos, existe a
probabilidade de meningioma parassagital ou hidrocefalia crônica. A ausência de
espasticidade em uma paraparesia de longa duração sugere etiologia de neurônio
motor inferior ou miopática.
A investigação tipicamente começa com RM de coluna vertebral, mas,
quando há sinais de neurônio motor superior associados a sonolência, confusão,
convulsões ou outros sinais hemisféricos, deve-se também realizar RM do
encéfalo, algumas vezes como investigação inicial. Os estudos eletrofisiológicos
são úteis para o diagnóstico quando os achados clínicos sugerem um distúrbio
neuromuscular subjacente.

Tetraparesia ou fraqueza generalizada A fraqueza generalizada pode ser


causada por distúrbios do SNC ou da unidade motora. Embora os termos em
geral sejam utilizados como sinônimos, é comum usar tetraparesia quando se
suspeita de etiologia no neurônio motor superior e fraqueza generalizada quando
há probabilidade de uma doença afetando a unidade motora. A fraqueza causada
por distúrbios do SNC costuma estar associada a alterações na consciência ou
cognição e estar acompanhada por espasticidade, hiper-reflexia e distúrbios
sensitivos. A maioria das causas neuromusculares de fraqueza generalizada está
associada a função mental normal, hipotonia e reflexos de estiramento muscular
hipoativos. As principais causas de fraqueza intermitente estão listadas na Tabel
a 21-2. Um paciente com fatigabilidade generalizada sem fraqueza objetiva pode
ter síndrome da fadiga crônica (Cap. 442).

TABELA 21-2 ■ Causas de fraqueza generalizada episódica


1. Distúrbios eletrolíticos, como hipopotassemia, hiperpotassemia, hipercalcemia, hipernatremia, hiponatremia, hipofosfatemia,
hipermagnesemia
2. Distúrbios musculares
a. Canalopatias (paralisias periódicas)
b. Defeitos metabólicos dos músculos (utilização inadequada de carboidratos ou ácidos graxos; função mitocondrial anormal)
3. Distúrbios da junção neuromuscular
a. Miastenia gravis
b. Síndrome miastênica de Lambert-Eaton
4. Distúrbios do sistema nervoso central
a. Ataques isquêmicos transitórios do tronco encefálico
b. Isquemia cerebral global transitória
c. Esclerose múltipla
5. Falta de esforço voluntário
a. Ansiedade
b. Dor ou desconforto
c. Transtorno de somatização

TETRAPARESIA AGUDA A tetraparesia que se inicia em questão de minutos


pode ser resultante de distúrbios dos neurônios motores superiores (p. ex.,
anóxia, hipotensão, isquemia do tronco encefálico ou da medula cervical,
traumatismo e anormalidades metabólicas sistêmicas) ou musculares (distúrbios
eletrolíticos, certos erros inatos do metabolismo energético muscular, toxinas e
paralisias periódicas). O início ao longo de horas a semanas pode ser decorrente,
além das causas mencionadas anteriormente, de distúrbios do neurônio motor
inferior, como a síndrome de Guillain-Barré (Cap. 439).
Nos pacientes obnubilados, a avaliação começa com uma TC do cérebro. Se
houver sinais do neurônio motor superior, mas o paciente estiver alerta, o
primeiro exame geralmente é uma RM da medula cervical. Se a origem da
fraqueza estiver no neurônio motor inferior, em uma miopatia ou for incerta, a
abordagem clínica deverá começar com exames de sangue para determinar o
nível das enzimas musculares e eletrólitos, e com eletroneuromiografia
(ENMG).

TETRAPARESIA SUBAGUDA OU CRÔNICA A tetraparesia causada por


doença do neurônio motor superior pode se desenvolver ao longo de semanas a
anos em casos de mielopatias crônicas, esclerose múltipla, tumores cerebrais ou
espinais, hematomas subdurais crônicos e vários distúrbios metabólicos, tóxicos
e infecciosos. Ela também pode resultar de doença do neurônio motor inferior,
mielopatia crônica (na qual a fraqueza costuma ser mais profunda distalmente)
ou fraqueza miopática (tipicamente proximal).
Nos pacientes obnubilados com tetraparesia aguda, a avaliação começa
com uma TC do cérebro. Se houver sinais agudos do neurônio motor superior,
mas o paciente estiver alerta, o primeiro exame geralmente é uma RM da medula
cervical. Quando o início for gradual, os distúrbios dos hemisférios cerebrais, do
tronco encefálico e da medula cervical podem geralmente ser distinguidos
clinicamente e os exames de imagem são primeiramente direcionados para o
local de patologia clinicamente suspeito. Se a fraqueza for do neurônio motor
inferior, miopática ou de origem incerta, exames laboratoriais para determinar os
níveis de enzimas musculares e eletrólitos e a ENMG ajudam a localizar o
processo patológico.

Monoparesia Costuma ser causada por doença do neurônio motor inferior, com
ou sem comprometimento sensitivo associado. A fraqueza decorrente de afecção
do neurônio motor superior ocasionalmente manifesta-se como monoparesia dos
músculos distais e não antigravitacionais. A fraqueza miopática raramente se
limita a um único membro.

MONOPARESIA AGUDA Se a fraqueza for predominantemente distal e do


tipo de neurônio motor superior sem associação com déficit sensitivo ou dor,
uma isquemia cortical focal é provável (Cap. 420); as possibilidades
diagnósticas são semelhantes àquelas da hemiparesia aguda. A perda sensitiva e
a dor em geral acompanham a fraqueza de origem no neurônio motor inferior; é
comum a fraqueza estar relacionada à lesão de uma única raiz nervosa ou nervo
periférico, mas ocasionalmente ela reflete o acometimento de um plexo. Se a
fraqueza de neurônio motor inferior for provável, a avaliação começa com a
ENMG.

MONOPARESIA SUBAGUDA OU CRÔNICA A fraqueza e a atrofia que se


desenvolvem por semanas ou meses em geral têm origem no neurônio motor
inferior. Caso estejam associadas a sintomas sensitivos, uma causa periférica
(nervo, raiz nervosa ou plexo) é provável; na ausência de tais sintomas, deve-se
considerar doença do corno anterior. Em ambas as situações, é indicado um
exame eletrodiagnóstico. Se a fraqueza for proveniente do neurônio motor
superior, pode ser que uma lesão medular ou cortical (pré-central) distinta ou
seja responsável, e um exame de imagem deverá ser feito no local apropriado.

Fraqueza distal O acometimento distal de um ou mais membros sugere doença


de neurônio motor inferior ou de nervo periférico. Ocasionalmente, ocorre
fraqueza aguda distal no membro inferior em decorrência de polineuropatia
tóxica aguda ou síndrome da cauda equina. A fraqueza simétrica distal costuma
levar semanas, meses ou anos para se desenvolver e, quando associada a
dormência, deve-se à neuropatia periférica (Cap. 438). A doença celular do
corno anterior pode começar distalmente, mas em geral é assimétrica e sem
dormência concomitante (Cap. 429). Raramente, as miopatias manifestam-se
por fraqueza distal (Cap. 441). Os exames eletrodiagnósticos ajudam a localizar
o distúrbio (Fig. 21-3).

Fraqueza proximal A miopatia costuma causar fraqueza simétrica dos músculos


da cintura pélvica ou escapular (Cap. 441). Doenças da junção neuromuscular,
como a miastenia gravis (Cap. 440), podem manifestar-se por fraqueza
simétrica proximal, geralmente associada a ptose, diplopia ou fraqueza bulbar de
gravidade flutuante durante o dia. Na doença celular do corno anterior, a
fraqueza proximal costuma ser assimétrica, mas pode ser simétrica se for de
origem familiar. Não ocorre dormência em qualquer uma dessas doenças. A
avaliação em geral começa com a determinação do nível sérico de creatina-
cinase (CK) e exames eletrofisiológicos.

Fraqueza em distribuição restrita Tal fraqueza pode não se enquadrar em


qualquer um desses padrões, estando limitada, por exemplo, aos músculos
extraoculares, hemifaciais, bulbares ou respiratórios. Se unilateral, a fraqueza
restrita geralmente se deve à doença de neurônio motor inferior ou de nervo
periférico, como em uma paralisia facial. A fraqueza de parte de um membro
costuma ser decorrente de lesão em nervo periférico, como na neuropatia por
aprisionamento. A fraqueza relativamente simétrica de músculos extraoculares
ou bulbares deve-se frequentemente a miopatia (Cap. 441) ou distúrbio da
junção neuromuscular (Cap. 440). Paralisia facial bilateral com arreflexia sugere
síndrome de Guillain-Barré (Cap. 439). O agravamento pela fadiga de uma
fraqueza relativamente simétrica é característico de distúrbios da junção
neuromuscular. A fraqueza bulbar assimétrica costuma ser decorrente de doença
de neurônio motor. A fraqueza limitada aos músculos ventilatórios é incomum e
em geral decorrente de doença de neurônio motor, miastenia gravis ou
polimiosite/dermatomiosite (Cap. 358).

LEITURAS ADICIONAIS
Brazis P, Masdeu JC, Biller J: Localization in Clinical Neurology, 7th ed.
Philadelphia, Lippincott William & Wilkins, 2016.
Campbell WW: DeJong’s The Neurological Examination, 7th ed. Philadelphia,
Lippincott William & Wilkins, 2012.
Guarantors of Brain: Aids to the Examination of the Peripheral Nervous System,
4th ed. Edinburgh, Saunders, 2000.
22
Dormência, formigamento e perda
sensitiva
Michael J. Aminoff

A sensibilidade somática normal reflete um processo contínuo de


monitoramento, e pouco desse processo chega à consciência em condições
normais. Já os distúrbios da sensibilidade, principalmente se dolorosos, são
alarmantes e dominam a atenção do paciente. Os médicos devem ser capazes de
reconhecer sensações anormais pela forma como são descritas, conhecer seus
tipos e locais prováveis de origem, bem como compreender suas implicações. A
dor é considerada separadamente no Capítulo 10.

SINTOMAS POSITIVOS E NEGATIVOS


Sintomas sensitivos anormais podem ser divididos em duas categorias: positivos
e negativos. O protótipo de um sintoma positivo é o formigamento (alfinetadas e
agulhadas); outros fenômenos sensitivos positivos incluem prurido e sensações
alteradas que são descritas como ferroadas, em forma de faixa, semelhantes a
relâmpagos (lancinantes), dolorimento, punhaladas, torções, trações, puxões,
apertos, queimações, ressecamento, choques elétricos ou aspereza. Tais sintomas
muitas vezes são dolorosos.
Os fenômenos positivos geralmente resultam de séries de impulsos gerados
em locais de limiar mais baixo ou de excitabilidade exacerbada ao longo de uma
via sensitiva periférica ou central. A natureza e a intensidade da sensação
anormal dependem do número, da frequência, da periodicidade e da distribuição
dos impulsos ectópicos, bem como do tipo e da função do tecido nervoso de
origem. Como os fenômenos positivos representam atividade excessiva nas vias
sensitivas, não estão obrigatoriamente associados a déficit (perda) sensitivo ao
exame físico.
Os fenômenos negativos representam perda da função sensitiva e se
caracterizam por redução ou supressão da sensibilidade, geralmente percebidas
como dormência, e por achados anormais ao exame sensitivo. Nos distúrbios que
afetam a sensibilidade periférica, pelo menos metade dos axônios aferentes que
inervam determinada região estão provavelmente perdidos ou funcionalmente
desativados antes que um déficit sensitivo seja detectável ao exame físico.
Porém, caso seja lenta, a perda da sensação cutânea pode passar despercebida
pelo paciente e ser difícil de detectar ao exame, ainda que poucas fibras
sensitivas estejam funcionando; se for rápida, geralmente fenômenos positivos e
negativos são evidentes. Graus subclínicos de disfunção sensitiva podem ser
demonstrados por estudos de condução nervosa ou por potenciais evocados
somatossensitivos.
Embora os sintomas sensitivos possam ser positivos ou negativos, os sinais
sensitivos ao exame físico são sempre uma medida de fenômenos negativos.

TERMINOLOGIA
Parestesias e disestesias são termos gerais usados para descrever sintomas
sensitivos positivos. O termo parestesia refere-se a formigamento ou sensações
de alfinetada e agulhada, mas também pode incluir grande variedade de outras
sensações anormais, exceto dor; às vezes, traz a conotação de que as sensações
anormais são percebidas espontaneamente. O termo mais genérico disestesia
denota todos os tipos de sensação anormal, inclusive a dolorosa, com ou sem
estímulo evidente.
Outro conjunto de termos refere-se a anormalidades sensitivas detectadas
ao exame físico. Hipoestesia ou hipestesia refere-se à redução da sensibilidade
cutânea a um tipo específico de estímulo, como pressão, toque suave e calor ou
frio; anestesia, à ausência completa de sensibilidade cutânea aos mesmos
estímulos e à dor; e hipoalgesia ou analgesia, à redução ou ausência da
percepção de dor (nocicepção). Hiperestesia significa dor ou maior sensibilidade
em resposta ao toque. De modo semelhante, alodinia descreve a situação em que
um estímulo não doloroso, quando percebido, é sentido como doloroso ou
mesmo excruciante. Um exemplo é o desencadeamento de uma sensação
dolorosa pela aplicação de um diapasão em vibração. Hiperalgesia denota dor
intensa em resposta a estímulo levemente doloroso, enquanto hiperpatia é um
termo amplo que abrange todos os fenômenos descritos como hiperestesia,
alodinia e hiperalgesia. Na hiperpatia, o limiar para um estímulo sensitivo é
aumentado, e sua percepção é tardia, mas, quando percebido, parece
extremamente doloroso.
Os distúrbios da sensibilidade profunda oriunda de fusos musculares,
tendões e articulações, afetam a propriocepção (sensação de posição). Suas
manifestações incluem desequilíbrio (principalmente com os olhos fechados ou
em ambiente escuro), dificuldade para executar movimentos precisos e
instabilidade da marcha, denominados coletivamente ataxia sensitiva. Outros
achados ao exame físico geralmente, mas nem sempre, incluem redução ou
supressão das sensibilidades vibratória e proprioceptiva, além de ausência dos
reflexos tendíneos profundos nos membros acometidos. O sinal de Romberg é
positivo, o que significa que o paciente oscila bastante ou cai quando solicitado a
permanecer em pé com os pés unidos e os olhos fechados. Nos estados graves de
desaferentação envolvendo sensibilidade profunda, o paciente não consegue
deambular ou ficar de pé sem apoio, ou mesmo sentar-se sem ajuda. Ocorrem
movimentos involuntários contínuos (pseudoatetose) das mãos e dos dedos
estendidos, principalmente com os olhos fechados.

ANATOMIA DA SENSIBILIDADE
Os receptores cutâneos são classificados pelo tipo de estímulo que os estimula
melhor. Eles consistem em terminações nervosas desnudas (nociceptores, que
respondem a estímulos de dano tecidual, e termorreceptores, que respondem a
estímulos térmicos não lesivos) e terminais encapsulados (vários tipos de
mecanorreceptores, ativados pela deformação física da pele). Cada tipo de
receptor tem seu próprio conjunto de sensibilidades a estímulos específicos,
dimensão e precisão dos campos receptivos e propriedades adaptativas.
Fibras aferentes nos troncos nervosos periféricos percorrem as raízes
dorsais e entram no corno dorsal da medula espinal (Fig. 22-1). A partir das
projeções polissinápticas das fibras menores (não mielinizadas e mielinizadas
finas), que transmitem principalmente a nocicepção, o prurido, a sensibilidade
térmica e o tato, cruzam e ascendem pelas colunas anterior e lateral do lado
oposto da medula espinal, através do tronco encefálico para o núcleo ventral
posterolateral (VPL) do tálamo e, por fim, alcançam o giro pós-central do córtex
parietal e outras áreas corticais (Cap. 10). Essa é a via espinotalâmica ou o
sistema anterolateral. As fibras maiores, que servem às sensibilidades tátil e
proprioceptiva e à cinestesia, projetam-se em direção rostral nas colunas
posterior e posterolateral do mesmo lado da medula espinal e estabelecem a
primeira sinapse nos núcleos grácil ou cuneiforme no bulbo inferior. Axônios
dos neurônios de segunda ordem decussam e ascendem pelo lemnisco medial
situado medialmente na medula e no tegmento da ponte e do mesencéfalo,
fazendo sinapse no núcleo VPL; os neurônios de terceira ordem projetam-se para
o córtex parietal e para as outras áreas corticais. Esse sistema de fibras grossas é
conhecido como via da coluna posterior-lemnisco medial (ou apenas via
lemniscal). Embora os tipos e as funções das fibras que constituem os sistemas
espinotalâmico e lemniscal sejam relativamente bem conhecidos, muitas outras
fibras, principalmente aquelas associadas às sensações de tato, pressão e
propriocepção, ascendem em um padrão de distribuição difuso, ipsilateral e
contralateralmente, nos quadrantes anterolaterais da medula espinal, o que
explica por que uma lesão completa das colunas posteriores da medula espinal
pode ser associada a pouco déficit sensitivo detectável ao exame clínico.
FIGURA 22-1 Principais vias somatossensitivas. Estão ilustrados o trato espinotalâmico (dor,
sensibilidade térmica) e o sistema da coluna posterior-lemniscal (tato, pressão, posição das articulações). As
ramificações do fascículo anterolateral ascendente (trato espinotalâmico) para os núcleos no bulbo, na ponte
e no mesencéfalo e as terminações nucleares do trato estão indicadas. (De AH Ropper, MA Samuels: Adams
and Victor’s Principles of Neurology, 9th ed. New York, McGraw-Hill, 2009.)

Os estudos de condução nervosa e a biópsia de nervo são meios importantes


para investigar o sistema nervoso periférico, mas eles não avaliam a função ou a
estrutura de receptores cutâneos e terminações nervosas livres ou de fibras
nervosas não mielinizadas ou mielinizadas finas nos troncos nervosos. A biópsia
de pele pode ser usada para avaliar essas estruturas na derme e epiderme.

EXAME CLÍNICO DA SENSIBILIDADE


Os principais componentes do exame sensitivo são os testes da sensibilidade
primária (dor, tato, vibração, posição das articulações e temperatura) (Tab. 22-
1). O examinador depende das respostas do paciente, o que complica a
interpretação. Além disso, o exame pode estar limitado em alguns pacientes. Em
um paciente em estupor, por exemplo, o exame sensitivo restringe-se à
observação da rapidez do reflexo de retirada em resposta a um belisco ou a outro
estímulo nocivo. A comparação das respostas nos dois lados do corpo é
fundamental. No indivíduo alerta, mas incapaz de cooperar, às vezes é
impossível examinar a sensibilidade cutânea; porém, pode-se ter alguma noção
da função proprioceptiva atentando-se para o melhor desempenho do paciente ao
realizar movimentos que exigem estabilidade e precisão.

TABELA 22-1 ■ Testes de sensibilidade primária


Sensação Dispositivo usado no teste Terminações ativadas Tamanho das fibras Via central
mediadoras

Dor Alfinete Nociceptores cutâneos Pequeno E-T, também


D
Temperatura, Objeto metálico aquecido Termorreceptores cutâneos para o calor Pequeno E-T
calor
Temperatura, Objeto metálico frio Termorreceptores cutâneos para o frio Pequeno E-T
frio
Tato Chumaço de algodão Mecanorreceptores cutâneos, também Grande e pequeno Lem, também
terminações desnudas D e E-T
Vibração Diapasão de 128 Hz Mecanorreceptores, principalmente por Grande Lem, também
corpúsculos pacinianos D
Posição das Movimento passivo de Terminações das cápsulas articulares e Grande Lem, também
articulações articulações específicas tendões, fusos musculares D
Nota: D, projeções ascendentes difusas nas colunas anterolaterais ipsilaterais e contralaterais; Lem, coluna posterior e projeção lemniscal
ipsilaterais; E-T, projeção espinotalâmica contralateral.
Em pacientes com queixas sensitivas, o exame deve iniciar no centro da
região afetada e evoluir radialmente até a percepção normal da sensibilidade. A
distribuição de qualquer anormalidade é definida e comparada com territórios de
raízes e nervos periféricos (Figs. 22-2 e 22-3). Algumas vezes, os pacientes
apresentam-se com sintomas sensitivos que não se encaixam em uma localização
anatômica e são acompanhados por ausência de anormalidades ou
inconsistências grosseiras ao exame. Por isso, o médico deve considerar a
possibilidade de que os sintomas sensitivos sejam um pedido de ajuda disfarçado
para problemas psicológicos ou situacionais. O exame sensitivo de um paciente
sem queixas neurológicas pode ser breve e consistir de testes para dor, tato e
vibração nas mãos e nos pés, além da avaliação do equilíbrio em pé e da marcha,
incluindo a manobra de Romberg (ver Vídeo 415-1). A avaliação do equilíbrio
em pé e da marcha também serve para testar a integridade dos sistemas motor e
cerebelar.
FIGURA 22-2 Regiões cutâneas de nervos periféricos. (Reproduzida, com permissão, de W Haymaker, B
Woodhall: Peripheral Nerve Injuries, 2nd ed. Philadelphia, Saunders, 1953.)
FIGURA 22-3 Distribuição das raízes espinais sensitivas na superfície corporal (dermátomos). (De D
Sinclair: Mechanisms of Cutaneous Sensation. Oxford, UK, Oxford University Press, 1981; com permissão
de Dr. David Sinclair.)
Sensibilidade primária A sensação de dor costuma ser testada com um alfinete
limpo, que é depois descartado. Pede-se para o paciente fechar os olhos e se
concentrar na característica desagradável ou de ferroada do estímulo e não
apenas na sensação de pressão ou tato desencadeada. Deve-se mapear as áreas de
hipoalgesia prosseguindo radialmente a partir das regiões mais hipoalgésicas. A
melhor maneira de testar a sensação térmica para o frio e para o calor é mediante
o uso de pequenos recipientes cheios de água na temperatura desejada. Uma
alternativa para testar a sensibilidade ao frio é tocar a pele do paciente com um
objeto metálico, como um diapasão, à temperatura ambiente. Para testar
temperaturas quentes, o diapasão ou outro objeto metálico pode ser mergulhado
em água quente na temperatura desejada e em seguida aplicado à pele. É
importante testar tanto as sensações de frio quanto de calor porque os receptores
envolvidos são diferentes. O tato costuma ser testado com um chumaço de
algodão, minimizando a pressão na pele. Em geral, é aconselhável evitar o teste
da sensibilidade tátil nas regiões cutâneas pilosas, devido à profusão de
terminações sensitivas ao redor de cada folículo piloso. O paciente é testado com
os olhos fechados e deve avisar assim que o estímulo for percebido, indicando
sua localização.
O teste da posição das articulações é uma medida de propriocepção. Com o
paciente de olhos fechados, testa-se a posição articular na articulação
interfalângica distal do hálux e dos dedos. O dedo é segurado pelas laterais
distalmente à articulação sendo testada, e movido passivamente enquanto as
articulações mais proximais são estabilizadas – o paciente indica a mudança na
posição ou direção do movimento. Se houver erro, testa-se as articulações mais
proximais. O teste da sensibilidade posicional das articulações proximais,
principalmente do ombro, é realizado pedindo-se ao paciente que junte os dois
dedos indicadores com os braços estendidos e os olhos fechados. Os indivíduos
normais fazem esse movimento de maneira precisa, com erros de 1 cm ou
menos.
A sensibilidade vibratória é testada com um diapasão que vibra a 128 Hz. A
vibração é testada nas proeminências ósseas, começando nas regiões distais; nos
pés, o teste é feito sobre a superfície dorsal da falange distal de ambos os hálux e
nos maléolos dos tornozelos, bem como no dorso das mãos, na falange distal dos
dedos. Caso se encontrem anormalidades, devem ser examinados locais mais
proximais. Como medida de controle, o médico pode comparar os limiares de
sensibilidade vibratória nos mesmos segmentos do paciente e de si próprio.
Testes quantitativos de sensibilidade Há aparelhos comercialmente disponíveis
eficazes para testar a sensibilidade. Os testes quantitativos são particularmente
úteis para avaliações seriadas da sensibilidade cutânea em ensaios clínicos. As
avaliações dos limiares das sensibilidades tátil, vibratória e térmica são
utilizadas com maior frequência.

Sensibilidade cortical Os testes de função cortical mais usados são a


discriminação entre dois pontos, a localização tátil, a estimulação bilateral
simultânea e os testes de grafestesia e estereognosia. Em um paciente alerta e
cooperativo com sensibilidades primárias normais, as anormalidades nesses
testes indicam lesão do córtex parietal ou das projeções talamocorticais. Caso as
sensibilidades primárias se encontrem alteradas, essas funções discriminativas
corticais geralmente também estarão. Sempre se devem comparar os resultados
obtidos em áreas análogas de ambos os lados do corpo, porque o déficit causado
por lesão parietal tende a ser unilateral.
A discriminação entre dois pontos é testada com um compasso especial,
cujas pontas podem ser mantidas afastadas de 2 mm a vários centímetros e, em
seguida, aplicadas simultaneamente na região testada. Nas pontas dos dedos,
uma pessoa normal consegue diferenciar uma separação de 3 mm entre os
pontos.
A localização tátil é testada com uma pressão suave por um instante com a
ponta do dedo do examinador ou com um chumaço de algodão e pedindo ao
paciente, com os olhos fechados, que indique a área tocada. A estimulação
bilateral simultânea de áreas análogas (p. ex., o dorso de ambas as mãos) pode
ser realizada para determinar se a sensibilidade tátil está suprimida
significativamente em um lado (extinção ou negligência). Grafestesia se refere à
capacidade de reconhecer, de olhos fechados, letras ou números desenhados pelo
examinador com a ponta do dedo na palma do paciente. Novamente, a
comparação de um lado com o outro é crucial. A incapacidade de reconhecer
números ou letras é conhecida como agrafestesia.
Estereognosia é a capacidade de reconhecer objetos comuns à palpação,
reconhecendo sua forma, textura e tamanho. Objetos corriqueiros, como uma
chave, clipe de papel ou moedas, são mais convenientes para esse teste. Os
pacientes com estereognosia normal devem ser capazes de distinguir entre
moedas de 1 e 10 centavos, ou entre as de 25 e 50 centavos sem olhar. Os
pacientes devem examinar o objeto com uma das mãos de cada vez. Caso não
sejam capazes de reconhecê-lo com uma das mãos, o mesmo objeto deverá ser
colocado na outra mão para fins comparativos. Os indivíduos que não
reconhecem objetos comuns e moedas com uma das mãos, mas podem fazê-lo
com a outra, têm astereognosia da mão anormal.

LOCALIZAÇÃO DE ANORMALIDADES SENSITIVAS


Sinais e sintomas sensitivos podem resultar de lesões localizadas em muitos
níveis diferentes do sistema nervoso, desde o córtex parietal até o receptor
sensitivo periférico. A definição da distribuição e da natureza é o método mais
importante para localizar sua origem. A extensão, a configuração, a simetria, a
qualidade e a gravidade também são fundamentais.
Pode ser difícil interpretar disestesias sem anormalidades sensitivas ao
exame físico. Por exemplo, disestesias do tipo formigamento com distribuição
nas extremidades (mãos e pés) podem ter origem sistêmica (p. ex., devido à
hiperventilação) ou ser induzidas por um fármaco, como a acetazolamida. As
disestesias distais também podem ser manifestação precoce de polineuropatia
progressiva ou indicar o início de uma mielopatia, como por deficiência de
vitamina B12. Em alguns casos, as disestesias distais não têm causa detectável.
Por outro lado, as disestesias que correspondem à distribuição de um
determinado nervo periférico indicam lesão naquele local. Por exemplo, as
disestesias limitadas ao quinto dedo e à metade adjacente do quarto dedo da
mesma mão apontam claramente para um distúrbio do nervo ulnar, na maioria
dos casos localizado no cotovelo.

Nervo e raiz nervosa Nas lesões focais dos troncos nervosos, as anormalidades
sensitivas são facilmente mapeadas e, em geral, têm limites bem definidos (Figs.
22-2 e 22-3). As lesões radiculares costumam ser acompanhadas por sensações
dolorosas profundas ao longo do trajeto do tronco nervoso acometido. Com a
compressão da quinta raiz lombar (L5) ou primeira sacral (S1), como ocorre na
ruptura de disco intervertebral, a dor ciática (dor radicular relacionada com o
tronco do nervo ciático) é manifestação clínica comum (Cap. 14). Quando a
lesão afeta uma única raiz nervosa, os déficits sensitivos podem ser mínimos ou
inexistentes porque há sobreposição significativa entre os territórios das raízes
adjacentes.
Mononeuropatias isoladas podem causar sintomas além do território
inervado pelo nervo acometido, mas as anormalidades ao exame em geral ficam
confinadas aos limites anatômicos apropriados. Nas mononeuropatias múltiplas,
os sintomas e sinais ocorrem em territórios distintos inervados por diferentes
nervos individuais e – à medida que mais nervos são acometidos – podem
simular uma polineuropatia se os déficits se tornarem confluentes. Nas
polineuropatias, os déficits sensitivos costumam ter distribuição graduada, distal
e simétrica (Cap. 438). As disestesias, seguidas por dormência, começam nos
dedos dos pés e sobem simetricamente. Geralmente, quando chegam aos joelhos
também aparecem nas pontas dos dedos das mãos. Esse processo depende do
comprimento do nervo, e o déficit costuma ser descrito pela distribuição em
“meia e luva”. Também ocorre o acometimento das mãos e dos pés no caso das
lesões da coluna cervical superior ou do tronco encefálico, mas então é possível
encontrar um nível sensitivo alto no tronco, assim como outras evidências de
lesão central, como o acometimento esfincteriano ou sinais de lesão no neurônio
motor superior (Cap. 21). Embora a maioria das polineuropatias seja
pansensitiva e altere todas as modalidades de sensação, pode ocorrer disfunção
sensitiva seletiva de acordo com o tamanho da fibra nervosa. As polineuropatias
de fibras finas caracterizam-se por disestesias dolorosas em queimação, com
redução das sensibilidades térmica e álgica, mas preservação da propriocepção,
da função motora e dos reflexos tendíneos profundos. O tato é envolvido de
maneira variável; quando poupado, o padrão sensitivo é chamado dissociação
sensitiva. A dissociação sensitiva também pode ocorrer com lesões da medula
espinal. As polineuropatias de fibras grossas caracterizam-se por déficits da
vibração e da propriocepção, desequilíbrio, reflexos tendíneos ausentes e
disfunção motora variável, mas com preservação da maior parte da sensibilidade
cutânea. As disestesias, se presentes, tendem a ser formigamento ou sensação em
faixa.
A neuronopatia sensitiva (ou ganglionopatia) caracteriza-se por perda
sensitiva disseminada, mas assimétrica, que ocorre de maneira não dependente
do comprimento, de modo que pode ocorrer proximal ou distalmente e nos
braços, nas pernas ou em ambos. A dor e a dormência progridem para ataxia
sensitiva e comprometimento de todas as modalidades sensitivas com o tempo.
Essa condição geralmente tem origem paraneoplásica ou idiopática (Caps. 90 e
438) ou está relacionada a uma doença autoimune, particularmente a síndrome
de Sjögren.

Medula espinal (Ver também Cap. 434) Se ocorrer a transecção da medula


espinal, todas as modalidades sensitivas serão perdidas abaixo do nível da lesão.
Além das funções motoras, as funções vesical e intestinal também são perdidas.
A hemissecção lateral da medula espinal causa a síndrome de Brown-Séquard,
com perda das sensibilidades dolorosa e térmica contralateralmente, bem como
perda da propriocepção e da força muscular ipsilateralmente abaixo da lesão (ver
Figs. 22-1 e 434-1); hiperestesia ou dor ipsilateral também podem ocorrer.
Dormência ou parestesias em ambos os pés podem surgir de uma lesão na
medula espinal, o que é particularmente provável quando o nível superior da
perda sensitiva se estende ao tronco. Quando todos os membros são acometidos,
é provável que a lesão seja na região cervical ou no tronco encefálico, a menos
que uma neuropatia periférica seja responsável. A presença de sinais de neurônio
motor superior (Cap. 21) corrobora uma lesão central; uma faixa hiperestésica
no tronco pode sugerir o nível de acometimento.
Uma perda sensitiva dissociada pode refletir o acometimento do trato
espinotalâmico da medula espinal, principalmente se o déficit for unilateral e em
um nível mais alto no dorso. Ocorre comprometimento bilateral dos tratos
espinotalâmicos com as lesões que acometem o centro da medula espinal, como
na siringomielia. Há perda sensitiva dissociada, com comprometimento da
percepção de dor e temperatura, mas preservação relativa do tato leve, da
propriocepção e da vibração.
A disfunção das colunas posteriores da medula espinal ou da zona de
entrada da raiz posterior pode acarretar sensação em faixa em torno do tronco ou
de pressão forte em um ou mais membros. A flexão do pescoço às vezes resulta
em sensação semelhante a um choque elétrico, que se irradia para baixo no dorso
e até as pernas (sinal de Lhermitte) em pacientes com lesão cervical que afete as
colunas posteriores, como a decorrente de esclerose múltipla, espondilose
cervical ou irradiação recente da região cervical.

Tronco encefálico Padrões cruzados de alteração sensitiva, nos quais um lado da


face e o lado oposto do corpo são acometidos, indicam lesão do bulbo lateral.
Nesses casos, uma lesão pequena pode danificar tanto o trato trigeminal
descendente ipsilateral quanto as fibras espinotalâmicas ascendentes que
inervam o braço, a perna e o hemitronco opostos (ver “Síndrome bulbar lateral”
na Fig. 419-7). Uma lesão no tegmento da ponte e do mesencéfalo, em que os
tratos lemniscal e espinotalâmico se fundem, causa perda sensitiva contralateral.

Tálamo Os distúrbios hemissensitivos com dormência e formigamento da


cabeça ao pé em geral têm origem talâmica, mas também podem surgir da região
parietal anterior. Caso apareçam subitamente, é provável que a lesão se deva a
um pequeno acidente vascular cerebral (infarto lacunar), principalmente se
localizado no tálamo. Em alguns pacientes com lesões que acometem o núcleo
VPL ou a substância branca adjacente, pode ocorrer uma síndrome de dor
talâmica, também conhecida como síndrome de Déjerine-Roussy. A dor
unilateral, inexorável e persistente em geral é descrita em termos dramáticos.

Córtex Com lesões do lobo parietal que envolvem o córtex ou a substância


branca subjacente, os sintomas mais marcantes são heminegligência
contralateral, hemi-inatenção e uma tendência a não usar a mão e o braço
acometidos. Nos testes da sensibilidade cortical (p. ex., discriminação entre dois
pontos, grafestesia), com frequência encontram-se anormalidades, mas a
sensibilidade primária costuma se mostrar intacta. Um infarto parietal anterior
pode apresentar-se como síndrome pseudotalâmica com perda contralateral da
sensibilidade primária da cabeça aos pés. Também pode ocorrer disestesia ou
sensação de dormência e, raramente, um estado doloroso.

Convulsões focais sensitivas Geralmente resultam de lesões na área do giro pós


ou pré-central. O principal sintoma das crises parciais sensitivas é o
formigamento, mas pode haver outras sensações mais complexas, como de calor
ou de movimento sem deslocamento visível. Tipicamente, os sintomas são
unilaterais, surgindo primeiro no braço, na mão, na face ou no pé, e se espalham
de maneira que reflita a representação cortical de diferentes partes do corpo,
como na marcha jacksoniana. A duração das convulsões é variável: podem ser
transitórias, durando apenas alguns segundos, ou persistir por 1 hora ou mais.
Podem sobrevir crises motoras focais, muitas vezes se generalizando com a
perda da consciência e abalos tônico-clônicos.

Sintomas psicogênicos Os sintomas sensitivos podem ter uma base psicogênica.


Tais sintomas podem ser generalizados ou ter um limite anatômico difícil de
explicar neurologicamente, por exemplo, circunferencialmente na virilha ou no
ombro ou ao redor de uma articulação específica. A dor é comum, mas a
natureza e intensidade de quaisquer distúrbios sensitivos são variáveis. O
diagnóstico não deve ser de exclusão, mas sim se basear em achados sugestivos
que são difíceis de explicar de outra forma, como comprometimento de vibração,
dor ou toque leve percebidos como iniciando exatamente na linha média;
variabilidade ou pouca reprodução de déficits sensitivos; ou desempenho normal
em tarefas que necessitem da aferência sensitiva, mas aparentemente anormal em
um teste formal de sensibilidade, como bom desempenho no teste index-nariz
com os olhos fechados apesar de perda aparente de propriocepção no membro
superior. Pode-se confundir o lado com sensibilidade anormal quando os
membros são colocados em posição incomum, como cruzados nas costas, por
exemplo. Queixas sensitivas não devem ser consideradas psicogênicas apenas
porque são incomuns.

LEITURAS ADICIONAIS
Brazis P, Masdeu JC, Biller J: Localization in Clinical Neurology, 7th ed.
Philadelphia, Lippincott William & Wilkins, 2016.
Campbell WW: DeJong’s The Neurological Examination, 7th ed. Philadelphia,
Lippincott William & Wilkins, 2012.
23
Distúrbios da marcha, desequilíbrio e
quedas
Jessica M. Baker, Lewis R. Sudarsky
PREVALÊNCIA, MORBIDADE E MORTALIDADE
Os problemas da marcha e do equilíbrio são comuns no idoso e contribuem para
o risco de quedas e lesões. São descritos distúrbios da marcha em 15% dos
indivíduos com mais de 65 anos de idade. Aos 80 anos, 1 em cada 4 pessoas usa
algum auxílio mecânico para deambular. A partir dos 85, a prevalência de
anormalidades da marcha aproxima-se de 40%. Em estudos epidemiológicos, os
distúrbios da marcha são identificados consistentemente como um fator de risco
maior para quedas e lesões.
ANATOMIA E FISIOLOGIA
A deambulação bípede ereta depende da integração bem-sucedida do controle
postural e da locomoção. Tais funções se distribuem amplamente no sistema
nervoso central. A biomecânica da deambulação bípede é complexa, e o
desempenho, facilmente comprometido por déficit neurológico em qualquer
nível. Os centros de comando e controle no tronco encefálico, no cerebelo e no
prosencéfalo modificam a ação dos geradores do padrão espinal no sentido da
geração dos passos. Embora em quadrúpedes seja possível desencadear uma
forma de “locomoção fictícia” após transecção espinal, em primatas tal
capacidade é limitada. Nos primatas, a geração dos passos depende dos centros
locomotores no tegmento pontino, no mesencéfalo e na região subtalâmica. As
sinergias locomotoras são executadas por meio da formação reticular e das vias
descendentes na medula espinal ventromedial. O controle cerebral fornece um
objetivo e propósito para deambular, bem como está envolvido na prevenção de
obstáculos e adaptação dos programas locomotores com relação ao contexto e ao
terreno.
O controle postural requer a manutenção do centro de massa sobre a base
de suporte durante o ciclo da marcha. Os ajustes posturais inconscientes mantêm
o equilíbrio na posição ortostática: respostas de latência longa são mensuráveis
nos músculos das pernas, começando 110 ms após uma perturbação. O
movimento para frente do centro de massa proporciona força propulsiva para dar
os passos, mas a incapacidade de manter o centro de massa dentro dos limites de
estabilidade resulta em quedas. O substrato anatômico para o equilíbrio
dinâmico ainda não foi bem definido, mas o núcleo vestibular e o cerebelo na
linha média contribuem para o controle do equilíbrio nos animais. Pacientes com
lesão dessas estruturas apresentam déficit do equilíbrio na posição ortostática e
na deambulação.
O equilíbrio na posição ortostática depende de informações sensitivas de
boa qualidade sobre a posição do centro corporal com relação ao ambiente, à
superfície de apoio e às forças gravitacionais. As informações sensitivas para o
controle postural são geradas primariamente pelo sistema visual, pelo sistema
vestibular e pelos receptores proprioceptivos nos fusos musculares e
articulações. Em geral, há redundância saudável das informações sensitivas
aferentes, mas a perda de 2 das 3 vias é suficiente para comprometer o equilíbrio
na posição ereta. Os distúrbios do equilíbrio em idosos às vezes resultam de
múltiplas lesões nos sistemas sensitivos periféricos (p. ex., perda visual, déficit
vestibular, neuropatia periférica), prejudicando de forma significativa a
qualidade das informações aferentes essenciais à estabilidade do equilíbrio.
Os pacientes mais velhos com comprometimento cognitivo parecem
particularmente propensos a quedas e traumatismos. Há uma crescente literatura
sobre o uso de recursos de atenção que ajudam a controlar a marcha e o
equilíbrio. Em geral, considera-se a deambulação como inconsciente e
automática, mas a capacidade de deambular enquanto cumpre uma tarefa
cognitiva (caminhada de dupla tarefa) pode ficar particularmente comprometida
em idosos. Pacientes idosos com déficits na função executiva têm uma
dificuldade particular para manter a atenção necessária ao equilíbrio dinâmico
quando estão distraídos.
DISTÚRBIOS DA MARCHA
(Ver Vídeo 23-1) Os distúrbios da marcha podem ser atribuídos a causas
neurológicas e não neurológicas, embora costume haver significativa
sobreposição. A marcha antálgica resulta da evitação da dor associada com a
sustentação de peso, sendo comumente vista na osteoartrite. A assimetria é uma
característica comum dos distúrbios da marcha devido a contraturas e outras
deformidades ortopédicas. Os problemas visuais estão entre as causas não
neurológicas comuns de distúrbios da marcha.
Os distúrbios neurológicos da marcha são incapacitantes e igualmente
importantes de abordar. A heterogeneidade dos distúrbios da marcha observados
na prática clínica reflete a grande rede de sistemas neurais envolvidos na tarefa.
A deambulação é vulnerável a doenças neurológicas em qualquer nível. Os
distúrbios da marcha foram classificados de forma descritiva com base na
fisiologia e na biomecânica anormais. Um problema com essa abordagem é que
muitos tipos de marcha acabam parecendo muito semelhantes. Tal sobreposição
reflete padrões comuns de adaptação à estabilidade do equilíbrio ameaçada e ao
desempenho precário. Ao exame clínico, o distúrbio da marcha observado tem
de ser encarado como o resultado de um déficit neurológico e uma adaptação
funcional. Fatores singulares da marcha deficiente geralmente são sobrepujados
pela resposta adaptativa. Alguns padrões comuns de marcha anormal estão
resumidos adiante. Os distúrbios da marcha também podem ser classificados
pela etiologia (Tab. 23-1).

TABELA 23-1 ■ Etiologia dos distúrbios da marcha


Etiologia N° de casos Porcentagem

Déficits sensitivos 22 18,3


Mielopatia 20 16,7
Infartos múltiplos 18 15,0
Doença de Parkinson 14 11,7
Degeneração cerebelar 8 6,7
Hidrocefalia 8 6,7
Causas tóxicas/metabólicas 3 2,5
Causas psicogênicas 4 3,3
Outras 6 5,0
Causas desconhecidas 17 14,2
Total 120 100
Fonte: Reproduzida com permissão de J Masdeu et al: Gait Disorders of Aging. Lippincott Raven, 1997.
MARCHA CAUTELOSA
Usa-se essa expressão para descrever o paciente que deambula com passos
curtos, base ampla e abaixando o centro de massa, como se caminhasse sobre
uma superfície escorregadia. Tal distúrbio é comum e inespecífico. É uma
adaptação a uma ameaça postural percebida. Também pode haver medo de cair.
Esse distúrbio pode ser observado em mais de um terço dos casos de pacientes
idosos com prejuízo da marcha. A fisioterapia muitas vezes melhora a marcha
até o ponto em que a observação subsequente revela um distúrbio subjacente
mais específico.

MARCHA COM PERNAS RÍGIDAS


A marcha espástica caracteriza-se por rigidez nas pernas e desequilíbrio do tônus
muscular, bem como tendência à circundução e a arrastar os pés. O distúrbio
reflete o comprometimento do comando corticospinal e hiperatividade dos
reflexos medulares. O paciente pode caminhar sobre os dedos dos pés. Em
circunstâncias extremas, as pernas se cruzam devido à hipertonia dos adutores
(marcha em “tesoura”). Há sinais do neurônio motor superior ao exame físico. O
distúrbio pode ser de origem cerebral ou espinal.
A mielopatia por espondilose cervical é uma causa comum de marcha
espástica ou espástica-atáxica em idosos. Doenças desmielinizantes e
traumatismos são as principais causas da mielopatia em pacientes mais jovens.
Na mielopatia crônica progressiva de causa desconhecida, exames laboratoriais e
radiológicos podem estabelecer um diagnóstico. Deve-se excluir uma lesão
estrutural, como um tumor ou malformação vascular espinal, com os exames
apropriados. Os distúrbios da medula espinal são descritos em detalhes no C
apítulo 434.
Na espasticidade cerebral, a assimetria é comum, em geral se observa
acometimento dos membros superiores e a disartria costuma ser uma
manifestação associada. As causas comuns consistem em doença vascular
(acidente vascular cerebral [AVC]), esclerose múltipla, doença do neurônio
motor e lesão perinatal no sistema nervoso (paralisia cerebral).
Outras marchas com pernas rígidas incluem distonia (Cap. 428) e síndrome
da pessoa rígida (Cap. 90). A distonia é um distúrbio que se caracteriza por
contrações musculares sustentadas que resultam em movimentos de torção
repetitivos e postura anormal. Com frequência, ela tem origem genética. Os
espasmos distônicos podem acarretar flexão plantar e inversão do pé, às vezes
com torção do tronco. Na síndrome da pessoa rígida autoimune, há lordose
exagerada da coluna lombar e hiperativação dos músculos antagonistas, o que
restringe a movimentação do tronco e dos membros inferiores, resultando em
postura rígida ou fixa.

PARKINSONISMO, FREEZING DA MARCHA E OUTROS DISTÚRBIOS


DO MOVIMENTO
A doença de Parkinson (Cap. 427) é comum e afeta 1% da população > 55 anos
de idade. A postura encurvada e a marcha arrastada são manifestações típicas e
distintivas. Os pacientes algumas vezes aceleram durante a marcha (festinação),
apresentam retropulsão ou exibem tendência a virar em bloco. A variabilidade
passo a passo da marcha parkinsoniana também contribui para o risco de quedas.
A reposição de dopamina melhora o comprimento da passada, o balanço dos
braços, a velocidade de giro e o início da marcha. Há evidências crescentes de
que déficits nos circuitos colinérgicos no núcleo pedunculopontino e córtex
contribuem para o distúrbio da marcha da doença de Parkinson. Os inibidores da
colinesterase como a donepezila e a rivastigmina demonstraram, em estudos
iniciais, reduzir de forma significativa a variabilidade da marcha, a instabilidade
e a frequência de quedas, mesmo na ausência de déficit cognitivo, talvez por
melhora da atenção.
O freezing é definido como a ausência episódica e breve de progressão dos
pés para frente apesar da intenção de caminhar. O freezing pode ser
desencadeado pela aproximação de uma passagem estreita ou multidão, pode ser
superado por pistas visuais e contribui para o risco de quedas. O freezing da
marcha está presente em cerca de 25% dos pacientes com Parkinson dentro de 5
anos do início da doença, e sua frequência aumenta com o tempo. Em pacientes
tratados, um freezing da marcha ao final do efeito da dose é um problema
comum que pode melhorar com a administração mais frequente de fármacos
dopaminérgicos ou com o uso de inibidores da monoaminoxidase tipo B, como
rasagilina ou selegilina (Cap. 427).
O freezing da marcha também é comum em outros distúrbios
neurodegenerativos associados com parkinsonismo, incluindo paralisia
supranuclear progressiva (PSP), atrofia de múltiplos sistemas e degeneração
corticobasal. Tais pacientes costumam apresentar-se com rigidez axial,
instabilidade postural e marcha arrastada e com freezing, mas não têm o “tremor
de contar dinheiro” típico da doença de Parkinson. A marcha da PSP é
tipicamente mais ereta comparada com a postura encurvada típica da doença de
Parkinson, e quedas dentro do primeiro ano também sugerem a possibilidade de
PSP.
Os distúrbios hipercinéticos do movimento também resultam em alterações
características e reconhecíveis da marcha. Na doença de Huntington (Cap. 428),
a ocorrência imprevisível de movimentos coreiformes confere à marcha uma
qualidade de dança. A discinesia tardia é a causa de muitos distúrbios da marcha
estereotipados vistos em pacientes expostos cronicamente a antipsicóticos e a
outros fármacos que bloqueiam o receptor D2 de dopamina. Tremor ortostático é
um tremor de alta frequência e baixa amplitude que envolve predominantemente
as extremidades inferiores. Os pacientes costumam relatar tremor e instabilidade
ao ficar de pé, melhorando ao sentar ou caminhar. As quedas são comuns. O
tremor só costuma ser notado palpando-se as pernas com a pessoa de pé.

DISTÚRBIO FRONTAL DA MARCHA


O distúrbio frontal da marcha, também conhecido como distúrbio da marcha de
nível superior, é comum em idosos e tem diversas causas. Usa-se essa
designação para descrever um tipo de marcha arrastada, com freezing e
desequilíbrio e outros sinais de disfunção cerebral alta. Os aspectos típicos
consistem em base ampla de sustentação, passos curtos, pés que arrastam no
chão e dificuldade com partidas e voltas. Muitos pacientes apresentam
dificuldade para iniciar a marcha, o que se caracteriza de forma descritiva como
síndrome da “embreagem deslizante” ou marcha da “falha de ignição”. Também
se utiliza a expressão parkinsonismo dos membros inferiores para descrever tais
pacientes. A força em geral está preservada, e os pacientes, quando não estão
parados em pé, conseguem fazer os movimentos das passadas e manter o
equilíbrio ao mesmo tempo. Tal distúrbio é mais bem considerado uma alteração
do controle motor de nível superior, diferentemente de uma apraxia (Cap. 26),
embora o termo apraxia da marcha persista na literatura.
A causa mais comum do distúrbio frontal da marcha é doença vascular, em
particular dos pequenos vasos subcorticais na substância branca frontal profunda
e centro oval. Mais de 75% dos pacientes com demência vascular subcortical
demonstram anormalidades da marcha; redução do balanço dos braços e postura
encurvada são características particularmente prevalentes. A síndrome clínica
também inclui disartria, afeto pseudobulbar (desinibição emocional), hipertonia
e hiper-reflexia nos membros inferiores.
A hidrocefalia de pressão normal (HPN) (comunicante) em adultos também
apresenta um distúrbio semelhante da marcha. Outras manifestações da tríade
diagnóstica (alterações mentais, incontinência) podem estar ausentes em um
número substancial de pacientes. A RM demonstra aumento ventricular, aumento
da ausência de sinal (flow void) no aqueduto, alterações da substância branca
periventricular e estreitamento da alta convexidade (alargamento
desproporcional das fissuras silvianas em relação aos sulcos corticais). Há
necessidade de punção lombar ou testes dinâmicos para confirmar o diagnóstico
de HPN. Demências neurodegenerativas e lesões expansivas dos lobos frontais
causam um quadro clínico semelhante e podem ser diferenciadas de doença
vascular e hidrocefalia pelos exames de neuroimagem.

MARCHA DA ATAXIA CEREBELAR


Os distúrbios do cerebelo têm um impacto drástico na marcha e no equilíbrio. A
marcha da ataxia cerebelar caracteriza-se por base ampla de sustentação,
instabilidade lateral do tronco, colocação errática dos pés e descompensação do
equilíbrio ao tentar deambular sobre uma base estreita. A dificuldade para
manter o equilíbrio ao virar-se frequentemente é um dos primeiros sinais. Os
pacientes não conseguem deambular pé ante pé (em tandem) e exibem oscilação
do tronco quando parados em pé com base estreitaou em tandem. Apresentam
considerável variação na tendência a cair durante as atividades cotidianas.
As causas de ataxia cerebelar em idosos incluem AVC, traumatismo, tumor
e doenças neurodegenerativas, como atrofia de múltiplos sistemas (Cap. 432) e
diversas formas de degeneração cerebelar hereditária (Cap. 431). Uma expansão
curta no sítio de mutação do X frágil (pré-mutação do X frágil) está associada à
ataxia da marcha em homens idosos. O álcool causa uma ataxia cerebelar aguda
e crônica. Em pacientes com ataxia por degeneração cerebelar, a RM demonstra
a extensão e a topografia da atrofia cerebelar.

ATAXIA SENSITIVA
Conforme mencionado anteriormente neste capítulo, o equilíbrio depende de
informações aferentes de alta qualidade, provenientes dos sistemas visual e
vestibular, bem como da propriocepção. Quando essas informações se perdem ou
sofrem degradação, o equilíbrio durante a locomoção fica comprometido,
resultando em instabilidade. A ataxia sensitiva decorrente da neurossífilis
tabética é um exemplo clássico. O equivalente contemporâneo é o paciente com
neuropatia que afeta as fibras grandes. A deficiência de vitamina B12 é uma causa
tratável da perda sensitiva de fibras grandes na medula espinal e no sistema
nervoso periférico. As sensações proprioceptivas e vibratórias estão diminuídas
nos membros inferiores. A postura ortostática em tais pacientes se desestabiliza
quando fecham os olhos; em geral, ao deambular, olham para baixo, na direção
dos pés, e a dificuldade aumenta no escuro. Na Tabela 23-2, há uma comparação
da ataxia sensitiva com a cerebelar e o distúrbio frontal da marcha.

TABELA 23-2 ■ Características das ataxias cerebelar e sensitiva e do distúrbio frontal da marcha
Características Ataxia cerebelar Ataxia sensitiva Marcha frontal

Base de Ampla Estreita, olha para baixo Ampla


sustentação
Velocidade Variável Lenta Muito lenta
Passos Irregulares, Regulares com desvio de Curtos, arrastados
cambaleantes caminho
Teste de Romberg +/– Instável, quedas +/–
Calcanhar → Anormal +/– Normal
joelho
Iniciação Normal Normal Hesitante
Viradas Instáveis +/– Hesitante, múltiplos passos
Instabilidade + +++ ++++ Sinergias posturais precárias ao levantar-se da
postural cadeira
Quedas Evento tardio Frequente Frequente

DOENÇA NEUROMUSCULAR
Nos pacientes com doença neuromuscular, a marcha costuma ser anormal,
ocasionalmente como um dos primeiros sinais. Nos casos de fraqueza distal
(neuropatia periférica), a altura do passo aumenta para compensar a queda do pé,
cuja planta pode bater no solo durante o apoio do peso, a chamada marcha
escarvante. Os pacientes com miopatia ou distrofia muscular exibem fraqueza
proximal mais frequentemente. A fraqueza da cintura pélvica pode resultar em
alguma inclinação excessiva do quadril durante a locomoção. A postura
encurvada da estenose espinal lombar melhora a dor da compressão da cauda
equina que ocorre com uma postura mais ereta ao caminhar, podendo simular o
parkinsonismo inicial.

DISTÚRBIOS TÓXICOS E METABÓLICOS


A toxicidade crônica decorrente de fármacos e distúrbios metabólicos pode
prejudicar a função motora e a marcha. O exame pode revelar alteração do
estado mental, asterixe ou mioclonias. O equilíbrio estático mostra-se alterado, e
tais pacientes perdem o equilíbrio com facilidade. O desequilíbrio é
particularmente evidente em pacientes com doença renal crônica e naqueles com
insuficiência hepática, nos quais o asterixe pode prejudicar a sustentação da
postura. Os sedativos, em especial os neurolépticos e benzodiazepínicos de ação
prolongada, afetam o controle da postura e aumentam o risco de quedas. É
especialmente importante reconhecer a presença desses distúrbios porque muitos
deles podem ser tratáveis.

DISTÚRBIO FUNCIONAL DA MARCHA


Os distúrbios funcionais (anteriormente “psicogênicos”) são comuns na prática
neurológica, e a apresentação com frequência envolve a marcha. A marca
registrada de um distúrbio funcional da marcha é uma inconsistência interna de
déficits que pode ser incompatível com um déficit neurológico. Por exemplo,
giros bizarros da postura com gasto de energia muscular (astasia-abasia)
parecem superficialmente instáveis, ainda que, na verdade, exijam controle
postural significativo. As quedas são raras e costuma haver discrepâncias entre
os achados do exame e o estado funcional do paciente. Movimentação
extremamente lenta, marcha inapropriadamente cautelosa e flutuações
dramáticas ao longo do tempo podem melhorar com a distração, lembrando que
várias doenças neurológicas orgânicas também têm natureza paroxística.
Estresse ou trauma precedentes estão variavelmente presentes, e sua ausência
não impede mais o diagnóstico de um distúrbio neurológico funcional. Os
distúrbios funcionais da marcha estão entre os mais dramáticos encontrados,
devendo ser diferenciados da lentidão e retardo psicomotor vistos em alguns
pacientes com depressão maior.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Distúrbio da marcha lentamente progressivo
Ao revisar a história, é útil inquirir sobre o início e a progressão da
deficiência. A percepção inicial de uma marcha instável pode vir após uma
queda. Evolução em etapas ou progressão súbita sugere doença vascular. O
distúrbio da marcha pode estar associado a urgência e incontinência urinária,
em particular nos pacientes com doença da coluna cervical ou hidrocefalia.
Sempre é importante rever o uso de álcool e medicações que afetem a marcha
e o equilíbrio. As informações acerca da localização obtidas no exame
neurológico podem ser úteis para estreitar a lista de diagnósticos possíveis.
A observação da marcha dá uma ideia imediata do nível de incapacidade
do paciente. As marchas artrítica e antálgica são reconhecidas pela
observação, embora possam coexistir problemas neurológicos e ortopédicos.
Às vezes, observam-se padrões típicos de anormalidade; porém, conforme já
mencionado, as marchas alteradas muitas vezes parecem fundamentalmente
semelhantes. A cadência (passos/minuto), a velocidade e a extensão do passo
podem ser registradas cronometrando-se a deambulação do paciente em uma
distância fixa. Observar um paciente erguer-se de uma cadeira proporciona
uma boa avaliação funcional de seu equilíbrio.
Os exames de imagem cerebrais podem ser informativos no caso dos
pacientes com um distúrbio da marcha não diagnosticado. A RM é sensível
para detectar lesões cerebrais originárias de doenças vasculares ou
desmielinizantes, sendo um bom exame de rastreamento para hidrocefalia
oculta. Os pacientes que sofrem quedas recorrentes correm risco de ter um
hematoma subdural. Conforme já mencionado, muitos pacientes idosos com
dificuldade para deambular e manter o equilíbrio têm anormalidades na
substância branca da região periventricular e no centro semioval. Embora
essas lesões possam constituir um achado incidental, a presença de doença
em uma área considerável da substância branca acaba tendo impacto sobre o
controle central da locomoção.
DISTÚRBIOS DO EQUILÍBRIO
DEFINIÇÃO, ETIOLOGIA E MANIFESTAÇÕES
O equilíbrio é um estado dinâmico em que o centro de massa da pessoa é
controlado em relação às extremidades inferiores, à gravidade e à superfície de
apoio apesar de perturbações externas. Os reflexos necessários para manter a
postura ereta exigem informações dos sistemas cerebelar, vestibular e
somatossensitivo; o córtex pré-motor, os tratos corticospinal e reticulospinal
medeiam a emissão de informações para os músculos axiais e proximais dos
membros. Essas respostas são fisiologicamente complexas e sua representação
anatômica não é bem conhecida. Pode haver falha em qualquer nível e isso se
manifesta como dificuldade em manter a postura ao ficar de pé e caminhar.
A anamnese e o exame físico podem diferenciar entre as causas subjacentes
do desequilíbrio. Os pacientes com ataxia cerebelar em geral não se queixam de
tontura, mas seu equilíbrio é visivelmente prejudicado. O exame neurológico
revela uma variedade de sinais cerebelares. No início, a compensação postural
pode evitar quedas, porém é inevitável que elas venham a ocorrer com a
progressão da doença. Em geral, a progressão de uma ataxia neurodegenerativa é
medida pelo número de anos decorridos até a perda da deambulação estável.
Os distúrbios vestibulares (Cap. 19) têm sinais e sintomas que se
enquadram em três categorias: (1) vertigem (percepção subjetiva inadequada ou
ilusão de movimento); (2) nistagmo (movimentos oculares involuntários); e (3)
prejuízo do equilíbrio na posição ereta. Nem todo paciente demonstra todas as
manifestações. Aqueles com déficits vestibulares relacionados com fármacos
ototóxicos podem não ter vertigem nem nistagmo óbvio, mas o equilíbrio
mostra-se comprometido na posição em pé e na deambulação, além de não
conseguirem transitar no escuro. Há exames laboratoriais disponíveis para
investigar déficits vestibulares.
Os déficits somatossensitivos também acarretam desequilíbrio e quedas.
Muitas vezes, há uma sensação subjetiva de equilíbrio inseguro e medo de cair.
O controle da postura é comprometido quando o paciente fecha os olhos (sinal
de Romberg); esses pacientes também têm dificuldade para transitar no escuro.
Um exemplo marcante é o do paciente com neuropatia sensitiva subaguda
autoimune, às vezes um distúrbio paraneoplásico (Cap. 90). Estratégias
compensatórias possibilitam que tais pacientes deambulem na ausência virtual
de propriocepção, mas a tarefa requer monitoração visual ativa.
Os pacientes com distúrbios do equilíbrio de nível superior têm dificuldade
para manter o equilíbrio no cotidiano e podem sofrer quedas. Sua percepção do
prejuízo do equilíbrio pode estar reduzida. Os pacientes em uso de sedativos
também se enquadram nessa categoria.
QUEDAS
As quedas são comuns em idosos; mais de um terço das pessoas > de 65 anos de
idade que vivem na comunidade caem a cada ano. Este número é ainda maior em
clínicas geriátricas e hospitais. As pessoas idosas não estão apenas sob maior
risco de quedas, mas têm mais chances de sofrer complicações graves devido a
comorbidades médicas, como a osteoporose. As fraturas de quadril resultam em
hospitalização, podem levar a internações em clínicas geriátricas e estão
associadas a risco de mortalidade aumentada no ano subsequente. As quedas
podem resultar em lesão cerebral ou da coluna, sendo que, nesses casos, pode ser
difícil para o paciente fornecer o relato. A proporção de lesões de medula espinal
devido a quedas em pessoas com > 65 anos de idade dobrou na última década,
talvez devido ao aumento de atividade nessa faixa etária. Algumas quedas
resultam em tempo prolongado deitado no chão; as fraturas e a lesão do SNC são
uma preocupação especial nesse contexto.
Para cada pessoa com deficiência física, há outras cuja independência
funcional é limitada por ansiedade e medo de cair. Cerca de 1 em cada 5
indivíduos idosos restringe voluntariamente sua atividade por medo de sofrer
quedas. Com a falta da locomoção, a qualidade de vida diminui e as taxas de
morbidade e mortalidade aumentam.

FATORES DE RISCO DE QUEDAS


Os fatores de risco para quedas podem ser intrínsecos (p. ex., distúrbios da
marcha e do equilíbrio) ou extrínsecos (p. ex., polifarmácia e fatores
ambientais); alguns fatores de risco são modificáveis. A presença de múltiplos
fatores de risco está associada com aumento substancial no risco de quedas. A Ta
bela 23-3 resume uma metanálise de estudos que estabelece os principais fatores
de risco para quedas. A polifarmácia (uso de quatro ou mais medicamentos
prescritos) também foi identificada como fator de risco importante.

TABELA 23-3 ■ Metanálise de fatores de risco de quedas em idosos


Fator de risco RR (OR) médio Faixa

Fraqueza muscular 4,4 1,5-10,3


História de quedas 3,0 1,7-7,0
Déficit da marcha 2,9 1,3-5,6
Déficit do equilíbrio 2,9 1,6-5,4
Uso de dispositivo de assistência 2,6 1,2-4,6
Déficit visual 2,5 1,6-3,5
Artrite 2,4 1,9-2,9
Prejuízo em AVDs 2,3 1,5-3,1
Depressão 2,2 1,7-2,5
Déficit cognitivo 1,8 1,0-2,3
Idade > 80 anos 1,7 1,1-2,5
Siglas: AVDs, atividades da vida diária; OR, razão de chances de estudos prospectivos; RR, risco relativo de estudos prospectivos.
Fonte: Reproduzida com permissão de Guideline for the Prevention of Falls in Older Persons. J Am Geriatr Soc 49:664, 2001.

AVALIAÇÃO DO PACIENTE COM QUEDAS


A abordagem mais produtiva é a identificação prospectiva de pacientes de alto
risco, antes que haja uma lesão grave. Todos os adultos da comunidade devem
ser questionados sobre quedas pelo menos anualmente. O teste Timed Up and
Go (“TUG”) envolve cronometrar enquanto um paciente levanta de uma cadeira,
caminha 3 metros, vira e senta novamente. Os pacientes com história de quedas
ou aqueles que precisam de > 12 segundos para completar o teste TUG têm alto
risco de quedas e devem receber avaliação adicional.

História A história de uma queda costuma ser problemática ou incompleta, e o


mecanismo ou causa subjacentes podem ser difíceis de serem estabelecidos de
forma retrospectiva. Os pacientes devem ser questionados sobre quaisquer
fatores desencadeantes (incluindo virada de cabeça, posição ortostática) ou
sintomas prodrômicos, como tontura, vertigem, sintomas pré-sincopais ou
fraqueza focal. Uma história da mobilidade basal e de comorbidades médicas
deve ser coletada. Os pacientes sob risco particular incluem aqueles com
alterações do estado mental ou demência. Os medicamentos devem ser
revisados, com particular atenção a neurolépticos, benzodiazepínicos,
antidepressivos, antiarrítmicos e diuréticos, todos os quais estão associados a
risco aumentado de quedas. É igualmente importante diferenciar as quedas
mecânicas (aquelas causadas por tropeços ou escorregões) devido a fatores
puramente extrínsecos ou ambientais daquelas em que há contribuição de fatores
intrínsecos modificáveis. Quedas recorrentes podem indicar um distúrbio
subjacente da marcha ou equilíbrio. As quedas associadas à perda de consciência
(síncope, convulsões) podem necessitar de avaliação e intervenção apropriadas
cardíacas ou neurológicas (Caps. 18 e 418), embora o relato do paciente sobre
alteração da consciência possa não ser confiável.

Exame físico O exame do paciente com quedas deve incluir um exame cardíaco
básico, incluindo pressão arterial ortostática se indicado pela história, e a
observação de quaisquer anormalidades ortopédicas. O estado mental é
facilmente avaliado enquanto se obtém a anamnese com o paciente; o restante do
exame neurológico deve incluir acuidade visual, força e sensibilidade nos
membros inferiores, tônus muscular e função cerebelar, com particular atenção a
marcha e equilíbrio como anteriormente descrito.

Padrões de quedas A descrição de um evento de queda pode fornecer


indicações adicionais da etiologia subjacente. Apesar de não haver uma
nosologia padronizada para as quedas, alguns padrões clínicos comuns podem
surgir e fornecer pistas.

QUEDAS SÚBITAS E COLAPSOS As quedas súbitas e as quedas por colapso


estão associados a perda súbita do tônus postural. O paciente pode relatar que
suas pernas simplesmente “afrouxaram” ou que ele “desabou”. Síncope e
hipotensão ortostática podem ser um fator em algumas quedas. As causas
neurológicas são relativamente raras, mas incluem convulsões atônicas,
mioclonia e obstrução intermitente do forame de Monro por um cisto coloide do
terceiro ventrículo causando hidrocefalia obstrutiva aguda. Um desencadeante
emocional sugere cataplexia. Embora sejam mais comuns em idosos com fatores
de risco vasculares, as quedas por colapso não devem ser confundidas com os
ataques isquêmicos vertebrobasilares.

TOMBOS Alguns pacientes mantêm o tônus nos músculos antigravitacionais,


mas caem como um tronco de árvore, como se as defesas posturais estivessem
desarticuladas. As causas incluem patologia cerebelar e lesões do sistema
vestibular. Tais quedas podem ter uma direção constante. Os tombos são um
achado inicial na PSP e um achado tardio na doença de Parkinson, após o
desenvolvimento de instabilidade postural. As lesões talâmicas que causam
instabilidade do tronco (astasia talâmica) também podem contribuir para esse
tipo de queda.

QUEDAS POR FREEZING DA MARCHA O freezing da marcha é visto na


doença de Parkinson e distúrbios relacionados. O pé fixa-se no solo, e o centro
de massa continua em movimento, resultando em desequilíbrio, do qual o
paciente não se recupera e resulta em queda para frente. Da mesma forma, o
paciente com doença de Parkinson e marcha festinante pode não conseguir
erguer o pé e cair para frente.
QUEDAS RELACIONADAS COM DÉFICITS SENSITIVOS Os pacientes
com déficits somatossensitivos, visuais ou vestibulares são propensos a quedas.
Eles têm dificuldade para lidar com iluminação precária ou deambular em pisos
irregulares. Em geral, manifestam desequilíbrio subjetivo, apreensão e medo de
cair. Esses pacientes podem ser especialmente responsivos a intervenções
baseadas na reabilitação.

QUEDAS RELACIONADAS COM FRAQUEZA Os pacientes sem força nos


músculos antigravitacionais têm dificuldade para erguer-se de uma cadeira ou
manter o equilíbrio após uma perturbação. Em geral, eles não conseguem
levantar-se após uma queda, podendo ficar no chão por período prolongado até
que chegue ajuda. Se isso for causado por falta de condicionamento, costuma ser
tratável. O treinamento de força e resistência pode aumentar a massa muscular e
a força nas pernas mesmo em pessoas na nona e na décima décadas de vida.

TRATAMENTO
Intervenções para reduzir o risco de quedas e lesão
Devem-se realizar esforços para definir a etiologia do distúrbio de marcha e o mecanismo subjacente das
quedas em um determinado paciente. Devem ser registradas as alterações ortostáticas na pressão arterial e
na frequência cardíaca. Deve-se avaliar a capacidade de levantar da cadeira e caminhar para a segurança do
paciente. Com o estabelecimento do diagnóstico, pode ser viável um tratamento específico. Em geral, a
intervenção terapêutica é recomendável para os pacientes idosos sob risco substancial de quedas, mesmo
que não se tenha identificado uma doença neurológica. Pode ser útil ir ao lar do paciente para verificar se há
perigos no ambiente em que ele vive. É possível recomendar uma variedade de modificações para aumentar
a segurança, como a melhora da iluminação, a instalação de barras de segurança e o uso de pisos
antideslizantes.
Técnicas de reabilitação tentam melhorar a força muscular e a estabilidade do equilíbrio, tornando o
paciente mais resistente a lesões. O treinamento de força e resistência de alta intensidade com pesos e
aparelhos é útil para aumentar a massa muscular, mesmo em pacientes idosos debilitados. Conseguem-se
melhoras na postura e na marcha, as quais são traduzidas por menor risco de quedas e lesões. O treinamento
de equilíbrio sensitivo é outra abordagem para melhorar a estabilidade do equilíbrio. É possível obter
ganhos mensuráveis em poucas semanas de treinamento, e os benefícios podem ser mantidos por mais de 6
meses com um programa de exercícios domiciliares durante 10 a 20 minutos por dia. Tal estratégia é
particularmente bem-sucedida em pacientes com distúrbios do equilíbrio vestibulares e somatossensitivos.
Foi demonstrado que um programa de exercícios de Tai Chi reduz o risco de quedas e lesões em pacientes
com doença de Parkinson.

LEITURAS ADICIONAIS
American Geriatrics Society, British Geriatrics Society, American Academy of
Orthopedic Surgeons Panel on Falls Prevention: Guideline for the
Prevention of Falls in Older Persons. J Am Geriatr Soc 49:664, 2001.
Nutt JG: Classification of Gait and Balance Disorders. Adv Neurol 87:135,
2001.
Pirker W, Katzenschlager R: Gait disorders in adults and the elderly. Wien Klin
Wochenschr 129:81, 2017.
24
Confusão e delirium
S. Andrew Josephson, Bruce L. Miller

A confusão, um estado mental e comportamental de redução da compreensão, da


coerência e da capacidade de raciocinar, é um dos problemas mais comuns na
medicina e responde por grande número de atendimentos de emergência,
hospitalizações e consultas de pacientes internados. O delirium, termo usado
para descrever um estado confusional agudo, continua a ser uma causa
importante de morbidade e mortalidade, gerando um custo de bilhões de dólares
anuais com assistência médica somente nos Estados Unidos. Apesar de muito
esforço para o reconhecimento dessa condição clínica, é comum que o delirium
passe despercebido mesmo representando a manifestação cognitiva de uma
doença clínica ou neurológica subjacente grave.

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS DO DELIRIUM


Usam-se diversos termos para descrever o delirium, como encefalopatia,
insuficiência cerebral aguda, estado confusional agudo e psicose pós-operatória
ou da unidade de terapia intensiva (UTI). O delirium tem várias manifestações
clínicas, mas é definido como declínio relativamente agudo da cognição, que
flutua ao longo de horas ou dias. Sua principal característica é o déficit de
atenção, embora todos os domínios cognitivos – como a memória, a função
executiva, as habilidades visuoespaciais e a linguagem – se mostrem
comprometidos de alguma forma. Os sintomas associados que podem estar
presentes em alguns casos incluem alterações do ciclo de sono e vigília,
perturbações da percepção, como alucinações ou delírios, alterações afetivas e
achados autonômicos, que incluem instabilidade da frequência cardíaca e da
pressão arterial.
O delirium é um diagnóstico clínico que só pode ser definido à beira do
leito. Foram descritos dois subtipos – hiperativo e hipoativo – com base em
características psicomotoras diferentes. A síndrome cognitiva associada à
abstinência alcoólica grave (i.e., “delirium tremens”) continua sendo o exemplo
clássico do subtipo hiperativo, que se caracteriza por alucinações proeminentes,
agitação e hipervigilância, com frequência acompanhado por instabilidade
autonômica potencialmente fatal. Diferentemente, de forma notável, está o
subtipo hipoativo, exemplificado pela intoxicação por benzodiazepínicos, em
que os pacientes ficam retraídos e quietos, com apatia marcante e lentidão
psicomotora.
Essa dicotomia entre os subtipos de delirium é um conceito útil, mas os
pacientes frequentemente se enquadram em algum ponto ao longo do espectro
entre os extremos hiper e hipoativo, às vezes flutuando de um para o outro. Por
isso, os médicos devem reconhecer o amplo espectro de apresentações do
delirium, para que possam identificar todos os pacientes com esse distúrbio
cognitivo potencialmente reversível. Os pacientes hiperativos são facilmente
reconhecíveis por sua agitação extrema, tremor, alucinações e instabilidade
autonômica típicos. Com mais frequência, os pacientes discretamente hipoativos
passam despercebidos na prática clínica e na UTI.
A reversibilidade do delirium é enfatizada porque muitas etiologias, como
infecções sistêmicas e efeitos de medicamentos, são tratadas com facilidade. As
suas consequências cognitivas em longo prazo continuam praticamente
desconhecidas. Alguns episódios de delirium prolongam-se por semanas, meses
ou mesmo anos. A persistência do delirium em alguns pacientes e sua alta taxa
de recorrência podem advir de tratamento inadequado da etiologia subjacente.
Em outros casos, o delirium parece causar dano neuronal permanente e declínio
cognitivo; assim, é importante a implementação de estratégias preventivas.
Mesmo se um episódio de delirium melhorar completamente, pode haver efeitos
persistentes do distúrbio; a recordação do paciente sobre eventos após o delirium
varia muito, desde a amnésia completa até repetições da experiência assustadora
do período de confusão, semelhante ao que é visto em pacientes com transtorno
de estresse pós-traumático.

FATORES DE RISCO
Uma estratégia de prevenção primária eficaz do delirium começa com a
identificação dos pacientes de alto risco, como os que estão se preparando para
cirurgias eletivas ou que serão hospitalizados. Foram desenvolvidos sistemas de
escores como rastreamento de pacientes assintomáticos, muitos enfatizando
fatores de risco bem estabelecidos para o delirium.
Os dois fatores de risco identificados com maior frequência são a idade
avançada e disfunção cognitiva prévia. Indivíduos > 65 anos de idade ou que
exibam baixa pontuação nos testes padronizados de cognição apresentam
delirium ao ser hospitalizados com incidência aproximada de 50%. Não se sabe
ao certo se a idade e a disfunção cognitiva prévia são fatores de risco realmente
independentes. Outros fatores predisponentes são a privação sensitiva, como
deficiências auditiva e visual preexistentes, além de índices de saúde geral
debilitada, incluindo imobilidade, desnutrição e doença clínica ou neurológica
subjacente prévia.
Os riscos hospitalares de delirium incluem o uso de cateterismo vesical,
contenção física, privação de sono e sensitiva, assim como o acréscimo de três
ou mais medicamentos novos. Evitar esses riscos continua a ser fundamental à
prevenção e tratamento do delirium. Os fatores de risco cirúrgicos e anestésicos
para o desenvolvimento de delirium pós-operatório incluem procedimentos,
como os que envolvem a circulação extracorpórea e tratamento insuficiente ou
excessivo da dor no período pós-operatório imediato e, talvez, agentes
específicos, como os anestésicos inalatórios.
A relação entre delirium e demência (Cap. 25) é complicada pela
superposição significativa entre esses dois distúrbios, e nem sempre é simples
distingui-los. A demência e a disfunção cognitiva preexistente servem como
fatores de risco importantes para o delirium, com pelo menos dois terços dos
casos de delirium ocorrendo em pacientes com demência subjacente coexistente.
Uma forma de demência com parkinsonismo, denominada demência por corpos
de Lewy, caracteriza-se por evolução flutuante com alucinações visuais
proeminentes, parkinsonismo e déficit de atenção que lembra clinicamente o
delirium hiperativo; os pacientes com essa condição são particularmente
vulneráveis ao delirium. No idoso, o delirium frequentemente reflete uma
agressão ao cérebro que está vulnerável devido a doença neurodegenerativa
subjacente. Assim, o desenvolvimento de delirium algumas vezes anuncia o
início de um distúrbio cerebral previamente não reconhecido e, após a melhora
do episódio agudo de delirium, o rastreamento cuidadoso para uma condição
subjacente deve ocorrer em ambiente ambulatorial.

EPIDEMIOLOGIA
O delirium é comum, mas sua incidência relatada varia muito de acordo com os
critérios empregados para defini-lo. As estimativas da ocorrência de delirium em
pacientes hospitalizados variam de 10 a > 50%, sendo as maiores taxas relatadas
em pacientes idosos e nos submetidos à cirurgia do quadril. Pacientes de mais
idade internados em UTI apresentam incidência particularmente alta de delirium,
a qual se aproxima de 75%. O distúrbio deixa de ser reconhecido em até um
terço dos pacientes internados com delirium, e o diagnóstico é especialmente
problemático no ambiente da UTI, onde costuma ser difícil observar disfunção
cognitiva no contexto de doença sistêmica grave e sedação. O delirium na UTI
deve ser visto como manifestação importante de disfunção orgânica, por
exemplo, insuficiências hepática, renal ou cardíaca. Fora do contexto hospitalar
agudo, o delirium ocorre em quase 25% dos pacientes em casas de apoio e em 50
a 80% daqueles no fim da vida. Tais estimativas enfatizam a altíssima frequência
dessa síndrome cognitiva em pacientes idosos, uma população que continua a
crescer.
Um episódio de delirium era antes considerado como distúrbio transitório
de prognóstico benigno. Agora ele é reconhecido como um distúrbio com
substanciais morbidade e mortalidade, geralmente representando a primeira
manifestação de uma doença subjacente grave. Estimativas da mortalidade
hospitalar de pacientes com delirium variaram de 25 a 33%, índice semelhante
ao dos pacientes com sepse. Os pacientes internados com um episódio de
delirium têm mortalidade cinco vezes mais alta nos meses após a doença, em
comparação com os pacientes hospitalizados da mesma idade que não tiverem
delirium. Os pacientes hospitalizados com delirium também permanecem
internados mais tempo, são mais propensos a serem transferidos para uma casa
de apoio e a terem episódios subsequentes de delirium e declínio cognitivo; em
consequência, esse distúrbio possui enormes custos econômicos.

PATOGÊNESE
A patogênese e anatomia do delirium não são bem compreendidas. O déficit de
atenção, a marca neuropsicológica do delirium, tem localização difusa no tronco
encefálico, no tálamo, no córtex pré-frontal e nos lobos parietais. Raramente,
lesões focais, como acidentes vasculares cerebrais (AVCs) isquêmicos, causaram
delirium em pessoas previamente sadias; lesões parietais direitas e talâmicas
dorsais mediais foram relatadas mais comumente, ressaltando a importância
dessas áreas na patogênese do delirium. Porém, na maioria dos casos, o delirium
resulta de distúrbios difusos nas regiões corticais e subcorticais do cérebro. O
eletrencefalograma (EEG) em geral mostra lentidão simétrica, achado
inespecífico que sustenta disfunção cerebral difusa.
Diversas anormalidades em neurotransmissores, fatores pró-inflamatórios e
genes específicos desempenham um papel na patogênese do delirium. A
deficiência de acetilcolina pode ter um papel, e medicamentos com propriedades
anticolinérgicas com frequência podem precipitar delirium. Conforme citado
antes, os pacientes com demência preexistente são particularmente suscetíveis a
episódios de delirium. Doença de Alzheimer, demência por corpos de Lewy e
demência da doença de Parkinson estão todas associadas com deficiência
colinérgica devido à degeneração de neurônios produtores de acetilcolina no
prosencéfalo basal. Além disso, é provável que outros neurotransmissores
estejam envolvidos nesse distúrbio cerebral difuso. Por exemplo, aumentos na
dopamina podem causar delirium, e os pacientes com a doença de Parkinson
tratados com fármacos dopaminérgicos podem apresentar um estado semelhante
ao delirium, caracterizado por alucinações visuais, flutuações e confusão.
Nem todos os indivíduos expostos ao mesmo fator desencadeante
manifestam sinais de delirium. Uma dose baixa de anticolinérgico pode não ter
efeitos cognitivos em um adulto jovem sadio, mas é capaz de precipitar delirium
intenso em pessoas idosas com demência subjacente conhecida, embora mesmo
pessoas jovens e sadias desenvolvam delirium com doses muito altas de
medicamentos anticolinérgicos. Atualmente, esse conceito do desenvolvimento
de delirium como resultado de uma agressão em indivíduos predispostos é a
hipótese de patogênese mais amplamente aceita. Por isso, se um indivíduo antes
sadio sem antecedentes conhecidos de doença cognitiva apresentar delirium por
um problema relativamente pequeno, como cirurgia eletiva ou hospitalização,
será preciso considerar uma doença neurológica subjacente despercebida, como
alguma afecção neurodegenerativa, AVCs múltiplos prévios ou outra causa
cerebral difusa. Nesse contexto, o delirium pode ser visto como um “teste de
esforço para o cérebro” em que a exposição a fatores desencadeantes
conhecidos, como infecção sistêmica e fármacos agressores, pode desmascarar
uma reserva cerebral diminuída e anunciar doença subjacente grave, mas
potencialmente tratável.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Delirium
Como o diagnóstico do delirium é clínico e firmado à beira do leito, são
necessários anamnese e exame físico minuciosos ao se avaliar pacientes com
possibilidade de estado confusional. Ferramentas de rastreamento podem
ajudar médicos e enfermeiros a identificar os pacientes com delirium,
incluindo o Método de Avaliação de Confusão (CAM) (Confusion
Assessment Method), a Escala de Triagem de Delirium em Enfermagem
(NuDESC, Nursing Delirium Screening Scale), a Escala da Síndrome
Cerebral Orgânica (Organic Brain Syndrome Scale), a Escala de Graduação
do Delirium (Delirium Rating Scale) e, na UTI, as versões do Escore para a
Detecção de Delirium (Delirium Detection Score) e do CAM para UTI.
Usando-se o bem validado CAM, faz-se um diagnóstico de delirium se
houver (1) início agudo e evolução flutuante e (2) desatenção acompanhada
por (3) pensamento desorganizado ou (4) alteração do nível da consciência (
Tab. 24-1). Essas escalas podem não identificar todo o espectro de pacientes
com delirium, e todos os pacientes agudamente confusos devem ser
considerados com delirium independentemente de sua apresentação devido à
ampla variedade de características clínicas possíveis. Uma evolução flutuante
durante horas ou dias e que pode agravar-se à noite (conhecida como
sundowning) é típica, mas não indispensável para o diagnóstico. A
observação do paciente em geral revela um nível alterado de consciência ou
algum déficit de atenção. Outras características que podem estar presentes
incluem alteração do ciclo de sono e vigília, distúrbios do raciocínio, como
alucinações ou delírios, instabilidade autonômica e alterações do afeto.

TABELA 24-1 ■ Algoritmo diagnóstico do Método de Avaliação de Confusão (CAM)a


O diagnóstico de delirium exige a presença das características 1 e 2 e das características 3 ou 4.
Característica 1. Início agudo e evolução flutuante
Essa característica é satisfeita por respostas positivas às seguintes questões: Há evidências de alteração aguda no estado mental em
relação ao basal do paciente? O comportamento flutua (anormal) durante o dia, ou seja, tende a ir e vir ou tem aumentado ou diminuído
de intensidade?
Característica 2. Falta de atenção
Essa característica é satisfeita por uma resposta positiva à seguinte questão: O paciente tem dificuldade de concentrar a atenção, por
exemplo, sendo facilmente distraído, ou tem dificuldade de acompanhar o que estava sendo dito?
Característica 3. Pensamento desorganizado
Essa característica é satisfeita por uma resposta positiva à seguinte questão: O pensamento do paciente é desorganizado ou incoerente,
como divagação ou conversa irrelevante, com fluxo de ideias pouco claro ou ilógico, ou com mudança imprevisível de um assunto para
outro?
Característica 4. Alteração do nível de consciência
Essa característica é satisfeita por qualquer resposta que não seja “alerta” à seguinte questão: Em geral, como você classifica o nível de
consciência do paciente: alerta (normal), vigilante (hiperalerta), letárgico (sonolento, facilmente desperto), torporoso (difícil de acordar)
ou comatoso (impossível de acordar)?
aAs informações costumam ser obtidas por um acompanhante confiável, como um familiar, cuidador ou enfermeiro.

Fonte: Modificada de SK Inouye et al: Clarifying confusion: The Confusion Assessment Method. A new method for detection of
delirium. Ann Intern Med 113:941, 1990.

HISTÓRIA
Pode ser difícil obter-se uma anamnese adequada dos pacientes com delirium
e alteração dos níveis de consciência ou déficit de atenção. Por isso, a
colaboração de um informante, como o cônjuge ou outro membro da família,
é valiosa. As três partes mais importantes da anamnese consistem na função
cognitiva basal do paciente, no tempo de evolução da doença atual e nos
fármacos atuais.
Pode-se avaliar a função cognitiva pré-mórbida com algum informante
ou, se necessário, revendo-se o prontuário do paciente. Por definição, o
delirium representa alteração relativamente aguda, em geral ao longo de
horas a dias, da função cognitiva basal. É quase impossível diagnosticar um
estado confusional agudo sem algum conhecimento da função cognitiva
prévia. Sem essa informação, é possível confundir muitos pacientes com
demência ou depressão de longa data como tendo delirium durante uma
avaliação inicial. Os pacientes com apresentação mais hipoativa, apática e
lentidão psicomotora só podem ser identificados como diferentes de seu
estado basal mediante conversas com familiares. Mostrou-se que diversos
instrumentos validados diagnosticam com acurácia a disfunção cognitiva
usando um informante, que inclui a Blessed Dementia Rating Scale
modificada e o Clinical Dementia Rating (CDR). Deficiência cognitiva basal
é comum em pacientes com delirium. Mesmo quando não se consegue obter
uma história de deficiência cognitiva, deve-se manter alto índice de suspeita
de distúrbio neurológico subjacente não identificado.
É importante estabelecer o tempo de evolução da alteração cognitiva
para definir o diagnóstico de delirium, mas também correlacionar o início da
doença com etiologias potencialmente tratáveis, como trocas recentes de
medicação ou sintomas de infecção sistêmica.
Os fármacos continuam sendo uma causa comum de delirium, em
especial compostos com propriedades anticolinérgicas ou sedativas. Estima-
se que quase um terço de todos os casos de delirium sejam secundários a
medicamentos, em especial no idoso. A história medicamentosa deve incluir
todos os medicamentos prescritos e adquiridos sem prescrição, assim como
os fitoterápicos e quaisquer alterações recentes nas doses ou apresentações,
incluindo a substituição de medicamentos originais por genéricos.
Outros elementos importantes da anamnese incluem o rastreamento dos
sintomas de insuficiência orgânica ou infecção sistêmica, que muitas vezes
contribuem para o delirium no idoso. História de uso de drogas ilícitas,
alcoolismo ou exposição a toxinas é comum em pacientes jovens com
delirium. Por fim, inquirir o paciente e outras pessoas próximas dele sobre
outros sintomas que possam acompanhar o delirium, como depressão, pode
ajudar a identificar alvos terapêuticos potenciais.
EXAME FÍSICO
O exame físico geral do paciente com delirium deve incluir rastreamento
cuidadoso de sinais de infecção, como febre, taquipneia, consolidação
pulmonar, sopro cardíaco e meningismo. Deve-se avaliar o grau de
hidratação do paciente, pois tanto a desidratação como a sobrecarga hídrica
com hipoxemia resultante estão associadas ao delirium, e ambas podem ser
corrigidas com facilidade. A inspeção da pele pode ser útil, mostrando
icterícia nos casos de encefalopatia hepática, cianose nos pacientes com
hipoxemia ou trajetos de agulhas em usuários de drogas intravenosas.
O exame neurológico requer a avaliação cuidadosa do estado mental. Os
pacientes com delirium frequentemente apresentam-se com evolução
flutuante, de modo que o diagnóstico pode passar despercebido quando se
confia em um único momento da avaliação. Para os pacientes que pioram no
final do dia (sundowning), a avaliação apenas durante as visitas da manhã
pode ser falsamente tranquilizadora.
Na maioria dos pacientes com delirium, observa-se alteração do nível de
consciência que varia de um estado hiperalerta à letargia e até o coma,
podendo ser avaliado com facilidade à beira do leito. Em um paciente com
nível de consciência relativamente normal, é obrigatório rastreamento para
déficit de atenção, por ser a característica neuropsicológica clássica do
delirium. Isso pode ser feito ouvindo-se o paciente contar uma história. Fala
tangencial, fluxo fragmentado de ideias ou incapacidade de obedecer a
comandos complexos geralmente significam um problema de atenção.
Existem testes neuropsicológicos formais para avaliar a atenção, mas um
teste de memória simples, à beira do leito, de repetir séries de dígitos é
rápido e razoavelmente sensível. Nesse teste, solicita-se que o paciente repita
séries sucessivamente mais longas de números aleatórios, começando com
dois números seguidos ditos ao paciente em intervalos de 1 segundo. Os
adultos saudáveis repetem uma série de 5 a 7 dígitos antes de falhar; a
repetição de 4 ou menos dígitos geralmente indica déficit de atenção, a
menos que exista dificuldade de audição ou linguagem; muitos pacientes
com delirium conseguem repetir séries de 3 ou menos dígitos.
Os testes neuropsicológicos mais formais podem ser úteis para se
avaliar um paciente com delirium, mas também costumam ser incômodos e
demorados no contexto hospitalar. Um miniexame do estado mental
(MEEM) fornece informações sobre orientação, linguagem e habilidades
visuoespaciais (Cap. 25); entretanto, o desempenho de algumas tarefas no
MEEM, como soletrar a palavra “mundo” de trás para frente ou a subtração
seriada de números, irá se mostrar prejudicado por causa dos déficits de
atenção nos pacientes com delirium, e, por isso, seus resultados não serão
confiáveis.
O restante do exame neurológico de rastreamento deve ser voltado para
a identificação de novos déficits neurológicos focais. Raras vezes, AVCs
focais ou lesões expansivas isoladas são a causa de delirium, mas a
capacidade cognitiva dos pacientes com doença cerebrovascular extensa ou
doenças neurodegenerativas pode não resistir a novas lesões, mesmo que
relativamente pequenas. É recomendável procurar outros sinais de doenças
neurodegenerativas, como o parkinsonismo, observado não apenas na doença
de Parkinson idiopática, como também em outras afecções que acarretam
demência, como a doença de Alzheimer, demência por corpos de Lewy e
paralisia supranuclear progressiva. A presença de mioclonia multifocal ou
asterixe ao exame motor é inespecífica, mas geralmente indica etiologia
tóxica ou metabólica do delirium.

ETIOLOGIA
Algumas etiologias são facilmente detectadas por anamnese e exame físico
minuciosos, enquanto outras requerem confirmação com exames
laboratoriais, de imagem ou outros testes complementares. Um grande e
diversificado grupo de agressões pode acarretar delirium e, em muitos
pacientes, a causa costuma ser multifatorial. As etiologias comuns estão
citadas na Tabela 24-2.

TABELA 24-2 ■ Etiologias comuns do delirium


Toxinas
Fármacos prescritos: em especial aqueles com propriedades anticolinérgicas, narcóticos e benzodiazepínicos
Drogas de uso abusivo: intoxicação alcoólica e abstinência de álcool, opioides, ecstasy, LSD, GHB, PCP, cetamina, cocaína, “sais de
banho”, maconha e suas formas sintéticas
Venenos: inalantes, monóxido de carbono, etilenoglicol, pesticidas
Distúrbios metabólicos
Distúrbios eletrolíticos: hipoglicemia, hiperglicemia, hiponatremia, hipernatremia, hipercalcemia, hipocalcemia, hipomagnesemia
Hipotermia e hipertermia
Insuficiência pulmonar: hipoxemia e hipercarbia
Insuficiência hepática/encefalopatia hepática
Disfunção renal/uremia
Insuficiência cardíaca
Deficiências de vitaminas: B12, tiamina, folato, niacina
Desidratação e desnutrição
Anemia
Infecções
Infecções sistêmicas: do trato urinário, pneumonia, da pele e dos tecidos moles, sepse
Infecções do SNC: meningite, encefalite, abscesso cerebral
Distúrbios endócrinos
Hipertireoidismo, hipotireoidismo
Hiperparatireoidismo
Insuficiência suprarrenal
Distúrbios cerebrovasculares
Estados de hipoperfusão global
Encefalopatia hipertensiva
Acidentes vasculares cerebrais isquêmicos focais e hemorragias (raro): em especial, lesões parietais e talâmicas não dominantes
Distúrbios autoimunes
Vasculite do SNC
Lúpus cerebral
Encefalite autoimune e paraneoplásica
Distúrbios convulsivos
Estado de mal epiléptico não convulsivo
Convulsões intermitentes com estados pós-ictais prolongados
Distúrbios neoplásicos
Metástases cerebrais difusas
Gliomatose cerebral
Meningite carcinomatosa
Linfoma do SNC
Hospitalização
Delirium terminal no fim da vida
Siglas: SNC, sistema nervoso central; GHB, γ-hidroxibutirato; LSD, dietilamida do ácido lisérgico; PCP, fenciclidina.

Medicamentos prescritos, vendidos sem receitas ou fitoterápicos podem


precipitar delirium. Fármacos com propriedades anticolinérgicas, narcóticos
e benzodiazepínicos são agressores particularmente frequentes, mas quase
qualquer composto pode causar disfunção cognitiva em pacientes
predispostos. Enquanto um paciente idoso com demência pode vir a
apresentar delirium ao ser exposto a uma dose relativamente baixa de algum
fármaco, indivíduos menos suscetíveis podem ter delirium apenas com doses
muito altas do mesmo agente. Tal observação enfatiza a importância de
correlacionar o momento de mudanças recentes na medicação, como a dose e
a apresentação, com o início da disfunção cognitiva.
Em pacientes jovens, drogas ilícitas e toxinas são causas comuns de
delirium. Além das drogas mais clássicas usadas de forma abusiva, o
aumento recente na disponibilidade de “sais de banho”, cannabis sintética,
metilenodioximetanfetamina (MDMA, ecstasy), γ-hidroxibutirato (GHB) e a
cetamina, agente semelhante à fenciclidina (PCP), tem levado a um aumento
no número de pessoas jovens com delirium agudo que chegam às
emergências hospitalares (Cap. 447). Muitos fármacos comuns prescritos,
como narcóticos e benzodiazepínicos orais, são usados de forma abusiva e
disponíveis com facilidade nas ruas. O abuso de álcool levando a altos níveis
séricos causa confusão, embora seja mais comum a abstinência alcoólica
ocasionar um delirium hiperativo (Cap. 445). Em todos os casos de delirium,
deve-se considerar a abstinência de álcool e benzodiazepínicos, porque
mesmo os pacientes que só tomam pequenas doses de álcool todos os dias
podem ter sintomas relativamente graves de abstinência ao serem
hospitalizados.
Anormalidades metabólicas, como distúrbios eletrolíticos de sódio,
cálcio, magnésio ou glicose, podem causar delirium, e alterações leves
podem acarretar distúrbios cognitivos substanciais em indivíduos suscetíveis.
Outras etiologias metabólicas comuns incluem insuficiências hepática e
renal, hipercapnia e hipoxemia, deficiências das vitaminas tiamina e B12,
distúrbios autoimunes, como vasculite do sistema nervoso central (SNC), e
endocrinopatias, como doenças da tireoide e suprarrenais.
Infecções sistêmicas muitas vezes causam delirium, sobretudo em
idosos. Um cenário comum é o aparecimento de declínio cognitivo agudo no
contexto de infecção do trato urinário em paciente que já esteja com
demência. Pneumonia, infecções cutâneas, como celulite, e sepse franca
também podem causar delirium. É provável que a chamada encefalopatia
séptica, em geral detectada na UTI, deva-se à liberação de citocinas pró-
inflamatórias e a seus efeitos cerebrais difusos. Infecções do SNC, como
meningite, encefalite e abscessos, são etiologias menos comuns de delirium,
da mesma forma que os casos de encefalite autoimune ou paraneoplásica;
porém, com a morbidade e mortalidade elevadas associadas a tais afecções
quando elas não são tratadas rapidamente, os médicos precisam sempre
manter alto índice de suspeição.
Em alguns indivíduos suscetíveis, a exposição ao ambiente hospitalar
estranho pode desencadear o delirium. Essa etiologia geralmente faz parte do
delirium multifatorial, devendo ser considerada um diagnóstico de exclusão
depois que todas as outras causas tiverem sido completamente investigadas.
Muitas estratégias de prevenção primária e tratamento do delirium abrangem
métodos relativamente simples que visam aos principais aspectos do contexto
hospitalar causadores de confusão.
As etiologias cerebrovasculares de delirium em geral se devem à
hipoperfusão global na vigência de hipotensão sistêmica decorrente de
insuficiência cardíaca, choque séptico, desidratação ou anemia. AVCs focais
no lobo parietal direito e tálamo medial dorsal raramente resultam em estado
de delirium. Um cenário mais comum envolve um novo AVC ou hemorragia
focal que causam confusão em paciente que já apresentava reserva cerebral
diminuída. Em tais indivíduos, às vezes é difícil distinguir uma disfunção
cognitiva resultante da nova agressão neurovascular em si do delirium
decorrente das complicações infecciosas, metabólicas e farmacológicas que
podem acompanhar a hospitalização após um AVC.
Como geralmente se observa evolução flutuante no delirium, crises
epilépticas intermitentes podem passar despercebidas durante a pesquisa de
etiologias em potencial. O estado epiléptico não convulsivo e as convulsões
recorrentes focais ou generalizadas seguidas por confusão pós-ictal podem
causar delirium; o EEG ainda é fundamental para esse diagnóstico, devendo
ser considerado sempre que a etiologia do delirium permanecer incerta após a
avaliação inicial. A atividade convulsiva que se expande a partir de um foco
epiléptico (massa ou infarto) explica a disfunção cognitiva global causada
por lesões relativamente pequenas.
É extremamente comum que pacientes no fim da vida sob cuidados
paliativos tenham delirium. Tal distúrbio, às vezes descrito como agitação
terminal, precisa ser identificado e tratado de forma agressiva, pois é uma
causa importante de desconforto no final da vida. Deve-se ter em mente que
esses pacientes também podem estar sofrendo de etiologias mais comuns de
delirium, como infecções sistêmicas.

AVALIAÇÃO LABORATORIAL E DIAGNÓSTICA


Uma abordagem de relação custo-benefício favorável permite que a
anamnese e o exame físico orientem as etapas subsequentes. Nenhum
algoritmo único funciona para todos os pacientes com delirium devido ao
grande número de etiologias possíveis, mas a Tabela 24-3 expõe uma
abordagem em etapas. Se um fator precipitante for identificado, como um
fármaco agressor, pode não haver necessidade de exames adicionais.
Contudo, caso não se descubra uma etiologia provável à avaliação inicial,
deverá ser instituída uma pesquisa minuciosa de alguma causa subjacente.
TABELA 24-3 ■ Avaliação em etapas dos pacientes com delirium
Avaliação inicial
Anamnese com atenção especial à medicação (incluindo as vendidas sem prescrição e os fitoterápicos)
Exame físico geral e neurológico
Hemograma completo
Painel de eletrólitos, incluindo cálcio, magnésio e fósforo
Provas de função hepática, incluindo albumina
Provas de função renal
Avaliação adicional primária orientada pelos dados iniciais
Pesquisa de infecção sistêmica
Exame de urina e cultura
Radiografias de tórax
Hemoculturas
Eletrocardiografia
Gasometria arterial
Rastreamento toxicológico sérico e/ou urinário (solicitar logo de início em pacientes jovens)
Exames de imagem cerebrais, incluindo RM com difusão e gadolínio (preferível) ou TC
Suspeita de infecção ou outro distúrbio inflamatório do SNC: punção lombar após exame de imagem cerebral
Suspeita de etiologia relacionada com convulsão: eletrencefalograma (EEG) (se a suspeita for forte, realizá-lo imediatamente)
Avaliação adicional secundária
Níveis de vitaminas: B12, folato, tiamina

Exames laboratoriais endocrinológicos: hormônio estimulante da tireoide (TSH) e T4 livre; cortisol

Amônia sérica
Velocidade de hemossedimentação
Sorologias autoimunes: fatores antinucleares (FAN), níveis de complemento, p-ANCA, c-ANCA, considerar sorologias para encefalites
autoimune/paraneoplásica
Sorologias infecciosas: VDRL; sorologias fúngicas e virais se houver alto índice de suspeita; anticorpos anti-HIV
Punção lombar (se ainda não tiver sido realizada)
RM cerebral com e sem gadolínio (se ainda não realizada)
Siglas: c-ANCA, anticorpo anticitoplasma de neutrófilo citoplasmático; SNC, sistema nervoso central; TC, tomografia
computadorizada; RM, ressonância magnética; p-ANCA, anticorpo anticitoplasma de neutrófilo perinuclear; VDRL, Venereal Disease
Research Laboratory.

Devem-se solicitar exames laboratoriais de rastreamento básicos, como


hemograma completo, painel eletrolítico e provas das funções hepática e
renal, para todos os pacientes com delirium. Em pacientes idosos, o
rastreamento para infecção sistêmica, incluindo radiografias, exame e cultura
de urina, e possivelmente hemoculturas, é importante. Em indivíduos mais
jovens, os rastreamentos sérico e urinário para drogas e substâncias tóxicas
podem ser apropriados no início da avaliação. Outros exames de laboratório
voltados para etiologias autoimunes, endocrinológicas, metabólicas e
infecciosas devem ser reservados para os pacientes cujo diagnóstico continue
incerto depois dos exames iniciais.
Diversos estudos demonstraram que os exames de imagem do cérebro
de pacientes com delirium com frequência são inúteis. No entanto, quando a
pesquisa inicial nada revela, a maioria dos médicos recorre a exames de
imagem cerebrais para excluir causas estruturais. Uma tomografia
computadorizada (TC) sem contraste pode identificar grandes massas e
hemorragias, mas é relativamente insensível para esclarecer a etiologia do
delirium. A capacidade da ressonância magnética (RM) para identificar a
maioria dos AVCs agudos isquêmicos e mostrar detalhes neuroanatômicos
que podem fornecer indícios de possíveis afecções infecciosas, inflamatórias,
neurodegenerativas e neoplásicas torna-a o exame preferível. Como as
técnicas de RM são limitadas por sua disponibilidade, pela velocidade da
obtenção das imagens e pela cooperação do paciente, além das
contraindicações, muitos clínicos começam com a TC e prosseguem com a
RM se a etiologia do delirium continuar incerta.
A punção lombar (PL) deve ser realizada imediatamente, depois de
exames de imagem neurológicos apropriados, em todos os pacientes nos
quais se suspeita de infecção do SNC. O exame do líquido cerebrospinal
também pode ser útil para identificar condições inflamatórias e neoplásicas.
Por isso, deve-se considerar a PL em qualquer paciente com delirium e
investigação negativa. O EEG ainda é um exame valioso se crises epilépticas
forem consideradas ou se nenhuma causa for prontamente identificada.

TRATAMENTO
Delirium
O tratamento do delirium começa com medidas para o fator incitante subjacente (p. ex., os pacientes com
infecção sistêmica devem receber antibióticos apropriados, e os distúrbios eletrolíticos subjacentes devem
ser corrigidos de forma criteriosa). Tais medidas geralmente acarretam na resolução imediata do delirium.
Combater cegamente de maneira farmacológica os sintomas do delirium serve apenas para prolongar a
confusão dos pacientes e pode mascarar informações diagnósticas importantes.
Métodos relativamente simples de assistência de apoio podem ser muito eficazes. A reorientação pela
equipe de enfermagem e pela família, combinada com relógios visíveis, calendários, janelas para o exterior
podem diminuir a confusão do paciente. O isolamento sensitivo deve ser evitado, fornecendo-se óculos e
aparelhos auditivos aos pacientes que deles necessitem. O agravamento noturno pode ser evitado com a
vigilância para ciclos de sono e vigília apropriados. Durante o dia, além de manter o quarto bem iluminado,
é bom programar atividades ou exercícios para evitar cochilos. À noite, um ambiente silencioso e escuro,
com poucas interrupções por parte da equipe hospitalar, pode assegurar o repouso adequado. Tais
intervenções no ciclo de sono e vigília são muito importantes no contexto da UTI, pois a atividade constante
habitual por 24 horas comumente causa delirium. Também se demonstrou que tentativas de simular o
ambiente doméstico o máximo possível ajudam a prevenir e tratar o delirium. Visitas de amigos e familiares
durante o dia atenuam a ansiedade associada ao fluxo constante de médicos e outras pessoas estranhas da
equipe hospitalar. Deixar que o paciente use a própria roupa e também a de cama de casa, bem como tenha
objetos que costumam ficar perto dele à noite, torna o ambiente hospitalar menos estranho e, portanto, causa
menos confusão. Práticas padronizadas simples de enfermagem, como manter a nutrição adequada e o grau
de hidratação do paciente, além de tratar a dor, a incontinência e feridas cutâneas, também ajudam a aliviar
o desconforto e a resultante confusão.
Em algumas circunstâncias, os próprios pacientes ameaçam sua segurança ou a da equipe, o que requer
tratamento agudo. Alarmes no leito e a presença de um acompanhante são muito mais eficazes e menos
desorientadores que a contenção física. A contenção química deve ser evitada, mas pode-se usar doses
muito baixas de antipsicóticos típicos ou atípicos administrados quando necessário; porém, há poucas
evidências de que esses medicamentos sejam efetivos no delirium e, assim, devem ser reservados para
pacientes com agitação grave e potencial significativo de dano para si ou para a equipe. A associação
recente do uso de antipsicóticos a aumento da mortalidade em idosos ressalta a importância do uso
criterioso desses fármacos e apenas como último recurso. Os benzodiazepínicos costumam piorar a
confusão por meio de seus efeitos sedativos. Embora muitos clínicos ainda usem os benzodiazepínicos para
tratar a confusão aguda, seu emprego deve ser limitado aos casos em que o delirium seja causado pela
abstinência de álcool ou de benzodiazepínicos.

PREVENÇÃO
Considerando-se a alta mortalidade e o custo extremamente elevado com
assistência médica associados ao delirium, o desenvolvimento de uma estratégia
eficaz para sua prevenção em pacientes hospitalizados tem importância
fundamental. A identificação bem-sucedida dos pacientes sob alto risco é a
primeira etapa, seguida pela instituição das intervenções apropriadas. Cada vez
mais, os hospitais estão usando ferramentas administradas por enfermeiros ou
médicos para rastrear as pessoas de alto risco, o que leva ao uso de protocolos
padronizados simples para manejo dos fatores de risco para delirium, incluindo a
inversão do ciclo de sono-vigília, a imobilidade, o déficit visual, o déficit
auditivo, a privação de sono e a desidratação. Nenhum medicamento específico
mostrou de forma definitiva ser efetivo na prevenção do delirium, incluindo
testes com inibidores da colinesterase e agentes antipsicóticos. A melatonina e
seu agonista ramelteon se mostraram promissores em pequenos estudos
preliminares. Estudos recentes em UTI se concentraram na identificação de
sedativos como a dexmedetomidina, que têm menos chance de causar delirium
em pacientes criticamente enfermos e no desenvolvimento de protocolos de
despertares diários, nos quais as infusões de sedativos são interrompidas e o
paciente é reorientado pela equipe. Todos os hospitais e sistemas de cuidados de
saúde estão tentando reduzir a incidência de delirium, reconhecendo
imediatamente e tratando o distúrbio quando ele ocorre.

LEITURAS ADICIONAIS
Constantin JM et al: Efficacy and safety of sedation with dexmede-tomidine in
critical care patients: A meta-analysis of randomized controlled trials.
Anaesth Crit Care Pain Med 35:7, 2016.
Hatta K et al: Preventive effects of ramelteon on delirium: A randomized
placebo-controlled trial. JAMA Psychiatry 71:397, 2014.
Neufeld KJ et al: Antipsychotic medication for prevention and treatment of
delirium in hospitalized adults: A systematic review and meta-analysis. J
Am Geriatr Soc 64:705, 2016.
25
Demência
William W. Seeley, Bruce L. Miller

A demência, uma síndrome com muitas causas, acomete > 5 milhões de pessoas
nos Estados Unidos e resulta em um custo total anual de assistência à saúde de
mais de 250 bilhões de dólares. A demência é definida como uma deterioração
adquirida das capacidades cognitivas que prejudica o desempenho das atividades
cotidianas. A memória episódica, a capacidade de lembrar eventos específicos no
tempo e no espaço, é a função cognitiva mais comumente perdida; 10% das
pessoas com idade > 70 anos e 20 a 40% dos indivíduos > 85 anos apresentam
perda de memória clinicamente identificável. Além da memória, a demência
pode desgastar outras faculdades mentais, como a linguagem, as capacidades
visuoespaciais, praxias, cálculo, julgamento e resolução de problemas. Os
déficits neuropsiquiátricos e sociais também surgem em muitas síndromes
demenciais, manifestando-se como depressão, apatia, ansiedade, alucinações,
delírios, agitação, insônia, distúrbios do sono, compulsões ou desinibição. O
curso clínico pode ser lentamente progressivo, como na doença de Alzheimer
(DA); estáticas, como na encefalopatia anóxica; ou pode oscilar dia a dia ou
minuto a minuto, como na demência por corpos de Lewy (DCL). A maioria dos
pacientes com DA, a forma mais prevalente de demência, começa com
deficiência episódica da memória, embora em outras demências, como a
demência frontotemporal (DFT), a perda de memória não seja uma manifestação
típica à apresentação. Os distúrbios cerebrais focais são discutidos no Capítul
o 26; discussões detalhadas sobre a DA podem ser encontradas no Capítulo
423; DFT e distúrbios relacionados no Capítulo 424; demência vascular no
Capítulo 425; DCL no Capítulo 426; doença de Huntington (DH) no Capítul
o 428; e doenças priônicas no Capítulo 430.
ANATOMIA FUNCIONAL DAS DEMÊNCIAS
As síndromes demenciais resultam da ruptura de redes neuronais de larga escala
específicas; a localização e a gravidade da perda sináptica e neuronal combinam-
se produzindo as manifestações clínicas (Cap. 26). O comportamento, o humor e
a atenção são modulados por vias noradrenérgicas, serotoninérgicas e
dopaminérgicas ascendentes, enquanto a atividade colinérgica é fundamental
para as funções de atenção e memória. As demências diferem nos perfis relativos
de déficit de neurotransmissor; consequentemente, o diagnóstico preciso orienta
a terapia farmacológica eficaz.
A DA começa na região entorrinal do lobo temporal medial, estende-se ao
hipocampo e, em seguida, move-se para o neocórtex temporal lateral e posterior
e o parietal, subsequentemente causando degeneração mais difusa. A demência
vascular está associada à lesão focal em um mosaico variável de regiões
corticais e subcorticais ou tratos da substância branca que desconectam núcleos
nas redes distribuídas. De acordo com a anatomia, a DA normalmente apresenta-
se com perda de memória episódica acompanhada mais tarde por afasia,
disfunção executiva ou problemas de orientação espacial. Diferentemente, as
demências que começam nas regiões frontal ou subcortical, como a DFT ou a
DH, são menos propensas a começar com problemas de memória e mais
propensas a apresentar dificuldades de julgamento, humor, controle executivo,
movimento e comportamento.
Lesões de vias fronto-estriatais1 produzem efeitos específicos e previsíveis
sobre o comportamento. O córtex pré-frontal dorsolateral tem conexões com
uma faixa central do núcleo caudado. As lesões do córtex pré-frontal dorsolateral
ou caudado ou suas vias da substância branca conectoras podem resultar em
disfunção executiva, manifestando-se como deficiência da organização e do
planejamento, redução da flexibilidade cognitiva e prejuízo da memória de
trabalho. O córtex frontal orbital lateral conecta-se com o caudado ventromedial,
e lesões nesse sistema causam impulsividade, distração e desinibição. O córtex
do cíngulo anterior e o córtex pré-frontal medial adjacente projetam-se para o
nucleus accumbens, e a interrupção desse sistema produz apatia, pobreza da fala,
atenuação emocional ou mesmo mutismo acinético. Todos os sistemas
corticoestriatais também incluem projeções topograficamente organizadas pelo
globo pálido e tálamo; uma lesão nesses núcleos pode, da mesma maneira,
reproduzir a síndrome clínica associada à lesão cortical ou estriatal
correspondente.
CAUSAS DE DEMÊNCIA
O fator de risco isolado mais forte para a demência é a idade avançada. A
prevalência da perda incapacitante da memória aumenta a cada década acima de
50 anos e, em geral, está associada às alterações microscópicas da DA à
necrópsia. Entretanto, algumas pessoas centenárias exibem função de memória
intacta e não têm qualquer evidência de demência clinicamente significativa. A
hipótese de que a demência seja uma consequência inevitável do envelhecimento
humano normal permanece controversa.
A Tabela 25-1 cita as muitas causas da demência. A frequência de cada
distúrbio depende da faixa etária sob estudo, do acesso do grupo à assistência
médica, do país de origem e talvez da constituição racial ou étnica. A DA é a
causa mais comum de demência nos países ocidentais, representando mais de
metade de todos os pacientes. A doença vascular é considerada a segunda causa
mais frequente de demência e é particularmente comum em pacientes idosos ou
em populações com acesso limitado à assistência médica, nas quais os fatores de
risco vasculares recebem tratamento insuficiente. Frequentemente, a lesão
cerebral vascular é misturada com outros distúrbios neurodegenerativos,
dificultando, mesmo para o neuropatologista, a estimativa de contribuição da
doença cerebrovascular para o distúrbio cognitivo em um paciente isolado.
Demências associadas à doença de Parkinson (DP) são comuns e podem
desenvolver-se anos após o início de um distúrbio parkinsoniano, como
observado com a demência relacionada com DP (DDP), ou podem ocorrer
concomitantemente ou preceder a síndrome motora, como na DCL. É comum
haver patologia mista, especialmente em pessoas muito idosas. Nos pacientes <
65 anos, a DFT disputa com a DA o posto de causa mais comum da demência.
As intoxicações crônicas, incluindo as resultantes do álcool e fármacos de
prescrição, são uma causa importante e, muitas vezes, tratável de demência.
Outros distúrbios citados na Tabela 25-1 são incomuns, mas importantes porque
muitos se mostram reversíveis. A classificação das doenças demenciais em
afecções reversíveis e irreversíveis é uma abordagem proveitosa ao diagnóstico
diferencial. Quando surgirem tratamentos eficazes para doenças
neurodegenerativas, essa dicotomia ficará obsoleta.

TABELA 25-1 ■ Diagnóstico diferencial da demência


Causas mais comuns de demência
Doença de Alzheimer Alcoolismoa
Demência vascular Espectro de DDP/DCL
Multi-infartos Intoxicação por droga/medicamentoa
Doença difusa da substância branca (doença
de Binswanger)
Causas menos comuns de demência
Deficiências de vitaminas Distúrbios tóxicos
Tiamina (B1): encefalopatia de Wernickea Intoxicação por droga, medicamento e narcóticoa
B12 (degeneração combinada subaguda)a Intoxicação por metais pesadosa
Ácido nicotínico (pelagra)a Toxinas orgânicas
Endocrinopatia e insuficiência de outros Transtornos psiquiátricos
órgãos Depressão (pseudodemência)a
Hipotireoidismoa Esquizofreniaa
Insuficiência suprarrenal e síndrome de Transtorno conversivoa
Cushinga Doenças degenerativas
Hipo e hiperparatireoidismoa Doença de Huntington
Insuficiência renala Atrofia de múltiplos sistemas
Insuficiência hepáticaa Ataxias hereditárias (algumas formas)
Insuficiência pulmonara Espectro de degeneração lobar frontotemporal
Infecções crônicas Esclerose múltipla
HIV Síndrome de Down no adulto com doença de Alzheimer
Neurossífilisa Complexo ELA-parkinsonismo-demência de Guam
Papovavírus (vírus JC) (leucoencefalopatia Príons (doenças de Creutzfeldt-Jakob e Gerstmann-Sträussler-Scheinker)
multifocal progressiva) Outras
Tuberculose, fúngica e por protozoáriosa Sarcoidosea
Doença de Whipplea Vasculitea
Traumatismo craniano e lesão cerebral difusa CADASIL, etc.
Encefalopatia traumática crônica Porfiria intermitente agudaa
Hematoma subdural crônicoa Crises epilépticas não convulsivas recorrentesa
Pós-anoxia Distúrbios adicionais em crianças e adolescentes
Pós-encefalite Neurodegeneração associada à pantotenato-cinase
Hidrocefalia de pressão normala Panencefalite esclerosante subaguda
Hipotensão intracraniana Doenças metabólicas (p. ex., doença de Wilson e de Leigh, leucodistrofias, doenças do
Neoplasias depósito lipídico, mutações mitocondriais)
Tumor cerebral primárioa
Tumor cerebral metastáticoa
Encefalite límbica
paraneoplásica/autoimunea
aDemência potencialmente reversível.

Siglas: ELA, esclerose lateral amiotrófica; CADASIL, arteriopatia cerebral autossômica dominante com infartos subcorticais e
leucoencefalopatia; DCL, doença por corpos de Lewy; DDP, demência relacionada com doença de Parkinson.

Em um estudo com 1.000 pessoas atendidas em um ambulatório de


distúrbios da memória, 19% apresentavam uma causa potencialmente reversível
da deficiência cognitiva e 23% tinham um distúrbio concomitante
potencialmente reversível que pode ter contribuído para a deficiência do
paciente. Os três diagnósticos potencialmente reversíveis mais comuns eram
depressão, hidrocefalia de pressão normal (HPN) e dependência de álcool;
efeitos colaterais medicamentosos também são comuns e devem ser
considerados em todo paciente (Tab. 25-1).
O declínio cumulativo sutil da memória episódica é uma parte natural do
envelhecimento. Essa experiência frustrante, fonte frequente de brincadeiras e
humor, é muitas vezes denominada esquecimento benigno do idoso. Benigno
significa que não é tão progressivo ou sério a ponto de comprometer a função
diária razoavelmente bem-sucedida e produtiva, embora possa ser difícil
distinguir entre a perda de memória benigna e a mais significativa. Aos 85 anos,
a pessoa média é capaz de aprender e recordar metade do número de itens (p.
ex., palavras em uma lista) que ela recordava aos 18 anos. Um problema
cognitivo mensurável que não prejudica gravemente as atividades cotidianas
frequentemente é chamado de comprometimento cognitivo leve (CCL). Os
fatores que predizem a evolução de CCL para uma demência da DA incluem
déficit de memória proeminente, história familiar de demência, presença de alelo
da apolipoproteína ε4 (Apo ε4), volumes hipocampais pequenos, um espectro de
redução de volume cerebral semelhante à DA, líquido cerebrospinal com Aβ
baixo e tau elevado ou evidência de deposição amiloide cerebral na imagem de
tomografia por emissão de pósitrons (PET).
As principais demências degenerativas incluem DA, DCL, DFT e distúrbios
relacionados, DH e doenças por príons, como a doença de Creutzfeldt-Jakob
(DCJ). Todos esses distúrbios estão associados à agregação anormal de uma
determinada proteína: Aβ42 e tau na DA; α-sinucleína na DCL; tau, proteína de
ligação ao DNA TAR de 43 kDa (TDP-43) ou fundidas em sarcoma (FUS) na
DFT; huntingtina na DH; e proteína priônica mal enovelada (PrPSc) na DCJ (Tab
. 25-2).

TABELA 25-2 ■ Base molecular da demência degenerativa


Demência Base Genes causais (cromossomo) Genes de Achados patológicos
molecular suscetibilidade

DA Aβ/tau APP (21), PS-1 (14), PS-2 (1) (< 2% são Apo ε4 (19) Placas amiloides, emaranhado
portadores dessas mutações, frequentemente em neurofibrilar e filamentos de
PS-1) neurópilo
DFT Tau Mutações de éxons e íntrons de MAPT (17) Haplótipos H1 Inclusões neuronais e gliais tau
(cerca de 10% de casos familiares) MAPT que variam em morfologia e
distribuição
TDP-43 GRN (10% de casos familiares), C9ORF72 (20- Inclusões neuronais e gliais
30% de casos familiares), VCP raro, TARDBP TDP-43 que variam em
muito raro, TBK1, TIA1 morfologia e distribuição
FUS FUS muito raro Inclusões neuronais e gliais
FUS que variam em morfologia
e distribuição
DCL α- SNCA muito rara (4) Desconhecidos Inclusões neuronais de α-
sinucleína sinucleína (corpos de Lewy)
DCJ PrPSc PRNP (20) (até 15% dos pacientes são portadores Homozigose no Deposição de PrPSc, espongiose
dessas mutações dominantes) códon 129 para a panlaminar
metionina ou valina
Siglas: DA, doença de Alzheimer; DCJ, doença de Creutzfeldt-Jakob; DCL, demência por corpos de Lewy; DFT, demência frontotemporal.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Demências
Deve-se ter em mente três questões principais: (1) Qual é o tipo de demência
mais provável clinicamente? (2) Que componente da síndrome demencial é
tratável ou reversível? (3) O médico pode ajudar a aliviar o ônus sobre os
cuidadores? A Tabela 25-3 mostra uma apresentação geral da abordagem à
demência. As principais demências degenerativas geralmente são
distinguíveis pelos sintomas iniciais; achados neuropsicológicos,
neuropsiquiátricos e neurológicos; e exames de neuroimagem (Tab. 25-4).

TABELA 25-3 ■ Avaliação do paciente com demência


Avaliação rotineira Testes focados opcionais Testes eventualmente úteis
História Testes psicométricos EEG
Exame físico Radiografia de tórax Função paratireoidiana
Exames de laboratório Punção lombar Função suprarrenal
Função tireoidiana (TSH) Função hepática Metais pesados na urina
Vitamina B12 Função renal Velocidade de hemossedimentação
Hemograma completo Rastreamento de toxinas na urina Angiografia
Eletrólitos HIV Biópsia cerebral
TC/RM Apolipoproteína E SPECT
RPR ou VDRL PET
Rastreamento laboratorial de autoanticorpos
Categorias diagnósticas
Causas reversíveis Demências irreversíveis/degenerativas Transtornos psiquiátricos

Exemplos Exemplos Depressão


Hipotireoidismo Doença de Alzheimer Esquizofrenia
Deficiência de tiamina Demência frontotemporal Reação conversiva
Deficiência de vitamina B12 Doença de Huntington
Hidrocefalia de pressão normal Demência por corpos de Lewy
Hematoma subdural Demência vascular
Infecção crônica Leucoencefalopatia
Tumor cerebral Doença de Parkinson
Intoxicação medicamentosa
Encefalopatia autoimune
Distúrbios tratáveis associados
Depressão Agitação
Convulsões Burnout de cuidadores
Insônia Efeitos colaterais medicamentosos
Siglas: TC, tomografia computadorizada; EEG, eletrencefalograma; RM, ressonância magnética; PET, tomografia por emissão de
pósitrons; RPR, reagina plasmática rápida (teste); SPECT, tomografia computadorizada com emissão de fóton único; TSH, hormônio
estimulante da tireoide; VDRL, Veneral Disease Research Laboratory (teste para sífilis).

TABELA 25-4 ■ Diferenciação clínica das principais demências


Doença Primeiro sintoma Estado mental Neuropsiquiatria Neurologia Exame de
imagem

DA Perda de memória Perda da memória Irritabilidade, Inicialmente Atrofia entorrinal e


episódica ansiedade, normal hipocampal
depressão
DFT Apatia; redução do Déficit Apatia, Pode apresentar Atrofia frontal,
julgamento/percepção, frontal/executivo e/ou desinibição, paralisia do olhar insular e/ou
fala/linguagem; da linguagem; compulsão vertical, rigidez temporal;
hiperoralidade preserva a capacidade alimentar, axial, distonia, geralmente
de desenhar compulsividade mão alienígena ou preserva o lobo
DNM parietal posterior
DCL Alucinações visuais, Déficits da capacidade Alucinações Parkinsonismo Atrofia parietal
DCSR, delirium, de desenhar e visuais, posterior;
síndrome de Capgras, frontal/executivo; depressão, hipocampos
parkinsonismo preserva memória; distúrbio do sono, maiores que na
propensão ao delirium delírios DA

DCJ Demência, alteração do Variável, déficits Depressão, Mioclonia, Sinal hiperintenso


humor, ansiedade, frontal/executivo, ansiedade, rigidez, na fita cortical e
distúrbios do cortical focal, psicose em alguns parkinsonismo em núcleos da
movimento memória base ou tálamo na
RM em
difusão/FLAIR
Demência Com frequência (mas Frontal/executiva; Apatia, delírios, Em geral, lentidão Infartos corticais
vascular nem sempre) súbito; retardo cognitivo; ansiedade motora, e/ou subcorticais,
sintomas iniciais pode preservar a espasticidade; doença confluente
variáveis; apatia, memória pode ser normal da substância
quedas, fraqueza focal branca
Siglas: DA, doença de Alzheimer; DCJ, doença de Creutzfeldt-Jakob; DCL, demência por corpos de Lewy; DCSR, distúrbio
comportamental do sono REM; FLAIR, fluid-attenuated inversion recovery; DFT, demência frontotemporal; DNM, doença do neurônio
motor.

HISTÓRIA
A anamnese deve concentrar-se no início, duração e ritmo de evolução. Um
início agudo ou subagudo de confusão pode ser causado por delirium (Cap. 2
4) e deve desencadear a busca por intoxicação, infecção ou distúrbio
metabólico. Uma pessoa idosa, com perda de memória lentamente
progressiva ao longo de vários anos, provavelmente sofre de DA. Quase 75%
dos pacientes com DA apresentam-se com sintomas de memória, mas outros
sintomas precoces incluem dificuldade de lidar com dinheiro, dirigir, fazer
compras, seguir instruções, encontrar palavras ou navegar na internet.
Alteração da personalidade, desinibição e ganho de peso ou comer
compulsivamente sugerem DFT, não DA. A DFT também é sugerida por
apatia proeminente, compulsividade, perda de empatia pelos outros ou perda
progressiva da fluência da fala ou compreensão de palavras únicas e por uma
preservação relativa da memória ou das habilidades espaciais. O diagnóstico
de DCL é sugerido por alucinações visuais precoces, parkinsonismo,
tendência a delirium ou sensibilidade a medicamentos psicoativos, distúrbio
comportamental do sono REM (DCSR; perda da paralisia dos músculos
esqueléticos durante os sonhos) ou síndrome de Capgras, a ilusão de que um
familiar foi substituído por um impostor.
Uma história de acidente vascular cerebral (AVC) com progressão (em
etapas) irregular sugere demência vascular. A demência vascular também é
comumente observada no caso de hipertensão, fibrilação atrial, doença
vascular periférica e diabetes. Nos pacientes que sofrem de doença
cerebrovascular, pode ser difícil determinar se a demência advém de DA,
doença vascular ou uma mistura de ambas, pois muitos dos fatores de risco
da demência vascular, como o diabetes, hipercolesterolemia, homocisteína
elevada e pouco exercício, também são fatores de risco da DA. Além disso,
muitos pacientes com uma contribuição vascular importante para sua
demência não possuem história de declínio em etapas. Progressão rápida com
rigidez motora e mioclonia sugere DCJ (Cap. 430). Colvulsões podem
indicar AVCs ou neoplasia, mas também ocorrem na DA, particularmente
DA com início precoce. Um distúrbio da marcha é comum na demência
vascular, DP/DCL ou HPN. Uma história de comportamentos sexuais de alto
risco ou uso de drogas intravenosas devem suscitar uma pesquisa de infecção
do sistema nervoso central (SNC), especialmente o HIV ou sífilis. Uma
história de traumatismo craniano recorrente poderia indicar hematoma
subdural crônico, encefalopatia traumática crônica (uma demência
progressiva mais bem caracterizada em atletas de esportes de contato, como
boxeadores e jogadores de futebol americano), hipotensão intracraniana ou
HPN. O início subagudo de amnésia grave e psicose com hiperintensidades
na ressonância magnética (RM) mesial temporal em T2/fluid-attenuated
inversion recovery (FLAIR) devem alertar para existência de encefalite
límbica paraneoplásica, especialmente em um tabagista de longa data ou
outros pacientes em risco de câncer. Condições autoimunes relacionadas,
como encefalopatia mediada por anticorpo anticanal de potássio dependente
de voltagem (VGKC) ou antirreceptor de N-metil-D-aspartato (NMDA),
podem apresentar-se com evolução temporal e aspectos de imagens
semelhantes, com ou sem manifestações motoras típicas, como mioquimia
(anti-VGKC) e convulsões distônicas faciobraquiais (anti-NMDA) (Cap.
90). O alcoolismo cria o risco de desnutrição e deficiência de tiamina.
Veganismo, irradiação do intestino, diátese autoimune, história remota de
cirurgia gástrica e terapia crônica com anti-histamínicos para dispepsia ou
refluxo gastresofágico predispõem à deficiência de B12. Determinadas
profissões, como o trabalho em fábrica de baterias ou substâncias químicas,
podem indicar intoxicação por metais pesados. Uma revisão cuidadosa da
ingestão de medicamentos, especialmente de sedativos e analgésicos, pode
levantar a questão de intoxicação crônica por fármacos. Uma história familiar
autossômica dominante é encontrada na DH e em formas familiares de DA,
DFT, DCL ou distúrbios priônicos. Uma história de distúrbios do humor, o
luto recente ou sinais de depressão, como insônia ou perda ponderal,
levantam a possibilidade de comprometimento cognitivo relacionado com a
depressão.

EXAME FÍSICO E NEUROLÓGICO


Um exame físico geral e neurológico minuciosos são essenciais para
documentar a demência, pesquisar outros sinais de comprometimento do
sistema nervoso e detectar indícios de doença sistêmica que possa ser
responsável pelo distúrbio cognitivo. A DA típica não afeta os sistemas
motores até um estágio avançado na evolução. Diferentemente, muitos
pacientes com DFT apresentam rigidez axial, paralisia supranuclear do olhar
ou doença do neurônio motor reminiscente da esclerose lateral amiotrófica
(ELA). Na DCL, os sintomas iniciais podem incluir começo recente de
síndrome parkinsoniana (tremor em repouso, rigidez em roda dentada,
bradicinesia e marcha festinante), mas frequentemente começa com
alucinações visuais ou demência. Sintomas referíveis ao tronco encefálico
inferior (DCSR, problemas gastrintestinais ou autonômicos) podem surgir
anos antes de parkinsonismo ou demência. Síndrome corticobasal (SCB)
caracteriza-se por acinesia assimétrica e rigidez, distonia, mioclonia,
fenômeno de membro fantasma, sinais piramidais e déficits pré-frontais,
como afasia não fluente com ou sem comprometimento motor da fala,
disfunção executiva, apraxia ou distúrbio comportamental. A paralisia
supranuclear progressiva (PSP) está associada a quedas inexplicadas, rigidez
axial, disfagia e déficits do olhar vertical. A DCJ é sugerida pela presença de
rigidez difusa, estado acinético mudo e mioclonia proeminente
frequentemente sensível a sobressaltos.
A hemiparesia ou outros déficits neurológicos focais sugerem demência
vascular ou tumor cerebral. A demência com mielopatia e neuropatia
periférica sugere deficiência de vitamina B12. Uma neuropatia periférica
também pode indicar deficiência de outra vitamina ou intoxicação por metais
pesados, disfunção da tireoide, doença de Lyme ou vasculite. Pele seca e fria,
queda de cabelos e bradicardia sugerem hipotireoidismo. Confusão oscilante
associada a movimentos estereotipados repetitivos pode indicar convulsões
límbicas, temporais ou frontais persistentes. Nos idosos, a deficiência
auditiva ou perda visual podem produzir confusão e desorientação,
erroneamente interpretadas como demência. Perda de audição
neurossensorial bilateral em paciente mais jovem com baixa estatura ou
miopatia, no entanto, deve suscitar busca por um distúrbio mitocondrial.
EXAME COGNITIVO E NEUROPSIQUIÁTRICO
Ferramentas breves de rastreamento, como o Miniexame do Estado Mental
(MEEM), o Montreal Cognitive Assessment (MOCA) e o Cognistat podem
ser usados para detectar demência e acompanhar sua evolução. Nenhum
desses exames é altamente sensível à demência de estágio inicial ou
discrimina entre as síndromes demenciais. O MEEM é um teste de 30 pontos
da função cognitiva, com cada resposta correta recebendo um ponto. Inclui
exames nas áreas de: orientação (p. ex., identificar
estação/data/mês/ano/andar/hospital/cidade/estado/país); registro (p. ex.,
nomear e reafirmar o nome de três objetos); recordação (p. ex., lembrar os
mesmos três objetos 5 minutos depois); e linguagem (p. ex., nomear lápis e
relógio; repetir “Nem aqui, nem ali, nem lá”; seguir um comando de três
etapas; obedecer um comando escrito; e escrever uma frase e copiar um
desenho). Na maioria dos pacientes CCL e alguns com DA clinicamente
aparente, o rastreamento à beira do leito pode ser normal e um conjunto de
testes neuropsicológicos mais desafiadores e abrangentes será necessário.
Quando a etiologia da síndrome demencial permanece duvidosa, deve-se
realizar uma avaliação especialmente adaptada que inclua tarefas da memória
de trabalho e da episódica, função executiva, linguagem, habilidades
visuoespaciais e perceptivas. Na DA, os déficits iniciais envolvem a memória
episódica, geração de categoria (“citar o maior número possível de animais
em 1 minuto”) e capacidade visuoconstrutora. Em geral, os déficits na
memória episódica verbal ou visual são as primeiras anormalidades
neuropsicológicas detectadas, e tarefas que solicitam ao paciente recordar
uma longa lista de palavras ou gravuras, após um retardo predeterminado,
demonstram déficits na maioria dos pacientes. Na DFT, os déficits mais
iniciais do teste cognitivo envolvem controle executivo ou função da
linguagem (fala ou nomeação), mas alguns pacientes não possuem nenhum
dos dois, apesar de déficits socioemocionais profundos. Os pacientes com
DDP ou DCL exibem déficits mais graves na função visuoespacial, mas se
saem melhor nas tarefas da memória episódica do que os pacientes com DA.
Os pacientes com demência vascular frequentemente demonstram uma
combinação de déficits de controle executivos e visuoespaciais, com
lentificação psicomotora proeminente. No delirium, os déficits mais
proeminentes envolvem atenção, memória de trabalho e função executiva,
tornando a avaliação de outros domínios cognitivos desafiadora e
frequentemente não informativa.
Uma avaliação funcional deve ser realizada para ajudar o médico a
determinar o impacto cotidiano do distúrbio na memória, atividades
comunitárias, hobbies, julgamento, hábito de vestir-se e de alimentação do
paciente. O conhecimento das habilidades funcionais irá ajudar o médico e a
família a organizar um plano terapêutico.
A avaliação neuropsiquiátrica é importante para diagnóstico,
prognóstico e tratamento. Nos estágios iniciais da DA, manifestações
depressivas leves, retraimento social e irritabilidade ou ansiedade são as
alterações psiquiátricas mais proeminentes, mas os pacientes frequentemente
preservam as habilidades sociais mais importantes até os estágios
intermediários ou tardios, quando alucinações, agitação e perturbações do
sono podem surgir. Na DFT, a alteração marcante da personalidade, com
apatia, hiperfagia, compulsões, desinibição, euforia e perda da empatia, é
precoce e comum. A DCL está associada a alucinações visuais, delírios
relacionados com a identidade pessoal ou do local, DCSR e sono diurno
excessivo. Ocorrem oscilações drásticas não somente na cognição como
também na vigília. A demência vascular pode apresentar-se com sintomas
psiquiátricos, como depressão, ansiedade, delírios, desinibição ou apatia.

EXAMES LABORATORIAIS
A escolha dos exames laboratoriais na avaliação da demência é complexa e
deve ser ajustada a cada caso. O médico deve tomar medidas para evitar
negligenciar uma causa reversível ou tratável, porém nenhuma etiologia
tratável é comum; assim, o rastreamento deve incluir múltiplos exames, cada
qual tendo baixa rentabilidade diagnóstica. As relações custo/benefício são
difíceis de serem avaliadas, e muitos algoritmos de rastreamento laboratorial
da demência desencorajam múltiplos exames. Não obstante, mesmo um
exame com taxa de positividade de apenas 1 a 2% deverá ser solicitado se a
alternativa for negligenciar uma causa tratável da demência. A Tabela 25-3
cita a maioria dos exames de rastreamento da demência. A American
Academic of Neurology recomenda a realização rotineira de hemograma
completo, eletrólitos, as provas de função renal e tireoidiana, nível de
vitamina B12 e exame de neuroimagem (tomografia computadorizada [TC] ou
RM).
Os exames de neuroimagem, especialmente a RM, ajudam a descartar
neoplasias primárias e metastáticas, áreas locais de infarto ou inflamação,
detectam hematomas subdurais e sugerem HPN ou doença difusa da
substância branca. Também ajudam a estabelecer um padrão regional de
atrofia. O suporte para o diagnóstico de DA inclui atrofia hipocampal além
de atrofia cortical posterior predominante (Fig. 25-1). Atrofia frontal e/ou
atrofia temporal anterior focais sugerem DFT (Cap. 424). A DCL
frequentemente apresenta menos atrofia proeminente, com maior
envolvimento das tonsilas do que do hipocampo. Na DCJ, as imagens de RM
em difusão revelam difusão restrita no córtex e gânglios basais na maioria
dos pacientes. Anormalidades multifocais extensas da substância branca
sugerem etiologia vascular da demência (Fig. 25-2). Hidrocefalia
comunicante com apagamento de vértice (agregamento dos sulcos de
convexidade dorsal), fissuras silvianas amplas apesar de atrofia cortical
mínima e caraterísticas adicionais mostradas na Figura 25-3 sugerem HPN.
A tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SPECT) e a PET
revelam hipoperfusão ou hipometabolismo temporal-parietal na DA e déficits
frontotemporais na DFT; porém, essas alterações frequentemente refletem
atrofia e podem, portanto, ser detectadas apenas com RM em muitos
pacientes. Recentemente, a imagem do componente amiloide mostrou ser
promissora para o diagnóstico de DA, e composto B de Pittsburgh (PiB) (não
disponível fora de locais de pesquisa) e 18F-AV-45 (florbetapir; aprovado pela
Food and Drug Administration em 2013) são radioligantes confiáveis para
detecção de amiloide cerebral associado a angiopatia amiloide ou placas
neuríticas de DA (Fig. 25-4). No entanto, pelo fato de essas anormalidades
poderem ser observadas em pessoas mais velhas cognitivamente normais
(cerca de 25% dos indivíduos aos 65 anos de idade), a imagem amiloide
também pode detectar DA pré-clínica ou incidental em pacientes que não
apresentam síndrome demencial semelhante à DA. Atualmente, o principal
valor clínico da imagem amiloide é excluir a DA como a causa provável de
demência em pacientes que apresentam exames negativos. Quando terapias
modificadoras da doença tornarem-se disponíveis, o uso desses
biomarcadores pode ajudar a identificar candidatos ao tratamento antes da
ocorrência de lesão cerebral irreversível. Nesse meio tempo, o valor
prognóstico de detectar amiloide cerebral em um idoso assintomático
continua sendo um tópico de investigação. Do mesmo modo, RM de perfusão
e métodos de conectividade estrutural/funcional estão sendo explorados
como potenciais estratégias de tratamento-monitoramento.
FIGURA 25-1 Doença de Alzheimer (DA). Ressonâncias magnéticas em T1 axiais de um paciente
saudável de 71 anos de idade (A) e um de 64 anos de idade com DA (C). Observe a redução do volume
do lobo temporal medial no paciente com DA. A tomografia com emissão de pósitrons com
fluorodesoxiglicose dos mesmos indivíduos (B e D) demonstram metabolismo reduzido de glicose nas
regiões temporoparietais posteriores bilateralmente na DA, um achado típico nessa condição. CS,
controle saudável. (Imagens cortesia de Gil Rabinovici, University of California, San Francisco, e
William Jagust, University of California, Berkeley.)
FIGURA 25-2 Doença difusa da substância branca. Ressonância magnética axial em FLAIR (fluid-
attenuated inversion recovery) através dos ventrículos laterais revela múltiplas áreas de sinal
hiperintenso (setas) que envolvem a substância branca periventricular, bem como a coroa radiada e o
estriado. Embora observado em alguns indivíduos com cognição normal, esse aspecto é mais acentuado
em pacientes com demência de etiologia vascular.

FIGURA 25-3 Hidrocefalia de pressão normal. A. Ressonância magnética (RM) sagital ponderada
em T1 demonstra dilatação do ventrículo lateral e estiramento do corpo caloso (setas), depressão do
soalho do terceiro ventrículo (ponta de seta única) e aumento do aqueduto (duas pontas de setas). Ver
a dilatação difusa dos ventrículos laterais, bem como do terceiro e quarto ventrículos com aqueduto
pérvio, típico da hidrocefalia comunicante. B. RMs axiais ponderadas em T2 demonstrando dilatação
dos ventrículos laterais. Este paciente foi submetido com sucesso a uma derivação ventriculoperitoneal.

FIGURA 25-4 Tomografias com emissão de pósitrons (PET) obtidas com o agente para a
visualização de amiloide (composto B de Pittsburgh) ([C11]PIB) em controle normal (à esquerda);
três pacientes diferentes com comprometimento cognitivo leve (CCL; no centro); e paciente com
doença de Alzheimer (DA) leve (à direita). Alguns pacientes com CCL têm níveis de amiloide
semelhantes aos dos casos-controle, outros possuem níveis iguais aos da DA, e ainda outros têm níveis
intermediários. (Imagens cortesia de William Klunk e Chester Mathis, University of Pittsburgh.)
A punção lombar não precisa ser realizada rotineiramente na avaliação
da demência, mas será indicada quando infecção ou inflamação do SNC
forem possibilidades diagnósticas possíveis. Os níveis no líquido
cerebrospinal (LCS) de Aβ42 e proteínas tau apresentam padrões que diferem
nas várias demências, e a presença de níveis baixo de Aβ42 e tau no LCS
levemente elevado é altamente sugestiva de DA. O uso rotineiro de punção
lombar no diagnóstico de demência é debatido, mas a sensibilidade e a
especificidade das medidas diagnósticas de DA ainda não são altas o
suficiente para indicar uso rotineiro. Testes psicométricos formais ajudam a
documentar a gravidade do distúrbio cognitivo, sugerem causas psicogênicas
e fornecem um método mais formal para acompanhar a evolução da doença.
O eletrencefalograma (EEG) raramente é usado rotineiramente, mas pode
ajudar a sugerir DCJ (paroxismos repetitivos de ondas agudas difusas de alta
amplitude ou “complexos periódicos”) ou distúrbio epiléptico não convulsivo
subjacente (descargas epileptiformes). A biópsia cerebral (incluindo as
meninges) não é recomendada, exceto para o diagnóstico de vasculite,
neoplasias potencialmente tratáveis ou infecções incomuns quando o
diagnóstico permanece incerto. Os distúrbios sistêmicos com manifestações
do SNC, como sarcoidose, em geral podem ser confirmados por biópsia de
linfonodo ou órgão sólido que não o cérebro. A angiorressonância deve ser
considerada quando vasculite cerebral ou trombose venosa cerebral for uma
causa possível da demência.

CONSIDERAÇÕES GLOBAIS
A demência vascular (Cap. 425) é mais comum nos países asiáticos devido
à maior prevalência de aterosclerose intracraniana. As taxas de demência
vascular também estão aumentando nos países em desenvolvimento à medida
que os fatores de risco vascular, como hipertensão, hipercolesterolemia e
diabetes melito, ficam mais disseminados. As infecções do SNC, particularmente
pelo HIV (e infecções oportunistas associadas), sífilis e tuberculose também
contribuem bastante para a demência nos países em desenvolvimento. As
populações isoladas também contribuíram para nossa compreensão da demência
neurodegenerativa. O kuru, demência rapidamente progressiva associada ao
canibalismo vista em tribos da Nova Guiné, foi importante na descoberta das
doenças priônicas. O complexo esclerose lateral amiotrófica-parkinsonismo-
demência de Guam (ou doença de Lytico-Bodig) é uma poliproteinopatia,
geralmente com agregação de tau, TDP-43 e α-sinucleína. A causa de base
dessas doenças permanece incerta, mas sua incidência diminuiu muito nos
últimos 60 anos.

TRATAMENTO
Demência
Os principais objetivos do tratamento de demência são tratar quaisquer causas reversíveis e oferecer
conforto e apoio ao paciente e aos seus cuidadores. O tratamento das causas subjacentes inclui a reposição
de hormônio tireoidiano para o hipotireoidismo; terapia com vitamina para a deficiência de tiamina ou B12
ou para a homocisteína sérica elevada; antimicrobianos para infecções oportunistas ou antirretrovirais para
HIV; derivação ventricular para a HPN; ou cirurgia, radioterapia e/ou quimioterapia apropriadas para as
neoplasias do SNC. A remoção de fármacos comprometedores da cognição é frequentemente útil. Se as
queixas cognitivas do paciente se originarem de um transtorno psiquiátrico, deve-se buscar o tratamento
vigoroso dessa condição para eliminar a queixa cognitiva ou confirmar sua persistência apesar de resolução
adequada dos sintomas de humor ou ansiedade. Os pacientes com doenças degenerativas também podem se
mostrar deprimidos ou ansiosos e esses aspectos de sua condição podem responder ao tratamento. Os
antidepressivos, como os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRSs) ou os inibidores da
recaptação de serotonina-norepinefrina (IRSNs) (Cap. 443), que têm propriedades ansiolíticas e poucos
efeitos colaterais cognitivos, fornecem a base do tratamento, quando este for necessário. Usam-se
anticonvulsivantes para controlar as crises convulsivas. Levetiracetam pode ser particularmente útil, mas
ainda não houve ensaios randomizados para o tratamento de convulsões associadas à DA.
Agitação, alucinações, delírios e confusão são difíceis de serem tratados. Esses problemas do
comportamento representam causas importantes de internação em clínicas geriátricas e institucionalização.
Antes de tratar esses problemas com medicação, o médico deve procurar agressivamente fatores ambientais
ou metabólicos modificáveis. Fome, falta de exercício, dor de dente, constipação, infecção do trato urinário
ou respiratório, desequilíbrio eletrolítico e toxicidade medicamentosa representam causas facilmente
corrigíveis que podem ser remediadas sem fármacos psicoativos. Fármacos como os fenotiazínicos e
benzodiazepínicos podem melhorar os sintomas comportamentais, mas têm efeitos colaterais indesejáveis,
como sedação, rigidez, discinesia e, ocasionalmente, desinibição paradoxal (benzodiazepínicos). A despeito
de seu perfil de efeitos colaterais desfavoráveis, os antipsicóticos de segunda geração, como a quetiapina
(dose inicial: 12,5-25 mg, 1×/dia), podem ser usados em pacientes com agitação, agressão e psicose,
embora o perfil de risco para esses compostos seja significativo. Quando os pacientes não respondem,
geralmente é um equívoco prosseguir para doses mais altas ou introduzir fármacos anticolinérgicos ou
sedativos (como barbitúricos ou benzodiazepínicos). É importante reconhecer e tratar a depressão; o
tratamento pode começar com uma dose baixa de ISRS (p. ex., escitalopram, dose inicial 5 mg/dia, dose-
alvo 5-10 mg/dia) enquanto se monitoram a eficácia e a toxicidade. Às vezes, a apatia, as alucinações
visuais e outros sintomas psiquiátricos respondem aos inibidores da colinesterase, especialmente na DCL,
eliminando a necessidade de outras terapias mais tóxicas.
Os inibidores da colinesterase têm sido usados para tratar DA (donepezila, rivastigmina, galantamina)
e DDP (rivastigmina). Trabalhos recentes concentraram-se no desenvolvimento de anticorpos contra Aβ42
como tratamento para DA. Embora os ensaios clínicos controlados randomizados iniciais tenham falhado,
houve alguma evidência de eficácia nos grupos de pacientes com doença mais leve. Assim, pesquisadores
começaram a se concentrar nos pacientes com doença muito leve e indivíduos assintomáticos em risco para
DA, como aqueles que são portadores de mutações genéticas de herança autossômica dominante ou idosos
saudáveis com evidência no LCS ou de biomarcador de imagem amiloide que sustentam DA pré-
sintomática. A memantina é comprovadamente útil quando se tratam alguns pacientes com DA moderada a
grave; seu maior benefício está relacionado com a redução da carga para o cuidador, mais provavelmente
reduzindo a resistência ao suporte para vestir-se e fazer a higiene. Em DA moderada a grave, a combinação
de memantina e um inibidor de colinesterase retardaram a institucionalização em vários estudos, embora
outros estudos não tenham sugerido a eficácia da adição de memantina ao esquema.
Uma estratégia proativa demonstrou reduzir a ocorrência de delirium em pacientes hospitalizados. Essa
estratégia inclui orientação frequente, atividades cognitivas, medidas para melhora do sono, dispositivos
auxiliares para visão e audição e correção de desidratação.
A terapia não farmacológica do comportamento ocupa um lugar importante no tratamento da
demência. Os objetivos primários são tornar a vida do paciente confortável, descomplicada e segura. Muitas
vezes, a preparação de listas, agendas, calendários e lembretes diários é útil nos estágios iniciais. Também é
oportuno enfatizar as rotinas familiares, caminhadas e exercícios físicos simples. Para muitos pacientes com
demência, a memória para eventos é pior do que para atividades rotineiras, e eles ainda podem ser capazes
de participar de atividades como deambular, jogar boliche, dançar, cantar, jogar golfe e bingo. Os pacientes
com demência geralmente se recusam a perder o controle sobre tarefas familiares, como conduzir veículos,
cozinhar e lidar com as finanças. As tentativas de ajudar ou assumir o controle podem ser recebidas com
queixas, depressão ou raiva. Respostas hostis por parte do cuidador são contraprodutivas e, às vezes, até
mesmo prejudiciais. Tranquilização, distração e declarações calmas positivas são mais produtivas nesse
contexto. Posteriormente, tarefas como as finanças e a condução de veículos devem ser transferidas para
outras pessoas, e o paciente irá se conformar e se adaptar. A segurança é uma questão importante que inclui
não apenas a condução de veículos como também o controle de ambientes, como cozinha, banheiro e quarto
de dormir, assim como escadarias. Essas áreas precisam ser monitoradas, supervisionadas e preparadas para
serem tão seguras quanto possível. A mudança para uma instituição de aposentados, centro residencial
assistido ou casa de apoio inicialmente pode agravar a confusão e a agitação. A tranquilização repetida, a
reorientação e a apresentação cuidadosa dos novos funcionários ajudam a suavizar o processo. A oferta de
atividades sabidamente agradáveis ao paciente pode propiciar considerável benefício.
O médico deve prestar atenção especial à frustração e à depressão entre os familiares e cuidadores.
Culpa e exaustão são comuns nos cuidadores. Os familiares com frequência se sentem sobrecarregados e
impotentes, podendo descarregar suas frustrações no paciente, uns nos outros e nos profissionais de saúde.
Os cuidadores devem ser incentivados a procurar as instituições que oferecem assistência diurna e serviços
de descanso ao cuidador. A instrução e o aconselhamento sobre a demência são importantes. Os grupos de
apoio locais e nacionais, como a Alzheimer’s Association (www.alz.org) nos Estados Unidos, oferecem
ajuda valiosa.

LEITURAS ADICIONAIS
Barton C et al: Non-pharmacological management of behavioral symptoms in
frontotemporal and other dementias. Curr Neurol Neurosci Rep 16:14,
2016.
Griem J et al: Psychologic/functional forms of memory disorder. Handb Clin
Neurol 139:407, 2017.

1 O estriado compreende caudado/putame/nucleus accumbens.


26
Afasia, perda de memória, negligência
hemiespacial, síndromes frontais e outros distúrbios
cerebrais
M.-Marsel Mesulam

O córtex cerebral humano contém cerca de 20 bilhões de neurônios espalhados


por uma área de 2,5 m2. As áreas sensitiva e motora primárias representam 10%
do córtex cerebral. O restante é subdividido em áreas modalidade-seletivas,
heteromodais, paralímbicas e límbicas, conhecidas coletivamente como córtex
associativo (Fig. 26-1). O córtex associativo faz a mediação do processo de
integração que atende cognição, emoção e comportamento. Um exame
sistemático dessas funções mentais é essencial para a avaliação clínica eficaz do
córtex associativo e suas afecções. Segundo o conceito atual, não existem
centros para “ouvir palavras”, “perceber o espaço” ou “armazenar memórias”.
As funções cognitivas e comportamentais (domínios) são coordenadas por redes
neurais em larga escala entrecruzadas, que possuem componentes corticais e
subcorticais interconectados. Cinco redes em larga escala definidas
anatomicamente são mais relevantes para a prática clínica: (1) uma rede
perissilviana dominante esquerda para a linguagem; (2) uma rede parietofrontal
dominante direita para a orientação espacial; (3) uma rede occipitotemporal para
reconhecimento de rostos e objetos; (4) uma rede límbica para a memória
episódica explícita; e (5) uma rede pré-frontal para o controle executivo de
cognição e comportamento. Investigações baseadas em exames de imagem
funcionais também identificaram uma rede em modo padrão (default mode
network), a qual fica ativada quando a pessoa não está engajada em uma tarefa
específica que exija atenção a eventos externos. As consequências clínicas do
dano a essa rede ainda não estão completamente definidas. Ver também Vídeo 2
6-1.
FIGURA 26-1 Vistas lateral (acima) e medial (abaixo) dos hemisférios cerebrais. Os números referem-
se às designações citoarquitetônicas de Brodmann. A área 17 corresponde ao córtex visual primário; a 41 e
a 42, ao córtex auditivo primário; 1-3, ao córtex somatossensitivo primário, e a 4, ao córtex motor primário.
O restante do córtex cerebral abriga as áreas associativas. GA, giro angular; B, área de Broca; CC, corpo
caloso; GC, giro do cíngulo; CPFDL, córtex pré-frontal dorsolateral; COcF, campos oculares frontais
(córtex pré-motor); GF, giro fusiforme; LPI, lobo parietal inferior; GTI, giro temporal inferior; GL, giro
lingual; CPFM, córtex pré-frontal medial; GTM, giro temporal médio; COF, córtex orbitofrontal; GPH, giro
para-hipocampal; CPP, córtex parietal posterior; CPE, córtex periestriatal; CE, córtex estriado; GSM, giro
supramarginal; LPS, lobo parietal superior; GTS, giro temporal superior; STS, sulco temporal superior; TP,
córtex temporopolar; W, área de Wernicke.
A REDE PERISSILVIANA ESQUERDA PARA LINGUAGEM E
AFASIAS
A produção e compreensão de palavras e frases depende da integridade de uma
rede distribuída que se localiza ao longo da região perissilviana do hemisfério
linguagem-dominante (geralmente, o esquerdo). Um centro específico,
localizado no giro frontal inferior, é conhecido como área de Broca. O dano a
essa região prejudica a fluência da produção verbal e a estrutura gramatical de
frases. A localização de um segundo centro, fundamental para a compreensão da
linguagem, não está tão bem definida. Casos de pacientes com lesões
cerebrovasculares focais identificaram a área de Wernicke, localizada na junção
parietotemporal, como um centro fundamental para a compreensão de palavras e
frases. Acidentes vasculares cerebrais (AVCs) oclusivos ou embólicos que
envolvem essa área interferem na capacidade de compreender a linguagem
falada ou escrita, bem como a capacidade de expressar pensamentos por meio de
palavras e afirmações significativas. Porém, investigações de pacientes com a
síndrome neurodegenerativa de afasia progressiva primária (APP) mostraram
que a compreensão de frases é uma faculdade amplamente distribuída em
conjunto pelas áreas de Broca e Wernicke, e que as áreas fundamentais para a
compreensão de palavras estão mais intimamente relacionadas com o lobo
temporal anterior em vez da área de Broca. Todos os componentes da rede de
linguagem estão interconectados entre si e com partes circundantes dos lobos
frontal, parietal e temporal. O dano a essa rede faz surgir déficits de linguagem
conhecidos como afasias. Deve-se diagnosticar afasia apenas quando há déficits
dos aspectos formais da linguagem, como a busca de palavras, a escolha de
palavras, a compreensão, a soletração e a gramática. A disartria, a apraxia da fala
e o mutismo não implicam, em si, o diagnóstico de afasia. Em cerca de 90% dos
destros e 60% dos canhotos, a afasia ocorre somente após lesões no hemisfério
esquerdo.

EXAME CLÍNICO
O exame clínico da linguagem deve incluir a avaliação da nomeação, da fala
espontânea, da compreensão, da repetição, da leitura e da escrita. O déficit da
nomeação (anomia) é o achado mais comum em pacientes afásicos. Quando
solicitado a nomear um objeto comum, o paciente pode não pronunciar a palavra
apropriada, pode fornecer uma descrição em circunlóquio do objeto (“a coisa
para escrever”) ou pronunciar a palavra errada (parafasia). Se o paciente
enunciar uma palavra incorreta, mas relacionada (“caneta” em vez de “lápis”), o
erro de nomeação é chamado parafasia semântica; se a palavra aproximar-se da
palavra correta, mas for foneticamente imprecisa (“láfis” em vez de “lápis”), o
erro é conhecido como parafasia fonêmica. Na maioria das anomias, o paciente
não recupera o nome apropriado de um objeto, mas consegue apontar o objeto
correto quando o examinador enuncia o nome. Isso é chamado de déficit
unidirecional (ou baseado na recuperação) da nomeação. Há um déficit
bidirecional (baseado na compreensão ou semântica) da nomeação se o paciente
não conseguir fornecer nem reconhecer o nome correto. A fala espontânea é
descrita como “fluente” se mantiver um volume de emissão, uma extensão das
frases e melodia adequados, e “não fluente” se for esparsa, hesitante e a duração
média dos enunciados for inferior a quatro palavras. O examinador também deve
observar a integridade da gramática manifestada pela ordem das palavras
(sintaxe), tempo verbal, sufixos, prefixos, plurais e possessivos. A compreensão
pode ser testada pela avaliação da capacidade do paciente de acompanhar a
conversa, fazendo-se perguntas do tipo sim-não (“Um cachorro pode voar?”,
“Pode nevar no verão?”), pedindo para o paciente apontar os objetos apropriados
(“Onde está a fonte de luz nessa sala?”) ou solicitando definições verbais de
palavras isoladas. Avalia-se a repetição pedindo ao paciente para repetir palavras
isoladas, frases curtas ou séries de palavras como “nem aqui, nem ali, nem lá”. O
teste de repetição com trava-línguas como “hipopótamo” ou “paralelepípedo”
fornece uma avaliação melhor de disartria e palilalia do que de afasia. É
importante garantir que o número de palavras não exceda a capacidade de
atenção do paciente. Do contrário, a falha da repetição reflete a capacidade de
atenção reduzida (memória de trabalho auditiva), em vez de indicar déficit
afásico causado por disfunção de uma hipotética alça fonológica na rede de
linguagem. A leitura deve ser avaliada à procura de déficits na leitura em voz
alta, assim como na compreensão. Alexia descreve uma incapacidade de ler em
voz alta ou compreender palavras escritas e frases simples; usa-se o termo
agrafia (ou disgrafia) para descrever um déficit adquirido na soletração.
As afasias podem surgir de forma aguda em AVCs ou gradualmente nas
doenças neurodegenerativas. Nos AVCs, o dano compreende o córtex cerebral e
as vias da substância branca profunda interconectando áreas corticais não
afetadas sob outros aspectos. As síndromes listadas na Tabela 26-1 são mais
aplicáveis a este grupo, em que as substâncias branca e cinzenta no local da
lesão são destruídas de forma abrupta e conjunta. As doenças
neurodegenerativas progressivas podem ter especificidade celular, laminar e
regional para o córtex cerebral, gerando um conjunto diferente de afasias que
serão descritas separadamente.

TABELA 26-1 ■ Características clínicas de afasias e condições relacionadas comumente vistas em acidentes
vasculares cerebrais
Compreensão Repetição da Denominação Fluência
linguagem falada
De Wernicke Prejudicada Prejudicada Prejudicada Preservada ou aumentada
De Broca Preservada (exceto a Prejudicada Prejudicada Reduzida
gramática)
Global Prejudicada Prejudicada Prejudicada Reduzida
De condução Preservada Prejudicada Prejudicada Preservada
Transcortical não Preservada Preservada Prejudicada Prejudicada
fluente (anterior)
Transcortical fluente Prejudicada Preservada Prejudicada Preservada
(posterior)
De isolamento Prejudicada Ecolalia Prejudicada Ausência de fala com
significado
Anomia Preservada Preservada Prejudicada Preservada, exceto por pausas
para buscar palavras
Surdez pura para Prejudicada apenas para a Prejudicada Preservada Preservada
palavras linguagem falada
Alexia pura Prejudicada apenas para a Preservada Preservada Preservada
leitura

Afasia de Wernicke A compreensão é reduzida para palavras e frases faladas ou


escritas. A emissão de linguagem é fluente, porém altamente parafásica e em
circunlóquios. Erros parafásicos podem levar a correntes de neologismos, que
levam à “afasia de jargão”. O discurso contém poucos substantivos. Portanto, a
fala é volumosa, porém pouco informativa. Por exemplo, um paciente tenta
descrever como sua esposa jogou fora algo importante, talvez sua dentadura:
“Não precisamos mais disso, ela falou. E com isso que quando escada abaixo foi
minha dente-... a... den... dentura minha dentista. Por acaso, estava naquele
saco... entendeu? …Cadê meus dois … dois pedacinhos de dentista que eu uso
… que eu … perdi tudo. Se ela jogar tudo fora... visitar alguns amigos dela e ela
não pode jogar fora”.
Gestos e pantomima não melhoram a comunicação. O paciente não parece
perceber que sua linguagem é incompreensível, e pode transparecer raiva e
impaciência quando o examinador não decifra o significado de uma afirmação
intensamente parafásica. Em alguns pacientes, esse tipo de afasia acompanha-se
de agitação intensa e paranoia. A capacidade de obedecer a comandos dirigidos à
musculatura axial pode estar preservada. A dissociação entre a incapacidade de
compreender perguntas simples (“Qual é o seu nome?”) em um paciente que
rapidamente fecha os olhos, senta-se ou rola no leito quando solicitado é típica
da afasia de Wernicke e ajuda a diferenciá-la de surdez, doença psiquiátrica ou
simulação. Os pacientes com afasia de Wernicke não conseguem expressar seus
pensamentos em palavras de significado apropriado, e não decodificam o
significado das palavras em qualquer modalidade de comunicação. Portanto,
essa afasia tem componentes expressivos e receptivos. A repetição, a nomeação,
a leitura e a escrita também são afetadas.
O local da lesão mais comumente associado à afasia de Wernicke causada
por AVC é a porção posterior da rede de linguagem. Um êmbolo na divisão
inferior da artéria cerebral média (ACM), em especial no ramo temporal
posterior ou angular, é a etiologia mais comum (Cap. 419). Hemorragia
intracerebral, traumatismo craniano ou neoplasia são outras causas de afasia de
Wernicke. Hemianopsia direita ou quadrantanopsia superior coexistente é
comum, e pode-se observar apagamento discreto do sulco nasolabial direito,
mas, de resto, o exame físico frequentemente não mostra outras anormalidades.
Uma fala parafásica, com neologismos, em um paciente agitado com exame
neurológico de outro modo sem alteração, pode levar à suspeita de um transtorno
psiquiátrico primário, como esquizofrenia ou mania, mas os outros componentes
típicos de afasia adquirida e a ausência de história de doença psiquiátrica
anterior geralmente resolvem a questão. O prognóstico em termos de
recuperação da função da linguagem é reservado.

Afasia de Broca A fala não é fluente, é trabalhosa, interrompida por muitas


pausas à procura de palavras e geralmente disártrica. É pobre em palavras
funcionais, mas rica em substantivos apropriados ao significado. Uma ordem
anormal das palavras e o emprego impróprio dos morfemas desinenciais
(terminações das palavras usadas para indicar o tempo dos verbos, pronomes
possessivos ou plurais) resultam em agramatismo típico. A fala é telegráfica e
lacônica, porém bastante informativa. Na passagem adiante, um paciente com
afasia de Broca descreve sua história clínica pregressa: “Eu sei … o dotor, dotor
me mandou … Bosson. Ir a hospital. Dotor … ficou do lado. Dois, tês dias, dotor
me manda casa.”
A emissão pode limitar-se a um grunhido ou a uma só palavra (“sim” ou
“não”), que é pronunciada com entonações diferentes, na tentativa de expressar
aprovação ou desaprovação. Além da fluência, a nomeação e a repetição também
estão comprometidas. A compreensão da linguagem falada está intacta exceto
pelas frases com sintaxe difícil com uma estrutura de voz passiva ou partes da
oração embutidas, indicando que a afasia de Broca é não apenas um distúrbio
“expressivo” ou “motor”, como também pode envolver um déficit de
compreensão na decodificação da sintaxe. Os pacientes com afasia de Broca
podem ser chorosos, ficam frustrados com facilidade e podem estar
profundamente deprimidos. A percepção do próprio estado está preservada, ao
contrário da afasia de Wernicke. Até mesmo quando a fala espontânea está
intensamente disártrica, o paciente pode ser capaz de exibir uma articulação
relativamente normal das palavras ao cantar. Essa dissociação tem sido usada
para desenvolver métodos terapêuticos específicos (terapia da entonação
melódica) para a afasia de Broca. Déficits neurológicos adicionais incluem
fraqueza facial direita, hemiparesia ou hemiplegia e apraxia bucofacial,
caracterizada por incapacidade de executar comandos motores envolvendo as
musculaturas orofaríngea e facial (p. ex., os pacientes são incapazes de mostrar
como soprar para apagar um fósforo ou beber algo com um canudo). A causa
mais frequente é infarto na área de Broca (circunvolução frontal inferior; “B” na
Fig. 26-1) e no córtex insular e perissilviano anterior, devido à oclusão da
divisão superior da ACM (Cap. 419). Lesões expansivas, como um tumor,
hemorragia intracerebral e abscesso, também podem estar implicadas. Quando a
causa da afasia de Broca é um AVC, a recuperação da função da linguagem
costuma atingir o máximo em 2 a 6 meses, depois dos quais o progresso
adicional é limitado. A fonoterapia tem mais sucesso que na afasia de Wernicke.

Afasia de condução O discurso é fluente, mas contém muitas parafasias


fonêmicas, a compreensão da linguagem falada é intacta, e a repetição está
intensamente comprometida. A nomeação de objetos gera parafasias fonêmicas e
há dificuldade para soletrar. A leitura em voz alta é deficiente, mas a
compreensão da leitura está preservada. A lesão responsável, geralmente um
AVC na região temporoparietal ou perissilviana dorsal, interfere com a função da
alça fonológica que interconecta a área de Broca com a área de Wernicke.
Algumas vezes, uma afasia transitória de Wernicke pode evoluir rapidamente
para uma afasia de condução. O discurso parafásico na afasia de condução
interfere na capacidade de expressar significado, mas esse déficit é bem menos
intenso que o apresentado por pacientes com afasia de Wernicke. Os sinais
neurológicos associados na afasia de condução variam de acordo com o sítio da
lesão primária.
Afasias transcorticais: fluente e não fluente As manifestações clínicas da
afasia transcortical fluente (posterior) são semelhantes às da afasia de Wernicke,
porém a repetição está intacta. A lesão desconecta o centro intacto da rede de
linguagem de outras áreas de associação temporoparietais. Os achados
neurológicos associados podem incluir hemianopsia. As lesões vasculares
cerebrais (p. ex., infartos na zona de fronteira posterior) e neoplasias envolvendo
o córtex temporoparietal posterior à área de Wernicke são causas comuns. As
manifestações da afasia transcortical não fluente (anterior) são semelhantes às
da afasia de Broca; porém, a repetição está preservada e o agramatismo é menos
acentuado. O exame neurológico pode ser de resto intacto, mas também pode
haver hemiparesia direita. A lesão desconecta a rede de linguagem intacta das
áreas pré-frontais do cérebro e geralmente envolve a zona de fronteira anterior
entre os territórios das artérias cerebrais, anterior e média, ou o córtex motor
suplementar no território da artéria cerebral anterior.

Afasias global e de isolamento A afasia global representa a disfunção


combinada das áreas de Broca e Wernicke, e geralmente resulta de AVCs
envolvendo toda a distribuição da ACM no hemisfério esquerdo. O discurso não
é fluente e a compreensão da linguagem falada está gravemente afetada. Os
sinais relacionados abrangem hemiplegia direita, perda hemissensitiva e
hemianopsia homônima. A afasia de isolamento representa uma combinação das
duas afasias transcorticais. A compreensão é gravemente afetada, e não há
emissão de fala intencional. O paciente pode repetir fragmentos de conversas
ouvidas (ecolalia), indicando que os mecanismos neurais da repetição estão pelo
menos em parte preservados. Esse distúrbio representa a função patológica da
rede de linguagem quando ela é isolada de outras regiões do encéfalo. As áreas
de Broca e Wernicke tendem a ser poupadas, mas há lesão dos córtices frontal,
parietal e temporal circundante. As lesões são descontínuas e podem estar
associadas a anoxia, intoxicação por monóxido de carbono ou infartos
complexos em zonas de fronteira.

Afasia anômica Essa forma de afasia pode ser considerada a síndrome de


“disfunção mínima” da rede de linguagem. A articulação, a compreensão e a
repetição estão intactas, mas a nomeação por confrontação, a busca de palavras e
a soletração estão afetadas. É comum haver pausas para encontrar palavras, de
forma que o discurso é fluente, mas parafásico, havendo circunlocução e pouca
informação. A lesão pode localizar-se em qualquer ponto da rede de linguagem
no hemisfério esquerdo, incluindo os giros temporais médio e inferior. A afasia
anômica é a anormalidade da linguagem mais comum no traumatismo craniano,
na encefalopatia metabólica e na doença de Alzheimer.

Surdez pura para palavras As causas mais comuns são AVCs da ACM
bilateral ou esquerda que afetam o giro temporal superior. O resultado final da
lesão subjacente é a interrupção do fluxo de informações oriundas do córtex de
associação auditivo para a rede de linguagem. Os pacientes não têm dificuldade
de compreender a linguagem escrita e se expressam bem pela linguagem falada
ou escrita. Também não apresentam dificuldade para interpretar e reagir aos sons
do ambiente se o córtex auditivo primário e as áreas de associação auditivas do
hemisfério direito estiverem poupadas. Entretanto, como as informações
auditivas não são transmitidas à rede de linguagem, elas não são decodificadas
em representações neurais de palavra, e o paciente reage à fala como se fosse
uma língua estranha, incompreensível. Os pacientes não conseguem repetir a
linguagem falada, mas não têm dificuldade para nomear objetos. Com o tempo,
os pacientes com surdez pura para palavras aprendem por si próprios a leitura
labial e parecem ter melhorado. Pode não haver achados neurológicos adicionais,
mas reações paranoides agitadas são frequentes nos estágios agudos. As lesões
vasculares cerebrais são a causa mais comum.

Alexia pura sem agrafia É o equivalente visual da surdez pura para palavras.
As lesões (em geral, uma combinação de lesão do córtex occipital esquerdo e de
um segmento posterior do corpo caloso – o esplênio) interrompem o fluxo de
informações visuais para a rede de linguagem. Geralmente há hemianopsia
direita, mas a rede de linguagem central permanece inalterada. O paciente pode
compreender e produzir linguagem falada, nomear objetos no hemicampo visual
esquerdo, repetir e escrever. Contudo, ele parece analfabeto quando solicitado a
ler até mesmo a frase mais simples, porque as informações visuais provenientes
das palavras escritas (apresentadas no hemicampo visual esquerdo intacto) não
chegam à rede de linguagem. Os objetos no hemicampo esquerdo são nomeados
com precisão, porque eles ativam associações não visuais no hemisfério direito,
as quais, por sua vez, têm acesso à rede de linguagem pelas vias transcalosas
anteriores ao esplênio. Os pacientes com essa síndrome também podem perder a
capacidade de nomear cores, porém são capazes de combiná-las. Isso se chama
anomia para cores. A etiologia mais comum da alexia pura é uma lesão vascular
no território da artéria cerebral posterior ou uma neoplasia infiltrativa no córtex
occipital esquerdo que envolva as radiações ópticas e as fibras que cruzam o
esplênio. Como a artéria cerebral posterior também supre os componentes
temporais mediais do sistema límbico, um paciente com alexia pura também
pode manifestar amnésia, mas ela costuma ser transitória porque a lesão límbica
é unilateral.

Apraxia e afemia Apraxia descreve um déficit motor complexo, não atribuível à


disfunção piramidal, extrapiramidal, cerebelar ou sensitiva e que não se origina
da incapacidade de o paciente compreender a natureza da tarefa. A apraxia da
fala é usada para designar anormalidades da articulação na duração, fluência e
entonação das sílabas que formam as palavras. Ela pode surgir com AVCs na
parte posterior da área de Broca ou no curso de degeneração lobar
frontotemporal (DLFT) com taupatia. Afemia é uma forma grave de apraxia
aguda da fala que se apresenta com fluência grandemente prejudicada
(geralmente com mutismo). A recuperação é a regra e envolve um estágio
intermediário de sussurros roucos. A escrita, a leitura e a compreensão estão
intactas, portanto a afemia não é uma síndrome afásica verdadeira. Pode haver
AVCs parciais da área de Broca ou subcorticais que interrompem suas conexões
com outras partes do cérebro. Às vezes, a lesão localiza-se nas regiões mediais
dos lobos frontais e pode afetar o córtex motor suplementar do hemisfério
esquerdo. A apraxia ideomotora é diagnosticada quando os comandos para
executar determinada tarefa motora (“tossir”, “soprar para apagar um fósforo”)
ou simular o uso de um instrumento comum (um pente, martelo, canudo, escova
de dentes) na ausência do objeto real não podem ser cumpridos. A capacidade do
paciente de compreender o comando é averiguada pela demonstração de
múltiplos movimentos e pelo estabelecimento de que o movimento correto é
reconhecido. Alguns pacientes com esse tipo de apraxia conseguem imitar o
movimento apropriado (quando demonstrado pelo examinador) e não mostram
déficit quando manipulam o objeto real, indicando que os mecanismos
sensitivomotores essenciais ao movimento estão intactos. Algumas formas de
apraxia ideomotora advêm de desconexão entre a rede de linguagem e os
sistemas motores piramidais, de maneira que os comandos para executar
movimentos complexos são compreendidos, mas não são transmitidos às áreas
motoras apropriadas. A apraxia bucofacial consiste em déficits apráxicos nos
movimentos da face e da boca. A apraxia dos membros ideomotora compreende
déficits apráxicos nos movimentos dos braços e das pernas. A apraxia
ideomotora é quase sempre causada por lesões no hemisfério esquerdo e está
comumente associada a síndromes afásicas, em especial à afasia de Broca e à
afasia de condução. Como o manejo de objetos reais não está comprometido, a
apraxia ideomotora em si não causa grande limitação das atividades cotidianas.
Os pacientes com lesões do corpo caloso anterior podem exibir um tipo especial
de apraxia ideomotora confinada ao lado esquerdo do corpo, sinal conhecido
como dispraxia simpática. Uma forma grave de dispraxia simpática conhecida
como síndrome da mão alienígena caracteriza-se por outros aspectos da
desinibição motora na mão esquerda. A apraxia ideatória refere-se a um déficit
na execução de uma sequência de movimentos dirigida para algum objetivo em
pacientes que não apresentam dificuldade para executar os componentes
individuais da sequência. Por exemplo, quando o paciente é solicitado a apanhar
uma caneta e escrever, a sequência de retirar a tampa da caneta, colocá-la na
outra extremidade, virar a ponta em direção à superfície do papel e escrever pode
estar alterada, e, em alguns casos, o paciente tenta escrever com a extremidade
errada da caneta ou até mesmo com a tampa. Esses problemas da sequência
motora geralmente são observados no contexto de estados confusionais e
demências, em vez de lesões focais associadas a distúrbios afásicos. A apraxia
cinética dos membros consiste em inabilidade no manejo de instrumentos ou
objetos, que não é atribuível à disfunção sensitiva, piramidal, extrapiramidal ou
cerebelar. Essa condição pode surgir no contexto de lesões focais do córtex pré-
motor ou de degeneração corticobasal, podendo interferir com o uso de
ferramentas e utensílios.

Síndrome de Gerstmann A combinação de acalculia (deficiência em cálculos


aritméticos simples), disgrafia (escrita deficiente), anomia digital (incapacidade
de nomear os dedos, como o indicador e o polegar) e confusão direita-esquerda
(incapacidade de dizer se a mão, o pé ou o braço do paciente ou do examinador
pertencem ao lado direito ou esquerdo do corpo) é conhecida como síndrome de
Gerstmann. Ao definir esse diagnóstico, é importante estabelecer que os déficits
na nomeação dos dedos e dos lados direito e esquerdo não façam parte de
anomia mais generalizada e que o paciente não tenha afasia. Quando a síndrome
de Gerstmann está presente de maneira aguda e isolada, há comumente uma
lesão no lobo parietal inferior (em especial, o giro angular) do hemisfério
esquerdo.

Pragmática e prosódia A pragmática se refere a aspectos da linguagem que


comunicam atitude, afeto e aspectos figurativos em vez de literais (p. ex., “dedo
verde” não se refere à real coloração do dedo). Um componente da pragmática, a
prosódia, refere-se a variações da entonação e acentuação melódica que
influenciam atitudes e o aspecto inferencial de mensagens verbais. Por exemplo,
as duas frases “Ele é inteligente” e “Ele é inteligente?” contêm a mesma escolha
de palavras e sintaxe, mas transmitem mensagens imensamente diferentes em
virtude de diferenças na entonação com que as frases são emitidas. O dano a
regiões do hemisfério direito correspondente à área de Broca prejudica a
capacidade de introduzir prosódia de significado apropriado na linguagem
falada. O paciente produz linguagem gramaticalmente correta, com escolha
precisa de palavras, mas as frases são enunciadas em tom monótono, o que
interfere na capacidade de transmitir a ênfase e o efeito desejados. Os pacientes
com esse tipo de aprosódia dão a impressão errônea de que estão deprimidos ou
indiferentes. Outros aspectos da pragmática, especialmente a capacidade de
inferir o aspecto figurativo de uma mensagem, são prejudicados em lesões do
hemisfério direito ou lobos frontais.

Afasia subcortical Uma lesão de componentes subcorticais da rede de


linguagem (p. ex., estriado e tálamo no hemisfério esquerdo) também pode
acarretar afasia. As síndromes resultantes contêm combinações de déficits dos
diversos aspectos da linguagem, mas raramente se enquadram nos padrões
específicos descritos na Tabela 26-1. Em um paciente com AVC, uma afasia
anômica acompanhada de disartria ou afasia fluente com hemiparesia deve
levantar suspeita de localização subcortical da lesão.

APRESENTAÇÃO CLÍNICA E DIAGNÓSTICO DE AFASIA


PROGRESSIVA PRIMÁRIA (APP) As afasias causadas por AVCs começam
subitamente e exibem déficits máximos no início. Essas são as afasias
“clássicas” descritas anteriormente. As afasias causadas por doenças
neurodegenerativas têm início insidioso e progressão inexorável. A
neuropatologia pode ser seletiva não apenas para a substância cinzenta, mas
também para camadas e tipos celulares específicos. Assim, os padrões clínicos e
anatômicos são diferentes daqueles descritos na Tabela 26-1.
Várias síndromes neurodegenerativas, como as típicas demências do tipo
Alzheimer (amnésica; Cap. 423) e frontotemporal (comportamental; Cap. 424),
podem também incluir déficits de linguagem à medida que a doença progride.
Nesses casos, a afasia é um componente secundário da síndrome global. Um
diagnóstico de APP só se justifica se o distúrbio de linguagem (i.e., afasia) surgir
de maneira relativamente isolada, tornar-se a preocupação principal do paciente
e permanecer sendo o déficit mais saliente por 1 a 2 anos. A APP pode ser
causada por patologia de DLFT ou de doença de Alzheimer (DA). Raramente,
uma síndrome idêntica pode ser causada pela doença de Creutzfeldt-Jacob
(DCJ), mas com uma progressão mais rápida (Cap. 430).

A LINGUAGEM NA APP As deficiências da linguagem na APP formam


padrões ligeiramente diferentes daqueles vistos nas afasias causadas por AVC.
Por exemplo, a síndrome completa da afasia de Wernicke é quase nunca vista na
APP, confirmando a visão de que a compreensão de frases e a compreensão de
palavras são controladas por regiões diferentes da rede de linguagem. Podem ser
identificados três tipos principais de APP.

APP agramática A variante agramática se caracteriza por fluência


consistentemente baixa e prejuízo gramatical, mas com a compreensão de
palavras intacta. Ela lembra muito a afasia de Broca ou a afasia transcortical
anterior, mas costuma não apresentar a hemiparesia direita ou a disartria e pode
ter prejuízo mais profundo da gramática. Os principais locais de perda neuronal
(atrofia de substância branca) incluem o giro frontal inferior esquerdo, em que
está localizada a área de Broca. A neuropatologia é geralmente uma DLFT com
taupatia, mas também pode ser uma forma típica de patologia da DA.

APP semântica A variante semântica se caracteriza por fluência e sintaxe


preservadas, mas com compreensão prejudicada de palavras isoladas e prejuízo
profundo da nomeação bidirecional. Esse tipo de afasia não é visto com AVCs.
Ele difere da afasia de Wernicke ou da afasia transcortical posterior porque o
discurso costuma ser informativo e a repetição é intacta. A compreensão de
frases está relativamente preservada se o significado não for muito dependente
de palavras que não são compreendidas, permitindo que o paciente suponha a
essência da conversação por indicações contextuais. Esses pacientes podem
parecer não terem déficits no curso de uma conversa casual, mas ficam confusos
ao encontrarem uma palavra indecifrável, como “abóbora” ou “guarda-chuva”.
Os principais locais de atrofia se localizam no lobo temporal anterior esquerdo,
indicando que essa parte do cérebro desempenha um papel fundamental na
compreensão de palavras, especialmente aquelas que denotam objetos concretos.
Esta é uma parte do cérebro que não era incluída dentro da clássica rede de
linguagem, provavelmente por não ser um local comum de AVCs focais. A
neuropatologia é frequentemente uma DLFT com precipitados anormais da
proteína transativadora de ligação ao DNA de 43-kDa (TDP-43 de tipo C).

APP logopênica A variante logopênica se caracteriza por sintaxe e compreensão


preservadas, mas com frequentes e severas pausas para encontrar palavras,
anomia, circunlocuções e simplificação durante o discurso espontâneo. A
repetição costuma estar prejudicada. Os locais de maior atrofia se localizam na
junção temporoparietal e no lobo temporal posterior, com sobreposição parcial
da localização tradicional da área de Wernicke. Porém, o déficit de compreensão
da afasia de Wernicke está ausente, talvez porque a substância branca profunda
subjacente, frequentemente danificada por AVCs, permanece relativamente
intacta na APP. O prejuízo da repetição sugere que porções da área de Wernicke
sejam fundamentais para a funcionalidade da alça fonológica. Em contrapartida
com a afasia de Broca ou a APP agramática, a interrupção da fluência é variável
de forma que o discurso pode parecer inteiramente normal se o paciente falar
frases curtas. A APP logopênica lembra a afasia anômica da Tabela 26-1, mas
geralmente tem pausas mais longas e frequentes para encontrar palavras. Quando
a repetição é prejudicada, lembra a afasia de condução na Tabela 26-1. De todos
os subtipos de APP, esse é o mais comumente associado à patologia de DA, mas
a DLFT também pode ser a causa. Além desses três subtipos principais, há
também um tipo misto de APP em que a gramática, a fluência e a compreensão
de palavras estão todas prejudicadas. Este é mais parecido com a afasia global da
Tabela 26-1. Raramente, a APP pode apresentar-se com padrões de surdez pura
para palavras ou síndrome de Gerstmann.
A REDE PARIETOFRONTAL PARA ORIENTAÇÃO
ESPACIAL
A orientação espacial adaptativa é servida por uma rede em larga escala que
contém três componentes corticais principais. O córtex do cíngulo fornece
acesso a um mapeamento motivacional do espaço extrapessoal, o córtex parietal
posterior, a uma representação sensitivomotora de acontecimentos extrapessoais
relevantes, e os campos oculares frontais, a estratégias motoras para
comportamentos que demandam atenção (Fig. 26-2). Os componentes
subcorticais dessa rede abrangem o estriado e o tálamo. O dano a essa rede pode
comprometer a distribuição da atenção dentro do espaço extrapessoal, gerando a
negligência hemiespacial, simultanagnosia e dificuldades para encontrar objetos.
A integração entre coordenadas egocêntricas (autocentradas) com as alocêntricas
(centradas em objetos) também pode ser prejudicada, gerando dificuldades para
encontrar caminhos, evitar obstáculos e vestir-se.
FIGURA 26-2 Ressonância magnética funcional de linguagem e atenção espacial em pessoas
neurologicamente intactas. As áreas vermelha e preta mostram regiões de ativação significativa
relacionada a tarefas. (Acima) Os indivíduos foram solicitados a determinar se duas palavras são sinônimas.
Essa tarefa de linguagem levou à ativação simultânea dos dois epicentros da rede de linguagem, as áreas de
Broca (B) e Wernicke (W). As ativações se dão exclusivamente no hemisfério esquerdo. (Abaixo) Os
indivíduos foram solicitados a desviar a atenção espacial para um alvo periférico. Essa tarefa levou à
ativação simultânea dos três epicentros da rede de atenção, o córtex parietal posterior (P), os campos
oculares frontais (F) e o giro do cíngulo (CG). As ativações se dão predominantemente no hemisfério
direito. (Cortesia de Darren Gitelman, MD; com permissão.)

NEGLIGÊNCIA HEMIESPACIAL
A negligência hemiespacial contralateral à lesão resulta de dano aos
componentes corticais ou subcorticais dessa rede. A visão tradicional de que a
negligência hemiespacial sempre denota uma lesão de lobo parietal não é
acurada. Segundo um modelo de cognição espacial, o hemisfério direito dirige a
atenção para todo o espaço extrapessoal, enquanto o esquerdo dirige a atenção
principalmente para o hemiespaço direito contralateral. Em consequência, as
lesões no hemisfério esquerdo não originam negligência contralesional
significativa, uma vez que os mecanismos de atenção global do hemisfério
direito podem compensar a perda das funções de atenção do hemisfério esquerdo
dirigidas contralateralmente. Contudo, as lesões no hemisfério direito dão
origem à negligência hemiespacial esquerda contralesional grave, porque o
hemisfério esquerdo íntegro não contém mecanismos de atenção ipsilaterais.
Esse modelo é compatível com a experiência clínica, que mostra que a
negligência contralesional é mais comum, mais intensa e mais duradoura após
lesão no hemisfério direito que no esquerdo. A negligência severa do
hemiespaço direito é rara, mesmo em pacientes canhotos com lesões no
hemisfério esquerdo.

Exame clínico Os pacientes com negligência grave podem não conseguir vestir-
se, barbear-se ou cuidar do lado esquerdo do corpo, podem deixar de comer
alimentos dispostos no lado esquerdo da bandeja e não ler a metade esquerda das
frases. Quando solicitado a copiar um desenho de linhas simples, o paciente
deixa de copiar detalhes no lado esquerdo; e, quando ele é solicitado a escrever,
há uma tendência a deixar uma margem incomumente larga à esquerda. Dois
testes à beira do leito úteis na avaliação da negligência são a estimulação
bilateral simultânea e o cancelamento de alvos visuais. No primeiro, o
examinador apresenta estímulos unilaterais ou bilaterais simultâneos nas
modalidades visual, auditiva e tátil. Após lesão no hemisfério direito, pacientes
que não têm dificuldade em detectar estímulos unilaterais em qualquer lado
percebem o estímulo bilateral como se ele proviesse apenas da direita. Esse
fenômeno denomina-se extinção e é uma manifestação do componente
representacional sensitivo da negligência hemiespacial. No teste de detecção de
alvos, os alvos (p. ex., letras A) são intercalados com elementos distrativos (p.
ex., outras letras do alfabeto) em uma folha de papel de tamanho A4, e o
paciente é solicitado a circular todos os alvos. A incapacidade de detectar alvos à
esquerda é uma manifestação do déficit exploratório (motor) na negligência
hemiespacial (Fig. 26-3A). A hemianopia em si não é suficiente para causar a
falha na detecção do alvo, pois o paciente está livre para girar a cabeça e os
olhos para a esquerda. Portanto, a falha na detecção do alvo reflete uma
distorção da atenção espacial, não somente do estímulo sensitivo. Alguns
pacientes com negligência também negam a existência de hemiparesia e podem
até afirmar que o membro paralisado não é seu, um distúrbio chamado de
anosognosia.
FIGURA 26-3 A. Um homem de 47 anos de idade com uma grande lesão frontoparietal no hemisfério
direito foi solicitado a circular todas as letras A. Ele circulou somente os alvos à direita. Essa é uma
manifestação de negligência hemiespacial esquerda. B. Uma mulher de 70 anos com história de demência
degenerativa há 2 anos foi capaz de circular a maioria dos alvos pequenos, mas ignorou os maiores. Esta é
uma manifestação de simultanagnosia.

SÍNDROME DE BÁLINT, SIMULTANAGNOSIA, APRAXIA DO


VESTIR, APRAXIA DE CONSTRUÇÃO E DÉFICIT NO ENCONTRO DE
ROTAS
O envolvimento bilateral da rede de atenção espacial, especialmente de seus
componentes parietais, induz um estado de desorientação espacial grave
denominado síndrome de Bálint. A síndrome de Bálint envolve déficits na
varredura visuomotora ordenada do ambiente (apraxia oculomotora), captura
manual acurada de alvos visuais (ataxia óptica) e a capacidade de integrar a
informação visual no centro do olhar com informações mais periféricas
(simultanagnosia). Um paciente com simultanagnosia “vê as árvores, mas não a
floresta”. Por exemplo, um paciente colocado diante de um abajur de mesa e
solicitado a nomeá-lo pode olhar para sua base circular e afirmar que é um
cinzeiro. Alguns pacientes com simultanagnosia relatam que os objetos para os
quais estão olhando podem desaparecer subitamente, indicação provável de uma
incapacidade de computar o retorno oculomotor ao ponto original do olhar após
deslocamentos sacádicos breves. O movimento e estímulos distrativos
exacerbam consideravelmente as dificuldades de percepção visual. A
simultanagnosia pode ocorrer na ausência dos dois outros componentes da
síndrome de Bálint, principalmente em associação com a doença de Alzheimer.
Pode-se empregar uma modificação do teste de cancelamento de letras
descrita anteriormente para o diagnóstico à beira do leito de simultanagnosia.
Nessa modificação, alguns dos alvos (p. ex., as letras A) devem ser bem maiores
que outros (altura de 7,5-10 cm vs. 2,5 cm), e todos os alvos estão entremeados
com elementos distrativos. Os pacientes com simultanagnosia revelam tendência
contraintuitiva, porém típica, de deixar de ver os alvos maiores (Fig. 26-3B).
Isso ocorre porque as informações necessárias à identificação dos alvos maiores
não se restringem aos limites imediatos do olhar e exigem a integração de
informações visuais obtidas em múltiplos pontos de fixação. A maior dificuldade
na detecção dos alvos maiores também indica que a deficiência da acuidade não
é responsável pela disfunção visual e que o problema é antes central que
periférico. O teste mostrado na Figura 26-3B não é suficiente para o diagnóstico
de simultanagnosia, pois alguns pacientes com uma síndrome de rede frontal
podem omitir as letras grandes de aparência estranha, talvez porque eles não
tenham a flexibilidade mental necessária para perceber que os dois tipos de alvos
são simbolicamente idênticos apesar de serem superficialmente diferentes.
Lesões parietais bilaterais podem prejudicar a integração de coordenadas
espaciais egocêntricas e alocêntricas. Uma manifestação é a apraxia do vestir.
Um paciente com esse distúrbio é incapaz de alinhar o eixo corporal com o eixo
da roupa e demonstra dificuldade ao segurar um casaco de cabeça para baixo ou
estender o braço em uma dobra da roupa em vez da manga. Lesões que
envolvem o córtex parietal posterior também podem causar dificuldades
significativas para copiar simples desenhos com linhas. Isso é conhecido como
apraxia construtiva e é muito mais intensa se a lesão for do hemisfério direito.
Em alguns pacientes com lesões no hemisfério direito, as dificuldades para
desenhar limitam-se ao lado esquerdo da figura e representam uma manifestação
de negligência hemiespacial; em outros, há um déficit mais universal na
reprodução dos contornos e da perspectiva tridimensional. Dificuldades para
encontrar caminhos podem ser incluídas nesse grupo de distúrbios, refletindo
uma incapacidade de se orientar em relação a objetos e pontos de referência
externos.

Causas de desorientação espacial e síndrome de atrofia cortical posterior


Lesões cerebrovasculares e neoplasias no hemisfério direito são causas comuns
de negligência hemiespacial. Dependendo do local da lesão, um paciente com
negligência também pode ter hemiparesia, hemi-hipoestesia e hemianopsia à
esquerda, mas esses achados não são constantes. A maioria desses pacientes
apresenta melhora considerável da negligência hemiespacial, em geral nas
primeiras semanas. A síndrome de Bálint, a apraxia do vestir e déficit no
encontro de rotas resultam provavelmente de lesões parietais dorsais bilaterais;
situações comuns para o início agudo incluem infarto em zona de fronteira entre
os territórios das artérias cerebrais, média e posterior, hipoglicemia e trombose
do seio sagital.
Uma forma progressiva de desorientação espacial conhecida como
síndrome da atrofia cortical posterior (ACP) mais comumente representa uma
variante da DA com concentrações incomuns de degeneração neurofibrilar no
córtex parieto-occipital e no colículo superior (Fig. 26-4). A doença por corpos
de Lewy (DCL), a DCJ e a DLFT (tipo degeneração corticobasal) são outras
possíveis causas. O paciente apresenta uma negligência hemiespacial
progressiva, síndrome de Bálint e déficit no encontro de rotas, em geral
acompanhada por apraxia do vestir e construtiva.
FIGURA 26-4 Quatro síndromes de demência focal e seus correlatos neuropatológicos mais prováveis. DA,
doença de Alzheimer; DFTvc, demência frontotemporal variante comportamental; DLFT, degeneração
lobar frontotemporal (tipo tau ou TDP-43); DCL, doença por corpos de Lewy.
A REDE OCCIPITOTEMPORAL PARA RECONHECIMENTO
DE ROSTOS E OBJETOS
Um paciente com prosopagnosia não reconhece rostos familiares, incluindo às
vezes o reflexo da sua própria face no espelho. Esse déficit não é perceptivo,
pois os pacientes prosopagnósicos identificam facilmente se duas faces são
idênticas. Além disso, um paciente prosopagnósico que não reconhece uma face
familiar à inspeção visual pode utilizar indícios auditivos para chegar ao
reconhecimento correto, se lhe for dada a chance de escutar a voz da pessoa.
Portanto, o déficit na prosopagnosia é específico da modalidade e reflete a
existência de uma lesão que impede a ativação de modelos associativos
multimodais de outro modo intactos por estímulos visuais relevantes. Os
pacientes prosopagnósicos não têm dificuldade na identificação genérica de uma
face como tal, ou de um carro como carro, mas eles podem não reconhecer a
identidade de uma dada face ou a marca de um determinado automóvel. Isso
reflete um déficit do reconhecimento visual dos aspectos particulares que
caracterizam os elementos de uma classe de objetos. Quando os problemas de
reconhecimento tornam-se mais generalizados e estendem-se à identificação
genérica de objetos comuns, o distúrbio denomina-se agnosia visual de objetos.
Um paciente anômico não consegue nomear o objeto, mas descreve seu uso.
Diferentemente, um paciente com agnosia visual é incapaz de nomear e
descrever o uso de um objeto apresentado visualmente. Os distúrbios do
reconhecimento de faces e objetos também podem resultar da simultanagnosia
da síndrome de Bálint, caso em que são conhecidos como agnosias aperceptivas,
ao contrário das agnosias associativas que resultam de lesões do lobo temporal
inferior.

CAUSAS E RELAÇÃO COM DEMÊNCIA SEMÂNTICA


As lesões típicas da prosopagnosia e da agnosia visual de objetos com início
agudo consistem em infartos bilaterais no território das artérias cerebrais
posteriores que envolvem o giro fusiforme. Os déficits associados podem incluir
defeitos dos campos visuais (especialmente quadrantanopsias superiores) e uma
cegueira central para cores denominada acromatopsia. Raramente, a lesão
implicada é unilateral. Em tais casos, a prosopagnosia está associada a lesões no
hemisfério direito, enquanto a agnosia de objetos associa-se a lesões localizadas
no esquerdo. Doenças degenerativas dos córtices temporais anterior e inferior
podem causar prosopagnosia associativa progressiva e agnosia de objetos. A
combinação de agnosia associativa progressiva e uma afasia fluente com
prejuízo da compreensão de palavras é conhecida como demência semântica. Os
pacientes com demência semântica não reconhecem faces e objetos, bem como
não podem entender o significado de palavras que denotam objetos. Isso deve
ser diferenciado do tipo semântico de APP em que há grave prejuízo da
compreensão de palavras que denotam objetos e na nomeação de rostos e
objetos, mas com relativa preservação do reconhecimento de rostos e objetos. A
atrofia do lobo temporal anterior costuma ser bilateral na demência semântica,
enquanto tende a afetar principalmente o hemisfério esquerdo na APP semântica.
O início agudo da síndrome de demência semântica pode estar associado com
encefalite por herpes simples.
A REDE LÍMBICA PARA MEMÓRIA EXPLÍCITA E AMNÉSIA
As áreas límbicas e paralímbicas (como o hipocampo, a tonsila e o córtex
entorrinal), os núcleos anterior e medial do tálamo, as partes medial e basal do
estriado e o hipotálamo constituem uma rede distribuída conhecida como sistema
límbico. As relações dessa rede com o comportamento incluem a coordenação
das emoções, a motivação, o tônus autonômico e a função endócrina. Uma área
adicional de especialização da rede límbica, e a que é mais relevante para a
prática clínica, é a da memória declarativa (explícita) para episódios e
experiências recentes. Uma perturbação dessa função denomina-se estado
amnésico. Na ausência de déficits de motivação, atenção, linguagem ou função
visuoespacial, o diagnóstico clínico de estado amnésico global persistente
sempre está associado a lesão bilateral da rede límbica, em geral dentro do
complexo hipocampo-entorrinal ou do tálamo. Uma lesão da rede límbica não
destrói necessariamente as memórias, mas interfere na sua recuperação
consciente de forma coerente. Os fragmentos individuais de informações
permanecem preservados, apesar das lesões límbicas, e podem dar origem ao
que é conhecido como memória implícita. Por exemplo, pacientes em estado
amnésico são capazes de adquirir novas habilidades motoras ou perceptivas,
embora possam não ter conhecimento consciente das experiências que
possibilitaram a aquisição dessas habilidades.
A perturbação da memória no estado amnésico é multimodal e inclui
componentes retrógrados e anterógrados. A amnésia retrógrada envolve uma
incapacidade de recordar experiências que ocorreram antes do início do estado
amnésico. Eventos relativamente recentes são mais vulneráveis à amnésia
retrógrada que aqueles mais remotos e consolidados mais extensamente. Um
paciente que chega ao pronto-socorro queixando-se de não saber sua identidade,
mas capaz de recordar os eventos do dia anterior, quase certamente não tem uma
causa neurológica de alteração da memória. O segundo e mais importante
componente do estado amnésico é a amnésia anterógrada, que indica
incapacidade de armazenar, reter e recordar conhecimentos novos. Os pacientes
em estado amnésico não se lembram do que comeram há algumas horas ou dos
detalhes de um evento importante que vivenciaram em um passado recente. Nos
estágios agudos, também pode haver uma tendência a preencher as lacunas de
memória com informações imprecisas, fabricadas e com frequência
implausíveis. Isso se denomina confabulação. Os pacientes com a síndrome
amnésica esquecem que esquecem e, quando inquiridos, tendem a negar a
existência de um problema de memória. A confabulação é mais comum em casos
em que a lesão subjacente também interfere com partes da rede frontal, como no
caso da síndrome de Wernicke-Korsakoff ou do traumatismo craniano.

EXAME CLÍNICO
Um paciente com estado amnésico quase sempre está desorientado, em especial
com relação ao tempo, e tem pouco conhecimento das notícias atuais. Testa-se o
componente anterógrado de um estado amnésico por meio de uma lista de quatro
ou cinco palavras, lidas em voz alta pelo examinador por até cinco vezes, ou até
que o paciente consiga repetir toda a lista imediatamente sem hesitação. A
próxima fase da recordação ocorre após um período de 5 a 10 minutos, durante o
qual o paciente realiza outras testes. Os pacientes amnésicos falham nessa fase
do teste e podem até esquecer que receberam uma lista de palavras para recordar.
O reconhecimento preciso das palavras por múltipla escolha em um paciente que
não as recordou indica uma perturbação menos grave da memória, que acomete
principalmente o estágio de recuperação da memória. O componente retrógrado
da amnésia pode ser avaliado por meio de perguntas acerca de acontecimentos
autobiográficos ou históricos. O componente anterógrado dos estados amnésicos
costuma ser bem mais proeminente que o retrógrado. Em raros casos,
ocasionalmente associados à epilepsia do lobo temporal ou à encefalite por
herpes simples, o componente retrógrado pode predominar. Estados confusionais
causados por encefalopatias toxicometabólicas e alguns tipos de lesão do lobo
frontal causam déficits de memória secundários, especialmente nos estágios de
codificação e recuperação, mesmo na ausência de quaisquer lesões límbicas.
Esse tipo de déficit de memória é distinguível do estado amnésico pela presença
de deficiências adicionais nos testes relacionados com a atenção, descritas
adiante na seção sobre os lobos frontais.

CAUSAS, INCLUINDO A DOENÇA DE ALZHEIMER


As doenças neurológicas que causam estados amnésicos incluem tumores (da asa
do esfenoide, da parte posterior do corpo caloso, do tálamo ou do lobo temporal
medial), infartos (no território da artéria cerebral anterior ou posterior),
traumatismo craniano, encefalite herpética, encefalopatia de Wernicke-
Korsakoff, encefalite límbica autoimune e demências degenerativas, como a DA
e a de Pick. O denominador comum a todas essas doenças é a presença de lesões
bilaterais de um ou mais componentes da rede. Em alguns casos, lesões
unilaterais do hipocampo esquerdo dão origem a um estado amnésico, mas o
déficit de memória tende a ser transitório. De acordo com a natureza e a
distribuição da doença neurológica subjacente, o paciente também pode ter
déficits dos campos visuais, limitações dos movimentos oculares ou achados
cerebelares.
A causa mais comum de déficits progressivos da memória nos idosos é a
DA. É por isso que uma demência predominantemente amnésica é também
chamada de demência do tipo Alzheimer (DTA). Um estágio prodrômico de
DTA, quando as atividades da vida diária estão geralmente preservadas, é
conhecido como comprometimento cognitivo leve (CCL) amnésico. A
predileção do córtex entorrinal e do hipocampo pela degeneração neurofibrilar
inicial pela patologia típica de DA é responsável pelo comprometimento
inicialmente seletivo da memória episódica. Com o tempo, surgem
comprometimentos na linguagem, na atenção e nas habilidades visuoespaciais à
medida que a degeneração neurofibrilar se dissemina para outras áreas
neocorticais. Com menos frequência, as demências amnésicas também podem
ser causadas por DLFT.
A amnésia global transitória é uma síndrome distinta geralmente observada
no final da meia-idade. Os pacientes apresentam desorientação aguda e
perguntam, repetidamente, quem são, onde estão e o que estão fazendo. O
episódio caracteriza-se por amnésia anterógrada (incapacidade de reter
informações novas) e uma amnésia retrógrada para acontecimentos
relativamente recentes que precederam o início. A síndrome em geral remite em
24 a 48 horas e é seguida pelo preenchimento do período afetado pela amnésia
retrógrada, mas há perda persistente da memória para os eventos que ocorreram
durante o episódio. Recorrências são observadas em cerca de 20% dos pacientes.
Enxaqueca, crises convulsivas do lobo temporal e anormalidades da perfusão no
território da artéria cerebral posterior foram propostas como causas da amnésia
global transitória. A ausência de achados neurológicos associados às vezes pode
induzir ao diagnóstico errôneo de transtorno psiquiátrico.
A REDE PRÉ-FRONTAL PARA FUNÇÃO EXECUTIVA E
COMPORTAMENTO
Os lobos frontais subdividem-se em componentes motor-pré-motor, pré-frontal
dorsolateral, pré-frontal medial e orbitofrontal. Os termos síndrome do lobo
frontal e córtex pré-frontal referem-se apenas aos três últimos desses quatro
componentes. Essas são as regiões do córtex cerebral que sofreram a maior
expansão filogenética em primatas e especialmente em humanos. As regiões pré-
frontal dorsolateral, pré-frontal medial e orbitofrontal, junto com as estruturas
subcorticais com as quais elas estão conectadas (i.e., a cabeça do núcleo caudado
e o núcleo dorsomedial do tálamo), constituem coletivamente uma rede em larga
escala que coordena aspectos extremamente complexos da cognição e do
comportamento humanos. O termo rede de saliência foi introduzido para
designar partes da rede frontal e suas interações com o córtex paralímbico
adjacente da ínsula e do giro do cíngulo. Déficits de conduta social e empatia
vistos nas demências frontais neurodegenerativas são atribuídos a patologia da
rede de saliência.
A rede pré-frontal exerce um papel importante nos comportamentos que
exigem múltiplas tarefas e a integração do pensamento com a emoção.
Operações cognitivas prejudicadas por lesões do córtex pré-frontal muitas vezes
são chamadas de “funções executivas”. As manifestações clínicas mais comuns
de lesão da rede pré-frontal assumem a forma de duas síndromes relativamente
distintas. Na síndrome frontal de abulia, o paciente mostra perda de iniciativa,
criatividade e curiosidade, bem como indiferença emocional difusa, apatia e falta
de empatia. Na síndrome de desinibição frontal, o paciente torna-se socialmente
desinibido e apresenta deficiências graves de discernimento, compreensão,
previsão e capacidade de seguir regras de conduta. A dissociação entre função
intelectual intacta e perda total do bom-senso mais rudimentar é marcante.
Apesar da preservação de todas as funções de memória essenciais, o paciente
não aprende com a experiência e continua a exibir comportamentos impróprios,
sem parecer sentir dor emocional, culpa ou arrependimento quando tais
comportamentos suscitam consequências desastrosas repetidamente. As
deficiências podem surgir apenas em situações da vida real, quando o
comportamento está sob o controle externo mínimo, e podem não se manifestar
dentro do ambiente estruturado do consultório médico. O teste do discernimento,
inquirindo-se os pacientes, por exemplo, sobre o que eles fariam se descobrissem
um incêndio em um teatro ou encontrassem um envelope selado e endereçado no
meio da rua não é muito informativo, porque pacientes que respondem
adequadamente a essas perguntas no consultório ainda podem ter
comportamento insensato na vida real. Portanto, o médico deve estar preparado
para definir o diagnóstico de doença do lobo frontal com base apenas em
informações da anamnese, ainda que o estado mental pareça bem preservado ao
exame no consultório.

EXAME CLÍNICO
O aparecimento de reflexos primitivos relacionados com o desenvolvimento,
também chamados de sinais de liberação frontal, como a preensão (suscitada por
batida delicada na palma da mão) e a sucção (suscitada por batida delicada nos
lábios), é observado, sobretudo, em pacientes com grandes lesões estruturais que
se estendam aos componentes pré-motores dos lobos frontais ou no contexto de
encefalopatias metabólicas. A grande maioria dos pacientes com lesões pré-
frontais e síndromes comportamentais do lobo frontal não apresenta esses
reflexos. A lesão do lobo frontal atinge uma variedade de funções relacionadas
com a atenção, incluindo a memória de trabalho (a conservação e manipulação
transitória de informações para a realização de uma tarefa), a capacidade de
concentração, a busca forçada e a recuperação de informações armazenadas, a
inibição de respostas imediatas, porém impróprias, e a flexibilidade mental. A
capacidade de repetir uma série de dígitos (que deve conter sete números para
repetição direta e cinco na inversa) está diminuída, refletindo problemas na
memória de trabalho; a enumeração dos meses do ano em ordem inversa (o que
deve levar menos de 15 segundos) é prolongada, sendo outra indicação de
memória de trabalho ruim; e a fluência na produção de palavras que começam
com as letras a, f ou s que podem ser geradas em 1 minuto (normalmente ≥ 12
por letra) está reduzida até mesmo em pacientes não afásicos, indicando prejuízo
na capacidade de procurar e recuperar informações de armazenamento de longo
prazo. Nos testes de “reagir ou não reagir” (quando a instrução é levantar o dedo
ao ouvir uma palma, mas permanecer imóvel quando ouvir duas palmas), o
paciente mostra incapacidade típica de inibir a resposta ao estímulo “não reagir”.
A flexibilidade mental (testada pela capacidade de mudar de um critério para
outro em testes de classificação ou equiparação) está limitada, a distração por
estímulos irrelevantes é aumentada e há uma tendência marcante à
impersistência e à perseveração. A capacidade de abstrair semelhanças e
interpretar provérbios também está prejudicada.
Os déficits de atenção comprometem o registro ordenado e a recuperação
de novas informações, além de acarretarem déficits secundários da memória
explícita. A distinção dos mecanismos neurais subjacentes é ilustrada pela
observação de que pacientes gravemente amnésicos que não se recordam de
acontecimentos ocorridos há alguns minutos podem ter capacidade de memória
de trabalho intacta, senão superior, conforme demonstrado em testes de séries de
dígitos. O uso do termo “memória” para designar duas faculdades mentais
completamente diferentes é confuso. A memória de trabalho depende da
manutenção de informações prontamente disponíveis por breves períodos,
enquanto a memória explícita depende do armazenamento distante e subsequente
recuperação da informação.

CAUSAS: TRAUMATISMO, NEOPLASIA E DEMÊNCIA


FRONTOTEMPORAL
A síndrome de abulia tende a estar associada a lesão no córtex pré-frontal
dorsolateral ou dorsomedial, e a síndrome da desinibição a dano no córtex
orbitofrontal ou ventromedial. Tais síndromes tendem a surgir quase
exclusivamente após lesões bilaterais. As lesões unilaterais limitadas ao córtex
pré-frontal podem permanecer silenciosas até que a patologia se dissemine para
o outro lado, o que explica por que o AVC tromboembólico é uma causa
incomum da síndrome do lobo frontal. Quando síndromes comportamentais da
rede frontal surgem em conjunto com doença assimétrica, a lesão tende a estar
predominantemente no lado direito do cérebro. Contextos comuns de síndromes
do lobo frontal incluem traumatismo craniano, ruptura de aneurismas,
hidrocefalia, tumores (inclusive metástases, glioblastoma e meningiomas da
foice ou do sulco olfatório) e doenças degenerativas focais, em especial a DLFT.
A síndrome neurodegenerativa frontal mais proeminente é chamada de variante
comportamental da demência frontotemporal (DFTvc). Em muitos pacientes
com DFTvc, a atrofia se estende até os lobos temporais anteriores. Algumas
vezes a atrofia predominantemente no lobo temporal anterior direito apresenta-se
com a síndrome DFTvc. As alterações comportamentais nesses pacientes podem
variar desde apatia até roubos em lojas, jogo compulsivo, indiscrições sexuais,
falta importante do bom senso, novos comportamentos ritualísticos e alterações
em preferências dietéticas, geralmente levando a um aumento do gosto por doces
ou a fixação rígida a alimentos específicos. Em muitos pacientes com DA, a
degeneração neurofibrilar acaba disseminando-se para o córtex pré-frontal e
origina os componentes da síndrome do lobo frontal, mas quase sempre sobre
uma base de comprometimento grave da memória. Raramente, a síndrome
DFTvc pode surgir de forma isolada no contexto de uma forma atípica de
patologia de DA.
Lesões no núcleo caudado ou no núcleo dorsomedial do tálamo
(componentes subcorticais da rede pré-frontal) também podem produzir
síndrome de lobo frontal afetando principalmente as funções executivas. Essa é
uma das razões pelas quais as alterações no estado mental associadas a doenças
degenerativas dos núcleos da base, como doença de Parkinson e doença de
Huntington, mostram componentes da síndrome do lobo frontal. Lesões
multifocais bilaterais dos hemisférios cerebrais, nenhuma das quais grande o
suficiente individualmente para causar déficits cognitivos específicos como
afasia e negligência, podem coletivamente interferir na conectividade e na
função integradora (executiva) do córtex pré-frontal. Assim, uma síndrome do
lobo frontal, geralmente a forma de abulia, é o perfil comportamental mais
comum associado a uma variedade de doenças cerebrais multifocais bilaterais,
como as encefalopatias metabólicas, a esclerose múltipla e a deficiência de
vitamina B12, entre outras. Muitos pacientes com o diagnóstico clínico de uma
síndrome do lobo frontal tendem a ter lesões que não envolvem o córtex pré-
frontal, mas sim os componentes subcorticais da rede pré-frontal ou suas
conexões com outras partes do encéfalo. Para evitar estabelecer o diagnóstico de
“síndrome do lobo frontal” em um paciente sem evidência de doença do córtex
frontal, é recomendável utilizar a expressão diagnóstica síndrome da rede
frontal, com a compreensão de que as lesões responsáveis podem situar-se em
qualquer área dessa rede. Um paciente com doença do lobo frontal suscita
dilemas em potencial no diagnóstico diferencial: a abulia e a indiferença podem
ser erroneamente interpretadas como depressão, e a desinibição, como mania
idiopática ou atuação. A intervenção apropriada pode ser adiada enquanto um
tumor tratável continua a crescer.
ASSISTÊNCIA AOS PACIENTES COM DÉFICITS DA
FUNÇÃO CEREBRAL SUPERIOR
A melhora espontânea dos déficits cognitivos secundários a AVC ou trauma é
comum. É mais rápida nas primeiras semanas, mas pode continuar por até 2
anos, especialmente em indivíduos jovens com lesões cerebrais isoladas. Alguns
dos déficits iniciais nesses casos parecem advir de disfunção remota (diásquise)
em regiões do cérebro que estão interconectadas com o local da lesão inicial.
Nesses pacientes, a melhora reflete, pelo menos em parte, a normalização da
disfunção remota. Outros mecanismos envolvem a reorganização funcional de
neurônios sobreviventes adjacentes à lesão, ou o uso compensatório de estruturas
homólogas, como, por exemplo, o giro temporal superior direito com
recuperação da afasia de Wernicke. Em contraste, as doenças neurodegenerativas
mostram progressão do déficit que varia muito de paciente para paciente.

Intervenções farmacológicas e não farmacológicas Alguns déficits descritos


neste capítulo são tão complexos que podem desnortear não apenas o paciente e
a família, como também o médico. O cuidado de pacientes com esses déficits
exige avaliação cuidadosa da história, dos resultados dos testes cognitivos e dos
procedimentos diagnósticos. Cada pedaço de informação deve ser interpretado e
colocado em contexto. Uma queixa de “memória ruim”, por exemplo, pode
refletir uma anomia; escores ruins em um teste de aprendizado podem refletir
uma fraqueza de atenção em vez da memória explícita; um relato de depressão
ou indiferença pode refletir comprometimento de prosódia em vez de alteração
no humor ou empatia; a jocosidade pode ser causada por problemas de
percepção em vez de bom humor. Embora haja poucos estudos bem controlados,
várias intervenções não farmacológicas têm sido usadas para tratar déficits
corticais superiores. Isso inclui fonoterapia para afasias, modificação
comportamental para distúrbios comportamentais e treinamento cognitivo para
desorientação visuoespacial e síndromes amnésicas. Intervenções mais práticas,
geralmente aplicadas por terapia ocupacional, visam melhorar as atividades da
vida diária por meio de dispositivos de assistência e modificações no ambiente
doméstico. Determinar a competência do paciente para dirigir veículos
motorizados é um desafio, em especial nos estágios iniciais das doenças
demenciais. Um teste de direção e relatos de familiares podem ajudar a tomar
decisões relacionadas com essa atividade importante. Em condições
neurodegenerativas como a APP, a estimulação magnética transcraniana (ou por
corrente direta) obteve resultados mistos quanto à melhora dos sintomas. O
objetivo é ativar os neurônios remanescentes em locais de atrofia ou em regiões
não afetadas do hemisfério contralateral. Depressão e distúrbios do sono podem
intensificar os distúrbios cognitivos e devem ser tratados com as modalidades
apropriadas. Se os neurolépticos passarem a ser absolutamente necessários para
controle da agitação, os neurolépticos atípicos são preferíveis por terem menos
efeitos colaterais extrapiramidais. O tratamento com neurolépticos em pacientes
com demência requer consideração dos benefícios potenciais em comparação
com os efeitos colaterais potencialmente graves. Isso é especialmente relevante
para o caso de pacientes com demência por corpos de Lewy, os quais podem ser
anormalmente sensíveis aos efeitos colaterais.
Como em todas as outras áreas da medicina, uma etapa crucial no cuidado
do paciente é identificar a causa subjacente do comprometimento. Isso é fácil
nos casos de AVC, traumatismo cranioencefálico ou encefalite, mas se torna
particularmente difícil nas demências, pois a mesma síndrome clínica
progressiva pode ser causada por várias entidades neuropatológicas. O advento
de biomarcadores em exames de imagem, sangue e LCS torna atualmente
possível abordar essa questão com razoável sucesso e fazer os diagnósticos
específicos de DA, DCL, DCJ e DLFT. Um diagnóstico etiológico específico
permite que o médico recomende os medicamentos ou testes clínicos mais
apropriados para o processo patológico subjacente. Uma avaliação clínica que
identifica o domínio principal de comprometimento comportamental e cognitivo
seguida pelo uso judicioso de informações de biomarcadores para presumir a
natureza da doença subjacente permite uma abordagem personalizada aos
pacientes com comprometimentos cognitivos superiores.

LEITURAS ADICIONAIS
Mesulam M-M: Behavioral neuroanatomy: Large-scale networks, association
cortex, frontal syndromes, the limbic system and hemispheric
specialization, in Principles of Behavioral and Cognitive Neurology, M-M
Mesulam (ed). New York, Oxford University Press, 2000, pp 1–120.
Mesulam M-M et al: Case 1-2017: A 70-year-old woman with gradually
progressive loss of language. N Engl J Med 376:158, 2017.
Miller BL, Boeve BF (eds): The Behavioral Neurology of Dementia, 2nd ed.
Cambridge University Press, 2017.
Teichmann M et al: Direct current stimulation over the anterior temporal areas
boosts semantic processing in primary progressive aphasia. Ann Neurol
80:693, 2016.
27
Distúrbios do sono
Thomas E. Scammell, Clifford B. Saper, Charles A. Czeisler

Os distúrbios do sono estão entre as queixas de saúde mais comuns com que os
médicos se deparam. Mais da metade dos adultos nos Estados Unidos
experimentam pelo menos distúrbios do sono intermitentes, e apenas 30% dos
adultos norte-americanos relatam obter de forma consistente uma quantidade
suficiente de sono. A National Academy of Medicine estimou que 50 a 70
milhões de norte-americanos sofram de um distúrbio crônico do sono e da
vigília, o que pode comprometer seriamente o funcionamento diurno e a saúde
física e mental. É cada vez mais reconhecida uma alta prevalência de distúrbios
do sono em todas as culturas, e a expectativa é de que esses problemas
aumentem ainda mais nos próximos anos à medida que a população envelhece.
Nos últimos 20 anos, a área da medicina do sono surgiu como uma especialidade
distinta em resposta ao impacto dos distúrbios do sono e da deficiência de sono
na saúde geral. Contudo, mais de 80% dos pacientes com distúrbios do sono
permanecem não diagnosticados e não tratados – custando mais de 400 bilhões
de dólares anualmente para a economia dos Estados Unidos por aumento de
custos com cuidados de saúde, perda de produtividade, acidentes e lesões, e
levando ao desenvolvimento de programas de educação em saúde do sono e de
rastreamento para distúrbios do sono no local de trabalho, projetados para
abordar essa necessidade médica não satisfeita.
FISIOLOGIA DO SONO E DA VIGÍLIA
Os adultos precisam de pelo menos 7 horas de sono por noite para a promoção
da saúde ideal, embora o momento, a duração e a estrutura interna do sono varie
entre as pessoas. Nos Estados Unidos, os adultos tendem a ter um episódio de
sono consolidado por noite, embora, em algumas culturas, o sono seja dividido
em um breve período no meio da tarde e um sono noturno encurtado. Esse
padrão muda de forma considerável ao longo da vida, com lactentes e crianças
pequenas dormindo bem mais que os idosos.
Os estágios do sono humano são definidos com base nos padrões típicos do
eletrencefalograma (EEG), do eletro-oculograma (EOG – uma medida da
atividade dos movimentos oculares) e da eletromiografia (EMG) de superfície
medida no queixo, pescoço e pernas. O registro contínuo desses parâmetros
eletrofisiológicos para definir o sono e a vigília denomina-se polissonografia.
Os perfis polissonográficos definem dois estados básicos do sono: (1) o
sono com movimentos oculares rápidos (REM) e (2) o sono sem movimentos
oculares rápidos (NREM). O sono NREM é ainda subdividido em três estágios:
N1, N2 e N3, caracterizados por aumento do limiar de despertar e alentecimento
do EEG cortical. O sono REM se caracteriza por EEG de baixa amplitude e
frequência mista semelhante àquele do sono NREM estágio N1, e o EOG mostra
REMs que tendem a ocorrer em “enxurradas” ou “surtos”. A atividade da EMG
está ausente em quase todos os músculos esqueléticos com exceção daqueles
envolvidos na respiração, refletindo a paralisia muscular mediada pelo tronco
encefálico, típica do sono REM.

ORGANIZAÇÃO DO SONO HUMANO


O sono noturno normal em adultos exibe uma organização constante noite após
noite (Fig. 27-1). Após seu início, o sono geralmente percorre os estágios
NREM N1-N3 em 45 a 60 minutos. O sono de ondas lentas (estágio do sono N3
do NREM) predomina no primeiro terço da noite e compreende 15 a 25% do
sono noturno total em adultos jovens. A privação de sono aumenta a rapidez de
início do sono e tanto a intensidade quanto a quantidade do sono de ondas lentas.
O primeiro episódio de sono REM costuma ocorrer na segunda hora de
sono. Os sonos NREM e REM alternam-se ao longo da noite, com período
médio de 90 a 110 minutos (o ciclo de sono “ultradiano”). No total, em adultos
jovens saudáveis, o sono REM constitui 20 a 25% do sono total, e os estágios
NREM N1 e N2 perfazem 50 a 60%.
FIGURA 27-1 Arquitetura sono-vigília. Ocorrem estágios alternados de alerta, três estágios de sono
NREM (N1-N3) e sono REM (barras sólidas) ao longo da noite em homens adultos jovens e idosos. As
características do sono em pessoas mais velhas incluem a redução do sono de ondas lentas N3, despertares
espontâneos frequentes, início precoce do sono e despertar matinal precoce.

A idade exerce impacto profundo na organização dos estados do sono (Fig.


27-1). O sono N3 é mais intenso e proeminente durante a infância, mas diminui
na puberdade e durante a segunda e a terceira décadas de vida. Ele diminui
durante a idade adulta até o ponto em que pode estar completamente ausente em
idosos. O restante do sono NREM se torna mais fragmentado, com despertares
muito mais frequentes. É a frequência aumentada dos despertares, em vez da
capacidade reduzida de voltar a dormir, que é responsável pelo maior período de
vigília durante o sono em idosos. Enquanto o sono REM pode ser responsável
por 50% do total de sono em lactentes, a porcentagem cai abruptamente no
primeiro ano à medida que se desenvolve um ciclo maduro REM-NREM; depois
disso, o sono REM ocupa cerca de 25% do tempo total de sono.
A privação de sono degrada o desempenho cognitivo, particularmente em
testes que exigem vigilância contínua. Paradoxalmente, pessoas idosas são
menos vulneráveis aos prejuízos no desempenho neurocomportamental
induzidos pela privação aguda de sono que adultos jovens, mantendo o tempo de
reação e a vigilância, com poucos lapsos de atenção. No entanto, é mais difícil
para os idosos recuperarem o sono após permanecerem acordados toda a noite,
pois a capacidade de dormir durante o dia diminui com a idade.
Após a privação de sono, o sono NREM é geralmente recuperado antes,
seguido pelo sono REM. Contudo, como o sono REM tende a ser mais
proeminente na segunda metade da noite, o sono truncado (p. ex., por um
alarme) resulta em privação seletiva do sono REM. Isso pode aumentar a pressão
do sono REM até o ponto em que o primeiro sono REM pode ocorrer muito
precocemente no próximo sono noturno. Como muitos distúrbios (ver adiante)
também causam fragmentação do sono, é importante que o paciente tenha
oportunidade suficiente de sono (pelo menos 8 horas por noite) por várias noites
antes de uma polissonografia diagnóstica.
Há evidências crescentes de que o sono inadequado em humanos pode estar
associado com intolerância à glicose que pode contribuir para o desenvolvimento
de diabetes, obesidade e síndrome metabólica, bem como piora das respostas
imunes, aterosclerose acelerada e aumento do risco de doença cardíaca,
comprometimento cognitivo, doença de Alzheimer e acidente vascular cerebral
(AVC). Por essas razões, a National Academy of Medicine declarou a deficiência
de sono e os distúrbios do sono “um problema de saúde pública não resolvido”.

SONO E VIGÍLIA SÃO REGULADOS POR CIRCUITOS CEREBRAIS


Dois sistemas neurais principais governam a expressão do sono e da vigília. O
sistema de ativação ascendente, ilustrado em verde na Figura 27-2, consiste em
grupos de células nervosas que se estendem da parte superior da ponte até o
hipotálamo e prosencéfalo basal e que ativam o córtex cerebral, tálamo (que é
necessário para retransmitir a informação sensorial até o córtex) e outras regiões
do prosencéfalo. Os neurônios de ativação ascendente usam monoaminas
(norepinefrina, dopamina, serotonina e histamina), glutamato ou acetilcolina
como neurotransmissores para ativar seus neurônios-alvo. Alguns neurônios do
prosencéfalo basal usam GABA para desinibir os interneurônios inibitórios
corticais promovendo, dessa forma, a vigília. Outros neurônios ativadores no
hipotálamo usam o peptídeo neurotransmissor orexina (também conhecido por
hipocretina, mostrado em azul) para reforçar a atividade em outros grupos
celulares ativadores.
FIGURA 27-2 Relação entre fármacos para insônia e sistemas de sono-vigília. O sistema de despertar
no cérebro (verde) inclui neurônios monoaminérgicos, glutamatérgicos e colinérgicos no tronco encefálico
que ativam neurônios no hipotálamo, tálamo, prosencéfalo basal e córtex cerebral. Os neurônios de orexina
(azul) no hipotálamo, que são perdidos na narcolepsia, reforçam e estabilizam o despertar por meio da
ativação de outros componentes do sistema de ativação. O sistema de promoção do sono (vermelho)
consiste em neurônios GABAérgicos na área pré-óptica e no tronco encefálico que inibem os componentes
do sistema de ativação, permitindo que o sono ocorra. Os fármacos usados para tratar a insônia incluem
aqueles que bloqueiam os efeitos dos neurotransmissores do sistema de ativação (verde e azul) e aqueles
que aumentam os efeitos do ácido γ-aminobutírico (GABA) produzido pelo sistema do sono (vermelho).

A lesão ao sistema de ativação ao nível da ponte rostral e porção inferior do


mesencéfalo causa coma, indicando que a influência da ativação ascendente a
partir desse nível é fundamental para manter a vigília. A lesão do ramo
hipotalâmico do sistema de ativação causa sonolência profunda, mas geralmente
sem coma. A perda específica dos neurônios da orexina produz o distúrbio do
sono narcolepsia (ver adiante). O dano ao tálamo causa perda do conteúdo da
vigília, mas os ciclos de sono-vigília são, em grande medida, preservados.
O sistema de ativação é desligado durante o sono por impulsos inibitórios a
partir de grupos celulares no sistema de promoção do sono, mostrado na Figura
27-2 em vermelho. Esses neurônios na área pré-óptica e na ponte usam o ácido
γ-aminobutírico (GABA) para inibir o sistema de ativação. Neurônios adicionais
no hipotálamo lateral contendo o peptídeo hormônio concentrador da melanina
promovem o sono REM. Muitos neurônios promotores do sono são eles mesmos
inibidos por impulsos do sistema de ativação. Essa inibição mútua entre os
sistemas de promoção de despertar e de sono forma um circuito neural
semelhante ao que os engenheiros elétricos chamam de “circuito flip-flop”. Um
circuito desse tipo tende a promover transições rápidas entre os estados ligado
(acordado) e desligado (dormindo), evitando estados intermediários. As
transições relativamente rápidas entre os estados de sono e vigília, conforme
mostrado no EEG de humanos e animais, são consistentes com esse modelo.
Os neurônios no núcleo pré-óptico ventrolateral, um dos principais locais
de promoção do sono, são perdidos durante o envelhecimento humano normal, o
que se correlaciona com a capacidade reduzida de manter o sono (fragmentação
do sono). Os neurônios pré-ópticos ventrolaterais também sofrem dano na
doença de Alzheimer, o que pode ser parcialmente responsável pela má
qualidade de sono nesses pacientes.
As transições entre sono NREM e REM parecem ser controladas por um
circuito semelhante no tronco encefálico. Foram identificados neurônios
GABAérgicos REM-Off no mesencéfalo inferior, os quais inibem os neurônios
REM-On na ponte superior. O grupo REM-On contém neurônios GABAérgicos
que inibem o grupo REM-Off (satisfazendo as condições para um circuito flip-
flop para o sono REM) bem como neurônios glutamatérgicos que se projetam
amplamente no sistema nervoso central (SNC) para causar o fenômeno principal
associado ao sono REM. Os neurônios REM-On que se projetam para o bulbo e
a medula espinal ativam interneurônios inibitórios (contendo GABA e glicina),
que, por sua vez, hiperpolarizam os neurônios motores, produzindo a paralisia do
sono REM. Os neurônios REM-On que se projetam para o prosencéfalo podem
ser importantes na produção dos sonhos.
O circuito do sono REM recebe impulsos colinérgicos, o que favorece as
transições para o sono REM, e impulsos monoaminérgicos (norepinefrina e
serotonina) que evitam o sono REM. Como resultado, fármacos que aumentam o
tônus de monoaminas (p. ex., inibidores da recaptação de serotonina ou
norepinefrina) tendem a reduzir a quantidade de sono REM. O dano aos
neurônios que promovem a paralisia do sono REM pode produzir distúrbios de
comportamento do sono REM, uma condição na qual os pacientes agem como se
estivessem nos sonhos (ver adiante).

CICLOS DE SONO-VIGÍLIA SÃO CONTROLADOS POR IMPULSOS


HOMEOSTÁTICOS, ALOSTÁTICOS E CIRCADIANOS
O aumento gradual na tendência ao sono após períodos prolongados de vigília,
seguido por sono profundo de ondas lentas e episódios prolongados de sono,
demonstra que há um mecanismo homeostático que regula o sono. A
neuroquímica da homeostase do sono é apenas parcialmente compreendida, mas
com o prolongamento da vigília, os níveis de adenosina aumentam em algumas
partes do cérebro. A adenosina pode agir por meio de receptores A1 para inibir
diretamente muitas regiões cerebrais promotoras do despertar. Além disso, a
adenosina promove o sono por meio dos receptores A2a; o bloqueio desses
receptores pela cafeína é uma das principais formas com que as pessoas lutam
contra o sono. Outros fatores humorais, como a prostaglandina D2, também
foram implicados nesse processo. A adenosina e a prostaglandina D2 ativam os
neurônios promotores do sono no núcleo pré-óptico ventrolateral.
Alostasia é a resposta fisiológica a um desafio, como um perigo físico ou
ameaça psicológica, que não pode ser manejada por mecanismos homeostáticos.
Essas respostas de estresse podem ter impacto importante na necessidade e na
capacidade de dormir. Por exemplo, a insônia é muito comum em pacientes com
ansiedade e outros transtornos psiquiátricos. A insônia induzida pelo estresse é
ainda mais comum, afetando a maioria das pessoas em algum momento da vida.
Estudos com tomografia por emissão de pósitrons (PET) em pacientes com
insônia crônica mostram hiperativação dos componentes do sistema de ativação
ascendente, bem como de seus alvos no sistema límbico no prosencéfalo (p. ex.,
córtex cingulado e tonsila cerebral). As áreas límbicas não são apenas alvos para
o sistema de ativação, mas também mandam impulsos excitatórios para esse
sistema, o que contribui para um círculo vicioso de ansiedade em relação ao
estado de insônia, tornando mais difícil ainda o sono. As abordagens para o
tratamento da insônia podem usar fármacos que inibem os impulsos do sistema
de ativação ascendente (verde e azul na Fig. 27-2) ou que potencializam os
impulsos do sistema de promoção do sono (vermelho na Fig. 27-2). No entanto,
as abordagens comportamentais (terapia cognitivo-comportamental [TCC] e
higiene do sono) que podem reduzir a atividade límbica do prosencéfalo ao
deitar costumam ser o melhor tratamento no longo prazo.
O sono também é regulado por um forte sinal de tempo circadiano,
controlado pelo núcleo supraquiasmático (NSQ) do hipotálamo, conforme
descrito adiante. O NSQ manda impulsos para locais importantes do hipotálamo,
o que impõe ritmos de 24 horas em uma ampla gama de comportamentos e
sistemas corporais, incluindo o ciclo de sono-vigília.
FISIOLOGIA DA RITMICIDADE CIRCADIANA
O ciclo de sono e vigília é o mais evidente de muitos ritmos de 24 horas dos
humanos. Variações diárias proeminentes também ocorrem nas funções
endócrina, termorreguladora, cardíaca, pulmonar, renal, imunológica,
gastrintestinal e neurocomportamental. No nível molecular, a ritmicidade
circadiana endógena é impelida por alças de feedback da transcrição/tradução
independentes. Na análise de ritmos diários em humanos, é importante distinguir
entre os componentes diurnos suscitados passivamente por alterações ambientais
ou comportamentais periódicas (p. ex., a elevação da pressão arterial e da
frequência cardíaca quando o indivíduo assume a postura ereta) e os ritmos
circadianos produzidos ativamente por um processo oscilatório endógeno (p. ex.,
a variação circadiana na secreção de cortisol pela suprarrenal e de melatonina
pela pineal, as quais persistem apesar da ampla variação das condições
ambientais e comportamentais).
Apesar de ser atualmente reconhecido que a maioria das células no corpo
tem relógios circadianos que regulam diversos processos fisiológicos, a maioria
desses diferentes relógios, quando colocados isoladamente em um tecido
explantado, não é capaz de fazer a sincronização no longo prazo entre si, a qual é
necessária para produzir ritmos de cerca de 24 horas úteis alinhados com o ciclo
externo de luz-escuridão. Os neurônios no NSQ são interconectados entre si de
modo que produzem um ritmo sincrônico de cerca de 24 horas na atividade
neural mesmo em culturas prolongadas de neurônios. Eles também recebem
estímulos visuais para sua sincronização com o mundo externo e têm estímulos a
serem transmitidos, sinalizando para o restante do corpo. A destruição bilateral
do NSQ resulta em perda da maioria dos ritmos circadianos endógenos,
incluindo o comportamento de sono-vigília e os ritmos dos sistemas endócrinos
e metabólicos. O período geneticamente determinado desse oscilador neural
endógeno, que é cerca de 24,15 horas em humanos, é normalmente sincronizado
para o período de 24 horas do ciclo ambiental de luz e escuridão por meio de
impulsos diretos de células ganglionares intrinsecamente fotossensíveis na retina
para o NSQ. Os humanos são extremamente sensíveis aos efeitos reajustadores
da luz, sobretudo nos comprimentos de onda mais curtos (cerca de 460-500 nm)
na parte azul do espectro visível. Pequenas diferenças no período circadiano
contribuem para variações na preferência diurna. Por exemplo, adultos jovens
tipicamente têm períodos circadianos longos e consequentemente vão para a
cama tarde e acordam tarde, enquanto outros têm períodos curtos, indo para a
cama e levantando mais cedo. Alterações na regulação homeostática do sono
podem ser responsáveis por alterações relacionadas à idade no período de sono-
vigília.
O tempo e a arquitetura interna do sono estão diretamente vinculados ao
débito do marca-passo circadiano endógeno. Paradoxalmente, o ritmo circadiano
endógeno para a propensão a despertar tem seu pico logo antes da hora habitual
de dormir, enquanto aquele da propensão a dormir tem seu pico próximo da hora
habitual de acordar. Esses ritmos são, assim, ajustados para se oporem ao
aumento na tendência de sono ao longo do dia e o declínio na propensão ao sono
durante o episódio habitual de sono, respectivamente. Assim, um descompasso
do marca-passo circadiano endógeno com o ciclo de sono e vigília desejado pode
induzir insônia, menor vivacidade e redução do desempenho, causando
problemas de saúde em trabalhadores noturnos e viajantes de avião.

CORRELATOS COMPORTAMENTAIS E FISIOLÓGICOS DOS


ESTADOS E ESTÁGIOS DO SONO
Os estágios polissonográficos do sono correlacionam-se com mudanças
comportamentais durante estados e estágios específicos. Durante o estado de
transição (estágio N1) entre a vigília e o sono profundo, as pessoas podem
responder a sinais auditivos ou visuais discretos. A formação da memória de
curto prazo é inibida no início do estágio N1 do sono NREM, o que explica por
que indivíduos despertados do estágio de sono transicional frequentemente não
têm percepção da situação. Após a privação de sono, tais transições podem
invadir a vigília apesar de tentativas de permanecer continuamente acordado (ver
“Distúrbio do trabalho em turnos”, adiante).
Pessoas acordadas durante o sono REM recordam imagens vívidas dos
sonhos em > 80% das vezes, especialmente no final da noite. A formação de
imagens menos vívidas também pode ser observada após interrupções no sono
NREM. Podem ocorrer alguns distúrbios durante estágios específicos do sono e
eles são descritos adiante sob o título “Parassonias”. Isso inclui sonambulismo,
terror noturno e enurese, que ocorrem mais comumente em crianças durante o
sono NREM profundo (N3), e o distúrbio de comportamento do sono REM, que
ocorre principalmente em homens idosos que não conseguem manter a paralisia
completa durante o sono REM e muitas vezes gritam, se debatem ou atuam
como se vivessem fragmentos de seus sonhos.
Todos os principais sistemas fisiológicos são influenciados pelo sono. A
pressão arterial e a frequência cardíaca diminuem durante o sono NREM,
particularmente durante o sono N3. Durante o sono REM, surtos de movimentos
oculares estão associados a grandes variações na pressão arterial e na frequência
cardíaca, as quais são mediadas pelo sistema nervoso autônomo. As arritmias
cardíacas podem ocorrer seletivamente durante o sono REM. A função
respiratória também muda. Em comparação com a vigília relaxada, a frequência
respiratória torna-se mais lenta, mas mais regular durante o sono NREM
(especialmente no sono N3) e torna-se irregular durante surtos de movimentos
oculares no sono REM. As reduções na ventilação-minuto durante o sono
NREM são desproporcionais às reduções na taxa metabólica, resultando em
aumentos discretos da PCO2.
Dentro do próprio cérebro, a neurotransmissão é sustentada por gradientes
de íons através de membranas de neurônios e astrócitos. Estes fluxos de íons são
acompanhados por aumentos no volume intracelular, de modo que, durante a
vigília, há muito pouco espaço extracelular no cérebro. Durante o sono, o
volume intracelular é reduzido, resultando em aumento do espaço extracelular,
que tem maior concentração de cálcio e menor de potássio, sustentando a
hiperpolarização e disparo reduzido dos neurônios. Essa expansão do espaço
extracelular durante o sono aumenta a difusão de substâncias que se acumulam
extracelularmente, como o peptídeo β-amiloide, aumentando sua eliminação do
cérebro por meio do fluxo de líquido cerebrospinal. Evidências recentes sugerem
que a falta de sono adequado pode contribuir para o acúmulo extracelular de
peptídeo β-amiloide, uma etapa importante na patogênese da doença de
Alzheimer.
A função endócrina também varia com o sono. O sono N3 está associado à
secreção de hormônio do crescimento em homens, enquanto o sono em geral
está associado à maior secreção de prolactina tanto em homens como em
mulheres. O sono tem um efeito complexo sobre a secreção de hormônio
luteinizante (LH): durante a puberdade, o sono está associado à maior secreção
de LH; porém, o sono em mulheres pós-puberais inibe a secreção de LH na fase
folicular inicial do ciclo menstrual. O início do sono (e provavelmente do sono
N3) está associado à inibição do hormônio estimulante da tireoide e do eixo
hormônio adrenocorticotrófico-cortisol, efeito que se superpõe aos ritmos
circadianos proeminentes nos dois sistemas.
O hormônio pineal melatonina é secretado predominantemente à noite,
tanto nas espécies de vida diurna quanto naquelas de vida noturna, refletindo a
modulação direta da atividade pineal pelo NSQ via sistema nervoso simpático, o
qual inerva a glândula pineal. A secreção de melatonina não necessita de sono,
mas é inibida pela luz ambiente, um efeito mediado pela conexão neural entre a
retina e a glândula pineal via NSQ. A eficiência do sono é maior quando o sono
coincide com a secreção endógena de melatonina. Quando os níveis endógenos
de melatonina estão baixos, como durante o dia biológico ou no momento de
deitar desejado em pacientes com distúrbio de atraso de fase do sono (DAtFS), a
administração de melatonina exógena pode acelerar o início do sono e aumentar
a eficiência do sono, mas ela não aumenta a eficiência do sono se administrada
quando os níveis endógenos de melatonina estiverem elevados. Isso pode
explicar porque a melatonina costuma ser inefetiva no tratamento de pacientes
com insônia primária. Por outro lado, os pacientes com desnervação simpática
da glândula pineal, como ocorre na lesão de medula espinal cervical ou em
pacientes com doença de Parkinson, costumam ter níveis baixos de melatonina, e
a administração de melatonina (3 mg 30 minutos antes de deitar) pode ajudar o
paciente a dormir.
O sono é acompanhado por alterações da função termorreguladora. O sono
NREM está associado a aumento no disparo de neurônios responsivos ao calor
na área pré-óptica e a uma queda na temperatura corporal; por outro lado, foi
demonstrado que o aquecimento da pele sem aumentar a temperatura corporal
central aumenta o sono NREM. O sono REM está associado à redução da
responsividade termorregulatória.
DISTÚRBIOS DO SONO E DA VIGÍLIA

ABORDAGEM AO PACIENTE
Distúrbios do sono
Os pacientes procuram auxílio médico devido a: (1) sonolência ou cansaço
durante o dia; (2) dificuldade de iniciar ou manter o sono à noite (insônia);
ou (3) comportamentos incomuns durante o sono (parassonias).
Obter uma anamnese minuciosa é imprescindível. Em particular, a
duração, a intensidade e a constância dos sintomas são importantes, bem
como a estimativa pelo paciente das consequências da referida perda de sono
sobre a funcionalidade durante a vigília. Informações obtidas com um
parceiro de cama ou familiar costumam ser úteis, pois alguns pacientes
podem não estar cientes de sintomas, como roncos ruidosos, ou podem
subestimar sintomas, como adormecer em serviço ou ao dirigir. Os médicos
devem questionar sobre o horário que o paciente geralmente vai dormir,
quando ele dorme e acorda, se desperta durante o sono, se ele sente-se
descansado pela manhã e se tira cochilos durante o dia. Dependendo da
queixa primária, pode ser útil questionar sobre roncos, apneias
testemunhadas, sensações de pernas inquietas, movimentos durante o sono,
depressão, ansiedade e comportamentos próximos ao horário do sono. O
exame físico pode fornecer evidências de uma via aérea pequena, tonsilas de
tamanho aumentado ou um distúrbio neurológico ou clínico que contribua
para a queixa principal.
É importante lembrar que, raramente, convulsões podem ocorrer
exclusivamente durante o sono, simulando um distúrbio primário do sono;
tais convulsões relacionadas ao sono geralmente ocorrem durante episódios
de sono NREM e podem ser movimentos tônico-clônicos generalizados
(algumas vezes com incontinência urinária ou mordedura da língua) ou
movimentos estereotipados na epilepsia parcial complexa (Cap. 418).
Costuma ser útil que o paciente complete um diário de sono por 1 a 2
semanas para definir o momento e a quantidade de sono. Quando relevante, o
diário também pode incluir informações sobre os níveis de alerta, horários de
trabalho e uso de fármacos ou álcool, incluindo cafeína e hipnóticos.
A polissonografia é necessária para o diagnóstico de vários distúrbios,
como apneia do sono, narcolepsia e distúrbio dos movimentos periódicos dos
membros (DMPM). Uma polissonografia convencional realizada em um
laboratório do sono permite a medida dos estágios do sono, esforço e fluxo
respiratório, saturação de oxigênio, movimentos dos membros, ritmo
cardíaco e parâmetros adicionais. Um teste de sono domiciliar geralmente se
concentra nas medidas respiratórias e é útil em pacientes com probabilidade
moderada a alta de ter apneia obstrutiva do sono. O teste de latências
múltiplas do sono (TLMS) é usado para medir a propensão do paciente para
o sono durante o dia e pode fornecer evidências importantes para o
diagnóstico de narcolepsia e algumas outras causas de sonolência. O teste de
manutenção da vigília é usado para medir a capacidade do paciente para
sustentar a vigília durante o dia e pode fornecer evidências importantes para
a avaliação da eficácia de terapias para a melhora da sonolência em
condições como narcolepsia e apneia obstrutiva do sono.

AVALIAÇÃO DA SONOLÊNCIA DIURNA


Até 25% da população adulta tem sonolência diurna persistente que prejudica a
capacidade do indivíduo para um bom desempenho na escola, trabalho, direção e
em outras condições que necessitem de um bom estado de alerta. Estudantes
sonolentos costumam ter problemas para ficar acordados e ter um bom
desempenho na escola, enquanto adultos sonolentos lutam para permanecer
acordados e se concentrar no trabalho. Mais da metade dos norte-americanos
admitem já ter caído no sono enquanto estavam dirigindo. Estima-se que ocorra
1,2 milhão de acidentes com veículos motorizados por ano provocados por
motoristas sonolentos, causando cerca de 20% de todas as lesões graves e mortes
por acidentes automobilísticos. A pessoa não precisa adormecer para causar um
acidente, pois a falta de atenção e as respostas mais lentas dos motoristas
sonolentos são fatores decisivos. Vinte e quatro horas de despertar contínuo
prejudicam o tempo de reação tanto quanto uma concentração de álcool no
sangue de 0,10 g/dL (que significa legalmente bêbado em todos os 50 estados
dos Estados Unidos).
A identificação e quantificação da sonolência podem ser difíceis. Primeiro,
os pacientes podem descrever-se como “sonolentos”, “fatigados” ou “cansados”,
e os significados dessas palavras podem ser diferentes para cada paciente. Para
propósitos clínicos, é melhor usar o termo “sonolência” para descrever uma
propensão para dormir; enquanto é melhor usar “fadiga” para descrever uma
sensação de pouca energia física e mental, mas sem uma tendência real para
adormecer. A sonolência costuma ser mais evidente quando o paciente é
sedentário, enquanto a fadiga pode interferir em atividades mais intensas. A
sonolência geralmente ocorre com distúrbios que reduzem a qualidade ou a
quantidade de sono ou que interferem nos mecanismos neurais de despertar,
enquanto a fadiga é mais comum em distúrbios inflamatórios, como câncer,
esclerose múltipla (Cap. 436), fibromialgia (Cap. 366), síndrome da fadiga
crônica (Cap. 442) ou deficiências endócrinas, como o hipotireoidismo (Cap. 37
6) ou a doença de Addison (Cap. 379). Em segundo lugar, a sonolência pode
afetar o julgamento da mesma forma que o etanol, de tal forma que os pacientes
podem ter percepção limitada da condição e da extensão de seu prejuízo
funcional. Por fim, os pacientes podem estar relutantes em admitir que a
sonolência seja um problema, pois podem ter perdido a familiaridade com um
estado de completo despertar, e a sonolência é algumas vezes vista de forma
pejorativa, como refletindo pouca motivação ou maus hábitos de sono.
A Tabela 27-1 descreve a abordagem diagnóstica e terapêutica ao paciente
com queixa de sonolência diurna excessiva.

TABELA 27-1 ■ Avaliação do paciente com sonolência diurna excessiva


Achados à anamnese e ao exame físico Avaliação diagnóstica Diagnóstico Terapia

Dificuldade para acordar pela manhã, sonolência Diário de sono Sono insuficiente Educação do sono e modificações
rebote nos fins de semana e férias com melhora comportamentais para aumentar a
da sonolência quantidade de sono
Obesidade, roncos, hipertensão arterial Polissonografia ou Apneia obstrutiva Pressão positiva contínua nas vias
teste de sono do sono (Cap. 291 aéreas; cirurgia em via aérea
domiciliar ) superior (p. ex.,
uvulopalatofaringoplastia);
dispositivos dentários; perda de peso
Cataplexia, alucinações hipnagógicas, paralisia Polissonografia com Narcolepsia Estimulantes (p. ex., modafinila,
do sono teste de latências metilfenidato); antidepressivos
múltiplas do sono supressores do sono REM (p. ex.,
venlafaxina); oxibato de sódio
Pernas inquietas, movimentos de chute durante o Avaliação de distúrbio Síndrome das Tratamento do distúrbio
sono clínico predisponente pernas inquietas predisponente; agonistas da
(p. ex., deficiência de com ou sem dopamina (p. ex., pramipexol,
ferro ou insuficiência movimentos ropinirol); gabapentina; opioides
renal) periódicos dos
membros
Medicamentos sedativos, abstinência de Anamnese e exame Sonolência Mudar medicamentos, tratar a
estimulantes, traumatismo craniano, inflamação físico completos, causada por condição subjacente, considerar
sistêmica, doença de Parkinson e outros incluindo exame fármaco ou estimulantes
distúrbios neurodegenerativos, hipotireoidismo, neurológico detalhado condição clínica
encefalopatia
Para determinar a extensão e o impacto da sonolência no funcionamento
diário, é útil questionar os pacientes sobre a ocorrência de episódios de sono
durante as horas normais de alerta, tanto de maneira intencional como não
intencional. As áreas específicas que devem ser investigadas são a ocorrência de
episódios involuntários de sono enquanto o paciente estava dirigindo ou
executando outras atividades relacionadas com a segurança, sonolência no
trabalho ou na escola (e a relação dela com o desempenho profissional ou
escolar) e o efeito da sonolência na vida social e familiar. Questionários
padronizados como a Escala Epworth de Sonolênica (Epworth Sleepiness Scale)
costumam ser usados clinicamente para medir a sonolência.
Obter uma história de sonolência diurna costuma ser adequado, mas a
quantificação objetiva é algumas vezes necessária. O TLMS mede a propensão
do paciente para dormir em condições calmas. Uma polissonografia noturna
deve preceder o TLMS para estabelecer que o paciente tenha tido uma
quantidade adequada de sono noturno de boa qualidade. O TLMS consiste em
cinco oportunidades de cochilos de 20 minutos a cada 2 horas ao longo do dia. O
paciente é orientado a tentar dormir, e os principais desfechos clínicos são a
latência média do sono e a ocorrência de sono REM durante os cochilos. Uma
latência média nos cochilos de menos de 8 minutos é considerada evidência
objetiva de sonolência diurna excessiva. O sono REM ocorre normalmente
apenas durante o episódio noturno de sono e a ocorrência de sono REM em dois
ou mais dos cochilos do TLMS sustenta o diagnóstico de narcolepsia.
Para a segurança da pessoa e do público em geral, os médicos têm a
responsabilidade de ajudar a manejar questões que envolvem o ato de dirigir em
pacientes com sonolência. As exigências legais de notificação variam em cada
estado, mas, no mínimo, os médicos devem informar aos pacientes sonolentos
sobre seu risco aumentado de sofrer um acidente e aconselhar tais pacientes a
não dirigir um veículo automotivo até que a sonolência tenha sido tratada de
forma efetiva. Essa discussão é especialmente importante para motoristas
profissionais e deve ser documentada no prontuário do paciente.

SONO INSUFICIENTE
O sono insuficiente é provavelmente a causa mais comum de sonolência diurna
excessiva. O adulto médio necessita de 7,5 a 8 horas de sono, mas, durante a
semana, o adulto médio norte-americano tem apenas 6,75 horas de sono. Apenas
30% da população adulta norte-americana relata obter de forma consistente sono
suficiente. O sono insuficiente é especialmente comum em pessoas que
trabalham por turno, em pessoas que trabalham em múltiplos empregos e em
pessoas de grupos socioeconômicos mais baixos. A maioria dos adolescentes
necessita de ≥ 9 horas de sono, mas muitos não conseguem sono suficiente
devido a atrasos na fase circadiana, mais pressões sociais para permanecerem
acordados até tarde, juntamente com horários escolares pela manhã cedo. Expor-
se à luz tarde da noite, assistir televisão, jogar videogame, acessar as mídias
sociais, e usar smartphones costumam atrasar a hora de dormir apesar dos
horários fixos para acordar pela manhã para trabalhar ou ir para a escola. Como
é típico em qualquer distúrbio que causa sonolência, as pessoas com sono
cronicamente insuficiente podem se sentir desatentas, irritáveis, desmotivadas e
deprimidas, apresentando dificuldades na escola, no trabalho e na direção. As
pessoas diferem quanto à quantidade ideal de sono, podendo ser útil perguntar
quanto sono o paciente obtém em uma calma viagem de férias quando pode
dormir sem restrições. Alguns pacientes podem pensar que uma pequena
quantidade de sono é normal ou vantajosa e podem não perceber sua necessidade
biológica de mais sono, especialmente se café ou outros estimulantes
mascararem a sonolência. Um diário de sono de 2 semanas documentando os
horários de sono e o nível diário de alerta é útil para o diagnóstico e fornece
informações úteis para o paciente. Estender o sono até a quantidade ideal de
forma regular pode melhorar a sonolência e outros sintomas. Como em qualquer
mudança de estilo de vida, a extensão do sono exige comprometimento e
ajustamentos, mas a melhora no estado de alerta diurno faz valer a pena essa
mudança.

SÍNDROMES DE APNEIA DO SONO


A disfunção respiratória durante o sono é uma causa grave e comum de
sonolência excessiva durante o dia, bem como de alterações do sono noturno.
Pelo menos 24% dos homens de meia-idade e 9% das mulheres de meia-idade
nos Estados Unidos apresentam redução ou cessação da respiração dúzias de
vezes ou mais todas as noites durante o sono, com 9% dos homens e 4% das
mulheres fazendo isso mais de cem vezes por noite. Tais episódios podem advir
de obstrução das vias aéreas (apneia obstrutiva do sono), ausência de esforço
respiratório (apneia central do sono) ou uma combinação desses fatores. A
incapacidade de reconhecer e tratar esses distúrbios adequadamente pode
acarretar comprometimento da vigília diurna, aumento do risco de acidentes com
veículos motorizados relacionados com o sono, depressão, hipertensão, infarto
agudo do miocárdio, diabetes, AVC e aumento de mortalidade. A apneia do sono
é particularmente prevalente em homens com excesso de peso e nos idosos;
porém, estima-se que permaneça sem diagnóstico na maioria dos indivíduos
acometidos. Isso é lamentável, uma vez que existem muitas terapias eficazes. No
Capítulo 291, há uma revisão abrangente do diagnóstico e tratamento de
pacientes com apneia do sono.

NARCOLEPSIA
A narcolepsia se caracteriza por dificuldade em sustentar a vigília, má regulação
do sono REM e sono noturno perturbado. Todos os pacientes com narcolepsia
têm sonolência diurna excessiva. Essa sonolência costuma ser moderada a
intensa e, ao contrário dos pacientes com sono interrompido (p. ex., apneia do
sono), as pessoas com narcolepsia costumam se sentir bem descansadas ao
acordar e se sentem cansadas durante a maior parte do dia. Além disso, elas
costumam apresentar sintomas relacionados com uma intrusão de características
do sono REM. O sono REM se caracteriza por sonhos e paralisia muscular, e as
pessoas com narcolepsia podem apresentar: (1) fraqueza muscular súbita sem
perda de consciência, a qual costuma ser desencadeada por emoções fortes
(cataplexia; ver Vídeo 27-1); (2) alucinações tipo sonhos no início do sono
(alucinações hipnagógicas) ou ao despertar (alucinações hipnopômpicas); e (3)
paralisia muscular ao despertar (paralisia do sono). Na cataplexia grave, uma
pessoa pode estar rindo de uma piada e subitamente cair no chão, imóvel, mas
acordada, por 1 a 2 minutos. Com episódios mais leves, os pacientes podem ter
fraqueza da face ou pescoço. A narcolepsia é uma das causas mais comuns de
sonolência crônica e afeta 1 em cada 2 mil pessoas nos Estados Unidos.
Geralmente começa entre 10 e 20 anos de idade; após estabelecida, a doença
persiste por toda a vida.
A narcolepsia é causada por perda dos neurônios hipotalâmicos que
produzem os neuropeptídeos orexinas (também chamados de hipocretinas).
Pesquisas em camundongos e cães primeiramente demonstraram que uma perda
da sinalização de orexina devido a mutações nulas dos neuropeptídeos orexinas
ou de um dos receptores de orexinas causa sonolência e cataplexia quase
idênticas àquelas vistas em pessoas com narcolepsia. Embora as mutações
genéticas raramente causem narcolepsia em humanos, pesquisadores
descobriram que pacientes com narcolepsia com cataplexia (atualmente chamada
de narcolepsia tipo 1) têm níveis muito baixos ou indetectáveis de orexinas em
seu líquido cerebrospinal, e estudos de autópsias mostraram perda quase
completa de neurônios produtores de orexinas no hipotálamo. As orexinas
normalmente promovem episódios longos de vigília e suprimem o sono REM, e,
assim, a perda da sinalização de orexina resulta em invasões frequentes de sono
durante o habitual período de vigília, com sono REM e fragmentos de sono REM
em qualquer momento do dia (Fig. 27-3). Os pacientes com narcolepsia mas sem
cataplexia (narcolepsia tipo 2) geralmente têm níveis normais de orexinas e
podem ter outras causas ainda não caracterizadas para sua sonolência diurna
excessiva.

FIGURA 27-3 Registros de polissonografia de uma pessoa saudável e de um paciente com


narcolepsia. A pessoa saudável tem um período longo de sono NREM antes de entrar no sono REM, mas a
pessoa com narcolepsia entra em sono REM rapidamente à noite e tem sono moderadamente fragmentado.
Durante o dia, a pessoa saudável permanece acordada das 8 horas da manhã até a meia-noite, mas o
paciente com narcolepsia fica sonolento com frequência, com muitos cochilos diurnos que incluem sono
REM.

Evidências extensas sugerem que um processo autoimune provavelmente


cause essa perda seletiva dos neurônios produtores de orexina. Determinados
antígenos leucocitários humanos (HLAs) podem aumentar o risco de distúrbios
autoimunes (Cap. 343), e a narcolepsia tem a maior associação conhecida com
HLA. O HLA DQB1*06:02 é encontrado em mais de 90% das pessoas com
narcolepsia tipo 1, enquanto ele ocorre em apenas 12 a 25% da população geral.
Os pesquisadores formularam a hipótese de que, em pessoas com DQB1*06:02,
uma resposta autoimune contra influenza, Streptococcus ou outras infecções
também pode danificar os neurônios produtores de orexinas por meio de um
processo de mimetismo molecular. Esse mecanismo pode ser responsável pelo
aumento de 8 a 12 vezes em casos novos de narcolepsia entre crianças na Europa
que receberam uma determinada marca de vacina contra influenza A H1N1. A
lesão cerebral traumática também pode danificar os neurônios contendo
orexinas, induzindo a narcolepsia tipo 2.
Em raras situações, a narcolepsia pode ocorrer com distúrbios neurológicos
como tumores ou AVCs que danificam diretamente os neurônios produtores de
orexinas no hipotálamo ou suas projeções.

Diagnóstico A narcolepsia é mais comumente diagnosticada por história de


sonolência crônica mais cataplexia ou outros sintomas. Muitos distúrbios podem
causar sensação de fraqueza, mas, na cataplexia verdadeira, os pacientes
descreverão uma definida fraqueza funcional (p. ex., fala arrastada, deixar cair
um copo, despencar em uma cadeira) com gatilhos emocionais consistentes,
como rir de uma ótima piada, ter uma agradável surpresa ou sentir raiva intensa.
A cataplexia ocorre em cerca de metade de todos os pacientes com narcolepsia e
é muito útil para o diagnóstico, pois não ocorre em quase nenhuma outra doença.
Por outro lado, episódios ocasionais de alucinações hipnagógicas e paralisias do
sono ocorrem em cerca de 20% da população geral e esses sintomas não são
específicos para o diagnóstico.
Quando há suspeita de narcolepsia, o diagnóstico deve ser confirmado com
uma polissonografia acompanhada no dia seguinte de um TLMS. A
polissonografia ajuda a descartar outras causas possíveis de sonolência, como
apneia do sono, e estabelece que o paciente não teve privação do sono na noite
anterior, e o TLMS fornece evidências objetivas essenciais de sonolência e
desregulação do sono REM. Ao longo dos cinco cochilos do TLMS, a maioria
dos pacientes com narcolepsia adormecerá em menos de 8 minutos em média, e
apresentarão episódios de sono REM em pelo menos dois dos cochilos. A
regulação anormal do sono REM também se manifesta pelo aparecimento de
sono REM dentro de 15 minutos do início do sono à noite, o que é raro em
pessoas saudáveis dormindo em seu horário de sono habitual. Os estimulantes
devem ser suspensos 1 semana antes do TLMS, e os antidepressivos devem ser
suspensos 3 semanas antes, pois esses medicamentos podem afetar o TLMS.
Além disso, os pacientes devem ser estimulados a obter uma quantidade
adequada de sono todas as noites durante a semana anterior ao teste para
eliminar qualquer efeito de sono insuficiente.

TRATAMENTO
Narcolepsia
O tratamento da narcolepsia é sintomático. A maioria dos pacientes com narcolepsia se sente mais alerta
após dormir e devem ser estimulados a dormir por tempo adequado todas as noites e tirar um cochilo de 15
a 20 minutos após o almoço. Esse cochilo pode ser suficiente para alguns pacientes com narcolepsia leve,
mas a maioria também necessita de tratamento com medicamentos promotores da vigília. A modafinila é
usada com muita frequência por ter menos efeitos colaterais que as anfetaminas e ter uma meia-vida
relativamente longa; para a maioria dos pacientes, 200 a 400 mg todas as manhãs é muito efetivo. O
metilfenidato (10-20 mg, 2×/dia) ou a dextroanfetamina (10 mg, 2×/dia) costumam ser efetivos, mas os
efeitos colaterais simpaticomiméticos, a ansiedade e o potencial para abuso podem ser problemáticos. Esses
medicamentos estão disponíveis em formulações de liberação lenta, estendendo sua duração de ação e
permitindo uma posologia mais fácil. O oxibato de sódio (gama-hidroxibutirato) é administrado duas vezes
a cada noite e costuma ser muito útil para melhorar o estado de vigília, mas pode produzir sedação
excessiva, náuseas e confusão.
A cataplexia costuma melhorar muito com antidepressivos que aumentem o tônus noradrenérgico e
serotonérgico, pois esses neurotransmissores suprimem fortemente o sono REM e a cataplexia. A
venlafaxina (37,5-150 mg todas as manhãs) e a fluoxetina (10-40 mg todas as manhãs) costumam ser muito
efetivas. Os antidepressivos tricíclicos, como a protriptilina (10-40 mg/dia) ou a clomipramina (25-50
mg/dia) são potentes supressores da cataplexia, mas seus efeitos anticolinérgicos, incluindo sedação e boca
seca, os tornam menos atraentes.1 O oxibato de sódio, administrado ao deitar e 3 a 4 horas mais tarde,
também é muito útil para reduzir a cataplexia.

AVALIAÇÃO DA INSÔNIA
A insônia é a queixa de sono ruim e costuma se apresentar como dificuldade de
iniciar ou manter o sono. As pessoas com insônia estão insatisfeitas com seu
sono e sentem que isso prejudica sua capacidade de funcionar bem no trabalho,
na escola e em situações sociais. As pessoas afetadas costumam experimentar
fadiga, humor deprimido, irritabilidade, mal-estar e déficit cognitivo.
A insônia crônica, com duração de mais de 3 meses, ocorre em cerca de
10% dos adultos e é mais comum em mulheres, idosos, pessoas de condições
socioeconômicas mais baixas e pessoas com distúrbios clínicos, psiquiátricos e
abuso de substâncias. A insônia aguda ou de curta duração afeta mais de 30%
dos adultos e costuma ser precipitada por eventos vitais estressantes, como uma
doença ou perda importante, mudança de ocupação, medicamentos e abuso de
substâncias. Se a insônia aguda desencadear comportamentos maladaptativos,
como aumento da exposição noturna à luz, verificação frequente do relógio ou
tentativas de dormir mais em cochilos, isso pode levar à insônia crônica.
A maioria dos casos de insônia começa na idade adulta, mas muitos
pacientes podem ser predispostos e relatam sono facilmente perturbável antes da
insônia, sugerindo que seu sono seja mais leve que o habitual. Estudos clínicos e
modelos animais indicam que a insônia está associada à ativação durante o sono
de áreas cerebrais normalmente ativas apenas durante a vigília. A
polissonografia raramente é usada na avaliação da insônia, e ela geralmente
confirma a impressão subjetiva do paciente de latência longa do sono e
numerosos despertares, mas costuma acrescentar pouca informação nova. Muitos
pacientes com insônia têm atividade rápida (beta) no EEG durante o sono; essa
atividade rápida está presente normalmente apenas durante a vigília, o que pode
explicar porque esses pacientes referem que se sentem acordados a maior parte
da noite. O TLMS raramente é usado na avaliação de insônia, pois, apesar da
sensação de pouca energia, a maioria das pessoas com insônia não pega no sono
facilmente durante o dia e, no TLMS, sua média de latência do sono costuma ser
maior do que o normal.
Muitos fatores contribuem para a insônia, e a obtenção de uma história
cuidadosa é fundamental, de forma que se possam selecionar terapias
direcionadas a esses fatores subjacentes. A avaliação deve se concentrar na
identificação de fatores predisponentes, precipitantes e de perpetuação.

Fatores psicofisiológicos Muitos pacientes com insônia têm expectativas


negativas e despertar condicionado que interferem no sono. Essas pessoas
podem se preocupar com sua insônia durante o dia e ter aumento de ansiedade à
medida que se aproxima a hora de dormir se for prevista uma noite de sono ruim.
Ao tentar dormir, elas frequentemente verificam o horário, o que apenas aumenta
a ansiedade e a frustração. Elas podem achar mais fácil dormir em um ambiente
novo em vez de seu quarto, por não haver as associações negativas.

Higiene do sono inadequada Algumas vezes, os pacientes com insônia


desenvolvem comportamentos contraproducentes que contribuem para sua
insônia. Isso pode incluir cochilos durante o dia que reduzem o sono à noite; um
esquema de sono-vigília que rompe seus ritmos circadianos; uso de substâncias
que promovem o estado de alerta (p. ex., cafeína, tabaco) muito perto da hora de
dormir; participação em atividades que causam despertar ou estresse perto da
hora de dormir (p. ex., brigar com um parceiro, envio de mensagens de texto ou
e-mails relacionados ao trabalho na cama, dormir com um smartphone ou tablet
ao lado da cama); e rotineiramente usar o quarto para atividades outras além de
dormir e fazer sexo (p. ex., televisão, trabalho), de maneira que o quarto fica
associado a sensações estimulantes ou estressantes.

Problemas psiquiátricos Cerca de 80% dos pacientes com transtornos


psiquiátricos têm queixas relacionadas ao sono, e cerca de metade de todos os
casos de insônia crônica ocorre em associação a um transtorno psiquiátrico. A
depressão está classicamente associada com despertar precoce, mas ela também
pode interferir com o início e a manutenção do sono. Mania e hipomania podem
atrapalhar o sono e costumam estar associadas a reduções substanciais na
quantidade total de sono. Os transtornos de ansiedade podem levar a correntes de
pensamentos e ruminações que interferem no sono e podem ser muito
problemáticos se a mente do paciente ficar ativada a partir da metade da noite.
Crises de pânico podem ocorrer durante o sono e devem ser diferenciadas de
outras parassonias. A insônia é comum na esquizofrenia e em outras psicoses,
muitas vezes resultando em sono fragmentado, sono NREM menos profundo e,
algumas vezes, reversão do padrão de sono dia/noite.

Medicamentos e drogas de abuso Uma ampla variedade de fármacos


psicoativos pode interferir no sono. A cafeína, que tem uma meia-vida de 6 a 9
horas, pode atrapalhar o sono por até 8 a 14 horas, dependendo da dose,
variações no metabolismo e sensibilidade individual à cafeína. A insônia
também pode resultar do uso de fármacos prescritos muito próximos da hora de
dormir (p. ex., antidepressivos, estimulantes, glicocorticoides, teofilina). Por
outro lado, a abstinência de medicamentos sedativos, como álcool, narcóticos ou
benzodiazepínicos, pode causar insônia. O álcool ingerido logo antes da hora de
dormir pode encurtar a latência do sono, mas ele costuma produzir insônia de
rebote 2 a 3 horas mais tarde à medida que perde seu efeito. Esse mesmo
problema de manutenção do sono pode ocorrer com benzodiazepínicos de curta
duração, como o alprazolam.

Problemas clínicos Muitos problemas clínicos atrapalham o sono. Dor por


distúrbios reumáticos ou neuropatia dolorosa comumente atrapalham o sono.
Alguns pacientes podem dormir mal devido a problemas respiratórios, como
asma, doença pulmonar obstrutiva crônica, fibrose cística, insuficiência cardíaca
congestiva ou doença pulmonar restritiva, e alguns desses distúrbios pioram à
noite no leito devido a variações circadianas na resistência das vias aéreas e
alterações posturais que podem resultar em dispneia noturna. Muitas mulheres
experimentam dificuldade para dormir com as alterações hormonais da
menopausa. O refluxo gastresofágico também é uma causa comum de
dificuldade para dormir.

Distúrbios neurológicos A demência (Cap. 25) costuma estar associada a um


sono ruim, provavelmente devido a uma variedade de fatores, incluindo cochilos
durante o dia, ritmo circadiano alterado e, talvez, um impulso enfraquecido dos
mecanismos cerebrais promotores do sono. De fato, insônia e perambulação
noturna são algumas das causas mais comuns para a institucionalização de
pacientes com demência, pois isso acarreta uma alta carga para os cuidadores.
Por outro lado, em homens idosos cognitivamente intactos, sono fragmentado e
má qualidade do sono estão associados a declínio cognitivo subsequente. Os
pacientes com doença de Parkinson podem dormir mal devido a rigidez,
demência e outros fatores. A insônia familiar fatal é uma condição
neurodegenerativa muito rara causada por mutações no gene da proteína priônica
e, embora a insônia seja um sintoma inicial comum, a maioria dos pacientes se
apresenta com outros sinais neurológicos evidentes, como demência, mioclonias,
disartria ou disfunção autonômica.

TRATAMENTO
Insônia
O tratamento da insônia melhora a qualidade de vida e pode promover a saúde em longo prazo. Com a
melhora do sono, os pacientes costumam relatar menos fadiga diurna, melhora da cognição e mais energia.
O tratamento da insônia também pode melhorar as comorbidades. Por exemplo, o manejo da insônia no
momento do diagnóstico da depressão maior costuma melhorar a resposta aos antidepressivos e reduz o
risco de recaídas. A falta de sono pode aumentar a percepção de dor e uma abordagem semelhante é
justificável no tratamento da dor aguda e crônica.
O plano terapêutico deve ser dirigido a todos os possíveis fatores implicados: estabelecer uma boa
higiene do sono, tratar distúrbios clínicos, usar terapias comportamentais para ansiedade e condicionamento
negativo e usar farmacoterapia e/ou psicoterapia para transtornos psiquiátricos. As terapias
comportamentais devem ser o tratamento de primeira linha, seguidas pelo uso judicioso de medicamentos
promotores do sono se houver necessidade.

TRATAMENTO DE DOENÇA CLÍNICA E PSIQUIÁTRICA


Se a história sugerir que uma doença clínica ou psiquiátrica contribui para a insônia, ela deve ser abordada,
por exemplo, com o tratamento da dor, a melhora da respiração e a troca ou o ajuste de horários de
medicamentos.

MELHORA DA HIGIENE DO SONO


Deve-se atentar para a melhora da higiene do sono e evitar comportamentos contraproducentes e
estimulantes antes de dormir. Os pacientes devem estabelecer um horário regular para dormir e acordar,
mesmo em finais de semana, para ajudar a sincronizar seus ritmos circadianos e padrões de sono. A
quantidade de tempo alocada para o sono não deve ser maior que sua quantidade de sono atual. Nos 30
minutos que antecedem o deitar, os pacientes devem estabelecer uma rotina relaxante que pode incluir um
banho quente, audição de música, meditação ou outras técnicas de relaxamento. O quarto deve estar livre de
computadores, televisão, rádio, smartphones, videogames e tablets. Já na cama, os pacientes devem tentar
não pensar sobre coisas estressantes ou estimulantes, como problemas em relacionamentos ou no trabalho.
Se não conseguirem dormir dentro de 20 minutos, costuma ser útil sair da cama e ler ou escutar música
relaxante sob iluminação mínima como forma de distração de qualquer ansiedade, mas a luz artificial,
incluindo a luz da televisão, telefone celular ou computador, deve ser evitada, pois a própria luz suprime a
secreção de melatonina e é estimulante.
A Tabela 27-2 descreve alguns dos aspectos principais de uma boa higiene do sono para melhorar a
insônia.

TABELA 27-2 ■ Métodos para melhorar a higiene do sono em pacientes com insônia
Comportamentos úteis Comportamentos a serem evitados

Usar a cama apenas para dormir e fazer sexo Evitar comportamentos que interfiram na
• Se não conseguir dormir dentro de 20 min, sair da cama e ler ou fazer outra atividade fisiologia do sono, incluindo:
relaxante com pouca iluminação antes de retornar para a cama • Tirar cochilos, especialmente após as 15
h
• Tentar dormir cedo demais
• Cafeína após o horário do almoço
Fazer da qualidade do sono uma prioridade Nas 2-3 h antes de deitar, evitar:
• Ir para a cama e levantar na mesma hora todos os dias • Alimentação pesada
• Garantir um ambiente relaxante (cama confortável, quarto silencioso e escuro) • Fumo ou álcool
• Exercícios vigorosos
Desenvolver uma rotina consistente na hora de dormir. Por exemplo: Ao tentar dormir, evitar:
• Preparar-se para o sono com 20-30 min de relaxamento (p. ex., música suave, meditação, • Resolver problemas
ioga, leitura agradável) • Pensar nos problemas da vida
• Tomar um banho quente • Recordar eventos do dia

TERAPIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL
A TCC usa uma combinação das técnicas anteriormente citadas mais métodos adicionais para melhorar a
insônia. Um terapeuta treinado pode usar técnicas de psicologia cognitiva para reduzir a preocupação
excessiva em relação ao sono e para reformular crenças erradas sobre a insônia e suas consequências
diurnas. O terapeuta também pode ensinar ao paciente técnicas de relaxamento, como relaxamento muscular
progressivo ou meditação, para reduzir a estimulação, pensamentos intrusivos e ansiedade.

MEDICAMENTOS PARA INSÔNIA


Se a insônia persistir após o tratamento desses fatores predisponentes, frequentemente institui-se a terapia
farmacológica para uso diário ou intermitente. Vários sedativos podem melhorar o sono.
Os anti-histamínicos, como a difenidramina, são os ingredientes ativos primários na maioria dos
remédios para dormir vendidos sem receita médica. Eles podem ser benéficos quando usados de forma
intermitente, mas podem produzir rápida tolerância e efeitos colaterais anticolinérgicos, como boca seca e
constipação, que limitam seu uso, especialmente em idosos.
Os agonistas dos receptores dos benzodiazepínicos (ARBz) são eficazes e bem tolerados para insônia.
Os ARBz se ligam ao receptor GABAA e potencializam a resposta pós-sináptica ao GABA. Os receptores
GABAA são encontrados por todo o cérebro, e os ARBz podem reduzir globalmente a atividade neural e
aumentar a atividade de vias específicas GABAérgicas promotoras do sono. Os ARBz clássicos incluem
lorazepam, triazolam e clonazepam, enquanto os agentes mais novos, como zolpidem e zaleplona, têm
afinidade mais seletiva pela subunidade α1 do receptor GABAA.
O ARBz específico costuma ser escolhido com base na duração desejada da ação. Os agentes dessa
família mais comumente prescritos são a zaleplona (5-20 mg), com meia-vida de 1 a 2 horas; o zolpidem (5-
10 mg) e o triazolam (0,125-0,25 mg), com meias-vidas de 2 a 4 horas; a eszopiclona (1-3 mg), com meia-
vida de 5 a 8 horas; e o temazepam (15-30 mg), com meia-vida de 8 a 20 horas. Em geral, os efeitos
colaterais são mínimos se a dose for mantida baixa e a concentração sérica for reduzindo durante as horas
de vigília (por meio do uso de um agente eficaz de ação mais curta possível). Para a insônia crônica,
recomenda-se o uso intermitente, a menos que as consequências da insônia não tratada excedam as
preocupações com o uso crônico.
Os antidepressivos heterocíclicos (trazodona, amitriptilina2 e doxepina) são as alternativas aos ARBz
mais comumente prescritas devido à sua ausência de potencial de abuso e ao menor custo. A trazodona (25-
100 mg) é mais comumente usada que os antidepressivos tricíclicos, pois tem meia-vida muito mais curta
(5-9 horas) e menor atividade anticolinérgica.
O antagonista do receptor de orexina suvorexant (10–20 mg) também pode melhorar a insônia ao
bloquear os efeitos promotores de vigília dos neuropeptídeos orexinas. Ele tem meia-vida longa e pode
promover sedação matinal e, por reduzir a sinalização das orexinas, pode raramente promover alucinações
hipnagógicas e paralisia do sono (ver seção de narcolepsia anteriormente).
Os medicamentos para insônia estão atualmente entre os medicamentos mais comumente prescritos,
mas eles devem ser usados com cuidado. Todos os sedativos aumentam o risco de quedas com lesões e
confusão em idosos e, quando necessários, devem ser usados na menor dose efetiva. A sedação matinal
pode interferir na capacidade de dirigir e no discernimento, devendo-se, ao se selecionar um fármaco,
considerar a sua duração de ação. Os benzodiazepínicos têm risco de adição e abuso, especialmente em
pacientes com história de abuso de álcool e sedativos. Em pacientes com depressão, todos os sedativos
podem piorar a doença. Como o álcool, alguns medicamentos promotores de sono podem piorar a apneia do
sono. Os sedativos também podem produzir comportamentos complexos como sonambulismo e comer à
noite, embora isso pareça ser mais provável com doses maiores.

SÍNDROME DAS PERNAS INQUIETAS


Os pacientes com a síndrome das pernas inquietas (SPI) relatam uma urgência
irresistível para mover as pernas. Muitos pacientes relatam uma sensação de
arrepio ou formigamento ou uma dor profunda e desconfortável nas coxas ou
panturrilhas, e aqueles com SPI mais intensa podem ter desconforto também nos
braços. Na maioria dos pacientes com SPI, essas disestesias e inquietações são
muito piores ao entardecer e na primeira metade da noite. Os sintomas aparecem
com a inatividade e podem fazer o ato de ficar sentado em uma viagem de avião
ou para assistir um filme ser uma experiência desagradável. As sensações são
temporariamente aliviadas pelo movimento, alongamento ou massagem. Esse
desconforto noturno geralmente interfere no sono, e os pacientes podem relatar a
sonolência diurna como consequência. A SPI é muito comum, afetando 5 a 10%
dos adultos e sendo mais comum em mulheres e em idosos.
Diversos fatores podem causar a SPI. A deficiência de ferro é a causa
tratável mais comum, e a reposição de ferro deve ser considerada se o nível de
ferritina for menor que 75 ng/mL. A SPI também pode ocorrer com neuropatias
periféricas e uremia e pode ser piorada pela gestação, cafeína, álcool,
antidepressivos, lítio, neurolépticos e anti-histamínicos. Fatores genéticos
contribuem para a SPI, e polimorfismos em vários genes (BTBD9, MEIS1,
MAP2K5/LBXCOR e PTPRD) foram ligados à SPI, embora, até o momento, o
mecanismo pelo qual eles causam a SPI permaneça desconhecido. Cerca de um
terço dos pacientes (particularmente aqueles com início do problema em idade
precoce) têm vários familiares acometidos.
A SPI é tratada pela abordagem da causa subjacente, como a deficiência de
ferro, quando presente. Caso contrário, o tratamento é sintomático, e os
agonistas da dopamina ou os ligantes do canal de cálcio alfa-2-delta são usados
com mais frequência. Os agonistas dos receptores de dopamina D2/3, como o
pramipexol (0,25-0,5 mg às 19 horas) ou o ropinirol (0,5-4 mg às 19 horas),
costumam ser bastante efetivos, mas cerca de 25% dos pacientes que usam
agonistas da dopamina desenvolvem potencialização, uma piora da SPI de modo
que os sintomas começam mais cedo e podem passar para outras partes do corpo.
Outros possíveis efeitos colaterais dos agonistas da dopamina incluem náuseas,
sedação matinal e aumentos em comportamentos de recompensa, como jogo e
sexo. Os ligantes do canal de cálcio alfa-2-delta, como a gabapentina (300-600
mg às 19 horas) e a pregabalina (150-450 mg às 19 horas), também podem ser
bastante efetivos; eles não causam potencialização e podem ser especialmente
úteis em pacientes com dor, neuropatia ou ansiedade concomitantes. Os opioides
e benzodiazepínicos também podem ter valor terapêutico. A maioria dos
pacientes com pernas inquietas também apresenta distúrbio dos movimentos
periódicos dos membros (DMPM) durante o sono, embora o inverso não seja o
caso.

DISTÚRBIO DOS MOVIMENTOS PERIÓDICOS DOS MEMBROS


O DMPM envolve torções rítmicas nas pernas que atrapalham o sono. Os
movimentos lembram uma flexão tripla reflexa com extensões do hálux e
dorsiflexão do pé por 0,5 a 5 segundos, as quais recorrem a cada 20 a 40
segundos durante o sono NREM em episódios que duram de minutos a horas. O
DMPM é diagnosticado por polissonografia que inclua registros dos músculos
tibiais anteriores e algumas vezes de outros músculos. O EEG mostra que os
movimentos do DMPM muitas vezes causam leves despertares que atrapalham o
sono e podem causar insônia e sonolência diurna. O DMPM pode ser causado
pelos mesmos fatores que causam a SPI (ver anteriormente), e a frequência dos
movimentos das pernas melhora com os mesmos medicamentos usados para a
SPI, incluindo os agonistas da dopamina. Estudos genéticos recentes
identificaram polimorfismos associados tanto à SPI quanto ao DMPM, sugerindo
que possam ter uma fisiopatologia comum.

PARASSONIAS
Parassonias são comportamentos ou experiências anormais que resultam do sono
ou ocorrem durante esse período. Várias parassonias podem ocorrer durante o
sono NREM, desde despertares confusionais breves até o sonambulismo e o
terror noturno. A queixa principal geralmente está relacionada com o próprio
comportamento, mas as parassonias podem perturbar a continuidade do sono ou
acarretar prejuízos leves na vigília diurna. Duas parassonias principais ocorrem
no sono REM: distúrbio comportamental do sono REM (DCSR) e pesadelos.

Sonambulismo Os pacientes acometidos por esse distúrbio realizam atividades


motoras automáticas que variam desde simples até complexas. As pessoas
podem caminhar, urinar de forma inadequada, comer, sair de casa ou dirigir um
carro com mínima percepção. Um despertar completo pode ser difícil, e alguns
pacientes podem responder à tentativa de despertá-los com agitação e até mesmo
violência. Em geral, é mais seguro levar o paciente de volta para cama, quando,
então, ele costuma voltar a dormir. O sonambulismo surge no estágio N3 do sono
NREM, geralmente nas primeiras horas da noite, e o EEG inicialmente mostra a
atividade cortical lenta do sono NREM profundo mesmo com o paciente se
movimentando. O sonambulismo é mais comum em crianças e adolescentes,
quando o sono NREM é mais abundante. Cerca de 15% das crianças têm
sonambulismo ocasional e isso persiste em cerca de 1% dos adultos. Os
episódios costumam ser isolados, mas são recorrentes em 1 a 6% dos pacientes.
A etiologia é desconhecida, porém tem base familiar em um terço dos casos. O
sonambulismo pode piorar por sono insuficiente, o qual causa subsequentemente
um aumento no sono NREM profundo; álcool; e estresse. Isso deve ser avaliado
quando presentes. Pequenos estudos demonstraram alguma eficácia dos
antidepressivos e benzodiazepínicos; técnicas de relaxamento e hipnose também
podem ser úteis. Os pacientes e seus familiares devem melhorar a segurança da
casa (p. ex., substituir portas de vidro, remover mesas baixas para evitar
tropeços) para minimizar a chance de lesão se ocorrer o sonambulismo.

Terror noturno Esse distúrbio ocorre primariamente em crianças pequenas


durante as primeiras horas de sono durante o estágio N3 do sono NREM. A
criança costuma sentar durante o sono e gritar, exibindo despertar autonômico
com sudorese, taquicardia, pupilas dilatadas e hiperventilação. Pode ser difícil
acordar o paciente, que, ao despertar pela manhã, raramente se lembra do
episódio. O tratamento consiste na tranquilização dos pais de que a condição é
autolimitada e benigna e, como o sonambulismo, pode melhorar evitando-se a
insuficiência de sono.

Enurese noturna A exemplo do sonambulismo e dos terrores noturnos, a


enurese é outra parassonia que acontece durante o sono em pacientes jovens.
Antes dos 5 ou 6 anos de idade, a enurese noturna deve ser considerada um
aspecto normal do desenvolvimento. O distúrbio costuma melhorar
espontaneamente até a puberdade, persiste em 1 a 3% dos adolescentes e é raro
na idade adulta. O tratamento consiste em exercícios de treinamento vesical e
terapia comportamental. A farmacoterapia sintomática geralmente é realizada
com desmopressina (0,2 mg ao deitar), cloridrato de oxibutinina (5 mg ao deitar)
ou imipramina (10-25 mg ao deitar). Causas importantes de enurese noturna em
pacientes previamente continentes por 6 a 12 meses incluem infecções ou
malformações do trato urinário, lesões da cauda equina, transtornos emocionais,
epilepsia, apneia do sono e determinados medicamentos.

Bruxismo noturno Bruxismo é um ranger de dentes involuntário e vigoroso


durante o sono, que afeta 10 a 20% da população. O paciente não costuma
perceber o problema. A idade de início típica é dos 17 a 20 anos, e costuma
haver remissão espontânea aos 40 anos. Em muitos casos, o diagnóstico é
firmado durante um exame odontológico, o dano aos dentes é mínimo e não há
necessidade de tratamento. Nos casos mais graves, o tratamento com protetor
bucal é necessário para evitar a lesão dos dentes. O controle do estresse,
benzodiazepínicos e biofeedback podem ajudar quando o bruxismo é uma
manifestação de estresse psicológico.

Distúrbio comportamental do sono REM (DCSR) O DCSR (ver Vídeo 27-2)


é uma forma distinta das outras parassonias, pois ocorre durante o sono REM. O
paciente ou o parceiro de cama geralmente relata comportamento agitado ou
violento durante o sono e, ao despertar, o paciente geralmente relata um sonho
que acompanhou os movimentos. Durante o sono REM normal, quase todos os
músculos esqueléticos não respiratórios estão paralisados, mas, nos pacientes
com DCSR, ocorrem movimentos dramáticos dos membros, como socos ou
pontapés com duração de segundos a minutos durante o sono REM, não sendo
incomum que o paciente ou parceiro saiam machucados.
A prevalência de DCSR aumenta com a idade, afetando cerca de 2% dos
adultos com idade > 70 anos, e é cerca de duas vezes mais comum em homens.
A maioria já tem ou irá desenvolver um distúrbio neurodegenerativo. Dentro de
12 anos do início da doença, metade dos pacientes com DCSR desenvolvem uma
sinucleinopatia como doença de Parkinson (Cap. 427) ou demência de corpos de
Lewy (Cap. 426), ou, algumas vezes, a atrofia de múltiplos sistemas (Cap. 432),
e mais de 90% desenvolvem uma sinucleinopatia depois de 25 anos. O DCSR
pode ocorrer em pacientes que usam antidepressivos, e, em alguns casos, esses
medicamentos podem desmascarar esse indicador precoce de neurodegeneração.
É provável que as sinucleinopatias causem perda neuronal em regiões do tronco
encefálico que regulam a atonia muscular durante o sono REM, e a perda desses
neurônios permite os movimentos durante o sono REM. O DCSR também ocorre
em cerca de 30% dos pacientes com narcolepsia, mas a causa subjacente parece
ser diferente, pois eles não parecem ter risco aumentado de distúrbio
neurodegenerativo.
Muitos pacientes com DCSR têm melhoras sustentadas com clonazepam
(0,5-2,0 mg ao deitar).3 A melatonina em doses de até 9 mg por noite também
pode evitar os ataques.

DISTÚRBIOS DO RITMO CIRCADIANO DO SONO


Um subgrupo dos pacientes que se apresentam com insônia ou hipersonia pode
ter um distúrbio da regulação do sono, em vez da geração do sono. Os
distúrbios da regulação do sono podem ser orgânicos (i.e., decorrentes de uma
anormalidade intrínseca do[s] marca-passo[s] circadiano[s]) ou
ambientais/comportamentais (i.e., decorrentes de comprometimento da
exposição aos estímulos sincronizadores do ambiente). As terapias efetivas
visam reajustar o ritmo circadiano de propensão ao sono a uma fase adequada.

Distúrbio de atraso de fase do sono O DAtFS se caracteriza por: (1) horários


do início do sono e do despertar persistentemente mais tardios que o desejado,
(2) períodos de sono efetivos quase sempre nas mesmas horas do dia e (3) se a
polissonografia conduzida no horário de sono atrasado habitual, seu resultado é
essencialmente normal, exceto pelo início tardio do sono. Os pacientes com
DAtFS exibem fase do ritmo circadiano endógeno anormalmente retardada, o
que pode ser avaliado medindo-se o início da secreção de melatonina no sangue
ou saliva; isso é mais bem feito em ambiente com pouca luz, pois a luz suprime
a secreção de melatonina. Nos pacientes com DAtFS, o início da secreção de
melatonina em luz tênue (DLMO; dim-light melatonin onset) ocorre mais tarde
que o normal ao anoitecer, que é entre cerca de 20 a 21 horas (i.e., cerca de 1-2
horas antes do horário habitual de dormir). Os pacientes tendem a ser adultos
jovens. A fase circadiana atrasada pode dever-se a: (1) um período intrínseco
anormalmente longo, determinado geneticamente, do marca-passo circadiano
endógeno; (2) uma redução da capacidade do marca-passo de antecipar a fase;
(3) uma taxa mais lenta de impulso de sono homeostático durante a vigília; ou
(4) um horário prévio de sono e vigília irregular, caracterizado por noites
frequentes durante as quais o paciente preferiu ficar acordado e exposto à luz
artificial até muito tarde (por motivos pessoais, sociais, escolares ou
profissionais). Na maioria dos casos, é difícil diferenciar entre esses fatores, pois
os pacientes com atraso da fase circadiana por causa comportamental ou
biológica podem exibir um atraso semelhante na fase circadiana no DLMO, e
ambos os fatores dificultam o sono na hora desejada. O início tardio da secreção
de melatonina em luz tênue pode ajudar a diferenciar DAtFS de outras formas de
insônia por dificuldade de iniciar o sono. O DAtFS é um distúrbio crônico que
pode persistir por vários anos, e não responde às tentativas de restabelecer os
horários normais de dormir. Os métodos de tratamento que envolvem a
fototerapia com luz azulada durante as horas da manhã e/ou a administração de
melatonina no início da noite são promissores nesses pacientes, porém a taxa de
recidiva é alta.

Distúrbio de avanço de fase do sono O DAvFS é o inverso do DAtFS. Mais


comumente, essa síndrome ocorre em pessoas mais velhas, 15% das quais
relatam que não conseguem dormir depois das 5 horas da manhã, com o dobro
desse número se queixando de que acordam cedo demais pelo menos várias
vezes por semana. Os pacientes com DAvFS ficam sonolentos no início da noite,
mesmo em situações sociais. O ciclo de sono-vigília em pacientes com DAvFS
pode interferir em uma vida social normal. Os pacientes com distúrbios do ritmo
circadiano do sono podem ser diferenciados daqueles com despertar precoce por
insônia, pois os pacientes com DAvFS mostram início precoce da secreção de
melatonina com luz tênue.
Além do DAvFS relacionado com a idade, também se descreveu uma
variante familiar de início precoce. Em duas famílias com DAvFS hereditária
com padrão autossômico dominante, a síndrome foi causada por mutações
missense em um componente do relógio circadiano (na caseína-cinase ligada ao
domínio de PER2 em uma família e na caseína-cinase I delta na outra) que
encurtou o período circadiano. Os pacientes com DAvFS podem beneficiar-se da
fototerapia com luz forte e/ou azulada durante as primeiras horas da noite, que
tem como objetivo reajustar o marca-passo circadiano para uma hora mais tardia.
Distúrbio do ritmo de sono-vigília não 24 horas Pode ocorrer o distúrbio do
ritmo de sono-vigília não 24 horas (DRSVN24) mais comumente quando o
estímulo sincronizador primário (i.e., o ciclo de claridade e escuridão) do
ambiente para o marca-passo é perdido (como em muitas pessoas cegas que não
percebem a luz) e quando a capacidade máxima de antecipar a fase do sono pelo
marca-passo circadiano em resposta a indicadores não fóticos não consegue
acomodar a diferença entre o dia geofísico de 24 horas e o período intrínseco do
marca-passo do paciente, resultando em perda de ajustamento ao dia de 24 horas.
O sono de muitas pessoas cegas com DRSVN24 está restrito às horas noturnas
devido a demandas sociais ou ocupacionais. Apesar dessa programação regular
de sono-vigília, os pacientes afetados com DRSVN24 são incapazes de manter
uma relação de fase estável entre o marca-passo circadiano interno e o dia de 24
horas. Assim, a maioria dos pacientes cegos apresenta períodos de insônia.
Quando os ritmos circadianos endógenos do indivíduo cego estão defasados com
relação ao ambiente local, a insônia noturna acompanha-se de sonolência diurna
excessiva. Em contrapartida, quando os ritmos endógenos desses mesmos
pacientes estão em fase com o ambiente local, os sintomas remitem. O intervalo
entre as fases sintomáticas podem durar de várias semanas a vários meses nos
pacientes cegos com DRSVN24, dependendo do período do ritmo subjacente
desajustado e do dia de 24 horas. A administração noturna de melatonina em
dose baixa (0,5 mg) pode melhorar o sono e, em alguns casos, induzir a
sincronização do marca-passo circadiano. Em pacientes que enxergam, o
DRSVN24 costuma ser causado por exposição autosselecionada a luz artificial
que inadvertidamente interfere no marca-passo circadiano para uma
programação de > 24 horas, e essas pessoas apresentam padrão crescente de
retardos suscessivos no momento do sono, progredindo dentro e fora de fase
com o horário local – uma apresentação clínica que raramente é vista em pessoas
cegas com DRSVN24.

Distúrbio do trabalho em turnos Nos Estados Unidos, mais de 7 milhões de


pessoas trabalham regularmente à noite, seja em esquema fixo ou de rodízio.
Muitas outras começam a fazer o trajeto até o trabalho ou a escola entre 4 e 7
horas da manhã, o que às vezes lhes exige viajar e trabalhar durante períodos do
dia em que estariam dormindo. Além disso, todas as semanas, milhões de
trabalhadores e estudantes “diurnos” escolhem permanecer acordados ou acordar
muito cedo pela manhã para trabalhar ou estudar e finalizar metas do trabalho ou
da escola, dirigir longas distâncias, competir em eventos esportivos ou participar
de atividades recreacionais. Tais horários podem resultar em perda de sono e
desalinhamento dos ritmos circadianos em relação ao ciclo de sono-vigília.
O sistema de ajuste circadiano geralmente não consegue se adaptar com
sucesso aos horários invertidos necessários para o trabalho noturno ou o avanço
de fase necessário devido ao início das atividades mais cedo pela manhã (4-7
horas da manhã). Isso leva a desajustes entre o horário desejado de trabalho-
repouso e os impulsos do marca-passo e a um sono diurno perturbado na maioria
das pessoas. Horas de trabalho excessivas (por dia ou por semana), tempo livre
insuficiente entre dias consecutivos de trabalho ou escola e viagens
transmeridianas podem ser fatores que contribuem para isso. A deficiência de
sono, o aumento do tempo despendido em vigília antes do trabalho e o
descompasso da fase circadiana diminuem a vivacidade e o desempenho,
aumentam o tempo de reação e elevam o risco de lapsos no desempenho,
acarretando, assim, maiores perigos à segurança entre trabalhadores noturnos e
outros indivíduos com privação do sono. Uma perturbação do sono quase dobra
o risco de acidente fatal no trabalho. Além disso, os trabalhadores noturnos de
longa data têm taxas mais altas de câncer de mama, colorretal e de próstata e
afecções cardíacas, gastrintestinais, metabólicas e reprodutivas. A Organização
Mundial da Saúde acrescentou o trabalho noturno à sua lista de carcinógenos
prováveis.
O início do sono se dá em regiões localizadas do cérebro antes de se
espalhar de forma gradual para todo o cérebro à medida que os limiares
sensitivos aumentam e a consciência é perdida. Um indivíduo sonolento que luta
para permanecer acordado pode tentar realizar tarefas motoras rotineiras e
familiares durante o estado de transição entre a vigília e o estágio N1 mesmo na
ausência de processamento adequado das informações sensitivas provenientes do
ambiente. Tais falhas da atenção relacionadas com o sono duram apenas
segundos, mas sabe-se que, às vezes, persistem por mais tempo. Os operadores
de veículos automotivos que não percebem os sinais de alerta de sonolência
estão especialmente vulneráveis a acidentes relacionados ao sono, pois os
processos do sono podem aumentar os tempos de reação, induzir
comportamentos automáticos e penetrar involuntariamente no cérebro alerta,
causando consequências catastróficas – incluindo 6.400 mortes e 50.000 lesões
incapacitantes anualmente nos Estados Unidos. Por essa razão, um painel de
consenso de especialistas concluiu que as pessoas que dormiram < 2 horas nas
últimas 24 horas não têm condições de dirigir um veículo automotivo. Existe um
aumento acentuado do risco de desastres fatais para o motorista decorrentes do
sono em estradas no início da manhã e no fim da tarde, períodos que coincidem
com os picos bimodais do ritmo diário da tendência ao sono.
Os médicos que trabalham em turnos prolongados, especialmente em
plantões noturnos intermitentes, constituem outro grupo de trabalhadores sob
maior risco de acidentes e de outras consequências adversas pela carência de
sono e pelo descompasso do ritmo circadiano. Escalas recorrentes de médicos
residentes para turnos de trabalho de ≥ 24 horas consecutivas prejudicam o
desempenho psicomotor até um nível comparável ao da intoxicação alcoólica,
duplicam o risco de falhas de atenção entre médicos residentes que trabalham à
noite em unidades de terapia intensiva e aumentam significativamente o risco de
erros médicos graves nessas unidades, incluindo um aumento de cinco vezes no
risco de erros diagnósticos sérios. Cerca de 20% dos médicos residentes em
hospitais relatam ter cometido um erro secundário à fadiga que lesionou um
paciente, e 5% admitem ter cometido um equívoco relacionado com a fadiga que
resultou na morte do paciente. Além disso, o trabalho por > 24 horas
consecutivas aumenta o risco de lesões percutâneas e mais que duplica o risco de
acidentes com veículos motorizados ao dirigir de volta para casa diariamente.
Por essas razões, em 2008, a National Academy of Medicine concluiu que a
prática de escalar médicos residentes para trabalhar mais de 16 horas
consecutivas sem dormir é perigosa, tanto para eles como para seus pacientes.
De 5 a 15% dos indivíduos escalados para trabalhar à noite ou nas primeiras
horas da manhã têm dificuldade muito maior do que a média de permanecer
acordados durante o trabalho noturno e de dormir durante o dia; tais indivíduos
são diagnosticados com distúrbio do trabalho em turnos (DTT) grave e crônico.
Os pacientes com esse distúrbio apresentam um nível de sonolência excessiva
durante o trabalho noturno ou no início da manhã e de insônia durante o sono
diurno que o médico considera clinicamente significativo; o distúrbio está
associado a um maior risco de acidentes relacionados com o sono e a algumas
das enfermidades relacionadas com o trabalho noturno. Os pacientes com DTT
grave e crônico são profundamente sonolentos no trabalho. Na verdade, suas
latências do sono durante o trabalho noturno são em média de apenas 2 minutos,
comparáveis às durações médias diurnas da latência do sono de pacientes com
narcolepsia ou apneia do sono grave.

TRATAMENTO
Distúrbio do trabalho em turnos
A cafeína é usada com frequência para promover a vigília em pessoas que trabalham à noite. Contudo, ela
não consegue adiar o sono indefinidamente, e não protege seus usuários dos lapsos de desempenho
relacionados com o sono. Mudanças de postura, exercício e escolha estratégica de oportunidades para
cochilos às vezes reduzem temporariamente o risco de lapsos de desempenho secundários à fadiga.
Exposição em tempo adequado à luz azulada ou brilhante branca pode diretamente aumentar o estado de
alerta e facilitar a adaptação mais rápida ao trabalho noturno.
A modafinila (200 mg) ou a armodafinila (150 mg), tomados 30 a 60 minutos antes do início de cada
turno noturno de 8 horas, são um tratamento efetivo para a sonolência excessiva durante o trabalho noturno
em pacientes com DTT. Embora o tratamento com esses medicamentos melhore de forma significativa o
desempenho e reduza a propensão ao sono e riscos de lapsos de atenção durante o trabalho noturno, os
pacientes afetados permanecem excessivamente sonolentos.
Os programas de manejo do risco de fadiga para trabalhadores noturnos devem promover a educação
sobre o sono, aumentar o conhecimento dos riscos associados à deficiência de sono e ao trabalho noturno e
fazer o rastreamento para distúrbios do sono comuns. Os horários de trabalho devem ser programados para
minimizar: (1) exposição ao trabalho noturno; (2) frequência de mudanças de turnos; (3) número de noites
consecutivas trabalhadas; e (4) duração das noites trabalhadas.

Síndrome de alteração rápida do fuso horário (jet lag) Todos os anos, mais de
60 milhões de pessoas fazem viagens aéreas entre diferentes fusos horários,
muitas vezes resultando em sonolência excessiva durante o dia, insônia no início
do sono e despertares frequentes, principalmente na segunda metade da noite. A
síndrome é transitória e dura 2 a 14 dias de acordo com o número de fusos
horários atravessados, da direção da viagem e da idade e da capacidade de
adaptação do viajante. Os viajantes que despendem mais tempo ao ar livre em
seu destino parecem se adaptar mais rapidamente que os indivíduos que
permanecem em quartos de hotéis ou salas de conferência, supostamente devido
à exposição à luz intensa (solar). Evitar perda de sono precedente e um cochilo
na tarde anterior à viagem noturna pode reduzir a dificuldade da vigília
prolongada. Estudos laboratoriais sugerem que doses baixas de melatonina
podem melhorar a eficiência do sono, mas apenas se forem tomadas quando as
concentrações endógenas de melatonina estiverem baixas (i.e., durante o horário
diurno biológico).
Além do jet lag associado a viagens em que meridianos são transpostos,
muitos pacientes relatam um padrão de comportamento denominado jet lag
social, em que seus horários de ir dormir e despertar nos fins de semana ou
feriados ocorrem 4 a 8 horas mais tarde que nos dias da semana. Esse
deslocamento temporal recorrente do ciclo de sono e vigília é comum em
adolescentes e adultos jovens, estando associado com retardo da fase circadiana,
insônia no início do sono, sonolência diurna excessiva, baixo desempenho
acadêmico, maior risco de obesidade e sintomas depressivos.

IMPLICAÇÕES CLÍNICAS DA RITMICIDADE CIRCADIANA


Variações circadianas marcantes foram relacionadas com a incidência de infarto
agudo do miocárdio, morte súbita cardíaca e acidente vascular cerebral, as
principais causas de morte nos Estados Unidos. A agregação plaquetária está
elevada nas primeiras horas da manhã, coincidindo com o pico da incidência
desses eventos cardiovasculares. Rupturas circadianas recorrentes combinadas
com deficiência crônica de sono, como ocorre durante o trabalho noturno, estão
associadas a um aumento das concentrações plasmáticas de glicose após uma
refeição devido à secreção inadequada de insulina pelo pâncreas. Os
trabalhadores noturnos com glicemia de jejum elevada têm risco aumentado de
progressão para diabetes. A pressão arterial dos trabalhadores noturnos com
apneia do sono é mais alta que a de trabalhadores diurnos. Uma melhor
compreensão do possível papel da ritmicidade circadiana na desestabilização
aguda de uma enfermidade crônica, como a doença aterosclerótica, poderia
aumentar o entendimento de sua fisiopatologia.
Os procedimentos diagnósticos e terapêuticos também podem ser
influenciados pela hora do dia em que os dados são coletados. Os exemplos
incluem a pressão arterial, a temperatura corporal, o teste de supressão com
dexametasona e os níveis plasmáticos de cortisol. O horário de administração da
quimioterapia também parece influenciar o resultado do tratamento. Além disso,
tanto os efeitos tóxicos como a efetividade dos fármacos podem variar ao longo
do dia. Por exemplo, observou-se uma diferença superior a cinco vezes nos
índices de mortalidade após a administração de agentes tóxicos a animais de
laboratório em diferentes horas do dia. Os agentes anestésicos são
particularmente sensíveis aos efeitos da hora do dia. Por fim, o médico deve
estar atento aos riscos à saúde pública, associados à demanda cada vez maior
imposta pelo funcionamento de 24 horas por dia, 7 dias por semana, de nossa
sociedade ininterrupta.

Agradecimento John W. Winkelman, MD, PhD, e Gary S. Richardson, MD,


foram autores deste capítulo em edições anteriores, e parte desse material foi
mantida aqui.

LEITURAS ADICIONAIS
Ding F et al: Changes in the composition of brain interstitial ions control the
sleep-wake cycle. Science 352:550, 2016.
Ju YE et al: Sleep and Alzheimer disease pathology—A bidirectional
relationship. Nat Rev Neurol 10:115, 2014.
Lee ML et al: High risk of near-crash driving events following night-shift work.
Proc Natl Acad Sci USA 113:176, 2016.
Lim AS et al: Sleep is related to neuron numbers in the ventrolateral
preoptic/intermediate nucleus in older adults with and without Alzheimer’s
disease. Brain 137:2847, 2014.
Liu Y et al: Prevalence of healthy sleep duration among adults— United States,
2014. MMWR Morb Mortal Wkly Rep 65:137, 2016.
Riemann D et al: The neurobiology, investigation, and treatment of chronic
insomnia. Lancet Neurol 14:547, 2015.
Scammell TE: Narcolepsy. N Engl J Med 373:2654, 2015.
Scammell TE et al: Neural circuitry of wakefulness and sleep. Neuron 93:747,
2017.
Stothard ER et al: Circadian entrainment to the natural light-dark cycle across
seasons and the weekend. Curr Biol 27:508, 2017.
Xie L et al: Sleep drives metabolite clearance from the adult brain. Science
342:373, 2013.
VÍDEO 27-1 CATAPLEXIA CLÁSSICA Um episódio típico de cataplexia grave. O paciente está rindo
e, então, cai no chão com perda abrupta do tônus muscular. Os registros eletromiográficos (quatro traçados
inferiores à direita) mostram reduções na atividade muscular durante o período de paralisia. O
eletrencefalograma (dois traçados superiores) mostra vigília durante todo o episódio. (Vídeo cortesia de
Giuseppe Plazzi, University of Bologna.)

VÍDEO 27-2 DISTÚRBIO COMPORTAMENTAL DO SONO REM Movimentos agressivos típicos


no distúrbio de comportamento do sono REM. (Vídeo cortesia de Dr. Carlos Schenck, University of
Minnesota Medical School.)

1 Nos Estados Unidos, nenhum antidepressivo foi aprovado pela Food and Drug Administration (FDA) para
pacientes com narcolepsia.
2 A trazodona e a amitriptilina não foram aprovadas pela FDA para tratamento da insônia.
3 Nenhuma medicação foi aprovada pela FDA para tratamento do DCSR.
Seção 4 Distúrbios de olhos, orelhas,
nariz e garganta

28
Doenças oculares
Jonathan C. Horton
O SISTEMA VISUAL HUMANO
O sistema visual é um meio extremamente eficiente de assimilação de
informações ambientais para auxiliar na orientação do comportamento. A visão
começa com a captura de imagens focalizadas pela córnea e pelo cristalino sobre
uma membrana fotossensível na parte posterior do olho denominada retina. A
retina, na verdade, é uma parte do cérebro transferida à periferia para servir de
transdutor para a conversão dos padrões de energia luminosa em sinais
neuronais. A luz é absorvida por pigmentos contidos em dois tipos de
fotorreceptores: os cones e os bastonetes. A retina humana contém 100 milhões
de bastonetes e 5 milhões de cones. Os bastonetes operam com baixa iluminação
(visão escotópica). Os cones funcionam com a luz do dia (visão fotópica). O
sistema de cones é especializado na percepção das cores e na alta resolução
espacial. A maioria dos cones fica dentro da mácula, a parte da retina
responsável pelos 10° centrais do campo visual. No centro da mácula, há uma
pequena fosseta denominada fóvea, preenchida exclusivamente por cones, em
que a acuidade visual é máxima.
Os fotorreceptores se hiperpolarizam quando expostos à luz, ativando as
células bipolares, amácrinas e horizontais na camada nuclear interna. Esse
complexo circuito processa os sinais dos fotorreceptores, e os sinais assim
produzidos convergem para uma via final comum: as células ganglionares, que
traduzem a imagem final incidente sobre a retina em uma sequência de
potenciais de ação cuja intensidade varia continuamente. Esses sinais se
propagam pela via óptica primária até os centros visuais do cérebro. Cada retina
tem 1 milhão de células ganglionares. Por isso, cada nervo óptico tem 1 milhão
de fibras.
Os axônios das células ganglionares seguem ao longo da superfície interna
da retina na camada de fibras nervosas, deixam o olho no disco óptico e seguem
através do nervo óptico, quiasma óptico e tratos ópticos até chegarem a seus
destinos dentro do cérebro. A maioria das fibras faz sinapse com células do
corpo geniculado lateral, um ponto de retransmissão localizado no tálamo. As
células do corpo geniculado lateral projetam-se até o córtex visual primário. Essa
via aferente retinogeniculocortical fornece o substrato neural da percepção
visual. Embora o corpo geniculado lateral seja o principal alvo da retina,
diferentes tipos de células ganglionares se dirigem para outros núcleos
subcorticais, responsáveis por diversas funções. As células ganglionares que
medeiam a constrição pupilar e os ritmos circadianos são fotossensíveis em
virtude de um pigmento visual original, a melanopsina. As respostas pupilares
são mediadas pelos estímulos aferentes ao núcleo olivar pré-tectal no
mesencéfalo. Os núcleos pré-tectais enviam impulsos aos núcleos de Edinger-
Westphal, que fornecem inervação parassimpática ao esfincter da íris por meio
de um interneurônio no gânglio ciliar. Os ritmos circadianos são coordenados
por uma projeção retiniana ao núcleo supraquiasmático. Os mecanismos de
orientação visual e os movimentos oculares recebem sinais de uma projeção da
retina ao colículo superior. A estabilidade do olhar e os reflexos optocinéticos
são comandados por um conjunto de pequenas regiões da retina denominado
sistema óptico acessório do tronco encefálico.
Os olhos precisam estar constantemente se movimentando dentro da
cavidade orbitária para posicionar e manter alvos de interesse visual sobre a
fóvea. Tal atividade, denominada foveação ou direcionamento do olhar, é
orientada por um elaborado sistema motor eferente. Cada olho é movimentado
por seis músculos extraoculares, inervados por nervos cranianos vindos dos
núcleos oculomotor (III), troclear (IV) e abducente (VI). A atividade desses
núcleos motores oculares é coordenada por mecanismos pontinos e
mesencefálicos, possibilitando acompanhamento suave dos objetos, movimentos
sacádicos, bem como estabilização do olhar durante a movimentação da cabeça e
do corpo. Grandes áreas dos córtex frontal e parieto-occipital controlam esses
centros de movimentos oculares do tronco encefálico por meio do fornecimento
de impulsos supranucleares descendentes.
AVALIAÇÃO CLÍNICA DA FUNÇÃO VISUAL
ESTADO DE REFRAÇÃO
Na abordagem ao paciente com redução da acuidade visual, o primeiro passo é
avaliar se a causa consiste em um erro de refração. Na emetropia, os raios
paralelos com origem no infinito são focalizados exatamente sobre a retina.
Infelizmente, apenas uma minoria da população é emétrope. Na miopia, o globo
ocular é longo demais, e os raios luminosos são focalizados à frente da retina. Os
objetos próximos são vistos com clareza, mas para os objetos distantes é preciso
usar uma lente divergente diante do olho. Na hipermetropia, o globo é curto
demais. Por isso, usa-se uma lente convergente para complementar a capacidade
refrativa do olho. No astigmatismo, a superfície da córnea não é perfeitamente
esférica, o que exige uma lente corretiva cilíndrica. A maioria dos pacientes
escolhe usar óculos ou lentes de contato para neutralizar o erro de refração. Uma
alternativa é alterar permanentemente as propriedades refrativas da córnea
realizando ceratomileuse in situ a laser (LASIK) ou ceratectomia fotorrefrativa
(PRK).
Com o início da meia-idade, surge a presbiopia, situação em que o
cristalino perde a capacidade de aumentar seu poder refrativo para acomodar-se
aos objetos próximos. Para compensar a presbiopia, o paciente emétrope precisa
usar óculos para leitura. Os pacientes que já usavam óculos para longe
geralmente passam a usar lentes bifocais. A única exceção é o paciente míope,
capaz de enxergar bem objetos a curta distância simplesmente tirando os óculos
usados para longe.
Os erros de refração costumam surgir lentamente e se estabilizam após a
adolescência, exceto em situações incomuns. Por exemplo, o início agudo de
diabetes melito pode causar miopia súbita em razão do edema do cristalino
induzido pela hiperglicemia. O teste da visão por meio de um pequeno orifício é
um modo útil de pesquisar com rapidez a presença de erro de refração. Se a
acuidade visual for melhor olhando através do orifício do que a olho nu, o
paciente necessitará de correção visual para obter melhor acuidade visual.

ACUIDADE VISUAL
Utiliza-se a tabela de Snellen para testar a acuidade visual à distância de 6
metros (20 pés). Um método mais conveniente é o cartão de Rosenbaum, uma
versão em escala menor da tabela de Snellen, mantido a 36 centímetros do
paciente (Fig. 28-1). Todos os indivíduos devem ser capazes de ler a linha 6/6
metros (20/20) com cada um dos olhos usando correção visual, se a tiverem. Os
pacientes que necessitam de óculos de leitura para presbiopia terão de usá-los
para que o teste com o cartão de Rosenbaum apresente um resultado preciso. Se
os dois olhos não tiverem acuidade 6/6 (20/20), a deficiência visual deverá ser
explicada. Sendo inferior a 6/240 (20/800), será necessária a medição da
acuidade em termos de contagem de dedos, movimentos da mão, percepção ou
não da luz. O Internal Revenue Service define cegueira legal como acuidade
máxima corrigida no melhor olho igual ou inferior a 6/60 (20/200), ou como
campo visual binocular igual a ou menor que 20°. A perda visual em apenas um
dos olhos não constitui cegueira legal. Nos Estados Unidos, as leis que
regulamentam a direção de veículos variam conforme o Estado, mas a maioria
exige acuidade corrigida de 6/12 (20/40) em pelo menos um dos olhos para que
se tenha permissão sem restrições. Os indivíduos que desenvolvem hemianopsia
homônima não devem conduzir veículos.
FIGURA 28-1 O cartão de Rosenbaum é uma versão em escala reduzida da tabela de Snellen para
testar a acuidade visual para perto. Quando a acuidade visual for registrada, a distância equivalente para
a tabela de Snellen deverá receber uma anotação indicando que a visão foi testada de perto, e não a uma
distância de 6 metros, ou então o sistema numérico de Jaeger deverá ser usado para o registro da acuidade.

PUPILAS
As pupilas devem ser examinadas separadamente, em ambiente pouco iluminado
e com o paciente olhando para um ponto distante. Não há necessidade de
verificar a reação de perto se as pupilas reagirem rapidamente à luz, já que não
há perda isolada da capacidade de constrição (miose) para acomodação. Por isso,
a sigla PIRRLA (pupilas isocóricas, redondas e reativas à luz e à acomodação)
indica desperdício de tempo com a última etapa do exame. Contudo, será
importante testar o reflexo de acomodação se a resposta fotomotora estiver
diminuída ou ausente. A dissociação entre os reflexos fotomotor e de
acomodação ocorre na neurossífilis (pupilas de Argyll-Robertson), em lesões do
mesencéfalo dorsal (síndrome de Parinaud) e após regeneração aberrante
(paralisia do nervo oculomotor, pupila tônica de Adie).
A pupila de um olho incapaz de perceber a luz não responde à estimulação
luminosa direta. Se a retina ou o nervo óptico sofrerem uma lesão parcial, a
reação pupilar direta será mais fraca que a resposta pupilar consensual,
provocada ao iluminar o olho contralateral saudável. O defeito pupilar aferente
relativo (pupila de Marcus Gunn) é pesquisado com o teste da lanterna oscilante
(Fig. 28-2). Trata-se de um sinal extremamente útil para o diagnóstico de neurite
óptica retrobulbar e de outras doenças do nervo óptico nas quais talvez seja o
único sinal objetivo de doença. Na neuropatia óptica bilateral, não se observa
defeito pupilar aferente se os nervos ópticos estiverem igualmente afetados.
FIGURA 28-2 Demonstração de defeito pupilar aferente relativo (pupila de Marcus Gunn) no olho
esquerdo, feita com o paciente olhando fixamente para um objeto distante. A. Com baixa iluminação
no ambiente, as pupilas ficam iguais e relativamente dilatadas. B. A incidência de um feixe de luz no olho
direito provoca forte constrição igual em ambas as pupilas. C. A oscilação da luz da lanterna sobre o olho
esquerdo lesado causa dilatação de ambas as pupilas, embora permaneçam menores que em A. A oscilação
do feixe de luz de volta ao olho direito saudável produz constrição simétrica igual à apresentada em B.
Observe que as pupilas se mantêm simétricas em todas as situações; a lesão na retina/nervo óptico esquerdo
é revelada pela constrição mais fraca em ambas as pupilas em resposta à luz sobre o olho esquerdo em
comparação com a mesma manobra sobre o olho direito. (De P Levatin: Arch Ophthalmol 62:768, 1959.
Copyright © 1959 American Medical Association. Todos os direitos reservados.)

Uma anisocoria discreta, de até 0,5 mm, é bastante comum em pessoas


normais. Se tal diferença não se alterar com variações da iluminação ambiente,
poderá ser feito o diagnóstico de anisocoria essencial ou fisiológica. Uma
anisocoria que aumente sob pouca iluminação indica paresia simpática do
músculo dilatador da íris. A tríade composta por miose, ptose ipsilateral e
anidrose constitui a síndrome de Horner, embora a anidrose nem sempre ocorra.
Essa síndrome pode ser causada por acidentes vasculares do tronco encefálico,
dissecção da carótida e neoplasias que acometam a cadeia simpática. No entanto,
a maioria dos casos é idiopática.
Já a anisocoria que se acentua sob iluminação forte sugere paralisia
parassimpática. Nesse caso, a causa mais comum é a paresia do nervo
oculomotor. Tal diagnóstico poderá ser afastado se os movimentos oculares
forem normais e o paciente não apresentar ptose ou diplopia. Uma dilatação
pupilar aguda (midríase) pode ser causada por lesão no gânglio ciliar dentro da
órbita. Os mecanismos comuns são infecção (herpes-zóster, influenza),
traumatismo (fechado, penetrante ou cirúrgico) e isquemia (diabetes melito,
arterite temporal). Quando há denervação do esfincter da íris, a pupila não
responde bem à luz, mas a resposta à acomodação muitas vezes permanece
relativamente intacta. Quando se remove o estímulo próximo, a pupila afetada
dilata bem mais lentamente que a normal, daí a expressão pupila tônica. Na
síndrome de Adie observa-se pupila tônica, algumas vezes combinada com
reflexos tendíneos reduzidos ou abolidos nos membros inferiores. Supõe-se que
essa doença benigna, mais comum em mulheres jovens saudáveis, represente
uma disautonomia leve. A pupila tônica também está associada com atrofia
sistêmica múltipla, hipoidrose segmentar, diabetes melito e amiloidose. Às
vezes, uma pupila tônica é descoberta por acaso em um indivíduo normal e
assintomático. O diagnóstico é confirmado pingando-se 1 gota de pilocarpina
diluída a 0,125% em cada olho. A hipersensibilidade pós-denervação produzirá
constrição pupilar na pupila tônica, enquanto a pupila normal não responderá. A
dilatação farmacológica após a instilação acidental ou proposital de
anticolinérgicos (atropina, escopolamina) pode causar midríase pupilar. Pupila
de Gardener se refere a midríase induzida pela exposição a alcaloides tropânicos,
contidos em plantas como beladona, trombeteira ou brugmansia. Quando um
agente anticolinérgico é responsável pela dilatação pupilar, a pilocarpina a 1%
não causa constrição.
Medicamentos sistêmicos afetam ambas as pupilas. Elas ficam pequenas
quando se usam narcóticos (morfina, oxicodona) e dilatam-se com
anticolinérgicos (escopolamina). Os agentes parassimpáticos usados para tratar o
glaucoma (pilocarpina) produzem miose. Nos pacientes com anomalias pupilares
sem explicação, o exame com lâmpada de fenda ajuda a descartar traumatismos
cirúrgicos da íris, corpos estranhos ocultos, lesões perfurantes, inflamação
intraocular, aderências (sinéquias), glaucoma de ângulo fechado e ruptura do
esfincter da íris por traumatismo contuso.

MOVIMENTOS E ALINHAMENTO OCULARES


Os movimentos oculares são testados pedindo-se ao paciente que siga com os
dois olhos um objeto móvel, tal como uma lanterna, até os pontos cardeais do
campo visual. Os movimentos oculares normais são suaves, uniformes,
simétricos e percorrem todas as direções sem nistagmo. Avaliam-se os
movimentos sacádicos (movimentos oculares rápidos de refixação) fazendo o
paciente olhar alternadamente para dois pontos estacionários. Os olhos devem se
mover com rapidez e precisão entre os pontos. O alinhamento ocular é avaliado
segurando-se uma lanterna bem em frente ao paciente, a aproximadamente 1
metro de distância. Se os olhos se encontrarem retos, o reflexo da luz na córnea
estará no centro de cada pupila. Para testar o alinhamento dos olhos com maior
precisão, utiliza-se o teste de oclusão (cover test). O paciente é orientado a olhar
fixamente para um ponto distante. Um olho é ocluído com um cartão ou com a
mão, enquanto o outro olho é observado. Se o olho que enxerga desviar a
posição para fixar no alvo, ele estava mal alinhado. Se ele permanecer sem
movimento, descobre-se o que estava coberto e repete-se o teste com o outro
olho. Se nenhum deles se mover, será porque ambos estão alinhados
ortotropicamente. Estando os olhos do paciente ortotrópicos ao olhar para frente,
mas havendo diplopia, deve-se repetir o teste com a cabeça inclinada ou virada
na direção que provoque a diplopia. Com alguma prática, o oftalmologista
detectará desvios oculares (heterotropia) tão pequenos como 1 a 2°. Em um
paciente com diplopia vertical, um pequeno desvio pode ser difícil de detectar e
fácil de passar despercebido. O grau de desvio pode ser mensurado aplicando-se
um prisma diante do olho desalinhado a fim de determinar a refração necessária
para neutralizar o desvio da fixação provocado pela cobertura do outro olho.
Prisma temporário plástico de Fresnel, óculos com prisma ou cirurgia dos
músculos dos olhos são meios usados para restaurar o alinhamento binocular.

ESTEREOPSIA
Para determinar a estereoacuidade, mostram-se imagens polarizadas com alvos
que incidam sobre pontos diferentes da retina. Os testes mais usados em
consultório medem uma série de limiares entre 800 e 40 segundos de arco. A
estereoacuidade normal é de 40 segundos de arco. Se o paciente apresentar esse
nível, pode-se ter certeza de que os olhos estão ortotropicamente alinhados e que
a visão em ambos é íntegra. Os estereogramas de pontos aleatórios não têm
indicadores de profundidade monocular e são um excelente teste para o
rastreamento de estrabismo.

VISÃO EM CORES
A retina contém três tipos de cones, com pigmentos de diferentes sensibilidades
espectrais máximas: vermelho (560 nm), verde (530 nm) e azul (430 nm). Os
pigmentos dos cones vermelhos e verdes são codificados no cromossomo X, e os
do cone azul, no cromossomo 7. Mutações no pigmento do cone azul são
extremamente raras. Mutações nos pigmentos vermelho e verde causam
acromatopsia congênita ligada ao X em 8% dos indivíduos do sexo masculino.
Os indivíduos afetados não são totalmente incapazes de distinguir cores; na
verdade, eles diferem dos indivíduos normais na forma como percebem as cores
e como combinam as luzes monocromáticas das cores primárias para igualar
uma determinada cor. Os tricromatas anômalos têm os três tipos de cone, mas
uma mutação de um pigmento de cone (em geral, o vermelho ou o verde)
modifica a sensibilidade espectral máxima, alterando a combinação de cores
primárias necessária para reproduzir uma determinada cor. Os dicromatas têm
apenas dois tipos de cone, por isso aceitam combinação de cores com apenas
duas cores primárias. Os tricromatas anômalos e dicromatas apresentam
acuidade visual de 6/6 (20/20), mas têm dificuldade de discriminar tonalidades.
As pranchas coloridas de Ishihara possibilitam detectar discromatopsia
vermelho-verde. As pranchas de teste contêm um número oculto, visível apenas
para os pacientes que confundem o vermelho com o verde. Como a acromatopsia
é quase exclusivamente ligada ao X, apenas crianças do sexo masculino devem
ser rastreadas.
As pranchas de Ishihara são muito usadas para a detecção de defeitos
adquiridos na visão em cores, embora tenham sido criadas como teste de
rastreamento para acromatopsia congênita. Os defeitos adquiridos da visão em
cores frequentemente são causados por doenças da mácula ou do nervo óptico.
Por exemplo, os pacientes que têm histórico de neurite óptica muitas vezes
referem diminuição na saturação das cores muito depois de sua acuidade visual
ter voltado ao normal. Também pode ocorrer acromatopsia em casos de
acidentes vasculares bilaterais que acometam a parte ventral do lobo occipital
(acromatopsia cerebral). Tais pacientes veem apenas tons de cinza, podendo
também apresentar dificuldade de reconhecer rostos (prosopagnosia). Infartos do
lobo occipital dominante às vezes produzem anomia para cores. Esses pacientes
conseguem distinguir as cores, mas não denominá-las.

CAMPOS VISUAIS
A visão pode ser afetada por alguma lesão em qualquer região do sistema visual:
dos olhos aos lobos occipitais. É possível localizar a lesão com bastante precisão
mapeando o déficit do campo visual por meio da confrontação com dedos e
correlacionando o resultado com a anatomia topográfica das vias visuais (Fig. 28
-3). O mapeamento quantitativo do campo visual é realizado por campímetro
computadorizado no qual alvos de intensidade variável são apresentados em
posições fixas do campo visual (Fig. 28-3A). Ao gerar um registro impresso dos
limiares de luz, esses instrumentos representam um meio sensível de detecção de
escotomas no campo de visão. Também são extremamente úteis na avaliação
seriada da função visual em doenças crônicas, como o glaucoma e o
pseudotumor cerebral.
FIGURA 28-3 Visão ventral do cérebro, correlacionando os padrões de perda do campo visual com as
localizações das lesões na via visual. Os campos visuais se sobrepõem parcialmente, criando 120° de
campo binocular central flanqueado por um crescente mononucular de 40° para cada lado. Nesta figura, os
mapas dos campos visuais foram feitos com um campímetro computadorizado (Humphrey Instruments,
Carl Zeiss, Inc.). O dispositivo plota a sensibilidade à luz da retina nos 30° centrais, usando um formato em
escala de cinza. As regiões com perda do campo de visão aparecem em negro. Os exemplos de defeitos
monoculares pré-quiasmáticos no campo visual mais comuns são apresentados no olho direito. Por
convenção, os campos visuais sempre são registrados com os campos do olho esquerdo à esquerda e os do
olho direito à direita, exatamente como o paciente enxerga.

Na análise dos campos visuais, é essencial determinar se uma lesão está


localizada antes, no próprio ou atrás do quiasma óptico. Se houver escotoma em
apenas um dos olhos, sua origem estará em lesão anterior ao quiasma, podendo
ser no nervo óptico ou na retina. As lesões retinianas produzem escotomas que
correspondem opticamente à sua localização no fundo. Por exemplo: um
descolamento de retina nasal superior causa perda temporal inferior do campo
visual. Uma lesão da mácula produz um escotoma central (Fig. 28-3B).
As doenças do nervo óptico produzem padrões típicos de perda dos campos
visuais. O glaucoma destrói seletivamente os axônios que entram nos polos
temporal superior e temporal inferior do disco óptico, produzindo escotomas
arqueados, em forma de cimitarra turca, que surgem na mancha cega, curvam-se
em torno da fixação e terminam chapados contra o meridiano horizontal (Fig. 28
-3C). A forma desse defeito do campo reflete a disposição do feixe de fibras
nervosas na retina temporal. Os escotomas arqueados, também chamados
escotomas do feixe de fibras nervosas, igualmente resultam de neurite óptica,
neuropatia óptica isquêmica, drusas do disco óptico e de oclusão de artéria ou
veia da retina.
Uma lesão de todo o polo inferior ou superior do disco óptico produz um
corte altitudinal no campo visual que acompanha o meridiano horizontal (Fig. 28
-3D). Esse padrão de perda visual é típico da neuropatia óptica isquêmica, mas
também resulta de oclusão vascular retiniana, glaucoma avançado e neurite
óptica.
Cerca de metade das fibras do nervo óptico se origina de células
ganglionares que servem à mácula. Lesões das fibras papilomaculares produzem
um escotoma cecocentral, que envolve a mancha cega e a mácula (Fig. 28-3E).
Se o dano for irreversível, surgirá palidez na parte temporal do disco óptico. A
palidez temporal correlacionada a escotoma cecocentral também pode ocorrer na
neurite óptica e nas neuropatias ópticas nutricional, tóxica, hereditária de Leber,
na atrofia óptica dominante de Kjer e na neuropatia óptica compressiva. Convém
mencionar que, na maioria dos indivíduos normais, o lado temporal do disco
óptico é um pouco mais pálido que o lado nasal. Assim, pode ser difícil
determinar se a palidez temporal vista na fundoscopia representa uma alteração
patológica. A palidez da borda nasal do disco óptico é um sinal menos ambíguo
de atrofia óptica.
No quiasma óptico, as fibras oriundas das células ganglionares nasais
decussam para o trato óptico contralateral. As fibras cruzadas são lesadas por
compressão com maior frequência do que as não cruzadas. Assim, lesões
expansivas na região selar causam hemianopsia temporal bilateral. Tumores
anteriores ao quiasma óptico, tais como os meningiomas do tubérculo selar,
produzem um escotoma juncional, caracterizado por neuropatia óptica em um
dos olhos e perda de campo visual temporal superior no olho contralateral (Fig.
28-3G). Uma compressão mais simétrica do quiasma por adenoma hipofisário (F
ig. 373-1), meningioma, craniofaringioma, glioma ou aneurisma produz
hemianopsia bitemporal (Fig. 28-3H). O paciente muitas vezes não percebe o
início insidioso da hemianopsia bitemporal, e o médico também errará o
diagnóstico se não examinar os dois olhos separadamente.
É difícil localizar com precisão uma lesão pós-quiasmática, pois lesões em
qualquer parte do trato óptico, do corpo geniculado lateral, das radiações ópticas
e no córtex visual podem causar hemianopsia homônima (perda da parte
temporal do campo no olho contralateral à lesão e da parte nasal no olho
ipsilateral) (Fig. 28-3I). Uma lesão pós-quiasmática unilateral não afeta a
acuidade visual, embora o paciente às vezes leia apenas metade (à direita ou à
esquerda) do quadro visual. Lesões nas radiações ópticas tendem a causar
defeitos visuais bilaterais irregulares ou incongruentes. Danos às radiações
ópticas no lobo temporal (alça de Meyer) geram quadrantanopsia homônima
superior (Fig. 28-3J), enquanto lesões das radiações ópticas no lobo parietal
causam quadrantanopsia homônima inferior (Fig. 28-3K). Lesões do córtex
visual primário produzem defeitos de campo densos, congruentes e
hemianópticos. A oclusão da artéria cerebral posterior, que irriga o lobo
occipital, é uma causa comum de hemianopsia homônima total. Alguns pacientes
que apresentam hemianopsia após acidentes vasculares occipitais têm a mácula
poupada, pois essa região, que fica na ponta do lobo occipital, é irrigada por
ramos da artéria cerebral média (Fig. 28-3L). A destruição de ambos os lobos
occipitais produz cegueira cortical. Esse quadro pode ser diferenciado da perda
visual pré-quiasmática bilateral pelo fato de as respostas pupilares e os fundos de
olho permanecerem normais.
A recuperação parcial da hemianopsia homônima tem sido relatada por
meio de terapia de reabilitação baseada em computador. Durante sessões diárias
de treinamento, o paciente fixa um alvo central enquanto estímulos visuais são
apresentados dentro da região cega. A premissa dos programas de restauração da
visão é de que a estimulação extra pode promover a recuperação de tecido
parcialmente lesado localizado na periferia de uma lesão cortical. Quando a
fixação é rigorosamente controlada, porém, não é demonstrada melhora real nos
campos visuais. Não há tratamento efetivo para a hemianopsia homônima
causada por perda de córtex visual.
DOENÇAS OCULARES
OLHO VERMELHO OU DOLORIDO
Escoriações da córnea Essas lesões são mais bem visualizadas com a instilação
de 1 gota de fluoresceína no olho seguida por exame sob lâmpada de fenda com
luz azul-cobalto. Uma lanterna com filtro azul será suficiente se não houver
lâmpada de fenda. Os danos ao epitélio da córnea são revelados pela
fluorescência amarela da membrana basal exposta sob o epitélio. É importante
procurar corpos estranhos. Para pesquisar os fórnices conjuntivais, deve-se
baixar a pálpebra inferior e everter a superior. O corpo estranho pode ser
removido com um aplicador de ponta de algodão umedecido após pingar no olho
uma gota de anestésico tópico, como a proparacaína. Alternativamente, é
possível lavar o corpo estranho do olho irrigando-o com soro fisiológico ou com
lágrimas artificiais. Se houver escoriação do epitélio da córnea, deve-se aplicar
antibiótico em pomada e cobrir o olho. Uma gota de cicloplégico de ação
intermediária, tal como o cloreto de ciclopentolato a 1%, ajuda a diminuir a dor
ao relaxar o corpo ciliar. Deve-se reexaminar o olho no dia seguinte. As
escoriações pequenas talvez não necessitem de curativo, antibiótico ou
cicloplegia.

Hemorragia subconjuntival Decorre da ruptura de pequenos vasos com


extravasamento para o possível espaço entre a esclera e a conjuntiva. O sangue
disseca esse espaço, produzindo vermelhidão ocular marcante. Mas a visão não é
afetada, e a hemorragia cede sem tratamento. As hemorragias subconjuntivais
são, em geral, espontâneas, mas às vezes surgem após traumatismo contundente,
esfregação dos olhos ou tosse vigorosa. Podem ser também sinais de doença
hemorrágica subjacente.

Pinguécula Consiste em um pequeno nódulo conjuntival elevado, geralmente


localizado no limbo nasal. Essas lesões são extremamente comuns em adultos e
têm pouco significado, a menos que inflamem (pingueculite). Ocorrem com
maior frequência em trabalhadores com atividade ao ar livre. O pterígio é
semelhante à pinguécula, mas atravessa o limbo e avança sobre a superfície da
córnea. Sua remoção justifica-se quando surgem sintomas de irritação ou
borramento visual. No entanto, a recorrência é comum.
Blefarite Trata-se de inflamação das pálpebras. A forma mais comum ocorre
associada à acne rosácea ou à dermatite seborreica. As bordas das pálpebras são,
em geral, intensamente colonizadas por estafilococos. Vistas de perto, mostram-
se gordurosas, ulceradas e crostosas, com restos de escamas presos aos cílios. O
tratamento consiste em higiene estrita da pálpebra, uso de compressas mornas e
lavagem dos cílios com xampu para bebês. O hordéolo externo (terçol) é
causado por infecção estafilocócica das glândulas acessórias superficiais de Zeis
ou Moll, localizadas nas bordas palpebrais. O hordéolo interno ocorre após
infecção supurativa das glândulas de Meibônio secretoras de gordura na face
tarsal da pálpebra. Pomadas oftálmicas tópicas à base de antibióticos, como
bacitracina/polimixina B, podem ser aplicadas. A meibomite (infecção de
glândula meibomiana) grave e a blefarite grave crônica podem exigir o uso de
antibióticos sistêmicos, geralmente tetraciclinas ou azitromicina. O calázio é
uma inflamação granulomatosa crônica e indolor da glândula de Meibônio que
produz um nódulo em forma de ervilha dentro da pálpebra. Pode-se incisar e
drenar esse nódulo, mas injeções de glicocorticoides são igualmente efetivas.
Diante de lesões ulcerativas das pálpebras que não cicatrizam, deve-se suspeitar
de carcinomas basocelular, espinocelular ou da glândula de Meibônio.

Dacriocistite Constitui a inflamação do sistema de drenagem lacrimal, podendo


causar epífora (lacrimejamento) e hiperemia ocular. A pressão ligeira sobre o
saco lacrimal causa dor e refluxo de muco e pus pelos pontos lacrimais. A
dacriocistite surge, em geral, após a obstrução do sistema lacrimal. O tratamento
consiste em antibióticos tópicos e sistêmicos, seguidos de dilatação, intubação
com stent de silicone ou cirurgia para restabelecer a patência. O entrópio
(inversão da pálpebra) e o ectrópio (eversão da pálpebra) também podem causar
epífora e irritação ocular.

Conjuntivite A conjuntivite é a causa mais comum de vermelhidão e irritação


oculares. A dor é mínima, e a acuidade visual reduz-se ligeiramente. O agente
etiológico viral mais comum é o adenovírus. Nesse caso, há secreção aquosa,
fotofobia e leve sensação de corpo estranho. A infecção bacteriana tende a
produzir um exsudato mais mucopurulento. Os casos leves de conjuntivite
infecciosa são tratados geralmente de maneira empírica, com antibióticos
oculares tópicos de amplo espectro, como sulfacetamida a 10%, polimixina-
bacitracina ou a associação trimetoprima-polimixina. Esfregaços e cultura ficam,
de modo geral, reservados às conjuntivites graves, resistentes ou recorrentes.
Para prevenir o contágio, deve-se orientar o paciente a lavar as mãos com
frequência, não tocar nos olhos e evitar contato direto com outras pessoas.

Conjuntivite alérgica Trata-se de um problema extremamente comum, muitas


vezes confundido com conjuntivite infecciosa. Prurido, vermelhidão e epífora
são característicos. Pode haver hipertrofia das conjuntivas palpebrais com
grandes protrusões, denominadas papilas gigantes. A irritação por lentes de
contato ou outro corpo estranho crônico também pode levar à formação de
papilas gigantes. A conjuntivite atópica ocorre em portadores de dermatite
atópica ou de asma. Os sintomas de conjuntivite alérgica podem ser aliviados por
compressas frias, vasoconstritores tópicos, anti-histamínicos (olopatadina) e
estabilizadores dos mastócitos (cromoglicato dissódico). As soluções tópicas de
glicocorticoides oferecem alívio acentuado das formas imunomediadas de
conjuntivite. Não se deve, no entanto, usá-los cronicamente em razão dos riscos
de glaucoma, catarata e infecção secundária. Os anti-inflamatórios não
esteroides (AINEs) tópicos (cetorolaco) são alternativas melhores.

Ceratoconjuntivite seca Também chamada de olho seco, produz queimação,


sensação de corpo estranho, hiperemia ocular e fotofobia. Em casos leves, o olho
se apresenta quase normal, mas a produção de lágrimas, medida pela umectação
de papel de filtro (teste de Schirmer), é deficiente. Diversos fármacos de uso
sistêmico, como anti-histamínicos, anticolinérgicos e vários psicotrópicos,
reduzem a secreção lacrimal, causando ressecamento ocular. Distúrbios que
envolvem diretamente o saco lacrimal, como sarcoidose e síndrome de Sjögren,
também causam olhos secos. Os pacientes podem evoluir com olhos secos após
radioterapia se o campo de tratamento incluir as órbitas. O ressecamento dos
olhos também é comum após lesões dos V e VII nervos cranianos. A anestesia da
córnea é especialmente perigosa, pois a ausência do piscar reflexo a expõe a
lesões indolores que o paciente não percebe. O olho seco é tratado com aplicação
frequente e copiosa de lágrima artificial e lubrificantes oculares. Em casos
graves, podem-se ocluir ou cauterizar os pontos lacrimais para reduzir a
drenagem lacrimal.

Ceratite Essa patologia ameaça a visão porque traz riscos de opacificação,


cicatrização e perfuração da córnea. Em todo o mundo, as duas maiores causas
da cegueira por ceratite são tracoma (infecção por Chlamydia) e deficiência de
vitamina A decorrente de desnutrição. Nos Estados Unidos, as lentes de contato
são uma grande causa de infecção e ulceração da córnea. Elas não devem ser
usadas por indivíduos que estejam com infecções oculares em atividade. Na
avaliação da córnea, é importante diferenciar entre uma infecção superficial
(ceratoconjuntivite) e um processo ulcerativo mais profundo e mais grave. Esse
último é acompanhado de maior perda visual, dor, fotofobia, vermelhidão e
secreção. O exame com lâmpada de fenda mostra ruptura do epitélio da córnea,
infiltrado leitoso ou abscesso do estroma, e reação celular inflamatória na
câmara anterior. Em casos graves, observa-se acúmulo de pus no fundo da
câmara anterior, produzindo hipópio. Deve-se instituir antibioticoterapia
empírica imediatamente após a obtenção de raspado da córnea para exames de
Gram, Giemsa e culturas. Os antibióticos tópicos mais fortes são os mais
eficazes e podem ser suplementados com antibióticos subconjuntivais, de acordo
com a necessidade. Deve-se sempre suspeitar de etiologia fúngica em pacientes
que apresentem ceratite. A infecção fúngica é mais comum em climas quentes e
úmidos, principalmente após penetração da córnea por plantas ou materiais
vegetais. A ceratite por Acanthamoeba está associada a desinfecção inadequada
das lentes de contato.

Herpes-vírus simples Os herpes-vírus são uma causa importante de cegueira


por ceratite. Nos Estados Unidos, a maioria dos adultos tem anticorpos séricos
contra o herpes simples, o que indica infecção prévia (Cap. 187). A infecção
ocular primária costuma ser causada pelo herpes-vírus tipo 1, e não pelo tipo 2.
A doença se apresenta como blefaroconjuntivite folicular unilateral, fácil de ser
confundida com a conjuntivite por adenovírus, exceto quando aparecem
vesículas herpéticas típicas nas pálpebras ou na conjuntiva. Um padrão
dendrítico de ulceração ocular ao exame com fluoresceína é patognomônico de
herpes simples, mas tal padrão é observado apenas em uma minoria das
infecções primárias. A infecção ocular recorrente ocorre com a reativação de
herpes-vírus latente. A erupção viral no epitélio da córnea pode produzir o
dendrito herpético típico. O acometimento do estroma da córnea produz edema,
vascularização e iridociclite. A ceratite herpética é tratada com cicloplegia e um
agente antiviral tópico (trifluridina, ganciclovir) ou um antiviral oral (aciclovir,
ganciclovir). Os glicocorticoides tópicos são eficazes para reduzir a formação de
cicatrizes na córnea, mas costumam ser reservados para casos que envolvam
dano estromal, devido aos riscos de liquefação e perfuração da córnea. O uso de
glicocorticoides tópicos também está associado a risco de prolongamento da
infecção e de indução de glaucoma.
Herpes-zóster O herpes-zóster causado por reativação de vírus latente da
varicela (catapora) produz uma dermatite vesiculosa e dolorosa distribuída sobre
um dermátomo (Cap. 188). Podem surgir sintomas oculares após erupção por
herpes-zóster em qualquer ramo do nervo trigêmeo. Os sintomas oculares são
mais comuns quando há vesículas no nariz, indicando acometimento do nervo
nasociliar (V1) (sinal de Hutchinson). O herpes-zóster oftálmico produz
dendritos corneanos, que podem ser difíceis de distinguir daqueles causados pelo
herpes simples. Outras sequelas comuns são ceratite estromal, uveíte anterior,
aumento da pressão intraocular, paralisia dos nervos oculomotores, necrose
aguda da retina, cicatrização pós-herpética e neuralgia. O herpes-zóster
oftálmico é tratado com antivirais e cicloplégicos. Em casos graves, podem-se
acrescentar glicocorticoides para evitar perdas visuais permanentes por formação
de cicatrizes na córnea.

Episclerite Trata-se da inflamação da episclera, fina camada de tecido conectivo


localizada entre a conjuntiva e a esclera. A episclerite manifesta-se de modo
parecido com o da conjuntivite, porém é um processo mais localizado e não
produz secreção. A maioria das episclerites é idiopática, mas alguns casos
ocorrem no contexto de doenças autoimunes. A esclerite constitui um processo
inflamatório mais intenso e mais profundo, com frequência associado a doenças
do colágeno, como artrite reumatoide, lúpus eritematoso sistêmico, poliarterite
nodosa, granulomatose com poliangeíte e policondrite recorrente. A inflamação
e o espessamento da esclera podem ser difusos ou nodulares. Nas esclerites
anteriores, o globo ocular adquire um tom violáceo, e o paciente faz referência a
hipersensibilidade e dor ocular intensas. Na esclerite posterior, é possível que
dor e vermelhidão sejam menos intensas, mas muitas vezes ocorrem proptose,
efusão coroidal, redução da mobilidade e perda visual. A episclerite e a esclerite
devem ser tratadas com AINEs. Se esses fármacos não funcionarem, poderão ser
necessários glicocorticoides tópicos ou até sistêmicos, principalmente se houver
um processo imune ativo subjacente.

Uveíte Também denominada irite ou iridociclite, trata-se da inflamação das


estruturas anteriores do olho. O diagnóstico requer exame com lâmpada de fenda
para identificação de células flutuando no humor aquoso ou depositadas no
endotélio da córnea (precipitados ceráticos). A uveíte anterior ocorre em doenças
como sarcoidose, espondilite anquilosante, artrite reumatoide juvenil, doença
inflamatória intestinal, psoríase, artrite reacional e doença de Behçet. Também
está associada a infecções por herpes, sífilis, doença de Lyme, oncocercose,
tuberculose e hanseníase. A uveíte anterior pode estar associada a várias
doenças, mas, na maioria dos casos, não há causa definida. Por esse motivo, a
avaliação laboratorial fica, em geral, reservada aos pacientes que apresentem
uveíte anterior recorrente ou grave. O tratamento visa a redução da inflamação e
a formação de cicatrizes por meio do uso cauteloso de glicocorticoides tópicos.
A dilatação da pupila reduz a dor e previne a formação de sinéquias.

Uveíte posterior É diagnosticada observando-se a presença de inflamação em


vítreo, retina ou coroide à fundoscopia. Está associada a doenças sistêmicas com
maior frequência do que a uveíte anterior. Alguns pacientes apresentam pan-
uveíte ou inflamação dos segmentos anterior e posterior do olho. A uveíte
posterior é uma das manifestações de doenças autoimunes, como sarcoidose,
doença de Behçet, síndrome de Vogt-Koyanagi-Harada e doença inflamatória
intestinal. Ocorre também em doenças, como toxoplasmose, oncocercose,
cisticercose, coccidioidomicose, toxocaríase e histoplasmose; em infecções
causadas por microrganismos, como Candida, Pneumocystis carinii,
Cryptococcus, Aspergillus, herpes e citomegalovírus (ver Fig. 190-1); e em
outras doenças, como sífilis, doença de Lyme, tuberculose, doença da
arranhadura do gato, doença de Whipple e brucelose. Na esclerose múltipla,
podem surgir alterações inflamatórias crônicas na periferia extrema da retina
(denominadas pars planitis ou uveíte intermediária). Os glicocorticoides têm sido
a base do tratamento na uveíte não infecciosa. Os anticorpos monoclonais que
têm como alvo citocinas pró-inflamatórias, como o inibidor do fator de necrose
tumoral α (TNF-α) adalimumabe, são efetivos na prevenção da perda visual na
uveíte crônica.

Glaucoma agudo de ângulo fechado Trata-se de uma causa incomum e


frequentemente subdiagnosticada de olho vermelho e doloroso. As populações
asiáticas têm risco particularmente alto de glaucoma de ângulo fechado. Os
olhos suscetíveis têm câmara anterior rasa, seja porque o olho possui um
comprimento axial curto (hipermetropia), seja porque o cristalino cresceu em
razão do surgimento gradual de catarata. Quando a pupila fica semidilatada, a
periferia da íris bloqueia a saída do humor aquoso por meio do ângulo da câmara
anterior, e a pressão ocular sobe rapidamente, o que causa dor, hiperemia, edema
da córnea, obscurecimento e visão turva. Em alguns pacientes, os sintomas
oculares são menos evidentes que outros, como náuseas, vômitos e cefaleia, o
que pode levar a uma investigação improdutiva para doença abdominal ou
neurológica. O diagnóstico é feito medindo-se a pressão intraocular durante uma
crise aguda ou procedendo-se à gonioscopia, um procedimento que permite
observar o ângulo estreito da câmara por meio de uma lente de contato
espelhada. No tratamento do fechamento angular agudo, utilizam-se
acetazolamida (VO ou IV), betabloqueadores tópicos, análogos da
prostaglandina, agonistas α2-adrenérgicos e pilocarpina para induzir miose. Se
essas medidas não forem suficientes, pode-se usar laser para perfurar a íris
periférica e aliviar o bloqueio pupilar. Muitos médicos temem dilatar a pupila
rotineiramente ao fazer a fundoscopia, pois receiam provocar glaucoma de
ângulo fechado. Não obstante, esse risco é mínimo e mais que compensado pela
possibilidade de descobrir uma lesão oculta no fundo de olho, visível apenas
com a pupila bem dilatada. Além disso, é raro que uma crise de glaucoma de
ângulo fechado produza dano permanente aos olhos. Assim, a crise acaba
servindo como teste provocativo para identificar os pacientes com ângulos
fechados, candidatos à iridectomia a laser profilática.

Endoftalmite Resulta de infecção bacteriana, viral ou parasitária das estruturas


internas do olho. Geralmente é adquirida por implante hematogênico a partir de
um ponto remoto. Os pacientes crônicos, diabéticos ou imunossuprimidos,
sobretudo aqueles com histórico de uso de cateteres IV ou hemoculturas
positivas, estão sob risco mais elevado de endoftalmite. A maioria dos pacientes
apresenta dor e hiperemia ocular, mas a perda de visão pode ser o único sintoma.
Êmbolos sépticos originados de válvula cardíaca infectada ou de abscesso
dentário podem se alojar na circulação retiniana e causar endoftalmite.
Hemorragias retinianas com centros brancos (manchas de Roth) (Fig. 28-4) são
consideradas patognomônicas de endocardite bacteriana subaguda, mas também
podem surgir em alguns casos de leucemia, diabetes e várias outras doenças. A
endoftalmite também pode complicar cirurgias oculares, especialmente filtrantes
de glaucoma, às vezes meses ou até anos após o procedimento. Deve-se
considerar a possibilidade de corpo estranho penetrante oculto ou de
traumatismo do globo ocular em todos os pacientes que se apresentem com
infecção ou inflamação intraocular não explicada.
FIGURA 28-4 Mancha de Roth, exsudato algodonoso e hemorragia retiniana em paciente de 48 anos
de idade submetido a transplante de fígado com candidemia por imunossupressão.

PERDA VISUAL SÚBITA OU TRANSITÓRIA


Amaurose fugaz Esse termo refere-se ao ataque isquêmico transitório na retina (
Cap. 420). Como o tecido neural tem metabolismo intenso, a interrupção do
fluxo sanguíneo para a retina por alguns segundos produz cegueira monocular
transitória – outro termo usado para descrever a amaurose fugaz. Os pacientes
descrevem a perda visual como uma cortina caindo, às vezes em apenas uma
parte do campo visual. A amaurose fugaz geralmente decorre de um êmbolo
aprisionado em uma arteríola retiniana (Fig. 28-5). Se o êmbolo se partir ou
passar, o fluxo será restaurado, e a visão voltará rapidamente ao normal sem
lesão permanente. Se a interrupção do fluxo se prolongar, a retina interna sofrerá
infarto. A oftalmoscopia revela zonas de empalidecimento e edema na retina,
que acompanham a distribuição de ramos das arteríolas retinianas. A oclusão
completa da artéria central da retina causa interrupção do fluxo sanguíneo, e a
retina torna-se leitosa e com fóvea vermelho-cereja (Fig. 28-6). Os êmbolos
podem ser compostos por colesterol (placa de Hollenhorst), cálcio ou restos de
plaquetas e fibrina. A origem mais comum são placas ateroscleróticas na artéria
carótida ou na aorta, embora os êmbolos possam se originar no coração,
sobretudo nos pacientes portadores de doença valvular, fibrilação atrial ou
anormalidades cinéticas das paredes.

FIGURA 28-5 A placa de Hollenhorst, alojada na bifurcação de uma arteríola retiniana, comprova
que o paciente está liberando êmbolos a partir da artéria carótida, dos grandes vasos ou do coração.
FIGURA 28-6 Oclusão de artéria central da retina em homem de 78 anos reduzindo a acuidade para
contar dedos no olho direito. Observe a hemorragia em chama de vela sobre o disco óptico e o aspecto
levemente leitoso da mácula com fóvea vermelho-cereja.

Em casos raros, a amaurose fugaz decorre de redução na pressão de


perfusão da artéria central da retina em pacientes que apresentam estenose crítica
da artéria carótida ipsilateral associada à deficiência do fluxo colateral pelo
polígono de Willis. A amaurose fugaz surge quando há queda da pressão
sistêmica ou ligeira piora da estenose carotídea. É possível que ocorram déficits
motores ou sensitivos contralaterais que indicariam isquemia cerebral
hemisférica concomitante.
A oclusão da artéria da retina também ocorre, ainda que raramente,
associada a enxaqueca retiniana, lúpus eritematoso, anticorpos anticardiolipina,
estados de deficiência de anticoagulantes (proteína C, proteína S e antitrombina),
síndrome de Susac, gravidez, uso abusivo de drogas IV, discrasias sanguíneas,
disproteinemias e arterite temporal.
A hipertensão arterial sistêmica grave causa esclerose das arteríolas
retinianas, hemorragias em chama de vela, infartos focais do feixe de fibras
nervosas (exsudatos algodonosos), bem como vazamentos de lipídeos e líquido
(exsudatos duros) sobre a mácula (Fig. 28-7). Nas crises hipertensivas, o
vasospasmo das arteríolas retinianas pode causar isquemia com perda visual
súbita. A hipertensão arterial aguda também pode provocar cegueira decorrente
de edema isquêmico do disco óptico. Os pacientes com retinopatia hipertensiva
aguda devem ser tratados com redução da pressão arterial. No entanto, essa
redução não pode ser abrupta, uma vez que a hipoperfusão súbita pode causar
infarto do disco óptico.

FIGURA 28-7 Retinopatia hipertensiva com borramento do disco óptico, hemorragia em chama de
vela, exsudatos algodonosos (infarto de fibra nervosa) e exsudato na fóvea em paciente de sexo masculino
de 62 anos de idade com insuficiência renal crônica e pressão sistólica de 220 mmHg.

A oclusão iminente da veia central da retina ou de seus ramos pode


produzir episódios prolongados de obscurecimento visual semelhantes aos
descritos por pacientes com amaurose fugaz. As veias ficam ingurgitadas e
flebíticas com diversas hemorragias retinianas (Fig. 28-8). Em alguns pacientes,
o fluxo sanguíneo venoso retorna de maneira espontânea, mas outros evoluem
com obstrução franca e sangramento retiniano extenso (aspecto de “sangue e
tempestade”), infarto e perda da visão. A oclusão venosa da retina é muitas vezes
idiopática, mas há alguns fatores de risco importantes, como diabetes melito,
hipertensão arterial e glaucoma. Fatores capazes de produzir
hipercoagulabilidade, como policitemia e trombocitopenia, devem ser corrigidos.
O tratamento com ácido acetilsalicílico pode ser benéfico.

FIGURA 28-8 A oclusão da veia retiniana central pode produzir hemorragia retiniana maciça (“sangue e
tempestade”), isquemia e perda da visão.

Neuropatia óptica isquêmica anterior (NOIA) É causada por insuficiência de


fluxo sanguíneo pelas artérias ciliares posteriores que abastecem o disco óptico.
Causa perda visual monocular indolor, em geral súbita, algumas vezes seguida
por agravamento progressivo. O disco óptico encontra-se edemaciado e costuma
estar circundado por hemorragias lineares do feixe de fibras nervosas (Fig. 28-
9). Existem dois tipos de NOIA: o arterítico e o não arterítico. O não arterítico é
o mais comum. Não há causa específica conhecida, embora diabetes,
insuficiência renal e hipertensão sejam fatores de risco comuns. Relatos de casos
ligaram os fármacos usados para disfunção erétil à NOIA, mas essa associação
causal é duvidosa. Há fortes evidências de que uma arquitetura de disco
comprimida com pequena escavação óptica são fatores predisponentes ao
desenvolvimento de NOIA não arterítica. Em pacientes com “disco de risco”, o
advento de NOIA em um dos olhos aumenta a probabilidade do mesmo evento
ocorrer no outro olho. Não há tratamento disponível para a NOIA não arterítica;
não se deve prescrever glicocorticoides.

FIGURA 28-9 Neuropatia óptica isquêmica anterior por arterite temporal em mulher de 64 anos com
edema agudo do disco, hemorragia em chama de vela, perda da visão e velocidade de hemossedimentação
de 60 mm/h.

Cerca de 5% dos pacientes, sobretudo as mulheres brancas com idade > 60


anos, apresentam a forma arterítica de NOIA associada à arterite (temporal) de
células gigantes (Cap. 356). É urgente identificar a NOIA arterítica para que se
inicie de imediato o tratamento com doses elevadas de glicocorticoides,
objetivando evitar perda visual no olho contralateral. O tocilizumabe é uma
alternativa efetiva aos glicocorticoides para a supressão sustentada dos sintomas
de arterite de células gigantes. É possível que estejam presentes sintomas de
polimialgia reumática. A velocidade de hemossedimentação e a proteína C-
reativa costumam estar elevadas. Nos pacientes que apresentam perda visual sob
suspeita de NOIA arterítica, a biópsia da artéria temporal se impõe para a
confirmação do diagnóstico. Administrar glicocorticoides imediatamente, sem
aguardar o resultado da biópsia. A biópsia deve ser obtida assim que possível,
pois o tratamento prolongado com glicocorticoides pode ocultar as alterações
inflamatórias. É importante coletar um segmento arterial com no mínimo 3 cm
com exame de um número suficiente de cortes de tecido a partir da amostra. Os
achados histológicos de inflamação granulomatosa costumam ser muito sutis em
amostras de artéria temporal. Se a biópsia for considerada negativa por um
patologista experiente, o diagnóstico de NOIA arterítica é altamente improvável
e os glicocorticoides geralmente devem ser suspensos.

Neuropatia óptica isquêmica posterior Trata-se de causa incomum da perda


visual aguda, induzida pela combinação de anemia grave e hipotensão. Foram
descritos casos após perdas sanguíneas significativas em cirurgia (especialmente
em pacientes submetidos à cirurgia cardíaca ou da coluna lombar), choque,
hemorragia digestiva e diálise renal. O fundo de olho geralmente se apresenta
normal, embora possa haver edema do disco óptico se o processo se estender
suficientemente no sentido anterior para atingir o globo ocular. Às vezes, pode-
se preservar a visão com hemotransfusão imediata e reversão da hipotensão.

Neurite óptica É uma doença inflamatória comum do nervo óptico. No Optic


Neuritis Treatment Trial (ONTT), a média de idade dos pacientes foi de 32 anos,
77% eram mulheres, 92% apresentavam dor ocular (sobretudo dor à
movimentação ocular) e, em 35%, observou-se edema do disco óptico. Na
maioria dos pacientes, o evento desmielinizante foi retrobulbar, e o fundo de
olho tinha aspecto normal ao exame inicial (Fig. 28-10), embora com surgimento
progressivo de palidez do disco óptico nos meses seguintes.
FIGURA 28-10 A neurite óptica retrobulbar é caracterizada por exame de fundo de olho inicialmente
normal, sendo essa a origem do ditado “o médico nada vê, e o paciente nada enxerga”. A atrofia óptica se
desenvolve após crises repetidas ou graves.

Quase todos os pacientes tiveram recuperação gradual da visão após


episódio único de neurite óptica, mesmo sem tratamento. Essa regra é tão
confiável que, se não houver melhora após um primeiro ataque de neurite óptica,
o diagnóstico deverá ser posto em dúvida. O tratamento com metilprednisolona
IV em altas doses (250 mg, a cada 6 horas, durante 3 dias), seguida por
prednisona oral (1 mg/kg/dia, durante 11 dias), não produz diferença na acuidade
visual final 6 meses após a crise, porém esse tratamento acelera a recuperação da
visão. Portanto, quando a perda visual é grave (pior que 20/100), frequentemente
recomenda-se o uso de glicocorticoides IV seguido por VO.
Em alguns pacientes, a neurite óptica permanece um evento isolado. No
entanto, o estudo ONTT mostrou que o risco acumulado de diagnóstico de
esclerose múltipla nos 15 anos seguintes a um episódio de neurite óptica é de
50%. Recomenda-se exame de ressonância magnética (RM) cerebral em todos
os pacientes que tenham tido uma primeira crise de neurite óptica. Se houver
duas ou mais placas na imagem inicial, deve-se considerar a possibilidade de
tratar para prevenir o desenvolvimento de novas lesões desmielinizantes (Cap. 4
36).
Uma forma particularmente grave de neurite óptica ocorre na neuromielite
óptica (NMO); ela costuma ser extensa longitudinalmente e pode ser bilateral ou
associada com mielite. A NMO pode ocorrer como distúrbio primário, em casos
de doença autoimune sistêmica ou, raramente, como condição paraneoplásica. A
detecção de anticorpos circulantes direcionados contra a aquaporina-4 é
diagnóstica. O tratamento dos episódios agudos consiste em glicocorticoides e,
em casos resistentes, plasmaférese. A neuromielite óptica é discutida em
detalhes no Capítulo 437.

NEUROPATIA ÓPTICA HEREDITÁRIA DE LEBER


Essa é uma doença que geralmente afeta jovens do sexo masculino. Os pacientes
sofrem perda visual gradual, indolor, grave e central em um olho, seguida,
semanas a anos depois, por processo semelhante no outro olho. Na fase aguda, o
disco óptico apresenta-se levemente pletórico com telangiectasias capilares em
sua superfície. No entanto, não há extravasamento vascular à angiografia com
fluoresceína. Por fim, ocorre atrofia do nervo óptico. A causa da neuropatia
óptica de Leber é uma mutação de ponto do códon 11778 do gene mitocondrial
que codifica a subunidade 4 da desidrogenase do dinucleotídeo de adenina-
nicotinamida (NADH). Foram identificadas outras mutações causadoras dessa
doença, a maioria em genes mitocondriais que codificam proteínas envolvidas
no transporte de elétrons. As mutações mitocondriais que causam a neuropatia
óptica de Leber são herdadas da mãe por toda a prole, mas, por razões
desconhecidas, as filhas raramente são afetadas. Ensaios clínicos iniciais de
terapia genética para essa condição estão sendo realizados.

Neuropatia óptica tóxica Doença que pode causar perda visual aguda com
edema do disco óptico bilateral e escotomas cecocentrais. Já foi descrita após
exposição a etambutol, álcool metílico (bebida alcoólica falsificada),
etilenoglicol (anticongelante) e monóxido de carbono. Na neuropatia óptica
tóxica, a perda visual também pode ocorrer progressivamente e produzir atrofia
óptica (Fig. 28-11) sem uma fase aguda de edema do disco óptico. Vários
agentes foram implicados como causa de neuropatia óptica tóxica, porém as
evidências a favor de muitas dessas associações costumam ser fracas.
Apresentamos a seguir uma lista parcial de fármacos ou toxinas possivelmente
responsáveis: dissulfiram, etclorvinol, cloranfenicol, amiodarona, anticorpo
monoclonal anti-CD3, ciprofloxacino, digitálicos, estreptomicina, chumbo,
arsênico, tálio, D-penicilamina, isoniazida, emetina e sulfonamidas. A metalose
(cromo, cobalto, níquel) por falha de implante de quadril é uma causa rara de
neuropatia óptica tóxica. Estados de deficiência, induzidos por inanição, má
absorção ou alcoolismo, podem causar perda visual insidiosa. Os níveis de
tiamina, vitamina B12 e folato devem ser dosados em todos os pacientes que se
apresentem com escotomas centrais bilaterais sem explicação e palidez do disco
óptico.

FIGURA 28-11 A atrofia óptica não é um diagnóstico específico, mas se refere à combinação de palidez
do disco óptico, estreitamento arteriolar e destruição do feixe de fibras nervosas produzidos por diversas
doenças oculares, particularmente as neuropatias ópticas.

Papiledema Esse termo descreve o edema bilateral do disco óptico causado por
hipertensão intracraniana (Fig. 28-12). A cefaleia é um sintoma concomitante
comum, mas não obrigatório. Todas as outras formas de edema do disco óptico
(tais como o causado por neurite óptica ou por neuropatia óptica isquêmica)
devem ser denominadas simplesmente “edema do disco óptico”. Trata-se de uma
convenção, mas que serve para evitar confusões. Muitas vezes, é difícil
distinguir entre papiledema e outras formas de edema do disco óptico apenas
com fundoscopia. Obscurecimento transitório da visão é um sintoma clássico de
papiledema. Ele pode ocorrer apenas em um dos olhos ou simultaneamente em
ambos. Esse sintoma geralmente dura segundos, podendo persistir por mais
tempo. É possível que ocorram episódios de obscurecimento após mudanças
bruscas de posição ou espontaneamente. Se esses episódios forem prolongados
ou espontâneos, o papiledema será mais perigoso. A acuidade visual só será
afetada pelo papiledema se ele for intenso, de longa duração ou acompanhado de
edema macular e hemorragia. A campimetria revela aumento das manchas cegas
e constrição periférica (Fig. 28-3F). No papiledema crônico, a perda visual
periférica evolui insidiosamente, e o nervo óptico sofre atrofia. Nesse contexto, a
redução do edema do disco óptico é um sinal funesto de que o nervo está
morrendo, e não uma indicação promissora de resolução do papiledema.

FIGURA 28-12 Papiledema significa edema do disco óptico causado por elevação na pressão
intracraniana. Esta jovem desenvolveu papiledema, com hemorragias e exsudatos algodonosos, como um
efeito colateral raro do tratamento de acne com tetraciclina.
Na investigação de papiledema, há necessidade de neuroimagem para
excluir a presença de lesão intracraniana. A angiorressonância magnética (angio-
RM) é útil em alguns casos para investigar oclusão dos seios venosos ou shunt
arteriovenoso. Se os exames neurorradiológicos forem negativos, deve-se medir
a pressão liquórica subaracnóidea de abertura em decúbito lateral por meio de
punção lombar. As leituras inacuradas da pressão são um problema comum. A
pressão liquórica alta com líquido cerebrospinal normal aponta, por exclusão,
para o diagnóstico de pseudotumor cerebral (hipertensão intracraniana
idiopática). Quase todos os pacientes são mulheres, e a maioria tem obesidade. O
uso de inibidores da anidrase carbônica, como a acetazolamida, reduz a pressão
intracraniana ao diminuir a produção de líquido cerebrospinal, melhorando os
campos visuais. A redução do peso é vital: deve-se considerar indicar cirurgia
bariátrica aos pacientes que não consigam perder peso com controle da dieta. Se
a perda de visão for grave ou progressiva, deve-se proceder a um shunt
imediatamente para prevenção de cegueira. A fenestração da bainha do nervo
óptico é menos efetiva, e não trata outros sintomas neurológicos. Algumas vezes,
o papiledema fulminante produz início rápido de cegueira. Em tais pacientes,
deve ser realizada a cirurgia de emergência para instalar uma derivação sem
demora.

Drusas do disco óptico São depósitos refrativos dentro da substância da cabeça


do nervo óptico (Fig. 28-13). Não têm relação com as drusas da retina, que
ocorrem na degeneração macular relacionada com a idade. As drusas do disco
óptico são mais comuns em pessoas de descendência europeia setentrional. O
diagnóstico é óbvio quando se detectam as drusas como partículas brilhantes
sobre a superfície do disco óptico. No entanto, em muitos pacientes, as drusas
situam-se abaixo da superfície, produzindo um pseudopapiledema. É importante
reconhecer as drusas do disco óptico para evitar uma investigação desnecessária
de papiledema. Quando as drusas do disco óptico estão escondidas, a
ultrassonografia em modo B é a maneira mais sensível para detectá-las. Elas
aparecem como hiperecoicas, pois contêm cálcio. Elas também são visíveis na
tomografia computadorizada (TC) ou na tomografia de coerência óptica (OCT),
uma técnica para a aquisição de imagens transversais da retina. Na maioria dos
pacientes, esse é um achado incidental e inócuo. No entanto, podem produzir
obscurecimento visual em alguns casos. Na campimetria, formam manchas
cegas aumentadas e escotomas arqueados decorrentes de danos ao disco óptico.
Com o envelhecimento, as drusas tendem a se tornar mais expostas na superfície
do disco à medida que a atrofia óptica avança. Hemorragia, membrana coroidal
neovascular e NOIA são mais frequentes em pacientes com drusas do disco
óptico. Não há tratamento disponível.

FIGURA 28-13 As drusas do disco óptico são depósitos calcificados semelhantes a amoras no interior do
disco óptico de etiologia desconhecida que causam “pseudopapiledema”.

Degeneração do vítreo Ocorre em todos os indivíduos com o avançar da idade e


produz sintomas visuais. Surgem opacidades no vítreo que formam sombras
incômodas sobre a retina. Quando os olhos se movimentam, essas imagens
“flutuantes” se movem em sincronia, porém com um pequeno retardo, causado
pela inércia do gel vítreo. A tração do vítreo sobre a retina produz um estímulo
mecânico, que leva à percepção de clarões. Essa fotopsia é breve e monocular,
diferentemente das cintilações bilaterais e prolongadas da enxaqueca cortical. A
contração do vítreo pode levá-lo a separar-se abruptamente da retina, evento
precedido por assustadora chuva de imagens flutuantes e fotopsia. Tal processo,
denominado descolamento do vítreo, é um evento degenerativo comum em
idosos. Não é deletério a não ser que cause danos à retina. Em qualquer paciente
que se queixe de imagens flutuantes ou fotopsia, é importante uma cuidadosa
fundoscopia, com dilatação, para a pesquisa de lacerações ou orifícios na
periferia. Se for encontrada uma lesão desse tipo, a aplicação de laser poderá
impedir o descolamento da retina. Ocasionalmente uma laceração provoca
ruptura de um vaso sanguíneo da retina causando hemorragia do vítreo com
perda súbita de visão. Quando se tenta a oftalmoscopia, o fundo fica oculto por
névoa sanguínea escura. Deve-se, então, examinar o interior do olho por meio de
US para a pesquisa de laceração ou descolamento da retina. Se a hemorragia não
melhorar espontaneamente, pode-se remover o vítreo cirurgicamente. Também é
possível haver hemorragia vítrea a partir dos frágeis vasos neovasculares que
proliferam sobre a superfície retiniana em pacientes portadores de diabetes
melito, anemia falciforme e outras doenças oculares isquêmicas.

Descolamento da retina Produz sintomas como imagens flutuantes, clarões e


escotoma no campo visual periférico na área correspondente ao descolamento (F
ig. 28-14). Se o descolamento envolver a fóvea, haverá deficiência nos impulsos
aferentes à pupila e redução da acuidade visual. Na maioria dos casos, o
descolamento da retina começa com um orifício, dobra ou laceração na retina
periférica (descolamento regmatogênico da retina). Os pacientes que apresentam
afinamento periférico da retina (degeneração em treliça) são especialmente
vulneráveis a esse processo. Uma vez surgida uma falha na retina, o vítreo
liquefeito entra pelo espaço sub-retiniano e separa a retina do epitélio
pigmentado. A combinação do tracionamento da retina pelo vítreo com a entrada
de líquido por trás da retina leva, inexoravelmente, ao descolamento. Os
pacientes com histórico de miopia, traumatismo ou extração de catarata são os
que apresentam os maiores riscos de descolamento de retina. O diagnóstico é
confirmado com o exame oftalmoscópico sob dilatação.
FIGURA 28-14 O descolamento da retina aparece como lâmina elevada no tecido da retina com dobras.
Neste paciente, a fóvea foi poupada, de forma que a acuidade visual era normal, mas um descolamento
inferior produziu escotoma superior.

Enxaqueca clássica (Ver também Cap. 422) Ocorre, em geral, associada a uma
aura visual que dura cerca de 20 minutos. Na crise típica, há um pequeno
distúrbio no centro do campo visual que progride em direção à periferia,
deixando atrás um escotoma transitório. Na enxaqueca, o limite de expansão do
escotoma tem borda cintilante, oscilante ou em zigue-zague. Essa borda se
assemelha às muralhas de uma cidade fortificada, daí a expressão espectro de
fortificação. Os pacientes fornecem descrições diferentes do espectro de
fortificação, e é possível que sejam confundidas com as da amaurose fugaz. Nos
casos de enxaqueca, o sintoma geralmente tem maior duração e é percebido nos
dois olhos, enquanto, na amaurose fugaz, é mais breve e ocorre em apenas um
olho. Os fenômenos relacionados com a enxaqueca continuam visíveis no escuro
ou quando o paciente fecha os olhos. Em geral, ficam restritos ao hemicampo
visual esquerdo ou direito, mas podem ocorrer nos dois campos ao mesmo
tempo. Os pacientes muitas vezes têm histórico de crises estereotipadas. Na
maioria dos pacientes, a cefaleia surge quando os sintomas visuais desaparecem.

Ataques isquêmicos transitórios A insuficiência vertebrobasilar pode causar


sintomas visuais homônimos agudos. Muitos pacientes afirmam, erroneamente,
ter sintomas no olho esquerdo ou no direito. Na verdade, esses sintomas afetam
os hemicampos direito ou esquerdo dos dois olhos. A interrupção da irrigação do
córtex cerebral leva a um anuviamento ou acinzamento súbito da visão, às vezes
com luzes lampejantes ou outros fenômenos positivos similares aos da
enxaqueca. Os ataques isquêmicos corticais são mais breves que os da
enxaqueca, ocorrem em pacientes mais idosos e não provocam cefaleia. Podem
estar associados a sinais de isquemia do tronco encefálico, tais como diplopia,
vertigem, parestesia, fraqueza ou disartria.

Acidente vascular cerebral (AVC) Ocorre quando há interrupção prolongada


da irrigação sanguínea do córtex visual pela artéria cerebral posterior. Ao exame,
o único achado é um defeito homônimo dos campos visuais, cujo limite coincide
com o meridiano vertical. Em geral, o AVC do lobo occipital é causado por
oclusões trombóticas do sistema vertebrobasilar por êmbolo ou dissecção. Outras
causas comuns de perda visual cortical hemianóptica são hemorragias lobares,
tumores, abscessos e malformações arteriovenosas.

Perda visual fictícia (funcional, não orgânica) Ocorre em pacientes histéricos


ou simuladores. Os últimos representam a grande maioria, que finge ter perdido
a visão buscando simpatia, tratamento especial ou ganho financeiro. Suspeita-se
de simulação quando a história é atípica, os achados físicos estão ausentes ou são
contraditórios, há incongruências nos achados dos exames ou existe a
perspectiva de ganhos secundários. Nos Estados Unidos, onde são abundantes os
processos judiciais, a busca de benefícios fraudulentos levou a uma verdadeira
epidemia de cegueira fictícia.

PERDA VISUAL CRÔNICA


Catarata Consiste em opacificação do cristalino em grau suficiente para reduzir
a visão. A maioria das cataratas tem evolução lenta, acompanhando o
envelhecimento. A catarata evolui mais rapidamente nos pacientes com histórico
de uveíte, diabetes melito, trauma ocular ou vitrectomia. Várias doenças
genéticas, como a distrofia miotônica, neurofibromatose tipo 2 e galactosemia,
podem levar à catarata. A radioterapia e os glicocorticoides podem ter, como
efeito colateral, o surgimento de cataratas. Nesses casos, sua localização é
subcapsular posterior. A catarata pode ser detectada pela ausência do reflexo
vermelho da luz do oftalmoscópio incidindo no fundo do olho ou pelo exame
com lâmpada de fenda com dilatação pupilar.
O único tratamento para a catarata é a extração cirúrgica do cristalino
opacificado. Milhões de cirurgias de catarata são realizadas anualmente em todo
o planeta. A operação geralmente é feita com anestesia local em regime
ambulatorial. Uma lente intraocular de plástico ou de silicone é implantada na
cápsula esvaziada do cristalino na câmara posterior, como substituta da lente
natural com recuperação rápida da visão. Mais de 95% dos pacientes que se
submetem à extração da catarata têm melhora da visão. Em alguns pacientes, a
cápsula do cristalino, que permanece no olho depois de extraída a catarata,
eventualmente se opacifica, levando a uma perda secundária na visão. Para
restaurar a claridade, faz-se uma pequena abertura com laser na cápsula,
denominada capsulotomia posterior.

Glaucoma Trata-se de neuropatia óptica insidiosa e lentamente progressiva que


geralmente está associada à elevação crônica da pressão intraocular. Depois da
catarata, é a causa mais comum de cegueira em todo o mundo. É especialmente
prevalente em negros. Não se sabe por qual mecanismo a hipertensão intraocular
danifica o nervo óptico. Os axônios que entram pelas áreas temporais inferior e
superior do disco são os primeiros a serem danificados, o que produz os típicos
escotomas arqueados (ou de feixes nervosos) à campimetria. Com a destruição
das fibras, a borda neural do disco óptico se retrai, e sua escavação fisiológica
aumenta (Fig. 28-15). Esse processo é denominado “escavação” patológica. A
razão escavação/disco é expressa como uma fração (p. ex., 0,2). A razão
escavação/disco varia amplamente em indivíduos normais, o que dificulta o
diagnóstico de glaucoma pela simples observação de escavação óptica
incomumente grande ou profunda. O cuidadoso registro dos resultados de
exames seriados é útil. Nos pacientes em que a escavação é fisiológica, ela se
mantém estável, enquanto, naqueles portadores de glaucoma, ela aumenta
inexoravelmente ao longo dos anos. A observação de aumento progressivo da
escavação e a detecção de escotoma arqueado ou de degrau nasal na campimetria
computadorizada são suficientes para firmar o diagnóstico de glaucoma. A OCT
revela perda correspondente de fibras ao longo das vias arqueadas na camada de
fibras nervosas.
FIGURA 28-15 O glaucoma resulta em “escavação” à medida que a borda neural é destruída, e a
escavação central vai se alargando e se tornando mais profunda. A razão escavação/disco neste paciente é
de cerca de 0,8.

A preponderância de pacientes com glaucoma apresenta ângulo aberto da


câmara anterior. Na maioria dos indivíduos afetados, a pressão intraocular está
elevada. Não são conhecidas as causas da hipertensão intraocular, mas, nas
formas hereditárias, há associação com mutações genéticas.
Surpreendentemente, um terço dos pacientes com glaucoma de ângulo aberto
apresenta pressão intraocular dentro da variação normal de 10 a 20 mmHg. Para
essa forma, assim chamada glaucoma com pressão normal ou baixa, a miopia
elevada é fator de risco.
Os glaucomas crônicos de ângulo fechado e de ângulo aberto geralmente
são assintomáticos. Apenas o glaucoma agudo de ângulo fechado causa
hiperemia ou dor ocular, em razão da elevação abrupta da pressão intraocular.
Em todas as formas de glaucoma, a acuidade da fóvea é poupada até os estágios
finais da doença. Por esses motivos, é possível haver danos graves e irreversíveis
antes que paciente ou médico identifiquem o problema. Assim, é de vital
importância proceder ao rastreamento de pacientes para glaucoma avaliando-se a
razão escavação/disco e medindo-se a pressão intraocular. O tratamento do
glaucoma é feito com uso tópico de agonistas adrenérgicos e colinérgicos,
betabloqueadores, análogos das prostaglandinas e inibidores da anidrase
carbônica. Em alguns casos, a absorção sistêmica dos betabloqueadores a partir
do uso de colírios pode ser suficiente para causar efeitos colaterais, como
bradicardia, hipotensão, bloqueio de ramo, broncospasmo e depressão. O
tratamento da malha trabecular do ângulo da câmara anterior com laser melhora
a drenagem ocular do humor aquoso. Se os tratamentos clínicos e a laser não
conseguirem deter os danos ao nervo óptico provocados pelo glaucoma, a
conduta deverá ser a construção cirúrgica de um filtro (trabeculectomia) ou a
instalação de um dispositivo de drenagem para o escoamento do humor aquoso
do olho de maneira controlada.

Degeneração macular Nos pacientes idosos, esta é uma causa importante da


perda gradual, indolor e bilateral da visão central. Ocorre nas formas não
exsudativa (seca) e exsudativa (úmida). A inflamação pode ser importante em
ambas as formas de degeneração macular; a suscetibilidade está associada a
variações no gene que codifica o fator H do complemento, um inibidor da via
alternativa do complemento. O processo não exsudativo se inicia com o acúmulo
de depósitos extracelulares, denominados drusas, sob o epitélio pigmentar da
retina. Na oftalmoscopia, esses depósitos são pleomórficos, mas geralmente
aparecem como pequenas lesões amarelas distintas agrupadas na mácula (Fig. 28
-16). Com o tempo, tornam-se maiores, mais numerosos e tendem a confluir. O
epitélio pigmentar da retina fica atrófico e passa a apresentar descolamentos
focais, o que interfere na função dos fotorreceptores, levando à perda visual. O
tratamento feito com as vitaminas C e E, betacaroteno e zinco pode retardar a
degeneração macular seca.
FIGURA 28-16 A degeneração macular relacionada com a idade consiste em drusas amarelas
distribuídas na mácula (forma seca) e de um crescente de hemorragia temporal à fóvea com origem na
membrana neovascular sub-retiniana (forma exsudativa).

A degeneração macular exsudativa, que responde por uma minoria desses


casos, ocorre quando vasos neovasculares da coroide crescem, passando por
falhas na membrana de Bruch, e proliferam sob o epitélio pigmentado da retina
ou sob a retina. O vazamento a partir desses vasos produz elevação da retina,
com distorções (metamorfopsia) e turvação da visão. Embora a instalação dos
sintomas geralmente seja gradual, o sangramento a partir da membrana sub-
retiniana coroidal neovascular às vezes causa perda visual aguda. As membranas
neovasculares podem ser difíceis de serem visualizadas ao exame fundoscópico,
uma vez que se encontram sob a retina. A angiografia com fluoresceína e a OCT
são extremamente úteis para sua detecção. Hemorragias volumosas ou repetidas
sob a retina a partir de membranas neovasculares resultam em fibrose,
desenvolvimento de cicatriz macular redonda (em forma de disco) e perda
permanente da visão central.
Houve um grande avanço terapêutico com a descoberta de que a
degeneração macular exsudativa poderia ser tratada com injeção intraocular de
antagonistas do fator de crescimento do endotélio vascular. Administra-se
bevacizumabe, ranibizumabe ou aflibercepte por meio de injeção direta na
cavidade vítrea, inicialmente com frequência mensal. Esses anticorpos produzem
regressão das membranas neovasculares, bloqueando a ação do fator de
crescimento do endotélio vascular e, consequentemente, melhoram a acuidade
visual.

Coriorretinopatia serosa central Essa doença acomete principalmente homens


entre 20 e 50 anos de idade. O extravasamento de líquido seroso a partir da
coroide causa pequenos descolamentos localizados no epitélio pigmentado da
retina e na retina neurossensorial. Esses descolamentos, ao atingir a mácula,
produzem sintomas agudos ou crônicos de metamorfopsia e turvamento da
visão. São difíceis de serem vistos à oftalmoscopia direta, pois a retina descolada
é transparente, e a elevação, pequena. A OCT revela a presença de líquido sob a
retina e a angiografia com fluoresceína demonstra fluxo do corante para o espaço
sub-retiniano. Não se sabe a causa da coriorretinopatia serosa central. Os
sintomas poderão ceder espontaneamente se a retina readerir, mas é comum a
recorrência do descolamento. A fotocoagulação a laser tem sido benéfica em
alguns casos.

Retinopatia diabética Doença considerada rara até 1921, quando a descoberta


da insulina levou à melhora radical na expectativa de vida dos pacientes com
diabetes melito. Atualmente, a retinopatia do diabetes é uma das causas mais
importantes de cegueira nos Estados Unidos. A retinopatia leva anos para se
desenvolver, mas acaba por surgir em quase todos os casos. A vigilância regular,
feita por meio de fundoscopia com dilatação da pupila, é vital em todos os
pacientes diabéticos. Na retinopatia diabética avançada, a proliferação de vasos
neovasculares leva a cegueira por hemorragia vítrea, descolamento da retina e
glaucoma (Fig. 28-17). Na maioria dos pacientes, é possível evitar essas
complicações com o uso de fotocoagulação a laser panretiniana no momento
apropriado da evolução da doença. O tratamento antivascular com anticorpo
contra o fator de crescimento endotelial é igualmente efetivo, mas as injeções
intraoculares devem ser administradas repetidamente. Para uma discussão mais
ampla sobre as manifestações e o manejo da retinopatia diabética, ver Capít
ulos 396 a 398.
FIGURA 28-17 Retinopatia diabética proliferativa em homem de 25 anos de idade e história de 18 anos
de diabetes melito, com neovascularização originada no disco óptico, hemorragia de retina e vítreo,
exsudatos algodonosos e exsudato na mácula. As manchas redondas na periferia representam
fotocoagulação panretiniana recentemente aplicada.

Retinite pigmentosa Trata-se de termo geral utilizado para designar um grupo


diverso de distrofias dos cones e bastonetes caracterizadas por cegueira noturna
progressiva, constrição dos campos visuais com escotoma em anel, perda de
acuidade e alterações ao eletrorretinograma (ERG). Existem formas
autossômicas recessivas, dominantes, ligadas ao X e esporádicas. O nome da
doença tem origem dos depósitos irregulares de grumos de pigmento negro na
retina periférica, denominados espículas ósseas, dada a sua semelhança com as
espículas do osso esponjoso (Fig. 28-18). A denominação é imprópria, uma vez
que a retinite pigmentosa não é um processo inflamatório. A maioria dos casos
deve-se a uma mutação do gene da rodopsina (o fotopigmento do bastonete) ou
do gene da periferina, uma glicoproteína localizada nos segmentos externos dos
fotorreceptores. A vitamina A (15.000 UI/dia) retarda um pouco a piora do ERG
em pacientes com retinite pigmentosa, mas não produz benefícios na acuidade
ou nos campos visuais.

FIGURA 28-18 Retinite pigmentosa com depósitos de pigmento negro conhecidos como “espículas
ósseas”. O paciente apresentava perda de visão periférica com preservação da visão central (macular).

A amaurose congênita de Leber, uma rara distrofia de cones, tem sido


tratada com reposição da proteína RPE65 faltante por meio de terapia gênica,
com melhora discreta na função visual. Existem formas de retinite pigmentosa
associadas a doenças hereditárias sistêmicas raras, como a degeneração
olivopontinocerebelar, doença de Bassen-Kornzweig, síndrome de Kearns-Sayre
e doença de Refsum. O uso prolongado de cloroquina, hidroxicloroquina e
fenotiazínicos (sobretudo a tioridazina) pode causar uma retinopatia tóxica
semelhante à retinite pigmentosa com perda da visão. Os pacientes que recebem
tratamento por longo prazo com hidroxicloroquina necessitam de exames
oftalmológicos regulares para monitorar o potencial desenvolvimento de uma
maculopatia em “olho de boi”.
Membrana epirretiniana Trata-se de um tecido fibrocelular que cresce na
superfície interna da retina, distorcendo a mácula e causando metamorfopsia
além de redução da acuidade visual. Ao exame da retina, vê-se a membrana
enrugada, de aspecto semelhante a celofane. A membrana epirretiniana é mais
comum em pacientes com mais de 50 anos, sendo geralmente unilateral. A
maioria dos casos é idiopática, mas alguns são causados por retinopatia
hipertensiva, diabetes melito, descolamento da retina ou traumatismo. Quando a
acuidade visual chega a um nível em torno de 6/24 (20/80), recomendam-se
vitrectomia e peeling cirúrgico da membrana para reduzir o enrugamento da
mácula. A contração de membrana epirretiniana às vezes produz um buraco
macular. No entanto, a maioria desses buracos é causada por tração local do
vítreo dentro da fóvea. Em alguns casos, a vitrectomia melhora a acuidade
visual.

Melanoma e outros tumores O melanoma é o tumor ocular primário mais


comum (Fig. 28-19). Causa fotopsia, escotoma progressivo e perda da visão. Um
melanoma pequeno é muitas vezes difícil de diferenciar de um nevo coroidal
benigno. A comprovação de padrão de crescimento maligno requer exames
seriados. O tratamento do melanoma é controverso. Algumas das opções são
enucleação, ressecção local e irradiação. Os tumores oculares metastáticos são
mais comuns que os tumores oculares primários. Os carcinomas de pulmão e
mama são especialmente propensos a se disseminarem para a coroide e a íris. A
invasão dos tecidos oculares por leucemias e linfomas também é comum. Às
vezes, o único sinal ao exame do olho são restos celulares no vítreo, que podem
ter o mesmo aspecto da uveíte posterior crônica.
FIGURA 28-19 O melanoma da coroide aparece como massa elevada e escura no fundo inferior, com
hemorragia sobrejacente. A linha negra indica o plano do exame de tomografia de coerência óptica
(abaixo), revelando o tumor sub-retiniano.

Em pacientes com perda visual, deverá ser considerada a necessidade de TC


ou RM se a causa não for descoberta após cuidadosa revisão da história, campos
visuais e exame oftalmológico meticuloso. O meningioma da bainha do nervo
óptico é um tumor retrobulbar comum. Ele produz a clássica tríade de vasos de
shunt optociliar, atrofia óptica e perda visual progressiva. Edema do disco óptico
e proptose também são sinais frequentes. O glioma de nervo óptico em pacientes
jovens costuma ser um astrocitoma pilocítico e tem bom prognóstico para a
preservação da visão, especialmente na neurofibromatose tipo 1 (Cap. 118). Em
adultos, o glioma do nervo óptico é raro e altamente maligno. Os tumores do
quiasma (adenoma hipofisário, meningioma, craniofaringioma) produzem perda
visual com poucos achados objetivos com exceção de palidez do disco óptico. A
perda do campo visual temporal em ambos os olhos é tipicamente descrita, mas,
na verdade, os pacientes referem perda visual apenas em um dos olhos. Há
necessidade de alto grau de vigilância para evitar que um tumor do quiasma
passe despercebido. Embora os sintomas progridam gradualmente, raramente, a
súbita expansão de adenoma hipofisário causada por infarto e sangramento
(apoplexia hipofisária) leva a perda visual retrobulbar aguda, com cefaleia,
náusea e paralisia dos nervos oculomotores.

PROPTOSE
Quando os globos oculares parecerem assimétricos, o médico deverá avaliar,
inicialmente, qual dos olhos encontra-se anormal. Um dos olhos está recolhido
dentro da órbita (enoftalmia) ou é o outro que se encontra saliente (exoftalmia ou
proptose)? Um globo ocular pequeno ou a síndrome de Horner podem conferir o
aspecto de enoftalmia. A enoftalmia verdadeira ocorre após traumatismo, por
atrofia da gordura retrobulbar ou fratura do soalho da órbita. O exoftalmômetro
de Hertel, instrumento portátil que mede a posição da superfície anterior da
córnea em relação à borda lateral da órbita, possibilita que seja medida a posição
dos olhos dentro das órbitas. Na ausência desse instrumento, é possível avaliar a
posição relativa dos olhos pedindo-se ao paciente que incline a cabeça para
frente e observando as órbitas de cima. Nessa posição, é possível detectar uma
proptose monocular de apenas 2 mm. A proptose sugere lesão expansiva dentro
da órbita e geralmente justifica o exame por TC ou RM.

Oftalmopatia de Graves É a principal causa da proptose em adultos (Cap.


375). A proptose é, muitas vezes, assimétrica e pode até parecer unilateral. A
inflamação orbitária e o ingurgitamento dos músculos extraoculares, sobretudo
do reto medial e do reto inferior, causam a protrusão do globo. Outros sintomas
importantes são exposição da córnea, retração das pálpebras, retardo palpebral
no olhar para baixo, hiperemia conjuntival, restrição da mobilidade ocular,
diplopia e perda de acuidade visual por compressão do nervo óptico. A
oftalmopatia de Graves é um diagnóstico clínico, mas alguns exames
complementares podem ser úteis. O nível sérico da imunoglobulina estimulante
da tireoide frequentemente está elevado. Os exames de imagem da órbita
geralmente revelam aumento dos músculos extraoculares, mas isso não é
obrigatório. A oftalmopatia de Graves pode ser tratada com prednisona oral (60
mg/dia) durante 1 mês, com retirada progressiva por vários meses a partir de
então. É comum haver piora dos sintomas com a retirada do glicocorticoide.
Lubrificantes tópicos, fechamento das pálpebras durante a noite, uso de câmaras
úmidas e cirurgia palpebral são meios utilizados para reduzir a exposição dos
tecidos oculares. A radioterapia não é efetiva. Em caso de exoftalmia grave e
sintomática ou de redução da função visual em razão de compressão do nervo
óptico, deve-se proceder à descompressão da órbita. Nos pacientes com diplopia,
o uso de prisma ou a cirurgia da musculatura ocular podem ser usados para
restaurar o alinhamento ocular na posição primária do olhar.

Pseudotumor orbitário (Ver Vídeo 28-17) Trata-se de síndrome inflamatória


idiopática da órbita diferenciada da oftalmopatia de Graves pela queixa
destacada de dor. Outros sintomas são ptose, proptose e congestão da órbita. A
investigação para sarcoidose, granulomatose com poliangeíte e outros tipos de
vasculite da órbita ou doença do colágeno é negativa. Os exames radiológicos
muitas vezes revelam edema dos músculos oculares (miosite orbitária) com
aumento dos tendões. Na oftalmopatia de Graves, geralmente não há alteração
nos tendões dos músculos oculares. A síndrome de Tolosa-Hunt (Cap. 433) pode
ser considerada como uma extensão de pseudotumor orbitário passando pela
fissura orbitária superior até o seio cavernoso. O diagnóstico de pseudotumor
orbitário é difícil. A biópsia da órbita muitas vezes rende apenas achados
inespecíficos, como infiltração da gordura por linfócitos, plasmócitos e
eosinófilos. Uma resposta impressionante ao tratamento empírico com
glicocorticoides é, indiretamente, o melhor meio de comprovar o diagnóstico.

Celulite orbitária A celulite orbitária causa dor, eritema palpebral, proptose,


quemose conjuntival, mobilidade restrita, acuidade reduzida, defeito pupilar
aferente, febre e leucocitose. Surge com frequência nos seios paranasais. Uma
causa comum é a disseminação por contiguidade de infecções do seio etmoidal
por meio da lâmina papirácea da órbita medial. História recente de infecções do
trato respiratório superior, secreções mucosas espessas ou doença dentária são
dados significativos quando há suspeita de celulite orbitária. Devem-se obter
hemoculturas, embora com frequência sejam negativas. A maioria dos pacientes
responde bem à antibioticoterapia empírica de amplo espectro por via IV.
Ocasionalmente, a celulite orbitária evolui de forma fulminante, com proptose
maciça, cegueira, trombose séptica do seio cavernoso e meningite. Para evitar
esse desastre, a doença deve ser tratada precocemente e de forma agressiva, com
exames de imagem da órbita e antibioticoterapia imediata com cobertura para
Staphylococcus aureus resistente à meticilina (MRSA). Se a função do nervo
óptico continuar se deteriorando a despeito da antibioticoterapia, há indicação
para drenagem cirúrgica imediata de abscesso orbitário ou de rinossinusite
paranasal.

Tumores Os tumores da órbita causam proptose progressiva e indolor. Os


tumores primários mais comuns são hemangioma cavernoso, linfangioma,
neurofibroma, schwannoma, cisto dermoide, carcinoma adenoide cístico, glioma
do nervo óptico, meningioma do nervo óptico e tumor misto benigno da glândula
lacrimal. As metástases para a órbita são frequentes nos carcinomas de mama e
de pulmão, bem como no linfoma. Com o diagnóstico por punção com agulha
fina, seguido de radioterapia urgente, algumas vezes é possível preservar a visão.

Fístulas carotidocavernosas Essas fístulas, ao drenarem anteriormente através


da órbita, causam proptose, diplopia, glaucoma e vasos conjuntivais
arterializados em saca-rolhas. A causa mais comum das fístulas diretas é o
traumatismo. O diagnóstico é fácil em razão dos sinais eloquentes produzidos
pelo shunt com fluxo de alto débito e pressão elevada. As fístulas indiretas, ou
malformações arteriovenosas da dura-máter, surgem geralmente de maneira
espontânea, sendo mais comuns em mulheres idosas. Seus sinais são mais sutis,
e os erros de diagnóstico, frequentes. A combinação de proptose leve, diplopia,
aumento dos músculos e hiperemia ocular leva muitas vezes a um diagnóstico
errôneo de oftalmopatia tireóidea (ver Vídeo 28-16). A presença de sopro,
auscultado na cabeça ou descrito pelo paciente, é uma pista diagnóstica
importante. Os exames de imagem revelam aumento da veia oftálmica superior
dentro da órbita. Os shunts carotidocavernosos podem ser eliminados com
embolização intravascular.

PTOSE
Blefaroptose Trata-se de queda anormal da pálpebra. A ptose, uni ou bilateral,
pode ser congênita e causada por disgenesia do levantador da pálpebra superior
ou por inserção anômala de sua aponeurose na pálpebra. A ptose adquirida pode
ter uma evolução tão insidiosa que o paciente não percebe o problema. O exame
de fotografias antigas ajuda a determinar a época em que o problema se iniciou.
Na anamnese, devem-se procurar antecedentes de traumatismo, cirurgia ocular,
uso de lentes de contato, diplopia, sintomas sistêmicos (p. ex., disfagia ou
fraqueza muscular periférica) ou história familiar de ptose. Uma ptose flutuante
que piora no final do dia é característica da miastenia gravis. Na avaliação da
ptose, devem-se pesquisar evidências de proptose, massas ou deformidades
palpebrais, inflamação, anisocoria ou perda de mobilidade. Para determinar o
grau de ptose, mede-se a largura das fissuras palpebrais com o paciente na
posição primária do olhar. O grau de ptose será subestimado se o paciente
procurar compensar levantando as sobrancelhas com o músculo frontal.

Ptose mecânica Ocorre em muitos pacientes idosos em razão de estiramento e


redundância da pele das pálpebras, bem como da gordura subcutânea
(dermatocalase). O peso desses tecidos redundantes leva à queda da pálpebra. O
aumento ou a deformação da pálpebra por infecção, tumor, traumatismo ou
inflamação também causam ptose puramente mecânica.

Ptose aponeurótica Consiste em deiscência adquirida ou estiramento do tendão


aponeurótico que liga o músculo levantador à lâmina tarsal da pálpebra. Mais
comum em pacientes idosos, aparentemente é causada pela diminuição da
elasticidade do tecido conectivo. A ptose aponeurótica também constitui sequela
comum do edema palpebral causado por infecção ou traumatismo contundente
da pálpebra, cirurgia de catarata ou uso de lentes de contato.

Ptose miogênica Entre as causas de ptose miogênica estão a miastenia gravis (C


ap. 440) e algumas miopatias raras que se manifestam com ptose. O termo
oftalmoplegia externa crônica progressiva (Vídeo 28-11) refere-se a uma série
de doenças sistêmicas causadas por mutações do DNA mitocondrial. Como o
nome indica, os achados mais comuns são ptose simétrica de progressão lenta e
limitação da mobilidade ocular. A diplopia é geralmente tardia, pois a redução
dos movimentos oculares é simétrica. Na variante da doença de Kearns-Sayre,
há alterações na pigmentação da retina e anomalias da condução cardíaca. A
biópsia de músculos periféricos mostra as típicas “fibras vermelhas rotas”. A
distrofia oculofaríngea é uma doença autossômica dominante distinta que se
inicia na meia-idade, caracterizada por ptose, limitação dos movimentos oculares
e disfagia. A distrofia miotônica, outra doença autossômica dominante, causa
ptose, oftalmoparesia, catarata e retinopatia pigmentar. Os pacientes apresentam
perda de massa muscular, miotonia, alopécia frontal e anormalidades cardíacas.

Ptose neurogênica Resulta de lesões que afetam a inervação de qualquer dos


dois músculos que elevam a pálpebra: o músculo de Müller ou o levantador da
pálpebra superior. O exame da pupila ajuda a distinguir entre essas duas
possibilidades. Na síndrome de Horner, a pupila do olho com ptose fica menor, e
os movimentos oculares estão mantidos. Na paralisia do nervo oculomotor, a
pupila do olho com ptose encontra-se normal ou aumentada. Se a pupila estiver
normal, mas houver limitação da adução, da elevação e da depressão, é provável
que haja paralisia do oculomotor sem acometimento da pupila (ver adiante).
Raramente, uma lesão do pequeno subnúcleo central do complexo oculomotor
causa ptose bilateral com movimentos oculares e pupilas normais.

VISÃO DUPLA (DIPLOPIA)


A primeira pesquisa a ser realizada é se a diplopia persiste em um dos olhos
quando o outro é coberto. Caso positivo, o diagnóstico é diplopia monocular. A
causa geralmente é intrínseca ao olho e, portanto, não há implicações nefastas
para o paciente. Algumas causas de diplopia monocular são aberrações da córnea
(p. ex., ceratocone e pterígio), erros de refração não corrigidos, catarata e tração
da fóvea. Às vezes, trata-se de um sintoma de simulação ou uma doença
psiquiátrica. A diplopia que desaparece ao cobrir um dos olhos é chamada
diplopia binocular, sendo causada por alterações do alinhamento ocular. Deve-se
perguntar ao paciente sobre a natureza do sintoma (se o deslocamento da
imagem é apenas lateral ou se também tem um componente vertical), o modo de
início, a duração, a intermitência, a variação durante o dia e os sintomas
neurológicos ou sistêmicos associados. Se o paciente manifestar diplopia durante
a consulta, o exame da mobilidade ocular deverá revelar a deficiência que
corresponda aos sintomas do paciente. No entanto, pequenas deficiências da
movimentação ocular podem ser difíceis de se detectar. Por exemplo, a
mobilidade ocular de um paciente que tem paresia leve do nervo abducente pode
parecer normal, embora o indivíduo manifeste diplopia horizontal ao olhar para a
esquerda. Em tal situação, o teste de cobertura é um método mais sensível para
avaliar o mau alinhamento ocular. Esse teste deve ser feito primeiro com o
paciente na posição primária do olhar e, depois, com a cabeça virada e inclinada
em cada direção. No exemplo anterior, o teste de cobertura com a cabeça virada
para a direita maximiza o deslocamento da fixação produzido pelo teste.
Às vezes, durante exame de rotina, encontram-se desvios oculares em
pacientes assintomáticos. Se os movimentos oculares estiverem normais, e o
desalinhamento ocular for igual em todas as direções do olhar (desvio
concomitante), o diagnóstico será estrabismo. Nessa doença, que acomete 1% da
população, a fusão é interrompida na primeira infância. Para evitar a diplopia, os
estímulos que chegam à retina do olho não fixante podem ser parcialmente
suprimidos. Em algumas crianças, isso leva a prejuízo da visão (ambliopia ou
olho “preguiçoso”) no olho desviado.
Há várias causas de diplopia binocular: infecciosas, neoplásicas,
metabólicas, degenerativas, inflamatórias e vasculares. É preciso determinar se a
diplopia é de origem neurogênica ou causada por restrições da rotação do globo
ocular decorrentes de doenças locais na órbita. Pseudotumor orbitário, miosite,
infecção, tumores, doença tireóidea e pinçamento da musculatura (p. ex., na
fratura do soalho da órbita) causam diplopia restritiva. O diagnóstico de restrição
em geral é feito pelo reconhecimento de outros sinais e sintomas associados de
doença orbitária local. O exame de imagem de alta resolução dedicado à órbita é
útil quando a causa da diplopia não é evidente.

Miastenia gravis (Ver também Cap. 440 e Vídeo 28-13) Trata-se da principal
causa de diplopia indolor. A diplopia, muitas vezes, é intermitente, variável e não
se restringe a uma única distribuição de nervos motores oculares. As pupilas
sempre estão normais. Medidas seriadas de uma ptose fatigável variável,
geralmente acompanhada por diplopia, são úteis para estabelecer o diagnóstico.
Muitos pacientes apresentam uma forma exclusivamente ocular da doença, sem
sinais de fraqueza muscular sistêmica. O diagnóstico pode ser confirmado por
injeção IV de edrofônio, que produz reversão transitória da fraqueza palpebral
ou da musculatura ocular. Os testes sanguíneos para anticorpos contra o receptor
da acetilcolina ou antiproteína MuSK são frequentemente negativos na forma
puramente ocular da miastenia gravis. O botulismo, por intoxicação alimentar ou
por ferimentos, pode simular miastenia ocular.
Tendo sido excluídas as possibilidades de doença orbitária restritiva e de
miastenia gravis, a causa mais provável para diplopia binocular é lesão de um
dos nervos cranianos que suprem os músculos extraoculares.

Nervo oculomotor O terceiro nervo craniano inerva os retos medial, inferior e


superior, o oblíquo inferior, o levantador da pálpebra superior e o esfincter da
íris. A paralisia total do nervo oculomotor (Vídeo 28-1) causa ptose, midríase e
deixa o olho desviado “para baixo e para fora”, em razão da ação sem oposição
do reto lateral e do oblíquo superior. Com essa combinação de achados, o
diagnóstico é óbvio. Mais difícil é o diagnóstico de paralisia inicial ou parcial do
nervo oculomotor. Nesse quadro, é possível haver qualquer combinação de
ptose, dilatação pupilar e fraqueza dos músculos oculares inervados pelo nervo
oculomotor. Devem-se fazer exames seriados frequentes durante a fase
rapidamente evolutiva da paralisia para que o diagnóstico não passe
despercebido. O surgimento de paralisia do nervo oculomotor com
acometimento pupilar, especialmente quando acompanhada de dor, sugere lesão
compressiva, como um tumor ou aneurisma no polígono de Willis. Nesses casos,
é necessário solicitar exames de neuroimagem com urgência, além de
angiografia por TC e RM. Com a melhora na resolução dessas técnicas não
invasivas, a angiografia por cateter raramente é necessária para a exclusão de um
aneurisma.
A lesão do núcleo do oculomotor, situado no mesencéfalo rostral, produz
sinais diferentes dos encontrados nos casos de lesão do nervo. Ocorre ptose
bilateral, pois o músculo levantador é inervado por um único subnúcleo central.
Há também perda de força do reto superior contralateral, uma vez que o músculo
é inervado pelo núcleo oculomotor contralateral. Às vezes, há perda de força
motora nos dois retos superiores. A paralisia isolada no núcleo oculomotor é
rara. O exame neurológico geralmente revela outros sinais de lesão do tronco
encefálico por infarto, hemorragia, tumor ou infecção.
As lesões nas estruturas que circundam os fascículos do nervo oculomotor e
que descem pelo mesencéfalo deram origem a uma série de epônimos clássicos.
Na síndrome de Nothnagel, a lesão do pedúnculo cerebelar superior produz
paralisia oculomotora ipsilateral com ataxia cerebelar contralateral. Na síndrome
de Benedikt, a lesão do núcleo rubro causa paralisia oculomotora ipsilateral com
tremor, coreia e atetose contralaterais. A síndrome de Claude é a combinação das
duas síndromes anteriores, pois há lesão simultânea do núcleo rubro e pedúnculo
cerebelar superior. Finalmente, na síndrome de Weber, a lesão do pedúnculo
cerebral causa paralisia oculomotora ipsilateral com hemiparesia contralateral.
No espaço subaracnóideo, o nervo oculomotor pode ser lesionado por
aneurismas, meningite, tumores, infarto e compressão. Na herniação cerebral, o
nervo fica preso entre a borda tentorial e o processo unciforme do lobo temporal.
Durante a herniação, a torção do mesencéfalo e as hemorragias associadas
também podem causar paralisia oculomotora. No seio cavernoso, a paralisia
oculomotora origina-se de aneurisma carotídeo, fístula carotidocavernosa,
trombose do seio cavernoso, tumor (adenoma hipofisário, meningioma,
metástases), infecção por herpes-zóster e síndrome de Tolosa-Hunt.
A etiologia de uma paralisia oculomotora isolada com pupila normal muitas
vezes não é esclarecida mesmo após neuroimagem e pesquisa laboratorial
extensa. Acredita-se que a maioria dos casos decorra de infartos microvasculares
do nervo em algum ponto do seu trajeto do tronco encefálico até a órbita. O
paciente costuma se queixar de dor. Diabetes melito, hipertensão arterial e
doenças vasculares são fatores de risco importantes. A recuperação espontânea,
que ocorre ao longo de meses, é a regra. Se não houver recuperação ou surgirem
novos sinais ou sintomas, o diagnóstico de paralisia oculomotora microvascular
deve ser reavaliado. Quando há lesão do nervo oculomotor por traumatismo ou
compressão (tumor, aneurisma), é comum haver regeneração aberrante. A
conexão errônea das fibras que inervam os músculos levantador e retos produz
elevação da pálpebra quando o paciente realiza adução do globo ou quando olha
para baixo. A pupila também se contrai à tentativa de adução, elevação ou
depressão do globo. A regeneração aberrante não é encontrada após paralisia
oculomotora por infarto microvascular e, portanto, sua ocorrência invalida esse
diagnóstico.

Nervo troclear O quarto nervo craniano se origina no tronco encefálico e é


ligeiramente caudal na sua relação com o complexo do nervo oculomotor. As
fibras saem pelo dorso do tronco encefálico e cruzam para inervar o oblíquo
superior contralateral. As ações mais importantes do músculo são baixar e fazer
convergir os globos oculares. Por isso, a paralisia produz hipertropia e
exciclotorção. A ciclotorção raramente é notada pelos pacientes. Eles se queixam
de diplopia vertical, principalmente quando leem ou quando olham para baixo. A
inclinação da cabeça para o lado da paralisia também exacerba a diplopia
vertical, e a inclinação para o outro lado a alivia. Esse teste de inclinação da
cabeça é uma manobra vital para o diagnóstico.
Todas as etiologias anteriormente descritas, exceto o aneurisma, para a
paralisia oculomotora também se aplicam à paralisia isolada no nervo troclear. O
nervo troclear é especialmente propenso a lesões após traumatismo craniano
fechado. Acredita-se que a borda livre do tentório comprima o nervo quando a
cabeça é golpeada e há concussão. A maioria dos casos de paralisia isolada do
nervo troclear é idiopática. O diagnóstico de paralisia “microvascular” acaba
sendo feito por exclusão. Na maioria dos pacientes, há melhora espontânea ao
longo de meses. Um prisma com a base para baixo (que pode ser colado aos
óculos dos pacientes como uma lente de Fresnel destacável) pode aliviar
temporariamente a diplopia. Se a paralisia não melhorar, os olhos poderão ser
realinhados através do enfraquecimento do músculo oblíquo inferior.

Nervo abducente O sexto nervo craniano inerva o músculo reto lateral. A


paralisia desse nervo produz diplopia horizontal, que piora quando o paciente
olha para o lado da lesão. Uma lesão nuclear produz sinais e sintomas diferentes,
pois o núcleo abducente contém interneurônios que percorrem o fascículo
longitudinal medial até o subnúcleo do reto medial do complexo oculomotor
contralateral. Assim, a lesão nuclear do abducente produz paralisia completa do
olhar lateral por fraqueza dos músculos reto lateral ipsilateral e reto medial
contralateral. A síndrome de Foville é causada por lesões dorsais da ponte e tem
como sintomas paralisia do olhar lateral, paralisia facial ipsilateral e hemiparesia
contralateral, causada por danos às fibras corticospinais descendentes. A
síndrome de Millard-Gubler, causada por lesões ventrais da ponte, é idêntica,
exceto pelos achados oculares. Nessa síndrome, há apenas fraqueza do reto
lateral, e não paralisia do olhar, pois ocorre lesão do fascículo abducente, e não
do núcleo. As etiologias mais comuns para a paralisia do abducente ao nível do
tronco encefálico são infarto, tumor, hemorragia, malformação vascular e
esclerose múltipla.
Após deixar a ponte ventral, o nervo abducente avança no sentido anterior
ao longo do clivo, perfura a dura-máter na altura do ápice petroso e entra no seio
cavernoso. Em seu trajeto subaracnóideo, está suscetível a meningite, tumores
(meningioma, cordoma, meningite carcinomatosa), hemorragia subaracnóidea,
traumatismo e compressão por aneurismas ou vasos dolicoectásicos. No ápice
petroso, a mastoidite pode causar surdez, dor e paralisia ipsilateral do abducente
(síndrome de Gradenigo). No seio cavernoso, o abducente pode ser atingido por
aneurisma da carótida, fístula carotidocavernosa, tumores (adenoma hipofisário,
meningioma, carcinoma nasofaríngeo), infecções herpéticas e síndrome de
Tolosa-Hunt.
A paralisia uni ou bilateral do abducente é um sinal clássico de hipertensão
intracraniana (ver Vídeo 28-3). A visualização de papiledema à fundoscopia
confirma o diagnóstico. O mecanismo da paralisia ainda é controverso, mas a
causa parece ser o deslocamento rostrocaudal do tronco encefálico. Esse mesmo
fenômeno explica a paralisia do abducente por malformação de Chiari (Vídeo 28
-19) ou por queda da pressão intracraniana (p. ex., após punção lombar,
raquianestesia ou extravasamento dural espontâneo de líquido cerebrospinal).
O tratamento da paralisia do abducente visa à rápida correção da causa
subjacente. No entanto, a causa primária muitas vezes permanece obscura
mesmo após cuidadosas investigações. Assim como nos casos descritos
anteriormente de paralisias oculomotora ou troclear isoladas, acredita-se que a
maioria dos casos seja causada por infartos microvasculares, porque é comum a
presença de diabetes melito ou de outros fatores de risco vasculares. Em alguns
casos, pode haver mononeurite pós-infecciosa (p. ex., após influenza). A
cobertura de um dos olhos, a oclusão de uma das lentes dos óculos com fita ou o
uso de prisma aliviam a diplopia até que a paralisia melhore. Se a recuperação
for incompleta, a cirurgia da musculatura ocular quase sempre conseguirá
realinhar os olhos, pelo menos em sua posição primária. Nos pacientes que
apresentem paralisia do abducente sem melhora espontânea, deve-se procurar
por etiologia oculta (p. ex., cordoma, meningite carcinomatosa, fístula
carotidocavernosa, miastenia gravis). Os tumores da base do crânio facilmente
passam despercebidos mesmo com neuroimagem com contraste.

Paralisias de múltiplos nervos oculomotores Tais paralisias não devem ser


atribuídas a eventos microvasculares espontâneos que só atingem um nervo de
cada vez. Essa notável coincidência, de fato, ocorre sobretudo nos pacientes
diabéticos, mas o diagnóstico só é possível em retrospecto, quando todas as
demais possibilidades tiverem sido excluídas. A neuroimagem deve ser
concentrada em seio cavernoso, fissura orbitária superior e ápice da órbita, onde
os três nervos motores oculares estão mais próximos. No paciente diabético ou
imunocomprometido, as infecções fúngicas (por Aspergillus, Mucorales e
Cryptococcus) são causas comuns de paralisia de múltiplos nervos. Nos
pacientes com câncer sistêmico, a meningite carcinomatosa é um diagnóstico
provável. O exame citológico pode resultar negativo, mesmo quando são
examinadas várias amostras de líquido cerebrospinal. A síndrome miastênica
paraneoplásica de Lambert-Eaton também pode causar oftalmoplegia. A arterite
(temporal) de células gigantes às vezes se manifesta por diplopia, causada por
paralisia isquêmica dos músculos extraoculares. A síndrome de Fisher, uma
variante ocular da síndrome de Guillain-Barré, causa oftalmoplegia com
arreflexia e ataxia. A ataxia muitas vezes é suave, e os reflexos podem estar
normais. Em cerca de 50% dos casos, são detectados anticorpos antigangliosídeo
(GQ1b). Ver também Vídeos 28-2 e 28-7.

Distúrbios supranucleares do olhar Esses distúrbios muitas vezes são


confundidos com paralisias de múltiplos nervos oculares. A encefalopatia de
Wernicke (Vídeo 28-18), por exemplo, pode causar nistagmo e déficit parcial do
olhar vertical ou do horizontal, simulando uma paralisia combinada dos nervos
abducente e oculomotor. Essa doença atinge os pacientes desnutridos ou
alcoolistas, ou após cirurgia bariátrica, podendo ser revertida com tiamina.
Outras causas importantes de paralisia supranuclear do olhar são infarto,
hemorragia, tumor, esclerose múltipla, encefalite, vasculite e doença de Whipple.
Os distúrbios do olhar vertical, sobretudo dos movimentos sacádicos para baixo,
são um sinal precoce da paralisia supranuclear progressiva. O movimento de
perseguição suave com o olhar é afetado mais adiante no curso da doença.
Doença de Parkinson, doença de Huntington e degeneração
olivopontinocerebelar também podem afetar o olhar vertical.
O campo ocular frontal do córtex cerebral participa da geração de
movimentos sacádicos do lado contralateral. Após acidente vascular hemisférico,
os olhos costumam apontar para o lado lesionado em razão da falta de oposição à
ação do campo ocular frontal no hemisfério normal. Esse déficit melhora com o
tempo. As convulsões tendem a ter efeito oposto: causam desvio conjugado dos
olhos para longe do foco de irritação. Lesões parietais prejudicam a perseguição
suave de objetos que se movam em direção ao lado da lesão. Lesões parietais
bilaterais produzem a síndrome de Bálint, caracterizada por deficiência da
coordenação mão-olho (ataxia óptica), dificuldade de iniciar movimentos
voluntários oculares (apraxia ocular [Vídeo 28-14]) e desorientação
visuoespacial (simultanagnosia).

Olhar horizontal Os impulsos corticais descendentes que controlam o olhar


horizontal convergem na ponte. Os neurônios da formação reticular pontina
paramediana controlam o olhar conjugado ipsilateral. Eles vão direto para o
núcleo abducente ipsilateral. Uma lesão nessa região pontina ou no núcleo do
abducente produz paralisia ipsilateral do olhar conjugado. A lesão em qualquer
desses pontos produz síndromes clínicas quase idênticas, com a seguinte
exceção: a estimulação vestibular (manobra oculocefálica ou de irrigação
calórica) produz desvio conjugado dos olhos para o lado lesionado nos pacientes
que apresentem lesão da formação reticular pontina paramediana, mas não nos
portadores de lesão do núcleo abducente.

OFTALMOPLEGIA INTERNUCLEAR É causada por danos ao fascículo


longitudinal medial, que sobe do núcleo abducente na ponte ao núcleo
oculomotor no mesencéfalo (por isso a denominação “internuclear”). A lesão das
fibras que levam o sinal conjugado dos interneurônios do abducente aos
motoneurônios do reto medial contralateral produz uma falha da adução à
tentativa de olhar lateralmente. Por exemplo, um paciente com oftalmoplegia
internuclear (OIN) esquerda terá os movimentos de adução do olho esquerdo
diminuídos ou ausentes (Fig. 28-20 e Vídeo 28-5). O paciente que apresenta
lesão bilateral do fascículo longitudinal medial terá OIN bilateral. A causa mais
comum é a esclerose múltipla, mas a lesão também pode ser provocada por
tumores, acidentes vasculares, traumatismo ou qualquer processo no tronco
encefálico. A síndrome um-e-meio (Vídeo 28-6) é causada por lesão combinada
do fascículo longitudinal medial e do núcleo abducente ou da formação reticular
pontina paramediana do mesmo lado. O único movimento ocular horizontal
desses pacientes é a abdução do olho contralateral.
FIGURA 28-20 Oftalmoplegia internuclear (OIN) esquerda. A. Na posição inicial do olhar, os olhos
parecem normais. B. O olhar horizontal para a esquerda encontra-se intacto. C. Ao tentar mover o olhar
horizontalmente para a direita, o olho esquerdo não consegue aduzir. Nos pacientes levemente acometidos,
o olho é capaz de aduzir parcialmente ou de forma mais lenta do que o normal. Geralmente, há nistagmo no
olho abduzido. D. A ressonância magnética ponderada em T2 axial através da ponte mostra uma placa
desmielinizante no fascículo longitudinal medial esquerdo (seta).

Olhar vertical É controlado ao nível do mesencéfalo. Não foram esclarecidos


quais circuitos neuronais estão afetados nos distúrbios do olhar vertical. No
entanto, sabe-se que lesões do núcleo rostral intersticial do fascículo longitudinal
medial e do núcleo intersticial de Cajal causam paralisia supranuclear do olhar
para cima, do olhar para baixo ou de todos os movimentos oculares verticais. A
etiologia mais comum é a isquemia da artéria basilar distal. O estrabismo
vertical é o desalinhamento vertical dos olhos que, geralmente, permanece
constante em qualquer posição do olhar. Nesses casos, é difícil localizar a lesão,
pois já foi descrito estrabismo vertical após lesões de diversas áreas do tronco
encefálico e do cerebelo.

SÍNDROME DE PARINAUD (VÍDEO 28-4) Também denominada síndrome


mesencefálica dorsal, trata-se de distúrbio supranuclear peculiar do olhar vertical
causado por lesão da comissura posterior. É um sinal clássico de hidrocefalia por
estenose do aqueduto. Outras causas da síndrome de Parinaud são tumores da
região pineal ou do mesencéfalo, cisticercose e AVCs. Essa síndrome tem como
características a perda do olhar para cima (e, às vezes, para baixo), nistagmo de
convergência-retração à tentativa de olhar para cima, desvio ocular para baixo
(sinal do sol poente), retração palpebral (sinal de Collier), estrabismo vertical,
pseudoparalisia do abducente, bem como dissociação dos reflexos fotomotor e
de acomodação pupilares.

Nistagmo É uma oscilação rítmica dos olhos. Pode ser fisiológico, em resposta a
estímulos vestibulares ou optocinéticos, ou patológico. Várias doenças podem
provocar nistagmo (Cap. 19). As anormalidades dos olhos e dos nervos ópticos,
presentes ao nascimento ou adquiridas na infância, podem provocar nistagmo
complexo, com movimentos de busca, componentes pendulares (sinusoidais) e
verticais. São exemplos o albinismo, a amaurose congênita de Leber e a catarata
bilateral. Esse tipo de nistagmo é comumente referido como nistagmo sensitivo
congênito. Trata-se de denominação inadequada, porque, mesmo em crianças
com lesão congênita, o nistagmo só aparece semanas após o nascimento. O
nistagmo motor congênito, semelhante ao nistagmo sensorial congênito, surge na
ausência de qualquer anormalidade do sistema visual sensorial. A acuidade
visual também se mostra reduzida no nistagmo motor congênito provavelmente
em razão do próprio nistagmo, mas raramente abaixo de 20/200. Ver também Ví
deo 28-10.

NISTAGMO ONDULATÓRIO Caracteriza-se por afastamento lento do ponto


de observação, seguido de movimento sacádico rápido corretivo. Por convenção,
o nistagmo é denominado segundo sua fase rápida. Pode ser vertical (para baixo
ou para cima), horizontal (para qualquer dos lados) ou rotacional. O padrão do
nistagmo pode variar de acordo com a posição do olhar. Alguns pacientes não
percebem que têm nistagmo. Outros referem visão turva com movimento
subjetivo de vaivém do ambiente (oscilopsia) e que corresponde ao nistagmo. Os
nistagmos suaves podem ser difíceis de serem percebidos ao exame dos olhos
sem uso de equipamentos. A observação de movimentos nistagmoides do disco
óptico à fundoscopia é um método sensível para a detecção dos nistagmos sutis.
Ver também Vídeo 28-9.

NISTAGMO SUSCITADO PELO OLHAR É a forma mais comum de


nistagmo ondulatório. Quando assumem posições excêntricas nas órbitas, os
olhos têm uma tendência natural a voltar à sua posição anterior. O indivíduo
compensa com um movimento sacádico corretivo para manter o olho desviado
em posição. Muitas pessoas normais apresentam nistagmo leve suscitado pelo
olhar. Algumas substâncias podem exacerbá-lo (sedativos, anticonvulsivantes,
álcool). As outras causas são paresia muscular, miastenia gravis, doenças
desmielinizantes e lesões do cerebelo, tronco encefálico e ângulo pontocerebelar.

NISTAGMO VESTIBULAR O nistagmo vestibular é causado por disfunção de


labirinto (doença de Ménière), nervo vestibular ou núcleo vestibular no tronco
encefálico. O nistagmo vestibular periférico muitas vezes ocorre em episódios
isolados, junto com sintomas de náuseas e vertigem. Podem ocorrer zumbido e
disacusia associados. Mudanças súbitas na posição da cabeça podem provocar
ou piorar os sintomas.

NISTAGMO DE BATIMENTO DESCENDENTE O nistagmo de batimento


descendente resulta de lesões próximas da junção craniocervical (malformação
de Chiari, invaginação basilar). Também foi relatado em AVC de tronco
encefálico ou de cerebelo, intoxicação por lítio ou por anticonvulsivante,
alcoolismo e esclerose múltipla. O nistagmo vertical superior está associado a
danos no tegumento pontino por acidentes vasculares, desmielinização ou
tumores.

Opsoclonia Esse distúrbio raro e impressionante dos movimentos oculares


consiste em salvas de movimentos sacádicos consecutivos (sacadomania).
Quando tais movimentos se restringem ao plano horizontal, prefere-se a
designação flutter ocular (Vídeo 28-12). Pode ocorrer na encefalite viral, no
traumatismo ou como efeito paraneoplásico de neuroblastoma, carcinoma de
mama e outros tumores. Também já foi descrito como fenômeno benigno e
transitório em pacientes sadios.

LEITURAS ADICIONAIS
Bainbridge JW et al: Long-term effect of gene therapy on Leber’s congenital
amaurosis. N Engl J Med 372:1887, 2015.
Buttgerei TF et al: Polymyalgia rheumatica and giant cell arteritis. JAMA
315:2442, 2016.
Campochiaro PA et al: Anti-vascular endothelial growth factor agents in the
treatment of retinal disease. Ophthalmology 123:S78, 2016.
Gross JG et al: Panretinal photocoagulation vs intravitreous ranibizumab for
proliferative diabetic retinopathy. JAMA 314:2137, 2015.
Jaffe GJ et al: Adalimumbab in patients with active noninfectious uveitis. N Engl
J Med 375:932, 2016.
Pearson RA et al: Donor and host photoreceptors engage in material transfer
following transplantation of post-mitotic photoreceptor precursors. Nat
Commun 7:13029, 2016.
Stone JH et al: Trial of tocilizumab in giant-cell arteritis. N Engl J Med 377:317,
2017.
Wall M et al: Effect of acetazolamide on visual function in patients with
idiopathic intracranial hypertension and mild visual loss: The idiopathic
intracranial hypertension treatment trial. JAMA 311:1641, 2014.
Williams PA et al: Vitamin B3 modulates mitochrondrial vulner-ability and
prevents glaucoma in aged mice. Science 355:756, 2017.
Yanoff M, Duker J: Ophthalmology, 4th ed. Atlanta, Georgia, Saunders, 2014.
29
Distúrbios do olfato e do paladar
Richard L. Doty, Steven M. Bromley

Todas as substâncias químicas necessárias à vida penetram no corpo pelo nariz e


pela boca. Os sentidos de odor (olfato) e sabor (paladar) monitoram tais
substâncias químicas, determinam o aroma e a palatabilidade de alimentos e
bebidas e alertam para condições ambientais perigosas, incluindo fogo, poluição
do ar, escape de gás natural e alimentos contaminados com bactérias. Esses
sentidos contribuem significativamente para a qualidade de vida e, quando
comprometidos, podem levar a consequências físicas e psicológicas indesejadas.
De fato, um recente estudo longitudinal de 1.162 pessoas idosas sem demência
concluiu que, mesmo após o controle para fatores de confusão, aqueles com
escores mais baixos em testes olfativos basais tinham taxa de mortalidade de
45% ao longo de 4 anos, em comparação com uma taxa de mortalidade de 18%
para aqueles com os escores maiores no teste olfativo. Um entendimento básico
desses sentidos na saúde e na doença é crucial para o médico, pois milhares de
pacientes se apresentam nos consultórios médicos por ano com queixas de
disfunção quimiossensitiva. Entre os desenvolvimentos recentes mais
importantes na área de neurologia encontra-se a descoberta de que uma redução
no sentido do olfato se encontra entre os primeiros sinais, se não for o primeiro,
de doenças neurodegenerativas, como a doença de Parkinson (DP) e a doença de
Alzheimer (DA), significando a sua fase “pré-sintomática”.

ANATOMIA E FISIOLOGIA
Sistema olfatório As substâncias químicas que possuem cheiro penetram na
região anterior do nariz durante a inalação e a aspiração ativa, bem como na
parte posterior do nariz (nasofaringe) durante a deglutição. Após alcançar as
áreas mais elevadas da cavidade nasal, dissolvem-se no muco olfatório e se
difundem ou são ativamente transportadas por proteínas especializadas para os
receptores localizados nos cílios das células receptoras olfatórias. Os cílios,
dendritos, corpos celulares e segmentos axônicos proximais dessas células
bipolares estão localizados dentro de um neuroepitélio singular que cobre a placa
cribiforme, o septo nasal superior e partes do corneto superior e médio (Fig. 29-
1). Quase 400 tipos de receptores acoplados à proteína G (GPCRs) para odor são
expressos nos cílios das células receptoras, com apenas um tipo de receptor
GPCR sendo expressado em uma determinada célula. Outros receptores,
incluindo receptores associados a traços de aminas e membros da família de
proteínas não GPCR de domínio de distribuição na membrana 4, subfamília A
(MS4A), também estão presentes em algumas células receptoras. Essa
diversidade de células receptoras não existe em nenhum outro sistema sensitivo.
É importante observar que, quando comprometidas, as células receptoras podem
ser substituídas pelas células-tronco próximas à membrana basal, embora essa
substituição costume ser incompleta.

FIGURA 29-1 Anatomia do nariz, mostrando a distribuição dos receptores olfatórios no teto da cavidade
nasal. (Copyright David Klemm, Faculty and Curriculum Support [FACS], Georgetown University Medical
Center; usada com permissão.)

Após coalescer em feixes envolvidos por células que formam bainhas


semelhantes à glia (denominadas fila), os axônios das células receptoras
atravessam a placa cribiforme em direção aos bulbos olfatórios, onde
estabelecem sinapse com dendritos de outros tipos celulares no interior dos
glomérulos (Fig. 29-2). Essas estruturas esféricas, que constituem uma camada
distinta do bulbo olfatório, representam um sítio de convergência de informação,
pois existe um número muito maior de fibras aferentes do que eferentes. As
células receptoras que expressam o mesmo tipo de receptor se projetam para os
mesmos tipos de glomérulos, efetivamente tornando cada glomérulo uma
unidade funcional. Os principais neurônios de projeção do sistema olfatório – as
células mitrais e tufosas – enviam dendritos primários para o interior dos
glomérulos, estabelecendo conexão não apenas com os axônios aferentes das
células receptoras como também com os dendritos das células periglomerulares.
A atividade das células mitrais/tufosas é modulada pelas células
periglomerulares, dendritos secundários de outras células mitrais/tufosas e
células granulares, as células mais numerosas do bulbo. Essas últimas células,
que são altamente GABAérgicas, recebem estímulos das estruturais cerebrais
centrais e modulam a saída das células mitrais/tufosas. É interessante mencionar
que, de forma semelhante às células receptoras olfatórias, algumas células do
interior do bulbo sofrem substituição. Portanto, os neuroblastos formados no
interior da zona subventricular anterior do cérebro migram ao longo da corrente
migratória rostral, finalmente se transformando nas células granulares e
periglomerulares.

FIGURA 29-2 Esquema das camadas e ramificações do bulbo olfatório. Cada tipo de receptor
(vermelho, verde, azul) se projeta para um glomérulo comum. A atividade neural no interior de cada
glomérulo é modulada pelas células periglomerulares. A atividade das células de projeção primária, as
células mitrais e tufosas, é modulada pelas células granulares, células periglomerulares e dendritos
secundários de células adjacentes mitrais e tufosas. (De www.med.yale.edu/neurosurg/treloar/index.html.)

Os axônios das células mitrais e tufosas estabelecem sinapse no interior de


estruturas olfatórias secundárias, o que em grande medida compreende o córtex
olfatório primário (COP) (Fig. 29-3). O COP é definido como aquelas estruturas
corticais que recebem projeções diretas do bulbo olfatório, principalmente dos
córtices entorrinal e piriforme. Embora o olfato seja único no sentido de que suas
projeções aferentes iniciais ultrapassam o tálamo, indivíduos com
comprometimento do tálamo podem exibir déficits olfatórios, particularmente os
de identificação de odor. Tais déficits provavelmente refletem o envolvimento de
conexões talâmicas entre o COP e o córtex orbitofrontal (COF), onde ocorre a
identificação do odor. As ligações anatômicas íntimas entre o sistema olfatório e
as tonsilas, o hipocampo e o hipotálamo ajudam a explicar as associações
íntimas entre a percepção do odor e as funções cognitivas, como memória,
motivação, alerta, atividade autonômica, digestão e sexo.

FIGURA 29-3 Anatomia da base do cérebro mostrando o córtex olfatório primário.

Sistema gustatório Os sabores são percebidos por células receptoras


especializadas presentes no interior dos botões gustatórios – pequenas estruturas
segmentadas semelhantes a uma toranja (grapefruit) localizadas nas margens
laterais e no dorso da língua, céu da boca, faringe, laringe e esôfago superior (Fi
g. 29-4). Os botões gustatórios linguais estão envolvidos por protuberâncias bem
definidas denominadas papilas fungiformes, foliáceas e circunvaladas. Após
serem dissolvidas em um líquido, as partículas de sabor penetram na abertura do
botão gustatório – o poro gustatório – e se ligam a receptores nas
microvilosidades, pequenas extensões de células receptoras no interior de cada
botão gustatório. Essa ligação altera o potencial elétrico da célula gustatória,
resultando na liberação de neurotransmissor por sobre os neurônios gustatórios
de primeira ordem. Embora os humanos possuam cerca de 7.500 botões
gustatórios, nem todos abrigam células sensíveis ao sabor; alguns possuem
apenas uma classe de receptor (p. ex., células que respondem apenas a açúcares),
enquanto outros contêm células sensíveis a mais de uma classe. O número de
células receptoras de sabor por botão gustatório varia de zero a bem mais de 100.
Uma pequena família de três receptores acoplados à proteína G (GPCRs), a
saber T1R1, T1R2 e T1R3, medeia as sensações de sabores doce e umami. As
sensações de amargo, por outro lado, dependem dos receptores T2R, uma família
de aproximadamente 30 GPCRs expressos em células distintas daquelas que
expressam os receptores para o doce e o umami. Os T2Rs respondem a uma
ampla faixa de substâncias amargas, porém não as distinguem entre si. Os
sabores ácidos são percebidos pelo receptor PKD2L1, um membro da família de
proteínas dos receptores de potencial transitório (TRP). A percepção das
sensações salgadas, como aquelas induzidas pelo cloreto de sódio, surge a partir
da entrada dos íons Na+ nas células através de canais de membrana
especializados, como o canal de Na+ sensível à amilorida.

FIGURA 29-4 Esquema do botão gustatório e sua abertura (poro), bem como da localização dos botões
nos três principais tipos de papilas: fungiforme (anterior), foliácea (lateral) e circunvalada (posterior). CRP,
célula receptora do paladar.
É atualmente bem estabelecido que ambos os receptores relacionados com
os sabores amargo e doce também estão presentes em todo o corpo,
principalmente nos tratos alimentar e respiratório. Essa importante descoberta
generaliza o conceito da quimiorrecepção gustatória às outras áreas do corpo
além da boca e da garganta, com a α-gustducina, a subunidade α da proteína G
específica para o sabor, sendo expressa nas chamadas células em escova
encontradas especificamente no interior da traqueia, pulmão, pâncreas e vesícula
biliar humanos. Essas células em escova são ricas em óxido nítrico (NO) sintase,
conhecido por defender contra organismos xenobióticos, proteger a mucosa de
lesões induzidas por ácidos e, no caso do trato gastrintestinal, estimular os
neurônios aferentes vagais e esplênicos. O NO age posteriormente sobre as
células adjacentes, incluindo células enteroendócrinas, células epiteliais
absorventes ou secretoras, vasos sanguíneos da mucosa e células do sistema
imune. Membros da família T2R de receptores do sabor amargo e dos receptores
do sabor doce da família T1R foram identificados no interior do trato
gastrintestinal e nas linhagens celulares enteroendócrinas. Em alguns casos,
esses receptores são importantes para o metabolismo, com os receptores T1R3 e
a gustducina, desempenhando papéis decisivos na detecção e no transporte de
açúcares da dieta, vindos do lúmen intestinal para o interior dos enterócitos
absorventes via um transportador de glicose dependente de sódio e na regulação
da liberação de hormônio a partir das células intestinais enteroendócrinas. Em
outros casos, esses receptores poderão ser importantes para a proteção das vias
aéreas, com uma quantidade de receptores T2R de sabor amargo nos cílios
móveis das vias aéreas humanas que respondem às substâncias amargas
aumentando sua frequência de batimento. Um receptor gustatório específico
T2R38 é expresso no epitélio do trato respiratório superior humano e responde
às moléculas de quorum sensing acilmonoserina lactonas secretadas pela
Pseudomonas aeruginosa e outras bactérias Gram-negativas. Diferenças na
funcionalidade de T2R38, como as relacionadas com o genótipo TAS2R38,
correlacionam-se com a suscetibilidade às infecções do trato respiratório
superior em humanos.
A informação do sabor é enviada ao cérebro por meio de três nervos
cranianos (NCs): o VII NC (nervo facial, que envolve o nervo intermediário com
suas ramificações, os nervos petroso maior e corda do tímpano), o IX NC (nervo
glossofaríngeo) e o X NC (o nervo vago) (Fig. 29-5). O VII NC inerva a porção
anterior da língua e todo o palato mole, o IX NC inerva a parte posterior da
língua e o X NC inerva a superfície laríngea da epiglote, a laringe e a porção
proximal do esôfago. O ramo mandibular de V (V3) NC conduz a informação
somatossensitiva (p. ex., tato, queimação, resfriamento, irritação) ao cérebro.
Embora não seja tecnicamente um nervo gustatório, o V NC compartilha vias
nervosas primárias com diversas fibras nervosas gustatórias e acrescenta a
sensação de temperatura, textura, sabor picante e aromático à experiência do
sabor. O nervo corda do tímpano é famoso por traçar um curso recorrente através
do canal facial para a porção petrosal do osso temporal, atravessando a orelha
média e, em seguida, saindo do crânio pela fissura petrotimpânica, onde se junta
ao nervo lingual (uma divisão do V NC) próximo à língua. Esse nervo também
carrega fibras parassimpáticas para as glândulas submandibular e sublingual,
enquanto o nervo petroso maior supre as glândulas palatinas, influenciando,
assim, a produção de saliva.

FIGURA 29-5 Esquema dos nervos cranianos (NCs) que medeiam o sentido do paladar, incluindo os
nervos corda do tímpano (VII NC), o nervo glossofaríngeo (IX NC) e o nervo vago (X NC). (Copyright
David Klemm, Faculty and Curriculum Support [FACS], Georgetown University Medical Center; usada
com permissão.)
Os axônios das células de projeção, que estabelecem sinapse com os botões
gustatórios, penetram na porção rostral do núcleo do trato solitário (NTS) para o
interior do bulbo do tronco encefálico (Fig. 29-5). A partir do NTS, os neurônios
se projetam para uma divisão do núcleo talâmico ventroposteromedial (VPM)
através do lemnisco medial. A partir desse ponto, são emitidas projeções para a
parte rostral do opérculo frontal e ínsula adjacente, uma região do cérebro
considerada como o córtex gustatório primário (CGP). As projeções a partir do
CGP vão, em seguida, para o córtex gustatório secundário, denominado de COF
caudolateral. Essa região do cérebro está envolvida no reconhecimento
consciente das variedades gustatórias. Além disso, como ela contém células que
são ativadas por diversas modalidades sensitivas, representa provavelmente um
centro para o estabelecimento do “sabor”.

DISTÚRBIOS DO OLFATO
A habilidade de sentir odores é influenciada, na vida diária, por fatores como
idade, sexo, estado geral de saúde, nutrição, tabagismo e estado reprodutivo. As
mulheres, em geral, superam os homens nos testes de função olfatória e
conservam a função normal de sentir odores até uma idade mais avançada do
que os homens.
As estimativas de prevalência de disfunção olfatória na população geral
variam; uma recente análise transversal da National Health and Nutrition
Examination Survey (NHANES 2013-2014) encontrou uma prevalência geral de
13,5%. Porém, é aparente que significativas reduções na habilidade olfatória são
observadas em mais de 50% da população entre 65 e 80 anos de idade e em 75%
daqueles com ≥ 80 anos (Fig. 29-6). Essa presbiosmia ajuda a explicar por que
muitos indivíduos mais velhos relatam que a comida tem menos sabor, um
problema que poderá levar a distúrbios nutricionais. Ela também ajuda a explicar
por que um número desproporcional de idosos morre por envenenamentos
acidentais causados por gás. Uma lista relativamente completa de condições e
distúrbios que têm sido associados à disfunção olfatória está apresentada na Tab
ela 29-1.
FIGURA 29-6 Valores do University of Pennsylvania Smell Identification Test (UPSIT) em função da
idade e do sexo do indivíduo. Os números de cada ponto de dados indicam o tamanho das amostras.
Observe que as mulheres identificam odores melhor do que os homens em todas as idades. (De RL Doty et
al: Science 226:1421, 1984. Copyright © 1984 American Association for the Advancement of Science.)

TABELA 29-1 ■ Distúrbios e condições associadas ao comprometimento da função olfatória conforme


avaliação do teste olfatório
Acidente vascular cerebral (AVC) Granulomatose com poliangeíte (de Wegener)
Aids/infecção por HIV Hanseníase
Alcoolismo Hipertrofia adenoide
Alergias Hipotireoidismo
Anorexia nervosa Iatrogênese
Ataxias Idade
Ataxias degenerativas Infecções do trato respiratório superior
Deficiência de vitamina B12 Insuficiência do córtex suprarrenal
Deficiências nutricionais Insuficiência/doença renal de estágio terminal
Degeneração do lobo frontotemporal Legionelose
Demência multi-infarto Medicamentos
Depressão Miastenia gravis
Diabetes melito Miopatias inflamatórias idiopáticas
Disgenesia gonadal (síndrome de Turner) Narcolepsia com cataplexia
Distúrbio comportamental do sono REM Neoplasias craniana/nasal
Doença de Alzheimer Obesidade
Doença de Behçet Paralisia facial
Doença de Chagas Pseuso-hipoparatoreoidismo
Doença de Huntington Psicopatia
Doença de Lubag Psicose de Korsakoff
Doença de Parkinson (DP) Radiação (terapêutica, craniana)
Doença de Pick Rinossinusite/polipose
Doença de Refsum Síndrome da deleção de 22q11
Doença do refluxo laringofaríngeo Síndrome das pernas inquietas
Doença pulmonar obstrutiva Síndrome de Asperger
Doença pulmonar obstrutiva crônica Síndrome de Bardet-Biedl
Doenças congênitas Síndrome de Cushing
Doenças hepáticas Síndrome de Down
Encefalite por herpes simples Síndrome de Kallmann
Enxaqueca Síndrome de Sjögren
Epilepsia Síndrome de Usher
Esclerose lateral amiotrófica (ELA) Síndrome ELA/DP/demência de Guam
Esclerose múltipla Tabagismo
Esclerose sistêmica Transtorno afetivo sazonal
Esquizofrenia Transtorno de estresse pós-traumático
Exposição a substâncias químicas tóxicas Transtorno do pânico
Exposição química Transtorno do déficit de atenção/hiperatividade
Fibromialgia Transtorno obsessivo-compulsivo
Fibrose cística Traumatismo craniencefálico
Gestação Tremor ortostático

Além do envelhecimento, as três causas identificáveis mais comuns de


perda de olfato de longa duração ou permanente observadas na clínica são, em
ordem de frequência, infecções respiratórias graves do trato superior,
traumatismo craniano e sinusite crônica. A base fisiológica para a maioria das
perdas relacionadas ao traumatismo craniano é o rompimento e a subsequente
cicatrização dos filamentos olfatórios quando passam da cavidade nasal para o
interior da cavidade cerebral. A perda do olfato não precisa ser acompanhada de
fratura ou patologia da placa cribiforme. A gravidade do trauma, relacionada a
uma Escala de Coma de Glasgow desfavorável na apresentação e à extensão da
amnésia pós-traumática, está associada a um risco mais elevado de
comprometimento olfatório. Menos de 10% dos pacientes com anosmia pós-
traumática irá recuperar a funcionalidade normal relacionada com a idade ao
longo do tempo. Esse fato eleva para aproximadamente 25% aqueles com perda
inferior à total. As infecções respiratórias do trato superior, como aquelas
associadas à gripe comum, influenza, pneumonia ou HIV, podem comprometer
direta e permanentemente o epitélio olfatório pela redução do número de células
receptoras, danificando os cílios das células receptoras restantes e induzindo a
substituição de epitélio sensitivo por epitélio respiratório. A perda de olfato
associada à rinossinusite crônica está relacionada à gravidade da doença, com a
maior perda ocorrendo nos casos em que estão presentes tanto a rinossinusite
quanto a polipose. Embora a terapia sistêmica com glicocorticoides possa
geralmente induzir uma melhora funcional temporária, ela não restabelece, em
geral, os níveis normais do teste olfatório, sugerindo que há perda neural crônica
permanente e/ou que a administração transitória de glicocorticoides sistêmicos
não debela completamente a inflamação. Sabe-se que a microinflamação de um
epitélio, aparentemente normal em outros aspectos, pode influenciar a função
olfatória.
Várias doenças neurodegenerativas são acompanhadas por
comprometimento do olfato, incluindo DP, DA, doença de Huntington,
complexo parkinsonismo-demência de Guam, demência por corpos de Lewy
(DCL), atrofia sistêmica múltipla, degeneração corticobasal, demência
frontotemporal e síndrome de Down; a perda de olfato também pode ocorrer no
distúrbio comportamental do sono REM idiopático (DCSRi), bem como na
esclerose múltipla relacionada com lesões nas estruturas olfativas. O
comprometimento olfatório na DP geralmente precede o diagnóstico clínico em
vários anos. Em casos simulados, estudos da sequência de formação de
agregados anormais de α-sinucleína e de corpos de Lewy sugerem que os bulbos
olfatórios podem representar, juntamente com o núcleo dorsomotor do vago, o
primeiro sítio de comprometimento neural na DP. Em estudos post mortem de
pacientes com sinais de DA “pré-sintomáticos” muito leves, o comprometimento
do olfato tem sido associado a níveis mais elevados de alterações patológicas
relacionadas com a DA. A perda do olfato é mais marcante em pacientes com
manifestações clínicas precoces de DCL do que naqueles com DA leve. É
interessante mencionar que a perda de olfato é mínima ou inexistente na paralisia
supranuclear progressiva e no parksonismo induzido por 1-metil-4-fenil-1,2,3,6-
tetra-hidropiridina (MPTP). Atualmente não se conhece a contribuição relativa
da patologia específica da doença ou do dano diferencial aos sistemas
neuromodulador/neurotransmissor do prosencéfalo para explicar os diferentes
graus de disfunção olfatória entre as várias doenças neurodegenerativas.
A perda do olfato na DCRi é da mesma magnitude da perda observada na
DP. Esse fato é de particular importância porque pacientes com DCRi
desenvolvem frequentemente DP e hiposmia. O distúrbio comportamental do
sono REM (DCSR) não apenas é observado na sua forma idiopática, como
também pode estar associado à narcolepsia (Cap. 27). Um estudo de pacientes
narcolépticos com e sem DCSR demonstrou que a narcolepsia,
independentemente do DCSR, estava associada a comprometimentos da função
olfatória. Acredita-se que a perda de neurônios hipotalâmicos expressando os
neuropeptídeos orexinas (também conhecidas como hipocretinas) seja
responsável pela narcolepsia e cataplexia. Os neurônios contendo orexina se
projetam em todo o sistema olfatório (a partir do epitélio olfatório para o córtex
olfatório), e a lesão dessas projeções pode ser um mecanismo subjacente para o
comprometimento da função olfatória em pacientes narcolépticos. A
administração de orexina A (hipocretina-1) intranasal melhora a função olfatória,
sustentando a noção de que o comprometimento olfatório leve não é apenas uma
característica primária de narcolepsia com cataplexia, mas que a deficiência de
orexina pode ser diretamente responsável pela perda olfativa nessa condição.

DISTÚRBIOS GUSTATÓRIOS
A maioria dos pacientes que se apresenta com disfunção gustatória exibe perda
olfatória, e não gustatória. Isso ocorre porque a maior parte dos sabores
atribuídos à gustação na verdade dependem de estímulo retronasal dos receptores
olfatórios durante a deglutição. Como observado anteriormente, os botões
gustatórios apenas medeiam sentidos básicos, como as sensações de doce,
amargo, ácido, salgado e umami. O comprometimento significativo de toda a
função gustatória bucal é raro, exceto em distúrbios metabólicos generalizados
ou no uso sistêmico de algumas medicações, pois ocorre a regeneração dos
botões gustatórios, e o comprometimento periférico isolado acarretaria no
envolvimento de múltiplas vias dos NCs. A função gustatória pode ser
influenciada por idade, dieta, tabagismo, uso de medicamentos e outros fatores
relacionados à pessoa incluindo (1) liberação de materiais que mascaram o
paladar a partir da cavidade oral por condições médicas orais (p. ex., gengivite,
sialadenite purulenta) ou aparelhos ortodônticos; (2) problemas de transporte das
substâncias para os botões gustatórios (p. ex., ressecamento ou condições
inflamatórias da mucosa orolingual); (3) lesão dos próprios botões gustatórios
(p. ex., trauma local, carcinomas invasivos); (4) lesão das vias neurais que
inervam os botões gustatórios (p. ex., infecções da orelha média); (5) lesão das
estruturas centrais (p. ex., esclerose múltipla, tumor, epilepsia, acidente vascular
cerebral) e (6) distúrbios sistêmicos do metabolismo (p. ex., diabetes, doença da
tireoide, medicamentos). Ao contrário do VII NC, o IX NC está relativamente
protegido ao longo de sua via, embora intervenções iatrogênicas como
tonsilectomia, broncoscopia, laringoscopia, intubação endotraqueal e
radioterapia possam levar a uma lesão seletiva. A lesão do VII NC geralmente
resulta de mastoidectomia, timpanoplastia e estapedectomia, induzindo, em
alguns casos, sensações metálicas persistentes. A paralisia de Bell (Cap. 433) é
uma das causas mais comuns de lesão do VII NC, que leva ao distúrbio
gustatório. Em raras ocasiões, as enxaquecas (Cap. 422) estão associadas a um
pródromo ou aura gustatória e, em alguns casos, os sabores podem eliciar um
ataque de enxaqueca. É interessante que a disgeusia ocorre em alguns casos de
síndrome da boca ardente (SBA; também chamada de glossodinia ou
glossalgia), assim como boca seca e sede. A SBA está provavelmente associada
à disfunção do nervo trigêmeo (V NC). Algumas etiologias sugeridas para essa
síndrome pouco conhecida são sensíveis a tratamento, incluindo (1) deficiências
nutricionais (p. ex., ferro, ácido fólico, vitaminas B, zinco); (2) diabetes melito
(predispondo possivelmente à candidíase oral); (3) alergia à dentadura; (4)
irritação mecânica causada por dentaduras ou dispositivos orais; (5) movimentos
repetitivos da boca (p. ex., deglutição atípica, ranger de dentes, bruxismo); (6)
isquemia da língua resultante de arterite temporal; (7) doença periodontal; (8)
esofagite de refluxo e (9) língua geográfica.
Embora tanto o paladar quanto o olfato possam ser deleteriamente
influenciados por medicamentos, as alterações de paladar são mais comuns. Na
verdade, tem-se observado que mais de 250 medicamentos alteram a habilidade
de sentir o paladar. Os principais agressores incluem agentes antineoplásicos,
antibióticos e medicamentos para o controle da pressão arterial. A terbinafina,
um antifúngico comumente utilizado, tem sido associada a distúrbios do paladar
que duram até 3 anos. Em um ensaio clínico controlado, quase dois terços dos
indivíduos recebendo eszopiclona experimentaram uma disgeusia amarga que foi
mais forte nas mulheres, sistematicamente relacionada ao tempo de
administração do fármaco e positivamente correlacionada com os níveis
sanguíneos e salivares do fármaco. O uso intranasal de géis e sprays nasais
contendo zinco, que representam uma profilaxia comum (sem receita médica)
para as infecções virais das vias aéreas superiores, tem sido implicado na perda
da função olfatória. Estudos são necessários para determinar o quanto a sua
eficácia em prevenir tais infecções, que são as causas mais comuns de anosmia e
hiposmia, superam o potencial prejuízo na função olfatória. A disgeusia ocorre
geralmente no contexto de fármacos usados para tratar ou minimizar sintomas de
câncer, com uma prevalência ponderada de 56 a 76%, dependendo do tipo de
tratamento de câncer. Tentativas para prevenir problemas gustatórios devidos a
esses fármacos que usam sulfato de zinco ou amifostina profiláticos têm se
demonstrado minimamente benéficas. Embora medicamentos antiepilépticos
sejam ocasionalmente utilizados para tratar distúrbios olfatórios ou gustatórios,
tem-se mostrado que o uso de topiramato leva a uma perda reversível de uma
capacidade para se detectar e reconhecer paladares e odores durante o
tratamento.
Juntamente com o olfato, vários distúrbios sistêmicos podem afetar o
paladar. Eles incluem, mas não se limitam a, insuficiência renal crônica, doença
hepática em estágio terminal, deficiências de vitaminas e minerais, diabetes
melito e hipotireoidismo. No diabetes, parece haver uma perda progressiva de
paladar começando pela glicose e, em seguida, se ampliando para outros
adoçantes, estímulos salgados e, depois, para todos os estímulos. Condições
psiquiátricas podem estar associadas a alterações quimiossensitivas (p. ex.,
depressão, esquizofrenia, bulimia). Uma revisão recente sobre as alucinações
táteis, gustatórias e olfatórias demonstrou que nenhum tipo de experiência
alucinatória é patognomônica para qualquer diagnóstico estabelecido.
A gravidez representa uma condição única em relação à função do paladar.
Parece haver um aumento na aversão e intensidade dos sabores amargos durante
o primeiro trimestre, que poderá ajudar a garantir que a mulher grávida evite
venenos durante uma fase crítica do desenvolvimento fetal. Da mesma forma,
um aumento relativo na preferência pelo sal e sabores amargos no segundo e
terceiro trimestres pode suportar a necessidade maior de ingestão de eletrólitos
para expandir o volume de fluido e sustentar uma dieta variada.

AVALIAÇÃO CLÍNICA
Na maioria dos casos, uma história clínica cuidadosa irá estabelecer a provável
etiologia do problema quimiossensitivo, incluindo questões sobre a sua natureza,
aparecimento, duração e padrão de flutuações. A perda repentina sugere a
possibilidade de traumatismo craniano, isquemia, infecção ou uma condição
psiquiátrica. A perda gradual pode refletir o desenvolvimento de uma lesão
obstrutiva progressiva, embora a perda gradual também possa ocorrer após
traumatismo craniano. Uma perda intermitente sugere a probabilidade de um
processo inflamatório. O paciente deverá ser perguntado a respeito de potenciais
eventos precipitadores, como resfriados ou gripe prévios ao aparecimento de
sintomas, porque estes normalmente são pouco valorizados. Informações a
respeito de traumatismo craniano, hábitos de tabagismo, abuso de drogas e
álcool (p. ex., cocaína intranasal, alcoolismo crônico), exposições a pesticidas e
outros agentes tóxicos e intervenções médicas também são úteis. A definição de
todos os medicamentos que o paciente tomou antes e no momento do
aparecimento do sintoma é importante, porque muitos podem causar distúrbios
quimiossensitivos. Comorbidade clínicas associadas ao comprometimento do
olfato, como insuficiência renal, doença hepática, hipotireoidismo, diabetes ou
demência, devem ser avaliadas. A puberdade retardada em associação à anosmia
(com ou sem anormalidades craniofacial da linha média, surdez e anomalias
renais), sugere a possibilidade de síndrome de Kallmann. O relato de epistaxe,
secreção (clara, purulenta ou sanguinolenta), obstrução nasal, alergias e sintomas
somáticos, incluindo cefaleia ou irritação, pode auxiliar na localização. Questões
relacionadas à memória, sintomas parkinsonianos e atividades convulsivas (p.
ex., automatismos, ocorrência de blackouts, auras e déjà vu) deverão ser
consideradas. Um litígio iminente e a possibilidade de simulação devem ser
considerados. Testes olfatórios modernos de escolha forçada podem detectar a
simulação de doença a partir de respostas improváveis.
Exames neurológicos e otorrinolaringológicos (ORLs), juntamente com os
exames apropriados de imagem cerebral e nasossinusal, ajudam na avaliação de
pacientes com queixas olfatórias e gustatórias. A avaliação neural deverá se
focar na função dos NCs, com particular atenção às possíveis lesões
intracranianas e na base do crânio. Os exames de acuidade e campo visual e do
disco óptico auxiliam na detecção de lesões expansivas intracranianas que
produzem pressão intracraniana elevada (papiledema) e atrofia óptica. A
síndrome de Foster Kennedy se refere a pressão intracraniana elevada mais
neuropatia óptica compressiva; as causas típicas são meningiomas do sulco
olfatório ou outros tumores do lobo frontal. O exame ORL deverá avaliar
exaustivamente a arquitetura intranasal e as superfícies mucosas. Pólipos,
massas e adesões dos cornetos ao septo nasal podem comprometer o fluxo de ar
para os receptores olfatórios, pois menos de um quinto do ar inspirado atravessa
a fenda olfatória na ausência de obstrução. Testes séricos sanguíneos podem ser
de grande ajuda na identificação de condições como diabetes, infecção,
exposição a metais pesados, deficiência nutricional (p. ex., vitaminas B6 ou B12),
alergia e doenças renal, hepática e da tireoide.
Como acontece em outros distúrbios sensitivos, é aconselhável a realização
do teste sensitivo quantitativo. Registros autorreferidos de pacientes podem ser
inexatos, e alguns pacientes que se queixam de disfunção quimiossensitiva
apresentam função normal compatível com sua idade e sexo. Os testes
quantitativos de paladar e olfato fornecem informações objetivas para a
compensação trabalhista e outras exigências legais, bem como uma forma de
avaliar precisamente os efeitos das intervenções de tratamento. Diversos testes
padronizados para a avaliação do paladar e olfato estão disponíveis
comercialmente. O mais amplamente utilizado desses testes, o University of
Pennsylvania Smell Identification Test (UPSIT), que contém 40 itens, usa
normas baseadas em quase 4 mil indivíduos normais. É feita uma determinação
das disfunções absolutas (i.e., perda leve, perda moderada, perda grave, perda
total, provável simulação) e relativa (comparação percentual compatível com
idade e sexo). Embora o teste eletrofisiológico esteja disponível em alguns
centros de estudo dos sentidos de paladar e odor (p. ex., potenciais olfatórios
relacionados a eventos), eles necessitam da apresentação de estímulos
complexos e equipamento de gravação e raramente fornecem informações
diagnósticas adicionais. Com exceção do eletrogustômetro, os testes de paladar
comercialmente disponíveis foram disponibilizados apenas recentemente. A
maioria utiliza tiras de papel de filtro impregnadas com substâncias, de forma a
não ser necessária a preparação do estímulo.

TRATAMENTO E MANEJO
Considerando os vários mecanismos pelos quais os distúrbios olfatórios e
gustatórios ocorrem, o controle de pacientes tende a ser específico para cada
condição. Por exemplo, pacientes com hipotireoidismo, diabetes ou infecções
geralmente se beneficiam de tratamentos específicos para corrigir a doença
básica que influencia adversamente a quimiorrecepção. Para a maioria dos
pacientes que se apresenta primariamente com perda obstrutiva/de transporte
afetando as regiões nasais e paranasais (p. ex., rinite alérgica, polipose,
neoplasias intranasais, desvios intranasais), intervenções médicas e/ou cirúrgicas
normalmente são benéficas. O tratamento com antifúngicos e antibióticos pode
reverter problemas de paladar secundários à candidíase ou outras infecções orais.
O bochecho com clorexidina alivia algumas disgeusias para os sabores salgado
ou amargo, provavelmente como resultado de sua forte carga positiva. A secura
excessiva da mucosa oral é um problema causado por vários medicamentos e
condições, e os tratamentos com saliva artificial ou pilocarpina oral podem ser
benéficos. Outros métodos para melhorar o fluxo de saliva incluem o uso de
pastilhas expectorantes, de menta ou sem açúcar. Os ativadores de sabor podem
tornar o alimento mais palatável (p. ex., glutamato monossódico), mas
aconselha-se cautela para que seja evitado o uso excessivo de ingredientes
contendo sódio ou açúcar, particularmente em circunstâncias em que um
paciente também apresenta hipertensão ou diabetes. Medicamentos que induzem
distorções do sabor podem geralmente ser descontinuados e substituídos por
outros tipos de medicamentos ou formas de terapia. Conforme citado antes, os
agentes farmacológicos resultam em distúrbios do paladar com muito mais
frequência do que em distúrbios do olfato. Entretanto, é importante observar que
diversos efeitos relacionados com fármacos são duradouros e não são revertidos
por sua breve interrupção.
Um recente estudo de cirurgia endoscópica dos seios paranasais em
pacientes com rinossinusite crônica e hiposmia revelou que pacientes com
disfunção olfatória severa anterior à cirurgia apresentaram uma melhora mais
acentuada e sustentada ao longo do tempo quando comparados com pacientes
que apresentavam disfunção olfatória leve antes da intervenção. No caso de
condições inflamatórias intranasais e relacionadas aos seios paranasais, como as
observadas na alergia, infecção por vírus e traumas, o uso de glicocorticoides
intranasais ou sistêmicos também poderá ser de grande ajuda. Uma estratégia
comum consiste no uso de uma série decrescente de prednisona oral. A
administração intranasal tópica de glicocorticoides tem se mostrado menos
eficaz, em geral, do que a administração sistêmica; entretanto os efeitos de
diferentes técnicas de administração nasal não foram analisados. Por exemplo,
glicocorticoides intranasais são mais eficazes se administrados na postura de
Moffett (cabeça na posição invertida, como por sobre a beira da cama com a
ponte do nariz perpendicular ao chão). Após traumatismo craniano, um teste
inicial de glicocorticoides poderá ajudar a reduzir o edema local e a deposição
deletéria de tecido cicatrizante em torno dos filamentos olfatórios ao nível da
placa cribiforme.
Os tratamentos são limitados para pacientes com perda quimiossensorial ou
lesão primária das vias neurais. Apesar disso, a recuperação espontânea poderá
ocorrer. Em um estudo de acompanhamento de 542 pacientes que se
apresentaram ao nosso departamento com perda olfatória por uma variedade de
causas, ocorreu uma melhora modesta em um período de tempo médio de 4 anos
em aproximadamente metade dos participantes. Entretanto, apenas 11% dos
pacientes anósmicos e 23% dos hipósmicos recuperaram a função normal
compatível com a idade. É interessante mencionar que o grau de disfunção
presente no momento da apresentação, e não a etiologia, representou a melhor
indicação prognóstica. Outros preditores foram a idade e a duração da disfunção
anterior à avaliação inicial.
Vários estudos relataram que pacientes com hiposmia podem se beneficiar
da aspiração repetida de odores ao longo de semanas ou meses. O paradigma
habitual é aspirar odores como como eucaliptol, citronela, eugenol (cravo) e
álcool feniletílico antes de ir deitar e imediatamente ao acordar todos os dias. A
razão para tal estratégia vem de estudos com animais que demonstram que a
exposição prolongada aos odores pode induzir atividade neural aumentada no
interior do bulbo olfatório. Também há evidências limitadas de que o ácido α-
lipoico (400 mg/dia), um cofator essencial para vários complexos enzimáticos
com possíveis efeitos antioxidantes, pode ser benéfico na atenuação da perda
olfatória após infecção viral do trato respiratório superior. Porém, há necessidade
de estudos duplo-cegos para confirmar esta observação. O ácido α-lipoico
também foi sugerido como útil em alguns casos de hipogeusia e síndrome da
boca ardente.
O uso de zinco e vitamina A no tratamento de distúrbios olfatórios é
controverso, e não parece ocorrer benefício a não ser para a reposição de
deficiências estabelecidas. Entretanto, tem sido demonstrado que o zinco
melhora a função do paladar secundária às deficiências hepáticas, e os retinoides
(derivados da vitamina A bioativa) são conhecidos por desempenhar um papel
essencial na sobrevida de neurônios olfatórios. Um protocolo, no qual o zinco foi
infundido em tratamentos quimioterápicos, sugeriu um possível efeito protetor
contra o desenvolvimento de disfunção do paladar. Doenças do trato alimentar
podem não apenas influenciar a função quimiorreceptiva, como também
influenciar ocasionalmente a absorção de vitamina B12. Esse fato pode levar a
uma deficiência relativa de vitamina B12, contribuindo teoricamente para o
distúrbio do nervo olfatório. Suplementos de vitamina B2 (riboflavina) e
magnésio são considerados na literatura alternativa como adjuvantes no controle
de enxaquecas que, por sua vez, podem estar associadas à disfunção olfatória.
Como a deficiência de vitamina D representa um cofator da toxicidade
mucocutânea e disgeusia induzidas pela quimioterapia, a adição de vitamina D3,
1.000-2.000 unidades por dia, poderá beneficiar alguns pacientes com queixas
olfatórias e gustatórias durante ou após a quimioterapia.
Diversos medicamentos têm sido citados como bem-sucedidos na melhora
de sintomas olfatórios, embora, em geral, faltem evidências científicas fortes de
sua eficácia. Um registro de que a teofilina melhorou a função olfatória não foi
controlado e não considerou a ocorrência de alguma melhora significativa sem
tratamento; na verdade, a porcentagem de respostas foi aproximadamente a
mesma (cerca de 50%) do que a observada por outros para mostrar a melhora
espontânea durante um período de tempo semelhante. Antiepilépticos e alguns
antidepressivos (p. ex., amitriptilina) têm sido utilizados no tratamento de
disosmias e distorções olfatórias, particularmente após traumatismo craniano.
Ironicamente, a amitriptilina também aparece com frequência na lista de
medicamentos que podem distorcer os sentidos do olfato e do paladar,
possivelmente devido a seus efeitos anticolinérgicos. Um estudo sugeriu que o
inibidor de acetilcolinesterase de ação central donepezila na DA resultou em
aumento das medidas de identificação olfatórias que se correlacionam com
impressões médicas globais nos registros de gravidade da demência.
Terapias alternativas, como acupuntura, meditação, terapia cognitivo-
comportamental e ioga, podem auxiliar os pacientes a controlar experiências
desconfortáveis associadas ao distúrbio quimiossensitivo e às síndromes de dor
oral e a lidar com os estresses psicossociais em torno do comprometimento.
Além disso, a modificação da dieta e dos hábitos alimentares também é
importante. Acentuando-se outras experiências sensoriais de uma refeição, tais
como a textura, aroma, temperatura e cor do alimento, pode-se otimizar a
experiência global da alimentação para um paciente. Em alguns casos, um
acentuador de sabor, como o glutamato monossódico (GMS), pode ser
adicionado aos alimentos para aumentar a palatabilidade e estimular a ingesta.
A higiene nasal e oral adequada e o tratamento dentário rotineiro são formas
extremamente importantes para que os pacientes se protejam dos distúrbios da
boca e do nariz que possam levar, em última análise, aos distúrbios
quimiossensitivos. Os pacientes deverão ser aconselhados a não compensar sua
perda de paladar pela adição de quantidades excessivas de açúcar ou sal. O ato
de parar de fumar e a interrupção do uso oral de tabaco são essenciais no
tratamento de qualquer paciente com distúrbio olfatório e/ou gustatório e
deverão ser repetidamente enfatizados.
Um elemento terapêutico importante e geralmente negligenciado vem do
próprio teste quimiossensorial. A confirmação ou a falta de confirmação com a
perda é benéfica aos pacientes que se apresentam com a crença, à luz de
membros da família e profissionais de saúde não capacitados, de que podem
estar “loucos”. Nos casos em que a perda é menor, os pacientes podem ser
informados da probabilidade de um prognóstico mais positivo. É importante
mencionar que testes quantitativos localizam o problema do paciente na
perspectiva geral. Portanto, em geral é terapêutico para um idoso saber que,
embora sua função olfatória não seja a mesma que costumava ser, ainda se situa
acima da média do seu grupo. Sem a realização dos testes, muitos desses
pacientes simplesmente recebem a informação de que estão ficando mais velhos
e de que nada pode ser feito por eles, levando, em alguns casos, à depressão e à
redução da autoestima.

LEITURAS ADICIONAIS
Devanand DP et al: Olfactory identification deficits are associated with increased
mortality in a multiethnic urban community. Ann Neurol 78:401, 2015.
Doty RL: Olfaction in Parkinson’s disease and related disorders. Neurobiol Dis
46:527, 2012.
Doty RL: Neurotoxic exposure and alterations in olfaction and gustation.
Handbook Clin Neurol 131:299, 2015.
Doty RL (ed): Handbook of Olfaction and Gustation, 3rd ed. Hoboken, Wiley-
Liss, 2015.
Doty RL et al: Influences of hormone replacement therapy on olfactory and
cognitive function in the menopause. Neurobiol Aging 36:2053, 2015.
Doty RL et al: Taste function in early stage treated and untreated Parkinson’s
disease. J Neurol 262:547, 2015.
Kohli P et al: The association between olfaction and depression: A systematic
review. Chem Senses 41:479, 2016.
Liu G et al: Prevalence and risk factors of taste and smell impairment in a
nationwide sample of the US population: A cross-sectional study. BMJ
Open 6:e013246, 2016.
London B et al: Predictors of prognosis in patients with olfactory disturbance.
Ann Neurol 63:159, 2008.
Pekala K et al: Efficacy of olfactory training in patients with olfactory loss: A
systematic review and meta-analysis. Int Forum Allergy Rhinol 6:299,
2016.
Perricone C et al: Smell and autoimmunity: A comprehensive review. Clin Rev
Allergy Immunol 45:87, 2013.
30
Distúrbios da audição
Anil K. Lalwani

A perda auditiva pode aparecer em qualquer idade, sendo um dos distúrbios


sensitivos mais comuns em humanos. Cerca de 10% da população adulta tem
algum grau de perda auditiva, e um terço dos pacientes com > 65 anos tem
perdas auditivas suficientes para justificar a utilização de aparelhos auditivos.
FISIOLOGIA DA AUDIÇÃO
A função das orelhas externa e média é amplificar o som para facilitar a
conversão da energia mecânica da onda sonora em um sinal elétrico pelas células
ciliadas da orelha interna, processo conhecido como mecanotransdução (Fig. 30-
1). As ondas sonoras entram no canal auditivo externo e colocam a membrana
timpânica em movimento, que, por sua vez, movimenta o martelo, o estribo e a
bigorna da orelha média. O movimento da base do estribo provoca alterações de
pressão na orelha interna preenchida por líquido, gerando uma onda que se
estende pela membrana basilar da cóclea. A membrana timpânica e a cadeia de
ossículos da orelha média atuam como mecanismo de compatibilização da
impedância, aumentando a eficiência da transferência de energia do ar para a
orelha interna preenchida por líquido. Na sua ausência, quase 99,9% da energia
acústica seria refletida e, assim, não seria ouvida. Em vez disso, o tímpano e os
ossículos potencializam a energia sonora quase 200 vezes até sua chegada na
orelha interna.

FIGURA 30-1 Anatomia da orelha. A. Ilustração de um corte coronal modificado passando pela orelha
externa e pelo osso temporal, com demonstração das estruturas das orelhas média e interna. B. Visão
ampliada em alta resolução da orelha interna.

Dentro da cóclea da orelha interna há dois tipos de células ciliadas que


auxiliam na audição: internas e externas. As células internas e externas do órgão
de Corti têm diferentes padrões de inervação, mas ambas são mecanorreceptoras;
elas detectam a energia mecânica do sinal acústico e auxiliam a sua conversão
para um sinal elétrico que viaja pelo nervo auditório. A inervação aferente
relaciona-se principalmente com as células ciliadas internas, enquanto a
inervação eferente está relacionada predominantemente com as células ciliadas
externas. As células ciliadas externas são mais numerosas que as células pilosas
internas em proporção de quase 6:1 (20.000 vs. 3.500). A mobilidade das células
ciliadas externas altera a micromecânica das células ciliadas internas, criando um
amplificador coclear que explica a sensibilidade extrema e a seletividade de
frequência da cóclea.
Os estereocílios das células ciliadas do órgão de Corti, que estão localizadas
na membrana basilar, estão em contato com a membrana tectorial e são
deformados pela onda transmitida. A deformação estica finas conexões
filamentosas (ligações de pontas) entre estereocílios, levando à abertura de
canais iônicos, entrada de potássio e despolarização de células ciliadas com a
consequente neurotransmissão. O ponto de deslocamento máximo da membrana
basilar é determinado pela frequência do tom estimulador. Os tons de alta
frequência causam deslocamento máximo da membrana basilar nas
proximidades da base da cóclea, enquanto, com os sons de baixa frequência, o
ponto de deslocamento máximo é dirigido para o ápice da cóclea.
A partir da cóclea, a especificidade das frequências é mantida em todos os
pontos da via auditiva central: núcleos cocleares dorsais e ventrais, corpo
trapezoide, complexo olivar superior, lemnisco lateral, colículo inferior, corpo
geniculado medial e córtex auditivo. Com as frequências baixas, as fibras
individuais do nervo auditivo podem responder com maior ou menor
sincronismo ao tom estimulador. Com as frequências mais altas, há um bloqueio
de fase, de forma que os neurônios alternam em resposta às fases específicas do
ciclo da onda sonora. A intensidade é determinada pela quantidade de atividade
neural em cada neurônio, pelo número de neurônios em atividade e pelos
neurônios específicos que são ativados.
Há evidências de que as orelhas direita e esquerda, assim como o sistema
nervoso central, podem processar a fala de maneira assimétrica. Em geral, um
som é processado de maneira simétrica a partir do sistema auditivo periférico até
o central. Há, porém, uma “vantagem da orelha direita” para tarefas de audição
dicótica, nas quais os sujeitos devem relatar sons diferentes apresentados de
forma concomitante a cada orelha. Na maioria das pessoas, há uma vantagem de
percepção na orelha direita para sílabas formadas por consoantes-vogais,
consoantes oclusivas e palavras. Da mesma forma, enquanto o processamento de
sons no sistema auditivo central é simétrico com mínima especialização lateral
em sua maior parte, o processamento da fala é lateralizado. Há especialização do
córtex auditivo esquerdo para reconhecimento e produção da fala e do
hemisfério direito para aspectos emocionais e tonais da fala. A dominância do
hemisfério esquerdo para a fala é encontrada em 95 a 98% das pessoas destras e
em 70 a 80% das pessoas canhotas.

DISTÚRBIOS DA AUDIÇÃO
A perda auditiva pode ser causada por anormalidades do pavilhão auricular, do
canal auditivo externo, da orelha média ou interna ou das vias auditivas centrais
(Fig. 30-2). Em geral, as lesões do pavilhão auricular, do canal auditivo externo
ou da orelha média – que impedem a transmissão do som do ambiente externo
para a orelha interna – causam perdas de audição condutiva, enquanto as lesões
que bloqueiam a mecanotransdução na orelha interna ou a transmissão do sinal
elétrico pelo oitavo nervo craniano ao cérebro causam perda da audição
neurossensorial.

FIGURA 30-2 Algoritmo para avaliação da perda auditiva. AVC, acidente vascular cerebral; OMA,
otite média aguda; RAET, resposta auditiva evocada do tronco encefálico; SNC, sistema nervoso central;
PA, perda auditiva; PANS, perda auditiva neurossensorial; OMS, otite média serosa; MT, membrana
timpânica; RM, ressonância magnética. *Tomografia computadorizada do osso temporal. †Ressonância
magnética.

Perda de audição condutiva A orelha externa, o canal auditivo externo e as


estruturas da orelha média são constituídos de forma a recolher e amplificar o
som e transferir de maneira eficiente a energia mecânica da onda sonora para a
cóclea, repleta com líquido. Os fatores que obstruem a transmissão do som ou
reduzem a energia acústica provocam perda de audição condutiva. O déficit
auditivo de condução pode ser causado por obstrução do canal auditivo externo
por cerume, resíduos e corpos estranhos; edema do revestimento do canal
auditivo; atresia ou neoplasias do canal; perfurações da membrana timpânica;
ruptura da cadeia ossicular, como ocorre com a necrose do processo longo da
bigorna depois de traumatismo ou infecção; otosclerose; ou líquidos, fibrose ou
neoplasia da orelha média. Raramente, malformações ou patologias da orelha
interna, como deiscência do canal semicircular superior, displasia do canal
semicircular lateral, divisão incompleta da orelha interna e aqueduto vestibular
alargado, também estão associadas à perda auditiva condutiva.
A disfunção da tuba auditiva é extremamente comum nos adultos e pode
predispor à otite média aguda (OMA) ou à otite média serosa (OMS).
Traumatismo, OMA e otite média crônica são os fatores comumente
responsáveis pela perfuração da membrana timpânica. Embora as perfurações
pequenas geralmente cicatrizem espontaneamente, defeitos maiores comumente
exigem intervenção cirúrgica. A timpanoplastia é altamente eficaz (> 90%) para
a reparação das perfurações da membrana timpânica. Em geral, a otoscopia é
suficiente para diagnosticar OMA, OMS, otite média crônica, impactação de
cerume, perfuração da membrana timpânica e disfunção da tuba auditiva; a
timpanometria pode ser útil para confirmar a suspeita clínica desses distúrbios.
O colesteatoma, tumor benigno formado por epitélio escamoso estratificado
na orelha média ou na mastoide, ocorre comumente nos adultos. Essa lesão
benigna tem crescimento lento e destrói ossos e tecidos normais da orelha. As
teorias de patogênese propostas incluem a migração e a invasão traumáticas do
epitélio escamoso por uma bolsa de retração da membrana timpânica, a
implantação do epitélio escamoso na orelha média através de uma perfuração ou
de um procedimento cirúrgico e a metaplasia associada a irritação e infecção
crônicas. Secreção auricular crônica que não melhora com o tratamento
antibiótico apropriado deve sugerir colesteatoma. Ao exame, geralmente há uma
perfuração da membrana timpânica, que se mostra preenchida por material
escamoso esbranquiçado caseoso. A presença de um pólipo aural obscurecendo a
membrana timpânica é altamente sugestiva de um colesteatoma subjacente. É
comum encontrar perda de audição condutiva secundária à erosão dos ossículos.
A destruição do osso temporal visualizada na tomografia computadorizada (TC)
é altamente sugestiva de colesteatoma. Intervenção cirúrgica é necessária para
remover esse processo destrutivo e reconstruir os ossículos.
A perda de audição condutiva com canal auditivo normal e membrana
timpânica íntegra sugere uma patologia dos ossículos ou a existência de uma
“terceira janela” na orelha interna (ver adiante). A fixação do estribo pela
otosclerose é uma causa comum de perda de audição condutiva para frequências
baixas. Isso ocorre com frequência igual nos homens e nas mulheres e é
transmitido como traço autossômico dominante com penetrância incompleta; em
alguns casos, esse distúrbio pode ser uma das manifestações da osteogênese
imperfeita. Em geral, o déficit auditivo evidencia-se entre o final da adolescência
e a quinta década de vida. Nas mulheres, o processo otosclerótico é acelerado
durante a gravidez, e a perda auditiva pode ser percebida inicialmente nessa
ocasião. Uma recuperação excelente da audição pode ser alcançada com um
aparelho auditivo ou por um procedimento cirúrgico ambulatorial
(estapedectomia). A extensão da otosclerose além da base do estribo para
envolver a cóclea (otosclerose coclear) pode causar perda auditiva mista ou
neurossensorial. O tratamento com flúor para evitar a perda auditiva causada
pela otosclerose coclear não tem eficácia comprovada.
Os distúrbios que resultam na formação de uma “terceira janela” patológica
na orelha média podem estar associados à perda de audição condutiva.
Normalmente, existem duas aberturas (ou janelas) principais, que conectam a
orelha interna à orelha média e funcionam como condutos para a transmissão do
som; essas aberturas são, respectivamente, as janelas oval e redonda. Uma
terceira janela é formada quando o osso ótico normalmente rígido que circunda a
orelha interna sofre erosão; a dissipação da energia acústica na terceira janela é
responsável pela “perda de audição condutiva na orelha interna”. A síndrome da
deiscência do canal semicircular superior resultante da erosão do osso ótico
acima do canal circular superior pode evidenciar-se por perda de audição
condutiva semelhante à otosclerose. Uma queixa comum é vertigem provocada
por sons altos (fenômeno de Tulio), pelas manobras de Valsalva que alteram a
pressão da orelha média ou pela aplicação de pressão positiva no trago
(cartilagem situada à frente do orifício externo do canal auditivo). Os pacientes
com essa síndrome também referem plenitude auricular, zumbido pulsátil e que
conseguem ouvir os movimentos dos seus olhos e do seu pescoço. O bulbo
jugular volumoso ou um divertículo do bulbo jugular pode formar uma “terceira
janela” em consequência da erosão para dentro do aqueduto vestibular ou do
canal semicircular posterior; os sinais e os sintomas são semelhantes aos da
síndrome da deiscência do canal semicircular superior. O baixo limiar de
ativação no teste de potencial evocado miogênico vestibular (PEMV, ver adiante)
e a erosão da orelha interna na TC são diagnósticos. A vertigem e a tontura
recalcitrantes podem responder ao reparo cirúrgico da deiscência.

Perda da audição neurossensorial A perda auditiva neurossensorial resulta de


dano ao aparato de mecanotransdução da cóclea ou de alteração das vias de
condução elétrica da orelha interna até o cérebro. Desse modo, a lesão das
células ciliadas, das células de sustentação, dos neurônios auditivos ou das vias
auditivas centrais pode causar perda de audição neurossensorial. A lesão das
células ciliadas do órgão de Corti pode ser causada por exposição a ruídos
intensos, infecções virais, fármacos ototóxicos (p. ex., salicilatos, quinina e seus
análogos sintéticos, antibióticos aminoglicosídeos, diuréticos de alça, como
furosemida e ácido etacrínico, e quimioterápicos para o câncer, inclusive
cisplatina), fraturas do osso temporal, meningite, otosclerose coclear (ver seção
anterior), doença de Ménière e envelhecimento. As malformações congênitas da
orelha interna podem causar perdas auditivas em alguns adultos. A predisposição
genética, isoladamente ou em combinação com as exposições ambientais,
também pode causar esse tipo de perda auditiva (ver adiante).
A exposição a ruídos intensos, tanto em curtas explosões como em períodos
mais prolongados, pode levar à perda auditiva induzida por ruídos. A exposição
aguda ao ruído pode levar a desvios temporários ou permanentes dos limiares,
dependendo da intensidade e duração do som, devido a lesão e/ou morte de
células ciliadas. Tipicamente, com a perda auditiva permanente, há um “entalhe
de ruído” com limiares auditivos elevados a 3.000 a 4.000 Hz. Mais
recentemente, a exposição a ruídos intensos também foi associada a “perda
auditiva oculta” – “oculta” porque a audiometria de rotina mostra a audição tonal
pura como sendo normal. Os pacientes geralmente se queixam de não conseguir
escutar claramente e ficam mais incomodados pela presença de ruído de fundo.
Em contraste com a perda de células ciliadas, acredita-se que a perda auditiva
oculta se deva a perda de sinapses auditórias em células ciliadas após a
exposição aos ruídos. Em um mundo cada vez mais barulhento, evitar trauma
acústico com plugues auriculares ou abafadores é altamente recomendado para a
prevenção de perda auditiva oculta ou induzida por ruídos.
A presbiacusia (perda auditiva associada ao envelhecimento) é a causa mais
comum de perda da audição neurossensorial nos adultos. Estima-se que ela afete
mais da metade dos adultos com > 75 anos de idade nos Estados Unidos, uma
população que deve dobrar de tamanho nos próximos 40 anos. Nos seus estágios
iniciais, esse distúrbio caracteriza-se por perda auditiva simétrica para tons de
alta frequência com inclinação discreta ou brusca (Fig. 30-3). Com a progressão,
a perda auditiva afeta todas as frequências. Ainda mais importante, o déficit
auditivo está associado à perda significativa da clareza dos sons. Há dificuldade
de discriminação dos fonemas, recrutamento (aumento anormal do volume dos
sons) e dificuldade principalmente para entender conversações em ambientes
ruidosos como restaurantes e eventos sociais. A audição ruim está também
associada com incidência aumentada de comprometimento cognitivo e
velocidade de declínio cognitivo. Em idosos não tratados, a perda auditiva leva à
redução da qualidade de vida, tendo sido demonstrado que ela aumenta a
morbidade e mortalidade totais por meio de quedas e acidentes. Os aparelhos
auditivos são úteis para melhorar a relação sinal-ruído por amplificação dos sons
emitidos mais perto do paciente. Foi demonstrado que o uso de aparelho auditivo
reduz o declínio cognitivo. Embora os aparelhos auditivos possam amplificar os
sons, eles não conseguem recuperar a clareza da audição. Desse modo, a
amplificação com aparelhos auditivos pode oferecer apenas reabilitação limitada
quando o escore de reconhecimento das palavras está abaixo de 50%. Os
implantes cocleares são as opções preferíveis quando os aparelhos auditivos se
mostram ineficazes, mesmo quando não há perda auditiva total (ver adiante).
FIGURA 30-3 Presbiacusia ou perda auditiva relacionada ao envelhecimento. O audiograma mostra
perda auditiva neurossensorial moderada a grave típica da presbiacusia. A perda da audição para altas
frequências está associada a uma diminuição no escore de discriminação da fala; consequentemente, os
pacientes se queixam de falta de clareza da audição, em especial nos ambientes ruidosos. LA, limiar de
audição; LRF, limiar de recepção da fala.

A doença de Ménière se caracteriza por vertigens transitórias, perda


oscilante da audição neurossensorial, zumbido e sensação de plenitude nas
orelhas. O zumbido e/ou a surdez podem não ocorrer durante as primeiras crises
de vertigem, mas sempre ocorrem à medida que a doença progride, e sua
gravidade aumenta durante as crises agudas. A incidência anual da doença de
Ménière varia de 0,5 a 7,5 por 1.000; a doença começa geralmente na quinta
década de vida, mas também pode acometer adultos jovens ou mais idosos.
Histologicamente, há distensão do sistema endolinfático (hidropsia
endolinfática) que provoca degeneração das células ciliadas vestibulares e
cocleares. Isso pode ser causado pela disfunção do saco endolinfático como
consequência de infecções, traumatismo, doenças autoimunes, distúrbios
inflamatórios ou tumor; os casos idiopáticos representam o grupo mais
numeroso, e a condição é descrita mais precisamente como doença de Ménière.
Embora possa ser observado qualquer padrão de perda auditiva, geralmente há
déficit auditivo neurossensorial unilateral para frequências baixas. Um teste
anormal de PEMV pode ser útil na detecção da doença de Ménière na orelha
contralateral clinicamente intacta. A ressonância magnética (RM) deve ser
realizada para excluir uma patologia retrococlear, inclusive tumor do ângulo
pontocerebelar ou um distúrbio desmielinizante. O tratamento tem como
objetivo controlar a vertigem. A dieta hipossódica (2 g/dia) é fundamental como
medida terapêutica para controlar a vertigem rotatória. Diuréticos, ciclos breves
de glicocorticoides, glicocorticoides intratimpânicos e gentamicina
intratimpânica também podem ser medidas coadjuvantes úteis aos casos
recalcitrantes. O tratamento cirúrgico da vertigem deve ser reservado para os
casos refratários e inclui descompressão do saco endolinfático, labirintectomia e
secção do nervo vestibular. Esses dois últimos procedimentos cirúrgicos
suprimem a vertigem rotatória em > 90% dos casos. Infelizmente, não há
tratamento eficaz para a perda auditiva, zumbido ou a sensação de plenitude
auricular associada à doença de Ménière.
A perda da audição neurossensorial também pode ser causada por qualquer
doença neoplásica, vascular, desmielinizante, infecciosa ou degenerativa ou
traumatismo que afete as vias auditivas centrais. Nos casos típicos, a redução da
clareza da audição e a dificuldade de compreender a fala são muito mais
significativas que a perda da capacidade de ouvir tons puros. Os exames
audiométricos são compatíveis com uma neuropatia auditiva; em geral, as
emissões otoacústicas (EOAs) são normais e a resposta auditiva do tronco
encefálico (RAT) é anormal (ver adiante). A perda auditiva pode estar associada
às neuropatias sensitivomotoras hereditárias e aos distúrbios hereditários da
mielina. Os tumores do ângulo cerebelopontino, como meningioma e
schwannoma vestibular (Cap. 86), geralmente se manifestam como perda
auditiva neurossensorial assimétrica com maior deterioração da compreensão da
fala do que da audição tonal pura. A esclerose múltipla (Cap. 436) pode causar
perda auditiva unilateral ou bilateral aguda; em geral, a audiometria tonal pura
permanece relativamente estável, enquanto a compreensão da fala é variável. O
infarto isolado do labirinto pode evidenciar-se por perda auditiva aguda e
vertigem em consequência de um acidente vascular cerebral (AVC) envolvendo
a circulação posterior, geralmente a artéria cerebelar inferior anterior; esse
também pode ser um sinal premonitório de um infarto catastrófico iminente da
artéria basilar (Cap. 419). O HIV (Cap. 197), o qual pode produzir patologia
periférica ou central no sistema auditivo, é outra consideração na avaliação de
comprometimento auditivo neurossensorial.
O termo perda auditiva mista descreve os pacientes com perdas simultâneas
das audições condutiva e neurossensorial. As perdas auditivas mistas podem ser
causadas por patologias das orelhas média e interna, como pode ocorrer na
otosclerose dos ossículos e da cóclea, no traumatismo craniano, na otite média
crônica, no colesteatoma, nos tumores da orelha média e em algumas
malformações da orelha interna.
Os traumatismos com fraturas do osso temporal podem estar associados à
perda de audição condutiva, neurossensorial ou mista. Se a fratura preservar a
orelha interna, pode haver simplesmente perda auditiva condutiva em razão da
ruptura da membrana timpânica ou da ruptura da cadeia ossicular. Essas
anormalidades podem ser corrigidas cirurgicamente. As fraturas do osso
temporal com envolvimento da orelha interna causam perdas auditivas profundas
e vertigem grave. Esses pacientes podem desenvolver uma fístula perilinfática
com extravasamento do líquido da orelha interna para a orelha média, que pode
necessitar de reparação cirúrgica. É comum detectar lesões associadas do nervo
facial. A tomografia computadorizada (TC) é mais apropriada para avaliar
fraturas do osso temporal traumatizado, avaliar o canal auditivo e determinar a
integridade da cadeia ossicular e o acometimento da orelha interna. As fístulas
de líquido cerebrospinal (LCS) associadas às fraturas do osso temporal
geralmente são autolimitadas, e a utilidade dos antibióticos profiláticos não está
comprovada.
O zumbido é definido como a percepção de um som quando não há sons no
ambiente. Esse som pode ser um zumbido, rugido ou tinido e pode ser pulsátil
(sincronizado com os batimentos cardíacos). Em geral, o zumbido está associado
à perda de audição condutiva ou neurossensorial. A fisiopatologia do zumbido
não está bem esclarecida. Em geral, a causa desse sintoma pode ser determinada
quando se define a etiologia da perda auditiva associada. O zumbido pode ser o
primeiro sintoma de um distúrbio grave, como o schwannoma vestibular. O
zumbido pulsátil requer uma avaliação do sistema vascular encefálico para
excluir lesões vasculares, como tumores do glomo jugular, aneurismas, fístulas
arteriovenosas da dura-máter e lesões arteriais estenóticas; esse sintoma também
pode estar associado à OMS, deiscência semicircular posterior e deiscência da
orelha interna. O zumbido está associado mais comumente a alguma
anormalidade do bulbo jugular, inclusive dilatação ou divertículo do bulbo
jugular.

CAUSAS GENÉTICAS DA PERDA AUDITIVA


Mais da metade dos casos de déficit auditivo na infância parece ser
hereditária; a deficiência auditiva hereditária (DAH) também pode ser
evidenciada em uma idade mais avançada. A DAH pode ser classificada como
não sindrômica quando a perda auditiva é a única anormalidade clínica ou
sindrômica quando o déficit auditivo está associado a anomalias de outros
sistemas. Quase dois terços dos casos de DAH são não sindrômicos. Cerca de 70
a 80% dos casos de DAH não sindrômica são transmitidos como traços
autossômicos recessivos e designados como DFNB (deafness B); os outros 15 a
20% são autossômicos dominantes (DFNA). Menos de 5% estão ligados ao X
(DFNX) ou são herdados da mãe por anomalias mitocondriais.
Já foram mapeados mais de 150 loci de genes de DAH não sindrômica, com
os loci recessivos sendo mais numerosos que os dominantes; já foram
identificados vários genes (Tab. 30-1). Os genes da audição são classificados nas
categorias de proteínas estruturais (MYH9, MYO7A, MYO15, TECTA, DIAPH1),
fatores de transcrição (POU3F4, POU4F3), canais iônicos (KCNQ4, SLC26A4)
e proteínas das junções comunicantes (GJB2, GJB3, GJB6). Vários desses genes,
inclusive o GJB2, o TECTA e o TMC1, causam formas autossômicas dominantes
e recessivas de DAH não sindrômica. Em geral, a perda auditiva associada aos
genes dominantes começa na adolescência ou na vida adulta, sua gravidade é
variável e progride com a idade, enquanto as perdas auditivas associadas à
transmissão recessiva são congênitas e profundas. A conexina 26 – produto do
gene GJB2 – é particularmente importante porque é responsável por quase 20%
de todos os casos de surdez infantil; metade dos casos de surdez genética infantil
estão relacionados com esse gene. Duas mutações de frameshift (35delG e
167delT) explicam > 50% dos casos; contudo, o rastreamento isolado para essas
duas mutações não é suficiente, havendo necessidade de sequenciamento de todo
o gene para capturar completamente a surdez recessiva associada ao GJB2. A
mutação 167delT é altamente prevalente entre os judeus asquenazes, nos quais
cerca de 1 em 1.765 indivíduos é homozigoto e tem surdez. A perda auditiva por
GJB2 também pode variar entre os membros da mesma família, sugerindo que
outros genes ou fatores influenciem o fenótipo auditivo. Uma única mutação em
GJB2 em combinação com uma única mutação em GJB6 (conexina 30) também
pode levar à perda auditiva e é um exemplo de herança digênica de perda
auditiva.

TABELA 30-1 ■ Genes associados à disfunção auditiva hereditária


Designação Gene Função Designação Gene Função
Autossômicos dominantes DFNB25 GRXCR1 S-glutationilação
reversível de proteínas
CRYM Proteína de ligação dos DFNB28 TRIOBP Proteína de
hormônios tireoidianos organização do
citoesqueleto
DFNA1 DIAPH1 Proteína do citoesqueleto DFNB29 CLDN14 Junções estreitas
DFNA2A KCNQ4 Canal de potássio DFNB30 MYO3A Miosina de
sinalização motora
híbrida
DFNA2B GJB3 (Cx31) Junções comunicantes DFNB31 WHRN Proteína contendo
domínios PDZ
DFNA3A GJB2 (Cx26) Junções comunicantes DFNB35 ESRRB Proteína beta do
receptor de estrogênio
DFNA3B GJB6 (Cx30) Junções comunicantes DFNB36 ESPN Proteína de
ramificação da actina
DFNA4 MYH14 Miosina não muscular classe insensível ao Ca
II
CEACAM16 Molécula de adesão celular DFNB37 MYO6 Miosina não
convencional
DFNA5 DFNA5 Desconhecida DFNB39 HFG Fator de crescimento
de hepatócitos
DFNA6/14/38 WFS1 Proteína transmembrana DFNB42 ILDR1 Receptor contendo o
domínio tipo Ig
DFNA8/12 TECTA Proteína da membrana DFNB44 ADCY1 Adenilato-ciclase
tectorial
DFNA9 COCH Desconhecida DFNB48 CIB2 Proteína de ligação de
cálcio e integrina
DFNA10 EYA4 DFNB49 BDP1
Gene associado ao Subunidade da RNA-
desenvolvimento polimerase
DFNA11 MYO7A Proteína do citoesqueleto DFNB49 MARVELD2 Proteína da junção
estreita
DFNA13 COL11A2 Proteína do citoesqueleto DFNB53 COL11A2 Proteína do colágeno
DFNA15 POU4F3 Fator de transcrição DFNB59 PJVK Proteína ligadora de
Zn
DFNA17 MYH9 Proteína do citoesqueleto DFNB60 SLC22A4 Prestina, proteína
motora das células
DFNA20/26 ACTG1 Proteína do citoesqueleto ciliadas externas da
cóclea
DFNA22 MYO6 Miosina não convencional DFNB61 SLC26A5 Proteína motora
DFNA23 SIX1 Gene associado ao DFNB63 LRTOMT/COMT2 Provável
desenvolvimento metiltransferase
DFNA25 SLC17A8 Transportador do glutamato DFNB66 DCDC2 Proteína ciliar
vesicular
DFNA28 GRHL2 Fator de transcrição DFNB66/67 LHFPL5 Proteína
transmembrana de 4
alças
DFNA36 TMC1 Proteína transmembrana DFNB68 S1PR2 Proteína
transmembrana de 4
DFNA41 P2RX2 Receptor purinérgico alças de estereocílios
de células ciliadas
DFNA44 CCDC50 Efetor da sinalização mediada DFNB70 PNPT1 Proteína de
pelo fator de crescimento importação do RNA
epidérmico mitocondrial
DFNA50 MIRN96 Micro-RNA DFNB73 BSND Subunidade beta do
canal de cloreto
DFNA51 TJP2 Proteína da junção estreita DFNB74 MSRB3 Metionina-sulfóxido-
redutase
DFNA56 TNC Proteínas da matriz DFNB76 SYNE4 Parte do complexo de
extracelular ancoragem LINC
DFNA64 SMAC/DIABLO Proteína pró-apoptótica DFNB77 LOXHD1 Proteína estereociliar
mitocondrial
DFNA65 TBC1D24 Proteína de interação com DFNB79 TPRN Desconhecida
ARF6
DFNA66 CD164 Sialomucina DFNB82 GPSM2 Modulador da
sinalização das
DFNA67 OSBPL2 Receptor intracelular de proteínas G
lipídeos
DFNA68 HOMER2 Proteína de suporte DFNB84 PTPRQ Família de proteína-
estereociliar tirosina-fosfatase tipo
receptor do tipo III
DFNA69 KITLG Ligante do receptor KIT
DFNA70 MCM2 Início e alongamento durante DFNB84 OTOGL Proteína tipo
a replicação do DNA otogelina
DFNB86 TBC1D24 Proteína ativadora da
GTPase
DFNA71 DMXL2 Regulador da sinalização DFNB88 ELMOD3 Proteína ativadora da
Notch GTPase
Autossômicos recessivos DFNB89 KARS Lisil-tRNA-sintetase
DFNB1A GJB2 (CX26) Junções comunicantes DFNB91 SERPINB6 Inibidor da protease
DFNB1B GJB6 (CX30) Junções comunicantes DFNB93 CABP2 Proteína de ligação do
cálcio
DFNB2 MYO7A Proteína do citoesqueleto DFNA97 MET
Receptor do fator de
crescimento de
DFNB3 MYO15 Proteína do citoesqueleto hepatócitos/oncogenes
DFNB4 PDS Transportador de DFNB98 TSPEAR Proteína contendo
(SLC26A4) cloreto/iodeto repetições associadas
à epilepsia
DFNB6 TMIE Proteína transmembrana
DFNB7/B11 TMC1 Proteína transmembrana DFNB99 TMEM132E Proteína
transmembrana
DFNB9 OTOF Circulação das vesículas da DFNB101 GRXCR2 Manutenção de feixes
membrana estereociliares
DFNB8/10 TMPRSS3 Serina-protease DFNB102 EPS8 Receptor do fator de
transmembrana crescimento
epidérmico
DFNB12 CDH23 Proteína de aderência
intercelular
DFNB15/72/95 GIPC3 Proteína contendo domínios DFNB103 CLIC5 Transporte de íon
PDZ cloreto
DFNB16 STRC Proteína dos estereocílios DFNB105 CDC14A Proteína fosfatase
envolvida na
DFNB18 USH1C Desconhecida ciliogênese de células
ciliadas
DFNB18B OTOG Proteína da membrana FAM65B Proteína associada à
tectorial membrana em
estereocílios
DFNB21 TECTA Proteína da membrana
tectorial
DFNB22 OTOA Adesão de gel a células não EPS8L2 Remodelamento da
sensitivas actina em resposta à
estimulação do EGF
DFNB23 PCDH15 Morfogênese e coesão
DFNB24 RDX Proteína do citoesqueleto ROR1 Receptor órfão tipo
receptor da tirosina-
cinase

Além do GJB2, vários outros genes não sindrômicos estão associados à


perda auditiva progressiva à medida que o indivíduo envelhece. A contribuição
genética à presbiacusia está sendo esclarecida com mais detalhes. A
sensibilidade à ototoxicidade dos aminoglicosídeos pode ser maternalmente
transmitida através de uma mutação mitocondrial. A suscetibilidade à perda
auditiva causada pela exposição ao ruído também pode ser determinada
geneticamente.
Há > 400 formas sindrômicas de perda auditiva. Isso inclui síndrome de
Usher (retinite pigmentosa e déficit auditivo), síndrome de Waardenburg
(anormalidade da pigmentação e surdez), síndrome de Pendred (distúrbio da
organificação tireoideana e déficit auditivo), síndrome de Alport (doença renal e
surdez), síndrome de Jervell e Lange-Nielsen (intervalo QT prolongado e
deficiência auditiva), neurofibromatose tipo 2 (schwannomas acústicos
bilaterais) e distúrbios mitocondriais (encefalopatia mitocondrial, acidose láctica
e episódios semelhantes ao AVC [MELAS], epilepsia mioclônica com fibras
vermelhas rasgadas [MERRF] e oftalmoplegia externa progressiva [OEP]) (Tab.
30-2).

TABELA 30-2 ■ Genes associados à disfunção auditiva hereditária sindrômica


Síndrome Gene Função

Síndrome de Alport COL4A3-5 Proteína do citoesqueleto


Síndrome BOR EYA1 Gene associado ao desenvolvimento
SIX5 Gene associado ao desenvolvimento
SIX1 Gene associado ao desenvolvimento
Síndromes de Jervell e Lange-Nielsen KCNQ1 Canal retificador tardio de K+
KCNE1 Canal retificador tardio de K+
Doença de Norrie NDP Interações celulares
Síndrome de Pendred SLC26A4 Transportador de cloro/iodo
FOXI1 Ativador transcricional de SLC26A4
KCNJ10 Canal retificador do influxo de K+
Síndrome de Treacher Collins TCOF1 Transporte nucleolar-citoplasmático
POLR1D Subunidades de RNA-polimerases I e III
POLR1C Subunidades de RNA-polimerases I e III
Síndrome de Usher MYO7A Proteína do citoesqueleto
USH1C Desconhecida
CDH23 Proteína de aderência intercelular
PCDH15 Molécula de adesão celular
SANS Proteína associada à harmonina
CIB2 Proteína de ligação de cálcio e integrina
USH2A Molécula de adesão celular
VLGR1 Receptor acoplado às proteínas G
WHRN Proteína contendo domínios PDZ
CLRN1 Proteína de sinapse celular
HARS Histidil-tRNA-sintetase
PDZD7 Proteína contendo domínios PDZ
SW tipo I, III PAX3 Fator de transcrição
SW tipo II MITF Fator de transcrição
SNAI2 Fator de transcrição
SW tipo IV EDNRB Receptor da endotelina B
EDN3 Ligante do receptor de endotelina B
SOX10 Fator de transcrição
Siglas: BOR, brânquio-otorrenal; SW, síndrome de Waardenburg.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Distúrbios da audição
O objetivo da avaliação do paciente com queixas auditivas é determinar (1) o
tipo de deficiência auditiva (condutiva vs. neurossensorial vs. mista); (2) a
gravidade do déficit (leve, moderado, grave ou profundo); (3) a correlação
anatômica da disfunção (orelhas externa, média ou interna ou vias auditivas
centrais); e (4) a etiologia. Deve ser determinada a presença de sinais e
sintomas associados com perda auditiva (Tab. 30-3). A história deve elucidar
as características da perda auditiva, inclusive a duração da surdez, o
acometimento unilateral ou bilateral, o tipo de início (súbito vs. insidioso) e a
taxa de progressão (rápida vs. lenta). Os sinais e sintomas como zumbido,
vertigem, desequilíbrio, sensação de plenitude auricular, otorreia, cefaleia,
disfunção do nervo facial e parestesias no pescoço e na cabeça devem ser
avaliados. As informações sobre traumatismo de crânio, exposição às
ototoxinas, exposições ocupacionais ou recreativas aos ruídos e história
familiar de perda auditiva também podem ser importantes. A perda auditiva
unilateral de início súbito, com ou sem zumbido, pode ser provocada por
uma infecção viral da orelha interna, por schwannoma vestibular ou por um
AVC. Os pacientes com perda auditiva unilateral (neurossensorial ou
condutiva) geralmente se queixam de audição reduzida, dificuldade de
localizar os sons e dificuldade de ouvir claramente na presença de ruído de
fundo. A progressão gradativa do déficit auditivo é comum com a
otosclerose, a surdez induzida pela exposição a ruídos, o schwannoma
vestibular e a doença de Ménière. Os schwannomas vestibulares pequenos
geralmente se evidenciam por disfunção auditiva assimétrica, zumbido e
distúrbios do equilíbrio (raramente com vertigem); a neuropatia craniana,
principalmente com acometimento dos nervos trigêmeo ou facial, pode estar
associada aos tumores mais volumosos. Além da perda auditiva, a doença de
Ménière pode estar associada à vertigem transitória, ao zumbido e à sensação
de plenitude auricular. Perda auditiva com otorreia é causada mais
provavelmente por otite média crônica ou colesteatoma.

TABELA 30-3 ■ Sinais e sintomas sugestivos de perda auditiva


Dizer “hein” muitas vezes
Redução da clareza na audição
Dificuldade de compreensão de conversações na presença de ruído de fundo
Queixas de perda auditiva pelos familiares
Zumbido
Aumento do volume do rádio ou televisão
Sensibilidade a ruídos
Plenitude aural
Evitação de situações sociais
O exame físico deve incluir o pavilhão auricular, o canal auditivo
externo e a membrana timpânica. Nos indivíduos idosos, o canal auditivo
externo geralmente é ressecado e frágil; é preferível limpar o cerume com
aspiração ou alças apropriadas para remoção de cerume e evitar a irrigação.
Durante o exame da membrana timpânica, a sua topografia é mais importante
que a presença ou ausência de reflexo da luz. Além da parte tensa (dois
terços inferiores da membrana timpânica), a parte flácida (terço superior da
membrana timpânica) situada acima do processo curto do martelo também
deve ser examinada para detectar áreas de retração, que podem indicar
disfunção crônica da tuba auditiva ou colesteatoma. A insuflação de ar no
canal auditivo é necessária para avaliar a mobilidade e a complacência da
membrana timpânica. A inspeção cuidadosa do nariz, da nasofaringe e das
vias aéreas superiores também é importante. Secreção serosa unilateral ou
otalgia inexplicada devem indicar imediatamente uma endoscopia de fibra
óptica da nasofaringe e laringe para excluir neoplasias. Os nervos cranianos
devem ser avaliados com ênfase especial para os nervos facial e trigêmeo,
que comumente são afetados pelos tumores do ângulo pontocerebelar.
Os testes de Rinne e de Weber com um diapasão de 512 Hz são
realizados como rastreamento da perda auditiva para diferenciar entre as
perdas condutiva e neurossensorial e confirmar os resultados do exame
audiológico. O teste de Rinne compara a capacidade de ouvir por meio da
condução aérea com a capacidade auditiva por condução óssea. As pontas do
diapasão vibrando são mantidas perto do orifício do canal auditivo externo e,
em seguida, o cabo é aplicado no processo mastoide; para assegurar contato
direto, o diapasão pode ser aplicado nos dentes ou nas dentaduras. O paciente
é solicitado a indicar se o tom foi ouvido com mais intensidade por condução
aérea ou óssea. Normalmente, e na presença de perda da audição
neurossensorial, o tom é percebido com mais intensidade por condução aérea
que óssea; contudo, em presença de perda auditiva condutiva ≥ 30 dB (ver
“Avaliação audiológica”, a seguir), o estímulo transmitido por condução
óssea é percebido com mais intensidade que o estímulo transmitido por
condução aérea. No teste de Weber, o cabo do diapasão vibrando é aplicado
na linha média da cabeça e o paciente é solicitado a dizer se o tom é
percebido nas duas orelhas ou é mais intenso em um lado que no outro. Com
uma perda auditiva condutiva unilateral, o tom é percebido com mais
intensidade pela orelha afetada. Com uma perda auditiva neurossensorial
unilateral, o tom é percebido mais intensamente no lado normal. Para
confirmar a lateralização, é necessária uma diferença de 5 dB na audição
entre as duas orelhas.

AVALIAÇÃO LABORATORIAL DA AUDIÇÃO


Avaliação audiológica A avaliação audiológica mínima de um paciente com
perda auditiva deve incluir as determinações dos limiares de condução aérea e
óssea dos tons puros, o limiar de recepção da fala, o escore de reconhecimento
das palavras, a timpanometria, os reflexos acústicos e o declínio do reflexo
acústico. Essa bateria de testes possibilita uma avaliação de rastreamento de todo
o sistema auditivo e permite determinar se há indicação para a diferenciação
mais detalhada entre as perdas auditivas sensoriais (cocleares) e neurais
(retrococleares).
A audiometria de tons puros avalia a acuidade auditiva para esses tons.
Esse teste é aplicado por um audiologista em um compartimento com isolamento
acústico. O estímulo tonal puro é liberado por um audiômetro, ou seja, um
equipamento eletrônico que permite a apresentação de frequências específicas
(geralmente entre 250 e 8.000 Hz) com intensidades específicas. Os limiares de
condução aérea e óssea são determinados para cada orelha. Os limiares de
condução aérea são medidos por apresentação do estímulo transmitido pelo ar
com utilização de fones de ouvido. Os limiares de condução óssea são
determinados aplicando-se o cabo de um diapasão vibrando ou o oscilador de um
audiômetro em contato com a cabeça. Na presença de perda auditiva, um ruído
de espectro amplo é apresentado à orelha que não está sendo testada para
mascarar, de forma que as respostas estejam baseadas na percepção pela orelha
testada.
As respostas são medidas em decibéis (dB). O audiograma é um gráfico de
intensidade do limiar auditivo em dB versus frequência. Um dB equivale a 20
vezes o logaritmo da relação entre a pressão sonora necessária para atingir o
limiar do paciente e a pressão sonora necessária para alcançar o limiar de um
indivíduo com audição normal. Desse modo, uma alteração de 6 dB representa
uma duplicação da pressão sonora, enquanto uma alteração de 20 dB reflete uma
oscilação de 10 vezes na pressão sonora. A sonoridade, que depende da
frequência, da intensidade e da duração de um som, duplica a cada aumento de
cerca de 10 dB no nível da pressão sonora. Por outro lado, a intensidade do som
não se correlaciona diretamente com a frequência. A percepção da intensidade
dos sons altera-se lentamente nas frequências baixas e altas. Com os tons
intermediários, que são importantes para a fala humana, a intensidade dos sons
varia mais rapidamente de acordo com as mudanças de frequência.
A audiometria de tons puros demonstra a existência e a gravidade da
disfunção auditiva, o acometimento unilateral versus bilateral e o tipo de perda
auditiva. As perdas da audição condutiva com um componente de massa
expressivo, como ocorre comumente nas efusões da orelha média, produzem
elevação dos limiares com predomínio nas frequências mais altas. As perdas da
audição condutiva com um componente expressivo de rigidez, como se observa
com a fixação da base do estribo na otosclerose, provocam elevações do limiar
em frequências mais baixas. Em geral, a perda auditiva condutiva afeta todas as
frequências, sugerindo o envolvimento de rigidez e massa. As perdas da audição
neurossensorial (p. ex., presbiacusia) geralmente afetam predominantemente as
frequências mais altas (Fig. 30-3). Uma exceção é a doença de Ménière, que
geralmente está associada à perda auditiva neurossensorial para frequências
baixas (embora qualquer frequência possa ser afetada). A perda auditiva
induzida pela exposição aos ruídos mostra um padrão incomum de déficit
auditivo, no qual a perda a 4.000 Hz é maior que nas frequências mais altas. Nos
casos típicos, os schwannomas vestibulares afetam as frequências mais altas,
mas pode ser observado qualquer padrão de perda auditiva.
O reconhecimento da fala requer disparos neurais mais sincrônicos que os
necessários para a detecção dos tons puros. A audiometria da fala testa a clareza
com que um indivíduo ouve. O limiar de recepção da fala (LRF) é definido
como a intensidade na qual a fala é reconhecida como um símbolo significativo
e pode ser determinado apresentando-se palavras dissílabas com a mesma
acentuação em cada sílaba. A intensidade na qual o paciente consegue repetir
corretamente 50% das palavras é o LRF. Depois da determinação do LRF, a
discriminação ou a capacidade de reconhecer palavras é testada apresentando-se
palavras monossílabas a uma frequência entre 25 e 40 dB acima do LRF. As
palavras são foneticamente equilibradas, de forma que os fonemas (sons da fala)
ocorrem na lista de palavras com a mesma frequência com que ocorrem nas
conversações corriqueiras. Os indivíduos com audição normal ou com perda de
audição condutiva conseguem repetir corretamente 88 a 100% das palavras
foneticamente equilibradas. Os pacientes com perda da audição neurossensorial
têm perdas variáveis da discriminação. Como regra geral, as lesões neurais
produzem déficits discriminativos mais intensos que as lesões cocleares. Por
exemplo, em um paciente com perda auditiva neurossensorial assimétrica leve,
um indício para o diagnóstico de schwannoma vestibular é a deterioração da
capacidade de discriminação maior do que seria esperado. A deterioração da
capacidade discriminativa em intensidades acima do LRF também sugere lesões
do oitavo nervo craniano ou das vias auditivas centrais.
A timpanometria mede a impedância da orelha média aos sons e ajuda a
diagnosticar efusões nesse compartimento. O timpanograma é a representação
gráfica da alteração da impedância ou da complacência, à medida que a pressão
dentro do canal auditivo modifica-se. Em condições normais, a orelha média é
mais complacente sob pressão atmosférica, mas a complacência diminui à
medida que a pressão aumenta ou diminui (tipo A); esse padrão é observado nos
indivíduos com audição normal ou nos pacientes com perda da audição
neurossensorial. A complacência que não se altera com as mudanças de pressão
sugere efusão da orelha média (tipo B). Com uma pressão negativa na orelha
média, como ocorre com a obstrução da tuba auditiva, o ponto de complacência
máxima ocorre com uma pressão negativa no canal auditivo (tipo C). O
timpanograma no qual não é possível determinar o ponto de complacência
máxima está associado mais comumente à perda de continuidade da cadeia
ossicular (tipo Ad). Na otosclerose, pode haver redução do pico de complacência
máxima (tipo As).
Durante a timpanometria, um tom intenso provoca a contração do músculo
estapédio. A alteração da complacência da orelha média com a contração desse
músculo pode ser detectada. A presença ou ausência desse reflexo acústico é
importante para determinar a etiologia do déficit auditivo e também a localização
anatômica da paralisia do nervo facial. O reflexo acústico pode ajudar a
diferenciar entre perda de audição condutiva secundária à otosclerose e déficit
auditivo causado por uma “terceira janela” na orelha interna; esse reflexo
desaparece nos pacientes com otosclerose, mas está presente nos indivíduos com
perda auditiva condutiva na orelha interna. Os limiares normais ou elevados do
reflexo acústico de um indivíduo com déficit auditivo neurossensorial sugerem
perda auditiva coclear. A ausência do reflexo acústico num paciente com perda
da audição neurossensorial não ajuda a definir o local da lesão. A avaliação do
declínio do reflexo acústico ajuda a diferenciar as perdas auditivas sensoriais e
neurais. Com a perda auditiva neural, como no schwannoma vestibular, o reflexo
adapta-se ou diminui com o tempo.
As EOAs geradas apenas pelas células ciliadas externas podem ser medidas
com microfones introduzidos nos canais auditivos externos. As emissões podem
ser espontâneas ou evocadas pela estimulação sonora. A presença de EOA sugere
que as células ciliadas externas do órgão de Corti estejam intactas e isso pode ser
utilizado para avaliar os limiares auditivos e diferenciar entre as perdas
sensoriais e neurais.

Respostas evocadas A eletrococleografia detecta os primeiros potenciais


evocados gerados na cóclea e no nervo auditivo. Os potenciais receptores
registrados incluem os potenciais microfônicos cocleares, gerados pelas células
ciliadas externas do órgão de Corti, e o potencial somatório gerado pelas células
ciliadas internas em resposta ao som. O potencial de ação neural total, que
representa os disparos totalizados dos neurônios de primeira ordem, também
pode ser registrado durante a eletrococleografia. Na prática clínica, esse teste
ajuda a diagnosticar a doença de Ménière, na qual se observa aumento da razão
entre os potenciais somatórios e os de ação.
As respostas auditivas evocadas do tronco encefálico (RAETs), também
conhecidas como respostas auditivas do tronco encefálico (RATs), ajudam a
diferenciar a origem anatômica da perda auditiva neurossensorial. Em resposta
ao som, podem ser identificados cinco potenciais elétricos diferentes originados
das diversas estações ao longo das vias auditivas periféricas e centrais (oitavo
nervo, núcleo coclear, complexo olivar superior, lemnisco lateral e colículo
inferior) utilizando o cálculo das médias dos potenciais registrados por eletrodos
aplicados no couro cabeludo. As RAETs são esclarecedoras nas situações em
que os pacientes não conseguem ou não fornecem limiares voluntários
confiáveis. Além disso, esse teste é utilizado para avaliar a integridade do nervo
auditivo e do tronco encefálico em várias condições clínicas, inclusive
monitoração intraoperatória e avaliação da morte cerebral.
O teste de potencial evocado miogênico vestibular (PEMV) investiga
otólitos e função do nervo vestibular ao apresentar um estímulo acústico de nível
alto e evocando um potencial eletromiográfico de latência curta; foram descritos
o PEMVc (ou PEMV cervical) e o PEMVo (ou PEMV ocular). O PEMVc
desencadeia um reflexo vestibulocólico cuja alça aferente se origina em células
acusticamente sensíveis no sáculo, com os sinais sendo conduzidos através do
nervo vestibular inferior. O PEMVc é uma resposta bifásica de latência curta
registrada no músculo esternocleidomastóideo tonicamente contraído em
resposta a tons ou cliques auditivos intensos. O PEMVc pode estar dimunuído
ou ausente em pacientes com doença de Ménière inicial ou tardia, neurite
vestibular, vertigem posicional paroxística benigna e schwannoma vestibular.
Por outro lado, o limiar dos PEMVs pode estar reduzido nos pacientes com
deiscência do canal superior, outras deiscências da orelha interna e fístula
perilinfática. O PEMVo, por outro lado, é uma resposta que envolve o utrículo
primariamente e o nervo vestibular superior. A resposta excitatória do PEMVo é
registrada na musculatura extraocular. O PEMVo é anormal na neurite vestibular
superior.

Exames de imagem A escolha dos exames radiológicos é determinada em


grande parte com base no objetivo de avaliar a anatomia óssea das orelhas
externa, média e interna ou estudar o nervo auditivo e o cérebro. A TC do osso
temporal nos planos axial e coronal com cortes finos de 0,3 mm é ideal para
determinar o diâmetro do canal auditivo externo, a integridade da cadeia
ossicular e a existência de doença da orelha média ou do mastoide; além disso,
essa técnica pode detectar malformações da orelha interna. A TC também é ideal
para o diagnóstico de erosão óssea com otite média crônica e colesteatoma. É
necessária a reformatação de Pöschl no plano do canal semicircular superior para
a identificação de deiscência ou ausência de osso sobre o canal semicircular
superior. A RM é mais esclarecedora que a TC na investigação de patologias
retrococleares, inclusive schwannoma vestibular, meningioma, outras lesões do
ângulo pontocerebelar, lesões desmielinizantes do tronco encefálico e tumores
cerebrais. A TC e a RM são igualmente eficazes para detectar malformações da
orelha interna e estimar a patência coclear para avaliação de pacientes que serão
submetidos à implantação coclear.

TRATAMENTO
Distúrbios da audição
Em geral, as perdas de audição condutiva são passíveis de correção cirúrgica, enquanto os déficits
neurossensoriais são manejados clinicamente. A atresia do canal auditivo pode ser reparada cirurgicamente,
em geral com melhora significativa da audição. De modo alternativo, a perda de audição condutiva
associada com atresia pode ser tratada com um aparelho auditivo ancorado no osso (AAAO). As
perfurações da membrana timpânica associadas à otite média crônica ou aos traumatismos podem ser
reparadas pela timpanoplastia ambulatorial. Do mesmo modo, a perda auditiva condutiva associada à
otosclerose pode ser tratada por estapedectomia, que é bem-sucedida em > 95% dos casos. Os tubos de
timpanostomia possibilitam a recuperação imediata da audição normal nos indivíduos com efusões da
orelha média. Os aparelhos auditivos são eficazes e bem tolerados pelos pacientes com perdas de audição
condutiva.
Os pacientes com perdas auditivas neurossensoriais leves, moderadas e graves geralmente são
reabilitados com aparelhos auditivos com configurações e potências variáveis. Os aparelhos auditivos foram
aprimorados para assegurar maior fidelidade e foram miniaturizados. A geração atual de aparelhos auditivos
pode ser colocada inteiramente dentro do canal auditivo e, dessa forma, atenua quaisquer estigmas
associados à sua utilização. Em geral, quanto maior a gravidade do déficit auditivo, maiores serão as
dimensões do aparelho auditivo necessário à recuperação da audição. Os aparelhos auditivos digitais podem
ser programados individualmente, e os microfones múltiplos e direcionais posicionados no nível da orelha
podem ser úteis em ambientes ruidosos. Como todos os aparelhos auditivos amplificam o ruído e a fala, a
única solução definitiva para o problema dos ruídos é colocar o microfone mais perto da pessoa que fala
que da fonte dos ruídos. Essa adaptação não é possível com os aparelhos compactos esteticamente mais
aceitáveis. Uma limitação significativa da reabilitação com aparelho auditivo é que, embora o dispositivo
possa aumentar a detecção dos sons amplificados, ele não consegue recuperar a clareza da audição que foi
perdida com a presbiacusia.
O custo de um único aparelho auditivo (cerca de 2.300 dólares) é um obstáculo significativo para
muitas pessoas com perda auditiva e, em geral, costuma ser recomendada a amplificação bilateral. Para
reduzir o custo e incentivar a inovação, existem tentativas de criar uma nova categoria de aparelhos
auditivos “básicos” que poderiam ser vendidos sem prescrição médica, da mesma maneira que alguns
óculos ou lentes de contato. Ao reduzir o custo de aparelhos auditivos para os consumidores, promovendo a
inovação e aumentando a competição, essa nova classe de dispositivos poderia mudar fundamentalmente a
maneira como é oferecida a reabilitação auditiva.
Os pacientes com surdez unilateral têm dificuldade de localizar os sons e perdem a clareza da audição
nos ambientes ruidosos. Esses indivíduos podem se beneficiar de um aparelho auditivo de direcionamento
contralateral do sinal (CROS, de contralateral routing of signals), no qual um microfone é colocado no lado
do déficit auditivo e o som é transmitido ao receptor colocado na orelha contralateral. O mesmo resultado
pode ser conseguido com um AAAO, no qual o dispositivo é fixado a um parafuso integrado ao osso do
crânio no mesmo lado afetado. Assim como ocorre com o aparelho auditivo de CROS, o AAAO transfere o
sinal acústico para a orelha contralateral preservada, mas isso é obtido por meio de vibrações do crânio. Os
pacientes com surdez profunda unilateral e alguma perda auditiva na orelha melhor são candidatos ao
aparelho auditivo BI-CROS; esse dispositivo difere do aparelho auditivo de CROS porque o paciente utiliza
um aparelho auditivo (não apenas um receptor) na orelha que está melhor. Infelizmente, apesar dos
dispositivos CROS e AAAO fornecerem benefícios, eles não restauram a audição na orelha surda. Apenas
os implantes cocleares podem restaurar a audição (ver adiante). Os implantes cocleares estão sendo cada
vez mais investigados para o tratamento de pacientes com surdez unilateral; os relatos iniciais se mostram
muito promissores não apenas para a restauração da audição e redução do zumbido, mas também para
melhorar a localização do som e o desempenho em ambientes ruidosos.
Em muitas situações, inclusive palestras e cinema, os pacientes com déficits auditivos podem ser
beneficiados pelos dispositivos auxiliares baseados no princípio de colocar o indivíduo que fala mais perto
do microfone que de qualquer outra fonte de ruído. Entre esses dispositivos auxiliares estão os
transmissores infravermelhos e de frequência modulada (FM) e também um circuito eletromagnético
posicionado ao redor da sala para transmissão ao aparelho auditivo do paciente. Os aparelhos auditivos com
telespirais também podem ser utilizados em telefones adequadamente equipados da mesma forma.
Nos casos em que o aparelho auditivo não possibilita reabilitação satisfatória, os implantes cocleares
podem ser apropriados (Fig. 30-4). Entre os critérios para implantação estão perdas auditivas profundas
com reconhecimento de frases abertas ≤ 40% nas melhores condições facilitadas. No mundo todo, mais de
600 mil pessoas com deficiência auditiva já receberam implantes cocleares. Esses implantes são próteses
neurais que convertem a energia sonora em energia elétrica e podem ser utilizados para estimular
diretamente o ramo auditivo do oitavo nervo craniano. Na maioria dos casos de perda auditiva profunda, as
células ciliadas auditivas foram perdidas, mas as células ganglionares do ramo auditivo do oitavo nervo
estão preservadas. Os implantes cocleares consistem em eletrodos inseridos na cóclea por meio da janela
redonda, em processadores da fala que extraem os elementos acústicos da fala para conversão em correntes
elétricas e em um meio de transmissão da energia elétrica pela pele. Os pacientes com implantes percebem
o som e isso facilita a leitura labial, possibilita o reconhecimento de palavras e ajuda a modular a própria
voz da pessoa. Em geral, nos primeiros 3 a 6 meses após a implantação, os pacientes adultos conseguem
entender a fala sem estímulos visuais. Com a geração atual dos implantes cocleares multicanais, cerca de
75% dos pacientes conseguem conversar ao telefone. Os implantes cocleares bilaterais estão sendo cada vez
mais realizados, especialmente em crianças; esses pacientes têm melhor desempenho em ambientes
ruidosos, localizam melhor o som e têm menos fadiga pelo “trabalho” em comparação com a audição
monaural.

FIGURA 30-4 Um implante coclear é composto de um microfone externo e um processador de fala


usados na orelha e de um receptor implantado sob o músculo temporal. O receptor interno está ligado a um
eletrodo colocado cirurgicamente na cóclea.

O primeiro implante coclear híbrido para o tratamento de perda auditiva de altas frequências já foi
aprovado pela Food and Drug Administration. Os pacientes com presbiacusia geralmente têm audição
normal para as baixas frequências, apesar de sofrerem pela perda auditiva para altas frequências associada a
falta de clareza, que nem sempre pode ser adequadamente recuperada com aparelhos auditivos. Porém,
esses pacientes não são candidatos a implantes cocleares convencionais, pois apresentam muita audição
residual. O implante híbrido foi especificamente desenvolvido para essa população de pacientes; ele tem um
eletrodo mais curto que o implante coclear convencional e pode ser introduzido na cóclea sem trauma,
preservando, assim, a audição das baixas frequências. As pessoas com implante híbrido utilizam sua própria
audição “acústica” natural para baixas frequências e utilizam o implante para providenciar a audição
“elétrica” das frequências altas. Os pacientes que receberam implantes híbridos se saem melhor nos testes
de discriminação da fala tanto em ambientes silenciosos como nos ruidosos.
Para os pacientes que tiveram seus oitavos nervos destruídos por traumatismo ou schwannomas
vestibulares bilaterais (p. ex., neurofibromatose tipo 2), os implantes auditivos do tronco encefálico
posicionados perto do núcleo coclear podem permitir a reabilitação auditiva. Atualmente, implantes no
tronco encefálico oferecem percepção sonora, mas, infelizmente, a compreensão da fala ainda não foi
alcançada.
Em muitos casos, o zumbido está associado à perda auditiva. Assim como ocorre com o ruído de
fundo, o zumbido pode dificultar a compreensão da fala dos indivíduos com déficit auditivo. Os pacientes
com zumbido devem ser aconselhados a minimizar a ingestão de cafeína, evitar altas doses de anti-
inflamatórios não esteroides (AINEs) e reduzir o estresse. Em geral, o tratamento do zumbido tem como
objetivo atenuar sua percepção pelo paciente. Pode-se aliviar o zumbido pela atenuação com uma música de
fundo. Os aparelhos auditivos também ajudam a suprimir o zumbido, assim como os dissimuladores de
zumbido, que apresentam um som à orelha afetada, que é mais agradável de ouvir que o zumbido. A
utilização do dissimulador de zumbido geralmente suprime sua percepção por várias horas. Alguns estudos
demonstraram que os antidepressivos são eficazes para ajudar os pacientes a lidarem com o zumbido.
Os indivíduos com dificuldade auditiva frequentemente melhoram com a atenuação dos ruídos
desnecessários do ambiente (p. ex., rádio ou televisão) para melhorar a relação sinal-ruído. A compreensão
da fala é facilitada pela leitura labial; por essa razão, o deficiente auditivo deve sentar-se de forma que a
face da pessoa que fala fique bem iluminada e facilmente visível. Embora a fala deva ser modulada em voz
alta e clara, deve-se estar ciente de que, com as perdas auditivas neurossensoriais em geral e nas pessoas
idosas com dificuldade auditiva em particular, o recrutamento (percepção anormal dos sons altos) pode ser
problemático. Acima de tudo, a comunicação ideal não pode ocorrer sem que as duas partes dediquem sua
atenção plena e exclusiva.

PREVENÇÃO
As perdas de audição condutiva podem ser evitadas pelo tratamento imediato da
OMA com antibiótico por um tempo suficiente e por ventilação da orelha média
com tubos de timpanostomia se houver efusão da orelha média há ≥ 12 semanas.
A perda da função vestibular e a surdez, causadas pelos aminoglicosídeos,
podem ser praticamente evitadas pela monitoração cuidadosa dos níveis séricos
máximos e mínimos.
Cerca de 10 milhões de americanos têm déficits auditivos induzidos pela
exposição aos ruídos e 20 milhões ficam expostos a níveis perigosos em seus
ambientes de trabalho. A perda auditiva induzida por ruídos pode ser evitada por
meio da prevenção da exposição aos ruídos intensos ou pela utilização habitual
de tampões de orelha ou abafadores auditivos cheios de líquidos para atenuar a
intensidade do som. A Tabela 30-4 lista os níveis de sonoridade para vários sons
ambientais. Entre as atividades de alto risco para perda auditiva induzida por
ruídos estão os trabalhos com equipamentos elétricos para madeira e metal e a
prática de tiro ao alvo e caça com armas de pequeno porte. Todos os
equipamentos de combustão interna e elétricos, inclusive sopradores de neve e
folhas, veículos de neve, motores de popa e serras circulares, exigem proteção
do usuário com protetores auditivos. Quase todas as perdas auditivas induzidas
por ruídos são evitáveis pela educação, que deve começar antes da adolescência.
Os programas industriais de preservação da audição são exigidos pela
Occupational Safety and Health Administration (OSHA) quando há exposição
média a 85 dB por um período de 8 horas. A OSHA exige que os trabalhadores
que atuam nesses ambientes ruidosos façam a monitoração da audição e
participem dos programas de proteção, que inclui um rastreamento pré-
admissional, exames audiológicos anuais e uso obrigatório de protetores
auriculares. A exposição a ruídos intensos acima de 85 dB no ambiente de
trabalho é proibida pela OSHA, com redução à metade do tempo de exposição
permitido para cada aumento de 5 dB acima desse limiar; por exemplo, a
exposição a 90 dB é permitida por 8 horas; a 95 dB, por 4 horas; e a 100 dB, por
2 horas (Tab. 30-5).

TABELA 30-4 ■ Níveis de decibéis (sonoridade) de ruídos ambientais comuns


Fonte dB
O mais fraco som audível 0
Sussurro 30
Conversação normal 55-65
Tráfego da cidade dentro do carro 85
Começa a necessidade de monitoramento da OSHA 90
Britadeira 95
Metrô a cerca de 70 m 95
Cortador de grama elétrico 107
Serra elétrica 110
Som doloroso 125
Motor de jato a cerca de 30 metros 140
Tiro de espingarda calibre 12 165
O mais alto som que pode ocorrer 194
Sigla: OSHA, Occupational Safety and Health Administration.

TABELA 30-5 ■ Exposição diária permitida conforme nível de ruído pela OSHAa
Nível do som (dB) Duração diária (h)

90 8
92 6
95 4
97 3
100 2
102 1,5
105 1
110 0,5
115 ≤ 0,25
Nota: A exposição a ruídos de impulsão ou impacto não deve exceder um nível de pressão sonora de pico de 140 dB.
Fonte: De https://www.osha.gov/pls/oshaweb/owadisp.show_document?p_table=standards&p_id=9735.

LEITURAS ADICIONAIS
Espinosa-Sanchez JM, Lopez-Escamez JA: Menière’s disease. Handb Clin
Neurol 137:257, 2016.
Moser T, Starr A: Auditory neuropathy—neural and synaptic mechanisms. Nat
Rev Neurol 12:135, 2016.
Patel M et al: Intratympanic methylprednisolone versus gentamicin in patients
with unilateral Ménière’s disease: A randomised, double-blind, comparative
effectiveness trial. Lancet 388:2753, 2016.
Tikka C et al: Interventions to prevent occupational noise-induced hearing loss.
Cochrane Database Syst Rev 7:CD006396, 2017.
Wilson BS et al: Global hearing health care: New findings and perspectives.
Lancet 390:2503, 2017.
31
Dor de garganta, dor de ouvido e sintomas do
trato respiratório superior
Michael A. Rubin, Larry C. Ford, Ralph Gonzales

As infecções do trato respiratório superior (ITRSs) têm impacto profundo sobre


a saúde pública. Elas estão entre as causas mais comuns de consulta a
profissionais da atenção primária, e, embora os quadros de doença sejam
caracteristicamente leves, suas altas taxas de incidência e de transmissão as
colocam entre as principais causas de absenteísmo no trabalho e na escola.
Apesar de a minoria de tais doenças (cerca de 25%) ter causa bacteriana, elas são
o principal diagnóstico usado como justificativa para a prescrição de antibióticos
em ambulatórios nos Estados Unidos, em geral de maneira inapropriada. Os
antibióticos são mais comumente prescritos de forma inadequada em adultos do
que em populações pediátricas. O enorme consumo de antibióticos relacionado
com essas doenças tem contribuído para o fenômeno de resistência aos
antibióticos nas bactérias comumente adquiridas na comunidade, como o
Streptococcus pneumoniae – tendência que, por si só, já produziu uma enorme
influência na saúde pública e no paciente individual.
Embora a maioria das ITRSs seja viral, é difícil distinguir os pacientes com
infecção bacteriana primária daqueles com infecção viral primária. Os sinais e
sintomas das ITRSs bacterianas e os das virais geralmente são indistinguíveis.
Enquanto testes rápidos, consistentes e de baixo custo não forem
disponibilizados e amplamente utilizados, as infecções agudas continuarão sendo
diagnosticadas, principalmente a partir de critérios clínicos. Assim, o uso
criterioso e a possibilidade de uso inadequado de antibióticos continua sendo um
desafio.
INFECÇÕES DO TRATO RESPIRATÓRIO SUPERIOR
INESPECÍFICAS
As ITRSs inespecíficas representam um grupo de doenças definido de forma
ampla que coletivamente constituem a principal causa de consultas ambulatoriais
nos Estados Unidos. Por definição, as ITRSs inespecíficas não têm
características localizadoras evidentes. Elas são identificadas por uma variedade
de denominações descritivas, como rinite infecciosa aguda,
rinofaringite/nasofaringite aguda, coriza aguda e secreção nasal aguda, assim
como pelo rótulo genérico resfriado.

ETIOLOGIA
A grande variedade de classificações das ITRSs pode ser explicada pela
multiplicidade de agentes causadores e pela variedade de manifestações
causadas pelos patógenos comuns. Quase todas as ITRSs inespecíficas são
causadas por vírus, que podem ser de diferentes famílias e de muitos tipos
antigênicos. Por exemplo, há pelo menos 100 imunotipos de rinovírus (Cap. 194
), a causa mais comum de ITRS (cerca de 30-40% dos casos); entre as demais
causas estão vírus influenza (três imunotipos; Cap. 195), vírus parainfluenza
(quatro imunotipos), coronavírus (no mínimo três imunotipos) e adenovírus (47
imunotipos) (Cap. 194). O vírus sincicial respiratório (VSR), um patógeno bem
reconhecido na população pediátrica, também é uma causa bem identificada de
doenças importantes nos idosos e nos indivíduos imunocomprometidos. Diversas
outras viroses, incluindo algumas não associadas às ITRSs (p. ex., enterovírus,
vírus da rubéola e vírus varicela-zóster) respondem por uma pequena
porcentagem de casos em adultos a cada ano. Embora novas modalidades
diagnósticas (p. ex., swab de nasofaringe para reação em cadeia da polimerase
[PCR]) possam determinar a etiologia viral, há poucas opções específicas de
tratamento, e, em uma proporção substancial de casos, não se identifica qualquer
patógeno. Em adultos saudáveis em outros aspectos, geralmente não há
necessidade de se proceder a uma investigação específica para além do
diagnóstico clínico.

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
Os sinais e sintomas das ITRSs inespecíficas são semelhantes aos das outras
ITRSs, mas sem que haja indícios que permitam determinar uma localização
anatômica específica, como seios paranasais, faringe ou vias aéreas inferiores.
Uma ITRS inespecífica geralmente se apresenta como uma síndrome catarral
aguda, leve e autolimitada, com duração média de 1 semana (variando entre 2-10
dias). Os sinais e sintomas são diversos e frequentemente variam entre os
pacientes, mesmo quando causados pelo mesmo vírus. Os principais sinais e
sintomas das ITRSs inespecíficas são rinorreia (purulenta ou não), congestão
nasal, tosse e dor de garganta. Outras manifestações, como febre, mal-estar,
espirros, linfadenopatia e rouquidão, são mais variáveis, sendo a febre mais
comum em crianças pequenas e lactentes. Essa variedade de apresentações
talvez reflita diferenças na resposta do hospedeiro assim como do organismo
infectante; por exemplo, mialgia e fadiga podem ocorrer nas infecções por
influenza e parainfluenza, enquanto a conjuntivite sugere infecção por
adenovírus ou enterovírus. A tosse secundária à inflamação do trato respiratório
superior após uma doença como essa costuma durar 2 a 3 semanas e pode ser
erroneamente interpretada como indicação de um processo que necessita de
terapia antibiótica. Ao exame físico, os achados com frequência são
inespecíficos e banais. As infecções bacterianas secundárias (p. ex.,
rinossinusite, otite média e pneumonia) complicam 0,5 a 2% dos resfriados,
sobretudo nas populações com risco elevado, como lactentes, idosos e pacientes
cronicamente enfermos ou imunossuprimidos. As infecções bacterianas
secundárias geralmente estão associadas a uma evolução prolongada da doença,
maior gravidade do quadro e localização dos sinais e sintomas, frequentemente
na forma de rebote após melhora clínica inicial (sinal da “dupla queda”). As
secreções purulentas oriundas das narinas ou da garganta com frequência são
mal interpretadas como indícios de rinossinusite ou faringite bacterianas. No
entanto, essas secreções também ocorrem nas ITRSs inespecíficas, razão pela
qual, na ausência de outros achados clínicos, não são boas indicadoras de
infecção bacteriana.

TRATAMENTO
Infecções inespecíficas do trato respiratório superior
Os antibióticos não são indicados no tratamento das ITRSs inespecíficas, e o seu mau uso facilita o
surgimento de resistência aos antimicrobianos; em voluntários saudáveis, um único curso de um antibiótico
comumente usado, como a azitromicina, pode causar resistência aos macrolídeos entre os estreptococos
orais muitos meses mais tarde. Na ausência de evidências clínicas de infecção bacteriana, o tratamento deve
ser apenas sintomático, com o uso de descongestionantes e anti-inflamatórios não esteroides. Os ensaios
clínicos feitos com zinco, vitamina C, equinácea e outros remédios alternativos não demonstraram qualquer
benefício consistente no tratamento das ITRSs inespecíficas.
INFECÇÕES DOS SEIOS PARANASAIS
O termo rinossinusite refere-se ao quadro inflamatório que envolve os seios
paranasais. Embora na maioria dos casos de rinossinusite haja comprometimento
de mais de um seio paranasal, o seio maxilar é o mais afetado, seguido, em
ordem de frequência, pelos seios etmoidais, frontais e esfenoidais. Todos os
seios paranasais são revestidos por epitélio respiratório produtor de muco; esse
muco é transportado pela ação ciliar, através do óstio sinusal, para dentro da
cavidade nasal. Normalmente, o muco não se acumula nos seios, que
permanecem praticamente estéreis apesar da proximidade com as vias aéreas
nasais, que contêm bactérias. A obstrução dos óstios dos seios, ou a deficiência
parcial ou total do movimento ciliar, pode resultar na retenção de secreções, o
que desencadeia os sinais e sintomas típicos de rinossinusite. O acúmulo das
secreções com a obstrução as torna mais suscetíveis à infecção por diversos
patógenos, incluindo vírus, bactérias e, raramente, fungos. A rinossinusite afeta
grande parte da população, é responsável por milhões de consultas a médicos da
atenção primária todos os anos, sendo o quinto diagnóstico mais comum a
justificar a prescrição de antibióticos. Normalmente, é classificada segundo a
duração da doença (aguda vs. crônica); a etiologia (infecciosa vs. não
infecciosa); e, quando infecciosa, segundo o tipo de patógeno implicado (viral,
bacteriana ou fúngica).

RINOSSINUSITE AGUDA
As rinossinusites agudas – definidas como aquelas com duração < 4 semanas –
representam a grande maioria dos casos. A maior parte dos diagnósticos é feita
em ambulatório, e a doença ocorre principalmente como consequência de uma
ITRS viral precedente. A distinção entre rinossinusite aguda bacteriana e viral
com base apenas nos achados clínicos é difícil. Não surpreende, portanto, que se
prescrevam antibióticos com tanta frequência (85-98% dos casos) para essa
doença.

Etiologia A obstrução dos óstios na rinossinusite pode ocorrer em função de


causas infecciosas e não infecciosas. Entre as etiologias não infecciosas estão:
rinite alérgica (com edema da mucosa ou obstrução por pólipo), barotrauma (p.
ex., mergulho em águas profundas ou viagens aéreas) e exposição a irritantes
químicos. A obstrução também pode ocorrer por tumores nasais ou dos seios
paranasais (p. ex., carcinoma de células escamosas) ou doenças granulomatosas
(p. ex., granulomatose com poliangeíte ou rinoescleroma), e, nas situações em
que há modificações no conteúdo do muco (p. ex., fibrose cística), é possível a
ocorrência de rinossinusite em razão de redução na depuração do muco. Nas
unidades de terapia intensiva (UTIs), a intubação nasotraqueal e as sondas
nasogástricas são fatores de risco importante para a ocorrência de rinossinusite
hospitalar.
A rinossinusite viral é muito mais comum do que a bacteriana, apesar de
haver um número relativamente pequeno de estudos com aspirados sinusais para
a pesquisa dos diferentes vírus. Nos estudos assim realizados, os vírus mais
isolados, sozinhos ou em conjunto com bactérias foram o rinovírus, o vírus
parainfluenza e o vírus influenza. As causas bacterianas de rinossinusite são
melhor descritas. Nos casos adquiridos na comunidade, o S. pneumoniae e o
Haemophilus influenzae não tipável são os agentes mais comuns, sendo
responsáveis por 50 a 60% dos casos. A Moraxella catarrhalis é responsável por
uma proporção significativa (20%) em crianças, mas não é tão comum em
adultos. Outras espécies de estreptococos e o Staphylococcus aureus causam
apenas uma pequena porcentagem dos casos – ainda que haja uma preocupação
crescente com o S. aureus resistentes à meticilina (MRSA) como uma causa
emergente. É difícil avaliar se a bactéria que aparece na cultura é, de fato, um
organismo infectante, se é uma amostra insuficientemente profunda (material
que não se espera que seja estéril) ou – especialmente no caso de cirurgias
prévias nos seios paranasais – se representa um organismo colonizador. Os
anaeróbios ocasionalmente são encontrados associados a infecções das raízes
dos pré-molares com disseminação para os seios maxilares adjacentes. O papel
de organismos atípicos, como Chlamydia pneumoniae e Mycoplasma
pneumoniae, na patogênese da rinossinusite não está claro. Casos de infecção
hospitalar estão comumente associados a bactérias prevalentes nesse ambiente,
como S. aureus, Pseudomonas aeruginosa, Serratia marcescens, Klebsiella
pneumoniae e espécies de Enterobacter. Com frequência, tais infecções são
polimicrobianas, envolvendo microrganismos altamente resistentes a vários
antibióticos. Os fungos também são causas bem estabelecidas de rinossinusite,
mas a maioria dos casos agudos ocorre em pacientes imunocomprometidos e são
infecções invasivas que ameaçam a vida. O exemplo mais conhecido é a
mucormicose rinocerebral, causada por fungos da ordem Mucorales, como
Rhizopus, Rhizomucor, Mucor, Lichtheimia (anteriormente Mycocladus,
anteriormente Absidia) e Cunninghamella (Cap. 213). Essas infecções
classicamente ocorrem em pacientes diabéticos com cetoacidose, mas também
podem se desenvolver em receptores de transplante, portadores de cânceres
hematológicos e pacientes em uso crônico de glicocorticoides ou de
deferoxamina. Outros fungos hialinos, como algumas espécies de Aspergillus e
de Fusarium, também são causas ocasionais dessa doença.

Manifestações clínicas Em sua maioria, os casos de rinossinusite aguda


ocorrem após ou durante ITRS viral, e pode ser difícil diferenciar seus quadros
clínicos, sendo a sucessão dos sintomas importante para o diagnóstico (ver
adiante). Grande parte dos pacientes com resfriado tem inflamação dos seios
paranasais, embora a verdadeira rinossinusite bacteriana complique apenas 0,2 a
2% dessas infecções virais. Entre os sinais e sintomas comuns à apresentação
nos pacientes com rinossinusite, estão corrimento e congestão nasais, dor ou
pressão facial e cefaleia. Com frequência, um corrimento nasal espesso,
purulento ou de cor alterada é considerado um sinal de rinossinusite, mas esse
sinal também ocorre precocemente nas infecções virais, como o resfriado
comum, não podendo ser considerado específico da infecção bacteriana. Outras
manifestações inespecíficas são tosse, espirros e febre. A dor de dente,
principalmente quando afeta os molares superiores, e a halitose ocasionalmente
estão associadas à rinossinusite bacteriana.
Na rinossinusite aguda, a dor ou pressão sinusal à compressão muitas vezes
tem a mesma localização do seio acometido (particularmente o seio maxilar) e
pode se agravar quando o paciente se curva ou se deita. Embora raras, as
manifestações das rinossinusites esfenoidal ou etmoidal avançadas podem ser
intensas, como dor frontal ou retro-orbital intensa com irradiação para a região
occipital, trombose do seio cavernoso e sinais de celulite orbital. A rinossinusite
focal aguda não é comum, mas deve ser considerada nos casos com sintomas
intensos envolvendo o seio maxilar e febre, independentemente da duração da
doença. Essa condição está tipicamente associada com seios paranasais
vermelhos, quentes e edemaciados que são extremamente dolorosos à palpação;
a sua etiologia é estafilocócica; e exige desbridamento de emergência e início de
antibióticos IV. Da mesma forma, os pacientes com rinossinusite frontal
avançada podem se apresentar com um quadro denominado tumor edematoso de
Pott, com tumefação dos tecidos moles e edema com cacifo sobre o osso frontal
causado por abscesso subperiosteal comunicante. Algumas complicações da
rinossinusite potencialmente fatais são raras, mas incluem meningite, abscesso
extradural e abscesso cerebral.
Pacientes com rinossinusite fúngica aguda (como a mucormicose; Cap.
213) frequentemente apresentam sintomas decorrentes do aumento da pressão,
principalmente quando a infecção se estende para órbitas e seios cavernosos.
Sinais como edema e celulite orbitários, proptose, ptose e diminuição dos
movimentos extraoculares são comuns, assim como dor retro-orbital ou
periorbital. Ulcerações nasofaríngeas, epistaxe e cefaleia também são comuns e
há descrições de acometimento dos V e VII nervos cranianos em casos mais
avançados. A erosão óssea pode ser evidente ao exame ou à endoscopia. Muitas
vezes, o paciente não aparenta estar muito enfermo apesar da natureza
rapidamente progressiva dessas infecções.
Os pacientes com rinossinusite aguda hospitalar com frequência estão em
estado crítico e, por esse motivo, não apresentam as características clínicas
típicas da doença sinusal. No entanto, deve-se suspeitar do diagnóstico quando
pacientes hospitalizados com fatores de risco compatíveis (p. ex., intubação
nasotraqueal) evoluem com febre sem outra causa evidente.

Diagnóstico No ambulatório, é difícil distinguir entre rinossinusite bacteriana e


viral em razão da sensibilidade e especificidade relativamente baixas das
manifestações clínicas comuns. Uma característica clínica que tem sido usada
para ajudar a orientar as decisões diagnósticas e terapêuticas é a duração da
doença. Como a rinossinusite bacteriana aguda é incomum em pacientes com
sintomas há < 10 dias, os painéis de especialistas atualmente recomendam
reservar esse diagnóstico aos casos com sintomas persistentes (i.e., sintomas que
durem > 10 dias nos adultos ou > 10-14 dias nas crianças), acompanhados pelos
3 sinais cardinais: secreção nasal purulenta, obstrução nasal e dor na face (Tab. 3
1-1). O fato de que, mesmo entre pacientes que preenchem estes critérios, apenas
40 a 50% têm rinossinusite bacteriana verdadeira levou algumas autoridades a
favorecer o limite de 14 dias de sintomas antes de considerar o tratamento. Não
se recomenda o uso rotineiro de tomografia computadorizada (TC) ou
radiografia dos seios paranasais para a doença aguda, principalmente no início
do quadro (i.e., < 10 dias), tendo em vista a alta prevalência de achados
semelhantes em pacientes com rinossinusite viral aguda. Na avaliação de
rinossinusite persistente, recorrente ou crônica, a TC dos seios paranasais passa a
ser o método radiográfico de escolha.

TABELA 31-1 ■ Diretrizes para diagnóstico e tratamento da rinossinusite bacteriana aguda em adultos
Critérios diagnósticos Recomendações terapêuticasa
Tratamento inicial:
Sintomas moderados (p. ex., purulência/congestão nasal ou Amoxicilina/clavulanato, 500/125 mg, VO, 3×/dia, ou 875/125 mg, VO,
tosse) por > 10 dias ou 2×/diab
Sintomas intensos de qualquer duração, incluindo edema facial Alergia à penicilina:
unilateral/focal ou dor de dente Doxiciclina (100 mg, VO, 2×/dia); ou
Uma fluoroquinolona antipneumocócica (p. ex., moxifloxacino, 400 mg,
VO, 1×/dia)
Exposição a antibióticos nos últimos 30 dias ou prevalência de S.
pneumoniae resistente à penicilina > 30%:
Amoxicilina/clavulanato (liberação prolongada), 2.000/125 mg, VO,
2×/dia; ou
Doxiciclina 100 mg, VO, 2×/dia; ou
Fluoroquinolona antipneumocócica (p. ex., moxifloxacino, 400 mg, VO,
1×/dia)c
Fracasso terapêutico recente:
Amoxicilina/clavulanato (liberação prolongada), 2.000 mg, VO, 2×/dia;
ou
Uma fluoroquinolona antipneumocócica (p. ex., moxifloxacino, 400 mg,
VO, 1×/dia)c
aA duração do tratamento é de 5-7 dias se os sintomas melhorarem nos primeiros dias de tratamento, mas pode ser de até 7-10 dias, com

acompanhamento adequado. Nos casos de doença grave, deve-se indicar antibioticoterapia IV e admissão hospitalar. bEm regiões com baixa
prevalência de resistência aos antibióticos, a amoxicilina pode ser considerada como terapia inicial em pacientes sem exposição recente a
antibióticos. cFluoroquinolonas têm risco de tendinite e neuropatia, devendo ser usadas apenas se não houver outras opções razoáveis,
considerando os riscos e benefícios.

A história ou o quadro clínico muitas vezes podem identificar casos de


rinossinusite aguda por bactérias anaeróbias, rinossinusite fúngica aguda ou
rinossinusite de causa não infecciosa (p. ex., rinossinusite alérgica). Em caso de
indivíduo imunocomprometido com infecção sinusal aguda por fungos, é
essencial que o paciente seja imediatamente examinado por um
otorrinolaringologista. Além das culturas, devem-se coletar biópsias das áreas
acometidas, para que o material seja examinado por patologista na busca por
hifas de fungos e para avaliar se há invasão tecidual. Os casos suspeitos de
rinossinusite hospitalar aguda devem ser confirmados por TC dos seios da face.
Como o tratamento deve ser dirigido contra o microrganismo responsável, deve-
se tentar obter um aspirado dos seios paranasais para a realização de cultura com
teste de sensibilidade, se possível, antes de se iniciar a antibioticoterapia. À
medida que a capacidade para isolar os componentes às vezes variados do
microbioma sinusal é potencializada por técnicas moleculares, há esperança de
um esquema terapêutico ainda mais específico.

TRATAMENTO
Rinossinusite aguda
A maioria dos pacientes com diagnóstico clínico de rinossinusite aguda melhora sem antibióticos. A
conduta inicial nos pacientes com sintomas leves a moderados de curta duração deve ser o tratamento para
aliviar os sintomas e facilitar a drenagem dos seios paranasais, como uso de descongestionantes tópicos e
orais, lavagem nasal com solução salina e – ao menos nos pacientes com antecedentes de rinossinusite
crônica ou de alergias – glicocorticoides nasais. Estudos recentes colocaram em dúvida o papel dos
antibióticos e dos glicocorticoides nasais no tratamento da rinossinusite aguda. Em um ensaio clínico duplo-
cego, randomizado, controlado com placebo, nem os antibióticos nem os glicocorticoides tópicos
produziram impacto significativo sobre a cura na população estudada, cuja maioria apresentava sintomas
por < 7 dias. De forma semelhante, em outro estudo randomizado bem conduzido comparando antibióticos
e placebo em pacientes com rinossinusite aguda, não se demonstrou melhora significativa dos sintomas no
terceiro dia de tratamento. Ainda assim, pode-se considerar antibioticoterapia para pacientes adultos que
não apresentem melhoras após 10 a 14 dias, e qualquer paciente com sintomas mais graves
(independentemente da duração) deve ser tratado com antibiótico (Tab. 31-1). Entretanto, a conduta
expectante atenta continua sendo uma opção viável em muitos casos.
A antibioticoterapia empírica para adultos com rinossinusite adquirida na comunidade deve ser feita
com o agente de espectro mais estreito a cobrir os patógenos bacterianos mais comuns, incluindo S.
pneumoniae e H. influenzae – por exemplo, amoxicilina/clavulanato (sendo que a decisão deve ser
orientada pelas taxas locais de H. influenzae produtor de β-lactamase). Não há dados de ensaios clínicos que
corroborem o uso de agentes de espectro mais amplo em casos rotineiros de rinossinusite bacteriana,
mesmo nos dias atuais em que enfrentamos o S. pneumoniae com resistência farmacológica. Para os
pacientes que não responderem à antibioticoterapia inicial, deve-se considerar a possibilidade de aspiração
e/ou de lavagem dos seios paranasais por um otorrinolaringologista. Não se recomenda o uso profilático de
antibióticos para a prevenção de recorrências de rinossinusite bacteriana aguda.
A intervenção cirúrgica e a administração por via intravenosa de antibióticos geralmente são
reservadas aos pacientes com doença grave ou com complicações intracranianas, como abscessos ou
acometimento da órbita. Os pacientes imunocomprometidos com rinossinusite fúngica invasiva aguda em
geral necessitam de desbridamento cirúrgico extenso e de tratamento com antifúngicos IV ativos contra
hifas, como a anfotericina B. Deve-se individualizar o tratamento específico de acordo com a espécie
fúngica, suas suscetibilidades e as características individuais do paciente.
O tratamento da rinossinusite hospitalar deve começar com antibióticos de amplo espectro ativos
contra patógenos comuns e frequentemente resistentes, como o S. aureus e os bacilos Gram-negativos. Em
seguida, deve-se modificar o tratamento de acordo com os resultados da cultura e do teste de sensibilidade
dos aspirados dos seios paranasais.

RINOSSINUSITE CRÔNICA
A rinossinusite crônica é caracterizada por sintomas de inflamação sinusal com
duração > 12 semanas. A doença está mais comumente associada a bactérias ou
fungos, e, na maioria dos casos, é muito difícil obter a cura clínica. Muitos
desses pacientes já receberam várias prescrições de antibióticos e tiveram os
seios paranasais operados diversas vezes, fatores que aumentam os riscos de
colonização por patógenos resistentes a antibióticos e complicações cirúrgicas.
Tais pacientes frequentemente apresentam taxas elevadas de morbidade, às vezes
durante vários anos.
Na rinossinusite bacteriana crônica, acredita-se que a infecção ocorra em
razão de alguma deficiência na depuração mucociliar causada por infecções
repetidas, e não de infecção bacteriana persistente. Porém, a patogênese dessa
doença é pouco compreendida. O papel de biofilmes nessas infecções crônicas
continua a ser explorado, incluindo a contribuição que patógenos de baixa
virulência podem ter nesse meio interativo complexo. Embora algumas doenças
(p. ex., fibrose cística) predisponham à rinossinusite bacteriana crônica, a
maioria dos pacientes com rinossinusite crônica não tem problemas subjacentes
que afetem a drenagem sinusal, inibam a ação ciliar ou a atividade imunológica.
Tais pacientes sofrem congestão nasal constante e pressão dos seios paranasais,
com períodos intermitentes de maior gravidade que podem persistir por anos. A
TC pode auxiliar definindo a extensão da doença, detectando algum defeito
anatômico subjacente ou algum processo obstrutivo (p. ex., um pólipo) e
avaliando a resposta ao tratamento. O tratamento deve envolver um
otorrinolaringologista para fazer exames endoscópicos e obter amostras de
tecido para exame histológico e cultura. A cultura de material obtido por
endoscopia não apenas tem índice elevado de positividade, mas também permite
a visualização direta das estruturas na busca por alguma anormalidade
anatômica.
A rinossinusite fúngica crônica é uma doença de pacientes
imunocompetentes e geralmente não é invasiva, embora seja possível haver
doença invasiva de progressão lenta. A doença não invasiva, que costuma estar
associada a fungos hialinos, como Aspergillus sp., ou a fungos dematiáceos,
como Curvularia sp. ou Bipolaris sp., pode se apresentar sob diversas formas.
Nos casos de doença leve e indolente, que geralmente ocorrem num contexto de
repetidos fracassos com tratamento antibacteriano, a TC mostra apenas
alterações inespecíficas da mucosa. Embora haja controvérsias sobre esse ponto,
a cirurgia endoscópica geralmente é curativa nesses casos, e não há necessidade
de tratamento antifúngico. Outra possível apresentação da doença é aquela com
sintomas arrastados, muitas vezes unilaterais, e opacificação de apenas um dos
seios paranasais nos exames de imagem, causada por um micetoma (bola
fúngica) dentro do seio paranasal. A conduta nesses casos também é cirúrgica,
embora possa ser usado tratamento antifúngico sistêmico nos raros casos em que
houver erosão óssea. Uma terceira forma da doença, também chamada
rinossinusite fúngica alérgica, ocorre nos pacientes com história de polipose
nasal e asma e que, muitas vezes, já foram submetidos a várias cirurgias dos
seios paranasais. Os pacientes com essa doença produzem um muco espesso,
repleto de eosinófilos, de consistência semelhante à da manteiga de amendoim,
contendo hifas fúngicas esparsas ao exame histológico. Esses pacientes muitas
vezes se apresentam com pansinusite.
TRATAMENTO
Rinossinusite crônica
O tratamento da rinossinusite bacteriana crônica pode ser desafiador e consiste primariamente em vários
ciclos de antibióticos com escolha orientada por teste de sensibilidade e duração de 3 a 4 semanas ou mais;
administração de glicocorticoides intranasais; e irrigação do seio paranasal com solução salina estéril.
Quando essa conduta falhar, deve-se considerar a indicação de cirurgia dos seios paranasais, procedimento
que propicia significativa melhora, ainda que transitória. O tratamento da rinossinusite fúngica crônica
consiste na remoção cirúrgica do muco impactado. Infelizmente, a recorrência é comum.
INFECÇÕES DA ORELHA E DA MASTOIDE
As infecções da orelha e das estruturas associadas podem acometer ambas as
orelhas média e externa, bem como pele, cartilagem, periósteo, canal auditivo,
cavidades timpânicas e mastoides. Tais infecções podem ser causadas por vírus
ou bactérias, acarretando morbidade significativa se não forem tratadas
corretamente.

INFECÇÕES DAS ESTRUTURAS DA ORELHA EXTERNA


As infecções que envolvem as estruturas da orelha externa são frequentemente
difíceis de distinguir das patologias não infecciosas com manifestações clínicas
semelhantes. Os médicos devem pensar nos distúrbios inflamatórios como
possíveis causas de irritação na orelha externa, particularmente na ausência de
adenopatia local ou regional. Além das causas mais prováveis de inflamação,
como traumatismo, picada de inseto e exposição excessiva à luz solar ou ao frio
extremo, o diagnóstico diferencial deve incluir condições menos frequentes
como distúrbios autoimunes (p. ex., lúpus ou policondrite recidivante) e
vasculites (p. ex., granulomatose com poliangeíte).

Celulite auricular Trata-se de infecção da pele sobrejacente à orelha externa


que, em geral, ocorre após traumatismo leve. A apresentação consiste nos sinais
e sintomas típicos da celulite, com hipersensibilidade, eritema, edema e calor na
orelha externa, sobretudo no lóbulo, mas sem envolvimento aparente do canal
auditivo ou das estruturas internas. O tratamento consiste em compressas mornas
e antibióticos orais, como a cefalexina ou a dicloxacilina, ativos contra
patógenos típicos da pele e dos tecidos moles (especificamente, S. aureus e
estreptococos). Antibióticos IV, como as cefalosporinas de primeira geração (p.
ex., cefazolina) ou uma penicilina resistente à penicilinase (p. ex., nafcilina),
podem ser necessários nos casos mais graves, devendo-se considerar a
possibilidade de MRSA quando fatores de risco ou fracasso terapêutico apontem
para esse microrganismo.

Pericondrite A pericondrite é a infecção do pericôndrio da cartilagem auricular


que, caracteristicamente, ocorre após traumatismo local (p. ex., piercings,
queimaduras ou lacerações). Em alguns casos, quando a infecção se estende até a
cartilagem do pavilhão auricular, os pacientes também podem desenvolver
condrite. A infecção pode se assemelhar à celulite auricular, com eritema, edema
e sensibilidade extrema do pavilhão, embora o acometimento do lóbulo seja
menos comum na pericondrite. Os patógenos mais comuns são P. aeruginosa e
S. aureus, ainda que, ocasionalmente, apareçam outros microrganismos Gram-
positivos e Gram-negativos envolvidos. O tratamento é feito com antibióticos
sistêmicos ativos contra P. aeruginosa e S. aureus. Alguns esquemas típicos são
penicilina antipseudomonas (p. ex., piperacilina) ou uma combinação de
penicilina resistente à penicilinase e quinolona antipseudomonas (p. ex.,
nafcilina e ciprofloxacino). O procedimento de incisão com drenagem pode ser
útil para a realização de cultura e como auxiliar na resolução da infecção, o que
muitas vezes demora semanas. Nos casos em que a pericondrite não responda à
terapia antimicrobiana adequada, os médicos devem considerar a possibilidade
de etiologia inflamatória não infecciosa, como, por exemplo, policondrite
recidivante.

Otite externa O termo otite externa refere-se a um conjunto de doenças que


afetam principalmente o meato acústico. A otite externa geralmente resulta da
combinação de calor e umidade retida com descamação e maceração do epitélio
do canal auditivo externo. Há várias formas da doença: localizada, difusa,
crônica e invasiva. Todas as formas têm origem predominante bacteriana, sendo
a P. aeruginosa e o S. aureus os agentes mais comuns.
A otite externa aguda localizada (furunculose) pode surgir no terço externo
do canal auditivo, onde a pele recobre a cartilagem e há numerosos folículos
pilosos. Assim como na furunculose em qualquer região do corpo, o S. aureus é
o principal patógeno, sendo o tratamento geralmente feito com uma penicilina
antiestafilocócica oral (p. ex., dicloxacilina ou cefalexina) com incisão e
drenagem nos casos que tenham evoluído com abscesso.
A otite externa aguda difusa é conhecida como “orelha de nadador”,
embora possa ocorrer também em pessoas que não tenham nadado recentemente.
O calor, a umidade e a perda do cerume protetor resultam em excesso de
umidade e aumento do pH no canal auditivo, o que acarreta a maceração e
irritação da pele. Pode sobrevir, então, uma infecção, cuja causa mais comum é a
P. aeruginosa, embora outros microrganismos e, raramente, fungos tenham sido
isolados em pacientes com esse problema. A doença frequentemente começa
com prurido e evolui para dor intensa, em geral desencadeada pela manipulação
do pavilhão auricular ou do trago. O início da dor geralmente é acompanhado
pelo surgimento de eritema e edema do canal auditivo, muitas vezes com um
pequeno volume de secreção branca e grumosa. O tratamento consiste em
limpeza do canal auditivo para remover os restos celulares e aumentar a
atividade dos agentes terapêuticos tópicos – geralmente solução salina
hipertônica ou soluções combinando álcool com ácido acético. Pode-se diminuir
a inflamação adicionando glicocorticoides ao esquema de tratamento ou usando
a solução de Burow (acetato de alumínio em água). Os antibióticos são mais
eficazes quando usados em preparações tópicas. As soluções auriculares em
geral propiciam uma cobertura adequada contra esses patógenos; tais
preparações geralmente associam neomicina e polimixina, com ou sem
glicocorticoides. Normalmente, a antibioticoterapia sistêmica é reservada aos
casos graves ou às infecções em hospedeiros imunocomprometidos.
A causa mais importante de otite externa crônica é a irritação local repetida
cuja origem mais comum é a drenagem persistente de infecção crônica da orelha
média. Outras causas de irritação repetida, como a introdução de cotonetes ou de
outros objetos estranhos no canal auditivo, podem provocar essa doença, assim
como infecções crônicas raras, como sífilis, tuberculose e hanseníase. A
apresentação típica da otite externa crônica é uma dermatite eritematosa e
descamativa, na qual o principal sintoma é o prurido e não a dor. É preciso
distingui-la de várias outras afecções que resultam em quadros clínicos
semelhantes, como dermatite atópica, dermatite seborreica, psoríase e
dermatomicose. O tratamento consiste em identificar e eliminar o processo
responsável, mas frequentemente é difícil haver resolução completa.
A otite externa invasiva, também conhecida como otite externa maligna ou
necrosante, é uma doença agressiva e potencialmente fatal que acomete
sobretudo pacientes diabéticos idosos e outras pessoas imunocomprometidas. A
doença se inicia na parte externa do canal auditivo como uma infecção das partes
moles e evolui lentamente durante semanas ou meses. Muitas vezes é difícil
diferenciá-la de um caso grave de otite externa crônica em razão da presença de
otorreia purulenta bem como de edema e eritema do canal auditivo. É frequente
a ocorrência de otalgia intensa e profunda, muitas vezes desproporcional aos
achados ao exame, o que pode ajudar a distingui-la da otite externa crônica. Ao
exame, o achado típico é um tecido de granulação na parede posteroinferior do
canal externo, próximo à junção entre o osso e a cartilagem. Se não for tratada, a
infecção poderá migrar para a base do crânio (ocasionando osteomielite local) ou
atingir as meninges e o cérebro, uma complicação com alta taxa de mortalidade.
Ocasionalmente, observa-se envolvimento de nervos cranianos, sendo o facial o
acometido em primeiro lugar e com maior frequência. Se a infecção atingir o
seio sigmóideo é possível haver trombose. A TC é capaz de revelar erosão óssea
do osso temporal e da base do crânio, podendo ser usada para determinar a
extensão da doença, assim como a cintilografia com gálio ou com tecnécio-99. P.
aeruginosa é de longe o agente etiológico mais comum, mas outros – como S.
aureus, Staphylococcus epidermidis, Aspergillus, Actinomyces e algumas
bactérias Gram-negativas – também têm sido associados a essa doença. Em
todos os casos, deve-se proceder à limpeza do canal auditivo externo e coletar
material de biópsia do tecido de granulação no interior do canal (ou dos tecidos
mais profundos) para a cultura do microrganismo responsável. A
antibioticoterapia IV deve ser administrada por período prolongado (6-8
semanas) visando especificamente ao patógeno isolado. Para P. aeruginosa, o
esquema normalmente inclui uma penicilina ou cefalosporina antipseudomonas
(p. ex., piperacilina ou cefepima), frequentemente com um aminoglicosídeo ou
uma fluoroquinolona; essa última pode ser administrada por via oral dada sua
excelente biodisponibilidade. Além disso, geralmente prescreve-se um
antibiótico em gotas contendo agente ativo contra Pseudomonas (p. ex.,
ciprofloxacino) em combinação com glicocorticoide para reduzir a inflamação.
A otite externa invasiva por Pseudomonas, quando diagnosticada precocemente,
pode, algumas vezes, ser tratada apenas com fluoroquinolonas orais e tópicas,
mas sempre com acompanhamento rigoroso. O desbridamento cirúrgico extenso,
que já foi parte importante do tratamento, hoje é raramente indicado.
Nos casos de otite externa necrosante, documentou-se recorrência em até
20% dos casos. É importante manter controle rigoroso da glicemia nos
diabéticos não apenas para que o tratamento seja bem-sucedido, mas também
para evitar recorrências. O papel da oxigenoterapia hiperbárica não foi
claramente estabelecido.

INFECÇÕES DAS ESTRUTURAS DA ORELHA MÉDIA


A otite média é um distúrbio inflamatório da orelha média que ocorre como
resultado de disfunção da tuba de Eustáquio associada a várias doenças, como
ITRS e rinossinusite crônica. A resposta inflamatória nessas doenças acarreta a
produção de um transudato estéril dentro da orelha média e das cavidades
mastoides. Se esse líquido for contaminado por vírus ou bactérias da
nasofaringe, poderá surgir uma doença aguda (ou, às vezes, crônica).

Otite média aguda A otite média aguda ocorre quando patógenos da


nasofaringe penetram no líquido inflamatório acumulado na orelha média (p. ex.,
ao assoar o nariz durante uma ITRS). A proliferação de patógenos nesse espaço
resulta no surgimento dos sinais e sintomas típicos de infecção aguda da orelha
média. O diagnóstico de otite média aguda exige a demonstração da presença de
líquido na orelha média (com imobilidade da membrana timpânica [MT]) bem
como sinais e sintomas concomitantes de doença local ou sistêmica (Tab. 31-2).

TABELA 31-2 ■ Diretrizes para diagnóstico e tratamento da otite média aguda


Gravidade Critérios diagnósticos Recomendações para o
da doença tratamento

Leve a > 2 anos ou entre 6 meses e 2 anos sem efusão na orelha média Apenas observação
moderada (retardando a
antibioticoterapia por 48-72
h com tratamento apenas
sintomático)
< 6 meses; ou Terapia inicial:a
6 meses a 2 anos com efusão na orelha média (presença de líquido na orelha média Amoxicilina, 80-90
evidenciada por redução na mobilidade da MT, pela presença de nível hidroaéreo atrás da mg/kg/dia (até 2 g), VO,
MT, por abaulamento da MT ou por otorreia purulenta) e instalação aguda dos sinais e fracionado em doses (2 ou
sintomas de inflamação na orelha média, incluindo febre, otalgia, diminuição da audição, 3×/dia); ou
zumbido, vertigem, eritema de MT; ou Cefdinir, 14 mg/kg/dia, VO,
> 2 anos com doença bilateral, perfuração de MT, febre alta, paciente imunocomprometido em 1 dose ou fracionados em
ou com vômitos 2 doses; ou
Cefuroxima, 30 mg/kg/dia,
VO, em 2 doses diárias; ou
Azitromicina, 10 mg/kg/dia,
VO, no dia 1, seguidos por 5
mg/kg/dia, VO, por mais 4
dias
Exposição a antibióticos nos
últimos 30 dias ou fracasso
terapêutico recentea,b:
Amoxicilina, 90 mg/kg/dia
(até 2 g), VO, fracionados
em 2 doses, mais
clavulanato, 6,4 mg/kg/dia,
VO, fracionados em 2 doses;
ou
Ceftriaxona, 50 mg/kg/dia,
IV/IM, durante 3 dias; ou
Clindamicina, 30-40
mg/kg/dia, VO, fracionados
em 3 doses
Grave Como anteriormente, com temperatura ≥ 39°C; ou otalgia moderada a grave Terapia inicial:a
Amoxicilina, 90 mg/kg/dia
(até 2 g), VO, fracionados
em 2 doses, mais
clavulanato, 6,4 mg/kg/dia,
VO, fracionados em 2 doses;
ou
Ceftriaxona, 50 mg/kg/dia,
IV/IM, durante 3 dias
Exposição a antibióticos nos
últimos 30 dias ou fracasso
terapêutico recentea,b:
Ceftriaxona, 50 mg/kg/dia,
IV/IM, durante 3 dias; ou
Clindamicina, 30-40
mg/kg/dia, VO, fracionados
em 3 doses; ou
Considerar timpanocentese
com cultura
aDuração (a não ser que tenha sido especificada): 10 dias para os pacientes < 6 anos e para aqueles com doença grave; 5-7 dias (com

possibilidade de apenas manter sob observação os indivíduos previamente saudáveis com doença leve) nos pacientes ≥ 6 anos. bAusência de
melhora e/ou piora clínica após 48-72 h de observação ou de tratamento.
Siglas: MT, membrana timpânica, VO, via oral; IV, intravenosa; IM, intramuscular.
Fonte: American Academy of Pediatrics Subcommittee on Management of Acute Otitis Media, 2004.

ETIOLOGIA A otite média aguda em geral sucede uma ITRS viral. Os vírus
causadores (sendo os mais comuns VSR, influenza, rinovírus e enterovírus)
também são capazes de causar otite média aguda. No entanto, é mais comum que
eles predisponham à otite média bacteriana. Estudos com timpanocentese
mostraram que o S. pneumoniae é a causa bacteriana mais importante, tendo sido
isolado em até 35% dos casos. O H. influenzae (cepas não tipáveis) e a M.
catarrhalis também são causas bacterianas comuns de otite média aguda,
havendo preocupação crescente com o MRSA como agente etiológico
emergente. Em 17 a 40% dos casos, encontram-se vírus, como os mencionados
anteriormente, isolados ou associados a bactérias.

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS A presença de líquido na orelha média é


demonstrada ou confirmada à otoscopia pneumática. Na ausência de líquido, vê-
se a MT movendo-se quando se aplica pressão positiva ou negativa. No entanto,
esse movimento diminui na presença de líquido. Quando há infecção bacteriana,
a MT também pode se mostrar eritematosa, abaulada ou retraída. Às vezes,
ocorre perfuração espontânea. Os sinais e sintomas que acompanham a infecção
podem ser localizados ou sistêmicos, incluindo otalgia, otorreia, perda da
audição e febre. O eritema da MT frequentemente é evidente, mas tal achado é
inespecífico, podendo ocorrer em associação à inflamação da mucosa
respiratória alta. Outros sinais e sintomas ocasionalmente relatados são vertigem,
nistagmo e zumbido.

TRATAMENTO
Otite média aguda
Tem havido muita discussão sobre a utilidade dos antibióticos no tratamento da otite média aguda. Uma
proporção maior de pacientes tratados encontra-se livre da doença 3 a 5 dias após o diagnóstico em
comparação com os não tratados. A dificuldade de predizer quais pacientes se beneficiarão com a
antibioticoterapia levou à adoção de abordagens diferentes. Na Holanda, por exemplo, os médicos
costumam inicialmente apenas observar a otite média aguda e administrar anti-inflamatórios de forma
intensiva para controlar a dor. Os antibióticos são reservados aos pacientes de alto risco, com complicações,
ou para os que não melhoram após 48 a 72 horas. Já nos Estados Unidos, muitos especialistas continuam a
recomendar antibioticoterapia para crianças < 6 meses em razão da maior frequência de complicações
secundárias nessa população jovem e funcionalmente imunocomprometida. Entretanto, atualmente, nos
Estados Unidos, recomenda-se observação sem antibioticoterapia para crianças com idade > 2 anos com
otite média aguda e para os casos leves a moderados sem secreção na orelha média em crianças entre 6
meses e 2 anos de idade. O tratamento normalmente está indicado para pacientes com < 6 meses de idade;
para crianças com idade entre 6 meses e 2 anos que se apresentem com secreção na orelha média e sinais ou
sintomas de inflamação da orelha média; para todos os pacientes > 2 anos que se apresentem com doença
bilateral, perfuração da MT, imunocomprometidos ou com vômitos; e para qualquer paciente que tenha
sintomas intensos, incluindo febre ≥ 39°C ou otalgia moderada a intensa (Tab. 31-2).
Considerando que a maioria dos estudos sobre os agentes etiológicos da otite média aguda descreve
perfis semelhantes de patógenos, o tratamento, em geral, é empírico, exceto nos poucos casos em que se
justifica a timpanocentese – por exemplo, otite refratária ao tratamento, pacientes gravemente enfermos ou
imunodeficientes. Apesar da resistência à penicilina e amoxicilina encontrada em cerca de 25% dos isolados
de S. pneumoniae, aproximadamente em 33% dos H. influenzae e em quase todos os isolados de M.
catarrhalis, os estudos clínicos continuam a indicar que a amoxicilina é tão eficaz quanto qualquer outro
agente, continuando a ser a primeira escolha nas recomendações de diversas fontes (Tab. 31-2). Em geral, o
tratamento da otite média não complicada dura 5 a 7 dias nos pacientes ≥ 6 anos. Tratamentos mais longos
(p. ex., 10 dias) devem ser reservados a pacientes imunocomprometidos ou com doença grave para os quais
o tratamento de curta duração pode ser insuficiente.
Recomenda-se troca de esquema se não houver melhora clínica no terceiro dia de tratamento em razão
da possibilidade de infecção por uma cepa de H. influenzae ou M. catarrhalis produtora de β-lactamase ou
por uma cepa de S. pneumoniae resistente à penicilina. Descongestionantes e anti-histamínicos são usados
frequentemente como agentes adjuvantes para reduzir a congestão e aliviar a obstrução da tuba de
Eustáquio, embora não haja ensaios clínicos demonstrando evidências significativas de que sejam
benéficos.

Otite média aguda recorrente A otite média aguda recorrente (mais de três
episódios em 6 meses ou quatro episódios em 12 meses) geralmente decorre de
reincidência ou reinfecção, embora os dados indiquem que a maioria das
recorrências precoces seja constituída de infecções novas. Os mesmos patógenos
responsáveis pela otite média aguda, em geral, causam a doença recorrente.
Mesmo assim, recomenda-se o tratamento com um antibiótico ativo contra
microrganismos produtores de β-lactamase. A profilaxia com antibióticos em
pacientes com otite média aguda recorrente (p. ex., com amoxicilina) pode
reduzir os episódios em pacientes com otite média aguda recorrente para uma
média de um por ano. Porém, esse benefício é pequeno diante do alto risco de
colonização por patógenos resistentes a antibióticos. Outras abordagens, como a
colocação de tubos de timpanostomia, adenoidectomia e tonsilectomia com
adenoidectomia, são de valor global duvidoso, considerando o benefício
relativamente pequeno em relação ao potencial de complicações.

Otite média serosa Na otite média serosa (otite média com efusão), há líquido
presente na orelha média por longo período sem sinais ou sintomas de infecção.
Em geral, as efusões agudas são autolimitadas; a maioria dos casos melhora em
2 a 4 semanas. No entanto, em alguns casos, e especialmente após um episódio
de otite média aguda, a efusão pode permanecer por meses. Essas efusões
crônicas causam perda auditiva significativa na orelha acometida. A grande
maioria dos casos de otite média com efusão melhora espontaneamente em 3
meses sem antibioticoterapia. Os antibióticos e a miringotomia com inserção de
tubo de timpanostomia são reservados aos pacientes nos quais a efusão bilateral
(1) tenha persistido por mais de 3 meses ou (2) esteja associada a perda auditiva
bilateral significativa. Estima-se que, com essa abordagem conservadora e com o
uso de critérios diagnósticos meticulosos para otite média aguda e otite média
com efusão, poderiam ser evitados 6 a 8 milhões de ciclos de antibióticos por
ano nos Estados Unidos.

Otite média crônica A otite média crônica supurativa é caracterizada por uma
otorreia purulenta persistente ou recorrente que ocorre no contexto de perfuração
da MT. Em geral, ocorre alguma perda auditiva condutiva. Essa condição pode
ser classificada como ativa ou inativa. A doença inativa tem como característica
uma perfuração central da MT que permite a drenagem de líquido purulento da
orelha média. Quando a perfuração é mais periférica, é possível que epitélio
escamoso do canal auditivo invada a orelha média pela perfuração, formando
uma massa de debris ceratinosos (colesteatoma) no local da invasão. Essa massa
pode aumentar com potencial para erodir o osso e estimular mais infecção,
levando a meningite, abscesso cerebral ou paralisia do VII nervo craniano. O
tratamento da otite média crônica ativa é cirúrgico; a mastoidectomia, a
miringoplastia e a timpanoplastia podem ser feitas em ambulatório, com uma
taxa de sucesso de cerca de 80%. A otite média crônica inativa é mais difícil de
ser curada e costuma exigir vários ciclos de antibiótico tópico em gotas durante
os períodos de drenagem. Os antibióticos sistêmicos podem oferecer taxas de
cura maiores, mas ainda não está claro seu papel no tratamento dessa infecção.

Mastoidite A mastoidite aguda era relativamente comum entre as crianças antes


do advento dos antibióticos. Como as células aéreas mastóideas se conectam
com a orelha média, o processo de acúmulo de líquido com infecção geralmente
é idêntico na mastoide e na orelha média. O tratamento precoce e frequente da
otite média aguda é provavelmente a causa da queda da incidência da mastoidite
aguda para apenas 1,2 a 2 casos em 100 mil pessoas-ano em países nos quais são
altos os índices de prescrição para otite média aguda.
Em países como a Holanda, em que os antibióticos são pouco usados contra otite
média, a incidência de mastoidite aguda é cerca de duas vezes maior do que
em países como os Estados Unidos. No entanto, a Dinamarca, país vizinho,
tem uma incidência de mastoidite aguda semelhante à da Holanda, embora sua
taxa de prescrição de antibióticos seja mais semelhante à dos Estados Unidos.
Na mastoidite aguda típica, um exsudato purulento se acumula nas células
aéreas mastóideas (Fig. 31-1), produzindo elevação da pressão que pode levar à
erosão do osso adjacente e formação de cavidades semelhantes a abscessos,
geralmente evidentes à TC. Os pacientes se apresentam caracteristicamente com
dor, eritema e edema da região mastoidea, além de deslocamento do pavilhão
auricular, geralmente com sinais e sintomas concomitantes de infecção aguda da
orelha média. Em casos raros, os pacientes evoluem com complicações graves se
a infecção avançar sob o periósteo do osso temporal e formar um abscesso
subperiosteal, desgastar e penetrar a ponta da mastoide para originar um
abscesso profundo no pescoço ou se estender posteriormente, causando trombose
séptica do seio lateral.
FIGURA 31-1 Mastoidite aguda. Tomografia computadorizada (TC) axial mostrando coleção aguda de
líquido no interior das células aéreas da mastoide à esquerda.

Deve-se cultivar o líquido purulento sempre que possível, para ajudar a


orientar a antibioticoterapia. O tratamento empírico inicial costuma ser
direcionado contra os microrganismos típicos da otite média, como S.
pneumoniae, H. influenzae e M. catarrhalis. Os pacientes com doença mais
grave ou prolongada devem ser tratados com cobertura para S. aureus e Gram-
negativos (inclusive Pseudomonas). A antibioticoterapia de amplo espectro deve
ser adaptada de acordo com os resultados da cultura. A maioria dos pacientes
pode ser tratada de forma conservadora com antibióticos IV. A cirurgia
(mastoidectomia cortical) fica reservada aos casos complicados e aos pacientes
nos quais a terapia conservadora tenha fracassado.
INFECÇÕES DA FARINGE E DA CAVIDADE ORAL
As infecções orofaríngeas abrangem desde doenças virais leves e autolimitadas a
infecções bacterianas graves ameaçadoras à vida. O sintoma mais comum à
apresentação é dor de garganta – uma das razões mais comuns para as consultas
ambulatoriais tanto de adultos quanto de crianças. Ainda que esse sintoma
também ocorra em diversas doenças não infecciosas, a grande maioria dos
pacientes com dor de garganta de início recente apresenta faringite aguda de
etiologia viral ou bacteriana.

FARINGITE AGUDA
A dor de garganta gera milhões de consultas a profissionais da atenção primária
todos os anos; a maioria dos casos de faringite aguda é causada pelas viroses
respiratórias comuns. A principal fonte de preocupação é a infecção por
estreptococos β-hemolíticos do grupo A (S. pyogenes), associada à
glomerulonefrite aguda e à febre reumática aguda. O risco de febre reumática
pode ser reduzido com o tratamento oportuno feito com penicilina.

Etiologia Uma grande variedade de microrganismos pode causar faringite


aguda. A importância relativa dos diferentes patógenos pode ser apenas
estimada, pois em muitos casos (cerca de 30%) não é possível identificar o
agente. No seu conjunto, os vírus respiratórios são a causa identificável mais
comum de faringite aguda, sendo os rinovírus e o coronavírus responsáveis por
uma grande proporção dos casos (cerca de 20% e, no mínimo, 5%,
respectivamente). Os vírus influenza, parainfluenza e adenovírus também
causam uma parcela ponderável das faringites, sendo que os dois primeiros são
mais sazonais, e o último é parte de uma síndrome clinicamente mais grave: a
febre faringoconjuntival. Outras causas virais importantes, porém menos
comuns, são o herpes-vírus simples (HSV) tipos 1 e 2, o coxsackievírus A, o
citomegalovírus (CMV) e o vírus Epstein-Barr (EBV). A infecção aguda pelo
HIV pode se apresentar como faringite aguda, devendo-se sempre considerar
essa possibilidade nas populações de risco.
A faringite bacteriana aguda é causada pelo S. pyogenes, que responde por
cerca de 5 a 15% dos casos de faringite aguda nos adultos, dependendo da
estação do ano e do acesso ao sistema de saúde. A faringite estreptocócica do
grupo A é principalmente uma doença de indivíduos entre 5 e 15 anos de idade,
sendo incomum naquelas com < 3 anos, assim como a febre reumática. Os
estreptococos dos grupos C e G são responsáveis por uma minoria dos casos,
mas esses sorogrupos não são reumatogênicos. O Fusobacterium necrophorum
tem sido crescentemente identificado como causador de faringite em
adolescentes e adultos jovens e, quando pesquisado, vem sendo isolado com a
mesma frequência dos estreptococos do grupo A. Esse microrganismo é
importante em razão da rara, mas potencialmente letal, doença de Lemierre, que
geralmente ocorre associada ao F. necrophorum e comumente é precedida por
faringite (ver “Infecções orais”, adiante). As demais causas bacterianas da
faringite aguda são menos comuns (< 1% de casos cada uma), mas devem ser
consideradas em grupos particularmente expostos em razão da gravidade
potencial da doença não tratada. Alguns agentes etiológicos são Neisseria
gonorrhoeae, Corynebacterium diphtheriae, Corynebacterium ulcerans, Yersinia
enterocolitica e Treponema pallidum (na sífilis secundária). Bactérias anaeróbias
também podem causar faringite aguda (angina de Vincent) e contribuir para
infecções polimicrobianas mais graves, como os abscessos peritonsilar e
retrofaríngeo (ver adiante). Microrganismos atípicos, como M. pneumoniae e C.
pneumoniae, já foram encontrados em pacientes com faringite aguda. Contudo,
há controvérsia sobre se essas bactérias seriam comensais ou causadoras da
infecção aguda.

Manifestações clínicas Embora os sinais e sintomas da faringite aguda não


sejam preditores confiáveis do agente etiológico, a apresentação clínica às vezes
sugere uma etiologia em detrimento das demais. A faringite aguda por vírus
respiratórios, como o rinovírus ou o coronavírus, geralmente não é grave e
costuma estar associada a um conjunto de sintomas relacionados com coriza,
mais bem caracterizados como ITRS inespecífica. São incomuns os achados ao
exame físico; a febre é rara e não há exsudatos faríngeos ou adenopatia cervical
dolorosa. Diferentemente, a faringite aguda pelo vírus influenza pode ser grave,
estando muito mais frequentemente associada a febre, mialgias, cefaleia e tosse.
A apresentação da febre faringoconjuntival causada pelo adenovírus é
semelhante. Nos casos com etiologia viral, pode haver produção de exsudato
faríngeo, o que dificulta a distinção entre a faringite viral e a estreptocócica. No
entanto, a faringite por adenovírus se distingue pela presença de conjuntivite em
cerca de 33 a 50% dos pacientes. A faringite aguda na primoinfecção pelo HSV
também pode simular uma faringite estreptocócica em alguns casos, ao provocar
inflamação e exsudato faríngeos. A presença de vesículas e úlceras rasas no
palato ajuda a diferenciar ambas as doenças. A síndrome pelo HSV é diferente
da faringite causada por coxsackievírus (herpangina), associada a pequenas
vesículas que surgem no palato mole bem como na úvula e depois se rompem,
formando úlceras brancas rasas. O quadro de faringite aguda, com febre, fadiga,
linfadenopatia generalizada e, às vezes, esplenomegalia, é característico da
mononucleose infecciosa causada pelo EBV ou da infecção por CMV. A
infecção primária aguda pelo HIV está muitas vezes associada a febre e faringite
aguda, bem como mialgias, artralgias, mal-estar e, às vezes, um exantema
maculopapular não pruriginoso, que pode ser sucedido por linfadenopatia e
ulcerações da mucosa sem exsudato.
As manifestações clínicas da faringite aguda por estreptococos dos grupos
A, C e G são semelhantes, variando desde uma doença relativamente leve, com
poucos sintomas, a casos clinicamente graves, com dor faríngea intensa, febre,
calafrios e dor abdominal. Em geral, encontra-se membrana faríngea com
hiperemia e hipertrofia tonsilares além de exsudato, acompanhados de
adenopatia cervical anterior dolorosa. Normalmente não há manifestações de
coriza, incluindo tosse, que, quando presentes, sugerem etiologia viral. Algumas
cepas de S. pyogenes produtoras de toxinas eritrogênicas podem causar
escarlatina, doença que tem como características um exantema eritematoso e a
língua em morango. Outros tipos de faringite bacteriana (p. ex., gonocócica,
diftérica e por Yersinia) muitas vezes se apresentam com faringite exsudativa,
com ou sem outras manifestações clínicas. As etiologias muitas vezes são
sugeridas apenas pela história clínica.

Diagnóstico O objetivo básico dos exames diagnósticos é distinguir a faringite


estreptocócica das causadas por outros agentes etiológicos (principalmente os
vírus), para que os antibióticos sejam prescritos de forma mais efetiva e apenas
para os pacientes que possam ser beneficiados. No entanto, ainda não foi
estabelecido definitivamente o melhor padrão para o diagnóstico de faringite
estreptocócica. A cultura de swabs da garganta costuma ser considerada o
método mais apropriado, mas é incapaz de distinguir entre infecção e
colonização, e requer 24 a 48 horas para dar resultados que variam de acordo
com a técnica e as condições de cultura. Os testes rápidos de detecção de
antígeno têm especificidade elevada (> 90%), mas sensibilidade baixa, quando
implementados na prática rotineira. Demonstrou-se que a sensibilidade também
varia de acordo com o espectro clínico da doença (65-90%). Vários sistemas de
predição clínica (Fig. 31-2) aumentam a sensibilidade dos testes rápidos de
detecção de antígeno, podendo superar 90% em situações controladas. Como as
sensibilidades obtidas na prática clínica de rotina costumam ser menores, várias
sociedades médicas e profissionais continuam a recomendar que todos os testes
de detecção rápida de antígenos negativos em crianças sejam confirmados por
uma cultura de garganta para limitar a transmissão e as complicações da doença
causada por estreptococos do grupo A. No entanto, o Centers for Disease
Control and Prevention, a Infectious Diseases Society of America e a American
Academy of Family Physicians não recomendam culturas de apoio quando
adultos têm resultados negativos em um teste de detecção rápida de antígeno
altamente sensível, devido à menor prevalência e menor benefício nessa faixa
etária.
Culturas e testes diagnósticos rápidos para outras causas de faringite aguda,
como vírus influenza, adenovírus, HSV, EBV, CMV e M. pneumoniae, estão
disponíveis em muitos locais e podem ser usados quando se suspeita de algum
desses patógenos. O diagnóstico de infecção aguda por EBV depende
principalmente da detecção de anticorpos contra o vírus com um teste de
aglutinação heterófila (monoteste) ou teste por imunoabsorbância ligado à
enzima (ELISA). Também devem ser feitos testes para o HIV, idealmente por um
método combinado para antígenos/anticorpos quando houver suspeita de
infecção primária pelo HIV. Suspeitando-se de outra etiologia bacteriana
(especialmente N. gonorrhoeae, C. diphtheriae ou Y. enterocolitica), devem-se
solicitar culturas específicas, pois as culturas de swab de orofaringe rotineiras
talvez não detectem esses agentes.

TRATAMENTO
Faringite
A antibioticoterapia da faringite por S. pyogenes oferece vários benefícios, incluindo redução do risco de
febre reumática, o principal foco do tratamento. Entretanto, o grau de beneficio é bem pequeno, pois a febre
reumática atualmente é uma doença rara mesmo em pacientes que não recebem tratamento. De qualquer
forma, quando se institui o tratamento nas primeiras 48 horas da doença, a duração dos sintomas é reduzida
modestamente. Um benefício adicional do tratamento é a possibilidade de reduzir a transmissão da faringite
estreptocócica, sobretudo em áreas de aglomeração ou de contato próximo. Assim, recomenda-se
antibioticoterapia nos casos em que se tenha confirmado o S. pyogenes como agente etiológico pelo teste
rápido de detecção de antígeno ou por cultura de swab de orofaringe. Caso contrário, os antibióticos só
devem ser prescritos quando for identificada outra etiologia bacteriana. O tratamento efetivo para faringite
estreptocócica é feito com penicilina benzatina em dose única IM ou com penicilina oral por 10 dias (Fig. 3
1-2).
A azitromicina pode ser usada em lugar da penicilina, embora sua utilidade potencial esteja
diminuindo e seu uso em algumas partes do mundo (particularmente na Europa) seja proibido como
resultado da resistência entre cepas de S. pyogenes. Antibióticos de espectro mais amplo (e geralmente com
custo mais elevado) também são ativos contra estreptococos, porém não são mais eficazes que os agentes
mencionados. Não há necessidade de exames para comprovar a cura, que poderiam revelar apenas
colonização crônica. Não há evidências que corroborem o tratamento com antibiótico da faringite por
estreptococos dos grupos C ou G, ou das faringites nas quais se tenha isolado Mycoplasma ou Chlamydia. A
realização de cultura pode ser benéfica em razão da possibilidade de isolamento do F. necrophorum, uma
causa crescentemente comum de faringite bacteriana em adultos jovens que não é coberta por macrolídeos.
A profilaxia de longo prazo com penicilina (penicilina G benzatina, 1,2 milhão de unidades, IM, a cada 3-4
semanas; ou penicilina VK, 250 mg, VO, 2×/dia) é indicada aos pacientes sob risco de febre reumática
recorrente para prevenir o que poderia ser uma sequela catastrófica de faringite estreptocócica recorrente.
FIGURA 31-2 Algoritmo para diagnóstico e tratamento de faringite aguda.

A escassez de antibióticos, algumas vezes resultante de dificuldades de fabricação ou de atrasos,


desastres naturais e problemas de regulamentação ou de outros tipos, pode impedir o uso do
antibiótico ideal. Essa escassez pode ser regional, nacional ou internacional. A comunicação com
farmacêuticos e o controle do uso de antibióticos podem ajudar a reduzir os efeitos da escassez, render
recomendações para agentes alternativos e evitar atrasos no tratamento que podem afetar o acesso dos
pacientes aos antibióticos.
O tratamento da faringite viral é exclusivamente sintomático, exceto na infecção por vírus influenza ou
HSV. Para a influenza, o arsenal inclui amantadina e rimantadina e os inibidores da neuraminidase
oseltamivir e zanamivir. A administração de todos esses agentes deve ser iniciada no prazo de 48 horas após
o início dos sintomas para que ocorra redução significativa da evolução da doença. Desses agentes, apenas
o oseltamivir e o zanamivir são ativos contra os influenzas A e B e, portanto, eles podem ser usados quando
não se conhecem os padrões locais de infecção e de resistência aos antivirais. A infecção da orofaringe pelo
HSV às vezes responde ao tratamento com antivirais, como o aciclovir, embora esses medicamentos em
geral sejam reservados aos pacientes imunossuprimidos.

Complicações A febre reumática é a complicação mais conhecida da faringite


estreptocócica aguda, mas o risco dessa doença após uma infecção aguda é
bastante baixo. Outras complicações são glomerulonefrite aguda e diversos
distúrbios supurativos, como abscesso peritonsilar (fleimão), otite média,
mastoidite, rinossinusite, bacteremia e pneumonia – todos com baixa incidência.
A antibioticoterapia é capaz de prevenir o surgimento de febre reumática, mas
não há evidências de que possa prevenir a glomerulonefrite aguda. Algumas
evidências apoiam o uso de antibióticos para prevenir complicações supurativas
da faringite estreptocócica, principalmente o abscesso peritonsilar, que pode
envolver também anaeróbios orais, como o Fusobacterium. Os abscessos, em
geral, são acompanhados de dor faríngea intensa, disfagia, febre e desidratação;
além disso, muitas vezes observam-se os deslocamentos medial da tonsila e
lateral da úvula ao exame. Embora a utilização precoce de antibióticos IV (p. ex.,
clindamicina, penicilina G com metronidazol) possa evitar a necessidade de
drenagem cirúrgica em alguns casos, o tratamento geralmente envolve aspiração
com agulha ou incisão para drenagem do abscesso.

INFECÇÕES ORAIS
Exceto pelas doenças periodontais, como a gengivite, as infecções da cavidade
oral envolvem com maior frequência o HSV ou espécies de Candida. Além de
causar uma erupção bolhosa dolorida nos lábios, o HSV também pode infectar a
língua e a mucosa oral, resultando na formação de vesículas dolorosas.
Antivirais tópicos (p. ex., aciclovir e penciclovir) podem ser usados sobre as
lesões com possível benefício, mas as infecções primárias exigem o uso de
aciclovir oral ou IV, assim como as infecções orais extensas ou em pacientes
imunocomprometidos. A candidíase orofaríngea (sapinho) é causada por várias
espécies de Candida, sendo mais comum a C. albicans. Ocorre principalmente
em recém-nascidos, nos pacientes imunocomprometidos (principalmente com
Aids) e naqueles em uso prolongado de glicocorticoides ou antibióticos. Os
pacientes, além de dor de garganta, relatam queimação na língua ou alteração no
paladar, e seu exame físico revela placas friáveis brancas ou cinzentas sobre a
gengiva, língua e mucosa oral, muitas vezes com eritema subjacente. O
tratamento, normalmente bem-sucedido, geralmente é feito com uma terapia
tópica antifúngica (nistatina ou clotrimazol) ou com fluconazol oral. Nos casos
incomuns de candidíase refratária ao fluconazol, observados em alguns pacientes
com HIV/Aids ou em pacientes com microrganismos resistentes que podem
algumas vezes complicar o tratamento da candidíase oral recorrente, outras
opções terapêuticas são formulações que contenham voriconazol oral,
equinocandina IV (caspofungina, micafungina ou anidulafungina) ou
desoxicolato de anfotericina B, se necessário. Nesses casos, o ideal é o
tratamento com base nos resultados de cultura com teste de sensibilidade.
A angina de Vincent, também conhecida como gengivite necrosante
ulcerativa aguda ou boca das trincheiras, é uma forma singular e grave de
gengivite que se caracteriza por dor e inflamação gengival com ulcerações das
papilas interdentárias que sangram com facilidade. Os causadores da doença são
os anaeróbios locais, e por isso os pacientes apresentam halitose, além de febre,
mal-estar e linfadenopatia. O tratamento consiste em desbridamento e
administração oral de penicilina e metronidazol. O uso isolado de clindamicina
ou de doxiciclina é uma alternativa.
A angina de Ludwig é uma forma de celulite rapidamente progressiva,
potencialmente fulminante, que acomete os espaços sublingual e submandibular
bilateralmente e se origina em um dente infectado ou recém-extraído, mais
comumente o segundo ou o terceiro molares inferiores. A melhora na assistência
odontológica reduziu substancialmente a incidência dessa doença. A infecção de
tais regiões resulta em disfagia, odinofagia e um edema “lenhoso” na região
sublingual que força a língua para cima e para trás com potencial para causar
obstrução da via aérea. Pode haver febre, salivação e disartria, e a voz pode
adquirir um timbre tipo “batata quente”. Podem ser necessárias intubação ou
traqueostomia para manter a via aérea, pois a asfixia é a causa mais comum de
morte. Os pacientes devem ser hospitalizados, observados de perto e tratados
rapidamente com antibióticos IV contra estreptococos e anaeróbios orais. Entre
os agentes recomendados, estão ampicilina/sulbactam, clindamicina ou
penicilina em altas doses mais metronidazol.
A tromboflebite séptica da veia jugular interna (doença de Lemierre) é uma
infecção orofaríngea rara causada por anaeróbios e cujo principal agente é o F.
necrophorum. A doença é mais comum em adolescentes e adultos jovens,
costumando começar com dor de garganta, que pode se apresentar como tonsilite
exsudativa ou abscesso peritonsilar. A infecção do tecido faríngeo profundo
permite que os microrganismos atinjam o espaço faríngeo lateral, que contém a
artéria carótida e a veia jugular interna. Assim, é possível a evolução com
tromboflebite séptica da veia jugular interna, cujos sintomas são dor, disfagia,
edema cervical unilateral e rigidez da nuca. A sepse costuma aparecer 3 a 10 dias
após o início da dor de garganta e, muitas vezes, ocorre também infecção
metastática nos pulmões e em outros locais distantes, com abscesso pulmonar e
empiema. Em alguns casos, a infecção se estende ao longo da bainha da carótida,
atinge o mediastino posterior e causa mediastinite; ou pode haver invasão da
artéria carótida, sendo o sinal precoce a ocorrência de pequenos sangramentos
repetidos para o interior da cavidade oral. A taxa de mortalidade associada a
essas infecções invasivas pode chegar a 50%. O tratamento consiste na
administração de antibióticos IV (clindamicina ou ampicilina/sulbactam) e
drenagem cirúrgica de quaisquer coleções purulentas. O uso concomitante de
anticoagulantes para prevenir a embolização permanece controverso e não
costuma ser aconselhado; os riscos e benefícios de seu uso devem ser
cuidadosamente considerados.
INFECÇÕES DA LARINGE E DA EPIGLOTE
LARINGITE
Define-se laringite como qualquer processo inflamatório que envolva a laringe,
podendo ter várias causas, infecciosas ou não. Em sua grande maioria, os casos
de laringite encontrados na prática clínica de países desenvolvidos são agudos. A
laringite aguda é uma síndrome comum causada predominantemente pelos
mesmos vírus responsáveis por outras ITRSs. De fato, a maioria dos casos de
laringite aguda ocorre no contexto de ITRS viral.

Etiologia Quase todos os vírus respiratórios importantes foram implicados na


laringite viral aguda, como rinovírus, influenza, parainfluenza, adenovírus,
Coxsackie, coronavírus e VSR. A laringite aguda pode estar associada a
infecções respiratórias bacterianas agudas, como as causadas por estreptococos
do grupo A ou por C. diphtheriae (embora a difteria tenha sido praticamente
erradicada dos Estados Unidos). Outro patógeno bacteriano que se acredita ter
um papel (não muito claro) na patogênese da laringite aguda é o M. catarrhalis,
bactéria encontrada na cultura de nasofaringe de uma porcentagem significativa
dos casos.
A laringite crônica de etiologia infecciosa é bem menos comum nos países
desenvolvidos do que naqueles em desenvolvimento. Muitas vezes é difícil
distinguir a laringite por Mycobacterium tuberculosis do câncer de laringe, em
parte pela frequente ausência de sinais e sintomas, bem como de achados
radiográficos típicos de lesão pulmonar. Histoplasma e Blastomyces podem
causar laringite, geralmente como complicação de infecção sistêmica. Algumas
espécies de Candida também causam laringite, frequentemente associada à
candidíase oral ou à esofagite, sobretudo em pacientes imunossuprimidos. Há
casos raros de laringite crônica por Coccidioides e Cryptococcus.

Manifestações clínicas A laringite caracteriza-se por rouquidão e também pode


estar associada à redução do timbre da voz ou afonia. Como a principal causa de
laringite são os vírus respiratórios, esses sintomas costumam ocorrer junto com
outros sinais e sintomas de ITRS, como rinorreia, congestão nasal, tosse e dor de
garganta. A laringoscopia direta muitas vezes revela eritema laríngeo difuso e
edema, com ingurgitamento vascular das pregas vocais. Em pacientes com
doenças crônicas (p. ex., laringite tuberculosa), também é possível haver nódulos
mucosos e ulcerações visíveis à laringoscopia; tais lesões às vezes são
confundidas com câncer da laringe.

TRATAMENTO
Laringite
A laringite aguda geralmente é tratada apenas com umidificação e repouso da voz. Não se recomendam
antibióticos, exceto se tiver sido isolado um estreptococo do grupo A em cultura, caso em que a penicilina é
o fármaco preferido. A escolha do tratamento da laringite crônica depende do patógeno, cuja identificação
geralmente exige biópsia e cultura. Os pacientes com tuberculose laríngea são altamente contagiosos, pois
podem expelir com facilidade grande número de microrganismos em aerossóis. Devem-se tratar esses
pacientes da mesma forma que aqueles com doença pulmonar ativa.

CRUPE
O termo crupe é usado atualmente para indicar um conjunto de doenças
respiratórias agudas e predominantemente virais denominadas coletivamente
“síndrome de crupe”, caracterizadas por edema acentuado da região subglótica
da laringe. O crupe acomete principalmente crianças com < 6 anos de idade.
Para uma discussão detalhada, o leitor deve consultar um livro-texto de
pediatria.

EPIGLOTITE
A epiglotite aguda (supraglotite) é uma celulite aguda e rapidamente progressiva
da epiglote e de estruturas adjacentes que pode ocasionar obstrução completa – e
potencialmente fatal – da via aérea tanto em crianças quanto em adultos. Antes
do advento da vacina contra H. influenzae tipo b (Hib), essa doença era bem
mais comum nas crianças, com um pico de incidência em torno dos 3,5 anos de
idade. Em alguns países, a vacinação em massa contra o Hib reduziu em > 90%
a incidência anual de epiglotite. Por outro lado, no mesmo período, a incidência
anual entre os adultos pouco foi alterada. Em razão do risco de obstrução da via
aérea, a epiglotite aguda é uma emergência médica, sobretudo nas crianças. O
diagnóstico rápido e a proteção da via aérea são essenciais.

Etiologia Após a introdução da vacina anti-Hib em meados da década de 1980, a


incidência em crianças nos Estados Unidos caiu de forma abrupta. No entanto,
em razão de falhas no processo de vacinação ou na própria vacina, ainda há, nos
dias atuais, muitos casos pediátricos de epiglotite por Hib. Em adultos e (mais
recentemente) em crianças, vários outros patógenos bacterianos têm sido
associados com epiglotite, os mais comuns sendo o estreptococos do grupo A.
Outros patógenos – vistos com menos frequência – incluem S. pneumoniae,
Haemophilus parainfluenzae e S. aureus (incluindo MRSA). Os vírus não foram
confirmados como causadores de epiglotite aguda.

Manifestações clínicas e diagnóstico A epiglotite caracteristicamente se


apresenta de forma mais aguda em crianças pequenas do que em adolescentes ou
adultos. À apresentação, a maioria das crianças manifesta sintomas há < 24
horas, incluindo febre, dor de garganta intensa, taquicardia, toxemia e, em
muitos casos, salivação quando o paciente se senta inclinado para frente.
Também podem estar presentes sinais e sintomas de obstrução respiratória com
potencial de evolução rápida. A forma mais leve da doença que acomete com
frequência adolescentes e adultos ocorre 1 a 2 dias após uma dor de garganta
intensa e comumente é acompanhada por dispneia, salivação e estridor. O exame
físico de pacientes com epiglotite aguda pode revelar angústia respiratória
moderada a grave com estridor inspiratório e tiragem intercostal. Esses achados
diminuem à medida que a doença evolui e o paciente vai se cansando. O exame
da orofaringe, por sua vez, mostra infecção muito menor do que a esperada
diante da gravidade dos sintomas – achado que deve alertar o médico para a
possibilidade de a origem dos sintomas e da obstrução estar localizada abaixo
das tonsilas. O diagnóstico costuma ser definido a partir dos achados clínicos,
mas é comum a realização de laringoscopia com fibra óptica em ambiente
controlado (p. ex., centro cirúrgico) para a visualização da epiglote edematosa e
de cor “vermelho-cereja” e coleta de material para cultura, além de facilitar a
introdução de um tubo endotraqueal. Não se recomenda a visualização direta na
sala de exame (p. ex., com abaixador de língua e laringoscopia indireta) em
razão do risco de laringospasmo com obstrução total da via aérea. Radiografias
da região cervical em perfil e exames laboratoriais podem auxiliar no
diagnóstico, mas retardam o controle essencial da via aérea e fazem o paciente
ser movido ou reposicionado mais do que seria desejável, aumentando, assim, o
risco de maior comprometimento da via aérea. O achado típico da radiografia
cervical em perfil é uma epiglote aumentada e edemaciada (o “sinal do polegar”,
Fig. 31-3), em geral com dilatação da hipofaringe e estruturas subglóticas
normais. Os exames laboratoriais caracteristicamente mostram leucocitose leve a
moderada com predomínio de neutrófilos. As hemoculturas são positivas em
uma proporção significativa de casos.
FIGURA 31-3 Epiglotite aguda. Nesta radiografia dos tecidos moles do pescoço obtida em perfil, a seta
indica a epiglote aumentada e edemaciada (“sinal do polegar”).

TRATAMENTO
Epiglotite
A segurança da via aérea é sempre a principal preocupação nos casos com epiglotite aguda, mesmo se
houver apenas a suspeita do diagnóstico. Não se recomenda a simples observação à procura de sinais de
obstrução iminente da via aérea, principalmente em crianças. Muitos adultos são tratados apenas com
observação, uma vez que se acredita que nesse grupo etário a doença seja mais leve. No entanto, alguns
dados sugerem que tal abordagem pode ser arriscada e deveria ser reservada apenas aos adultos que não
estejam apresentando dispneia ou estridor. Uma vez assegurada a via aérea e tendo sido enviadas amostras
de sangue e de tecido da epiglote ao laboratório, deve-se iniciar o tratamento com antibióticos IV contra os
microrganismos mais prováveis, sobretudo o H. influenzae. Como as taxas de resistência à ampicilina dessa
bactéria aumentaram muito nos últimos anos, recomenda-se o uso de um β-lactâmico associado a um
inibidor de β-lactamase ou a uma cefalosporina de terceira geração. Alguns esquemas tipicamente usados
são ampicilina/sulbactam, cefotaxima ou ceftriaxona. Em pacientes alérgicos aos β-lactâmicos, usam-se
clindamicina e SMX-TMP. A antibioticoterapia deve ser mantida por 7 a 10 dias e adaptada ao
microrganismo isolado na cultura. Se entre os contatos domiciliares de um paciente com epiglotite por H.
influenzae houver uma criança não vacinada com menos de 4 anos, todos os habitantes da casa, incluindo o
próprio paciente, deverão tomar rifampicina profilática por 4 dias para erradicar o estado de portador de H.
influenzae.
INFECÇÕES DAS ESTRUTURAS PROFUNDAS DO
PESCOÇO
As infecções cervicais profundas em geral são extensões de infecções de outros
locais primários, mais comumente da faringe ou da cavidade oral. Várias dessas
infecções podem ser fatais, porém é difícil detectá-las em sua fase inicial,
quando o tratamento é mais fácil. No pescoço, três espaços têm grande
importância clínica: o submandibular (e sublingual), o faríngeo lateral (ou
parafaríngeo) e o retrofaríngeo. Tais espaços comunicam-se entre si e com outras
estruturas importantes da cabeça, do pescoço e do tórax, oferecendo aos
patógenos acesso fácil a certas regiões, como o mediastino, a bainha da carótida,
a base do crânio e as meninges. Se a infecção alcançar essas áreas sensíveis, a
taxa de mortalidade pode atingir 20-50%.
A infecção dos espaços submandibular e sublingual se origina mais
comumente de um dente inferior infectado ou recém-extraído. O resultado é uma
infecção grave e potencialmente fatal denominada angina de Ludwig (ver
“Infecções orais”, anteriormente). A infecção do espaço faríngeo lateral (ou
parafaríngeo) costuma ser uma complicação de infecções comuns da cavidade
oral e do trato respiratório superior, como tonsilite, abscesso peritonsilar,
faringite, mastoidite e infecção periodontal. Esse espaço, situado profundamente
na parede lateral da faringe, contém várias estruturas sensíveis, como a artéria
carótida, a veia jugular interna, a cadeia simpática cervical e segmentos do IX ao
XII nervos cranianos; na sua extremidade distal, abre-se no mediastino posterior.
Assim, uma infecção nesse espaço pode ser rapidamente fatal. O exame físico
pode revelar algum deslocamento das tonsilas, trismo e rigidez do pescoço, mas
o edema da parede lateral da faringe pode facilmente passar despercebido. O
diagnóstico pode ser confirmado com TC. O tratamento consiste em manejo da
via aérea, drenagem cirúrgica de coleções líquidas e no mínimo 10 dias de
antibioticoterapia IV com antibióticos ativos contra estreptococos e anaeróbios
orais (p. ex., ampicilina/sulbactam). Uma forma especialmente grave dessa
infecção, envolvendo os componentes da bainha da carótida (sepse pós-angina
ou doença de Lemierre), foi descrita neste capítulo (ver “Infecções orais”). As
infecções do espaço retrofaríngeo também podem ser extremamente perigosas,
uma vez que esse espaço segue por trás da faringe desde a base do crânio até o
mediastino superior. As infecções de tal espaço são mais comuns em crianças
com < 5 anos em razão da presença de vários pequenos linfonodos retrofaríngeos
que se atrofiam aproximadamente aos 4 anos de idade. A infecção geralmente
ocorre como extensão de outro sítio de infecção – mais comumente da faringite
aguda. Outros focos possíveis são otite média, tonsilite, infecções dentárias,
angina de Ludwig e extensão anterior de osteomielite vertebral. A infecção do
espaço retrofaríngeo também pode ocorrer após traumatismo penetrante da
faringe posterior (p. ex., um procedimento endoscópico). As infecções, em geral,
são polimicrobianas, envolvendo uma combinação de aeróbios e anaeróbios. Os
estreptococos β-hemolíticos do grupo A e o S. aureus são os patógenos mais
comuns. O M. tuberculosis já foi uma causa comum, mas atualmente é raro nos
Estados Unidos.
Os pacientes com abscesso retrofaríngeo se apresentam caracteristicamente
com dor de garganta, febre, disfagia e dor cervical. Muitas vezes, têm salivação
causada pela dor e dificuldade de deglutição. O exame pode mostrar adenopatia
cervical dolorosa, edema cervical, eritema e edema difusos da faringe posterior,
bem como um abaulamento na parede posterior da faringe que pode não ser
evidente em um exame rotineiro. Geralmente, é possível identificar uma massa
de tecidos moles na radiografia cervical de perfil ou à tomografia. Em razão do
risco de obstrução da via aérea, o tratamento começa com a segurança da via
aérea, seguido de drenagem cirúrgica e antibióticos IV. O tratamento,
inicialmente empírico, deve cobrir estreptococos, anaeróbios orais e S. aureus;
ampicilina/sulbactam, clindamicina associada à ceftriaxona ou meropeném
geralmente são esquemas efetivos. As complicações resultam principalmente da
extensão para outras regiões; por exemplo, a ruptura da faringe posterior pode
causar pneumonia por aspiração e empiema. Também é possível haver
disseminação para o espaço faríngeo lateral e o mediastino, causando
mediastinite e pericardite, ou para os grandes vasos contíguos. Todos esses
eventos estão associados a altas taxas de mortalidade.

LEITURAS ADICIONAIS
Brook I: Microbiology of chronic rhinosinusitis. Eur J Clin Microbiol Infect Dis
35:1059, 2016.
Fletcher-Lartey S et al: Why do general practitioners prescribe antibiotics for
upper respiratory tract infections to meet patient expectations: A mixed
methods study. BMJ Open 6:e012244, 2016.
Jensen A et al: Fusobacterium necrophorum tonsillitis: An important cause of
tonsillitis in adolescents and young adults. Clin Microbiol Infect 21:266.e1,
2015.
Lee GC et al: Outpatient antibiotic prescribing in the United States: 2000 to
2010. BMC Med 12:96, 2014.
32
Manifestações orais das doenças
Samuel C. Durso

Como médicos de assistência primária e consultores, os internistas


frequentemente são solicitados a avaliar pacientes com doenças dos tecidos
moles da boca, dos dentes e da faringe. É necessário conhecer o ambiente oral e
as suas estruturas singulares para orientar o paciente quanto aos procedimentos
preventivos e reconhecer as manifestações orais de doenças locais ou sistêmicas.
Além disso, os internistas muitas vezes colaboram com dentistas na assistência a
pacientes com uma variedade de distúrbios clínicos que afetam a saúde oral ou
que são submetidos a procedimentos dentários que elevam o risco de
complicações clínicas. Ver Capítulo A2, “Atlas de manifestações orais das
doenças”.

DOENÇAS DOS DENTES E DAS ESTRUTURAS PERIODONTAIS


A formação do dente começa durante a sexta semana de vida embrionária e
prossegue até os 17 anos de idade. Os dentes começam a se desenvolver no útero
e continuam até após a sua irrupção. Geralmente, por volta dos 3 anos, todos os
20 dentes decíduos irromperam e, por volta dos 13 anos, todos caíram. Os dentes
permanentes, que totalizam 32, começam a irromper por volta dos 6 anos e já
estão completamente erupcionados por volta dos 14 anos, embora os terceiros
molares (dentes de siso) possam irromper mais tarde.
O dente erupcionado consiste em uma coroa visível coberta com esmalte,
bem como uma raiz escondida abaixo da linha gengival e coberta com cemento
semelhante a osso. A dentina, um material mais denso que o osso e intensamente
sensível à dor, forma a maior parte da substância do dente, circundando um
núcleo de polpa mixomatosa contendo o suprimento vascular e nervoso. O dente
é mantido firmemente na fossa alveolar pelo periodonto, composto por
estruturas de sustentação que compreendem as gengivas, o osso alveolar, o
cemento e o ligamento periodontal. Este último une firmemente o cemento do
dente ao osso alveolar. Acima desse ligamento, há um colarinho de gengiva
fixado logo abaixo da coroa. Alguns milímetros de gengiva livre (1-3 mm)
sobrepõem a base da coroa, formando um sulco raso ao longo da margem da
gengiva com o dente.
Cáries dentárias, doença pulpar e periapical e complicações As cáries
dentárias geralmente começam assintomaticamente como um processo
infeccioso destrutivo do esmalte. Bactérias – principalmente Streptococcus
mutans – colonizam a película que serve de tampão orgânico (placa) na
superfície do dente. Se não forem removidas pela escovação ou pela ação de
limpeza e antibactericida natural da saliva, os ácidos bacterianos podem
desmineralizar o esmalte. As fissuras e fendas nas superfícies de oclusão são os
locais mais frequentes de deterioração precoce. As superfícies entre os dentes,
adjacentes às restaurações dentárias e raízes expostas, também são vulneráveis,
particularmente à medida que as pessoas envelhecem. Com o tempo, as cáries
dentárias se estendem para a dentina subjacente, acarretando cavitação do
esmalte. Sem tratamento, as cáries penetrarão na polpa do dente, produzindo
pulpite aguda. Nesse estágio, quando há limitação na infecção da polpa, o dente
pode tornar-se sensível à percussão, bem como ao calor e ao frio, e a dor se
resolve de imediato quando o estímulo irritante é removido. Se a infecção
disseminar-se para toda a polpa, ocorre pulpite irreversível, ocasionando necrose
pulpar. Nesse estágio tardio, a dor pode ser grave e apresentar uma qualidade em
pontada ou pulsátil visceral que pode piorar quando o paciente deita. Quando a
necrose pulpar é completa, a dor pode ser constante ou intermitente, porém se
perde a sensibilidade ao frio.
O tratamento da cárie envolve a remoção do tecido duro amolecido e
infectado e a restauração da estrutura do dente com amálgama de prata,
composto de resina, ouro ou porcelana. Depois que a pulpite irreversível ocorre,
o tratamento do canal da raiz é necessário, devendo ser removido o conteúdo da
câmara da polpa e dos canais da raiz seguido de limpeza completa e
preenchimento com material inerte. Alternativamente, o dente pode ser extraído.
A infecção da polpa leva à formação de abscesso periapical, que pode
produzir dor na mastigação. Se a infecção for leve e crônica, será formado um
granuloma periapical ou, posteriormente, um cisto periapical, ambos
acarretando radiotransparência no ápice da raiz. Quando não verificado, o
abscesso periapical pode erodir no osso alveolar, produzindo osteomielite;
penetrar e drenar através das gengivas, produzindo uma parúlide (abscesso
gengival); ou seguir ao longo dos planos fasciais profundos, resultando em
celulite agressiva (angina de Ludwig) que envolve o espaço submandibular e o
soalho da boca (Cap. 172). Pacientes idosos, portadores de diabetes melito e
aqueles que tomam glicocorticoides podem apresentar pouca ou nenhuma dor ou
febre quando essas complicações se desenvolvem.
Doença periodontal Doença periodontal e cáries dentárias são a causa primária
da perda dentária. Como as cáries, a infecção crônica da gengiva e das estruturas
de sustentação do dente começa com a formação da placa bacteriana. O processo
inicia na linha da gengiva. Placa e cálculo (placa calcificada) são preveníveis
pela higiene dentária oral, incluindo limpeza profissional periódica. Se não for
interrompida, ocorre inflamação crônica que causa hiperemia da gengiva livre e
imóvel (gengivite), que sangra com escovação. Se isso for ignorado, ocorre
periodontite grave, levando ao aprofundamento dos sulcos fisiológicos e
destruição do ligamento periodontal. Bolsas gengivais se desenvolvem ao redor
dos dentes. À medida que o periodonto é destruído (incluindo o osso de suporte),
os dentes se desprendem. Foi proposto um papel para a inflamação crônica
resultante da doença periodontal na promoção da doença arterial coronariana e
acidente vascular cerebral (AVC). Estudos epidemiológicos demonstram uma
associação moderada, mas significativa, entre inflamação periodontal crônica e
aterogênese, embora um papel causal ainda não tenha sido comprovado.
As formas agudas e agressivas de doença periodontal são menos comuns
que as formas crônicas anteriormente descritas. Entretanto, se o hospedeiro
estiver estressado ou for exposto a um novo patógeno, pode ocorrer doença
rapidamente progressiva e destrutiva do tecido periodontal. Um exemplo
virulento é a gengivite ulcerativa necrosante aguda. O estresse e a higiene oral
precária são fatores de risco. As manifestações incluem inflamação gengival
súbita, ulceração, sangramento, necrose gengival interdentária e halitose fétida.
A periodontite juvenil localizada, observada em adolescentes, é particularmente
destrutiva e parece estar associada à deficiência de quimiotaxia neutrofílica. A
periodontite relacionada com a Aids lembra a gengivite ulcerativa necrosante
aguda em alguns pacientes e uma forma mais destrutiva de periodontite crônica
adulta em outros. Ela também pode produzir um processo destrutivo tipo
gangrena dos tecidos moles orais e osso que lembra a noma, uma condição
infecciosa observada em crianças gravemente desnutridas nos países em
desenvolvimento.

Prevenção das cáries dentárias e da infecção periodontal Apesar da


prevalência reduzida de cáries dentárias e doença periodontal nos Estados
Unidos devido, em grande parte, à fluoretação da água e à melhora da assistência
odontológica, respectivamente, ambas as doenças são um importante problema
de saúde pública mundialmente, particularmente em certos grupos. O internista
deve promover cuidados dentários e de higiene preventivos como parte da
consulta de rotina. As populações sob alto risco de cáries dentárias e doença
periodontal incluem aquelas com hipossalivação e/ou xerostomia, diabetes,
alcoolismo, tabagismo, síndrome de Down e hiperplasia gengival. Além disso,
pacientes com dificuldade de acesso a dentistas (p. ex., com nível
socioeconômico baixo) e pacientes com capacidade reduzida de cuidar de si
mesmo (p. ex., indivíduos com incapacidades, residentes em instituições de
saúde e aqueles com demência ou deficiência nos membros superiores) são
acometidos de maneira desproporcional. É importante fornecer aconselhamento
sobre higiene dentária regular e limpeza profissional, uso de pasta de dentes que
contenha flúor, tratamentos profissionais com flúor e uso de escovas de dentes
elétricas (para pacientes com destreza limitada), e também instruir os cuidadores
de pessoas com incapacidade de autocuidado. Custo, medo do cuidado dentário e
diferenças de língua e cultura podem criar barreiras que evitam que algumas
pessoas procurem serviços dentários preventivos.

Doença sistêmica e do desenvolvimento que afeta os dentes e o periodonto


Além da questão estética, a má oclusão é o problema do desenvolvimento oral
mais comum, podendo interferir na mastigação, a menos que seja corrigida por
técnicas ortodônticas e cirúrgicas. Terceiros molares impactados são comuns e
ocasionalmente se infectam ou sofrem erupção em um espaço insuficiente.
Prognatismo adquirido por acromegalia também pode ocasionar má oclusão,
assim como a deformidade da maxila e da mandíbula por doença de Paget óssea.
Irrupção dentária tardia, queixo retraído e língua protrusa são características
ocasionais do cretinismo e do hipopituitarismo. Os pacientes com sífilis
congênita têm incisivos estreitos e chanfrados (de Hutchinson), assim como
coroas molares finamente nodulares (em amora). A hipoplasia do esmalte resulta
em defeitos da coroa que variam de orifícios a fissuras profundas nos dentes
decíduos ou permanentes. Algumas causas incluem infecção intrauterina (sífilis,
rubéola), deficiência de vitamina (A, C ou D), distúrbios do metabolismo do
cálcio (má absorção, raquitismo resistente à vitamina D, hipoparatireoidismo),
prematuridade, febre alta ou defeitos hereditários raros (amelogênese
imperfeita). A tetraciclina, administrada em doses suficientemente altas durante
os primeiros 8 anos de vida, pode produzir hipoplasia e manchas do esmalte. A
exposição a pigmentos endógenos pode manchar os dentes em desenvolvimento;
as etiologias incluem eritroblastose fetal (esverdeado ou preto-azulados), doença
hepática congênita (esverdeados ou castanho-amarelados) e porfiria (vermelhos
ou castanhos emitindo fluorescência à luz ultravioleta). O esmalte mosqueado
ocorre se a criança ingerir flúor em excesso durante o desenvolvimento. O
desgaste do esmalte é observado com a idade, bruxismo ou exposição excessiva
a ácido (p. ex., refluxo gástrico crônico ou bulimia). A doença celíaca está
associada a defeitos de esmalte inespecíficos nas crianças, porém não nos
adultos.
A perda dentária total ou parcial resultante da periodontite é verificada na
neutropenia cíclica, síndrome de Papillon-Lefréve, síndrome de Chédiak-Higashi
e leucemia. A perda dentária focal rápida é mais frequentemente consequência
de infecção, porém causas mais raras incluem histiocitose de células de
Langerhans, sarcoma de Ewing, osteossarcoma e linfoma de Burkitt. A queda
precoce dos dentes primários é uma característica da hipofosfatasia, um erro
inato raro do metabolismo.
A gravidez pode produzir gengivite grave e granulomas piogênicos
localizados. Ocorre doença periodontal grave no diabetes melito não controlado.
A hiperplasia gengival pode ser provocada por fenitoína, bloqueadores dos
canais de cálcio (p. ex., nifedipino) e ciclosporina, embora o cuidado dental
diário de qualidade possa prevenir ou reduzir sua ocorrência. A fibromatose
gengival familiar idiopática e vários distúrbios relacionados a síndromes causam
condições similares. A interrupção da medicação pode reverter a forma
medicamentosa, embora a cirurgia possa ser necessária para controlar ambas. O
eritema gengival linear é variavelmente observado em pacientes com infecção
pelo HIV avançada e provavelmente representa imunodeficiência e atividade
neutrofílica diminuída. O edema gengival difuso ou focal pode ser uma
característica da leucemia mielomonocítica aguda precoce ou tardia, assim como
de outros distúrbios linfoproliferativos. Um sinal raro, porém patognomônico, da
granulomatose com poliangeíte é uma gengivite granulosa roxo-avermelhada
(gengivas em morango).

DOENÇAS DA MUCOSA ORAL


Infecções A maioria das doenças da mucosa oral envolve microrganismos (Tab.
32-1).

TABELA 32-1 ■ Lesões vesiculares, bolhosas ou ulcerativas da mucosa oral


Condição Localização habitual Manifestações clínicas Evolução

Doenças virais
Gengivoestomatite Lábio e mucosa oral Vesículas labiais que se rompem e formam Cicatrizam espontaneamente em 10-14
herpética aguda (mucosas bucal, crostas e vesículas intraorais que ulceram dias; a menos que secundariamente
primária (HSV gengival e lingual) com rapidez; extremamente dolorosas; infectadas, as lesões que duram > 3
gengivite aguda, febre, mal-estar, odor
tipo 1; raramente fétido e linfadenopatia cervical; ocorre semanas não são causadas por infecção
tipo 2) primariamente em lactentes, crianças e primária por HSV
adultos jovens
Herpes labial Junção mucocutânea Erupção de grupos de vesículas que podem Duram cerca de 1 semana, mas o
recorrente do lábio, pele perioral coalescer e, então, se romper e formar distúrbio pode ser prolongado se
crostas; dolorosas à pressão ou à exposição secundariamente infectado; quando grave,
a alimentos condimentados antivirais tópicos ou orais podem reduzir
o tempo de cicatrização
Herpes simples Palato e gengiva Pequenas vesículas no epitélio ceratinizado Cicatrizam espontaneamente em cerca de
intraoral que se rompem e coalescem; dolorosas 1 semana; quando grave, antivirais
recorrente tópicos ou orais podem reduzir o tempo
de cicatrização
Varicela (VZV) Gengiva e mucosa oral As lesões cutâneas podem ser As lesões cicatrizam espontaneamente em
acompanhadas de pequenas vesículas na um período de 2 semanas
mucosa oral que se rompem para formar
úlceras rasas; podem coalescer para formar
grandes lesões bolhosas que ulceram; a
mucosa pode ter eritema generalizado
Herpes-zóster Bochecha, língua, Erupções vesiculares unilaterais e ulceração Cura gradual sem formação de cicatrizes,
(reativação do gengiva ou palato em padrão linear seguindo a distribuição a menos que secundariamente infectadas;
VZV) sensitiva do nervo trigêmeo ou um dos seus neuralgia pós-herpética é comum;
ramos aciclovir, fanciclovir ou valaciclovir oral
reduzem o tempo de cicatrização e a
neuralgia pós-herpética
Mononucleose Mucosa oral Fadiga, dor de garganta, mal-estar, febre e As lesões orais desaparecem durante
infecciosa (vírus linfadenopatia cervical; inúmeras pequenas convalescença; nenhum tratamento é
Epstein-Barr) úlceras geralmente surgem dias antes da administrado, embora os glicocorticoides
linfadenopatia; sangramento gengival e sejam indicados se o edema tonsilar
múltiplas petéquias na junção dos palatos comprometer a via aérea
duro e mole
Herpangina Mucosa oral, faringe e Início súbito de febre, dor de garganta e Período de incubação de 2-9 dias; febre
(coxsackievírus A; língua vesículas orofaríngeas, geralmente em por 1-4 dias; recuperação sem
também crianças < 4 anos durante os meses de intercorrências
possivelmente verão; congestão faríngea difusa e vesículas
coxsackievírus B e (1-2 mm) branco-acinzentadas, circundadas
ecovírus) por aréolas vermelhas; as vesículas
aumentam e ulceram
Doença da mão- Mucosa oral, faringe, Febre, mal-estar, cefaleia com vesículas Período de incubação de 2-18 dias; as
pé-boca (mais palmas das mãos e orofaríngeas que se tornam úlceras rasas e lesões cicatrizam espontaneamente em 2-
comumente plantas dos pés dolorosas; altamente infecciosa; em geral, 4 semanas
coxsackievírus afeta crianças com menos de 10 anos
A16)
Infecção primária Gengiva, palato e Gengivite aguda e ulceração orofaríngea Seguida de soroconversão do HIV,
pelo HIV faringe associada a doença febril semelhante à infecção assintomática pelo HIV e, por
mononucleose e incluindo linfadenopatia fim, geralmente doença pelo HIV
Doenças bacterianas ou fúngicas
Gengivite Gengiva Gengiva dolorosa e hemorrágica Desbridamento e lavagem com peróxido
ulcerativa caracterizada por necrose e ulceração das diluído (1:3) fornecem alívio em um
necrosante aguda papilas gengivais e margens mais período de 24 h; antibióticos em pacientes
(“boca das linfadenopatia e odor fétido agudamente doentes; pode ocorrer
trincheiras”) recidiva
Sífilis pré-natal Palato, mandíbulas, Envolvimento gomatoso do palato, Deformidades irreversíveis na dentição
(congênita) língua e dentes mandíbulas e ossos da face; incisivos de permanente
Hutchinson, molares em amora, glossite,
placas mucosas e fissuras no canto da boca
Sífilis primária A lesão aparece onde o Pequena pápula que se desenvolve Cura do cancro em 1-2 meses, seguida de
(cancro) microrganismo penetra rapidamente em úlcera grande indolor com sífilis secundária em 6-8 semanas
no corpo; pode ocorrer borda endurecida, linfadenopatia unilateral;
nos lábios, língua ou cancro e linfonodos que contêm
área tonsilar espiroquetas; testes sorológicos positivos
nas terceira e quarta semanas
Sífilis secundária Mucosa oral Lesões maculopapulosas da mucosa oral, As lesões podem persistir de várias
frequentemente tendo 5-10 mm de diâmetro com ulceração semanas a 1 ano
envolvida com placas central coberta por membrana acinzentada;
mucosas, que ocorrem as erupções ocorrem em várias superfícies
primariamente no mucosas e na pele acompanhadas de febre,
palato e também em mal-estar e dor de garganta
comissuras da boca

Sífilis terciária Palato e língua Infiltração gomatosa do palato ou da língua A goma pode destruir o palato, causando
seguida de ulceração e fibrose; atrofia das perfuração completa
papilas da língua produz língua calva típica
e glossite
Gonorreia Podem ocorrer lesões A maioria das infecções faríngeas é Mais difícil de erradicar do que a infecção
na boca, no local da assintomática; podem produzir sensação de urogenital, embora a faringite se resolva
inoculação ou, queimação ou prurido; orofaringe e tonsilas com tratamento antimicrobiano
secundariamente, por podem estar ulceradas e eritematosas; saliva apropriado
disseminação viscosa e fétida
hematogênica a partir
do foco primário em
outro local
Tuberculose Língua, área tonsilar e Úlcera indolor, solitária, irregular, de 1-5 Autoinoculação a partir de infecção
palato mole cm, coberta por um exsudato persistente; a pulmonar é comum; as lesões
úlcera tem uma borda fina indefinida desaparecem com terapia antimicrobiana
apropriada
Actinomicose Edema nas regiões da A infecção pode ser associada a extração, Geralmente, o edema é duro e cresce de
cervicofacial face, do pescoço e fratura mandibular ou erupção de dente forma indolor; há desenvolvimento de
assoalho da boca molar; na forma aguda, é semelhante a um múltiplos abscessos com fístulas de
abscesso piogênico, mas contém “grânulos drenagem; penicilina é a primeira
de enxofre” amarelos (micélios Gram- escolha; em geral, é necessário cirurgia
positivos e suas hifas)
Histoplasmose Qualquer área da boca, Lesões nodulares, verrucosas ou Terapia antifúngica sistêmica necessária
particularmente língua, granulomatosas; as úlceras são endurecidas
gengiva ou palato e dolorosas; fonte habitual hematogênica ou
pulmonar, mas pode ser primária
Candidíasea
Doenças dermatológicas
Penfigoide da Em geral, produz Vesículas branco-acinzentadas e dolorosas, Evolução prolongada com remissões e
membrana mucosa eritema gengival ou bolhas de epitélio denso com zona exacerbações; o envolvimento de sítios
acentuado e ulceração; eritematosa periférica; as lesões gengivais diferentes ocorre lentamente; os
outras áreas da descamam, deixando uma área ulcerada glicocorticoides podem reduzir
cavidade oral, do temporariamente os sintomas, mas não
esôfago e da vagina controlam a doença
podem ser afetadas
EM menor e Primariamente, a Bolhas intraorais rompidas circundadas por Início muito rápido; em geral, idiopática,
maior (síndrome mucosa oral e a pele uma área inflamatória; os lábios podem mas pode ser associada a fator
de Stevens- das mãos e dos pés apresentar crostas hemorrágicas; a lesão em desencadeante como reação
Johnson) “íris” ou em “alvo” na pele é medicamentosa; a condição pode durar 3-
patognomônica; o paciente pode ter sinais 6 semanas; a mortalidade com EM maior
graves de toxicidade é de 5-15% se não for tratada
Pênfigo vulgar Pele e mucosa oral; Em geral (> 70%), apresenta-se com lesões Com a repetida ocorrência das bolhas, a
locais de traumatismo orais; bolhas frágeis, rompidas e áreas orais toxicidade pode levar a caquexia,
mecânico (palatos ulceradas; principalmente nos idosos infecção e morte em 2 anos;
duro/mole, frênulo, frequentemente controlável com
lábios e mucosa bucal) glicocorticoides orais
Líquen plano Pele e mucosa oral Estrias brancas na boca; nódulos violáceos Estrias brancas isoladas geralmente
na pele, em locais de fricção; assintomáticas; lesões erosivas
ocasionalmente causa úlceras na mucosa frequentemente difíceis de tratar, mas que
oral e gengivite erosiva podem responder aos glicocorticoides
Outras doenças
Úlceras aftosas Em geral, mucosa oral Úlceras dolorosas únicas ou agrupadas com As lesões curam em 1-2 semanas, mas
recorrentes não ceratinizada borda eritematosa circundante; as lesões podem recorrer mensalmente ou várias
(mucosas bucal e podem ter 1-2 mm de diâmetro em grupos vezes por ano; uma barreira protetora
labial, assoalho da (herpetiformes), 1-5 mm (menores) ou 5-15 com benzocaína e glicocorticoides
boca, palato mole e mm (maiores) tópicos aliviam os sintomas;
partes lateral e ventral glicocorticoides sistêmicos podem ser
da língua) necessários nos casos graves
Síndrome de Mucosa oral, olhos, Úlceras aftosas múltiplas na boca; alterações As lesões orais são frequentemente a
Behçet genitália, intestino e oculares inflamatórias, lesões ulcerativas na primeira manifestação; persistem por
SNC genitália; doença inflamatória intestinal e várias semanas e cicatrizam sem deixar
doença do SNC marcas
Úlceras Qualquer local na Lesões ulceradas bem limitadas, localizadas As lesões geralmente cicatrizam em 7-10
traumáticas mucosa oral; com borda vermelha; produzidas por dias quando o fator irritante é removido, a
dentaduras são mordedura acidental de mucosa, penetração menos que haja infecção secundária
frequentemente por objeto estranho ou irritação crônica por
responsáveis por dentadura
úlceras no vestíbulo
Carcinoma de Qualquer área da boca, Úlcera vermelha, branca ou vermelha e Invade e destrói os tecidos subjacentes;
células escamosas mais comumente no branca com borda elevada ou endurecida; frequentemente, metastatiza para os
lábio inferior, bordas falha em cicatrizar; dor não proeminente na linfonodos regionais
inferiores da língua e lesão precoce
assoalho da boca
Leucemia Gengiva Edema gengival e ulceração superficial Geralmente responde ao tratamento
mielocítica aguda acompanhada de hiperplasia da gengiva com sistêmico da leucemia; ocasionalmente
(geralmente necrose extensa e hemorragia; úlceras requer irradiação local
monocítica) profundas podem ocorrer em qualquer lugar
da mucosa, complicadas por infecção
secundária
Linfoma Gengiva, língua, palato Área elevada, ulcerada que pode ter rápida Fatal se não for tratada; pode indicar
e área tonsilar proliferação, tendo uma aparência de infecção pelo HIV subjacente
inflamação traumática
Queimaduras Qualquer área da boca Revestimento branco devido a contato com A lesão cura em várias semanas se não
químicas ou agentes corrosivos (p. ex., ácido estiver secundariamente infectada
térmicas acetilsalicílico, queijo quente) aplicados
localmente; a remoção do revestimento
deixa superfície ferida e dolorosa
aVer Tabela 32-3.

Siglas: SNC, sistema nervoso central; EM, eritema multiforme; HSV, herpes-vírus simples; VZV, vírus varicela-zóster; HIV, vírus da
imunodeficiência humana.

Lesões pigmentadas Ver Tabela 32-2.

TABELA 32-2 ■ Lesões pigmentadas da mucosa oral


Condição Localização Manifestações clínicas Evolução
habitual
Mácula melanótica oral Qualquer área Mácula localizada, delimitada ou difusa, marrom Permanece indefinidamente; nenhum
da boca a preta crescimento
Pigmentação difusa da Qualquer área Pigmentação difusa, pálida a marrom-escura; Permanece indefinidamente
melanina da boca pode ser fisiológica (“racial”) ou causada por
tabagismo
Nevos Qualquer área Pigmentação delimitada, localizada, marrom a Permanece indefinidamente
da boca preta
Melanoma maligno Qualquer área Pode ser achatado e difuso, indolor, marrom a Expande e invade precocemente; a
da boca preto; ou pode ser elevado e nodular metástase leva à morte
Doença de Addison Qualquer área Manchas ou pontos de pigmentação preto- Condição controlada por reposição de
da boca, mas azulados a marrom-escuros que ocorrem esteroides suprarrenais
principalmente precocemente na doença, acompanhados de
na mucosa pigmentação difusa da pele; outros sintomas de
bucal insuficiência suprarrenal
Síndrome de Peutz- Qualquer área Pontos marrom-escuros nos lábios, mucosa bucal, As lesões orais pigmentadas
Jeghers da boca com distribuição típica de pigmento ao redor dos continuam indefinidamente; os
lábios, nariz, olhos e nas mãos; polipose intestinal pólipos gastrintestinais podem tornar-
concomitante se malignos
Ingestão de fármacos Qualquer área Áreas de pigmentação marrom, preta ou cinza Desaparece gradualmente após a
(neurolépticos, da boca cessação do uso do fármaco
contraceptivos orais,
minociclina, zidovudina
e derivados de quinina)
Tatuagem por amálgama Gengiva e Pequenas áreas pigmentadas preto-azuladas Permanece indefinidamente
mucosa associadas a partículas de amálgama incorporadas
alveolar no tecido mole; podem aparecer nas radiografias
como partículas radiopacas em alguns casos
Pigmentação por metal Margem Linha fina pigmentada preto-azulada ao longo da Indicativa de absorção sistêmica;
pesado (bismuto, gengival margem gengival; raramente vista, exceto em nenhuma importância para a saúde
mercúrio, chumbo) crianças expostas à tinta com base de chumbo oral
Língua pilosa negra Dorso da Alongamento das papilas filiformes da língua, que Melhora em um período de 1-2
língua ficam manchadas de café, chá, tabaco ou bactérias semanas com leve escovação da
pigmentadas língua ou interrupção do antibiótico
(se ocorrer devido ao crescimento
bacteriano excessivo)
“Manchas” de Fordyce Mucosas bucal Inúmeras manchas pequenas e amareladas logo Benignas; continuam sem alteração
e labial acima da superfície mucosa; sem sintomas; aparente
causadas por hiperplasia das glândulas sebáceas
Sarcoma de Kaposi O palato é o Placas vermelhas ou azuis de tamanho e forma Em geral, indicativo de infecção pelo
mais comum, variados; frequentemente aumentam, tornam-se HIV ou linfoma não Hodgkin;
mas pode nodulares e podem ulcerar raramente fatal, mas pode requerer
ocorrer em tratamento para conforto ou efeito
qualquer outro estético
lugar
Cistos de retenção Mucosas bucal Cisto preenchido com líquido claro e azulado Benignos; indolores a menos que
mucosos e labial devido ao extravasamento de muco da glândula traumatizados; podem ser removidos
salivar menor lesionada cirurgicamente

Doenças dermatológicas Ver Tabelas 32-1 a 32-3 e Capítulos 52 a 57.

TABELA 32-3 ■ Lesões brancas da mucosa oral


Condição Localização Manifestações clínicas Evolução
habitual
Líquen plano Mucosa Estrias, placas brancas, áreas vermelhas, úlceras na boca; Prolongada; responde aos glicocorticoides
bucal, pápulas violáceas na pele; podem ser assintomáticas, tópicos
língua, doloridas ou intensamente dolorosas; reações liquenoides
gengiva e a fármacos podem ter aparência semelhante
lábios; pele
Nevo Mucosa oral, Espessamento branco indolor de epitélio; início na Benigno e permanente
esponjoso vagina, adolescência/começo da vida adulta; familiar
branco mucosa anal
Leucoplasia do Qualquer Placa branca que pode ficar firme, áspera ou com úlcera e Pode ou não desaparecer com a cessação
fumante e área da fissuras vermelhas; pode-se tornar leve e intensamente do hábito; 2% dos pacientes desenvolvem
lesões do mucosa oral, dolorosa, mas geralmente é indolor carcinoma de células escamosas; a biópsia
tabaco sem algumas precoce é essencial
fumaça vezes
relacionada
com a
localização
do hábito
Eritroplasia Soalho da Placa avermelhada aveludada; ocasionalmente, misturada Alto risco de câncer de células escamosas;
com ou sem boca com placas brancas ou áreas vermelhas lisas biópsia precoce é essencial
placas brancas comumente
afetado nos
homens;
língua e
mucosa
bucal nas
mulheres
Candidíase Qualquer Tipo pseudomembranosa (“sapinho”): placas cremosas Responde favoravelmente à terapia
área da boca brancas semelhantes a coalho que revelam uma superfície antifúngica e à correção de causas
hemorrágica frágil quando removidas; encontradas em predisponentes, onde for possível
crianças doentes, idosos debilitados que recebem altas
doses de glicocorticoides ou antibióticos de amplo
espectro, ou em pacientes com Aids
Tipo eritematosa: áreas planas e vermelhas, algumas Mesma evolução do tipo
vezes doloridas, nos mesmos grupos de pacientes pseudomembranosa
Leucoplasia por Candida: espessamento branco não Responde à terapia antifúngica prolongada
removível do epitélio devido a Candida
Queilite angular: fissuras doloridas no canto da boca Responde à terapia antifúngica tópica
Leucoplasia Em geral na Áreas brancas que variam de pequenas e planas até Causada pelo vírus Epstein-Barr; responde
pilosa língua extensa acentuação de pregas verticais; encontrada nos a altas doses de aciclovir, mas recorre;
lateral, portadores do HIV em todos os grupos de risco para Aids raramente causa desconforto, a menos que
raramente secundariamente infectada por Candida
em outro
local na
mucosa oral
Verrugas Qualquer Lesões papilares únicas ou múltiplas, com superfícies As lesões crescem rapidamente e se
(papilomavírus local na pele ceratinizadas brancas, espessas, que contêm muitas disseminam; considerar carcinoma de
humano e mucosa projeções pontiagudas; lesões em couve-flor cobertas células escamosas e descartar com
[HPV]) oral com mucosa de cor normal ou múltiplas elevações biópsia; excisão ou terapia com laser;
rosadas ou pálidas (hiperplasia epitelial focal) podem regredir nos pacientes infectados
pelo HIV recebendo terapia antirretroviral

Doenças da língua Ver Tabela 32-4.

TABELA 32-4 ■ Alterações da língua


Tipo de Manifestações clínicas
alteração
Tamanho ou morfologia
Macroglossia Aumento da língua, que pode ser parte de síndrome encontrada nos distúrbios do desenvolvimento, como síndrome de
Down, síndrome de Simpson-Golabi-Behmel ou síndrome de Beckwith-Wiedemann; pode ser causado por tumor
(hemangioma ou linfangioma), doença metabólica (p. ex., amiloidose primária) ou endócrina (p. ex., acromegalia ou
cretinismo); pode ocorrer quando todos os dentes são removidos
Língua Superfícies dorsal e laterais da língua cobertas por fissuras rasas ou profundas indolores que podem acumular restos e tornar-
fissurada se irritadas
(“escrotal”)
Glossite Anormalidade congênita com área ovoide desnuda na parte posterior da língua; pode estar associada a candidíase e pode
romboide responder a antifúngicos
mediana
Cor
Língua Distúrbio inflamatório assintomático da língua com rápida perda e novo crescimento das papilas filiformes levando ao
“geográfica” surgimento de placas vermelhas desnudas que “perambulam” pela superfície da língua
(glossite
migratória
benigna)
Língua Alongamento das papilas filiformes da área da superfície dorsal mediana causado por falha da camada de ceratina das
pilosa papilas em se descamar normalmente; a coloração negro-amarronzada pode ser causada por manchas de tabaco, alimentos
ou microrganismos cromogênicos
Língua em Aparência da língua durante a escarlatina devido a hipertrofia das papilas fungiformes e alterações nas papilas filiformes
“morango” e
“framboesa”
Língua A atrofia pode estar associada a xerostomia, anemia perniciosa, anemia ferropriva, pelagra ou sífilis; pode ser acompanhada
“calva” de sensação de queimação dolorosa; pode ser uma expressão de candidíase eritematosa e responde a antifúngicos

Doença causada pelo HIV e Aids Ver Tabelas 32-1 a 32-3 e 32-5; Capítulo 19
7; e Figura 189-3.

TABELA 32-5 ■ Lesões orais associadas à infecção pelo HIV


Morfologia da lesão Etiologias

Pápulas, nódulos e placas Candidíase (hiperplásica e pseudomembranosa)a


Condiloma acuminado (infecção por HPV)
Carcinoma de células escamosas (pré-invasivo e invasivo)
Linfoma não Hodgkina
Leucoplasia pilosaa
Úlceras Úlceras aftosas recorrentesa
Queilite angular
Carcinoma de células escamosas
Gengivite ulcerativa necrosante agudaa
Periodontite ulcerativa necrosantea
Estomatite ulcerativa necrosante
Linfoma não Hodgkina
Infecção viral (herpes simples, herpes-zóster, citomegalovírus)
Infecção causada por Mycobacterium tuberculosis ou Mycobacterium avium-intracellulare
Infecção fúngica (histoplasmose, criptococose, candidíase, geotricose, aspergilose)
Infecção bacteriana (Escherichia coli, Enterobacter cloacae, Klebsiella pneumoniae, Pseudomonas aeruginosa)
Reações medicamentosas (úlceras únicas ou múltiplas)
Lesões pigmentadas Sarcoma de Kaposia
Angiomatose bacilar (lesões cutâneas e viscerais mais comuns que orais)
Pigmentação pela zidovudina (pele, unhas e ocasionalmente mucosa oral)
Doença de Addison
Outras Eritema gengival lineara
aFortemente associados à infecção pelo HIV.

Úlceras A ulceração é a lesão da mucosa oral mais comum. Embora possa haver
muitas causas, o hospedeiro e o padrão das lesões, incluindo a presença de
características sistêmicas, estreitam o diagnóstico diferencial (Tab. 32-1). As
úlceras mais agudas são dolorosas e autolimitadas. As úlceras aftosas recorrentes
e a infecção pelos herpes simples constituem a maioria dos casos. Úlceras
aftosas persistentes e profundas podem ser idiopáticas ou acompanhar a infecção
por HIV/Aids. As lesões aftosas são frequentemente sintomas de apresentação
na síndrome de Behçet (Cap. 357). Lesões de aparência semelhante, porém
menos dolorosas, podem ocorrer na artrite reativa, e úlceras aftosas estão
ocasionalmente presentes durante fases do lúpus eritematoso sistêmico ou
discoide (Cap. 353). Úlceras semelhantes a aftas são observadas na doença de
Crohn (Cap. 319), mas, diferentemente da variedade aftosa comum, podem
exibir inflamação granulomatosa no exame histológico. Aftas mais recorrentes
são mais predominantes em pacientes com doença celíaca e sofrem remissão
com a eliminação do glúten.
Mais preocupantes são as úlceras crônicas relativamente indolores e as
placas vermelhas/brancas (eritroplasia e leucoplasia) com > 2 semanas de
duração. O carcinoma de células escamosas e a displasia pré-maligna devem ser
considerados precocemente, obtendo-se biópsia diagnóstica. Esse conhecimento
e o procedimento são de suma importância porque a malignidade em estágio
inicial é muito mais tratável do que a doença em estágio tardio. Locais de alto
risco são o lábio inferior, o soalho da boca, as partes ventral e lateral da língua,
bem como o complexo palato mole-pilar tonsilar. Fatores de risco significativos
de câncer oral em países ocidentais incluem exposição ao sol (lábio inferior),
assim como uso de tabaco e álcool e infecção por papilomavírus humano. Na
Índia e em alguns outros países da Ásia, o uso de tabaco sem fumaça misturado
com noz-de-areca, cal extinta e condimentos é uma causa comum de câncer oral.
As causas mais raras de úlceras orais crônicas, como tuberculose, infecção
fúngica, granulomatose com poliangeíte e granuloma em linha média, podem
parecer semelhantes ao carcinoma. O diagnóstico correto depende do
reconhecimento de outras características clínicas e da realização de uma biópsia
da lesão. O cancro sifilítico é indolor e, por isso, passa facilmente despercebido.
Sempre há linfadenopatia regional. A etiologia sifilítica é confirmada com testes
bacterianos e sorológicos apropriados.
Distúrbios de fragilidade da mucosa comumente resultam em úlceras orais
dolorosas que não cicatrizam em 2 semanas. O penfigoide da membrana mucosa
e o pênfigo vulgar são os principais distúrbios adquiridos. Embora as
manifestações clínicas sejam frequentemente distintas, uma biópsia do exame
imuno-histoquímico deve ser feita para diagnosticar essas entidades e distingui-
las do líquen plano e de reações medicamentosas.

Doenças hematológicas e nutricionais Os internistas são mais propensos a


encontrar pacientes com distúrbios hematológicos adquiridos do que congênitos.
O sangramento deve cessar em 15 minutos após um trauma menor e dentro de 1
hora após a extração dentária, se for aplicada pressão local. A hemorragia mais
prolongada, se não ocorrer por lesão continuada ou ruptura de um grande vaso,
deve levar à investigação de uma anormalidade da coagulação. Além do
sangramento, petéquias e equimoses tendem a ocorrer na linha de vibração entre
os palatos mole e duro em pacientes com disfunção plaquetária ou
trombocitopenia.
Todas as formas de leucemia, mas em particular a leucemia
mielomonocítica aguda, podem causar hemorragia gengival, úlceras e aumento
da gengiva. Úlceras orais são uma característica da agranulocitose, e úlceras e
mucosite são frequentemente complicações graves de quimio e radioterapia para
cânceres hematológicos e outros. A síndrome de Plummer-Vinson (deficiência de
ferro, estomatite angular, glossite e disfagia) eleva o risco de câncer de células
escamosas oral e câncer esofágico na membrana tecidual pós-cricóidea. Papilas
atróficas, bem como língua eritematosa e ardente, podem ocorrer na anemia
perniciosa. As deficiências nas vitaminas do grupo B produzem muitos desses
sintomas, além de ulceração oral e queilose. As consequências do escorbuto
incluem edema e hemorragia gengival, úlceras e dentes frouxos.
CAUSAS NÃO DENTÁRIAS DA DOR ORAL
A maioria das dores orais origina-se da polpa dentária ou dos tecidos
periodontais inflamados ou lesionados. As causas não odontogênicas são
frequentemente negligenciadas. Na maioria dos casos, a odontalgia é previsível e
proporcional ao estímulo aplicado, detectando-se um distúrbio identificável (p.
ex., cáries, abscessos). A anestesia local elimina a dor oriunda de estruturas
dentárias ou periodontais, mas não as dores referidas. A causa mais comum de
origem não dentária é a dor miofascial referida a partir dos músculos da
mastigação, que se tornam sensíveis e doloridos com o uso aumentado. Muitos
pacientes com dor apresentam bruxismo (ranger dos dentes) secundário ao
estresse e à ansiedade. O distúrbio da articulação temporomandibular está
estreitamente relacionado. Ele afeta ambos os sexos, com prevalência maior
entre as mulheres. As características são dor, limitação dos movimentos
mandibulares e ruídos na articulação temporomandibular. As etiologias são
complexas; a má oclusão não exerce o papel predominante que outrora lhe foi
atribuído. A osteoartrite é uma causa comum de dor à mastigação. Medicação
anti-inflamatória, repouso da mandíbula, alimentos pastosos e calor oferecem
alívio. A articulação temporomadibular está envolvida em 50% dos pacientes
com artrite reumatoide, e seu envolvimento é geralmente uma característica
tardia da doença grave. A dor pré-auricular bilateral, principalmente de manhã,
limita a amplitude dos movimentos.
A neuralgia migranosa pode localizar-se na boca. Episódios de dor e
remissão sem causa identificável e ausência de alívio com anestesia local são
indícios importantes. A neuralgia do trigêmeo (tic douloureux) pode acometer
todo o ramo ou parte do ramo mandibular ou maxilar do V nervo craniano e
provocar dor em um ou alguns dentes. A dor pode ocorrer espontaneamente ou
ser desencadeada pelo toque do lábio ou da gengiva, pela escovação dos dentes
ou pela mastigação. A neuralgia do glossofaríngeo induz sintomas neuropáticos
agudos similares na distribuição do IX nervo craniano. Deglutição, espirros,
tosse ou pressão no trago da orelha desencadeiam dor percebida na base da
língua, na faringe e no palato mole, podendo ser referida à articulação
temporomandibular. A neurite envolvendo as divisões maxilar e mandibular do
nervo trigêmeo (p. ex., rinossinusite maxilar, neuroma e infiltrado leucêmico) é
distinguida da odontalgia comum pela característica neuropática da dor.
Ocasionalmente, uma dor fantasma sucede uma extração dentária. Dor e
hiperalgesia retroauriculares e no lado da face no dia ou um pouco antes do
início da fraqueza facial muitas vezes são os primeiros sintomas da paralisia de
Bell. Do mesmo modo, sintomas semelhantes podem preceder as lesões visíveis
do herpes-zóster que infecta o VII nervo (síndrome de Ramsey-Hunt) ou o nervo
trigêmeo. A neuralgia pós-herpética pode ocorrer após uma ou outra condição.
A isquemia coronariana pode causar dor exclusivamente na face e na
mandíbula; assim como na angina do peito típica, geralmente é reproduzível com
o aumento da demanda miocárdica. A dor em vários dentes molares ou pré-
molares superiores não aliviada com anestesia dos dentes pode indicar sinusite
maxilar.
A arterite das células gigantes é notória por provocar cefaleia, porém
também pode causar dor facial ou de garganta sem cefaleia. A claudicação da
mandíbula e da língua com a mastigação ou com a fala é relativamente comum.
O infarto da língua é raro. Os pacientes com tireoidite subaguda muitas vezes
apresentam dor referida na face ou na mandíbula antes de a glândula tireoide
sensível e o hipertireoidismo transitório serem observados.
A “síndrome da boca ardente” (glossodinia) ocorre na ausência de causa
identificável (p. ex., deficiência de vitamina B12, de ferro, diabetes melito,
infecção leve por Candida, sensibilidade a alimentos ou xerostomia discreta) e
afeta predominantemente as mulheres na pós-menopausa. A etiologia pode ser
neuropática. Clonazepam, ácido α-lipoico e terapia cognitivo-comportamental
beneficiam alguns pacientes. Alguns casos associados aos inibidores da enzima
conversora de angiotensina tiveram remissão quando o medicamento foi
interrompido.

DOENÇAS DAS GLÂNDULAS SALIVARES


A saliva é essencial à saúde oral. Sua ausência acarreta cáries dentárias, doença
periodontal e dificuldades para usar próteses dentárias, mastigar e falar. Seus
principais componentes, água e mucina, servem como solvente de limpeza e
fluido lubrificante. Além disso, ela contém fatores antimicrobianos (p. ex.,
lisozima, lactoperoxidase, IgA secretora), fator de crescimento epidérmico,
minerais e sistemas de tamponamento. As principais glândulas salivares
secretam intermitentemente em resposta à estimulação autonômica, que se
intensifica durante uma refeição, mas é baixa em outros momentos. Centenas de
glândulas menores nos lábios e bochechas secretam muco continuamente, dia e
noite. Consequentemente, a função oral fica prejudicada quando a função salivar
é reduzida. A sensação de boca seca (xerostomia) é percebida quando o fluxo
salivar diminui em 50%. A etiologia mais comum é medicação, especialmente
fármacos com propriedades anticolinérgicas, mas também alfa e
betabloqueadores, bloqueadores dos canais de cálcio e diuréticos. Outras causas
incluem síndrome de Sjögren, parotidite crônica, obstrução do ducto salivar,
diabetes melito, HIV/Aids e radioterapia que inclua as glândulas salivares no
campo (p. ex., para linfoma de Hodgkin e câncer de cabeça e pescoço). O
tratamento envolve a eliminação ou limitação dos medicamentos implicados,
cuidados dentários preventivos e líquido oral suplementar ou substitutos
salivares. O uso de pastilhas de menta ou chicletes sem açúcar pode estimular a
secreção salivar se a disfunção for leve. Quando tecido exócrino suficiente
permanece, mostrou-se que a pilocarpina ou a cevimelina aumentam as
secreções. Substitutos comerciais de saliva ou géis aliviam o ressecamento. A
suplementação com flúor é crucial para prevenir cáries.
A sialolitíase apresenta-se mais frequentemente como edema doloroso,
mas, em alguns casos, como apenas dor ou apenas edema. O tratamento
conservador consiste em calor local, massagem e hidratação. O estímulo à
secreção salivar com pastilhas de menta ou limão elimina os cálculos menores. A
antibioticoterapia é necessária quando há suspeita de infecção bacteriana. Em
adultos, a parotidite bacteriana aguda é unilateral e afeta mais comumente os
pacientes desidratados e debilitados no pós-operatório. O Staphylococcus aureus
(incluindo cepas resistentes à meticilina) e as bactérias anaeróbias são os
patógenos mais comuns. A sialadenite bacteriana crônica resulta de secreção
salivar diminuída e infecção bacteriana recorrente. Quando a infecção bacteriana
suspeita não responde ao tratamento, o diagnóstico diferencial deve ser ampliado
para incluir neoplasias benignas e malignas, distúrbios linfoproliferativos,
síndrome de Sjögren, sarcoidose, tuberculose, linfadenite, actinomicose e
granulomatose com poliangeíte. Ocorre aumento parotídeo indolor bilateral no
diabetes melito, na cirrose, na bulimia, na infecção pelo HIV/Aids e com certos
fármacos (p. ex., iodeto, propiltiouracila).
O adenoma pleomórfico compreende cerca de dois terços das neoplasias
salivares. A parótida é a principal glândula salivar acometida, e o tumor se
apresenta como uma massa firme de crescimento lento. Embora o tumor seja
benigno, a recorrência é comum se a ressecção for incompleta. Os tumores
malignos, como carcinoma mucoepidermoide, carcinoma adenoide cístico e
adenocarcinoma, tendem a crescer com relativa rapidez, dependendo do grau.
Podem ulcerar e invadir nervos, causando dormência e paralisia facial. A
ressecção cirúrgica é o tratamento primário. A radioterapia (principalmente a
terapia com feixe de nêutrons) é usada quando não é possível fazer cirurgia e
após a ressecção para certos tipos histológicos com um alto risco de recidiva. Os
tumores malignos da glândula salivar têm uma taxa de sobrevida de 5 anos de
cerca de 68%.

Cuidados dentários para pacientes com complicações clínicas complexas A


assistência odontológica de rotina (p. ex., extração não complicada, desinfecção
e limpeza, restauração dentária e tratamento de canal) é completamente segura.
As preocupações mais comuns relacionadas com a assistência a pacientes com
doenças clínicas são sangramento excessivo em pacientes em uso de
anticoagulantes, infecção das valvas cardíacas e dispositivos protéticos por
disseminação hematogênica a partir da flora oral, bem como complicações
cardiovasculares resultantes de vasopressores utilizados como anestésicos locais
durante o tratamento dentário. A experiência confirma que os riscos de qualquer
uma dessas complicações são muito baixos.
Os pacientes que estão sendo submetidos a extração dentária ou cirurgia
alveolar e gengival raramente apresentam hemorragia que não pode ser
controlada quando o anticoagulante varfarina é mantido dentro da faixa
terapêutica atualmente recomendada para a prevenção de trombose venosa,
fibrilação atrial ou complicações de valva cardíaca mecânica. Contudo,
complicações embólicas e morte foram descritas durante a anticoagulação
subterapêutica. A anticoagulação terapêutica deve ser confirmada com
antecedência e mantida durante o procedimento. Da mesma forma, doses baixas
de ácido acetilsalicílico (p. ex., 81-325 mg) podem continuar a ser administradas
de forma segura. Para pacientes em uso de ácido acetilsalicílico e uma outra
medicação antiplaquetária (p. ex., clopidogrel), a decisão de continuar a segunda
medicação antiplaquetária deve ser baseada na consideração individual dos
riscos de trombose e de sangramento. Os novos anticoagulantes orais com alvos
específicos (dabigatrana, apixabana, rivaroxabana e edoxabana) são cada vez
mais usados. Extrações simples de 1 a 3 dentes, cirurgia periodontal, drenagem
de abscesso e posicionamento de implantes geralmente não requerem
interrupção da terapia. Uma cirurgia mais extensa pode necessitar de atraso ou
interrupção da dose do anticoagulante ou de medidas mais elaboradas para o
manejo dos riscos de trombose e hemorragia.
Os pacientes com risco de endocardite bacteriana (Cap. 123) devem manter
higiene oral adequada, incluindo uso de fio dental e limpeza profissional regular.
Atualmente, as diretrizes recomendam que os antibióticos profiláticos sejam
restritos àqueles pacientes sob alto risco de endocardite bacteriana que serão
submetidos a procedimentos orais e dentários que envolvem manipulação
significativa do tecido gengival ou periapical ou penetração da mucosa oral. Se
houver sangramento inesperado, antibióticos administrados nas primeiras 2
horas após o procedimento fornecem profilaxia eficaz.
A disseminação bacteriana hematogênica de infecção oral sem dúvida pode
causar infecção tardia de próteses articulares e, por isso, exige a remoção do
tecido infectado (p. ex., drenagem, extração, procedimento de canal) e
antibioticoterapia apropriada. Entretanto, não há evidências de infecção tardia de
prótese articular após procedimentos dentários de rotina. Por essa razão, a
profilaxia com antibióticos geralmente não é recomendada antes de cirurgia oral
ou manipulação da mucosa oral para pacientes que foram submetidos a
artroplastia de joelho. Exceções podem ser feitas a pacientes que tiveram
complicações com a artroplastia.
Com frequência, surgem preocupações em torno do uso de vasoconstritores
para tratar pacientes com hipertensão e cardiopatia. Os vasoconstritores
aumentam a profundidade e a duração da anestesia local, reduzindo, assim, a
dose anestésica e a toxicidade em potencial. Se a injeção intravascular for
evitada, pode-se usar lidocaína a 2% com epinefrina 1:100.000 (limitado a um
total de 0,036 mg de epinefrina) de forma segura naqueles com hipertensão
controlada e doença arterial coronariana, arritmia ou insuficiência cardíaca
congestiva estáveis. Deve-se ter cautela com pacientes em uso de
antidepressivos tricíclicos e betabloqueadores não seletivos, porque esses
fármacos podem potencializar o efeito da epinefrina.
Os tratamentos dentários eletivos devem ser adiados por pelo menos 1 mês
e preferencialmente por 6 meses após infarto agudo do miocárdio; depois deste
período o risco de reinfarto é baixo, desde que o paciente se encontre
clinicamente estável (p. ex., ritmo e angina estáveis e sem insuficiência
cardíaca). Os pacientes que tiveram AVC devem ter seu tratamento dentário
eletivo adiado por 9 meses. Em ambas as situações, a redução eficaz do estresse
requer bom controle da dor, o que inclui o uso de uma quantidade mínima de
vasoconstritor necessária para fornecer boa hemostasia e boa anestesia local.
A terapia com bisfosfonatos está associada à osteonecrose da mandíbula.
Contudo, o risco com terapia com bisfosfonato oral é muito baixo. A maioria dos
pacientes acometidos recebeu terapia com dose alta de aminobisfosfonato para
mieloma múltiplo ou câncer de mama metastático e foi submetida a extração de
dentes ou cirurgia dentária. As lesões intraorais, das quais dois terços são
dolorosas, surgem como osso rijo exposto de coloração branco-amarelada
envolvendo a mandíbula ou a maxila. Os testes de rastreamento para determinar
o risco de osteonecrose não são confiáveis. Os pacientes selecionados para
terapia com aminobisfosfonato devem receber cuidados dentários preventivos
que reduzem o risco de infecções e a necessidade de cirurgia futura.

Halitose A halitose geralmente emana da cavidade oral ou das vias nasais. Os


compostos voláteis de enxofre resultantes da deterioração bacteriana dos
alimentos e restos celulares são responsáveis pelo mau odor. Doença periodontal,
cáries, formas agudas da gengivite, dentaduras mal ajustadas, abscesso oral e
revestimento lingual são causas comuns. O tratamento inclui corrigir higiene
inadequada, tratar infecções e escovar a língua. A hipossalivação pode produzir e
exacerbar a halitose. As bolsas de deterioração nas criptas tonsilares, divertículo
esofágico, estase esofágica (p. ex., acalasia, estenose), sinusite e abscesso
pulmonar são responsáveis em alguns casos. Algumas doenças sistêmicas
produzem odores distintos: insuficiência renal (amoníaco), hepática (de peixe) e
cetoacidose (semelhante a fruta). A gastrite por Helicobacter pylori também
pode produzir hálito amoníaco. Se o paciente se apresentar devido à halitose,
mas não houver detecção de odor, então pseudo-halitose ou halitofobia devem
ser consideradas.

Envelhecimento e saúde oral Embora a queda de dentes e a doença dentária


não sejam consequências normais da idade, ocorre uma ordem complexa de
alterações estruturais e funcionais com a idade que podem afetar a saúde oral.
Alterações sutis na estrutura dentária (p. ex., espaço e volume pulpares
diminuídos, esclerose dos túbulos da dentina e proporções alteradas do conteúdo
nervoso e vascular da polpa) resultam na eliminação ou diminuição da
sensibilidade à dor e redução na capacidade reparadora dos dentes. Além disso, a
substituição gordurosa dos ácinos salivares associada à idade pode reduzir a
reserva fisiológica, aumentando, assim, o risco de hipossalivação. Em idosos
saudáveis, há uma redução mínima, se houver, no fluxo salivar.
Frequentemente, ocorre higiene oral precária quando há comprometimento
da saúde ou quando os pacientes perdem a destreza manual e a flexibilidade dos
membros superiores. Essa situação é particularmente comum entre idosos
residentes de instituições de longa permanência e deve ser enfatizada porque já
se demonstrou que a limpeza oral e os cuidados dentários regulares reduzem a
incidência de pneumonia e doença oral, bem como o risco de mortalidade nessa
população. Outros riscos para a deterioração dentária incluem exposição limitada
ao flúor durante a vida. Sem cuidados assíduos, a deterioração pode avançar
significativamente, ainda que permaneça assintomática. Consequentemente, boa
parte do dente – ou o dente inteiro – pode ser destruída antes que o processo seja
detectado.
A doença periodontal, uma causa principal de perda dentária, é indicada
pela perda da altura do osso alveolar. Mais de 90% dos americanos apresentam
algum grau de doença periodontal aos 50 anos de idade. Os adultos sadios que
não apresentam perda óssea alveolar significativa até a sexta década de vida não
costumam ter piora expressiva com o avanço da idade.
À medida que a população nascida na primeira metade do século XX
falece, a perda dentária completa nos Estados Unidos se torna cada vez mais
restrita à população mais pobre. Quando acontece, a fala, a mastigação e os
contornos faciais são drasticamente afetados. A ausência de dentes também pode
piorar a apneia obstrutiva do sono, particularmente nos pacientes assintomáticos
que usam dentaduras. As dentaduras podem melhorar a articulação verbal e
restaurar os contornos faciais diminuídos. A mastigação também pode ser
restaurada; contudo, os pacientes que esperam que as dentaduras facilitem a
ingestão oral frequentemente se decepcionam. As próteses precisam de um
período de ajustes. A dor pode resultar da fricção ou de lesões traumáticas
provocadas pelo afrouxamento da dentadura. O ajuste inadequado e a higiene
oral precária permitem o desenvolvimento da candidíase. A infecção fúngica
pode ser assintomática ou dolorosa e é indicada por tecido liso eritematoso ou
tecido granuloso adaptando-se a uma área coberta pela prótese. Os indivíduos
com dentaduras e sem dentes naturais precisam de exames orais regulares
(anuais) por profissionais.

LEITURAS ADICIONAIS
Durso SC: Interaction with other health team members in caring for elderly
patients. Dent Clin North Am 49:377, 2005.
Elad S et al: Novel anticoagulants: General overview and practical
considerations for dental practitioners. Oral Dis 22:23, 2016.
Sollecito TP et al: The use of prophylactic antibiotics prior to dental procedures
in patients with prosthetic joints: Evidence-based guidelines for dental
practitioners—a report of the American Dental Association Council on
Scientific Affairs. J Am Dent Assoc 146:11, 2015.
Seção 5 Alterações nas funções
circulatória e respiratória

33
Dispneia
Rebecca M. Baron

DEFINIÇÃO
A declaração de consenso da American Thoracic Society define dispneia como
uma “experiência subjetiva de angústia respiratória, que consiste em sensações
qualitativamente diferentes com intensidades variáveis. Essa experiência é
causada por interações de vários fatores fisiológicos, psicológicos, sociais e
ambientais e pode desencadear respostas fisiológicas e comportamentais
secundárias”. A dispneia, um sintoma, pode ser percebido apenas pela pessoa
que a experimenta e, dessa forma, deve ser autorrelatada. Em contraste, os sinais
de esforço respiratório aumentado, como taquipneia, uso de musculatura
acessória e retração intercostal, só podem ser medidos e relatados por médicos.

EPIDEMIOLOGIA
A dispneia é comum, sendo relatado que até a metade dos pacientes
hospitalizados e um quarto dos pacientes ambulatoriais experimentam esse
sintoma, com uma prevalência de 9 a 13% na comunidade, a qual aumenta para
até 37% em adultos ≥ 70 anos. A dispneia é uma causa frequente de consultas de
emergência, sendo responsável por até 3-4 milhões de consultas por ano. Além
disso, é cada vez mais reconhecido que o grau de dispneia pode predizer melhor
os desfechos na doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) do que o volume
expiratório forçado em 1 segundo (VEF1) e medidas formais de dispneia foram
incorporadas nas diretrizes de 2017 para avaliação da gravidade da DPOC da
Global Initiative for Chronic Obstructive Lung Disease (GOLD). A dispneia
também pode predizer os desfechos de outras doenças crônicas cardíacas e
pulmonares. Ela pode surgir por várias causas subjacentes pulmonares, cardíacas
e neurológicas, e a elucidação dos sintomas particulares pode apontar uma
etiologia específica e/ou o mecanismo da dispneia (embora exames adicionais
costumem ser necessários, conforme discutido adiante).

MECANISMOS SUBJACENTES DA DISPNEIA


Os mecanismos subjacentes da dispneia são complexos e ela pode surgir a partir
de outras sensações respiratórias. Embora várias pesquisas tenham aumentado a
nossa compreensão dos mecanismos subjacentes de sensações respiratórias
específicas, como “aperto no peito” ou “falta de ar”, é provável que um
determinado estado patológico possa produzir a sensação de dispneia através de
mais de um mecanismo subjacente. A dispneia pode surgir por uma variedade de
vias, incluindo a geração de sinais aferentes do sistema respiratório para o
sistema nervoso central (SNC), sinais eferentes do SNC para os músculos
ventilatórios e particularmente quando há um desequilíbrio na sinalização
integrativa entre essas duas vias, chamado de “desequilíbrio eferente-reaferente”
(Fig. 33-1).

FIGURA 33-1 Vias de sinalização subjacentes à dispneia. A dispneia surge de vários estímulos
sensoriais, muitos dos quais levam a diferentes frases descritivas usadas pelos pacientes (mostradas entre
aspas na figura). A sensação de esforço respiratório provavelmente surge por sinais transmitidos do córtex
motor para o córtex sensitivo (seta verde) quando comandos motores são enviados para os músculos
ventilatórios (sinais eferentes, seta azul). Os estímulos motores enviados pelo tronco cerebral (seta azul)
também podem ser acompanhados de sinais transmitidos para o córtex sensitivo e contribuem para a
sensação de esforço (seta verde tracejada). A sensação de falta de ar provavelmente deriva de uma
combinação de estímulos que aumentam o drive respiratório, como hipoxemia ou hipercapnia (mediados
por sinais de quimiorreceptores no corpo carotídeo e no arco aórtico, indicado por sinais aferentes em
vermelho), hipercapnia aguda ou acidemia (medidas por sinais de quimiorreceptores periféricos e centrais,
indicado por sinais aferentes em vermelho), inflamação da via aérea e intersticial (mediada por aferentes
pulmonares, indicado por sinais aferentes em vermelho) e receptores vasculares pulmonares. A dispneia
surge em parte por desequilíbrio percebido entre mensagens eferentes para os músculos ventilatórios e
sinais aferentes dos pulmões e da parede torácica. O aperto no peito, geralmente associado com
broncospasmo, é, em grande parte, mediado por estimulação de receptores de irritação vagal. Os sinais
aferentes (setas vermelhas) de mecanorreceptores das vias aéreas, pulmões e parede torácica mais
provavelmente passam através do tronco encefálico antes de serem transmitidos para o córtex sensitivo,
embora também seja possível que alguma informação aferente passe diretamente para o córtex sensitivo
(seta tracejada) sem passar pelo tronco encefálico.
Setas vermelhas: sinais aferentes; setas azuis: sinais eferentes; setas verdes: sinais dentro do sistema
nervoso central; linha tracejada: vias hipotéticas; círculos ocos vermelhos: quimiorreceptores; quadrados
ocos vermelhos: mecanorreceptores. (Adaptada de UpToDate 2017.)

Os sinais aferentes estimulam o SNC (tronco encefálico e/ou córtex) e


incluem primariamente: (a) quimiorreceptores periféricos no corpo carotídeo e
no arco aórtico e quimiorreceptores centrais no bulbo ativados por hipoxemia,
hipercapnia ou acidemia, podendo produzir sensação de “falta de ar”; e (b)
mecanorreceptores nas vias aéreas superiores, nos pulmões (incluindo receptores
de estiramento, receptores de irritação e receptores J) e na parede torácica
(incluindo fusos musculares como receptores de estiramento e órgãos tendinosos
que monitoram a geração de força) que são ativados em situações de aumento da
carga de trabalho por um estado patológico que produza aumento na resistência
da via aérea, podendo estar associada com sintomas de aperto no peito (p. ex.,
asma ou DPOC) ou redução da complacência pulmonar ou da parede torácica (p.
ex., fibrose pulmonar). Outros sinais aferentes que desencadeiam dispneia dentro
do sistema respiratório podem surgir a partir de respostas de receptores
vasculares pulmonares a mudanças na pressão da artéria pulmonar e nos
músculos esqueléticos (chamados metaborreceptores), os quais se acredita que
detectem mudanças no ambiente bioquímico.
São enviados sinais eferentes a partir do SNC (córtex motor e tronco
encefálico) para músculos ventilatórios, sendo também transmitidos por descarga
corolária para o córtex sensitivo, que se acredita estar ligada a sensações de
esforço respiratório (ou “trabalho respiratório”) e que talvez contribua para as
sensações de “falta de ar”, especialmente em resposta a um aumento da carga
ventilatória em um estado patológico, como a DPOC. Além disso, medo ou
ansiedade podem aumentar a sensação de dispneia por exacerbarem o distúrbio
fisiológico subjacente em resposta a um aumento da frequência respiratória ou
um padrão respiratório desordenado.
AVALIAÇÃO DA DISPNEIA
Embora seja bem reconhecido que a dispneia é uma qualidade difícil de ser
aferida de maneira confiável devido a múltiplos possíveis domínios que podem
ser medidos (p. ex., experiência sensitivo-perceptiva, sofrimento afetivo e carga
ou impacto do sintoma) e que não há ferramentas uniformemente aprovadas para
a avaliação da dispneia, a opinião de consenso é de que a dispneia deve ser
formalmente avaliada em um contexto mais relevante e benéfico para o manejo
do paciente; além disso, os domínios específicos sendo medidos devem estar
adequadamente descritos. Há várias ferramentas sendo desenvolvidas para a
avaliação formal da dispneia. Como exemplo, os critérios GOLD 2017 defendem
o uso de uma ferramenta para avaliação de dispneia como a Modified Medical
Research Council Dyspnea Scale (MMRC, Tab. 33-1) para avaliar o
sintoma/carga na DPOC.

TABELA 33-1 ■ Exemplo de método clínico para graduação da dispneia: Modified Medical Research
Council Dyspnea Scalea
Grau de Descrição
dispneia
0 Não perturbado pela falta de ar, exceto com esforços intensos
1 Falta de ar ao caminhar em solo plano ou subir uma inclinação pequena
2 Caminha mais devagar que as pessoas de idade semelhante em solo plano devido à falta de ar ou tem que parar para descansar
ao caminhar em ritmo normal em solo plano
3 Para a fim de descansar após caminhar 100 metros ou após caminhar alguns minutos em solo plano
4 Falta de ar grave demais para sair de casa ou dispneia com as atividades da vida diária (p. ex., vestir-se/despir-se)
aFoi incorporada nas diretrizes GOLD 2017 como possível ferramenta para graduação da dispneia na DPOC.

Fonte: Modificada de DA Mahler, CK Wells: Evaluation of clinical methods for rating dyspnea. Chest 93:580, 1988.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Este capítulo se concentra mais na dispneia crônica, a qual é definida como
sintomas que duram mais de 1 mês e que podem surgir a partir de uma ampla
gama de condições subjacentes diferentes, mais comumente atribuíveis a
problemas pulmonares e cardíacos que são responsáveis por até 85% das causas
subjacentes de dispneia. Porém, até um terço dos pacientes podem ter razões
multifatoriais para a dispneia subjacente. Os exemplos de distúrbios que podem
causar dispneia com os possíveis mecanismos subjacentes aos sintomas de
apresentação são descritos na Tabela 33-2.

Clique aqui para visualizar a tabela abaixo como imagem na vertical.


TABELA 33-2 ■ Diagnóstico diferencial de processos patológicos subjacentes à dispneia
Sistema Tipo de Exemplo de Possíveis Possíveis Possíveis Exames
processo processo sintomas de achados mecanismos diagnósticos
patológico apresentação da físicos subjacentes à iniciais (e
dispneia dispneia possíveis
achados)

Pulmonar Doença das Asma, DPOC Aperto no peito, Sibilância, uso Aumento do trabalho Pico de fluxo
vias aéreas taquipneia, da musculatura respiratório, (reduzido);
aumento do acessória, hipoxemia, espirometria
esforço hipoxemia aos hipercapnia, (DVO);
respiratório, falta esforços estimulação de radiografia de
de ar, (especialmente receptores tórax
incapacidade de com DPOC) pulmonares (hiperinsuflação;
fazer inspiração perda de
profunda parênquima
pulmonar na
DPOC)
Doença Doença Falta de ar, Estertores Aumento do trabalho Espirometria e
parenquimatosa pulmonar incapacidade de secos no final respiratório, aumento volumes
intersticiala fazer inspiração da inspiração, do drive respiratório, pulmonares
profunda baqueteamento hipoxemia, (DVR);
digital, hipercapnia, radiografia e TC
hipoxemia aos estimulação de de tórax (doença
esforços receptores pulmonar
pulmonares intersticial)
Doença da Cifoescoliose, Aumento do Redução da Aumento do esforço Espirometria e
parede torácica fraqueza esforço incursão respiratório; volumes
neuromuscular respiratório, diafragmática; estimulação de pulmonares
(NM) incapacidade de atelectasia receptores (DVR); PIM e
fazer inspiração pulmonares (se PEM (reduzidas
profunda houver atelectasia) na fraqueza
NM)
Pulmonar Vasculatura Hipertensão Taquipneia Elevação das Aumento do drive Capacidade de
e cardíaco pulmonar pulmonar pressões no respiratório, difusão
lado direito do hipoxemia, (redução); ECG;
coração, estimulação de ecocardiografia
hipoxemia aos receptores vasculares (para avaliar as
esforços pressões na AP)b
Cardíaco Insuficiência Doença arterial Aperto no peito, Elevação de Aumento do esforço Considerar o
cardíaca coronariana, falta de ar pressões no e do drive exame de BNP
esquerda miocardiopatiac lado esquerdo respiratórios, em situações
Doença Pericardite do coração; hipoxemia, agudas; ECG,
pericárdica constritiva; estertores estimulação de ecocardiografia,
tamponamento úmidos ao receptores vasculares pode haver
cardíaco exame e pulmonaresd necessidade de
pulmonar; exame de
pulso esforço e/ou
paradoxal CCE
(doença
pericárdica)
Outros Variável Anemia Dispneia aos Variável Metaborreceptores Hematócrito
Falta de esforços (anemia, para anemia;
condicionamento Condicionamento condicionamento excluir outras
físico físico ruim físico ruim); causas
Doença Ansiedade quimiorreceptores
psicológico (metabolismo
anaeróbico por
condicionamento
físico ruim); algumas
pessoas podem ter
aumento da
sensibilidade à
hipercapnia
aDiagnóstico diferencial de doenças pulmonares intersticiais inclui fibrose pulmonar idiopática, doenças vasculares do colágeno, pneumonite

induzida por fármacos ou ocupacional, disseminação linfangítica de câncer; processos que são mais alveolares que intersticiais também podem
com menos frequência contribuir para a doença pulmonar parenquimatosa subjacente à dispneia crônica, incluindo entidades como
pneumonite de hipersensibilidade, pneumonia em organização criptogênica, etc. bSe poderia considerar também esses pacientes para
angiografia por TC para avaliação da presença de tromboembolismo, cintilografia de ventilação/perfusão para avaliação da presença de doença
tromboembólica crônica e cateterismo cardíaco direito (CCD) para avaliação adicional de hipertensão pulmonar. cCostuma haver disfunção
diastólica em casos de ventrículo esquerdo não complacente e isso contribui de forma significativa para a dispneia insidiosa que pode ser
difícil de tratar. dPode haver estimulação de metaborreceptores se o débito cardíaco for suficientemente reduzido para resultar em acidose
láctica.
Siglas: BNP, peptídeo natriurético cerebral; DPOC, doença pulmonar obstrutiva crônica; TC, tomografia computadorizada; ECG,
eletrocardiograma; CCE, cateterismo cardíaco esquerdo; PIM/PEM, pressões inspiratória máxima e expiratória máxima (obtidas no laboratório
de função pulmonar); DVO, distúrbio ventilatório obstrutivo; DVR, distúrbio ventilatório restritivo.

As causas relacionadas ao sistema respiratório incluem doenças das vias


aéreas (p. ex., asma e DPOC), doenças do parênquima (mais comumente as
doenças pulmonares intersticiais são vistas em casos de dispneia crônica, mas os
processos de preenchimento alveolar, como a pneumonite por hipersensibilidade
ou a pneumonia em organização-bronquiolite obliterante [BOOP], também
podem apresentar sintomas semelhantes), doenças que afetam a parede torácica
(p. ex., anormalidades ósseas, como cifoescoliose, ou condições que causam
fraqueza neuromuscular, como esclerose lateral amiotrófica) e doenças que
afetam a vasculatura pulmonar (p. ex., hipertensão pulmonar, que pode surgir
por várias causas subjacentes ou doença tromboembólica crônica). As doenças
que afetam o sistema cardiovascular e que podem se apresentar com dispneia
incluem processos que afetam a função cardíaca esquerda, como a doença
arterial coronariana e as miocardiopatias, bem como distúrbios que afetam o
pericárdio, incluindo pericardite constritiva e tamponamento cardíaco. Outras
patologias subjacentes à dispneia que podem não se originar diretamente dos
sistemas pulmonar ou cardiovascular incluem anemia (afetando potencialmente a
capacidade de transportar oxigênio), falta de condicionamento físico e processos
psicológicos, como a ansiedade. A diferenciação entre a miríade de processos
subjacentes que podem apresentar-se com dispneia pode ser difícil. Uma
abordagem gradual que começa com anamnese e exame físico, seguidos por
exames laboratoriais selecionados que podem, então, avançar para outros testes
diagnósticos, e o potencial encaminhamento para subespecialidades pode ajudar
a elucidar a causa subjacente da dispneia. Porém, uma proporção substancial de
pacientes pode ter dispneia persistente apesar do tratamento de um processo
subjacente, ou pode não ter um processo subjacente específico identificado como
causa da dispneia.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Dispneia (Ver Fig. 33-2)
FIGURA 33-2 Possível algoritmo para avaliação de paciente com dispneia. Conforme descrito no
texto, a abordagem deve começar com anamnese e exame físico detalhados, seguidos por exames
progressivos e, por fim, exames mais invasivos e encaminhamento para subespecialidades conforme
indicado para determinar a causa subjacente da dispneia. Dco, capacidade de difusão pulmonar de
monóxido de carbono; ECG, eletrocardiograma; TC, tomografia computadorizada. (Adaptada de NG
Karnani et al: Am Fam Physician 71:1529, 2005.)

GERAL
Para pacientes com alguma condição prévia conhecida pulmonar, cardíaca ou
neuromuscular e com piora da dispneia, o foco inicial da avaliação
geralmente será determinar se a condição conhecida progrediu ou se um novo
processo ocorreu e está causando a dispneia. Para pacientes sem uma causa
potencial prévia para a dispneia, a avaliação inicial se concentrará na
determinação da etiologia subjacente. A determinação da causa subjacente, se
possível, é extremamente importante, pois o tratamento pode variar muito
com base na condição predisponente. A anamnese e exame físico iniciais
ainda são fundamentais para a avaliação, seguidos por exames diagnósticos
iniciais, conforme indicado, que possam impulsionar encaminhamento para
subespecialidades (p. ex., pneumologia, cardiologia, neurologia, medicina do
sono e/ou clínicas especializadas em dispneia) se a causa da dispneia
permanecer oculta (Fig. 33-2). Até dois terços dos pacientes necessitarão de
exames diagnósticos além da apresentação clínica inicial.

HISTÓRIA
Deve-se pedir ao paciente para descrever com suas próprias palavras o
desconforto que sente, assim como os efeitos da posição, das infecções e dos
estímulos ambientais na dispneia, pois a sua descrição pode ser útil para
apontar uma etiologia. Por exemplo, os sintomas de aperto no peito podem
sugerir a possibilidade de broncoconstrição, e a sensação de incapacidade de
realizar uma inspiração profunda pode se correlacionar com a hiperinsuflação
dinâmica da DPOC. A ortopneia é um indicador comum de insuficiência
cardíaca congestiva (ICC), limitação mecânica do diafragma associada à
obesidade ou asma desencadeada por refluxo esofágico. Dispneia noturna
sugere ICC ou asma. Os episódios agudos e intermitentes de dispneia devem-
se mais provavelmente a episódios de isquemia miocárdica, broncospasmo
ou embolia pulmonar, enquanto a dispneia persistente crônica é mais típica
da DPOC, das doenças pulmonares intersticiais e da doença tromboembólica
crônica. Informações sobre fatores de risco para doença pulmonar induzida
por fármacos ou ocupacional e para doença arterial coronariana devem ser
pesquisadas. O mixoma atrial esquerdo ou a síndrome hepatopulmonar
devem ser considerados quando o paciente queixa-se de platipneia, ou seja,
dispneia na posição ortostática com alívio na posição supina.

EXAME FÍSICO
Os sinais vitais iniciais podem ser úteis para apontar a etiologia subjacente
no contexto do restante da avaliação. Por exemplo, a presença de febre pode
apontar para um processo subjacente infeccioso ou inflamatório; a presença
de hipertensão em casos de insuficiência cardíaca pode apontar para a
disfunção diastólica; a presença de taquicardia pode estar associada com
muitos processos subjacentes distintos, incluindo febre, disfunção cardíaca e
falta de condicionamento físico; e a presença de hipoxemia em repouso
sugere o envolvimento de processos que envolvam hipercapnia, desequilíbrio
ventilação-perfusão, shunt ou déficit na capacidade de difusão. Deve-se
medir a saturação de oxigênio aos esforços, conforme descrito adiante. O
exame físico deve começar durante a entrevista com o paciente. A
impossibilidade de o paciente falar frases completas antes de parar para fazer
uma respiração profunda sugere um distúrbio que estimula o centro de
controle ou uma anormalidade da bomba ventilatória com diminuição da
capacidade vital. Os indícios de aumento do esforço para respirar (retrações
supraclaviculares, uso dos músculos acessórios da ventilação e posição de
tripé – o paciente senta-se com os braços e as mãos ao redor dos joelhos)
sugerem aumento da resistência das vias aéreas ou rigidez dos pulmões e da
parede torácica. Ao medir os sinais vitais, o médico deve avaliar de forma
acurada a frequência respiratória e medir o pulso paradoxal (Cap. 265); se a
pressão sistólica diminuir > 10 mmHg, deve ser considerada a presença de
DPOC, asma aguda ou doença pericárdica. Durante o exame físico geral,
devem ser investigados sinais de anemia (palidez das conjuntivas), cianose e
cirrose (angioma aracniforme, ginecomastia). O exame do tórax deve
enfatizar a simetria dos movimentos; a percussão (macicez indica derrame
pleural; hipertimpanismo é um sinal de enfisema); e a ausculta (sibilos,
roncos, prolongamento da fase expiratória e diminuição do murmúrio
vesicular são indícios de distúrbios das vias aéreas; estertores sugerem edema
ou fibrose intersticial). O exame do coração deve enfatizar sinais de elevação
das pressões do coração direito (distensão das veias jugulares, edema,
acentuação do componente pulmonar da segunda bulha cardíaca); disfunção
ventricular esquerda (galopes por B3 e B4); e doença valvar (sopros).
Durante o exame do abdome com o paciente em posição supina, deve-se
verificar se há movimentos paradoxais do abdome além da presença de
aumento da disfunção respiratória na posição supina: o abdome que afunda
durante a inspiração é um sinal de fraqueza do diafragma, e o abaulamento
do abdome durante a expiração sugere edema pulmonar. O baqueteamento
dos dedos pode indicar fibrose pulmonar intersticial ou bronquiectasias, e
edema ou deformação articular, e as alterações compatíveis com doença de
Raynaud podem indicar uma doença vascular do colágeno, que também pode
causar doença pulmonar.
Os pacientes devem ser solicitados a caminhar enquanto o médico os
observa com oximetria de forma a reproduzir seus sintomas. O paciente deve
ser avaliado durante e após esforços quanto ao desenvolvimento de
anormalidades que não estavam presentes em repouso (p. ex., presença de
sibilos) e quanto às alterações na saturação de oxigênio.

EXAMES DE IMAGEM DO TÓRAX


Depois da história e do exame físico, as radiografias do tórax devem ser
realizadas se o diagnóstico ainda não estiver claro. Os volumes pulmonares
devem ser avaliados: hiperinsuflação é consistente com doença pulmonar
obstrutiva, enquanto volumes pulmonares reduzidos indicam edema ou
fibrose intersticial, disfunção diafragmática ou limitação dos movimentos da
parede torácica. O parênquima pulmonar deve ser examinado em busca de
indícios de doença intersticial, infiltrados e enfisema. A ampliação da
circulação pulmonar nas zonas superiores indica hipertensão venosa
pulmonar, enquanto a dilatação das artérias pulmonares centrais pode indicar
hipertensão arterial pulmonar. Um aumento da silhueta cardíaca pode sugerir
miocardiopatia dilatada ou doença valvar. Os derrames pleurais bilaterais são
típicos da ICC e de alguns tipos de doença do colágeno vascular. Os
derrames unilaterais sugerem carcinoma e embolia pulmonar, mas também
ocorrem nos pacientes com insuficiência cardíaca ou no caso de derrame
parapneumônico. Em geral, a tomografia computadorizada (TC) do tórax é
reservada para a avaliação mais detalhada do parênquima pulmonar (doença
pulmonar intersticial) e da possibilidade de embolia pulmonar, se ainda
houver incerteza quanto ao diagnóstico.

EXAMES LABORATORIAIS
Os exames laboratoriais iniciais devem incluir um hematócrito para excluir
anemia oculta como causa subjacente de redução da capacidade de transporte
de oxigênio contribuindo para a dispneia, e um painel metabólico básico
pode ser útil para excluir acidose metabólica significativa subjacente (e, de
modo inverso, uma elevação no bicarbonato pode apontar para a
possibilidade de retenção de dióxido de carbono, que pode ser vista na
insuficiência respiratória crônica - em tais casos, uma gasometria arterial
pode ser útil para informações adicionais). Outros exames laboratoriais
devem incluir eletrocardiograma, para pesquisar evidências de hipertrofia
ventricular e infarto do miocárdio prévio, e espirometria que pode
diagnosticar a presença de defeito ventilatório obstrutivo e sugerir a
possibilidade de um defeito ventilatório restritivo (isso poderia levar à
realização de outros testes de função pulmonar, incluindo volumes
pulmonares, capacidade de difusão e possíveis testes da função
neuromuscular). A ecocardiografia está indicada para os pacientes com
suspeita de disfunção sistólica, hipertensão pulmonar ou cardiopatia valvar.
Os testes de estimulação brônquica e/ou o monitoramento domiciliar do pico
de fluxo (peak flow) podem ser úteis em pacientes com sintomas
intermitentes sugestivos de asma, mas com exame físico e espirometria
normais; até um terço dos pacientes com diagnóstico clínico de asma não
apresentam doença reativa das vias aéreas quando são testados formalmente.
A medida dos níveis de peptídeo natriurético cerebral sérico é cada vez mais
usada para avaliar ICC em pacientes com dispneia aguda, mas eles podem
estar elevados também na presença de sobrecarga ventricular direita.

DIFERENCIAÇÃO ENTRE DISPNEIAS DE ETIOLOGIA


CARDIOVASCULAR E RESPIRATÓRIA
Se um paciente tem evidências de doença pulmonar e cardíaca que não
respondem ao tratamento, ou se ainda não está claro quais fatores,
primariamente, estão causando a dispneia, um teste de esforço
cardiopulmonar (TECP) pode ser realizado para determinar qual sistema é
responsável pela limitação aos exercícios. O TECP inclui esforço crescente
limitado pelos sintomas (bicicleta ou esteira) com medidas de ventilação e
trocas gasosas pulmonares e, em alguns casos, inclui medidas não invasivas e
invasivas de pressões vasculares pulmonares e do débito cardíaco. No nível
máximo de esforço, se o paciente alcançar a ventilação máxima prevista,
apresentar ampliação do espaço morto ou hipoxemia ou desenvolver
broncospasmo, o sistema respiratório pode ser a causa do problema. Por
outro lado, se a frequência cardíaca for > 85% do valor máximo previsto, se
o limiar anaeróbio for alcançado precocemente, se a pressão arterial
aumentar excessivamente ou diminuir durante o exercício, se o pulso de O2
(relação entre consumo de O2/frequência cardíaca, um indicador do volume
sistólico) diminuir ou se surgirem alterações isquêmicas no
eletrocardiograma, a explicação provável para o desconforto respiratório é
um distúrbio do sistema cardiovascular. Além disso, um TECP também pode
ajudar a indicar um déficit de extração periférica ou uma doença
metabólica/neuromuscular como processo subjacente potencial para a
dispneia.

TRATAMENTO
Dispneia
O primeiro objetivo é corrigir a(s) etiologia(s) subjacente(s) causadora(s) da dispneia, abordando as causas
potencialmente reversíveis com o tratamento apropriado para determinada condição. Pode haver
necessidade de múltiplas intervenções diferentes, pois a dispneia costuma ter causas multifatoriais. Se o seu
alívio com o tratamento da condição subjacente não for completamente possível, deve-se tentar reduzir a
intensidade dos sintomas e seus efeitos sobre a qualidade de vida do paciente. Apesar da maior
compreensão dos mecanismos subjacentes da dispneia, houve progresso limitado nas estratégias
terapêuticas para ela. É necessário administrar O2 suplementar se a saturação de O2 em repouso for ≤ 88%
ou se a saturação do paciente cair para esse patamar durante a atividade ou o sono. Em particular, para
pacientes com DPOC, foi demonstrado que o oxigênio suplementar para aqueles com hipoxemia melhora as
taxas de mortalidade, e os programas de reabilitação pulmonar demonstraram efeitos positivos sobre a
dispneia, a capacidade de exercício e as taxas de hospitalização. Foi demonstrado que os opioides reduzem
os sintomas de dispneia, em grande parte por reduzir a sensação de falta de ar e, assim, provavelmente
suprimindo o drive respiratório e influenciando a atividade cortical. Porém, os opioides devem ser
considerados para cada paciente individualmente com base no perfil de risco-benefício com relação aos
efeitos de depressão respiratória. Os estudos de ansiolíticos para dispneia não demonstraram benefício
consistente. Abordagens adicionais estão sendo estudadas para a dispneia, incluindo a inalação de
furosemida que pode alterar a informação sensitiva aferente.

Agradecimento Agradecemos as contribuições prévias de Richard M.


Schwartzstein.

LEITURAS ADICIONAIS
Banzett RB et al: Multidimensional dyspnea profile: An instrument for clinical
and laboratory research. Eur Respir J 45:1681, 2015.
Laviolette L, Laveneziana P on behalf of the ERS Research Seminar Faculty:
Dyspnoea: A multidimensional and multidisciplinary approach. Eur Respir
J 43:1750, 2014.
Parshall MB et al: An Official American Thoracic Society Statement: Update on
the mechanisms, assessment, and management of dyspnea. Am J Respir
Crit Care Med 185:435, 2012.
Wahls SA: Causes and evaluation of chronic dyspnea. Am Fam Physician
86:173, 2012.
34
Tosse
Christopher H. Fanta

A tosse desempenha uma função protetora essencial para as vias aéreas e os


pulmões humanos. Sem um reflexo de tosse efetivo, nós corremos o risco de
reter secreções e material aspirado nas vias aéreas, predispondo a infecção,
atelectasia e comprometimento respiratório. No outro extremo, a tosse excessiva
pode ser cansativa; pode ser complicada por vômito, síncope, dor muscular ou
fraturas nas costelas; e pode agravar a lombalgia, as hérnias inguinais ou
abdominais e a incontinência urinária; e pode ser um impedimento importante
para as interações sociais. A tosse é, muitas vezes, um indício da presença de
doença respiratória. Em muitas ocasiões, ela é uma manifestação esperada e
aceita da doença, como durante uma infecção aguda do trato respiratório.
Contudo, a tosse persistente na ausência de outros sintomas respiratórios leva
comumente os pacientes a procurarem auxílio médico.

MECANISMO DA TOSSE
A tosse espontânea é desencadeada por estimulação de terminações nervosas
sensitivas que se acredita serem primariamente fibras C e receptores de
adaptação rápida. Estímulos químicos (p. ex., capsaicina) e mecânicos (p. ex.,
partículas de poluição no ar) podem iniciar o reflexo da tosse. Um canal de íon
catiônico – o receptor de potencial transitório vaniloide 1 (TRPV1) – encontrado
nos receptores de adaptação rápida e fibras C é o receptor para a capsaicina, e
sua expressão é aumentada em pacientes com tosse crônica. As terminações
nervosas aferentes inervam de forma abundante a faringe, a laringe e as vias
aéreas ao nível dos bronquíolos terminais e se estendem para o parênquima
pulmonar. Elas também podem ser encontradas no meato acústico externo (o
ramo auricular do nervo vago ou nervo de Arnold) e no esôfago. Os sinais
sensitivos viajam por meio dos nervos vago e laríngeo superior para uma região
do tronco encefálico no núcleo do trato solitário, vagamente identificado como o
“centro da tosse”. O reflexo da tosse envolve uma série altamente orquestrada de
ações musculares involuntárias, também com o potencial de ativação a partir das
vias corticais. As pregas vocais aduzem, levando à oclusão transitória das vias
aéreas superiores. Os músculos expiratórios contraem, gerando pressões
intratorácicas positivas de até 300 mmHg. Com a liberação súbita da contração
laríngea, fluxos expiratórios rápidos são gerados, excedendo o “envelope”
normal do fluxo expiratório máximo visto na curva de fluxo-volume (Fig. 34-1).
A contração do músculo liso brônquico, junto com a compressão dinâmica das
vias aéreas, estreita os lumens das vias aéreas e maximiza a velocidade de
exalação. A energia cinética disponível para desalojar o muco da parte interna
das paredes das vias aéreas é diretamente proporcional ao quadrado da
velocidade do fluxo expiratório. Uma respiração profunda que precede uma
tosse otimiza a função dos músculos expiratórios; uma série de tossidas repetidas
em volumes pulmonares sucessivamente mais baixos limpa o ponto de
velocidade expiratória máxima progressivamente mais para a periferia pulmonar.

FIGURA 34-1 Curva de fluxo-volume mostra picos de fluxo expiratório alto atingidos com a tosse.

TOSSE INEFICAZ
A tosse fraca ou ineficaz compromete a capacidade de limpar as secreções do
trato respiratório inferior, predispondo a infecções mais graves e a suas sequelas.
Fraqueza ou paralisia dos músculos expiratórios (abdominais e intercostais) e
dor na parede torácica ou abdominal estão no topo da lista de causas da tosse
ineficaz (Tab. 34-1). A força da tosse é, em geral, avaliada qualitativamente; o
pico do fluxo expiratório ou a pressão expiratória máxima na boca pode ser
usado como um marcador substituto para a força da tosse. Vários dispositivos e
técnicas de assistência foram desenvolvidos para melhorar a força da tosse,
variando de simples (imobilização dos músculos abdominais com um travesseiro
firmemente preso para reduzir a dor pós-operatória enquanto se tosse) a
complexos (dispositivo mecânico de auxílio à tosse aplicado via máscara facial
ou tubo traqueal que aplica um ciclo de pressão positiva seguida rapidamente por
pressão negativa). A tosse pode não conseguir limpar as secreções apesar da
capacidade preservada de gerar velocidades expiratórias normais; tal
incapacidade pode se dever a secreções anormais das vias aéreas (p. ex.,
bronquiectasia devido à fibrose cística) ou a anormalidades estruturais das vias
aéreas (p. ex., traqueomalacia com colapso respiratório excessivo da traqueia
durante a tosse).

TABELA 34-1 ■ Causas de tosse ineficaz


Força reduzida da musculatura ventilatória
Dor na parede torácica ou abdominal
Deformidade da parede torácica (p. ex., cifoescoliose grave)
Fechamento glótico prejudicado ou traqueostomia
Traqueobroncomalácia
Secreções anormais nas vias aéreas
Depressão respiratória central (p. ex., anestesia, sedação ou coma)

TOSSE SINTOMÁTICA
A tosse pode ocorrer no contexto de outros sintomas respiratórios que, juntos,
conduzem a um diagnóstico, como quando a tosse é acompanhada por sibilância,
dificuldade de respirar e aperto no toráx após a exposição a um gato ou outras
fontes de alergia que sugiram asma. Às vezes, contudo, a tosse é o sintoma
dominante ou único da doença e pode ser de duração e gravidade suficientes
para que o alívio seja buscado. A duração da tosse é a pista para sua etiologia,
pelo menos retrospectiva. A tosse aguda (< 3 semanas) é mais comumente
devida a uma infecção do trato respiratório, aspiração ou inalação de agentes
químicos nocivos ou fumaça. A tosse subaguda (3-8 semanas de duração) é um
sintoma residual comum de traqueobronquite, como na tosse pós-infecciosa por
pertússis ou por vírus. A tosse crônica (> 8 semanas) pode ser causada por uma
ampla variedade de doenças cardiopulmonares, incluindo aquelas de etiologias
inflamatórias, infecciosas, neoplásicas e cardiovasculares. Quando a avaliação
inicial com exame físico e radiografia torácica for normal, a tosse variante de
asma, o refluxo gastresofágico, o gotejamento pós-nasal e medicações
(inibidores da enzima conversora de angiotensina [ECA]) são as causas
identificáveis mais comuns de tosse crônica. Em um tabagista de longa data,
uma tosse produtiva no início da manhã sugere bronquite crônica. Uma tosse
seca e irritativa que dura > 2 meses após uma ou mais infecções do trato
respiratório (“tosse pós-bronquite”) é uma causa muito comum de tosse crônica,
especialmente nos meses de inverno.

AVALIAÇÃO DA TOSSE CRÔNICA


Com exceção de nossa capacidade de detectar os ruídos do excesso de secreções
nas vias aéreas, detalhes como ressonância da tosse, o horário que ocorre durante
o dia e o padrão da tosse (p. ex., ocorrendo em paroxismos) com pouca
frequência fornecem indicações etiológicas úteis. Independentemente da causa, a
tosse muitas vezes piora quando a pessoa se deita à noite, quando conversa ou
em associação com hiperpneia do exercício; ela frequentemente melhora com o
sono. Uma exceção pode envolver a tosse que ocorre com a exposição apenas a
determinados alérgenos ou com o exercício no ar frio como na asma. As
perguntas úteis na anamnese incluem as circunstâncias que cercam o início da
tosse, o que torna a tosse melhor ou pior e se a tosse produz ou não escarro.
O exame físico procura pistas sobre a presença de doença cardiopulmonar,
incluindo achados como sibilância ou crepitações no exame torácico. O exame
dos canais auditivos e das membranas timpânicas (para irritação da membrana
timpânica resultante da estimulação do nervo de Arnold), os percursos nasais
(para rinite ou pólipo) e as unhas (para baqueteamento) também podem fornecer
pistas etiológicas. Como a tosse pode ser uma manifestação de uma doença
sistêmica, como sarcoidose ou vasculite, um exame geral minucioso é
igualmente importante.
Em quase todos os casos, a avaliação da tosse crônica merece uma
radiografia torácica. A lista das doenças que podem causar tosse persistente sem
outros sintomas e sem anormalidade detectável no exame físico é longa. Ela
inclui doenças graves, como sarcoidose ou doença de Hodgkin em adultos
jovens, câncer pulmonar em pacientes idosos e tuberculose pulmonar (no mundo
todo). Uma radiografia torácica anormal leva à avaliação objetivando a
explicação da anormalidade radiológica. Em um paciente com tosse produtiva
crônica, o exame do escarro eliminado é necessário, pois a determinação da
causa da hipersecreção de muco é de importância fundamental. O escarro de
aparência purulenta deve ser enviado para uma cultura bacteriana de rotina e, em
determinadas circunstâncias, também para cultura micobacteriana. O exame
citológico do escarro mucoide pode ser útil para avaliar a possibilidade de câncer
e de aspiração orofaríngea e para distinguir a bronquite neutrofílica da
eosinofílica. A expectoração de sangue – seja estrias de sangue, sangue
misturado com secreções das vias aéreas ou sangue puro – merece uma
abordagem especial para avaliação e manejo.

TOSSE CRÔNICA COM RADIOGRAFIA TORÁCICA NORMAL


É comumente dito que o uso de um inibidor da ECA (isolado ou em
combinação), gotejamento pós-nasal, refluxo gastresofágico e asma são
responsáveis por mais de 90% dos casos de tosse crônica com uma radiografia
torácica normal ou não conclusiva. Contudo, a experiência clínica não sustenta
essa afirmação e a adesão estrita a esse conceito desencoraja a procura de
explicações alternativas por médicos e pesquisadores. Nos últimos anos, surgiu o
conceito de uma “síndrome de tosse por hipersensibilidade” distinta, enfatizando
o provável papel de terminações nervosas sensitivas e de via neurais aferentes
sensibilizadas como causa de tosse crônica refratária, da mesma maneira que na
dor neuropática crônica. Ela se apresenta com tosse seca ou minimamente
produtiva e um pigarro ou sensibilidade na garganta, o qual piora ao falar, rir ou
fazer exercícios. É mais comum em mulheres do que em homens e pode durar
anos. Ainda não há critérios diagnósticos específicos; o diagnóstico é suspeitado
quando as etiologias alternativas são excluídas pelos exames ou não
responderam aos testes terapêuticos. Não está claro se a tosse diária persistente
desencadeia uma resposta inflamatória e acaba se autoperpetuando.
A tosse induzida por um inibidor da ECA ocorre em 5 a 30% dos pacientes
que tomam esses agentes e não é dose-dependente. A ECA metaboliza a
bradicinina e outras taquicininas, como a substância P. O mecanismo da tosse
associada a um inibidor da ECA pode envolver sensibilização das terminações
nervosas sensitivas devido ao acúmulo de bradicinina. Qualquer paciente com
tosse crônica, inexplicada, que estiver tomando um inibidor da ECA deve
receber um período de teste sem a medicação, independentemente do momento
do início da tosse relativo ao início da terapia com inibidor da ECA. Na maioria
dos casos, uma alternativa segura está disponível; bloqueadores de receptores de
angiotensina não causam tosse. A falha em observar uma diminuição na tosse
após 1 mês sem medicação é um forte argumento contra o diagnóstico. O
gotejamento pós-nasal de qualquer etiologia pode causar tosse como resposta ao
estímulo de receptores sensitivos da via de reflexo da tosse na hipofaringe ou
aspiração de secreções drenadas na traqueia. As pistas que sugerem essa
etiologia incluem gotejamento pós-nasal, limpeza frequente da garganta, espirros
e rinorreia. No exame de espéculo do nariz, pode-se ver o excesso de secreções
mucoides ou purulentas, mucosa nasal inflamada e edematosa e/ou pólipos; além
disso, secreções ou uma aparência de pavimentação na mucosa junto à parede
faríngea posterior pode ser vista. Infelizmente, não há meio de quantificar a
drenagem pós-nasal. Em muitas ocasiões, esse diagnóstico deve ser baseado na
informação subjetiva fornecida pelo paciente. Essa avaliação deve também ser
contrabalançada pelo fato de que muitas pessoas que apresentam gotejamento
pós-nasal crônica não têm tosse.
Ligar o refluxo gastresofágico à tosse crônica impõe desafios similares.
Parece que o refluxo dos conteúdos gástricos no esôfago inferior pode
desencadear a tosse por meio de vias reflexas iniciadas na mucosa esofágica. O
refluxo no nível da faringe (refluxo laringofaríngeo), com aspiração consequente
de conteúdos gástricos, ocasiona uma bronquite química e possivelmente
pneumonite que pode provocar tosse por dias após o evento, mas é um achado
raro entre pessoas com tosse crônica. A queimação retroesternal após as
refeições ou no repouso, eructação frequente, rouquidão e dor na garganta
podem ser indicativos de refluxo gastresofágico. Todavia, o refluxo pode
também provocar pouco ou nenhum sintoma. A inflamação da glote detectada na
laringoscopia pode ser uma manifestação de refluxo recorrente no nível da
garganta, mas isso é um achado não específico. A quantificação da frequência e
do nível do refluxo requer um procedimento um tanto invasivo para medir o pH
esofágico (um cateter com sonda de pH colocada por via nasofaríngea no
esôfago por 24 horas ou colocação endoscópica de uma cápsula
radiotransmissora no esôfago) e, com as técnicas mais recentes, o refluxo não
ácido. A interpretação precisa dos resultados dos testes que permite uma ligação
etiológica entre eventos de refluxo e tosse permanece controversa. Assim,
atribuir a causa da tosse ao refluxo gastresofágico deve ser ponderado contra a
observação de que muitas pessoas com refluxo sintomático não apresentam tosse
crônica.
A tosse isolada enquanto manifestação da asma é comum entre crianças,
mas não entre os adultos. A tosse devida à asma na ausência de sibilância,
dificuldade de respiração e opressão torácica é referida como “asma tosse-
variante”. Uma história sugestiva de asma tosse-variante liga o início da tosse
aos desencadeadores típicos da asma e a sua resolução com a retirada da
exposição a eles. O teste objetivo pode estabelecer o diagnóstico de asma
(obstrução do fluxo aéreo na espirometria que varia com o passar do tempo ou
reverte em resposta a um broncodilatador) ou excluí-lo com convicção (resposta
negativa a um desafio de broncoprovocação, como a metacolina). Em um
paciente capaz de realizar medidas confiáveis, a monitoração doméstica do fluxo
expiratório máximo pode ser um método custo-efetivo para sustentar ou afastar
um diagnóstico de asma.
A bronquite eosinofílica crônica causa tosse crônica com uma radiografia
torácica normal. Essa condição é caracterizada por mais de 3% de eosinofilia no
escarro sem obstrução das vias aéreas ou capacidade de resposta brônquica
exacerbada e é tratada de modo satisfatório com de glicocorticoides inalatórios.
O tratamento da tosse crônica em um paciente com uma radiografia torácica
normal é muitas vezes empírico e visa as causas mais prováveis de tosse, como
determinado pela história, pelo exame físico e possivelmente pela prova de
função pulmonar. A terapia para o gotejamento pós-nasal depende da etiologia
presumida (infecção, alergia ou rinite vasomotora) e pode incluir anti-
histamínicos sistêmicos; descongestionantes; antibióticos; irrigação de solução
salina nasal e sprays de bomba nasal com glicocorticoides, anti-histamínicos ou
anticolinérgicos. Antiácidos, antagonistas do receptor de histamina tipo 2 (H2) e
inibidores da bomba de próton são usados para neutralizar ou diminuir a
produção de ácido gástrico na doença do refluxo gastresofágico; mudanças
alimentares, elevação da cabeça e do tronco durante o sono e medicações para
melhorar o esvaziamento gástrico são medidas terapêuticas adicionais. A asma
tosse-variante responde bem aos glicocorticoides inalatórios e ao uso
intermitente de broncodilatadores β-agonistas inalatórios.
Os pacientes que não respondem ao tratamento das causas comuns da tosse
ou que tiveram essas causas excluídas pelo teste diagnóstico apropriado devem
se submeter à tomografia computadorizada (TC) do tórax. Exemplos de doenças
que causam tosse que podem não ser detectadas pela radiografia torácica
incluem tumores, doença pulmonar intersticial inicial, bronquiectasia e infecção
pulmonar micobacteriana atípica. Por outro lado, os pacientes com tosse crônica
que apresentam exames torácicos, função pulmonar, oximetria e imagem por TC
torácica normais podem ser tranquilizados quanto à ausência de patologia
pulmonar grave.

CONSIDERAÇÕES GLOBAIS
A exposição regular à poluição do ar pode causar tosse e pigarro crônicos,
bem como doença do trato respiratório inferior. Fumaça de combustíveis
para cozinha doméstica e sistema de aquecimento em locais com ventilação
inadequada; exposições tóxicas em ambientes de trabalho sem a implementação
de padrões de segurança ocupacional; e substâncias químicas e particuladas em
ambientes externos altamente poluídos são formas de poluição do ar que causam
tosse. Há poucas opções terapêuticas disponíveis; o tratamento se concentra na
melhora da qualidade do ar ambiente (p. ex., uso de chaminé para o forno
doméstico), na remoção da exposição e no uso de máscara facial apropriada.

TRATAMENTO SINTOMÁTICO DA TOSSE


O tratamento empírico da tosse crônica idiopática com corticosteroides
inalatórios, broncodilatadores anticolinérgicos inalatórios e antibióticos
macrolídeos tem sido tentado sem um sucesso consistente. Os supressores da
tosse atualmente disponíveis são apenas modestamente efetivos. Mais potentes
são os narcóticos supressores da tosse, como codeína ou hidrocodona, que
parecem agir no “centro da tosse” no tronco encefálico. A tendência dos
narcóticos supressores da tosse de causar sonolência e constipação e seu
potencial para dependência limitam o apelo para seu uso em longo prazo. O
dextrometorfano é um inibidor da tosse vendido sem receita médica, que age
centralmente, com poucos efeitos colaterais e menor eficácia se comparado com
os narcóticos supressores da tosse. Ele parece ter um local de ação diferente dos
narcóticos supressores da tosse, podendo ser usado junto com eles, se necessário.
Considera-se que o benzonatato iniba a atividade neural dos nervos sensitivos na
via do reflexo de tosse. Ele geralmente não tem efeitos colaterais; contudo sua
efetividade na inibição da tosse é variável e imprevisível. As tentativas de tratar
a síndrome da tosse por hipersensibilidade têm se concentrado na inibição das
vias neurais. Pequenas séries de casos e ensaios clínicos randomizados têm
indicado benefício com o uso sem indicação formal (off-label) de gabapentina,
pregabalina ou amitriptilina. Estudos recentes sugerem um papel para
modificações comportamentais usando técnicas especializadas de
fonoaudiologia, mas a aplicação disseminada dessa modalidade ainda não está
em prática. Novos supressores da tosse sem as limitações dos agentes atualmente
disponíveis são muito necessários. As abordagens que estão sendo feitas incluem
o desenvolvimento de antagonistas do receptor da neurocinina, antagonistas de
canais iônicos TRPV1 e novos opioides e agonistas de receptores opioides.

LEITURAS ADICIONAIS
Brightling CE et al: Eosinophilic bronchitis as an important cause of chronic
cough. Am J Respir Crit Care Med 160:406, 1999.
Gibson PG, Vertigan AE: Management of chronic refractory cough. BMJ
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Kahrilas PJ et al: Chronic cough due to gastroesophageal reflux in adults:
CHEST Guideline and Expert Panel Report. Chest 150:1341, 2016.
Ramsay LE et al: Double-blind comparison of losartan, lisinopril and
hydrochlorothiazide in hypertensive patients with previous angiotensin
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Ryan NM et al: Gabapentin for refractory chronic cough: a randomized, double-
blind, placebo-controlled trial. Lancet 380:1583, 2012.
Smith JA, Woodcock A: Chronic cough. N Engl J Med 375:1544, 2016.
35
Hemoptise
Anna K. Brady, Patricia A. Kritek

A hemoptise é a expectoração de sangue pelo trato respiratório. A primeira etapa


na avaliação é definir se o sangue está vindo da árvore respiratória ou se ele se
origina das cavidades nasais (i.e., epistaxe) ou do trato gastrintestinal (i.e.,
hematêmese), pois as terapias para essas etiologias serão significativamente
diferentes. Após definida como hemoptise, a natureza exata da expectoração é
importante, pois o termo pode ser aplicado para escarro sanguinolento, secreção
rosada e espumosa do edema pulmonar ou sangramento franco. As próximas
etapas incluem a identificação da fonte e a etiologia do sangramento.
ANATOMIA E FISIOLOGIA DA HEMOPTISE
A hemoptise pode se originar de qualquer local no trato respiratório; da glote até
o alvéolo. Mais comumente, o sangramento se origina nos brônquios ou nas vias
aéreas de médio calibre, mas costuma ser necessária uma avaliação completa de
toda a árvore respiratória.
Uma característica única do pulmão e que predispõe à hemoptise de
intensidade variável é o seu duplo suprimento sanguíneo – as circulações
pulmonar e brônquica. A primeira é um sistema de baixa pressão que é
fundamental para as trocas gasosas ao nível dos alvéolos; em contraste, as
artérias brônquicas se originam da aorta e estão sob a pressão sistêmica. As
artérias brônquicas suprem as vias aéreas e têm a capacidade de fazer a
neovascularização de tumores, dilatar as vias aéreas de bronquiectasias e as
lesões cavitárias. A maioria dos casos de hemoptise se deve a vasos na
circulação brônquica e está, dessa forma, sob a pressão sistêmica, o que dificulta
a interrupção do sangramento.
ETIOLOGIA
A hemoptise comumente resulta de infecção, câncer ou doença vascular; porém,
o diagnóstico diferencial do sangramento da árvore respiratória é variado e
amplo.

Infecções A maioria dos escarros sanguinolentos e das hemoptises de pequeno


volume se deve a bronquites virais. Os pacientes com bronquite crônica têm
risco de superinfecção bacteriana com microrganismos como Streptococcus
pneumoniae, Haemophilus influenzae ou Moraxella catarrhalis, aumentando a
inflamação da via aérea e o potencial para sangramento. Da mesma forma, os
pacientes com bronquiectasia estão propensos à hemoptise com as exacerbações
da doença. Devido a infecções bacterianas recorrentes, as vias aéreas com
bronquiectasia ficam dilatadas, inflamadas e altamente vascularizadas, sendo
supridas pela circulação brônquica. Em várias séries de casos, a bronquiectasia é
a principal causa de hemoptise maciça e morte subsequente.
A tuberculose vinha sendo, há muito tempo, a causa mais comum de
hemoptise no mundo todo, mas foi agora ultrapassada pela bronquite e pelas
bronquiectasias nos países industrializados. Em pacientes com tuberculose, o
desenvolvimento de doença cavitária é frequentemente a fonte do sangramento,
mas complicações mais raras como a erosão de um aneurisma de artéria
pulmonar dentro de uma cavidade preexistente (i.e., aneurisma de Rasmussen)
também pode ser a fonte.
Outros agentes infecciosos, como fungos endêmicos, Nocardia e
micobactérias não tuberculosas, podem se apresentar como doença pulmonar
cavitária complicada por hemoptise. Além disso, espécies de Aspergillus podem
evoluir para micetomas dentro de cavidades preexistentes, com
neovascularização desses espaços inflamados levando ao sangramento.
Abscessos pulmonares e pneumonia necrosante podem causar sangramento pela
desvitalização do parênquima pulmonar. Os microrganismos comumente
responsáveis incluem Staphylococcus aureus, Klebsiella pneumoniae e
anaeróbios orais.
A paragonimíase pode simular a tuberculose e é outra causa significativa de
hemoptise a nível global; ela é comum no sudeste da Ásia e na China,
embora tenham sido relatados casos na América do Norte a partir da ingestão de
lagostins crus. Ela deve ser considerada como causa de hemoptise em pessoas
que recentemente emigraram de áreas endêmicas.
Vasculares A hemoptise comumente resulta de edema pulmonar por elevação da
pressão diastólica final do ventrículo esquerdo. Embora a descrição clássica do
escarro expectorado no edema pulmonar seja “rosado e espumoso”, pode-se ver
um espectro de hemoptise que inclui o sangue vivo.
Uma embolia pulmonar com infarto do parênquima pode se apresentar com
hemoptise, embora a maioria dos êmbolos pulmonares não cause hemoptise e
apresente outros sinais e sintomas. Um vaso ectásico em uma via aérea ou uma
malformação arteriovenosa pulmonar pode ser uma fonte de sangramento.
Embora rara, a ruptura de uma fístula aortobrônquica pode resultar em
sangramento maciço e morte súbita; essas fístulas surgem em casos de patologia
aórtica, como aneurisma ou pseudoaneurisma, podendo causar pequenos
episódios de sangramento que prenunciam a hemoptise maciça.
A hemorragia alveolar difusa (HAD), apesar de causar sangramento
significativo no parênquima pulmonar, é uma causa incomum de hemoptise. A
HAD é causada por uma variedade de processos, incluindo capilarite
imunomediada por doenças como lúpus eritematoso sistêmico, transplante de
células-tronco e toxicidade por cocaína e outras substâncias inalatórias. As
chamadas síndromes “pulmonares-renais”, incluindo granulomatose com
poliangeíte e doença antimembrana basal glomerular, podem levar a hemoptise e
hematúria (embora possam apresentar uma das manifestações sem a outra). A
HAD comumente se apresenta com anemia e opacidades difusas em vidro fosco
nos exames de imagem, de modo que a ausência de hemoptise não exclui o
diagnóstico.

Neoplasia maligna O carcinoma broncogênico de qualquer histologia é uma


causa comum de hemoptise (tanto maciça quanto não maciça) nas séries
modernas de casos publicadas. A hemoptise costuma indicar envolvimento das
vias aéreas pelo tumor e pode ser um sintoma de apresentação de tumores
carcinoides, lesões vasculares que frequentemente surgem nas vias aéreas
proximais. Os carcinomas de pequenas células e de células escamosas costumam
ser centrais e têm mais chance de causar erosão dos vasos pulmonares principais,
resultando em hemoptise maciça. As metástases pulmonares de tumores
distantes (p. ex., melanoma, sarcoma, adenocarcinomas de mama e cólon)
também podem causar sangramento. O sarcoma de Kaposi, visto na síndrome da
imunodeficiência adquirida avançada, é muito vascularizado e pode surgir em
qualquer lugar ao longo do trato respiratório – dos brônquios até a cavidade oral.
Causas mecânicas e outras Além de infecção, doença vascular e câncer, outros
processos patológicos do sistema pulmonar podem causar hemoptise. A
endometriose pulmonar causa sangramento cíclico, conhecido como hemoptise
catamenial. A aspiração de corpos estranhos pode levar à irritação da via aérea e
ao sangramento. Procedimentos diagnósticos e terapêuticos são também
potenciais causas: a estenose de veia pulmonar pode resultar de procedimentos
em átrio esquerdo, como o isolamento de veia pulmonar, e os cateteres de artéria
pulmonar podem causar ruptura da artéria pulmonar se o balonete distal for
mantido insuflado. Por fim, em casos de trombocitopenia, coagulopatia,
anticoagulação ou terapia antiplaquetária, mesmo processos menores podem
causar hemoptise.

AVALIAÇÃO E MANEJO
História A primeira etapa na avaliação da hemoptise é determinar a quantidade
ou a intensidade do sangramento. A descrição que o paciente faz do escarro (p.
ex., raias de sangue, tingidas de rosa, sangue vivo ou coágulos) é útil se não for
possível examiná-lo. Uma abordagem ao manejo da hemoptise é descrita na Fig
ura 35-1.

FIGURA 35-1 Abordagem ao manejo da hemoptise. HC, hemograma completo; TC, tomografia
computadorizada; RXT, radiografia de tórax; EAS, exame de urina.
É fundamental determinar se a quantidade de sangue eliminado é maciça;
embora não exista um volume definido para isso, a perda de 400 mL de sangue
em 24 horas ou de 100 a 150 mL expectorados em uma única vez são
consideradas hemoptise maciça. Esses números derivam do volume da árvore
traqueobrônquica (geralmente 100-200 mL). Essa determinação é clinicamente
importante, pois os pacientes raramente morrem de exsanguinação e, em vez
disso, têm risco de morte por asfixia pelo sangue preenchendo as vias e espaços
aéreos. A maioria dos pacientes não consegue descrever o volume de sua
hemoptise em mL, de modo que pode ser útil o uso de referenciais como xícaras
(uma xícara tem cerca de 236 mL). Felizmente, a hemoptise maciça só ocorre
em 5 a 15% dos casos de hemoptise.
A anamnese cuidadosa pode apontar a causa da hemoptise. Febre, calafrios
ou antecedente de tosse podem sugerir infecção. Uma história de tabagismo ou
de perda ponderal não intencional aumenta a chance de câncer. Os pacientes
devem ser questionados sobre exposições inalatórias. Deve-se obter uma
anamnese abrangente com atenção especial para doença pulmonar crônica, e o
médico deve determinar a presença de fatores de risco para câncer e doença
pulmonar bronquiectásica (p. ex., fibrose cística, sarcoidose).

Exame físico A revisão dos sinais vitais é uma primeira etapa importante. A
presença de hipoxemia, taquipneia e taquicardia devem aumentar a preocupação.
Os médicos devem examinar as cavidades oral e nasal; observar o padrão
respiratório do paciente com atenção especial para qualquer sofrimento
respiratório; e fazer a ausculta pulmonar. O baqueteamento digital pode sugerir
doença pulmonar subjacente, como câncer de pulmão ou fibrose cística. Sinais
de diátese hemorrágica (p. ex., equimoses e petéquias em pele e mucosas) ou
telangiectasias podem sugerir outras predisposições à hemoptise.

Exames diagnósticos Os exames iniciais devem incluir a mensuração do


hemograma completo para avaliação de infecção, anemia ou trombocitopenia, os
parâmetros de coagulação, a avaliação de eletrólitos e de função renal, além de
exame comum de urina para excluir doença pulmonar-renal.
Em pacientes com hemoptise de pequeno volume, pode-se realizar uma
avaliação ambulatorial. Todos os pacientes com hemoptise devem fazer exame
de imagem do tórax. Uma radiografia de tórax costuma ser obtida primeiro,
embora ela frequentemente não localize o sangramento e possa parecer normal.
Em pacientes sem fatores de risco para câncer e com radiografia de tórax
normal, o tratamento para bronquite e a garantia de acompanhamento cuidadoso
é uma estratégia razoável, com nova avaliação diagnóstica se o sangramento
persistir.
Em contraste, os pacientes com fatores de risco para câncer (i.e., idade > 40
ou história de tabagismo) devem realizar exames adicionais. Primeiro, a
tomografia computadorizada (TC) de tórax deve ser realizada para melhor
identificar massas, bronquiectasias e lesões parenquimatosas. Após a TC, uma
broncoscopia flexível deve ser realizada para excluir carcinoma broncogênico a
menos que os exames de imagem revelem uma lesão que possa ser biopsiada
sem broncoscopia. Pequenas séries de casos mostram que os pacientes com
hemoptise e broncoscopias normais têm bons desfechos clínicos.

Intervenções Quando a quantidade de hemoptise é maciça, há três objetivos


simultâneos: primeiro, proteger o pulmão que não está sangrando; segundo,
localizar o foco de sangramento; e terceiro, controlar o sangramento.
A proteção da via aérea e do pulmão sem sangramento é de fundamental
importância no manejo da hemoptise maciça, pois a asfixia pode ocorrer
rapidamente. Se o lado do sangramento for conhecido, o paciente deve ser
posicionado com o lado sangrante para baixo, a fim de usar a vantagem
gravitacional para manter o sangue fora do pulmão que não está sangrando. A
intubação endotraqueal deve ser evitada, a menos que seja verdadeiramente
necessária, pois a aspiração através de um tubo endotraqueal é uma forma menos
efetiva de remover sangue e coágulos em comparação com o reflexo da tosse. Se
a intubação for necessária, deve-se proteger o pulmão não sangrante por meio da
intubação seletiva de um pulmão (i.e., do pulmão sem sangramento) ou da
inserção de um tubo endotraqueal de duplo lúmen.
A localização do ponto de sangramento algumas vezes é evidente, mas, com
frequência, pode ser difícil determinar a fonte da hemoptise. A radiografia de
tórax, se mostrar opacidades novas, pode ser útil na localização do lado do
sangramento, embora esse teste não seja, por si só, adequado. A angiotomografia
ajuda a localizar o extravasamento ativo. A broncoscopia flexível pode ser útil
para a identificação do lado sangrante (embora tenha apenas 50% de chance de
localizar o local). Os especialistas não chegam a um consenso sobre o momento
para a broncoscopia, embora em alguns casos – na fibrose cística, por exemplo –
a broncoscopia não seja recomendada, pois pode retardar o manejo definitivo.
Por fim, passar direto para a angiografia também é uma estratégia razoável, pois
ela traz possibilidades diagnósticas e terapêuticas.
O controle do sangramento durante um episódio de hemoptise maciça pode
ser obtido com uma de três maneiras: a partir do lúmen da via aérea, a partir do
vaso sanguíneo envolvido ou por meio de ressecção cirúrgica da via aérea e do
vaso envolvidos. As medidas broncoscópicas costumam ser apenas temporárias:
um broncoscópio flexível pode ser usado para aspiração de coágulos e para
inserir um cateter com balonete que oclua a via aérea envolvida. A broncoscopia
rígida, realizada por um pneumologista intervencionista ou cirurgião torácico,
pode permitir intervenções terapêuticas de lesões da via aérea, como a
fotocoagulação e o cautério. Como a maioria das hemoptises maciças se origina
na circulação brônquica, a embolização de artéria brônquica é o procedimento de
escolha para o controle da hemoptise maciça. Ela não é isenta de riscos – a
embolização da artéria espinal anterior é uma complicação conhecida –, mas
costuma ser bem-sucedida em curto prazo, com taxa de sucesso > 80% para
controle imediato do sangramento, embora o sangramento possa recorrer se a
doença subjacente (p. ex., micetoma) não for tratada. A ressecção cirúrgica tem
alta taxa de mortalidade (até 15-40%) e não deve ser tentada a menos que as
medidas iniciais tenham falhado e o sangramento continue. Os candidatos ideais
para a cirurgia têm doença localizada e parênquima pulmonar normal sob outros
aspectos.

LEITURAS ADICIONAIS
Adelman M et al: Cryptogenic hemoptysis: Clinical features, bronchoscopic
findings, and natural history in 67 patients. Ann Int Med 102:829, 1985.
Flume PA et al: CF pulmonary guidelines. Pulmonary complications:
Hemoptysis and pneumothorax. AJRCCM 182:298, 2010.
Hirshberg B et al: Hemoptysis: Etiology, evaluation, and outcome in a tertiary
care hospital. Chest 112:440, 1997.
Johnson JL: Manifestations of hemoptysis: How to manage minor, moderate, and
massive bleeding. Postgrad Med 112:4:101, 2002.
Lordan JL et al: The pulmonary physician in critical care: Illustrative case 7.
Assessment and management of massive hemoptysis. Thorax 58:814, 2003.
Sopko DR, Smith TP: Bronchial artery embolization for massive hemoptysis.
Semin Intervent Radiol 28:48, 2011.
36
Hipoxia e cianose
Joseph Loscalzo
HIPOXIA
O principal propósito do sistema cardiorrespiratório é transportar O2 e nutrientes
para as células e remover o CO2 e outros produtos metabólicos delas. A
manutenção adequada dessa função depende não somente da integridade dos
sistemas cardiovascular e respiratório, como também de uma quantidade
adequada de hemácias e hemoglobina, bem como de um suprimento de gás
inspirado que contenha quantidade adequada de O2.

RESPOSTAS À HIPOXIA
A diminuição da disponibilidade de O2 para as células leva à inibição da
fosforilação oxidativa e ao aumento da glicólise anaeróbia. Essa passagem do
metabolismo aeróbio para o anaeróbio, o efeito Pasteur, reduz a taxa de produção
de 5’-trifosfato de adenosina (ATP). Na hipoxia grave, quando a produção de
ATP não se equipara às necessidades de energia do equilíbrio iônico e osmótico,
a despolarização da membrana celular leva a um influxo de Ca2+ descontrolado e
à ativação das fosfolipases e proteases dependentes de Ca2+. Tais eventos, por
sua vez, levam ao edema celular, ativação de vias apoptóticas e, por fim, à morte
celular.
As adaptações à hipoxia são mediadas, em parte, pela suprarregulação de
genes que codificam uma variedade de proteínas, incluindo enzimas glicolíticas,
tais como a fosfogliceratocinase e a fosfofrutocinase, bem como os
transportadores de glicose GLUT-1 e GLUT-2, além dos fatores de crescimento,
como o fator de crescimento do endotélio vascular (VEGF) e a eritropoietina,
que aumenta a produção de eritrócitos. O aumento na expressão dessas proteínas
fundamentais induzido pela hipoxia é governado pelo fator de transcrição
sensível à hipoxia, o fator 1 induzível por hipoxia (HIF-1).
Durante a hipoxia, as arteríolas sistêmicas se dilatam, pelo menos em parte,
por meio da abertura dos canais de KATP nas células do músculo liso vascular,
devido à redução na concentração de ATP induzida pela hipoxia. Por outro lado,
nas células do músculo liso vascular pulmonar, a inibição dos canais de K+ causa
despolarização, que ativa os canais de Ca2+ dependentes de voltagem, elevando a
[Ca2+] citosólica e causando a contração das células do músculo liso. A
constrição arterial pulmonar induzida pela hipoxia desvia o sangue de porções
pouco ventiladas para outras porções do pulmão mais bem ventiladas; entretanto,
ela também aumenta a resistência vascular pulmonar e a pós-carga ventricular
direita.
Efeitos no sistema nervoso central As alterações no sistema nervoso central
(SNC), particularmente nos centros superiores, representam consequências
especialmente importantes da hipoxia. A hipoxia aguda leva ao
comprometimento do julgamento e da coordenação motora, bem como a um
quadro clínico que lembra a intoxicação aguda por álcool. O mal da altitude
caracteriza-se por cefaleia secundária à vasodilatação cerebral, sintomas
gastrintestinais, tontura, insônia, fadiga ou sonolência. A constrição arterial
pulmonar, e algumas vezes venosa, causa extravasamento capilar e edema
pulmonar de altitude elevada (HAPE) (Cap. 33), que intensifica a hipoxia,
promovendo posteriormente vasoconstrição. Raramente se desenvolve um
edema cerebral de altitude elevada (HACE), que se manifesta por cefaleia grave
e papiledema, podendo levar ao coma. Conforme a hipoxia se torna mais grave,
os centros reguladores do tronco encefálico são afetados, e a morte normalmente
ocorre como consequência de insuficiência respiratória.

Efeitos no sistema cardiovascular A hipoxia aguda estimula o arco reflexo


quimiorreceptor a induzir venoconstrição e vasodilatação arterial sistêmica.
Essas alterações agudas são acompanhadas pelo aumento temporário da
contratilidade do miocárdio, que é seguida pela redução da contratilidade
miocárdica com hipoxia prolongada.

CAUSAS DA HIPOXIA
Hipoxia respiratória Quando a hipoxia ocorre a partir da insuficiência
respiratória, a PaO2 diminui, e, quando a insuficiência respiratória persiste, a
curva de dissociação de oxigênio-hemoglobina (O2-Hb) (ver Fig. 94-2) é
deslocada para a direita, liberando quantidades maiores de O2 em qualquer nível
de PO2 tecidual. A hipoxemia arterial, isto é, a redução da saturação de O2 no
sangue arterial (SaO2), e a consequente cianose costumam ser mais marcantes
quando tal depressão de PaO2 resulta de doença pulmonar, se comparada à
depressão que ocorre como resultado de diminuição na fração de oxigênio do ar
inspirado (FIO2). Nessa última situação, a PaCO2 cai secundariamente à
hiperventilação induzida pela anoxia, e a curva de dissociação O2-Hb é
deslocada para a esquerda, limitando a diminuição na SaO2 em qualquer nível de
PaO2.
A causa mais comum da hipoxia respiratória é um desequilíbrio da
ventilação-perfusão resultante da perfusão de alvéolos mal ventilados. A
hipoxemia respiratória também pode ser causada por hipoventilação, caso em
que está associada à elevação da PaCO2 (Cap. 279). Essas duas formas de
hipoxia respiratória habitualmente são corrigíveis pela inspiração de O2 a 100%
durante alguns minutos. Uma terceira causa de hipoxia respiratória é a derivação
sanguínea intrapulmonar direta da artéria pulmonar para o leito venoso (shunt
direita-esquerda intrapulmonar) em virtude da perfusão de partes não ventiladas
do pulmão, como na atelectasia pulmonar ou por meio de fístulas arteriovenosas
pulmonares. Nessa situação, a baixa de PaO2 é apenas parcialmente corrigida por
uma FIO2 de 100%.

Hipoxia secundária à altitude elevada Quando alguém sobe rapidamente para


3.000 metros, a redução do conteúdo de oxigênio no ar inspirado (FIO2) leva a
uma diminuição na PO2 alveolar para aproximadamente 60 mmHg e se
desenvolve uma condição chamada mal da altitude (ver anteriormente). Em
altitudes mais elevadas, a saturação arterial diminui rapidamente, e os sintomas
tornam-se mais graves; aos 5.000 metros, as funções dos indivíduos não
adaptados ao clima geralmente ficam comprometidas, sendo responsáveis pelas
alterações no funcionamento do SNC descritas acima.

Hipoxia secundária ao shunt direita-esquerda extrapulmonar Do ponto de


vista fisiológico, essa causa de hipoxia assemelha-se ao shunt direita-esquerda
intrapulmonar, porém é causada por malformações cardíacas congênitas, como a
tetralogia de Fallot, transposição das grandes artérias e síndrome de
Eisenmenger (Cap. 264). A exemplo do shunt direita-esquerda pulmonar, a PaO2
não se normaliza com a inspiração de O2 a 100%.

Hipoxia da anemia Uma redução na concentração de hemoglobina do sangue é


acompanhada por uma diminuição correspondente da sua capacidade carreadora
de O2 do sangue. Embora a PaO2 seja normal na hipoxia da anemia, a quantidade
absoluta de O2 transportado por unidade de volume de sangue se encontra
diminuída. Conforme o sangue com baixa hemoglobina flui pelos capilares e a
quantidade normal de O2 é dele removida, a PO2 e a saturação no sangue venoso
decai em uma extensão maior do que o normal.

Intoxicação por monóxido de carbono (CO) (Ver também Cap. C11) A


hemoglobina que se liga ao CO (carboxiemoglobina, COHb) fica indisponível
para o transporte de O2. Além disso, a presença da COHb desloca a curva de
dissociação O2-Hb para a esquerda (ver Fig. 94-2), de modo que o O2 se
dissociará apenas a tensões inferiores, contribuindo ainda mais para a hipoxia
tecidual.

Hipoxia circulatória Como na hipoxia da anemia, a PaO2 costuma ser normal,


porém os valores da PO2 venosa e tecidual ficam diminuídos em consequência da
perfusão tecidual reduzida e da maior extração tecidual de O2. Essa
fisiopatologia leva a um aumento na diferença de O2 arteriovenosa (diferença a-
v-O2) ou a um gradiente. A hipoxia circulatória generalizada ocorre na
insuficiência cardíaca (Cap. 252) e na maioria dos tipos de choque (Cap. 296).

Hipoxia de órgãos específicos A hipoxia circulatória localizada pode ocorrer


como resultado da perfusão diminuída secundária à obstrução arterial, como na
aterosclerose localizada em qualquer leito vascular, ou como consequência de
vasoconstrição, conforme observado no fenômeno de Raynaud (Cap. 275). A
hipoxia localizada também pode advir de obstrução venosa e da consequente
expansão de fluido intersticial, causando compressão arteriolar e, portanto,
redução de influxo arterial. O edema, que aumenta a distância por meio da qual o
O2 deve se difundir antes de alcançar as células, pode também causar hipoxia
localizada. Em uma tentativa de manter a perfusão adequada aos órgãos mais
vitais, em pacientes com débito cardíaco reduzido secundário à insuficiência
cardíaca ou ao choque hipovolêmico, a vasoconstrição pode reduzir a perfusão
nos membros e na pele, causando a hipoxia dessas regiões.

Necessidades de O2 aumentadas Se o consumo tecidual de O2 for elevado sem


aumento correspondente da perfusão, a hipoxia tecidual irá se estabelecer, e a
PO2 no sangue venoso cairá. Habitualmente, o quadro clínico do paciente com
hipoxia devido à elevada taxa metabólica, como ocorre na febre ou na
tireotoxicose, é muito diferente dos demais tipos de hipoxia: a pele mostra-se
quente e vermelha devido ao fluxo sanguíneo cutâneo aumentado que dispersa o
excesso de calor produzido e, em geral, não há cianose.
O exercício é um exemplo clássico de aumento das necessidades teciduais
de O2. Essas demandas aumentadas são normalmente enfrentadas por meio de
vários mecanismos que atuam simultaneamente: (1) aumento do débito cardíaco
e da ventilação e, portanto, do transporte de O2 para os tecidos; (2) um
deslocamento preferencial do fluxo sanguíneo para os músculos em exercício,
por meio da alteração da resistência vascular nos leitos circulatórios desses
tecidos, de forma direta e/ou reflexa; (3) um aumento da extração de O2 a partir
do sangue fornecido e uma ampliação da diferença arteriovenosa de O2; e (4)
uma redução do pH dos tecidos e do sangue capilar, deslocando a curva de O2-
Hb para a direita (ver Fig. 94-2) e liberando mais O2 da hemoglobina. Caso a
capacidade desses mecanismos seja superada, sobrevirá hipoxia, especialmente
dos músculos em exercício.

Utilização inadequada de oxigênio Cianeto (Cap. 450) e vários outros venenos


igualmente ativos causam hipoxia celular. Os tecidos são incapazes de utilizar
O2, e, como consequência, o sangue venoso tende a apresentar uma tensão
elevada de O2. Essa condição tem sido chamada de hipoxia histotóxica.

ADAPTAÇÃO À HIPOXIA
Um importante componente da resposta respiratória à hipoxia se origina em
células quimiossensitivas especiais nos corpos carotídeo e aórtico, bem como no
centro respiratório do tronco encefálico. O estímulo dessas células pela hipoxia
aumenta a ventilação, com uma perda de CO2, e pode levar à alcalose
respiratória. Quando combinado à acidose metabólica resultante da produção de
ácido láctico, o nível de bicarbonato sérico diminui (Cap. 51).
Com a redução da PaO2, a resistência vascular cerebral diminui, e o fluxo
sanguíneo cerebral aumenta, na tentativa de manter o transporte de O2 para o
cérebro. Entretanto, quando a redução da PaO2 é acompanhada de
hiperventilação e de uma redução da PaCO2, a resistência vascular cerebral
aumenta, o fluxo sanguíneo cerebral diminui e a hipoxia tecidual se intensifica.
A vasodilatação sistêmica difusa que ocorre na hipoxia generalizada
aumenta o débito cardíaco. Nos pacientes com patologia cardíaca subjacente na
vigência de hipoxia, a necessidade de um aumento do débito cardíaco por parte
dos tecidos periféricos pode desencadear insuficiência cardíaca congestiva. Nos
pacientes com cardiopatia isquêmica, uma PaO2 reduzida pode intensificar a
isquemia miocárdica e, em seguida, agravar a função ventricular esquerda.
Um dos importantes mecanismos compensatórios da hipoxia crônica é um
aumento na concentração de hemoglobina e no número de eritrócitos no sangue
circulante, isto é, o desenvolvimento de policitemia secundária à produção de
eritropoietina (Cap. 99). Em pacientes com hipoxia crônica secundária à
permanência prolongada em altitudes elevadas (> 4.200 metros), desenvolve-se
uma condição chamada de doença crônica da montanha. Esse distúrbio é
caracterizado por um impulso respiratório atenuado, ventilação reduzida,
eritrocitose, cianose, fraqueza, dilatação ventricular direita secundária à
hipertensão pulmonar e até perda de consciência.
CIANOSE
Cianose refere-se a uma coloração azulada da pele e das mucosas que resulta de
aumento da quantidade de hemoglobina reduzida (i.e., hemoglobina
desoxigenada) ou de derivados da hemoglobina (p. ex., metemoglobina ou
sulfemoglobina) nos pequenos vasos sanguíneos daqueles tecidos. Costuma ser
mais acentuada nos lábios, nos leitos ungueais, nas orelhas e nas proeminências
malares. A cianose, em especial a de início recente, é detectada mais comumente
por um familiar do que pelo paciente. A pele rosada característica de policitemia
vera (Cap. 99) deve ser distinguida da cianose verdadeira aqui abordada. Um
rubor vermelho-cereja, distinto do observado na cianose, é causado pela COHb (
Cap. 450).
O grau de cianose é modificado pela cor do pigmento cutâneo, pela
espessura da pele e pelo estado dos capilares cutâneos. A detecção clínica exata
da presença e do grau da cianose é difícil, conforme comprovado por estudos
oximétricos. Em algumas circunstâncias, a cianose central pode ser detectada
com segurança quando a SaO2 caiu para 85%; em outras, particularmente em
pessoas de pele escura, não pode ser detectada até que tenha havido uma queda
para 75%. No último caso, o exame das mucosas da cavidade oral e das
conjuntivas, em vez do exame da pele, é mais útil para a detecção de cianose.
O aumento na quantidade de hemoglobina reduzida nos vasos
cutaneomucosos que produz a cianose pode ser provocado por aumento na
quantidade de sangue venoso, como resultado da dilatação das vênulas
(incluindo vênulas pré-capilares), ou por uma diminuição da SaO2 no sangue
capilar. Em geral, a cianose torna-se aparente quando a concentração de
hemoglobina reduzida ultrapassa 40 g/L (4 g/dL) no sangue do capilar.
É a quantidade absoluta, em vez da relativa, de hemoglobina reduzida que é
importante na produção da cianose. Por isso, no paciente com anemia grave, a
quantidade relativa de hemoglobina reduzida nas veias pode ser muito grande
quando considerada em relação à quantidade total de hemoglobina no sangue.
Entretanto, como a concentração dessa última mostra-se acentuadamente
reduzida, a quantidade absoluta de hemoglobina reduzida ainda pode ser baixa,
e, portanto, os pacientes com anemia grave e mesmo aqueles com dessaturação
arterial acentuada podem não apresentar cianose. Por outro lado, quanto maior o
conteúdo de hemoglobina total, maior a tendência à cianose; assim, os pacientes
com policitemia acentuada tendem a manifestar cianose em níveis de SaO2 mais
elevados que aqueles com valores normais de hematócrito. Da mesma forma, a
congestão passiva local, que causa um aumento na quantidade total de
hemoglobina reduzida nos vasos em uma determinada área, pode induzir
cianose. A cianose é também observada quando a hemoglobina não funcional,
como a meteglobina (consequencial ou adquirida) ou a sulfemoglobina (Cap. 94
), está presente no sangue.
A cianose pode ser subdividida nos tipos central e periférica. Na cianose
central, a SaO2 é reduzida ou um derivado anormal da hemoglobina está
presente, e tanto as membranas mucosas quanto a pele são afetadas. A cianose
periférica deve-se a um fluxo sanguíneo mais lento e a uma extração
anormalmente elevada de O2 a partir do sangue arterial com saturação normal;
ela resulta da vasoconstrição e da diminuição do fluxo sanguíneo periférico,
como ocorre na exposição ao frio, no choque, na insuficiência congestiva e na
doença vascular periférica. Com frequência, nesses distúrbios, as mucosas da
cavidade oral ou aquelas debaixo da língua podem ser poupadas. A diferenciação
clínica entre as cianoses central e periférica nem sempre é simples, e, em
situações como o choque cardiogênico com edema pulmonar, pode haver uma
mistura de ambos os tipos.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Cianose central (Tab. 36-1) SaO2 reduzida advém de uma redução acentuada na
PaO2. Essa redução pode se originar por um declínio na FIO2 sem hiperventilação
alveolar compensatória suficiente para manter a PO2 alveolar. A cianose
geralmente se manifesta em uma subida à altitude de 4.000 metros.

TABELA 36-1 ■ Causas da cianose


Cianose central
Saturação do oxigênio arterial diminuída
Pressão atmosférica diminuída – altitude elevada
Função pulmonar comprometida
Hipoventilação alveolar
Falta de homogeneidade na ventilação e perfusão pulmonar (perfusão de alvéolos hipoventilados)
Difusão de oxigênio comprometida
Desvios (shunts) anatômicos
Certos tipos de doença cardíaca congênita
Fístulas arteriovenosas pulmonares
Desvios intrapulmonares pequenos e múltiplos (shunts)
Hemoglobina com baixa afinidade pelo oxigênio
Anormalidades da hemoglobina
Metemoglobinemia – hereditária, adquirida
Sulfemoglobinemia – adquirida
Carboxiemoglobinemia (cianose não verdadeira)
Cianose periférica
Débito cardíaco diminuído
Exposição ao frio
Redistribuição do fluxo sanguíneo a partir das extremidades
Obstrução arterial
Obstrução venosa

Uma função pulmonar seriamente diminuída pela perfusão de áreas


pulmonares não ventiladas ou mal ventiladas ou por hipoventilação alveolar é
uma causa comum de cianose central (Cap. 279). Esse distúrbio pode ocorrer de
forma aguda, como na pneumonia extensa ou no edema pulmonar, ou crônica,
em associação a doenças pulmonares crônicas (p. ex., enfisema). Na última
circunstância, em geral, ocorre policitemia secundária, podendo ocorrer o
baqueteamento digital (ver adiante). Outra causa de SaO2 reduzida é o shunt do
sangue venoso sistêmico para o circuito arterial. Certas formas de cardiopatias
congênitas estão associadas à cianose na sua origem (ver anteriormente e Cap. 2
64).
A fístula arteriovenosa pulmonar pode ser congênita ou adquirida, solitária
ou múltipla, microscópica ou maciça. A gravidade da cianose produzida por
essas fístulas depende de seu tamanho e número. Elas ocorrem com alguma
frequência na telangiectasia hemorrágica hereditária. Redução de SaO2 e cianose
também podem ocorrer em alguns pacientes com cirrose, possivelmente como
consequência de fístulas arteriovenosas pulmonares ou de anastomoses venosas
portopulmonares.
Em pacientes com shunt direita-esquerda cardíaco ou pulmonar, a presença
e gravidade da cianose dependem do tamanho do shunt em relação ao fluxo
sistêmico, bem como da saturação de O2-Hb no sangue venoso. Com a extração
aumentada de O2 do sangue pelos músculos em exercício, o sangue venoso que
retorna para o lado direito do coração fica mais dessaturado do que durante o
repouso, e o shunt desse sangue intensifica a cianose. A policitemia secundária
ocorre frequentemente em pacientes nessa situação e contribui para a cianose.
A cianose pode ser causada por pequenas quantidades de metemoglobina
circulante (Hb Fe3+) e por quantidades ainda menores de sulfemoglobina (Cap. 9
4); esses dois derivados da hemoglobina comprometem a liberação de oxigênio
para os tecidos. Embora sejam causas incomuns de cianose, essas espécies
anormais da hemoglobina devem ser pesquisadas pela espectroscopia, quando a
cianose não é prontamente explicada por disfunções dos sistemas circulatórios
ou respiratórios. Em geral, não ocorre baqueteamento digital em associação a
elas.

Cianose periférica Provavelmente, a causa mais comum da cianose periférica é


a vasoconstrição normal resultante da exposição à água ou ao ar frios. Quando o
débito cardíaco está reduzido, a vasoconstrição cutânea ocorre como mecanismo
compensatório, de modo que o sangue é desviado da pele para regiões mais
vitais, como o SNC e o coração, podendo sobrevir cianose dos membros, embora
o sangue arterial fique normalmente saturado.
A obstrução arterial para uma extremidade, como ocorre por um êmbolo, ou
por constrição arteriolar, como no vasospasmo induzido pelo frio (fenômeno de
Raynaud) (Cap. 275), geralmente resulta em palidez e frio e pode estar
associada à cianose. A obstrução venosa, como na tromboflebite ou na trombose
venosa profunda, dilata os plexos venosos subpapilares e, desse modo,
intensifica a cianose.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Cianose
Certas características são importantes para a detecção da causa da cianose:

1. É importante certificar-se do momento da aparição da cianose. A


cianose presente desde o nascimento ou a primeira infância geralmente
se deve a cardiopatia congênita.
2. É preciso diferenciar entre a cianose central e a periférica. As evidências
de distúrbios dos sistemas respiratório ou cardiovascular são úteis. A
massagem ou o aquecimento moderado de um membro cianótico
aumenta o fluxo sanguíneo periférico e elimina a cianose periférica, mas
não a cianose central.
3. A presença ou a ausência de baqueteamento digital (ver adiante) deve
ser assinalada. A associação da cianose ao baqueteamento digital é
frequente nos pacientes com cardiopatia congênita e naqueles com shunt
direita-esquerda, sendo observada ocasionalmente em pacientes com
doença pulmonar, como abscesso pulmonar ou fístula arteriovenosa
pulmonar. Diferentemente, a cianose periférica ou o desenvolvimento
súbito de cianose central não estão associados ao baqueteamento digital.
4. A PaO2 e a SaO2 devem ser determinadas e, nos pacientes com cianose
cujo mecanismo seja obscuro, o exame espectroscópico do sangue deve
ser realizado, para se pesquisar tipos anormais de hemoglobina (cruciais
para o diagnóstico diferencial da cianose).
BAQUETEAMENTO DIGITAL
O aumento bulbiforme seletivo dos segmentos distais dos dedos das mãos e dos
pés, devido à proliferação do tecido conectivo, particularmente na face dorsal, é
chamado de baqueteamento digital; também se observa um esponjamento
aumentado do tecido mole na base da unha baqueteada. O baqueteamento pode
ser hereditário, idiopático ou adquirido, bem como associado a um conjunto de
patologias, incluindo a cardiopatia congênita cianótica (ver anteriormente),
endocardite infecciosa e uma variedade de condições pulmonares (entre elas, os
cânceres primários e metastáticos de pulmão, a bronquiectasia, a asbestose, a
sarcoidose, o abscesso pulmonar, a fibrose cística, a tuberculose e o
mesotelioma), assim como a algumas patologias gastrintestinais (incluindo
doença inflamatória intestinal e cirrose hepática). Em alguns casos, ele é
ocupacional, por exemplo, como no caso dos operadores de britadeiras.
O baqueteamento em pacientes com câncer pulmonar primário ou
metastático, mesotelioma, bronquiectasia ou cirrose hepática pode estar
associado à osteoartropatia hipertrófica. Nessa condição, a formação
subperiosteal do novo osso na diáfise distal dos ossos longos dos membros causa
dor e alterações semelhantes à artrite simétrica nos ombros, joelhos, tornozelos,
pulsos e cotovelos. O diagnóstico de osteoartropatia hipertrófica pode ser
confirmado por radiografia ou ressonância magnética (RM) dos ossos. Embora o
mecanismo do baqueteamento seja desconhecido, parece advir de substâncias
humorais que causam a dilatação dos vasos distais dos dedos, bem como de
fatores de crescimento liberados de precursores de plaquetas na circulação
digital. Em determinadas circunstâncias, o baqueteamento é reversível, como
após transplante pulmonar no caso de fibrose cística.

LEITURAS ADICIONAIS
Callemeyn J et al: Clubbing and hypertrophic osteoarthropathy: Insights into
diagnosis, pathophysiology, and clinical significance. Acta Clin Belg 22:1,
2016.
MacIntyre NR: Tissue hypoxia: Implications for the respiratory clinician. Respir
Care 59:1590, 2014.
37
Edema
Eugene Braunwald, Joseph Loscalzo
TROCA DE LÍQUIDOS PLASMÁTICO E INTERSTICIAL
Cerca de dois terços da água corporal total está em nível intracelular, enquanto
um terço é extracelular. Cerca de um quarto dessa última parte está no plasma,
enquanto o restante compreende o líquido intersticial. O edema representa um
excesso de líquido intersticial que fica evidente clinicamente.
Há trocas constantes de fluidos entre os dois compartimentos de líquido
extracelular. A pressão hidrostática dentro dos capilares e a pressão coloidal
oncótica no líquido intersticial promovem o movimento de água e solutos
passíveis de difusão do plasma para o interstício. Esse movimento é mais
proeminente na origem arterial dos capilares, caindo progressivamente com o
declínio na pressão intracapilar e com a elevação na pressão oncótica em direção
à extremidade venular. O líquido retorna do espaço intersticial para o sistema
vascular em grande parte através do sistema linfático. Essas trocas de fluidos são
normalmente equilibradas de maneira que os volumes dos compartimentos
intravascular e intersticial permaneçam constantes. Porém, ocorre um
movimento resultante de fluidos do espaço intravascular para o intersticial que
pode ser responsável pelo desenvolvimento de edema sob as seguintes
condições: (1) aumento na pressão hidrostática intracapilar; (2) drenagem
linfática inadequada; (3) redução na pressão oncótica do plasma; (4) dano à
barreira endotelial capilar; e (5) aumentos na pressão oncótica no espaço
intersticial.

REDUÇÃO DE VOLUME ARTERIAL EFETIVO


Em diversos tipos de edema, o volume efetivo do sangue arterial, um parâmetro
que representa o preenchimento da árvore arterial e que efetivamente perfunde
os tecidos, encontra-se reduzido. O preenchimento insuficiente da árvore arterial
pode ser causado por uma redução de débito cardíaco e/ou resistência vascular
sistêmica, por acúmulo de sangue nas veias esplâncnicas (como na cirrose) e por
hipoalbuminemia (Fig. 37-1A). Como consequência desse preenchimento
insuficiente, é acionada uma série de respostas fisiológicas voltadas para
restabelecer o volume arterial efetivo normal. Um elemento-chave dessas
respostas é a retenção renal de sódio e, portanto, de água, restaurando, dessa
forma, o volume arterial efetivo, porém, algumas vezes, também ocasionando ou
intensificando o edema.
FIGURA 37-1 Condições clínicas nas quais uma redução no débito cardíaco (A) e na resistência
vascular sistêmica (B) levam a um menor preenchimento arterial, resultando em ativação neuro-humoral e
retenção renal de sódio e água. Além de ativar o eixo neuro-humoral, o estímulo adrenérgico causa
vasoconstrição renal e aumenta o transporte de sódio e líquido pelo epitélio do túbulo proximal. AVP,
arginina-vasopressina; SNS, sistema nervoso simpático; SRAA, sistema renina-angiotensina-aldosterona.
(Modificada de RW Schrier: Ann InternMed 113:155, 1990.)

FATORES RENAIS E O SISTEMA RENINA-ANGIOTENSINA-


ALDOSTERONA
O fluxo sanguíneo renal diminuído, característico dos estados nos quais o
volume de sangue arterial efetivo está reduzido, é traduzido pelas células
justaglomerulares renais (células mioepiteliais especializadas em torno da
arteríola aferente) em um sinal para maior liberação de renina. A renina é uma
enzima com peso molecular em torno de 40.000 Da que age no seu substrato, o
angiotensinogênio, uma α2-globulina sintetizada pelo fígado, para liberar
angiotensina I, um decapeptídeo que, por sua vez, é convertido em angiotensina
II (AII), um octapeptídeo. A AII possui propriedades vasoconstritoras
generalizadas, particularmente nas arteríolas eferentes renais. Esse efeito reduz a
pressão hidrostática nos capilares peritubulares, enquanto a fração de filtração
aumentada eleva a pressão coloidal osmótica nesses vasos, aumentando, assim, a
reabsorção de sal e água nos túbulos proximais, assim como no ramo ascendente
da alça de Henle.
O sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) atua tanto como um
sistema hormonal quanto como um sistema parácrino. A sua ativação leva à
retenção de sódio e água e, portanto, contribui para a formação de edema. O
bloqueio da conversão de angiotensina I em AII e o bloqueio do receptor de AII
aumentam a excreção de sódio e água e reduzem vários tipos de edema. A AII
que penetra na circulação sistêmica estimula a produção de aldosterona pela
zona glomerulosa do córtex suprarrenal. A aldosterona, por sua vez, aumenta a
reabsorção de sódio (e a excreção de potássio) pelo túbulo coletor, favorecendo a
posterior formação de edema. O bloqueio da ação da aldosterona pela
espironolactona ou eplerenona (antagonistas da aldosterona) ou pela amilorida
(um bloqueador dos canais epiteliais de sódio) em geral induz uma diurese
moderada nos estados edematosos.

ARGININA-VASOPRESSINA
(Ver também Cap. 374) A secreção de arginina-vasopressina (AVP) pela
glândula hipofisária posterior ocorre em resposta a um aumento da concentração
osmolar intracelular e, mediante a estimulação dos receptores V2, a AVP
aumenta a reabsorção de água livre nos túbulos distais e ductos coletores dos
rins, aumentando, assim, a água corporal total. A AVP circulante fica elevada em
muitos pacientes com insuficiência cardíaca, secundariamente a um estímulo não
osmótico associado à diminuição do volume arterial efetivo e à complacência
reduzida do átrio esquerdo. Tais pacientes deixam de apresentar a redução
normal de AVP com uma redução da osmolalidade, contribuindo para a
formação de edema e hiponatremia.

ENDOTELINA-1
Esse potente peptídeo vasoconstritor é liberado pelas células endoteliais. Sua
concentração no plasma é elevada em pacientes com insuficiência cardíaca grave
e contribui para vasoconstrição renal, retenção de sódio e edema.

PEPTÍDEOS NATRIURÉTICOS
A distensão atrial causa a liberação de peptídeo natriurético atrial (ANP), um
polipeptídeo, na circulação. Um precursor do ANP de alto peso molecular é
armazenado em grânulos secretórios dentro de miócitos atriais. Um peptídeo
natriurético (pré-pró-hormônio peptídeo natriurético cerebral [BNP])
intimamente relacionado é armazenado primariamente nos miócitos
ventriculares e é liberado quando a pressão diastólica ventricular aumenta. ANP
e BNP (que é derivado de seu precursor) liberados se ligam ao receptor-A
natriurético, que causa: (1) a excreção de sódio e água pelo aumento da taxa de
filtração glomerular, inibindo a reabsorção de sódio no túbulo proximal e
inibindo a liberação de renina e aldosterona; e (2) a dilatação de arteríolas e
vênulas antagonizando as ações vasoconstritoras da AII, AVP e estimulação
simpática. Portanto, níveis elevados de peptídeos natriuréticos possuem a
capacidade de se contrapor à retenção de sódio nos estados hipervolêmicos e
edematosos.
Embora os níveis circulantes de ANP e BNP encontrem-se elevados na
insuficiência cardíaca e na cirrose com ascite, os peptídeos natriuréticos não são
suficientemente potentes para prevenir a formação de edema. Na verdade, nos
estados edematosos, a resistência às ações de peptídeos natriuréticos poderá estar
aumentada, reduzindo ainda mais a sua eficácia.
Uma discussão adicional sobre o controle de equilíbrio de sódio e água é
encontrada no Capítulo C1.

CAUSAS CLÍNICAS DO EDEMA


Um ganho ponderal de vários quilos costuma preceder a manifestação clínica de
edema generalizado. Anasarca é um edema maciço e generalizado. Ascite (Cap.
46) e hidrotórax referem-se ao acúmulo de excesso de líquido no peritônio e nas
cavidades pleurais, respectivamente, e são considerados formas especiais de
edema.
O edema é reconhecido pela persistência de uma depressão da pele após
pressão, conhecido como edema depressível (cacifo). Em sua forma mais sutil,
pode ser detectado pela observação de que, após afastar-se o estetoscópio da
parede torácica, a campânula deixa uma reentrância na pele do tórax que
permanece por alguns minutos. O edema poderá estar presente quando o anel em
um dedo fica mais apertado do que antes ou quando um paciente se queixa de
dificuldade em calçar os sapatos, particularmente à noite. O edema também pode
ser reconhecido pelo inchaço da face, que é mais aparente nas áreas periorbitais.

EDEMA GENERALIZADO
As diferenças entre as principais causas do edema generalizado são mostradas na
Tabela 37-1. Os distúrbios cardíacos, renais, hepáticos ou nutricionais são
responsáveis pela grande maioria de pacientes com edema generalizado. Em
consequência, o diagnóstico diferencial do edema generalizado deve ser
direcionado à identificação ou à exclusão dessas várias patologias.

TABELA 37-1 ■ Principais causas de edema generalizado: anamnese, exame físico e achados laboratoriais
Sistema Anamnese Exame físico Achados laboratoriais
orgânico

Cardíaco Dispneia com esforço notável – Pressão venosa jugular elevada, galope Razão entre nitrogênio ureico e
frequentemente associada à ortopneia – ventricular (B3); ocasionalmente, com ictus creatinina elevada comum; sódio
ou dispneia paroxística noturna cordis discinético ou deslocado; cianose sérico geralmente reduzido;
periférica, extremidades frias, pressão de peptídeos natriuréticos elevados
pulso pequena quando grave
Hepático Dispneia rara, exceto se associada a um Frequentemente associada à ascite; pressão Quando grave, reduções na
grau significativo de ascite; na maioria venosa jugular normal ou baixa; pressão albumina sérica, colesterol,
dos casos, existe história de uso abusivo arterial mais baixa do que a observada na outras proteínas hepáticas
de álcool doença renal ou na cardíaca; um ou mais (transferrina, fibrinogênio);
sinais adicionais de doença hepática crônica enzimas hepáticas elevadas,
(icterícia, eritema palmar, contratura de dependendo da causa e
Dupuytren, angioma aracneiforme, intensidade da lesão hepática;
ginecomastia masculina, asterixe e outros tendência à hipopotassemia,
sinais de encefalopatia) podem estar presentes alcalose respiratória; macrocitose
pela deficiência de folato
Renal Geralmente crônica: pode estar Pressão arterial elevada; retinopatia Elevação da creatinina sérica e
(DRC) associada a sinais e sintomas urêmicos, hipertensiva; odor de amônia; atrito cistatina C; albuminúria;
incluindo a diminuição do apetite, pericárdico em casos avançados com uremia hiperpotassemia, acidose
paladar alterado (metálico ou gosto de metabólica, hiperfosfatemia,
peixe), padrão de sono alterado, hipocalcemia, anemia
dificuldade de concentração, pernas (geralmente normocítica)
inquietas ou mioclonia; a dispneia pode
estar presente, mas, em geral, é menos
notável do que na insuficiência cardíaca
Edema periorbital; hipertensão
Renal Diabetes melito da infância; discrasias Proteinúria (≥ 3,5 g/dia);
(SN) das células plasmáticas hipoalbuminemia;
(SN) das células plasmáticas hipoalbuminemia;
hipercolesterolemia; hematúria
microscópica
Siglas: DRC, doença renal crônica; SN, síndrome nefrótica.
Fonte: Modificada de GM Chertow: Approach to the patient with edema, in Primary Cardiology, 2nd ed, E Braunwald, L Goldman (eds).
Philadelphia, Saunders, 2003, pp 117–128.

Insuficiência cardíaca (Ver também Cap. 252) Na insuficiência cardíaca, o


esvaziamento sistólico deficiente do(s) ventrículo(s) e/ou o comprometimento do
relaxamento ventricular promovem um acúmulo de sangue na circulação venosa
às custas do volume arterial efetivo. Além disso, a ativação do sistema nervoso
simpático e do SRAA (ver anteriormente) agem em conjunto causando
vasoconstrição renal, redução da filtração glomerular e retenção de sal e água. A
retenção de sódio e água continua, e o incremento do volume sanguíneo
acumula-se na circulação venosa, aumentando a pressão venosa e intracapilar,
resultando em edema (Fig. 37-1).
A presença de uma cardiopatia manifesta, com cardiomegalia e/ou
hipertrofia ventricular, junto com evidências clínicas de falência cardíaca, tais
como dispneia, estertores basais, distensão venosa e hepatomegalia, geralmente
indica que o edema resulta de insuficiência cardíaca. Testes não invasivos, como
o cardiograma, a ecocardiografia e as medidas de BNP (ou NT-pró-BNP) são
úteis no estabelecimento do diagnóstico de doença cardíaca. O edema da
insuficiência cardíaca ocorre nas porções dependentes do corpo.

Edema de doença renal (Ver também Cap. 308) O edema que ocorre durante a
fase aguda da glomerulonefrite é normalmente associado à hematúria,
proteinúria e hipertensão arterial. Na maioria dos casos, o edema resulta da
retenção primária de sódio e água pelos rins devido à disfunção renal. Esse
estado diferencia-se da maioria das formas de insuficiência cardíaca pelo fato de
se caracterizar por um débito cardíaco normal (ou, algumas vezes, ainda
aumentado). Os pacientes com falência renal crônica também podem
desenvolver edema devido à retenção renal primária de sódio e água.

Síndrome nefrótica e outros estados hipoalbuminêmicos A alteração primária


na síndrome nefrótica é uma diminuição da pressão coloidal osmótica devido às
perdas de grandes quantidades de proteína (≥ 3,5 g/dia) na urina e
hipoalbuminemia (< 3,0 g/dL). Com a redução na pressão coloidal osmótica, o
sódio e a água que são retidos não podem ser mantidos no interior do
compartimento vascular, e os volumes total e efetivo do sangue arterial
diminuem. Esse processo inicia a sequência de eventos descritos anteriormente,
formadores do edema, incluindo a ativação do sistema SRAA. A síndrome
nefrótica pode ocorrer durante o curso de uma variedade de doenças renais, que
incluem glomerulonefrite, glomeruloesclerose diabética e reações de
hipersensibilidade. O edema é difuso, simétrico e mais significativo nas áreas
dependentes; o edema periorbital é mais notável durante a manhã.

Cirrose hepática (Ver também Cap. 337) Essa condição caracteriza-se em


parte por obstrução do fluxo venoso hepático, que, por sua vez, expande o
volume sanguíneo esplâncnico e aumenta a formação hepática de linfa. A
hipertensão intra-hepática atua como um estímulo à retenção renal de sódio e
causa uma redução do volume sanguíneo arterial efetivo. Essas alterações são
frequentemente complicadas pela hipoalbuminemia secundária à redução da
síntese hepática de albumina, assim como pela vasodilatação arterial periférica.
Esses efeitos reduzem o volume sanguíneo arterial efetivo, levando à ativação
dos mecanismos de retenção de sódio e água descritos anteriormente (Fig. 37-
1B). A concentração de aldosterona circulante mostra-se frequentemente elevada
pela incapacidade do fígado de metabolizar esse hormônio. Inicialmente, o
excesso de fluido intersticial se localiza preferencialmente em nível proximal em
relação ao sistema venoso portal congestionado, causando ascite (Cap. 46). Nos
estágios avançados, particularmente quando há hipoalbuminemia grave, pode
ocorrer edema periférico. Um acúmulo considerável de líquido ascítico pode
aumentar a pressão intra-abdominal e impedir o retorno venoso dos membros
inferiores e contribuir para o acúmulo de edema.

Edema induzido por fármacos Um grande número de fármacos amplamente


utilizados pode provocar edema (Tab. 37-2). Os mecanismos consistem em
vasoconstrição renal (AINEs e ciclosporina), dilatação arteriolar
(vasodilatadores), aumento da reabsorção renal de sódio (hormônios esteroides)
e lesão capilar.

TABELA 37-2 ■ Fármacos associados à formação de edema


Anti-inflamatórios não esteroides
Agentes anti-hipertensivos
Vasodilatadores diretos arteriais/arteriolares
Hidralazina
Clonidina
Metildopa
Guanetidina
Minoxidil
Antagonistas dos canais de cálcio
Antagonistas α-adrenérgicos
Tiazolidinedionas
Hormônios esteroides
Glicocorticoides
Esteroides anabolizantes
Estrogênios
Progestinas
Ciclosporina
Hormônio do crescimento
Imunoterapias
Interleucina 2
Anticorpo monoclonal OKT3
Fonte: Modificada de GM Chertow: Approach to the patient with edema, in Primary Cardiology, 2nd ed, E Braunwald, L Goldman (eds).
Philadelphia, Saunders, 2003, pp 117–128.

Edema de origem nutricional Uma dieta francamente pobre em calorias e


particularmente em proteínas durante um período prolongado pode produzir
hipoproteinemia e edema. Este último pode ser intensificado pelo
desenvolvimento da cardiopatia por beribéri, que também é de origem
nutricional, em que múltiplas fístulas arteriovenosas periféricas reduzem a
perfusão sistêmica e o volume sanguíneo arterial efetivos, aumentando, desse
modo, a formação de edema (Cap. 326) (Fig. 37-1B). O edema ocorre ou pode
agravar-se quando indivíduos desnutridos recebem pela primeira vez uma dieta
adequada. A ingestão de mais alimentos pode aumentar a quantidade de sódio
ingerida, que é, então, retida em conjunto com a água. O chamado edema de
realimentação também pode estar relacionado com um aumento da liberação de
insulina, que aumenta diretamente a reabsorção tubular de sódio. Além da
hipoalbuminemia, a hipopotassemia e o déficit calórico podem estar envolvidos
no edema da desnutrição.

EDEMA LOCALIZADO
Na tromboflebite, em veias varicosas e em falência primária de válvulas
venosas, a pressão hidrostática no leito capilar acima da obstrução (proximal)
aumenta, de modo que uma quantidade anormal de líquido é transferida do
espaço vascular para o intersticial, o que pode gerar edema localizado. Este
último também pode ocorrer na obstrução linfática causada por linfangite
crônica, ressecção de linfonodos regionais, filariose e linfedema genético
(frequentemente chamado de primário). O linfedema genético é particularmente
difícil de tratar, pois a restrição ao fluxo linfático resulta em aumento da pressão
intracapilar e da concentração de proteínas no fluido intersticial, que atuam em
conjunto para agravar a retenção de líquidos.

Outras causas de edema Essas causas incluem hipotireoidismo, devido à


deposição de ácido hialurônico (mixedema), hipertireoidismo em que o edema é
tipicamente não depressível (mixedema pré-tibial secundário à doença de
Graves), hiperadrenocortisolismo exógeno; gestação; e administração de
estrogênios e vasodilatadores, particularmente as di-hidropiridinas como o
nifedipino.

DISTRIBUIÇÃO DO EDEMA
A distribuição do edema é um indício importante de sua causa. O edema
associado à insuficiência cardíaca tende a ser mais extenso nas pernas e
acentuado ao anoitecer, característica também determinada primordialmente pela
postura. Quando os pacientes com insuficiência cardíaca são mantidos no leito, o
edema poderá ser mais acentuado na região pré-sacral.
O edema resultante da hipoproteinemia, como ocorre na síndrome nefrótica,
é normalmente generalizado, porém é especialmente evidente nos tecidos muito
flácidos das pálpebras e da face, tendendo a ser mais pronunciado pela manhã
devido à posição de decúbito assumida durante a noite. As causas menos
frequentes do edema facial incluem a triquinelose, as reações alérgicas e o
mixedema. O edema limitado a uma perna ou a um ou ambos os braços
normalmente resulta de obstrução venosa e/ou linfática. A paralisia unilateral
reduz a drenagem linfática e venosa no lado acometido e pode também ser
responsável por edema unilateral. Nos pacientes com obstrução da veia cava
superior, o edema limita-se à face, ao pescoço e aos membros superiores, nos
quais a pressão venosa está elevada em comparação com a dos membros
inferiores.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Edema
Uma primeira questão importante consiste em se o edema é localizado ou
generalizado. Caso seja localizado, devem-se considerar os fenômenos locais
que podem ser identificados. Se o edema for generalizado, deve-se
determinar se há hipoalbuminemia grave, por exemplo, albumina sérica < 3,0
g/dL. Em caso positivo, a anamnese, o exame físico, o exame de urina e
outros dados laboratoriais ajudarão a avaliar as hipóteses de cirrose,
desnutrição grave ou síndrome nefrótica ser a doença básica. Se não houver
hipoalbuminemia, deve-se determinar se há evidências de insuficiência
cardíaca grave o suficiente para produzir edema generalizado. Finalmente,
deve-se verificar se o paciente apresenta ou não um débito urinário adequado
ou se há oligúria significativa ou anúria. Tais anormalidades são discutidas
nos Capítulos 48, 304 e 305.

LEITURAS ADICIONAIS
Clark AL, Cleland JG: Causes and treatment of oedema in patients with heart
failure. Nature Rev Cardiol 10:156, 2013.
Damman K et al: Congestion in chronic systolic heart failure is related to renal
dysfunction and increased mortality. Eur J Heart Fail 12:974, 2010.
Ferrell RE et al: GJC2 missense mutations cause human lymphedema. Am J
Hum Genet 86:943, 2010.
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disease. J Clin Invest 124:915, 2014.
38
Abordagem ao paciente com sopro
cardíaco
Patrick T. O’Gara, Joseph Loscalzo

O diagnóstico diferencial de sopro cardíaco começa com uma avaliação


cuidadosa de seus principais atributos e da resposta às manobras à beira do leito.
A história, o contexto clínico e os achados de exame clínico associados fornecem
indícios adicionais para ajudar a estabelecer a importância do sopro cardíaco. A
identificação precisa de um sopro cardíaco à beira do leito pode ajudar nas
decisões relacionadas com as indicações de exame não invasivo e a necessidade
de encaminhamento a um especialista cardiovascular. As discussões preliminares
podem ser feitas com o paciente com relação à profilaxia antibiótica ou da febre
reumática, à necessidade de restringir várias formas de atividade física e ao
papel de um potencial rastreamento familiar.
Os sopros cardíacos são causados por vibrações audíveis que resultam de
um aumento da turbulência devido a um fluxo sanguíneo acelerado através de
orifícios normais ou anormais, através de um orifício estreito ou irregular para
um vaso ou câmara dilatados ou devido a um fluxo retrógrado através de uma
valva incompetente, defeito septal ventricular ou ducto arterioso persistente. Eles
são tradicionalmente definidos pela sua sincronização com o ciclo cardíaco (Fig.
38-1). Os sopros sistólicos começam com a primeira bulha cardíaca (B1) ou após
esta, e terminam no (ou antes do) componente (A2 ou P2) da segunda bulha
cardíaca (B2), que corresponde ao seu local de origem (esquerdo ou direito,
respectivamente). Os sopros diastólicos começam com ou após o componente
associado de B2 e terminam na B1 subsequente ou antes dela. Os sopros
contínuos não estão restritos a uma ou outra fase do ciclo cardíaco, mas
começam na sístole precoce e continuam por meio de B2 por toda a diástole ou
parte dela. A sincronização precisa dos sopros cardíacos é o primeiro passo para
sua identificação. A distinção entre B1 e B2 e, portanto, entre sístole e diástole,
em geral, é um processo direto, mas pode ser difícil em um contexto de
taquiarritmia, em que as bulhas cardíacas podem ser distinguidas por palpação
simultânea do pulso carotídeo, que deve ocorrer imediatamente após B1.
FIGURA 38-1 Diagrama que representa os principais sopros cardíacos. A. Sopro pré-sistólico de
estenose mitral ou tricúspide. B. Sopro holossistólico (pansistólico) de insuficiência mitral ou tricúspide ou
de defeito septal ventricular. C. Sopro de ejeção aórtica que começa com um clique de ejeção e diminui de
intensidade antes da segunda bulha cardíaca. D. Sopro sistólico da estenose pulmonar que se espalha por
meio da segunda bulha aórtica, com fechamento retardado da valva pulmonar. E. Sopro diastólico aórtico
ou pulmonar. F. Sopro diastólico longo de estenose mitral após o estalido de abertura (EA). G. Sopro com
influxo mesodiastólico curto após uma terceira bulha cardíaca. H. Sopro contínuo de ducto arterioso
persistente. (Adaptada de P Wood: Diseases of the Heart and Circulation, London, Eyre & Spottiswood,
1968. Cortesia de Antony e Julie Wood, com permissão.)

Duração e caráter A duração de um sopro cardíaco depende da duração do


tempo em que existe diferença de pressão entre duas câmaras cardíacas, o
ventrículo esquerdo e a aorta, o ventrículo direito e a artéria pulmonar ou os
grandes vasos. A magnitude e variabilidade dessa diferença de pressão,
juntamente com a geometria e a complacência das câmaras ou vasos envolvidos,
determina a velocidade do fluxo, o grau de turbulência e a consequente
frequência, configuração e intensidade do sopro. O sopro diastólico da
insuficiência aórtica (IAo) (também chamada regurgitação aórtica [RA])crônica
é um episódio de sopro de alta frequência, enquanto o sopro da estenose mitral
(EM), indicativo de gradiente de pressão diastólica atrial esquerda-ventricular
esquerda, é um evento de baixa frequência, auscultado como um ruflar
prolongado com a campânula do estetoscópio. Os componentes da frequência de
um sopro cardíaco podem variar em diferentes locais de ausculta. O sopro
sistólico áspero de estenose aórtica (EAo) pode ter um som mais agudo e mais
acusticamente puro no ápice, fenômeno eponimicamente chamado de efeito de
Gallavardin. Alguns sopros podem ter uma qualidade distinta ou incomum,
como um som “de buzina” reconhecido em alguns pacientes com insuficiência
mitral (IM) (também chamada regurgitação mitral [RM]) devido a prolapso da
valva mitral (PVM).
A configuração de um sopro cardíaco pode ser descrita como em crescendo,
decrescendo, crescendo-decrescendo ou de platô. A configuração em
decrescendo do sopro de IAo crônica (Fig. 38-1E) pode ser compreendida em
termos do declínio progressivo do gradiente de pressão diastólica entre a aorta e
o ventrículo esquerdo. A configuração em crescendo-decrescendo do sopro de
EAo reflete as mudanças no gradiente de pressão sistólica entre o ventrículo
esquerdo e a aorta à medida que ocorre a ejeção, enquanto a configuração de
platô do sopro da IM crônica (Fig. 38-1B) é compatível com a grande e quase
constante diferença de pressão entre o ventrículo esquerdo e o átrio esquerdo.

Intensidade A intensidade do sopro cardíaco é graduada em uma escala de 1-6


(ou I-VI). Um sopro de grau 1 é muito suave e é auscultado apenas com grande
esforço. O sopro de grau 2 é facilmente audível, mas não é particularmente alto.
O sopro de grau 3 é alto, mas não é acompanhado de frêmito palpável sobre o
local de intensidade máxima. Um sopro de grau 4 é muito alto e é acompanhado
de frêmito. O de grau 5 é alto o suficiente para ser auscultado apenas com a
extremidade do estetoscópio tocando o tórax, enquanto o de grau 6 é alto o
suficiente para ser ouvido removendo-se o estetoscópio do contato com o tórax.
Os sopros de grau 3 ou de maior intensidade em geral significam cardiopatia
estrutural importante e indicam alta velocidade do fluxo sanguíneo no local da
produção do sopro. As comunicações interventriculares (CIV) pequenas, por
exemplo, são acompanhadas de sopros sistólicos hiperfonéticos, em geral de
grau 4 ou mais, à medida que o sangue é ejetado em alta velocidade do
ventrículo esquerdo para o direito. Os cenários de baixa velocidade, como o
shunt esquerda-direita ao longo de uma comunicação interatrial (CIA), em geral
são silenciosos. A intensidade de um sopro cardíaco pode ser diminuída por
qualquer processo que aumente a distância entre a origem intracardíaca e o
estetoscópio na parede torácica, como obesidade, doença pulmonar obstrutiva e
derrame pericárdico extenso. A intensidade de um sopro também pode ser
ilusoriamente suave quando o débito cardíaco é significativamente reduzido ou
quando o gradiente de pressão entre as estruturas cardíacas envolvidas é baixo.

Localização e irradiação O reconhecimento da localização e irradiação do


sopro contribui para facilitar sua identificação precisa (Fig. 38-2). Sons
adventícios, como o clique sistólico ou o estalido diastólico, ou anormalidades
de B1 ou B2 podem fornecer indícios adicionais. A atenção cuidadosa às
características do sopro e a outras bulhas cardíacas durante o ciclo respiratório e
a realização de manobras simples à beira do leito, quando indicado, completam o
exame auscultatório. Essas características, juntamente com as recomendações
para exames futuros, são discutidas adiante no contexto de sopros cardíacos
sistólicos, diastólicos e contínuos específicos (Tab. 38-1).
FIGURA 38-2 Intensidade máxima e irradiação de seis sopros sistólicos isolados. EAo, estenose
aórtica; MCHO, miocardiopatia hipertrófica obstrutiva; IM, insuficiência mitral; EP, estenose pulmonar;
CIV, comunicação interventricular. (De JB Barlow: Perspectives on the Mitral Valve. Philadelphia, FA
Davis, 1987, p 140.)

TABELA 38-1 ■ Principais causas de sopros cardíacos


Sopros sistólicos
Sistólico precoce
Mitral
IM aguda
CIV
Muscular
Não restritiva com hipertensão pulmonar
Tricúspide
IT com pressão arterial pulmonar normal
Mesossistólico
Aórtico
Obstrutivo
Supravalvar – EAo supravalvar, coarctação da aorta
Valvar – EAo e esclerose aórtica
Subvalvar – discreto, túnel ou MCHO
Aumento do fluxo, estados hipercinéticos, IAo, bloqueio cardíaco completo
Dilatação de aorta ascendente, ateroma, aortite
Pulmonar
Obstrutiva
Supravalvar – estenose de artéria pulmonar
Valvar – estenose da valva pulmonar
Subvalvar – estenose infundibular (dinâmica)
Aumento do fluxo, estados hipercinéticos, shunt esquerda-direita (p. ex., CIA)
Dilatação de artéria pulmonar
Sistólico tardio
Mitral
PVM, isquemia miocárdica aguda
Tricúspide
PVT
Holossistólico
Insuficiência de valva atrioventricular (IM, IT)
Shunt esquerda-direita no nível ventricular (CIV)
Sopros diastólicos precoces
IAo
Valvar: congênita (valva bicúspide), deformidade reumática, endocardite, prolapso, traumatismo, pós-valvotomia
Dilatação de anel valvar: dissecção aórtica, ectasia anuloaórtica, degeneração medial cística, hipertensão, espondilite anquilosante
Amplificação de comissuras: sífilis
Insuficiência pulmonar
Valvar: pós-valvotomia, endocardite, febre reumática, carcinoide
Dilatação de anel valvar: hipertensão pulmonar; síndrome de Marfan
Congênita: isolada ou associada a tetralogia de Fallot, CIV, estenose pulmonar
Sopros mesodiastólicos
Mitral
EM
Sopro de Carey-Coombs (sopro apical mesodiastólico na febre reumática aguda)
Aumento do fluxo através da valva mitral não estenótica (p. ex., IM, CIV, DAP, estados de alto débito e bloqueio cardíaco completo)
Tricúspide
Estenose tricúspide
Aumento do fluxo através de valva tricúspide não estenótica (p. ex., IT, CIA e retorno venoso pulmonar anômalo)
Tumores atriais esquerdos e direitos (mixoma)
IAo grave (sopro de Austin Flint)
Sopros contínuos
Ducto arterioso persistente Estenose proximal de artéria coronária
Fístula AV coronariana Sopro mamário da gravidez
Ruptura de aneurisma de seio de Valsalva Estenose de ramo arterial pulmonar
Defeito septal aórtico Circulação colateral brônquica
Zumbido venoso cervical CIA pequena (restritiva) com EM
Artéria coronária esquerda anômala Fístula AV intercostal
Siglas: IAo, insuficiência aórtica; EAo, estenose aórtica; CIA, comunicação interatrial; AV, arteriovenosa; MCHO, miocardiopatia hipertrófica
obstrutiva; IM, insuficiência mitral; EM, estenose mitral; PVM, prolapso de valva mitral; DAP, ducto arterioso persistente; IT, insuficiência
tricúspide; PVT, prolapso de valva tricúspide; CIV, comunicação interventricular.
Fonte: E Braunwald, JK Perloff, in D Zipes et al (eds): Braunwald’s Heart Disease, 7th ed. Philadelphia, Elsevier, 2005; PJ Norton, RA
O’Rourke, in E Braunwald, L Goldman (eds): Primary Cardiology, 2nd ed. Philadelphia, Elsevier, 2003.

SOPROS CARDÍACOS SISTÓLICOS


Sopros sistólicos precoces Os sopros sistólicos precoces começam com B1 e
estendem-se por um período variável de tempo, terminando muito antes de B2.
Há relativamente poucas causas para eles. A IM grave aguda em um átrio
esquerdo relativamente não complacente de tamanho normal resulta em um
sopro sistólico precoce em decrescendo mais bem auscultado no ictus cordis ou
ligeiramente medialmente a ele. Essas características refletem a atenuação
progressiva do gradiente de pressão entre o ventrículo esquerdo e o átrio
esquerdo durante a sístole devido à rápida elevação da pressão atrial esquerda
causada pela súbita carga de volume em uma câmara não preparada, não
complacente, e contrasta fortemente com as características auscultatórias da IM
crônica. Os cenários clínicos em que ocorrem insuficiência mitral grave e aguda
incluem (1) ruptura de músculo papilar que complica o infarto agudo do
miocárdio (IAM) (Cap. 269), (2) ruptura de cordoalhas tendíneas em caso de
doença mixomatosa da valva mitral (PVM) (Cap. 260), (3) endocardite
infecciosa (Cap. 123) e (4) traumatismo de parede torácica contuso.
A insuficiência mitral grave e aguda decorrente de ruptura de músculo
papilar, em geral, acompanha o IAM inferior, posterior ou lateral e ocorre 2 a 7
dias após a apresentação. Frequentemente é sinalizada por dor torácica,
hipotensão e edema pulmonar, mas pode haver ausência de sopro em até 50%
dos casos. O músculo papilar posteromedial está envolvido de 6 a 10 vezes mais
frequentemente do que o músculo papilar anterolateral. O sopro deve ser
distinguido daquele associado à ruptura septal ventricular pós-IAM, que é
acompanhada de frêmito sistólico na borda esternal esquerda em quase todos os
pacientes e é de duração holossistólica. Um novo sopro cardíaco após IAM é
uma indicação para ecocardiografia transtorácica (ETT) (Cap. 236), que
possibilita delineamento à beira do leito de sua etiologia e importância
fisiopatológica. A distinção entre IM aguda e ruptura septal ventricular também
pode ser realizada através de cateterização cardíaca direita, determinação
sequencial de saturações de oxigênio e análise das formas de pressão (onda v alta
na pressão de oclusão da artéria pulmonar na IM). As complicações mecânicas
pós-IAM dessa natureza exigem estabilização clínica agressiva e
encaminhamento imediato para reparação cirúrgica.
A ruptura espontânea da cordoalha pode complicar o curso da doença
mixomatosa da valva mitral (PVM) e resulta em IM de novo início ou “crônica
agudizada” grave. O PVM pode ocorrer como um fenômeno isolado ou a lesão
pode ser parte de um distúrbio mais generalizado de tecido conectivo, como
observado, por exemplo, em pacientes com síndrome de Marfan. A IM grave e
aguda como consequência de endocardite infecciosa resulta de destruição de
tecido do folheto, ruptura da cordoalha ou de ambos. O traumatismo fechado de
parede torácica, em geral, é autoevidente, mas pode ser sutil. Ele pode resultar
em contusão e ruptura do músculo papilar, ruptura da cordoalha ou avulsão do
folheto. A ETT é indicada em todos os casos de suspeita de IM aguda e grave,
para definir seu mecanismo e gravidade, delinear o tamanho ventricular
esquerdo e a função sistólica e fornecer uma avaliação da adequabilidade à
reparação, primária da valva.
Uma CIV muscular congênita e pequena (Cap. 264) pode estar associada a
um sopro sistólico precoce. O defeito fecha progressivamente durante a
contração septal e, portanto, o sopro é restrito à sístole precoce. Localiza-se na
borda esternal esquerda (Fig. 38-2) e, geralmente, sua intensidade é de grau 4 ou
5. Não há sinais de hipertensão pulmonar ou sobrecarga de volume ventricular
esquerdo. CIVs anatomicamente grandes e não corrigidas, que geralmente
envolvem a porção membranosa do septo, podem levar à hipertensão pulmonar.
O sopro associado ao shunt esquerda-direita, que inicialmente pode ter sido
holossistólico, torna-se limitado à primeira porção da sístole, pois a resistência
vascular pulmonar elevada leva a um aumento abrupto da pressão ventricular
direita e a uma atenuação do gradiente de pressão interventricular durante o
restante do ciclo cardíaco. Nesses casos, os sinais de hipertensão pulmonar (íctus
ventricular direito propulsivo, B2 hiperfonética e única ou quase desdobrada)
podem predominar. O sopro é mais bem auscultado ao longo da borda esternal
esquerda, mas é mais suave. A suspeita de CIV é uma indicação para ETT.
A insuficiência tricúspide (IT) (também chamada regurgitação tricúspide
[RT]) com pressões arteriais pulmonares normais, como pode ocorrer com
endocardite infecciosa, pode produzir um sopro sistólico precoce. O sopro é
suave (grau 1 ou 2), é mais bem auscultado na borda esternal inferior esquerda e
pode aumentar de intensidade com a inspiração (sinal de Carvallo). As ondas “c-
v” regurgitantes podem ser visíveis no pulso venoso jugular. A IT, nesse caso,
não está associada a sinais de insuficiência cardíaca direita.

Sopros mesossistólicos Os sopros mesossistólicos começam em um intervalo


curto após B1, terminam antes de B2 (Fig. 38-1C) e, em geral, apresentam
formato em crescendo-decrescendo. A EAo é causa mais comum de sopro
mesossistólico em paciente adulto. O sopro de EAo geralmente é mais alto no
lado direito do esterno, no segundo espaço intercostal (área aórtica, Fig. 38-2), e
irradia para as carótidas. A transmissão do sopro mesossistólico para o ápice,
onde se torna mais agudo, é comum (efeito de Gallavardin; ver anteriormente).
Pode ser difícil diferenciar esse sopro sistólico apical da IM. O sopro de
EAo aumentará de intensidade ou ficará mais alto no batimento seguinte a uma
extrassístole, enquanto o sopro de IM terá intensidade constante de batimento a
batimento. A intensidade do sopro de EAo também varia diretamente com o
débito cardíaco. Com um débito cardíaco normal, um frêmito sistólico e um
sopro de grau 4 ou maior sugere EAo grave. O sopro é mais suave no caso de
insuficiência cardíaca e baixo débito cardíaco. Outros achados auscultatórios de
EAo grave incluem A2 suave ou ausente, desdobramento paradoxal de B2, B4
apical e sopro sistólico de pico tardio. Em crianças, adolescentes e adultos
jovens com EAo valvar congênita, um som (clique) de ejeção precoce em geral é
audível, mais frequentemente ao longo da borda esternal esquerda do que na
base. Sua presença significa uma valva bicúspide flexível, não calcificada (ou
uma de suas variantes) e localiza a obstrução do fluxo ventricular esquerdo no
nível valvar (e não sub ou supravalvar).
A avaliação do volume e a taxa de aumento do pulso carotídeo podem
fornecer informações adicionais. Um pulso pequeno e tardio (parvus et tardus) é
compatível com EAo grave. O exame do pulso carotídeo, contudo, é menos
discriminatório em pacientes idosos com artérias rígidas. O eletrocardiograma
(ECG) mostra sinais de hipertrofia ventricular esquerda (HVE) à medida que a
gravidade da estenose aumenta. A ETT é indicada para avaliar as características
anatômicas da valva aórtica, a gravidade da estenose, o tamanho do ventrículo
esquerdo, a espessura e função da parede e o tamanho e contorno da raiz aórtica
e da aorta ascendente proximal.
A forma obstrutiva de miocardiopatia hipertrófica (MCHO) está associada a
um sopro mesossistólico que, em geral, é mais alto ao longo da borda esternal
esquerda ou entre a borda esternal inferior esquerda e o ápice (Cap. 254, Fig. 38
-2). O sopro é produzido pela obstrução dinâmica da via de saída do ventrículo
esquerdo e pela IM, e, portanto, sua configuração é um híbrido entre fenômenos
de ejeção e regurgitação. A intensidade do sopro pode variar de batimento para
batimento e após manobras provocativas, mas em geral não excede o grau 3. O
sopro irá classicamente aumentar de intensidade com manobras que resultam em
graus crescentes de obstrução do fluxo de saída, como uma redução da pré-carga
ou da pós-carga (Valsalva, ficar em pé, vasodilatadores) ou com aumento da
contratilidade (estimulação inotrópica). As manobras que aumentam a pré-carga
(agachamento, elevação passiva da perna, administração de volume) ou a pós-
carga (agachamento, vasopressores) ou que reduzem a contratilidade
(betabloqueadores) reduzem a intensidade do sopro. Raramente, um paciente
apresenta desdobramento invertido de B2. Podem-se observar um ictus cordis
ventricular esquerdo sustentado e uma B4. Ao contrário da EAo, o pulso
carotídeo é rápido e de volume normal. Raramente, é bisfério ou de contorno
bífido (ver Fig. 234-2D) devido ao fechamento mesossistólico da valva aórtica.
Há presença de HVE no ECG e o diagnóstico é confirmado por ETT. Embora o
sopro sistólico associado à PVM comporte-se de maneira semelhante àquele da
MCHO em resposta à manobra de Valsalva e à posição em pé ou agachada (Fig.
38-3), essas duas lesões podem ser distinguidas com base em seus achados
associados, como a presença de HVE na MCHO ou de um clique não ejetivo na
PVM.
FIGURA 38-3 Um som não ejetivo mesossistólico (C) ocorre no prolapso da valva mitral e é seguido
por um sopro sistólico tardio que se mantém crescente até a segunda bulha cardíaca (B2). A posição em pé
reduz o retorno venoso; o coração fica menor; C move-se para mais perto da primeira bulha cardíaca (B1) e
o sopro regurgitante mitral tem um início mais precoce. Com o agachamento imediato, o retorno venoso e a
pós-carga aumentam; o coração fica maior; C move-se em direção a B2 e a duração do sopro fica mais
curta. O sopro sistólico da miocardiopatia obstrutiva crônica se comporta da mesma maneira. (De JA
Shaver, JJ Leonard, DF Leon: Examination of the Heart, Part IV, Auscultation of the Heart. Dallas,
American Heart Association, 1990, p 13. Copyright, American Heart Association.)

O sopro mesossistólico, em crescendo-decrescendo, de estenose pulmonar


(EP, Cap. 264) congênita é mais bem avaliado no segundo e terceiro espaços
intercostais (área pulmonar) (Figs. 38-2 e 38-4). A duração do sopro estende-se e
a intensidade de P2 diminui com os graus crescentes de estenose valvar (Fig. 38-
1D). Um som de ejeção precoce, cuja intensidade diminui com a inspiração, é
audível em pacientes mais jovens. Uma impulsão paraesternal e evidências no
ECG de hipertrofia ventricular direita indicam sobrecarga de pressão grave. Se
obtido, o raio X de tórax pode apresentar dilatação pós-estenótica da artéria
pulmonar principal. A ETT é recomendada para a caracterização completa.

FIGURA 38-4 À esquerda. Na estenose pulmonar valvar com septo ventricular íntegro, a ejeção sistólica
ventricular direita fica progressivamente mais longa, com obstrução crescente do fluxo. Como resultado, o
sopro fica mais longo e mais alto, envolvendo o componente aórtico da segunda bulha cardíaca (A2). O
componente pulmonar (P2) ocorre mais tarde, e o desdobramento fica mais amplo, mas mais difícil de
auscultar, porque A2 fica perdido no sopro e P2 fica progressivamente mais fraco e com tom mais grave. À
medida que o gradiente pulmonar aumenta, a contração isométrica encurta até que o som de ejeção valvar
pulmonar funde-se com a primeira bulha cardíaca (B1). Na estenose pulmonar grave com hipertrofia
concêntrica e complacência ventricular direita decrescente, surge uma quarta bulha cardíaca. À direita. Na
tetralogia de Fallot com obstrução crescente, na área infundibular pulmonar, uma quantidade crescente de
sangue ventricular direito é desviada por meio do defeito septal ventricular silencioso e o fluxo através do
trato do fluxo obstruído diminui. Portanto, com a obstrução crescente, o sopro fica mais curto, mais precoce
e mais fraco. P2 está ausente na tetralogia de Fallot grave. Uma raiz aórtica grande recebe quase todo o
débito cardíaco de ambas as câmaras ventriculares, e a aorta se dilata e é acompanhada por um som ejetivo
da raiz que não varia com a respiração. (De JA Shaver, JJ Leonard, DF Leon: Examination of the Heart,
Part IV, Auscultation of the Heart. Dallas, American Heart Association, 1990, p 45. Copyright, American
Heart Association.)

O shunt intracardíaco esquerda-direita significativo devido a uma CIA (Cap


. 264) conduz a um aumento do fluxo sanguíneo pulmonar e a um sopro
mesossistólico de grau 2-3 na borda esternal esquerda medial ou superior
atribuído a taxas aumentadas de fluxo através da valva pulmonar com
desdobramento fixo de B2. As CIAs do tipo ostium secundum são as causas mais
comuns desses shunts em adultos. As características sugestivas de CIA do tipo
ostium primum incluem a coexistência de IM causada por fissura do folheto
anterior da valva mitral e desvio do eixo esquerdo do complexo QRS no ECG.
Com CIA do seio venoso, o shunt esquerda-direita geralmente não é grande o
suficiente para resultar em sopro sistólico, embora o ECG possa apresentar
anormalidades da função do nodo sinusal. Um sopro mesossistólico de grau 2 ou
3 também pode ser mais bem auscultado na borda esternal superior esquerda em
pacientes com dilatação idiopática da artéria pulmonar; também há presença de
um som de ejeção pulmonar nesses pacientes. A ETT é indicada para avaliar
sopros mesossistólicos de grau 2 ou 3 quando há outros sinais de doença
cardíaca.
Um sopro mesossistólico de grau 1 ou 2 isolado, auscultado na ausência de
sinais ou sintomas de cardiopatia, é mais frequentemente um achado benigno
para o qual não há necessidade de nenhuma avaliação adicional, incluindo a
ETT. O exemplo mais comum de sopro desse tipo em um paciente idoso é o
sopro em crescendo-decrescendo da esclerose da valva aórtica, audível no
segundo espaço intercostal direito (Fig. 38-2). A esclerose aórtica é definida
como espessamento e calcificação focais da valva aórtica até um grau em que
não interfira na abertura do folheto. Os pulsos carotídeos são normais e não há
presença de HVE eletrocardiográfica. Um sopro mesossistólico de grau 1 ou 2
pode com frequência ser auscultado na borda esternal esquerda em caso de
gravidez, hipertireoidismo ou anemia, estados fisiológicos que estão associados
ao fluxo sanguíneo acelerado. O sopro de Still refere-se a um sopro
mesossistólico vibratório ou musical de grau 2, benigno, na borda esternal
medial ou inferior esquerda em crianças e adolescentes normais, mais bem
auscultados na posição supina (Fig. 38-2).

Sopros sistólicos tardios Um sopro sistólico tardio, que é mais bem audível no
ápice ventricular esquerdo, é frequentemente causado pela PVM (Cap. 260).
Muitas vezes, esse sopro é introduzido por um ou mais cliques não ejetivos. A
irradiação do sopro pode ajudar a identificar o folheto mitral específico
envolvido no processo de prolapso, ou flail. O termo flail refere-se ao
movimento feito por uma porção não sustentada do folheto (geralmente a ponta)
após perda de sua(s) fixação(ões) à cordoalha. Com prolapso ou flail do folheto
posterior, o jato resultante de IM é dirigido anterior e medialmente, o que faz o
sopro se irradiar para a base do coração e mascarar-se como EAo. O prolapso ou
flail do folheto anterior resulta em um jato de IM direcionado posteriormente
que se irradia para as axilas ou para a região infraescapular esquerda. O flail do
folheto está associado a um sopro de intensidade de grau 3 ou 4 que pode ser
auscultado em todo o precórdio nos pacientes com tórax magro. A presença de
uma B3 ou de um sopro mesodiastólico curto e com ruflar decorrente de fluxo
aumentado significa que há IM grave.
Manobras à beira do leito que reduzem a pré-carga ventricular esquerda,
como ficar em pé, farão o clique e o sopro da PVM aproximarem-se da primeira
bulha cardíaca, já que o prolapso do folheto ocorre mais cedo na sístole. A
posição em pé também faz o sopro ficar mais alto e mais longo. Na posição de
agachamento, a pré-carga ventricular esquerda e a pós-carga são aumentadas
abruptamente, levando a um aumento do volume ventricular esquerdo, e o clique
e sopro abandonam a primeira bulha cardíaca, à medida que o prolapso do
folheto é retardado; o sopro fica mais suave e apresenta duração mais curta (Fig.
38-3). Como observado anteriormente, essas respostas às posições em pé e de
agachamento são direcionalmente semelhantes àquelas observadas nos pacientes
com MCHO.
Um sopro sistólico apical tardio indicativo de IM pode ser auscultado
transitoriamente no contexto de isquemia miocárdica aguda; ele é causado por
retração apical e má coaptação dos folhetos em resposta a alterações estruturais e
funcionais do ventrículo e do ânulo mitral. A intensidade do sopro varia em
função da pós-carga ventricular esquerda e aumentará em caso de hipertensão. A
ETT é recomendada para avaliação de sopros sistólicos tardios.

Sopros holossistólicos (Figs. 38-1B e 38-5) Sopros holossistólicos começam


com B1 e continuam durante a sístole até B2. Em geral, eles são indicativos de
insuficiência crônica da valva mitral ou tricúspide ou de CIV e justificam a ETT
para uma melhor caracterização. O sopro holossistólico da IM crônica é mais
bem auscultado no ápice do ventrículo esquerdo e se irradia para as axilas (Fig.
38-2); geralmente tem um tom agudo e configuração em platô devido à ampla
diferença entre a pressão ventricular e a atrial esquerdas em toda a sístole. Ao
contrário da IM aguda, a complacência atrial esquerda é normal ou mesmo
aumentada na IM crônica. Como resultado, há apenas um pequeno aumento na
pressão atrial esquerda para qualquer aumento do volume regurgitante.

FIGURA 38-5 Diagnóstico diferencial de um sopro holossistólico.

Vários distúrbios são associados a IM crônica e a um sopro holossistólico


apical, como a cicatrização reumática dos folhetos, a calcificação anular mitral, o
remodelamento ventricular esquerdo pós-infarto e o grande aumento da câmara
ventricular esquerda. A circunferência do ânulo mitral aumenta à medida que o
ventrículo esquerdo se dilata e leva à insuficiência da coaptação dos folhetos
com IM central em pacientes com miocardiopatia dilatada (Cap. 254). A
gravidade da IM é acentuada por qualquer contribuição do deslocamento apical
dos músculos papilares e retração dos folhetos (remodelamento). Pelo fato de o
ânulo mitral ser contíguo ao endocárdio atrial esquerdo, o aumento gradual do
átrio esquerdo devido à IM crônica resultará em mais estiramento do ânulo e
mais IM; portanto, “IM gera IM”. A IM grave crônica resulta em aumento e
deslocamento para a esquerda do batimento do ápice do ventrículo esquerdo e,
em alguns pacientes, em um complexo de enchimento diastólico, como descrito
anteriormente (Fig. 38-1G).
O sopro holossistólico da IT crônica em geral é mais suave do que o da IM,
é mais alto na borda esternal esquerda inferior e normalmente aumenta de
intensidade com a inspiração (sinal de Carvallo). Os sinais associados incluem
ondas c-v no pulso venoso jugular, fígado aumentado e pulsátil, ascite e edema
periférico. As formas de onda venosa jugular anormal são o achado
predominante e, muito frequentemente, são observadas na ausência de um sopro
audível, apesar da verificação de IT na ecocardiografia com Doppler. As causas
de IT primária incluem doença mixomatosa (prolapso), endocardite, doença
reumática, radiação, carcinoide, anomalia de Ebstein e separação da cordoalha
como complicação de biópsia endomiocárdica ventricular direita. A IT é muito
mais comumente um processo passivo que resulta secundariamente de aumento
anular devido à dilatação ventricular direita em face de sobrecarga de volume ou
de pressão ou ao remodelamento ventricular direito.
O sopro holossistólico de uma CIV é mais alto na borda esternal esquerda
de medial a inferior (Fig. 38-2) e irradia-se amplamente. Ocorre um frêmito no
local de intensidade máxima na maioria dos pacientes. Não há mudanças na
intensidade do sopro com a inspiração. A intensidade do sopro varia em função
do tamanho anatômico do defeito. CIVs restritivas, pequenas, como
exemplificado pela doença de Roger, criam um sopro muito alto devido ao
gradiente de pressão sistólica significativo e contínuo entre os ventrículos
esquerdo e direito. Com defeitos grandes, as pressões ventriculares tendem a se
equalizar, o fluxo do shunt é equilibrado e não se ausculta sopro. A distinção
entre ruptura septal ventricular pós-IAM e IM foi revisada anteriormente.

SOPROS CARDÍACOS DIASTÓLICOS


Sopros diastólicos precoces (Fig.38-1E) A IAo crônica resulta em sopro agudo,
em assovio, em decrescendo, de precoce a mesodiastólico, que começa após o
componente aórtico de B2 (A2) e é mais bem auscultado no segundo espaço
intercostal direito. O sopro pode ser suave e difícil de auscultar, a menos que a
ausculta seja realizada com o paciente inclinado para frente, no final da
expiração. Essa manobra leva a raiz aórtica para mais perto da parede torácica
anterior. A irradiação do sopro pode fornecer um indício para a causa da IAo.
Com doença valvar primária, como aquela causada por doença bicúspide
congênita, prolapso ou endocardite, o sopro diastólico tende a se irradiar ao
longo da borda esternal esquerda, onde frequentemente é mais alto do que o
examinado no segundo espaço intercostal direito. Quando a IAo é causada por
doença da raiz aórtica, o sopro diastólico pode irradiar-se ao longo da borda
esternal direita. As doenças da raiz aórtica causam dilatação ou distorção do
ânulo aórtico e falha de coaptação dos folhetos. As causas incluem a síndrome
de Marfan com formação de aneurisma, ectasia anuloaórtica, espondilite
anquilosante e dissecção aórtica.
A IAo grave e crônica também pode produzir um sopro diastólico de grau 1
ou 2, de tom mais grave, de médio a tardio no ápice (sopro de Austin Flint), que,
acredita-se, reflete turbulência na área de influxo mitral devido à mistura de
fluxo sanguíneo regurgitante (aórtico) e anterógrado (mitral). Esse sopro
diastólico apical de tom mais grave pode ser distinguido daquele causado por
EM pela ausência de um estalido de abertura e pela resposta do sopro a um
desafio com vasodilatador. A redução da pós-carga com um agente, como o
nitrito de amila, diminuirá a duração e magnitude do gradiente de pressão
diastólica ventricular esquerda-aórtica, e, portanto, o sopro de Austin Flint de
IAo grave ficará mais curto e mais suave. A intensidade do sopro diastólico da
EM (Fig. 38-6) pode continuar constante ou aumentar com a redução da pós-
carga, devido ao aumento reflexo do débito cardíaco e do fluxo da valva mitral.

FIGURA 38-6 Sopro de enchimento diastólico (ruflar) na estenose mitral. Na estenose mitral leve, o
gradiente diastólico da valva é limitado às fases de enchimento ventricular rápido na diástole precoce e na
pré-sístole. O ruflar pode ocorrer durante um ou outro período ou em ambos. À medida que o processo de
estenose torna-se grave, há um gradiente maior de pressão através da valva durante todo o período de
enchimento diastólico, e o ruflar persiste por toda a diástole. À medida que a pressão atrial esquerda torna-
se maior, o intervalo entre A2 (ou P2) e o estalido de abertura (EA) encurta-se. Na estenose mitral grave,
desenvolve-se hipertensão pulmonar secundária que resulta em P2 hiperfonético, e o intervalo de
desdobramento, em geral, estreita-se. ECG, eletrocardiograma. (De JA Shaver, JJ Leonard, DF Leon:
Examination of the Heart, Part IV, Auscultation of the Heart. Dallas, American Heart Association, 1990, p
55. Copyright, American Heart Association.)

Embora a EAo e a IAo possam coexistir, um sopro mesossistólico em


crescendo-decrescendo de grau 2 ou 3 frequentemente é auscultado na base do
coração em pacientes com IAo grave isolada e é causado por aumento do
volume e da taxa de fluxo sistólico. A identificação precisa à beira do leito de
EAo coexistente pode ser difícil, a menos que o exame de pulso carotídeo seja
anormal ou o sopro mesossistólico seja de grau 4 ou de maior intensidade. Na
ausência de insuficiência cardíaca, a IAo grave crônica é acompanhada de vários
sinais periféricos de retorno diastólico significativo, incluindo uma pressão de
pulso ampla, pulso carotídeo em martelo d’água (pulso de Corrigan) e pulsações
de Quincke dos leitos ungueais. O sopro diastólico da IAo aguda grave é
notavelmente de duração mais curta e de tom mais grave do que o sopro da IAo
crônica. Pode ser muito difícil de avaliar na presença de taquicardia. Esses
atributos refletem a taxa abrupta de elevação da pressão diastólica dentro do
ventrículo esquerdo não preparado e não complacente e a queda
correspondentemente rápida do gradiente de pressão diastólica aórtica-
ventricular esquerda. A pressão diastólica ventricular esquerda pode aumentar
suficientemente até resultar em fechamento prematuro da valva mitral e em uma
primeira bulha cardíaca suave. Não há presença de sinais periféricos de retorno
diastólico significativo.
A insuficiência pulmonar (IP) resulta em um sopro de precoce a
mesodiastólico em decrescendo (sopro de Graham Steell) que começa após o
componente pulmonar de B2 (P2), é mais bem auscultado no segundo espaço
intercostal esquerdo e se irradia ao longo da borda esternal esquerda. A
intensidade do sopro pode aumentar com a inspiração. Mais comumente, a IP é
causada por dilatação do ânulo valvar devido à elevação crônica da pressão da
artéria pulmonar. Sinais de hipertensão pulmonar, como a elevação do ventrículo
direito e uma B2 hiperfonética, única ou estreitamente desdobrada, estão
presentes. Essas características também ajudam a distinguir a IP da IAo como
causa de um sopro diastólico em decrescendo audível ao longo da borda esternal
esquerda. Pode ocorrer IP na ausência de hipertensão pulmonar com endocardite
ou com valva congenitamente deformada. A IP geralmente está presente após o
reparo de tetralogia de Fallot na infância. Quando não há hipertensão pulmonar,
o sopro diastólico é mais suave e de tom mais grave do que o sopro clássico de
Graham Steell e pode ser difícil avaliar a gravidade da IP.
A ETT é indicada para uma avaliação adicional de um paciente com sopro
de precoce a mesodiastólico. A avaliação longitudinal da gravidade da lesão, do
tamanho do ventrículo e da função sistólica ajuda a direcionar uma potencial
decisão para o tratamento cirúrgico. A ETT também pode fornecer informações
anatômicas em relação à raiz da aorta e à sua porção ascendente proximal,
embora a angiografia por ressonância magnética ou a tomografia
computadorizada possam ser indicadas para uma caracterização mais precisa (C
ap. 236).

Sopros mesodiastólicos (Figs. 38-1F e 38-1G) Os sopros mesodiastólicos


resultam de obstrução e/ou fluxo aumentado no nível da valva mitral ou
tricúspide. A febre reumática é a causa mais comum de EM (Fig. 38-6). Em
pacientes mais jovens com valvas flexíveis, a B1 é hiperfonética e o sopro
começa após um estalido de abertura, que é um som agudo que ocorre
imediatamente após B2. O intervalo entre o componente pulmonar da segunda
bulha cardíaca (P2) e o estalido de abertura é inversamente relacionado com a
magnitude do gradiente de pressão atrial e ventricular esquerdos. O sopro de EM
é de tom grave e, portanto, mais bem auscultado com a campânula do
estetoscópio. É mais alto no ápice do ventrículo esquerdo e frequentemente é
reconhecido apenas quando o paciente está em posição de decúbito lateral
esquerdo. Em geral, tem intensidade de grau 1 ou 2, mas pode estar ausente
quando o débito cardíaco estiver gravemente reduzido apesar de obstrução
significativa. A intensidade do sopro aumenta durante as manobras que
aumentam o débito cardíaco e o fluxo da valva mitral, como exercícios. A
duração do sopro reflete a extensão de tempo durante a qual a pressão atrial
esquerda excede a pressão diastólica ventricular esquerda. Um aumento da
intensidade do sopro imediatamente antes de B1, um fenômeno conhecido como
reforço pré-sistólico (Figs. 38-1A e 38-6), ocorre em pacientes em ritmo sinusal
e é causado por aumento tardio do fluxo transmitral com contração atrial. A
reforço pré-sistólico não ocorre em pacientes com fibrilação atrial.
O sopro mesodiastólico associado à estenose tricúspide é mais bem
auscultado na borda esternal esquerda inferior e aumenta de intensidade com a
inspiração. Uma deflexão y prolongada descendente pode ser visível sob a forma
de onda venosa jugular. Esse sopro é muito difícil de auscultar e frequentemente
é obscurecido pelos eventos acústicos do lado esquerdo.
Existem várias outras causas para os sopros mesodiastólicos. Mixomas
atriais esquerdos de tamanho grande podem sofrer prolapso ao longo da valva
mitral e causar graus variáveis de obstrução ao influxo ventricular esquerdo (Ca
p. 266). O sopro associado a um mixoma atrial pode mudar de duração e
intensidade com alterações na posição do corpo. Não há presença de estalido de
abertura e não há reforço pré-sistólico. Um fluxo diastólico mitral aumentado
pode ocorrer com IM grave isolada ou com um grande shunt esquerda-direita no
nível ventricular ou de grande vaso e produzir uma bulha (B3) de enchimento
rápido e suave seguida de um sopro apical mesodiastólico curto e de tom grave (
Fig. 38-1G). O sopro de Austin Flint da IAo crônica grave já foi descrito.
Um sopro mesodiastólico curto raramente é auscultado durante um episódio
de febre reumática aguda (sopro de Carey-Coombs) e provavelmente é causado
pelo fluxo através de uma valva mitral edematosa. Não há presença de estalido
de abertura na fase aguda, e o sopro se dissipa com a resolução do quadro agudo.
O bloqueio cardíaco completo com ativação atrial e ventricular dessincronizada
pode estar associado a sopros mesodiastólicos ou diastólicos tardios
intermitentes se a contração atrial ocorrer quando a valva mitral estiver
parcialmente fechada. Os sopros mesodiastólicos indicativos de aumento do
fluxo da valva tricúspide podem ocorrer com IT isolada grave, com CIAs
grandes e com shunt esquerda-direita significativo. Outros sinais de CIA estão
presentes (Cap. 264), incluindo desdobramento de B2 e um sopro mesossistólico
na borda esternal esquerda média a superior. A ETT é indicada para avaliação de
um paciente com sopro mesodiastólico ou tardio. Achados específicos de
doenças discutidas anteriormente ajudarão a orientar o tratamento.

SOPROS CONTÍNUOS
(Figs. 38-1H e 38-7) Sopros contínuos começam na sístole, atingem o pico
próximo à segunda bulha cardíaca e continuam em toda ou parte da diástole. Sua
presença em todo o ciclo cardíaco implica um gradiente de pressão entre duas
câmaras ou vasos durante a sístole e a diástole. O sopro contínuo associado a um
ducto arterioso persistente é mais bem auscultado na borda esternal esquerda
superior. Shunts grandes e não corrigidos podem levar a hipertensão pulmonar,
atenuação ou obliteração do componente diastólico do sopro, reversão do fluxo
do shunt e cianose diferencial dos membros inferiores. Um aneurisma roto do
seio de Valsalva cria um sopro contínuo de início abrupto na borda esternal
direita superior. A ruptura geralmente ocorre em uma câmara cardíaca direita, e o
sopro é indicativo de uma diferença de pressão contínua entre a aorta e o
ventrículo direito ou o átrio direito. Um sopro contínuo também pode ser audível
ao longo da borda esternal esquerda com uma fístula arteriovenosa coronariana e
no local de uma fístula arteriovenosa usada para acesso à hemodiálise. O
aumento do fluxo através das artérias colaterais intercostais aumentadas em
pacientes com coarctação aórtica pode produzir um sopro contínuo na extensão
de uma ou mais costelas. Um ruído cervical com componentes sistólicos e
diastólicos (um sopro sistodiastólico, Fig. 38-7) geralmente indica uma estenose
de artéria carotídea de alto grau.
FIGURA 38-7 Comparação entre sopro contínuo e sopro sistodiastólico. Durante a comunicação
anormal entre sistemas de alta pressão e de baixa pressão, existe um grande gradiente de pressão em todo o
ciclo cardíaco, produzindo um sopro contínuo. Um exemplo clássico é o ducto arterioso persistente. Às
vezes, esse tipo de sopro pode ser confundido com um sopro sistodiastólico, que é uma combinação de
sopro de ejeção sistólica e de um sopro de incompetência de valva semilunar. Um exemplo clássico de
sopro sistodiastólico é a estenose e a insuficiência aórticas. Um sopro contínuo ocorre em crescendo
próximo à segunda bulha (B2), enquanto o sopro sistodiastólico tem dois componentes. O componente de
ejeção mesossistólica ocorre em decrescendo e desaparece à medida que se aproxima de B2. (De JA Shaver,
JJ Leonard, DF Leon: Examination of the Heart, Part IV, Auscultation of the Heart. Dallas, American
Heart Association, 1990, p 55. Copyright, American Heart Association.)

Nem todos os sopros contínuos são patológicos. Um zumbido venoso


contínuo pode ser auscultado em crianças e adultos jovens sadios, especialmente
durante a gravidez; ele é mais bem avaliado na fossa supraclavicular direita e
pode ser obliterado por compressão sobre a veia jugular interna direita ou
fazendo o paciente virar a cabeça na direção do médico. O sopro mamário
contínuo da gravidez é gerado por um aumento do fluxo arterial através de
mamas ingurgitadas e normalmente aparece durante o último trimestre ou no
início do puerpério. O sopro é mais alto na sístole. A pressão firme com o
diafragma do estetoscópio pode eliminar a porção diastólica do sopro.

AUSCULTA DINÂMICA
(Tab. 38-2; ver Tab. 234-1) A atenção cuidadosa ao comportamento dos sopros
cardíacos durante manobras simples que alteram a hemodinâmica cardíaca pode
fornecer indícios importantes sobre sua causa e seu significado.

TABELA 38-2 ■ Ausculta dinâmica: manobras à beira do leito que podem ser usadas para mudar a
intensidade dos sopros cardíacos (ver texto)
1. Respiração
2. Exercício isométrico (manobra de preensão manual (handgrip)
3. Oclusão arterial transitória
4. Manipulação farmacológica de pré-carga e/ou pós-carga
5. Manobra de Valsalva
6. Levantar-se/agachar-se rapidamente
7. Elevação passiva da perna
8. Batimento pós-extrassístole

Respiração A ausculta deve ser realizada durante a respiração silenciosa ou com


um pequeno aumento do esforço inspiratório, já que o movimento vigoroso do
tórax tende a obscurecer as bulhas cardíacas. Os sopros do lado esquerdo podem
ser mais bem auscultados ao final da expiração, quando os volumes pulmonares
são minimizados e o coração e os grandes vasos são trazidos para mais perto da
parede torácica. Esse fenômeno é característico do sopro de IAo. Os sopros com
origem do lado direito, como a insuficiência tricúspide ou pulmonar, aumentam
de intensidade durante a inspiração. A intensidade dos sopros do lado esquerdo
continua constante ou diminui com a inspiração.
A avaliação à beira do leito também deve avaliar o comportamento de B2
com a respiração e a relação dinâmica entre os componentes aórticos e
pulmonares (Fig. 38-8). O desdobramento paradoxal pode ser uma característica
de EAo grave, MCHO, bloqueio de ramo esquerdo, estimulação elétrica
ventricular direita ou isquemia miocárdica aguda graves. O desdobramento fixo
de B2 na presença de um sopro mesossistólico de grau 2 ou 3 na borda esternal
esquerda média ou superior indica CIA. O desdobramento fisiológico, mas
amplo, durante o ciclo respiratório, implica em fechamento prematuro de valva
aórtica, como ocorre com IM grave, ou fechamento tardio de valva pulmonar
devido a EP ou bloqueio de ramo direito.
FIGURA 38-8 No alto. Desdobramento fisiológico normal. Durante a expiração, os componentes aórticos
(A2) e pulmonares (P2) da segunda bulha cardíaca são separados por < 30 ms e são escutados como uma
única bulha. Durante a inspiração, o intervalo de desdobramento amplia-se e A2 e P2 são claramente
separados em duas bulhas distintas. Embaixo. Desdobramento expiratório audível. O desdobramento
fisiológico amplo é causado por um atraso de P2 (como, por exemplo, no bloqueio de ramo direito) ou por
fechamento precoce da valva aórtica (A2, como na insuficiência mitral grave). O desdobramento paradoxal
é produzido por um atraso em A2, resultando em movimento paradoxal, isto é, com a inspiração, P2 move-
se em direção a A2 e o intervalo de desdobramento é estreitado. O desdobramento fisiológico estreito ocorre
na hipertensão pulmonar e tanto A2 como P2 são audíveis durante a expiração em um intervalo de
desdobramento estreito devido ao aumento da intensidade e composição de alta frequência de P2. (De JA
Shaver, JJ Leonard, DF Leon: Examination of the Heart, Part IV, Auscultation of the Heart. Dallas,
American Heart Association, 1990, p 17. Copyright, American Heart Association.)

Alterações da resistência vascular sistêmica Os sopros podem mudar as


características após manobras que alteram a resistência vascular sistêmica e a
pós-carga ventricular esquerda. Os sopros sistólicos da IM e da CIV ficam mais
altos durante a manobra de preensão manual (handgrip), a insuflação simultânea
dos manguitos de pressão arterial em ambos os membros superiores até pressões
de 20 a 40 mmHg acima da pressão sistólica por 20 segundos ou a infusão de um
agente vasopressor. Os sopros associados a EAo ou MCHO ficarão mais suaves
ou continuarão sem alterações com essas manobras. O sopro diastólico da IAo
fica mais alto em resposta a intervenções que elevam a resistência vascular
sistêmica.
Alterações opostas nos sopros sistólicos e diastólicos podem ocorrer com o
uso de agentes farmacológicos que reduzem a resistência vascular sistêmica. A
inalação de nitrito de amila é hoje raramente usada para esse propósito, mas
pode ajudar a distinguir o sopro da EAo ou MCHO daquele da IM ou CIV, se
necessário. Os dois primeiros sopros aumentam de intensidade, enquanto os
últimos ficam mais suaves após exposição ao nitrito de amila. Como observado
anteriormente, o sopro de Austin Flint da IAo grave fica mais suave, mas o ruído
mesodiastólico da EM fica mais alto, em resposta à redução abrupta da
resistência vascular sistêmica com nitrito de amila.

Alterações no retorno venoso A manobra de Valsalva resulta em um aumento


da pressão intratorácica, seguido por uma redução do retorno venoso, do
enchimento ventricular e do débito cardíaco. A maioria dos sopros diminui de
intensidade durante a fase de esforço da manobra. As duas exceções notáveis são
os sopros associados ao PVM e à MCHO, sendo que ambos ficam mais altos
durante a manobra de Valsalva. O sopro do PVM também pode tornar-se mais
longo quando ocorre prolapso do folheto mais precoce na sístole com volumes
ventriculares menores. Esses sopros comportam-se de maneira semelhante e
paralela na posição em pé. Tanto o clique como o sopro do PVM aproximam-se
da B1 ao levantar-se rapidamente de uma posição de agachamento (Fig. 38-3). O
aumento na intensidade do sopro da MCHO baseia-se no aumento do gradiente
dinâmico do trato do fluxo ventricular esquerdo que ocorre com a redução do
enchimento ventricular. O agachamento resulta em aumentos abruptos tanto no
retorno venoso (pré-carga) como na pós-carga ventricular esquerda que aumenta
o volume ventricular, mudanças que previsivelmente causam uma redução da
intensidade e duração dos sopros associados a PVM e MCHO; o clique e o sopro
da PVM afastam-se de B1 com o agachamento. A elevação passiva da perna
pode ser usada para aumentar o retorno venoso em pacientes que não conseguem
agachar-se ou ficar em pé. Essa manobra pode levar a uma redução da
intensidade do sopro associada à MCHO, mas tem menos efeito em pacientes
com PVM.

Contração ventricular após extrassístole Uma mudança na intensidade de um


sopro sistólico no primeiro batimento após uma extrassístole, ou no batimento
após um ciclo de longa duração nos pacientes com fibrilação atrial, pode ajudar a
distinguir EAo de IM, particularmente em um paciente idoso no qual o sopro de
EAo é bem transmitido para o ápice. Os sopros sistólicos causados por obstrução
do fluxo ventricular esquerdo, como aquele causado por EAo, aumentam de
intensidade no batimento após uma extrassístole devido a efeitos combinados de
aumento do enchimento ventricular esquerdo e potencialização pós-
extrassistólica da função contrátil. O fluxo anterógrado se acelera, provocando
um aumento do gradiente e um sopro mais alto. A intensidade do sopro de IM
não muda no batimento pós-extrassístole, pois há relativamente pouco aumento
do fluxo da valva mitral ou alterações no gradiente ventricular esquerdo para o
atrial esquerdo.

CONTEXTO CLÍNICO
Outros indícios sobre a etiologia e a importância de um sopro cardíaco podem
ser coletados a partir da história e de outros achados do exame físico. Os
sintomas sugestivos de doença cardiovascular, neurológica ou pulmonar ajudam
a enfocar o diagnóstico diferencial, assim como os achados relevantes para a
pressão venosa jugular e as formas de onda, os pulsos arteriais, outras bulhas
cardíacas, os pulmões, o abdome, a pele e as extremidades também ajudam. Em
muitos casos, exames laboratoriais, ECG e/ou raios X de tórax podem ter sido
obtidos anteriormente e podem conter informações valiosas. Um paciente com
suspeita de endocardite infecciosa, por exemplo, pode ter um sopro em um
contexto de febre, calafrios, anorexia, fadiga, dispneia, esplenomegalia,
petéquias e hemoculturas positivas. Um sopro sistólico novo em um paciente
com queda acentuada da pressão arterial após IAM recente sugere ruptura do
miocárdio. Em contrapartida, um sopro mesossistólico isolado de grau 1 ou 2 na
borda esternal esquerda em um adulto jovem sadio, ativo e assintomático é mais
provavelmente um achado benigno para o qual nenhuma avaliação adicional é
indicada. O contexto no qual o sopro é avaliado frequentemente exprime a
necessidade de exames adicionais e a velocidade da avaliação.

ECOCARDIOGRAFIA
(Fig. 38-9; Caps. 234 e 236) A ecocardiografia com fluxo em cores e Doppler
espectral é uma ferramenta valiosa para a avaliação de sopros cardíacos. As
informações em relação a estrutura e função valvar, tamanho da câmara,
espessura da parede, função ventricular, pressões arteriais pulmonares estimadas,
fluxo de shunt intracardíaco, fluxo venoso pulmonar e hepático e fluxo aórtico
podem ser imediatamente verificadas. É importante observar que sinais de
Doppler de insuficiência valvar mínima ou leve sem consequências clínicas
podem ser detectados com valvas tricúspides, pulmonares e mitrais
estruturalmente normais. Esses sinais provavelmente não geram turbulência
suficiente para criar um sopro audível.
A ecocardiografia é indicada para a avaliação de pacientes com sopros
precoces, tardios ou holossistólicos e para pacientes com sopros mesossistólicos
de grau 3 ou mais altos. Os pacientes com sopros mesossistólicos de grau 1 ou 2,
mas com outros sinais ou sintomas de doença cardiovascular, incluindo aqueles
de ECG ou raios X, também devem ser submetidos à ecocardiografia. A
ecocardiografia também é indicada para a avaliação de qualquer paciente com
sopro diastólico e para pacientes com sopros contínuos não causados por um
zumbido venoso ou sopro mamário. A ecocardiografia deve ser considerada
quando há uma necessidade clínica de verificar a estrutura e a função cardíacas
normais de um paciente cujos sinais e sintomas provavelmente são de origem
não cardíaca. A realização de ecocardiografia seriada para acompanhar a
evolução de indivíduos assintomáticos com cardiopatia valvar é uma
característica primordial de sua avaliação longitudinal e fornece informações
valiosas que podem influenciar consideravelmente as decisões quanto ao
momento da cirurgia. A ecocardiografia de rotina não é recomendada para
pacientes assintomáticos com sopro mesossistólico de grau 1 ou 2 sem outros
sinais de cardiopatia. Para essa categoria de pacientes, o encaminhamento a um
especialista cardiovascular deve ser considerado se houver dúvidas sobre a
importância do sopro após o exame inicial.
O uso seletivo de ecocardiografia delineado anteriormente não foi
submetido a uma análise rigorosa do custo-benefício. Para alguns médicos, os
dispositivos portáteis ou miniaturizados de ultrassonografia cardíaca
substituíram o estetoscópio. Embora vários relatos atestem a sensibilidade
aperfeiçoada desses dispositivos para a detecção de cardiopatia valvar (p. ex.,
cardiopatia reumática em populações suscetíveis), a acurácia depende fortemente
do operador, e as considerações sobre o aumento do custo e os desfechos não
foram adequadamente abordadas na maioria das situações clínicas. O uso de
estetoscópios eletrônicos ou digitais com recursos como display espectral
também foi proposto como método para melhorar a caracterização dos sopros
cardíacos e o ensino orientado da ausculta cardíaca.

OUTROS TESTES CARDÍACOS


(Cap. 236, Fig. 38-9) Em relativamente poucos pacientes, a avaliação clínica e a
ETT não caracterizam de maneira adequada a origem e importância de um sopro
cardíaco. A ecocardiografia transesofágica (ETE) pode ser considerada para
avaliação adicional, especialmente quando as janelas de ETT são limitadas por
tamanho do corpo, configuração do tórax ou patologia intratorácica. A ETE
oferece sensibilidade aumentada para a detecção de uma grande variedade de
distúrbios cardíacos estruturais. O exame de ressonância magnética cardíaca
(RMC) com sincronia eletrocardiográfica, embora de capacidade limitada para
apresentar a morfologia valvar, pode fornecer informações quantitativas em
relação a funcionamento valvar, gravidade da estenose, fração regurgitante,
volume regurgitante, fluxo do shunt, tamanho dos grandes vasos e da câmara,
função ventricular e perfusão miocárdica. A RMC suplantou de longe a
necessidade de cateterização cardíaca e a avaliação hemodinâmica invasiva
quando há uma discrepância entre os achados clínicos e ecocardiográficos. A
angiografia coronariana invasiva é realizada rotineiramente na maioria dos
pacientes adultos antes da cirurgia valvar, especialmente quando há suspeita de
coronariopatia com base nos sintomas, fatores de risco e/ou idade. O uso da
angiotomografia coronariana (angio-TCC) para excluir doença da artéria
coronária em pacientes selecionados com baixa probabilidade pré-teste de
doença antes de cirurgia valvar tem ganhado aceitação mais ampla.
FIGURA 38-9 Estratégia para a avaliação de sopros cardíacos. *Se um eletrocardiograma ou raio X de
tórax tiverem sido obtidos e forem anormais, a ecocardiografia é indicada. ETT, ecocardiografia
transtorácica; ETE, ecocardiografia transesofágica; RM, ressonância magnética. (Adaptada de RO Bonow et
al: J Am Coll Cardiol 32:1486, 1998.)

ABORDAGEM INTEGRADA
A identificação precisa de um sopro começa com uma abordagem sistemática à
ausculta cardíaca. A caracterização de seus principais atributos, como revisado
anteriormente, possibilita ao examinador construir um diagnóstico diferencial
preliminar, que é depois refinado pela integração das informações disponíveis a
partir da anamnese, de achados cardíacos associados, do exame físico geral e do
contexto clínico. A necessidade e a urgência de exames adicionais vêm em
seguida. A correlação dos achados à ausculta com os dados não invasivos
fornece um recurso de informação adicional e uma oportunidade de aumentar as
habilidades para o exame físico. Restrições de custos exigem que os exames de
imagem não invasivos sejam justificados com base em sua contribuição para o
diagnóstico, tratamento e prognóstico. A ausculta cardíaca com o uso de um
estetoscópio permanece sendo uma tradição médica honrada pelo tempo e cujos
benefícios se estendem além do reconhecimento acurado dos sons cardíacos. A
sua potencialização seletiva (em vez da substituição total) com ultrassonografia
portátil e tecnologias mais novas pode melhorar a acurácia diagnóstica e orientar
melhor as decisões terapêuticas.

LEITURAS ADICIONAIS
Edelman ER, Weber BN: Tenuous tether. N Engl J Med 373:2199, 2015.
Fang LC, O’Gara PT: The history and physical examination. An evidence-based
approach, in Braunwald’s Heart Disease. A Textbook of Cardiovascular
Medicine, 10th ed, DL Mann et al (eds). Philadelphia, Elsevier/Saunders,
2015, pp 95-113.
Fuster V: The stethoscope’s prognosis. Very much alive and very necessary. J
Am Coll Cardiol 67:1118, 2016.
Kimura BJ et al: Cardiac limited ultrasound examination techniques to augment
the bedside cardiac physical examination. J Ultrasound Med 34:1683, 2015.
Lai LS et al: Computerized automatic diagnosis of innocent and pathologic
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Nishimura R et al: 2014 AHA/ACC guideline for the management of patients
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Shrestha NR et al: Prevalence of subclinical rheumatic heart disease in Eastern
Nepal: A school-based cross-sectional study. JAMA Cardiol 1:89, 2016.
Stokke TM et al: Brief group training of medical students in focused cardiac
ultrasound may improve diagnostic accuracy of physical examination. J Am
Soc Echocardiogr 27:1238, 2014.
39
Palpitações
Joseph Loscalzo

As palpitações são extremamente comuns em pacientes que procuram um


médico e podem ser mais bem definidas como uma sensação de “golpes”,
“pancadas” ou “tremulações” no tórax. Essa sensação pode ser intermitente ou
sustentada e regular ou irregular. A maioria dos pacientes interpreta as
palpitações como uma percepção incomum dos batimentos cardíacos e fica
muito preocupada quando lhes parece que os batimentos cardíacos “pularam” ou
“faltaram”. Em geral, as palpitações são percebidas quando o paciente está
calmo e em repouso, momento em que os demais estímulos são mínimos. As
palpitações posturais geralmente refletem um processo estrutural dentro do
coração (p. ex., mixoma atrial) ou adjacente a ele (p. ex., massa mediastinal).
De acordo com uma grande série de estudos, as causas das palpitações
podem ser cardíacas (43%), psiquiátricas (31%), diversas (10%) e desconhecidas
(16%). Entre as causas cardiovasculares estão extrassístoles atriais e
ventriculares, arritmias supraventriculares e ventriculares, prolapso da valva
mitral (com ou sem arritmias associadas), insuficiência aórtica, mixoma atrial,
miocardite e embolia pulmonar. Uma causa comum das palpitações intermitentes
é constituída pelas extrassístoles atriais e ventriculares: o batimento pós-
extrassistólico é sentido pelo paciente devido ao aumento na dimensão diastólica
final ventricular após a pausa no ciclo cardíaco e aumento da força de contração
(potencialização pós-extrassistólica) do batimento. As palpitações regulares
sustentadas podem ser causadas por taquicardias regulares supraventriculares e
ventriculares. As palpitações irregulares sustentadas podem ser causadas por
fibrilação atrial. É importante salientar que a maioria das arritmias não está
associada a palpitações. Nas que estão, costuma ser útil pedir ao paciente que
simule o ritmo das palpitações ou verificar o seu pulso enquanto elas estão
ocorrendo. Em geral, estados cardiovasculares hiperdinâmicos causados por
estimulação catecolaminérgica decorrente de exercício, estresse ou
feocromocitoma podem desencadear palpitações. As palpitações são comuns
entre atletas, especialmente atletas de resistência mais velhos. Além disso, o
aumento do ventrículo na insuficiência aórtica e o precórdio hiperdinâmico que
o acompanha costumam provocar sensação de palpitações. Outros fatores que
acentuam a força da contração miocárdica, como tabaco, cafeína, aminofilina,
atropina, tiroxina, cocaína e anfetaminas, podem causar palpitações.
As causas psiquiátricas das palpitações incluem ataques ou transtornos de
pânico, estados de ansiedade e somatização, isolados ou combinados. Os
pacientes com palpitações de causas psiquiátricas relatam, com maior
frequência, uma sensação mais duradoura (> 15 minutos) e outros sintomas
simultâneos quando comparados aos pacientes cujas palpitações têm outras
causas. Entre as causas diversas de palpitações estão a tireotoxicose, fármacos
(ver anteriormente) e etanol, contrações musculares espontâneas da parede
torácica, feocromocitoma e mastocitose sistêmica.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Palpitações
O principal objetivo ao avaliar pacientes com palpitações é determinar se o
sintoma é causado por uma arritmia potencialmente fatal. Os pacientes com
doença arterial coronariana (DAC) preexistente ou fatores de risco para ela
correm maior risco de ter arritmias ventriculares (Cap. 241) como causa de
palpitações. Além disso, a associação de palpitações a outros sintomas
sugestivos de comprometimento hemodinâmico, como síncope ou sensação
de tonturas, confirmam o diagnóstico. As palpitações causadas por
taquiarritmias sustentadas em pacientes com DAC podem ser acompanhadas
por angina pectoris ou dispneia e, nos pacientes com disfunção ventricular
(sistólica ou diastólica), estenose aórtica, miocardiopatia hipertrófica ou
estenose mitral, (com ou sem DAC), podem ser acompanhadas por dispneia
devido ao aumento da pressão venosa pulmonar e atrial esquerda.
Os aspectos fundamentais do exame físico que ajudam a confirmar ou
excluir a presença de uma arritmia como causa das palpitações (e suas
consequências hemodinâmicas adversas) incluem aferição dos sinais vitais,
avaliação da pressão venosa jugular e do pulso, bem como auscultação do
tórax e precórdio. Um eletrocardiograma em repouso pode ser feito para
registrar a arritmia. Caso se saiba que algum esforço induziu a arritmia e as
palpitações que a seguiram, pode-se fazer um eletrocardiograma de esforço
para estabelecer o diagnóstico. Se a arritmia for pouco frequente, outros
métodos devem ser usados, como a monitoração eletrocardiográfica contínua
(Holter); monitoração telefônica, em que o paciente pode transmitir um
traçado eletrocardiográfico durante um episódio; gravação em loop (monitor
de eventos, externos ou implantados), que podem capturar o evento
eletrocardiográfico para revisão posterior; e telemetria ambulatorial cardíaca
móvel. Dados sugerem que a monitoração por Holter é de utilidade clínica
limitada, enquanto a gravação em loop implantável e a telemetria
ambulatorial cardíaca móvel são seguras e possivelmente mais custo-efetivas
na avaliação dos pacientes com palpitações recorrentes (infrequentes),
inexplicadas.
A maioria dos pacientes com palpitações não tem arritmias graves nem
cardiopatia estrutural subjacente. As extrassístoles atriais ou ventriculares
benignas ocasionais geralmente podem ser tratadas com betabloqueadores se
causarem problemas para o paciente. As palpitações provocadas por álcool,
tabaco ou drogas ilícitas têm de ser tratadas com abstinência, enquanto que
nas causadas por agentes farmacológicos devam ser consideradas terapias
alternativas quando apropriado ou possível. As causas psiquiátricas das
palpitações podem beneficiar-se de terapias cognitivas ou farmacológicas. O
médico deve lembrar que as palpitações são inconvenientes e, às vezes,
amedrontam o paciente. Assim que as causas graves do sintoma tenham sido
excluídas, deve-se tranquilizar o paciente explicando-lhe que as palpitações
não afetam de forma adversa o prognóstico.

LEITURAS ADICIONAIS
Crossland S, Berkin L: Problem based review: The patient with palpitations.
Acute Med 11:169, 2012.
Jamshed N, Dubin J, Eldagah Z: Emergency management of palpitations in the
elderly: Epidemiology, diagnostic approaches, and therapeutic options. Clin
Geriatr Med 29:205, 2013.
Sedaghat-Yazdi F, Koenig PR: The teenager with palpitations. Pediatr Clin North
Am 61:63, 2014.
Weber BE, Kapoor WN: Evaluation and outcomes of patients with palpitations.
Am J Med 100:138, 1996.
Seção 6 Alterações na função
gastrintestinal

40
Disfagia
Ikuo Hirano, Peter J. Kahrilas

Disfagia – dificuldade na deglutição – refere-se a problemas com a passagem de


alimento ou líquido da boca para a hipofaringe ou através do esôfago. A disfagia
grave pode comprometer a nutrição, causar aspiração e reduzir a qualidade de
vida. A terminologia adicional referente à disfunção da deglutição é a seguinte.
Afagia (incapacidade de deglutir) significa obstrução esofágica completa, mais
geralmente encontrada no cenário agudo de um bolo alimentar ou impacção de
um corpo estranho. O termo odinofagia refere-se à deglutição dolorosa
resultante da ulceração da mucosa dentro da orofaringe ou do esôfago. Ela é
geralmente acompanhada por disfagia, mas o inverso não é verdade. Globo
faríngeo é uma sensação de corpo estranho localizada no pescoço, que não
interfere na deglutição e, às vezes, é até aliviada por ela. A disfagia de
transferência resulta frequentemente em regurgitação nasal e aspiração
pulmonar durante a deglutição e é típica da disfagia orofaríngea. A fagofobia
(medo de deglutir) e a recusa de engolir podem ser psicogênicas ou relacionadas
com a ansiedade de antecipação quanto à obstrução do bolo alimentar,
odinofagia ou aspiração.

FISIOLOGIA DA DEGLUTIÇÃO
A deglutição começa com uma fase voluntária (oral) que inclui uma preparação
durante a qual um alimento é mastigado e misturado com a saliva. Isso é seguido
por uma fase de transferência na qual o bolo é empurrado para a faringe pela
língua. A entrada do bolo na hipofaringe inicia a resposta de deglutição faríngea,
que é mediada centralmente e que envolve uma série de ações complexas, cujo
resultado final é propelir o alimento através da faringe para dentro do esôfago
enquanto evita sua entrada nas vias aéreas. Para executar isso, a laringe é
elevada e puxada para frente, ações que também facilitam a abertura do esfincter
esofágico superior (EES). A propulsão da língua impulsiona o bolo através do
EES, seguido por uma contração peristáltica que limpa o resíduo da faringe e do
esôfago. O esfincter esofágico inferior (EEI) relaxa à medida que o alimento
entra no esôfago e permanece relaxado até que a contração peristáltica tenha
liberado o bolo dentro do estômago. As contrações peristálticas desencadeadas
em resposta à deglutição são chamadas de peristalse primária e envolvem
inibição sequenciada seguida de contração da musculatura ao longo de todo o
comprimento do esôfago. A inibição que precede à contração peristáltica é
chamada de inibição deglutiva. A distensão focal do esôfago em qualquer
segmento ao longo de seu comprimento, que pode ocorrer com o refluxo
gastresofágico, ativa a peristalse secundária, que começa no ponto de distensão
e prossegue distalmente. As contrações esofágicas terciárias são contrações
esofágicas não peristálticas desordenadas, que podem ser observadas ocorrendo
espontaneamente durante um exame de radioscopia.
A musculatura da cavidade oral, faringe, EES e esôfago cervical é estriada e
diretamente inervada por neurônios motores inferiores localizados nos nervos
cranianos (Fig. 40-1). Os músculos da cavidade oral são inervados pelo quinto
(trigêmeo) e sétimo (facial) nervos cranianos. A língua, pelo décimo segundo
(hipoglosso) nervo craniano. Os músculos faríngeos são inervados pelo nono
(glossofaríngeo) e décimo (vago) nervos cranianos.

FIGURA 40-1 Visão diagramática e sagital da musculatura envolvida no processo da deglutição


orofaríngea. Observar a dominância da língua no plano sagital e a relação íntima entre a entrada da laringe
(via aérea) e o esôfago. Na configuração ilustrada em repouso, a entrada do esôfago está fechada, o que é
transitoriamente reconfigurado de tal modo que a entrada esofágica fique aberta e a entrada da laringe fique
fechada durante a deglutição. (Adaptada de PJ Kahrilas, in DW Gelfand and JE Richter [eds]: Dysphagia:
Diagnosis and Treatment. New York: Igaku-Shoin Medical Publishers, 1989, pp. 11-28.)

Fisiologicamente, o EES consiste em músculo cricofaríngeo, constritor


faríngeo inferior adjacente e porção proximal do esôfago cervical. A inervação
do EES é derivada do nervo vago, enquanto a inervação da musculatura que age
sobre o EES para facilitar sua abertura durante a deglutição provém do quinto,
sétimo e décimo segundo nervos cranianos. O EES permanece fechado em
repouso devido às suas propriedades elásticas inerentes e à contração
neurologicamente mediada do músculo cricofaríngeo. A abertura do EES durante
a deglutição envolve a supressão da excitação vagal do músculo cricofaríngeo e
a contração simultânea dos músculos supra-hióideo e gênio-hióideo, que puxam
e abrem o EES em conjunto com o deslocamento da laringe para cima e para
frente.
O componente neuromuscular encarregado da peristalse é diferente nas
partes proximal e distal do esôfago. O esôfago cervical, como a musculatura
faríngea, consiste em músculo estriado e é diretamente inervado pelos neurônios
motores inferiores do nervo vago. A peristalse no esôfago proximal é controlada
pela ativação sequencial dos neurônios motores vagais situados no núcleo
ambíguo. Em contrapartida, o esôfago distal e o EEI são compostos de músculo
liso e são controlados pelos neurônios excitatórios e inibitórios dentro do plexo
mesentérico esofágico. Neurônios pré-ganglionares bulbares do núcleo motor
dorsal do vago desencadeiam a peristalse por meio desses neurônios
ganglionares durante a peristalse primária. Os neurotransmissores dos neurônios
ganglionares excitatórios são acetilcolina e substância P, enquanto os dos
neurônios inibitórios são peptídeo intestinal vasoativo e óxido nítrico. A
peristalse resulta da ativação padronizada dos neurônios ganglionares inibitórios
seguidos da ativação dos neurônios excitatórios, com dominância progressiva
dos neurônios inibitórios distalmente. Do mesmo modo, o relaxamento do EEI
ocorre no início da inibição deglutiva e persiste até que a sequência peristáltica
esteja concluída. Em repouso, o EEI é contraído devido ao estímulo ganglionar
excitatório e a seu tônus miogênico intrínseco, uma propriedade que o distingue
do esôfago adjacente. A função do EEI é suplementada pelo músculo
circundante da cruz diafragmática direita, que age como um esfincter externo
durante inspiração, tosse ou esforço abdominal.

FISIOPATOLOGIA DA DISFAGIA
A disfagia pode ser subclassificada com base na localização e nas circunstâncias
em que ela ocorre. Com respeito à localização, considerações distintas aplicam-
se à disfagia oral, faríngea ou esofágica. O transporte normal do bolo alimentar
ingerido depende da sua consistência e tamanho, do calibre do lúmen, da
integridade da contração peristáltica e da inibição deglutiva do EES e do EEI. A
disfagia causada por um bolo de tamanho exagerado ou por um lúmen estreito é
chamada disfagia estrutural, enquanto a disfagia que se deve às anormalidades
da peristalse ou do relaxamento reduzido do esfincter depois da deglutição é
chamada disfagia propulsora ou motora. Em determinado paciente, pode haver
mais de um mecanismo em ação. A esclerodermia geralmente se apresenta com
peristalse ausente bem como um EEI enfraquecido, que predispõe os pacientes à
formação de estenose péptica. Da mesma forma, a radioterapia para o câncer da
cabeça e pescoço pode agravar os déficits funcionais da deglutição orofaríngea
atribuíveis ao tumor e causar estenose esofágica cervical. É importante salientar
que, além do trânsito do bolo alimentar, o relato do sintoma de disfagia pelo
paciente depende da integridade da inervação sensitiva e da percepção no
sistema nervoso central.

Disfagia oral e faríngea (orofaríngea) A disfagia de fase oral está associada à


formação e ao controle precários do bolo alimentar de modo que o alimento tem
retenção prolongada dentro da cavidade oral e pode escapar da boca. Salivação e
dificuldade em iniciar a deglutição são outros sinais característicos. O controle
precário do bolo alimentar também pode levar a derramamento prematuro do
alimento na hipofaringe com aspiração resultante para a traqueia ou regurgitação
para dentro da cavidade nasal. A disfagia de fase faríngea está associada à
retenção de alimentos na faringe devido à propulsão precária da língua ou da
faringe, ou à obstrução do EES. Sinais e sintomas de rouquidão concomitante ou
disfunção do nervo craniano podem estar associados à disfagia orofaríngea.
A disfagia orofaríngea pode ser devida a causas neurológicas, musculares,
estruturais, iatrogênicas, infecciosas e metabólicas. As patologias iatrogênicas,
neurológicas e estruturais são as mais comuns. As causas iatrogênicas incluem
cirurgia e irradiação, muitas vezes no cenário do câncer de cabeça e pescoço. A
disfagia neurogênica resultante de acidente vascular cerebral (AVC), doença de
Parkinson e esclerose lateral amiotrófica é uma causa importante de morbidade
relacionada com aspiração e desnutrição. Os núcleos bulbares inervam
diretamente a orofaringe. A lateralização da disfagia faríngea implica uma lesão
faríngea estrutural ou um processo neurológico que atingiu seletivamente os
núcleos do tronco encefálico ou os nervos cranianos ipsilaterais. Os avanços nas
técnicas de imagem cerebral funcional evidenciaram um importante papel do
córtex cerebral na função de deglutição e na disfagia. A assimetria da
representação cortical da faringe fornece uma explicação para a disfagia que
ocorre como consequência de AVCs corticais unilaterais.
As lesões estruturais orofaríngeas que causam disfagia incluem divertículo
de Zenker, acalasia cricofaríngea e neoplasia. Nos casos típicos, o divertículo de
Zenker é diagnosticado nos pacientes idosos. Além da disfagia, os pacientes
podem se apresentar com regurgitação de restos de partículas alimentares,
aspiração e halitose. A patogênese está relacionada com a estenose da parte
cricofaríngea, que causa diminuição da abertura do EES e resulta no aumento da
pressão hipofaríngea durante a deglutição, com o desenvolvimento de um
divertículo de pulsão imediatamente acima do músculo cricofaríngeo em uma
região de fraqueza potencial conhecida como deiscência de Killian. A acalasia
cricofaríngea, que se evidencia como um sulco proeminente atrás do terço
inferior da cartilagem cricóidea, está relacionada com o divertículo de Zenker,
visto que ele envolve capacidade de distensão limitada da cricofaríngea e pode
levar à formação do divertículo de Zenker. Contudo, a acalasia cricofaríngea é
um achado radiográfico comum e a maioria dos pacientes com acalasia
cricofaríngea transitória é assintomática, tornando importante a eliminação de
etiologias alternativas da disfagia antes do tratamento. Além disso, as áreas de
acalasia cricofaríngea podem ser causadas por outros distúrbios neuromusculares
que dificultam a abertura do EES.
Uma vez que a fase faríngea da deglutição ocorre em menos de 1 segundo,
a radioscopia de sequência rápida é necessária para avaliar anormalidades
funcionais. O exame radioscópico adequado requer que o paciente esteja
consciente e cooperativo. O estudo incorpora registros de sequências de
deglutição durante a ingestão de alimentos e líquidos de variadas consistências.
A faringe é examinada para detectar retenção do bolo alimentar, regurgitação
para dentro do nariz ou aspiração para a traqueia. O sincronismo e a integridade
da contração e abertura faríngea do EES durante a deglutição são analisados para
avaliar o risco de aspiração e o potencial para a fisioterapia da deglutição.
Anormalidades estruturais da orofaringe, especialmente aquelas que podem
requerer biópsias, também devem ser avaliadas por exame laringoscópico direto.

Disfagia esofágica O esôfago adulto mede 18 a 26 cm de comprimento e está


anatomicamente dividido em esôfago cervical, que se estende da junção
faringoesofágica até a incisura supraesternal, e esôfago torácico, que continua
até o hiato diafragmático. Quando distendido, o lúmen do esôfago tem diâmetro
interno de cerca de 2 cm no plano anteroposterior e 3 cm no plano lateral. A
disfagia com alimentos sólidos torna-se comum quando o lúmen é estreitado a <
13 mm, mas também pode ocorrer com diâmetros maiores no cenário do
alimento mal mastigado ou da disfunção motora. As lesões circunferenciais são
mais propensas a causar disfagia que as lesões que envolvem apenas parte da
circunferência da parede esofágica. As causas estruturais mais comuns de
disfagia são anéis de Schatzki, esofagite eosinofílica e estenoses pépticos. A
disfagia também ocorre nos pacientes com doença do refluxo gastresofágico sem
estenose, talvez em razão da alteração da sensibilidade esofágica, da redução da
distensibilidade da parede do esôfago ou da disfunção motora.
Os distúrbios de propulsão que levam à disfagia esofágica resultam das
anormalidades da peristalse e/ou inibição deglutiva, afetando potencialmente o
esôfago cervical ou torácico. Uma vez que a patologia dos músculos estriados
geralmente envolve a orofaringe e o esôfago cervical, as manifestações clínicas
geralmente são dominadas pela disfagia orofaríngea. As doenças que afetam o
músculo liso envolvem o esôfago torácico e o EEI. Uma das principais
manifestações dessas doenças – peristalse ausente – consiste na ausência
absoluta de contrações induzidas pela deglutição (contratilidade inexistente) ou
na ocorrência de contrações não peristálticas desordenadas. As características
que definem acalasia são peristalse ausente e falha do relaxamento do EEI
deglutivo. No espasmo esofágico difuso (EED), a função do EEI é normal, com
a motilidade desordenada restrita ao corpo do esôfago. A peristalse ausente
combinada com fraqueza grave do EEI é um padrão inespecífico comumente
encontrado nos pacientes com esclerodermia.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Disfagia
A Figura 40-2 mostra um algoritmo para a abordagem a um paciente com
disfagia.
FIGURA 40-2 Abordagem ao paciente com disfagia. As etiologias em negrito são as mais comuns.
AVC, acidente vascular cerebral; ONG, orelha, nariz e garganta; DRGE, doença do refluxo
gastresofágico.

HISTÓRIA
A história do paciente é extremamente valiosa para o estabelecimento de um
diagnóstico presumível ou, no mínimo, para limitar substancialmente os
diagnósticos diferenciais na maioria dos casos. Os elementos principais da
história são a localização da disfagia, as circunstâncias nas quais a disfagia é
experimentada, outros sintomas associados à disfagia e sua progressão. A
disfagia que se localiza na incisura supraesternal pode indicar tanto uma
etiologia orofaríngea como uma esofágica, enquanto a disfagia distal é
referida proximalmente em cerca de 30% do tempo. A disfagia que se
localiza no tórax é de origem esofágica. A regurgitação nasal e a aspiração
traqueobrônquica evidenciadas por tosse ao deglutir são marcas
características da disfagia orofaríngea. Tosse intensa associada à deglutição
também pode ser um sinal de fístula traqueoesofágica. A presença de
rouquidão pode ser outro indício diagnóstico importante. Quando a
rouquidão precede à disfagia, a lesão primária é geralmente laríngea; a
rouquidão que ocorre depois do desenvolvimento de disfagia pode resultar do
comprometimento do nervo laríngeo recorrente por uma neoplasia maligna.
O tipo de alimento que causa disfagia é um detalhe crucial. A disfagia
intermitente que ocorre apenas com alimentos sólidos implica disfagia
estrutural, enquanto a disfagia constante com líquido e sólido sugere
fortemente uma anormalidade motora. Duas ressalvas a esse padrão são que,
apesar de terem uma anormalidade motora, os pacientes com esclerodermia
geralmente desenvolvem disfagia leve apenas para sólidos e, um tanto quanto
paradoxal, que pacientes com disfagia orofaríngea muitas vezes têm maior
dificuldade em deglutir líquidos que sólidos. A disfagia que é progressiva ao
longo de semanas a meses sugere neoplasia. Disfagia periódica aos alimentos
sólidos, que não se altera ou progride lentamente ao longo de alguns anos,
indica um processo patológico benigno como anel de Schatzki ou esofagite
eosinofílica. Impacção do alimento com incapacidade persistente de passar o
bolo alimentar ingerido mesmo com a ingestão de líquido é típica de disfagia
estrutural. A dor torácica frequentemente acompanha a disfagia, quer esteja
relacionada com distúrbios motores, distúrbios estruturais ou doença do
refluxo. História prolongada de pirose precedendo ao início da disfagia é
sugestiva de estenose péptica e, menos comumente, adenocarcinoma
esofágico. História de intubação nasogástrica prolongada, cirurgia esofágica
ou da cabeça e pescoço, ingestão de agentes cáusticos ou comprimidos,
radioterapia ou quimioterapia prévias ou doenças mucocutâneas associadas
pode ajudar a isolar a causa da disfagia. Quando o paciente também refere
odinofagia, que geralmente é indicativa de ulceração, deve-se suspeitar de
esofagite infecciosa ou induzida por comprimidos. Nos pacientes com Aids
ou outros distúrbios imunossupressores, deve-se considerar esofagite causada
por infecções por microrganismos oportunistas (inclusive Candida, herpes-
vírus simples ou citomegalovírus) e tumores como sarcoma de Kaposi e
linfoma. História inequívoca de atopia aumenta as possibilidades de esofagite
eosinofílica, especialmente nos pacientes brancos jovens do sexo masculino.

EXAME FÍSICO
O exame físico é importante para a avaliação da disfagia oral e faríngea
porque a disfagia geralmente é apenas uma entre muitas manifestações de um
processo patológico mais generalizado. O médico deve buscar sinais de
paralisia bulbar ou pseudobulbar, incluindo disartria, disfonia, ptose, atrofia
na língua e reflexo mandibular hiperativo, além de evidências de uma doença
neuromuscular generalizada. O pescoço deve ser examinado para
tireomegalia. A inspeção cuidadosa da boca e da faringe deve mostrar lesões
que possam interferir com a passagem do alimento. A falta de dentes pode
interferir com a mastigação e exacerbar uma causa existente de disfagia. O
exame físico é menos útil na avaliação da disfagia esofágica, uma vez que a
patologia mais relevante é restrita ao esôfago. Uma notável exceção são as
doenças dermatológicas. Anormalidades cutâneas podem sugerir o
diagnóstico de esclerodermia ou doenças mucocutâneas, como penfigoide,
líquen plano e epidermólise bolhosa – todas podem envolver o esôfago.

PROCEDIMENTOS DIAGNÓSTICOS
Embora a maioria dos casos de disfagia seja atribuível a processos de doença
benignos, a disfagia também é um sintoma cardinal de várias malignidades,
tornando-a um importante sintoma para avaliação. O câncer pode resultar em
disfagia devido à obstrução intraluminal (câncer esofágico ou gástrico
proximal, depósitos metastáticos), compressão extrínseca (linfoma, câncer de
pulmão) ou síndromes paraneoplásicas. Mesmo quando não atribuível à
malignidade, a disfagia geralmente é uma manifestação de uma doença
identificável e tratável, tornando sua avaliação benéfica ao paciente e
gratificante para o profissional. O algoritmo diagnóstico específico é
orientado pelos detalhes da história clínica (Fig. 40-2). Se houver suspeita de
disfagia oral ou faríngea, um estudo radioscópico da deglutição, geralmente
feito por um terapeuta de deglutição, é o procedimento de escolha. As
avaliações otorrinolaringoscópica e neurológica também podem ser
importantes, dependendo das circunstâncias. Quando há suspeita de disfagia
esofágica, endoscopia do tubo digestivo alto é o exame simples mais útil. A
endoscopia permite examinar as lesões da mucosa com mais detalhes que a
radiografia com bário e também possibilita a realização de biópsias da
mucosa. Anormalidades endoscópicas ou histológicas são evidentes nas
causas principais de disfagia esofágica: anel de Schatzki, doença do refluxo
gastresofágico e esofagite eosinofílica. Além disso, a intervenção terapêutica
com dilatação esofágica pode ser feita como parte do procedimento se for
considerada necessária. O surgimento da esofagite eosinofílica como uma das
causas principais de disfagia das crianças e dos adultos resultou na
recomendação de que as biópsias da mucosa esofágicas sejam rotineiramente
obtidas como parte da avaliação da disfagia sem explicação, mesmo que não
haja lesões endoscópicas características evidentes. Para os casos suspeitos de
distúrbios da motilidade esofágica, a endoscopia ainda é o exame inicial
adequado, na medida em que as doenças neoplásicas e inflamatórias podem
secundariamente produzir padrões de acalasia e espasmo esofágico. A
manometria esofágica deve ser realizada quando a disfagia não é
adequadamente explicada pela endoscopia ou para confirmar o diagnóstico
de um suposto distúrbio motor esofágico. A radiografia com bário pode
fornecer informações complementares úteis nos casos de estenoses
esofágicas sutis ou complexas, histórico de cirurgia esofágica, divertículos
esofágicos ou herniação paraesofágica. Nos casos específicos, a tomografia
computadorizada (TC) e a ultrassonografia endoscópica podem ser úteis.

TRATAMENTO
O tratamento da disfagia depende da sua localização e etiologia específica. A
disfagia orofaríngea resulta mais comumente dos déficits funcionais
causados por distúrbios neurológicos. Nesses casos, o tratamento deve
enfatizar a utilização de posturas ou manobras destinadas a reduzir o resíduo
faríngeo e aumentar a proteção das vias aéreas, que são ensinadas sob a
direção de um terapeuta de deglutição experiente. O risco de aspiração pode
ser reduzido pela alteração da consistência dos alimentos ou líquidos
ingeridos. A disfagia resultante de um AVC geralmente melhora
espontaneamente nas primeiras semanas depois do evento. Casos mais graves
e persistentes podem requerer gastrostomia e nutrição enteral. Os pacientes
com miastenia gravis (Cap. 440) e polimiosite (Cap. 358) podem responder
ao tratamento clínico da doença neuromuscular primária. A intervenção
cirúrgica com miotomia cricofaríngea geralmente não é útil, com exceção
dos distúrbios específicos, como acalasia cricofaríngea idiopática, divertículo
de Zenker e distrofia muscular oculofaríngea. Distúrbios neurológicos
crônicos, como doença de Parkinson e esclerose lateral amiotrófica, podem
manifestar-se com disfagia orofaríngea grave. A nutrição por meio de um
tubo nasogástrico ou um tubo de gastrostomia endoscopicamente colocado
pode ser considerada como medida de suporte nutricional; contudo essas
manobras não fornecem proteção contra a aspiração de secreções salivares ou
conteúdos gástricos refluídos.
O tratamento da disfagia esofágica está descrito detalhadamente no Cap
ítulo 316. A maioria das causas de disfagia esofágica é tratada eficazmente
por meio de dilatação esofágica usando vela ou dilatação com balão. Em
muitos casos, câncer e acalasia são tratados cirurgicamente, embora as
técnicas endoscópicas estejam disponíveis como medida paliativa e
tratamento primário, respectivamente. As etiologias infecciosas respondem
aos fármacos antimicrobianos ou ao tratamento do distúrbio imunossupressor
subjacente. Por fim, a esofagite eosinofílica tem surgido como uma
importante causa de disfagia, que responde ao tratamento de eliminação de
alérgenos alimentares ou administração de glicocorticoides tópicos de ação
local por deglutição.

LEITURAS ADICIONAIS
Cook IJ: Oropharyngeal dysphagia. Gastroenterol Clin North Am 38:411, 2009.
Hirano I: Esophagus: Anatomy and structural anomalies, in Yamada Atlas of
Gastroenterology, 6th ed. Wiley-Blackwell Publishing Co. 2016, pp 42–59.
Kahrilas PJ et al: The Chicago Classification of esophageal motility disorders,
v3.0. Neurogastroenterol Motil 27:160, 2015.
Pandolfino JP, Kahrilas PJ: Esophageal neuromuscular function and motility
disorders, in Sleisenger and Fordtran’s Gastrointestinal and Liver Disease,
10th ed, Feldman M, Friedman LS, Brandt LJ (eds). Philadelphia, Elsevier,
2016, pp 701–732.
Shaker R et al (eds): Principles of Deglutition: A Multidisciplinary Text for
Swallowing and Its Disorders. New York, Springer, 2013.
41
Náuseas, vômitos e indigestão
William L. Hasler

Náusea é a sensação subjetiva da necessidade de vomitar. Vômito (êmese) é a


expulsão oral do conteúdo gastrintestinal como resultado das contrações do
intestino e da parede toracoabdominal. O ato de vomitar contrasta com a
regurgitação, que consiste na passagem do conteúdo gástrico para o interior da
boca sem esforço. Ruminação é a regurgitação repetida do conteúdo gástrico,
que pode ser mastigado e deglutido novamente. Em contraste com os vômitos,
esses fenômenos estão sob controle voluntário. Indigestão é um termo que
abrange diversas queixas, como náusea, vômitos, pirose, regurgitação e dispepsia
(sinais e sintomas considerados originários da região gastroduodenal). Alguns
pacientes com dispepsia referem plenitude pós-prandial, saciedade precoce
(incapacidade de terminar uma refeição em consequência da sensação precoce de
plenitude), distensão por gases, eructações e anorexia. Outros relatam
principalmente ardência ou dor epigástrica.
NÁUSEAS E VÔMITOS
MECANISMOS
Os vômitos são coordenados pelo tronco encefálico e efetivados por respostas do
intestino, da faringe e da musculatura somática. Os mecanismos básicos da
náusea são pouco conhecidos, porém envolvem provavelmente o córtex cerebral,
pois a náusea requer percepção consciente. Essa hipótese é reforçada por estudos
de imagem da função cerebral, que demonstram ativação das regiões corticais do
cérebro enquanto os indivíduos sentem náusea.

Coordenação do vômito Núcleos do tronco encefálico – inclusive o núcleo do


trato solitário; os núcleos vagais dorsais e frênicos; os núcleos bulbares que
controlam a respiração; e os núcleos que controlam os movimentos da faringe,
face e língua – coordenam a iniciação do vômito, que envolve as vias de NK1
(neurocinina), 5-HT3 (serotonina) e vasopressina.
Os músculos somáticos e viscerais respondem estereotipicamente durante
os vômitos. Os músculos inspiratórios das paredes torácica e abdominal se
contraem, produzindo pressões intratorácica e intra-abdominal elevadas, que
esvaziam o estômago. O óstio gástrico sofre herniação acima do diafragma, e a
laringe move-se para cima para impulsionar o vômito. As contrações intestinais
que migram no sentido distal são normalmente reguladas por um fenômeno
elétrico, a onda lenta com frequências de 3 ciclos/minuto no estômago e a 11
ciclos/minuto no duodeno. Durante o vômito, a onda lenta é suprimida e
substituída por picos de propagação oral, que provocam contrações inversas, que
auxiliam a expulsão do conteúdo intestinal.

Ativadores do vômito Os estímulos eméticos atuam em vários locais. O vômito


provocado por pensamentos ou odores desagradáveis origina-se no cérebro,
enquanto os nervos cranianos medeiam os vômitos depois da ativação do reflexo
de engasgo. A cinetose e os distúrbios da orelha interna são ativados pelas vias
labirínticas. Irritantes gástricos e agentes citotóxicos, como a cisplatina,
estimulam os nervos aferentes vagais gastroduodenais. Os aferentes
extragástricos são ativados por obstrução intestinal e isquemia mesentérica. A
área postrema, localizada no bulbo, responde aos estímulos carreados no sangue
(fármacos emenogênicos, toxinas bacterianas, uremia, hipoxia, cetoacidose) e é
chamada de zona de gatilho quimiorreceptora.
Os neurotransmissores que medeiam o vômito são seletivos para locais
diferentes. Distúrbios do labirinto estimulam os receptores muscarínicos
vestibulares M1 e histaminérgicos H1. Os estímulos aferentes vagais ativam os
receptores 5-HT3. A área postrema é inervada pelos nervos que atuam nos
subtipos de receptores 5-HT3, M1, H1 e D2 da dopamina. Os receptores NK1
centrais medeiam a náusea e os vômitos. As vias canabinoides do receptor CB1
podem participar da ativação do córtex cerebral e tronco encefálico. O
tratamento farmacológico eficaz dos vômitos depende da compreensão dessas
vias.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
A náusea e os vômitos são causados por condições internas e externas ao
intestino, por fármacos e por toxinas circulantes (Tab. 41-1). As causas
indeterminadas de náuseas e vômitos crônicos são relativamente raras, sendo
encontradas em 2 a 3% da população.

TABELA 41-1 ■ Causas de náuseas e vômitos


Intraperitoneais Extraperitoneais Medicamentos/distúrbios metabólicos
Distúrbios obstrutivos Doença cardiopulmonar Fármacos
Obstrução pilórica Miocardiopatia Quimioterapia do câncer
Obstrução do intestino delgado Infarto agudo do Antibióticos
Obstrução do intestino grosso miocárdio Antiarrítmicos cardíacos
Síndrome da artéria mesentérica Doença labiríntica Digoxina
superior Cinetose Hipoglicemiantes orais
Infecções intestinais Labirintite Contraceptivos orais
Viral Neoplasia maligna Antidepressivos
Bacteriana Distúrbios intracerebrais Fármacos para tratar doença de Parkinson/síndrome das pernas
Doenças inflamatórias Neoplasia maligna inquietas
Colecistite Hemorragia Fármacos para interrupção do tabagismo
Pancreatite Abscesso Doença endócrina/metabólica
Apendicite Hidrocefalia Gestação
Hepatite Doença psiquiátrica Uremia
Distúrbios da função sensitivomotora Anorexia e bulimia Cetoacidose
Gastroparesia nervosa Doenças da tireoide e paratireoide
Pseudo-obstrução intestinal Depressão Insuficiência suprarrenal
Refluxo gastresofágico Vômitos pós-operatórios Toxinas
Síndrome de náusea e vômitos Insuficiência hepática
crônicos Etanol
Síndrome dos vômitos cíclicos
Síndrome de hiperêmese
canabinoide
Síndrome de ruminação
Cólica biliar
Irradiação abdominal

Distúrbios intraperitoneais A obstrução visceral e a inflamação das vísceras


ocas e sólidas podem provocar vômitos. A obstrução gástrica é causada por
úlceras e tumores malignos. As obstruções dos intestinos delgado e grosso são
causadas por aderências, tumores benignos e malignos, vólvulo, intussuscepção
ou doença inflamatória intestinal (p. ex., doença de Crohn). A síndrome da
artéria mesentérica superior, que ocorre depois de perda ponderal ou repouso
prolongado no leito, ocorre quando o duodeno é comprimido pela artéria
mesentérica superior sobrejacente. A irradiação abdominal compromete a função
motora intestinal e induz estenose. A cólica biliar causa náuseas quando atua
sobre nervos aferentes locais. Os vômitos acompanhados de pancreatite,
colecistite e apendicite resultam da irritação visceral e do íleo secundário.
Infecções intestinais por vírus (p. ex., norovírus ou rotavírus) ou bactérias (p.
ex., Staphylococcus aureus e Bacillus cereus) causam vômitos, especialmente
nas crianças. As infecções oportunistas, como as que são causadas por
citomegalovírus e herpes-vírus simples, induzem vômitos nos pacientes
imunossuprimidos.
Distúrbios da função sensitivomotora do intestino frequentemente causam
náusea e vômitos. A gastroparesia evidencia-se por sintomas de retenção
gástrica com evidências de esvaziamento gástrico retardado e ocorre depois de
vagotomia ou nos casos de carcinoma pancreático, insuficiência vascular
mesentérica ou doenças orgânicas, como diabetes, esclerodermia e amiloidose.
Gastroparesia idiopática é a etiologia mais comum. Isso ocorre nos indivíduos
que não apresentam doença sistêmica e desenvolve-se depois de uma doença
viral em cerca de 15 a 20% dos casos, sugerindo um fator desencadeante
infeccioso. A pseudo-obstrução intestinal caracteriza-se por distúrbios das
atividades motoras dos intestinos delgado e grosso com retenção de resíduos
alimentares e secreções, proliferação bacteriana excessiva, má absorção de
nutrientes e sintomas de náuseas, vômitos, distensão abdominal, dor e alteração
da defecação. A pseudo-obstrução intestinal pode ser idiopática, hereditária na
forma de uma miopatia ou neuropatia visceral familiar, resultar de doenças
sistêmicas como esclerodermia ou um processo infiltrativo como amiloidose, ou
ocorrer como uma consequência paraneoplásica de uma neoplasia maligna (p.
ex., carcinoma pulmonar de pequenas células). Os pacientes com refluxo
gastresofágico podem relatar náuseas e vômitos, como também ocorre com
alguns indivíduos com síndrome do intestino irritável (SII) ou constipação
crônica.
Outros distúrbios gastroduodenais funcionais sem anormalidades orgânicas
também foram caracterizados. A síndrome de náusea e vômitos crônicos é
definida por náusea desagradável ao menos 1 vez por dia e/ou 1 ou mais
episódios de vômitos por semana, sem qualquer transtorno alimentar ou doença
psiquiátrica. A síndrome dos vômitos cíclicos causa 3 a 14% dos casos de náusea
e vômitos inexplicados e evidencia-se por episódios periódicos bem definidos de
vômitos persistentes em crianças e adultos; essa síndrome está associada às
cefaleias hemicrânicas, sugerindo que alguns casos possam ser variantes da
migrânea (enxaqueca). Alguns casos diagnosticados na população adulta foram
associados ao esvaziamento gástrico rápido. Um distúrbio semelhante – a
síndrome de hiperêmese canabinoide – apresenta-se com vômitos cíclicos
alternados com períodos normais em indivíduos (principalmente homens) que
utilizam grandes quantidades de cannabis por muitos anos e é curada com sua
descontinuação. Comportamentos patológicos, como tomar banhos quentes
prolongados de banheira ou chuveiro, estão associados a essa síndrome. A
síndrome da ruminação, caracterizada pela regurgitação repetitiva de alimento
recentemente ingerido, muitas vezes é diagnosticada erroneamente como vômito
refratário.

Distúrbios extraperitoneais O infarto do miocárdio e a insuficiência cardíaca


congestiva podem causar náuseas e vômitos. Os vômitos pós-operatórios
ocorrem depois de 25% dos procedimentos cirúrgicos, principalmente em
cirurgias abdominais e ortopédicas. A hipertensão intracraniana aumentada
decorrente de tumores, sangramento, abscesso ou bloqueio da drenagem do
líquido cerebrospinal provoca vômitos com ou sem náuseas. Os pacientes com
doenças psiquiátricas, incluindo anorexia nervosa, bulimia nervosa, ansiedade e
depressão, frequentemente relatam náuseas significativas que podem estar
associadas ao esvaziamento gástrico retardado.

Fármacos e distúrbios metabólicos Os fármacos provocam vômitos por sua


ação no estômago (analgésicos, eritromicina) ou na área postrema (opiáceos,
fármacos antiparkinsonianos). Outros agentes emetogênicos incluem
antibióticos, antiarrítmicos cardíacos, anti-hipertensivos, hipoglicêmicos orais,
antidepressivos (inibidores seletivos da recaptação de serotonina e de serotonina
e norepinefrina), fármacos para interrupção do tabagismo (vareniclina, nicotina)
e contraceptivos. A quimioterapia para o câncer causa vômitos agudos (algumas
horas após a administração), tardios (depois de 1 ou mais dias) ou antecipados.
Os vômitos agudos causados pelos fármacos altamente emetogênicos (p. ex.,
cisplatina) são mediados pelas vias do receptor 5-HT3. Os vômitos tardios são
menos dependentes dessas vias e os mecanismos associados aos receptores NK1
são predominantes. As náuseas antecipadas podem responder à terapia com
ansiolíticos e não aos antieméticos.
Distúrbios metabólicos induzem náuseas e vômitos. Gravidez é a causa
endócrina mais prevalente, e 70% das mulheres têm nausea durante o primeiro
trimestre. A hiperêmese gravídica é um tipo grave de náusea associada à
gravidez, que causa desidratação e distúrbios eletrolíticos significativos. Uremia,
cetoacidose, insuficiência suprarrenal e doenças da paratireoide e tireoide são
outras causas metabólicas.
As toxinas circulantes provocam vômitos por meio de seus efeitos na área
postrema. As toxinas endógenas são produzidas na insuficiência hepática
fulminante, enquanto as enterotoxinas exógenas podem ser produzidas nas
infecções por bactérias entéricas. A intoxicação por etanol é uma etiologia tóxica
comum das náuseas e vômitos.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Náusea e vômitos
HISTÓRIA E EXAME FÍSICO
A anamnese ajuda a definir a etiologia das náuseas e dos vômitos. Os
fármacos, as toxinas e as infecções frequentemente causam sintomas agudos,
enquanto as doenças estabelecidas originam queixas crônicas. A
gastroparesia e a obstrução pilórica provocam vômito dentro de 1 hora depois
da alimentação. O vômito causado por obstrução intestinal ocorre mais
tardiamente. Os vômitos que ocorrem minutos depois da ingestão de uma
refeição sugerem síndrome de ruminação. Nos casos em que há retardos
graves do esvaziamento gástrico, o vômito pode conter restos alimentares
ingeridos dias antes. Hematêmese sugere úlcera, câncer ou laceração de
Mallory-Weiss. Vômitos fecaloides ocorrem com obstrução dos segmentos
distais do intestino delgado ou do intestino grosso. Vômitos biliares excluem
obstrução gástrica, enquanto vômito de alimentos não digeridos é compatível
com o divertículo de Zenker ou acalasia. O vômito pode aliviar a dor
abdominal causada por uma obstrução intestinal, porém não apresenta efeito
sobre a pancreatite ou a colecistite. Perda de peso acentuada aumenta a
preocupação quanto à possibilidade de câncer ou obstrução. Febre sugere
inflamação. Deve-se suspeitar de causa intracraniana quando há cefaleia ou
alterações dos campos visuais. Vertigem ou zumbido indica doença do
labirinto.
O exame físico complementa a anamnese. Hipotensão ortostática e
turgor cutâneo reduzido indicam perda de líquido intravascular.
Anormalidades pulmonares sugerem aspiração de vômitos. Os ruídos
peristálticos podem estar inaudíveis nos pacientes com íleo. Peristaltismo
com tonalidade aguda sugere obstrução intestinal, enquanto se pode observar
um ruído de sucussão durante o movimento lateral abrupto do paciente em
caso de gastroparesia ou obstrução pilórica. Hipersensibilidade ou defesa
involuntária sugere inflamação. Sangue nas fezes indica lesão da mucosa
causada por úlcera, isquemia ou tumor. As doenças neurológicas evidenciam-
se por edema das papilas ópticas, déficits do campo visual ou anormalidades
neurais focais. Massas palpáveis ou linfadenopatia sugerem neoplasia
maligna.

EXAMES DIAGNÓSTICOS
No caso de sintomas de manejo difícil ou de um diagnóstico obscuro, testes
de rastreamento selecionados podem direcionar o tratamento clínico. A
reposição de eletrólitos é indicada para corrigir hipopotassemia ou alcalose
metabólica. Os pacientes com anemia ferropriva devem ser investigados
quanto à possibilidade de lesões da mucosa. Exames bioquímicos anormais
da função pancreática ou hepática sugerem doença pancreatobiliar.
Anormalidades hormonais ou sorológicas indicam etiologias endócrinas,
reumáticas ou paraneoplásicas. Quando há suspeita de obstrução intestinal, as
radiografias abdominais nas posições deitada e vertical podem mostrar níveis
hidroaéreos intestinais com diminuição do ar colônico. O íleo caracteriza-se
por alças intestinais cheias de ar e difusamente dilatadas.
Os exames anatômicos podem ser indicados quando a investigação
inicial não define o diagnóstico. A endoscopia digestiva alta detecta úlceras,
tumores malignos e retenção de restos alimentares associados à
gastroparesia. A radiografia com bário ou a tomografia computadorizada
(TC) do intestino delgado diagnosticam obstrução intestinal parcial. A
colonoscopia ou a radiografia com enema de contraste podem detectar
obstrução do intestino grosso. A ultrassonografia ou a TC demonstram
inflamação intraperitoneal; TC e enterografia por ressonância magnética
(RM) evidenciam a inflamação associada à doença de Crohn. A TC ou a RM
do cérebro podem demonstrar doença intracraniana. Angiografia
mesentérica, TC ou RM são úteis quando se suspeita de isquemia.
Os testes da motilidade gastrintestinal podem detectar um distúrbio
motor subjacente. A gastroparesia é diagnosticada geralmente por
cintilografia gástrica, que avalia a eliminação de uma refeição marcada
radioativamente. Em 2015, a FDA (Food and Drug Administration) aprovou
um teste respiratório do esvaziamento gástrico com C13 não radioativo, que
pode ser uma alternativa à cintilografia com relação custo-benefício
favorável. A pseudo-obstrução intestinal é sugerida por trânsito anormal do
bário e dilatação do lúmen na radiografia contrastada do intestino delgado.
Os métodos de avaliação da motilidade com cápsulas sem fio medem o
trânsito no estômago, intestino delgado e intestino grosso, detectando
alterações do pH nas diversas regiões e também podem diagnosticar
gastroparesia e distúrbios da motilidade do intestino delgado. A manometria
do intestino delgado pode confirmar o diagnóstico de pseudo-obstrução e
caracterizar a anormalidade motora como neuropática ou miopática com base
nos padrões contráteis. A manometria pode dispensar a necessidade de
realizar uma biópsia cirúrgica do intestino para detectar degeneração da
musculatura lisa ou dos neurônios intestinais. A combinação dos testes de
pH/impedância esofágica ambulatorial com a manometria de alta resolução
facilita o diagnóstico da síndrome de ruminação.

TRATAMENTO
Náuseas e vômitos
PRINCÍPIOS GERAIS
O tratamento dos vômitos é ajustado para corrigir as anormalidades tratáveis, quando possível. A
hospitalização deve ser considerada nos casos de desidratação grave, especialmente quando a reposição de
líquidos orais não pode ser mantida. Uma vez que a ingestão oral seja tolerada, os alimentos devem ser
reiniciados com líquidos pobres em gorduras, pois os lipídeos retardam o esvaziamento gástrico. Um estudo
controlado demonstrou que uma dieta com partículas pequenas e pouco resíduo é eficaz para tratar
gastroparesia. O controle da glicose sanguínea dos diabéticos instáveis pode reduzir as hospitalizações
associadas à gastroparesia e melhorar a náusea e os vômitos.

FÁRMACOS ANTIEMÉTICOS
Os agentes antieméticos mais usados atuam em regiões do sistema nervoso central (Tab. 41-2). Os anti-
histamínicos como o dimenidrinato e a meclizina, e os anticolinérgicos, como a escopolamina, atuam nas
vias labirínticas para tratar cinetose e disfunção labiríntica. Os antagonistas dos receptores D2 de dopamina
tratam vômitos induzidos por estímulos da área postrema e são usados para as etiologias medicamentosas,
tóxicas e metabólicas. Os antagonistas da dopamina cruzam a barreira hematencefálica e causam ansiedade,
distúrbios do movimento e efeitos hiperprolactinêmicos (galactorreia e disfunção sexual).

TABELA 41-2 ■ Tratamento para náuseas e vômitos


Tratamento Mecanismo Exemplos Indicações clínicas
Agentes Anti-histaminérgicos Dimenidrinato, Cinetose, doença da orelha interna
antieméticos meclizina
Anticolinérgicos Escopolamina Cinetose, doença da orelha interna
Antidopaminérgicos Proclorperazina, Vômitos induzidos por medicamentos, toxinas ou metabolismo
tietilperazina
Antagonistas 5-HT3 Ondansetrona e Vômitos induzidos por quimioterapia e radiação, vômitos pós-
granisetrona operatórios
Antagonistas NK1 Aprepitanto Náuseas e vômitos induzidos por quimioterapia

Antidepressivos tricíclicos Amitriptilina, Síndrome de náusea e vômitos crônicos, síndrome dos vômitos
nortriptilina cíclicos, gastroparesia(?)
Outros antidepressivos Mirtazapina, Síndrome de náusea e vômitos crônicos(?), gastroparesia(?)
olanzapina
Agentes Agonista do 5-HT4 e Metoclopramida Gastroparesia
procinéticos antidopaminérgicos
Agonista da motilina Eritromicina Gastroparesia, pseudo-obstrução intestinal(?)
Antidopaminérgico Domperidona Gastroparesia
periférico
Análogo da somatostatina Octreotida Pseudo-obstrução intestinal
Inibidor da Piridostigmina Distúrbio da motilidade/pseudo-obstrução do intestino
acetilcolinesterase delgado(?)
Situações Benzodiazepínicos Lorazepam Náuseas e vômitos antecipatórios à quimioterapia
especiais
Glicocorticoides Metilprednisolona, Vômitos induzidos por quimioterapia
dexametasona
Canabinoides Tetra-hidrocanabinol Vômitos induzidos por quimioterapia
Nota: (?), indicação duvidosa.

Outras classes farmacológicas apresentam propriedades antieméticas. Os antagonistas do receptor 5-


HT3, como a ondansetrona e a granisetrona, evitam vômitos pós-operatórios, sintomas induzidos por
radioterapia e vômitos provocados por quimioterápicos usados para tratar câncer, mas também são usados
para controlar outras causas de vômitos. Os antagonistas do receptor NK1, como o aprepitanto, foram
aprovados para tratar vômitos induzidos por quimioterapia e também reduzem os sintomas associados à
gastroparesia. Os antidepressivos tricíclicos atenuam os sintomas de alguns pacientes com vômitos de
causas funcionais, mas não produziram efeitos benéficos em um estudo controlado com pacientes
portadores de gastroparesia. Outros antidepressivos, como a mirtazapina, a olanzapina e o agente
modulador da dor gabapentina, também podem ter efeitos antieméticos.

ESTIMULANTES MOTORES GASTRINTESTINAIS


Os fármacos que estimulam o esvaziamento gástrico são usados nos casos de gastroparesia (Tab. 41-2). A
metoclopramida – um agonista do receptor 5-HT4 e antagonista do receptor D2 misto – é eficaz para tratar
gastroparesia, mas seus efeitos colaterais antidopaminérgicos (inclusive distonias e transtornos do humor)
limitam seu uso em cerca de 25% dos casos. A eritromicina aumenta a motilidade gastroduodenal por sua
ação nos receptores de motilina, um estimulante motor endógeno no jejum. A eritromicina intravenosa é útil
aos pacientes hospitalizados com gastroparesia refratária ao tratamento. A utilidade das preparações orais é
limitada pelo desenvolvimento de tolerância. A domperidona – um antagonista do receptor D2 não
disponível nos Estados Unidos – tem efeitos procinéticos e antieméticos, mas não penetra na maioria das
regiões cerebrais; desse modo, as reações distônicas são raras. A domperidona pode causar efeitos colaterais
hiperprolactinêmicos em razão dos seus efeitos nas regiões hipofisárias com barreira hematencefálica
porosa. A prucaloprida – um agonista do receptor 5-HT4 disponível no Canadá e na Europa – mostrou
eficácia em um estudo preliminar com pacientes portadores de gastroparesia.
Os distúrbios da motilidade refratários são difíceis de tratar. A pseudo-obstrução intestinal pode
responder à octreotida, um análogo da somatostatina que induz complexos motores que se propagam pelo
intestino delgado. Os inibidores de acetilcolinesterase, como a piridostigmina, podem ter efeitos favoráveis
em alguns pacientes com distúrbios da motilidade do intestino delgado. Estudos não controlados
demonstraram que as injeções pilóricas de toxina botulínica reduziram os sintomas da gastroparesia, mas
estudos controlados de pequeno porte não observaram efeitos mais benéficos que a administração de um
placebo. A piloroplastia cirúrgica e a miotomia endoscópica por via oral (POEM) do piloro melhoraram os
sintomas dos pacientes incluídos em séries de casos publicados. A colocação de uma sonda de jejunostomia
para alimentação reduz as hospitalizações e melhora o estado de saúde geral de alguns pacientes com
gastroparesia refratária. A gastroparesia pós-vagotomia pode melhorar com ressecção gástrica quase total;
operações semelhantes estão atualmente sendo testadas nos casos de gastroparesias de outras etiologias. O
implante de estimuladores elétricos gástricos pode reduzir os sintomas, melhorar a nutrição e a qualidade de
vida e reduzir os gastos com assistência médica dos pacientes com gastroparesia refratária a fármacos,
embora estudos controlados de pequeno porte não tenham demonstrado benefícios convincentes.

CONSIDERAÇÕES SOBRE SEGURANÇA


Questões de segurança foram levantadas quanto ao uso de alguns antieméticos. Os antidopaminérgicos de
ação central, especialmente a metoclopramida, podem causar distúrbios do movimento irreversíveis, como a
discinesia tardia, principalmente nos pacientes idosos. Essa complicação deve ser explicada e documentada
no prontuário médico. Domperidona, eritromicina, antidepressivos tricíclicos e antagonistas do receptor 5-
HT3 podem causar arritmias cardíacas perigosas, especialmente nos pacientes com prolongamento do
intervalo QTc no eletrocardiograma (ECG). A realização periódica de um ECG foi recomendada aos
pacientes tratados com alguns desses fármacos.

CONDIÇÕES CLÍNICAS SELECIONADAS


Algumas quimioterapias do câncer são intensamente emetogênicas (Cap. 69). A combinação de um
antagonista do receptor 5-HT3, de um antagonista do receptor NK1 e de um glicocorticoide pode controlar
vômitos agudos e tardios depois do uso de quimioterapia altamente emetogênica. Ao contrário dos outros
fármacos da mesma classe, o antagonista 5-HT3 palonosetrona pode evitar os vômitos tardios induzidos
pela quimioterapia. Os benzodiazepínicos, como o lorazepam, reduzem a náusea e os vômitos antecipados.
Outros tratamentos variados que melhoram os vômitos induzidos pela quimioterapia são canabinoides,
olanzapina e terapias alternativas, como gengibre. A maioria dos esquemas antieméticos provoca reduções
mais expressivas dos vômitos que das náuseas.
Os médicos devem ter cuidado ao tratar gestantes com náuseas. Os estudos dos efeitos teratogênicos
dos agentes antieméticos forneceram resultados conflitantes. Poucos ensaios controlados foram realizados
em casos de náuseas na gravidez. Os anti-histamínicos, como a meclizina e a doxilamina, os
antidopaminérgicos, como a proclorperazina, e os antisserotoninérgicos, como a ondansetrona, têm eficácia
limitada. Alguns obstetras recomendam tratamentos alternativos, inclusive piridoxina, acupressão ou
gengibre.
O tratamento da síndrome dos vômitos cíclicos é difícil. A profilaxia com antidepressivos tricíclicos,
ciproeptadina ou antagonistas dos receptores β-adrenérgicos pode reduzir a frequência e a gravidade das
crises. O uso de antagonistas 5-HT3 combinados com os efeitos sedativos de um benzodiazepínico (p. ex.,
lorazepam) é a base do tratamento das exacerbações agudas. Estudos de pequeno porte relataram efeitos
benéficos dos fármacos usados para tratar migrânea, inclusive o agonista 5-HT1 sumatriptana e alguns
anticonvulsivantes, como topiramato, zonisamida e levetiracetam.
INDIGESTÃO
MECANISMOS
As causas mais comuns de indigestão são refluxo gastresofágico e dispepsia
funcional. Os outros casos são consequência de doença orgânica.

Refluxo gastresofágico O refluxo gastresofágico resulta de diversos distúrbios


fisiológicos. A redução do tônus do esfincter esofágico inferior (EEI) contribui
para o refluxo na esclerodermia e gravidez e pode ser um fator contribuinte em
alguns pacientes sem doenças sistêmicas. Outros apresentam episódios
frequentes de relaxamento transitório do EEI (RTEEI), que permite a exposição
do esôfago aos líquidos ácidos ou não ácidos. As reduções da motilidade do
corpo esofágico ou da secreção salivar prolongam a exposição aos líquidos. A
elevação da pressão intragástrica facilita o refluxo gastresofágico nos pacientes
obesos. O papel das hérnias de hiato é controverso – a maior parte dos pacientes
com refluxo apresenta hérnias de hiato, porém a maioria dos indivíduos com
hérnias de hiato não apresenta pirose excessiva.

Disfunção motora gástrica A motilidade gástrica reduzida pode contribuir para


o refluxo gastresofágico em até um terço de casos. Cerca de 30% dos pacientes
com dispepsia funcional também têm retardo do esvaziamento gástrico,
enquanto 5% têm esvaziamento gástrico acelerado. A relação desses defeitos
com a indução dos sintomas não é precisa; estudos mostraram uma correlação
fraca entre a gravidade dos sintomas e o grau de disfunção motora. O
relaxamento reduzido do fundo gástrico depois da ingestão alimentar (i.e.,
acomodação) pode ser responsável por alguns sintomas dispépticos, como
distensão por gases, náusea e saciedade precoce em cerca de 40% dos casos e
pode predispor aos episódios de RTEEI e ao refluxo ácido.

Hipersensibilidade aferente visceral Distúrbios da sensibilidade gástrica é


outro fator patogênico na dispepsia funcional. Cerca de 35% dos pacientes
dispépticos sentem desconforto com a distensão do fundo gástrico sob pressões
mais baixas que os controles saudáveis. Outros pacientes dispépticos têm
hipersensibilidade à estimulação química com capsaicina ou com perfusão de
ácidos ou lipídeos no duodeno. Alguns pacientes com pirose funcional sem o
aumento do refluxo ácido ou não ácido podem ter percepção exagerada da acidez
esofágica normal.
Outros fatores O Helicobacter pylori tem papel etiológico evidente na úlcera
péptica, mas as úlceras são responsáveis por uma minoria dos casos de dispepsia.
O H. pylori representa um fator pouco importante na patogênese da dispepsia
funcional. Ansiedade e depressão podem contribuir para alguns casos de
dispepsia funcional. Os exames de RM funcional evidenciaram aumento da
ativação de várias regiões cerebrais, enfatizando as contribuições originadas das
vias neurais do sistema nervoso central. Fatores inflamatórios como a eosinofilia
duodenal (e, possivelmente, o aumento das contagens de mastócitos duodenais)
podem contribuir para a saciedade precoce e dor associadas à dispepsia
funcional. Até 20% dos pacientes com dispepsia funcional referem que os
sintomas começaram depois de uma doença viral, sugerindo uma etiologia
infecciosa. Os analgésicos causam dispepsia, enquanto os nitratos, bloqueadores
dos canais de cálcio, teofilina e progesterona estimulam o refluxo gastresofágico.
Outros estímulos que induzem refluxo são etanol, tabaco e cafeína, através do
relaxamento do EEI. Fatores genéticos predispõem ao desenvolvimento de
refluxo e dispepsia.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Doença do refluxo gastresofágico A doença do refluxo gastresofágico (DRGE)
é muito comum. Dezoito a 28% dos indivíduos relatam pirose ou regurgitação
semanalmente. A maioria dos casos de pirose resulta do refluxo ácido excessivo,
mas o refluxo de líquidos não ácidos provoca sintomas semelhantes. A esofagite
de refluxo alcalino produz sintomas semelhantes aos da DRGE na maioria das
vezes em pacientes que passaram por cirurgia de úlcera péptica. Dez por cento
dos pacientes com pirose não apresentam aumento no refluxo esofágico ácido ou
não ácido (pirose funcional).

Dispepsia funcional Cerca de 25% da população tem dispepsia ao menos seis


vezes por ano, mas apenas 10 a 20% consultam um médico. A dispepsia
funcional – causa dos sintomas de > 70% dos pacientes dispépticos – é definida
por plenitude pós-prandial incômoda, saciedade precoce, dor ou queimação
epigástrica com início de sintomas pelo menos 6 meses antes do diagnóstico nos
casos em que não há uma causa orgânica. A dispepsia funcional é subdividida
em síndrome do desconforto pós-prandial, que se caracteriza por plenitude
induzida por uma refeição e saciedade precoce; e síndrome da dor epigástrica,
que se evidencia por dor ou queimação epigástrica, relacionada ou não com a
ingestão alimentar. A maioria dos casos tem evolução benigna, mas alguns
pacientes com infecção pelo H. pylori ou em uso de anti-inflamatórios não
esteroides (AINEs) desenvolvem úlceras.

Doença ulcerosa Na maioria dos pacientes com DRGE, não há lesão do


esôfago. Entretanto, 5% desenvolvem úlceras esofágicas e, em alguns, há
formação de estenoses. Os sintomas não permitem ao médico diferenciar entre
esofagite não erosiva e erosiva ou ulcerativa. Uma minoria de casos de dispepsia
é causada por úlceras gástricas ou duodenais. As causas mais comuns de úlcera
são infecção por H. pylori e uso de AINEs. Outras causas raras de úlceras
gastroduodenais incluem doença de Crohn (Cap. 319) e síndrome de Zollinger-
Ellison (Cap. 317), resultante da produção excessiva de gastrina por um tumor
endócrino.

Neoplasia maligna Pacientes dispépticos geralmente procuram tratamento


devido ao medo de câncer, porém poucos casos estão relacionados com
neoplasias malignas. O carcinoma de células escamosas do esôfago está
associado mais frequentemente ao tabagismo ou ao uso de álcool. Outros fatores
de riscos incluem ingestão pregressa de substância cáustica, acalasia e tilose
hereditária. O adenocarcinoma esofágico geralmente complica o refluxo ácido
prolongado. Oito a 20% dos pacientes com DRGE apresentam metaplasia
intestinal do esôfago, também conhecida como metaplasia de Barrett, que
predispõe ao desenvolvimento de adenocarcinoma esofágico (Cap. 76). Os
cânceres gástricos incluem o adenocarcinoma, prevalente em certas populações
asiáticas, e o linfoma.

Outras causas Infecções esofágicas oportunistas fúngicas ou virais podem


causar pirose, embora mais frequentemente causem odinofagia. Outras causas de
inflamação esofágica incluem esofagite eosinofílica e esofagite causada por
comprimidos. A cólica biliar está incluída no diagnóstico diferencial da dor
abdominal alta inexplicável, mas a maioria dos pacientes com cólica biliar relata
episódios agudos distintos de dor no quadrante superior direito ou no epigástrio
em vez da dispepsia. Vinte por cento dos pacientes com gastroparesia referem
predomínio de dor, em vez de náusea e vômitos. A deficiência de lactase
intestinal como causa de gases, inchaço e desconforto ocorre em 15 a 25% dos
indivíduos brancos originários do Norte da Europa, porém é mais comum em
negros e asiáticos. A intolerância a outros carboidratos (p. ex., frutose, sorbitol)
produz sintomas semelhantes. A proliferação excessiva de bactérias no intestino
delgado pode causar dispepsia, geralmente associada à disfunção, distensão e
absorção deficiente do intestino. Doença celíaca, doença pancreática (pancreatite
crônica, câncer), carcinoma hepatocelular, doença de Ménétrier, doenças
infiltrativas (sarcoidose, gastrenterite eosinofílica), isquemia mesentérica,
doenças da tireoide e da paratireoide e estiramento da parede abdominal podem
causar dispepsia. Hipersensibilidade ao glúten sem doença celíaca pode causar
sintomas abdominais altos inexplicáveis de outra forma. As causas
extraperitoneais de indigestão incluem insuficiência cardíaca congestiva e
tuberculose.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Indigestão
HISTÓRIA E EXAME FÍSICO
O tratamento da indigestão depende de uma anamnese detalhada. Nos casos
clássicos, a DRGE causa pirose, descrita como ardência ou queimação
subesternal que se move em direção ao pescoço. A pirose comumente é
exacerbada pelas refeições e pode fazer o paciente acordar. Os sintomas
associados incluem regurgitação de líquido ácido ou não ácido e sialorreia
(water brash), a liberação reflexa de secreções salivares salgadas no interior
da boca. Os sintomas atípicos incluem faringite, asma, tosse, bronquite,
rouquidão e dor torácica que simula angina. Alguns pacientes com refluxo
ácido no teste de determinação do pH esofágico não relatam pirose, mas
apresentam dor abdominal ou outros sintomas.
Pacientes dispépticos geralmente se queixam de sintomas referidos ao
abdome superior, que podem estar relacionados com as refeições, como no
caso da síndrome do desconforto pós-prandial, ou serem independentes da
ingestão do alimento, como na síndrome da dor epigástrica. A dispepsia
funcional se sobrepõe a outros distúrbios, incluindo o DRGE, a SII e a
gastroparesia idiopática.
O exame físico dos pacientes com DRGE e dispepsia funcional
geralmente é normal. Nos pacientes com DRGE atípica, podem-se observar
eritema faríngeo e sibilos pulmonares. A regurgitação ácida recorrente pode
causar dano à dentição. Os pacientes dispépticos podem apresentar
hipersensibilidade ou distensão epigástrica.
De forma a diferenciar as causas funcionais e orgânicas da indigestão, é
essencial excluir algumas manifestações evidenciadas com base na anamnese
e no exame físico. Odinofagia sugere infecção esofágica. Disfagia indica a
possibilidade de obstrução esofágica benigna ou maligna. Outras
manifestações de alarme incluem perda de peso inexplicada, vômitos
recorrentes, sangramento oculto ou visível, icterícia, massa palpável ou
adenopatia e história familiar de câncer gastrintestinal.

EXAMES DIAGNÓSTICOS
Como indigestão é muito comum e a maioria dos casos resulta de DRGE ou
dispepsia funcional, um princípio geral é a realização de apenas um número
limitado de exames diagnósticos direcionados em casos selecionados.
Depois de excluir os fatores de alarme (Tab. 41-3), os pacientes com
DRGE típica não precisam de avaliação adicional e são tratados
empiricamente. A endoscopia digestiva alta está indicada para excluir lesões
da mucosa nos casos em que há sintomas atípicos ou fatores de alarme.
Quando a pirose está presente há > 5 anos, especialmente nos pacientes com
idade > 50 anos, a endoscopia é recomendada para detectar metaplasia de
Barrett. A endoscopia não é necessária aos pacientes de baixo risco, que
apresentam melhora com o tratamento à base de supressores da acidez. A
determinação ambulatorial do pH esofágico, usando cateter ou cápsula sem
fio presa por endoscopia à parede esofágica, deve ser considerada nos casos
com sintomas refratários e sintomas atípicos, como dor torácica inexplicável.
A manometria esofágica de alta resolução é solicitada principalmente quando
se considera o tratamento cirúrgico para DRGE. A pressão baixa do EEI
prediz o fracasso do tratamento farmacológico e é uma justificativa para
recorrer ao tratamento cirúrgico. A redução da peristalse do corpo esofágico
aumenta a preocupação quanto à ocorrência de disfagia pós-operatória e
indica a escolha da técnica cirúrgica. O refluxo não ácido pode ser detectado
pelo teste combinado de impedâncio-pHmetria esofágica em pacientes
refratários ao tratamento farmacológico.

TABELA 41-3 ■ Sintomas de alarme associados à doença do refluxo gastresofágico


Odinofagia ou disfagia
Perda de peso inexplicável
Vômitos recorrentes
Sangramento gastrintestinal grave ou oculto
Icterícia
Massa palpável ou linfadenopatia
História familiar de câncer gastresofágico
A endoscopia alta deve ser realizada como exame diagnóstico inicial em
pacientes com dispepsia inexplicável que tenham > 55 anos ou apresentem
fatores de alarme, tendo em vista os riscos altos relatados de neoplasia
maligna e úlcera nesses grupos. Contudo, os resultados da endoscopia
realizada para avaliar dispepsia não investigada incluem esofagite erosiva em
13% dos casos, úlcera péptica em 8% e carcinoma gástrico ou esofágico em
apenas 0,3% dos pacientes. O tratamento de pacientes com idade < 55 anos
sem fatores de alarme depende da prevalência do local da infecção pelo H.
pylori. Nas regiões com baixa prevalência do H. pylori (< 10%), recomenda-
se um ensaio de 4 semanas com um fármaco antiácido, como um inibidor da
bomba de prótons (IBP). Se esse tratamento for ineficaz, a abordagem mais
adotada “testar e tratar”. A presença do H. pylori é determinada pelo teste da
ureia no ar exalado ou pela detecção do antígeno fecal. Os pacientes
positivos para H. pylori recebem tratamento para erradicar a infecção. Se os
sintomas regredirem com qualquer um desses esquemas, nenhuma
intervenção adicional será necessária. Para os pacientes que vivem em áreas
com alta prevalência de H. pylori (> 10%), recomenda-se uma abordagem
inicial do tipo “testar e tratar”, com um ensaio subsequente à base de
antiácidos oferecidos para aqueles que não responderam ao tratamento do H.
pylori ou que são negativos para a infecção. Em todos esses subgrupos de
pacientes, a endoscopia alta deve ser reservada para os casos cujos sintomas
não melhoram com tratamento.
Exames adicionais são indicados em alguns casos. Se for observado
sangramento, um hemograma poderá excluir a anemia. As dosagens dos
hormônios tireóideos ou dos níveis de cálcio devem ser realizadas como
triagem de doenças metabólicas, enquanto as sorologias específicas podem
sugerir doença celíaca. Os exames das funções hepática e pancreática são
realizados para avaliar a possibilidade de doença pancreatobiliar, que é
investigada mais detalhadamente com ultrassonografia, TC ou RM. O teste
do esvaziamento gástrico é considerado para excluir gastroparesia por
sintomas dispépticos semelhantes ao desconforto pós-prandial quando o
tratamento farmacológico é ineficaz e em alguns pacientes com DRGE,
especialmente se a intervenção cirúrgica for uma opção. O teste do ar
exalado depois da ingestão de carboidratos pode detectar deficiência de
lactase, intolerância a outros carboidratos ou proliferação bacteriana
excessiva no intestino delgado.
TRATAMENTO
Indigestão
PRINCÍPIOS GERAIS
Para os casos de indigestão leve, a única intervenção necessária pode ser a confirmação de que uma
cuidadosa avaliação não mostrou qualquer doença orgânica de maior gravidade. Os fármacos que causam
refluxo gastresofágico ou dispepsia devem ser interrompidos, quando possível. Os pacientes com DRGE
devem limitar o consumo de etanol, cafeína, chocolate e tabaco devido aos seus efeitos no EEI. Outras
medidas eficazes na DRGE incluem a ingestão de dieta pobre em lipídeos, evitar lanches antes de dormir e
elevar a cabeceira da cama. Pacientes com dispepsia funcional também podem ser aconselhados a reduzir a
ingestão de gorduras, alimentos picantes, cafeína e álcool.
Deve-se oferecer tratamento específico para as doenças orgânicas, quando possível. Nos casos de
cólica biliar, recomenda-se intervenção cirúrgica. As intervenções dietéticas estão indicadas aos pacientes
com deficiência de lactase ou doença celíaca. As úlceras pépticas podem ser curadas com esquemas
terapêuticos específicos. Entretanto, como a maioria dos casos de indigestão é causada por DRGE ou
dispepsia funcional, devem ser utilizados fármacos que reduzam a acidez gástrica, modulem a motilidade
ou bloqueiem a hipersensibilidade gástrica.

FÁRMACOS NEUTRALIZADORES OU SUPRESSORES DA


ACIDEZ
Os fármacos que reduzem ou neutralizam o ácido gástrico são frequentemente prescritos para tratar DRGE.
Os antagonistas dos receptores H2 de histamina, como cimetidina, ranitidina, famotidina e nizatidina, são
úteis para tratar DRGE leve a moderada. Para os sintomas graves ou em muitos casos de esofagite erosiva
ou ulcerativa, são necessários IBPs, como omeprazol, lansoprazol, rabeprazol, pantoprazol, esomeprazol ou
dexlansoprazol. Esses fármacos inibem a H+, K+-ATPase gástrica e são mais potentes que os antagonistas
dos receptores H2. Cerca de um terço dos pacientes com DRGE não responde às doses recomendadas dos
IBPs; um terço deles apresenta refluxo não ácido, enquanto 10% têm doença persistente associada à acidez.
Nos casos típicos, a pirose responde mais ao tratamento com IBPs que a regurgitação ou os sintomas da
DRGE. Alguns indivíduos melhoram com a duplicação da dose do IBP ou com o acréscimo de um
antagonista H2 administrado à hora de deitar. Complicações incomuns do tratamento prolongado com IBP
incluem diarreia (por infecção pelo Clostridium difficile ou colite microscópica), proliferação excessiva de
bactérias no intestino delgado, deficiência nutricional (vitamina B12, ferro, cálcio), hipomagnesemia,
desmineralização óssea, nefrite intersticial e redução da absorção de outros fármacos (p. ex., clopidogrel).
Muitos pacientes que iniciaram o tratamento com um IBP podem passar a um antagonista H2 ou a um
esquema de administração conforme a necessidade.
Os fármacos supressores da acidez também são eficazes para alguns pacientes com dispepsia
funcional. Uma metanálise de 10 estudos controlados calculou uma razão de risco de 0,87 com intervalo de
confiança de 95% de 0,80 a 0,96, favorecendo o tratamento com IBP em comparação com placebo. Os
antagonistas dos receptores H2 também aliviaram os sintomas da dispepsia funcional; entretanto os
resultados dos estudos com essa classe de fármacos são provavelmente influenciados pela inclusão de
grandes quantidades de pacientes com DRGE.
Os antiácidos são úteis para o controle da DRGE leve em curto prazo, porém induzem menos
benefícios em casos graves, a menos que sejam administrados em altas doses, que causam efeitos colaterais
(diarreia e constipação com fármacos que contêm magnésio e alumínio, respectivamente). O ácido algínico
combinado com antiácidos forma uma barreira flutuante ao refluxo ácido em pacientes com sintomas
evidentes. O sucralfato – um sal de hidróxido de alumínio e octassulfato de sacarose que tampona o ácido e
liga-se à pepsina e aos sais biliares – tem eficácia na DRGE comparável aos antagonistas H2.

ERRADICAÇÃO DO HELICOBACTER PYLORI


A erradicação do H. pylori está indicada definitivamente apenas para úlcera péptica e linfoma gástrico do
tecido linfoide associado à mucosa. Os efeitos benéficos do tratamento de erradicação na dispepsia
funcional são limitados, embora sejam estatisticamente significativos. Uma revisão sistemática de 25
estudos controlados calculou uma razão de risco acumulado de 1,24, com intervalo de confiança de 95%
entre 1,12 e 1,37, favorecendo a erradicação do H. pylori em comparação com placebo. A maioria dos
esquemas terapêuticos combinados (Caps. 158 e 317) inclui 10 a 14 dias de um IBP ou subsalicilato de
bismuto com dois antibióticos. A infecção por H. pylori está associada à prevalência reduzida de DRGE,
especialmente nos pacientes idosos. Entretanto, a erradicação da infecção não agrava os sintomas da DRGE.
Não existe consenso quanto às recomendações relacionadas com a erradicação do H. pylori nos pacientes
com DRGE.

FÁRMACOS QUE MODIFICAM A ATIVIDADE MOTORA


GASTRINTESTINAL
Os fármacos procinéticos, como metoclopramida, eritromicina e domperidona, têm pouca utilidade no
tratamento da DRGE. O agonista do ácido γ-aminobutírico B (GABA-B) baclofeno reduz a exposição
esofágica aos líquidos ácidos e não ácidos ao reduzir os episódios de RTEEI em 40%; esse fármaco é
recomendado como tratamento adjuvante para refluxo ácido e não ácido refratário. Vários estudos
promoveram a eficácia dos fármacos estimulantes da atividade motora no tratamento da dispepsia funcional
com reduções do risco relativo em 33%, mas os vieses de publicação e o tamanho reduzido das amostras
levantam dúvidas quanto aos efeitos benéficos alegados desses fármacos. Alguns médicos sugerem que os
pacientes com o subtipo do desconforto pós-prandial possam responder preferencialmente aos fármacos
procinéticos. Os agonistas 5-HT1A como a buspirona e a tandospirona podem melhorar alguns dos sintomas
da dispepsia funcional, aumentando a acomodação gástrica induzida pela ingestão alimentar. A acotiamida
promove o esvaziamento gástrico e aumenta a acomodação por facilitar a liberação gástrica de acetilcolina
via antagonismo do receptor muscarínico e inibição da acetilcolinesterase. Esse fármaco foi aprovado para
tratar dispepsia funcional no Japão.

ANTIDEPRESSIVOS
Alguns pacientes com pirose funcional refratária podem melhorar com o uso dos antidepressivos das classes
dos tricíclicos e inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS), embora existam poucos estudos
sobre isso. O mecanismo de ação desses fármacos pode envolver a atenuação do processamento da dor
visceral no cérebro. Em um estudo controlado recente sobre dispepsia funcional, o antidepressivo tricíclico
amitriptilina conseguiu atenuar os sintomas, enquanto o ISRS escitalopram não produziu qualquer efeito
benéfico em uma comparação tríplice com placebo. Em outro estudo controlado sobre dispepsia funcional,
o antidepressivo mirtazapina foi mais eficaz na atenuação dos sintomas que um placebo.

OUTRAS OPÇÕES
A cirurgia antirrefluxo (fundoplicatura) para aumentar a pressão do EEI pode ser oferecida aos pacientes
com DRGE que são jovens e necessitam de tratamento prolongado, têm pirose e regurgitação típicas,
respondem aos IBPs e mostram evidências de refluxo ácido na monitoração do pH. A cirurgia também é
eficaz para alguns casos de refluxo não ácido. Os indivíduos que não respondem tão bem à fundoplicatura
incluem os que têm sintomas atípicos ou que apresentam distúrbios motores esofágicos. Disfagia, síndrome
de flatulência/gases e gastroparesia são complicações crônicas da fundoplicatura; cerca de 60%
desenvolvem sintomas recidivantes da DRGE com o transcorrer do tempo. Hoje, há estudos em andamento
avaliando a utilidade e segurança dos tratamentos endoscópicos da junção gastresofágica (tratamento com
radiofrequência, fundoplicatura transoral, grampeamento endoscópico, mucosectomia antirrefluxo) e
ampliação magnética laparoscópica do esfincter para melhorar a função de barreira gastresofágica dos
pacientes com DRGE.
Formação excessiva de gases e distensão podem ser sintomas incômodos em alguns pacientes com
indigestão, e essas queixas são difíceis de tratar. A exclusão dos alimentos produtores de gases da dieta (p.
ex., legumes) e o uso de simeticona ou carvão ativado proporcionam benefícios em alguns casos. As dietas
com restrição de FODMAP (oligossacarídeo, dissacarídeo, monossacarídeo e poliol fermentáveis) e os
tratamentos para modificar a flora intestinal (antibióticos não absorvíveis, probióticos) reduzem os sintomas
gasosos em alguns pacientes com SII. A utilidade das dietas pobres em FODMAP, antibióticos e probióticos
na dispepsia funcional não está comprovada. Os fármacos fitoterápicos, como o STW 5 (uma mistura de
nove compostos fitoterápicos), são úteis para alguns pacientes dispépticos. Terapias psicológicas (p. ex.,
terapia comportamental, psicoterapia, hipnoterapia) podem ser oferecidas aos pacientes com dispepsia
funcional refratária, mas não existem dados convincentes que confirmem sua eficácia.

LEITURAS ADICIONAIS
Hasler WL: Newest drugs for unexplained nausea and vomiting. Curr Treat
Options Gastroenterol 14:371, 2016.
Patti MG: An evidence-based approach to the treatment of gastroesophageal
reflux disease. JAMA Surg 151:73, 2016.
Scarpellini E et al: Management of refractory typical GERD symptoms. Nat Rev
Gastroenterol Hepatol 13:281, 2016.
Stanghellini V et al: Gastroduodenal disorders. Gastroenterology 150:1380,
2016.
Talley NJ, Ford AC: Functional dyspepsia. N Engl J Med 373:1853, 2015.
42
Diarreia e constipação
Michael Camilleri, Joseph A. Murray

Diarreia e constipação são extremamente comuns e, juntas, são responsáveis por


um enorme ônus em termos de mortalidade, morbidade, inconveniência social,
perda de produtividade no trabalho e consumo de recursos médicos. No mundo,
mais de 1 bilhão de pessoas sofrem um ou mais episódios de diarreia aguda a
cada ano. Dos 100 milhões de pessoas acometidas anualmente por diarreia aguda
nos Estados Unidos, quase metade tem de restringir as atividades, 10%
consultam um médico, cerca de 250 mil precisam de hospitalização e
aproximadamente 5 mil morrem (principalmente idosos). O custo econômico
anual para a sociedade pode ultrapassar 20 bilhões de dólares. A diarreia
infecciosa aguda continua sendo uma das causas mais comuns de mortalidade
nos países em desenvolvimento, principalmente entre crianças pobres, causando
1,8 milhão de mortes por ano. A diarreia aguda recorrente das crianças dos
países tropicais resulta em enteropatia ambiental com impactos de longo prazo
nos desenvolvimentos físico e intelectual.
Por outro lado, a constipação raramente está associada à mortalidade e é
extremamente comum nos países desenvolvidos, levando à prática da
automedicação frequente e, em 33% dos casos, a consultas médicas. As
estatísticas populacionais sobre diarreia e constipação crônicas são mais incertas,
talvez devido a variações nas definições e notificações, mas a frequência dessas
condições também é alta. Com base em pesquisas populacionais realizadas nos
Estados Unidos, as taxas de prevalência de diarreia crônica, variam de 2 a 7%, e
as de constipação crônica de 12 a 19%, com as mulheres sendo acometidas 2
vezes mais que os homens. A diarreia e a constipação estão entre as queixas mais
comuns dos pacientes atendidos por clínicos gerais e médicos de assistência
primária, contribuindo com quase 50% dos encaminhamentos para
gastrenterologistas.
Embora a diarreia e a constipação possam apresentar-se como simples
sintomas incômodos, também podem ser graves ou potencialmente fatais.
Mesmo os sintomas leves podem sinalizar uma lesão gastrintestinal (GI)
subjacente grave, como câncer colorretal, ou um distúrbio sistêmico, como
doença tireoidiana. Diante das causas heterogêneas e da gravidade potencial
dessas queixas comuns, é indispensável que os médicos avaliem a fisiopatologia,
a classificação etiológica, as estratégias diagnósticas e os princípios terapêuticos
da diarreia e da constipação, de modo a oferecer uma assistência racional e com
razão custo/benefício favorável.
FISIOLOGIA NORMAL
Embora a função primária do intestino delgado seja a digestão e a assimilação
dos nutrientes provenientes dos alimentos, o intestino delgado e o cólon juntos
executam funções importantes. Essas funções regulam a secreção e a absorção
de água e eletrólitos, o armazenamento e o subsequente transporte do conteúdo
intraluminal em direção anterógrada e a recuperação de alguns nutrientes que
não são absorvidos no intestino delgado, depois que o metabolismo bacteriano
de carboidratos permite a recuperação de ácidos graxos de cadeia curta. As
principais funções motoras estão resumidas na Tabela 42-1. Alterações no
equilíbrio hidreletrolítico contribuem de maneira significativa para a diarreia. As
alterações nas funções motoras e sensitivas do cólon resultam em síndromes
altamente prevalentes, como a síndrome do intestino irritável (SII), diarreia e
constipação crônicas.

TABELA 42-1 ■ Motilidade gastrintestinal normal: funções nos diferentes níveis anatômicos
Estômago e intestino delgado
CMM sincronizados em jejum
Acomodação, trituração, mistura, trânsito
Estômago: ~ 3 h
Intestino delgado: ~ 3 h
O reservatório ileal esvazia o bolo
Cólon: mistura irregular, fermentação, absorção e trânsito
Ascendente, transverso: reservatórios
Descendente: conduto
Sigmoide/reto: reservatório volitivo
Sigla: CMM, complexo motor migratório.

CONTROLE NEURAL
O intestino delgado e o cólon têm inervação intrínseca e extrínseca. A inervação
intrínseca, também chamada de sistema nervoso entérico, compreende as
camadas neuronais mioentérica, submucosa e mucosa. A função dessas camadas
é modulada por interneurônios mediante as ações das aminas ou peptídeos
neurotransmissores como acetilcolina, peptídeo intestinal vasoativo (VIP),
opioides, norepinefrina, serotonina, trifosfato de adenosina (ATP) e óxido nítrico
(NO). O plexo mioentérico regula a função do músculo liso por meio de células
intermediárias tipo marca-passo chamadas de células intersticiais de Cajal,
enquanto o plexo submucoso afeta a secreção, a absorção e o fluxo sanguíneo da
mucosa. O sistema nervoso entérico recebe estímulos dos nervos extrínsecos,
mas é capaz de controle independente dessas funções.
As inervações extrínsecas dos intestinos delgado e grosso fazem parte do
sistema nervoso autônomo e também modulam as funções motoras e secretoras.
Os nervos parassimpáticos conduzem as vias sensitivas viscerais e as excitatórias
saindo e na direção do intestino delgado e do cólon, respectivamente. As fibras
parassimpáticas originadas do nervo vago chegam ao intestino delgado e ao
cólon proximal juntamente com os ramos da artéria mesentérica superior. O
cólon distal é suprido por nervos parassimpáticos sacrais (S2-4) por meio do
plexo pélvico; estas fibras seguem por meio da parede do intestino grosso como
fibras intracolônicas ascendentes até o cólon proximal, por vezes incluindo-o. Os
principais neurotransmissores excitatórios que controlam a função motora são a
acetilcolina e as taquicininas, como a substância P. A inervação simpática
modula as funções motoras e alcança os intestinos delgado e grosso junto com
suas artérias correspondentes. A estimulação simpática para o intestino é
geralmente excitatória para os esfincteres e inibitória para os músculos não
esfinctéricos. Os aferentes viscerais transmitem estímulos sensoriais do intestino
para o sistema nervoso central (SNC). Algumas fibras aferentes fazem sinapse
nos gânglios pré-vertebrais e modulam de maneira reflexa a motilidade, o fluxo
sanguíneo e a secreção dos intestinos.

ABSORÇÃO E SECREÇÃO INTESTINAL DE LÍQUIDO


Em um dia normal, cerca de 9 L de líquido entram no trato GI, aproximadamente
1 L de líquido residual alcança o cólon e a excreção fecal de líquidos é de cerca
de 0,2 L/dia. O cólon tem grande capacitância e reserva funcional, podendo
recuperar até 4 vezes seu volume habitual de 0,8 L/dia, desde que a taxa de fluxo
permita que a reabsorção aconteça. Dessa maneira, o cólon pode compensar
parcialmente a entrada de líquido em excesso, resultante de distúrbios de
absorção ou secreção intestinal.
No intestino delgado e no cólon, a absorção de sódio é predominantemente
eletrogênica (i.e., pode ser mensurada como uma corrente iônica através da
membrana porque não há perda equivalente de um cátion pela célula) e a
captação acontece na membrana apical, sendo compensada pelas funções
exportadoras da bomba de sódio basolateral. Existem várias proteínas de
transporte ativo na membrana apical, especialmente no intestino delgado, por
meio do qual a entrada de íon sódio é acoplada aos monossacarídeos (p. ex.,
glicose através do transportador SGLT1, ou frutose através do GLUT-5). Em
seguida, a glicose atravessa a membrana basal por ação de uma proteína de
transporte específica, GLUT-5, criando um gradiente de concentração de glicose
entre o lúmen e o espaço intercelular, que atrai água e eletrólitos do lúmen por
difusão passiva. Uma variedade de mediadores neurais e não neurais regulam o
líquido colônico e o equilíbrio eletrolítico, incluindo mediadores colinérgicos,
adrenérgicos e serotonérgicos. A angiotensina e a aldosterona também
influenciam a absorção colônica, refletindo o desenvolvimento embriológico
comum do epitélio colônico distal e dos túbulos renais.

MOTILIDADE DO INTESTINO DELGADO


Durante o jejum, a motilidade do intestino delgado caracteriza-se por um evento
cíclico chamado de complexo motor migratório (CMM), que serve para remover
os resíduos indigeríveis do intestino delgado (o “faxineiro” intestinal). Essa série
organizada e propagada de contrações dura em média 4 minutos, ocorre a cada
60 a 90 minutos e geralmente envolve todo o intestino delgado. Depois da
ingestão de alimento, o intestino delgado produz contrações irregulares de
amplitude relativamente baixa que misturam o alimento, exceto no íleo distal,
em que ocorrem contrações mais poderosas de maneira mais intermitente e que
esvaziam o íleo por transferência do bolo.

ARMAZENAMENTO E RECUPERAÇÃO ILEOCOLÔNICAS


O íleo distal funciona como reservatório, esvaziando de maneira intermitente
com os movimentos do bolo alimentar. Essa ação oferece tempo para a
recuperação de líquidos, eletrólitos e nutrientes. A segmentação haustral
compartimentaliza o cólon e facilita a mistura, a retenção de resíduos e a
formação de fezes sólidas. Hoje, a relação direta entre a função do cólon e a
ecologia luminal é mais bem reconhecida. Os microrganismos residentes do
intestino grosso, predominantemente bactérias anaeróbias, são necessários para a
digestão de carboidratos não absorvidos que alcançam o cólon mesmo em estado
saudável, proporcionando, assim, uma fonte vital de nutrientes para a mucosa. A
flora intestinal normal também impede o acesso dos patógenos por diversos
mecanismos, inclusive seu papel crucial no desenvolvimento e na manutenção
de uma resposta imune potente e bem regulada contra os microrganismos
patogênicos e a tolerância à nutrição normal. Em um indivíduo saudável, os
segmentos ascendente e transverso do cólon funcionam como reservatórios
(trânsito médio de 15 horas), enquanto o cólon descendente atua como um
conduto (trânsito médio de 3 horas). O cólon é eficiente na conservação de sódio
e água, função particularmente importante nos pacientes com depleção de sódio,
nos quais apenas o intestino delgado não seria incapaz de manter o balanço de
sódio. A diarreia ou a constipação podem resultar de alteração da função de
reservatório do cólon proximal ou da função propulsora do cólon esquerdo. A
constipação também pode resultar de distúrbios do reservatório retal ou
sigmoide, em consequência da disfunção do assoalho pélvico, dos esfincteres
anais, da coordenação da defecação ou da desidratação.

TÔNUS E MOTILIDADE COLÔNICA


O CMM do intestino delgado apenas raramente estende-se adentro do cólon.
Entretanto, contrações fásicas ou de curta duração misturam o conteúdo
colônico, sendo que as contrações propagadas de alta amplitude (CPAA, > 75
mmHg) estão por vezes associadas a movimentos de massa ao longo do intestino
grosso que, em condições normais, ocorrem a uma frequência aproximada de 5
vezes por dia, geralmente quando o indivíduo acorda de manhã e depois das
refeições. Um aumento da frequência das CPAA pode resultar em diarreia ou
urgência fecal. As contrações fásicas predominantes no intestino grosso são
irregulares, não se propagam e têm uma função “misturadora”.
A expressão “tônus colônico” refere-se à contratilidade basal sobre a qual
se superpõe a atividade contrátil fásica (contrações que duram < 15 segundos) e
é um cofator importante para a capacitância (acomodação de volume) e
sensibilidade do intestino grosso.

MOTILIDADE COLÔNICA PÓS-PRANDIAL


Depois da ingestão de uma refeição, a contratilidade tônica e fásica do cólon
aumenta por um período de aproximadamente 2 horas. A fase inicial (cerca de 10
minutos) é mediada pelo nervo vago em resposta à distensão mecânica do
estômago. A resposta subsequente do intestino grosso depende da estimulação
calórica (p. ex., ingestão de pelo menos 500 kcal) e é mediada, pelo menos em
parte, por hormônios (p. ex., gastrina e serotonina).

DEFECAÇÃO
A contração tônica do músculo puborretal, que forma uma tipoia ao redor da
junção retoanal, é importante para manter a continência; durante a defecação, os
nervos parassimpáticos sacrais relaxam este músculo, facilitando a retificação do
ângulo retoanal (Fig. 42-1). A distensão do reto resulta em relaxamento
transitório do esfincter anal interno por meio da inervação simpática intrínseca e
reflexa. À medida que as contrações sigmoides e retais, combinadas com o
esforço para evacuar (manobra de Valsalva) que aumenta a pressão intra-
abdominal, elevam a pressão dentro do reto, o ângulo retossigmoide abre-se a >
15 graus. O relaxamento voluntário do esfincter anal externo (músculo estriado
inervado pelo nervo pudendo) em resposta à sensação produzida pela distensão
permite a evacuação das fezes. A defecação também pode ser postergada
voluntariamente mediante a contração do esfincter anal externo.

FIGURA 42-1 Visão sagital do segmento anorretal em repouso (A) e durante o esforço para evacuar
(B). A continência é mantida pela sensibilidade retal normal e pela contração tônica do esfincter anal
interno, bem como do músculo puborretal que circunda o segmento anorretal, mantendo o ângulo anorretal
entre 80 e 110°. Durante a defecação, os músculos do assoalho pélvico (inclusive o puborretal) relaxam,
permitindo que o ângulo anorretal retifique pelo menos 15° e o períneo desça de 1-3,5 cm. O esfincter anal
externo também relaxa e reduz a pressão sobre o canal anal. (Reproduzida, com permissão, de A Lembo, M
Camilleri: N Engl J Med 349:1360, 2003.)
DIARREIA
DEFINIÇÃO
Em termos gerais, a diarreia é definida como eliminação de fezes malformadas
ou anormalmente líquidas com frequência aumentada. No caso de adultos que
consomem uma dieta ocidental típica, um peso das fezes > 200 g/dia geralmente
é considerado diarreico. A diarreia pode ser definida ainda como aguda se durar
< 2 semanas, persistente se durar entre 2 e 4 semanas e crônica se durar > 4
semanas.
Dois distúrbios comuns, geralmente associados à eliminação de fezes
totalizando < 200 g/dia, devem ser diferenciados da diarreia, porque existem
diferenças nos algoritmos diagnóstico e terapêutico. A pseudodiarreia, ou
eliminação frequente de pequenos volumes de fezes, muitas vezes está associada
à urgência retal, ao tenesmo ou a uma sensação de evacuação incompleta e
acompanha a SII ou proctite. A incontinência fecal consiste na eliminação
involuntária do conteúdo retal, causada com maior frequência por distúrbios
neuromusculares ou problemas anorretais estruturais. A diarreia e a urgência,
especialmente quando são graves, podem exacerbar ou causar incontinência. A
pseudodiarreia e a incontinência fecal ocorrem com prevalências comparáveis ou
maiores que as da diarreia crônica e sempre devem ser consideradas nos
pacientes que se queixam de “diarreia”. Nos pacientes acamados em casa, pode
ocorrer diarreia por fluxo excessivo devido à impacção fecal, que é fácil de
detectar ao exame retal. Uma anamnese minuciosa e um exame físico cuidadoso
em geral permitem que esses distúrbios sejam diferenciados da diarreia
verdadeira.

DIARREIA AGUDA
Mais de 90% dos casos de diarreia aguda são causados por agentes infecciosos;
esses casos são frequentemente acompanhados por vômitos, febre e dor
abdominal. Os 10% restantes ou mais são causados por fármacos, ingestões
tóxicas, isquemia, alimentação não balanceada e outras condições.

Agentes infecciosos A maioria das diarreias infecciosas é adquirida por


transmissão fecal-oral ou, o que é mais comum, pela ingestão de alimentos ou
água contaminados com patógenos a partir de fezes humanas ou de animais. Na
pessoa imunocompetente, a flora fecal residente, contendo > 500 espécies
taxonomicamente distintas, raramente é a origem da diarreia e pode, na
realidade, desempenhar um papel na supressão do crescimento dos patógenos
ingeridos. Os distúrbios da flora provocados por antibióticos podem causar
diarreia pela redução da função digestiva ou por permitir a proliferação de
patógenos como Clostridium difficile (Cap. 129). Uma lesão ou infecção aguda
ocorre quando o agente ingerido supera ou escapa às defesas imunes e não
imunes (ácido gástrico, enzimas digestivas, secreção de muco, peristalse e flora
residente supressora) da mucosa do hospedeiro. As associações clínicas
estabelecidas com enteropatógenos específicos podem oferecer indícios
diagnósticos.
Nos Estados Unidos, são reconhecidos cinco grupos de alto risco:

1. Viajantes. Cerca de 40% dos turistas que visitam regiões endêmicas da


América Latina, África e Ásia desenvolvem a chamada diarreia dos
viajantes, causada mais frequentemente por Escherichia coli
enterotoxigênica ou enteroagregante, além de Campylobacter, Shigella,
Aeromonas, norovírus, Coronavirus e Salmonella. Os turistas que visitam a
Rússia (especialmente São Petersburgo) podem correr maior risco de
diarreia associada a Giardia; os que visitam o Nepal podem adquirir
Cyclospora. Campistas, montanhistas e nadadores em áreas selvagens
podem ser infectados por Giardia. Navios que fazem cruzeiros podem ter
surtos de gastrenterite causada por patógenos como os norovírus.
2. Consumidores de certos alimentos. A diarreia que ocorre logo depois do
consumo de alimentos em um piquenique, banquete ou restaurante pode
sugerir infecção por Salmonella, Campylobacter ou Shigella a partir de
frangos; E. coli êntero-hemorrágica (O157:H7) a partir de hambúrguer
malcozido; Bacillus cereus a partir de arroz frito ou outros alimentos
requentados; Staphylococcus aureus ou Salmonella a partir de maionese ou
patês; Salmonella a partir de ovos; Listeria a partir de alimentos frescos ou
congelados crus ou queijos moles; e espécies Vibrio, Salmonella ou hepatite
A aguda a partir de frutos do mar, especialmente quando crus. Os
departamentos de saúde pública estaduais publicam relatórios sobre
doenças relacionadas com alimentação, que podem ter sido originadas
dentro do país ou vindo de fora, mas que, por fim, causaram pandemias nos
Estados Unidos (p. ex., a epidemia por Cyclospora de 2013 nos estados do
Centro-Oeste provenientes de saladas verdes).
3. Indivíduos imunodeficientes. Os indivíduos sob risco de diarreia incluem os
portadores de imunodeficiência primária (p. ex., deficiência de IgA,
hipogamaglobulinemia variável comum, doença granulomatosa crônica) ou
os estados de imunodeficiência secundária bem mais comuns (p. ex., Aids,
senescência, supressão farmacológica). Enteropatógenos comuns
frequentemente causam doença diarreica mais grave e prolongada e,
principalmente nos pacientes com Aids, infecções oportunistas como a
causada por espécies Mycobacterium, determinados vírus (citomegalovírus,
adenovírus e herpes simples) e protozoários (Cryptosporidium, Isospora
belli, microsporídeos e Blastocystis hominis), também podem desempenhar
uma função (Cap. 197). Nos pacientes com Aids, os agentes venéreos
transmitidos por relações sexuais retais ou por disseminação de uma
infecção vaginal (p. ex., Neisseria gonorrhoeae, Treponema pallidum,
Chlamydia) podem contribuir para a patogenia da proctocolite. Sintomas
sugestivos de doença anorretal, especialmente dor, podem ser causados pela
constipação que ocorre coincidentemente nos pacientes imunodeficientes.
Pacientes com hemocromatose são especialmente propensas às infecções
entéricas invasivas, até mesmo fatais, causadas por espécies Vibrio e
Yersinia; por esta razão, esses pacientes devem evitar peixe cru.
4. Frequentadores de creches e seus familiares. As infecções por Shigella,
Giardia, Cryptosporidium, rotavírus e outros agentes são muito comuns e
devem ser consideradas.
5. Indivíduos em instituições de longa permanência. Diarreia infecciosa é uma
das categorias mais frequentes de infecções hospitalares em muitas clínicas
e instituições de longa permanência; as causas são vários microrganismos,
porém o mais comum é C. difficile. O C. difficile pode infectar indivíduos
sem história de uso antibiótico e pode ser adquirido na comunidade.

A fisiopatologia subjacente da diarreia aguda causada por agentes


infecciosos causa manifestações clínicas específicas, que também podem ser
valiosas ao diagnóstico (Tab. 42-2). A diarreia líquida profusa secundária à
hipersecreção do intestino delgado ocorre com a ingestão de toxinas bacterianas
pré-formadas, bactérias produtoras de enterotoxina e patógenos enteroaderentes.
A diarreia associada a vômitos acentuados e febre mínima ou ausente pode
ocorrer de forma abrupta algumas horas após a ingestão destes dois primeiros
fatores patogênicos; em geral, os vômitos são menos intensos, as cólicas ou a
distensão abdominal são mais proeminentes e a febre é mais elevada neste
último caso. Todos os microrganismos produtores de citotoxina e os invasivos
causam febre alta e dor abdominal. Com frequência, as bactérias invasivas e a
Entamoeba histolytica provocam diarreia sanguinolenta (conhecida como
disenteria). As espécies de Yersinia invadem as mucosas do íleo terminal e do
intestino grosso proximal e podem causar dor abdominal particularmente intensa
com hipersensibilidade à palpação simulando apendicite aguda.

TABELA 42-2 ■ Associação entre a biopatologia dos agentes etiológicos e as manifestações clínicas da
diarreia infecciosa aguda
Biopatologia/agentes patogênicos Período de Vômitos Dor Febre Diarreia
incubação abdominal

Produtores de toxina
Toxina pré-formada
Bacillus cereus, Staphylococcus aureus, Clostridium 1-8 h 3-4+ 1-2+ 0-1+ 3-4+, aquosa
perfringens 8-24 h
Enterotoxina
Vibrio cholerae, Escherichia coli enterotoxigênica, 8-72 h 2-4+ 1-2+ 0-1+ 3-4+, aquosa
Klebsiella pneumoniae, espécies de Aeromonas
Enteroaderentes
E. coli enteropatogênica e enteroaderente, Giardia, 1-8 dias 0-1+ 1-3+ 0-2+ 1-2+, aquosa ou
Cryptosporidium, helmintos mole
Produtores de citotoxina
Clostridium difficile 1-3 dias 0-1+ 3-4+ 1-2+ 1-3+, em geral
aquosa,
ocasionalmente
sanguinolenta
E. coli hemorrágica 12-72 h 0-1+ 3-4+ 1-2+ 1-3+, de início
aquosa,
rapidamente
sanguinolenta
Organismos invasivos
Inflamação mínima
Rotavírus e norovírus 1-3 dias 1-3+ 2-3+ 3-4+ 1-3+, aquosa
Inflamação variável
Espécies de Salmonella, Campylobacter e Aeromonas, 12 h-11 dias 0-3+ 2-4+ 3-4+ 1-4+, aquosa ou
Vibrio parahaemolyticus, Yersinia sanguinolenta
Inflamação grave
Espécies de Shigella, E. coli enteroinvasiva, Entamoeba 12 h-8 dias 0-1+ 3-4+ 3-4+ 1-2+,
histolytica sanguinolenta
Fonte: Adaptada de DW Powell, em T Yamada (ed.): Textbook of Gastroenterology and Hepatology, 4th ed. Philadelphia, Lippincott Williams
& Wilkins, 2003.

Por fim, a diarreia infecciosa pode estar associada a manifestações


sistêmicas. Artrite reativa (anteriormente conhecida como síndrome de Reiter),
artrite, uretrite e conjuntivite, podem acompanhar ou seguir-se às infecções por
Salmonella, Campylobacter, Shigella e Yersinia. A yersinose também pode
acarretar tireoidite autoimune, pericardite e glomerulonefrite. E. coli êntero-
hemorrágica (O157:H7) e Shigella podem causar síndrome hemolítico-urêmica,
com taxa de mortalidade elevada associada. Hoje, a SII pós-infecciosa é
reconhecida como uma complicação da diarreia infecciosa. Do mesmo modo, a
gastrenterite aguda pode preceder ao diagnóstico de doença celíaca ou doença de
Crohn. Diarreia aguda também pode ser um sintoma importante de diversas
infecções sistêmicas como hepatite viral, listeriose, legionelose e síndrome do
choque tóxico.

Outras causas Efeitos colaterais dos fármacos provavelmente são as causas não
infecciosas mais comuns de diarreia e a etiologia pode ser sugerida por uma
associação temporal entre o uso do fármaco e o início do sintoma. Embora
inúmeros fármacos possam provocar diarreia, alguns dos mais frequentemente
implicados são antibióticos, antiarrítmicos cardíacos, anti-hipertensivos, anti-
inflamatórios não esteroides (AINEs), certos antidepressivos, agentes
quimioterápicos, broncodilatadores, antiácidos e laxantes. A colite isquêmica
com ou sem obstrução acomete indivíduos > 50 anos; frequentemente se
evidencia por dor abdominal baixa aguda precedendo à diarreia aquosa, em
seguida sanguinolenta; em geral, esses casos resultam em alterações
inflamatórias agudas no sigmoide ou cólon esquerdo, mas não afetam o reto. A
diarreia aguda pode acompanhar a diverticulite colônica e a doença do enxerto
contra o hospedeiro. Diarreia aguda, comumente associada a manifestações
sistêmicas, pode ocorrer depois da ingestão de toxinas, inclusive inseticidas
organofosforados, amanita e outros cogumelos, arsênico e toxinas pré-formadas
em frutos do mar como ciguatera (originada das algas que o peixe ingere) e
peixes escombroides (quantidades excessivas de histamina em razão da
refrigeração inadequada). A anafilaxia aguda por ingestão de alimentos pode ter
uma apresentação similar. Os distúrbios que causam diarreia crônica também
podem ser confundidos com diarreia aguda no início de sua evolução. Essa
confusão pode ocorrer com doença inflamatória intestinal (DII) e algumas das
outras diarreias crônicas inflamatórias que podem ter início abrupto em vez de
insidioso e causam manifestações semelhantes a uma infecção.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Diarreia aguda
A decisão de avaliar a diarreia aguda depende de sua gravidade e duração e
dos vários fatores do hospedeiro (Fig. 42-2). A maioria dos episódios de
diarreia aguda é leve e autolimitada e não justifica o custo e a taxa de
morbidade em potencial das intervenções diagnósticas ou farmacológicas. As
indicações para avaliação incluem diarreia profusa com desidratação, fezes
francamente sanguinolentas, febre ≥ 38,5°C, duração > 48 horas sem
melhora, uso recente de antibiótico, novos surtos na comunidade, dor
abdominal grave associada em indivíduos com > 50 anos e pacientes idosos
(idade ≥ 70 anos) ou imunossuprimidos. Em alguns casos de diarreia febril
moderadamente grave associada a leucócitos fecais (ou com níveis fecais
aumentados de proteínas leucocitárias) ou sangue visível nas fezes, uma
avaliação diagnóstica poderia ser omitida em favor de uma prova terapêutica
empírica com antibiótico (ver adiante).
FIGURA 42-2 Algoritmo para o tratamento da diarreia aguda. Antes da avaliação, considerar
tratamento empírico com metronidazol (*) e quinolona (†).

A base do diagnóstico dos casos em que se suspeita de diarreia


infecciosa aguda grave é a análise microbiológica das fezes. A investigação
inclui culturas para patógenos bacterianos e virais, exame parasitológico das
fezes e imunoensaios para determinadas toxinas bacterianas (C. difficile),
antígenos virais (rotavírus) e protozoários (Giardia, E. histolytica). As
associações clínicas e epidemiológicas mencionadas antes podem auxiliar na
focalização da avaliação. Quando determinado patógeno ou grupo de
possíveis patógenos é implicado dessa maneira, todo o painel de exames
rotineiros pode ser desnecessário ou, em alguns casos, culturas especiais
podem ser apropriadas (p. ex., E. coli êntero-hemorrágica e de outros tipos,
espécies de Vibrio e Yersinia). O diagnóstico molecular de patógenos nas
fezes pode ser feito pela identificação de sequências singulares de DNA, a
evolução das tecnologias de microarray resultou em uma abordagem
diagnóstica mais rápida, sensível, específica e custo-efetiva.
A diarreia persistente geralmente se deve à Giardia (Cap. 218), mas
outros agentes etiológicos que devem ser considerados incluem C. difficile
(especialmente quando tiverem sido administrados antibióticos), E.
histolytica, Cryptosporidium, Campylobacter e outros. Quando os exames de
fezes são inconclusivos, a sigmoidoscopia flexível com biópsias e a
endoscopia alta com aspirado e biópsia duodenais podem estar indicadas. A
diarreia de Brainerd é uma entidade cada vez mais reconhecida, que se
caracteriza por início abrupto e que persiste por pelo menos 4 semanas, mas
pode durar 1 a 3 anos, e acredita-se que seja de origem infecciosa. Essa
condição pode estar associada à inflamação sutil do intestino delgado distal
ou do cólon proximal.
O exame estrutural por sigmoidoscopia, colonoscopia ou tomografia
computadorizada (TC) abdominal (ou outras técnicas radiológicas) pode ser
apropriado aos pacientes com diarreia persistente não caracterizada, a fim de
excluir DII, ou como abordagem inicial aos pacientes nos quais se suspeita
de diarreia aguda não infecciosa (p. ex., a que poderia ser causada por colite
isquêmica, diverticulite ou obstrução intestinal parcial).

TRATAMENTO
Diarreia aguda
A reposição hidreletrolítica é de importância primordial em todas as formas de diarreia aguda. A reposição
isolada de líquidos pode ser suficiente nos casos leves. As soluções de eletrólito com glicose (bebidas
isotônicas para prática de esportes ou fórmulas especializadas) devem ser instituídas de imediato nos casos
de diarreia grave para limitar a desidratação, que é a principal causa de morte. Os pacientes profundamente
desidratados, em especial lactentes e idosos, necessitam de reidratação intravenosa.
Com a diarreia moderadamente grave, afebril e não sanguinolenta, os agentes antissecretores e
antimotilidade (como a loperamida) podem ser medidas adjuvantes úteis para controlar os sintomas. Esses
fármacos devem ser evitados nos casos de disenteria febril, que pode ser exacerbada ou prolongada por eles.
O subsalicilato de bismuto pode reduzir os sintomas de vômito e diarreia, mas não deve ser usado no
tratamento de pacientes imunossuprimidos ou portadores de insuficiência renal devido ao risco de
encefalopatia por bismuto.
O uso criterioso de antibióticos é apropriado em certos casos de diarreia aguda, podendo reduzir sua
gravidade e sua duração (Fig. 42-2). Muitos médicos tratam de forma empírica, sem avaliação diagnóstica,
os pacientes moderada a gravemente enfermos com disenteria febril usando uma quinolona, como
ciprofloxacino (500 mg, 2×/dia, durante 3-5 dias). O tratamento empírico com metronidazol (250 mg,
4×/dia, durante 7 dias) também pode ser considerado se houver suspeita de giardíase. Por outro lado, a
escolha dos antibióticos e seus esquemas posológicos é orientada com base nos patógenos específicos, nos
padrões geográficos de resistência e nas condições encontradas (Caps. 128, 156, e 160-166). Em razão da
resistência aos tratamentos de primeira linha, fármacos mais novos como a nitazoxanida podem ser
necessários para tratar infecções causadas por Giardia e Cryptosporidium. A cobertura com antibióticos está
indicada, independentemente se for indicado o agente etiológico e para os pacientes imunossuprimidos que
tenham valvas cardíacas mecânicas ou enxertos vasculares recentes ou sejam idosos. O subsalicilato de
bismuto pode reduzir a frequência da diarreia do viajante. A profilaxia com antibiótico está indicada apenas
para determinados pacientes que visitarão países de alto risco, nos quais a probabilidade ou gravidade da
diarreia adquirida seja especialmente elevada, inclusive pacientes imunossuprimidos ou portadores de DII,
hemocromatose ou acloridria gástrica. O uso de ciprofloxacino, azitromicina ou rifaximina pode diminuir
em 90% a diarreia bacteriana desses viajantes, mas a rifaximina não é adequada para doença invasiva, mas
sim como tratamento para diarreia do viajante sem complicações. Na maioria dos casos, a avaliação
endoscópica tem pouca utilidade, exceto nos pacientes imunossuprimidos. Por fim, os médicos devem estar
atentos para identificar se está ocorrendo um surto de diarreia e alertar imediatamente as autoridades de
saúde pública. Isso pode reduzir a porcentagem final da população acometida.

DIARREIA CRÔNICA
A diarreia que se estende por > 4 semanas exige avaliação para excluir uma
patologia subjacente grave. Em contraste com a diarreia aguda, a maioria das
causas de diarreia crônica não é de origem infecciosa. A classificação da diarreia
crônica com base no mecanismo fisiopatológico facilita a abordagem racional ao
tratamento, embora muitas doenças causem diarreia por mais de um mecanismo
(Tab. 42-3).

TABELA 42-3 ■ Principais causas de diarreia crônica de acordo com o mecanismo fisiopatológico
predominante
Causas secretoras
Laxantes estimulantes exógenos
Ingestão crônica de álcool
Outros fármacos e toxinas
Laxantes endógenos (ácidos biliares di-hidroxílicos)
Diarreia secretora idiopática ou diarreia de ácido da bile
Certas infecções bacterianas
Ressecção, doença ou fístula intestinal (↓ absorção)
Obstrução intestinal parcial ou impacção fecal
Tumores produtores de hormônios (carcinoide, VIPoma, câncer medular da tireoide, mastocitose, gastrinoma, adenoma colorretal viloso)
Doença de Addison
Anomalias congênitas da absorção de eletrólitos
Causas osmóticas
Laxantes osmóticos (Mg2+, PO4–3, SO4–2)

Deficiência de lactase e outros dissacarídeos


Carboidratos não absorvíveis (sorbitol, lactulose, polietilenoglicol)
Intolerância a glúten e a FODMAP
Causas esteatorreicas
Má digestão intraluminal (insuficiência pancreática exócrina, proliferação bacteriana, cirurgia bariátrica, doença hepática)
Má absorção na mucosa (doença celíaca, doença de Whipple, infecções, abetalipoproteinemia, isquemia, enteropatia induzida por
medicamento)
Obstrução pós-mucosa (obstrução dos vasos linfáticos primários ou secundários)
Causas inflamatórias
Doença inflamatória intestinal idiopática (doença de Crohn, colite ulcerativa crônica)
Colites linfocítica e colagenosa
Doença de mucosa imunorrelacionada (imunodeficiências primárias ou secundárias, alergia alimentar, gastrenterite eosinofílica, doença do
enxerto contra o hospedeiro)
Infecções (bactérias invasivas, vírus e parasitas, diarreia de Brainerd)
Lesão causada por radiação
Neoplasias malignas gastrintestinais
Associada a distúrbios da motilidade
Síndrome do intestino irritável (inclusive SII pós-infecciosa)
Neuromiopatias viscerais
Hipertireoidismo
Fármacos (agentes pró-cinéticos)
Pós-vagotomia
Causas factícias
Síndrome de Münchausen
Transtornos alimentares
Causas iatrogênicas
Colecistectomia
Ressecção ileal
Cirurgia bariátrica
Vagotomia, fundoplicatura
Siglas: FODMAP, oligossacarídeo, dissacarídeo, monossacarídeo e poliol fermentáveis; SII, síndrome do intestino irritável.

Causas secretoras As diarreias secretoras são provocadas por distúrbios do


transporte hidreletrolítico através da mucosa enterocolônica. Esses distúrbios
caracterizam-se clinicamente por eliminações de fezes aquosas muito
volumosas, indolores e que persistem com o jejum. Como não há soluto mal
absorvido, a osmolalidade fecal é gerada pelos eletrólitos endógenos normais
sem diferença osmótica nas fezes.
FÁRMACOS Efeitos colaterais da ingestão periódica de fármacos e toxinas são
as causas secretoras mais comuns de diarreia crônica. Centenas de fármacos
prescritos e adquiridos sem prescrição (ver, anteriormente, “Diarreia aguda,
outras causas”) podem causar diarreia. Também deve ser considerado o uso
dissimulado ou habitual de laxantes estimulantes (p. ex., sene, cáscara, bisacodil,
ácido ricinoleico [óleo de rícino]). O consumo crônico de etanol pode causar
diarreia do tipo secretora devido à lesão dos enterócitos com comprometimento
da absorção de sódio e água, bem como trânsito rápido e outras alterações. A
ingestão inadvertida de determinadas toxinas ambientais (p. ex., arsênico) pode
levar a formas crônicas, em vez de agudas, de diarreia. Certas infecções
bacterianas às vezes podem persistir e estar associadas a uma diarreia do tipo
secretora. A olmesartana (um bloqueador do receptor de angiotensina para uso
oral) está associado à diarreia causada por uma enteropatia semelhante ao espru.

RESECÇÃO INTESTINAL, DOENÇA DA MUCOSA OU FÍSTULA


ENTEROCÓLICA Essas condições podem resultar em diarreia do tipo
secretora por causa da superfície inadequada para a reabsorção dos líquidos e
eletrólitos secretados. Ao contrário das outras diarreias secretoras, esse subgrupo
de afecções tende a agravar com a alimentação. Quando há doença (p. ex., ileíte
de Crohn) ou ressecção de < 100 cm de íleo terminal, os ácidos biliares di-
hidroxílicos podem deixar de ser absorvidos e estimular a secreção no intestino
grosso (diarreia colerreica). Esse mecanismo pode contribuir para a chamada
diarreia secretora idiopática ou diarreia de ácido biliar (DAB), na qual os
ácidos biliares são funcionalmente mal absorvidos no íleo terminal de aspecto
normal. Essa má absorção idiopática de ácido biliar (MAB) pode ser
responsável por cerca de 40% das diarreias crônicas sem explicação. A regulação
por feedback negativo reduzida de síntese de ácido da bile nos hepatócitos pelo
fator de crescimento do fibroblasto 19 (FGF-19) produzida pelos enterócitos
ileais resulta em um grau de síntese de ácido da bile que excede a capacidade
normal para a reabsorção ileal, produzindo diarreia de ácido da bile. Outra causa
de DAB é uma variação genética das proteínas receptoras (β-klotho e fator 4 de
crescimento dos fibroblastos) no hepatócito, que normalmente medeiam o efeito
do FGF-19. A disfunção dessas proteínas impede a inibição da síntese de ácidos
biliares no hepatócito por efeito do FGF-19. Outro mecanismo consiste em uma
variante genética do receptor de ácidos biliares (TGR5) do cólon, que resulta em
aceleração do trânsito colônico.
A obstrução intestinal parcial, a estenose de uma ostomia ou a impacção
fecal podem levar, paradoxalmente, a um aumento do débito fecal devido à
hipersecreção.

HORMÔNIOS Embora incomuns, os exemplos clássicos de diarreia secretora


são as mediadas por hormônios. Os tumores carcinoides gastrintestinais
metastáticos ou, raramente, os carcinoides brônquicos primários podem causar
apenas diarreia aquosa, ou fazer parte da síndrome carcinoide que compreende
rubor episódico, sibilos respiratórios, dispneia e cardiopatia valvar direita. A
diarreia é causada pela liberação de secretagogos intestinais potentes na
circulação, inclusive serotonina, histamina, prostaglandinas e várias cininas.
Lesões cutâneas semelhantes às da pelagra ocorrem raramente em consequência
da hiperprodução de serotonina com depleção de niacina. O gastrinoma – um
dos tumores neuroendócrinos mais comuns – apresenta-se com maior frequência
com úlceras pépticas refratárias, mas até um terço dos pacientes tem diarreia,
que pode ser a única manifestação clínica em 10% dos casos. Embora diversos
secretagogos liberados com a gastrina possam desempenhar uma função, a
diarreia resulta com mais frequência da má digestão lipídica decorrente da
inativação das enzimas pancreáticas pelo pH intraduodenal baixo. A síndrome de
diarreia aquosa com hipopotassemia e acloridria, também denominada cólera
pancreática, deve-se a um adenoma pancreático de células não β (denominado
VIPoma), que secreta VIP e uma variedade de outros hormônios peptídicos como
polipeptídeo pancreático, secretina, gastrina, polipeptídeo inibidor de gastrina
(também chamado peptídeo insulinotrópico dependente de glicose),
neurotensina, calcitonina e prostaglandinas. Em muitos casos, a diarreia
secretora é profusa e os volumes fecais ficam > 3 L/dia; existem casos relatados
nos quais os volumes fecais chegaram a 20 L/dia. O VIPoma pode causar
desidratação potencialmente fatal; disfunção neuromuscular associada à
hipopotassemia, hipomagnesemia ou hipercalcemia; ruborização; e
hiperglicemia. O carcinoma medular da tireoide pode manifestar-se com diarreia
líquida provocada pela calcitonina, outros peptídeos secretores ou
prostaglandinas. Em geral, a diarreia proeminente está associada à doença
metastática e prognóstico reservado. A mastocitose sistêmica, que pode estar
associada à lesão cutânea da urticária pigmentosa, pode causar diarreia secretora
mediada por histamina ou inflamatória gerada por infiltração do intestino por
mastócitos. Em casos raros, adenomas colorretais vilosos volumosos podem
estar associados a diarreia secretora, que pode causar hipopotassemia, pode ser
inibida por AINEs e aparentemente é mediada por prostaglandinas.

ANOMALIAS CONGÊNITAS DA ABSORÇÃO DE ÍONS Em casos raros,


anomalias dos transportadores específicos associados à absorção de íons causam
diarreia aquosa desde o nascimento. Esses distúrbios incluem os seguintes:
permuta anormal de Cl–/HCO3– (diarreia clorética congênita) com alcalose (que
resulta de uma mutação do gene DRA [hiporregulado no adenoma]) e permuta
anormal de Na+/H+ (diarreia natriurética congênita), que resulta de uma
mutação no gene NHE3 (permutador de sódio-hidrogênio) e em acidose.
Algumas deficiências hormonais podem estar associadas à diarreia aquosa,
inclusive a que ocorre na insuficiência do córtex suprarrenal (doença de
Addison), que pode ser acompanhada de hiperpigmentação cutânea.

Causas osmóticas A diarreia osmótica acontece quando solutos ingeridos, pouco


absorvíveis e osmoticamente ativos, atraem líquido suficiente para o lúmen para
exceder a capacidade de reabsorção do cólon. A perda hídrica fecal aumenta
proporcionalmente a essa carga de soluto. Em geral, a diarreia osmótica cessa
com o jejum ou com a suspensão da ingestão oral do agente causador.

LAXANTES OSMÓTICOS A ingestão de antiácidos contendo magnésio,


suplementos vitamínicos ou laxantes pode induzir diarreia osmótica
caracterizada por uma diferença osmótica fecal (> 50 mOsmol/L): osmolaridade
sérica (de 290 mOsmol/kg) – [2 × (sódio fecal + concentração de potássio)]. A
determinação da osmolaridade fecal não é mais recomendada porque, mesmo
quando é realizada imediatamente depois da evacuação, pode ser errônea porque
os carboidratos são metabolizados por bactérias colônicas, o que causa aumento
na osmolaridade.

MÁ ABSORÇÃO DE CARBOIDRATOS A má absorção de carboidratos


decorrente de anormalidades congênitas ou adquiridas das dissacaridases da
borda ciliada e de outras enzimas resulta em diarreia osmótica com pH baixo.
Uma das causas mais comuns de diarreia crônica dos adultos é a deficiência de
lactase, que acomete três quartos das populações não brancas de todo o mundo e
5 a 30% dos americanos; a quantidade total de lactose ingerida em determinado
momento determina os sintomas apresentados. A maioria dos pacientes aprende
a evitar laticínios sem precisar de tratamento com suplementos enzimáticos.
Alguns açúcares como sorbitol, lactulose ou frutose frequentemente são mal
absorvidos, de modo que a diarreia ocorre com a ingestão de fármacos, gomas de
mascar ou doces que contenham estes açúcares mal ou parcialmente absorvidos.

INTOLERÂNCIA AO GLÚTEN E AOS FODMAP Diarreia crônica,


distensão abdominal por gases e dor abdominal são considerados sintomas da
intolerância ao glúten não celíaca (que está associada à anormalidade da função
de barreira do intestino delgado ou grosso) e da intolerância aos
oligossacarídeos, dissacarídeos, monossacarídeos e poliol fermentáveis
(FODMAP). Os efeitos dessa última intolerância são atribuídos a uma interação
entre a microbiota GI e os nutrientes.

Causas esteatorreicas A má absorção de lipídeos pode induzir diarreia com


fezes gordurosas de odor fétido e difíceis de escoar, frequentemente associada a
emagrecimento e deficiências nutricionais decorrentes da má absorção
concomitante de aminoácidos e vitaminas. O aumento do débito fecal é causado
pelos efeitos osmóticos dos ácidos graxos, especialmente depois da hidroxilação
bacteriana e, em menor extensão, pela carga de lipídeos neutros. Em termos
quantitativos, a esteatorreia é definida como nível de gordura fecal superior à
taxa normal de 7 g/dia; a diarreia de trânsito rápido pode resultar em gordura
fecal de até 14 g/dia; a gordura fecal diária alcança em média 15 a 25 g nas
doenças do intestino delgado e, em geral, é > 32 g na insuficiência pancreática
exócrina. Má digestão intraluminal, má absorção da mucosa ou obstrução
linfática pode causar esteatorreia.

MÁ DIGESTÃO INTRALUMINAL É um distúrbio que resulta mais


comumente da insuficiência pancreática exócrina, que ocorre quando > 90% da
função secretora pancreática são perdidos. A pancreatite crônica, geralmente
uma sequela do abuso de etanol, provoca disfunção pancreática com maior
frequência. Outras causas são fibrose cística, obstrução do ducto pancreático e,
raramente, somatostatinoma. A proliferação bacteriana excessiva no intestino
delgado pode desconjugar os ácidos biliares e alterar a formação dos micélios,
dificultando a digestão das gorduras; isso ocorre com a estase dentro de uma alça
cega, divertículo de intestino delgado ou distúrbio da motilidade e é
especialmente provável no idoso. Por fim, cirrose ou obstrução biliar pode
acarretar esteatorreia leve devida à concentração intraluminal deficiente de
ácidos biliares.
MÁ ABSORÇÃO NA MUCOSA A má absorção na mucosa pode ser atribuída
a diversas enteropatias, porém ocorre com mais frequência devido à doença
celíaca. Essa enteropatia sensível ao glúten acomete pessoas de todas as idades e
caracteriza-se por atrofia das vilosidades e hiperplasia das criptas do intestino
delgado proximal, podendo apresentar-se com diarreia gordurosa associada a
múltiplas deficiências nutricionais de gravidade variável. A doença celíaca é
muito mais frequente que se pensava antes; essa doença acomete cerca de 1% da
população e frequentemente não causa esteatorreia, pode simular a SII e tem
muitas outras manifestações GIs e extraintestinais. O espru tropical pode causar
uma síndrome histológica e clinicamente similar, mas ocorre em residentes ou
pessoas que viajam para climas tropicais; seu início abrupto e a resposta aos
antibióticos sugerem uma etiologia infecciosa. A doença de Whipple, devida ao
bacilo Tropheryma whipplei e à infiltração histiocítica da mucosa do intestino
delgado, é uma causa menos comum de esteatorreia e, na maioria dos casos,
acomete homens jovens e de meia-idade; esta doença frequentemente está
associada a artralgias, febre, linfadenopatia e fadiga extrema, além de poder
afetar o SNC e o endocárdio. Um quadro clínico e histológico similar resulta da
infecção por Mycobacterium avium-intracellulare nos pacientes com Aids.
Abetalipoproteinemia é uma anomalia rara da formação dos quilomícrons com
má absorção de lipídeos nas crianças e está associada a eritrócitos acantocíticos,
ataxia e retinite pigmentosa. Vários outros distúrbios podem causar má absorção
na mucosa, incluindo infecções (especialmente por protozoários, como Giardia);
vários fármacos (p. ex., olmesartana, micofenolato de mofetila, colchicina,
colestiramina, neomicina); amiloidose; e isquemia crônica.

DIARREIA PÓS-OBSTRUÇÃO LINFÁTICA DA MUCOSA A


fisiopatologia desse distúrbio decorrente da forma rara de linfangiectasia
intestinal congênita ou obstrução linfática adquirida secundária a um
traumatismo, tumor, doença cardíaca ou infecção, acarreta uma síndrome
singular de má absorção lipídica com perdas entéricas de proteína (muitas vezes
causando edema) e linfocitopenia. A absorção de carboidratos e aminoácidos não
é afetada.

Causas inflamatórias As diarreias inflamatórias são geralmente acompanhadas


de febre, dor, sangramento ou outras manifestações de inflamação. O mecanismo
da diarreia pode ser não apenas a exsudação, mas, dependendo do local da lesão,
pode incluir má absorção lipídica, redução da absorção hidreletrolítica e
hipersecreção ou hipermotilidade decorrente da liberação de citocinas e outros
mediadores inflamatórios. A anormalidade comum na análise fecal é a presença
de leucócitos ou de proteínas derivadas de leucócitos (p. ex., calprotectina).
Quando a inflamação é grave, a perda proteica exsudativa pode acarretar
anasarca (edema generalizado). Qualquer pessoa de meia-idade ou idosa com
diarreia crônica do tipo inflamatório, especialmente com sangue, deve ser
cuidadosamente avaliada para excluir um tumor colorretal.

DOENÇA INFLAMATÓRIA INTESTINAL IDIOPÁTICA As doenças desse


tipo, inclusive doença de Crohn e retocolite ulcerativa crônica, estão entre as
causas orgânicas mais comuns da diarreia crônica dos adultos e sua gravidade
varia de leve a fulminante e potencialmente fatal. Essas doenças podem estar
associadas a uveíte, poliartralgias, doença hepática colestática (colangite
esclerosante primária) e lesões cutâneas (eritema nodoso, pioderma gangrenoso).
Colite microscópica, termo que descreve as colites linfocítica e colagenosa, é
uma causa cada vez mais reconhecida de diarreia aquosa crônica, especialmente
em mulheres de meia-idade e pacientes que usam AINEs, estatinas, inibidores da
bomba de próton (IBPs) e inibidores seletivos da recaptação de serotonina
(ISRSs); a biópsia do cólon de aspecto normal é essencial para o diagnóstico
histológico. A doença pode coexistir com sintomas sugestivos de SII ou doença
celíaca, ou enteropatia induzida por fármaco. Nos casos típicos, essa doença
responde bem aos anti-inflamatórios (p. ex., bismuto), ao agonista opioide
loperamida ou à budesonida.

FORMAS PRIMÁRIAS OU SECUNDÁRIAS DE IMUNODEFICIÊNCIA


A imunodeficiência pode acarretar diarreia infecciosa prolongada. Com a
deficiência seletiva de IgA ou a hipogamaglobulinemia variável comum, a
diarreia é particularmente prevalente e, com frequência, resulta de giardíase,
proliferação bacteriana excessiva ou espru.

GASTRENTERITE EOSINOFÍLICA A infiltração eosinofílica da mucosa, da


camada muscular da mucosa ou da serosa em qualquer segmento do trato GI
pode provocar diarreia, dor, vômitos ou ascite. Com frequência, os pacientes
acometidos referem história atípica, cristais de Charcot-Leyden decorrentes do
conteúdo eosinofílico expelido podem ser observados ao exame microscópico
das fezes e há eosinofilia periférica em 50 a 75% dos pacientes. Embora a
hipersensibilidade a determinados alimentos ocorra em adultos, a alergia
alimentar verdadeira causando diarreia crônica é rara.
OUTRAS CAUSAS A diarreia inflamatória crônica pode ser provocada por
enterocolite pós-irradiação, doença do enxerto contra o hospedeiro crônica,
síndrome de Behçet e síndrome de Cronkhite-Canada, entre outras.

Diarreia associada a distúrbios da motilidade Um trânsito rápido pode


acompanhar muitas diarreias como fenômeno secundário ou contribuinte, mas o
distúrbio primário da motilidade intestinal é uma etiologia incomum de diarreia
verdadeira. Com frequência, as anormalidades fecais sugerem diarreia secretora,
mas a esteatorreia leve de até 14 g de lipídeos por dia pode ser induzida por má
digestão secundária apenas de um trânsito rápido. Hipertireoidismo, síndrome
carcinoide e certos fármacos (p. ex., prostaglandinas, agentes procinéticos)
podem causar hipermotilidade com resultante diarreia. As neuromiopatias
viscerais primárias ou a pseudo-obstrução intestinal adquirida idiopática pode
ocasionar estase com proliferação bacteriana secundária, que causa diarreia. A
diarreia diabética, frequentemente acompanhada de neuropatias autonômicas
periféricas e generalizadas, pode ser parcialmente atribuída ao distúrbio da
motilidade intestinal.
A SII é extremamente comum (prevalência pontual de 10%, incidência de
1-2% ao ano) e caracteriza-se por anormalidades das respostas sensitivas e
motoras dos intestinos delgado e grosso a diversos estímulos. Em geral, os
sintomas associados ao aumento da frequência das evacuações geralmente
desaparecem à noite, alternam com períodos de constipação, são acompanhados
de dor abdominal aliviada com a defecação e raramente resultam em perda de
peso.

Causas factícias A diarreia factícia é responsável por até 15% das diarreias
inexplicadas encaminhadas aos centros de assistência terciária. Seja como um
tipo de síndrome de Münchausen (fingimento ou autolesão para obter ganho
secundário) ou transtornos alimentares, alguns pacientes tomam
dissimuladamente laxantes por conta própria, isoladamente ou em combinação
com outros fármacos (p. ex., diuréticos), ou acrescentam ocultamente água ou
urina nas fezes enviadas para análise. Esses pacientes comumente são mulheres,
na maioria das vezes com história de doença psiquiátrica e frequentemente
seguem carreiras na área da saúde. Hipotensão e hipopotassemia são achados
coexistentes comuns. A avaliação desses pacientes pode ser difícil: a
contaminação das fezes com água ou urina pode ser sugerida por uma
osmolaridade fecal muito baixa ou alta, respectivamente. Com frequência, esses
pacientes negam tal possibilidade quando são questionados, mas melhoram com
aconselhamento psiquiátrico quando reconhecem seu comportamento.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Diarreia crônica
São vários os recursos laboratoriais disponíveis para avaliar o problema
muito comum da diarreia crônica, porém muitos são dispendiosos e
invasivos. Por essa razão, a avaliação diagnóstica deve ser racionalmente
dirigida por uma anamnese e um exame físico minuciosos (Fig. 42-3).
Quando essa estratégia nada revela, com frequência os exames de triagem
simples estão indicados para direcionar a escolha de exames mais complexos
(Fig. 42-3). A anamnese, o exame físico (Tab. 42-4) e os exames de sangue
rotineiros devem tentar caracterizar o mecanismo da diarreia, identificar as
associações valiosas para o diagnóstico e avaliar os estados hidreletrolítico e
nutricional do paciente. Os pacientes devem ser interrogados quanto ao
início, a duração, o padrão, os fatores agravantes (especialmente a dieta) e
atenuantes, bem como as características das fezes diarreicas. Deve-se
observar a presença ou ausência de incontinência fecal, febre, perda
ponderal, dor, determinadas exposições (viagem, fármacos, contatos com
diarreia) e as manifestações extraintestinais comuns (alterações cutâneas,
artralgias, aftas orais). História familiar de DII ou espru pode indicar essas
possibilidades. As anormalidades do exame físico podem oferecer indícios,
inclusive uma massa tireóidea, sibilos respiratórios, sopros cardíacos, edema,
hepatomegalia, massas abdominais, linfadenopatia, anormalidades
mucocutâneas, fístulas perianais ou flacidez do esfincter anal. Os pacientes
podem ter leucocitose no sangue periférico, elevação da velocidade de
sedimentação ou proteína C-reativa, que sugerem inflamação; anemia
secundária à perda sanguínea ou às deficiências nutricionais; ou eosinofilia,
que pode ocorrer com parasitoses, neoplasia, doença vascular do colágeno,
alergia ou gastrenterite eosinofílica. A bioquímica sanguínea pode mostrar
distúrbios eletrolíticos, hepáticos ou outros distúrbios metabólicos. A
pesquisa de anticorpos teciduais da classe IgA contra transglutaminase pode
ajudar a detectar doença celíaca. A diarreia de ácidos biliares é confirmada
por um teste cintigráfico de retenção de ácido biliar marcado
radioativamente; contudo, este exame não está disponível em muitos países.
As abordagens alternativas são um teste de tipagem sanguínea (C4 ou FGF-
19 sérico), determinação dos ácidos biliares fecais ou uma prova terapêutica
com um sequestrante de ácido biliar (p. ex., colestiramina ou colesevelam).

FIGURA 42-3 Algoritmo para o tratamento da diarreia crônica. Os pacientes passam por uma
avaliação inicial baseada nas diversas apresentações sintomáticas, resultando na seleção dos casos que
precisam fazer exames de imagem, biópsias e alguns testes de rastreamento para doenças orgânicas.
Alb, albumina; AB, ácido biliar; mi, movimento intestinal; C4, 7α-hidróxi-4-colesteno-3-ona; PCR,
proteína C-reativa; VHS, velocidade de hemossedimentação; Hb, hemoglobina; SII, síndrome do
intestino irritável; HCM, hemoglobina corpuscular média; VCM, volume corpuscular médio; osm,
osmolalidade; TTG-IgA, anticorpos antitransglutaminase tecidual. (Reimpressa de M Camilleri, JH
Sellin, KE Barrett: Pathophysiology, evaluation, and management of chronic watery diarrhea.
Gastroenterology 152:515, 2017.)

TABELA 42-4 ■ Exame físico nos pacientes com diarreia crônica


1. O paciente tem anormalidades gerais sugestivas de má absorção ou doença inflamatória intestinal (DII), inclusive anemia, dermatite
herpetiforme, edema ou baqueteamento digital?
2. O paciente tem anormalidades sugestivas de neuropatia autonômica ou doença vascular do colágeno subjacente nas pupilas, ortostase,
pele, mãos ou articulações?
3. O paciente tem uma massa ou hipersensibilidade abdominal?
4. O paciente tem anormalidades na mucosa retal, alterações retais ou distúrbios da função do esfincter anal?
5. O paciente tem manifestações mucocutâneas de doença sistêmica, como dermatite herpetiforme (doença celíaca), eritema nodoso
(colite ulcerativa), rubor (carcinoide) ou úlceras orais indicativas de DII ou doença celíaca?

Uma prova terapêutica costuma ser apropriada, definitiva e tem uma


razão custo-benefício altamente favorável quando um diagnóstico específico
é sugerido na primeira consulta com o médico. Por exemplo, diarreia aquosa
crônica que cessa com jejum em um adulto jovem sadio nos demais aspectos
pode justificar uma prova terapêutica por dieta com restrição de lactose;
distensão por gases e diarreia persistente após uma excursão de montanhismo
também justificam uma prova terapêutica com metronidazol para o
diagnóstico provável de giardíase; e diarreia pós-prandial que persiste após
ressecção do íleo terminal pode decorrer de má absorção de ácidos biliares e
deve ser tratada com colestiramina ou colesevelam antes de uma investigação
mais detalhada. A persistência dos sintomas exige exames adicionais.
Determinados diagnósticos podem ser sugeridos na consulta inicial (p.
ex., DII idiopática); entretanto avaliações adicionais específicas podem ser
necessárias para confirmar o diagnóstico e caracterizar a gravidade ou
extensão da doença, de modo que o tratamento possa ser mais bem orientado.
Os pacientes nos quais se suspeita de SII devem ser inicialmente avaliados
com sigmoidoscopia flexível e biópsias colorretais para excluir DII, ou
particularmente colite microscópica, que não é clinicamente distinguível de
SII com diarreia ou diarreia funcional; os pacientes com resultados normais
podem ser tranquilizados e, conforme indicado, tratados empiricamente com
antiespasmódicos, antidiarreicos ou antidepressivos (p. ex., agentes
tricíclicos). Qualquer paciente que se apresente com diarreia crônica e
hematoquezia deve ser avaliado com exames microbiológicos fecais e
colonoscopia.
Estima-se que em dois terços dos casos a causa de diarreia crônica
permanece incerta depois da consulta inicial, sendo necessários exames
adicionais. A coleta e as análises quantitativas das fezes podem fornecer
dados objetivos importantes, que podem definir o diagnóstico ou caracterizar
o tipo de diarreia como triagem inicial para orientar a escolha de exames
adicionais específicos (Fig. 42-3). Quando o peso fecal é > 200 g/dia, devem
ser efetuadas análises fecais adicionais que possam incluir a concentração de
eletrólitos, pH, pesquisa de sangue oculto e leucócitos (ou ensaio para
proteína leucocitária), quantificação de lipídeos e rastreamento para
laxativos.
No caso das diarreias secretoras (aquosa com diferença osmótica
normal), deve-se reconsiderar a possibilidade de efeitos colaterais dos
fármacos ou uso dissimulado de laxantes. Os exames microbiológicos devem
ser realizados, incluindo culturas bacterianas fecais (inclusive em meios para
Aeromonas e Plesiomonas), exame parasitológico de fezes para detectar ovos
e parasitas e ensaio para o antígeno de Giardia (o teste mais sensível para a
giardíase). A proliferação bacteriana excessiva no intestino delgado pode ser
excluída por aspirados intestinais com culturas quantitativas ou testes
respiratórios para glicose ou lactulose, que consistem em determinar as
concentrações de hidrogênio, metano ou outro metabólito. Contudo, a
interpretação desses testes respiratórios pode ser confundida pelos distúrbios
do trânsito intestinal. A endoscopia alta e a colonoscopia com biópsias e as
radiografias do intestino delgado (antigamente com bário, mas cada vez mais
TC com enterografia ou ressonância magnética com enteróclise) são úteis
para excluir doença inflamatória oculta ou estrutural. Quando sugerido pela
história ou por outros achados, devem-se realizar avaliações para hormônios
peptídicos (p. ex., gastrina sérica, VIP, calcitonina e hormônio estimulante da
tireoide/hormônio tireoidiano ou ácido 5-hidroxindolacético urinário e
histamina).
A avaliação adicional da diarreia osmótica deve incluir os testes para
intolerância à lactose e ingestão de magnésio, as duas causas mais comuns.
Um pH fecal baixo sugere má absorção de carboidratos; a má absorção de
lactose pode ser confirmada por teste com lactose no ar exalado ou por uma
prova terapêutica com a exclusão da lactose e observação do efeito de uma
carga de lactose (p. ex., 1 L de leite). A determinação da lactase em uma
biópsia de intestino delgado geralmente não está disponível. Quando os
níveis fecais de magnésio ou laxativo estão elevados, deve-se considerar a
ingestão inadvertida ou clandestina e solicitar um parecer psiquiátrico.
Para os pacientes com diarreia gordurosa comprovada, deve-se realizar
endoscopia com biópsia de intestino delgado (incluindo aspirado para
Giardia e procedimentos quantitativos); quando esse procedimento é
inconclusivo, a radiografia do intestino delgado comumente é a próxima
etapa recomendada. Quando os exames do intestino delgado são negativos ou
há suspeita de doença pancreática, a insuficiência pancreática exócrina deve
ser excluída por testes diretos como o de estimulação com secretina-
colecistocinina, ou uma variação que poderia ser feita por via endoscópica.
Em geral, os testes indiretos (p. ex., ensaio para elastase fecal ou atividade da
quimotripsina fecal, ou teste com bentiromida) não têm sido usados em razão
de sua sensibilidade e especificidade baixas.
As diarreias inflamatórias crônicas devem ser consideradas quando há
sangue ou leucócitos nas fezes. Essas anormalidades justificam a realização
de coproculturas; a pesquisa de ovos e parasitas; um ensaio para toxina do C.
difficile; colonoscopia com biópsias; e, se houver indicação, exames
contrastados do intestino delgado.

TRATAMENTO
Diarreia crônica
O tratamento da diarreia crônica depende da etiologia específica e pode ser curativo, supressor ou empírico.
Quando a causa pode ser erradicada, o tratamento é curativo, como a ressecção de um câncer colorretal, a
administração de antibiótico para a doença de Whipple ou espru tropical, ou a interrupção do uso de um
fármaco. Em muitos distúrbios crônicos, a diarreia pode ser controlada por supressão do mecanismo
subjacente. Exemplos são a eliminação da lactose alimentar para deficiência de lactase ou glúten para espru
celíaco, uso de glicocorticoide ou outros antiinflamatórios para DII idiopática, sequestrantes de ácidos
biliares para má absorção ileal destes compostos, IBPs para a hipersecreção gástrica dos gastrinomas,
análogos da somatostatina como a ocreotida para tumor carcinoide maligno, inibidores da prostaglandina
como indometacina para carcinoma medular da tireoide e reposição de enzima pancreática para a
insuficiência pancreática. Quando não se consegue diagnosticar a causa ou o mecanismo específico da
diarreia crônica, o tratamento empírico pode ser eficaz. Os opiáceos fracos como o difenoxilato ou a
loperamida são frequentemente valiosos na diarreia aquosa leve ou moderada. Para os pacientes com
diarreia mais grave, a codeína ou a tintura de ópio pode ser benéfica. Esses agentes antimotilidade devem
ser evitados na DII grave, porque poderiam precipitar megacolo tóxico. A clonidina (um agonista α2-
adrenérgico) pode permitir o controle da diarreia diabética, embora esse fármaco possa não ser muito bem
tolerada por causar hipotensão postural. Os antagonistas do receptor 5-HT3 (p. ex., alosetrona,
ondansetrona) podem aliviar a diarreia e a urgência dos pacientes com diarreia associada à SII. Outros
fármacos aprovados para o tratamento da diarreia associada à SII são rifaximina (um antibiótico
inabsorvível) e eluxadolina (um agonista dos receptores opioides [OR] μ e κ e antagonista dos OR δ de ação
mista). Esse último fármaco pode provocar espasmo do esfincter de Oddi e pancreatite aguda subsequente,
geralmente nos pacientes submetidos à colecistectomia no passado. Em todos os pacientes com diarreia
crônica, a reposição hidreletrolítica é um componente importante do tratamento (ver “Diarreia aguda”,
anteriormente). A reposição de vitaminas lipossolúveis também pode ser necessária aos pacientes com
esteatorreia crônica.
CONSTIPAÇÃO
DEFINIÇÃO
Constipação é uma queixa comum na prática clínica e em geral se refere à
defecação difícil, infrequente ou aparentemente incompleta persistente. Em
virtude da ampla faixa de hábitos intestinais normais, é difícil definir
constipação com exatidão. A maioria das pessoas tem pelo menos três
evacuações por semana; entretanto apenas uma frequência reduzida das
evacuações não é um critério suficiente para o diagnóstico de constipação.
Muitos pacientes com constipação têm frequência normal de evacuações, mas
queixam-se de esforço excessivo, fezes endurecidas, plenitude abdominal
inferior ou sensação de evacuação incompleta. Os sintomas de cada paciente
devem ser analisados em detalhes para determinar o que é compreendido como
“constipação” ou “dificuldade” à defecação.
A forma e a consistência das fezes correlacionam-se bem com o intervalo
de tempo transcorrido desde a defecação anterior. Fezes endurecidas e em
pelotas ocorrem com trânsito lento, enquanto fezes aquosas e amolecidas estão
associadas a um trânsito rápido. É mais difícil expelir tanto fezes em pelotas
quanto um volume fecal muito grande que eliminar fezes normais.
A percepção de fezes endurecidas ou esforço excessivo é mais difícil de
avaliar de maneira objetiva, e a necessidade de enemas ou desobstrução digital é
um meio clinicamente útil para confirmar as percepções do paciente de
defecação difícil.
Fatores psicossociais ou culturais também podem ser importantes. Uma
pessoa cujos pais atribuíam muita importância à evacuação diária ficará muito
preocupada quando não conseguir evacuar 1 vez por dia; algumas crianças
prendem a evacuação para chamar a atenção ou por medo de dor decorrente da
irritação anal; e alguns adultos costumam ignorar ou adiar a defecação.

CAUSAS
Fisiopatologicamente, a constipação crônica geralmente resulta da ingestão
inadequada de fibra ou líquidos, ou de distúrbios do trânsito colônico ou da
função retal. Essas alterações são causadas por distúrbios
neurogastrenterológicos, determinados fármacos e idade avançada, ou estão
associadas a um grande número de doenças sistêmicas que afetam o trato GI (Ta
b. 42-5). Constipação de início recente pode ser um sintoma de doença orgânica
significativa, inclusive tumor, irritação ou estenose. Com a constipação
idiopática, um subgrupo de pacientes tem esvaziamento tardio dos cólons
ascendente e transverso com prolongamento do trânsito (frequentemente no
cólon proximal) e frequência reduzida das CPAA propulsivas. A obstrução da
via de saída para defecação (também chamada de distúrbios da evacuação) é
responsável por cerca de um quarto dos casos de constipação atendidos no nível
de cuidado terciário e pode retardar o trânsito colônico, o que é geralmente
corrigido pela reeducação da defecção desordenada por biofeedback. A
constipação de qualquer etiologia pode ser exacerbada por hospitalização ou
doenças crônicas que acarretam comprometimento físico ou mental e resultam
em inatividade ou imobilidade física.

TABELA 42-5 ■ Causas de constipação em adultos


Tipos e causas da constipação Exemplos

Início recente
Obstrução colônica Neoplasia; estenose: isquêmica, diverticular, inflamatória
Espasmo do esfincter anal Fissura anal, hemorroidas dolorosas
Fármacos
Crônicas
Síndrome do intestino irritável Constipação predominante ou alternada
Fármacos Bloqueadores do Ca2+, antidepressivos
Pseudo-obstrução colônica Constipação por trânsito lento, megacólon (raro nas doenças de Hirschsprung e Chagas)
Distúrbios da evacuação retal Disfunção do assoalho pélvico; anismo; síndrome do períneo caído; prolapso da mucosa retal; retocele
Endocrinopatias Hipotireoidismo, hipercalcemia, gravidez
Transtornos psiquiátricos Depressão, transtornos alimentares, fármacos
Doença neurológica Parkinsonismo, esclerose múltipla, lesão da medula espinal
Doença muscular generalizada Esclerose sistêmica progressiva

ABORDAGEM AO PACIENTE
Constipação intestinal
Uma anamnese minuciosa deve explorar os sintomas do paciente e confirmar
se ele realmente está com constipação com base na frequência (p. ex., menos
de três evacuações por semana), consistência (endurecida), esforço
excessivo, tempo de defecação prolongado ou necessidade de apoiar o
períneo ou manipular o segmento anorretal para facilitar a evacuação das
fezes. Na grande maioria dos casos (provavelmente > 90%), não existe uma
causa subjacente (p. ex., câncer, depressão ou hipotireoidismo) e a
constipação melhora com hidratação abundante, exercício e suplementação
da dieta com fibras (15-25 g/dia). Uma história detalhada da ingestão
dietética e dos fármacos usados e a consideração dos aspectos psicossociais
são fundamentais. O exame físico e, particularmente, um exame retal devem
excluir impacção fecal e a maior parte das doenças importantes que se
apresentam com a constipação e podem indicar alterações sugestivas de um
distúrbio da evacuação (p. ex., hipertonia do esfincter anal, falha na descida
perineal ou contração paradoxal do músculo puborretal durante o esforço
para estimular a evacuação de fezes).
Emagrecimento, sangramento retal ou anemia com constipação tornam
obrigatória uma sigmoidoscopia flexível com enema de bário ou
colonoscopia isolada, principalmente em pacientes com > 40 anos, para
excluir doenças estruturais, como câncer ou estenoses. A colonoscopia
isolada tem uma relação de custo-benefício mais favorável nesse contexto,
porque oferece a oportunidade de biopsiar lesões da mucosa, realizar
polipectomia ou dilatar estenoses. O clister opaco apresenta vantagens sobre
a colonoscopia no paciente com constipação isolada, porque é menos
dispendioso e identifica a dilatação colônica e todas as lesões ou estenoses
significativas da mucosa, que estão possivelmente implicadas na constipação.
A melanose colônica, ou pigmentação da mucosa do cólon, indica o uso de
laxantes do tipo antraquinona, como cáscara ou sene; entretanto isto fica
geralmente evidenciado a partir de uma anamnese cuidadosa. Um distúrbio
inesperado, como megacólon ou cólon catártico, também pode ser detectado
por meio de radiografias do intestino grosso. A determinação dos níveis
séricos de cálcio, potássio e hormônio estimulante da tireoide identifica os
raros pacientes com distúrbios metabólicos.
Os pacientes com constipação mais problemática podem não responder
apenas à suplementação de fibras e podem melhorar com um esquema de
treinamento do intestino, que envolve tomar um laxante osmótico (p. ex., sais
de magnésio, lactulose, sorbitol, polietilenoglicol) ou evacuar com enema ou
supositório (p. ex., glicerina ou bisacodil) quando necessário. Depois do
desjejum, o paciente deve ser incentivado a ficar um período de 15 a 20
minutos sem distração no vaso sanitário e sem fazer esforço. O esforço
excessivo pode levar ao desenvolvimento de hemorroidas e, quando há
fraqueza do assoalho pélvico ou lesão do nervo pudendo, pode resultar em
obstrução da defecação em consequência da síndrome do períneo
descendente vários anos depois. Os poucos pacientes que não melhoram com
as medidas simples descritas antes, ou que necessitam de tratamento
prolongado ou não melhoram com laxantes potentes, devem passar por uma
investigação mais detalhada (Fig. 42-4). Fármacos novos que induzem a
secreção (p. ex., lubiprostona, um ativador do canal de cloro; ou linaclotida,
um agonista do guanilatociclase C que ativa a secreção de cloro) também
estão disponíveis.

FIGURA 42-4 Algoritmo para o tratamento da constipação.

INVESTIGAÇÃO DA CONSTIPAÇÃO GRAVE


Uma pequena minoria (provavelmente < 5%) dos pacientes tem constipação
“intratável” ou grave; cerca de 25% têm distúrbios de evacuação. Esses são os
pacientes com maior probabilidade de serem atendidos por gastrenterologistas
ou em centros de referência. Em alguns casos, a observação mais detalhada do
paciente revela uma causa previamente despercebida, como um distúrbio da
evacuação, abuso de laxante, simulação ou transtorno psicológico. Nesses
pacientes, exames recentes sugerem que as avaliações da função fisiológica do
cólon e do assoalho pélvico, bem como do estado psicológico, auxiliem na
escolha racional do tratamento. Mesmo entre esses pacientes altamente
selecionados com constipação grave, uma causa pode ser identificada em apenas
cerca de um terço dos encaminhamentos a centros terciários; os casos restantes
são diagnosticados como portadores de constipação de trânsito normal.

Avaliação do trânsito colônico Os testes de trânsito com um marcador


radiopaco são fáceis, podem ser repetidos, geralmente são seguros, baratos,
confiáveis e altamente aplicáveis na avaliação de pacientes com constipação na
prática clínica. Vários métodos validados são muito simples. Por exemplo, os
marcadores radiopacos são ingeridos e uma radiografia simples do abdome
obtida 5 dias depois deve indicar a eliminação de 80% dos marcadores para fora
do cólon sem o uso de laxantes ou enemas. Esse exame não fornece informações
úteis sobre o perfil do trânsito no estômago e no intestino delgado. Uma
abordagem alternativa consiste em ingerir 24 marcadores radiopacos em 3 dias
consecutivos e, no quarto dia, obter uma radiografia do abdome. O número de
marcadores contados na radiografia é uma estimativa do trânsito do intestino
grosso aferido em horas. A acumulação de gases no reto entre o nível das
espinhas isquiáticas e a borda inferior das articulações sacroilíacas pode sugerir
a existência de um distúrbio da evacuação retal como causa da constipação.
A radiocintilografia com uma cápsula de liberação prolongada contendo
partículas radiomarcadas foi empregada para caracterizar de forma não invasiva
a função colônica normal, acelerada ou retardada durante 24 a 48 horas, com
baixa exposição à radiação. Essa abordagem avalia simultaneamente o trânsito
no estômago, intestino delgado (que pode ser importante em cerca de 20% dos
pacientes com atraso no trânsito colônico, porque refletem um distúrbio da
motilidade GI mais generalizado) e intestino grosso. As desvantagens são o
custo mais elevado e a necessidade de materiais específicos preparados em um
laboratório de medicina nuclear.

Exames anorretais e do assoalho pélvico A disfunção do assoalho pélvico é


sugerida pela incapacidade de evacuar o reto, sensação de plenitude retal
persistente, dor retal, necessidade de extrair as fezes do reto com o dedo,
aplicação de pressão sobre a parede posterior da vagina, sustentação do períneo
durante o esforço e esforço excessivo para evacuar. Esses sintomas significativos
devem ser contrastados com a sensação simples de evacuação retal incompleta,
que é comum na SII.
A avaliação psicológica formal pode identificar transtornos alimentares,
“problemas de controle”, depressão ou distúrbios de estresse pós-traumático, que
podem responder às intervenções cognitivas ou outras modalidades e ser
importantes para restabelecer a qualidade de vida aos pacientes que poderiam vir
a ter constipação crônica.
Um teste clínico simples feito no consultório para documentar um músculo
puborretal que não relaxa consiste em pedir ao paciente para fazer força para
expelir o dedo indicador do médico durante um toque retal. O movimento do
puborretal em sentido posterior durante o esforço indica coordenação adequada
da musculatura do assoalho pélvico. A movimentação em sentido anterior com
contração paradoxal, ou a descida limitada do períneo (< 1,5 cm) durante a
simulação de uma evacuação indica disfunção do assoalho pélvico.
A medição da descida perineal é relativamente fácil de realizar
clinicamente, colocando o paciente na posição de decúbito lateral esquerdo e
observando o períneo para avaliar se há descida inadequada (< 1,5 cm, um sinal
de disfunção do assoalho pélvico) ou abaulamento perineal durante o esforço
com relação aos pontos de referência ósseos (> 4 cm sugere descida perineal
excessiva).
Um teste geral útil da evacuação é o de expulsão de um balão. Um cateter
urinário com balão na ponta é colocado no reto e o balão é insuflado com 50 mL
de água. Normalmente, o paciente pode expeli-lo enquanto sentado em um vaso
sanitário ou na posição de decúbito lateral esquerdo. Na posição lateral, o peso
necessário para facilitar a expulsão do balão é determinado; normalmente a
expulsão ocorre com o acréscimo de < 200 g ou sem ajuda em 1 minuto.
A manometria anorretal, quando usada na avaliação de pacientes com
constipação grave, pode revelar tônus excessivamente alto (> 80 mmHg) do
esfincter anal em repouso e isto é sugestivo de anismo (espasmo do esfincter
anal). Esse teste também identifica síndromes raras como doença de
Hirschsprung em adultos com base na ausência de reflexo inibitório retoanal.
A defecografia (um clister opaco dinâmico, incluindo as incidências laterais
obtidas durante a expulsão de bário ou defecograma por ressonância magnética)
revela “anormalidades discretas” em muitos pacientes; os achados mais
relevantes são as mudanças mensuradas no ângulo retoanal, anomalias
anatômicas do reto (p. ex., prolapso da mucosa interna) e enteroceles ou
retoceles. Condições passíveis de correção cirúrgica são identificadas em apenas
alguns pacientes. Isso inclui intussuscepção grave de espessura total com
obstrução completa da saída devido a um bloqueio em forma de funil no canal
anal, ou a uma retocele extremamente grande, que enche preferencialmente
durante as tentativas de defecação, em vez de ocorrer a expulsão do bário pelo
ânus. Em resumo, a defecografia requer um radiologista experiente e
interessado, e as anormalidades não são patognomônicas de disfunção do
assoalho pélvico. A causa mais comum de obstrução da saída é uma falha no
relaxamento do músculo puborretal; isto não é identificado pela defecografia
com bário, mas pode ser demonstrado pela defecografia por ressonância
magnética, que fornece mais informação sobre a estrutura e a função do assoalho
pélvico, do segmento colorretal distal e dos esfincteres anais.
O teste neurológico (eletromiografia) é mais valioso na avaliação de
pacientes com incontinência, que naqueles com sintomas que sugerem obstrução
da defecação. A ausência de sinais neurológicos nos membros inferiores sugere
que qualquer denervação documentada do músculo puborretal resulte de uma
lesão pélvica (p. ex., obstétrica) ou do estiramento do nervo pudendo por
alongamento crônico e duradouro. Constipação é comum nos pacientes com
lesões da medula espinal, doenças neurológicas como Parkinson, esclerose
múltipla e neuropatia diabética.
As respostas evocadas espinais durante a estimulação retal elétrica ou da
contração do esfincter anal externo por aplicação de estimulação magnética da
medula espinal lombossacral identificam os pacientes com neuropatias sacrais
limitadas com condução nervosa residual suficiente para tentar o treinamento por
biofeedback.
Em resumo, um teste de expulsão do balão é importante na avaliação de
disfunção anorretal. Raramente, uma avaliação anatômica do reto ou dos
esfincteres anais e uma avaliação do relaxamento do assoalho pélvico são
recursos para avaliar pacientes nos quais há suspeita de defecção obstruída com
sintomas de prolapso da mucosa retal, compressão da parede posterior da vagina
para facilitar a defecação (sugestiva de retocele anterior) ou cirurgia pélvica
prévia que pode ser complicada pela enterocele.

TRATAMENTO
Constipação intestinal
Depois de caracterizar a causa da constipação, pode-se tomar uma decisão sobre o tratamento. A
constipação por trânsito lento requer tratamento clínico ou cirúrgico agressivo; o anismo ou a disfunção do
assoalho pélvico geralmente responde ao tratamento com biofeedback (Fig. 42-4). Contudo, apenas cerca de
60% dos pacientes com constipação grave têm trânsito colônico normal e podem ser tratados
sintomaticamente. Os pacientes com lesões da medula espinal ou outros distúrbios neurológicos precisam
de um esquema intestinal dedicado, que geralmente inclui estimulação retal, tratamento com enema e doses
de laxantes cuidadosamente controladas.
Os pacientes com constipação são tratados com laxantes formadores de bolo fecal, osmóticos,
procinéticos, secretórios e estimulantes; isto inclui fibras, psílio, leite de magnésia, lactulose,
polietilenoglicol (solução para lavagem colônica), lubiprostona, linaclotida e bisacodil ou, em alguns países,
prucaloprida (um agonista do receptor 5-HT4). Quando uma tentativa de tratamento clínico por 3 a 6 meses
falha e a constipação não está associada à obstrução da defecção, os pacientes devem ser avaliados quanto à
indicação de colectomia laparoscópica com ileorretostomia; entretanto isso não deve ser realizado se houver
evidência contínua de um distúrbio de evacuação ou um distúrbio generalizado da dismotilidade GI. O
encaminhamento a um centro especializado para a realização de outros testes da função colônica é indicado.
A decisão de recorrer à cirurgia é facilitada quando há megacólon e megarreto. As complicações pós-
cirúrgicas consistem em obstrução do intestino delgado (11%) e escape fecal, principalmente à noite durante
o primeiro ano após a cirurgia. A frequência das evacuações varia de 3 a 8 vezes por dia durante o primeiro
ano, mas diminui para 1 a 3 por dia a partir do segundo ano depois da cirurgia.
Os pacientes com distúrbios mistos (obstrução da evacuação e distúrbios do trânsito/motilidade)
devem inicialmente tentar o recondicionamento do assoalho pélvico (biofeedback e relaxamento muscular),
terapia psicológica e orientações dietéticas. Se os sintomas forem difíceis de manejar apesar do biofeedback
e do tratamento clínico otimizado, colectomia e ileorretostomia devem ser consideradas tão logo o distúrbio
de evacuação esteja resolvido e a tratamento clínico otimizado não alcance sucesso. Nos pacientes com
disfunção isolada do assoalho pélvico, o treinamento por biofeedback tem taxa de sucesso de 70 a 80%,
medida pela aquisição de hábitos de evacuação confortáveis. As tentativas de controlar a disfunção do
assoalho pélvico com cirurgias (secção do esfincter anal interno ou do músculo puborretal) ou injeções de
toxina botulínica alcançaram apenas sucesso medíocre e foram praticamente abandonadas.

LEITURAS ADICIONAIS
Assi R et al: Sexually transmitted infections of the anus and rectum. World J
Gastroenterol 20:15262, 2014.
Bharucha AE, Rao SS: An update on anorectal disorders for gastroenterologists.
Gastroenterology 146:37, 2014.
Bharucha AE, Pemberton JH, Locke GR 3rd: American Gastroenterological
Association technical review on constipation. Gastroenterology 144:218,
2013.
Boeckxstaens G et al: Fundamentals of neurogastroenterology:
Physiology/motility—sensation. Gastroenterology pii: S0016-
5085(16)00221-3, 2016. doi: 10.1053/j.gastro.2016.02.030. [Epub ahead of
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Camilleri M, Sellin JH, Barrett KE: Pathophysiology, evaluation, and
management of chronic watery diarrhea. Gastroenterology 152:515, 2017.
Lembo A, Camilleri M: Chronic constipation. N Engl J Med 349:1360, 2003.
Riddle MS, DuPont HL, Connor BA: ACG Clinical Guideline: Diagnosis,
treatment, and prevention of acute diarrheal infections in adults. Am J
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Rubio-Tapia A et al: American College of Gastroenterology. ACG clinical
guidelines: Diagnosis and management of celiac disease. Am J
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Schiller LR, Pardi DS, Sellin JH: Chronic diarrhea: Diagnosis and management.
Clin Gastroenterol Hepatol 15:182, 2017.
Uzzan M et al: Gastrointestinal disorders associated with common variable
immune deficiency (CVID) and chronic granulomatous disease (CGD).
Curr Gastroenterol Rep 18:17, 2016.
43
Perda de peso involuntária
J. Larry Jameson

A perda de peso involuntária (PPI) geralmente é insidiosa e pode ter implicações


importantes, porque normalmente prenuncia uma doença coexistente grave. A
perda de peso clinicamente importante é definida por perdas de 4,5 kg ou > 5%
do peso corporal do indivíduo ao longo de um intervalo de 6 a 12 meses. A PPI é
detectada em até 8% de todos os pacientes ambulatoriais adultos e 27% dos
indivíduos fragilizados com idade ≥ 65 anos. Em até 25% dos pacientes, não há
uma causa identificável, apesar de investigação detalhada. Por outro lado, até
50% dos indivíduos que se queixam de emagrecimento não apresentam indícios
comprovados de perda de peso. Os indivíduos sem causa detectável para a perda
de peso geralmente têm prognósticos mais favoráveis que os pacientes com
causas conhecidas, principalmente quando a etiologia é neoplásica. O
emagrecimento dos indivíduos idosos está associado a vários efeitos deletérios,
inclusive quedas e fraturas, úlceras de pressão, imunossupressão e piora do nível
funcional. Como seria esperado, o emagrecimento significativo está associado a
aumento da mortalidade, que pode variar de 9 a 38% em um intervalo de 1 a 2,5
anos se o paciente não receber cuidados médicos e intervenção apropriada.

FISIOLOGIA DA REGULAÇÃO DO PESO COM O


ENVELHECIMENTO
(Ver também Caps. 463 e 394) Entre os indivíduos idosos saudáveis, o peso
corporal total alcança níveis máximos na sexta década de vida e, em geral,
mantém-se estável até a nona década, quando então começa a diminuir
gradativamente. Por outro lado, a massa corporal magra (massa sem gordura)
começa a declinar a uma taxa de 0,3 kg por ano a partir da terceira década, e a
taxa de declínio aumenta ainda mais a partir da idade de 60 anos nos homens e
de 65 anos nas mulheres. Essas alterações da massa corporal magra refletem
basicamente o declínio da secreção de hormônio do crescimento associado ao
envelhecimento e, consequentemente, a redução dos níveis circulantes do fator
de crescimento tipo I semelhante à insulina (IGF-I), que é observado com o
envelhecimento normal. A perda de esteroides sexuais com a menopausa das
mulheres e mais gradualmente com o envelhecimento dos homens, também
contribui para essas alterações da composição corporal. Nos indivíduos idosos
saudáveis, o aumento do tecido gorduroso equilibra a perda de massa corporal
até uma idade muito avançada, quando ocorrem perdas de músculo esquelético e
tecido adiposo. As alterações associadas ao envelhecimento também ocorrem no
nível celular. Os telômeros encurtam e a massa celular corporal – componente
celular sem gordura – declina progressivamente com a idade.
Entre as idades de 20 e 80 anos, a ingestão calórica média diminui em até
1.200 kcal/dia nos homens e 800 kcal/dia nas mulheres. A redução da fome é um
reflexo da diminuição da atividade física e da perda de massa corporal magra,
que diminuem as demandas de calorias e ingestão alimentar. Várias alterações
fisiológicas importantes associadas ao envelhecimento também predispõem os
indivíduos idosos à perda de peso, inclusive o declínio da função
quimiossensitiva (olfato e gustação), a diminuição da eficiência da mastigação, o
esvaziamento gástrico mais lento e as alterações do sistema neuroendócrino,
inclusive as alterações dos níveis de leptina, colecistocinina, neuropeptídeo Y e
outros hormônios e peptídeos. Essas alterações estão associadas à saciedade
precoce e aos declínios do apetite e da apreciação prazerosa dos alimentos. Em
conjunto, todos esses fatores contribuem para a “anorexia do envelhecimento”.
Como foi mencionado antes, essas alterações fisiológicas associadas ao
envelhecimento podem estar acompanhadas de isolamento social e/ou pobreza,
que também contribuem para a desnutrição.

CAUSAS DE PERDA DE PESO INVOLUNTÁRIA


A maioria das causas de PPI pode ser classificada em quatro grupos: (1)
neoplasias malignas; (2) doenças inflamatórias ou infecciosas crônicas; (3)
distúrbios metabólicos (p. ex., hipertireoidismo e diabetes); ou (4) transtornos
psiquiátricos (Tab. 43-1). Em geral, a PPI pode ser causada por mais de uma
dessas causas. Na maioria dos estudos publicados, a PPI era causada por doenças
malignas em um quarto dos casos e por doenças orgânicas em cerca de um terço
dos casos; os casos restantes eram atribuíveis aos transtornos psiquiátricos, ao
uso de fármacos ou às etiologias indefinidas.

TABELA 43-1 ■ Causas de perda de peso involuntária


Cânceres Fármacos
Corretal Sedativos
Hepatobiliar Antibióticos
Hematológico Anti-inflamatórios não esteroides
Pulmões Inibidores da recaptação de serotonina
Mama Metformina
Geniturinário Levodopa
Ovariano Inibidores da enzima conversora da angiotensina
Próstata Outros fármacos
Distúrbios gastrintestinais Distúrbios da boca e dos dentes
Má absorção Cáries
Úlcera péptica Disgeusia
Doença inflamatória intestinal Fatores relacionados com o envelhecimento
Pancreatite Alterações fisiológicas
Obstrução/constipação Déficit visual
Anemia perniciosa Diminuição de paladar e olfato
Distúrbios endócrinos e metabólicos Incapacidade funcional
Hipertireoidismo Neurológico
Diabetes melito Acidente vascular cerebral
Feocromocitoma Doença de Parkinson
Insuficiência suprarrenal Distúrbios neuromusculares
Distúrbios cardíacos Demência
Isquemia crônica Fatores sociais
Insuficiência cardíaca congestiva crônica Isolamento
Distúrbios respiratórios Dificuldades econômicas
Enfisema Fatores psiquiátricos e comportamentais
Doença pulmonar obstrutiva crônica Depressão
Insuficiência renal Ansiedade
Doença reumatológica Paranoia
Infecções Luto
HIV Alcoolismo
Tuberculose Transtornos alimentares
Infecção parasitária Aumento de atividade e exercícios
Endocardite bacteriana subaguda Idiopáticas

As causas malignas mais comuns de PPI são tumores malignos


gastrintestinais, hepatobiliares, hematológicos, pulmonares, mamários,
geniturinários, ovarianos e prostáticos. Metade de todos os pacientes com câncer
perdem algum peso corporal; um terço perde mais de 5% do seu peso corporal
original e até 20% de todas as mortes por câncer são causadas diretamente pela
caquexia (causada por imobilidade e/ou insuficiência cardíaca/respiratória). A
incidência mais alta de emagrecimento ocorre entre os pacientes com tumores
sólidos. As neoplasias malignas diagnosticadas em razão de uma perda
significativa de peso geralmente têm prognóstico muito desfavorável.
Além das neoplasias malignas, os distúrbios gastrintestinais estão entre as
causas mais importantes de PPI. Doença ulcerosa péptica, doença inflamatória
intestinal, síndromes caracterizadas por distúrbios da motilidade, pancreatite
crônica, doença celíaca, constipação e gastrite atrófica são algumas das causas
mais comuns. Os problemas dentários e orais podem passar despercebidos
facilmente e evidenciam-se por halitose, higiene oral precária, xerostomia,
incapacidade de mastigar, diminuição da força da mastigação, falha de oclusão,
síndrome da articulação temporomandibular, ausência de dentes e dor causada
por cáries ou abscessos.
Tuberculose, doenças fúngicas, parasitoses, endocardite bacteriana
subaguda e infecção por HIV estão entre as causas bem conhecidas de PPI. As
doenças cardiovasculares e pulmonares causam PPI porque aumentam as
demandas metabólicas e diminuem o apetite e a ingestão de calorias.
Intervenções cirúrgicas repetidas podem causar emagrecimento em razão da
redução da ingestão calórica e aumento das demandas metabólicas resultante de
uma reação inflamatória sistêmica. A uremia causa náusea, anorexia e vômitos.
As doenças do tecido conectivo podem aumentar as demandas metabólicas e
alterar o equilíbrio nutricional. À medida que a incidência do diabetes melito
aumenta com o envelhecimento, a glicosúria associada pode contribuir para a
perda de peso. O hipertireoidismo do idoso pode evidenciar-se por manifestações
simpaticomiméticas menos proeminentes e caracteriza-se por “hipertireoidismo
apático” ou toxicose por T3 (Cap. 375).
Os distúrbios neurológicos como acidentes vasculares cerebrais (AVCs),
tetraplegia e esclerose múltipla podem causar disfunções viscerais e
autonômicas, que podem reduzir a ingestão calórica. A disfagia causada por
esses distúrbios neurológicos é um mecanismo comum. Incapacidade funcional
que interfere com as atividades da vida diária (AVDs) é uma causa comum de
desnutrição na população idosa. Os déficits visuais causados por doenças
oftálmicas ou do sistema nervoso central (inclusive tremor) podem limitar a
capacidade de preparar e ingerir as refeições. A PPI pode ser uma das primeiras
manifestações da demência de Alzheimer.
O isolamento e a depressão são causas importantes de PPI e podem
evidenciar-se por incapacidade de cuidar de si próprio, inclusive de atender às
necessidades nutricionais. Uma reação metabólico-inflamatória em cadeia
desencadeada pelas citocinas pode ser a causa e uma das manifestações da
depressão. Luto pode ser uma causa de PPI e, quando ocorre, geralmente é mais
acentuado nos homens. As formas mais graves das doenças mentais, como os
transtornos paranoides, podem causar ilusões quanto aos alimentos e levar a
emagrecimento. O alcoolismo pode ser uma causa importante de emagrecimento
e desnutrição.
Os idosos que vivem na pobreza podem ter que escolher entre comprar
comida ou usar o dinheiro para outras despesas, incluindo fármacos.
Institucionalização é um fator de risco independente, porque até 30 a 50% dos
pacientes internados em asilos têm ingestão alimentar inadequada.
Os fármacos podem causar anorexia, náuseas, vômitos, distúrbios
gastrintestinais, diarreia, ressecamento da boca e alterações gustatórias. Isso é
particularmente comum nos idosos, muitos dos quais utilizam cinco ou mais
fármacos simultaneamente.

AVALIAÇÃO
As quatro manifestações clínicas principais do PPI são: (1) anorexia (perda do
apetite); (2) sarcopenia (perda de massa muscular); (3) caquexia (uma síndrome
evidenciada por emagrecimento, perdas de tecidos musculares e adiposos,
anorexia e fraqueza); e (4) desidratação. A epidemia atual de obesidade aumenta
a complexidade, porque o excesso de tecido adiposo pode ocultar o
desenvolvimento de sarcopenia e postergar a detecção da caquexia. Se não for
possível determinar o peso diretamente, a alteração dos números das roupas
usadas, a confirmação da perda de peso por um parente ou amigo e a estimativa
quantitativa da perda de peso fornecida pelo paciente sugerem emagrecimento
real.
A avaliação inicial inclui história e exame físico detalhados, hemograma
completo, dosagens das enzimas hepáticas, proteína C-reativa, velocidade de
hemossedimentação, provas de função renal, provas de função tireóidea,
radiografias do tórax e ultrassonografia abdominal (Tab. 43-2). Também é
necessário realizar exames de triagem de cânceres específicos para a idade, o
sexo e os fatores de risco, inclusive mamografia e colonoscopia (Cap. 66). Os
pacientes de risco devem fazer teste para HIV. Todos os pacientes idosos com
perda de peso devem fazer um rastreamento para demência e depressão por meio
de instrumentos como o Miniexame do Estado Mental e a Escala de Depressão
Geriátrica, respectivamente (Cap. 464). A Miniavaliação Nutricional (www.mna
-elderly.com) e a Iniciativa de Triagem Nutricional (www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/
articles/PMC1694757/) também estão disponíveis para a avaliação nutricional
dos indivíduos idosos. Quase todos os pacientes com neoplasias malignas e >
90% dos indivíduos com outras doenças orgânicas têm no mínimo uma
anormalidade laboratorial. Nos pacientes com PPI expressivo, as doenças
orgânicas e malignas principais são improváveis quando a avaliação inicial é
absolutamente normal. A conduta recomendável é o acompanhamento cuidadoso
em vez de exames aleatórios, porque o prognóstico do emagrecimento de causa
indeterminada geralmente é favorável.

TABELA 43-2 ■ Avaliação clínica e exames para perda de peso involuntária


Indicações Exames laboratoriais
Perda de 5% do peso em 30 dias Hemograma completo
Perda de 10% do peso em 180 dias Perfil metabólico e eletrolítico abrangente, inclusive provas das funções
hepática e renal
Índice de massa corporal < 21 Provas de função tireoidiana
25% das refeições rejeitadas por mais de 7 dias Velocidade de hemossedimentação
Alteração dos ajustes das roupas Proteína C-reativa
Alteração do apetite, do olfato ou do paladar Ferritina
Dor abdominal, náusea, vômitos, diarreia, constipação, Testes para HIV (se houver indicação)
disfagia
Avaliação Exames radiológicos
Exame físico completo, inclusive avaliação dentária Radiografia de tórax
Ultrassonografia do abdome
Revisão da medicação
Rastreamento recomendado para câncer
Miniexame do Estado Mentala
Miniavaliação Nutricionala
Iniciativa de Triagem Nutricionala
Questionário de avaliação nutricional simplificadoa
Observação da ingestão alimentara
Atividades da vida diáriaa
Atividades instrumentais da vida diáriaa
aPodem ser mais específicos para a avaliação de emagrecimento em idosos.

TRATAMENTO
Perda de peso involuntária
A primeira prioridade do tratamento da perda de peso involuntária é identificar e tratar as causas
subjacentes. O tratamento dos distúrbios metabólicos, psiquiátricos, infecciosos ou sistêmicos coexistentes
pode ser suficiente para recuperar gradativamente o peso e o estado funcional. Os fármacos que causam
náusea ou anorexia devem ser interrompidos ou substituídos, quando possível. Nos casos de PPI
inexplicável, os suplementos nutricionais (p. ex., bebidas hipercalóricas) revertem a perda de peso em
alguns casos. Orientar os pacientes a consumir suplementos entre as refeições, em vez de junto com as
refeições, pode ajudar a atenuar a supressão do apetite e facilitar o aumento da ingestão oral. Os fármacos
orexígenos, anabólicos e anticitocina estão sendo investigados com essa indicação. Em pacientes
selecionados, o antidepressivo mirtazapina produz aumentos significativos do peso corporal, da massa
gordurosa e da concentração de leptina. Os pacientes com distúrbios debilitantes e que podem aderir a um
programa de exercícios apropriados adquirem massa proteica, força e resistência musculares e podem
ampliar suas capacidades de realizar as AVDs.

Agradecimento O autor agradece ao Dr. Russell G. Robertson por suas


contribuições a este capítulo em edições anteriores.

LEITURAS ADICIONAIS
Alibhai SM et al: An approach to the management of unintentional weight loss
in elderly people. CMAJ 172:773, 2005.
Compston JE et al: Increase in fracture risk following unintentional weight loss
in postmenopausal women: The global longitudinal study of osteoporosis in
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Gaddey HL, Holder K: Unintentional weight loss in older adults. Am Fam
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McMinn J et al: Investigation and management of unintentional weight loss in
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Vanderschueren S et al: The diagnostic spectrum of unintentional weight loss.
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44
Hemorragia digestiva
Loren Laine

Hemorragia digestiva (HD) é o distúrbio gastrintestinal que mais causa


internação hospitalar nos Estados Unidos, sendo responsável por mais de 507
mil internações com custos anuais diretos de 4,85 bilhões de dólares. A
incidência de hemorragia digestiva alta (HDA) tem diminuído nas últimas
décadas, principalmente em razão da redução das HD causadas por úlceras. Nos
Estados Unidos, entre os pacientes atendidos nos serviços de emergência, a razão
entre HDA e hemorragia digestiva baixa (HDB) é de cerca de 1,3. A taxa de
mortalidade dos pacientes hospitalizados com HD também diminuiu e fica
abaixo de 3% nos Estados Unidos. Em geral, os pacientes morrem por
descompensação de outras doenças subjacentes, em vez de em razão da perda
sanguínea aguda.
A HD se apresenta com hemorragia evidente ou oculta. A HD evidente
manifesta-se por hematêmese (vômitos de sangue vivo ou “borra de café”),
melena (fezes negras ou escuras) e/ou hematoquezia (eliminação de sangue vivo
ou marrom pelo reto). Nos casos em que não há sangramento evidente, a HD
oculta pode se manifestar com sintomas atribuíveis à perda de sangue ou
anemia, inclusive tontura, síncope, angina ou dispneia; ou com anemia
ferropriva ou teste positivo para sangue oculto nas fezes em exames de rotina. A
HD também pode ser classificada, com base no local de origem do sangramento,
em HDA (esôfago, estômago e duodeno), HDB (cólon), HD do intestino delgado
ou HD obscura (quando não é possível determinar a origem).

FONTES DE HEMORRAGIA DIGESTIVA


Fontes de hemorragia digestiva alta
ÚLCERAS PÉPTICAS Úlceras pépticas são as causas mais comuns de HDA e
são responsáveis por cerca de 50% das internações por sangramento
gastrintestinal. Ao exame endoscópico, as características de uma úlcera
fornecem informações prognósticas importantes que orientam as decisões
terapêuticas subsequentes, como se pode observar nas Figuras 315-3 e 315-4.
Cerca de 20% dos pacientes com úlceras hemorrágicas têm alterações sugestivas
de risco mais alto para sangramento ativo ou um vaso visível sem hemorragia:
um terço desses pacientes apresenta episódios adicionais de hemorragia, que
requerem intervenção cirúrgica de urgência se forem tratados de forma
conservadora. Esses pacientes beneficiam-se com tratamento endoscópico por
eletrocoagulação bipolar, sonda térmica, tratamento com injeção (p. ex., álcool
absoluto, epinefrina a 1:10.000) e/ou clipes, resultando em reduções do
sangramento, da duração da internação hospitalar, da taxa de mortalidade e dos
custos. Por outro lado, os pacientes com úlceras de base limpa apresentam taxas
de sangramento recorrente próximas de zero. Quando suas condições são
estáveis e não há outras razões para hospitalização, esses pacientes podem
receber alta depois da endoscopia.
Estudos randomizados controlados documentaram que a infusão
intravenosa contínua de altas doses de um inibidor da bomba de prótons (IBP)
(bolus de 80 mg e infusão de 8 mg/h), destinada a manter o pH intragástrico > 6
e aumentar a estabilidade do coágulo, diminui o sangramento adicional e a
mortalidade em pacientes com úlceras de alto risco (sangramento ativo, vaso
visível não hemorrágico, coágulo aderente) quando efetuada depois do
tratamento endoscópico. Uma metanálise recente dos estudos randomizados
demonstrou que a administração intermitente de IBPs em doses altas não é
menos eficaz que a infusão contínua destes fármacos e, desse modo, pode ser
uma alternativa aplicável a essa população de pacientes. Os pacientes com
achados de risco baixo (mancha pigmentada plana ou base limpa) não
necessitam de tratamento endoscópico e recebem doses convencionais de um
IBP oral.
Cerca de 10 a 50% dos pacientes com úlceras hemorrágicas voltam a
sangrar no primeiro ano subsequente, caso não sejam adotadas medidas
profiláticas. A profilaxia das recidivas do sangramento enfatiza os três fatores
principais associados à patogênese das úlceras: Helicobacter pylori, anti-
inflamatórios não esteroides (AINEs) e acidez. A erradicação do H. pylori nos
pacientes com úlceras hemorrágicas ativo reduz os índices de recidiva a < 5%.
Quando um paciente em tratamento com AINE desenvolve úlcera hemorrágica,
este fármaco deve ser suspenso. Se for necessário usar AINEs, recomenda-se um
inibidor seletivo de cicloxigenase 2 (COX-2) combinado com um IBP, com base
nos resultados de um estudo randomizado. Pacientes com doença cardiovascular
estabilizada que desenvolvem úlceras hemorrágicas durante o uso de ácido
acetilsalicílico (AAS) em dose baixa como profilaxia secundária devem
recomeçar o tratamento com AAS tão logo seja possível depois do episódio de
sangramento (1-7 dias). Um estudo randomizado demonstrou que a falha em
reiniciar o tratamento com AAS não estava associada a qualquer diferença
significativa na recidiva do sangramento (5 vs. 10%) em 30 dias, mas houve um
aumento significativo da mortalidade (9 vs. 1%) em comparação com a
reinstituição imediata do tratamento com AAS. Por outro lado, o uso de AAS
provavelmente deve ser interrompido na maioria dos pacientes tratados com este
fármaco como profilaxia primária de eventos cardiovasculares que apresentam
um episódio de HDA. Os pacientes com úlceras hemorrágicas não relacionadas
com o H. pylori ou uso de AINEs devem continuar o tratamento com IBP
indefinidamente, tendo em vista a incidência de 42% de recidivas dos
sangramentos dentro de 7 anos, quando os pacientes não usam tratamento
protetor. As úlceras pépticas estão descritas no Capítulo 317.

LACERAÇÕES DE MALLORY-WEISS As lacerações de Mallory-Weiss são


responsáveis por cerca de 2 a 10% das internações por HDA. O histórico
clássico inclui vômitos, ânsia de vômitos ou tosse que antecedem à hematêmese,
especialmente em um paciente alcoolista. O sangramento originado dessas
lacerações, que em geral se localizam na porção gástrica da junção
gastresofágica, estanca espontaneamente em 80 a 90% dos pacientes e reincide
em apenas 0 a 10%. O tratamento endoscópico é indicado para as lacerações de
Mallory-Weiss com sangramento ativo. As lacerações de Mallory-Weiss estão
descritas no Capítulo 316.

VARIZES ESOFÁGICAS A porcentagem de internações hospitalares


motivadas por HDA secundária às varizes esofágicas é amplamente variada
(cerca de 2-40%), dependendo da população estudada. Os pacientes com
hemorragia por varizes têm prognósticos piores que os pacientes com HDA de
outras origens. A endoscopia de urgência (nas primeiras 12 horas) deve ser
realizada nos pacientes cirróticos com HDA e, se forem encontradas varizes
esofágicas, a ligadura endoscópica deve ser realizada e seguida de um fármaco
vasoativo intravenoso (octreotida, somatostatina, vapreotida ou terlipressina)
durante 2 a 5 dias. A combinação dos tratamentos endoscópico e clínico é mais
eficaz que um deles isoladamente para reduzir as recidivas do sangramento. Em
longo prazo, o tratamento com betabloqueadores não seletivos e ligadura
endoscópica é recomendável porque esta combinação é mais eficaz que um deles
isoladamente para reduzir as recidivas dos sangramentos de varizes esofágicas.
A colocação de um shunt intra-hepático transjugular portossistêmico (TIPS) é
recomendável aos pacientes com sangramentos persistentes ou recidivantes,
apesar dos tratamentos endoscópico e clínico. A colocação de um TIPS também
deve ser considerada no primeiro ou segundo dia da internação hospitalar por
sangramento variceal agudo nos pacientes com doença hepática avançada (p. ex.,
classe C de Child-Pugh com escore de Child-Pugg de 10-13), considerando que
estudos randomizados demonstraram reduções significativas da recidiva dos
sangramentos e da mortalidade, em comparação com os tratamentos endoscópico
e clínico convencionais.
A hipertensão portal também é responsável pela hemorragia de varizes
gástricas, varizes dos intestinos delgado e grosso, gastropatia hipertensiva portal
e enterocolopatia. A hemorragia de varizes gástricas devidas à cirrose é tratada
com injeção endoscópica de adesivo tissular (p. ex., n-butilcianoacrilato),
quando disponível; caso contrário, é colocado um TIPS.

DOENÇA EROSIVA Erosões são lesões detectadas à endoscopia, que se


limitam à mucosa e não causam sangramento significativo porque não há artérias
e veias na mucosa. As erosões do esôfago, estômago ou duodeno frequentemente
causam HDA leve e a gastrite e duodenite erosivas talvez sejam responsáveis por
cerca de 10 a 15% e a esofagite erosiva (atribuída principalmente à doença do
refluxo gastresofágico) por cerca de 1 a 10% das internações hospitalares
motivadas por HDA. A causa mais importante das erosões gástricas e duodenais
é o uso de AINEs: cerca de 50% dos pacientes em tratamento crônico com
AINEs podem desenvolver erosões gástricas. Outras causas possíveis de erosões
gástricas são ingestão de álcool, infecção por H. pylori e lesões da mucosa
associadas ao estresse.
A lesão da mucosa gástrica relacionada com o estresse ocorre apenas nos
pacientes extremamente enfermos, como os que sofreram traumatismo grave,
cirurgia de grande porte, queimaduras que atingem mais de um terço da
superfície corporal, doença intracraniana significativa ou doença clínica grave
(i.e., dependência do respirador, coagulopatia). A hemorragia grave não ocorre, a
menos que haja ulceração. A taxa de mortalidade desses pacientes é muito
elevada em consequência de suas doenças subjacentes graves.
A incidência de hemorragia por lesão da mucosa gástrica ligada ao estresse
diminuiu drasticamente nos últimos anos, mais provavelmente em decorrência
da melhoria dos cuidados prestados aos pacientes em estado crítico. A profilaxia
farmacológica para hemorragia pode ser considerada no caso dos pacientes de
alto risco mencionados anteriormente. Metanálises dos ensaios randomizados
indicam que os IBPs sejam mais eficazes que os antagonistas do receptor de H2
para reduzir HDA evidente e clinicamente importante, sem diferenças na
mortalidade ou incidência de pneumonia nosocomial.

OUTRAS CAUSAS Causas menos comuns de HDA são neoplasias, ectasias


vasculares (inclusive telangiectasias hemorrágicas hereditárias [Rendu-Osler-
Weber] e ectasias vasculares do antro gástrico [“estômago de melancia”]), lesão
de Dieulafoy (na qual um vaso anômalo da mucosa sangra a partir de uma falha
puntiforme da mucosa), gastropatia por prolapso (prolapso do segmento
proximal do estômago para dentro do esôfago causando regurgitação,
especialmente nos pacientes alcoolistas), fístulas aortomesentéricas e hemofilia
ou hemossuco pancreático (sangramento originado do ducto biliar ou
pancreático).

Causas de hemorragia do intestino delgado No passado, os pacientes que não


tinham uma causa detectável de HD à endoscopia digestiva alta ou colonoscopia
eram classificados como portadores de HD obscura. Com o advento de recursos
diagnósticos mais eficazes, cerca de 75% dos casos de HD que antes eram
classificados como obscuros agora são atribuídos ao intestino delgado situado
fora do alcance da endoscopia digestiva alta convencional. A HD originada do
intestino delgado pode ser responsável por até 5 a 10% dos casos de
sangramento gastrintestinal. Nos adultos > 40 anos, as causas mais comuns são
ectasias vasculares, neoplasias (p. ex., tumor estromal do trato GI, carcinoide,
adenocarcinoma, linfoma ou metástases) e erosões e úlceras causadas por
AINEs. Nas crianças, o divertículo de Meckel é a causa mais comum de HD
significativa originada do intestino delgado, mas sua frequência como causa de
sangramento diminui à medida que a idade aumenta. Outras causas detectadas
nos pacientes < 40 anos são doença de Crohn, síndromes de polipose ou
neoplasias. Causas menos frequentes de HD originada do intestino delgado são
infecções, isquemia, vasculites, varizes do intestino delgado, divertículos,
intussuscepção, lesões de Dieulafoy, fístulas aortoentéricas e cistos de
duplicação.
As ectasias vasculares do intestino delgado são tratadas por procedimentos
endoscópicos quando possível, tendo em vista estudos de observação sugestivos
de eficácia inicial. Contudo, as recidivas do sangramento são comuns: 45% ao
longo de um período médio de acompanhamento de 26 meses, de acordo com
uma revisão sistemática recente. Os compostos à base de
estrogênio/progesterona não são recomendados porque um estudo duplo-cego
multicêntrico não demonstrou qualquer efeito benéfico como profilaxia das
recidivas do sangramento. A octreotida é usada com base nos resultados
positivos evidenciados em séries de casos, mas não há estudos randomizados.
Um estudo randomizado mostrou benefícios significativos da talidomida e
aguarda posterior confirmação. Outras lesões isoladas (p. ex., tumores)
geralmente devem ser retiradas cirurgicamente.

Fontes de hemorragia do cólon As hemorroidas provavelmente são a causa


mais frequente de HDB; as fissuras anais também causam sangramento leve e
dor. Quando essas lesões anais localizadas, que raramente requerem internação
hospitalar do paciente, são excluídas, a causa mais comum de HDB dos adultos é
diverticulose, seguida de ectasias vasculares (especialmente no cólon proximal
dos pacientes > 70 anos), neoplasias (especialmente adenocarcinoma), colite
(isquêmica, infecciosa, doença de Crohn ou colite ulcerativa, colite ou úlceras
causadas por AINEs), sangramento pós-polipectomia e proctopatia pós-
irradiação. Causas mais raras são a síndrome da úlcera retal solitária,
traumatismo, varizes (mais comumente retais), hiperplasia nodular linfoide,
vasculites e fístulas aortocólicas. Em crianças e adolescentes, as causas mais
comuns de HD significativa originada do intestino grosso são doença
inflamatória intestinal e pólipos juvenis.
O sangramento diverticular tem início súbito, geralmente é indolor, por
vezes maciço e, com frequência, origina-se do cólon direito; uma hemorragia
crônica ou oculta não é típica. Os divertículos do intestino grosso param de
sangrar espontaneamente em cerca de 80 a 90% dos pacientes e, durante o
acompanhamento de longo prazo, voltam a sangrar em cerca de 15 a 40% dos
casos. Séries de casos sugerem que o tratamento endoscópico possa diminuir a
hemorragia recorrente nos casos raros em que a colonoscopia identifica o
divertículo hemorrágico específico. Quando a hemorragia diverticular é
demonstrada na angiografia, a embolização arterial transcateter por técnica
superseletiva interrompe a hemorragia na maioria dos pacientes. A ressecção
cirúrgica segmentar é recomendada aos pacientes com sangramento diverticular
persistente ou refratário ao tratamento conservador.
O sangramento originado de ectasias vasculares do intestino grosso pode
ser evidente ou oculto, tende a ser crônico e apenas em casos raros causa
instabilidade hemodinâmica significativa. O tratamento hemostático
endoscópico pode ser útil para a ressecção da ectasia vascular, bem como de
úlceras hemorrágicas discretas e hemorragia pós-polipectomia. A embolização
arterial transcateter também pode ser tentada nos casos de sangramento
persistente originado de ectasias vasculares e outras lesões discretas. Em geral, o
tratamento cirúrgico é necessário para controlar sangramento significativo
persistente ou recorrente originado de lesões do intestino grosso que não podem
ser tratadas clinicamente por endoscopia ou angiograficamente. Os pacientes
com síndrome de Heyde (ectasias vasculares hemorrágicas e estenose aórtica)
parecem melhorar com a substituição da valva aórtica.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Hemorragia digestiva
AVALIAÇÃO INICIAL
A determinação da frequência cardíaca e da pressão arterial é o melhor meio
para avaliar inicialmente um paciente com HD. O sangramento clinicamente
significativo causa alterações posturais da frequência cardíaca ou pressão
arterial, taquicardia e, por fim, hipotensão com o paciente deitado. Por outro
lado, a hemoglobina não diminui rapidamente nos casos de HD aguda em
razão das reduções proporcionais do volume plasmático e das contagens de
hemácias (os pacientes perdem sangue total). Assim, a hemoglobina pode
estar normal ou apenas levemente diminuída à apresentação inicial de um
episódio hemorrágico grave. À medida que o líquido extravascular entra no
espaço vascular para equilibrar o volume, a hemoglobina diminui, porém este
processo pode levar até 72 horas. A transfusão é recomendada quando a
hemoglobina diminui abaixo de 7 g/dL, com base em um amplo ensaio
randomizado demostrando que esta estratégia de transfusão restritiva reduz a
hemorragia recorrente e a mortalidade por HDA, quando comparada a um
limiar de transfusão de 9 g/dL. Pacientes com HD crônica e lenta podem
apresentar valores muito baixos de hemoglobina, apesar da pressão arterial e
frequência cardíaca normais. Com o desenvolvimento de anemia ferropriva,
o volume corpuscular médio diminui e a amplitude de distribuição
eritrocitária aumenta.

DIFERENCIAÇÃO ENTRE HDA E HDB


Hematêmese sugere que a causa do sangramento seja uma HDA. Melena
indica a presença de sangue no trato digestivo há > 14 horas e por até 3 a 5
dias. Quanto mais proximal for o local da hemorragia, mais provável será a
ocorrência de melena. A hematoquesia geralmente representa uma fonte de
sangramento no trato digestivo inferior, embora uma lesão no trato digestivo
superior possa sangrar tão rapidamente que o sangue ultrapasse o intestino
antes que a melena desenvolva-se. Quando é um sintoma inicial da HDA, a
hematoquesia está associada à instabilidade hemodinâmica e queda da
hemoglobina. As lesões hemorrágicas do intestino delgado podem
apresentar-se com melena ou hematoquesia. Outros indícios de HDA incluem
peristalse intestinal hiperativa e elevação da ureia sanguínea (devido à
depleção de volume e à absorção de proteínas sanguíneas no intestino
delgado).
Em cerca de 15% dos pacientes com HDA referindo hematoquezia
clinicamente grave, o aspirado nasogástrico pode não ter sangue. Bile tingida
de sangue não exclui HDA, porque a descrição de bile no material aspirado
não é confiável em cerca de 50% dos casos. A pesquisa de sangue oculto no
aspirado que não exibe sangue macroscópico é inútil.

AVALIAÇÃO E TRATAMENTO DA HDA (FIG. 44-1)


As características basais que preveem recidiva do sangramento e morte são
instabilidade hemodinâmica (taquicardia ou hipotensão), idade avançada e
comorbidades. Protocolos de avaliação do risco podem ser usados para
detectar os pacientes em risco muito pequeno. A alta do serviço de
emergência para tratamento ambulatorial foi recomendada para os pacientes
com escore de Glasgow-Blatchford de 0-1 ou 0-2 (variação possível de 0-23,
Tab. 44-1) para os pacientes < 70 anos porque, quando são hospitalizados, <
1% desses indivíduos requerem intervenção e < 0,5% morrem.
FIGURA 44-1 Algoritmo recomendado para pacientes com hemorragia digestiva alta aguda com
base nos resultados da endoscopia. IBP, inibidor da bomba de prótons; IV, intravenoso.

TABELA 44-1 ■ Escore de Glasgow-Blatchford


Marcador à admissão Escore
Ureia sanguínea (mg/dL)
39 a < 48 2
48 a < 60 3
60 a < 149 4
≥ 149 6
Hemoglobina (g/dL)
12,0 a < 13.0 (homens); 10,0 a < 12,0 (mulheres) 1
10,0 a < 12,0 (homens) 3
< 10,0 6
Pressão arterial sistólica (mmHg)
100-109 1
90-99 2
< 90 3
Frequência cardíaca (batimentos por minuto)
≥ 100 1
Outros marcadores
Melena 1
Síncope 2
Doença hepática 2
Insuficiência cardíaca 2
A infusão de IBP pode ser considerada no momento da apresentação:
isto reduz as complicações da úlcera de alto risco (p. ex., hemorragia ativa) e
a necessidade de tratamento endoscópico, mas não melhora a evolução
clínica, inclusive sangramentos subsequentes, intervenção cirúrgica ou morte.
A administração de 250 mg de eritromicina (um fármaco procinético) por via
intravenosa cerca de 30 minutos antes da endoscopia também pode ser
considerada para facilitar a visualização durante o exame: esta medida
assegura um aumento discreto e significativo da positividade diagnóstica e
reduz a necessidade de transfusões de hemácias. Os pacientes cirróticos com
HDA devem receber um antibiótico (quinolona ou ceftriaxona) e um fármaco
vasoativo intravenoso ao chegarem ao hospital, mesmo antes da endoscopia.
Os antibióticos controlam as infecções bacterianas e diminuem as recidivas
do sangramento e a mortalidade, enquanto os fármacos vasoativos podem
facilitar o controle do sangramento nas primeiras 12 horas depois da
apresentação inicial.
A endoscopia alta deve ser realizada em até 24 horas na maioria dos
pacientes com HDA. Os pacientes de alto risco (p. ex., instabilidade
hemodinâmica, cirrose) podem ser beneficiados pela endoscopia mais
urgente em até 12 horas. A endoscopia precoce também é benéfica para
pacientes de baixo risco para facilitar a tomada de decisões (p. ex., alta
hospitalar). Os pacientes com sangramento expressivo e achados
endoscópicos de alto risco (p. ex., varizes, úlceras com sangramento ativo, ou
um vaso visível) são beneficiados pelo tratamento endoscópico hemostático,
enquanto os pacientes com lesões de baixo risco (p. ex., úlceras com bases
limpas, erosões, lacerações de Mallory-Weiss sem sangramento) com sinais
vitais estáveis, hemoglobina normal e nenhuma outra comorbidade clínica
podem receber alta para casa.

AVALIAÇÃO E TRATAMENTO DA HDB (FIG. 44-2)


Pacientes com hematoquesia e instabilidade hemodinâmica devem ser
submetidos à endoscopia digestiva alta para descartar uma lesão do trato
digestivo superior antes da avaliação do trato digestivo inferior.
FIGURA 44-2 Algoritmo recomendado para pacientes com hemorragia digestiva baixa aguda.

A colonoscopia realizada depois da administração de uma solução de


lavagem por via oral é o procedimento de escolha para a maioria dos
pacientes internados com HDB, a menos que o sangramento seja profuso,
caso em que a angiografia é recomendada. A angiotomografia
computadorizada (angio-TC) é recomendada frequentemente antes da
angiografia para documentar indícios de sangramento ativo e sua origem. A
sigmoidoscopia é usada principalmente nos pacientes com < 40 anos com
sangramento mínimo. Para os pacientes que não tiveram uma causa
identificada na colonoscopia, os estudos de imagem devem ser realizados. A
cintilografia com hemácias marcadas com 99mTc permite a varredura repetida
por até 24 horas e pode identificar a localização geral do sangramento.
Entretanto, as cintilografias com radionuclídeos devem ser interpretadas com
cautela porque os resultados, especialmente nas imagens tardias, são
altamente variáveis. A angio-TC com multidetectores é provavelmente mais
esclarecedora que a cintilografia e tem sido utilizada com frequência
crescente em seu lugar. Na HDB ativa, a angiografia pode detectar o local do
sangramento (extravasamento de contraste para o interior do intestino) e
permite o tratamento por embolização.

AVALIAÇÃO E TRATAMENTO DAS HEMORRAGIAS DO


INTESTINO DELGADO OU DA HD OBSCURA
Para os pacientes com sangramento profuso supostamente originado do
intestino delgado, as diretrizes atuais recomendam angiografia como exame
inicial, reservando a angio-TC ou a cintilografia com hemácias marcadas por
99mTc antes da angiografia quando as condições clínicas do paciente

permitem. Para os demais casos, pode-se considerar a repetição das


endoscopias digestivas alta e baixa como avaliação inicial, porque os
procedimentos endoscópicos repetidos identificam a causa do sangramento
em até cerca de 25% das endoscopias altas e colonoscopias; uma
enteroscopia de propulsão – geralmente realizada com um colonoscópico
pediátrico para examinar todo o duodeno e o jejuno proximal – pode
substituir a endoscopia digestiva alta convencional repetida. Quando os
procedimentos endoscópicos repetidos são negativos, deve-se realizar uma
avaliação de todo o intestino delgado, geralmente por videoendoscopia com
cápsula. Uma revisão sistemática dos estudos comparativos demonstrou que
a positividade dos “achados clinicamente significativos” é maior com a
enteroscopia por cápsula que com a enteroscopia propulsiva (56 vs. 26%) ou
a radiografia contrastada do intestino delgado (42 vs. 6%). Entretanto, a
endoscopia capsular não permite o exame completo do intestino delgado, a
coleta de amostras de tecidos ou a realização de qualquer intervenção
terapêutica.
A enterotomografia computadorizada pode ser realizada inicialmente em
substituição à videoendoscopia capsular nos pacientes com possível
estreitamento do intestino delgado (p. ex., estenose, cirurgia ou radioterapia
pregressa, doença de Crohn) e pode ser realizada depois de uma
videoendoscopia capsular negativa para investigar suspeita de HD originada
do intestino delgado, considerando que sua sensibilidade é maior para
detectar massas localizadas neste segmento do trato digestivo.
Quando a endoscopia capsular tem resultado positivo, o tratamento
subsequente é determinado pelo que foi demonstrado no exame. Quando a
endoscopia capsular é negativa, as recomendações atuais sugerem que os
pacientes possam ser acompanhados ou, quando sua evolução clínica exige
(p. ex., necessidade de transfusões), podem ser submetidos a exames
adicionais. A enteroscopia “profunda” (enteroscopia por balão duplo, balão
simples ou espiral) geralmente é o próximo exame realizado nos casos de HD
clinicamente significativa documentada ou supostamente originada do
intestino delgado, porque esta técnica permite ao endoscopista examinar,
obter amostras e realizar procedimentos terapêuticos em grande parte ou em
todo o intestino delgado. Outras técnicas de exame de imagem utilizadas
ocasionalmente na avaliação da HD obscura incluem cintilografia com
hemácias marcadas por 99mTc, angio-TC, angiografia e cintilografia com
pertecnetato-99mTc para demonstrar divertículo de Meckel (especialmente em
pacientes jovens). Caso todos os exames sejam inconclusivos, a endoscopia
intraoperatória está indicada para os pacientes com sangramento persistente
ou recorrente grave, que necessitem de transfusões repetidas.

TESTE DE SANGUE OCULTO NAS FEZES POSITIVO


O teste de sangue oculto nas fezes é recomendável apenas como rastreamento
para câncer colorretal dos adultos a partir de 50 anos de idade com risco
médio. Um teste positivo indica a necessidade de fazer colonoscopia.
Quando a avaliação do cólon é negativa, o acompanhamento posterior não é
recomendado, salvo na presença de anemia ferropriva ou sintomas
gastrintestinais.

LEITURAS ADICIONAIS
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Garcia-Tsao G et al: Portal hypertensive bleeding in cirrhosis: Risk stratification,
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45
Icterícia
Savio John, Daniel S. Pratt

Icterícia é uma coloração amarelada dos tecidos do corpo resultante da


deposição de bilirrubina. A deposição de bilirrubina nos tecidos ocorre apenas
quando há hiperbilirrubinemia sérica e é um sinal de doença hepática ou, o que é
menos comum, de um distúrbio hemolítico ou do metabolismo da bilirrubina. O
grau de elevação da bilirrubina sérica pode ser estimado pelo exame físico.
Aumentos discretos do nível sérico de bilirrubina são detectados mais facilmente
pelo exame das escleróticas do olho para detectar icterícia. As escleróticas têm
afinidade especial por bilirrubina em razão de seu teor alto de elastina e a
existência de icterícia das escleróticas indica que o nível sérico de bilirrubina
seja de 51 μmol/L(3 mg/dL) no mínimo. A capacidade de detectar icterícia das
escleróticas é comprometida quando a sala de exame possui iluminação
fluorescente. Quando o médico suspeita de icterícia das escleróticas, outra área a
ser examinada é a região sublingual. À medida que os níveis séricos de
bilirrubina aumentam, a pele torna-se amarelada nos pacientes de pele clara e
mesmo esverdeada quando o processo é de longa duração; a coloração
esverdeada é produzida por oxidação da bilirrubina em biliverdina.
O diagnóstico diferencial da coloração amarelada da pele é muito restrito.
Além da icterícia, devem ser considerados carotenodermia, uso do fármaco
quinacrina e exposição excessiva aos fenóis. Carotenodermia é uma coloração
amarelada conferida à pele de indivíduos saudáveis que consomem quantidades
excessivas de vegetais e frutas que contêm caroteno, como cenoura, vegetais
folhosos, abóbora, pêssego e laranja. Na icterícia, a coloração amarela da pele
distribui-se uniformemente pelo corpo, enquanto, na carotenodermia o pigmento
concentra-se nas palmas, plantas, fronte e pregas nasolabiais. A carotenodermia
pode ser diferenciada da icterícia pela ausência de pigmentação das escleróticas.
A quinacrina provoca uma coloração amarelada da pele em 4 a 37% dos
pacientes tratados.
Outro indicador sensível do aumento de bilirrubina sérica é o escurecimento
da urina, que decorre da excreção renal de bilirrubina conjugada. Com
frequência, os pacientes descrevem a urina como se tivesse cor de chá ou de
refrigerantes do tipo cola. Bilirrubinúria indica elevação da fração direta da
bilirrubina sérica e, portanto, presença de doença hepática.
Os níveis séricos de bilirrubina aumentam quando há desequilíbrio entre a
produção e a depuração de bilirrubina. Uma avaliação racional do paciente
ictérico requer a compreensão de como a bilirrubina é produzida e metabolizada.

PRODUÇÃO E METABOLISMO DA BILIRRUBINA


(Ver Cap. 331) A bilirrubina – um pigmento tetrapirrólico – é um produto da
degradação do heme (ferroprotoporfirina IX). Cerca de 80 a 85% da quantidade
total de 4 mg/kg de peso corporal de bilirrubina produzida diariamente são
derivados da decomposição da hemoglobina das hemácias senescentes. O
restante provém de células eritroides destruídas prematuramente na medula
óssea e do turnover das hemoproteínas, como a mioglobina e os citocromos,
encontradas nos tecidos corporais.
A formação da bilirrubina ocorre nas células reticuloendoteliais,
principalmente no baço e fígado. A primeira reação, catalisada pela enzima
microssômica hemeoxigenase, cliva por reação oxidativa a ponte α do grupo
porfirina e abre o anel do heme. Os produtos finais dessa reação são biliverdina,
monóxido de carbono e ferro. A segunda reação, catalisada pela enzima
citosólica biliverdina-redutase, reduz a ponte de metileno central da biliverdina e
a converte em bilirrubina. A bilirrubina formada nas células reticuloendoteliais é
praticamente insolúvel em água em razão de uma ligação de hidrogênio interna
firme entre a fração hidrossolúvel da bilirrubina – isto é, a ligação dos grupos
carboxila de ácido propiônico na metade dipirrólica da molécula com os grupos
imino e lactâmico da metade oposta. Essa configuração bloqueia o acesso de
solventes aos resíduos polares da bilirrubina e coloca os resíduos hidrofóbicos
voltados para fora. Para ser transportada no sangue, a bilirrubina deve estar
solubilizada. A solubilização é obtida pela ligação não covalente reversível da
bilirrubina à albumina. A bilirrubina não conjugada ligada a albumina é
transportada ao fígado. Nesse órgão, a bilirrubina – mas não a albumina – é
captada pelos hepatócitos por meio de um processo que, ao menos em parte,
envolve transporte pela membrana mediado por carreador. Até hoje, não foi
identificado um transportador específico da bilirrubina (Cap. 331, Fig. 331-1).
Depois de entrar no hepatócito, a bilirrubina não conjugada é ligada no
citosol a diversas proteínas, incluindo a superfamília da glutationa S-transferase.
Essas proteínas atuam tanto para reduzir o efluxo de bilirrubina para o soro
quanto para disponibilizá-la para conjugação. No retículo endoplasmático, a
bilirrubina é tornada solúvel em água por conjugação com o ácido glicurônico –
um processo que quebra as ligações internas de hidrogênio hidrofóbicas e forma
monoglicuronídeo e diglicuronídeo de bilirrubina. A conjugação do ácido
glicurônico com a bilirrubina é catalisada pela bilirrubina uridina-difosfato-
glicuronosiltransferase (UDPGT). Os conjugados de bilirrubina, agora
hidrofílicos, difundem-se do retículo endotelial para a membrana canalicular,
onde o monoglicuronídeo e o diglicuronídeo de bilirrubina são ativamente
transportados para dentro da bile canalicular por um mecanismo dependente de
energia, que envolve a proteína associada à resistência a múltiplos fármacos 2
(MRP2). Uma parte dos glicuronídeos de bilirrubina é transportada para dentro
dos sinusoides e para a circulação portal por meio da MRP3 e está sujeita à
recaptação pelo hepatócito por ação das proteínas 1B1 e 1B3 de transporte de
ânions orgânicos sinusoidal (OATP1B1 e OATP1B3). A bilirrubina conjugada
excretada dentro da bile drena para o duodeno e atravessa inalterada a parte
proximal do intestino delgado. A bilirrubina conjugada não é reabsorvida pela
mucosa intestinal em razão de sua hidrofobicidade e do seu peso molecular alto.
Quando atinge a parte distal do íleo e o intestino grosso, a bilirrubina conjugada
é hidrolisada em bilirrubina não conjugada pelas β-glicuronidases bacterianas. A
bilirrubina não conjugada é reduzida pelas bactérias do intestino normal para
formar um grupo de tetrapirrois incolores conhecidos como urobilinogênios e
outros produtos, cuja composição e quantidades relativas dependem da flora
bacteriana existente. Cerca de 80 a 90% desses produtos são excretados nas
fezes, quer na forma inalterada, quer oxidados em derivados alaranjados
denominados urobilinas. Os 10 a 20% restantes dos urobilinogênios entram no
ciclo entero-hepático. Uma pequena fração (geralmente < 3 mg/dL) escapa da
captação hepática e é filtrada pelos glomérulos renais, sendo excretada na urina.
A excreção urinária aumentada de urobilinogênios pode ser causada pelo
aumento da produção de bilirrubina, aumento da reabsorção hepática de
urobilinogênio originado do cólon, ou eliminação hepática reduzida de
urobilinogênio.

DOSAGEM DA BILIRRUBINA SÉRICA


Os termos bilirrubina direta e indireta – isto é, bilirrubina conjugada e não
conjugada, respectivamente – se baseiam na reação original de van den Bergh.
Essa técnica, ou uma variação dela, ainda é usada em muitos laboratórios de
análise clínica para determinar o nível sérico de bilirrubina. Nesse exame, a
bilirrubina é exposta ao ácido sulfanílico diazotizado, dividindo-se em dois
azopigmentos dipirrilmetenos relativamente estáveis, com absorção máxima a
540 nm, o que permite a análise fotométrica. A fração direta é a que reage com o
ácido sulfanílico diazotizado na ausência de uma substância aceleradora, como o
álcool. A fração direta fornece um valor aproximado de bilirrubina conjugada no
soro. A bilirrubina sérica total é a quantidade que reage depois da adição de
álcool. A fração indireta é a diferença entre os níveis das bilirrubinas total e
direta e é uma estimativa da bilirrubina não conjugada no soro. A bilirrubina não
conjugada também reage com os reagentes diazo, embora lentamente, mesmo
quando o acelerador não está presente. Desse modo, a bilirrubina indireta
calculada pode subestimar a quantidade total de bilirrubina não conjugada na
circulação.
Com o método de van den Bergh, a concentração sérica normal de
bilirrubina geralmente fica na faixa de 17 a 26 μmol/L (1-1,5 mg/dL). As
concentrações totais de bilirrubina sérica variam de 3,4 a 15,4 μmol/L (0,2-0,9
mg/dL) em 95% de uma população normal. A hiperbilirrubinemia indireta (ou
não conjugada) ocorre quando a fração direta representa < 15% da bilirrubina
sérica total. A presença de quantidades ainda que pequenas de bilirrubina
realmente conjugada no soro sugere uma doença hepatobiliar significativa.
Como a hiperbilirrubinemia direta (ou conjugada) sempre está associada à
bilirrubinúria (exceto em presença de delta bilirrubina nos casos de colestase
prolongada, quando a icterícia é evidente), a detecção de bilirrubina na urina por
meio de uma fita de teste é extremamente útil para confirmar a existência de
hiperbilirrubinemia conjugada em um paciente com elevação discreta da fração
direta.
Várias técnicas novas, embora de realização menos conveniente,
aumentaram consideravelmente nossa compreensão sobre o metabolismo da
bilirrubina. Em primeiro lugar, estudos que utilizaram esses métodos
demostraram que, em pessoas normais ou nos pacientes com síndrome de
Gilbert, quase 100% da bilirrubina sérica não está conjugada; < 3% são
formados de bilirrubina monoconjugada. Em segundo lugar, nos pacientes
ictéricos com doença hepatobiliar, a concentração sérica de bilirrubina total
medida por esses métodos mais precisos é menor que os valores encontrados
com os métodos diazo. Esse achado sugere que há compostos diazo-positivos
além da bilirrubina no soro dos pacientes com doença hepatobiliar. Em terceiro
lugar, esses exames indicam que, nos pacientes ictéricos com doença
hepatobiliar, os monoglicuronídeos da bilirrubina predominem sobre os
diglicuronídeos. Em quarto lugar, parte da fração de bilirrubina direta inclui a
bilirrubina conjugada que está ligada de forma covalente à albumina. Essa fração
de bilirrubina conjugada ligada à albumina (fração delta, bilirrubina delta ou
biliproteína) representa uma fração importante da bilirrubina sérica total dos
pacientes com colestase e doenças hepatobiliares. A bilirrubina delta é produzida
no soro quando a excreção hepática dos glicuronídeos de bilirrubina está
prejudicada e os glicuronídeos acumulam no soro. Em razão de sua estreita
ligação à albumina, a taxa de depuração da delta bilirrubina do soro aproxima-se
da meia-vida da albumina (12-14 dias) em vez da meia-vida curta da bilirrubina
(cerca de 4 horas).
A meia-vida prolongada da bilirrubina conjugada ligada à albumina é
responsável por dois fatos anteriormente enigmáticos, observados em indivíduos
ictéricos com doença hepática: (1) que alguns pacientes com hiperbilirrubinemia
conjugada não apresentam bilirrubinúria durante a fase de recuperação de suas
doenças porque a delta bilirrubina, embora conjugada, está ligada de forma
covalente à albumina e, por conseguinte, não é filtrada pelos glomérulos renais,
e (2) que o nível elevado de bilirrubina sérica diminui mais lentamente que o
esperado em alguns pacientes que, de outra forma, parecem estar se recuperando
de maneira satisfatória. Em um período tardio da fase de recuperação dos
distúrbios hepatobiliares, toda a bilirrubina conjugada pode estar na forma ligada
à albumina.

DOSAGEM DA BILIRRUBINA URINÁRIA


A bilirrubina não conjugada sempre está ligada à albumina no soro e não é
filtrada pelo rim nem encontrada na urina. A bilirrubina conjugada é filtrada no
glomérulo, sendo a maior parte reabsorvida pelos túbulos proximais; uma
pequena fração é excretada na urina. Qualquer bilirrubina encontrada na urina é
conjugada. A existência de bilirrubinúria detectada na urina por uma fita de teste
(Ictotest) indica elevação da fração conjugada da bilirrubina, que não pode ser
excretada pelo fígado e indica a presença de doença hepatobiliar. É possível
haver resultado falso-negativo em pacientes com colestase prolongada em razão
da predominância de delta bilirrubina, que se liga covalentemente à albumina e,
por esse motivo, não é filtrada pelos glomérulos renais.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Icterícia
O objetivo deste capítulo não é realizar uma revisão enciclopédica de todos
os quadros que causam icterícia. A intenção é oferecer um arcabouço que
auxilie o médico a avaliar o paciente com icterícia de forma lógica (Fig. 45-
1).

FIGURA 45-1 Avaliação do paciente com icterícia. ALT, alanina-aminotransferase; AAM, anticorpo
antimitocondrial; FAN, fator antinuclear; AST, aspartato-aminotransferase; CMV, citomegalovírus;
EBV, vírus Epstein-Barr; CPRE, colangiopancreatografia retrógrada endoscópica; CPRM,
colangiopancreatografia por ressonância magnética; AML, anticorpo antimúsculo liso; EPS,
eletroforese de proteínas séricas; TC, tomografia computadorizada.

Em resumo, a etapa inicial é realizar os exames de sangue apropriados


para determinar se o paciente apresenta elevação isolada da bilirrubina sérica.
Se for esse o caso, essa elevação é formada por aumento da fração não
conjugada ou da conjugada? Quando a hiperbilirrubinemia é acompanhada
de outras anormalidades dos exames hepáticos, o médico deve estabelecer se
o distúrbio é hepatocelular ou colestático. Se for colestático, ele é intra ou
extra-hepático? Todas essas questões podem ser respondidas com anamnese
minuciosa, exame físico e interpretação correta de exames e procedimentos
laboratoriais e radiológicos.
A bilirrubina presente no soro representa um equilíbrio entre o estímulo
decorrente da produção de bilirrubina e a remoção hepática/biliar do
pigmento. A hiperbilirrubinemia pode resultar (1) de produção excessiva de
bilirrubina; (2) de deficiência na captação, conjugação ou excreção de
bilirrubina; ou (3) de regurgitação da bilirrubina não conjugada ou conjugada
a partir de hepatócitos ou ductos biliares danificados. O aumento na
bilirrubina não conjugada no soro resulta de produção excessiva, da captação
reduzida ou da conjugação da bilirrubina. O aumento na bilirrubina
conjugada é causado por redução da excreção para dentro dos dúctulos
biliares ou por extravasamento retrógrado do pigmento. As etapas iniciais da
avaliação do paciente com icterícia devem determinar (1) se a
hiperbilirrubinemia é predominantemente de origem conjugada ou não
conjugada, e (2) se outros exames hepáticos bioquímicos são anormais. A
interpretação lógica de alguns dados limitados permite uma avaliação
racional do paciente (Fig. 45-1). A seguir, abordaremos exclusivamente a
investigação de pacientes adultos com icterícia.

ELEVAÇÃO ISOLADA DA BILIRRUBINA SÉRICA


Hiperbilirrubinemia indireta (ou não conjugada) O diagnóstico diferencial
da hiperbilirrubinemia não conjugada isolada não é amplo (Tab. 45-1). O
essencial é determinar se o paciente está sofrendo um processo hemolítico
que resulte na produção excessiva de bilirrubina (distúrbios hemolíticos e
eritropoiese ineficaz) ou se há comprometimento da captação/conjugação
hepática de bilirrubina (efeito de um ou mais fármacos ou distúrbios
genéticos).

TABELA 45-1 ■ Causas de hiperbilirrubinemia isolada


I. Hiperbilirrubinemia indireta
A. Distúrbios hemolíticos
B. Eritropoiese ineficaz
C. Produção aumentada de bilirrubina
1. Transfusão sanguínea maciça
2. Reabsorção de hematoma
D. Fármacos
1. Rifampicina
2. Probenecida
3. Ribavirina
4. Inibidores da protease (atazanavir, indinavir)
E. Doenças hereditárias
1. Sindrome de Crigler-Najjar tipos I e II
2. Síndrome de Gilbert
II. Hiperbilirrubinemia direta (doenças hereditárias)
A. Síndrome de Dubin-Johnson
B. Síndrome de Rotor

Os distúrbios hemolíticos que produzem heme em excesso podem ser


hereditários ou adquiridos. Entre os distúrbios hereditários estão esferocitose,
anemia falciforme, talassemia e deficiência de enzimas de glóbulos
vermelhos, como a piruvato-cinase e a glicose-6-fosfato-desidrogenase.
Nessas doenças, os níveis de bilirrubina raramente excedem 86 μmol/L (5
mg/dL). Podem ocorrer níveis mais altos quando há disfunção renal ou
hepatocelular coexistente, ou em caso de hemólise aguda, como na crise
falcêmica. Ao avaliar a icterícia em pacientes com hemólise crônica, é
importante lembrar a elevada incidência de cálculos biliares pigmentados
(bilirrubinato de cálcio) nesses pacientes, o que aumenta a probabilidade de
coledocolitíase como explicação alternativa para a hiperbilirrubinemia.
Entre os distúrbios hemolíticos adquiridos estão anemia hemolítica
microangiopática (p. ex., síndrome hemolítico-urêmica), hemoglobinúria
paroxística noturna, anemia ligada à acantocitose, hemólise imune e
infecções parasitárias, incluindo malária e babesiose. A eritropoiese ineficaz
ocorre nas deficiências de cobalamina, folato e ferro. A reabsorção de
hematomas e as transfusões massivas de sangue podem resultar em aumento
da liberação de hemoglobina e produção excessiva de bilirrubina.
Na ausência de hemólise, o médico deve considerar a possibilidade de
haver algum problema com a captação hepática ou com a conjugação da
bilirrubina. Determinados fármacos, como rifampicina e probenecida, podem
causar hiperbilirrubinemia não conjugada por diminuição da captação
hepática de bilirrubina. Três doenças genéticas diminuem a conjugação da
bilirrubina: síndrome de Crigler-Najjar tipos I e II e síndrome de Gilbert. A
síndrome de Crigler-Najjar tipo I é um distúrbio excepcionalmente raro
encontrado em neonatos e caracterizado por icterícia grave (bilirrubina > 342
μmol/L [> 20 mg/dL]) e disfunção neurológica causada pela icterícia nuclear,
que frequentemente leva à morte na lactância ou segunda infância. Esses
pacientes não tem qualquer atividade da bilirrubina-UDPGT; eles são
absolutamente incapazes de conjugar bilirrubina e, por esta razão, não
conseguem excretá-la.
A síndrome de Crigler-Najjar tipo II é um pouco mais comum. Os
pacientes vivem até a idade adulta com níveis séricos de bilirrubina entre 103
e 428 μmol/L (6 e 25 mg/dL). Nesses casos, mutações do gene da bilirrubina
UDPGT da bilirrubina diminuem a atividade da enzima – nos casos típicos,
≤10%. A atividade da bilirrubina UDPGT pode ser induzida pela
administração de fenobarbital, que consegue reduzir os níveis séricos de
bilirrubina nesses pacientes. Apesar da icterícia acentuada, esses pacientes
geralmente sobrevivem até a idade adulta, embora estejam suscetíveis à
icterícia nuclear quando estão sob estresse de doença intercorrente ou
cirurgia.
A síndrome de Gilbert também se caracteriza por redução da conjugação
da bilirrubina em razão da atividade baixa da bilirrubina-UDPGT (nos casos
típicos, 10-35% of normal). Os pacientes com síndrome de Gilbert
apresentam hiperbilirrubinemia não conjugada leve com níveis séricos quase
sempre < 103 μmol/L (6 mg/dL). Os níveis séricos podem oscilar e a icterícia
frequentemente é detectada apenas nos períodos de estresse, doença
coexistente, ingestão de álcool ou jejum. Ao contrário das síndromes de
Crigler-Najjar, a síndrome de Gilbert é muito comum. A incidência relatada é
de 3 a 7% da população, com predomínio no sexo masculino a uma razão de
1,5-7:1.

Hiperbilirrubinemia direta (ou conjugada) A hiperbilirrubinemia conjugada


elevada aparece em dois distúrbios hereditários raros: síndrome de Dubin-
Johnson e síndrome de Rotor (Tab. 45-1). Nessas duas síndromes, os
pacientes têm icterícia assintomática. Na síndrome de Dubin-Johnson, a
anormalidade consiste em mutações no gene MRP2. Esses pacientes
apresentam alteração na excreção da bilirrubina nos ductos biliares. A
síndrome de Rotor pode representar a deficiência dos principais
transportadores hepáticos de recaptação dos fármacos OATP1B1 e
OATP1B3. A diferenciação dessas síndromes é possível, mas clinicamente
desnecessária em razão de sua natureza benigna.

ELEVAÇÃO DA BILIRRUBINA SÉRICA COM OUTRAS


ANORMALIDADES DOS EXAMES HEPÁTICOS
O restante deste capítulo é dedicado à avaliação dos pacientes com
hiperbilirrubinemia conjugada no contexto de outras anormalidades da
função hepática. Esse grupo pode ser subdividido em dois: pacientes com
processo hepatocelular primário e pacientes com colestase intra ou extra-
hepática. Essa diferenciação baseada na anamnese e no exame físico, assim
como no padrão das anormalidades encontradas nas provas hepáticas,
determina a investigação clínica (Fig. 45-1).

História A história clínica completa talvez seja a parte mais importante da


avaliação do paciente com icterícia de origem desconhecida. Entre as
considerações importantes estão o uso de ou a exposição a qualquer
substância química ou fármaco, quer sejam prescritos pelo médico,
adquiridos sem prescrição, substâncias usadas em medicina complementares
ou alternativa (p. ex., fitoterápicos e compostos vitamínicos), ou outros
fármacos como esteroides anabolizantes. O paciente deve ser
cuidadosamente interrogado sobre possíveis exposições parenterais, como
transfusões, uso de drogas intravenosas e intranasais, tatuagens e atividade
sexual. Os seguintes fatores também são importantes: história de viagem
recente; exposição a pessoas ictéricas ou a alimentos possivelmente
contaminados; exposição ocupacional a hepatotoxinas; ingestão de álcool;
duração da icterícia; e presença de quaisquer sinais ou sintomas associados
como artralgias, mialgias, exantema, anorexia, perda ponderal, dor
abdominal, febre, prurido e alterações da urina e das fezes. Embora nenhuma
dessas últimas manifestações seja específica de qualquer distúrbio, qualquer
uma delas pode sugerir um diagnóstico em particular. História de artralgias e
mialgias antecedendo a icterícia sugere hepatite, seja viral ou causada por
fármacos. A icterícia associada a início súbito de dor intensa no quadrante
superior direito e calafrios sugere coledocolitíase e colangite ascendente.

Exame físico A avaliação geral deve incluir o estado nutricional do paciente.


Definhamento dos músculos temporais e proximais sugere doenças
prolongadas, como câncer de pâncreas ou cirrose. Os sinais de doença
hepática crônica, incluindo aranhas vasculares, eritema palmar, ginecomastia,
cabeça de medusa, contraturas de Dupuytren, aumento da glândula parótida e
atrofia testicular, são comumente observados na cirrose alcoólica avançada
(de Laennec) e, às vezes, em outros tipos de cirrose. Um linfonodo
supraclavicular esquerdo aumentado (nódulo de Virchow) ou um linfonodo
periumbilical (nódulo da irmã Maria José) sugere câncer abdominal. A
distensão venosa jugular, um sinal de insuficiência cardíaca direita, sugere
congestão hepática. Nos casos de cirrose avançada, é possível encontrar
derrame pleural à direita em pacientes sem ascite clinicamente evidente.
O exame do abdome deve avaliar o tamanho e a consistência do fígado,
se o baço está palpável e, portanto, aumentado e se há ascite. Os pacientes
com cirrose podem ter aumento do lobo hepático esquerdo, percebido abaixo
do processo xifoide, e aumento do baço. Um fígado nodular nitidamente
aumentado ou a evidência de massa abdominal sugere câncer. A detecção de
fígado aumentado e doloroso indica hepatite viral ou alcoólica, processo
infiltrativo como amiloidose ou, com menor frequência, congestão hepática
aguda secundária à insuficiência cardíaca direita. Dor intensa no quadrante
superior direito com interrupção da respiração durante a inspiração (sinal de
Murphy) sugere colecistite. Ascite em presença de icterícia indica cirrose ou
câncer com disseminação peritoneal.

Exames de laboratório Há uma bateria de testes que é útil na avaliação


inicial de paciente com icterícia a ser esclarecida. Esses exames incluem
bilirrubina sérica total e direta com fracionamento, dosagens de
aminotransferases, fosfatase alcalina, albumina; e tempo de protrombina. Os
testes enzimáticos (alanina-aminotransferase [ALT], aspartato-
aminotransferase [AST] e fosfatase alcalina [ALP]) são valiosos para
diferenciar entre processos hepatocelulares e colestáticos (Tab. 330-1; Fig. 4
5-1) – uma etapa essencial para que se determine a indicação de exames
adicionais. Os pacientes com um processo hepatocelular geralmente
apresentam aumento das aminotransferases desproporcional ao da ALP,
enquanto os que têm um processo colestático apresentam aumento da ALP
desproporcional ao das aminotransferases. A bilirrubina sérica pode estar
acentuadamente elevada tanto nos distúrbios hepatocelulares quanto nos
colestáticos e, portanto, não é necessariamente útil à diferenciação entre os
dois.
Além da dosagem das enzimas, para todos os pacientes ictéricos devem
ser solicitados exames sanguíneos adicionais, especificamente dosagem de
albumina e tempo de protrombina, para avaliar a função hepática. Níveis
baixos de albumina sugerem processo crônico, como cirrose ou câncer.
Valores normais de albumina sugerem um processo mais agudo, como
hepatite viral ou coledocolitíase. Tempo de protrombina elevado indica
deficiência de vitamina K em decorrência de icterícia prolongada e má
absorção de vitamina K ou disfunção hepatocelular significativa. A
incapacidade de corrigir o tempo de protrombina com a administração
parenteral de vitamina K sugere lesão hepatocelular grave.
Os resultados das dosagens de bilirrubina, das enzimas e da albumina,
além da determinação do tempo de protrombina, geralmente indicam se um
paciente ictérico apresenta doença hepatocelular ou colestática e fornecem
algumas indicações acerca da duração e da gravidade da doença. As causas e
a avaliação da doença hepatocelular são muito diferentes das que estão
associadas à doença colestática.

Distúrbios hepatocelulares Entre as doenças hepatocelulares que podem


causar icterícia estão hepatite viral, efeitos tóxicos de fármacos ou toxinas
ambientais, alcoolismo e cirrose terminal por qualquer causa (Tab. 45-2). A
doença de Wilson ocorre principalmente em adultos jovens. Nos casos
típicos, a hepatite autoimune é detectada em mulheres jovens e de meia-
idade, mas pode acometer homens e mulheres de qualquer idade. A hepatite
alcoólica pode ser diferenciada das hepatites virais e relacionadas com
toxinas pelo padrão das aminotransferases: os pacientes com hepatite
alcoólica caracteristicamente apresentam relação AST-ALT no mínimo de
2:1, enquanto o nível de AST raramente ultrapassa a 300 U/L. Os pacientes
com hepatite viral aguda e lesão causada por uma toxina grave o suficiente
para produzir icterícia apresentam níveis de aminotransferases > 500 U/L,
com ALT maior ou igual a AST. Enquanto nas doenças hepáticas
hepatocelular ou colestática são observados valores de ALT e AST < 8 vezes
acima do normal, nas doenças hepatocelulares agudas observam-se valores
25 vezes ou mais acima do normal. Os pacientes com icterícia decorrente de
cirrose podem apresentar níveis de aminotransferases normais ou
ligeiramente aumentados.

TABELA 45-2 ■ Distúrbios hepatocelulares que podem causar icterícia


Hepatite viral
Hepatites A, B, C, D e E
Vírus Epstein-Barr
Infecção por citomegalovírus
Herpes-vírus simples
Hepatite alcoólica
Hepatopatia crônica e cirrose
Toxicidade de fármacos
Previsível, dependente da dose (p. ex., paracetamol)
Imprevisível, idiossincrásica (p. ex., isoniazida)
Toxinas ambientais
Cloreto de vinil
Chá da Jamaica – alcaloides pirrolizidínicos
Cava-cava
Cogumelos silvestres – Amanita phalloides, A. verna
Doença de Wilson
Hepatite autoimune

Quando o médico estabelece que um paciente tem doença hepatobiliar,


os testes apropriados para hepatite viral aguda incluem um ensaio para
anticorpo IgM contra hepatite A, ensaios para antígeno de superfície e
anticorpo IgM nuclear contra hepatite B, um ensaio para RNA do vírus da
hepatite C e, dependendo das condições clínicas, um ensaio para anticorpo
IgM contra hepatite E. Como pode demorar algumas semanas até que o
anticorpo contra hepatite C seja detectável, seu ensaio não é um teste
confiável quando há suspeita de hepatite C aguda. Também é possível que
haja indicação para investigação das hepatites virais D e E, do vírus de
Epstein-Barr (EBV) e do citomegalovírus (CMV). A dosagem de
ceruloplasmina é o teste inicial de rastreamento para a doença de Wilson. Os
exames para hepatite autoimune comumente incluem ensaios de fatores
antinucleares e dosagem de imunoglobulinas específicas.
A lesão hepatocelular induzida por fármacos pode ser classificada como
previsível ou imprevisível. As reações farmacológicas previsíveis são
dependentes da dose e afetam todos os pacientes que ingerem uma dose
tóxica do fármaco em questão. O exemplo clássico é a hepatotoxicidade do
paracetamol. As reações farmacológicas imprevisíveis, ou idiossincrásicas,
não dependem da dose e ocorrem em uma minoria dos pacientes. Um grande
número de fármacos pode provocar lesão hepática idiossincrásica. As toxinas
ambientais também são uma causa importante de lesão hepatocelular. São
exemplos algumas substâncias químicas industriais, como o cloreto de vinil,
fitoterápicos que contenham alcaloides da pirrolizidina (chá da Jamaica) ou
cava-cava, bem como os cogumelos Amanita phalloides e A. verna, que
contêm amatoxinas altamente hepatotóxicas.

Distúrbios colestáticos Quando o padrão dos exames hepáticos sugere


distúrbio colestático, a próxima etapa é determinar se a colestase é intra ou
extra-hepática (Fig. 45-1). Algumas vezes é difícil a diferenciação entre
colestase intra-hepática e extra-hepática. História, exame físico e testes
laboratoriais frequentemente não são esclarecedores. O próximo exame a ser
solicitado é ultrassonografia. A ultrassonografia (US) é um exame de baixo
custo, que não expõe o paciente à radiação ionizante e é capaz de detectar
dilatação da árvore biliar intra e extra-hepática com alto grau de sensibilidade
e especificidade. A ausência de dilatação biliar sugere colestase intra-
hepática, enquanto sua presença indica colestase extra-hepática. Ocorrem
resultados falso-negativos em pacientes com obstrução parcial do ducto
colédoco, ou nos pacientes com cirrose ou colangite esclerosante primária
(CEP), nos quais a fibrose impede a dilatação dos ductos intra-hepáticos.
Embora a US possa indicar colestase extra-hepática, este exame
raramente identifica o local ou a causa da obstrução. O ducto colédoco distal
é uma área particularmente difícil de visualizar com a US em razão do gás
intestinal sobrejacente. Os próximos exames apropriados incluem TC,
colangiopancreatografia por ressonância magnética (CPRM),
colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE), colangiografia
transepática percutânea (CTP) e ultrassonografia endoscópica (USE). A TC e
a CPRM são melhores que a US para avaliar a cabeça do pâncreas e
identificar coledocolitíase no ducto colédoco distal, principalmente quando
os ductos não estão dilatados. A CPRE é o “padrão de referência” para
diagnóstico de coledocolitíase. Além de seu potencial diagnóstico, a CPRE
possibilita intervenções terapêuticas, incluindo remoção de cálculos do ducto
colédoco e instalação de endopróteses (stents). A CTP pode fornecer as
mesmas informações oferecidas pela CPRE e também permite realizar
intervenções nos pacientes nos quais a CPRE não foi bem sucedida em razão
de uma obstrução biliar proximal ou de anomalias da anatomia
gastrintestinal. A CPRM substituiu a CPRE como exame diagnóstico inicial
em casos nos quais se supõe que a necessidade de intervenção seja pequena.
A USE tem sensibilidade e especificidade comparáveis às da CPRM na
detecção de obstrução do ducto colédoco. A USE também permite biópsia
em caso de lesão suspeita de malignidade, mas é um procedimento invasivo
que requer sedação.
Nos pacientes sob suspeita de colestase intra-hepática, o diagnóstico é
frequentemente definido por testes sorológicos em combinação com biópsia
hepática percutânea. A lista de causas possíveis de colestase intra-hepática é
longa e variada (Tab. 45-3). Diversas condições que caracteristicamente
produzem alterações com padrão hepatocelular também podem se apresentar
como variante colestática. Os vírus das hepatites B e C podem causar
hepatite colestática (hepatite colestática fibrosante). Essa variante da doença
foi relatada em pacientes submetidos a transplante de órgão sólido. As
hepatites A e E, a hepatite alcoólica e as infecções por EBV e CMV também
podem apresentar-se como hepatopatia colestática.

TABELA 45-3 ■ Distúrbios colestáticos que podem causar icterícia


I. Intra-hepáticos
A. Hepatite viral
1. Hepatite colestática fibrosante – hepatites B e C
2. Hepatite A, infecção pelo vírus Epstein-Barr, infecção por citomegalovírus
B. Hepatite alcoólica
C. Toxicidade de fármacos
1. Colestase pura – esteroides anabólicos e contraceptivos
2. Hepatite colestática – clorpromazina, estolato de eritromicina
3. Colestase crônica – clorpromazina e proclorperazina
D. Colangite biliar primária
E. Colangite esclerosante primária
F. Síndrome dos ductos biliares evanescentes
1. Rejeição crônica de transplantes hepáticos
2. Sarcoidose
3. Fármacos
G. Hepatopatia congestiva e hepatite isquêmica
H. Doenças hereditárias
1. Colestase intra-hepática familiar progressiva
2. Colestase intra-hepática recorrente benigna
I. Colestase da gravidez
J. Nutrição parenteral total
K. Sepse não hepatobiliar
L. Colestase pós-operatória benigna
M. Síndrome paraneoplásica
N. Doença venoclusiva
O. Doença do enxerto contra o hospedeiro
P. Doença infiltrativa
1. Tuberculose
2. Linfoma
3. Amiloidose
Q. Infecções
1. Malária
2. Leptospirose
II. Extra-hepáticos
A. Malignos
1. Colangiocarcinoma
2. Câncer pancreático
3. Câncer de vesícula biliar
4. Câncer ampular
5. Invasão neoplásica maligna dos linfonodos da porta hepática
B. Benignos
1. Coledocolitíase
2. Estenoses biliares pós-operatórias
3. Colangite esclerosante primária
4. Pancreatite crônica
5. Colangiopatia da Aids
6. Síndrome de Mirizzi
7. Doença parasitária (ascaridíase)

Alguns fármacos podem causar colestase intra-hepática, que geralmente


é reversível com a suspensão do agente agressor, embora a resolução da
colestase possa levar muitos meses. Os fármacos mais comumente
associados à colestase são os esteroides anabolizantes e os contraceptivos. Há
relatos de hepatite colestática com o uso de clorpromazina, imipramina,
tolbutamida, sulindaco, cimetidina e estolato de eritromicina. Também pode
ocorrer em pacientes tratados com trimetoprima; sulfametoxazol; e
antibióticos à base de penicilina, como ampicilina, dicloxacilina e ácido
clavulânico. Raramente, a colestase torna-se crônica e está associada à
fibrose progressiva, apesar da suspensão imediata do fármaco. A colestase
crônica foi associada ao uso de clorpromazina e proclorperazina.
Colangite biliar primária é uma doença autoimune que atinge
predominantemente mulheres de meia-idade e é caracterizada por destruição
progressiva dos ductos biliares interlobulares. O diagnóstico é baseado na
detecção de anticorpos antimitocondriais encontrados em 95% desses
pacientes. A colangite esclerosante primária (CEP) caracteriza-se por
destruição e fibrose dos ductos biliares maiores. O diagnóstico de CEP é
estabelecido com base na colangiografia (CPRM ou CPRE) com
demonstração das estenoses segmentares patognomônicas. Cerca de 75% dos
pacientes com CEP apresentam doença inflamatória intestinal.
A síndrome dos ductos biliares evanescentes e a ductopenia biliar do
adulto são afecções raras nas quais se observa redução no número de ductos
biliares em amostras de biópsia hepática. O quadro histológico é semelhante
ao da colangite biliar primária. Esse quadro é observado em pacientes que
desenvolvem rejeição crônica após transplante de fígado e nos que evoluem
com a doença do enxerto contra o hospedeiro depois de transplante de
medula óssea. A síndrome dos ductos biliares evanescentes também ocorre
em raros casos de sarcoidose, nos pacientes que tomam determinados
fármacos (p. ex., clorpromazina) e de forma idiopática.
Também existem formas familiares de colestase intra-hepática. As
síndromes colestáticas intra-hepáticas familiares incluem os tipos 1 a 3 da
colestase intra-hepática familiar progressiva (CIFP) os tipos 1 e 2 da
colestase intra-hepática recorrente benigna (CIRB). A CIRB caracteriza-se
por crises transitórias de prurido, colestase e icterícia a partir de qualquer
idade, que podem ser debilitantes, mas não causam hepatopatia crônica. Os
níveis séricos dos ácidos biliares estão elevados durante as crises, mas a
atividade sérica da γ-glutamiltransferase (γ-GT) está normal. Os tipos de
CIFP começam na infância e têm evolução progressiva. Todos os três tipos
de CIFP estão associados a colestase progressiva, níveis elevados de ácidos
biliares séricos e fenótipos semelhantes, embora as mutações genéticas sejam
diferentes. Apenas o tipo 3 da CIFP está associada a níveis altos de γ-GT. A
colestase da gravidez ocorre no segundo e no terceiro trimestres,
desaparecendo depois do parto. Sua causa é desconhecida, mas o distúrbio é
provavelmente hereditário e a colestase pode ser desencadeada pela
administração de estrogênio.
Outras causas da colestase intra-hepática são nutrição parenteral total
(NPT), sepse não hepatobiliar, colestase pós-operatória benigna e síndrome
paraneoplásica associada a diversos tipos de câncer como linfoma de
Hodgkin, câncer medular da tireoide, câncer de células renais, sarcoma renal,
linfoma de células T, câncer de próstata e diversas neoplasias malignas
gastrintestinais. A expressão síndrome de Stauffer tem sido usada para
designar a colestase intra-hepática especificamente associada ao câncer de
células renais. Nos pacientes que apresentam colestase na unidade de terapia
intensiva, as principais hipóteses são sepse, hepatite isquêmica (“fígado do
choque”) e icterícia causada por NPT. A icterícia que ocorre depois de um
transplante de medula óssea provavelmente é causada por doença
venoclusiva ou por doença enxerto contra o hospedeiro. Além da hemólise, a
doença falciforme pode causar colestase intra-hepática e extra-hepática. A
icterícia pode ser um achado tardio em casos de insuficiência cardíaca e é
causada por congestão hepática e hipoxia hepatocelular. A hepatite isquêmica
é uma entidade distinta de hipoperfusão aguda caracterizada por elevação
rápida e extrema das aminotransferases séricas, seguida de aumento
gradativo da bilirrubina sérica.
Nos casos graves de malária Plasmodium falciparum, os pacientes
podem apresentar disfunção hepática associada. Nesses casos, a icterícia é
uma combinação de hiperbilirrubinemia indireta causada por hemólise e
elevação da bilirrubina direta produzida por colestase e lesão hepatocelular.
A doença de Well, um quadro grave de leptospirose, é evidenciada por
icterícia com insuficiência renal, febre, cefaleia e dor muscular.
As causas da colestase extra-hepática podem ser divididas em malignas
e benignas (Tab. 45-3). Entre as causas malignas estão os cânceres de
pâncreas, vesícula biliar e da ampola, assim como o colangiocarcinoma. Esse
último câncer está associado mais frequentemente à CEP e é
excepcionalmente difícil de diagnosticar porque seu aspecto costuma ser
idêntico ao da CEP. Os tumores do pâncreas e da vesícula biliar, bem como o
colangiocarcinoma, raramente são operáveis e têm prognóstico reservado. O
carcinoma ampular possibilita o maior índice de cura entre todos os tumores
que se apresentam com quadro de icterícia indolor. A linfadenopatia hilar
decorrente de metástases por outros cânceres pode provocar obstrução da
árvore biliar extra-hepática.
Coledocolitíase é a causa mais comum de colestase extra-hepática. A
apresentação clínica pode variar desde um desconforto leve no quadrante
superior direito com elevações mínimas dos níveis encontrados nos testes
enzimáticos, até um quadro de colangite ascendente com icterícia, sepse e
colapso circulatório. A CEP pode ocorrer com estenoses clinicamente
importantes limitadas à árvore biliar extra-hepática. A colangite associada à
IgG4 é caracterizada por estenose da árvore biliar. É essencial que o médico
diferencie essa patologia da CEP, uma vez que ela responde ao tratamento
com glicocorticoide. Raramente, a pancreatite crônica causa estenose distal
do ducto colédoco, no segmento que atravessa a cabeça do pâncreas. A
colangiopatia da Aids é geralmente causada por infecção do epitélio dos
ductos biliares por CMV ou Cryptosporidium e o aspecto colangiográfico é
semelhante ao da CEP. Em geral, os pacientes afetados apresentam-se com
níveis muito elevados de fosfatase alcalina sérica (média de 800 UI/L),
porém com bilirrubina sérica quase normal. Normalmente, esses pacientes
não têm icterícia.
CONSIDERAÇÕES GLOBAIS
Enquanto a obstrução biliar extra-hepática e os fármacos são causas comuns
de icterícia de início recente nos países desenvolvidos, as infecções
continuam sendo a principal causa nos países em desenvolvimento. Muitas
infecções podem acometer o fígado e causar icterícia, principalmente malária,
babesiose, leptospirose grave, infecções causadas por Mycobacterium
tuberculosis e complexo Mycobacterium avium, febre tifoide, hepatites A-E,
infecções por EBV, CMV, vírus Ebola, fases avançadas da febre amarela, febre
hemorrágica da dengue, esquistossomose, fasciolíase, clonorquíase,
opistorquíase, ascaridíase, equinococose, candidíase hepatosplênica,
histoplasmose disseminada, criptococose, coccidioidomicose, erliquiose, febre Q
crônica, yersiniose, brucelose, sífilis e hanseníase. Infecções bacterianas que não
necessariamente envolvem o fígado e os ductos biliares podem causar icterícia,
como a colestase associada à sepse. Febre e dor abdominal sugerem infecção
coexistente, sepse ou complicações dos cálculos biliares associados. O
desenvolvimento de encefalopatia e coagulopatia em um paciente ictérico sem
doença hepática preexistente significa insuficiência hepática aguda, que justifica
uma avaliação urgente da indicação de transplante de fígado.

Agradecimento Este capítulo é uma versão revisada de outros que apareceram


em edições prévias do Harrison em que Marshall M. Kaplan foi coautor junto
com Daniel Pratt.

LEITURAS ADICIONAIS
Erlinger S, Arias IM, Dhumeaux D: Inherited disorders of bilirubin transport and
conjugation: New insights into molecular mechanisms and consequences.
Gastroenterology 146:1625, 2014.
Wolkoff AW et al: Bilirubin metabolism and jaundice, in Schiff’s Diseases of the
Liver, 11th ed, Schiff ER et al (eds). Oxford, UK, John Wiley & Sons, Ltd,
2012, pp 120-150.
46
Aumento do volume abdominal e ascite
Kathleen E. Corey, Lawrence S. Friedman
AUMENTO DO VOLUME ABDOMINAL
O aumento do volume abdominal é uma manifestação compartilhada por
diversas doenças. Os pacientes queixam-se de distensão ou plenitude abdominal
e podem perceber esse aumento da circunferência abdominal com base em suas
roupas e tamanho do cinto. Com frequência, há queixa de desconforto
abdominal, mas dor é menos relatada. Quando há dor acompanhando o aumento
do volume abdominal, frequentemente o quadro é resultante de infecção intra-
abdominal, peritonite ou pancreatite. Os pacientes com distensão abdominal
causada por ascite (líquido na cavidade abdominal) podem relatar surgimento
recente de hérnia inguinal ou umbilical. Dispneia pode ser causada pela
compressão do diafragma e incapacidade de expandir completamente os
pulmões.

CAUSAS
As causas de aumento do volume abdominal podem ser lembradas usando a
regra mnemônica dos seis “Fs”: flatulência, gordura (fat), líquido (fluid), feto,
fezes ou “crescimento fatal” (frequentemente uma neoplasia).

Flatulência O aumento do volume abdominal pode resultar de aumento dos


gases intestinais. O intestino delgado normal contém aproximadamente 200 mL
de gases nitrogênio, oxigênio, dióxido de carbono, hidrogênio e metano. O
nitrogênio e o oxigênio são deglutidos, enquanto o dióxido de carbono, o
hidrogênio e o metano são produzidos no lúmen intestinal por fermentação
bacteriana. Há várias situações capazes de produzir aumento dos gases
intestinais. A aerofagia (deglutição de ar) pode levar ao aumento do volume de
oxigênio e nitrogênio no intestino delgado e à distensão do abdome.
Normalmente, a aerofagia está associada à sofreguidão ao comer; uso de goma
de mascar; ou é uma resposta à ansiedade, que pode causar eructações repetidas.
Em alguns casos, o aumento dos gases intestinais é consequência do
metabolismo pelas bactérias de substâncias com alto grau de fermentação, como
a lactose e outros oligossacarídeos, que podem levar à produção de hidrogênio,
dióxido de carbono ou metano. Em muitos casos, não é possível determinar a
causa exata da distensão abdominal. Em alguns indivíduos, particularmente
naqueles com síndrome do intestino irritável e aumento do volume abdominal, a
sensação subjetiva de pressão abdominal pode ser atribuída à redução do trânsito
intestinal dos gases e não ao aumento do volume gasoso. A distensão abdominal
– um aumento objetivo da cintura abdominal – é resultado da falta de
coordenação entre a contração do diafragma e o relaxamento da parede anterior
do abdome, em alguns casos como resposta ao aumento do volume intra-
abdominal. Ocasionalmente, a hiperlordose lombar pode causar distensão
abdominal aparente.

Gordura O ganho ponderal com aumento da gordura abdominal pode resultar


em maior circunferência do abdome e ser percebido como distensão. A gordura
abdominal pode ser causada por desequilíbrio entre ingestão calórica e gasto de
energia, associada à dieta inadequada com estilo de vida sedentário; também
pode ser uma manifestação de algumas doenças, como a síndrome de Cushing. O
excesso de gordura abdominal está associado à resistência à insulina e à doença
cardiovascular.

Líquido O acúmulo de líquido na cavidade abdominal (ascite) com frequência


causa distensão e está descrito detalhadamente adiante.

Feto Gravidez aumenta a circunferência abdominal. Normalmente, começa-se a


notar aumento do tamanho do abdome com 12 a 14 semanas de gestação, quando
o útero move-se da pelve para o abdome. O aumento do volume do abdome pode
ser observado precocemente em razão de retenção de líquidos e relaxamento dos
músculos do abdome.

Fezes Nos pacientes com constipação grave ou obstrução intestinal, o aumento


do volume de fezes no intestino grosso aumenta a circunferência abdominal.
Esses quadros com frequência são acompanhados por desconforto ou dor
abdominal, náusea e vômitos e podem ser diagnosticados por meio de exames de
imagem.

Crescimento fatal Uma massa abdominal pode causar aumento do abdome.


Neoplasias, abscessos ou cistos podem atingir volumes que levam ao aumento da
circunferência abdominal. O aumento de órgãos intra-abdominais,
especificamente do fígado (hepatomegalia) ou do baço (esplenomegalia), ou a
presença de aneurisma da aorta abdominal, pode resultar em aumento do volume
do abdome. A distensão da bexiga também pode produzir distensão do abdome.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Aumento do volume abdominal
HISTÓRIA
A investigação etiológica do aumento do volume abdominal inicia-se com a
anamnese e o exame físico. Os pacientes devem ser interrogados acerca de
sintomas sugestivos de doenças malignas, incluindo perda de peso, sudorese
noturna e anorexia. A incapacidade de evacuar ou eliminar flatos associada a
náusea ou vômitos sugere obstrução intestinal, constipação intensa ou íleo
(ausência de peristalse). O aumento da eructação e da eliminação de flatos
indica aerofagia ou aumento da produção de gases intestinais. Os pacientes
devem ser questionados sobre possíveis fatores de risco ou sintomas de
hepatopatia crônica, incluindo ingestão excessiva de bebidas alcoólicas e
icterícia, que sugerem ascite. Além disso, é importante perguntar aos
pacientes se eles têm sinais e sintomas atribuíveis a outras doenças clínicas,
inclusive insuficiência cardíaca e tuberculose, que podem causar ascite.

EXAME FÍSICO
No exame físico, deve-se incluir a investigação de sinais de doenças
sistêmicas. A presença de linfadenopatia, especialmente supraclavicular
(nódulo de Virchow), sugere câncer abdominal metastático. Durante o exame
do coração, deve-se avaliar se há aumento da pressão venosa jugular (PVJ);
sinal de Kussmaul (aumento da PVJ durante a inspiração); atrito pericárdico,
que pode ser encontrado na insuficiência cardíaca ou na pericardite
constritiva; ou sopro de regurgitação tricúspide. Aranhas vasculares, eritema
palmar, dilatação de veias superficiais ao redor da cicatriz umbilical (cabeça
de medusa) e ginecomastia são sinais que indicam doença hepática.
O exame do abdome deve começar com a inspeção para verificar a
presença de distensão desigual ou mesmo uma massa evidente. A ausculta
deve vir a seguir. A ausência de ruídos peristálticos ou a presença de um som
intestinal localizado de frequência aguda sugere íleo ou obstrução intestinal.
A presença de um zunido venoso umbilical sugere a presença de hipertensão
portal, e raramente pode haver um sopro áspero sobre o fígado, que indica
carcinoma hepatocelular ou hepatite alcoólica. O aumento do volume
abdominal causado por gases intestinais pode ser diferenciado daquele
produzido por líquidos ou por massa sólida utilizando-se a percussão; o
abdome cheio de gás é timpânico, enquanto o abdome contendo uma massa
ou líquido é maciço à percussão. Contudo, a ausência de macicez abdominal
não exclui ascite, uma vez que há necessidade de pelo menos 1.500 mL de
líquido ascítico para que seja detectado ao exame físico. Finalmente, o
abdome deve ser palpado para avaliar as regiões dolorosas, massa, aumento
do fígado ou do baço ou presença de nódulos hepáticos sugestivos de cirrose
ou tumor. A palpação leve do fígado pode detectar pulsações sugestivas de
fluxo vascular retrógrado originado do coração nos pacientes com
insuficiência cardíaca direita, especialmente regurgitação tricúspide.

EXAMES DE IMAGEM E AVALIAÇÃO LABORATORIAL


As radiografias do abdome podem ser usadas para detectar alças intestinais
dilatadas sugestivas de obstrução intestinal ou íleo. A ultrassonografia do
abdome pode detectar volumes de líquido ascítico a partir de 100 mL,
hepatoesplenomegalia, nódulos hepáticos ou uma massa. A ultrassonografia
frequentemente não é adequada para detecção de linfadenopatia retroperitoneal
ou de lesão pancreática em razão do gás intestinal sobrejacente. Quando há
suspeita de câncer ou doença pancreática, a tomografia computadorizada (TC)
deve ser o exame indicado. A TC também pode detectar alterações associadas à
cirrose em estágio avançado e hipertensão portal (Fig. 46-1).
FIGURA 46-1 Tomografia computadorizada (TC) de um paciente com fígado nodular cirrótico (seta
branca), esplenomegalia (seta amarela) e ascite (pontas de seta).

Os exames laboratoriais devem incluir bioquímica hepática, dosagem dos


níveis séricos de albumina e tempo de protrombina (razão internacional
normalizada) para avaliar a função hepática e hemograma completo para
investigar a presença de citopenias, que podem ser causadas por hipertensão
porta, ou de leucocitose, anemia e trombocitose, que podem ser resultantes de
infecção sistêmica. Os níveis séricos da amilase e da lipase devem ser dosados
para investigar a possibilidade de pancreatite aguda. A quantificação da
proteinúria está indicada quando há suspeita de síndrome nefrótica, que pode
causar ascite.
Em alguns casos, pode-se medir o gradiente de pressão venosa hepática
(pressão no fígado entre as veias porta e hepática) por meio de punção da veia
hepática para confirmar se a ascite é causada por cirrose (Cap. 337). Em alguns
casos, pode ser necessário obter uma biópsia hepática para confirmar o
diagnóstico de cirrose.
ASCITE
PATOGÊNESE NOS CASOS DE CIRROSE
Nos pacientes com cirrose, a ascite é causada por hipertensão portal e retenção
de água e sódio pelos rins. Mecanismos similares contribuem para a formação de
ascite na insuficiência cardíaca. Hipertensão portal implica elevação da pressão
dentro do sistema portal. De acordo com a lei de Ohm, a pressão é produto da
resistência multiplicada pelo fluxo. Vários mecanismos podem aumentar a
resistência hepática. Primeiramente, o desenvolvimento de fibrose hepática –
fator que define a existência de cirrose – destrói a arquitetura normal dos
sinusoides hepáticos e impede o fluxo normal de sangue pelo fígado. Em
segundo lugar, a ativação das células estelares hepáticas, mediadoras da
fibrogênese, leva à contração da musculatura lisa e à fibrose. Finalmente, a
cirrose está associada à redução na produção da sintase do óxido nítrico-sintase
endotelial (eNOS), resultando em produção reduzida de óxido nítrico e aumento
da vasoconstrição intra-hepática.
O desenvolvimento de cirrose também está associado ao aumento dos
níveis circulantes de óxido nítrico (ao contrário da redução observada ao nível
intra-hepático), assim como ao aumento dos níveis do fator de crescimento
endotelial vascular e do fator de necrose tumoral, resultando em vasodilatação
arterial esplâncnica. A vasodilatação da circulação esplâncnica provoca acúmulo
de sangue e redução do volume circulante efetivo, o que é interpretado pelos rins
como hipovolemia. Em seguida, há vasoconstrição compensatória por meio de
liberação de hormônio antidiurético; as consequências são retenção de água e
ativação do sistema nervoso simpático e do sistema renina-angiotensina-
aldosterona, que produz retenção de água e sódio pelos rins.

PATOGÊNESE NOS CASOS EM QUE NÃO HÁ CIRROSE


Nos pacientes sem cirrose, a ascite geralmente é causada por carcinomatose
peritoneal, infecção do peritônio ou doença pancreática. A carcinomatose
peritoneal pode resultar de câncer primário do peritônio (p. ex., mesotelioma ou
sarcoma), câncer abdominal (p. ex., carcinoma gástrico ou adenocarcinoma do
intestino grosso), ou metástases de carcinoma mamário ou pulmonar ou de
melanoma (Fig. 46-2). As células tumorais que recobrem o peritônio produzem
um líquido rico em proteínas, que contribui para o desenvolvimento da ascite. A
entrada de líquido do espaço extracelular para a cavidade peritoneal contribui
para a formação da ascite. A peritonite tuberculosa produz ascite por um
mecanismo semelhante; os tubérculos depositados sobre o peritônio produzem
um exsudato proteináceo. A ascite pancreática resulta do extravasamento de
enzimas pancreáticas para o peritônio.

FIGURA 46-2 TC de um paciente com carcinomatose peritoneal (seta branca) e ascite (seta amarea).

CAUSAS
A cirrose é responsável por 84% dos casos de ascite. Ascite cardíaca,
carcinomatose peritoneal e os casos “mistos” resultantes de cirrose e uma
segunda patologia respondem por 10 a 15% dos casos. Entre as causas menos
comuns de ascite estão metástase hepática maciça, infecção (tuberculose,
infecção por Chlamydia), pancreatite e doença renal (síndrome nefrótica). Entre
as causas raras de ascite estão hipotireoidismo e febre familiar do Mediterrâneo.

AVALIAÇÃO
Confirmada a ascite, sua etiologia é melhor determinada por paracentese, um
procedimento realizado à beira do leito no qual uma agulha ou cateter pequeno é
introduzido por via transcutânea para extrair líquido ascítico da cavidade
peritoneal (ver vídeo de procedimento clínico P3). Os quadrantes inferiores são
os locais mais frequentemente puncionados. É importante dar preferência ao
quadrante inferior esquerdo em razão da maior profundidade da ascite e da
menor espessura da parede abdominal. A paracentese é um procedimento seguro
mesmo em pacientes com coagulopatia; as complicações, incluindo hematoma
de parede abdominal, hipotensão, síndrome hepatorrenal e infecção, são raras.
Uma vez obtido o líquido ascítico, deve-se examinar seu aspecto
macroscópico. A presença de infecção ou de células tumorais resulta em turbidez
do líquido. Líquido branco leitoso indica triglicerídeos em níveis > 200 mg/dL
(frequentemente > 1.000 mg/dL), uma marca registrada da ascite quilosa. A
ascite quilosa é causada por rompimento de vasos linfáticos, que pode ocorrer
em razão de traumatismo, cirrose, tumor, tuberculose ou determinadas
malformações congênitas. Líquido marrom-escuro indica concentração elevada
de bilirrubina e perfuração do trato biliar. Líquido negro indica necrose
pancreática ou melanoma metastático.
O líquido ascítico deve ser enviado para dosagens de albumina e proteínas
totais, contagem global e diferencial de células e, se houver suspeita de infecção,
bacterioscopia por Gram e cultura com inoculação em meio de hemocultura à
beira do leito para aumentar o índice de positividade. Além disso, o nível sérico
de albumina deve ser dosado simultaneamente para permitir o cálculo do
gradiente de albumina soro-ascite (GASA).
O GASA é útil para distinguir a ascite com ou sem hipertensão portal (Fig.
46-3). O GASA reflete a pressão dentro dos sinusoides e está correlacionado
com o gradiente pressórico venoso hepático. O GASA é calculado subtraindo-se
a concentração de albumina no líquido ascítico do nível sérico de albumina e não
se altera com a diurese. Um GASA ≥ 1,1 g/dL reflete a presença de hipertensão
portal e indica que a ascite seja causada por aumento da pressão nos sinusoides
hepáticos. De acordo com a lei de Starling, a elevação do GASA reflete a
pressão oncótica que contrabalança a pressão portal. Entre as possíveis causas
estão cirrose, ascite cardíaca, trombose de veia hepática (síndrome de Budd-
Chiari), síndrome da obstrução dos sinusoides (doença venoclusiva) ou
metástase hepática massiva. Um GASA < 1,1 g/dL indica que a ascite não está
relacionada com hipertensão portal, como ocorre na peritonite tuberculosa,
carcinomatose peritoneal ou ascite pancreática.
FIGURA 46-3 Algoritmo para diagnosticar a causa da ascite de acordo com o gradiente de albumina
soro-ascite (GASA). VCI, veia cava inferior.

Para as ascites com elevação do GASA (≥ 1,1), o nível de proteína no


líquido ascítico fornece outros indícios etiológicos (Fig. 46-3). Níveis de
proteína no líquido ascítico ≥ 2,5 g/dL indicam que os sinusoides hepáticos
estejam normais e permitem a passagem de proteína para o líquido, como ocorre
na ascite cardíaca, na fase inicial da síndrome de Budd-Chiari ou na síndrome de
obstrução dos sinusoides. Níveis de proteína no líquido ascítico < 2,5 g/dL
indicam que os sinusoides hepáticos foram lesados e cicatrizaram e não
permitem mais a passagem de proteína, como ocorre nos casos de cirrose, fase
tardia da síndrome de Budd-Chiari ou metástase hepática maciça. O pró-
peptídeo natriurético cerebral (BNP) é um hormônio natriurético liberado pelo
coração como resultado do aumento de volume e estiramento da parede do
ventrículo. A elevação dos níveis de BNP no soro ocorre nos pacientes com
insuficiência cardíaca e pode ser usado para confirmar que esta é a causa da
ascite com elevação do GASA.
Outros exames só estão indicados em circunstâncias clínicas específicas.
Quando há suspeita de peritonite secundária à perfuração de víscera oca, pode-se
solicitar as dosagens de glicose e lactato-desidrogenase (LDH) no líquido
ascítico. Ao contrário do que ocorre na peritonite bacteriana “espontânea”, uma
possível complicação da ascite cirrótica (ver “Complicações” adiante), a
peritonite secundária é sugerida pelas presenças no líquido ascítico de nível de
glicose < 50 mg/dL, LDH acima do nível sérico e crescimento de múltiplos
patógenos na cultura. Quando há suspeita de ascite pancreática, deve-se solicitar
a dosagem da amilase no líquido ascítico, que caracteristicamente deve estar >
1.000 mg/dL. A citologia pode ser útil para o diagnóstico de carcinomatose
peritoneal. No mínimo 50 mL de líquido devem ser obtidos e enviados para
processamento imediato. Nos casos típicos, a peritonite tuberculosa está
associada à linfocitose no líquido ascítico, mas pode ser difícil diagnosticar com
paracentese. O esfregaço para bacilo álcool-ácido resistente tem sensibilidade
diagnóstica de apenas 0 a 3%; a cultura aumenta a sensibilidade para 35 a 50%.
Nos pacientes sem cirrose, níveis elevados de adenosina-desaminase no líquido
ascítico têm sensibilidade > 90% quando se utiliza valor de corte de 30 a 45 U/L.
Quando a causa da ascite não é esclarecida, o padrão de referência ainda é
laparotomia ou laparoscopia com biópsias peritoneais para exame histológico e
cultura.

TRATAMENTO
Ascite
O tratamento inicial da ascite causada por cirrose consiste na restrição da ingestão de sódio a 2 g/dia.
Quando apenas a restrição de sódio é insuficiente para controlar a ascite, utilizam-se diuréticos por via oral
– normalmente a combinação de espironolactona e furosemida. A espironolactona é um antagonista da
aldosterona que inibe a reabsorção de sódio no túbulo contornado distal dos rins. O uso de espironolactona
pode ser limitado por hiponatremia, hiperpotassemia e ginecomastia dolorosa. Quando a ginecomastia é
muito desconfortável, a amilorida (5-40 mg/dia) pode substituir a espironolactona. A furosemida é um
diurético de alça geralmente associado à espironolactona na proporção de 40:100; as doses diárias máximas
de espironolactona e furosemida são, respectivamente, 400 mg e 160 mg. Nos pacientes com hiponatremia,
pode ser necessário restringir a ingestão de líquidos.
A ascite cirrótica é considerada refratária ao tratamento quando persiste a despeito da restrição da
ingestão de sódio e do uso de doses máximas (ou maximamente toleradas) de diuréticos. O tratamento
farmacológico da ascite refratária inclui o acréscimo de midodrina (um antagonista α1-adrenérgico) ou
clonidina (um antagonista α2-adrenérgico) ao tratamento com diuréticos. Esses fármacos atuam como
vasoconstritores, neutralizando a vasodilatação esplâncnica. A midodrina, isoladamente ou em combinação
com a clonidina, melhora a hemodinâmica sistêmica e controla melhor a ascite em comparação com o uso
isolado de diuréticos. Embora os bloqueadores β-adrenérgicos (β-bloqueadores) frequentemente sejam
prescritos como profilaxia das hemorragia de varizes em pacientes com cirrose, seu uso nos pacientes com
ascite refratária pode ser associado à redução nas taxas de sobrevivência.
Quando o tratamento clínico não é suficiente, a ascite refratária pode ser tratada com parecenteses de
grande volume (PGVs) ou instalação de um shunt intra-hepático transjugular peritoneal (TIPS) – uma
derivação portossistêmica colocada radiograficamente para descomprimir os sinusoides hepáticos. A
infusão intravenosa de albumina durante a PGV reduz os riscos de “disfunção circulatória pós-paracentese”
e morte. Os pacientes tratados com PGV devem receber infusões IV de albumina para cada 6 a 8 g/L de
líquido ascítico retirado. A instalação de TIPS mostrou-se superior às PGV para reduzir as recidivas de
ascite, mas está associada a maior frequência de encefalopatia hepática sem qualquer diferença na taxa de
mortalidade.
A ascite causada por câncer não responde à restrição de sódio ou ao uso de diuréticos. Os pacientes
podem ser tratados com PGV, drenagem transcutânea por cateter ou, raramente, instalação de shunt
peritoniovenoso (uma derivação entre a cavidade abdominal e a veia cava).
A ascite causada por peritonite tuberculosa deve ser tratada com os esquemas tuberculostáticos
padronizados. A ascite não cirrótica de outras causas é tratada corrigindo-se o fator desencadeante.

COMPLICAÇÕES
A peritonite bacteriana espontânea (PBE; Cap. 127) é uma complicação
comum e potencialmente fatal da ascite cirrótica. Ocasionalmente, a PBE
também complica a ascite causada por síndrome nefrótica, insuficiência
cardíaca, hepatite aguda e insuficiência hepática aguda, mas é rara nos casos de
ascite maligna. Os pacientes com PBE normalmente percebem aumento do
volume abdominal; entretanto, em apenas 40% dos casos há dor à palpação e é
incomum que haja dor à descompressão rápida. Os pacientes podem ter febre,
náusea e vômitos, ou início recente ou agravação da encefalopatia hepática
preexistente.
Nos pacientes hospitalizados com ascite, a realização de uma paracentese
nas primeiras 12 horas depois da internação reduz a mortalidade em razão da
detecção precoce de PBE. A PBE é definida por contagem de neutrófilos
polimorfonucleares (PMN) no líquido ascítico ≥ 250/μL. A cultura do líquido
ascítico normalmente isola um patógeno bacteriano. O isolamento de vários
patógenos de um paciente com líquido ascítico e aumento da contagem de PMNs
sugere peritonite secundária à ruptura de víscera ou abscesso (Cap. 127). O
isolamento de vários patógenos sem elevação da contagem de PMN sugere
perfuração intestinal pela agulha de paracentese. A PBE geralmente é causada
por bactérias entéricas que atravessaram a parede intestinal edemaciada. Os
patógenos mais comuns são bastonetes Gram-negativos, incluindo Escherichia
coli e Klebsiella, assim como estreptococos e enterococos.
O tratamento da PBE com antibióticos como cefotaxima intravenosa é
eficaz contra bactérias aeróbias Gram-negativas e Gram-positivas. O tratamento
por 5 dias é suficiente quando o paciente apresenta melhora clínica. A PBE
nosocomial ou adquirida em instituição de saúde frequentemente é causada por
bactérias multirresistentes, e o tratamento antibiótico inicial deve ser orientado
pela epidemiologia das bactérias no local.
Os pacientes cirróticos com história de PBE, proteína total no líquido
ascítico < 1 g/dL ou sangramento gastrintestinal ativo devem receber antibiótico
profilático para PBE; norfloxacino oral diário é o esquema geralmente usado. A
diurese aumenta a atividade das opsoninas proteicas no líquido ascítico e reduz o
risco de PBE.
O hidrotórax hepático ocorre quando a ascite, frequentemente causada por
cirrose, migra pelo diafragma para o espaço pleural. Essa condição pode causar
taquipneia, hipoxia e infecção. O tratamento é semelhante ao da ascite cirrótica,
incluindo-se restrição da ingestão de sódio, diuréticos e, se necessário,
toracocentese ou instalação de TIPS. A colocação de drenos torácicos deve ser
evitada.

LEITURAS ADICIONAIS
Becker G et al: Malignant ascites: Systematic review and guideline for
treatment. Eur J Cancer 42:589, 2006.
Bernardi M et al: Albumin infusion in patients undergoing large-volume
paracentesis: A meta-analysis of randomized trials. Hepatology 55:1172,
2012.
Farias AQ et al: Serum B-type natriuretic peptide in the initial workup of
patients with new onset ascites: A diagnostic accuracy study. Hepatology
59:1043, 2014.
Fernandez J et al: Prevalence and risk factors of infections by multiresistant
bacteria in cirrhosis: A prospective study. Hepatology 55:1551, 2012.
Ge PS, Runyon BA: Role of plasma BNP in patients with ascites: Advantages
and pitfalls. Hepatology 59: 751, 2014.
Orman ES et al: Paracentesis is associated with reduced mortality in patients
hospitalized with cirrhosis and ascites. Clin Gastroenterol Hepatol 12:496,
2014.
Runyon BA: Introduction to the revised American Association for the Study of
Liver Diseases Practice Guideline management of adult patients with
ascites due to cirrhosis 2012. Hepatology 57:165, 2013.
Runyon BA et al: The serum-ascites albumin gradient is superior to the exudate-
transudate concept in the differential diagnosis of ascites. Ann Intern Med
117:215, 1992.
Sort P et al: Effect of intravenous albumin on renal impairment and mortality in
patients with cirrhosis and spontaneous bacterial peritonitis. N Engl J Med
341:403, 1999.
Williams JW Jr, Simel DL: The rational clinical examination. Does this patient
have ascites? How to divine fluid in the abdomen. JAMA 267:2645, 1992.
Seção 7 Alterações na função renal e
do trato urinário

47
Disúria, dor vesical e cistite
intersticial/síndrome da bexiga dolorosa
John W. Warren

Disúria e dor vesical são dois sintomas que frequentemente chamam a atenção
para o trato urinário inferior.

DISÚRIA
A disúria, ou dor que ocorre durante a micção, é normalmente percebida como
queimação ou fisgada na uretra, sendo um sintoma de várias síndromes. A
presença ou ausência de outros sintomas costuma ser útil para diferenciar entre
essas condições. Algumas dessas síndromes diferem entre homens e mulheres.

Mulheres Cerca de 50% das mulheres experimentam disúria em algum


momento de suas vidas; aproximadamente 20% relatam ter tido disúria no
último ano. A maioria das síndromes de disúria em mulheres pode ser
classificada em dois grandes grupos: cistite bacteriana e infecções do trato
genital inferior.
A cistite bacteriana é geralmente causada por Escherichia coli; alguns
outros bacilos Gram-negativos e Staphylococcus saprophyticus também podem
ser responsáveis. A cistite bacteriana tem início agudo e se manifesta não apenas
com disúria, mas também com aumento da frequência urinária, urgência urinária,
dor suprapúbica e/ou hematúria.
As infecções do trato genital inferior incluem vaginite, uretrite e lesões
ulceradas; muitas dessas infecções são causadas por organismos sexualmente
transmissíveis e devem ser consideradas particularmente em mulheres jovens
com parceiros sexuais novos ou múltiplos, ou quando o(s) parceiro(s) não
usa(m) preservativo. O início da disúria associada a essas síndromes é mais
gradual do que na cistite bacteriana e acredita-se (sem comprovação) que seja
causada pelo fluxo de urina sobre o epitélio lesado. Aumento da frequência,
urgência, dor suprapúbica e hematúria são relatadas com menor frequência do
que na cistite bacteriana. A vaginite, causada por Candida albicans ou
Trichomonas vaginalis, apresenta-se com corrimento ou irritação vaginal. A
uretrite é uma consequência da infecção por Chlamydia trachomatis ou
Neisseria gonorrhoeae. As lesões genitais ulceradas podem ser causadas pelo
herpes-vírus simples e por vários outros organismos específicos.
Entre as mulheres que apresentam disúria, a probabilidade de cistite
bacteriana é de cerca de 50%. Esse número aumenta para > 90% se quatro
critérios forem preenchidos: disúria e aumento da frequência urinária sem
corrimento ou irritação vaginal. A recomendação atual sugere que as mulheres
com esses quatro critérios, se forem saudáveis sob outros aspectos, não
estiverem grávidas e tiverem um trato urinário aparentemente normal, podem ser
diagnosticadas com cistite bacteriana não complicada e tratadas de forma
empírica com antibióticos apropriados. Outras mulheres com disúria devem
receber avaliação adicional com teste de fita reagente na urina, cultura de urina e
exame pélvico.

Homens A disúria é menos comum em homens. As síndromes que se


apresentam com disúria são semelhantes àquelas das mulheres, mas com
algumas diferenças importantes.
Na maioria dos homens com disúria, aumento da frequência urinária,
urgência urinária e/ou dor suprapúbica, peniana e/ou perineal, a próstata está
envolvida como foco infeccioso ou como obstrução ao fluxo urinário. A
prostatite bacteriana é causada geralmente por E. coli ou outro bacilo Gram-
negativo, com uma de duas apresentações. A prostatite bacteriana aguda
apresenta-se com febre e calafrios; o exame da próstata deve ser delicado ou não
ser realizado, pois a massagem pode resultar em bacteremia. A prostatite
bacteriana crônica apresenta-se com episódios recorrentes de cistite bacteriana;
o exame da próstata com massagem evidencia bactérias e leucócitos na próstata.
A hiperplasia prostática benigna (HPB) pode obstruir o fluxo urinário com
consequentes sintomas de jato fraco, hesitação e gotejamento. Se uma infecção
bacteriana se desenvolve por trás de uma próstata obstrutiva, disúria e outros
sintomas ocorrerão. Os homens cujos sintomas são consistentes com cistite
bacteriana devem ser avaliados com exame comum de urina e cultura de urina.
Várias infecções sexualmente transmissíveis podem se manifestar como
disúria. A uretrite (geralmente sem aumento de frequência urinária) apresenta-se
como corrimento uretral e pode ser causada por C. trachomatis, N. gonorrhoeae,
Mycoplasma genitalium, Ureaplasma urealyticum ou T. vaginalis. Herpes
simples, cancroide e outras lesões ulceradas podem apresentar disúria,
novamente sem aumento de frequência urinária.
Ver discussão adicional nos Capítulos 130 e 131.
Mulheres ou homens Outras causas de disúria podem ser encontradas em
pacientes de ambos os sexos. Alguns casos são agudos e incluem cálculos no
trato urinário inferior, trauma e exposição uretral a substâncias químicas tópicas.
Outros podem ser relativamente crônicos e atribuíveis a neoplasias do trato
urinário inferior, determinados medicamentos, síndrome de Behçet, artrite
reativa, uma entidade pouco compreendida e conhecida como síndrome uretral
crônica e a cistite intersticial/síndrome da bexiga dolorosa (ver adiante).

DOR VESICAL
Estudos indicam que os pacientes percebem a dor como oriunda da bexiga se ela
for suprapúbica, se mudar conforme o enchimento ou esvaziamento vesical e/ou
se estiver associada a sintomas urinários como urgência miccional e aumento da
frequência urinária. A dor vesical que ocorre agudamente (i.e., ao longo de horas
ou de 1 ou 2 dias) é útil para a diferenciação entre cistite bacteriana e uretrite,
vaginite e outras infecções genitais. A dor vesical crônica ou recorrente pode
acompanhar cálculos do trato urinário inferior; neoplasia de bexiga, útero, colo
uterino, vagina, uretra ou próstata; divertículo uretral; cistite induzida por
radiação ou determinados medicamentos; cistite tuberculosa; obstrução do colo
vesical; bexiga neurogênica; prolapso urogenital; ou HPB. Na ausência dessas
condições, o diagnóstico de cistite intersticial/síndrome da bexiga dolorosa
(CI/SBD) deve ser considerado.

CISTITE INTERSTICIAL/SÍNDROME DA BEXIGA DOLOROSA


A maioria dos médicos que atendem em consultórios vê casos não
diagnosticados de CI/SBD. Esse problema crônico se caracteriza por dor que é
percebida como vesical, urgência miccional, aumento da frequência urinária e
noctúria. Conforme atualmente diagnosticada, a maioria dos casos ocorre em
mulheres. Os sintomas aumentam e diminuem ao longo de meses ou anos ou,
possivelmente, ao longo de toda a vida do paciente. O espectro de intensidade
dos sintomas é amplo. A dor pode ser excruciante, a urgência pode ser
perturbadora, a frequência pode ser de até 60 vezes em 24 horas, e a noctúria
pode causar privação do sono. Esses sintomas podem atrapalhar as atividades
diárias, o horário de trabalho e as relações pessoais; os pacientes com CI/SBD
relatam menos satisfação com a vida do que aqueles com doença renal em
estágio terminal.
A CI/SBD não é uma doença nova, tendo sido descrita pela primeira vez no
final do século XIX em um paciente com os sintomas descritos anteriormente e
uma única úlcera visível na cistoscopia (atualmente chamada de lesão de
Hunner, em referência ao urologista que primeiro a relatou). Nas décadas que se
seguiram, ficou claro que muitos pacientes com sintomas semelhantes não
tinham úlcera. Hoje, estima-se que ≤ 10% dos pacientes com CI/SBD tenham
uma lesão de Hunner. A definição da CI/SBD, suas características diagnósticas e
mesmo o seu nome continuam a evoluir. A American Urological Association
definiu a CI/SBD como “uma sensação desagradável (dor, pressão, desconforto)
percebida como relacionada à bexiga urinária, associada a sintomas do trato
urinário inferior com mais de 6 semanas de duração, na ausência de infecção ou
outras causas identificáveis”.
Muitos pacientes com CI/SBD também têm outras síndromes, como
fibromialgia, síndrome da fadiga crônica e síndrome do intestino irritável. O
conjunto dessas síndromes é conhecido como síndromes somáticas funcionais
(SSFs) – condições crônicas em que a dor e a fadiga são características
proeminentes, mas com exames laboratoriais e achados histológicos normais.
Como a CI/SBD, as SSFs costumam estar associadas a depressão e ansiedade. A
maioria dos casos de SSFs acomete mulheres e mais de uma SSF pode afetar um
mesmo paciente. Em função de suas características semelhantes e das
comorbidades, a CI/SBD é algumas vezes considerada uma SSF.

Epidemiologia Estudos populacionais recentes nos Estados Unidos indicam


prevalência de CI/SBD de 3 a 6% em mulheres e 2 a 4% em homens. Acreditou-
se, durante décadas, que a CI/SBD ocorria principalmente em mulheres.
Contudo, esses achados de prevalência levaram a pesquisas que visavam
determinar a proporção de homens com sintomas geralmente diagnosticados
como prostatite crônica (atualmente conhecida como prostatite crônica/síndrome
da dor pélvica crônica), mas que, na verdade, tinham CI/SBD.
Entre as mulheres, a idade média de início dos sintomas de CI/SBD ocorre
no início da quinta década de vida, mas ela varia desde a infância até o início da
sétima década. Os fatores de risco (características antecedentes que diferenciam
casos e controles) têm sido principalmente as SSFs. De fato, a chance de ocorrer
CI/SBD aumenta conforme o número de tais síndromes presentes. Por muito
tempo se acreditou que a cirurgia fosse um fator de risco para CI/SBD, mas
análises que fizeram ajustes para a presença de SSFs refutaram essa associação.
Cerca de um terço dos pacientes parecem apresentar cistite bacteriana no início
da CI/SBD.
A história natural da CI/SBD não é conhecida. Embora estudos em serviços
de urologia e uroginecologia tenham sido interpretados como se a CI/SBD
durasse por toda a vida do paciente, estudos populacionais sugerem que algumas
pessoas com CI/SBD não consultam especialistas e podem não procurar nenhum
cuidado médico, sendo que a maioria dos estudos sobre a prevalência não mostra
uma tendência de aumento com a idade – um padrão que seria esperado com
casos incidentes que aparecem ao longo da vida adulta que são acompanhados
por toda a vida em uma doença não fatal. Pode ser razoável, então, concluir que
os pacientes em serviços de urologia representam aqueles com quadros mais
graves e persistentes de CI/SBD.

Patologia Para os ≤ 10% de pacientes com CI/SBD que têm uma lesão de
Hunner, o termo cistite intersticial pode, de fato, descrever o quadro
histopatológico. A maioria desses pacientes tem inflamação significativa,
mastócitos e tecido de granulação. Entretanto, nos 90% de pacientes sem essas
lesões, a mucosa vesical é relativamente normal com inflamação escassa.

Etiologia Várias hipóteses têm sido descritas para a patogênese da CI/SBD. Não
é de surpreender que a maioria das teorias iniciais se concentrasse na bexiga. Por
exemplo, a CI/SBD foi investigada como uma infecção crônica da bexiga.
Tecnologias sofisticadas não identificaram um organismo causador na urina ou
no tecido vesical; os pacientes estudados por esses métodos tinham, no entanto,
CI/SBD de duração longa, e os resultados não descartaram a possibilidade de
que uma infecção possa desencadear a síndrome ou possa ser uma característica
da CI/SBD inicial. Outros fatores inflamatórios, incluindo um papel dos
mastócitos, foram postulados, mas (conforme descrito anteriormente) os 90% de
pacientes sem úlcera de Hunner têm pouca inflamação vesical e não exibem uma
proeminência de mastócitos na urina ou no tecido vesical. A autoimunidade tem
sido considerada, mas os autoanticorpos estão presentes em título baixo e são
inespecíficos e considerados resultado, e não a causa, da CI/SBD. O aumento de
permeabilidade da mucosa vesical por defeitos no epitélio ou em
glicosaminoglicanos (a cobertura de muco vesical) tem sido estudado com
frequência, mas os achados não têm sido conclusivos.
As investigações de causas externas à bexiga têm sido desencadeadas pela
comorbidade das SSFs. Muitos pacientes com SSF têm sensibilidade anormal à
dor evidenciada por (1) baixo limiar para dor em regiões do corpo não
relacionadas com a síndrome diagnosticada, (2) disfunção do controle
neurológico descendente para sinais táteis e (3) aumento das respostas cerebrais
ao toque em estudos de neuroimagem funcional. Além disso, em pacientes com
CI/SBD, as superfícies do corpo distantes da bexiga são mais sensíveis à dor em
comparação com indivíduos sem CI/SBD. Todos esses achados são consistentes
com suprarregulação do processamento sensitivo no cérebro. De fato, uma teoria
prevalente é a de que essas síndromes que ocorrem de forma concomitante têm
em comum uma anormalidade no processamento cerebral dos estímulos
sensitivos. Contudo, a antecedência é um critério fundamental para a causalidade
e nenhum estudo demonstrou que a sensibilidade anormal à dor preceda a
CI/SBD ou as SSFs.

Apresentação clínica Em alguns pacientes, a CI/SBD tem início gradual e/ou os


sintomas principais de dor vesical, urgência miccional, aumento de frequência
urinária e noctúria aparecem de maneira sequencial, sem uma ordem consistente.
Outros pacientes podem identificar a data exata do início dos sintomas da
CI/SBD. Mais da metade desses últimos descrevem disúria com início naquela
data. Como citado, apenas uma minoria de pacientes com CI/SBD que obtêm
atendimento médico logo após o início dos sintomas tem bactérias
uropatogênicas ou leucócitos na urina. Esses pacientes – e muitos outros com
CI/SBD de início recente – são tratados com antibióticos por suspeita de cistite
bacteriana ou, no caso dos homens, de prostatite bacteriana crônica. Sintomas
persistentes ou recorrentes sem bacteriúria costumam levar à pesquisa de um
diagnóstico diferencial, quando, então, é considerada a CI/SBD.
Tradicionalmente, o diagnóstico de CI/SBD demora anos para ser estabelecido,
mas o recente interesse na doença encurtou esse intervalo.
Dois terços das mulheres com CI/SBD relatam dois ou mais locais de dor.
O local mais comum (envolvido em 80% das mulheres) e geralmente com dor
mais intensa é a região suprapúbica. Cerca de 35% das pacientes mulheres têm
dor na uretra, 25% em outras regiões da vulva e 30% em regiões não urogenitais,
principalmente na região lombar e nas porções anterior ou posterior das coxas ou
nas nádegas. A dor da CI/SBD é mais comumente descrita como contínua, em
pressão, pulsátil, fraca e/ou penetrante. O que pode diferenciar a CI/SBD de
outras causas de dor pélvica é que em 95% dos pacientes o enchimento vesical
exacerba a dor e/ou o seu esvaziamento a alivia. Quase a mesma proporção de
pacientes também relata algum enigmático padrão em que determinadas
substâncias da dieta pioram a dor da CI/SBD. Proporções menores – contudo
ainda majoritárias – de pacientes relatam que a dor da CI/SBD piora com
menstruação, estresse, roupas apertadas, exercícios e andar de carro, bem como
durante ou após intercurso vaginal.
A dor uretral e vulvar da CI/SBD merece menção especial. Além dos
adjetivos descritivos mencionados anteriormente para a CI/SBD, essa dor
costuma ser descrita como queimação, picada e lancinante, com piora causada
pelo toque, uso de tampões menstruais e intercurso vaginal. Os pacientes relatam
que a dor uretral aumenta durante a micção e costuma diminuir depois disso.
Essas características fazem a dor uretral na CI/SBD ser comumente
diagnosticada como síndrome uretral crônica, e a dor vulvar, como vulvodinia.
Em muitos pacientes com CI/SBD, há uma ligação entre dor e urgência
urinária – dois terços dos pacientes descrevem a urgência miccional como um
desejo de aliviar a dor vesical. Apenas 20% relatam que a urgência se refere ao
desejo de evitar a incontinência; de fato, bem poucos pacientes com CI/SBD são
incontinentes. Conforme citado anteriormente, a frequência urinária pode ser
grave, com cerca de 85% dos pacientes urinando > 10 vezes em 24 horas e, em
alguns casos, chegando a 60 vezes ao dia. O esvaziamento vesical continua
durante a noite, e a noctúria é comum, frequente e costuma estar associada à
privação de sono.
Além desses sintomas comuns da CI/SBD, pode haver outros sintomas
urinários e em outros locais. Entre os sintomas urinários estão a dificuldade em
iniciar o fluxo urinário, a percepção de dificuldade para esvaziar a bexiga e
espasmos vesicais. Entre os sintomas não urinários, estão as manifestações de
comorbidades das SSFs e os sintomas que não constituem síndromes
reconhecidas, como dormência, espasmos musculares, tontura, zumbido e visão
borrada.
A dor, a urgência e a frequência da CI/SBD podem ser incapacitantes. A
proximidade de um banheiro é uma preocupação contínua, e os pacientes relatam
dificuldades no ambiente de trabalho, atividades de lazer, viagens e
simplesmente para sair de casa. As relações familiares e sexuais podem ser
prejudicadas.

Diagnóstico A CI/SBD tem sido tradicionalmente considerada como uma


condição rara que é diagnosticada por urologistas por meio da cistoscopia. No
entanto, esse distúrbio é muito mais comum do que se acreditava; ele agora é
considerado mais precocemente no curso da doença e está sendo diagnosticado e
manejado com maior frequência por médicos da atenção primária. Os resultados
do exame físico, do exame comum de urina e dos procedimentos urológicos não
são sensíveis nem específicos. Assim, o diagnóstico se baseia na presença de
sintomas apropriados e na exclusão de doenças com apresentação semelhante.
Três categorias de distúrbios podem ser consideradas no diagnóstico
diferencial de CI/SBD. A primeira compreende doenças que se manifestam
como dor vesical ou sintomas urinários. Entre essas doenças, está a bexiga
hiperativa, uma condição crônica de mulheres e homens que se manifesta como
urgência miccional e aumento da frequência urinária, podendo ser diferenciada
da CI/SBD pela história do paciente: a dor não é uma característica da bexiga
hiperativa, e sua urgência surge da necessidade de evitar a incontinência. A
endometriose é um caso especial: ela pode ser assintomática ou pode causar dor
pélvica, dismenorreia e dispareunia – tipos de dor que simulam a CI/SBD. Os
implantes endometriais na bexiga (apesar de incomuns) podem causar sintomas
urinários, e a síndrome resultante pode ser semelhante à CI/SBD. Mesmo se for
identificada a endometriose, é difícil, na ausência de implantes vesicais,
determinar se ela é a causa dos sintomas de CI/SBD ou se é um achado
incidental em uma determinada paciente.
A segunda categoria de distúrbios engloba as SSFs que podem acompanhar
a CI/SBD. A CI/SBD pode ser erroneamente diagnosticada como dor pélvica
crônica ginecológica, síndrome do intestino irritável ou fibromialgia. O
diagnóstico correto pode ser considerado apenas quando as alterações na dor
com as mudanças de volume vesical ou os sintomas urinários ficarem mais
proeminentes.
A terceira categoria envolve as síndromes que a CI/SBD simula por meio de
dor referida, como vulvodinia e síndrome uretral crônica. Dessa forma, a
CI/SBD deve ser considerada no diagnóstico diferencial de “infecção do trato
urinário (ITU)” persistente ou recorrente com culturas de urina estéreis; “bexiga
hiperativa” com dor; dor pélvica crônica, endometriose, vulvodinia ou SSFs com
sintomas urinários; e “prostatite crônica”. Pistas importantes para o diagnóstico
de CI/SBD são a dor que muda conforme o volume vesical ou com a ingestão de
determinados alimentos ou bebidas.
Anteriormente, acreditava-se que a cistoscopia sob anestesia era necessária
para o diagnóstico de CI/SBD, pela sua capacidade de revelar uma lesão de
Hunner ou – nos 90% de pacientes sem a úlcera – hemorragias petequiais após
distensão vesical. Porém, como as lesões de Hunner são incomuns na CI/SBD e
as petéquias são inespecíficas, a cistoscopia não é mais necessária para o
diagnóstico. Dessa forma, as indicações de encaminhamento para a urologia se
restringem à necessidade de descartar outras doenças ou de administrar
tratamentos mais avançados.
Um paciente típico apresenta-se ao médico da atenção primária após dias,
semanas ou meses de dor vesical, urgência miccional, aumento da frequência
urinária e/ou noctúria. A presença de nitritos, leucócitos ou bactérias
uropatogênicas na urina deve levar prontamente ao tratamento para ITU em
mulheres e ao tratamento para prostatite bacteriana crônica em homens. A
persistência ou recorrência dos sintomas na ausência de bacteriúria deve indicar
um exame pélvico em mulheres, uma dosagem do antígeno prostático específico
em homens, citologia urinária e inclusão de CI/SBD no diagnóstico diferencial
em ambos os sexos.
No diagnóstico de CI/SBD é útil um questionamento sobre dor, pressão e
desconforto; a CI/SBD deve ser considerada se algum desses sintomas for
notado em uma ou mais regiões na face anterior ou posterior entre o umbigo e
porção superior das coxas. Perguntas não direcionadas sobre o efeito das
mudanças do volume vesical incluem: “À medida que se aproxima sua próxima
micção, a dor melhora, piora ou permanece a mesma?” e “Após você urinar, a
dor melhora, piora ou permanece a mesma?”. Estabelecer se a dor é exacerbada
pelo consumo de determinados alimentos e bebidas pode não apenas apoiar o
diagnóstico de CI/SBD como também servir de base para uma das primeiras
etapas no manejo da síndrome. Uma maneira não direcionada de perguntar sobre
a urgência miccional é descrevê-la para o paciente como uma urgência inevitável
de urinar e que é difícil de postergar; perguntas posteriores podem determinar se
a urgência miccional visa aliviar a dor ou evitar a incontinência. Para avaliar a
intensidade e fornecer medidas basais quantitativas, a dor e a urgência devem ser
estimadas pelo paciente em uma escala de 0 a 10, com 0 sendo nenhuma e 10 a
pior imaginável. Deve ser determinada a frequência em um período de 24 horas,
e a noctúria deve ser avaliada como o número de vezes em que o paciente acorda
durante a noite pela necessidade de urinar.
Cerca de metade dos pacientes com CI/SBD tem hematúria microscópica
intermitente ou persistente; essa manifestação e a necessidade de excluir câncer
ou cálculos vesicais necessitam de encaminhamento para urologia ou
uroginecologia. O início do tratamento para CI/SBD não impede a avaliação
urológica subsequente.

TRATAMENTO
Cistite intersticial/síndrome da bexiga dolorosa
O objetivo da terapia é aliviar os sintomas da CI/SBD; o desafio reside no fato de que nenhum tratamento
obtém sucesso de maneira uniforme. Contudo, a maioria dos pacientes costuma obter alívio, em geral com
uma abordagem multidisciplinar. As diretrizes da American Urological Association para o manejo da
CI/SBD são um excelente recurso. A estratégia correta é iniciar com terapias conservadoras e evoluir para
medidas mais arriscadas apenas se houver necessidade e sob a supervisão de um urologista ou
uroginecologista. As táticas conservadoras incluem educação, redução do estresse, mudanças na dieta,
medicamentos, fisioterapia para o assoalho pélvico e tratamento de SSFs associadas.
É possível que meses ou anos tenham se passado desde o início dos sintomas e a vida do paciente pode
estar sendo continuamente prejudicada, com repetidas consultas médicas, provocando frustração e desânimo
no paciente e no médico. Nessas circunstâncias, simplesmente dar um nome para a síndrome já é algo
benéfico. O médico deve discutir a doença, as estratégias diagnósticas e terapêuticas e o prognóstico com o
paciente e o cônjuge e/ou outros membros da família pertinentes, que devem ser alertados de que, embora a
CI/SBD não tenha manifestações visíveis, o paciente sente dor e sofrimento significativo. Essa informação
é particularmente importante para os parceiros sexuais, pois a exacerbação da dor durante e após o
intercurso sexual é uma característica comum da CI/SBD. Como o estresse pode piorar os sintomas de
CI/SBD, a redução do estresse e medidas ativas como exercícios de ioga e meditação podem ser sugeridas.
A Interstitial Cystitis Association (www.ichelp.com) e a Interstitial Cystitis Network (www.ic-network.com)
podem ser úteis nesse processo educacional.
Com o passar do tempo, muitos pacientes identificam alimentos e bebidas particulares que exacerbam
seus sintomas. Alguns exemplos comuns são pimenta, chocolate, frutas cítricas, tomate, álcool, bebidas
cafeinadas e bebidas carbonatadas; listas completas de alimentos que costumam desencadear os sintomas
são disponibilizadas nas páginas da internet citadas anteriormente. Ao formular uma dieta adequada, alguns
pacientes consideram útil excluir todos os possíveis agentes desencadeadores e ir acrescentando os itens de
volta na dieta, um de cada vez, para identificar aqueles que pioram os sintomas. Os pacientes também
devem fazer experiências com volumes de líquidos; alguns encontram alívio com menos líquidos e outros
com mais líquidos.
O assoalho pélvico costuma ser doloroso nos pacientes com CI/SBD. Dois estudos controlados
randomizados mostraram que a fisioterapia semanal direcionada para o relaxamento da musculatura pélvica
obtém mais alívio que um programa semelhante de massagem corporal geral. Essa intervenção pode ser
iniciada sob a supervisão de um fisioterapeuta experiente que compreenda que o objetivo é o relaxamento
do assoalho pélvico e não o seu fortalecimento.
Entre os medicamentos orais, os anti-inflamatórios não esteroides são comumente usados, mas seu uso
é controverso e frequentemente não costuma obter sucesso. Dois estudos controlados randomizados
mostraram que a amitriptilina pode diminuir os sintomas de CI/SBD quando é administrada uma dose
adequada (≥ 50 mg, à noite). Esse fármaco não é usado por sua atividade antidepressiva, mas pelos seus
efeitos comprovados na dor neuropática; no entanto, ele não é aprovado pela Food and Drug Administration
para o tratamento da CI/SBD. Uma dose inicial de 10 mg ao deitar é aumentada semanalmente para até 75
mg (ou menos se uma dose menor proporcionar alívio adequado dos sintomas). Pode haver efeitos
colaterais, como boca seca, ganho ponderal, sedação e constipação. Se esse regime não controlar os
sintomas de forma adequada, pode-se acrescentar o polissulfato de pentosana, um polissacarídeo
semissintético, em dose de 100 mg, 3 vezes ao dia. Teoricamente, seu efeito é repor a camada de
glicosaminoglicanos possivelmente defeituosa sobre a mucosa da bexiga, mas ensaios clínicos controlados
randomizados sugerem apenas um benefício modesto em relação ao placebo. As reações adversas são
incomuns e incluem sintomas gastrintestinais, cefaleia e alopécia. O polissulfato de pentosana tem um
discreto efeito anticoagulante e, talvez, deva ser evitado em pacientes com anormalidades da coagulação.
Alguns relatos sugerem que a terapia adequada para uma SSF é acompanhada por diminuição dos
sintomas de outras SSFs. Conforme citado anteriormente, a CI/SBD costuma estar associada a uma ou mais
SSFs. Dessa forma, parece razoável esperar que, uma vez que as SSFs concomitantes sejam adequadamente
tratadas, os sintomas da CI/SBD também serão aliviados.
Se após vários meses dessas terapias combinadas não for obtido alívio adequado dos sintomas, o
paciente deve ser encaminhado para a urologia ou a uroginecologia, especialidades que têm acesso a
modalidades adicionais de tratamento. A cistoscopia sob anestesia permite a distensão da bexiga com água,
um procedimento que pode ser repetido e propicia vários meses de alívio em aproximadamente 40% dos
pacientes. Nos poucos pacientes com uma lesão de Hunner, a cauterização desta pode proporcionar alívio.
Soluções contendo lidocaína, ácido hialurônico ou dimetilsulfóxido podem ser instiladas dentro da bexiga,
ou ainda a toxina botulínica pode ser injetada na parede da bexiga. Médicos com experiência no cuidado de
pacientes com CI/SBD têm usado anticonvulsivantes, narcóticos e ciclosporina como componentes da
terapia. Especialistas no tratamento da dor podem ser úteis na assistência ao paciente. A neuromodulação
sacral pode ser testada com um eletrodo percutâneo temporário e, se for efetiva, pode ser administrada com
auxílio de um dispositivo implantado. Em um número muito pequeno de pacientes com sintomas
persistentes, a cirurgia pode oferecer alívio, incluindo cistoplastia, cistectomia parcial ou total e derivação
urinária.

LEITURAS ADICIONAIS
Fitzgerald MP et al: Randomized multicenter clinical trial of myofascial physical
therapy in women with interstitial cystitis/painful bladder syndrome and
pelvic floor tenderness. J Urol 187:2113, 2012.
Hanno PM et al: AUA guideline for the diagnosis and treatment of interstitial
cystitis/bladder pain syndrome. J Urol 185:2162, 2011.
Hanno PM et al: Diagnosis and treatment of interstitial cystitis/bladder pain
syndrome: AUA guideline amendment. J Urol 193:1545, 2015.
Shorter B et al: Effect of comestibles on symptoms of interstitial cystitis. J Urol
178:145, 2007.
48
Azotemia e anormalidades urinárias
David B. Mount

As funções normais dos rins são desempenhadas por inúmeros processos


celulares que têm como objetivo manter a homeostase do organismo. A
ocorrência de distúrbios em qualquer uma dessas funções pode levar a
anormalidades que podem ser prejudiciais à sobrevivência. As manifestações
clínicas desses distúrbios dependem da fisiopatologia da lesão renal e, com
frequência, são identificadas como um complexo de sintomas, achados físicos
anormais e alterações laboratoriais que constituem síndromes específicas. Essas
síndromes renais (Tab. 48-1) podem surgir em consequência de uma doença
sistêmica ou podem ocorrer como doença renal primária. Em geral, as síndromes
nefrológicas consistem em vários elementos que refletem os processos
patológicos subjacentes, incluindo uma ou mais das seguintes anormalidades: (1)
redução da taxa de filtração glomerular (TFG); (2) anormalidades do sedimento
urinário (hemácias [eritrócitos], leucócitos, cilindros e cristais); (3) excreção
anormal de proteínas séricas (proteinúria); (4) distúrbios do volume urinário
(oligúria, anúria, poliúria); (5) hipertensão e/ou expansão do volume hídrico
corporal total (edema); (6) anormalidades dos eletrólitos; e (7) em algumas
síndromes, febre/dor. A combinação específica desses achados deve possibilitar
a identificação de uma das principais síndromes nefrológicas (Tab. 48-1), bem
como o estreitamento dos diagnósticos diferenciais, de modo que se possa
alcançar o diagnóstico apropriado e determinar o curso do tratamento. Todas
essas síndromes e suas doenças associadas são analisadas mais detalhadamente
em capítulos subsequentes. Este capítulo enfatiza vários aspectos das
anormalidades renais que são extremamente importantes na diferenciação dos
seguintes processos: (1) redução da TFG; (2) alterações do sedimento urinário
e/ou da excreção de proteínas; e (3) anormalidades do volume urinário. Ver
também Capítulo A3, “Atlas de biópsias renais e sedimentos urinários”.

TABELA 48-1 ■ Dados clínicos e laboratoriais iniciais para definir as principais síndromes nefrológicas
Síndrome Indícios importantes para o Achados comuns Capítulos que discutem
diagnóstico síndromes causadoras de doença

Lesão renal aguda ou Anúria Hipertensão, hematúria 304, 308, 310, 313
rapidamente progressiva
Oligúria Proteinúria, piúria
Declínio recente comprovado da Cilindros, edema
TFG

Nefrite aguda Hematúria, cilindros hemáticos Proteinúria 308


Azotemia, TFG diminuída, oligúria Piúria
Edema, hipertensão Congestão circulatória
Doença renal crônica Azotemia por > 3 meses Proteinúria, cilindros 305
Sinais ou sintomas de uremia Hipocalcemia, hiperfosfatemia,
(manifestação tardia), cilindros hiperparatireoidismo
Sinais e sintomas de osteodistrofia Poliúria, noctúria
renal
Rins bilateralmente pequenos Edema, hipertensão
Cilindros largos no sedimento Hiperpotassemia, acidose
urinário metabólica
Síndrome nefrótica Proteinúria, com > 3,5 g/24 h por Cilindros 308
1,73 m2
Hipoalbuminemia Lipidúria
Edema Estado de hipercoagulabilidade
Hiperlipidemia
Anormalidades urinárias Hematúria 308
assintomáticas
Proteinúria (abaixo da faixa
nefrótica)
Piúria estéril, cilindros
Infecção Bacteriúria, com > 105 UFC/mL Hematúria 130
urinária/pielonefrite
Outros agentes infecciosos Azotemia leve e TFG
isolados na urina diminuída
Piúria, cilindros leucocitários Proteinúria leve
Aumento da frequência, urgência Febre
urinária
Hipersensibilidade vesical e no
flanco
Tubulopatias Distúrbios eletrolíticos Hematúria 309, 310
Poliúria, noctúria Proteinúria “tubular” (< 1 g/24
h)
Calcificação renal Enurese
Rins volumosos Anormalidades eletrolíticas
e/ou acidobásicas
Defeitos de transporte renal Outros distúrbios eletrolíticos
(p. ex., hipomagnesemia)
Hipertensão Hipertensão sistólica/diastólica Proteinúria 271, 311
Cilindros
Azotemia
Nefrolitíase História pregressa de eliminação Hematúria 312
ou remoção de cálculos
História pregressa de cálculos Piúria
detectados em radiografias
Cólica renal Aumento da frequência
urinária, urgência urinária
Obstrução do trato Azotemia, oligúria, anúria Hematúria 313
urinário
Poliúria, noctúria, retenção urinária Piúria
Redução do jato urinário Enurese, disúria

Próstata volumosa, rins grandes


Hipersensibilidade no flanco,
bexiga cheia depois de urinar
Siglas: UFC, unidades formadoras de colônias; TFG; taxa de filtração glomerular.
AZOTEMIA
DETERMINAÇÃO DA TFG
A monitoração da TFG é importante tanto no contexto ambulatorial quanto no
hospitalar e, para isso, dispõe-se de várias metodologias diferentes. A TFG
constitui a principal medida da “função” renal, e a sua aferição direta envolve a
administração de um isótopo radioativo (como a inulina ou o iotalamato), que é
filtrado do glomérulo para dentro do espaço urinário, sem ser reabsorvido nem
secretado ao longo do trajeto tubular. A TFG – depuração da inulina ou do
iotalamato em mililitros por minuto – é calculada a partir da taxa de
aparecimento do isótopo na urina dentro de várias horas. Na maioria das
circunstâncias clínicas, não se dispõe de uma medição direta da TFG, e o nível
plasmático de creatinina é utilizado como substituto para estimar a TFG. A
creatinina plasmática (PCr) constitui o marcador mais amplamente utilizado para
a TFG, que está relacionada diretamente com a excreção urinária de creatinina
(UCr) e inversamente com a PCr. Com base nessa relação (com algumas ressalvas
importantes, conforme discutido adiante), a TFG declina em proporção
aproximadamente inversa à elevação da PCr. Não levar em consideração as
reduções da TFG no cálculo das doses de fármacos pode resultar em morbidade
e mortalidade significativas em consequência dos efeitos tóxicos dos fármacos
(p. ex., digoxina, imipeném). No ambiente ambulatorial, a PCr é utilizada como
estimativa da TFG (embora seja muito menos precisa; ver adiante). Nos
pacientes com doença renal crônica progressiva, existe uma relação
aproximadamente linear entre 1/PCr (eixo y) e o tempo (eixo x). A inclinação
dessa linha mantém-se constante em determinado indivíduo; quando os valores
sofrem desvio, deve-se iniciar uma investigação à procura de algum processo
agudo sobreposto (p. ex., depleção de volume, reação medicamentosa). Verifica-
se o desenvolvimento de sinais e sintomas de uremia, a síndrome clínica
associada à insuficiência renal, com níveis de PCr significativamente diferentes,
dependendo do paciente (peso, idade e sexo), da presença de doença renal
subjacente, coexistência de outras doenças e TFG efetiva. Em geral, os pacientes
não desenvolvem uremia sintomática até que a insuficiência renal seja grave
(TFG < 15 mL/min).
Uma redução significativa da TFG (seja aguda ou crônica) reflete-se
geralmente em uma elevação da PCr, levando à retenção de escórias nitrogenadas
(definida como azotemia), como a ureia. A azotemia pode ser causada por
redução da perfusão renal, doença renal intrínseca ou processos pós-renais
(obstrução ureteral; ver adiante e Fig. 48-1). A determinação exata da TFG é
problemática, visto que ambos os índices comumente determinados (ureia e
creatinina) apresentam características que afetam a sua acurácia como
marcadores da depuração. A depuração da ureia pode subestimar
significativamente a TFG, devido à reabsorção tubular dela. Por outro lado, a
creatinina deriva do metabolismo da creatina nos músculos, e a sua produção
varia pouco de um dia para outro.

FIGURA 48-1 Abordagem ao paciente com azotemia. FeNa, excreção fracionada de sódio; MBG,
membrana basal glomerular.

A depuração da creatinina (CrCl, de creatinine clearance), que proporciona


uma estimativa da TFG, é medida a partir da creatinina plasmática e de sua taxa
de excreção urinária por determinado período de tempo (em geral, 24 horas),
sendo expressa em mililitros por minuto: CrCl = (Uvol × UCr)/(PCr × Tmin). A
“adequação”, ou “qualidade”, da coleta de urina é estimada pelo volume urinário
e pelo conteúdo de creatinina; a creatinina é produzida a partir do músculo e
excretada a uma taxa relativamente constante. Para um homem de 20 a 50 anos
de idade, a excreção de creatinina deve ser de 18,5 a 25,0 mg/kg de peso
corporal; para uma mulher da mesma idade, essa excreção deve ser de 16,5 a
22,4 mg/kg de peso corporal. Exemplificando, um homem pesando 80 kg deve
excretar aproximadamente entre 1.500 e 2.000 mg de creatinina em uma coleta
adequada. A creatinina é útil para estimar a TFG, visto que se trata de um
pequeno soluto filtrado livremente, que não é absorvido pelos túbulos.
Entretanto, os níveis de PCr podem aumentar agudamente em razão da ingestão
dietética de carne cozida, e a creatinina pode ser secretada nos túbulos proximais
por uma via de cátions orgânicos (em especial na doença renal crônica
progressiva avançada), levando à superestimação da TFG. Quando não se dispõe
de uma amostra de urina de 24 horas para determinação da CrCl, as decisões
quanto à dose dos fármacos devem basear-se apenas na PCr. Duas fórmulas são
amplamente utilizadas para estimar a função renal a partir da PCr: (1) fórmula de
Cockcroft-Gault e (2) MDRD (Modificação da Dieta na Doença Renal, de
Modification of Diet in Renal Disease) de quatro variáveis.
Cockcroft-Gault: CrCl (mL/min) = (140 – idade [anos] × peso [kg] × [0,85 se for
mulher]) /(72 × PCr [mg/dL]).
MDRD: TFGe (mL/min por 1,73 m2) = 186,3 × PCr (e–1,154) × idade (e–0,203) ×
(0,742 se for mulher) × (1,21 se for negro).
Existem inúmeros sites para efetuar esses cálculos (www.kidney.org/professional
s/kdoqi/gfr_calculator.cfm). Foi desenvolvida uma nova fórmula, a CKD-EPI
TFGe, ao reunir várias coortes com e sem doença renal, contendo dados sobre a
medição direta da TFG, que parece ser mais acurada:
CKD-EPI: TFGe = 141 × mín. (PCr/k, 1)a × máx. (PCr/k, 1)–1,209 × 0,993idade ×
(1,018 se for mulher) × (1,159 se for negro),
onde PCr refere-se à creatinina plasmática, k é igual a 0,7 para as mulheres e 0,9
para os homens, a é igual a –0,329 para as mulheres e –0,411 para os homens,
mín. indica o valor mínimo da PCr/k ou 1 e máx. indica o valor máximo de PCr/k
ou 1 (http://www.qxmd.com/renal/Calculate-CKD-EPI-GRF.php).
Existem limitações para todas as estimativas da TFG baseadas na
creatinina. Cada equação, juntamente com a coleta de urina de 24 horas para
determinação da depuração da creatinina, parte do pressuposto de que o paciente
encontra-se em estado de equilíbrio, sem elevações ou reduções diárias da PCr
em consequência da rápida mudança da TFG. A equação da MDRD exibe uma
melhor correlação com a TFG verdadeira na presença de TFG < 60 mL/min por
1,73 m2. A perda muscular gradativa, em decorrência de doença crônica, uso
prolongado de glicocorticoides ou desnutrição, pode ocultar a ocorrência de
alterações significativas da TFG, com alterações pequenas ou imperceptíveis da
PCr. A cistatina C é um membro da superfamília cistatina de inibidores da
cisteína protease, que é produzida em taxa relativamente constante por todas as
células nucleadas. A cistatina C sérica foi proposta como um marcador mais
sensível do declínio inicial da TFG do que a PCr; entretanto, à semelhança da
creatinina sérica, a cistatina C é influenciada por idade, raça e sexo do paciente e
também está associada a diabetes melito, tabagismo e marcadores de inflamação.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Azotemia
Uma vez estabelecida a redução da TFG, o médico precisa decidir se essa
anormalidade representa uma lesão renal aguda ou doença renal crônica. A
situação clínica, a história e os resultados dos exames laboratoriais
frequentemente facilitam essa distinção. Entretanto, as anormalidades
laboratoriais típicas da doença renal crônica, incluindo anemia, hipocalcemia
e hiperfosfatemia, também são encontradas frequentemente em pacientes
com lesão renal aguda. As evidências radiográficas de osteodistrofia renal (C
ap. 305) podem ser observadas apenas na doença renal crônica, porém
constituem um achado muito tardio, e esses pacientes tipicamente
apresentam doença renal em estágio terminal (DRET) e são mantidos em
diálise. O exame de urina e a ultrassonografia renal podem facilitar a
diferenciação entre lesão renal aguda e doença renal crônica. A Figura 48-1
mostra uma abordagem para a avaliação de pacientes com azotemia. Com
frequência, os pacientes com doença renal crônica avançada apresentam
alguma proteinúria, urina diluída (isostenúria; isosmótica com o plasma) e
rins pequenos na ultrassonografia, caracterizada por aumento da
ecogenicidade e adelgaçamento cortical. O tratamento deve ter por objetivo
retardar a progressão da doença renal e proporcionar alívio sintomático para
edema, acidose, anemia e hiperfosfatemia, conforme discutido no Capítulo 3
05. A lesão renal aguda (Cap. 304) pode resultar de processos que afetam o
fluxo sanguíneo e a perfusão glomerular (azotemia pré-renal), de doenças
renais intrínsecas (que acometem os vasos sanguíneos de pequeno calibre, os
glomérulos ou os túbulos) ou de processos pós-renais (obstrução do fluxo
urinário nos ureteres, na bexiga ou na uretra) (Cap. 313).

LESÃO RENAL AGUDA PRÉ-RENAL


A redução da perfusão renal é responsável por 40 a 80% dos casos de lesão
renal aguda e, se for tratada adequadamente, pode ser facilmente revertida.
As etiologias da azotemia pré-renal incluem qualquer causa de redução do
volume sanguíneo circulante (hemorragia gastrintestinal, queimaduras,
diarreia, diuréticos), de sequestro de volume (pancreatite, peritonite,
rabdomiólise) ou diminuição do volume arterial efetivo (choque
cardiogênico, sepse). A perfusão renal e glomerular também pode ser afetada
por reduções do débito cardíaco em razão da vasodilatação periférica (sepse,
fármacos) ou vasoconstrição renal profunda (insuficiência cardíaca grave,
síndrome hepatorrenal e fármacos como agentes anti-inflamatórios não
esteroides [AINEs]). A hipovolemia arterial real ou “efetiva” resulta em
queda da pressão arterial média, o que, por sua vez, desencadeia uma série de
respostas neurais e humorais que incluem a ativação do sistema nervoso
simpático e do sistema renina-angiotensina-aldosterona, bem como a
liberação de vasopressina (AVP). A TFG é mantida pelo relaxamento das
arteríolas aferentes mediado pelas prostaglandinas, e pela constrição das
arteríolas eferentes mediada pela angiotensina II. Quando a pressão arterial
média cai para menos de 80 mmHg, ocorre um declínio abrupto da TFG.
O bloqueio da produção de prostaglandinas pelos AINEs pode causar
vasoconstrição grave e lesão renal aguda. O bloqueio da ação da angiotensina
com inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECAs) ou com
bloqueadores do receptor de angiotensina (BRAs) diminui o tônus das
arteríolas eferentes e, por sua vez, reduz a pressão de perfusão dos capilares
glomerulares. Pacientes que usam AINEs e/ou IECAs/BRAs são mais
suscetíveis à lesão renal aguda hemodinamicamente mediada quando há
diminuição do volume sanguíneo ou da pressão de perfusão arterial por
algum motivo. Sob tais circunstâncias, a preservação da TFG depende de
vasodilatação aferente mediada por prostaglandinas e da vasoconstrição
eferente mediada pela angiotensina II. Os pacientes com estenose bilateral
das artérias renais (ou estenose em um único rim) também podem ser
dependentes da vasoconstrição arteriolar eferente para manter a pressão de
filtração glomerular e são particularmente suscetíveis a um declínio abrupto
da TFG quando utilizam IECAs ou BRAs.
A hipoperfusão renal prolongada pode causar necrose tubular aguda
(NTA), uma doença renal intrínseca descrita adiante. O exame de urina e a
determinação dos eletrólitos urinários podem ajudar a diferenciar a azotemia
pré-renal da NTA (Tab. 48-2). O Na e a osmolalidade urinários de pacientes
com azotemia pré-renal podem ser previstos com base nas ações
estimuladoras da norepinefrina, da angiotensina II e da AVP, bem como da
taxa lenta do fluxo tubular. Nos distúrbios pré-renais, os túbulos estão
preservados, levando à formação de urina concentrada (> 500 mOsmol), com
retenção acentuada de Na (concentração urinária de Na < 20 mmol/L,
excreção fracionada de Na (FeNa) < 1%) e UCr/PCr > 40 (Tab. 48-2). A FeNa
é tipicamente > 1% na NTA, mas pode ser < 1% em pacientes com NTA não
oligúrica mais leve (p. ex., por rabdomiólise) e naqueles com distúrbios “pré-
renais” subjacentes, como a insuficiência cardíaca congestiva (ICC) ou
cirrose ou síndrome hepatorrenal. Em geral, o sedimento urinário na
azotemia pré-renal está normal ou apresenta cilindros hialinos e granulosos,
enquanto o sedimento da NTA mostra-se geralmente repleto de restos
celulares, cilindros epiteliais tubulares e cilindros granulosos escuros
(marrom fosco). A medida dos biomarcadores urinários associados à lesão
tubular é uma técnica promissora para detecção de NTA subclínica e/ou para
ajudar a estabelecer adicionalmente o diagnóstico da causa exata de lesão
renal aguda.

TABELA 48-2 ■ Achados laboratoriais na lesão renal aguda


Índice Azotemia pré-renal Lesão renal aguda oligúrica

Razão BUN*/PCr > 20:1 10-15:1

Sódio urinário (UNa), mEq/L < 20 > 40

Osmolalidade urinária, mOsmol/L H2O > 500 < 350

Excreção fracionada de sódioa < 1% > 2%


Creatinina urinária/plasmática (UCr/PCr) > 40 < 20
Exame de urina (cilindros) Nenhum ou hialinos/granulosos Marrom fosco

aFE
UNa × PCr × 100
Na
PNa × UCr

Siglas: PCr, concentração plasmática de creatinina; PNa, concentração plasmática de sódio; UCr, concentração urinária de creatinina; UNa,
concentração urinária de sódio.
*N. de R.T. A ureia sérica é a forma comumente usada no Brasil, com valores normais de 15 a 45 mg/dL. A literatura mundial
geralmente descreve resultados sob a forma de nitrogênio ureico sanguíneo (BUN, blood urea nitrogen), cujos valores normais
correspondem a cerca da metade da ureia sérica (8 a 25 mg/dL).

AZOTEMIA PÓS-RENAL
A obstrução do trato urinário é responsável por < 5% dos casos de lesão renal
aguda, mas geralmente é reversível, devendo ser excluída no início do
processo de avaliação (Fig. 48-1). Como um único rim é capaz de manter
uma depuração adequada, a lesão renal aguda obstrutiva ocorre quando há
obstrução da uretra ou da saída da bexiga, obstrução ureteral bilateral ou
obstrução unilateral no paciente com um único rim funcionante. A obstrução
é geralmente diagnosticada pela existência de dilatação dos ureteres e da
pelve renal na ultrassonografia dos rins. Entretanto, nos estágios iniciais da
obstrução ou se os ureteres não puderem dilatar-se (p. ex., no encarceramento
por tumores pélvicos ou periureterais), a ultrassonografia pode ser negativa.
Outras imagens, como o renograma de furosemida (exame de medicina
nuclear MAG3), podem ser requeridas para melhor definir a presença ou
ausência de uropatia obstrutiva. Os distúrbios urológicos específicos que
causam obstrução estão descritos no Capítulo 313.

DOENÇA RENAL INTRÍNSECA


Quando as azotemias pré e pós-renal são excluídas como causas da
insuficiência renal, há uma doença intrínseca do parênquima renal. A doença
renal intrínseca pode ser causada por processos que afetam os vasos renais
calibrosos, a microcirculação intrarrenal e os glomérulos ou os tecidos
tubulointersticiais. As NTAs isquêmica e tóxica são responsáveis por cerca
de 90% dos casos de lesão renal aguda intrínseca. Conforme demonstrado na
Figura 48-1, o contexto clínico e o exame de urina mostram-se úteis para
distinguir as possíveis etiologias. A azotemia pré-renal e a NTA fazem parte
de um espectro de hipoperfusão renal; na NTA, há indícios de lesão estrutural
dos túbulos, enquanto a azotemia pré-renal reverte imediatamente com a
recuperação da perfusão renal adequada. Por essa razão, a NTA
frequentemente pode ser diferenciada da azotemia pré-renal pelo exame de
urina e pela composição eletrolítica da urina (Tab. 48-2 e Fig. 48-1). A NTA
isquêmica é encontrada mais frequentemente em pacientes submetidos a
cirurgias de grande porte ou que tiveram traumatismo, hipovolemia ou sepse
graves ou queimaduras extensas. A NTA nefrotóxica ocorre como
complicação do tratamento com muitos fármacos comuns, geralmente ao
induzir uma combinação de vasoconstrição intrarrenal, toxicidade tubular
direta e/ou obstrução tubular. Os rins são sensíveis à lesão tóxica em virtude
da sua rica irrigação sanguínea (25% do débito cardíaco), bem como de sua
capacidade de concentrar e metabolizar toxinas. Uma investigação detalhada
para detectar a presença de hipotensão e nefrotoxinas geralmente revela a
etiologia específica da NTA. A interrupção da exposição às nefrotoxinas e a
estabilização da pressão arterial frequentemente são suficientes, sem
necessidade de diálise, com a contínua regeneração das células tubulares.
Uma extensa lista de fármacos e toxinas potencialmente implicados na
etiologia da NTA é disponibilizada no Capítulo 304.
Os processos que acometem os túbulos e o interstício podem causar
lesão renal aguda (LRA). Esses processos incluem a nefrite intersticial
induzida por fármacos (principalmente antibióticos, AINEs e diuréticos),
infecções graves (bacterianas e virais), doenças sistêmicas (p. ex., lúpus
eritematoso sistêmico) e processos infiltrativos (p. ex., sarcoidose, síndrome
de Sjögren, linfoma ou leucemia). Uma lista de fármacos associados à nefrite
intersticial alérgica é disponibilizada no Capítulo 310. Em geral, o exame de
urina demonstra proteinúria leve a moderada, hematúria e piúria (cerca de
75% dos casos) e, em certas ocasiões, cilindros leucocitários. A detecção de
cilindros hemáticos na nefrite intersticial também foi descrita, mas deve levar
a uma investigação de doenças glomerulares (Fig. 48-1). Em alguns casos, a
biópsia renal é necessária para diferenciar essas possibilidades. O clássico
achado de sedimento na nefrite intersticial alérgica consiste na
predominância (> 10%) de eosinófilos urinários à coloração de Wright ou de
Hansel. Entretanto, pode haver aumento de eosinófilos urinários em outras
causas de LRA, de modo que a medida de eosinófilos urinários não tem
utilidade diagnóstica na doença renal.
A oclusão dos vasos renais de grande calibre, inclusive artérias e veias,
constitui uma causa incomum de lesão renal aguda. Uma redução
significativa da TFG por meio desse mecanismo sugere processos bilaterais
ou lesão unilateral em pacientes com rim único funcionante. Em pacientes
com estenose arterial renal preexistente, pode haver desenvolvimento de uma
substancial circulação renal colateral ao longo do tempo, sustentando a
perfusão renal – tipicamente insuficiente para sustentar a filtração glomerular
–no evento de obstrução total da artéria renal. As artérias renais podem ser
obstruídas por ateroêmbolos, tromboêmbolos, trombose in situ, dissecção
aórtica ou vasculite. A lesão renal ateroembólica pode ocorrer de modo
espontâneo, porém está mais frequentemente associada à manipulação aórtica
recente. Os êmbolos são ricos em colesterol e alojam-se nas artérias de médio
e pequeno calibres, onde geram uma reação inflamatória rica em eosinófilos.
Os pacientes com lesão renal aguda ateroembólica geralmente têm exame de
urina normal, mas a urina pode conter eosinófilos e cilindros. O diagnóstico
pode ser confirmado pela biópsia renal, porém esta é geralmente
desnecessária quando há outros sinais de ateroembolismo (livedo reticular,
infartos periféricos distais, eosinofilia). A trombose da artéria renal pode
causar proteinúria leve e hematúria, enquanto a trombose da veia renal
geralmente provoca proteinúria maciça e hematúria. Com frequência, essas
complicações vasculares devem ser confirmadas por angiografia e estão
descritas no Capítulo 311.
As doenças dos glomérulos (glomerulonefrite e vasculite) e da
microcirculação renal (síndromes hemolítico-urêmicas, púrpura
trombocitopênica trombótica e hipertensão maligna) geralmente se
manifestam por várias combinações de lesão glomerular: proteinúria,
hematúria, TFG reduzida e alterações da excreção de sódio, que resultam em
hipertensão, edema e congestão circulatória (síndrome nefrítica aguda). Essas
anormalidades podem ocorrer como doenças renais primárias ou como
manifestações renais de distúrbios sistêmicos. O quadro clínico e os
resultados dos exames laboratoriais ajudam a diferenciar as doenças renais
primárias das doenças sistêmicas. A detecção de cilindros hemáticos na urina
é uma indicação para biópsia renal precoce (Fig. 48-1), visto que o padrão
patológico tem implicações importantes para o diagnóstico, o prognóstico e o
tratamento. Hematúria sem cilindros hemáticos também pode ser uma
indicação de doença glomerular, uma vez que esses cilindros são altamente
específicos e pouco sensíveis para glomerulonefrite. A especificidade da
microscopia de urina pode ser intensificada pelo exame da urina em
microscópio de contraste de fase capaz de detectar hemácias dismórficas
(“acantócitos”) associadas à doença glomerular. Essa avaliação é
simplificada na Figura 48-2. Uma descrição detalhada das
glomerulonefrites e das doenças da microcirculação renal é encontrada
no Capítulo 310.
FIGURA 48-2 Abordagem ao paciente com hematúria. ANCA, anticorpo anticitoplasma de
neutrófilo; ASLO, antiestreptolisina O; TC, tomografia computadorizada; MBG, membrana basal
glomerular; PIV, pielografia intravenosa; EAS, exame de urina; VDRL, Venereal Disease Research
Laboratory; HIV, vírus da imunodeficiência humana.

OLIGÚRIA E ANÚRIA
O termo oligúria refere-se a um débito urinário < 400 mL em 24 horas,
enquanto a anúria refere-se à ausência completa de formação de urina (< 100
mL). A anúria pode ser causada pela obstrução total bilateral do trato
urinário; uma catástrofe vascular (dissecção ou obstrução arterial); trombose
venosa renal; nefropatia aguda por cilindros no mieloma; necrose cortical
renal; NTA grave; terapia combinada com AINEs, IECAs e/ou BRAs; e
choque hipovolêmico, cardiogênico ou séptico. A oligúria nunca é normal,
uma vez que pelo menos 400 mL de urina maximamente concentrada devem
ser produzidos para excretar a carga osmolar diária obrigatória. O termo não
oligúria refere-se a um débito urinário > 400 mL/dia em pacientes com
azotemia aguda ou crônica. Na NTA não oligúrica, os distúrbios do equilíbrio
de potássio e hidrogênio são menos graves que nos pacientes oligúricos, e a
recuperação da função renal normal é mais rápida.
ANORMALIDADES DA URINA
PROTEINÚRIA
A avaliação da proteinúria é mostrada de modo esquemático na Figura 48-3 e
tipicamente começa após a detecção dessa anormalidade urinária com fita
reagente. A pesquisa com fita reagente detecta apenas a albumina e produz
resultados falso-positivos quando o pH é > 7,0 ou quando a urina está muito
concentrada ou apresenta muito sangue. Como a fita reagente baseia-se na
concentração urinária de albumina, uma urina muito diluída pode mascarar a
presença de proteinúria significativa com o uso desse teste. A quantificação da
albumina urinária em uma amostra de urina (de preferência uma amostra da
primeira urina da manhã) por meio da determinação da razão albumina-
creatinina (RAC) mostra-se útil na estimativa da taxa de excreção de albumina
(TEA) de 24 horas, em que a RAC (mg/g) ≈ TEA (mg/24 h). Além disso, a
proteinúria que não consiste predominantemente de albumina será omitida no
rastreamento com fita reagente. Essa informação é particularmente importante
para a detecção das proteínas de Bence-Jones na urina dos pacientes com
mieloma múltiplo. Os testes para determinação da concentração urinária total de
proteína baseiam-se precisamente na precipitação com ácido sulfossalicílico ou
ácido tricloroacético (Fig. 48-3). Assim como com a albuminúria, a razão
proteína/creatinina em uma amostra de urina aleatória também fornece uma
estimativa bruta da excreção proteica. Exemplificando, uma razão
proteína/creatinina igual a 3,0 está correlacionada com aproximadamente 3,0 g
de proteinúria por dia. A avaliação formal da excreção urinária de proteína
requer uma coleta de proteína em urina de 24 horas (ver “Determinação da
TFG”, anteriormente).
FIGURA 48-3 Abordagem ao paciente com proteinúria. A investigação da proteinúria é frequentemente
iniciada por um resultado positivo da fita reagente no exame de urina. As fitas reagentes convencionais
detectam predominantemente a albumina e fornecem uma avaliação semiquantitativa (traços, 1+, 2+ ou 3+),
que é influenciada pela concentração urinária, refletida pela densidade específica da urina (mínimo < 1,005;
máximo de 1,030). Contudo, para uma quantificação mais precisa da proteinúria, devem-se empregar uma
amostra de urina pela manhã para a razão proteína/creatinina (mg/g) ou uma coleta de urina de 24 horas
(mg/24 h). GESF, glomerulosclerose segmentar focal; EPU, eletroforese de proteínas urinárias; IgA,
imunoglobulina A.

A magnitude da proteinúria e a sua composição na urina dependem do


mecanismo da lesão renal que leva à perda de proteínas. Normalmente, a
seletividade tanto da carga elétrica quanto do tamanho impede que quase toda a
albumina, as globulinas e outras proteínas de alto peso molecular do plasma
atravessem a parede glomerular. Contudo, se essa barreira for rompida, pode
ocorrer extravasamento das proteínas plasmáticas para a urina (proteinúria
glomerular; Fig. 48-3). As proteínas menores (< 20 kDa) são filtradas
livremente, porém são prontamente absorvidas pelos túbulos proximais.
Tradicionalmente, os indivíduos sadios excretam < 150 mg/dia de proteínas
totais e < 30 mg/dia de albumina. Entretanto, mesmo na presença de níveis de
albumina < 30 mg/dia, o risco de progressão para nefropatia franca ou doença
cardiovascular subsequente apresenta-se aumentado. As proteínas restantes na
urina são secretadas pelos túbulos (Tamm-Horsfall, IgA e urocinase) ou
representam quantidades pequenas de β2-microglobulina, apoproteínas, enzimas
e hormônios peptídicos filtrados. Outro mecanismo da proteinúria ocorre quando
há produção excessiva de uma proteína anormal, que ultrapassa a capacidade de
reabsorção tubular. Essa situação ocorre mais comumente nas discrasias de
plasmócitos, como o mieloma múltiplo, amiloidose e linfomas associados à
produção monoclonal de cadeias leves de imunoglobulinas.
As células endoteliais glomerulares normais formam uma barreira composta
de poros com cerca de 100 nm, que retêm as células sanguíneas, mas oferecem
pouco obstáculo à passagem da maioria das proteínas. A membrana basal
glomerular segura a maior parte das proteínas grandes (> 100 kDa), enquanto os
pedicelos das células epiteliais (podócitos) cobrem a face urinária da membrana
basal glomerular e formam uma série de canais estreitos (fendas diafragmáticas),
que permitem a passagem molecular de pequenos solutos e água, mas não das
proteínas. Algumas doenças glomerulares, como a doença por lesão mínima,
causam a fusão dos pedicelos das células epiteliais dos glomérulos, resultando
em perda predominantemente “seletiva” de albumina (Fig. 48-3). Outras
doenças glomerulares podem manifestar-se na forma de ruptura da membrana
basal e das fendas diafragmáticas (p. ex., deposição de imunocomplexos),
resultando em perda de albumina e de outras proteínas plasmáticas. A fusão dos
pedicelos causa aumento da pressão ao longo da membrana basal capilar,
resultando em áreas com poros de maior tamanho (e em proteinúria “não
seletiva” mais grave; Fig. 48-3).
Quando a excreção diária total de proteínas é > 3,5 g, também se verificam,
com frequência, a presença de hipoalbuminemia, hiperlipidemia e edema
(síndrome nefrótica; Fig. 48-3). Entretanto, a excreção diária total de proteínas
urinárias > 3,5 g pode ocorrer sem outras manifestações da síndrome nefrótica
em uma variedade de outras doenças renais, incluindo diabetes melito (Fig. 48-
3). As discrasias de plasmócitos (mieloma múltiplo) podem estar associadas a
grandes quantidades de cadeias leves excretadas na urina, que podem passar
despercebidas no teste com fita reagente. As cadeias leves produzidas são
filtradas pelos glomérulos e superam a capacidade de reabsorção dos túbulos
proximais. A lesão renal secundária a esses distúrbios ocorre por uma variedade
de mecanismos, incluindo (sem se limitar a) lesão tubular proximal, obstrução
tubular (nefropatia por cilindros), deposição de amiloide e depósito de cadeias
leves (Cap. 310). A lesão renal específica é ditada pela sequência e pelas
características estruturais da cadeia leve monoclonal. Entretanto, nem todas as
cadeias leves excretadas são nefrotóxicas.
A hipoalbuminemia na síndrome nefrótica ocorre em consequência de
perdas urinárias excessivas e aumento do catabolismo tubular proximal da
albumina filtrada. O edema é causado pela retenção renal de sódio e diminuição
da pressão oncótica do plasma, que favorece a transferência dos líquidos dos
capilares para o interstício. Para compensar a diminuição percebida do volume
intravascular efetivo, ocorrem ativação do sistema renina-angiotensina,
estimulação de AVP e ativação do sistema nervoso simpático, promovendo uma
reabsorção renal continuada de sal e de água e formação progressiva de edema.
As proteases filtradas, normalmente retidas pela barreira de filtração glomerular,
também podem ativar diretamente a reabsorção de sódio via canais epiteliais de
Na (CENa) nas células principais durante a síndrome nefrótica. Apesar dessas
alterações, a hipertensão é incomum nas doenças renais primárias que resultam
em síndrome nefrótica (Fig. 48-3 e Cap. 308) A perda urinária das proteínas
reguladoras e as alterações da síntese hepática contribuem para as outras
manifestações da síndrome nefrótica. Pode surgir um estado de
hipercoagulabilidade em consequência das perdas urinárias de antitrombina III,
dos níveis séricos reduzidos das proteínas S e C, da hiperfibrinogenemia e da
agregação plaquetária exacerbada. A hipercolesterolemia, que pode ser grave,
resulta do aumento da síntese hepática de lipoproteínas. A perda das
imunoglobulinas contribui para o risco aumentado de infecção. Muitas doenças
(algumas das quais relacionadas na Fig. 48-3) e fármacos podem causar a
síndrome nefrótica. Uma lista completa pode ser encontrada no Capítulo 308.

HEMATÚRIA, PIÚRIA E CILINDROS


A hematúria isolada sem proteinúria, outras células ou cilindros frequentemente
indica sangramento proveniente do trato urinário. A hematúria é definida pela
presença de 2 a 5 hemácias por campo de grande aumento (CGA) e pode ser
detectada com o uso de fita reagente. Pode-se obter um resultado falso-positivo
na fita reagente para hematúria (nenhuma hemácia é detectada ao exame
microscópico da urina) na presença de mioglobinúria, frequentemente no
contexto de rabdomiólise. Entre as causas comuns de hematúria isolada estão
cálculos, neoplasias, tuberculose, traumatismo e prostatite. A hematúria
macroscópica com coágulos sanguíneos geralmente não constitui um processo
renal intrínseco; na verdade, sugere uma fonte pós-renal no sistema coletor
urinário. A avaliação dos pacientes com hematúria microscópica está descrita na
Figura 48-2. É comum detectar a presença de hematúria no exame de urina, que
pode ser causada por menstruação, doenças virais, alergia, exercício ou
traumatismo leve. A hematúria persistente ou significativa (> 3 hemácias/CGA
em três exames de urina, um único exame de urina com > 100 hemácias ou
hematúria macroscópica) está associada a lesões renais ou urológicas
significativas em 9,1% dos casos. A suspeita de neoplasias urogenitais em
pacientes com hematúria indolor isolada e hemácias não dismórficas aumenta
com a idade. As neoplasias são raras na população pediátrica, e a hematúria
isolada tem mais tendência a ser “idiopática” ou a estar associada a alguma
anomalia congênita. A hematúria com piúria e bacteriúria é típica de infecção,
devendo ser tratada com antibióticos depois das culturas apropriadas. Nas
mulheres, a cistite ou uretrite agudas podem causar hematúria macroscópica. A
hipercalciúria e a hiperuricosúria também constituem fatores de risco para a
hematúria isolada inexplicável tanto em crianças quanto em adultos. Em alguns
desses pacientes (50-60%), a redução da excreção de cálcio e de ácido úrico por
meio de intervenções dietéticas pode eliminar a hematúria microscópica.
A hematúria microscópica isolada pode constituir uma manifestação de
doenças glomerulares. As hemácias de origem glomerular frequentemente são
dismórficas quando examinadas por microscopia de contraste de fase. Os
formatos irregulares das hemácias também podem ser causados pelas alterações
do pH e da osmolaridade ao longo do néfron distal. É comum haver uma
variabilidade entre diferentes observadores na detecção de hemácias dismórficas.
As etiologias mais comuns da hematúria glomerular isolada são a nefropatia por
IgA, a nefrite hereditária e a doença da membrana basal fina. A nefropatia por
IgA e a nefrite hereditária podem causar episódios de hematúria macroscópica.
Com frequência, obtém-se uma história familiar de doença renal em pacientes
com nefrite hereditária, e os pacientes com doença da membrana basal fina
possuem comumente outros familiares com hematúria microscópica. É
necessário efetuar uma biópsia renal para o diagnóstico definitivo desses
distúrbios, que são discutidos com mais detalhes no Capítulo 308. A hematúria
com hemácias dismórficas, cilindros hemáticos e excreção proteica > 500 mg/dia
é praticamente diagnóstica de glomerulonefrite. Os cilindros hemáticos são
formados à medida que as hemácias que entram no líquido tubular ficam retidas
em um molde cilíndrico de proteína de Tamm-Horsfall em forma de gel. Mesmo
na ausência de azotemia, esses pacientes devem fazer avaliação sorológica e
biópsia renal, conforme mostrado na Figura 48-2.
A piúria isolada é incomum, visto que as reações inflamatórias dos rins ou
do sistema coletor também estão associadas à hematúria. A presença de bactérias
sugere infecção, enquanto os cilindros leucocitários com bactérias indicam
pielonefrite. Além disso, podem ser observados leucócitos e/ou cilindros
leucocitários na glomerulonefrite aguda, bem como em processos
tubulointersticiais, como nefrite intersticial e rejeição do transplante.
É possível observar cilindros nas doenças renais crônicas. Podem ocorrer
cilindros celulares degenerados na urina, conhecidos como cilindros céreos ou
cilindros largos (formados nos túbulos dilatados que sofreram hipertrofia
compensatória em resposta à redução da massa renal).
ANORMALIDADES DO VOLUME URINÁRIO
POLIÚRIA
Com base na história clínica, frequentemente é difícil para os pacientes
diferenciar o aumento da frequência urinária (em geral, volumes pequenos) da
poliúria verdadeira (> 3 L/dia), podendo ser necessária uma quantificação do
volume por meio de coleta da urina de 24 horas (Fig. 48-4). A poliúria resulta de
dois mecanismos potenciais: (1) excreção de solutos não absorvíveis (como a
glicose) ou (2) excreção de água (geralmente, em decorrência de um defeito na
síntese do AVP ou na responsividade renal). Com o propósito de diferenciar uma
diurese de solutos de uma diurese aquosa e para determinar se a diurese é
apropriada para as condições clínicas do paciente, deve-se medir a osmolalidade
urinária. O indivíduo de porte médio excreta 600-800 mOsmol de solutos por
dia, principalmente ureia e eletrólitos. Se o débito urinário for > 3 L/dia e a urina
estiver diluída (< 250 mOsmol/L), a excreção osmolar total estará normal e o
paciente terá diurese aquosa. Essa circunstância pode ser causada por polidipsia,
secreção inadequada de vasopressina (diabetes insípido central) ou incapacidade
dos túbulos renais de responder à vasopressina (diabetes insípido nefrogênico).
Se o volume urinário for > 3 L/dia e a osmolalidade urinária for > 300
mOsmol/L, certamente existirá diurese de solutos e será obrigatório investigar
o(s) soluto(s) responsável(is).
FIGURA 48-4 Abordagem ao paciente com poliúria. ADH, hormônio antidiurético; NTA, necrose
tubular aguda.

A filtração excessiva de um soluto pouco reabsorvido, como a glicose ou o


manitol, pode reduzir a reabsorção de NaCl e água pelos túbulos proximais e
provocar diurese excessiva. O diabetes melito mal controlado com glicosúria
constitui a causa mais comum da diurese de solutos, levando à depleção de
volume e à hipertonicidade sérica. Como a concentração urinária de sódio é
menor do que a do sangue, o indivíduo perde mais água do que sódio, o que
causa hipernatremia e hipertonicidade. A diurese de solutos iatrogênica comum
ocorre em associação com a administração de manitol, meios de contraste
radiológicos e nutrição hiperproteica (enteral ou parenteral), resultando na
produção e excreção aumentadas de ureia. Em casos menos frequentes, a perda
excessiva de sódio pode resultar de doenças renais císticas ou da síndrome de
Bartter, ou pode ocorrer durante a evolução de processo tubulointersticial (como
a NTA em resolução). Nesses denominados distúrbios com perda de sal, a lesão
tubular resulta em comprometimento direto da reabsorção de sódio e,
indiretamente, diminui a responsividade dos túbulos à aldosterona. Em geral, as
perdas de sódio são discretas, e o débito urinário obrigatório é < 2 L/dia; a NTA
em resolução e a diurese pós-obstrutiva constituem exceções e podem estar
associadas a natriurese e poliúria significativas.
A produção de grandes volumes de urina diluída é geralmente devida a
estados de polidipsia ou diabetes insípido. A polidipsia primária pode ser
causada por hábito, transtornos psiquiátricos, lesões neurológicas ou fármacos.
Durante a polidipsia deliberada, o volume do líquido extracelular apresenta-se
normal ou expandido, e os níveis plasmáticos da vasopressina encontram-se
reduzidos, visto que a osmolalidade sérica tende a ficar próxima dos limites
inferiores normais. A osmolalidade urinária também tem uma diluição máxima
em 50 mOsmol/L.
O diabetes insípido central pode ser de origem idiopática ou pode ser
secundário a uma variedade de condições, inclusive hipofisectomia,
traumatismo, doenças neoplásicas, inflamatórias, vasculares ou infecciosas do
hipotálamo. O diabetes insípido central idiopático está associado à destruição
seletiva dos neurônios que secretam vasopressina nos núcleos supraópticos e
paraventriculares, podendo ser herdado como traço autossômico dominante ou
ocorrer espontaneamente. O diabetes insípido nefrogênico pode ocorrer em
várias condições clínicas, conforme resumido na Figura 48-4.
O nível plasmático de AVP é recomendado como o melhor método para
diferenciar as formas nefrogênica e central do diabetes insípido. Como
alternativa, o teste de privação hídrica com administração de vasopressina
exógena também pode diferenciar a polidipsia primária do diabetes insípido
nefrogênico e central. Para uma discussão detalhada, ver Capítulo 374.
Agradecimento Este capítulo foi adaptado e atualizado a partir da versão
anterior, escrito por Julie Lin e Bradley Denker.

LEITURAS ADICIONAIS
Emmett M et al: Approach to the patient with kidney disease, in Brenner and
Rector’s The Kidney, 10th ed, K Skorecki et al (eds). Philadelphia, W.B.
Saunders & Company, 2016, pp 754–779.
Köhler H et al: Acanthocyturia—A characteristic marker for glomerular
bleeding. Kidney Int 40:115, 1991.
Levey AS et al: Glomerular filtration rate and albuminuria for detection and
staging of acute and chronic kidney disease in adults: A systematic review.
JAMA 313:837, 2015.
Perazella MA: The urine sediment as a biomarker of kidney disease. Am J
Kidney Dis 66:748, 2015.
Sharfuddin AA et al: Acute kidney injury, in Brenner and Rector’s The Kidney,
10th ed, K Skorecki et al (eds). Philadelphia, W.B. Saunders & Company,
2016, pp 958–1011.
49
Distúrbios hidreletrolíticos
David B. Mount
SÓDIO E ÁGUA
COMPOSIÇÃO DOS LÍQUIDOS CORPORAIS
A água é o componente mais abundante no organismo, representando cerca de
50% do peso corporal nas mulheres e 60% nos homens. A água corporal total é
distribuída em dois compartimentos principais: intracelular (55-75%; líquido
intracelular [LIC]) e extracelular (25-45%; líquido extracelular [LEC]). O LEC
ainda se subdivide nos espaços intravascular (água plasmática) e extravascular
(intersticial) em uma razão de 1:3. O movimento de líquido entre os espaços
intravascular e intersticial ocorre através da parede capilar e é determinado pelas
forças de Starling, isto é, pela pressão hidráulica capilar e pela pressão
coloidosmótica. O gradiente de pressão hidráulica transcapilar ultrapassa o
gradiente de pressão oncótica correspondente, favorecendo, assim, o movimento
do ultrafiltrado de plasma para o espaço extravascular. O retorno do líquido para
o compartimento intravascular ocorre através do fluxo linfático. Ver também
exemplos de casos no Capítulo C1.
A concentração de solutos ou partículas de um líquido é conhecida como
sua osmolalidade, sendo expressa em miliosmóis por quilograma de água
(mOsm/kg). A água difunde-se facilmente através da maioria das membranas
celulares até atingir um equilíbrio osmótico (osmolalidade do LEC =
osmolalidade do LIC). É importante ressaltar que as composições de solutos
extracelulares e intracelulares diferem de modo considerável, devido à atividade
de vários transportadores, canais e bombas de membrana impulsionadas pelo
trifosfato de adenosina (ATP). As principais partículas do LEC são o Na+ e seus
ânions acompanhantes, o Cl– e o HCO3–, enquanto o K+ e os ésteres de fosfato
orgânico (ATP, fosfato de creatina e fosfolipídeos) constituem os osmóis
predominantes do LIC. Os solutos restritos ao LEC ou ao LIC determinam a
“tonicidade” ou osmolalidade efetiva desse compartimento. Determinados
solutos, em particular a ureia, não contribuem para os deslocamentos da água
através da maioria das membranas e, por esse motivo, são conhecidos como
osmóis inefetivos.

Balanço hídrico A secreção de vasopressina, a ingestão de água e o transporte


renal de água colaboram para manter a osmolalidade dos líquidos do corpo
humano entre 280 e 295 mOsm/kg. A vasopressina (AVP) é sintetizada em
neurônios magnocelulares no hipotálamo, cujos axônios distais se projetam para
a hipófise posterior, ou neuro-hipófise, a partir da qual a AVP é liberada na
circulação. Uma rede de neurônios “osmorreceptores” centrais, que inclui os
próprios neurônios magnocelulares que expressam AVP, detecta a osmolalidade
circulante através de canais de cátions não seletivos, ativados por estiramento.
Esses neurônios osmorreceptores são ativados ou inibidos por elevações e por
reduções modestas da osmolalidade circulante, respectivamente; a ativação leva
à liberação de AVP e à sensação de sede.
A secreção de AVP é estimulada à medida que a osmolalidade sistêmica
aumenta acima de um nível limiar de cerca de 285 mOsm/kg, acima do qual
existe uma relação linear entre a osmolalidade e a AVP circulante (Fig. 49-1). A
sede e, em consequência, a ingestão de água também são ativadas em um nível
de cerca de 285 mOsm/kg, acima do qual existe um aumento linear equivalente
na intensidade da sede percebida em função da osmolalidade circulante. As
alterações no volume sanguíneo e na pressão arterial também constituem
estímulos diretos para a liberação de AVP e para a sensação de sede, porém com
um perfil de resposta menos sensível. Talvez de maior relevância clínica para a
fisiopatologia da homeostase da água seja o volume de LEC, que modula
acentuadamente a relação entre a osmolalidade circulante e a liberação de AVP,
de modo que a hipovolemia diminui o limiar osmótico e aumenta a inclinação da
curva de resposta à osmolalidade, enquanto a hipervolemia exerce o efeito
oposto, elevando o limiar osmótico e reduzindo a inclinação da curva de resposta
(Fig. 49-1). É importante destacar que a AVP tem meia-vida na circulação de
apenas 10 a 20 minutos; por conseguinte, alterações no volume de LEC e/ou na
osmolalidade circulante podem afetar rapidamente a homeostase da água. Além
do estado de volume, diversos estímulos “não osmóticos” exercem efeitos
ativadores potentes sobre os neurônios osmossensíveis e sobre a liberação de
AVP, incluindo náusea, angiotensina II intracerebral, serotonina e múltiplos
fármacos.
FIGURA 49-1 Níveis circulantes de vasopressina (AVP) em resposta a alterações na osmolalidade. A
AVP plasmática torna-se detectável em indivíduos sadios euvolêmicos em um limiar de cerca de 285
mOsm/kg, acima do qual existe uma relação linear entre a osmolalidade e a AVP circulante. A resposta da
vasopressina à osmolalidade é fortemente modulada pelo estado de volume. Por conseguinte, o limiar
osmótico é ligeiramente mais baixo na hipovolemia, com uma curva de resposta mais inclinada; a
hipervolemia reduz a sensibilidade dos níveis circulantes de AVP à osmolalidade.

A excreção ou a retenção de água sem eletrólitos pelos rins são moduladas


pelos níveis circulantes de AVP. A AVP atua sobre os receptores tipo V2 no ramo
ascendente espesso da alça de Henle e células principais do ducto coletor (DC),
aumentando os níveis intracelulares de monofosfato de adenosina cíclico
(AMPc) e ativando a fosforilação de múltiplas proteínas de transporte
dependente de proteína-cinase A (PKA). A ativação do transporte de Na+-Cl– e
K+ dependente de AVP e PKA pelo ramo ascendente espesso da alça de Henle
(TALH) constitui um fator-chave no mecanismo de contracorrente (Fig. 49-2). O
mecanismo de contracorrente aumenta, por fim, a osmolalidade intersticial na
medula interna do rim, impulsionando a absorção de água através do DC renal.
Entretanto, o transporte de água, sal e solutos pelos segmentos proximal e distal
do néfron participa no mecanismo de concentração renal (Fig. 49-2). O
transporte de água através dos canais de água aquaporina-1 apicais e basolaterais
no ramo descendente delgado da alça de Henle está, portanto, envolvido, bem
como a absorção passiva de Na+-Cl– pelo ramo ascendente delgado, por meio dos
canais de cloreto CLC-K1 apicais e basolaterais, e do transporte de Na+
paracelular. Por sua vez, o transporte renal de ureia desempenha papéis
importantes na geração do gradiente osmótico medular e na capacidade de
excretar água livre de solutos, em condições de aporte de proteína tanto alto
quanto baixo (Fig. 49-2).

FIGURA 49-2 O mecanismo de concentração renal. O transporte de água, sal e solutos pelos segmentos
proximal e distal do néfron participa no mecanismo de concentração renal (consultar texto para detalhes).
Esquema mostrando a localização das principais proteínas de transporte envolvidas; uma alça de Henle é
ilustrada à esquerda, e um ducto coletor, à direita. AQP, aquaporina; CLC-K1, canal de cloreto; NKCC2,
cotransportador de Na-K-2Cl; ROMK, canal renal medular externo de K+; TU, transportador de ureia;
CNC, cotransportador de Na+-Cl–. (Usada, com permissão, de JM Sands: Molecular approaches to urea
transporters. J Am Soc Nephrol 13:2795, 2002.)

A fosforilação do canal de água aquaporina-2 induzida pela AVP e


dependente de PKA nas células principais estimula a inserção de canais de água
ativos na luz do DC, resultando em absorção transepitelial de água ao longo do
gradiente osmótico medular (Fig. 49-3). Em condições “antidiuréticas”, com
aumento da AVP circulante, os rins reabsorvem a água filtrada pelo glomérulo,
equilibrando a osmolalidade através do epitélio do DC para excretar uma urina
“concentrada” hipertônica (com osmolalidade de até 1.200 mOsm/kg). Na
ausência de AVP circulante, a inserção de canais de aquaporina-2 e a absorção de
água através do DC são essencialmente abolidas, resultando na secreção de uma
urina diluída hipotônica (com osmolalidade de apenas 30-50 mOsm/kg). A
maioria dos distúrbios da homeostase da água está associada a anormalidades
nessa “via comum final”, por exemplo, redução ou ausência de inserção de
canais de água aquaporina-2 ativos na membrana das células principais no
diabetes insípido (DI).

FIGURA 49-3 Vasopressina e regulação da permeabilidade à água no ducto coletor renal. A


vasopressina liga-se ao receptor de vasopressina tipo 2 (V2R) na membrana basolateral das células
principais, ativa a adenilciclase (AC), aumenta o monofosfato de adenosina cíclico (AMPc) intracelular e
estimula a atividade da proteína-cinase A (PKA). As vesículas citoplasmáticas que transportam as proteínas
do canal de água aquaporina-2 (AQP2) são inseridas na membrana luminal, em resposta à vasopressina,
aumentando a permeabilidade dessa membrana à água. Quando a estimulação da vasopressina termina, os
canais de água são recuperados por um processo endocítico, e a permeabilidade à água retorna a seu estado
basal baixo. Os canais de água AQP3 e AQP4 são expressos na membrana basolateral e completam a via
transcelular de reabsorção de água. pAQP2, aquaporina-2 fosforilada. (De JM Sands, DG Bichet:
Nephrogenic diabetes insipidus. Ann Intern Med 144:186, 2006, com permissão.)

Manutenção da integridade circulatória arterial O sódio é bombeado


ativamente para fora das células pela bomba de Na+/K+-ATPase da membrana.
Em consequência, 85-90% do Na+ corporal são extracelulares, e o volume de
LEC (VLEC) constitui uma função do conteúdo corporal total de Na+. Por sua
vez, a perfusão arterial e o equilíbrio circulatório são determinados pela retenção
ou excreção renal de Na+, além da modulação da resistência arterial sistêmica.
Nos rins, o Na+ é filtrado pelos glomérulos e, em seguida, reabsorvido
sequencialmente pelos túbulos renais. O cátion Na+ é geralmente reabsorvido
com o ânion cloreto (Cl–), de modo que a homeostase do cloreto também afeta o
VLEC. Em nível quantitativo, com uma taxa de filtração glomerular (TFG) de
180 L/dia e níveis séricos de Na+ de cerca de 140 mM, os rins filtram cerca de
25.200 mmol/dia de Na+. Isso equivale a cerca de 1,5 kg de sal, o que ocuparia
aproximadamente 10 vezes o espaço extracelular; 99,6% do Na+-Cl– filtrado
precisam ser reabsorvidos para uma excreção de 100 mM por dia. Por
conseguinte, a ocorrência de alterações mínimas na excreção renal de Na+-Cl–
terá efeitos significativos sobre o VLEC, resultando em síndromes de edema ou
hipovolemia.
Cerca de dois terços do Na+-Cl– filtrado são reabsorvidos pelo túbulo
proximal renal por meio de mecanismos tanto paracelulares quanto
transcelulares. Subsequentemente, o TALH reabsorve outros 25-30% de Na+-Cl–
filtrado por meio do cotransportador de Na+-K+-2Cl– apical, sensível à
furosemida. O néfron distal adjacente sensível à aldosterona, que compreende o
túbulo contorcido distal (TCD), o túbulo conector (TC) e o DC, é responsável
pelo “controle fino” da excreção renal de Na+-Cl–. O cotransportador de Na+-Cl–
(CNC) apical sensível aos tiazídicos reabsorve 5-10% do Na+-Cl– filtrado no
TCD. As células principais no TC e no DC reabsorvem o Na+ por meio de canais
epiteliais de Na+ (CENa) eletrogênicos sensíveis à amilorida; os íons Cl– são
reabsorvidos principalmente pelas células intercaladas adjacentes, por meio de
troca apical de Cl– (troca de Cl–-OH– e Cl–-HCO3–, mediada pelo trocador de
ânions SLC26A4) (Fig. 49-4).
A reabsorção tubular renal de Na+-Cl– filtrado é regulada por múltiplos
hormônios circulantes e parácrinos, além da atividade neural renal. A
angiotensina II ativa a reabsorção proximal de Na+-Cl–, assim como receptores
adrenérgicos sob a influência da inervação simpática renal; em contrapartida, a
dopamina gerada localmente exerce um efeito natriurético. A aldosterona ativa
primariamente a reabsorção de Na+-Cl– no néfron distal sensível à aldosterona.
Em particular, a aldosterona ativa o canal CENa nas células principais,
induzindo a absorção de Na+ e promovendo a excreção de K+ (Fig. 49-4).
FIGURA 49-4 Transporte de sódio, água e potássio nas células principais (CP) e células intercaladas β
(CI-B) adjacentes. A absorção de Na+ através do canal epitelial de sódio (CENa) sensível à amilorida gera
uma diferença de potencial negativa no lúmen, que impulsiona a excreção de K+ através do canal secretor
de K+ apical ROMK e/ou do canal BK dependente de fluxo. O transporte de Cl– transepitelial ocorre nas
CI-B adjacentes através dos canais de cloreto CLC basolaterais de troca de Cl–-HCO3– e Cl–-OH– apical
(trocador de ânions SLC26A4, também conhecido como pendrina). A água é absorvida ao longo do
gradiente osmótico pelas CP, através da aquaporina-2 (AQP2) apical, da aquaporina-3 e aquaporina-4
basolaterais (Fig. 49-3).

A integridade da circulação é de suma importância para a perfusão e a


função dos órgãos vitais. O “déficit de enchimento” da circulação arterial é
detectado por receptores de pressão ventriculares e vasculares, resultando em
ativação neuro-humoral (aumento do tônus simpático, ativação do eixo renina-
angiotensina-aldosterona e aumento dos níveis circulantes de AVP), que aumenta
sinergicamente a reabsorção renal de Na+-Cl–, a resistência vascular e a
reabsorção renal de água. Isso ocorre no contexto do débito cardíaco diminuído,
conforme observado em estados de hipovolemia, insuficiência cardíaca de baixo
débito, diminuição da pressão oncótica e/ou aumento da permeabilidade capilar.
Por outro lado, a vasodilatação arterial excessiva resulta em um déficit relativo
de enchimento arterial, levando à ativação neuro-humoral para manter a perfusão
tecidual. Essas respostas fisiológicas desempenham um importante papel em
muitos dos distúrbios discutidos neste capítulo. Em particular, é importante
reconhecer que a AVP atua na defesa da integridade da circulação, induzindo
vasoconstrição, aumentando o tônus do sistema nervoso simpático, aumentando
a retenção renal de água e de Na+-Cl– e modulando o reflexo barorreceptor
arterial. Essas respostas envolvem, em sua maioria, a ativação dos receptores
sistêmicos de AVP V1A, porém a ativação concomitante dos receptores V2 nos
rins pode resultar em retenção renal de água e hiponatremia.

HIPOVOLEMIA
Etiologia A depleção de volume verdadeira ou hipovolemia refere-se, em geral,
a um estado de perda combinada de sal e de água, que leva à contração do
VLEC. A perda de sal e de água pode ser de origem renal ou não renal.

CAUSAS RENAIS A perda urinária excessiva de água e Na+-Cl– constitui uma


característica de várias condições. Uma carga filtrada elevada de solutos
endógenos, como a glicose e a ureia, pode comprometer a reabsorção tubular de
Na+-Cl– e de água, levando a uma diurese osmótica. O manitol exógeno, que
frequentemente é utilizado para diminuir a pressão intracerebral, é filtrado pelos
glomérulos, porém não é reabsorvido pelo túbulo proximal, causando, assim,
uma diurese osmótica. Os diuréticos farmacológicos reduzem seletivamente a
reabsorção de Na+-Cl– em locais específicos ao longo do néfron, resultando em
aumento da excreção urinária de Na+-Cl–. Outros fármacos podem induzir
natriurese como efeito colateral. Por exemplo, a acetazolamida pode inibir a
absorção tubular proximal de Na+-Cl– por meio da inibição da anidrase
carbônica; outros fármacos, como os antibióticos trimetoprima (TMP) e
pentamidina, inibem a reabsorção tubular distal de Na+ através do canal CENa
sensível à amilorida, levando à perda de Na+-Cl– na urina. Os defeitos
hereditários nas proteínas de transporte renais também estão associados a uma
reabsorção reduzida do Na+-Cl– filtrado e/ou da água. De modo alternativo, a
deficiência de mineralocorticoides, a resistência aos mineralocorticoides ou a
inibição do receptor de mineralocorticoides (MLR) podem reduzir a reabsorção
de Na+-Cl– pelo néfron distal sensível à aldosterona. Por fim, a lesão
tubulointersticial, como a que ocorre na nefrite intersticial, na lesão tubular
aguda ou na uropatia obstrutiva, pode reduzir a absorção tubular distal de Na+-
Cl– e/ou de água.
A excreção excessiva de água livre, isto é, de água sem eletrólitos, também
pode levar à hipovolemia. Todavia, o efeito sobre o VLEC é geralmente menos
pronunciado, devido ao fato de que dois terços do volume de água perdida vêm
do LIC. Ocorre excreção renal excessiva de água no contexto de diminuição dos
níveis circulantes de AVP ou de resistência renal à AVP (DI central [DIC] e
nefrogênico [DIN], respectivamente).

CAUSAS EXTRARRENAIS As causas não renais de hipovolemia incluem


perda de líquido pelo trato gastrintestinal, pele e sistema respiratório. O acúmulo
de líquido em compartimentos teciduais específicos, geralmente o interstício, o
peritônio ou o trato gastrintestinal, também pode causar hipovolemia.
Cerca de 9 L de líquido entram diariamente no trato gastrintestinal, 2 L por
ingestão e 7 L por secreção; quase 98% desse volume é absorvido, de modo que
a perda fecal de líquido ocorrida diariamente é de apenas 100 a 200 mL. A
redução da reabsorção gastrintestinal ou o aumento da secreção de líquido
podem causar hipovolemia. Como as secreções gástricas apresentam pH baixo
(concentração alta de H+), enquanto as secreções biliares, pancreáticas e
intestinais são alcalinas (concentração alta de HCO3–), os vômitos e a diarreia
são frequentemente acompanhados de alcalose e acidose metabólicas,
respectivamente.
A evaporação de água pela pele e pelo trato respiratório (as denominadas
“perdas insensíveis”) constitui a principal via de perda de água livre de solutos,
que é normalmente de 500 a 650 mL/dia nos adultos sadios. Essa perda
evaporativa pode aumentar durante uma doença febril ou a exposição prolongada
ao calor. A hiperventilação também pode aumentar as perdas insensíveis por
meio do trato respiratório, particularmente em pacientes ventilados; a umidade
do ar inspirado constitui outro fator determinante. Além disso, a atividade física
e/ou a temperatura ambiente elevada aumentam as perdas insensíveis por meio
do suor, que é hipotônico em relação ao plasma. A sudorese profusa sem
reposição adequada de água e de Na+-Cl–, portanto, pode levar ao
desenvolvimento de hipovolemia e hipertonicidade. Alternativamente, a
reposição dessas perdas insensíveis com excesso de água livre, sem reposição
adequada de eletrólitos, pode resultar em hiponatremia hipovolêmica.
O acúmulo excessivo de líquido nos espaços intersticial e/ou peritoneal
também pode causar hipovolemia intravascular. Aumentos na permeabilidade
vascular e/ou uma redução da pressão oncótica (hipoalbuminemia) alteram as
forças de Starling, resultando em “terceiro espaço” excessivo do VLEC. Isso
ocorre na sepse grave, em queimaduras, na pancreatite, na hipoalbuminemia
nutricional e na peritonite. Por outro lado, a hipovolemia distributiva pode
resultar do acúmulo de líquido dentro de compartimentos específicos, por
exemplo, na luz intestinal em caso de obstrução gastrintestinal ou íleo. A
hipovolemia também pode ocorrer após hemorragia externa ou após hemorragia
significativa em um espaço passível de expansão, como, por exemplo, o
retroperitônio.

Avaliação diagnóstica A etiologia da hipovolemia é geralmente estabelecida por


meio de cuidadosa história clínica. Os sintomas de hipovolemia são
inespecíficos e consistem em fadiga, fraqueza, sede e tontura postural; os sinais e
sintomas mais graves incluem oligúria, cianose, dor abdominal e torácica e
confusão mental ou obnubilação. Os distúrbios eletrolíticos associados podem
causar sintomas adicionais; por exemplo, fraqueza muscular em pacientes com
hipopotassemia. Ao exame, a redução do turgor cutâneo e as mucosas orais secas
não são bons marcadores de diminuição do VLEC em pacientes adultos; os
sinais mais confiáveis de hipovolemia consistem em diminuição da pressão
venosa jugular (PVJ), taquicardia ortostática (aumento de > 15-20
batimentos/min na posição ortostática) e hipotensão ortostática (queda de > 10-
20 mmHg da pressão arterial em ortostatismo). A perda mais pronunciada de
líquido resulta em choque hipovolêmico, com hipotensão, taquicardia,
vasoconstrição periférica e hipoperfusão periférica; esses pacientes podem
apresentar cianose periférica, extremidades frias, oligúria e alteração do estado
mental.
Os exames bioquímicos de rotina podem revelar aumento da ureia e da
creatinina, refletindo a diminuição da TFG. A creatinina constitui a medida mais
confiável de TFG, visto que os níveis de ureia podem ser influenciados por um
aumento da reabsorção tubular (“azotemia pré-renal”), aumento da geração de
ureia nos estados catabólicos, hiperalimentação ou sangramento gastrintestinal
e/ou diminuição da produção de ureia na ingesta reduzida de proteínas. No
choque hipovolêmico, as provas de função hepática e os biomarcadores
cardíacos podem revelar evidências de isquemia hepática e isquemia cardíaca,
respectivamente. Os exames bioquímicos de rotina e/ou a gasometria podem
revelar evidências de distúrbios do equilíbrio acidobásico. Por exemplo, a perda
de bicarbonato devido à doença diarreica constitui uma causa muito comum de
acidose metabólica; já pacientes com choque hipovolêmico grave podem
desenvolver acidose láctica, com anion gap elevado.
A resposta neuro-humoral à hipovolemia estimula um aumento na
reabsorção tubular renal de Na+ e de água. Por conseguinte, a concentração
urinária de Na+ típica é < 20 mM nas causas não renais de hipovolemia com
osmolalidade urinária > 450 mOsm/kg. A redução tanto da TFG quanto do
aporte tubular distal de Na+ pode causar um defeito na excreção renal de
potássio, com elevação da concentração plasmática de K+. Convém ressaltar que
os pacientes com hipovolemia que apresentam alcalose hipoclorêmica devido à
ocorrência de vômito, diarreia ou uso de diuréticos tipicamente exibirão uma
concentração urinária de Na+ > 20 mM e pH urinário > 7,0 resultando do
aumento do HCO3– filtrado; nessa situação, a concentração urinária de Cl–
constitui um indicador mais preciso do estado de volume, com a presença de
níveis < 25 mM sugerindo hipovolemia. A concentração urinária de Na+ é
frequentemente > 20 mM em pacientes com causas renais de hipovolemia, como
necrose tubular aguda; da mesma forma, pacientes portadores de DI terão uma
urina inapropriadamente diluída.

TRATAMENTO
Hipovolemia
O tratamento da hipovolemia tem por objetivo restaurar a normovolemia e repor as perdas hídricas
continuadas. A hipovolemia leve geralmente pode ser tratada com hidratação oral e retomada de uma dieta
de manutenção normal. A hipovolemia mais grave exige hidratação intravenosa, e a escolha da solução irá
depender da fisiopatologia de base. A solução salina isotônica “normal” (NaCl a 0,9%, 154 mM de Na+)
constitui o líquido de reanimação mais adequado para pacientes com natremia normal ou hiponatremia
apresentando hipovolemia grave; para essa finalidade, não foi demonstrada a superioridade das soluções de
coloides, como a albumina intravenosa. Os pacientes com hipernatremia devem receber uma solução
hipotônica, dextrose a 5% se houve apenas perda hídrica (como no DI) ou solução salina hipotônica (1/2 ou
1/4 da solução salina normal) caso tenha ocorrido perda de água e de Na+-Cl–. Devem ser feitas alterações
na administração de água livre, quando necessário, com base em medidas frequentes de bioquímica sérica.
Os pacientes com perda de bicarbonato e acidose metabólica, conforme observado frequentemente na
diarreia, devem receber bicarbonato por via intravenosa, na forma de solução isotônica (150 mEq de Na+-
HCO3– em dextrose a 5%) ou de solução de bicarbonato mais hipotônica em dextrose ou solução salina
diluída. Os pacientes que apresentam hemorragia grave ou anemia devem receber transfusões de hemácias
evitando aumentar o hematócrito acima de 35%.
DISTÚRBIOS DO SÓDIO
Os distúrbios na concentração sérica de Na+ são causados por anormalidades na
homeostase da água, que levam a alterações na relação entre Na+ e água
corporal. A ingesta de água e os níveis circulantes de AVP constituem os dois
efetores essenciais na manutenção da osmolalidade sérica; qualquer alteração em
um desses mecanismos de defesa ou em ambos é responsável pela maioria dos
casos de hiponatremia e hipernatremia. Em contrapartida, as anormalidades na
homeostase do sódio por si só levam a um déficit ou excesso do conteúdo
corporal total de Na+-Cl–, um determinante essencial do VLEC e da integridade
da circulação. É importante destacar que a volemia também modula a liberação
de AVP pela neuro-hipófise, de modo que a hipovolemia está associada a níveis
circulantes mais elevados do hormônio em relação à osmolalidade sérica. De
forma semelhante, nas causas “hipervolêmicas” de enchimento arterial
deficiente, como, por exemplo, insuficiência cardíaca e cirrose, a ativação neuro-
humoral associada abrange um aumento dos níveis circulantes de AVP,
resultando em retenção hídrica e hiponatremia. Por conseguinte, um conceito-
chave nos distúrbios do sódio é que a concentração plasmática absoluta de Na+
não fornece nenhuma informação sobre o estado de volume de determinado
paciente, e isso precisa ser considerado na abordagem diagnóstica e terapêutica.

HIPONATREMIA
A hiponatremia, definida por uma concentração plasmática de Na+ < 135 mM, é
um distúrbio muito comum que acomete até 22% dos pacientes hospitalizados.
Esse distúrbio resulta quase sempre de um aumento dos níveis circulantes de
AVP e/ou sensibilidade renal aumentada à AVP, combinada com ingesta de água
livre; uma exceção notável é a hiponatremia causada pelo baixo aporte de
solutos (ver adiante). A fisiopatologia subjacente da resposta exagerada ou
“inapropriada” à AVP difere em pacientes com hiponatremia em função de seu
VLEC. Por conseguinte, a hiponatremia é subdividida, para fins diagnósticos,
em três grupos, dependendo da história clínica e do estado de volume:
“hipovolêmica”, “euvolêmica” e “hipervolêmica” (Fig. 49-5).
FIGURA 49-5 Abordagem diagnóstica à hiponatremia. (De S Kumar, T Berl: Diseases of water
metabolism, in Atlas of Diseases of the Kidney, RW Schrier [ed]. Philadelphia, Current Medicine, Inc,
1999; com permissão.)

Hiponatremia hipovolêmica A hipovolemia provoca uma acentuada ativação


neuro-humoral, com consequente aumento dos níveis circulantes de AVP. A
elevação dos níveis circulantes de AVP ajuda a preservar a pressão arterial por
meio dos receptores V1A vasculares e barorreceptores e aumenta a reabsorção de
água por meio dos receptores V2 renais. A ativação dos receptores V2 pode levar
à hiponatremia na situação de ingesta aumentada de água livre. As causas não
renais de hiponatremia hipovolêmica incluem perda gastrintestinal (p. ex.,
vômitos, diarreia, drenagem com sonda) e perda insensível (sudorese,
queimaduras) de Na+-Cl– e água, na ausência de reposição oral adequada; a
concentração urinária de Na+ é geralmente < 20 mM. De modo particular, esses
pacientes podem ser clinicamente classificados como euvolêmicos, e apenas a
redução da concentração urinária de Na+ indica a causa da hiponatremia. De fato,
uma concentração urinária de Na+ < 20 mM, na ausência de uma causa de
hiponatremia hipervolêmica, é preditiva de rápida elevação da concentração
plasmática de Na+ em resposta à solução salina normal intravenosa; nesse
contexto, portanto, a solução salina induz diurese aquosa, enquanto os níveis
circulantes de AVP declinam rapidamente.
As causas renais de hiponatremia hipovolêmica compartilham uma perda
inapropriada de Na+-Cl– na urina, com consequente depleção de volume e
elevação dos níveis circulantes de AVP; a concentração urinária de Na+
geralmente é > 20 mM (Fig. 49-5). A deficiência de aldosterona circulante e/ou
seus efeitos renais podem levar à hiponatremia na insuficiência suprarrenal
primária e em outras causas de hipoaldosteronismo; a presença de
hiperpotassemia e de hiponatremia em um paciente hipotenso e/ou hipovolêmico
com alta concentração urinária de Na+ (muito acima de 20 mM) deve sugerir
fortemente esse diagnóstico. As nefropatias perdedoras de sal podem levar ao
desenvolvimento de hiponatremia quando a ingesta de sódio estiver reduzida,
devido ao comprometimento da função tubular renal; as causas típicas incluem
nefropatia de refluxo, nefropatias intersticiais, uropatia pós-obstrutiva, doença
cística medular e fase de recuperação da necrose tubular aguda. Os diuréticos
tiazídicos causam hiponatremia por meio de diversos mecanismos, incluindo
polidipsia e depleção de volume diurético-induzida. É importante notar que os
tiazídicos não inibem o mecanismo de concentração renal, de modo que os
níveis circulantes de AVP exercem um efeito integral sobre a retenção renal de
água. Em contrapartida, os diuréticos de alça, que estão menos frequentemente
associados à ocorrência de hiponatremia, inibem a absorção de Na+-Cl– e de K+
pelo TALH, atenuando o mecanismo de contracorrente e reduzindo a capacidade
de concentração da urina. A excreção aumentada de um soluto pouco ou não
reabsorvível e osmoticamente ativo também pode levar à depleção de volume e à
hiponatremia; as causas importantes incluem glicosúria, cetonúria (p. ex., na
inanição ou na cetoacidose diabética ou alcoólica) e bicarbonatúria (p. ex., na
acidose tubular renal ou alcalose metabólica, em que a bicarbonatúria associada
resulta em perda de Na+).
Por fim, a síndrome “cerebral perdedora de sal” constitui uma causa rara de
hiponatremia hipovolêmica, caracterizada por hiponatremia com hipovolemia
clínica e natriurese inapropriada em associação com doença intracraniana; os
distúrbios associados consistem em hemorragia subaracnóidea, traumatismo
craniencefálico, craniotomia, encefalite e meningite. Fazer a distinção entre essa
síndrome e a síndrome da antidiurese inapropriada (SIAD), que é mais comum, é
de crucial importância, visto que a perda cerebral de sal normalmente responde à
reposição agressiva de Na+-Cl–.

Hiponatremia hipervolêmica Os pacientes com hiponatremia hipervolêmica


desenvolvem aumento do Na+-Cl– corporal total, acompanhado de um aumento
proporcionalmente maior da água corporal total, com consequente redução da
concentração plasmática de Na+. À semelhança da hiponatremia hipovolêmica,
os distúrbios responsáveis podem ser separados pelo efeito exercido sobre a
concentração urinária de Na+, com a insuficiência renal aguda ou crônica
exclusivamente associada a um aumento dessa concentração (Fig. 49-5). A
fisiopatologia da hiponatremia nos distúrbios edematosos ávidos de sódio
(insuficiência cardíaca congestiva [ICC], cirrose e síndrome nefrótica)
assemelha-se àquela da hiponatremia hipovolêmica, exceto que o enchimento
arterial e a integridade da circulação estão diminuídos devido aos fatores
etiológicos específicos (p. ex., disfunção cardíaca na ICC e vasodilatação
periférica na cirrose). Em geral, a concentração urinária de Na+ está muito baixa,
isto é, < 10 mM, mesmo após hidratação com solução salina normal; esse estado
de avidez de Na+ pode ser mascarado pela terapia diurética. O grau de
hiponatremia fornece um índice indireto da ativação neuro-humoral associada e
constitui um importante indicador de prognóstico na hiponatremia
hipervolêmica.

Hiponatremia euvolêmica A hiponatremia euvolêmica pode ocorrer no


hipotireoidismo moderado a grave, com correção após a obtenção de um estado
eutireóideo. A hiponatremia grave também pode ser consequência da
insuficiência suprarrenal secundária devido a doença hipofisária; enquanto o
déficit de aldosterona circulante na insuficiência suprarrenal primária provoca
hiponatremia hipovolêmica, a deficiência predominante de glicocorticoides na
insuficiência suprarrenal secundária está associada à hiponatremia euvolêmica.
Os glicocorticoides exercem um efeito de feedback negativo sobre a liberação de
AVP pela neuro-hipófise, de modo que a reposição de hidrocortisona nesses
pacientes normaliza rapidamente a resposta da AVP à osmolalidade, reduzindo
os níveis circulantes de AVP.
A SIAD constitui a causa mais frequente de hiponatremia euvolêmica (Tab.
49-1). O desenvolvimento de hiponatremia na SIAD exige uma ingesta de água
livre, com ingesta persistente em presença de osmolalidades séricas abaixo do
limiar habitual para a sede; como se pode esperar, as curvas de limiar osmótico e
de resposta osmótica para a sensação de sede são desviadas para baixo nos
pacientes com SIAD. Foram reconhecidos quatro padrões distintos de secreção
de AVP em pacientes com SIAD, independentemente, na maioria das vezes, da
causa subjacente. Em cerca de um terço dos pacientes, ocorre secreção errática e
desregulada de AVP, sem nenhuma correlação óbvia entre a osmolalidade sérica
e os níveis circulantes de AVP. Outros pacientes são incapazes de suprimir a
secreção de AVP na presença de osmolalidade sérica mais baixa, com uma curva
de resposta normal a condições hiperosmolares; outros exibem um “reset
osmostat”, com limiar de osmolalidade mais baixo e curva de resposta osmótica
desviada para a esquerda. Por fim, o quarto subgrupo consiste em pacientes que
essencialmente não apresentam AVP circulante detectável, sugerindo um ganho
de função na reabsorção renal de água ou a presença de uma substância
antidiurética circulante que é distinta da AVP. Em alguns desses pacientes, foram
descritas mutações com ganho de função envolvendo um único resíduo
específico no receptor V2 de AVP, levando à ativação constitutiva do receptor na
ausência de AVP e SIAD “nefrogênica”.

TABELA 49-1 ■ Causas da síndrome da antidiurese inapropriada (SIAD)


Doenças Distúrbios pulmonares Distúrbios do Fármacos Outras causas
malignas sistema nervoso
central

Carcinoma Infecções Infecção Fármacos que estimulam a Hereditárias (mutações com


Pulmões Pneumonia bacteriana Encefalite liberação de AVP ou que ganho de função no receptor V2
Pequenas Pneumonia viral Meningite aumentam a sua ação de vasopressina)
células Abscesso pulmonar Abscesso cerebral Clorpropamida Idiopática
Mesotelioma Tuberculose Febre maculosa ISRSs Transitórias
Orofaringe Aspergilose das Montanhas Antidepressivos tricíclicos Exercício de resistência
Trato Asma Rochosas Clofibrato Anestesia geral
gastrintestinal Fibrose cística Aids Carbamazepina Náuseas
Estômago Insuficiência respiratória Sangramento e Vincristina Dor
Duodeno associada à ventilação com massas Nicotina Estresse
Pâncreas pressão positiva Hematoma Narcóticos
Trato subdural Agentes antipsicóticos
geniturinário Hemorragia Ifosfamida
Ureter subaracnóidea Ciclofosfamida
Bexiga Acidente Fármacos anti-inflamatórios
Próstata vascular não esteroides
Endométrio cerebral MDMA (ecstasy)
Timoma Tumores Análogos da AVP
endócrino cerebrais Desmopressina
Linfomas Traumatismo Ocitocina
Sarcomas craniencefálico Vasopressina
Sarcoma de Hidrocefalia
Ewing Trombose de
seio cavernoso
Outros
Esclerose
múltipla
Síndrome
Guillain-Barré
Síndrome de
Shy-Drager
Delirium
tremens
Porfiria
intermitente
aguda
Siglas: AVP, vasopressina; MDMA; 3,4-metilenodioximetanfetamina; ISRS, inibidor seletivo da recaptação de serotonina.
Fonte: DH Ellison, T Berl: Syndrome of inappropriate antidiuresis. N Engl J Med 356:2064, 2007.

Em termos estritos, os pacientes com SIAD não são euvolêmicos, e sim


apresentam expansão de volume subclínica, devido à retenção de água e de Na+-
Cl– induzida pela AVP. Os mecanismos de “escape da AVP” induzidos pelos
aumentos sustentados da AVP servem para limitar o transporte tubular renal
distal, preservando um estado moderadamente hipervolêmico em equilíbrio
dinâmico. Com frequência, os níveis séricos de ácido úrico estão baixos (<
4mg/dL) em pacientes com SIAD, em consonância com o transporte tubular
proximal suprimido no contexto do transporte tubular distal aumentado de Na+-
Cl– e de água. Em contrapartida, os pacientes com hiponatremia hipovolêmica
frequentemente apresentam hiperuricemia, devido à ativação compartilhada do
transporte tubular proximal de Na+-Cl– e de urato.
Causas comuns de SIAD incluem doença pulmonar (p. ex., pneumonia,
tuberculose, derrame pleural) e doenças do sistema nervoso central (SNC) (p.
ex., tumor, hemorragia subaracnóidea, meningite). A SIAD também ocorre em
neoplasias malignas, principalmente no carcinoma de pequenas células do
pulmão (75% dos casos de SIAD associada à neoplasia maligna); cerca de 10%
dos pacientes portadores desse tumor têm uma concentração plasmática de Na+ <
130 mM na apresentação. A SIAD também constitui uma complicação comum
de certos fármacos, mais frequentemente dos inibidores seletivos de recaptação
da serotonina (ISRSs). Outros fármacos podem potencializar o efeito renal da
AVP, sem exercer efeitos diretos sobre os níveis circulantes de AVP (Tab. 49-1).

Baixa ingesta de solutos e hiponatremia Em certas ocasiões, pode ocorrer


hiponatremia em pacientes com ingesta dietética muito baixa de solutos.
Classicamente, isso é observado em alcoolistas cujo único nutriente é a cerveja,
levando à designação diagnóstica de potomania de cerveja; a cerveja tem um
teor muito baixo de proteína e de sal, contendo apenas 1 a 2 mM de Na+. A
síndrome também foi descrita em pacientes não alcoolistas com ingestão
altamente restrita de solutos, devido a dietas com restrição de nutrientes, como,
por exemplo, dietas vegetarianas extremas. Os pacientes com hiponatremia
devido a uma baixa ingesta de solutos geralmente apresentam uma osmolalidade
urinária muito baixa (< 100-200 mOsm/kg) com concentração urinária de Na+ <
10-20 mM. A anormalidade fundamental reside no aporte dietético inadequado
de solutos; a excreção urinária reduzida de solutos limita a excreção de água, de
modo que surge hiponatremia após uma polidipsia relativamente modesta. Não
foram relatados níveis de AVP em pacientes com potomania de cerveja, porém o
esperado é que estejam suprimidos ou rapidamente suprimidos com hidratação
salina; isso está de acordo com a correção excessivamente rápida da
concentração plasmática de Na+ que pode ser observada com a hidratação salina.
A retomada de uma dieta normal e/ou a hidratação salina também corrigem o
déficit causador na excreção urinária de solutos, de modo que, nos pacientes com
potomania de cerveja, ocorre normalmente uma correção imediata da
concentração plasmática de Na+ após internação.
Manifestações clínicas da hiponatremia A hiponatremia induz edema celular
generalizado, em consequência do movimento de água ao longo do gradiente
osmótico do LEC hipotônico para o LIC. Os sintomas de hiponatremia são
principalmente neurológicos, refletindo o desenvolvimento de edema cerebral
dentro de um crânio rígido. A resposta inicial do SNC à hiponatremia aguda
consiste em elevação da pressão intersticial, levando a um desvio do LEC e dos
solutos do espaço intersticial para o líquido cerebrospinal e, em seguida, para a
circulação sistêmica. Esse processo é acompanhado de um efluxo dos principais
íons intracelulares, Na+, K+ e Cl–, das células cerebrais. Ocorre desenvolvimento
de encefalopatia hiponatrêmica aguda quando esses mecanismos reguladores de
volume são sobrepujados por rápida diminuição da tonicidade, resultando em
edema cerebral agudo. Os sintomas iniciais podem consistir em náusea, cefaleia
e vômitos. Entretanto, pode haver uma rápida evolução das complicações graves,
incluindo atividade convulsiva, herniação do tronco encefálico, coma e morte.
Uma importante complicação da hiponatremia aguda é a insuficiência
respiratória normocápnica ou hipercápnica; a hipoxemia associada pode piorar a
lesão neurológica. Nesse contexto, a insuficiência respiratória normocápnica
geralmente é causada por edema pulmonar “neurogênico”, não cardiogênico,
com pressão de oclusão da artéria pulmonar normal.
A hiponatremia sintomática aguda é uma emergência clínica que ocorre em
diversos contextos específicos (Tab. 49-2). As mulheres, particularmente antes
da menopausa, têm muito mais propensão do que os homens a desenvolver
encefalopatia e sequelas neurológicas graves. Com frequência, a hiponatremia
aguda tem um componente iatrogênico, por exemplo, quando são administrados
líquidos intravenosos hipotônicos a pacientes no pós-operatório, com aumento
dos níveis circulantes de AVP. De forma semelhante, a hiponatremia associada
ao exercício, que representa um importante problema clínico em maratonas e
outras provas de resistência (endurance), foi associada a um aumento “não
osmótico” da AVP circulante e a uma ingesta excessiva de água livre. As drogas
recreacionais “Molly” e ecstasy, que compartilham um ingrediente ativo
(MDMA, 3,4-metilenodioximetanfetamina), causam uma indução rápida e
potente de sede e da AVP, levando ao desenvolvimento de hiponatremia aguda
grave.

TABELA 49-2 ■ Causas de hiponatremia aguda


Iatrogênica
Pós-operatória: mulheres na pré-menopausa
Líquidos hipotônicos com causa de ↑ vasopressina
Irrigação com glicina: RTUP, cirurgia de útero
Preparação para colonoscopia
Instituição recente de diuréticos tiazídicos
Polidipsia
Ingestão de MDMA (ecstasy, “Molly”)
Induzida por exercício
Multifatorial – p. ex., tiazídicos e polidipsia
Siglas: MDMA, 3,4-metilenodioximetanfetamina; RTUP, ressecção transuretral da próstata.

A hiponatremia crônica persistente resulta em um efluxo de osmólitos


orgânicos (creatina, betaína, glutamato, mioinositol e taurina) das células
cerebrais; essa resposta diminui a osmolalidade intracelular e o gradiente
osmótico, favorecendo a entrada de água. Essa redução dos osmólitos
intracelulares torna-se, em grande parte, completa dentro de 48 horas. Esse é o
período que define clinicamente a hiponatremia crônica; essa definição temporal
é de considerável importância no tratamento da hiponatremia (ver adiante). A
resposta celular à hiponatremia crônica não protege totalmente os pacientes dos
sintomas, que podem incluir vômitos, náusea, confusão e convulsões, geralmente
com concentrações plasmáticas de Na+ < 125 mM. Mesmo os pacientes
considerados “assintomáticos” podem exibir defeitos cognitivos e da marcha
sutis, que desaparecem com a correção da hiponatremia; é notável que a
hiponatremia “assintomática” crônica aumenta o risco de quedas. A
hiponatremia crônica também aumenta o risco de fraturas ósseas, devido à
disfunção neurológica associada e à redução da densidade óssea associada à
hiponatremia. Por conseguinte, todas as tentativas devem ser aplicadas para
corrigir a concentração plasmática de Na+ de maneira segura em pacientes com
hiponatremia crônica, mesmo na ausência de sintomas francos (ver, adiante,
seção sobre o tratamento da hiponatremia).
O tratamento da hiponatremia crônica é significativamente complicado pela
assimetria da resposta celular à correção da concentração plasmática de Na+.
Especificamente, o reacúmulo de osmólitos orgânicos pelas células cerebrais é
atenuado e adiado, à medida que a osmolalidade aumenta após a correção da
hiponatremia, resultando, algumas vezes, em perda degenerativa dos
oligodendrócitos e desenvolvimento de uma síndrome de desmielinização
osmótica (SDO). A correção excessivamente rápida da hiponatremia (> 8-10 mM
em 24 horas ou 18 mM em 48 horas) também está associada a uma ruptura na
integridade da barreira hematencefálica, possibilitando a entrada de
imunomediadores que podem contribuir para a desmielinização. Classicamente,
as lesões da SDO afetam a ponte, uma estrutura em que o atraso no reacúmulo
de osmólitos osmóticos é particularmente pronunciado; clinicamente, os
pacientes com mielinólise pontina central podem apresentar, dentro de 1 dia ou
mais após a correção excessiva da hiponatremia, paraparesia ou tetraparesia,
disfagia, disartria, diplopia, “síndrome do encarceramento” e/ou perda da
consciência. Outras regiões do encéfalo também podem estar acometidas na
SDO, principalmente em associação a lesões da ponte, ou, por vezes,
isoladamente; por ordem de frequência, as lesões da mielinólise extrapontina
podem ocorrer no cerebelo, corpo geniculado lateral, tálamo, putame e córtex
cerebral ou subcórtex. Por conseguinte, a apresentação clínica da SDO pode
variar em função da extensão e da localização da mielinólise extrapontina, com
desenvolvimento de ataxia, mutismo, parkinsonismo, distonia e catatonia.
Reduzir novamente a concentração plasmática de Na+ após a sua correção
excessivamente rápida pode impedir ou atenuar a SDO (ver, adiante, seção sobre
tratamento da hiponatremia). Entretanto, mesmo uma correção apropriadamente
lenta pode estar associada à SDO, particularmente em pacientes com outros
fatores de risco, que incluem alcoolismo, desnutrição, hipopotassemia e
transplante de fígado.

Avaliação diagnóstica da hiponatremia A avaliação clínica dos pacientes com


hiponatremia deve enfocar a causa subjacente, e a obtenção de uma história
medicamentosa detalhada é particularmente crucial (Tab. 49-1). É obrigatório
proceder a uma cuidadosa avaliação clínica do estado volêmico para a
abordagem diagnóstica clássica da hiponatremia (Fig. 49-5). Com frequência, a
hiponatremia é multifatorial, particularmente quando grave; a avaliação clínica
deve considerar todas as causas possíveis de excesso de AVP circulante,
incluindo estado de volêmico, fármacos e presença de náusea e/ou dor. A
obtenção de exames radiológicos também pode ser apropriada para verificar se
os pacientes apresentam uma causa pulmonar ou do SNC para a hiponatremia.
Uma radiografia de tórax de rastreamento pode não detectar a presença de
carcinoma de pulmão de pequenas células; deve-se considerar a tomografia
computadorizada do tórax em pacientes com alto risco desse tumor (p. ex.,
pacientes com história de tabagismo).
A avaliação laboratorial deve incluir a determinação da osmolalidade sérica
para excluir a possibilidade de pseudo-hiponatremia, que é definida como a
coexistência de hiponatremia com tonicidade plasmática normal ou aumentada.
A maioria dos laboratórios clínicos mede as concentrações plasmáticas de Na+
em amostras diluídas com eletrodos automáticos íon-sensíveis, sendo a diluição
corrigida pela pressuposição de que o plasma consiste em 93% de água. Esse
fator de correção pode não ser acurado em pacientes com pseudo-hiponatremia,
devido à hiperlipidemia e/ou hiperproteinemia extremas, nas quais os lipídeos ou
as proteínas do soro compreendem uma maior porcentagem do volume
plasmático. A osmolalidade medida também deve ser convertida na
osmolalidade efetiva (tonicidade) ao se subtrair a concentração de ureia medida
(dividindo-se por 5,6, se o resultado for expresso em mg/dL); os pacientes com
hiponatremia apresentam uma osmolalidade efetiva < 275 mOsm/kg.
Os níveis sanguíneos elevados de ureia e de creatinina nos exames
bioquímicos de rotina também podem indicar uma disfunção renal como causa
potencial da hiponatremia, enquanto a hiperpotassemia pode sugerir
insuficiência suprarrenal ou hipoaldosteronismo. O nível sérico de glicose
também deve ser determinado; a concentração plasmática de Na+ cai em cerca de
1,6 a 2,4 mM para cada aumento de 100 mg/dL da glicose, devido ao efluxo de
água das células induzido pela glicose; essa hiponatremia “verdadeira”
desaparece após a correção da hiperglicemia. Deve-se efetuar também uma
dosagem do ácido úrico sérico; enquanto os pacientes com fisiologia do tipo
SIAD normalmente irão apresentar hipouricemia (nível sérico de ácido úrico < 4
mg/dL), aqueles com depleção de volume frequentemente terão hiperuricemia.
No contexto clínico apropriado, deve-se avaliar também a função tireóidea,
suprarrenal e hipofisária; o hipotireoidismo e a insuficiência suprarrenal
secundária à insuficiência hipofisária constituem causas importantes de
hiponatremia euvolêmica, enquanto a insuficiência suprarrenal primária provoca
hiponatremia hipovolêmica. É necessário efetuar um teste de estimulação com
cosintropina para avaliar a insuficiência suprarrenal primária.
Os eletrólitos e a osmolalidade da urina são exames fundamentais na
avaliação inicial da hiponatremia. Uma concentração urinária de Na+ < 20 a 30
mM é compatível com hiponatremia hipovolêmica na ausência clínica de
síndrome de avidez de Na+ hipervolêmica, como ICC (Fig. 49-5). Por outro lado,
os pacientes com SIAD normalmente excretam uma urina com concentração de
Na+ > 30 mM. Todavia, pode haver uma superposição substancial dos valores
das concentrações urinárias de Na+ em pacientes com SIAD e com hiponatremia
hipovolêmica, particularmente no indivíduo idoso; o “padrão de referência” final
para o diagnóstico de hiponatremia hipovolêmica consiste na demonstração da
correção da concentração plasmática de Na+ após a hidratação com solução
salina isotônica. Os pacientes com hiponatremia associada ao uso de tiazídicos
também podem apresentar uma concentração urinária de Na+ mais alta do que o
esperado, bem como outros achados sugestivos de SIAD; o diagnóstico de SIAD
nesses pacientes deve ser adiado até 1 a 2 semanas após a interrupção do
diaurético tiazídico. A obtenção de uma osmolalidade urinária < 100 mOsm/kg
sugere polidipsia; uma osmolalidade urinária > 400 mOsm/kg indica que o
excesso de AVP está desempenhando um papel mais predominante, enquanto
valores intermediários são mais compatíveis com uma fisiopatologia
multifatorial (p. ex., excesso de AVP com componente significativo de
polidipsia). Os pacientes com hiponatremia devido a uma diminuição do aporte
de solutos (potomania de cerveja) geralmente apresentam concentrações
urinárias de Na+ < 20 mM e osmolalidade urinária na faixa de < 100 até um
pouco acima de 200. Por fim, a determinação da concentração urinária de K+ é
necessária para calcular a razão dos eletrólitos na urina-plasma, que é útil para
prever a resposta à restrição hídrica (ver, adiante, seção sobre o tratamento da
hiponatremia).

TRATAMENTO
Hiponatremia
O tratamento da hiponatremia é orientado por três considerações principais. Em primeiro lugar, a urgência e
as metas do tratamento são determinadas pela presença e/ou gravidade dos sintomas. Os pacientes com
hiponatremia aguda (Tab. 49-2) apresentam sintomas que podem incluir desde cefaleia, náusea e/ou
vômitos até convulsões, obnubilação e herniação central; os pacientes com hiponatremia crônica de duração
> 48 horas têm menos tendência a apresentar sintomas graves. Em segundo lugar, os pacientes com
hiponatremia crônica correm risco de SDO se a concentração plasmática de Na+ for corrigida em > 8 a 10
mM dentro das primeiras 24 horas e/ou em > 18 mM nas primeiras 48 horas. Em terceiro lugar, a resposta a
determinadas intervenções, como solução salina hipertônica, solução salina isotônica e antagonistas da AVP,
pode ser altamente imprevisível, de modo que é obrigatório proceder-se a um monitoramento frequente das
concentrações plasmáticas de Na+ durante a terapia para correção das disnatremias.
Uma vez estabelecida a urgência na correção da concentração plasmática de Na+ e instituída a terapia
apropriada, o foco deve ser o tratamento ou a correção da causa subjacente. Os pacientes com hiponatremia
euvolêmica devido a SIAD, hipotireoidismo ou insuficiência suprarrenal secundária irão responder ao
tratamento bem-sucedido da causa subjacente, com elevação das concentrações plasmáticas de Na+.
Entretanto, nem todas as causas de SIAD são imediatamente reversíveis, exigindo o uso de terapia
farmacológica para aumentar a concentração plasmática de Na+ (ver adiante). A hiponatremia hipovolêmica
responde à hidratação intravenosa com solução salina isotônica, com rápida redução dos níveis circulantes
de AVP e diurese aquosa vigorosa; pode ser necessário reduzir a velocidade da correção se a história clínica
sugerir que a hiponatremia é crônica, isto é, se ela tiver mais de 48 horas de duração (ver adiante). A
hiponatremia hipervolêmica em consequência de ICC frequentemente responde ao tratamento da
miocardiopatia subjacente – por exemplo, após instituição ou intensificação da inibição da enzima
conversora de angiotensina (ECA). Por fim, os pacientes com hiponatremia devido à potomania de cerveja e
à baixa ingestão de solutos respondem muito rapidamente à solução salina intravenosa e ao reinício de uma
dieta normal. Os pacientes com potomania de cerveja correm risco muito alto de desenvolver SDO, devido
à hipopotassemia associada, alcoolismo, desnutrição e alto risco de correção excessiva da concentração
plasmática de Na+.
A privação de água tem sido, há muito tempo, a base da terapia para a hiponatremia crônica.
Entretanto, os pacientes que excretam água livre com quantidade mínima de eletrólitos necessitam de
restrição hídrica agressiva; os pacientes com SIAD podem ter muita dificuldade em tolerar esse tratamento,
visto que a sua sede também é inapropriadamente estimulada. A razão dos eletrólitos na urina-plasma
([Na+] + [K+] urinárias/[Na+] plasmática) pode ser utilizada como rápido indicador de excreção de água
livre (Tab. 49-3); os pacientes com uma razão > 1 devem ser submetidos a uma restrição mais agressiva (<
500 mL/dia), aqueles com uma razão aproximadamente igual a 1 devem ter uma restrição de 500 a 700
mL/dia, enquanto a restrição de pacientes com razão < 1 deve ser < 1 L/dia. Nos pacientes
hipopotassêmicos, a reposição de potássio serve para aumentar a concentração plasmática de Na+, visto que
a concentração plasmática de Na+ constitui uma função tanto do Na+ trocado quanto do K+ trocado dividido
pela água corporal total; uma consequência é que a reposição de K+ tem o potencial de corrigir
excessivamente a concentração plasmática de Na+, mesmo na ausência de solução salina hipertônica. A
concentração plasmática de Na+ também tende a responder a um aumento no consumo dietético de solutos,
o que aumenta a capacidade de excretar água livre; isso pode ser conseguido com o uso de comprimidos
orais de sal e de preparações palatáveis orais de ureia recém-disponibilizadas.

TABELA 49-3 ■ Tratamento da hipernatremia


Déficit de água
1. Estimar a água corporal total (ACT): 50% do peso corporal nas mulheres e 60% nos homens
2. Calcular o déficit de água livre: ([Na+ – 140]/140) × ACT
3. Administrar o valor correspondente ao déficit no decorrer de 48-72 h, evitando diminuir a concentração plasmática de Na+ em > 10 mM/24
h
Perdas hídricas vigentes
4. Calcular a depuração de água livre, CeH2O:

onde V é o volume urinário; UNa é a [Na+] urinária; UK é a [K+] urinária; e PNa é a [Na+] plasmática

Perdas insensíveis
5. ~ 10 mL/kg por dia – menos que isso se o paciente for submetido à ventilação mecânica; mais ainda, se estiver febril
Total
6. Adicionar componentes para determinar o déficit hídrico e a perda hídrica vigente; corrigir o déficit de água durante 48-72 h e repor
diariamente a perda de água. Evitar a correção da [Na+] plasmática em > 10 mM/dia

Os pacientes que não respondem ao tratamento com restrição hídrica, reposição de potássio e/ou
aumento do consumo de solutos podem necessitar de terapia farmacológica para aumentar a concentração
plasmática de Na+. Muitos pacientes com SIAD respondem à terapia combinada com furosemida oral, em
uma dose de 20 mg, 2 vezes ao dia (podem ser necessárias doses mais altas em caso de redução na função
renal), e comprimidos orais de sal; a furosemida tem por objetivo inibir o mecanismo de contracorrente
renal e atenuar a capacidade de concentração urinária, enquanto os comprimidos de sal neutralizam a
natriurese associada ao uso de diuréticos. A demeclociclina, que é um potente inibidor das células
principais, pode ser administrada a pacientes cujos níveis de Na não aumentam em resposta à furosemida e
aos comprimidos de sais. Todavia, esse agente pode estar associado a uma redução da TFG, devido à
natriurese excessiva e/ou toxicidade renal direta; seu uso deve ser evitado, particularmente, em pacientes
cirróticos, que correm maior risco de nefrotoxicidade por acúmulo do fármaco. Quando disponíveis, as
preparações palatáveis orais de ureia também podem ser usadas para controlar a SIAD; o aumento na
excreção de soluto com a ingesta de ureia oral eleva a excreção de água livre, diminuindo, assim, o Na+
plasmático.
Os antagonistas da AVP (vaptanas) mostram-se altamente efetivos na SIAD e na hiponatremia
hipervolêmica, devido à insuficiência cardíaca ou à cirrose, aumentando com segurança a concentração
plasmática de Na+ devido aos seus efeitos “aquaréticos” (aumento da depuração de água livre). A maioria
desses agentes antagoniza especificamente o receptor V2 de AVP; a tolvaptana é, hoje, o único antagonista
V2 oral aprovado pela Food and Drug Administration. A conivaptana, a única vaptana intravenosa
disponível, é um antagonista V1A/V2 misto, com risco modesto de hipotensão, devido à inibição do receptor
V1A. A terapia com vaptanas deve ser iniciada no ambiente hospitalar, com liberalização da restrição hídrica
(> 2 L/dia) e monitoração rigorosa da concentração plasmática de Na+. Embora esses fármacos estejam
aprovados para o tratamento de todas as formas de hiponatremia, exceto a hipovolêmica e a aguda, as
indicações clínicas são limitadas. A tolvaptana oral é, talvez, a mais apropriada para o tratamento da SIAD
significativa e persistente (p. ex., no carcinoma de pulmão de pequenas células) que não responde à
restrição hídrica e/ou à furosemida oral e comprimidos de sais. Foram relatadas anormalidades das provas
de função hepática durante o tratamento crônico com tolvaptana, de modo que o uso desse fármaco deve ser
restrito a < 1 a 2 meses.
O tratamento da hiponatremia sintomática aguda deve incluir uma solução salina hipertônica a 3%
(513 mM) para elevação aguda da concentração de Na+ em 1 a 2 mM/h, até um total de 4 a 6 mM; esse
aumento modesto geralmente é suficiente para aliviar os sintomas agudos graves, quando as diretrizes
corretivas para a hiponatremia crônica são, então, apropriadas (ver adiante). Foram desenvolvidas várias
equações para estimar a velocidade de infusão necessária da solução salina hipertônica, que tem uma
concentração de Na+-Cl– de 513 mM. A abordagem tradicional consiste em calcular o déficit de Na+, em
que o déficit de Na+ = 0,6 × peso corporal × (concentração plasmática alvo de Na+ – concentração
plasmática inicial de Na+), seguido do cálculo da velocidade necessária. Independentemente do método
utilizado para determinar a velocidade de administração, o aumento da concentração plasmática de Na+
pode ser altamente imprevisível durante o tratamento com solução salina hipertônica, devido a rápidas
mudanças da fisiologia subjacente; a concentração plasmática de Na+ deve ser monitorada a cada 2 a 4
horas durante o tratamento, com alterações apropriadas no tratamento baseadas na velocidade de mudança
observada. A administração de oxigênio suplementar e o suporte ventilatório são de importância crucial na
hiponatremia aguda, no caso em que os pacientes desenvolvem edema pulmonar agudo ou insuficiência
respiratória hipercápnica. Os diuréticos de alça intravenosos ajudam a tratar o edema pulmonar agudo e
aumentam a excreção de água livre, interferindo no sistema de multiplicação por contracorrente renal. Os
antagonistas da AVP não têm um papel aprovado no tratamento da hiponatremia aguda.
A velocidade de correção deve ser comparativamente lenta na hiponatremia crônica (< 8-10 mM
durante as primeiras 24 horas e < 18 mM nas primeiras 48 horas), de modo a evitar o desenvolvimento de
SDO; uma velocidade-alvo menor é apropriada para pacientes com risco particular de SDO, como
alcoolistas ou pacientes com hipopotassemia. Pode ocorrer correção excessiva da concentração plasmática
de Na+ quando os níveis de AVP se normalizam rapidamente; por exemplo, após o tratamento de pacientes
com hiponatremia hipovolêmica crônica usando solução salina intravenosa ou após a reposição de
glicocorticoides em pacientes com hipopituitarismo e insuficiência suprarrenal secundária. Ocorre correção
excessiva em aproximadamente 10% dos pacientes tratados com vaptanas; o risco aumenta se a ingestão de
água não for liberada. Se houver correção excessiva da concentração plasmática de Na+ após a terapia, seja
com solução salina hipertônica, solução isotônica ou uma vaptana, a hiponatremia pode ser reinduzida com
segurança ou estabilizada pela administração de um agonista de AVP, o acetato de desmopressina
(DDAVP), e/ou com administração de água livre, geralmente dextrose a 5% (D5W) por via intravenosa; a
meta é impedir ou reverter o desenvolvimento de SDO. De modo alternativo, o tratamento de pacientes com
hiponatremia pronunciada pode ser iniciado com a administração de DDAVP, 2 vezes ao dia, para manter
uma bioatividade constante da AVP, em associação com a administração de solução salina hipertônica para
corrigir lentamente o sódio sérico de maneira mais controlada, reduzindo antecipadamente o risco de
correção excessiva.
HIPERNATREMIA
Etiologia A hipernatremia é definida pelo aumento da concentração plasmática
de Na+ para > 145 mM. Apesar de ser consideravelmente menos comum do que
a hiponatremia, a hipernatremia está, entretanto, associada a uma taxa de
mortalidade de até 40 a 60%, principalmente devido à gravidade dos processos
mórbidos subjacentes associados. A hipernatremia geralmente resulta de um
déficit combinado de água e eletrólitos, com perda de H2O superior à perda de
Na+. Com menos frequência, a causa pode consistir na ingesta ou na
administração iatrogênica de Na+ em excesso, como, por exemplo, após a
administração intravenosa de Na+-Cl– ou Na+-HCO3– hipertônicos em excesso (F
ig. 49-6).

FIGURA 49-6 Abordagem diagnóstica à hipernatremia. LEC, líquido extracelular.


Os indivíduos idosos com diminuição da sede e/ou acesso reduzido a
líquidos correm maior risco de desenvolver hipernatremia. Em casos raros, os
pacientes com hipernatremia podem exibir uma alteração central na função
osmorreceptora do hipotálamo, com uma combinação de diminuição da sede e
redução da secreção de AVP. As causas desse DI adípsico incluem tumor
primário ou metastático, oclusão ou ligadura da artéria comunicante anterior,
traumatismo, hidrocefalia e inflamação.
Pode-se observar o desenvolvimento de hipernatremia após a perda de água
tanto por via renal quanto por vias não renais. As perdas insensíveis de água
podem aumentar na presença de febre, exercício, exposição ao calor,
queimaduras graves ou ventilação mecânica. A diarreia, por sua vez, constitui a
causa gastrintestinal mais comum de hipernatremia. De modo notável, a diarreia
osmótica e a gastrenterite viral costumam produzir fezes com concentrações de
Na+ e K+ < 100 mM, levando, assim, à perda de água e ao desenvolvimento de
hipernatremia; em contrapartida, a diarreia secretora geralmente resulta em fezes
isotônicas e, portanto, em hipovolemia, com ou sem hiponatremia hipovolêmica.
As causas comuns de perda renal de água incluem diurese osmótica
secundária à hiperglicemia, excesso de ureia, diurese pós-obstrutiva ou manitol;
esses distúrbios compartilham um aumento da excreção urinária de solutos e
osmolalidade urinária (ver “Abordagem diagnóstica” adiante). A hipernatremia
em consequência de diurese aquosa ocorre no DIC ou no DIN.
O DIN caracteriza-se pela resistência renal à AVP, que pode ser parcial ou
completa (ver “Abordagem diagnóstica” adiante). As causas genéticas incluem
mutações com perda de função do receptor V2 ligado ao X; as mutações no canal
de água aquaporina-2 sensível à AVP podem causar DIN autossômico dominante
e autossômico recessivo, enquanto a deficiência recessiva do canal de água
aquaporina-1 provoca um defeito de concentração mais modesto (Fig. 49-2). A
hipercalcemia também pode causar poliúria e DIN; o cálcio sinaliza diretamente
por meio do receptor-sensor de cálcio para regular negativamente o transporte de
Na+, K+ e Cl– pelo TALH, e o transporte de água nas células principais,
reduzindo, assim, a capacidade de concentração renal na hipercalcemia. Outra
causa adquirida comum de DIN é a hipopotassemia, que inibe a resposta renal à
AVP e regula negativamente a expressão da aquaporina-2. Diversos fármacos
podem causar DIN adquirido, em particular o lítio, a ifosfamida e vários agentes
antivirais. O lítio provoca DIN por meio de múltiplos mecanismos, incluindo
inibição direta da glicogênio-sintase-cinase-3 (GSK3) renal, uma cinase que se
acredita ser o alvo farmacológico do lítio na doença bipolar. A GSK3 é
necessária para a resposta das células principais à AVP. A entrada de lítio através
do canal de Na+, CENa, sensível à amilorida (Fig. 49-4), é necessária para o
efeito do fármaco sobre as células principais, de modo que a terapia combinada
com lítio e amilorida pode aliviar o DIN associado ao lítio. Todavia, o lítio causa
cicatrizes tubulointersticiais e doença renal crônica depois de terapias
prolongadas, de maneira que os pacientes podem ter DIN muito tempo depois de
interromper o uso do medicamento, com benefícios terapêuticos reduzidos com
o uso de amilorida.
Por fim, o DI gestacional constitui uma complicação rara do final da
gravidez, em que o aumento na atividade de uma protease placentária circulante
com atividade de “vasopressinase” leva à redução dos níveis circulantes de AVP
e ao desenvolvimento de poliúria, frequentemente acompanhada de
hipernatremia. O DDAVP constitui uma terapia efetiva para essa síndrome em
virtude de sua resistência à enzima vasopressinase.

Manifestações clínicas A hipernatremia aumenta a osmolalidade do LEC,


gerando um gradiente osmótico entre o LEC e o LIC, um efluxo de água
intracelular e contração celular. À semelhança da hiponatremia, os sintomas de
hipernatremia são predominantemente neurológicos. A alteração do estado
mental constitui a manifestação mais comum, incluindo desde confusão leve e
letargia até coma profundo. A súbita contração das células cerebrais na
hipernatremia aguda pode resultar em hemorragia parenquimatosa ou
subaracnóidea e/ou hematomas subdurais; entretanto essas complicações
vasculares são encontradas principalmente em pacientes pediátricos e neonatais.
A lesão osmótica das membranas musculares também pode levar à rabdomiólise
hipernatrêmica. As células cerebrais acomodam-se para um aumento crônico da
osmolalidade do LEC (> 48 horas) pela ativação de transportadores de
membrana que medeiam o influxo e o acúmulo intracelular de osmólitos
orgânicos (creatina, betaína, glutamato, mioinositol e taurina). Isso resulta em
aumento da água do LIC e normalização do volume do parênquima cerebral. Em
consequência, os pacientes com hipernatremia crônica têm menos tendência a
desenvolver comprometimento neurológico grave. Entretanto, a resposta celular
à hipernatremia crônica predispõe esses pacientes ao desenvolvimento de edema
cerebral e convulsões durante a hidratação excessivamente rápida (correção
excessiva da concentração plasmática de Na+ em > 10 mM/dia).
Abordagem diagnóstica A anamnese deve concentrar-se na presença ou
ausência de sede, poliúria e/ou origem extrarrenal de perda de água, como
diarreia. O exame físico deve incluir um exame neurológico detalhado e uma
avaliação do VLEC; os pacientes com déficit hídrico particularmente grande
e/ou déficit combinado de eletrólitos e água podem apresentar hipovolemia, com
redução da PVJ e hipotensão ortostática. A documentação acurada do consumo
diário de líquidos e do débito urinário também é de suma importância para o
diagnóstico e o tratamento da hipernatremia.
Os exames laboratoriais devem incluir a determinação da osmolalidade do
soro e da urina, além dos eletrólitos urinários. A resposta apropriada à
hipernatremia e a uma osmolalidade sérica > 295 mOsm/kg consiste em
elevação dos níveis circulantes de AVP e excreção de baixos volumes (< 500
mL/dia) de urina com concentração máxima, isto é, urina com osmolalidade >
800 mOsm/kg; se esse for o caso, uma origem extrarrenal de perda de água é o
principal responsável pelo desenvolvimento de hipernatremia. Muitos pacientes
com hipernatremia apresentam poliúria; se a diurese osmótica for o fator
responsável, com excreção excessiva de Na+ -Cl–, glicose e/ou ureia, a excreção
diária de solutos será de > 750 a 1.000/dia (> 15 mOsm/kg de água corporal por
dia) (Fig. 49-6). Com mais frequência, os pacientes com hipernatremia e poliúria
apresentam diurese aquosa predominante, com excreção excessiva de urina
diluída hipotônica.
A diferenciação adequada entre causas nefrogênicas e centrais de DI exige a
medição da resposta da osmolalidade urinária ao DDAVP, combinada com a
determinação dos níveis circulantes de AVP na presença de hipertonicidade. Por
definição, os pacientes com hipernatremia basal são hipertônicos, com estímulo
adequado para a liberação de AVP pela neuro-hipófise. Por conseguinte,
diferentemente dos pacientes com poliúria que apresentam valores normais ou
reduzidos da concentração plasmática de Na+ e da osmolalidade, não há
necessidade de teste de privação de água (Cap. 48) na hipernatremia. Na
verdade, a privação de água está absolutamente contraindicada nesse contexto
devido ao risco de agravamento da hipernatremia. Os pacientes com DIN não
irão responder ao DDAVP, com aumento da osmolalidade urinária de < 50% ou
< 150 mOsm/kg em relação aos valores basais, juntamente com níveis
circulantes normais ou elevados de AVP. Os pacientes com DIC irão responder
ao DDAVP, com redução dos níveis circulantes de AVP. Os pacientes podem
exibir uma resposta parcial ao DDAVP, com elevação de > 50% na osmolalidade
urinária, que, entretanto, não consegue atingir 800 mOsm/kg; o nível circulante
de AVP irá ajudar a diferenciar a causa subjacente, isto é, DI nefrogênico versus
central. Em mulheres grávidas, a amostra para determinação da AVP deve ser
coletada em tubos contendo inibidor da protease, a 1,10-fenantrolina, para
impedir a degradação in vitro da AVP pela vasopressinase placentária.
Para pacientes com hipernatremia devido à perda renal de água, é essencial
quantificar as perdas diárias vigentes utilizando a depuração de água livre de
eletrólitos calculada, além do cálculo do déficit hídrico basal (as fórmulas
relevantes são discutidas na Tab. 49-3). Isso requer a determinação diária dos
eletrólitos urinários combinada à aferição precisa do volume urinário diário.

TRATAMENTO
Hipernatremia
A causa subjacente da hipernatremia deve ser removida ou corrigida, seja fármacos, hiperglicemia,
hipercalcemia, hipopotassemia ou diarreia. A abordagem para a correção da hipernatremia está delineada na
Tabela 49-3. É fundamental corrigir lentamente a hipernatremia, a fim de evitar a formação de edema
cerebral, em geral com reposição do déficit de água livre calculado no decorrer de 48 horas. É importante
frisar que a concentração plasmática de Na+ deve ser corrigida sem ultrapassar 10 mM/dia, o que pode levar
mais de 48 horas em pacientes com hipernatremia grave (> 160 mM). Uma rara exceção é o paciente com
hipernatremia aguda (< 48 horas) devido a uma sobrecarga de sódio, a qual pode ser corrigida rapidamente
e com segurança a uma velocidade de 1 mM/h.
A conduta ideal consiste em administrar água por via oral ou por sonda nasogástrica, como forma mais
direta de fornecer água livre. Pode-se também administrar água livre aos pacientes usando soluções
intravenosas contendo dextrose, como D5W; o nível de glicemia deve ser monitorado, caso ocorra
hiperglicemia. Dependendo da história clínica, da pressão arterial ou da volemia, pode ser apropriado tratar
inicialmente o paciente com solução salina hipotônica (solução salina isotônica 1/4 ou 1/2); em geral, a
solução salina isotônica é inapropriada na ausência de hipernatremia muito grave – caso em que a solução
salina isotônica é proporcionalmente mais hipotônica em relação ao plasma – ou na hipotensão franca. É
necessário calcular a depuração de água livre na urina (Tab. 49-3) para se estimar a perda vigente diária de
água livre em pacientes com DIN ou DIC, devendo-se efetuar uma reposição diária.
Tratamentos adicionais podem ser viáveis em casos específicos. Os pacientes com DIC devem
responder à administração de DDAVP por via intravenosa, intranasal ou oral. Os pacientes com DIN devido
ao uso de lítio podem reduzir a poliúria com amilorida (2,5-10 mg/dia), que diminui a entrada de lítio nas
células principais por meio da inibição do CENa (ver anteriormente). Todavia, na prática, a maioria dos
pacientes com DI associado ao lítio são capazes de compensar a poliúria simplesmente aumentando o
consumo diário de água. Os diuréticos tiazídicos podem reduzir a poliúria devido ao DIN, ao induzir
hipovolemia e aumentar a reabsorção tubular proximal de água. Em certas ocasiões, foram utilizados anti-
inflamatórios não esteroides (AINEs) para tratar a poliúria associada ao DIN, reduzindo o efeito negativo
das prostaglandinas intrarrenais sobre os mecanismos de concentração urinária; entretanto, isso assume o
risco de toxicidade gástrica e/ou renal associada aos AINEs. Além disso, é preciso ressaltar que os
tiazídicos, a amilorida e os AINEs são apropriados apenas para o tratamento crônico da poliúria do DIN e
não desempenham nenhum papel no tratamento agudo da hipernatremia associada, no qual o foco consiste
na reposição dos déficits de água livre.
DISTÚRBIOS DO POTÁSSIO
Os mecanismos homeostáticos mantêm a concentração plasmática de K+ entre
3,5 e 5,0 mM, apesar de uma acentuada variação no aporte dietético de K+. No
indivíduo saudável em estado de equilíbrio dinâmico, todo o aporte diário de
potássio é excretado, aproximadamente 90% na urina e 10% nas fezes. Por
conseguinte, os rins desempenham um papel dominante na homeostase do
potássio. Entretanto, > 98% do potássio corporal total é intracelular, localizado
principalmente no músculo; o tamponamento do K+ extracelular por esse grande
pool intracelular desempenha um papel crucial na regulação da concentração
plasmática de K+. A ocorrência de alterações na troca e na distribuição do K+
intra e extracelular pode, portanto, levar ao desenvolvimento de hipo ou
hiperpotassemia de grau pronunciado. Como corolário, a necrose muscular
maciça e a liberação concomitante de K+ intracelular podem causar grave
hiperpotassemia, particularmente na presença de lesão renal aguda e excreção
reduzida de K+.
As alterações no conteúdo corporal total de K+ são mediadas principalmente
pelo rim, que reabsorve o K+ filtrado nos estados de deficiência de K+ com
hipopotassemia, enquanto secreta K+ nos estados de repleção de K+ com
hiperpotassemia. Embora o K+ seja transportado ao longo de todo néfron, são as
células principais do túbulo conector (TC) e do DC cortical que desempenham
um papel dominante na secreção renal de K+, enquanto as células intercaladas
alfa do DC da medula externa atuam na reabsorção tubular renal do K+ filtrado
nos estados de deficiência desse cátion. Nas células principais, a entrada apical
de Na+ através do CENa sensível à amilorida gera uma diferença de potencial
negativa do lúmen, que impulsiona a saída passiva de K+ através dos canais
apicais de K+ (Fig. 49-4). Dois canais importantes de K+ medeiam a secreção
tubular distal do cátion: ROMK, canal secretor de K+ (canal renal medular
externo de K+; também conhecido como Kir1.1 ou KcnJ1); e o canal de potássio
BK (Big Potassium) ou maxi-K sensível ao fluxo. Acredita-se que o canal
ROMK medeia a maior parte da secreção constitutiva de K+, enquanto aumentos
na velocidade de fluxo distal e/ou ausência genética do canal ROMK ativam a
secreção de K+ através do canal BK.
É necessário ter um conhecimento da relação existente entre a entrada de
Na dependente do CENa e a secreção distal de K+ (Fig. 49-4) para a
+

interpretação dos distúrbios do potássio à cabeceira do paciente. Por exemplo, a


diminuição do aporte distal de Na+, como a que ocorre nos estados pré-renais
hipovolêmicos, tende a reduzir a capacidade de excreção do K+, levando ao
desenvolvimento de hiperpotassemia. Por outro lado, um aumento no aporte
distal de Na+ e na velocidade de fluxo distal, conforme observado após
tratamento com diuréticos tiazídicos e de alça, pode aumentar a secreção de K+,
resultando em hipopotassemia. A hiperpotassemia também é uma consequência
previsível dos fármacos que inibem diretamente o CENa, devido ao papel
desempenhado por esse canal de Na+ na geração de uma diferença de potencial
negativa de lúmen. Por sua vez, a aldosterona exerce uma importante influência
sobre a excreção de potássio, aumentando a atividade dos canais de CENa e,
dessa maneira, amplificando a força propulsora para a secreção de K+ através da
membrana luminal das células principais. Por conseguinte, as anormalidades no
sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) podem causar tanto hipo
quanto hiperpotassemia. Todavia, de modo notável, o excesso e a restrição de
potássio têm efeitos opostos, independentes da aldosterona, sobre a quantidade e
a atividade dos canais de K+ apicais no néfron distal; ou seja, outros fatores que
não a aldosterona modulam a capacidade renal de secreção de K+. Além disso, a
restrição de potássio e a hipopotassemia ativam a reabsorção distal independente
de aldosterona do K+ filtrado, promovendo ativação da H+/K+-ATPase apical nas
células intercaladas dentro do DC da medula externa. Talvez como reflexo dessa
fisiologia, as alterações na concentração plasmática de K+ não são universais nos
distúrbios associados a alterações da atividade da aldosterona.

HIPOPOTASSEMIA
A hipopotassemia, definida como uma concentração plasmática de K+ < 3,5 mM,
é observada em até 20% dos pacientes hospitalizados. A hipopotassemia está
associada a um aumento de 10 vezes nas taxas de mortalidade de pacientes
internados, devido aos efeitos adversos sobre o ritmo cardíaco, a pressão arterial
e a morbidade cardiovascular. Quanto ao mecanismo envolvido, a
hipopotassemia pode ser causada por uma redistribuição do K+ entre os tecidos e
o LEC, ou pela perda renal e não renal de K+ (Tab. 49-4). A hipomagnesemia
sistêmica também pode causar hipopotassemia resistente ao tratamento devido a
uma combinação de redução da captação celular de K+ e secreção renal
exagerada. Em certas ocasiões, a hipopotassemia factícia ou “pseudo-
hipopotassemia” pode resultar da captação celular in vitro de K+ após punção
venosa, por exemplo, devido à presença de leucocitose profunda na leucemia
aguda.
TABELA 49-4 ■ Causas de hipopotassemia
I. Aporte diminuído
A. Fome
B. Ingestão de argila
II. Redistribuição para as células
A. Acidobásica
1. Alcalose metabólica
B. Hormonal
1. Insulina
2. Aumento da atividade simpática β2-adrenérgica: após infarto do miocárdio, traumatismo craniencefálico
3. Agonistas β2-adrenérgicos – broncodilatadores, tocolíticos
4. Antagonistas α-adrenérgicos
5. Paralisia periódica tireotóxica
6. Estimulação distal da Na+/K+-ATPase: teofilina, cafeína
C. Estado anabólico
1. Administração de vitamina B12 ou de ácido fólico (produção de eritrócitos)
2. Fator estimulador de colônias de granulócitos-macrófagos (produção de leucócitos)
3. Nutrição parenteral total
D. Outras
1. Pseudo-hipopotassemia
2. Hipotermia
3. Paralisia periódica hipopotassêmica familiar
4. Toxicidade do bário: inibição sistêmica dos canais de K+ “escoadores”
III.Aumento da perda
A. Não renal
1. Perda gastrintestinal (diarreia)
2. Perda tegumentar (sudorese)
B. Renal
1. Aumento do fluxo distal e aporte distal de Na+: diuréticos, diurese osmótica, nefropatias com perda de sal
2. Secreção aumentada de potássio
a. Excesso de mineralocorticoides: hiperaldosteronismo primário (adenomas produtores de aldosterona, hiperplasia suprarrenal
primária ou unilateral, hiperaldosteronismo idiopático devido à hiperplasia suprarrenal bilateral e carcinoma suprarrenal),
hiperaldosteronismo genético (hiperaldosteronismo familiar tipos I/II/III, hiperplasias suprarrenais congênitas), hiperaldosteronismo
secundário (hipertensão maligna, tumores secretores de renina, estenose da artéria renal, hipovolemia), síndrome de Cushing,
síndrome de Bartter, síndrome de Gitelman
b. Excesso aparente de mineralocorticoides: deficiência genética de 11β-desidrogenase-2 (síndrome de excesso aparente de
mineralocorticoides), inibição da 11β-desidrogenase-2 (ácido glicirretínico/glicirrizínico e/ou carbenoxolona; alcaçuz, produtos
alimentares, fármacos), síndrome de Liddle (ativação genética dos canais epiteliais de Na+)
c. Aporte distal de ânions não reabsorvidos: vômito, aspiração nasogástrica, acidose tubular renal proximal, cetoacidose diabética,
inalação de cola (abuso de tolueno), derivados da penicilina (penicilina, nafcilina, dicloxacilina, ticarcilina, oxacilina e
carbenicilina)
3. Deficiência de magnésio

Redistribuição e hipopotassemia A insulina, a atividade β2-adrenérgica, o


hormônio tireoidiano e a alcalose promovem a captação celular de K+ mediada
pela Na+/K+-ATPase, resultando em hipopotassemia. A inibição do efluxo
passivo de K+ também pode causar hipopotassemia, embora isso ocorra
raramente; em geral, essa situação é observada no contexto da inibição sistêmica
dos canais de K+ por íons bário tóxicos. A insulina exógena pode causar
hipopotassemia iatrogênica, particularmente durante o tratamento dos estados
deficiência de K+, como cetoacidose diabética. De modo alternativo, a
estimulação da insulina endógena pode provocar hipopotassemia,
hipomagnesemia e/ou hipofosfatemia em pacientes desnutridos que recebem
uma carga de carboidratos. Alterações na atividade do sistema nervoso simpático
endógeno podem causar hipopotassemia em diversos contextos, incluindo
abstinência de álcool, hipertireoidismo, infarto agudo do miocárdio e
traumatismo craniencefálico grave. Os agonistas β2, incluindo tanto
broncodilatadores quanto tocolíticos (ritodrina), são potentes ativadores da
captação celular de K+; os simpatomiméticos “ocultos”, como a pseudoefedrina e
a efedrina em xaropes para tosse ou agentes para emagrecer, também podem
causar hipopotassemia inesperada. Por fim, a ativação xantina-dependente da
sinalização AMPc-dependente, distal ao receptor β2, pode resultar em
hipopotassemia, normalmente na situação de superdosagem (teofilina) ou ingesta
excessiva (cafeína da dieta).
A hipopotassemia por redistribuição também pode ocorrer no contexto do
hipertireoidismo, com ataques periódicos de paralisia hipopotassêmica (paralisia
periódica tireotóxica [PPT]). São observados episódios semelhantes de fraqueza
hipopotassêmica na ausência de anormalidades da tireoide na paralisia periódica
hipopotassêmica familiar, geralmente causada por mutação missense de
domínios sensores de voltagem dentro da subunidade α1 dos canais de cálcio tipo
L ou do canal de Na+ do esqueleto; essas mutações geram uma corrente anormal
nos poros de regulação, ativada pela hiperpolarização. A PPT desenvolve-se
mais frequentemente em pacientes de origem asiática ou hispânica; essa
predisposição compartilhada tem sido associada a uma variação genética do
Kir2.6, um canal de K+ específico do músculo e responsivo ao hormônio
tireoidiano. Geralmente, os pacientes com PPT apresentam fraqueza dos
membros e da cintura pélvica e episódios paralíticos que ocorrem mais
frequentemente entre 1 e 6 horas da manhã. Os sinais e sintomas de
hipertireoidismo não estão invariavelmente presentes. A hipopotassemia é
geralmente profunda e quase sempre acompanhada de hipofosfatemia e
hipomagnesemia. A hipopotassemia na PPT é atribuída à ativação tanto direta
quanto indireta da Na+/K+-ATPase, resultando em captação aumentada de K+
pelo músculo e por outros tecidos. Aumentos na atividade β-adrenérgica
desempenham um importante papel, visto que o propranolol em alta dose (3
mg/kg) reverte rapidamente a hipopotassemia associada, a hipofosfatemia e a
paralisia.

Perda não renal de potássio A perda de K+ no suor em geral é baixa, exceto em


casos de esforço físico extremo. As perdas gástricas diretas de K+ em
consequência de vômito ou aspiração nasogástrica também são mínimas;
todavia, a consequente alcalose hipoclorêmica resulta em caliurese persistente,
devido ao hiperaldosteronismo secundário e à bicarbonatúria, isto é, perda renal
de K+. A diarreia constitui uma causa mundialmente importante de
hipopotassemia, tendo em vista a prevalência da doença diarreica infecciosa no
mundo todo. Os processos gastrintestinais não infecciosos, como doença celíaca,
ileostomia, adenomas vilosos, doença inflamatória intestinal, pseudo-obstrução
colônica (síndrome de Ogilvie), VIPomas e abuso crônico de laxantes, também
podem causar hipopotassemia significativa. Uma secreção intestinal exagerada
de potássio pelos canais de BK colônicos suprarregulados foi diretamente
implicada na patogênese da hipopotassemia em muitos desses distúrbios.

Perda renal de potássio Os fármacos podem aumentar a excreção renal de K+


por uma variedade de mecanismos diferentes. Os diuréticos constituem uma
causa particularmente comum, devido a aumento no aporte tubular distal de Na+
e velocidade do fluxo tubular renal, além do hiperaldosteronismo secundário. Os
diuréticos tiazídicos exercem maior efeito sobre a concentração plasmática de K+
do que os diuréticos de alça, apesar de seu menor efeito natriurético. O efeito
diurético dos tiazídicos deve-se, em grande parte, à inibição do cotransportador
de Na+-Cl– CNC nas células do TCD. Isso leva a um aumento direto no aporte de
Na+ luminal às células principais distalmente ao TCD e DC cortical, que
intensifica a entrada de Na+ através do CENa, aumenta a diferença de potencial
negativa do lúmen e amplifica a secreção de K+. A maior propensão dos
diuréticos tiazídicos para provocar hipopotassemia também pode ser secundária
à hipocalciúria associada a esses fármacos versus a hipercalciúria observada
com os diuréticos de alça. O aumento do cálcio luminal distal em resposta aos
diuréticos de alça inibe o CENa nas células principais, reduzindo, assim, a
diferença de potencial negativa do lúmen e atenuando a excreção distal de K+.
Os antibióticos relacionados com a penicilina (nafcilina, dicloxacilina,
ticarcilina, oxacilina e carbenicilina) em altas doses podem aumentar a excreção
obrigatória de K+, atuando como ânions não reabsorvíveis no néfron distal. Por
fim, várias toxinas tubulares renais causam perda renal de K+ e magnésio,
levando ao desenvolvimento de hipopotassemia e hipomagnesemia; esses
fármacos incluem aminoglicosídeos, anfotericina, foscarnete, cisplatina e
ifosfamida (ver também “Deficiência de magnésio e hipopotassemia”, adiante).
A aldosterona ativa o canal CENa nas células principais por meio de
múltiplos mecanismos sinérgicos, aumentando, assim, a força propulsora para a
excreção de K+. Em consequência, aumentos na bioatividade da aldosterona e/ou
ganhos de função nas vias de sinalização dependentes da aldosterona estão
associados à hipopotassemia. O aumento da aldosterona circulante
(hiperaldosteronismo) pode ser primário ou secundário. Os níveis elevados de
renina circulante nas formas secundárias de hiperaldosteronismo levam a um
aumento da angiotensina II e, portanto, da aldosterona; a estenose da artéria
renal constitui, talvez, a causa mais frequente (Tab. 49-4). O
hiperaldosteronismo primário pode ser genético ou adquirido. Ocorrem
hipertensão e hipopotassemia devido a aumentos dos níveis circulantes de 11-
desoxicorticosterona em pacientes com hiperplasia suprarrenal congênita
causada por defeitos nos esteroides 11β-hidroxilase ou 17α-hidroxilase. A
deficiência da 11β-hidroxilase resulta em virilização associada e outros sinais de
excesso androgênico, enquanto a redução dos esteroides sexuais na deficiência
de 17α-hidroxilase leva ao hipogonadismo.
As principais formas de hiperaldosteronismo genético primário isolado são
o hiperaldosteronismo familiar tipo I (HF-I, também conhecido como
hiperaldosteronismo remediável por glicocorticoides [ARG]) e o
hiperaldosteronismo familiar tipos II e III (HF-II e HF-III), em que a produção
de aldosterona não é reprimida por glicocorticoides exógenos. O HF-I é causado
por uma duplicação de genes quiméricos entre os genes homólogos da 11β-
hidroxilase (CYP11B1) e aldosterona sintase (CYP11B2), com fusão do promotor
da 11β-hidroxilase responsivo ao hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) com a
região de codificação da aldosterona sintase; esse gene quimérico está sob o
controle do ACTH e, portanto, é passível de inibição pelos glicocorticoides. O
HF-III é causado por mutações no gene KCNJ5, que codifica o canal de K+
retificador interno 4 ativado pela proteína G (GIRK4); essas mutações levam à
aquisição de permeabilidade ao sódio nos canais GIRK4 mutantes, causando
uma despolarização exagerada da membrana nas células glomerulosas
suprarrenais e ativação dos canais de cálcio voltagem-dependente. O
consequente influxo de cálcio é suficiente para produzir secreção de aldosterona
e proliferação celular, levando ao desenvolvimento de adenomas suprarrenais e
hiperaldosteronismo.
As causas adquiridas de hiperaldosteronismo primário incluem adenomas
produtores de aldosterona (APAs), hiperplasia suprarrenal primária (HSRP) ou
unilateral, hiperaldosteronismo idiopático (HAI), devido à hiperplasia
suprarrenal bilateral, e carcinoma suprarrenal. Os APAs e o HAI respondem por
quase 60 e 40%, respectivamente, dos casos diagnosticados de
hiperaldosteronismo. Mutações somáticas adquiridas no gene KCNJ5 ou, com
menos frequência, nos genes ATP1A1 (uma subunidade α da Na+/K+-ATPase) e
ATP2B3 (uma Ca2+ ATPase) podem ser detectadas nos APAs; à semelhança do
HF-III (ver anteriormente), a despolarização exagerada das células glomerulosas
das suprarrenais causada por essas mutações está implicada na proliferação
suprarrenal excessiva e na liberação exagerada de aldosterona.
A determinação aleatória da atividade da renina plasmática (ARP) e da
aldosterona constitui um instrumento de rastreamento útil em pacientes com
hipopotassemia e/ou hipertensão, nos quais a obtenção de uma razão
aldosterona:ARP > 50 sugere hiperaldosteronismo primário. A hipopotassemia e
múltiplos agentes anti-hipertensivos podem alterar a razão aldosterona:ARP ao
suprimir a aldosterona ou aumentar a ARP, levando a uma razão < 50 em
pacientes que, de fato, apresentam hiperaldosteronismo primário; por
conseguinte, é sempre necessário considerar o contexto clínico para interpretar
esses resultados.
O glicocorticoide cortisol tem afinidade pelo MLR, igual à da aldosterona,
com consequente atividade “semelhante à dos mineralocorticoides”. Entretanto,
as células no néfron distal sensível à aldosterona são protegidas dessa ativação
“equivocada” pela enzima 11β-hidroxiesteroide desidrogenase-2 (11βHSD-2),
que converte o cortisol em cortisona, a qual possui afinidade mínima pelo MLR.
Por conseguinte, as mutações recessivas com perda de função no gene 11βHSD-
2 estão associadas à ativação do MLR dependente de cortisol e à síndrome de
excesso aparente de mineralocorticoides (SEAM), que consiste em hipertensão,
hipopotassemia, hipercalciúria e alcalose metabólica, com supressão da ARP e
da aldosterona. Uma síndrome semelhante é causada pela inibição bioquímica da
11βHSD-2 pelo ácido glicirretínico/glicirrizínico e/ou pela carbenoxolona. O
ácido glicirrizínico é um adoçante natural presente na raiz do alcaçuz,
normalmente encontrado no alcaçuz e em suas numerosas formas, ou como
agente aromatizante no tabaco e em produtos alimentares.
A hipopotassemia também pode ocorrer na presença de aumentos
sistêmicos dos glicocorticoides. Na síndrome de Cushing causada por aumento
do ACTH hipofisário (Cap. 379), a incidência de hipopotassemia é de apenas
10%, enquanto alcança 60 a 100% em pacientes com secreção ectópica de
ACTH, apesar de uma incidência semelhante de hipertensão. Evidências
indiretas sugerem que a atividade da 11βHSD-2 renal se encontra reduzida em
pacientes com ACTH ectópico, em comparação àqueles com a síndrome de
Cushing, resultando em SEAM.
Por fim, a hipopotassemia está associada a alterações em múltiplas vias de
transporte tubular renal. Por exemplo, as mutações com perda de função em
subunidades da H+-ATPase acidificante nas células intercaladas alfa provocam
acidose tubular renal distal hipopotassêmica, assim como muitos distúrbios
adquiridos do néfron distal. A síndrome de Liddle é causada por mutações com
ganho de função autossômicas dominantes de subunidades do CENa. As
mutações associadas à doença ativam diretamente o canal ou abolem a
recuperação inibida pela aldosterona de subunidades do CENa da membrana
plasmática; o resultado consiste em aumento da expressão dos canais CENa
ativados na membrana plasmática das células principais. Classicamente, os
pacientes com síndrome de Liddle apresentam hipertensão grave com
hipopotassemia, que não responde à espironolactona, mas que é sensível à
amilorida. Entretanto, a hipertensão e a hipopotassemia constituem aspectos
variáveis do fenótipo de Liddle; as características mais consistentes incluem
supressão da resposta da aldosterona ao ACTH e excreção urinária reduzida de
aldosterona.
A perda das funções de transporte dos segmentos do TALH e TCD do
néfron provoca alcalose hipopotassêmica hereditária, a síndrome de Bartter (SB)
e a síndrome de Gitelman (SG), respectivamente. Normalmente, os pacientes
com SB clássica apresentam poliúria e polidipsia devido a uma redução da
capacidade de concentração renal. Podem exibir aumento na excreção urinária
de cálcio, e 20% tem hipomagnesemia. Outras características incluem a ativação
acentuada do eixo renina-angiotensina-aldosterona. Os pacientes com SB pré-
natal têm um grave distúrbio sistêmico, caracterizado por acentuada perda de
eletrólitos, polidrâmnio e hipercalciúria com nefrocalcinose; observa-se um
aumento significativo na síntese e na excreção renais de prostaglandinas, o que
explica grande parte dos sintomas sistêmicos. Existem 5 genes determinantes de
doença na SB, todos atuando em algum aspecto do transporte regulado de Na+,
K+ e Cl– pelo TALH. Em contrapartida, a SG é geneticamente homogênea e
causada quase exclusivamente por mutações com perda de função no
cotransportador de Na+-Cl– sensível aos diuréticos tiazídicos no TCD. Os
pacientes com SG apresentam uniformemente hipomagnesemia e exibem
hipocalciúria acentuada, em lugar da hipercalciúria geralmente observada na SB;
por conseguinte, a excreção urinária de cálcio constitui um exame complementar
decisivo na SG. A SG exibe um fenótipo mais leve do que a SB; todavia,
pacientes com SG podem apresentar condrocalcinose, que consiste em deposição
anormal de di-hidrato de pirofosfato de cálcio (CPPD) na cartilagem articular (C
ap. 309).
Deficiência de magnésio e hipopotassemia A depleção de magnésio produz
efeitos inibitórios sobre a atividade muscular da Na+/K+-ATPase, reduzindo o
influxo nas células musculares e causando caliurese secundária. Além disso, a
depleção de magnésio provoca secreção exagerada de K+ pelo néfron distal e
esse efeito é atribuído a uma redução no bloqueio intracelular dependente de
magnésio do efluxo de K+ através do canal secretor de K+ das células principais
(ROMK; Fig. 49-4). Em consequência, os pacientes com hipomagnesemia são
clinicamente refratários à reposição de K+ na ausência de reposição de Mg2+. É
interessante observar que a deficiência de magnésio também constitui um achado
concomitante comum da hipopotassemia, visto que muitos distúrbios no néfron
distal podem causar perda tanto de potássio quanto de magnésio (Cap. 309).

Manifestações clínicas A hipopotassemia tem efeitos proeminentes sobre as


células musculares cardíacas, esqueléticas e intestinais. Em particular, trata-se de
um importante fator de risco para arritmias tanto ventriculares quanto atriais. A
hipopotassemia predispõe à toxicidade digitálica da digoxina por diversos
mecanismos, incluindo competição reduzida entre o K+ e a digoxina por sítios de
ligação compartilhados em subunidades da Na+/K+-ATPase cardíaca. As
alterações eletrocardiográficas observadas na hipopotassemia incluem ondas T
largas e achatadas, depressão do segmento ST e prolongamento do intervalo QT,
que são mais pronunciadas com níveis séricos de K+ < 2,7 mmol/L. Por
conseguinte, a hipopotassemia pode constituir um importante fator
desencadeante de arritmia em pacientes com causas genéticas ou adquiridas
adicionais de prolongamento do intervalo QT. A hipopotassemia também resulta
em hiperpolarização do músculo esquelético, comprometendo, dessa maneira, a
capacidade de despolarização e contração; em consequência, podem surgir
fraqueza e até mesmo paralisia. Além disso, provoca miopatia esquelética e
predispõe à rabdomiólise. Por fim, os efeitos paralíticos da hipopotassemia sobre
o músculo liso intestinal podem causar íleo dinâmico.
Os efeitos funcionais da hipopotassemia sobre os rins podem incluir
retenção de Na+-Cl– e HCO3–, poliúria, fosfatúria, hipocitratúria e ativação da
amoniogênese renal. A retenção de bicarbonato e outros efeitos da
hipopotassemia sobre o equilíbrio acidobásico podem contribuir para o
desenvolvimento de alcalose metabólica. A poliúria hipopotassêmica resulta de
uma combinação de polidipsia central e defeito de concentração renal resistente
à AVP. As alterações estruturais dos rins observadas em consequência da
hipopotassemia consistem em lesão de vacuolização relativamente específica das
células tubulares proximais, nefrite intersticial e cistos renais. A hipopotassemia
também predispõe à lesão renal aguda e pode levar ao desenvolvimento de
doença renal em estágio terminal (DRET) em pacientes com hipopotassemia de
longa duração, secundária a transtornos alimentares e/ou a abuso de laxantes.
A hipopotassemia e/ou a redução do K+ da dieta estão implicadas na
fisiopatologia e progressão da hipertensão, insuficiência cardíaca e acidente
vascular cerebral (AVC). Por exemplo, a restrição de K+ em curto prazo em
indivíduos saudáveis e em pacientes com hipertensão essencial induz retenção de
Na+-Cl– e hipertensão. A correção da hipopotassemia é particularmente
importante em pacientes hipertensos tratados com diuréticos, nos quais a pressão
arterial melhora com o estabelecimento da normopotassemia.

Abordagem diagnóstica A etiologia da hipopotassemia é geralmente


evidenciada com base na anamnese, no exame físico e/ou nos exames
laboratoriais básicos. A anamnese deve concentrar-se no uso de medicamentos
(p. ex., laxantes, diuréticos, antibióticos), dieta e hábitos alimentares (p. ex.,
alcaçuz) e/ou sintomas que sugerem uma causa específica (p. ex., fraqueza
periódica, diarreia). O exame físico deve dispensar uma atenção particular para a
pressão arterial, o estado de volume e os sinais sugestivos de distúrbios
hipopotassêmicos específicos, como, por exemplo, hipertireoidismo e síndrome
de Cushing. A avaliação laboratorial inicial deve incluir eletrólitos, ureia,
creatinina, osmolalidade sérica, Mg2+, Ca2+, hemograma completo, pH,
osmolalidade, creatinina e eletrólitos urinários (Fig. 49-7). A presença de
acidose sem anion gap sugere acidose tubular renal hipopotassêmica distal ou
diarreia; o cálculo do anion gap urinário pode ajudar a diferenciar esses dois
diagnósticos. A excreção renal de K+ pode ser determinada em uma coleta de
urina de 24 horas; uma excreção de K+ de 24 horas < 15 mmol indica uma causa
extrarrenal de hipopotassemia ((Fig. 49-7). Se apenas uma amostra de urina
aleatória estiver disponível, a osmolalidade do soro e da urina pode ser usada
para calcular o gradiente transtubular de potássio (GTTK), que deve ser < 3 na
presença de hipopotassemia (ver também “Hiperpotassemia”). Como alternativa,
uma razão entre K+ urinário e creatinina > 13 mmol/g de creatinina (> 1,5
mmol/mmol de creatinina) é compatível com excreção renal excessiva de K+.
Em geral, a concentração urinária de Cl– está diminuída em pacientes com
hipopotassemia, devido a um ânion não reabsorvível, como antibióticos ou
HCO3–. As causas mais comuns de alcalose hipopotassêmica crônica consistem
em vômito induzido cronicamente, abuso de diuréticos e SG; essas causas
podem ser diferenciadas pelo padrão dos eletrólitos urinários. Por conseguinte,
os pacientes com hipopotassemia que apresentam vômitos em consequência de
bulimia apresentam um nível urinário de Cl– < 10 mmol/L. Os níveis de Na+, K+
e Cl– na urina estão persistentemente elevados na SG, devido à perda de função
do cotransportador de Na+-Cl– sensível a tiazídicos, porém estão menos elevados
no abuso de diuréticos e exibem maior variabilidade. Pode ser necessária uma
dosagem de diuréticos de alça e tiazídicos na urina para excluir o abuso de
diuréticos.

FIGURA 49-7 Abordagem diagnóstica à hipopotassemia. Ver detalhes no texto. PA, pressão arterial;
CAD, cetoacidose diabética; HF-I, hiperaldosteronismo familiar tipo I; PPHF, paralisia periódica
hipopotassêmica familiar; GI, gastrintestinal; HTN, hipertensão; AP, aldosteronismo primário; EAR,
estenose da artéria renal; TSR, tumor secretor de renina; ATR, acidose tubular renal; SEAM, síndrome de
excesso aparente de mineralocorticoides; GTTK, gradiente transtubular de potássio. (Utilizada, com
permissão, de DB Mount, K Zandi-Nejad K: Disorders of potassium balance, in Brenner and Rector’s The
Kidney, 8th ed, BM Brenner [ed]. Philadelphia, W.B. Saunders & Company, 2008, pp 547-587.)

Outros exames, como o nível urinário de Ca2+, provas de função da tireoide


e/ou níveis de ARP e aldosterona, também podem ser apropriados em casos
específicos. A obtenção de uma razão aldosterona plasmática:ARP > 50, devido
à supressão da renina circulante e à elevação da aldosterona circulante, sugere
hiperaldosteronismo. Os pacientes com hiperaldosteronismo ou excesso aparente
de mineralocorticoides podem exigir exames adicionais, como, por exemplo,
cateterismo da veia suprarrenal (Cap. 379) ou exames clinicamente disponíveis
para causas genéticas específicas (p. ex., HF-I, SEAM, síndrome de Liddle). Por
conseguinte, nos pacientes com aldosteronismo primário, deve-se efetuar uma
pesquisa para o gene HF-I/ARG quimérico (ver anteriormente) se tiverem menos
de 20 anos de idade ou uma história familiar de aldosteronismo primário ou AVC
em uma idade jovem (< 40 anos). A diferenciação preliminar entre a síndrome de
Liddle (devido a canais CENa mutantes) e a SEAM (devido a 11βHSD-2
mutante, ver anteriormente), ambas causadoras de hipopotassemia e hipertensão
com supressão de aldosterona, pode ser realizada em uma base clínica e, em
seguida, confirmada por análise genética; os pacientes com síndrome de Liddle
devem responder à amilorida (inibição do CENa), mas não à espironolactona,
enquanto os pacientes com SEAM respondem à espironolactona.

TRATAMENTO
Hipopotassemia
As metas do tratamento para a hipopotassemia consistem em impedir as consequências crônicas graves e/ou
potencialmente fatais, repor o déficit de K+ associado e corrigir a causa subjacente e/ou reduzir a futura
hipopotassemia. A urgência da terapia depende da gravidade da hipopotassemia, dos fatores clínicos
associados (p. ex., doença cardíaca, terapia com digoxina) e da velocidade de declínio do nível sérico de
K+. Pacientes com intervalo QT prolongado e/ou outros fatores de risco para arritmias devem ser
acompanhados por meio de monitorização cardíaca contínua durante a reposição. Deve-se considerar uma
reposição urgente, porém cautelosa de K+ em pacientes com hipopotassemia grave por redistribuição
(concentração plasmática de K+ < 2,5 mM) e/ou quando surgem complicações graves; todavia essa
abordagem está associada a um risco de hiperpotassemia de rebote após resolução aguda da causa
subjacente. Quando se acredita que a atividade excessiva do sistema nervoso simpático desempenha um
papel dominante na hipopotassemia por redistribuição, como na PPT, superdosagem de teofilina e
traumatismo craniencefálico agudo, deve-se considerar a administração de propranolol em altas doses (3
mg/kg); esse bloqueador β-adrenérgico não específico corrige a hipopotassemia sem o risco de
hiperpotassemia de rebote.
A reposição oral com K+-Cl– constitui a base da terapia para a hipopotassemia. O fosfato de potássio
por via oral ou intravenosa pode ser apropriado para pacientes com hipopotassemia e hipofosfatemia
combinadas. Deve-se considerar o uso de bicarbonato de potássio ou citrato de potássio em pacientes com
acidose metabólica concomitante. Os pacientes com hipomagnesemia são refratários à reposição isolada de
K+, de modo que a deficiência de Mg2+ concomitante deve ser sempre corrigida com reposição oral ou
intravenosa. O déficit de K+ e a velocidade da correção devem ser estimados da forma mais precisa
possível; a função renal, o uso de medicamentos e a existência de comorbidades, como diabetes melito,
também devem ser considerados, de modo a avaliar o risco de correção excessiva. Na ausência de
redistribuição anormal do K+, o déficit total correlaciona-se com os níveis séricos de K+, de modo que o
declínio do K+ é de aproximadamente 0,27 mM para cada redução de 100 mmol das reservas corporais
totais; a perda de 400 a 800 mmol de K+ corporal total resulta em uma diminuição dos níveis séricos de K+
de aproximadamente 2,0 mM. Tendo em vista o retardo da redistribuição de potássio nos compartimentos
intracelulares, é preciso repor esse déficit gradualmente no decorrer de 24 a 48 horas, com
acompanhamento frequente da concentração plasmática de K+, a fim de evitar uma reposição excessiva
transitória e a ocorrência de hiperpotassemia transitória.
O uso da via intravenosa deve limitar-se a pacientes incapazes de utilizar a via enteral ou no contexto
de complicações graves (p. ex., paralisia, arritmias). O K+-Cl– intravenoso deve ser sempre administrado
em soluções salinas, e não com dextrose, visto que o aumento da insulina induzido pela dextrose pode
causar exacerbação aguda da hipopotassemia. A dose intravenosa periférica é geralmente de 20-40 mmol de
K+-Cl– por litro; concentrações mais altas podem causar dor localizada, devido à flebite química, irritação e
esclerose. Se a hipopotassemia for grave (< 2,5 mmol/L) e/ou criticamente sintomática, pode-se administrar
K+-Cl– por via intravenosa em uma veia central, com monitorização cardíaca em uma unidade de terapia
intensiva, a uma velocidade de 10 a 20 mmol/h; o uso de uma velocidade mais alta deve ser reservado para
as complicações agudas que comportam risco de vida. A quantidade absoluta de K+ administrado deve ser
restrita (p. ex., 20 mmol em 100 mL de solução salina) para evitar a infusão inadvertida de uma grande
dose. A veia femoral é preferida, visto que a infusão através das linhas jugular interna ou subclávia pode
aumentar agudamente a concentração local de K+ e afetar a condução cardíaca.
Além disso, devem-se considerar estratégias para reduzir ao mínimo as perdas de K+. Essas medidas
podem consistir em reduzir ao mínimo a dose de diuréticos não poupadores de K+, restringir o aporte de
Na+ e usar combinações clinicamente apropriadas de medicamentos não poupadores de K+ e poupadores de
K+ (p. ex., diuréticos de alça com inibidores de ECA [IECAs]).

HIPERPOTASSEMIA
A hiperpotassemia é definida como um nível plasmático de potássio de 5,5 mM,
que ocorre em até 10% dos pacientes hospitalizados; a hiperpotassemia grave (>
6,0 mM) é observada em aproximadamente 1%, com aumento significativo do
risco de mortalidade. Embora a redistribuição e a redução da captação tecidual
possam causar hiperpotassemia de forma aguda, a diminuição da excreção renal
de K+ constitui a causa subjacente mais frequente (Tab. 49-5). A ingesta
excessiva de K+ representa uma causa rara devido à capacidade adaptativa de
aumentar a secreção renal; todavia, o consumo dietético pode exercer um efeito
importante em pacientes suscetíveis, por exemplo, pacientes diabéticos com
hipoaldosteronismo hiporreninêmico e doença renal crônica. Os fármacos com
impacto no eixo renina-angiotensina-aldosterona também constituem uma
importante causa de hiperpotassemia.

TABELA 49-5 ■ Causas de hiperpotassemia


I. Pseudo-hiperpotassemia
A. Efluxo celular; trombocitose, eritrocitose, leucocitose, hemólise in vitro
B. Defeitos hereditários no transporte através da membrana eritrocitária
II. Deslocamento no sentido intracelular para extracelular
A. Acidose
B. Hiperosmolalidade; meios de contraste radiológicos, glicose hipertônica, manitol
C. Antagonistas β2-adrenérgicos (agentes não cardiosseletivos)
D. Digoxina e glicosídeos relacionados (oleandro amarelo, dedaleira, bufonídeo)
E. Paralisia periódica hiperpotassêmica
F. Lisina, arginina e ácido ε-aminocaproico (estruturalmente semelhante, de carga positiva)
G. Succinilcolina; traumatismo térmico, lesão neuromuscular, atrofia por desuso, mucosite ou imobilização prolongada
H. Lise tumoral rápida
III.Excreção inadequada
A. Inibição do eixo renina-angiotensina-aldosterona; ↑ risco de hiperpotassemia quando usado em combinação
1. Inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECAs)
2. Inibidores da renina: alisquireno (em combinação com IECAs ou bloqueadores dos receptores de angiotensina [BRAs])
3. BRAs
4. Bloqueio do receptor de mineralocorticoides: espironolactona, eplerenona, drospirenona
5. Bloqueio do canal epitelial de sódio (CENa): amilorida, triantereno, trimetoprima, pentamidina, nafamostate
B. Diminuição do aporte distal
1. Insuficiência cardíaca congestiva
2. Depleção de volume
C. Hipoaldosteronismo hiporreninêmico
1. Doenças tubulointersticiais: lúpus eritematoso sistêmico (LES), anemia falciforme, uropatia obstrutiva
2. Diabetes, nefropatia diabética
3. Fármacos: anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), inibidores da cicloxigenase 2 (COX-2), β-bloqueadores, ciclosporina, tacrolimo
4. Doença renal crônica, idade avançada
5. Pseudo-hipoaldosteronismo tipo II: defeitos nas cinases WNK1 ou WNK4, Kelch-like 3 (KLHL3) ou Cullin 3 (CUL3)
D. Resistência renal aos mineralocorticoides
1. Doenças tubulointersticiais: LES, amiloidose, anemia falciforme, uropatia obstrutiva, após necrose tubular aguda
2. Hereditária: pseudo-hipoaldosteronismo tipo I; defeitos no receptor de mineralocorticoides receptor ou no CENa
E. Insuficiência renal avançada
1. Doença renal crônica
2. Doença renal em estágio terminal
3. Lesão renal oligúrica aguda
F. Insuficiência suprarrenal primária
1. Doenças autoimunes: doença de Addison, endocrinopatia poliglandular
2. Infecciosa: HIV, citomegalovírus, tuberculose, infecção fúngica disseminada
3. Infiltrativa: amiloidose, neoplasia maligna, câncer metastático
4. Associada a fármacos: heparina, heparina de baixo peso molecular
5. Hereditária: hipoplasia suprarrenal congênita, hiperplasia suprarrenal lipoide congênita, deficiência de aldosterona-sintase
6. Hemorragia ou infarto suprarrenal, incluindo síndrome antifosfolipídeo

Pseudo-hiperpotassemia A hiperpotassemia deve ser diferenciada da


hiperpotassemia factícia ou “pseudo-hiperpotassemia”, que consiste em uma
elevação artificial da concentração sérica de K+ devido à liberação de K+ durante
ou após uma punção venosa. A pseudo-hiperpotassemia pode ocorrer no
contexto de atividade muscular excessiva durante a punção venosa (p. ex.,
fechamento da mão), aumento pronunciado dos elementos celulares
(trombocitose, leucocitose e/ou eritrocitose) com efluxo de K+ in vitro e
ansiedade aguda durante a punção venosa, com alcalose respiratória e
hiperpotassemia por redistribuição. O resfriamento do sangue após a punção
venosa constitui outra causa, devido à captação celular reduzida; o inverso
consiste em aumento da captação de K+ pelas células em alta temperatura
ambiente, resultando em valores normais para pacientes com hiperpotassemia
e/ou hipopotassemia factícia em pacientes normopotassêmicos. Por fim, existem
múltiplos subtipos genéticos de pseudo-hiperpotassemia hereditária, que são
causados por aumentos da permeabilidade passiva dos eritrócitos ao K+. Por
exemplo, foram descritas mutações causais no trocador de ânions dos eritrócitos
(AE1, codificado pelo gene SLC4A1), resultando em transporte reduzido dos
ânions dos eritrócitos, anemia hemolítica, extravasamento de K+ mediado por
AE1 novo e pseudo-hiperpotassemia.

Redistribuição e hiperpotassemia Vários mecanismos diferentes podem


induzir um efluxo do K+ intracelular e hiperpotassemia. A acidemia está
associada à captação celular de H+ e a um efluxo associado de K+; acredita-se
que essa troca de K+-H+ efetiva ajude a manter o pH extracelular. De maneira
notável, esse efeito da acidose limita-se a causas de acidose metabólica sem
anion gap e, em menor grau, a causas respiratórias de acidose. A
hiperpotassemia devido a um desvio de potássio acidose-induzido das células
para o LEC não ocorre nas acidoses com anion gap, acidose láctica e
cetoacidose. A hiperpotassemia causada por manitol hipertônico, solução salina
hipertônica e imunoglobulina intravenosa é geralmente atribuída a um efeito de
“dragagem do solvente”, à medida que a água sai das células ao longo do
gradiente osmótico. Os pacientes diabéticos também são propensos à
hiperpotassemia osmótica em resposta à glicose hipertônica intravenosa quando
administrada sem insulina adequada. Os aminoácidos catiônicos,
especificamente a lisina, a arginina e o fármaco estruturalmente relacionado, o
ácido ε-aminocaproico, provocam efluxo de K+ e hiperpotassemia por meio de
uma troca de cátion-K+ efetiva de identidade e mecanismo desconhecidos. A
digoxina inibe a Na+/K+-ATPase e compromete a captação de K+ pelo músculo
esquelético, de modo que a superdosagem de digoxina resulta, de modo
previsível, em hiperpotassemia. Glicosídeos estruturalmente relacionados são
encontrados em plantas específicas (p. ex., oleandro amarelo, dedaleira) e no
sapo Bufo marinus (bufadienolídeo); a ingesta dessas substâncias e seus extratos
também pode causar hiperpotassemia. Por fim, os íons fluoreto também inibem a
Na+/K+-ATPase, de modo que a intoxicação por fluoreto está geralmente
associada à hiperpotassemia.
A succinilcolina despolariza as células musculares, causando um efluxo de
K por meio dos receptores de acetilcolina (AChRs). O uso desse agente está
+

contraindicado para pacientes que apresentam traumatismo térmico sustentado,


lesão neuromuscular, atrofia por desuso, mucosite ou imobilização prolongada.
Esses distúrbios compartilham um acentuado aumento e redistribuição dos
AChRs na membrana plasmática das células musculares; a despolarização desses
AChRs suprarregulados pela succinilcolina leva a um efluxo exagerado de K+
através dos canais de cátions associados ao receptor, resultando em
hiperpotassemia aguda.

Hiperpotassemia por aporte excessivo ou necrose tecidual O consumo


aumentado de K+, mesmo em pequenas quantidades, pode provocar
hiperpotassemia grave em pacientes com fatores predisponentes; por esse
motivo, é fundamental uma avaliação dietética. Os alimentos ricos em potássio
incluem tomates, bananas e frutas cítricas; as fontes ocultas de K+,
particularmente os substitutos do sal contendo K+, também podem contribuir de
modo significativo. As causas iatrogênicas incluem a reposição excessiva com
K+-Cl– ou a administração de um medicamento contendo potássio (p. ex., K+-
penicilina) a um paciente suscetível. A transfusão de hemácias constitui uma
causa bem descrita de hiperpotassemia, tipicamente nos casos de transfusões
maciças. Por fim, a necrose tecidual grave, como a que ocorre na síndrome de
lise tumoral aguda e na rabdomiólise, previsivelmente causa hiperpotassemia
devido à liberação de K+ intracelular.

Hipoaldosteronismo e hiperpotassemia A liberação de aldosterona pela


glândula suprarrenal pode ser reduzida pelo hipoaldosteronismo
hiporreninêmico, por determinados medicamentos, pelo hipoaldosteronismo
primário ou pela deficiência isolada de ACTH (hipoaldosteronismo secundário).
O hipoaldosteronismo primário pode ser genético ou adquirido (Cap. 379),
porém é normalmente causado por autoimunidade na doença de Addison ou no
contexto de uma endocrinopatia poliglandular. O HIV ultrapassou a tuberculose
como causa infecciosa mais importante de insuficiência suprarrenal. O
comprometimento suprarrenal na doença pelo HIV é geralmente subclínico;
entretanto, a insuficiência suprarrenal pode ser precipitada por estresse, por
determinados fármacos, como o cetoconazol, que inibem a esteroidogênese, ou
pela suspensão aguda de agentes esteroides, como o megestrol.
O hipoaldosteronismo hiporreninêmico é um fator predisponente muito
comum em vários subgrupos superpostos de pacientes com hiperpotassemia:
pacientes diabéticos, indivíduos idosos e pacientes com lesão renal.
Classicamente, esses pacientes devem apresentar supressão da ARP e da
aldosterona; aproximadamente 50% exibem acidose associada, com redução da
excreção renal de NH4+, anion gap urinário positivo e pH urinário < 5,5. Ocorre
expansão do volume na maioria dos pacientes, com aumentos secundários do
peptídeo natriurético atrial (ANP) circulante, que inibem tanto a liberação renal
de renina quanto a liberação suprarrenal de aldosterona.

Doença renal e hiperpotassemia A doença renal crônica e a DRET constituem


causas muito comuns de hiperpotassemia, devido ao déficit ou ausência de
néfrons funcionantes. A hiperpotassemia é mais comum na lesão renal aguda
oligúrica; o fluxo tubular distal e o aporte de Na+ constituem fatores menos
limitantes em pacientes não oligúricos. A hiperpotassemia desproporcional à
TFG também pode ser observada no contexto da doença tubulointersticial que
afeta o néfron distal, como amiloidose, anemia falciforme, nefrite intersticial e
uropatia obstrutiva.
As causas renais hereditárias de hiperpotassemia apresentam manifestações
clínicas que se sobrepõem ao hipoaldosteronismo, daí a designação diagnóstica
pseudo-hipoaldosteronismo (PHA). O PHA tipo I (PHA-I) ocorre tanto em uma
forma autossômica dominante quanto em uma forma autossômica recessiva. A
forma autossômica dominante é causada por mutações com perda de função no
MLR; a forma recessiva é produzida por várias combinações de mutações nas
três subunidades do CENa, resultando em comprometimento da atividade do
canal de Na+ nas células principais e em outros tecidos. Os pacientes com PHA-I
recessivo apresentam perda de sal, hipotensão e hiperpotassemia permanentes,
enquanto o fenótipo de PHA-I autossômico dominante, devido à disfunção do
MLR, melhora na vida adulta. O PHA tipo II (PHA-II, também conhecido como
hipertensão hereditária com hiperpotassemia) é, em todos os aspectos, a
imagem espelhada da SG causada por perda de função do CNC, o
cotransportador de Na+-Cl– sensível aos tiazídicos (ver anteriormente); o
fenótipo clínico consiste em hipertensão, hiperpotassemia, acidose metabólica
hiperclorêmica, supressão da ARP e da aldosterona, hipercalciúria e diminuição
da densidade óssea. Por conseguinte, o PHA-II comporta-se como um ganho de
função do CNC, e o tratamento com tiazídicos resulta em resolução de todo o
fenótipo clínico. Todavia, o gene de CNC não está diretamente envolvido no
PHA-II, que é causado por mutações nas serinas-treoninas-cinases WNK1 e
WNK4 ou nos Kelch-like 3 (KLHL3) e Cullin 3 (CUL3) proximais, dois
componentes de um complexo E3 ubiquitina ligase, que regula essas cinases;
essa proteínas regulam coletivamente a atividade do CNC, com ativação do
transportador associado ao PHA-II.
Hiperpotassemia associada a medicamentos A maioria dos medicamentos
associados à hiperpotassemia provoca inibição de algum componente do eixo
renina-angiotensina-aldosterona. Os IECAs, os bloqueadores dos receptores de
angiotensina, os inibidores da renina e os MLRs constituem causas previsíveis e
comuns de hiperpotassemia, particularmente quando prescritos em combinação.
O contraceptivo oral Yasmin-28 contém a progestina drospirenona, que inibe o
MLR, podendo causar hiperpotassemia em pacientes suscetíveis. A ciclosporina,
o tacrolimo, os AINEs e os inibidores da cicloxigenase 2 (COX-2) provocam
hiperpotassemia por múltiplos mecanismos, porém compartilham a capacidade
de causar hipoaldosteronismo hiporreninêmico. É importante destacar que a
maioria dos fármacos que afetam o eixo renina-angiotensina-aldosterona
também bloqueia a resposta suprarrenal local à hiperpotassemia, atenuando,
assim, a estimulação direta da liberação de aldosterona pela concentração
plasmática aumentada de K+.
A inibição da atividade do CENa apical no néfron distal pela amilorida e
por outros diuréticos poupadores de K+ resulta em hiperpotassemia,
frequentemente com acidose hiperclorêmica voltagem-dependente e/ou
hiponatremia hipovolêmica. A amilorida assemelha-se, do ponto de vista
estrutural, aos antibióticos TMP e pentamidina, que também bloqueiam o CENa;
os fatores de risco para a hiperpotassemia associada à TMP incluem a dose
administrada, a presença de insuficiência renal e o hipoaldosteronismo
hiporreninêmico. A inibição indireta do CENa na membrana plasmática também
constitui uma causa de hiperpotassemia associada a fármacos; o nafamostate, um
inibidor da protease utilizado em alguns países para o tratamento da pancreatite,
inibe as proteases renais induzidas pela aldosterona que ativam o CENa por
clivagem proteolítica.

Manifestações clínicas A hiperpotassemia é uma emergência clínica devido aos


seus efeitos sobre o coração. As arritmias cardíacas associadas à hiperpotassemia
incluem bradicardia sinusal, parada sinusal, ritmos idioventriculares lentos,
taquicardia ventricular, fibrilação ventricular e assistolia. Aumentos discretos do
K+ extracelular afetam a fase de repolarização do potencial de ação cardíaco,
resultando em alterações na morfologia da onda T; aumentos mais acentuados na
concentração plasmática de K+ provocam depressão da condução intracardíaca,
com prolongamento progressivo dos intervalos PR e QRS. A hiperpotassemia
grave resulta em perda da onda P e alargamento progressivo do complexo QRS;
o desenvolvimento de um ritmo sinoventricular de onda senoidal sugere
fibrilação ventricular ou assistolia iminentes. A hiperpotassemia também pode
causar um padrão de Brugada tipo I no eletrocardiograma (ECG), com
pseudobloqueio de ramo direito e elevação persistente do segmento ST arqueado
em pelo menos duas derivações precordiais. O sinal de Brugada
hiperpotassêmico ocorre em pacientes em estado crítico com hiperpotassemia
grave, e pode ser diferenciado da síndrome de Brugada genética pela ausência de
ondas P, alargamento acentuado de QRS e eixo QRS anormal. Classicamente, as
manifestações eletrocardiográficas na hiperpotassemia progridem desde ondas T
elevadas em pico (5,5-6,5 mM) até perda das ondas P (6,5-7,5 mM), alargamento
do complexo QRS (7,0-8,0 mM) e, por fim, um padrão de onda senoidal (> 8,0
mM). Todavia, essas alterações são notoriamente insensíveis, sobretudo em
pacientes com doença renal crônica ou DRET.
A hiperpotassemia devido a uma variedade de etiologias também pode se
manifestar com paralisia ascendente, designada paralisia hiperpotassêmica
secundária, para diferenciá-la da paralisia periódica hiperpotassêmica (PPH)
familiar. A apresentação pode incluir paralisia diafragmática e insuficiência
respiratória. Os pacientes com PPH familiar desenvolvem fraqueza miopática
durante a hiperpotassemia induzida pelo aporte aumentado de K+ ou repouso
após exercício intenso. A despolarização do músculo esquelético pela
hiperpotassemia revela um defeito de inativação nos canais de Na+ esqueléticos;
a causa predominante consiste em mutações autossômicas dominantes no gene
SCN4A que codifica esse canal.
Nos rins, a hiperpotassemia exerce efeitos negativos sobre a capacidade de
excreção de uma carga ácida, de modo que a hiperpotassemia por si só pode
contribuir para a acidose metabólica. Essa alteração pode ocorrer, em parte,
devido à competição entre o K+ e o NH4+ para reabsorção pelo TALH e
multiplicação por contracorrente subsequente, reduzindo finalmente o gradiente
medular para a excreção de NH3/NH4 pelo néfron distal. Independentemente do
mecanismo subjacente, a restauração da normopotassemia pode, em muitos
casos, corrigir a acidose metabólica hiperpotassêmica.

Abordagem diagnóstica A prioridade no manejo da hiperpotassemia consiste


em avaliar a necessidade de tratamento de emergência, seguido de avaliação
abrangente para determinar a etiologia (Fig. 49-8). A anamnese e o exame físico
devem se concentrar no uso de medicamentos, na dieta e suplementos dietéticos,
nos fatores de risco para disfunção renal, na redução do débito urinário, na
pressão arterial e no estado de volume. Os exames laboratoriais iniciais devem
incluir eletrólitos, ureia sanguínea, creatinina, osmolalidade sérica, Mg2+ e Ca2+,
hemograma completo; pH, osmolalidade, creatinina e eletrólitos urinários. Uma
concentração urinária de Na+ de < 20 mM indica que o aporte distal de Na+
constitui um fator limitante na excreção de K+; reposição de volume com solução
salina a 0,9% ou tratamento com furosemida podem ser efetivos para reduzir a
concentração plasmática de K+. A osmolalidade do soro e a da urina são
necessárias para o cálculo do GTTK (Fig. 49-8). Os valores esperados do GTTK
baseiam-se, em grande parte, em dados da história e são < 3 na presença de
hipopotassemia e > 7-8 na hiperpotassemia.
[K+]urina × Osmsoro
GTTK =
[K+]soro × Osmurina

FIGURA 49-8 Abordagem diagnóstica à hiperpotassemia. Ver detalhes no texto. IECA, inibidor da
enzima conversora de angiotensina; BRA, bloqueador dos receptores de angiotensina II; ECG,
eletrocardiograma; VCE, volume circulatório efetivo; TFG, taxa de filtração glomerular; GN,
glomerulonefrite; HBPM, heparina de baixo peso molecular; AINE, anti-inflamatório não esteroide; PHA,
pseudo-hipoaldosteronismo; LES, lúpus eritematoso sistêmico; GTTK, gradiente transtubular de potássio.
(Utilizada, com permissão, de DB Mount, K Zandi-Nejad K: Disorders of potassium balance, in Brenner
and Rector’s The Kidney, 8th ed, BM Brenner [ed]. Philadelphia, W.B. Saunders & Company, 2008, pp 547-
587.)

TRATAMENTO
Hiperpotassemia
As manifestações eletrocardiográficas da hiperpotassemia devem ser consideradas como emergência clínica
e tratadas urgentemente. Entretanto, pacientes com hiperpotassemia significativa (concentração plasmática
de K+ ≥ 6,5 mM) na ausência de alterações no ECG também devem ser tratados de forma agressiva, devido
às limitações das alterações do ECG como fator preditivo de cardiotoxicidade. O tratamento de urgência da
hiperpotassemia consiste em internação do paciente, monitoração cardíaca contínua e tratamento imediato.
O tratamento da hiperpotassemia é dividido em três estágios:

1. Antagonismo imediato dos efeitos cardíacos da hiperpotassemia. O cálcio intravenoso serve para
proteger o coração, enquanto são tomadas outras medidas para corrigir a hiperpotassemia. O cálcio
eleva o limiar do potencial de ação e diminui a excitabilidade sem modificar o potencial de repouso da
membrana. Ao restaurar a diferença entre os potenciais de repouso e limiar, o cálcio reverte o bloqueio
de despolarização causado pela hiperpotassemia. A dose recomendada é de 10 mL de gliconato de
cálcio a 10% (3-4 mL de cloreto de cálcio), em infusão intravenosa, durante 2 a 3 minutos, com
monitoração cardíaca. O efeito da infusão começa em 1 a 3 minutos e dura 30 a 60 minutos; a dose
deve ser repetida se não houver nenhuma alteração dos achados do ECG ou se esses achados
recorrerem após uma melhora inicial. A hipercalcemia potencializa a cardiotoxicidade da digoxina; por
esse motivo, o cálcio intravenoso deve ser usado com extrema cautela em usuários desse medicamento;
se for considerado necessário, podem ser acrescentados 10 mL de gliconato de cálcio a 10% a 100 mL
de soro glicosado a 5%, com infusão durante 20 a 30 minutos para evitar a ocorrência de hipercalcemia
aguda.
2. Rápida redução da concentração plasmática de K+ por meio de sua redistribuição nas células. A
insulina diminui a concentração plasmática de K+ ao deslocá-lo para dentro das células. A dose
recomendada é de 10 unidades de insulina regular intravenosa, seguida imediatamente de 50 mL de
dextrose a 50% (D50W, 25 g de glicose total); o efeito começa em 10 a 20 minutos, alcança ou seu
máximo em 30 a 60 minutos e dura 4 a 6 horas. A D50W em bolus sem insulina nunca é apropriada
devido ao risco de agravamento agudo da hiperpotassemia, em consequência do efeito osmótico da
glicose hipertônica. A hipoglicemia é comum com insulina mais glicose; por esse motivo, deve ser
seguida de infusão de dextrose a 10%, em uma taxa de 50 a 75 mL/h, com monitoração rigorosa da
concentração plasmática de glicose. Nos pacientes hiperpotassêmicos com concentrações de glicose ≥
200 a 250 mg/dL, a insulina deve ser administrada sem glicose, também com monitoração rigorosa da
glicemia.
Os agonistas β2, sendo mais comum o albuterol, são agentes efetivos, porém subutilizados no
tratamento agudo da hiperpotassemia. O albuterol e a insulina com glicose têm efeito aditivo sobre a
concentração plasmática de K+; todavia, cerca de 20% dos pacientes com DRET mostram-se
resistentes ao efeito dos agonistas β2; por esse motivo, esses fármacos não devem ser usados sem
insulina. A dose recomendada de albuterol inalado é de 10 a 20 mg de albuterol nebulizado em 4 mL
de solução salina, inalados durante 10 minutos; o efeito começa em cerca de 30 minutos, alcança o seu
máximo em cerca de 90 minutos e dura de 2 a 6 horas. A hiperglicemia constitui um efeito colateral
juntamente com taquicardia. Os agonistas β2 devem ser usados com cautela em pacientes com
hiperpotassemia portadores de cardiopatia conhecida.
O bicarbonato intravenoso não desempenha nenhum papel no tratamento agudo da
hiperpotassemia, porém pode atenuar lentamente a hiperpotassemia com a sua administração
sustentada durante várias horas. Não deve ser administrado repetidamente na forma de injeção
intravenosa hipertônica de bolus não diluídos, devido ao risco de hipernatremia associada, mas deve
ser infundido em solução isotônica ou hipotônica (p. ex., 150 mEq em 1 L de D5W). Em pacientes com
acidose metabólica, pode-se observar uma queda tardia da concentração plasmática de K+ depois de 4
a 6 horas de infusão isotônica de bicarbonato.
3. Remoção do potássio. Normalmente, é realizada com o uso de resinas trocadoras de cátions, diuréticos
e/ou diálise. A resina trocadora de cátions, o poliestireno sulfonato de sódio (SPS), troca o Na+ pelo K+
no trato gastrintestinal e aumenta a excreção fecal de K+; resinas à base de cálcio, quando disponíveis,
podem ser mais apropriadas em pacientes com aumento do VLEC. A dose recomendada de SPS é de
15 a 30 g de pó, quase sempre administrada em suspensão pronta para uso com sorbitol a 33%. O
efeito do SPS sobre a concentração plasmática de K+ é lento, o efeito total pode levar até 24 horas e
geralmente exige doses repetidas a cada 4 a 6 horas. A necrose intestinal, geralmente do cólon ou do
íleo, constitui uma complicação rara, mas geralmente fatal, do uso de SPS. A necrose intestinal é mais
comum em pacientes com SPS administrado por enema e/ou em pacientes com mobilidade intestinal
reduzida (p. ex., no período pós-operatório ou após tratamento com opioides). A coadministração de
SPS com sorbitol parece aumentar o risco de necrose intestinal; entretanto, essa complicação também
pode ocorrer com o uso isolado de SPS. O risco baixo, porém real, de necrose intestinal com SPS, que
algumas vezes pode constituir a única terapia disponível ou apropriada para a remoção de potássio,
precisa ser ponderado levando em conta o início tardio da eficácia. Sempre que possível, terapias
alternativas para o tratamento agudo da hiperpotassemia (i.e., terapia de redistribuição agressiva,
infusão isotônica de bicarbonato, diuréticos e/ou hemodiálise) devem ser usadas no lugar do SPS.
Novos ligadores de potássio intestinal foram recentemente disponibilizados para uso no
tratamento da hiperpotassemia. Esses agentes parecem não apresentar a toxicidade intestinal do SPS.
Patirômero é um polímero não absorvível, disponibilizado na forma de pó para suspensão, que se liga
ao K+ em troca de Ca2+. Em adultos sadios, o patirômero causa diminuição da excreção urinária de
potássio, magnésio e sódio, sugerindo a ligação do polímero a esses cátions no intestino; notavelmente,
um efeito colateral da medicação é a hipomagnesemia. O ZS-9 é um composto cristalino não
absorvível que troca íons Na+ e H+ por K+ e NH4+ no intestino. Esses agentes prometem revolucionar
o tratamento das formas crônica e aguda de hiperpotassemia. Em particular, espera-se que a
disponibilidade de ligadores de potássio seguros e bem tolerados possibilite uma inibição mais intensa
de SRAA tanto na doença renal como na doença cardíaca.
A terapia com solução salina intravenosa pode ser benéfica em pacientes hipovolêmicos com
oligúria e diminuição do aporte distal de Na+, com reduções associadas na excreção renal de K+. Os
diuréticos de alça e tiazídicos podem ser usados para reduzir a concentração plasmática de K+ em
pacientes euvolêmicos ou hipervolêmicos com função renal suficiente para obter uma resposta
diurética; pode ser necessário combinar esses diuréticos com solução salina intravenosa ou bicarbonato
isotônico para obter ou manter a euvolemia.
A hemodiálise constitui o método mais efetivo e confiável para reduzir a concentração plasmática
de K+; a diálise peritoneal é consideravelmente menos efetiva. Os pacientes com lesão renal aguda
necessitam de acesso venoso temporário e urgente para hemodiálise, com seus riscos associados; por
outro lado, pacientes com DRET ou com doença renal crônica avançada podem ter um acesso venoso
preexistente. A quantidade de K+ removida durante a hemodiálise depende da distribuição relativa do
K+ entre o LIC e o LEC (potencialmente afetada pela terapia anterior para a hiperpotassemia), do tipo
e da área de superfície do dialisador, da velocidade de fluxo do dialisato e do sangue, da duração da
diálise e do gradiente de K+ entre o plasma e o dialisato.

LEITURAS ADICIONAIS
Choi M et al: K+ channel mutations in adrenal aldosterone-producing adenomas
and hereditary hypertension. Science 331:768, 2011.
Mount DB, Zandi-Nejad K: Disorders of potassium balance, in Brenner and
Rector’s The Kidney, 10th ed, K Skorecki et al (eds). Philadelphia, W.B.
Saunders & Company, 2016, pp 559–600.
Packham DK et al: Sodium zirconium cyclosilicate in hyperkalemia. N Engl J
Med 372:222, 2015.
Perianayagam A et al: DDAVP is effective in preventing and reversing
inadvertent overcorrection of hyponatremia. Clin J Am Soc Nephrol 3:331,
2008.
Schrier RW: Decreased effective blood volume in edematous disorders: what
does this mean? J Am Soc Nephrol 18:2028, 2007.
Sood L et al: Hypertonic saline and desmopressin: a simple strategy for safe
correction of severe hyponatremia. Am J Kidney Dis 61:571, 2013.
Soupart A et al: Efficacy and tolerance of urea compared with vaptans for long-
term treatment of patients with SIADH. Clin J Am Soc Nephrol 7:742,
2012.
Weir MR et al: Patiromer in patients with kidney disease and hyperkalemia
receiving RAAS inhibitors. N Engl J Med 372:211, 2015.
50
Hipercalcemia e hipocalcemia
Sundeep Khosla

O íon cálcio desempenha um papel fundamental na função e na sinalização


celular normais, regulando diversos processos fisiológicos, como a sinalização
neuromuscular, a contratilidade cardíaca, a secreção hormonal e a coagulação
sanguínea. Por essa razão, as concentrações do cálcio extracelular são mantidas
dentro de uma faixa extremamente estreita por meio de uma série de
mecanismos de feedback que envolvem o paratormônio (PTH) e o metabólito
ativo da vitamina D, conhecido como 1,25-di-hidroxivitamina D [1,25(OH)2D].
Esses mecanismos de feedback são coordenados por meio de sinais interativos
entre as glândulas paratireoides, os rins, o intestino e os ossos (Fig. 50-1; Cap. 4
02). Os distúrbios da concentração sérica do cálcio são relativamente comuns e,
em geral, constituem indício de alguma doença subjacente. Este capítulo
apresenta um resumo sucinto da abordagem a pacientes com alterações do cálcio
sérico. Ver, no Capítulo 403, uma discussão detalhada sobre esse tópico.
FIGURA 50-1 Mecanismos de feedback que mantêm as concentrações de cálcio extracelular dentro de
uma faixa fisiológica estreita (8,9-10,1 mg/dL [2,2-2,5 mM]). Uma redução do cálcio (Ca2+) do líquido
extracelular (LEC) desencadeia um aumento na secreção do paratormônio (PTH) (1) por meio do receptor
sensor de cálcio das células paratireóideas. Por sua vez, o PTH resulta em aumento da reabsorção tubular de
cálcio pelos rins (2) e reabsorção de cálcio do osso (2) e também estimula a produção renal de 1,25(OH)2D
(3). Por sua vez, a 1,25(OH)2D atua principalmente no intestino, aumentando a absorção de cálcio (4). Em
conjunto, esses mecanismos homeostáticos atuam para normalizar os níveis séricos de cálcio.
HIPERCALCEMIA
Etiologia As causas da hipercalcemia podem ser entendidas e classificadas com
base nas alterações dos mecanismos normais de feedback que regulam o cálcio
sérico (Tab. 50-1). A produção excessiva de PTH, que não é apropriadamente
suprimida pela elevação das concentrações do cálcio sérico, ocorre em distúrbios
neoplásicos primários das glândulas paratireoides (adenoma, hiperplasia ou,
raramente, carcinoma das paratireoides), que estão associados a um aumento da
massa das células paratireoides e a um comprometimento da inibição pelo cálcio
por meio de feedback. A secreção inapropriada de PTH para níveis normais de
cálcio sérico ocorre também na hipercalcemia hipocalciúrica familiar (HHF),
que consiste em uma síndrome autossômica dominante envolvendo geralmente
mutações inativadoras no receptor sensor de cálcio (CaSR; HHF tipo 1), com
raras famílias apresentando mutações na proteína Gα11 (GNA11; HHF tipo 2) ou
no complexo 2 da proteína relacionada ao adaptador, subunidade σ-2 (AP2S2;
HHF tipo 3). Todas essas mutações comprometem a sensibilidade ao cálcio
extracelular das glândulas paratireoides e dos rins, levando à secreção
inapropriada de PTH e à aumentada reabsorção de cálcio tubular renal. Embora a
secreção do PTH por tumores seja extremamente rara, muitos tumores sólidos
secretam um peptídeo relacionado com o PTH (PTHrP), que compartilha uma
homologia com o PTH em seus primeiros 13 aminoácidos e que se liga ao
receptor do PTH, reproduzindo, assim, os efeitos desse hormônio nos ossos e
nos rins. Na hipercalcemia da malignidade mediada pelo PTHrP, os níveis do
PTH são suprimidos pelos níveis séricos elevados do cálcio. A hipercalcemia
associada à doença granulomatosa (p. ex., sarcoidose) ou aos linfomas é causada
pelo aumento da conversão da 25(OH)D em seu derivado potente 1,25(OH)2D.
Nesses distúrbios, a 1,25(OH)2D aumenta a absorção intestinal de cálcio,
resultando em hipercalcemia e supressão do PTH. Os distúrbios que aumentam
diretamente a mobilização do cálcio ósseo, como o hipertireoidismo e as
metástases osteolíticas, também causam hipercalcemia com secreção suprimida
do PTH, do mesmo modo que a sobrecarga de cálcio exógeno, como na
síndrome leite-álcali, ou a nutrição parenteral total com suplementação
exagerada de cálcio.

TABELA 50-1 ■ Causas de hipercalcemia


Produção excessiva de PTH
Hiperparatireoidismo primário (adenoma, hiperplasia, raramente carcinoma)
Hiperparatireoidismo terciário (estimulação crônica da secreção de PTH na insuficiência renal)
Secreção ectópica de PTH (muito rara)
HHF
Alterações da função do CaSR (tratamento com lítio)
Hipercalcemia da malignidade
Produção excessiva de PTHrP (muitos tumores sólidos)
Metástases osteolíticas (câncer de mama, mieloma)
Produção excessiva de 1,25(OH)2D

Doenças granulomatosas (sarcoidose, tuberculose, silicose)


Linfomas
Intoxicação por vitamina D
Aumento primário da reabsorção óssea
Hipertireoidismo
Imobilização
Aporte excessivo de cálcio
Síndrome leite-álcali
Nutrição parenteral total
Outras causas
Distúrbios endócrinos (insuficiência suprarrenal, feocromocitoma, VIPoma)
Fármacos (tiazídicos, vitamina A, antiestrogênicos)
Siglas: CaSR, receptor sensor de cálcio; HHF, hipercalcemia hipocalciúrica familiar; PTH, paratormônio; PTHrP, peptídeo relacionado com o
PTH.

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
Em geral, a hipercalcemia leve (até 11-11,5 mg/dL) é assintomática, sendo
detectada apenas pelas dosagens rotineiras de cálcio. Alguns pacientes podem
apresentar sintomas neuropsiquiátricos mal definidos, inclusive dificuldade de
concentração, alterações da personalidade ou depressão. Outros sintomas podem
ser atribuídos à doença ulcerosa péptica ou à nefrolitíase, e o risco de fratura
também pode ser maior. A hipercalcemia mais grave (> 12-13 mg/dL),
principalmente se tiver progressão rápida, pode causar letargia, estupor ou coma,
além de sintomas gastrintestinais (náuseas, anorexia, constipação intestinal ou
pancreatite). A hipercalcemia reduz a capacidade de concentração renal, o que
pode causar poliúria e polidipsia. No hiperparatireoidismo crônico, os pacientes
podem ter dor óssea ou fraturas patológicas. Por fim, a hipercalcemia pode
resultar em alterações eletrocardiográficas significativas, incluindo bradicardia,
bloqueio atrioventricular (AV) e intervalo QT curto; as alterações do cálcio
sérico podem ser monitoradas com o acompanhamento do intervalo QT.

ABORDAGEM DIAGNÓSTICA
A primeira etapa na avaliação diagnóstica da hiper ou hipocalcemia é confirmar
que a alteração dos níveis séricos do cálcio não é secundária às concentrações
anormais de albumina. Cerca de 50% do cálcio total está ionizado, e o restante
encontra-se ligado principalmente à albumina. Embora as determinações diretas
do cálcio ionizado sejam possíveis, elas são facilmente influenciadas pelos
métodos de coleta e por outros artefatos; por essa razão, geralmente é preferível
dosar o cálcio total e a albumina para “corrigir” o cálcio sérico. Quando as
concentrações séricas de albumina estão reduzidas, o nível corrigido do cálcio
deve ser calculado somando-se 0,2 mM (0,8 mg/dL) ao valor do cálcio total para
cada decréscimo de 1,0 g/dL na albumina sérica abaixo do valor de referência da
albumina, que é de 4,1 g/dL; caso haja elevação do nível sérico da albumina,
faz-se o cálculo em sentido inverso.
A história detalhada pode fornecer indícios importantes quanto à etiologia
da hipercalcemia (Tab. 50-1). Na maioria dos casos, a hipercalcemia crônica é
causada pelo hiperparatireoidismo primário, enquanto a segunda causa mais
comum é uma neoplasia maligna subjacente. A anamnese deve incluir fármacos
utilizados, história de cirurgia do pescoço, assim como sintomas sistêmicos
sugestivos de sarcoidose ou linfoma.
Uma vez estabelecido que a hipercalcemia realmente está presente, o
segundo exame laboratorial mais importante para a investigação diagnóstica é a
dosagem de PTH por um ensaio de duplo sítio para o hormônio intacto. Em
geral, as elevações do PTH são acompanhadas de hipofosfatemia. Além disso, a
creatinina sérica deve ser dosada para avaliar a função renal, uma vez que a
hipercalcemia pode comprometê-la, e a depuração renal do PTH pode estar
alterada, dependendo dos fragmentos detectados pelo ensaio. Se o nível do PTH
estiver elevado (ou “inapropriadamente normal”) em um paciente com cálcio
elevado e fósforo baixo, o diagnóstico quase sempre será de
hiperparatireoidismo primário. Como os pacientes com HHF também podem
apresentar níveis discretamente elevados de PTH e hipercalcemia, esse
diagnóstico deve ser considerado e excluído, visto que a cirurgia das
paratireoides é ineficaz nessa condição. Uma taxa de depuração do
cálcio/creatinina (calculada pela relação entre cálcio urinário/sérico dividida pela
relação entre creatinina urinária/sérica) < 0,01 sugere HHF, particularmente
quando existe uma história familiar de hipercalcemia leve assintomática. Além
disso, a análise sequencial do gene CASR é hoje bastante realizada para
estabelecer o diagnóstico definitivo de HHF, ainda que, conforme já observado,
sejam raras as famílias em que a HHF pode ser causada por mutações nos genes
GNA11 ou AP2S1. A secreção ectópica do PTH é extremamente rara.
Níveis suprimidos de PTH na presença de hipercalcemia são compatíveis
com hipercalcemia não mediada pelo PTH, que, na maioria dos casos, é causada
por neoplasia maligna subjacente. Embora o tumor responsável pela
hipercalcemia geralmente seja evidente, pode ser necessário dosar o nível de
PTHrP para confirmar o diagnóstico de hipercalcemia de neoplasia maligna. Os
níveis séricos de 1,25(OH)2D estão aumentados nos distúrbios granulomatosos, e
a avaliação clínica combinada com exames laboratoriais geralmente estabelece o
diagnóstico dos vários distúrbios relacionados na Tabela 50-1.

TRATAMENTO
Hipercalcemia
A hipercalcemia leve assintomática não exige tratamento imediato, devendo a abordagem terapêutica ser
voltada para o diagnóstico subjacente. Por outro lado, a hipercalcemia significativa sintomática geralmente
requer intervenção terapêutica independentemente da causa da elevação do cálcio sérico. O tratamento
inicial da hipercalcemia significativa começa com a expansão de volume, visto que a hipercalcemia sempre
leva à desidratação; nas primeiras 24 horas, podem ser necessários 4 a 6 L de soro fisiológico intravenoso,
tendo em mente que as comorbidades associadas (p. ex., insuficiência cardíaca congestiva) podem exigir a
utilização de diuréticos de alça para aumentar a excreção de sódio e cálcio. Entretanto, os diuréticos de alça
não devem ser iniciados antes que o volume tenha sido normalizado. Se houver aumento na mobilização do
cálcio ósseo (como ocorre no câncer ou no hiperparatireoidismo grave), os fármacos que inibem a
reabsorção óssea deverão ser considerados. O ácido zoledrônico (p. ex., 4 mg, via intravenosa, durante
aproximadamente 30 minutos), o pamidronato (p. ex., 60-90 mg, via intravenosa, em 2-4 horas) e o
ibandronato (2 mg, via intravenosa, durante 2 horas) são os bifosfonatos normalmente usados no tratamento
da hipercalcemia da malignidade em adultos. O início da ação é observado dentro de 1 a 3 dias, e ocorre
normalização dos níveis séricos de cálcio em 60 a 90% dos pacientes. Pode ser necessário que se repitam as
infusões de bifosfonatos se a hipercalcemia recidivar. Uma alternativa para os bifosfonatos é o nitrato de
gálio (200 mg/m2/dia, por via intravenosa, durante 5 dias), que também é efetivo, mas que apresenta
potencial nefrotoxicidade. Mais recentemente, um potente inibidor de reabsorção óssea, o denosumabe (120
mg, via subcutânea, nos dias 1, 8, 15 e 29, e, subsequentemente, a cada 4 semanas), também tem se
mostrado efetivo no tratamento da hipercalcemia refratária aos bifosfonatos. Em casos raros, pode ser
necessário fazer diálise. Por fim, embora o fosfato intravenoso faça a quelação do cálcio e diminua seus
níveis séricos, esse tratamento pode ser tóxico, porque os complexos cálcio-fosfato podem se depositar nos
tecidos e causar lesões graves nos órgãos.
Nos pacientes com hipercalcemia mediada pela 1,25(OH)2D, os glicocorticoides constituem o
tratamento preferido, visto que eles diminuem a produção de 1,25(OH)2D. A hidrocortisona intravenosa
(100-300 mg/dia) ou a prednisona oral (40-60 mg/dia), durante 3 a 7 dias, são usadas com mais frequência.
Outros fármacos, como o cetoconazol, a cloroquina e a hidroxicloroquina, também podem diminuir a
produção de 1,25(OH)2D e são usados em certas ocasiões.
HIPOCALCEMIA
ETIOLOGIA
As causas da hipocalcemia podem ser diferenciadas com base na presença de
níveis séricos de PTH baixos (hipoparatireoidismo) ou elevados
(hiperparatireoidismo secundário). Embora existam muitas causas potenciais de
hipocalcemia, a síntese comprometida de PTH e o comprometimento da
produção de vitamina D constituem as etiologias mais comuns (Tab. 50-2; Cap.
403). Como o PTH é a principal defesa contra a hipocalcemia, os distúrbios
associados à produção ou à secreção deficiente desse hormônio podem ser
associados à hipocalcemia grave e potencialmente fatal. Nos adultos, o
hipoparatireoidismo é geralmente causado pela lesão acidental das quatro
glândulas durante uma cirurgia da tireoide ou das paratireoides. O
hipoparatireoidismo constitui uma importante característica das endocrinopatias
autoimunes (Cap. 381); raramente, pode estar associado a doenças infiltrativas,
como a sarcoidose. A secreção diminuída de PTH pode ser secundária à
deficiência de magnésio ou pode resultar de mutações ativadoras do CaSR ou
das proteínas G que medeiam a sinalização do CaSR (hipocalcemia autossômica
dominante), que suprimem o PTH, levando a efeitos que são opostos àqueles
observados na HHF.

TABELA 50-2 ■ Causas de hipocalcemia


Níveis baixos de PTH (hipoparatireoidismo)
Agenesia das paratireoides
Isolada
Síndrome de DiGeorge
Destruição das paratireoides
Cirurgia
Radiação
Infiltração por metástases ou doenças sistêmicas
Doenças autoimunes
Função reduzida das paratireoides
Hipomagnesemia
Hipocalcemia autossômica dominante
Níveis elevados de PTH (hiperparatireoidismo secundário)
Deficiência de vitamina D ou comprometimento na produção/ação de 1,25(OH)2D

Deficiência nutricional de vitamina D (aporte ou absorção reduzidos)


Insuficiência renal com produção diminuída de 1,25(OH)2D

Resistência à vitamina D, inclusive defeitos do receptor


Síndromes de resistência ao PTH
Mutações do receptor do PTH
Pseudo-hipoparatireoidismo (mutações da proteína G)
Fármacos
Quelantes do cálcio
Inibidores da reabsorção óssea (bifosfonatos, plicamicina)
Metabolismo alterado da vitamina D (fenitoína, cetoconazol)
Outras causas
Pancreatite aguda
Rabdomiólise aguda
Síndrome do osso “faminto” ou “fome óssea” pós-paratireoidectomia
Metástases osteoblásticas com estimulação acentuada da formação óssea (câncer de próstata)
Siglas: CaSR, receptor sensor de cálcio; PTH, paratormônio.

A deficiência de vitamina D, o comprometimento na produção de


1,25(OH)2D (principalmente em consequência de insuficiência renal) ou a
resistência à vitamina D também causam hipocalcemia. Contudo, a gravidade da
hipocalcemia associada a esses distúrbios geralmente não é tão acentuada quanto
a que se observa no hipoparatireoidismo, porque as glândulas paratireoides
conseguem produzir um aumento compensatório da secreção de PTH. A
hipocalcemia também pode ocorrer nos distúrbios associados à destruição
tecidual grave, inclusive queimaduras, rabdomiólise, lise tumoral ou pancreatite.
Nessas situações, a causa da hipocalcemia pode incluir uma combinação de
baixos níveis de albumina, hiperfosfatemia, depósito tecidual de cálcio e
secreção reduzida de PTH.

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
Os pacientes com hipocalcemia poderão ser assintomáticos se as reduções do
cálcio sérico forem relativamente leves e crônicas ou apresentar complicações
potencialmente fatais. A hipocalcemia moderada a grave causa parestesias,
geralmente nos dedos das mãos e dos pés, bem como na região perioral,
causadas pela irritabilidade neuromuscular exacerbada. Ao exame físico, é
possível detectar o sinal de Chvostek (espasmos dos músculos periorais em
resposta à percussão suave do nervo facial um pouco à frente da orelha), embora
também esteja presente em cerca de 10% dos indivíduos normais. O espasmo do
carpo pode ser induzido pela insuflação do manguito de pressão arterial até 20
mmHg acima da pressão arterial sistólica do paciente por 3 minutos (sinal de
Trousseau). A hipocalcemia grave pode provocar convulsões, espasmo
carpopodálico, broncospasmo, laringospasmo e prolongamento do intervalo QT.
ABORDAGEM DIAGNÓSTICA
Além de dosar o cálcio sérico, é útil determinar os níveis de albumina, fósforo e
magnésio. Como no caso da avaliação da hipercalcemia, a dosagem do nível do
PTH é fundamental para avaliação da hipocalcemia. Um nível suprimido (ou
“inapropriadamente baixo”) na presença de hipocalcemia confirma a redução ou
ausência de secreção do PTH (hipoparatireoidismo) como causa da
hipocalcemia. Os outros elementos da história clínica geralmente definem a
causa subjacente (i.e., agenesia vs. destruição das paratireoides). Por outro lado,
níveis altos de PTH (hiperparatireoidismo secundário) devem dirigir a atenção
para o eixo da vitamina D como causa da hipocalcemia. A deficiência nutricional
dessa vitamina é mais bem avaliada pela dosagem dos níveis séricos da 25-
hidroxivitamina D, que refletem as reservas dessa vitamina. Na presença de
insuficiência renal ou de suspeita de resistência à vitamina D, os níveis séricos
de 1,25(OH)2D são esclarecedores.

TRATAMENTO
Hipocalcemia
A conduta terapêutica vai depender da gravidade da hipocalcemia, da rapidez com que se desenvolveu e das
complicações associadas (p. ex., convulsões, laringospasmo). A hipocalcemia sintomática aguda é tratada
inicialmente com 10 mL de gliconato de cálcio a 10% (90 mg ou 2,2 mmol), via intravenosa, diluídos em 50
mL de soro glicosado a 5% ou soro fisiológico a 0,9%, infundidos em 5 minutos. Em geral, a persistência
da hipocalcemia requer infusão intravenosa contínua (geralmente 10 ampolas de gliconato de cálcio ou 900
mg de cálcio em 1 L de soro glicosado a 5% ou cloreto de sódio a 0,9% administrados em 24 horas). Se
estiver presente, a hipomagnesemia associada deverá ser tratada com suplementos apropriados de magnésio.
A hipocalcemia crônica em consequência de hipoparatireoidismo é tratada com suplementos de cálcio
(1.000-1.500 mg/dia de cálcio elementar em doses fracionadas) e vitamina D2 ou D3 (25.000-100.000
U/dia) ou calcitriol [1,25(OH)2D, 0,25-2 μg/dia]. Hoje, os outros metabólitos da vitamina D (di-
hidrotaquisterol, alfacalcidiol) são utilizados com menos frequência. É importante citar que o PTH (1-84)
(Natpara) foi recentemente aprovado pela Food and Drug Administration (FDA) para uso no tratamento do
hipoparatireoidismo refratário, representando um avanço importante no tratamento desses pacientes.
Entretanto, a deficiência da vitamina D é mais bem tratada com suplementos dessa vitamina, cuja dose
depende da gravidade do déficit e da causa subjacente. Assim, a deficiência nutricional de vitamina D
geralmente responde a doses relativamente pequenas dessa vitamina (50.000 U, 2-3 vezes por semana,
durante vários meses), enquanto a deficiência causada por má absorção requer doses muito maiores
(100.000 U/dia ou mais). A meta terapêutica é trazer o cálcio sérico para a faixa normal baixa e evitar a
hipercalciúria, que pode causar nefrolitíase.

CONSIDERAÇÕES GLOBAIS
Nos países com acesso mais limitado a serviços de saúde ou a exames
laboratoriais de rastreamento com determinação dos níveis séricos de cálcio,
o hiperparatireoidismo primário frequentemente se manifesta em sua forma
grave, com complicações esqueléticas (osteíte fibrosa cística), em contraste com
a forma assintomática, que é comum nos países desenvolvidos. Além disso, a
deficiência de vitamina D é paradoxalmente comum em alguns países, apesar de
muita luz solar (p. ex., Índia), visto que as pessoas evitam a exposição ao sol e
têm um aporte precário de vitamina D na nutrição.

LEITURAS ADICIONAIS
Eastell R et al: Diagnosis of asymptomatic primary hyperparathyroidism:
Proceedings of the 4th International Workshop. J Clin Endocrinol Metab
99:3570, 2014.
Kim ES, Keating GM: Recombinant human parathyroid hormone (1-84): A
review in hypoparathyroidism. Drugs 75:1293, 2015.
Mayr B et al: Genetics in endocrinology: Gain and loss of function mutations of
the calcium-sensing receptor and associated proteins: Current treatment
concepts. Eur J Endocrinol 174:R189, 2016.
Minisola S et al: The diagnosis and management of hypercalcemia. BMJ
350:h2723, 2015.
Thakker RV: The calcium-sensing receptor: And its involvement in parathyroid
pathology. Ann Endocrinol 76:81, 2015.
51
Acidose e alcalose
Thomas D. DuBose, Jr.

HOMEOSTASE ACIDOBÁSICA NORMAL


O pH arterial sistêmico se mantém entre 7,35 e 7,45 por tamponamento químico
extracelular e intracelular, em associação a mecanismos reguladores respiratórios
e renais. O controle da tensão arterial de CO2 (PaCO2) pelo sistema nervoso
central (SNC) e pelo sistema respiratório e o controle do bicarbonato plasmático
pelos rins estabilizam o pH arterial por meio da excreção ou retenção de ácido
ou de álcali. Os componentes metabólico e respiratório que regulam o pH
sistêmico são descritos pela equação de Henderson-Hasselbalch:
HCO3–
pH = 6,1 + log
PaCO2 × 0,03001
Na maioria das circunstâncias, a produção e a excreção de CO2 são
equivalentes, e a PaCO2 habitual no estado de equilíbrio estável é mantida em 40
mmHg. A excreção deficiente de CO2 provoca hipercapnia, enquanto a sua
excreção excessiva causa hipocapnia. Todavia, tanto a produção quanto a
excreção voltam a ser equivalentes em um novo valor de PaCO2 em estado de
equilíbrio estável. Por conseguinte, a PaCO2 é regulada principalmente por
fatores respiratórios neurais e não está sujeita à regulação pela taxa de produção
de CO2. Em geral, a hipercapnia é o resultado da hipoventilação, e não do
aumento da produção de CO2. Aumentos ou reduções da PaCO2 representam
distúrbios do controle respiratório neural ou devem-se a alterações
compensatórias em resposta a uma alteração primária da [HCO3–] plasmática.
DIAGNÓSTICO DOS TIPOS GERAIS DE DISTÚRBIOS
Os distúrbios clínicos mais comuns são os distúrbios acidobásicos simples:
acidose ou alcalose metabólicas ou acidose ou alcalose respiratórias.

DISTÚRBIOS ACIDOBÁSICOS SIMPLES


Os distúrbios respiratórios primários (alterações primárias da PaCO2)
desencadeiam respostas metabólicas compensatórias (alterações secundárias da
[HCO3–]), enquanto os distúrbios metabólicos primários provocam respostas
respiratórias compensatórias previsíveis (alterações secundárias da PaCO2). A
compensação fisiológica pode ser prevista a partir das relações apresentadas na
Tabela 51-1. Em geral, com uma exceção, as respostas compensatórias levam ao
retorno do pH em direção ao valor normal, sem alcançá-lo. A alcalose
respiratória crônica, quando prolongada, é uma exceção a essa regra e, com
frequência, normaliza o pH. A acidose metabólica em consequência do aumento
da produção de ácidos endógenos (p. ex., cetoacidose) reduz a [HCO3–] do líquido
extracelular e diminui o pH extracelular. Isso estimula os quimiorreceptores
bulbares a aumentar a ventilação e a restaurar a razão entre [HCO3–] e PaCO2 e,
portanto, o pH, sem, contudo, alcançar o valor normal. O grau de compensação
respiratória esperado em uma forma simples de acidose metabólica pode ser
previsto a partir da seguinte relação: PaCO2 = (1,5 × [HCO3−]) + 8 ± 2. Por
conseguinte, seria esperado que um paciente com acidose metabólica e [HCO3–]
de 12 mmol/L apresentasse uma PaCO2 aproximada de 26 mmHg. Valores de
PaCO2 < 24 ou > 28 mmHg definem um distúrbio misto (acidose metabólica e
alcalose respiratória ou acidose metabólica e acidose respiratória,
respectivamente). As respostas compensatórias para os distúrbios metabólicos
primários levam a PaCO2 na mesma direção da alteração da [HCO3–]; em
contrapartida, a compensação para distúrbios respiratórios primários leva a
[HCO3–] na mesma direção da alteração primária da PaCO2 (Tab. 51-1). Por
conseguinte, as alterações da PaCO2 e da [HCO3–] em direções opostas (i.e.,
PaCO2 ou [HCO3–] estão aumentadas, enquanto o outro valor está diminuído)
indicam um distúrbio acidobásico misto. Outra maneira de avaliar a
propriedade da resposta da [HCO3–] ou da PaCO2 consiste em utilizar um
nomograma acidobásico (Fig. 51-1). Embora a área sombreada do nomograma
mostre limites de confiança de 95% para a compensação fisiológica normal nos
distúrbios simples, a detecção de valores acidobásicos dentro da área sombreada
não exclui necessariamente um distúrbio misto. A superposição de um distúrbio
sobre outro pode resultar em valores situados dentro da área de um terceiro.
Assim, o nomograma, embora conveniente, não substitui as equações
apresentadas na Tabela 51-1.

TABELA 51-1 ■ Predição das respostas compensatórias a distúrbios acidobásicos simples e padrão de
alterações
Distúrbio Compensação prevista Faixa de valores

pH HCO3– PaCO2

Acidose metabólica PaCO2 = (1,5 × [HCO3−]) + 8 ± 2 Baixo Baixo Baixo


ou
PaCO2 irá ↓ 1,25 mmHg por mmol/L ↓ na [HCO3−]
ou
PaCO2 = [HCO3–] + 15

Alcalose metabólica PaCO2 irá ↑ 0,75 mmHg por mmol/L ↑ na [HCO3−] Alto Alto Alto
ou
PaCO2 irá ↑ 6 mmHg por 10 mmol/L ↑ na [HCO3−]
ou
PaCO2 = [HCO3–] + 15

Alcalose respiratória Alto Baixo Baixo


Aguda [HCO3−] irá ↓ 0,2 mmol/L por mmHg ↓ na PaCO2

Crônica [HCO3−] irá ↓ 0,4 mmol/L por mmHg ↓ na PaCO2

Acidose respiratória Baixo Alto Alto


Aguda [HCO3−] irá ↑ 0,1 mmol/L por mmHg ↑ na PaCO2

Crônica [HCO3−] irá ↑ 0,4 mmol/L por mmHg ↑ na PaCO2

Siglas: PaCO2, pressão parcial arterial de dióxido de carbono.


FIGURA 51-1 Nomograma acidobásico. São mostrados os limites de confiança de 90% (faixa de valores)
das compensações normais respiratórias e metabólicas para os distúrbios acidobásicos primários. (De TD
DuBose Jr: Acid-Base Disorders, in Brenner and Rector’s The Kidney, 10th ed, K Skorecki, GM Chertow,
PA Marsden, MW Taal, and Alan SL Yu [eds]. Philadelphia, Saunders, 2016, p. 522; com permissão.)

DISTÚRBIOS ACIDOBÁSICOS MISTOS


Os distúrbios acidobásicos mistos – definidos como distúrbios de coexistência
independente, e não meramente respostas compensatórias – costumam ser
observados em pacientes que estão em unidades de terapia intensiva, podendo
resultar em valores extremos perigosos de pH (Tab. 51-2). O diagnóstico de
distúrbios acidobásicos mistos exige considerar o anion gap (AG), bem como a
presença ou correção de níveis séricos de albumina normais da ordem de 4,5
g/dL. Um paciente com cetoacidose diabética (acidose metabólica) pode
desenvolver um problema respiratório independente (p. ex., pneumonia), com
consequente acidose ou alcalose respiratórias. Os pacientes com doença
pulmonar subjacente (p. ex., doença pulmonar obstrutiva crônica) podem não
responder à acidose metabólica com uma resposta ventilatória apropriada,
devido à sua reserva respiratória insuficiente. Essa superposição da acidose
respiratória sobre a acidose metabólica pode provocar acidemia grave. Quando a
acidose metabólica e a alcalose metabólica coexistem no mesmo paciente, o pH
pode ser normal. Em tal circunstância, é a presença de um elevado AG (ver
adiante) que denota a existência de acidose metabólica. Pressupondo um AG
normal de 10 mmol/L, uma discrepância entre o ΔAG (AG atual menos o
normal) e o ΔHCO3– (valor normal de 25 mmol/L menos o HCO3– anormal no
paciente) indica a presença de acidose mista com anion gap elevado – alcalose
metabólica (ver exemplo adiante). Um paciente diabético com cetoacidose pode
apresentar disfunção renal resultando na presença simultânea de acidose
metabólica. Os pacientes que ingeriram uma superdosagem de combinações
medicamentosas, como sedativos e salicilatos, podem apresentar distúrbios
mistos devido à resposta acidobásica a cada fármaco (acidose metabólica mista
com acidose respiratória ou alcalose respiratória, respectivamente). Os distúrbios
acidobásicos triplos são mais complexos. Por exemplo, os pacientes com acidose
metabólica em decorrência de cetoacidose alcoólica podem ter alcalose
metabólica secundária a vômitos e alcalose respiratória superposta devido à
hiperventilação da disfunção hepática ou à abstinência de álcool.

TABELA 51-2 ■ Exemplos de distúrbios acidobásicos mistos


Distúrbios respiratórios e metabólicos mistos
Acidose metabólica – alcalose respiratória
Indício: acidose metabólica com AG elevado ou normal; PaCO2 medida abaixo do valor previsto (Tab. 51-1)

Exemplo: Na+, 140; K+, 4,0; Cl−, 106; HCO3−, 14; AG, 20; PaCO2, 24; pH, 7,39 (acidose láctica, sepse na UTI)

Acidose metabólica – acidose respiratória


Indício: acidose metabólica com AG elevado ou normal; PaCO2 medida acima do valor previsto (Tab. 51-1)

Exemplo: Na+, 140; K+, 4,0; Cl−, 102; HCO3−, 18; AG, 20; PaCO2, 38; pH, 7,30 (pneumonia grave, edema pulmonar)

Alcalose metabólica – alcalose respiratória


Indício: PaCO2 não aumenta conforme previsto; pH acima do esperado

Exemplo: Na+, 140; K+, 4,0; Cl−, 91; HCO3−, 33; AG, 16; PaCO2, 38; pH, 7,55 (doença hepática e diuréticos)

Alcalose metabólica – acidose respiratória


Indício: PaCO2 acima do previsto; pH normal

Exemplo: Na+, 140; K+, 3,5; Cl−, 88; HCO3−, 42; AG, 10; PaCO2, 67; pH, 7,42 (DPOC com diuréticos)

Distúrbios metabólicos mistos


Acidose metabólica – alcalose metabólica
Indício: detectável somente na acidose com AG elevado; ΔAG >> ΔHCO3–
Exemplo: Na+, 140; K+, 3,0; Cl−, 95; HCO3−, 25; AG, 20; PaCO2, 40; pH, 7,42 (uremia com vômitos)

Acidose metabólica – acidose metabólica


Indício: acidose mista com AG elevado – AG normal; ΔHCO3– é explicado pelas alterações combinadas no ΔAG e no ΔCl–

Exemplo: Na+, 135; K+, 3,0; Cl−, 110; HCO3−, 10; AG, 15; PaCO2, 25; pH, 7,20 (diarreia e acidose láctica, intoxicação por tolueno,
tratamento da cetoacidose diabética)
Siglas: AG, anion gap; DPOC, doença pulmonar obstrutiva crônica; UTI, unidade de terapia intensiva; PaCO2, pressão parcial arterial de
dióxido de carbono.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Distúrbios acidobásicos
Uma abordagem sequencial ao diagnóstico dos distúrbios acidobásicos é
apresentada a seguir (Tab. 51-3). Amostras de sangue para determinação de
eletrólitos e gasometria arterial devem ser coletadas simultaneamente, antes
da terapia. Ocorre aumento na [HCO3−] com a alcalose metabólica ou com a
acidose respiratória. Por outro lado, ocorre diminuição da [HCO3–] na acidose
metabólica e na alcalose respiratória. Na determinação da gasometria arterial
pelo laboratório clínico, tanto o pH quanto a PaCO2 são medidos, e a [HCO3–]
é calculada a partir da equação de Henderson-Hasselbalch. Esse valor
calculado deve ser comparado com a [HCO3–] medida (CO2 total) no painel de
eletrólitos. Esses dois valores devem ter uma diferença máxima de 2 mmol/L.
A ausência dessa diferença pode significar que os valores não foram obtidos
de modo simultâneo ou que houve erro laboratorial. Após verificar os valores
acidobásicos no sangue, o distúrbio acidobásico preciso pode ser, então,
identificado.

TABELA 51-3 ■ Etapas no diagnóstico acidobásico


1. Obter simultaneamente gasometria arterial (GA) e dosagem dos eletrólitos.
2. Comparar a [HCO3–] na GA e nos eletrólitos para confirmar a precisão.

3. Calcular o anion gap (AG), porém corrigir para uma concentração normal de albumina de 4,5 g/dL.
4. Conhecer quatro causas de acidose com AG elevado (cetoacidose, acidose láctica, disfunção renal e toxinas).
5. Conhecer duas causas de acidose hiperclorêmica ou acidose sem AG (perda de bicarbonato pelo trato gastrintestinal, acidose tubular
renal).
6. Estimar a resposta compensatória (Tab. 51-1).
7. Comparar o ΔAG com o ΔHCO3–.

8. Comparar a alteração na [Cl–] com a observada na [Na+].

CÁLCULO DO ANION GAP


Todas as avaliações dos distúrbios acidobásicos devem incluir um cálculo
simples do AG. O AG é calculado da seguinte maneira: AG = Na+ – (Cl− +
HCO3−). Nos Estados Unidos, o valor da [K+] plasmática tipicamente é
omitido no cálculo do AG. O uso do valor “normal” do AG relatado pelos
laboratórios clínicos declinou diante da metodologia aprimorada para medida
dos eletrólitos plasmáticos, variando de 6 a 12 mmol/L, com uma média
aproximada de 10 mmol/L. O clínico é incentivado a saber o valor normal do
AG em seu laboratório de análises clínicas. Os ânions não medidos
normalmente presentes no plasma incluem as proteínas aniônicas (p. ex.,
albumina), o fosfato, o sulfato e os ânions orgânicos. Quando ânions ácidos,
como o acetoacetato e o lactato, acumulam-se no líquido extracelular, o AG
aumenta, causando acidose com AG elevado. Mais frequentemente, o
aumento do AG resulta de aumento dos ânions não medidos e, o que é menos
comum, de diminuição dos cátions não medidos (cálcio, magnésio, potássio).
Além disso, o AG pode aumentar com o aumento da albumina aniônica. A
redução do AG pode decorrer de: (1) aumento dos cátions não medidos; (2)
acréscimo de cátions anormais ao sangue, como o lítio (intoxicação por lítio)
ou imunoglobulinas catiônicas (discrasias plasmocitárias); (3) redução na
concentração plasmática da albumina aniônica principal (síndrome nefrótica,
doença hepática ou má absorção); ou (4) hiperviscosidade e hiperlipidemia
grave, que podem resultar em subestimativa das concentrações de sódio e
cloreto. Como o AG normal de 10 mmol/L implica que a albumina sérica
seja normal, se houver hipoalbuminemia, o valor de AG deve ser corrigido.
Exemplificando, para cada g/dL de albumina sérica abaixo do valor normal
(4,5 g/dL), devem ser adicionados 2,5 mmol/L ao AG relatado (não
corrigido). Assim, em um paciente com albumina sérica de 2,5 g/dL (2 g/dL
abaixo do valor normal) e um AG não corrigido de 15, o AG corrigido é
calculado pela adição de 5 mmol/L (2,5 × 2 = 5; 5 + 15 = AG corrigido de 20
mmol/L). Os distúrbios clínicos causadores de acidose com AG alto são
exibidos na Tabela 51-3.
A elevação do AG costuma ser causada pelo acúmulo de ácidos
desprovidos de cloreto que contêm ânions inorgânicos (fosfato, sulfato),
orgânicos (cetoácidos, lactato, ânions orgânicos urêmicos), exógenos
(salicilato ou toxinas ingeridas com produção de ácido orgânico) ou ânions
não identificados. O AG alto é clinicamente significativo, mesmo que a
[HCO3−] ou o pH sejam normais. A acidose metabólica com AG elevado
simultânea a acidose respiratória crônica ou alcalose metabólica representam
essa situação, em que a [HCO3–] pode estar normal ou até mesmo elevada (Ta
b. 51-3). Nos casos de acidose metabólica com AG elevado, é importante
comparar o declínio na [HCO3−] (ΔHCO3−: 25 – [HCO3−] do paciente) com
aumento do AG (ΔAG: AG do paciente – 10).
De modo semelhante, valores normais de [HCO3–], PaCO2 e pH não
asseguram a ausência de distúrbio acidobásico. Por exemplo, um alcoolista
que apresentou vômitos pode desenvolver alcalose metabólica com pH de
7,55, PaCO2 de 47 mmHg, [HCO3–] de 40 mmol/L, [Na+] de 135, [Cl–] de 80 e
[K+] de 2,8. Se esse paciente desenvolvesse, em seguida, cetoacidose
alcoólica superposta, com concentração de β-hidroxibutirato de 15 mmol/L, o
pH arterial cairia para 7,40, a [HCO3–] para 25 mmol/L, e a PaCO2 para 40
mmHg. Apesar da normalidade desses gases sanguíneos, o AG fica elevado
em 30 mmol/L, indicando alcalose metabólica e acidose metabólica mistas.
Uma combinação de acidose com anion gap elevado e alcalose metabólica é
facilmente identificada comparando-se as diferenças (valores Δ) entre os
valores normais e os apresentados pelo paciente. Nesse exemplo, o ΔHCO3– é
de 0 (25 – 25 mmol/L), porém o ΔAG é de 20 (30 – 10 mmol/L). Por
conseguinte, 20 mmol/L não estão computados no valor de Δ/Δ (ΔAG para
ΔHCO3–).
ACIDOSE METABÓLICA
A acidose metabólica pode advir de aumento na produção de ácidos endógenos
(como lactato e cetoácidos), perda de bicarbonato (como na diarreia) ou acúmulo
de ácidos endógenos em decorrência de uma excreção de ácido inadequadamente
baixa pelos rins (conforme observado na doença renal crônica [DRC]). Exerce
efeitos profundos sobre os sistemas respiratório, cardíaco e nervoso. A queda do
pH sanguíneo é acompanhada de aumento característico da ventilação, em
particular do volume corrente (respiração de Kussmaul). Pode ocorrer depressão
da contratilidade miocárdica, porém a função inotrópica pode estar normal
devido à liberação de catecolaminas. Pode haver tanto vasodilatação arterial
periférica quanto venoconstrição central; a diminuição das complacências
vasculares central e pulmonar predispõe ao edema pulmonar, mesmo com
sobrecarga mínima de volume. A função do SNC fica deprimida, com cefaleia,
letargia, estupor e, em alguns casos, coma. Também pode haver intolerância à
glicose.
Existem duas categorias principais de acidose metabólica clínica: com AG
elevado e sem AG (Tab. 51-3 e Tab. 51-4). A presença de acidose metabólica,
um AG normal e hipercloremia denota a presença de uma acidose metabólica
com AG normal.

TABELA 51-4 ■ Causas de acidose metabólica com anion gap elevado


Acidose láctica Toxinas
Cetoacidose Etilenoglicol
Diabética Metanol
Alcoólica Salicilatos
Inanição Propilenoglicol
Ácido piroglutâmico (5-oxoprolina)
Lesão renal aguda e doença renal crônica

TRATAMENTO
Acidose metabólica
O tratamento da acidose metabólica com álcali deve ser reservado para a acidemia grave, exceto quando o
paciente não apresenta “HCO3– – em potencial” no plasma. A potencial [HCO3−] pode ser estimada a partir
do incremento (Δ) no AG (ΔAG = AG do paciente – 10) somente se o ânion ácido acumulado no plasma for
metabolizável (i.e., β-hidroxibutirato, acetoacetato e lactato). Por outro lado, os ânions não metabolizáveis
que podem se acumular na DRC avançada ou após a ingesta de toxina não são passíveis de metabolização e
não representam HCO3− “em potencial”. A presença de DRC exige a recuperação da função renal para
repor o déficit de [HCO3–], um processo lento e frequentemente imprevisível. Por conseguinte, os pacientes
que apresentam acidose com AG normal (acidose hiperclorêmica) ou AG atribuível a um ânion não
metabolizável na presença de doença renal crônica avançada devem receber terapia com álcali por via oral
(VO) (NaHCO3 ou solução de Shohl) ou intravenosa (IV) (NaHCO3), em uma quantidade necessária para
aumentar lentamente a [HCO3–] plasmática até a faixa-alvo de 22 mmol/L. Mesmo assim, a correção
exagerada deve ser evitada.
Entretanto, existem controvérsias quanto ao uso de álcalis para os pacientes com acidose pura com AG
devido ao acúmulo de um ânion ácido orgânico metabolizável (cetoacidose ou acidose láctica). De modo
geral, a acidemia grave (pH < 7,10) em paciente adulto (especialmente idosos e pacientes com cardiopatia
grave) justifica a administração IV de 50 mEq de NaHCO3, diluído em 300 mL água estéril, por 30-45
minutos, durante as primeiras 1-2 horas de terapia. A administração dessas quantidades modestas de álcali,
nessa situação, parece proporcionar uma medida extra de segurança. A administração de álcali requer a
monitorização cautelosa dos eletrólitos plasmáticos, em especial da [K+] plasmática, ao longo do curso da
terapia. Uma meta inicial razoável é aumentar a [HCO3–] para 10-12 mEq/L e o pH a mais ou menos 7,20,
contudo nitidamente sem aumentar esses valores até a faixa normal. A estimativa do “déficit de
bicarbonato” por meio do cálculo do volume de distribuição de bicarbonato é ensinada com frequência,
todavia é desnecessária e pode resultar na administração de quantidades excessivas de álcali.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Existem quatro causas principais de acidose com AG elevado: (1) acidose
láctica, (2) cetoacidose, (3) ingesta de toxinas e (4) lesão renal aguda e
doença renal crônica (Tab. 51-4). O rastreamento inicial para diferenciar as
acidoses com AG elevado deve incluir: (1) investigação da história buscando
evidência de ingesta de fármacos e toxinas, bem como determinação da
gasometria arterial para detectar a presença concomitante de alcalose
respiratória (salicilatos); (2) determinação da presença de diabetes melito
(cetoacidose diabética); (3) pesquisa de evidências de alcoolismo ou níveis
elevados de β-hidroxibutirato (cetoacidose alcoólica); (4) observação à
procura de sinais clínicos de uremia e aferição da ureia e creatinina séricas
(acidose urêmica); (5) inspeção da urina à procura de cristais de oxalato
(etilenoglicol); e (6) reconhecimento das numerosas situações clínicas em
que os níveis de lactato podem estar aumentados (hipotensão, choque,
insuficiência cardíaca, leucemia, câncer e ingesta de fármacos ou toxinas).

ACIDOSES COM ANION GAP ELEVADO


Acidose láctica O aumento de L-lactato no plasma pode ser secundário a
hipoperfusão tecidual (tipo A) – insuficiência circulatória (choque, insuficiência
cardíaca), anemia grave, alterações nas enzimas mitocondriais e inibidores
(monóxido de carbono, cianeto) – ou a distúrbios aeróbios (tipo B) –
malignidades, inibidores da transcriptase reversa análogos de nucleosídeo para
tratamento do HIV, diabetes melito, insuficiências hepática ou renal, deficiência
de tiamina, infecções graves (cólera, malária), convulsões ou fármacos/toxinas
(biguanidas, etanol e os alcoóis tóxicos: etilenoglicol [EG], metanol ou
propilenoglicol). A isquemia ou o infarto intestinal não reconhecidos em
pacientes com aterosclerose grave ou com descompensação cardíaca que fazem
uso de vasopressores são causas comuns de acidose láctica em pacientes idosos.
A acidemia piroglutâmica pode ocorrer em pacientes gravemente enfermos que
fazem uso de paracetamol, que causa depleção de glutationa e acúmulo de 5-
oxiproleno. A acidose D-láctica, que pode estar associada ao bypass jejunoileal,
síndrome do intestino curto ou obstrução intestinal, é devida à formação de D-
lactato por bactérias intestinais.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Acidose por ácido L-láctico
A condição subjacente que perturba o metabolismo do lactato deve ser
preemptivamente corrigida, se possível; a perfusão tecidual deve ser
restaurada quando estiver inadequada, contudo, o uso de vasoconstritores
deve ser evitado, quando possível, devido à possibilidade de agravar a
perfusão tecidual. Geralmente, recomenda-se a terapia com álcalis para a
acidemia aguda grave (pH < 7,00) a fim de melhorar a função cardiovascular.
Todavia, a terapia com NaHCO3 pode deprimir paradoxalmente o
desempenho cardíaco e exacerbar a acidose pelo aumento da produção de
lactato (o HCO3– estimula a fosfofrutocinase). Embora o uso de álcali na
acidose láctica moderada seja controverso, existe um consenso de que as
tentativas de normalização do pH ou da [HCO3–] pela administração de
NaHCO3 exógeno são deletérias. Uma conduta razoável consiste em infundir
uma quantidade suficiente de NaHCO3 para elevar o pH a não mais de 7,2 ou
a [HCO3−] a não mais de 12 no decorrer de 30 a 40 minutos.
A terapia com NaHCO3 pode causar sobrecarga hídrica e hipertensão,
visto que a quantidade necessária pode ser maciça quando o acúmulo de
ácido láctico é incessante. A administração de líquido é precariamente
tolerada, sobretudo no paciente oligúrico, diante da coexistência de
venoconstrição central. Nos casos em que é possível tratar a causa subjacente
da acidose láctica, o lactato sanguíneo será convertido em HCO3–, podendo
resultar em uma excessiva alcalose decorrente da administração exagerada de
NaHCO3.

Cetoacidose • CETOACIDOSE DIABÉTICA (CAD) Essa condição é causada


por aumento do metabolismo dos ácidos graxos e acúmulo de cetoácidos
(acetoacetato e β-hidroxibutirato). Em geral, a CAD ocorre no diabetes melito
tipo 1 em associação à interrupção da insulina ou a uma enfermidade
intercorrente, como infecção, gastrenterite, pancreatite ou infarto agudo do
miocárdio, que aumente temporariamente e de forma aguda as necessidades de
insulina. O acúmulo de cetoácidos é responsável pelo aumento do AG e é mais
frequentemente acompanhado de hiperglicemia (glicose > 17 mmol/L [300
mg/dL]). Na CAD, a relação entre o ΔAG e o ΔHCO3– é normalmente de 1:1.
Deve-se assinalar que, como a insulina impede a produção de cetonas, a terapia
com bicarbonato raramente é necessária, exceto em caso de acidemia extrema
(pH < 7,10) e, mesmo assim, apenas em quantidades limitadas. Os pacientes com
CAD geralmente apresentam depleção volêmica e necessitam de reposição
hídrica com solução salina isotônica. Entretanto, não é incomum a ocorrência de
expansão excessiva de volume com a administração de líquidos IV isotônicos, o
que contribui para o desenvolvimento de acidose hiperclorêmica durante o
tratamento da CAD. A base para o tratamento dessa condição consiste na
administração de insulina regular IV, descrita de modo mais detalhado no Capít
ulo 396.

CETOACIDOSE ALCOÓLICA (CAA) Os alcoolistas crônicos podem


apresentar cetoacidose quando o consumo de álcool é bruscamente interrompido
e a nutrição é pobre. A CAA geralmente está associada a consumo excessivo de
álcool, vômitos, dor abdominal, inanição e hipovolemia. A concentração de
glicose é variável, e a acidose pode ser grave em razão dos níveis elevados de
cetonas, predominantemente β-hidroxibutirato. A hipoperfusão pode intensificar
a produção de ácido láctico, a alcalose respiratória crônica pode acompanhar a
doença hepática, e a alcalose metabólica pode resultar de vômitos (consultar a
relação entre ΔAG e ΔHCO3–). Assim, os distúrbios acidobásicos mistos são
comuns nos casos de CAA. À medida que a circulação é restaurada pela
administração de solução salina isotônica, o acúmulo preferencial de β-
hidroxibutirato é, então, desviado para o acetoacetato. Isso explica a observação
clínica comum de uma reação do nitroprusseto (cetonas) cada vez mais positiva
à medida que o paciente melhora. A reação do nitroprusseto para corpos
cetônicos (Acetest) é capaz de detectar o ácido acetoacético, mas não o β-
hidroxibutirato, de modo que o grau de cetose e de cetonúria não só pode ser
alterado com a terapia como também inicialmente subestimado. Os pacientes
com CAA geralmente se apresentam com função renal relativamente normal, ao
contrário do que é observado nos casos de CAD, nos quais a função renal muitas
vezes se encontra comprometida em razão de depleção volêmica (diurese
osmótica) ou nefropatia diabética. O paciente com CAA e função renal normal
pode excretar quantidades relativamente grandes de cetoácidos na urina e,
portanto, pode apresentar um AG relativamente normal e uma discrepância na
relação ΔAG/ΔHCO3–.

TRATAMENTO
Cetoacidose alcoólica
Déficits de líquido extracelular quase sempre acompanham a CAA, devendo ser repostos por meio da
administração IV de solução salina e glicose (dextrose a 5% em NaCl a 0,9%). A hipofosfatemia,
hipopotassemia e hipomagnesemia podem coexistir, devendo ser cuidadosamente monitoradas e corrigidas,
quando houver indicação. A hipofosfatemia surge geralmente dentro de 12 a 24 horas após a internação;
pode ser exacerbada pela infusão de glicose e, quando grave, pode induzir rabdomiólise ou até mesmo
parada respiratória. Esse distúrbio é algumas vezes acompanhado de hemorragia digestiva alta, pancreatite e
pneumonia.

Acidose induzida por fármacos e toxinas • SALICILATOS (VER TAMBÉM


CAP. 449) Nos adultos, a intoxicação por salicilatos geralmente provoca
alcalose respiratória ou um distúrbio misto de acidose metabólica com AG
elevado e alcalose respiratória. Apenas parte do AG se deve aos salicilatos. Com
frequência, a produção de ácido láctico também fica aumentada.

TRATAMENTO
Acidose induzida por salicilatos
Uma vigorosa lavagem gástrica com solução salina isotônica (e não NaHCO3) deve ser iniciada
imediatamente. Todos os pacientes devem receber pelo menos uma administração de carvão ativado por
sonda nasogástrica (1 g/kg até 50 g). No paciente acidótico, para facilitar a remoção do salicilato,
administra-se NaHCO3 IV em quantidades adequadas para alcalinizar a urina e manter o débito urinário (pH
urinário > 7,5), uma vez que a elevação do pH urinário de 6,5 para 7,5 aumenta em cinco vezes a depuração
de salicilatos. Pacientes com alcalose respiratória coexistente também devem receber NaHCO3, porém
cautelosamente, a fim de evitar uma alcalemia excessiva. Pode-se administrar acetazolamida na presença de
alcalemia, quando não for possível obter uma diurese alcalina ou para melhorar a sobrecarga de volume
associada à administração de NaHCO3; todavia, esse fármaco pode causar acidose metabólica sistêmica se o
HCO3– excretado não for reposto, em uma situação que pode diminuir acentuadamente a depuração de
salicilatos.
É necessário prever a ocorrência de hipopotassemia com a instituição de uma vigorosa terapia com
bicarbonato, e o tratamento deve ser imediato e agressivo. Devem-se administrar soluções glicosadas em
razão do risco de hipoglicemia. As excessivas perdas insensíveis de líquido podem causar grave depleção
de volume e hipernatremia. Quando a presença de disfunção renal impede a rápida depuração dos
salicilatos, pode-se efetuar uma hemodiálise com dialisato contendo bicarbonato.

ALCOÓIS Na maioria dos estados fisiológicos, o sódio, a ureia e a glicose


geram a pressão osmótica do sangue. A osmolalidade plasmática é calculada de
acordo com a seguinte expressão: Posm = 2Na+ + Gli + BUN1 (todos expressos em
mmol/L), ou utilizando valores laboratoriais convencionais, em que a glicose e o
BUN são expressos em miligramas por decilitro: Posm = 2Na+ + Gli/18 +
BUN/2,8. A osmolalidade calculada e medida deve ter concordância dentro de
uma faixa de 10 a 15 mmol/kg H2O. Quando a osmolalidade excede a
osmolalidade calculada em > 10 a 15 mmol/kg H2O, uma entre duas
circunstâncias prevalece – ou a concentração sérica de sódio é falsamente baixa,
como ocorre com a hiperlipidemia ou na hiperproteinemia (pseudo-
hiponatremia), ou há acúmulo plasmático de outros osmólitos que não sais de
sódio, glicose ou ureia. Exemplos desses osmólitos incluem manitol, meios de
contraste radiológicos, etanol, álcool isopropílico, EG, propilenoglicol, metanol
e acetona. Nessa situação, a diferença entre a osmolalidade calculada e a medida
(gap osmolar) é proporcional à concentração de soluto não medido. Diante de
história clínica apropriada e elevado índice de suspeita, a identificação de um
gap osmolar ajuda a identificar a presença de acidose com AG associada à
intoxicação alcoólica. Três alcoóis podem causar intoxicações fatais: EG,
metanol e álcool isopropílico. Todos produzem gap osmolar elevado, mas apenas
os dois primeiros causam uma acidose com AG elevado. A ingesta de álcool
isopropílico tipicamente não eleva o AG, a menos que uma superdosagem
extrema cause hipotensão e acidose por ácido láctico.
ETILENOGLICOL (VER TAMBÉM CAP. 449) A ingesta de EG (geralmente
utilizado como anticongelante) resulta em acidose metabólica e lesão grave do
SNC, coração, pulmões e rins. A combinação de um alto AG a um elevado gap
osmolar é altamente suspeita para intoxicação por EG ou metanol. O AG e o gap
osmolar aumentados são atribuíveis ao EG e a seus metabólitos, ácido oxálico,
ácido glicólico e outros ácidos orgânicos. A produção de ácido láctico aumenta
secundariamente à inibição do ciclo dos ácidos tricarboxílicos e à alteração do
estado redox intracelular. Além da presença de AGs e gap osmolar elevado, o
diagnóstico é adicionalmente favorecido pela detecção de cristais de oxalato na
urina. Embora seja usada uma lâmpada de Wood para visualizar o aditivo
fluorescente no anticongelante comercial na urina de pacientes com ingesta de
EG, isso não é confiável. A combinação de um AG elevado com um alto gap
osmolar em um paciente com suspeita de ingesta de EG deve ser considerada
como evidência de toxicidade por EG. Nesse contexto, o tratamento não deve ser
adiado enquanto se aguarda a dosagem dos níveis de EG.

TRATAMENTO
Acidose induzida por etilenoglicol
O tratamento consiste em instituição imediata de diurese salina ou osmótica, suplementos de tiamina e
piridoxina, fomepizol e, em geral, hemodiálise. A administração IV do inibidor da álcool-desidrogenase, o
fomepizol (4-metilpirazol; 15 mg/kg como dose de ataque), constitui o agente de escolha e oferece a
vantagem de um declínio previsível dos níveis de EG, sem obnubilação excessiva, como observado durante
a infusão de álcool etílico. O etanol IV, quando utilizado, deve ser infundido para se obter um nível
sanguíneo de 22 mmol/L (100 mg/dL). Tanto o fomepizol quanto o etanol reduzem a toxicidade, visto que
ambos competem com o EG pelo metabolismo pela álcool-desidrogenase. A hemodiálise está indicada
quando o pH arterial é < 7,3 ou o gap osmolar excede 20 mOsm/kg.

METANOL (VER TAMBÉM CAP. 449) A ingesta de metanol (álcool de


madeira) provoca acidose metabólica, e seus metabólitos, o formaldeído e o
ácido fórmico, causam lesão grave do nervo óptico e do SNC. O ácido láctico, os
cetoácidos e outros ácidos orgânicos não identificados podem contribuir para a
acidose. Em razão de sua baixa massa molecular (32 Da), geralmente se verifica
a presença de gap osmolar.

TRATAMENTO
Acidose induzida por metanol
Assemelha-se ao da intoxicação por EG, incluindo medidas gerais de suporte, administração de fomepizol e
hemodiálise (conforme indicado anteriormente).

PROPILENOGLICOL O propilenoglicol é o veículo usado na administração


IV de diazepam, lorazepam, fenobarbital, nitroglicerina, etomidato, enoximoma
e fenitoína. O propilenoglicol geralmente é seguro para uso limitado nessas
preparações IV; entretanto, foi relatada a ocorrência de toxicidade, mais
frequentemente no ambiente da unidade de terapia intensiva, onde os pacientes
recebem terapia frequente ou contínua. Essa forma de acidose com gap elevado
deve ser considerada em pacientes com acidose com gap elevado,
hiperosmolalidade e deterioração clínica inexplicáveis, especialmente no
contexto do tratamento da abstinência de álcool. O propilenoglicol, à semelhança
do EG e do metanol, é metabolizado pela álcool-desidrogenase. Na intoxicação
pelo propilenoglicol, a primeira resposta consiste em interromper a infusão da
substância. Além disso, deve-se administrar também fomepizol a pacientes com
acidose.

ÁLCOOL ISOPROPÍLICO O isopropanol ingerido é rapidamente absorvido e


pode ser fatal com o consumo de uma dose de apenas 150 mL na forma de álcool
para assepsia, solvente ou descongelador. Um nível plasmático de > 400 mg/dL
representa uma ameaça à vida. O álcool isopropílico é metabolizado à acetona
pela álcool-desidrogenase. Suas características diferem significativamente
daquelas da intoxicação por EG e por metanol, visto que o composto original (e
não os metabólitos) provoca toxicidade, e não ocorre acidose com AG devido à
rápida excreção da acetona. Tanto o álcool isopropílico quanto a acetona
aumentam o gap osmolar, sendo comum a ocorrência de hipoglicemia. Devem
ser considerados diagnósticos alternativos se não houver melhora significativa
do paciente dentro de algumas horas. Deve-se considerar a realização de
hemodiálise em pacientes com instabilidade hemodinâmica que apresentam
níveis plasmáticos acima de 400 mg/dL.

TRATAMENTO
Toxicidade por álcool isopropílico
A intoxicação pelo álcool isopropílico é tratada com terapia de suporte, líquidos IV, vasopressores, suporte
ventilatório (se necessário) e, em certas ocasiões, hemodiálise para o coma prolongado, a instabilidade
hemodinâmica ou a presença de níveis > 400 mg/dL.

ÁCIDO PIROGLUTÂMICO A acidose metabólica com AG elevado induzida


por paracetamol é incomum; todavia, está sendo diagnosticada mais
frequentemente em pacientes com superdosagem de paracetamol ou desnutridos
ou em pacientes em estado crítico em uso de paracetamol nas doses usuais.
Deve-se suspeitar do acúmulo de 5-oxoprolina após a administração de
paracetamol na presença de acidose com AG elevado inexplicada sem elevação
do gap osmolar, em pacientes em uso de paracetamol. A primeira etapa no
tratamento consiste em interromper imediatamente o fármaco. Além disso, deve-
se administrar bicarbonato de sódio IV. Embora seu uso tenha sido sugerido, não
é sabido se a N-acetilcisteína acelera o metabolismo da 5-oxoprolina ao
aumentar a concentração intracelular de glutationa nesse contexto.

Doença renal crônica (Ver também Cap. 305) A acidose hiperclorêmica da


DRC moderada (estágio 3) eventualmente é convertida em acidose com AG alto
de doença renal avançada (DRC em estágios 4 e 5). A filtração e reabsorção
deficientes de ânions orgânicos contribuem para a patogênese. Com a progressão
da doença renal, o número de néfrons funcionantes acaba se tornando
insuficiente para acompanhar o ritmo da produção efetiva de ácidos. Por
conseguinte, a acidose urêmica na DRC caracteriza-se por uma taxa reduzida de
produção e excreção de NH4+. Na DRC, os sais alcalinos oriundos do osso
tamponam o ácido retido. Apesar da retenção significativa de ácido (até 20
mmol/dia), não há diminuição adicional da [HCO3–] sérica, indicando a
participação de tampões fora do compartimento extracelular. Portanto, a troca
que ocorre na acidose metabólica crônica não tratada da DRC nos estágios 3 e 4
consiste em uma perda significativa de massa óssea decorrente da diminuição do
conteúdo ósseo de carbonato de cálcio. A acidose crônica também aumenta a
excreção urinária de cálcio, proporcionalmente à retenção cumulativa de ácidos,
e contribui significativamente para a perda muscular.

TRATAMENTO
Acidose metabólica da doença renal crônica
Devido à associação da acidose metabólica na DRC avançada com catabolismo muscular, doença óssea e
progressão mais acelerada da DRC, tanto a “acidose urêmica” da doença renal em estágio terminal (DRET)
como a acidose metabólica sem AG da DRC nos estágios 3 e 4 requerem reposição oral de álcalis para
manutenção da [HCO3−] no valor aproximadamente normal (25 mmol/L). Isso pode ser obtido com
quantidades relativamente modestas de álcalis (1,0-1,5 mmol/kg de peso corporal por dia). Tanto os
comprimidos de NaHCO3 (comprimidos de 650 mg contêm 7,8 mEq) como os de citrato de sódio (solução
de Shohl) são efetivos.

ACIDOSES METABÓLICAS SEM ANION GAP


Pode ocorrer a perda de álcalis a partir do trato gastrintestinal, como resultado de
diarreia, ou a partir dos rins devido a distúrbios tubulares renais (p. ex., acidose
tubular renal [ATR]). Nesses distúrbios (Tab. 51-5), as alterações recíprocas na
[Cl–] e [HCO3–] resultam em AG normal. Por conseguinte, na acidose sem AG
pura, o aumento da [Cl–] acima do valor normal aproxima-se da diminuição
observada na [HCO3–]. A ausência dessa relação sugere um distúrbio misto.

TABELA 51-5 ■ Causas da acidose sem anion gap


I. Perda gastrintestinal de bicarbonato
A. Diarreia
B. Drenagem externa do pâncreas ou intestino delgado
C. Ureterossigmoidostomia, alça jejunal e alça ileal
D. Fármacos
1. Cloreto de cálcio (agente acidificante)
2. Sulfato de magnésio (diarreia)
3. Colestiramina (diarreia por ácidos biliares)
II. Acidose renal
A. Hipopotassemia
1. ATR proximal (tipo 2) Fármaco-induzida: acetazolamida, topiramato
2. ATR distal (clássica) (tipo 1) Fármaco-induzida: anfotericina B, ifosfamida
B. Hiperpotassemia
1. Disfunção generalizada do néfron distal (ATR tipo 4)
a. Deficiência de mineralocorticoides
b. Resistência aos mineralocorticoides (PHA tipo I, autossômico dominante)
c. Defeito na voltagem (PHA I, autossômico recessivo e PHA II)
d. Doença tubulointersticial
C. Normopotassemia
1. Doença renal progressiva crônica
III.Hiperpotassemia induzida por fármacos (com disfunção renal)
A. Diuréticos poupadores de potássio (amilorida, triantereno, espironolactona, eplerenona)
B. Trimetoprima
C. Pentamidina
D. IECAs e BRAs
E. Fármacos anti-inflamatórios não esteroides
F. Inibidores da calcineurina
G. Heparina em pacientes com doença grave
IV.Outras
A. Cargas de ácidos (cloreto de amônio, hiperalimentação)
B. Perda de bicarbonato potencial: cetose com excreção de cetonas
C. Acidose por expansão (administração rápida de solução salina)
D. Hipurato
E. Resinas de troca catiônica
Siglas: IECA, inibidor da enzima conversora da angiotensina; BRA, bloqueador do receptor da angiotensina; PHA, pseudo-
hipoaldosteronismo; ATR, acidose tubular renal.
As fezes contêm concentrações de HCO3− e de HCO3− decomposto maiores
do que as concentrações plasmáticas, por isso há desenvolvimento de acidose
metabólica na diarreia. Em lugar de um pH urinário ácido (como seria de esperar
na acidose sistêmica), o pH urinário é geralmente > 6, visto que a acidose
metabólica e a hipopotassemia aumentam a síntese e a excreção renais de NH4+,
proporcionando, assim, um tampão urinário que aumenta o pH da urina. A
acidose metabólica causada por perdas gastrintestinais com pH urinário elevado
pode ser diferenciada da ATR, visto que a excreção urinária de NH4+ está
geralmente baixa na ATR e elevada na presença de diarreia. Os níveis urinários
de NH4+ podem ser estimados ao se calcular o anion gap urinário (UAG): UAG
= [Na+ + K+]u – [Cl–]u. Quando [Cl–]u > [Na+ + K+]u, o UAG é, por definição,
negativo. Isso indica que o nível urinário de amônio está apropriadamente
aumentado, sugerindo uma causa extrarrenal para a acidose. Por outro lado,
quando o UAG é positivo, o nível urinário de amônio mostra-se baixo, sugerindo
uma causa renal para a acidose.
A ATR proximal (ATR tipo 2) (Cap. 309) é mais frequentemente
resultante de disfunção tubular proximal generalizada, que se manifesta por
glicosúria, aminoacidúria generalizada e fosfatúria (síndrome de Fanconi).
Quando a [HCO3−] plasmática é baixa, o pH urinário é ácido (pH < 5,5), mas
excede 5,5 com a terapia alcalina. A fração de excreção de [HCO3–] pode
ultrapassar 10-15% diante de níveis séricos de HCO3– > 20 mmol/L. Como o
HCO3– não é normalmente reabsorvido no túbulo proximal, a terapia com
NaHCO3 intensificará a distribuição de HCO3− ao néfron distal, bem como a
secreção renal de potássio, causando, assim, hipopotassemia.
Os achados típicos nas formas adquiridas ou hereditárias de ATR distal
clássica (ATR tipo 1) consistem em hipopotassemia, acidose metabólica sem
AG, baixa excreção urinária de NH4+ (UAG positivo, baixa concentração
urinária de [NH4+]) e pH urinário inapropriadamente alto (pH > 5,5). A maioria
dos pacientes apresenta hipocitratúria e hipercalciúria, de forma que são comuns
a nefrolitíase, a nefrocalcinose e a doença óssea. Na ATR distal generalizada
(ATR tipo 4), a hiperpotassemia é desproporcional à redução da taxa de filtração
glomerular (TFG) devido à disfunção concomitante na secreção de potássio e
ácido. A excreção urinária de amônio fica invariavelmente reduzida, e a função
renal pode estar comprometida devido a, por exemplo, nefropatia diabética,
uropatia obstrutiva ou doença tubulointersticial crônica.
O hipoaldosteronismo hiporreninêmico caracteristicamente causa acidose
metabólica sem AG, geralmente em adultos idosos com diabetes melito ou
doença tubulointersticial e DRC. Em geral, os pacientes apresentam DRC leve a
moderada (TFG de 20-50 mL/min) e acidose, com elevação da [K+] sérica (5,2-
6,0 mmol/L), hipertensão concomitante e insuficiência cardíaca congestiva. A
acidose metabólica e a hiperpotassemia são desproporcionais à diminuição da
TFG. Fármacos anti-inflamatórios não esteroides, trimetoprima, pentamidina,
inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECAs) e bloqueadores do
receptor de aldosterona (BRAs) também podem aumentar o risco de
hiperpotassemia e acidose metabólica sem AG em pacientes com DRC (Tab. 51-
5).

TRATAMENTO
Acidoses metabólicas sem anion gap
Para a acidose sem AG de causas não renais decorrente de perdas gastrintestinais de bicarbonato, é possível
administrar NaHCO3 IV ou VO, conforme determinado pela gravidade da acidose e da depleção volêmica
concomitante. A ATR proximal é a mais difícil de tratar entre todas as ATRs, caso a meta seja restaurar a
[HCO3–] sérica normal, uma vez que a administração de álcalis orais aumenta a excreção urinária de
potássio. Em pacientes com ATR proximal (tipo 1), a administração de potássio tipicamente se faz
necessária. Uma solução oral de uma combinação de citratos de sódio e de potássio (334 mg de ácido
cítrico, 500 mg de citrato de sódio e 550 mg de citrato de potássio a cada 5 mL) pode ser prescrita para essa
finalidade e é comercializada como Virtrate-3. As preparações em xarope não são recomendadas para
administração crônica. Na ATR distal clássica (tipo 2), o potássio deve ser administrado no paciente
agudamente acidótico com hipopotassemia. Para a terapia crônica, a maioria dos pacientes responde à
reposição com citrato de sódio (solução de Shohl) ou comprimidos de NaHCO3 (comprimidos de 650 mg
contêm 7,8 mEq) feita com o objetivo de corrigir a [HCO3–] sérica de volta ao normal. Esses pacientes
tipicamente respondem à terapia alcalina crônica, e os benefícios proporcionados por uma terapia adequada
com álcali incluem a diminuição da frequência de nefrolitíase, a melhora da densidade óssea, a retomada
dos padrões normais de crescimento em crianças e a preservação da função renal em adultos e crianças.
Para a ATR tipo 4, é preciso prestar atenção nas metas de correção da acidose metabólica, empregando a
mesma abordagem usada para ATR distal clássica. Contudo, esforços adicionais devem ser empreendidos
no sentido de corrigir a [K+] plasmática. Essa última meta merece ser enfatizada, porque a restauração da
normopotassemia eleva a excreção urinária líquida de ácido e, nesse sentido, pode melhorar
substancialmente a acidose metabólica. A administração crônica de poliestireno sulfonato de sódio VO (15
g de pó preparado como solução oral, sem sorbitol, 1 vez ao dia, 2-3 vezes por semana) às vezes é usada.
Além disso, a dieta deve ser pobre em alimentos contendo potássio; todas as medicações que levam à
retenção de potássio devem ser suspensas; e um diurético de alça pode ser administrado. A recente liberação
de um novo polímero não absorvível trocador de cátions cálcio-potássio, o patirômero, pode se mostrar
bastante útil para pacientes com ATR tipo 4 que apresentam hiperpotassemia significativa. No entanto, o
patirômero ainda não foi investigado nessa população de pacientes. Por fim, pacientes com insuficiência
suprarrenal comprovada também devem receber fludrocortisona, contudo, a dose deve variar de acordo com
a causa da deficiência hormonal e deve ser evitada em pacientes com hipoaldosteronismo hiporreninêmico.
ALCALOSE METABÓLICA
A alcalose metabólica manifesta-se por elevação do pH arterial, aumento da
[HCO3–] sérica e um aumento da PaCO2 em consequência da hipoventilação
alveolar compensatória (Tab. 51-1). Com frequência, é acompanhada por
hipocloremia e hipopotassemia. O pH arterial estabelece o diagnóstico, visto que
fica aumentado na alcalose metabólica e diminuído na acidose respiratória. A
alcalose metabólica ocorre com frequência como um distúrbio acidobásico misto
associado à acidose respiratória ou à alcalose metabólica.

PATOGÊNESE
Ocorre alcalose metabólica em consequência de um ganho efetivo de [HCO3–] ou
da perda de ácido não volátil (geralmente HCl por vômitos) do líquido
extracelular. Quando o vômito causa perda de HCl do estômago, a secreção de
HCO3− não pode ser iniciada no intestino delgado, devendo-se, portanto,
adicionar HCO3 ao líquido extracelular. Portanto, o vômito ou a drenagem
nasogástrica (NG) exemplificam o estágio de geração, em que a perda de ácido
tipicamente causa alcalose. Com a cessação do vômito, o estágio de manutenção
normalmente se inicia, uma vez que fatores secundários previnem os rins de
fazerem a compensação por meio da excreção de HCO3−.
A manutenção da alcalose metabólica representa uma incapacidade dos rins
de eliminar o excesso de HCO3– do compartimento extracelular. Os rins irão reter
(e não excretar) o excesso de álcali e manterão a alcalose se houver (1)
deficiência de volume, de cloreto e de K+ associada à redução da TFG; ou (2)
hipopotassemia resultante da presença de hiperaldosteronismo autonômico. Na
primeira situação, a alcalose é corrigida pela administração de NaCl e KCl, ao
passo que, na segunda, pode ser necessário corrigir a alcalose mediante
intervenção farmacológica ou cirúrgica, mas não com a administração de solução
salina.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Para se estabelecer a etiologia da alcalose metabólica (Tab. 51-6), é necessário
avaliar o estado do volume de líquido extracelular (VLEC), a pressão arterial em
decúbito e na posição ortostática (para determinar se há hipotensão ortostática), a
[K+] sérica e o sistema renina-aldosterona. Por exemplo, a presença de
hipertensão e hipopotassemia crônicas em um paciente com alcalose sugere
excesso de mineralocorticoides ou uso de diuréticos por um paciente hipertenso.
Uma baixa atividade da renina plasmática e valores normais da [Na+] e [Cl–]
urinárias em um paciente que não está fazendo uso de diuréticos indicam uma
síndrome de excesso primário de mineralocorticoides. A associação de
hipopotassemia e alcalose em um paciente normotenso sem edema pode se dever
à síndrome de Bartter ou de Gitelman, deficiência de magnésio, vômitos, álcalis
exógenos ou uso de diuréticos. A determinação dos eletrólitos urinários
(particularmente [Cl–] urinária) e o rastreamento da urina para a detecção de
diuréticos podem ser úteis. Se a urina for alcalina, com [Na+]u e [K+]u elevadas,
mas com [Cl–]u baixa, o diagnóstico consistirá geralmente em vômitos (evidentes
ou ocultamente induzidos) ou ingesta de álcalis. Se a urina estiver relativamente
ácida, com baixas concentrações de Na+, K+ e Cl–, as possibilidades mais
prováveis consistem em vômitos prévios, estado de pós-hipercapnia ou uso
prévio de diuréticos. No entanto, se não ocorrer redução nas concentrações
urinárias de sódio, potássio ou cloreto, deverá ser considerada a possibilidade de
deficiência de magnésio, síndrome de Bartter ou de Gitelman, ou uso atual de
diuréticos. A síndrome de Bartter é diferenciada da síndrome de Gitelman devido
à presença de hipocalciúria nessa última.

TABELA 51-6 ■ Causas de alcalose metabólica


I. Cargas exógenas de HCO3–
A. Administração aguda de álcalis
B. Síndrome leite-álcali
II. Contração do VLEC efetivo, normotensão, deficiência de K+ e hiperaldosteronismo hiper-reninêmico secundário
A. Origem gastrintestinal
1. Vômitos
2. Aspiração gástrica
3. Cloridorreia congênita
4. Gastrocistoplastia
5. Adenoma viloso
B. Origem renal
1. Diuréticos
2. Estado pós-hipercapnia
3. Hipercalcemia/hipoparatireoidismo
4. Recuperação da acidose láctica ou da cetoacidose
5. Ânions não reabsorvíveis, incluindo penicilina e carbenicilina
6. Deficiência de Mg2+
7. Depleção de K+
8. Síndrome de Bartter (mutações com perda de função de transportadores e canais iônicos no TALH)
9. Síndrome de Gitelman (mutação com perda de função no cotransportador de Na+-Cl– no TCD)
III.Expansão do VLEC, hipertensão, deficiência de K+ e excesso de mineralocorticoides
A. Renina elevada
1. Estenose de artéria renal
2. Hipertensão acelerada
3. Tumor secretor de renina
4. Terapia com estrogênio
B. Renina baixa
1. Aldosteronismo primário
a. Adenoma
b. Hiperplasia
c. Carcinoma
2. Defeitos das enzimas suprarrenais
a. Deficiência de 11β-hidroxilase
b. Deficiência de 17α-hidroxilase
3. Síndrome ou doença de Cushing
4. Outros
a. Alcaçuz
b. Carbenoxolona
c. Fumo de mascar
IV.Mutação com ganho de função do canal de sódio no TCD, com expansão do VLEC, hipertensão, deficiência de K+ e hipoaldosteronismo
hiporreninêmico
A. Síndrome de Liddle
Siglas: TCD, túbulo contorcido distal; VLEC, volume de líquido extracelular; TALH, ramo ascendente espesso da alça de Henle.

Administração de álcalis A administração crônica de álcalis a indivíduos com


função renal normal raramente provoca alcalose. Todavia, em pacientes com
distúrbios hemodinâmicos coexistentes associados a uma depleção efetiva do
volume de LEC, pode-se verificar o desenvolvimento de alcalose, visto que a
capacidade normal de excretar HCO3– está diminuída ou pode haver aumento da
reabsorção de HCO3–. Esses pacientes incluem os que recebem NaHCO3 (VO ou
IV), cargas de citrato (transfusões de sangue total ou aférese terapêutica) ou
antiácidos juntamente com resinas de troca catiônica (hidróxido de alumínio e
sulfonato de poliestireno sódico). Os pacientes com assistência domiciliar que
recebem alimentação por sonda (uma fonte frequentemente ignorada de
sobrecarga de álcalis) apresentam maior incidência de alcalose metabólica do
que aqueles também sob assistência domiciliar, mas que recebem alimentação
oral.

ALCALOSE METABÓLICA ASSOCIADA A CONTRAÇÃO DO VLEC,


DEPLEÇÃO DE K+ E HIPERALDOSTERONISMO HIPER-
RENINÊMICO SECUNDÁRIO
Origem gastrintestinal A perda gastrintestinal de H+ em decorrência de vômitos
ou aspiração gástrica resulta em retenção de HCO3– no líquido extracelular.
Durante o vômito ativo, a carga filtrada de bicarbonato que chega nos rins está
agudamente aumentada e excederá a capacidade reabsortiva do túbulo proximal
de absorção de HCO3−. Subsequentemente, o aporte intensificado de HCO3 ao
néfron distal levará à excreção de uma urina alcalina rica em potássio. Quando o
vômito cessa, a persistência da depleção de volume, potássio e cloreto leva à
manutenção da alcalose, devido à capacidade aumentada de reabsorção de
HCO3–. A correção do VLEC contraído com NaCl e a restauração dos déficits de
K+ com KCl corrigem o distúrbio acidobásico, restaurando a capacidade do rim
de excretar o excesso de bicarbonato.
Origem renal • DIURÉTICOS (VER TAMBÉM CAP. 252) Diuréticos como
as tiazídicos e os diuréticos de alça (furosemida, bumetanida, torsemida)
aumentam a excreção de sais e diminuem agudamente o VLEC, sem alterar o
conteúdo corporal total de bicarbonato. A [HCO3–] sérica aumenta, visto que o
VLEC reduzido “contrai” a [HCO3–] plasmática (alcalose de contração). A
administração crônica de diuréticos tende a produzir alcalose, aumentando a
liberação distal de sal, com consequente estímulo da secreção de K+ e H+. A
alcalose é mantida pela persistência da contração do VLEC, pelo
hiperaldosteronismo secundário, pela deficiência de K+ e pelo efeito direto do
diurético (enquanto este for administrado). A descontinuação do diurético e o
fornecimento de solução salina isotônica para correção do déficit do VLEC irá
reparar a alcalose.

DISTÚRBIOS COM PERDA DE SOLUTOS: SÍNDROME DE BARTTER


E SÍNDROME DE GITELMAN Ver Capítulo 309.

ÂNIONS NÃO REABSORVÍVEIS E DEFICIÊNCIA DE MAGNÉSIO A


administração de grandes quantidades de carbenicilina ou ticarcilina – derivadas
da penicilina – leva ao aparecimento de seus ânions não reabsorvíveis na urina.
Isso aumenta a diferença de potencial transepitelial no túbulo coletor e, assim,
intensifica a secreção de H+ e K+. A deficiência de Mg2+ pode ocorrer com a
administração crônica de diuréticos tiazídicos, assim como em casos de
alcoolismo e desnutrição; a síndrome de Gitelman potencializa o
desenvolvimento de alcalose hipopotassêmica por intensificar a acidificação
distal via estimulação de renina e, assim, a secreção de aldosterona.

DEPLEÇÃO DE POTÁSSIO A depleção crônica de K+ pode causar alcalose


metabólica pelo aumento da excreção urinária de ácido. A geração renal de NH4+
(amoniagênese) é suprarregulada diretamente pela hipopotassemia. A deficiência
crônica de K+ suprarregula a H+,K+-ATPase renal, aumentando a absorção de K+
à custa do aumento da secreção de H+. A alcalose associada à depleção grave de
K+ mostra-se resistente à administração de sal, porém a suplementação de K+
corrige a alcalose. A depleção de potássio ocorre com frequência de modo
concomitante com a deficiência de magnésio em alcoolistas desnutridos.

APÓS TRATAMENTO DA ACIDOSE LÁCTICA OU DA CETOACIDOSE


Quando um estímulo subjacente para a geração de ácido láctico ou de cetoácidos
é corrigido pelo tratamento do distúrbio subjacente, como na correção do choque
ou de uma depleção volêmica grave por restauração do volume ou com terapia
de insulina, respectivamente, o lactato ou as cetonas são metabolizados
produzindo uma quantidade equivalente de HCO3−. Outras fontes exógenas de
HCO3– serão acrescentadas à quantidade original gerada pelo metabolismo de
ânions orgânicos, criando um excesso de HCO3–. A contração do VLEC induzida
por acidose e a deficiência de K+ atuam em conjunto para manter a alcalose.

PÓS-HIPERCAPNIA A retenção prolongada de CO2 com acidose respiratória


crônica aumenta a absorção renal de HCO3– e a geração de HCO3– novo (excreção
final aumentada de ácido). A alcalose metabólica resulta do efeito da elevação
persistente da [HCO3–], quando a PaCO2 elevada é subitamente normalizada.

ALCALOSE METABÓLICA ASSOCIADA A EXPANSÃO DO VLEC,


HIPERTENSÃO ARTERIAL E HIPERALDOSTERONISMO
Níveis elevados de aldosterona podem ser causados por uma produção excessiva
primária e autonômica pela suprarrenal ou podem ser secundários à
superprodução de renina pelos rins. O excesso de mineralocorticoides aumenta a
excreção final de ácido e pode resultar em alcalose metabólica, que pode ser
agravada pela deficiência associada de K+. A retenção de sal é devida à
suprarregulação dos canais de Na+ epiteliais no túbulo coletor em resposta à
aldosterona, como resultado da associada expansão do VLEC, e causa
hipertensão. A caliurese persiste, devido ao excesso de mineralocorticoides e à
absorção distal de Na+, produzindo excreção aumentada de K+, depleção
contínua de K+ com polidipsia, incapacidade de concentrar a urina e poliúria.
A síndrome de Liddle (Cap. 309) resulta de uma mutação de ganho de
função herdada nos genes reguladores de canal de Na+ (CENa) no ducto coletor.
A síndrome de Liddle é uma rara forma monogênica de hipertensão decorrente
de expansão volêmica, que se manifesta como alcalose hipopotassêmica e níveis
normais de aldosterona.

Sintomas Na presença de alcalose metabólica, as alterações nas funções do SNC


e do sistema nervoso periférico assemelham-se àquelas da hipocalcemia (Cap. 4
02). Os sintomas consistem em confusão mental, obnubilação e predisposição a
convulsões, parestesia, cãibras musculares, tetania, agravamento de arritmias e
hipoxemia na doença pulmonar obstrutiva. As anormalidades eletrolíticas
relacionadas incluem hipopotassemia e hipofosfatemia.
TRATAMENTO
Alcalose metabólica
O tratamento é direcionado principalmente para a correção do estímulo subjacente para geração de HCO3–.
Se houver aldosteronismo primário ou síndrome de Cushing, a correção bem-sucedida da causa subjacente
reverterá a hipopotassemia e a alcalose. A perda de [H+] pelo estômago ou pelos rins pode ser reduzida pelo
uso de inibidores da bomba de prótons ou pela interrupção dos diuréticos. O segundo aspecto do tratamento
consiste em remover os fatores que sustentam o aumento inapropriado da reabsorção de HCO3–, como
contração do VLEC ou deficiência de K+. É sempre necessário corrigir os déficits de K+. A solução salina
isotônica é recomendada para reverter a alcalose quando há contração do VLEC. Se houver distúrbios
associados que impeçam a infusão de solução salina, a perda renal de HCO3– pode ser acelerada pela
administração de acetazolamida, um inibidor da anidrase carbônica (125-250 mg, IV), o qual costuma ser
efetivo em pacientes com função renal adequada, mas que pode agravar as perdas de K+. O ácido clorídrico
diluído (HCl a 0,1 N) também é historicamente defendido em casos extremos, mas pode causar hemólise e
deve ser administrado lentamente em uma veia central. Essa preparação, em geral, está indisponível e deve
ser manipulada pelo farmacologista. Dada a possibilidade de ocorrer erros ou danos sérios, seu uso não é
recomendado.
ACIDOSE RESPIRATÓRIA
A acidose respiratória pode ser causada por doença pulmonar grave, fadiga dos
músculos ventilatórios ou anormalidades no controle da ventilação. A sua
presença é identificada por um aumento da PaCO2 e redução do pH (Tab. 51-7).
Na acidose respiratória aguda, verifica-se uma elevação compensatória imediata
(devido a mecanismos de tamponamento celular) do HCO3–, a qual aumenta 1
mmol/L para cada 10 mmHg de aumento da PaCO2. Na acidose respiratória
crônica (> 24 horas), a adaptação renal aumenta a [HCO3–] em 4 mmol/L para
cada 10 mmHg de aumento da PaCO2. Em geral, o HCO3– sérico não ultrapassa 38
mmol/L.

TABELA 51-7 ■ Distúrbios acidobásicos respiratórios


I. Alcalose
A. Estimulação do sistema nervoso central
1. Dor
2. Ansiedade, psicose
3. Febre
4. Acidente vascular cerebral
5. Meningite, encefalite
6. Tumor
7. Trauma
B. Hipoxemia ou hipoxia tecidual
1. Altitude elevada
2. Pneumonia, edema pulmonar
3. Aspiração
4. Anemia grave
C. Fármacos ou hormônios
1. Gravidez, progesterona
2. Salicilatos
3. Insuficiência cardíaca
D. Estimulação dos receptores torácicos
1. Hemotórax
2. Tórax instável
3. Insuficiência cardíaca
4. Embolia pulmonar
E. Outros
1. Septicemia
2. Insuficiência hepática
3. Hiperventilação mecânica
4. Exposição ao calor
5. Recuperação da acidose metabólica
II. Acidose
A. Central
1. Fármacos (anestésicos, morfina, sedativos)
2. Acidente vascular cerebral
3. Infecção
B. Vias aéreas
1. Obstrução
2. Asma
C. Parênquima
1. Enfisema
2. Pneumoconiose
3. Bronquite
4. Síndrome da angústia respiratória aguda
5. Barotrauma
D. Neuromusculares
1. Poliomielite
2. Cifoescoliose
3. Miastenia
4. Distrofias musculares
E. Outros
1. Obesidade
2. Hipoventilação
3. Hipercapnia permissiva

As manifestações clínicas variam de acordo com a gravidade e a duração da


acidose respiratória, a doença subjacente e o fato de haver ou não hipoxemia
concomitante. Uma elevação rápida da PaCO2 pode causar ansiedade, dispneia,
confusão, psicose e alucinações, podendo evoluir para o coma. Os graus menores
de disfunção na hipercapnia crônica incluem distúrbios do sono, perda de
memória, sonolência diurna, alterações da personalidade, dificuldade de
coordenação e distúrbios motores, como tremor, abalos mioclônicos e asterixe.
As cefaleias e outros sinais que simulam uma hipertensão intracraniana, como
papiledema, reflexos anormais e fraqueza muscular focal, são devidos à
vasoconstrição secundária à perda dos efeitos vasodilatadores do CO2.
A depressão do centro respiratório por uma variedade de substâncias, lesão
ou doença pode ocasionar acidose respiratória. Esse quadro pode ocorrer de
forma aguda – com anestésicos gerais, sedativos e traumatismo craniencefálico –
ou de forma crônica – com sedativos, álcool, tumores intracranianos e distúrbios
respiratórios do sono, incluindo síndromes alveolares primárias e de obesidade-
hipoventilação (Caps. 290 e 291). As anormalidades ou doenças dos neurônios
motores, da junção neuromuscular e da musculatura esquelética podem causar
hipoventilação através da fadiga dos músculos ventilatórios. A ventilação
mecânica, se não for apropriadamente ajustada ou supervisionada, poderá
resultar em acidose respiratória, sobretudo nos casos em que ocorre aumento
súbito da produção de CO2 (devido a febre, agitação, sepse ou alimentação
excessiva) ou quando há queda da ventilação alveolar devido ao agravamento da
função pulmonar. Os níveis elevados de pressão expiratória final positiva na
presença de débito cardíaco reduzido podem causar hipercapnia, em
consequência de grandes aumentos no espaço morto alveolar (Cap. 279). A
hipercapnia permissiva pode ser usada para minimizar a pressão expiratória final
positiva intrínseca na lesão pulmonar aguda/síndrome da angústia respiratória
aguda e doença pulmonar obstrutiva grave. A acidose respiratória associada à
hipercapnia permissiva pode exigir a administração de NaHCO3 para aumentar o
pH arterial para cerca de 7,15 a 7,20; entretanto, a correção excessiva da
acidemia ao pH arterial normal é deletéria.
A hipercapnia aguda sucede a oclusão súbita das vias aéreas superiores ou
um broncospasmo generalizado, como na asma grave, na anafilaxia, nas
queimaduras por inalação ou na lesão por toxinas. Ocorrem hipercapnia e
acidose respiratória crônicas no estágio terminal da doença pulmonar obstrutiva.
Os distúrbios restritivos que comprometem a parede torácica e os pulmões
podem causar acidose respiratória, visto que o elevado custo metabólico da
respiração provoca fadiga dos músculos ventilatórios. Os estágios avançados dos
distúrbios restritivos intrapulmonares e extrapulmonares manifestam-se como
acidose respiratória crônica.
O diagnóstico de acidose respiratória exige a determinação da PaCO2 e do
pH arterial. Com frequência, uma anamnese e um exame físico detalhados
indicam a etiologia. As provas de função pulmonar (Cap. 279), incluindo
espirometria, capacidade de difusão do monóxido de carbono, volumes
pulmonares e PaCO2 e saturação de O2 arterial, geralmente permitem determinar
se a acidose respiratória é secundária à doença pulmonar. A avaliação das causas
não pulmonares deve incluir história farmacológica detalhada, determinação do
hematócrito e avaliação das vias aéreas superiores, parede torácica, pleura e
função neuromuscular.

TRATAMENTO
Acidose respiratória
O tratamento da acidose respiratória depende de sua gravidade e da velocidade do aparecimento. A acidose
respiratória aguda pode comportar risco de vida, e devem-se tomar medidas para reverter a causa
subjacente, simultaneamente com restauração da ventilação alveolar adequada. Isso pode exigir intubação
traqueal e ventilação mecânica assistida. A administração de oxigênio deve ser titulada atentamente em
pacientes com doença pulmonar obstrutiva grave e retenção crônica de CO2 que estejam respirando
espontaneamente (Cap. 286). Quando se utiliza o oxigênio sem critério, esses pacientes podem sofrer o
agravamento da acidose respiratória, levando a uma grave acidemia. Deve-se evitar a correção agressiva e
rápida da hipercapnia, visto que a queda da PaCO2 pode provocar as mesmas complicações observadas na
alcalose respiratória aguda (i.e., arritmias cardíacas, redução da perfusão cerebral e convulsões). A PaCO2
deve ser reduzida gradualmente na acidose respiratória crônica, visando restaurar os níveis basais de PaCO2
e fornecer uma quantidade suficiente de Cl– e K+ para aumentar a excreção renal de HCO3–.
Com frequência, é difícil corrigir a acidose respiratória crônica; todavia, as medidas destinadas a
melhorar a função pulmonar (Cap. 286) devem ser o foco primário do tratamento.
ALCALOSE RESPIRATÓRIA
A hiperventilação alveolar diminui a PaCO2 e aumenta a razão HCO3–/PaCO2, com
consequente aumento do pH (Tab. 51-7). Os tampões celulares sem bicarbonato
respondem com consumo de HCO3–. Observa-se o desenvolvimento de
hipocapnia quando um estímulo ventilatório suficientemente forte faz a
eliminação de CO2 pelos pulmões ultrapassar a sua produção metabólica pelos
tecidos. O pH e a [HCO3–] do plasma parecem variar proporcionalmente com a
PaCO2, ao longo de uma faixa de 40 a 15 mmHg. A relação entre a concentração
arterial de [H+] e a PaCO2 é de cerca de 0,7 mmol/L por mmHg (ou 0,01 unidade
de pH/mmHg), enquanto a [HCO3–] plasmática é de 0,2 mmol/L por mmHg. A
hipocapnia mantida por > 2-6 horas é ainda mais compensada por uma redução
da excreção renal de amônio e ácidos tituláveis, bem como pela diminuição da
reabsorção do HCO3– filtrado. A adaptação renal completa à alcalose respiratória
pode demorar vários dias e exige que a volemia e a função renal estejam
normais. Os rins parecem responder diretamente à diminuição da PaCO2, e não à
alcalose em si. Na alcalose respiratória crônica, uma redução de 1 mmHg na
PaCO2 provoca uma queda de 0,4 a 0,5 mmol/L na [HCO3–] e uma redução de 0,3
mmol/L (ou aumento de 0,003 no pH) na [H+].
Os efeitos da alcalose respiratória variam de acordo com sua duração e
gravidade, mas são principalmente os da doença subjacente. A redução do fluxo
sanguíneo cerebral em consequência de um rápido declínio da PaCO2 pode causar
tontura, confusão mental e convulsões, mesmo na ausência de hipoxemia. Os
efeitos cardiovasculares da hipocapnia aguda no humano consciente costumam
ser mínimos; entretanto, no paciente anestesiado ou sob ventilação mecânica,
pode haver uma queda do débito cardíaco e da pressão arterial devido aos efeitos
depressores da anestesia e ventilação com pressão positiva sobre a frequência
cardíaca, a resistência sistêmica e o retorno venoso. Podem ocorrer arritmias
cardíacas em pacientes com cardiopatia, como resultado de alterações na
liberação de oxigênio pelo sangue em consequência de um desvio à esquerda da
curva de dissociação da hemoglobina-oxigênio (efeito de Bohr). A alcalose
respiratória aguda provoca deslocamentos intracelulares do Na+, K+ e PO42– e
reduz a [Ca2+] livre ao aumentar a fração ligada às proteínas. Em geral, a
hipopotassemia induzida por hipocapnia não é significativa.
A alcalose respiratória crônica é o distúrbio acidobásico mais comum em
pacientes criticamente enfermos e, quando grave, encerra um prognóstico
sombrio. Muitos distúrbios cardiopulmonares manifestam-se como alcalose
respiratória nos estágios iniciais a intermediários, e o achado de normocapnia e
hipoxemia em um paciente com hiperventilação pode indicar o início de
insuficiência respiratória rápida, exigindo avaliação para determinar se o
paciente está evoluindo para fadiga. A alcalose respiratória é comum durante a
ventilação mecânica.
A síndrome de hiperventilação pode ser incapacitante. As parestesias, a
dormência perioral, a dor ou a sensação de constrição torácica, a tontura, a
incapacidade de respirar adequadamente e, em raras ocasiões, a tetania podem
ser suficientemente estressantes para perpetuar o distúrbio. A gasometria arterial
revela alcalose respiratória aguda ou crônica, frequentemente com hipocapnia na
faixa de 15 a 30 mmHg, sem hipoxemia. As doenças ou lesões do SNC podem
produzir vários padrões de hiperventilação e níveis sustentados de PaCO2 de 20 a
30 mmHg. O hipertireoidismo, a sobrecarga calórica e o exercício físico
aumentam o metabolismo basal; entretanto, a ventilação aumenta de modo
proporcional, de maneira que a gasometria arterial não é alterada, e a alcalose
respiratória não se desenvolve. Os salicilatos constituem a causa mais comum de
alcalose respiratória induzida por fármacos, em consequência da estimulação
direta do quimiorreceptor bulbar (Cap. 449). As metilxantinas, a teofilina e a
aminofilina estimulam a ventilação e aumentam a resposta ventilatória ao CO2. A
progesterona aumenta a ventilação e diminui a PaCO2 arterial em até 5 a 10
mmHg. Por conseguinte, a alcalose respiratória crônica é uma característica
comum da gravidez. A alcalose respiratória também é proeminente na
insuficiência hepática, e sua gravidade correlaciona-se com o grau dessa
insuficiência. A alcalose respiratória muitas vezes é um achado inicial da sepse
por microrganismos Gram-negativos antes do início de febre, hipoxemia ou
hipotensão.
O diagnóstico de alcalose respiratória depende da determinação do pH
arterial e da PaCO2. A [K+] plasmática está frequentemente reduzida, enquanto a
[Cl–] está aumentada. Na fase aguda, a alcalose respiratória não está associada a
uma excreção renal aumentada de HCO3–; todavia, dentro de poucas horas, a
excreção final de ácido está reduzida. Em geral, a concentração de HCO3– cai em
2,0 mmol/L para cada redução de 10 mmHg da PaCO2. Se a hipocapnia persistir
por > 3 a 5 dias, significa que há alcalose respiratória crônica; e o declínio da
PaCO2 diminui a [HCO3−] sérica em 4 a 5 mmol/L para cada redução de 10 mmHg
na PaCO2. Não é comum observar uma concentração plasmática de HCO3– < 12
mmol/L em consequência de alcalose respiratória pura. Além disso, a redução
compensatória da concentração plasmática de HCO3– é tão efetiva na alcalose
respiratória crônica que o pH não declina de modo significativo em relação ao
valor normal. Nesse sentido, a alcalose respiratória crônica é o único distúrbio
acidobásico que pode trazer o pH de volta ao normal.
Quando se estabelece o diagnóstico de alcalose respiratória, deve-se
investigar sua causa. O diagnóstico da síndrome de hiperventilação é
estabelecido por exclusão. Nos casos difíceis, pode ser importante excluir outros
distúrbios, como embolia pulmonar, doença arterial coronariana e
hipertireoidismo.

TRATAMENTO
Alcalose respiratória
O tratamento da alcalose respiratória visa aliviar o distúrbio subjacente. Quando a alcalose respiratória
interfere no controle da ventilação mecânica, as alterações no espaço morto, no volume corrente e na
frequência podem minimizar a hipocapnia. Os pacientes com síndrome de hiperventilação podem se
beneficiar de tranquilização, respiração dentro de um saco de papel durante os episódios sintomáticos e
atenção para o estresse psicológico subjacente. Antidepressivos e sedativos não são recomendados. Os
bloqueadores β-adrenérgicos podem melhorar as manifestações periféricas do estado hiperadrenérgico.

LEITURAS ADICIONAIS
Berend K, et al: Physiological approach to assessment of acid-base disturbances.
N Engl J Med 371:1434, 2014.
DuBose TD: Disorders of acid-base balance. In Brenner and Rector’s The
Kidney, 10th ed. Skorecki K, et al. (eds). Philadelphia, Elsevier, 2016, pp.
511–558.
DuBose TD: Etiologic causes of metabolic acidosis I: The high anion gap
acidosis, In Metabolic Acidosis. Wesson DE (ed). New York, Springer,
2016, pp. 17–26.
DuBose TD: Etiologic causes of metabolic acidosis II: The normal anion gap
acidosis, In Metabolic Acidosis. Wesson DE (ed). New York, Springer,
2016, pp. 27–38.
Kurtz I, et al: Acid-base analysis: A critique of the Stewart and bicarbonate-
centered approaches. Am J Physiol Renal Physiol 294: F1009, 2008.
Palmer BF, Clegg DJ: Electrolyte and acid–base disturbances in patients with
diabetes mellitus. N Engl J Med 373:548, 2015.
1 N. de R.T. A ureia sérica é a forma comumente usada no Brasil, com valores normais de 15 a 45 mg/dL. A
literatura mundial geralmente descreve resultados sob a forma de nitrogênio ureico sanguíneo (BUN, blood
urea nitrogen), cujos valores normais correspondem a cerca da metade da ureia sérica (8 a 25 mg/dL).
Seção 8 Alterações cutâneas
52
Abordagem ao paciente com doença de
pele
Kim B. Yancey, Thomas J. Lawley

No exame da pele, o desafio reside em distinguir entre o normal e o anormal,


entre achados significativos e triviais, bem como em integrar sinais e sintomas
pertinentes em um diagnóstico diferencial apropriado. O fato de que o maior
órgão do corpo é visível traz ao médico vantagens e desvantagens. É vantajoso
porque não são necessários instrumentos especiais e porque a biópsia da pele
pode ser feita com pouca morbidade. No entanto, um observador casual pode ser
enganado por diversos estímulos ou desprezar sinais sutis, porém importantes, de
doença cutânea ou sistêmica. Por exemplo, às vezes pode ser difícil reconhecer
as diferenças mínimas de cor e forma que possibilitam distinguir um melanoma
maligno (Fig. 52-1) de um nevo melanocítico benigno (Fig. 52-2). Vários termos
descritivos foram desenvolvidos para caracterizar as lesões cutâneas (Tabs. 52-1
a 52-3; Fig. 52-3), ajudando em sua interpretação e na formulação de um
diagnóstico diferencial (Tabs. 52-4). Por exemplo, o achado de pápulas
descamativas (presentes em pacientes com psoríase ou dermatite atópica) coloca
o paciente em uma categoria diagnóstica diferente da de outro paciente com
pápulas hemorrágicas, que podem indicar vasculite ou sepse (Figs. 52-4 e 52-5,
respectivamente). Também é importante diferenciar as lesões de pele primárias
das secundárias. Se o médico se detiver em erosões lineares sobre uma área de
eritema e descamação, poderá supor erroneamente que a erosão é a lesão
primária, e que a vermelhidão e a descamação são secundárias, embora a
interpretação correta fosse que o paciente tem uma dermatite eczematosa
pruriginosa com erosões provocadas pelo ato de coçar.
FIGURA 52-1 Melanoma de disseminação superficial. É o tipo mais comum de melanoma. Em geral,
tais lesões demonstram assimetria, margens irregulares, variedade de cor (preto, azul, marrom, rosa e
branco), diâmetro > 6 mm e uma história de alterações (p. ex., aumento de tamanho ou desenvolvimento de
sintomas associados, como prurido ou dor).

FIGURA 52-2 Nevo melanocítico. Os nevos são proliferações benignas de células névicas caracterizados
por máculas ou pápulas hiperpigmentadas de forma regular e de cor uniforme.

TABELA 52-1 ■ Descrição das lesões cutâneas primárias


Mácula: Lesão plana com alteração da cor, de diâmetro < 2 cm, sem elevação acima da superfície da pele circundante. Uma efélide ou “sarda”
é o protótipo de uma mácula pigmentada.
Placa macular: Lesão plana grande (> 2 cm) com cor diferente da pele circundante. Difere da mácula apenas pelo tamanho.
Pápula: Lesão sólida pequena, de diâmetro < 0,5 cm, elevada acima da superfície da pele circundante e, portanto, palpável (p. ex., um
comedão fechado ou aberto na acne).
Nódulo: Lesão firme grande (0,5-5 cm) elevada acima da superfície da pele circundante. Difere de uma pápula apenas pelo tamanho (p. ex.,
um nevo melanocítico dérmico grande).
Tumor: Crescimento sólido e elevado, de diâmetro > 5 cm.
Placa: Lesão grande (> 1 cm) elevada, achatada; as margens podem ser nítidas (p. ex., na psoríase) ou se confundir gradualmente com a pele
circundante (p. ex., na dermatite eczematosa).
Vesícula: Lesão pequena cheia de líquido, com diâmetro < 0,5 cm, elevada acima do plano da pele circundante. O líquido em geral é visível e
as lesões são translúcidas (p. ex., vesículas na dermatite de contato alérgica causada por Toxicodendron [hera venenosa]).
Pústula: Uma vesícula cheia de leucócitos. Nota: A presença de pústulas não significa necessariamente a existência de uma infecção.
Bolha: Lesão elevada cheia de líquido, em geral translúcida, com diâmetro > 0,5 cm.
Lesão urticariforme: Pápula ou placa eritematosa e edematosa elevada, em geral representando vasodilatação e vasopermeabilidade de curta
duração.
Telangiectasia: Vaso sanguíneo superficial dilatado.

TABELA 52-2 ■ Descrição das lesões cutâneas secundárias


Liquenificação: Espessamento característico da pele, com acentuação intensa dos sulcos cutâneos.
Escama: Acúmulo excessivo de estrato córneo.
Crosta: Exsudato seco de líquidos corporais que pode ser amarelo (i.e., crosta serosa) ou vermelho (i.e., crosta hemorrágica).
Erosão: Perda da epiderme sem perda associada da derme.
Úlcera: Perda da epiderme e de pelo menos parte da derme subjacente.
Escoriação: Erosões angulares lineares que podem estar cobertas por crostas e são causadas pelo ato de coçar.
Atrofia: Perda adquirida de substância. Na pele, pode surgir como uma depressão com a epiderme intacta (i.e., perda de tecido dérmico ou
subcutâneo) ou em locais de lesões enrugadas, brilhantes, delicadas (i.e., atrofia epidérmica).
Cicatriz: Alteração da pele, secundária a traumatismo ou inflamação. Os locais podem ficar eritematosos e hipopigmentados ou
hiperpigmentados, dependendo da idade ou característica da lesão. Em áreas pilosas, podem se caracterizar por destruição dos folículos
pilosos.

TABELA 52-3 ■ Termos dermatológicos comuns


Alopécia: Perda parcial ou completa de pelos.
Anular: Em forma de anel.
Cisto: Lesão encapsulada elevada, mole, preenchida com conteúdo semissólido ou líquido.
Herpetiforme: Em configuração agrupada.
Erupção liquenoide: Lesões poligonais, violáceas a purpúricas, que lembram as observadas no líquen plano.
Milia: Pápulas brancas pequenas e firmes, cheias de ceratina.
Erupção morbiliforme: Pequenas máculas e/ou pápulas eritematosas generalizadas que lembram as lesões vistas no sarampo.
Numular: Em forma de moeda.
Poiquilodermia: Pele que exibe pigmentação variegada, atrofia e telangiectasias.
Lesões policíclicas: Configuração de lesões cutâneas formadas a partir de anéis coalescentes ou incompletos.
Prurido: Sensação que desencadeia a vontade de coçar. Em geral é o sintoma predominante das doenças cutâneas inflamatórias (p. ex.,
dermatite atópica, dermatite de contato alérgica); também é comumente associado à xerose e à pele envelhecida. Condições sistêmicas que
podem estar associadas ao prurido incluem doença renal crônica, colestase, gravidez, câncer, doença da tireoide, policitemia vera e delírio de
parasitose.
FIGURA 52-3 Representação esquemática de várias lesões cutâneas primárias comuns (ver Tab. 52-
1).
FIGURA 52-4 Vasculite necrosante. Pápulas purpúricas palpáveis nas pernas são observadas neste
paciente com vasculite cutânea de pequeno vaso. (Cortesia de Robert Swerlick, MD; com permissão.)
FIGURA 52-5 Meningococemia. Exemplo de meningococemia fulminante com manchas purpúricas
angulares extensas. (Cortesia de Stephen E. Gellis, MD; com permissão.)

TABELA 52-4 ■ Condições dermatológicas comuns selecionadas


Diagnóstico Distribuição comum Morfologia habitual

Acne vulgar Face, parte superior do dorso, tórax Comedões abertos e fechados, pápulas eritematosas, pústulas, cistos
Rosácea Rubor nas regiões malares, no nariz, na Eritema, telangiectasias, pápulas, pústulas
fronte e no queixo
Dermatite Couro cabeludo, sobrancelhas, áreas Eritema com descamação untuosa amarelo-acastanhada
seborreica perinasais
Dermatite Fossas antecubital e poplítea; pode ser Manchas e placas de eritema, descamação e liquenificação; prurido
atópica disseminada
Dermatite por Tornozelos, pernas sobre maléolo medial Manchas eritematosas e descamação sobre uma base hiperpigmentada
estase associada a sinais de insuficiência venosa
Eczema Palmas, plantas, face lateral dos dedos e Vesículas profundas
disidrótico artelhos
Dermatite de Qualquer localização Eritema localizado, vesículas, descamação e prurido (p. ex., dedos, lobos
contato alérgica das orelhas – níquel; região dorsal do pé – sapato; superfícies expostas –
hera venenosa)
Psoríase Cotovelos, joelhos, couro cabeludo, região Pápulas e placas cobertas com descamação prateada; unhas com
inferior do dorso, unhas das mãs (pode ser depressões
generalizada)
Líquen plano Punhos, tornozelos, boca (pode ser Pápulas e placas violáceas achatadas
disseminado)
Ceratose pilar Superfícies extensoras dos braços e coxas, Pápulas foliculares ceratóticas com eritema circundante
nádegas
Melasma Fronte, regiões malares, têmporas, lábio Manchas com tonalidades de castanho-claro ao marrom
superior
Vitiligo Periorificial, tronco, superfícies extensoras Máculas brancas
dos membros, área flexora dos punhos,
axilas
Áreas expostas ao sol
Ceratose Mácula ou pápula cor de pele ou vermelho-acastanhada com descamação
actínica seca, áspera e aderente
Carcinoma Face Pápula com bordas telangiectásicas peroladas na pele lesada pelo sol
basocelular
Carcinoma Face, especialmente lábio inferior, orelhas Lesões endurecidas e possivelmente hiperceratóticas, em geral
espinocelular mostrando ulceração e/ou crostas
Ceratose Tronco, face, extremidades Placas marrons com escama aderente, gordurosa; aspecto “pegajoso”
seborreica
Foliculite Qualquer área pilosa Pústulas foliculares
Impetigo Qualquer localização Pápulas, vesículas, pústulas, em geral com crostas cor de mel
Herpes simples Lábios, genitália Vesículas agrupadas que progridem para erosões crostosas
Herpes-zóster Em dermátomos, em geral no tronco, mas Vesículas limitadas a um dermátomo (frequentemente doloroso)
pode ocorrer em qualquer lugar
Varicela Face, tronco, poupa relativamente os As lesões surgem em grupos e progridem rapidamente de máculas
membros eritematosas para pápulas a vesículas até pústulas e crostas
Pitiríase rósea Tronco (padrão em árvore de Natal); placa Pápulas e placas eritematosas simétricas com um colarete de descamação
precursora seguida por múltiplas lesões
menores
Pitiríase Tórax, costas, abdome, parte proximal dos Máculas descamativas hiper ou hipopigmentadas
versicolor membros
Candidíase Regiões inguinais, pregas inframamárias, Áreas maceradas eritematosas com pústulas satélites; placas brancas
vagina, cavidade oral friáveis nas mucosas
Dermatofitoses Pés, regiões inguinais, barba ou couro Varia conforme o local (p. ex., tinea corporis – placa descamativa
cabeludo anular)
Escabiose Regiões inguinais, axilas, entre os dedos e Pápulas escoriadas, sulcos, prurido
artelhos, sob as mamas
Picadas de Qualquer localização Pápulas eritematosas com pontos centrais
insetos
Angioma rubi Tronco Pápulas vermelhas cheias de sangue
Queloide Qualquer localização (local de lesão prévia) Tumor firme, rosado, purpúrico ou marrom
Dermatofibroma Qualquer localização Nódulo firme e vermelho a marrom que apresenta uma depressão da pele
sobrejacente à compressão lateral
Acrocórdons Regiões inguinais, axila, pescoço Pápulas avermelhadas
(apêndices
cutâneos)
Urticária Qualquer localização Lesão urticariforme, às vezes com rubor circundante; prurido
Dermatose Tronco, especialmente a parte anterior do Pápulas eritematosas
acantolítica tórax
transitória
Xerose Extremidades extensoras, em especial as Placas descamativas eritematosas secas; prurido
pernas

ABORDAGEM AO PACIENTE
Distúrbio cutâneo
No exame da pele, em geral é aconselhável avaliar o paciente antes de se
obter uma anamnese detalhada. Assim, certamente toda a superfície cutânea
será avaliada, e os achados objetivos poderão ser integrados com dados
relevantes da anamnese. É preciso observar e considerar quatro
características básicas de qualquer lesão cutânea durante o exame físico: a
distribuição da erupção, o(s) tipo(s) de lesão primária e secundária, a forma
das lesões individuais e a conformação das lesões. Um exame cutâneo ideal
inclui a avaliação da pele, dos pelos e das unhas, bem como das mucosas da
boca, dos olhos, do nariz, da nasofaringe e da região anogenital. No exame
inicial, é importante despir o paciente o máximo possível, o que diminui as
chances de que lesões isoladas importantes não sejam vistas e permite avaliar
acuradamente a distribuição da erupção. Deve-se primeiro observar o
paciente de uma distância de cerca de 1,5 a 2 metros para poder avaliar o
aspecto geral da pele e a distribuição das lesões. De fato, a distribuição das
lesões costuma ter correlação estreita com o diagnóstico (Fig. 52-6). Por
exemplo, é mais provável que um paciente hospitalizado com um exantema
eritematoso generalizado tenha uma farmacodermia do que outro com
erupção semelhante, porém limitada às áreas da face expostas ao sol. Depois
de estabelecida a distribuição das lesões, é preciso determinar a natureza da
lesão primária. Assim, quando há lesões nos cotovelos, joelhos e couro
cabeludo, as causas mais prováveis, com base apenas na distribuição, são
psoríase ou dermatite herpetiforme (Figs. 52-7 e 52-8, respectivamente). A
lesão primária da psoríase é uma pápula descamativa que, após breve
intervalo, forma pápulas eritematosas recobertas por uma escama branca,
enquanto a da dermatite herpetiforme é uma pápula urticariforme que
rapidamente se transforma em uma pequena vesícula. Desse modo, a
identificação da lesão primária leva o médico ao diagnóstico correto.
Alterações secundárias da pele também podem ser bastante úteis. Por
exemplo, escamas representam excesso de epiderme, ao passo que crostas
são decorrentes da descontinuidade da camada de células epiteliais. A
palpação da pele pode fornecer informações sobre as características de uma
erupção. Por exemplo, pápulas vermelhas nos membros inferiores que
empalidecem à compressão podem ser manifestação de diferentes doenças,
mas pápulas vermelhas hemorrágicas que não empalidecem quando
pressionadas indicam púrpura palpável, típica de vasculite necrosante (Fig. 5
2-4).
FIGURA 52-6 Distribuição de algumas doenças e lesões dermatológicas comuns.
FIGURA 52-7 Psoríase. Doença cutânea papulodescamativa que se caracteriza por pápulas e placas
eritematosas pequenas e grandes com descamação prateada sobrejacente aderente.

FIGURA 52-8 Dermatite herpetiforme. Distúrbio que se caracteriza por papulovesículas pruriginosas
agrupadas nos cotovelos, joelhos, nádegas e na parte posterior do couro cabeludo. As vesículas em
geral ficam escoriadas devido ao prurido associado.

A forma das lesões é outra característica relevante. Pápulas e placas


planas, arredondadas e eritematosas são comuns em muitas doenças cutâneas.
Porém, lesões em forma de alvo que consistem em parte de placas
eritematosas são específicas de eritema multiforme (Fig. 52-9). Também
pode ser importante a disposição das lesões individuais. Pápulas eritematosas
e vesículas podem ocorrer em muitas condições, mas seu arranjo em certa
disposição linear sugere uma etiologia externa, como a dermatite de contato
alérgica (Fig. 52-10) ou a dermatite por irritante primário. Já as lesões com
distribuição generalizada são comuns e sugerem uma etiologia sistêmica.
FIGURA 52-9 Eritema multiforme. Erupção que se caracteriza por múltiplas placas eritematosas
com morfologia em alvo ou em íris. Em geral representa uma reação de hipersensibilidade a fármacos
(p. ex., sulfonamidas) ou a infecções (p. ex., HSV). (Cortesia de Yale Resident’s Slide Collection; com
permissão.)
FIGURA 52-10 Dermatite de contato alérgica (DCA). A. Exemplo de DCA em sua fase aguda, com
placas eczematosas úmidas bem demarcadas em distribuição perioral. B. DCA em sua fase crônica com
uma placa eritematosa, liquenificada e exsudativa na pele sob exposição crônica ao níquel de uma
fivela de metal. (B, cortesia de Robert Swerlick, MD; com permissão.)

Como em outros ramos da medicina, deve-se obter a anamnese


completa com ênfase nas seguintes características:

1. Evolução das lesões


a. Local de início
b. Modo de progressão ou de disseminação da erupção
c. Duração
d. Períodos de resolução ou melhora das erupções crônicas
2. Sintomas associados à erupção
a. Prurido, queimação, dor, dormência
b. Fatores que aliviam os sintomas, se existirem
c. Hora do dia em que os sintomas são mais intensos
3. Medicações em uso atual ou recente (com ou sem prescrição)
4. Sintomas sistêmicos associados (p. ex., mal-estar, febre, artralgias)
5. Doenças atuais ou pregressas
6. História de alergias
7. Presença de fotossensibilidade
8. Revisão de sistemas
9. Antecedentes familiares (de muita importância nos pacientes com
melanoma, atopia, psoríase ou acne)
10. Anamnese social, sexual ou histórico de viagens

TÉCNICAS DIAGNÓSTICAS
Muitas doenças da pele são diagnosticáveis pelo seu aspecto clínico
macroscópico, mas, às vezes, procedimentos diagnósticos relativamente simples
fornecem informações valiosas. Na maioria dos casos, eles podem ser feitos à
beira do leito, com equipamento mínimo.

Biópsia de pele A biópsia de pele consiste em uma pequena cirurgia. Porém, é


importante biópsiar uma lesão que tenha a máxima probabilidade de render
achados diagnósticos, decisão que exige conhecimento das doenças cutâneas e
reconhecimento das estruturas anatômicas superficiais de determinadas áreas do
corpo. Para tanto, anestesia-se uma pequena área de pele com lidocaína a 1%,
com ou sem epinefrina. Um fragmento da pele lesada pode ser obtido com
bisturi por excisão ou pela técnica de shaving1 ou pela biópsia com punch. No
último caso, pressiona-se o punch contra a superfície da pele, aplicando pressão
para baixo e girando até atingir o tecido subcutâneo. Em seguida, levanta-se o
fragmento circular com uma pinça e corta-se o fundo com tesoura do tipo íris. A
necessidade ou não de sutura no local da biópsia depende do tamanho e da
localização.
Preparação de KOH Utiliza-se a preparação com hidróxido de potássio (KOH)
em lesões descamativas quando se suspeita de etiologia fúngica. A borda da
lesão é delicadamente raspada com um bisturi de lâmina 15. A escama removida
é colocada em uma lâmina de microscopia e tratada com 1 ou 2 gotas de solução
de KOH a 10 a 20%. O KOH dissolve a ceratina e facilita a visualização de
elementos fúngicos. Um rápido aquecimento da lâmina acelera a dissolução da
ceratina. Ao examinar a preparação ao microscópio, é mais fácil ver as hifas
refringentes com baixa intensidade de luz e com o condensador rebaixado. Pode-
se usar essa técnica para identificar hifas nas dermatofitoses, pseudo-hifas e
brotamentos de leveduras nas infecções por Candida, bem como as formas de
leveduras semelhantes a “espaguete com almôndegas” na pitiríase versicolor.
Pode-se usar a mesma técnica de coleta na obtenção de escamas para cultura de
determinados patógenos.

Esfregaço de Tzanck É uma técnica citológica usada com mais frequência no


diagnóstico de infecções por herpes-vírus (herpes-vírus simples [HSV] ou vírus
varicela-zóster [VZV]) (ver Figs. 188-1 e 188-3). Retira-se o teto de uma
vesícula incipiente, não de uma pústula nem de lesão crostosa, e raspa-se
suavemente a base da lesão com uma lâmina de bisturi. Coloca-se o material
sobre uma lâmina de vidro, seca-se ao ar e cora-se pelo método de Giemsa ou
Wright. Células epiteliais gigantes multinucleadas sugerem a presença de HSV
ou VZV, mas é preciso identificar o vírus específico por meio de cultura ou
testes de microscopia com imunofluorescência ou genéticos.

Diascopia Técnica concebida para avaliar se uma lesão de pele empalidece à


compressão. Permite determinar, por exemplo, se uma lesão vermelha é
hemorrágica ou está apenas cheia de sangue. A urticária (Fig. 52-11), por
exemplo, empalidece quando pressionada, o que não ocorre com uma lesão
purpúrica causada por vasculite necrosante ((Fig.52-4). A diascopia é feita
pressionando-se uma lâmina de microscópio ou lente de aumento contra uma
lesão e observando-se o quanto ela empalidece. Os granulomas têm muitas vezes
um aspecto opaco a transparente, róseo-amarronzado de “geleia de maçã” à
diascopia.
FIGURA 52-11 Urticária. Pápulas e placas eritematosas, edematosas, distintas e confluentes são
características dessa erupção urticariforme.

Lâmpada de Wood Produz luz ultravioleta de 360 nm (ou “luz negra”), que
pode ser usada na avaliação de determinadas doenças cutâneas. Uma lâmpada de
Wood fará, por exemplo, o eritrasma (infecção intertriginosa superficial causada
por Corynebacterium minutissimum) adquirir uma cor vermelho-coral típica, e as
ulcerações colonizadas por Pseudomonas tornarem-se azul-claras. A tinea
capitis, causada por certos dermatófitos, como Microsporum canis ou M.
audouinii, apresenta fluorescência amarela. Lesões pigmentadas da epiderme,
como as sardas, acentuam-se, e os pigmentos dérmicos, como os da
hiperpigmentação pós-inflamatória, desaparecem sob a lâmpada de Wood. O
vitiligo (Fig. 52-12) fica totalmente branco sob a lâmpada de Wood, e muitas
vezes são reveladas áreas de cujo acometimento não se suspeitava anteriormente.
A lâmpada de Wood também pode ajudar na demonstração da pitiríase
versicolor, locais de despigmentação dentro e/ou ao redor de melanomas e no
reconhecimento das manchas em folha de freixo (ash leaf) de pacientes com
esclerose tuberosa.

FIGURA 52-12 Vitiligo. As lesões características exibem distribuição acral e despigmentação acentuada
como resultado da perda de melanócitos.

Testes de contato Foram criados para documentar hipersensibilidade a um


antígeno específico. São feitos colocando-se uma bateria de alergênios suspeitos
no dorso do paciente, sob curativos oclusivos, deixando-os em contato com a
pele durante 48 horas. Em seguida, retiram-se os curativos e examina-se a região
à procura de sinais de reações de hipersensibilidade tardia (p. ex., eritema,
edema ou papulovesículas). Esse teste é mais confiável quando feito por médicos
com treinamento específico em testes de contato, sendo muitas vezes útil na
avaliação de pacientes com dermatite crônica.

LEITURAS ADICIONAIS
Bolognia JL et al (eds): Dermatology, 4th ed. Philadelphia, Elsevier, 2018.
Goldsmith LA et al (eds): Fitzpatrick’s Dermatology in General Medicine, 8th
ed. New York, McGraw-Hill, 2012.
James WD: Andrews’ Diseases of the Skin: Clinical Dermatology, 12th ed.
Philadelphia, Elsevier, 2016.

1 N. de R.T. A técnica de shaving consiste na obtenção de um fragmento de pele pelo corte com bisturi
paralelamente ao nível da pele adjacente a uma lesão papular.
53
Eczema, psoríase, infecções cutâneas, acne e
outras doenças de pele comuns
Leslie P. Lawley, Calvin O. McCall, Thomas J. Lawley
ECZEMA E DERMATITE
Eczema é um tipo de dermatite, e esses termos são utilizados comumente como
sinônimos (p. ex., eczema atópico ou dermatite atópica [DA]). O eczema é um
padrão de reação que se evidencia por manifestações clínicas variáveis e pelo
achado histológico comum de espongiose (edema intercelular da epiderme). O
eczema é a expressão final comum de alguns distúrbios, inclusive os que estão
descritos nas seções subsequentes. As lesões primárias podem ser máculas
eritematosas, pápulas e vesículas que podem coalescer formando placas. No
eczema grave, pode haver a predominância de lesões secundárias por infecção
ou escoriação, caracterizadas por exsudação e formação de crostas. Nos
distúrbios eczematosos crônicos, a liquenificação (hipertrofia da pele e
acentuação dos sulcos cutâneos normais) pode alterar o aspecto característico do
eczema.

DERMATITE ATÓPICA
A DA é a expressão cutânea do estado atópico, que se caracteriza por história
familiar de asma, rinite alérgica ou eczema. A prevalência da DA tem aumentado
no mundo todo. A Tabela 53-1 relaciona algumas de suas manifestações
clínicas.
A etiologia da DA está apenas parcialmente definida, mas há uma
predisposição genética inequívoca. Quando os dois pais têm DA, > 80% dos
filhos apresentam manifestações da doença. Se apenas um dos pais for
acometido, a prevalência diminui para pouco mais de 50%. Um defeito
característico na DA que contribui para a fisiopatologia é um problema na
barreira epidérmica. Em muitos pacientes com DA, uma mutação no gene que
codifica a filagrina, uma proteína estrutural do estrato córneo, é responsável pela
doença. Os pacientes com DA podem apresentar várias anormalidades da
imunorregulação, como aumento na síntese da IgE, elevação dos níveis de IgE
sérica e alterações das reações de hipersensibilidade retardada.

TABELA 53-1 ■ Manifestações clínicas da dermatite atópica


1. Prurido e escoriação
2. Evolução marcada por exacerbações e remissões
3. Lesões típicas da dermatite eczematosa
4. História pessoal ou familiar de atopia (asma, rinite alérgica, alergias alimentares ou eczema)
5. Evolução clínica durando > 6 semanas
6. Liquenificação da pele
7. Presença de pele seca
Em geral, a apresentação clínica varia de acordo com a idade. Metade dos
pacientes com DA apresentam a doença no primeiro ano de vida, e 80%, até os 5
anos de idade. Por fim, cerca de 80% desenvolvem simultaneamente rinite
alérgica e asma. O padrão típico dos lactentes caracteriza-se por placas
inflamatórias exsudativas e placas crostosas na face, na região cervical e nas
superfícies extensoras. O padrão observado na infância e na adolescência
caracteriza-se por dermatite das dobras cutâneas, principalmente nas fossas
antecubitais e poplíteas (Fig. 53-1). A DA pode regredir espontaneamente, mas
cerca de 40% dos pacientes que apresentaram a doença na infância têm dermatite
também na idade adulta. A distribuição das lesões em adultos pode ser idêntica à
da forma infantil. No entanto, é comum que os adultos tenham doença
localizada, que se evidencia por eczema da mão ou líquen simples crônico (ver
adiante). Nos pacientes com doença localizada, pode-se suspeitar de DA com
base na história pessoal ou familiar típica ou na presença dos sinais cutâneos da
DA, como palidez perioral, uma dobra extra de pele sob a pálpebra inferior
(pregas de Dennie-Morgan), acentuação dos sulcos na pele palmar e aumento na
incidência de infecções cutâneas, principalmente por Staphylococcus aureus.
Independentemente das outras manifestações, o prurido é uma característica
proeminente da DA em todas as faixas etárias e é exacerbado pelo ressecamento
da pele. Muitas das anormalidades cutâneas detectadas nos pacientes
acometidos, como a liquenificação, são secundárias aos atos de esfregar e coçar.
FIGURA 53-1 Dermatite atópica. Hiperpigmentação, liquenificação e descamação das fossas antecubitais
desse paciente com dermatite atópica. (Cortesia de Robert Swerlick, MD; com permissão.)

TRATAMENTO
Dermatite atópica
O tratamento da DA deve consistir em evitar substâncias irritantes cutâneas, hidratação adequada com
aplicação de emolientes, uso criterioso de anti-inflamatórios tópicos e tratamento imediato das infecções
secundárias. Os pacientes devem ser orientados a não tomar mais que um banho por dia com água morna ou
fria e a utilizar apenas sabonetes suaves. Imediatamente depois do banho, com a pele ainda úmida, aplica-se
nas áreas de dermatite um anti-inflamatório tópico na forma de creme ou pomada; todas as outras áreas da
pele devem ser lubrificadas com hidratante. Cerca de 30 g de um agente tópico são suficientes para cobrir
toda a superfície corporal de um adulto médio.
Os glicocorticoides tópicos de potência baixa a média são utilizados na maioria dos regimes de
tratamento da DA. A atrofia da pele e a possibilidade de absorção sistêmica são preocupações constantes,
principalmente com os agentes mais potentes. Os glicocorticoides tópicos de baixa potência ou os anti-
inflamatórios não esteroides devem ser preferidos para a aplicação na face e nas áreas intertriginosas com o
objetivo de reduzir o risco de atrofia da pele. Há dois agentes anti-inflamatórios não glicocorticoides
disponíveis: tacrolimo em pomada e pimecrolimo em creme. Esses fármacos são macrolídeos
imunossupressores aprovados pela Food and Drug Administration (FDA) para uso tópico na DA. Há relatos
de eficácia mais ampla na literatura com o uso desses medicamentos. Esses agentes não causam atrofia
cutânea nem suprimem o eixo hipotalâmico-hipofisário-suprarrenal. Contudo, surgiram dúvidas quanto à
possibilidade de que esses fármacos causem linfomas nos pacientes tratados. Por essa razão, deve-se ter
cuidado quando se considera a sua utilização. Hoje, esses fármacos também são mais caros que os
glicocorticoides tópicos. Produtos para reparo da barreira, os quais tentam restaurar o problema na barreira
epidérmica, também são agentes não esteroides e têm ganhado popularidade no tratamento da DA.
A infecção secundária da pele eczematosa pode causar exacerbação da DA. As lesões crostosas e
exsudativas podem estar infectadas por S. aureus. Quando se suspeita de infecção secundária, as secreções
das lesões eczematosas devem ser cultivadas, e os pacientes tratados com antibióticos ativos contra o S.
aureus. A administração inicial das penicilinas resistentes à penicilinase ou das cefalosporinas é preferível.
A dicloxacilina ou a cefalexina (250 mg, 4×/dia, durante 7-10 dias) geralmente é adequada para os adultos;
entretanto a escolha do antibiótico deve ser orientada pelos resultados da cultura e pela resposta clínica.
Mais de 50% das cepas de S. aureus isoladas hoje são resistentes à meticilina em algumas comunidades. As
recomendações atuais para o tratamento das infecções causadas pelo S. aureus resistente à meticilina
adquirido na comunidade (MRSA-AC) nos adultos incluem sulfametoxazol-trimetoprima (1 comprimido de
dose dupla, 2×/dia), minociclina (100 mg, 2×/dia), doxiciclina (100 mg, 2×/dia) ou clindamicina (300-450
mg, 4×/dia). A duração do tratamento deve ser de 7 a 10 dias. A resistência induzida pode limitar a utilidade
da clindamicina. Esse tipo de resistência pode ser detectado pelo teste de difusão em disco duplo, que
deverá ser solicitado se a cepa isolada for resistente à eritromicina e sensível à clindamicina. Como medidas
coadjuvantes, podem ser realizadas lavagens com soluções antibacterianas ou hipoclorito de sódio diluído
(0,005%) e aplicação nasal intermitente de mupirocina.
O controle do prurido é essencial ao tratamento, pois a DA frequentemente é “uma coceira que produz
erupção”. Os anti-histamínicos são mais comumente usados para controle do prurido. Difenidramina (25
mg, a cada 4-6 horas), hidroxizina (10-25 mg, a cada 6 horas) ou doxepina (10-25 mg ao deitar) são úteis
principalmente por sua ação sedativa. Alguns pacientes podem necessitar de doses mais altas desses
fármacos, mas a sedação pode causar problemas. Os pacientes devem ser orientados quanto a dirigir ou
operar máquinas pesadas depois de utilizarem esses fármacos. Quando usados ao deitar, os anti-
histamínicos sedativos podem melhorar o sono do paciente. Embora sejam efetivos na urticária, os anti-
histamínicos não sedativos e os bloqueadores H2 seletivos são pouco eficazes na atenuação do prurido da
DA.
O tratamento com glicocorticoides sistêmicos deve ser restrito às exacerbações graves que não tenham
respondido ao tratamento tópico. No paciente com DA crônica, o tratamento com glicocorticoides
sistêmicos geralmente limpa a pele, mas por pouco tempo, porque a interrupção do tratamento sempre é
seguida de recidiva ou até agravamento da dermatite. Nos pacientes refratários aos tratamentos
convencionais, deve-se avaliar a realização dos testes de contato para excluir dermatite de contato alérgica
(DCA). O papel dos alergênios dietéticos na DA é controvertido e existem poucas evidências de que eles
sejam importantes, exceto na infância, quando uma porcentagem pequena dos pacientes com DA pode ser
afetada pelos alergênios alimentares.

LÍQUEN SIMPLES CRÔNICO


O líquen simples crônico pode representar o estágio final de vários distúrbios
pruriginosos e eczematosos, inclusive da DA. Essa lesão consiste em placa(s)
circunscrita(s) de pele liquenificada em consequência da esfregação ou
escarificação repetidas. As áreas comumente afetadas são a região posterior do
pescoço, o dorso do pé e os tornozelos. O tratamento do líquen simples crônico
consiste em quebrar o ciclo de prurido e esfregação crônicos. Os glicocorticoides
de alta potência são úteis na maioria casos, mas pode ser necessário aplicar
glicocorticoides tópicos sob curativo oclusivo ou injeção intralesional de
glicocorticoides nos casos refratários.

DERMATITE DE CONTATO
A dermatite de contato é um processo inflamatório cutâneo causado por um ou
mais agentes exógenos, que lesam direta ou indiretamente a pele. Na dermatite
de contato por irritante (DCI), essa lesão é causada por uma característica
inerente ao composto – por exemplo, um ácido ou base concentrados. Os agentes
que causam DCA induzem a uma resposta imune específica ao antígeno (p. ex.,
dermatite causada pela hera venenosa). De acordo com a persistência da ação
lesiva, as lesões clínicas da dermatite de contato podem ser agudas (úmidas e
edematosas) ou crônicas (secas, espessadas e descamativas) (ver Cap. 52, Fig. 5
2-10).

Dermatite de contato por irritante (DCI) A DCI geralmente é bem demarcada


e localiza-se em áreas de pele fina (pálpebras, áreas intertriginosas) ou nas
regiões nas quais a substância irritante estava coberta. As lesões podem variar de
eritema mínimo da pele, até áreas de edema acentuado, vesículas e úlceras. Não
há necessidade de exposição prévia ao agente agressor, e a reação se desenvolve
em minutos ou poucas horas. A forma leve da dermatite por irritante crônica é o
tipo mais comum de DCI e a região mais acometida é a das mãos (ver adiante).
As substâncias irritantes mais comuns são encontradas nas condições de trabalho
que envolvem umidade e uso constante de sabões e detergentes. O tratamento
deve ter como objetivo evitar os irritantes e usar luvas ou roupas de proteção.

Dermatite de contato alérgica (DCA) A DCA é uma manifestação de


hipersensibilidade tardia mediada por linfócitos T de memória na pele. Há
necessidade de exposição prévia ao agente agressor para o desenvolvimento da
reação de hipersensibilidade, que pode demorar entre 12 e 72 horas para se
desenvolver. A causa mais comum de DCA é a exposição às plantas,
principalmente aos membros da família das anacardiáceas, inclusive o gênero
Toxicodendron. A hera venenosa, o carvalho e o sumagre venenosos pertencem a
esse gênero e causam uma reação alérgica caracterizada por eritema, formação
de vesículas e prurido intenso. A erupção geralmente é linear ou angular e
corresponde às áreas da pele tocadas pelas plantas. O antígeno sensibilizante
comum a essas plantas é o urushiol, uma resina oleosa que contém o ingrediente
ativo pentadecilcatecol. Essa resina oleosa pode aderir à pele, às roupas, às
ferramentas e aos animais de estimação, e os objetos contaminados podem
causar dermatite, mesmo depois de longo tempo de armazenamento. O líquido
das bolhas não contém urushiol, nem é capaz de induzir a erupções cutâneas nos
indivíduos expostos.

TRATAMENTO
Dermatite de contato
Se houver suspeita de dermatite de contato e um agente responsável for identificado e removido, a erupção
regredirá. De modo geral, o tratamento com glicocorticoides de alta potência é suficiente para aliviar os
sintomas enquanto a dermatite segue seu curso. Nos pacientes que necessitam de tratamento sistêmico, a
prednisona oral na dose diária inicial de 1 mg/kg (geralmente ≤ 60 mg/dia) é suficiente. A dose deve ser
reduzida progressivamente ao longo de 2 a 3 semanas, e todas as doses devem ser administradas pela manhã
junto com a primeira refeição.
A identificação de um alérgeno de contato pode ser difícil e demorada. A dermatite de contato alérgica
deve ser suspeitada em pacientes com dermatite que não respondem à terapia convencional ou com um
padrão de distribuição incomum. Os indivíduos acometidos devem ser cuidadosamente inquiridos sobre
exposição ocupacional e uso de fármacos tópicos. Os agentes sensibilizantes comuns são conservantes de
preparações tópicas, sulfato de níquel, dicromato de potássio, timerosal, sulfato de neomicina, perfumes,
formaldeído e agentes usados para purificar a borracha. O teste de contato é útil à identificação desses
agentes, mas não deve ser realizado nos pacientes com dermatite ativa disseminada ou em uso de
glicocorticoides sistêmicos.

ECZEMA DAS MÃOS


Esse eczema é uma doença cutânea crônica muito comum, na qual os fatores
exógenos e endógenos podem desempenhar funções importantes. Ele pode estar
associado a outras doenças cutâneas, como a DA, e pode haver contato com
várias substâncias. O eczema das mãos representa uma porcentagem expressiva
das doenças cutâneas ocupacionais. A exposição crônica e excessiva à água e aos
detergentes, às substâncias químicas irritantes ou aos alergênios pode
desencadear ou agravar essa doença. O eczema pode evidenciar-se por
ressecamento e fissuras na pele das mãos, bem como por graus variáveis de
eritema e edema. A dermatite muitas vezes começa sob os anéis, onde a água e
os irritantes ficam retidos. Uma variante da dermatite das mãos, o eczema
disidrótico, caracteriza-se por múltiplas pápulas e vesículas pequenas e
intensamente pruriginosas, que surgem nas eminências tênares e hipotênares,
assim como nas faces laterais dos dedos (Fig. 53-2). As lesões tendem a ocorrer
em grupos que lentamente formam crostas e depois regridem.
FIGURA 53-2 Eczema disidrótico. Este exemplo caracteriza-se por vesículas profundas e descamação das
palmas e das superfícies laterais dos dedos; essa doença geralmente está associada à diátese atópica.

A avaliação do paciente com eczema das mãos deve incluir uma pesquisa
de possíveis exposições ocupacionais. A história deve ser orientada para a
identificação de possíveis exposições a agentes alergênicos ou substâncias
irritantes.

TRATAMENTO
Eczema das mãos
O tratamento do eczema das mãos tem como objetivos evitar o contato com substâncias irritantes,
identificar os possíveis alérgenos de contato, tratar a infecção coexistente e aplicar glicocorticoides tópicos.
Sempre que possível, as mãos devem ser protegidas com luvas, de preferência de vinil. O uso de luvas de
borracha (látex) para proteger a pele com dermatite está algumas vezes associado com o desenvolvimento
de reações de hipersensibilidade aos componentes das luvas, o que poderia ser uma reação de
hipersensibilidade tipo I ao látex manifestada pelo desenvolvimento de urticária, prurido, angioedema e,
possivelmente, anafilaxia dentro de minutos a horas após a exposição, ou uma reação de hipersensibilidade
tipo IV a aceleradores da borracha com piora das erupções eczematosas dias após a exposição. Os pacientes
podem ser tratados com compressas úmidas frias seguidas da aplicação de glicocorticoides tópicos de
potência média a alta na forma de creme ou pomada. Assim como ocorre com a DA, o tratamento das
infecções secundárias é essencial ao controle apropriado da doença. Além disso, os pacientes com eczema
das mãos devem ser examinados para dermatofitose por meio da preparação em hidróxido de potássio
(KOH) e cultura (ver adiante).

ECZEMA NUMULAR
O eczema numular caracteriza-se por lesões circulares ou ovais em forma de
moeda, que começam como pequenas pápulas edematosas que se tornam
crostosas e escamosas. A etiologia do eczema numular é desconhecida, mas a
pele seca contribui para seu desenvolvimento. As localizações comuns são o
tronco e as superfícies extensoras dos membros, principalmente nas regiões pré-
tibiais e no dorso das mãos. O eczema numular é mais frequente nos homens e
mais comum na meia-idade. O tratamento do eczema numular é semelhante ao
da DA.

ECZEMA ASTEATÓTICO
Também conhecido como eczema xerótico ou “prurido do inverno”, o eczema
asteatótico é uma dermatite moderadamente inflamatória que ocorre nas áreas de
pele extremamente secas, sobretudo durante os meses secos do inverno.
Clinicamente, pode haver considerável sobreposição com o eczema numular.
Esse tipo de eczema é responsável por muitas consultas médicas motivadas pelo
prurido associado. Nos casos típicos, surgem pequenas fissuras e escamas, com
ou sem eritema, nas áreas de pele seca, principalmente nas superfícies anteriores
dos membros inferiores dos pacientes idosos. O eczema asteatótico responde
bem aos hidratantes tópicos e à eliminação dos irritantes cutâneos. O excesso de
banhos e o uso de sabões irritantes pioram o eczema asteatótico.

DERMATITE E ULCERAÇÃO ASSOCIADAS À ESTASE


A dermatite de estase desenvolve-se nos membros inferiores e é secundária à
insuficiência venosa e ao edema crônico. Os pacientes podem referir história de
trombose venosa profunda, mostrar evidências de que foram extraídas algumas
veias ou apresentar veias varicosas. As primeiras alterações causadas pela
dermatite de estase são eritema leve e descamação com prurido. O local inicial
típico é a superfície medial do tornozelo, muitas vezes sobre uma veia distendida
(Fig. 53-3).
FIGURA 53-3 Dermatite de estase. Esse é um exemplo de dermatite de estase com placas exsudativas,
eritematosas e descamativas na região inferior da perna. Várias úlceras de estase também são observadas
neste paciente.

A dermatite de estase pode apresentar inflamação aguda com formação de


crostas e exsudato. Nesses casos, pode-se confundi-la facilmente com celulite. É
importante observar que o envolvimento bilateral simétrico se deve mais
provavelmente à dermatite de estase, enquanto o envolvimento unilateral pode
representar celulite. A dermatite de estase crônica está comumente associada à
fibrose da derme, que se evidencia clinicamente por edema duro da pele. À
medida que o distúrbio progride, a dermatite torna-se cada vez mais pigmentada
em razão do extravasamento crônico dos eritrócitos, que resulta na deposição de
hemossiderina. Infecção secundária e dermatite de contato são complicações da
dermatite de estase. A dermatite de estase grave pode preceder o surgimento das
úlceras de estase.

TRATAMENTO
Dermatite e ulceração associadas à estase
Os pacientes com dermatite e ulceração associadas à estase melhoram muito com a elevação da perna e o
uso rotineiro de meias elásticas com gradiente de pelo menos 30 a 40 mmHg. As meias que oferecem
menos compressão, como as meias contra embolia, são menos eficazes. O uso de emolientes e/ou
glicocorticoides de potência média, bem como a exclusão de substâncias irritantes, também são medidas
úteis ao tratamento da dermatite de estase. A proteção da perna contra lesões (incluindo as provocadas pelo
ato de coçar) e o controle do edema crônico são essenciais para evitar úlceras. Os diuréticos podem ser
necessários para controlar adequadamente o edema crônico.
As úlceras de estase são difíceis de tratar, e sua resolução é lenta. É essencial elevar o membro afetado
o máximo possível. A úlcera deve ser mantida sem material necrótico por desbridamento suave e deve ser
coberta com um curativo semipermeável e um curativo compressivo ou uma meia de compressão. Os
glicocorticoides não devem ser aplicados nas úlceras, porque podem retardar a cicatrização; contudo podem
ser utilizados na pele circundante para atenuar o prurido, a escoriação e o traumatismo subsequente. As
lesões com infecção secundária devem ser tratadas adequadamente com antibióticos orais, mas é importante
ressaltar que todas as úlceras são colonizadas por bactérias e que a antibioticoterapia não deve visar à
eliminação de toda a proliferação bacteriana. É necessário ter o cuidado de excluir outras causas tratáveis de
úlceras de perna (estados de hipercoagulabilidade, vasculite) antes de iniciar o tratamento prolongado
supradescrito.

DERMATITE SEBORREICA
A dermatite seborreica é uma doença crônica comum e caracteriza-se por
descamação gordurosa sobre manchas ou placas eritematosas. A induração e a
descamação geralmente são menos proeminentes que na psoríase, mas há
superposição clínica dessas doenças – daí o termo “sebopsoríase”. A localização
mais frequente é o couro cabeludo, onde pode ser identificada como caspa
intensa. Na face, a dermatite seborreica afeta os supercílios, as pálpebras, a
glabela e os sulcos nasolabiais (Fig. 53-4). A descamação do canal auditivo
externo é comum na dermatite seborreica. Além disso, a região retroauricular
muitas vezes fica macerada e dolorida. A dermatite seborreica também pode
ocorrer no centro do tórax, na axila, nas regiões inguinais, nas dobras
inframamárias e no sulco interglúteo. Em casos raros, pode causar dermatite
generalizada difusa; o prurido é variável.
FIGURA 53-4 Dermatite seborreica. Esse paciente tinha eritema facial central com descamações
amareladas e gordurosas. (Cortesia de Jean Bolognia, MD; com permissão.)

A dermatite seborreica pode estar presente nas primeiras semanas de vida e,


nesses casos, geralmente afeta o couro cabeludo (“crosta láctea”), a face ou as
regiões inguinais. Essa dermatite raramente é encontrada depois da fase de
lactente, mas reaparece na adolescência e na vida adulta. Embora seja comum
nos pacientes com doença de Parkinson, acidentes vasculares cerebrais e
infecção pelo HIV, a grande maioria dos indivíduos com dermatite seborreica
não tem patologia subjacente.
TRATAMENTO
Dermatite seborreica
O tratamento com glicocorticoides tópicos de baixa potência combinados com um agente antifúngico tópico
(p. ex., creme de cetoconazol ou ciclopirox) geralmente é eficaz. As regiões do couro cabeludo e da barba
podem melhorar com o uso de xampus anticaspa, que devem permanecer por 3 a 5 minutos antes de
enxaguar. As soluções tópicas de glicocorticoides de alta potência (betametasona ou clobetasol) são eficazes
no controle das lesões graves do couro cabeludo. Os glicocorticoides de alta potência não devem ser usados
na face, porque estão frequentemente associados à rosácea ou à atrofia induzida pelos corticoides.
DISTÚRBIOS PAPULOESCAMOSOS (TAB. 53-2)
PSORÍASE
A psoríase é uma das doenças dermatológicas mais comuns e afeta até 2% da
população mundial. Clinicamente, essa doença imunomediada caracteriza-se por
pápulas eritematosas bem demarcadas e placas arredondadas cobertas por
escamas prateadas semelhantes à mica. As lesões cutâneas da psoríase
apresentam graus variados de prurido. As áreas traumatizadas frequentemente
desenvolvem lesões de psoríase (fenômeno de Koebner ou isomórfico). Além
disso, outros fatores externos podem exacerbar a psoríase, inclusive infecções,
estresse e fármacos (lítio, betabloqueadores e antimaláricos).

TABELA 53-2 ■ Distúrbios papuloescamosos


Manifestações clínicas Outras manifestações Aspecto
importantes histológico

Psoríase Placas eritematosas bem demarcadas com descamação semelhante à Pode ser agravada por Acantose,
mica; acomete preferencialmente cotovelos, joelhos e couro cabeludo; alguns fármacos e proliferação
as formas atípicas podem localizar-se nas áreas intertriginosas; as infecções; as formas vascular
formas eruptivas podem estar associadas à infecção graves estão associadas
ao HIV
Líquen plano Pápulas poligonais purpúreas extremamente pruriginosas; estrias Alguns fármacos podem Dermatite da
brancas entrelaçadas, principalmente quando associadas às lesões das desencadear: tiazídicos, interface
mucosas antimaláricos
Pitiríase rósea A erupção geralmente é precedida por uma placa prenunciadora; placas O prurido é variável; Os achados
ovais ou redondas com descamação nas bordas; mais comum no tronco; autolimitada, regride em histopatológicos
a erupção reveste as dobras cutâneas, conferindo aspecto semelhante a 2-8 semanas; pode ser geralmente são
um pinheiro; geralmente preserva as palmas e plantas semelhante à sífilis inespecíficos
secundária
Dermatofitoses Aspecto polimórfico, dependendo do dermatófito, da área afetada e da A preparação com KOH Hifas e
resposta do hospedeiro; placas descamativas bem demarcadas ou pouco pode demonstrar hifas neutrófilos no
demarcadas, com ou sem inflamação; pode causar queda dos pelos ramificadas; a cultura é estrato córneo
(cabelos) útil
Siglas: HIV, vírus da imunodeficiência humana; KOH, hidróxido de potássio.

A forma mais comum da doença é a psoríase em placas. Os pacientes


acometidos apresentam placas estáveis que aumentam lentamente e podem
permanecer inalteradas durante longos períodos. A psoríase é mais frequente nos
cotovelos, joelhos, sulco interglúteo e couro cabeludo. O acometimento tende a
ser simétrico. A psoríase em placas geralmente se desenvolve lentamente e tem
evolução insidiosa, mas raramente regride espontaneamente. A psoríase
invertida acomete as regiões intertriginosas, como a axila, as regiões inguinais e
inframamárias e o umbigo e também tende a afetar o couro cabeludo, as palmas
e as plantas. As lesões individuais são placas bem demarcadas (ver Cap. 52, Fig.
52-7), mas elas podem ser úmidas e sem escamas devido a sua localização.
A psoríase gutata (psoríase eruptiva) é mais comum nas crianças e nos
adultos jovens. A doença começa repentinamente nos indivíduos sem psoríase ou
nos portadores de psoríase em placas crônica. Os pacientes apresentam várias
pequenas pápulas eritematosas e descamativas, frequentemente depois de
infecções do trato respiratório superior por estreptococos β-hemolíticos. O
diagnóstico diferencial deve incluir a pitiríase rósea e a sífilis secundária.
Na psoríase pustular, os pacientes podem ter doença localizada nas palmas
e nas plantas ou generalizada. Independentemente da extensão da doença, a pele
mostra-se eritematosa com pústulas e descamação variável. Como se localiza nas
palmas e plantas, esse tipo de psoríase é facilmente confundido com eczema.
Quando é generalizada, os episódios caracterizam-se por febre (39-40°C) ao
longo de vários dias e erupção simultânea de pústulas estéreis em uma base de
eritema intenso; alguns pacientes podem desenvolver eritrodermia. Os episódios
de febre e formação das pústulas são recidivantes. Irritantes locais, gravidez,
fármacos, infecções e interrupção do tratamento com glicocorticoides sistêmicos
podem desencadear esse tipo de psoríase. Os retinoides orais são as opções
preferíveis para o tratamento dos pacientes, com exceção das gestantes.
O acometimento das unhas dos dedos das mãos com depressões
puntiformes, onicólise, espessamento das unhas ou hiperceratose subungueal
pode ser um indício do diagnóstico de psoríase quando as manifestações clínicas
não são clássicas.
De acordo com a National Psoriasis Foundation, até 30% dos pacientes com
psoríase desenvolvem artrite psoriásica (APs). Essa doença acomete
principalmente as pessoas entre 30 e 50 anos de idade. Existem cinco subtipos de
APs: simétrica, assimétrica, distal, espondilite e artrite mutilante. Cerca de 50%
dos casos de APs são classificados como simétricos, podendo se assemelhar à
artrite reumatoide. A artrite assimétrica é responsável por cerca de 35% dos
casos. Ela pode acometer qualquer articulação e pode evidenciar-se por “dedos
de salsicha”. A APs distal é a forma clássica; porém, ela ocorre em apenas cerca
de 5% dos pacientes com APs. Ela pode envolver os dedos dos pés e das mãos;
as unhas dos pés e das mãos costumam apresentar distrofia, incluindo depressões
puntiformes. A espondilite também ocorre em cerca de 5% dos pacientes com
APs. A artrite mutilante é grave e deformante, afetando primariamente as
pequenas articulações das mãos e pés. Ela é responsável por menos de 5% dos
casos de APs.
Nos pacientes com psoríase foi demonstrado um risco aumentado de
síndrome metabólica, incluindo maior morbidade e mortalidade por eventos
cardiovasculares. Devem ser realizados os exames de rastreamento adequados. A
etiologia da psoríase ainda não está bem esclarecida, mas há um componente
genético inequívoco. Em vários estudos, de 30 a 50% dos pacientes com psoríase
têm história familiar positiva. As lesões psoriásicas contêm infiltrados de
linfócitos T ativados que parecem produzir as citocinas responsáveis pela
proliferação exagerada dos ceratinócitos e causam as manifestações típicas da
doença. Os fármacos inibidores da ativação dos linfócitos T, da expansão clonal
ou da liberação de citocinas pró-inflamatórias geralmente são eficazes no
tratamento da psoríase grave (ver adiante).

TRATAMENTO
Psoríase
O tratamento da psoríase depende do tipo, da localização e da extensão da doença. Todos os pacientes
devem ser orientados a evitar ressecamento excessivo ou irritação da pele e a manter hidratação cutânea
adequada. A maioria dos pacientes com psoríase em placas localizadas pode ser tratada com
glicocorticoides tópicos de potência média, embora o uso prolongado desses fármacos comumente esteja
associado à perda de eficácia (taquifilaxia) e à atrofia da pele. Um análogo tópico da vitamina D
(calcipotrieno) e um retinoide (tazaroteno) também são eficazes no tratamento da psoríase limitada e
praticamente substituíram os agentes tópicos, como o alcatrão, o ácido salicílico e a antralina.
A luz ultravioleta (UV) natural ou artificial é um tratamento eficaz para muitos pacientes com psoríase
disseminada. A luz ultravioleta B (UVB), a luz UVB de faixa estreita e a luz ultravioleta A (UVA) com
psoralenos orais ou tópicos (PUVA) são usadas clinicamente. Acredita-se que as propriedades
imunossupressivas da luz UV sejam responsáveis por sua atividade terapêutica na psoríase. Ela também é
mutagênica, potencialmente levando a uma incidência aumentada de câncer de pele do tipo melanoma e não
melanoma. O tratamento com luz UV é contraindicado nos pacientes que receberam ciclosporina, devendo
ser usado com muito cuidado em todos os pacientes imunocomprometidos devido ao risco aumentado de
câncer de pele.
Vários fármacos sistêmicos podem ser usados para tratar a psoríase disseminada grave (Tab. 53-3). Os
glicocorticoides orais não devem ser usados para tratar psoríase, pois podem desencadear psoríase pustular
potencialmente fatal quando o tratamento é interrompido. O metotrexato é eficaz, principalmente nos
pacientes com APs. O retinoide sintético acitretina é útil, especialmente quando é necessário evitar
imunossupressão; contudo a teratogenicidade limita sua utilidade. O apremilaste é um agente oral novo que
inibe a fosfodiesterase tipo 4. Ele está aprovado para uso em psoríase e artrite psoriásica e deve ser usado
com cautela na presença de insuficiência renal ou depressão.

TABELA 53-3 ■ Tratamento sistêmico da psoríase aprovado pela FDA


Administração
Agente Classe do Via Frequência Efeitos adversos (selecionados)
medicamento

Metotrexato Antimetabólito Oral Semanala Hepatotoxicidade, toxicidade pulmonar, pancitopenia, aumento potencial da
incidência de câncer, estomatite ulcerativa, náusea, diarreia, teratogenicidade
Acitretina Retinoide Oral Diária
Teratogenicidade, hepatotoxicidade, hiperostose, hiperlipidemia/pancreatite,
depressão, efeitos oftalmológicos, pseudotumor cerebral
Ciclosporina Inibidor da Oral Duas vezes Disfunção renal, hipertensão, hiperpotassemia, hiperuricemia,
calcineurina ao dia hipomagnesemia, hiperlipidemia, aumento do risco de câncer
Apremilaste Inibidores da Oral Duas vezes Reação de hipersensibilidade, depressão, náuseas, diarreia, vômitos,
fosfodiesterase ao diab dispepsia, perda ponderal, cefaleia, fadiga
tipo 4
Sigla: FDA, Food and Drug Administration.
aHá necessidade de dose inicial de teste. bHá necessidade de escalonamento de dose.

As evidências de que a psoríase seja uma doença mediada pelos linfócitos T dirigiram os esforços
terapêuticos à imunorregulação. A ciclosporina e outros agentes imunossupressores podem ser muito
eficazes no tratamento da psoríase e, hoje, há grande interesse em desenvolver agentes biológicos com
propriedades imunossupressoras mais seletivas e melhor perfil de segurança (Tab. 53-4). A experiência com
alguns desses fármacos biológicos é limitada, e as informações quanto ao tratamento combinado bem como
aos efeitos adversos continuam a surgir. Esses agentes biológicos parecem ser muito efetivos no tratamento
da psoríase e são bem tolerados; porém, deve-se ter cautela com determinadas comorbidades dos pacientes.
A utilização dos inibidores do fator de necrose tumoral α (TNF-α) pode agravar a insuficiência cardíaca
congestiva (ICC), e esses fármacos devem ser utilizados com cautela nos pacientes sob risco de desenvolver
essa complicação ou nos que já têm ICC. Além disso, nenhum dos agentes imunossupressores utilizados no
tratamento da psoríase deve ser iniciado caso o paciente tenha uma infecção grave (incluindo TB, HIV,
hepatites B ou C); os pacientes tratados com esses fármacos devem fazer rastreamento rotineiro para
tuberculose. Existem relatos de leucoencefalopatia multifocal progressiva e lúpus eritematoso associados ao
tratamento com inibidores do TNF-α. As neoplasias malignas, inclusive o risco ou a história de
determinados tipos de câncer, podem limitar a utilização desses fármacos sistêmicos. Em geral, os agentes
imunossupressivos também foram ligados a um risco aumentado de câncer de pele, os pacientes que
recebem esses agentes devem ser monitorados quanto ao desenvolvimento de câncer de pele.

TABELA 53-4 ■ Agentes biológicos aprovados pela Food and Drug Administration (FDA) para psoríase ou
artrite psoriásica
Administração
Agente Mecanismo Indicação Via Frequência Alertas (selecionados)
de ação

Etanercepte Anti-TNF-α Ps, APs SC 1 ou 2 Infecções graves, hepatotoxicidade, ICC, complicações


vezes/semanaa hematológicas, reações de hipersensibilidade, efeitos adversos
neurológicos, possível aumento da incidência de neoplasias
malignas
Adalimumabe Anti-TNF-α Ps, APs SC A cada 2 Infecções graves, hepatotoxicidade, ICC, complicações
semanasa hematológicas, reações de hipersensibilidade, efeitos adversos
neurológicos, possível aumento da incidência de neoplasias
malignas
Infliximabe Anti-TNF-α Ps, APs IV A cada 8 Infecções graves, hepatotoxicidade, ICC, complicações
semanasa hematológicas, reações de hipersensibilidade, efeitos adversos
neurológicos, possível aumento da incidência de neoplasias
malignas
Golimumabe Anti-TNF-α APs SC A cada 4 ou 8 Infecções graves, hepatotoxicidade, ICC, reações de
semanas hipersensibilidade, efeitos adversos neurológicos, possível
aumento da incidência de neoplasias malignas
Ustequinumabe Anti-IL-12 Ps, APs SC A cada 12 Infecções graves, efeitos adversos neurológicos, possível
e anti-IL-23 semanasa aumento da incidência de neoplasias malignas
Certolizumabe Anti-TNF-α APs SC A cada 2 ou 4 Infecções graves, hepatotoxicidade, ICC, complicações
pegol semanasa hematológicas, reações de hipersensibilidade, efeitos adversos
neurológicos, possível aumento da incidência de neoplasias
malignas, hepatotoxicidade
Secuquinumabe Anti-IL-17 Ps, APs SC A cada 4 Infecções graves, reação de hipersensibilidade, doença
semanasa inflamatória intestinal
Ixequizumabe Anti-IL-17 Ps SC A cada 4 Infecções graves, reação de hipersensibilidade, doença
semanasa inflamatória intestinal
aHá necessidade de modificações na dose inicial.

Siglas: APs, artrite psoriásica; ICC, insuficiência cardíaca congestiva; IL, inteleucina; IV, intravenosa; Ps, psoríase; SC, subcutânea; TNF-α,
fator de necrose tumoral α.

LÍQUEN PLANO
O líquen plano (LP) é uma doença papuloescamosa que pode afetar a pele, o
couro cabeludo, as unhas e as mucosas. As lesões cutâneas primárias são pápulas
pruriginosas, poligonais, violáceas e planas. O exame acurado da superfície
dessas pápulas frequentemente revela uma rede de linhas cinzentas (estrias de
Wickham). As lesões cutâneas podem ocorrer em qualquer lugar, mas têm
predileção pelos punhos, regiões tibiais anteriores, região lombar e genitália (Fig
. 53-5). O envolvimento do couro cabeludo (líquen planopapilar) pode causar
alopécia cicatricial, enquanto o acometimento das unhas pode provocar
deformidade permanente ou perda das unhas dos dedos das mãos e pés. O LP
frequentemente acomete as mucosas, sobretudo a oral, em que pode ser
evidenciado por um espectro que varia da erupção reticulada esbranquiçada leve
da mucosa até uma estomatite erosiva grave. A estomatite erosiva pode persistir
por vários anos e pode estar relacionada com o aumento do risco de desenvolver
carcinoma espinocelular oral. Clinicamente, foram observadas erupções cutâneas
semelhantes ao LP depois da administração de diversos fármacos, como
diuréticos tiazídicos, ouro, antimaláricos, penicilamina e fenotiazinas, bem como
nos pacientes com lesões cutâneas da doença do enxerto contra o hospedeiro.
Além disso, o LP pode estar associado à infecção pelo vírus da hepatite C. Sua
evolução é variável, mas a maioria dos pacientes entra em remissão dentro de 6
meses a 2 anos depois do início da doença. Os glicocorticoides tópicos formam a
base da terapia.
FIGURA 53-5 Líquen plano. Este é um exemplo de líquen plano com várias placas e pápulas violáceas
achatadas. A distrofia ungueal, como a observada na unha do polegar deste paciente, também pode fazer
parte do quadro clínico do líquen plano. (Cortesia de Robert Swerlick, MD; com permissão.)

PITIRÍASE RÓSEA
A pitiríase rósea (PR) é uma erupção papuloescamosa de etiologia desconhecida,
mais comum na primavera e no outono. Sua primeira manifestação é o
surgimento de uma lesão anular que mede entre 2 e 6 cm (medalhão inicial).
Depois de alguns dias ou semanas, surgem várias lesões menores, anulares ou
papulares com predileção pelo tronco (Fig. 53-6). As lesões são geralmente
ovais, e seu maior eixo é paralelo às linhas da pele. Sua cor varia do vermelho ao
castanho, e as lesões apresentam descamação que segue a progressão da borda.
Clinicamente, a PR tem muitas semelhanças com a sífilis secundária, mas as
lesões das palmas e das plantas são extremamente raras na PR e comuns na
sífilis secundária. A erupção tende a ser moderadamente pruriginosa e persiste
por 3 a 8 semanas. O tratamento visa aliviar o prurido e consiste em anti-
histamínicos orais, glicocorticoides tópicos de potência média e, em alguns
casos, fototerapia com UVB.
FIGURA 53-6 Pitiríase rósea. Neste paciente com pitiríase rósea, múltiplas manchas eritematosas
redondas ou ovais com fina descamação central estão distribuídas ao longo das linhas de tensão da pele no
tronco.
INFECÇÕES CUTÂNEAS (TAB. 53-5)
IMPETIGO, ECTIMA E FURUNCULOSE
O impetigo é uma infecção bacteriana superficial comum causada mais
frequentemente pelo S. aureus (Cap. 142) e, em alguns casos, pelo estreptococo
β-hemolítico do grupo A (Cap. 143). A lesão primária é uma pústula superficial
que se rompe formando uma crosta típica castanho-amarelada da cor de mel (ver
Cap. 143, Fig. 143-3). As lesões podem ocorrer na pele normal (infecção
primária) ou nas áreas previamente afetadas por outra doença cutânea (infecção
secundária). As lesões causadas por estafilococos podem ser bolhas tensas e
claras, e essa apresentação menos comum da doença é conhecida como impetigo
bolhoso. As bolhas são causadas pela liberação de uma toxina esfoliativa pelo S.
aureus do fago tipo II. Essa é a mesma toxina responsável pela síndrome da pele
escaldada estafilocócica (SPEE), que geralmente provoca a perda extensiva da
epiderme superficial depois da formação das bolhas. A SPEE é muito mais
comum nas crianças que nos adultos; contudo essa síndrome deve ser
considerada, bem como a necrólise epidérmica tóxica e farmacodermias graves,
nos pacientes com a formação de bolhas cutâneas generalizadas. O ectima é uma
variante profunda e não bolhosa do impetigo que causa lesões ulcerativas em
saca-bocado. Ela é mais comumente causada por uma infecção primária ou
secundária por Streptococcus pyogenes. O ectima é uma infecção mais profunda
do que o impetigo típico e forma cicatriz após a resolução. O tratamento do
ectima e do impetigo consiste no desbridamento suave das crostas aderentes,
facilitado pelo uso de banhos e antibióticos tópicos, junto com os antibióticos
orais adequados.

TABELA 53-5 ■ Infecções cutâneas comuns


Manifestações clínicas Agente Tratamento
etiológico
Impetigo Pápulas, placas ou bolhas com crostas cor de mel Streptococcus do Antibióticos
grupo A e antiestafilocócicos e
Staphylococcus antiestreptocócicos
aureus tópicos ou sistêmicos
Dermatofitoses Placas descamativas anulares inflamatórias ou não inflamatórias; Trichophyton, Azóis tópicos;
pode causar queda dos pelos; acometimento das regiões inguinais Epidermophyton griseofulvina, terbinafina
com preservação do escroto; hifas na preparação com KOH ou Microsporum ou azóis sistêmicos
spp.
Candidíase Pápulas e placas inflamatórias com pústulas satélites, frequentemente Candida albicans Nistatina ou azóis
nas regiões intertriginosas; pode envolver o escroto; pseudo-hifas na e outras espécies tópicos; imidazóis
preparação com KOH do gênero sistêmicos nos casos
Candida resistentes
Malassezia furfur
Pitiríase Placas descamativas hiperpigmentadas ou hipopigmentadas no Loção de sulfeto de
versicolor tronco; mistura característica de hifas e esporos (“espaguete com selênio ou azóis tópicos
almôndegas”) na preparação com KOH
Sigla: KOH, hidróxido de potássio.

A furunculose também é causada pelo S. aureus, e esse distúrbio adquiriu


maior importância na última década com o surgimento do MRSA-AC. O
furúnculo é um nódulo eritematoso doloroso que pode se desenvolver em
qualquer superfície cutânea. As lesões podem ser solitárias, mas são múltiplas na
maioria dos casos. Os pacientes frequentemente acreditam que foram picados
por aranhas ou insetos. Os familiares ou contatos próximos também podem ser
afetados. Os furúnculos podem romper e drenar espontaneamente, ou necessitar
de incisão e drenagem, que podem ser suficientes como tratamento das lesões
solitárias pequenas sem celulite ou manifestações sistêmicas. Sempre que for
possível, o material obtido da lesão deverá ser enviado para cultura. As
recomendações atuais para as infecções sensíveis à meticilina são os antibióticos
β-lactâmicos. O tratamento do MRSA-AC está descrito previamente (ver
“Dermatite atópica”). Compressas quentes e mupirocina nasal também são úteis.
As infecções graves devem ser tratadas com antibióticos IV.

ERISIPELA E CELULITE
Ver Capítulo 124.

DERMATOFITOSES
Os dermatófitos são fungos que infectam a pele, os pelos e as unhas e incluem
membros dos gêneros Trichophyton, Microsporum e Epidermophyton (Cap. 214
). A tinea corporis, ou infecção da pele relativamente sem pelos (pele glabra),
pode ter aspecto variável de acordo com a intensidade da reação inflamatória
associada. A infecção típica consiste em placas eritematosas escamosas com
aspecto anular, o que explica o nome comum de ringworm (micose). Nódulos
inflamatórios profundos ou granulomas ocorrem em algumas infecções –
principalmente nas lesões tratadas erroneamente com glicocorticoides tópicos de
média ou alta potência. O envolvimento das regiões inguinais (tinea cruris) é
mais comum nos homens que nas mulheres. Ele se apresenta como uma erupção
eritematosa e descamativa que poupa o escroto. A infecção do pé (tinea pedis) é
a dermatofitose mais comum e geralmente é crônica; a doença caracteriza-se por
graus variados de eritema, edema, descamação, prurido e, às vezes, formação de
vesículas. O acometimento pode ser localizado ou difuso, mas geralmente atinge
o espaço interdigital entre o quarto e o quinto dedos do pé. A infecção das unhas
(tinea unguium ou onicomicose) ocorre em muitos pacientes com tinea pedis e
caracteriza-se por unhas opacas e espessadas e detritos subungueais. A variante
distal-lateral é a mais comum. A onicomicose subungueal proximal pode ser um
marcador da infecção pelo HIV ou de outros estados de imunossupressão. A
dermatofitose do couro cabeludo (tinea capitis) ainda é comum, principalmente
entre crianças de áreas urbanas pobres, mas ocorre também nos adultos. O
agente etiológico predominante é o Trichophyton tonsurans, que pode causar
uma lesão relativamente não inflamatória com pouca descamação e alopécia
difusa ou localizada. O T. tonsurans e o Microsporum canis também podem
causar uma dermatose marcadamente inflamatória com edema e nódulos. Essa
última apresentação é um quérion.
O diagnóstico da tinea pode ser realizado a partir de escamas obtidas pela
raspagem da pele, das unhas ou dos pelos, por meio de cultura ou do exame
direto com KOH. Os fragmentos de unha podem ser enviados para exame
histológico com coloração pelo ácido periódico de Schiff (PAS).

TRATAMENTO
Dermatofitoses
Pode-se usar terapias tópicas e sistêmicas nas infecções por dermatófitos. O tratamento depende do local
envolvido e do tipo de infecção. O tratamento tópico geralmente é eficaz para os casos simples de tinea
corporis, tinea cruris e tinea pedis limitada. Os agentes tópicos não são efetivos como monoterapia para a
tinea capitis ou onicomicose (ver adiante), e a nistatina não é ativa contra dermatófitos. Os agentes tópicos
geralmente são aplicados 2 vezes ao dia, e o tratamento deve continuar até 1 semana depois da cura clínica
da infecção. A tinea pedis frequentemente exige tratamento mais longo, e as recidivas são comuns. Podem
ser necessários antifúngicos orais para o tratamento dos casos refratários de tinea pedis ou corporis.
As dermatofitoses dos pelos e das unhas ou as que não respondem ao tratamento tópico costumam ser
tratadas com agentes antifúngicos orais. A tinea capitis com inflamação intensa pode levar à formação de
cicatriz e perda de cabelos, e um agente antifúngico sistêmico mais glicocorticoides sistêmicos ou tópicos
podem ajudar a evitar essas sequelas. Antes de se prescreverem antifúngicos orais para qualquer infecção,
deve-se confirmar a etiologia fúngica por exame microscópico direto ou cultura. Todos os agentes orais
podem causar hepatotoxicidade. Eles não devem ser usados em mulheres gestantes ou lactantes.
A griseofulvina está aprovada nos Estados Unidos para tratar as dermatofitoses da pele, dos pelos ou
das unhas. Alguns efeitos colaterais comuns da griseofulvina são desconforto gastrintestinal, cefaleia e
urticária.
Dois antifúngicos orais mais recentes, itraconazol e terbinafina, são algumas vezes prescritos “sem
aprovação formal” para infecções fúngicas superficiais. O itraconazol oral está aprovado para
onicomicoses. O itraconazol pode produzir interações medicamentosas graves com outros fármacos
metabolizados pelo sistema enzimático P450. O itraconazol não deve ser administrado a pacientes com
evidências de disfunção ventricular ou a pacientes com ICC conhecida.
A terbinafina também está aprovada para a onicomicose, e a versão granulada está aprovada para
tratamento da tinea capitis. A terbinafina causa menos interações medicamentosas que o itraconazol, mas
deve-se ter cuidado com pacientes que utilizam vários fármacos ao mesmo tempo. A relação risco/benefício
deve ser considerada quando uma infecção assintomática de uma unha do pé é tratada com agentes
sistêmicos.
A FDA limitou o uso de um terceiro agente oral devido ao potencial para hepatotoxicidade e publicou
o seguinte: “O cetoconazol em comprimidos orais não deve ser um tratamento de primeira linha para
nenhuma infecção fúngica.” A forma tópica do cetoconazol não é afetada por essa ação.

PITIRÍASE (TINEA) VERSICOLOR


A ptiríase versicolor é causada por um fungo dimórfico não dermatófito,
Malassezia furfur, que é habitante normal da pele. O calor e a umidade
favorecem a manifestação da infecção. As lesões típicas consistem em máculas
descamativas ovoides, pápulas e placas localizadas principalmente no tórax, nos
ombros e no dorso. O acometimento da face e das partes distais dos membros é
raro. Nos indivíduos de pele escura, as lesões frequentemente se evidenciam por
áreas hipopigmentadas, enquanto, nos pacientes de pele clara, as lesões são
ligeiramente eritematosas ou hiperpigmentadas. A preparação com KOH das
descamações obtidas das lesões mostra uma combinação de hifas curtas e
esporos redondos (“espaguete com almôndegas”). As loções ou xampus que
contêm enxofre, ácido salicílico ou sulfeto de selênio são os tratamentos de
escolha e atenuam a infecção se forem usados diariamente por 1 a 2 semanas e,
em seguida, 1 vez por semana. Essas preparações causam irritação se forem
deixadas na pele por > 10 minutos; desse modo, devem ser removidas
completamente com água. O tratamento com alguns agentes antifúngicos orais
também é eficaz, mas esses fármacos não produzem resultados duradouros nem
foram aprovados pela FDA para essa indicação.

CANDIDÍASE
Candidíase é uma infecção fúngica causada por um grupo relacionado de
leveduras, cujas manifestações clínicas podem ficar limitadas a pele e mucosas
ou, mais raramente, são sistêmicas e potencialmente fatais (Cap. 211). O agente
causador costuma ser a Candida albicans. Esses microrganismos são saprófitos
normais do trato gastrintestinal, mas podem proliferar excessivamente
(geralmente devido ao tratamento com antibióticos de amplo espectro, diabetes
melito ou imunossupressão) e causar doença. A candidíase é muito comum nos
indivíduos infectados pelo HIV (Cap. 197). A cavidade oral é acometida
frequentemente. Podem surgir lesões na língua ou na mucosa bucal (sapinho)
com aspecto de placas brancas. Lesões fissuradas e maceradas no canto da boca
(queilite angular ou perlèche) são comuns nos indivíduos que usam dentaduras
mal adaptadas e também podem estar associadas à infecção por Candida. Além
disso, a candidíase tem mais afinidade pelas áreas continuamente úmidas e
maceradas, inclusive a pele ao redor das unhas (onicólise e paroníquia) e as áreas
intertriginosas. As lesões intertriginosas são edematosas, eritematosas e
descamativas com “pústulas satélites” disseminadas. Nos homens, é frequente o
acometimento do pênis e da bolsa escrotal, assim como das superfícies internas
das coxas. Ao contrário das dermatofitoses, as infecções por Candida
frequentemente são dolorosas e acompanhadas de intensa resposta inflamatória.
O diagnóstico de infecção por Candida baseia-se nos achados clínicos e na
identificação de leveduras na preparação com KOH ou pela cultura.

TRATAMENTO
Candidíase
O tratamento consiste em eliminar os fatores predisponentes como antibioticoterapia ou umidade crônica e
usar antifúngicos tópicos ou sistêmicos. Os fármacos tópicos eficazes incluem nistatina e os derivados
imidazólicos (miconazol, clotrimazol, econazol ou cetoconazol). A resposta inflamatória associada à
infecção da pele glabra por Candida pode ser tratada com um glicocorticoide de baixa potência em forma de
loção ou creme (hidrocortisona a 2,5%). O tratamento sistêmico é geralmente reservado aos pacientes
imunossuprimidos ou indivíduos com doença crônica ou recorrente que não respondem ao tratamento
tópico apropriado. O fluconazol oral é o agente mais comumente prescrito para a candidíase cutânea. A
nistatina oral somente é eficaz para tratamento da candidíase do trato gastrintestinal.

VERRUGAS
As verrugas são tumorações cutâneas causadas por papilomavírus. Já foram
descritos mais de 100 tipos de papilomavírus humano (HPV). A verruga vulgar
(verruca vulgaris) é séssil, convexa e geralmente tem cerca de 1 cm de diâmetro.
Sua superfície é hiperceratótica e formada por várias pequenas projeções
filamentosas. O HPV também causa verrugas plantares, verrugas planas (verruca
plana) e verrugas filiformes. As verrugas plantares são endofíticas e recobertas
por ceratina espessa. Com o corte da verruga, aparece um núcleo central de
restos ceratinizados e pequenos sangramentos puntiformes. As verrugas
filiformes são mais comuns na face, na região cervical e nas dobras cutâneas e
caracterizam-se por lesões papilomatosas de base estreita. As verrugas planas
são um pouco elevadas e têm superfície aveludada e não verrucosa. Esse tipo
tem predileção pela face, braços e pernas, e comumente é disseminado pela
depilação.
As verrugas genitais começam como pequenos papilomas que podem
crescer e formar grandes lesões fungiformes. Nas mulheres, podem acometer os
lábios, o períneo e a pele perianal. Além disso, as mucosas da vagina, da uretra e
do ânus podem ser afetadas, assim como o epitélio cervical. Nos homens, as
lesões frequentemente começam no sulco coronal, mas também ocorrem no
corpo do pênis, na bolsa escrotal, na pele perianal ou na uretra.
Existem evidências significativas sugerindo que o HPV desempenhe um
papel importante no desenvolvimento das neoplasias do colo uterino e da pele
anogenital (Cap. 85). Os HPV tipos 16 e 18 têm sido os mais estudados e são os
principais fatores de risco para neoplasia intraepitelial e carcinomas
espinocelulares do colo uterino, do ânus, da vulva e do pênis. O risco é maior
nos pacientes imunossuprimidos depois de transplantes de órgãos sólidos e nos
indivíduos infectados pelo HIV. Evidências recentes também implicaram outros
tipos de HPV. O exame histológico de amostras de biópsias dos locais afetados
pode revelar alterações associadas às verrugas típicas e/ou anormalidades
características do carcinoma intraepidérmico (doença de Bowen). Os carcinomas
espinocelulares associados às infecções por HPV também foram detectados na
pele extragenital (Cap. 72), mais comumente em pacientes imunossuprimidos
depois de transplantes de órgãos. Os pacientes mantidos em imunossupressão
crônica devem ser monitorados quanto à ocorrência de carcinoma espinocelular
e outras neoplasias malignas da pele.

TRATAMENTO
Verrugas
Com exceção das verrugas anogenitais, o tratamento das verrugas deve ser planejado levando-se em
consideração que, nos indivíduos normais, a maioria dessas lesões regride espontaneamente dentro de 1 a 2
anos. Há várias modalidades de tratamento para as verrugas, mas nenhum tratamento específico é eficaz em
todos os casos. Os fatores que influenciam a escolha do tratamento são a localização da verruga, a extensão
da doença, a idade e o estado imunológico do paciente, bem como suas preferências quanto ao tratamento.
A crioterapia com nitrogênio líquido talvez seja o método mais útil e conveniente para o tratamento das
verrugas em praticamente qualquer localização. Igualmente eficaz nas verrugas não genitais, mas exigindo
muito mais cooperação do paciente, é o uso de agentes ceratolíticos, tal como ácido salicílico na forma de
adesivos ou soluções. Para as verrugas genitais, a aplicação de solução de podofilina em consultório é
moderadamente eficaz, mas pode causar reações locais intensas. Existem preparações diluídas e purificadas
de podofilina, de uso exclusivo com prescrição médica, para aplicação domiciliar. O imiquimode tópico, um
indutor potente da liberação local das citocinas, também foi aprovado para tratar verrugas genitais. Também
está disponível um novo agente tópico composto de extratos de chá verde (sinecatequinas). A cirurgia,
convencional ou a laser pode ser necessária para as verrugas recalcitrantes. A recidiva das verrugas parece
ser frequente depois de qualquer um desses tratamentos. A FDA aprovou uma vacina altamente eficaz
contra determinados tipos de HPV e há relatos de que a sua utilização reduza a incidência dos carcinomas
anogenitais e cervicais.

HERPES SIMPLES
Ver Capítulo 187.

HERPES-ZÓSTER
Ver Capítulo 188.
ACNE
ACNE VULGAR
A acne vulgar é uma doença autolimitada que acomete principalmente
adolescentes e adultos jovens, embora 10 a 20% dos adultos continuem a
apresentar alguma forma da doença. O fator que permite a expressão da doença
na adolescência é o aumento na produção de sebo pelas glândulas sebáceas
depois da puberdade. Pequenos cistos conhecidos como comedões formam-se
nos folículos pilosos em consequência do bloqueio do óstio folicular pela
retenção de material ceratinoso e de sebo. A atividade de bactérias
(Proprionibacterium acnes) dentro dos comedões libera ácidos graxos livres do
sebo, causa inflamação dentro do cisto e leva à ruptura de sua parede. Uma
reação inflamatória do tipo corpo estranho desenvolve-se em consequência da
eliminação dos restos gordurosos e ceratinosos pelo cisto.
O sinal clínico típico da acne vulgar é o comedão, que pode ser fechado
(pontos brancos) ou aberto (pontos negros). Os comedões fechados são
pequenas pápulas brancas granulares de 1 a 2 mm, mais bem visíveis quando a
pele é esticada. Esses comedões são os precursores das lesões inflamatórias da
acne vulgar. O conteúdo dos comedões fechados é difícil de se espremer. Os
comedões abertos, que raramente produzem lesões inflamatórias, têm óstios
foliculares grandes e dilatados e estão cheios de restos oleosos, oxidados e
escurecidos, fáceis de serem espremidos. Os comedões são geralmente
acompanhados de lesões inflamatórias: pápulas, pústulas ou nódulos.
As primeiras lesões observadas na adolescência geralmente são comedões
com pouca ou nenhuma inflamação na fronte. Em seguida, surgem lesões
inflamatórias mais típicas nas regiões malares, no nariz e no queixo (Fig. 53-7).
A localização mais comum da acne é a face, mas é comum o envolvimento do
tórax e dorso. Na maioria dos casos, a doença é leve e não deixa cicatrizes.
Alguns pacientes têm grandes nódulos e cistos inflamatórios, que podem drenar
e formar cicatrizes significativas. Independentemente da gravidade, a acne pode
afetar a qualidade de vida dos pacientes. Com o tratamento adequado, esse efeito
pode ser transitório. Nos casos de acne cicatricial grave, os efeitos podem ser
irreversíveis e profundos. A intervenção terapêutica precoce é fundamental nos
casos graves.
FIGURA 53-7 Acne vulgar. Esse é um exemplo de acne vulgar com pápulas inflamatórias, pústulas e
comedões. (Cortesia de Kalman Watsky, MD; com permissão.)

Fatores exógenos e endógenos alteram a expressão da acne vulgar. Atrito e


traumatismo (faixas na cabeça ou correias dos capacetes de atletismo), aplicação
tópica de preparações comedogênicas (cosméticos ou preparações capilares) e
exposição tópica crônica a certos compostos industriais podem provocar ou
agravar a acne. Os glicocorticoides tópicos ou sistêmicos também podem
produzir acne. Outros fármacos sistêmicos, como pílulas anticoncepcionais, lítio,
isoniazida, esteroides androgênios, halogênios, fenitoína e fenobarbital, também
podem desencadear erupções acneiformes ou piorar a acne preexistente. Fatores
genéticos e síndrome dos ovários policísticos também podem predispor à
doença.

TRATAMENTO
Acne vulgar
O tratamento da acne vulgar visa a eliminar os comedões por meio da normalização da ceratinização
folicular, da diminuição da atividade das glândulas sebáceas, da população de P. acnes e da inflamação. A
acne leve ou moderada com pouca inflamação pode melhorar apenas com tratamento local. Embora as áreas
afetadas pela acne devam ser mantidas limpas, a esfregação excessivamente vigorosa pode agravar a acne
devido à ruptura mecânica dos comedões. Os fármacos tópicos, como o ácido retinoico, o peróxido de
benzoíla ou o ácido salicílico, podem alterar o padrão de descamação da pele, impedindo a formação de
comedões e ajudando na resolução de cistos preexistentes. Os antibacterianos tópicos (como o ácido
azelaico, a eritromicina, a clindamicina ou a dapsona) são úteis como coadjuvantes do tratamento. Os
produtos à base de peróxido de benzoíla devem ser usados em combinação com antibióticos tópicos
(ertitromicina e clindamicina) para evitar o desenvolvimento de resistência bacteriana.
Os pacientes com acne moderada a grave com componente inflamatório acentuado melhoram com o
acréscimo de tratamentos sistêmicos, como tetraciclina em doses de 250 a 500 mg (2×/dia) ou doxiciclina
na dose de 100 mg (2×/dia). A minociclina também é útil. Além do seu efeito antibacteriano, esses
antibióticos parecem ter propriedades anti-inflamatórias independentes. Se o paciente não demonstrar
resposta apropriada dentro de 3 meses, deve-se considerar mudanças de plano. As mulheres que não
respondem à antibioticoterapia oral podem melhorar com o tratamento hormonal. Hoje, existem vários
contraceptivos orais aprovados pela FDA para tratar acne vulgar.
Os pacientes com acne nodulocística grave refratária aos tratamentos citados anteriormente podem se
beneficiar com o uso da isotretinoína, um retinoide sintético. A dose desse fármaco depende do peso do
paciente e é administrada 1 vez ao dia, durante 5 meses. Os resultados são excelentes nos pacientes
selecionados adequadamente. Sua utilização é estritamente regulada devido ao risco de efeitos colaterais
graves, principalmente de teratogenicidade e depressão. Além disso, alguns pacientes tratados com esse
fármaco desenvolvem extremo ressecamento da pele e queilite e devem ser acompanhados porque podem
desenvolver hipertrigliceridemia.
Hoje, os médicos que prescrevem esse fármaco devem estar inscritos em um programa destinado a
evitar gravidez e efeitos adversos durante o tratamento dos seus pacientes. Essas medidas visam garantir
que todos os profissionais que a prescrevem conheçam os riscos da isotretinoína; que todas as pacientes
tenham dois testes de gravidez negativos antes de começar o tratamento e mais um teste negativo antes de
receber cada renovação da prescrição; e que todos os pacientes saibam dos riscos da isotretinoína.

ROSÁCEA
A acne rosácea1 (conhecida comumente como rosácea) é uma doença
inflamatória que afeta principalmente a região central da face. Os pacientes mais
comumente afetados são brancos descendentes do norte europeu, embora a
doença também ocorra nos indivíduos com peles mais pigmentadas. A rosácea é
vista quase exclusivamente nos adultos, sendo rara em pacientes com idade < 30
anos. Essa doença é mais comum nas mulheres, mas os casos mais graves
ocorrem nos homens. As lesões caracterizam-se por eritema, telangiectasias e
pústulas superficiais (Fig. 53-8), mas não está ligada à presença de comedões. A
rosácea raramente afeta o tórax ou o dorso.
FIGURA 53-8 Acne rosácea. Esta paciente com acne rosácea tinha eritema facial proeminente,
telangiectasia, pápulas dispersas e pústulas pequenas. (Cortesia de Robert Swerlick, MD; com permissão).

Há uma relação entre a tendência ao rubor facial acentuado e o surgimento


subsequente de rosácea. É comum que os pacientes com rosácea inicialmente
demonstrem uma pronunciada reação de rubor. Isso pode ocorrer em resposta ao
calor, estímulos emocionais, álcool, bebidas quentes ou alimentos picantes. Com
a evolução da doença, o rubor persiste por períodos cada vez mais longos e, por
fim, pode tornar-se permanente. Podem surgir pápulas, pústulas e telangiectasias
superpostas a esse rubor persistente. A rosácea de longa duração pode causar
proliferação excessiva do tecido conectivo, principalmente do nariz (rinofima).
Essa doença também pode ser complicada por várias doenças inflamatórias
oculares, como ceratite, blefarite, irite e calázio recorrente. Essas complicações
oculares podem comprometer a visão e justificam o acompanhamento
oftalmológico.

TRATAMENTO
Rosácea
O tratamento da rosácea pode ser tópico ou sistêmico. A doença leve costuma responder ao metronidazol
tópico, sulfacetamida sódica, ácido azelaico, ivermectina tópica ou brimonidina tópica. As formas mais
graves devem ser tratadas com tetraciclinas orais: tetraciclina (250-500 mg, 2×/dia), doxiciclina (100 mg,
2×/dia) ou minociclina (50-100 mg, 2×/dia). As telangiectasias residuais podem melhorar com o tratamento
a laser. Os glicocorticoides tópicos devem ser evitados, principalmente os agentes potentes, porque seu uso
crônico pode causar rosácea. O tratamento tópico da pele não é eficaz para o acometimento ocular da
doença.
DOENÇAS CUTÂNEAS E VACINAÇÃO CONTRA A VARÍOLA
Embora a vacinação contra varíola tenha sido suspensa há várias décadas para a
população em geral, ela ainda é necessária para determinados militares e equipes
de emergência. Na ausência de um ataque bioterrorista e uma exposição real ou
potencial à varíola, tal vacinação está contraindicada em pessoas com história de
doenças cutâneas, como DA, eczema e psoríase, as quais têm maior incidência
de efeitos adversos associados à vacinação contra varíola. Nos casos de
exposição, o risco de infecção pela varíola é maior que o risco de ocorrerem
efeitos adversos da vacina (ver Cap. C2).

LEITURAS ADICIONAIS
Bolognia JL, Jorizzo JL, Schaffer JV (eds): Dermatology, 3rd ed. Philadelphia,
Saunders, 2012.
Goldsmith LA et al (eds): Fitzpatrick’s Dermatology in General Medicine, 8th
ed. New York, McGraw-Hill, 2012.
James WD, Berger TG, Elston DM (eds): Andrew’s Diseases of the Skin Clinical
Dermatology, 12th ed. Philadelphia, Elsevier, 2016.
Wolff K, Johnson RA, Saavedra AP (eds): Fitzpatrick’s Color Atlas and Synopsis
of Clinical Dermatology, 7th ed. New York, McGraw-Hill, 2013.

1 N. de R.T. A rosácea não é exatamente um tipo de acne, mas se assemelha a ela.


54
Manifestações cutâneas de doenças
internas
Jean L. Bolognia, Irwin M. Braverman

A medicina geralmente reconhece o conceito de que a pele pode desenvolver


sinais de doenças sistêmicas. Por essa razão, os livros-texto de medicina trazem
capítulo descrevendo, em detalhes, os principais distúrbios sistêmicos que
podem ser identificados por sinais cutâneos. O conceito implícito neste capítulo
é o de que o clínico conseguiu identificar o distúrbio do paciente e precisa
apenas ler sobre o assunto em um livro-texto. Na verdade, os diagnósticos
diferenciais concisos e a identificação desses distúrbios são difíceis para o
médico que não é dermatologista, porque ele não tem treinamento suficiente para
diagnosticar as lesões cutâneas ou seu espectro de apresentações. Assim, este
capítulo aborda esse tópico específico da dermatologia não por meio da
descrição de cada distúrbio, mas pela descrição dos diferentes sinais e sintomas
clínicos que indicam a presença desses distúrbios. Serão gerados diagnósticos
diferenciais concisos, nos quais as doenças importantes serão diferenciadas dos
distúrbios cutâneos mais comuns, que têm pouca ou nenhuma importância no
contexto das doenças sistêmicas associadas. Esses últimos distúrbios locais são
apresentados aqui em forma de tabelas e sempre será necessário excluí-los
quando forem consideradas as manifestações cutâneas das doenças internas
relevantes. O leitor deverá consultar um livro de dermatologia se desejar
descrições mais detalhadas de cada doença específica. Ver também Capítulo A
4, “Atlas de manifestações cutâneas de doenças internas”.
LESÕES CUTÂNEAS PAPULOESCAMOSAS
(Tab. 54-1) Quando a erupção caracteriza-se por lesões elevadas, pápulas (< 1
cm) ou placas (> 1 cm) com escamas, é denominada lesão papuloescamosa. As
doenças papuloescamosas mais comuns – tinea, psoríase, pitiríase rósea e
líquen plano – são distúrbios cutâneos primários (Cap. 53). Quando as lesões
psoriásicas estão acompanhadas de artrite, deve-se considerar a possibilidade de
artrite psoriásica ou artrite reativa. Uma história de úlceras orais, conjuntivite,
uveíte e/ou uretrite é sugestiva desse último diagnóstico. Sabe-se que lítio,
betabloqueadores, infecções por HIV ou estreptocócicas e uma retirada rápida de
glicocorticoides sistêmicos exacerbam a psoríase; apesar de serem usados para
tratar a psoríase, os inibidores do TNF-α também podem induzir lesões de
psoríase. As comorbidades em pacientes com psoríase incluem doença
cardiovascular e síndrome metabólica.

TABELA 54-1 ■ Algumas causas de lesões cutâneas papuloescamosas


1. Distúrbios cutâneos primários
a. Tineaa – doença disseminada pode ser sinal de imunossupressão
b. Psoríasea – doença disseminada ou resistente pode ser sinal de infecção por HIV
c. Pitiríase róseaa
d. Líquen planoa
e. Parapsoríase, placas pequenas e grandes
f. Doença de Bowen (carcinoma espinocelular in situ)b
2. Drogas e fármacos
3. Doenças sistêmicas
a. Lúpus eritematoso sistêmico, principalmente lesões subagudas ou crônicas (discoides)c
b. Linfoma de células T cutâneo, principalmente micose fungoided
c. Sífilis secundária
d. Artrite reativa
e. Sarcoidosee – com escamas menos comum que sem escamas
aDescritas detalhadamente no Capítulo 53; doença cardiovascular e síndrome metabólica são comorbidades na psoríase; principalmente na

Europa, o vírus da hepatite C está associado com o líquen plano oral. bAssociado com exposição solar crônica mais comumente que exposição
ao arsênico; geralmente uma ou poucas lesões. cVer também Lesões vermelhas em “Lesões cutâneas papulonodulares”. dTambém lesões
cutâneas de linfoma/leucemia de células T do adulto em associação com o HTLV-1. eVer também Lesões castanho-avermelhadas em “Lesões
cutâneas papulonodulares”.
Sigla: HIV, vírus da imunodeficiência humana.

Sempre que for estabelecido o diagnóstico de pitiríase rósea ou de líquen


plano, é importante rever os medicamentos do paciente, porque a erupção pode
melhorar com a simples suspensão do agente agressor. As farmacodermias
semelhantes à pitiríase rósea estão associadas mais comumente aos
betabloqueadores, aos inibidores da enzima conversora da angiotensina (ECA) e
ao metronidazol, enquanto os fármacos que podem produzir uma erupção
liquenoide incluem os tiazídicos, os antimaláricos, a quinidina, os
betabloqueadores e os inibidores do TNF-α, Ac anti-PD-1/PD-L1 e inibidores da
ECA. Em algumas populações, a prevalência da infecção pelo vírus da hepatite
C é mais alta nos pacientes com líquen plano oral. Lesões semelhantes ao líquen
plano também são observadas na doença do enxerto contra o hospedeiro.
Nos estágios iniciais, a forma de micose fungoide (MF) do linfoma de
células T cutâneo (LCTC) pode ser confundida com eczema ou psoríase, mas
geralmente não responde ao tratamento recomendado para essas doenças
inflamatórias. A MF pode desenvolver-se dentro das lesões da parapsoríase em
placas grandes, e sua presença é sugerida pelo aumento da espessura das lesões.
O diagnóstico da MF baseia-se na biópsia de pele, na qual se encontram
acúmulos de linfócitos T atípicos na epiderme e na derme. À medida que a
doença progride, podem surgir tumores cutâneos e aumento dos linfonodos.
Na sífilis secundária, surgem pápulas castanho-avermelhadas disseminadas
com descamação fina. Com frequência, a erupção envolve as palmas e plantas e
pode assemelhar-se à pitiríase rósea. As manifestações clínicas associadas são
úteis para a determinação do diagnóstico e incluem placas anulares na face,
alopécia não cicatricial, condilomas planos (lesões úmidas de base ampla) e
placas mucosas, bem como linfadenopatia, mal-estar, febre, cefaleia e mialgias.
O intervalo entre o cancro primário e o estágio secundário geralmente é de 4 a 8
semanas e há resolução espontânea sem tratamento apropriado.
ERITRODERMIA
(Tab. 54-2) Eritrodermia é o termo empregado quando a maior parte da
superfície cutânea está eritematosa (avermelhada). Pode haver escamas, erosões
ou pústulas associadas, bem como queda dos pelos e das unhas. As
manifestações sistêmicas possíveis incluem febre, calafrios, hipotermia,
linfadenopatia reativa, edema periférico, hipoalbuminemia e insuficiência
cardíaca de alto débito. As principais etiologias da eritrodermia são (1) doenças
cutâneas, como psoríase e dermatite (Tab. 54-3); (2) fármacos; (3) doenças
sistêmicas, mais comumente LCTC; e (4) idiopática. Nos primeiros três grupos,
a localização e a descrição das lesões iniciais, antes do desenvolvimento de
eritrodermia, auxiliam no diagnóstico. Por exemplo, a história de placas
vermelhas descamativas nos cotovelos e joelhos indica a presença de psoríase.
Também é importante examinar a pele com cuidado quanto à migração do
eritema e às alterações secundárias associadas, inclusive pústulas ou erosões.
Ondas migratórias de eritema sobrepostas por pústulas superficiais ocorrem na
psoríase pustular.

TABELA 54-2 ■ Causas de eritrodermia


1. Distúrbios cutâneos primários
a. Psoríasea
b. Dermatite (atópica > de contato >> de estase [com autossensibilização] ou seborreica [primariamente lactentes])a
c. Pitiríase rubra pilar
2. Drogas e fármacos
3. Doenças sistêmicas
a. Linfoma de células T cutâneo (síndrome de Sézary, micose fungoide eritrodérmica)
b. Outros linfomas
4. Idiopática (geralmente homens idosos)
aDescrita detalhadamente no Capítulo 53.

TABELA 54-3 ■ Eritrodermia (distúrbios cutâneos primários)


Lesões Localização Outros achados Recursos Tratamento
iniciais das lesões diagnósticos
iniciais
Psoríasea Vermelho- Cotovelos, Distrofia ungueal, artrite, Biópsia de Glicocorticoides tópicos;
rosadas com joelhos, couro pústulas, síndrome pele vitamina D; UVB (banda
escama cabeludo, SAPHOb estreita) > PUVA; retinoide
acizentada, região pré- oral; MTX, ciclosporina,
bem sacral, sulco agentes anti-TNF,
demarcadas interglúteo apremilaste, Ab anti-IL-
12/23, Ab antirreceptor de IL-
17A ou IL-17
Dermatitea
Atópica Aguda: Fossas Prurido Biópsia de Glicocorticoides tópicos,
Eritema, antecubitais e História familiar e/ou pele tacrolimo, pimecrolimo,
escama fina, poplíteas, pessoal de atopia, alcatrão e antipruriginosos;
crostas, bordas região inclusive asma, rinite anti-histamínicos orais;
indefinidas, cervical, alérgica ou conjuntivite e curativos úmidos abertos;
escoriações mãos, dermatite atópica UVB ± UVA > PUVA;
Crônica: pálpebras Excluir infecção glicocorticoides orais ou IM
Liquenificação secundária por S. aureus (curto prazo); MTX,
(acentuação ou HSV micofenolato de mofetila;
dos sulcos Excluir a coexistência de azatioprina; ciclosporina; e
cutâneos), dermatite de contato Ab anti-IL-4/13
escoriações alérgica ou por irritante Antibióticos orais ou tópicos
De contato Local: Depende do Irritante – geralmente Teste de Remover o irritante ou
Eritema, agente começa em algumas horas contato; alérgeno; glicocorticoides
crostas, desencadeante Alérgica – fazer teste tópicos; anti-histamínicos
vesículas e hipersensibilidade do tipo com orais; glicocorticoides orais
bolhas retardado; intervalo de 48 aplicação ou IM (curto prazo)
h com a reexposição aberta
Sistêmica: Generalizada O paciente refere história Teste de Mesmo de local
Eritema, versus áreas de dermatite de contato contato
descamação intertriginosas alérgica ao agente tópico
fina, crostas principais e, em seguida, recebe um
(especialmente fármaco sistêmico
regiões estruturalmente
inguinais) semelhante – p. ex.,
formaldeído (pele),
aspartame (oral)
Seborreica (rara em Rosa- Couro Crise com estresse, Biópsia de Glicocorticoides tópicos e
adultos) avermelhado a cabeludo, infecção por HIV pele imidazóis
rosa- sulcos Associada com Doença de
alaranjado, nasolabiais, Parkinson
escama sobrancelhas,
gordurosa zonas
intertriginosas
De estase (com Eritema, Extremidades Prurido, edema de Biópsia de Glicocorticoides tópicos;
autossensibilização) crostas, inferiores membros inferiores, pele curativos úmidos abertos;
escoriações varicosidades, depósitos elevação dos membros; meias
de hemossiderina, compressivas; curativos
lipodermatosclerose compressivos se houver
História de úlceras ulceração associada
venosas, tromboflebite
e/ou celulite
Excluir celulite
Excluir dermatite de
contato superposta (p. ex.,
neomicina tópica)
Pitiríase rubra pilar Pápulas Generalizada, Ceratodermia Biópsia de Isotretinoína ou acitretina;
perifoliculares mas com áreas palmoplantar cérea pele MTX; talvez Ab anti-IL-
laranja- típicas de pele Excluir linfoma de células 12/23, agentes anti-TNF, Ab
avermelhadas normal T cutâneo anti-IL-17
(cor de “salteadas”
salmão)
aDescritas detalhadamente no Capítulo 53. bA síndrome SAPHO ocorre mais comumente em pacientes com pustulose palmoplantar do que

naqueles com psoríase eritrodérmica.


Siglas: Ab, anticorpo; HSV, herpes-vírus simples; IL, interleucina; IM, intramuscular; MTX, metotrexato; PUVA, psoralenos com raios
ultravioleta A; SAPHO, sinovite, acne, pustulose, hiperostose e osteíte (um subtipo é a osteomielite multifocal recidivante crônica); TNF, fator
de necrose tumoral; UVA, radiação ultravioleta A; UVB, radiação ultravioleta B.

A eritrodermia medicamentosa (dermatite esfoliativa) pode começar como


uma erupção exantemática (morbiliforme) (Cap. 56) ou surgir como eritema
difuso. Diversos fármacos podem produzir eritrodermia, inclusive penicilinas,
sulfonamidas, carbamazepina, fenitoína e alopurinol. Febre e eosinofilia
periférica frequentemente acompanham a erupção e também pode haver edema
facial, hepatite, miocardite, tiroidite e nefrite intersticial alérgica; essa síndrome
geralmente é descrita como reação medicamentosa com eosinofilia e sintomas
sistêmicos (DRESS) ou síndrome de hipersensibilidade induzida por fármacos
(DIHS). Além disso, essas reações – principalmente aos anticonvulsivantes
aromáticos – podem desencadear uma síndrome de pseudolinfoma (com
linfadenopatia e linfócitos atípicos circulantes), enquanto as reações ao
alopurinol podem acarretar hemorragia gastrintestinal.
O câncer mais comum associado à eritrodermia é o LCTC; em alguns
estudos, até 25% dos casos de eritrodermia eram causados pelo LCTC. O
paciente pode começar com placas e tumores isolados, mas, na maioria dos
casos, a eritrodermia está presente durante todo o curso da doença (síndrome de
Sézary). Nessa síndrome, há linfócitos T clonais atípicos circulantes, prurido e
linfadenopatia. Nos casos de eritrodermia sem causa aparente (idiopática), a
reavaliação periódica é obrigatória para monitorar o possível desenvolvimento
de LCTC. Existem relatos de casos isolados de eritrodermia secundária a alguns
tumores sólidos – pulmão, fígado, próstata, tireoide e cólon –, mas isso
geralmente ocorre num estágio avançado da doença.
ALOPÉCIA
(Tab. 54-4) As duas principais formas de alopécia são a cicatricial e a não
cicatricial. Na alopécia cicatricial, fibrose, inflamação e perda de folículos
pilosos acompanham o processo. Ao exame clínico, geralmente se observa que o
couro cabeludo é liso com número diminuído de orifícios foliculares, mas, em
alguns pacientes, as alterações são detectadas apenas nas amostras de biópsias
obtidas das áreas afetadas. Na alopécia não cicatricial, as hastes pilosas estão
ausentes ou miniaturizadas, mas os folículos permanecem preservados, o que
explica a natureza reversível da alopécia não cicatricial.

TABELA 54-4 ■ Causas de alopécia


I. Alopécia não cicatricial
A. Distúrbios cutâneos primários
1. Alopécia androgenética
2. Eflúvio telógeno
3. Alopécia areata
4. Tinea capitis
5. Alopécia traumáticaa
6. Alopécia psoriasiforme, incluindo a induzida por inibidor de TNF-α
B. Drogas e fármacos
C. Doenças sistêmicas
1. Lúpus eritematoso sistêmico
2. Sífilis secundária
3. Hipotireoidismo
4. Hipertireoidismo
5. Hipopituitarismo
6. Deficiências de proteínas, biotina, zinco e, talvez, ferro
II. Alopécia cicatricial
A. Distúrbios cutâneos primários
1. Lúpus cutâneo (lesões discoides crônicas)b
2. Líquen plano, incluindo alopécia fibrosante frontal
3. Alopécia cicatricial centrífuga central
4. Foliculite decalvante
5. Morfeia linear (esclerodermia linear)c
B. Doenças sistêmicas
1. Lesões discoides em presença de lúpus eritematoso sistêmicob
2. Sarcoidose
3. Metástases cutâneas
aA maioria dos pacientes com tricotilomania ou estágios iniciais de alopécia por tração, além de alguns pacientes com alopécia induzida por

pressão. bEmbora a maioria dos pacientes com lesões discoides tenham apenas doença cutânea, essas lesões representam um dos 11 critérios
do American College of Rheumatology criteria (1982) para o lúpus eritematoso sistêmico. cPode envolver músculos e estruturas ósseas
subjacentes e raramente na morfeia linear do couro cabeludo frontal (em golpe de sabre) há envolvimento de meninges e cérebro.

As causas mais comuns de alopécia não cicatricial são alopécia


androgenética, eflúvio telógeno, alopécia areata, tinea capitis e a fase inicial da
alopécia traumática (Tab. 54-5). Nas mulheres com alopécia genética, pode-se
observar um aumento dos níveis circulantes de androgênios como resultado de
disfunção ou neoplasia dos ovários ou da glândula suprarrenal. Quando há sinais
de virilização, inclusive voz grossa e clitóris aumentado, deve se considerar a
possibilidade de tumor do ovário ou da glândula suprarrenal.

TABELA 54-5 ■ Alopécia não cicatricial (distúrbios cutâneos primários)


Características clínicas Patogênese Tratamento

Eflúvio Queda difusa dos cabelos O estresse faz os ciclos de crescimento Observação; suspender quaisquer fármacos
telógeno normais normalmente assincrônicos dos pelos que tenham alopécia como efeito colateral; é
Ocorre depois de estresses adquirir um padrão sincrônico; por essa preciso excluir distúrbios metabólicos
significativos (febre alta, razão, quantidades maiores de cabelos subjacentes, p. ex., hipotireoidismo,
infecção grave) ou alterações em crescimento (anágenos) entram hipertireoidismo
hormonais (puerpério) simultaneamente na fase de
Pode regredir sem deterioração (telógeno)
tratamento
Alopécia Miniaturização dos cabelos Sensibilidade exagerada dos pelos Se não houver indícios de
androgenética ao longo da linha média no afetados aos efeitos dos androgênios hiperandrogenismo, aplicar minoxidil tópico;
(padrão couro cabeludo Níveis elevados de androgênios finasterida;a espironolactona (mulheres);
masculino; Recuo da linha anterior do circulantes (origem ovariana ou transplante de cabelos
padrão couro cabeludo dos homens suprarrenal nas mulheres)
feminino) e de algumas mulheres
Alopécia Áreas circulares bem As zonas germinativas dos folículos Antralina ou tazaroteno tópico;
areata circunscritas de queda dos pilosos estão circundadas por linfócitos glicocorticoides intralesionais;
cabelos, com 2-5 cm de T sensibilizadores de contato tópicos; inibidores
diâmetro Há doenças associadas em alguns de JAK
Nos casos graves, as lesões casos: hipertireoidismo,
coalescem e/ou há hipotireoidismo, vitiligo, síndrome de
acometimento de outras Down
superfícies pilosas do corpo
Depressões punctiformes ou
aspecto de lixa nas unhas
Tinea capitis Varia de descamação com Invasão dos pelos por dermatófitos, Griseofulvina ou terbinafina oral mais xampu
perda mínima dos cabelos, mais comumente por Trichophyton de sulfeto de selênio a 2,5% ou cetoconazol;
até placas bem demarcadas tonsurans examinar os familiares
com “pontos negros” (locais
de cabelos infectados
quebrados) ou placa úmida
com pústulas (quérion)b
Alopécia Cabelos partidos, com Tração com grampos, faixas de Mudança do estilo de penteado ou dos
traumáticac frequência de comprimentos borracha, tranças apertadas tratamentos químicos desencadeantes; a
variados Exposição ao calor ou agentes tricotilomania pode exigir que os cabelos
Bordas irregulares na químicos (p. ex., alisadores) sejam cortados e examinados quanto ao
tricotilomania e na alopécia Tração mecânica (tricotilomania) crescimento ou pode haver necessidade de
de tração biópsia para firmar o diagnóstico,
possivelmente seguido de psicoterapia
aAté o momento, aprovada pela Food and Drug Administration para homens. bA alopécia cicatricial pode ocorrer em locais de quérions.
cTambém pode ser cicatricial, especialmente em estágios avançados da alopécia de tração.

A exposição a diferentes fármacos também pode provocar a perda difusa de


cabelos, em geral pela indução de eflúvio telógeno. Uma exceção é o eflúvio
anágeno observado com os antimitóticos como a daunorrubicina. A alopécia é
um efeito colateral dos seguintes fármacos: varfarina, heparina, propiltiouracila,
carbimazol, isotretinoína, acitretina, lítio, betabloqueadores, interferonas,
colchicina e anfetaminas. Felizmente, os cabelos geralmente voltam a crescer
espontaneamente depois da interrupção do uso do agente desencadeante.
Com menor frequência, a alopécia não cicatricial está associada ao lúpus
eritematoso e à sífilis secundária. No lúpus sistêmico, existem duas formas de
alopécia – uma é a cicatricial secundária às lesões discoides (ver adiante) e a
outra é não cicatricial. Essa última apresentação coincide com agudizações da
doença sistêmica e pode ser difusa, comprometendo todo o couro cabeludo, ou
pode ser localizada, limitando-se à parte frontal do couro cabeludo com
aparecimento de muitos fios de cabelos curtos (“cabelo do lúpus”) como sinal de
reinício do crescimento. Placas dispersas mal delimitadas de alopécia, com um
aspecto de “roído de traças”, constituem uma manifestação do estágio
secundário da sífilis. O afilamento difuso dos cabelos também está associado ao
hipotireoidismo e ao hipertireoidismo (Tab. 54-4).
A alopécia cicatricial resulta mais frequentemente de um distúrbio cutâneo
primário, incluindo líquen plano, lúpus cutâneo crônico (discoide), alopécia
cicatricial centrífuga central, foliculite decalvante ou esclerodermia linear
(morfeia), do que de uma doença sistêmica. Embora as lesões cicatriciais do
lúpus discoide possam ser encontradas nos pacientes com lúpus sistêmico, na
maioria dos pacientes, o processo patológico limita-se à pele. As causas menos
comuns de alopécia cicatricial incluem sarcoidose (ver “Lesões cutâneas
papulonodulares”, adiante) e metástases cutâneas.
Nas fases iniciais do lúpus discoide, do líquen plano e da foliculite
decalvante, observam-se áreas circunscritas de alopécia. A fibrose e a perda
subsequente dos folículos são observadas principalmente no centro de cada placa
de alopécia, enquanto o processo inflamatório é mais proeminente na periferia.
As áreas de inflamação ativa do lúpus discoide são eritematosas com
descamação, ao passo que as áreas de inflamação prévia frequentemente são
hipopigmentadas com halos de hiperpigmentação. No líquen plano, as máculas
perifoliculares periféricas em geral têm cor violeta. O exame completo da pele e
da mucosa oral, combinado com a biópsia e a microscopia de
imunofluorescência direta da pele inflamada, ajuda a distinguir essas duas
entidades. As lesões ativas periféricas da foliculite decalvante são pústulas
foliculares; esses pacientes podem desenvolver artrite reativa.
LESÕES CUTÂNEAS FIGURADAS
(Tab. 54-6) Nas erupções figuradas, as lesões formam anéis e arcos que
geralmente são eritematosos, mas podem variar da cor da pele ao castanho. Mais
comumente, essas lesões devem-se às doenças cutâneas primárias como tinea,
urticária, granuloma anular e eritema anular centrífugo (Caps. 53 e 55). Um
segundo grupo menos comum dos eritemas anulares migratórios está associado a
algumas doenças sistêmicas subjacentes. Esse grupo inclui eritema migratório,
eritema gyratum repens, eritema marginado e eritema necrolítico migratório.

TABELA 54-6 ■ Causas de lesões cutâneas figuradas


I. Distúrbios cutâneos primários
A. Tinea
B. Urticária (primária em ≥ 90% dos casos)
C. Granuloma anular
D. Eritema anular centrífugo
E. Psoríase, psoríase pustular anular
F. Reação medicamentosa granulomatosa intersticial
II. Doenças sistêmicas
A. Migratório
1. Eritema migratório (definição de caso do CDC é ≥ 5 cm de diâmetro)
2. Urticária (≤10% dos casos)
3. Eritema gyratum repens
4. Eritema marginado
5. Psoríase pustulosa (formas generalizada e anular)
6. Eritema necrolítico migratório (síndrome do glucagonoma)a
B. Não migratório
1. Sarcoidose
2. Lúpus eritematoso cutâneo subagudo, LE túmido
3. Eritema anular da síndrome de Sjögren
4. Sífilis secundária (especialmente na face)
5. Linfoma de células T cutâneo (principalmente micose fungoide)
6. Dermatite granulomatosa intersticialb
aEritema migratório com erosões, principalmente nos membros inferiores e na região da cintura. bAs doenças subjacentes incluem artrite

reumatoide, LE e granulomatose com poliangeíte.


Siglas: CDC, Centers for Disease Control and Prevention; LE, lúpus eritematoso.

No eritema gyratum repens, ocorrem vários arcos e ondas concêntricas


móveis que se assemelham aos veios da madeira. É obrigatória a procura de
câncer no paciente que apresenta essa erupção. O eritema migratório é a
manifestação cutânea da doença de Lyme, causada pela espiroqueta Borrelia
burgdorferi. No estágio inicial (3-30 dias depois da picada do carrapato),
geralmente há uma lesão anular única, que pode se expandir até ≥ 10 cm de
diâmetro. Em alguns dias, até metade dos pacientes apresentam várias lesões
eritematosas menores em locais distantes da picada. Os sinais e sintomas
associados incluem febre, cefaleia, fotofobia, mialgias, artralgias e erupção
malar. O eritema marginado, principalmente no tronco, é observado nos
pacientes que têm febre reumática. As lesões são vermelho-rosadas, achatadas a
levemente elevadas e transitórias.
Existem outras doenças cutâneas que se manifestam como erupções
anulares, mas não exibem um componente migratório evidente. Os exemplos são
LCTC, lúpus cutâneo subagudo, sífilis secundária e sarcoidose (ver “Lesões
cutâneas papulonodulares”, adiante).
ACNE
(Tab. 54-7) Além da acne vulgar e da rosácea1, as duas principais formas de
acne (Cap. 53), há fármacos e doenças sistêmicas que podem causar erupções
acneiformes.

TABELA 54-7 ■ Causas de erupções acneiformes


I. Distúrbios cutâneos primários
A. Acne vulgar
B. Rosácea
II. Fármacos, p. ex., esteroides anabólicos, glicocorticoides, lítio, inibidores do EGFR, iodetos inibidores de MEK
III.Doenças sistêmicas
A. Produção aumentada de androgênios
1. Origem suprarrenal, p. ex., doença de Cushing, deficiência de 21-hidroxilase
2. Origem ovariana, p. ex., síndrome dos ovários policísticos, hipertecose ovariana
B. Criptococose disseminada
C. Infecções por fungos dimórficos
D. Doença de Behçet
Siglas: EGFR, receptor do fator de crescimento epidérmico; MEK, MAP (proteína ativada por mitógenos)-cinase.

Os pacientes que têm síndrome carcinoide apresentam episódios de


ruborização da cabeça, da região cervical e, às vezes, do tronco. As alterações
cutâneas resultantes na face, particularmente telangiectasias, podem simular o
aspecto clínico da rosácea eritemato-telangiectásica.
LESÕES PUSTULOSAS
As erupções acneiformes (ver “Acne”, anteriormente) e a foliculite são as
dermatoses pustulares mais comuns. Uma consideração importante na avaliação
de pústulas foliculares é uma determinação de patógenos associados, por
exemplo, flora normal (cultura negativa), Staphylococcus aureus, Pseudomonas
aeruginosa (foliculite do “banho quente”), Malassezia, dermatófitos (granuloma
de Majocchi) e espécies de Demodex. As formas não infecciosas de foliculite
incluem a foliculite eosinofílica associada a HIV ou imunossupressão e a
foliculite secundária a fármacos, como glicocorticoides, lítio e receptores do
fator de crescimento epidérmico (EGFR) ou inibidores de MEK. A
administração de doses altas de glicocorticoides sistêmicos pode desencadear
uma erupção disseminada com pústulas foliculares no tronco, caracterizadas por
lesões no mesmo estágio de desenvolvimento. Com relação às doenças
sistêmicas subjacentes, as pústulas de base não folicular constituem um
componente típico da psoríase pustular (estéril) e podem ser encontradas nas
embolias sépticas de origem bacteriana ou fúngica (ver “Púrpura”, adiante). Nos
pacientes com pustulose exantemática generalizada aguda (PEGA), geralmente
causada por fármacos (p. ex., cefalosporinas), há grandes áreas de eritema
sobrepostos por inúmeras pústulas estéreis e neutrofilia.
TELANGIECTASIAS
(Tab. 54-8) De forma a diferenciar os diversos tipos de telangiectasias, é
importante examinar a forma e a configuração dos vasos sanguíneos dilatados.
As telangiectasias lineares são encontradas na face dos pacientes cujas peles
desenvolveram lesão actínica e rosácea e são detectadas nas pernas dos
pacientes com hipertensão venosa e aparecem primeiro nas pernas na
telangiectasia essencial generalizada. Os pacientes que apresentam uma forma
incomum de mastocitose (telangiectasia macular eruptiva persistente) e a
síndrome carcinoide (ver “Acne”, anteriormente) também apresentam
telangiectasias lineares. Finalmente, as telangiectasias lineares são encontradas
nas áreas de inflamação cutânea. Por exemplo, as lesões de longa evolução do
lúpus discoide comumente apresentam telangiectasias em seu interior.

TABELA 54-8 ■ Causas de telangiectasias


I. Distúrbios cutâneos primários
A. Lineares/ramificados
1. Rosácea (face)
2. Dano cutâneo actínico (face, região cervical, V do tórax)
3. Hipertensão venosa (pernas)
4. Telangiectasia essencial generalizada
5. Vasculopatia colagenosa cutânea
6. Dentro de carcinomas basocelulares ou linfomas cutâneos
B. Poiquilodermia
1. Radiação ionizantea
C. Angioma aracneiforme
1. Idiopático
2. Gestação
II. Doenças sistêmicas
A. Lineares/ramificadas
1. Carcinoide (cabeça, região cervical, parte superior do tronco)
2. Ataxia-telangiectasia (conjuntiva bulbar, cabeça e região cervical)
3. Mastocitose (dentro de lesões)
B. Poiquilodermia
1. Dermatomiosite, lúpus eritematoso
2. Micose fungoide, estágio de placas
3. Genodermatoses, p. ex., xeroderma pigmentoso, síndrome de Kindler
C. Emaranhadas
1. Esclerose sistêmica (esclerodermia)
D. Cuticulares/periungueais
1. Lúpus eritematoso
2. Esclerose sistêmica (esclerodermia)
3. Dermatomiosite
4. Telangiectasia hemorrágica hereditária
E. Papulares
1. Telangiectasia hemorrágica hereditária
F. Angioma aracneiforme
1. Cirrose
aTornou-se menos comum.

Poiquilodermia é um termo usado para descrever uma placa cutânea com:


(1) hipo e hiperpigmentação reticulada, (2) rugas secundárias a atrofia
epidérmica e (3) telangiectasias. A poiquilodermia não constitui uma entidade
patológica individual – embora esteja se tornando menos frequente, é encontrada
na pele danificada por radiação ionizante, bem como nos pacientes com doenças
autoimunes do tecido conectivo, principalmente dermatomiosite (DM) e
genodermatoses raras (p. ex., síndrome de Kindler).
Na esclerose sistêmica (esclerodermia), os vasos sanguíneos dilatados
apresentam uma configuração singular conhecida como telangiectasias
emaranhadas. As lesões consistem em máculas amplas que geralmente medem
de 2 a 7 mm de diâmetro, mas às vezes são maiores. Os emaranhados podem
assumir uma forma poligonal ou oval, e sua cor eritematosa pode parecer
uniforme, mas, à inspeção mais cuidadosa, o eritema é formado por
telangiectasias minúsculas. As localizações mais comuns das telangiectasias
emaranhadas são a face, a mucosa oral e as mãos – locais periféricos propensos à
isquemia intermitente. A forma limitada da esclerose sistêmica, geralmente
chamada de variante CREST (calcinose cutânea, fenômeno de Raynaud,
distúrbio da motilidade esofágica, esclerodactilia [sclerodactyly] e telangiectasia)
(Cap. 353), está associada a um curso crônico e anticorpos anticentrômero. As
telangiectasias emaranhadas são indícios importantes para o diagnóstico da
variante CREST e da forma difusa de esclerodermia sistêmica, porque podem ser
as únicas anormalidades cutâneas detectáveis.
As telangiectasias cuticulares são sinais patognomônicos dos três
principais distúrbios autoimunes do tecido conectivo: lúpus eritematoso,
esclerose sistêmica e DM. Elas são facilmente visualizadas a olho nu e ocorrem
em pelo menos dois terços desses pacientes. Na DM e no lúpus, há eritema
associado da prega ungueal e, na DM, o eritema frequentemente vem
acompanhado de cutículas “irregulares” e dor à palpação das pontas dos dedos.
Sob ampliação de 10 vezes, os vasos sanguíneos das pregas ungueais dos
pacientes com lúpus apresentam-se tortuosos e assemelham-se a “glomérulos”,
enquanto na esclerose sistêmica e na DM, ocorre perda de alças capilares, e as
que permanecem mostram-se acentuadamente dilatadas.
Na telangiectasia hemorrágica hereditária (doença de Osler-Rendu-
Weber), as lesões geralmente surgem na adolescência (mucosas) e na idade
adulta (cutâneas) e são encontradas com maior frequência nas mucosas (nasal,
orolabial), na face e nas partes distais dos membros, inclusive sob as unhas.
Essas telangiectasias representam malformações arteriovenosas (AV) da
microcirculação da derme, têm cor vermelho-escura e, em geral, são um pouco
elevadas. Quando a pele sobre uma lesão individual é estirada, visualiza-se um
ponto excêntrico com linhas que se irradiam. Embora o grau de envolvimento
sistêmico varie nessa doença autossômica dominante (devido principalmente às
mutações do gene da endoglina ou da cinase semelhante ao receptor de activina),
os principais sintomas são epistaxe e sangramento gastrintestinal recorrentes. O
fato de essas telangiectasias de mucosas serem na verdade comunicações AVs
ajuda a explicar sua tendência a sangrar.
HIPOPIGMENTAÇÃO
(Tab. 54-9) Os distúrbios evidenciados por hipopigmentação são classificados
como difusos ou localizados. O exemplo clássico de hipopigmentação difusa é o
albinismo oculocutâneo (AOC). As formas mais comuns devem-se às mutações
do gene da tirosinase (tipo I) ou no gene P (tipo II); os pacientes que têm AOC
tipo IA apresentam ausência total de atividade enzimática. Por ocasião do
nascimento, as diferentes formas do AOC podem ter aspecto semelhante –
cabelos brancos, olhos azul-acinzentados e pele brancorrósea. Contudo, os
pacientes que não apresentam atividade de tirosinase mantêm esse fenótipo,
enquanto os que apresentam atividade diminuída adquirem alguma pigmentação
dos olhos, dos cabelos e da pele com o aumento da idade. O grau de
pigmentação também é uma função da etnia, e a escassez de pigmento é mais
evidente quando os pacientes são comparados com os seus parentes de primeiro
grau. As anormalidades oculares do AOC correlacionam-se com o grau de
hipopigmentação e incluem acuidade visual diminuída, nistagmo, fotofobia,
estrabismo e perda da visão binocular normal.

TABELA 54-9 ■ Causas de hipopigmentação


I. Distúrbios cutâneos primários
A. Difusos
1. Vitiligo generalizadoa
B. Localizados
1. Hipomelanose gutata idiopática
2. Pós-inflamatória
3. Pitiríase versicolor
4. Vitiligoa
5. Leucodermia induzida por fármacos ou compostos químicos, p. ex., imiquimode tópico, imatinibe oral
6. Nevo acrômico
7. Piebaldismoa
II. Doenças sistêmicas
A. Difusas
1. Albinismo oculocutâneob
2. Síndrome de Hermansky-Pudlakb,c
3. Síndrome de Chédiak-Higashib,d
4. Fenilcetonúria
B. Localizadas
1. Esclerose sistêmica (esclerodermia)
2. Leucodermia associada a melanoma, espontânea ou induzida por imunoterapia
3. Síndrome de Vogt-Koyanagi-Harada
4. Oncocercose
5. Sarcoidose
6. Linfoma de células T cutâneo (principalmente micose fungoide)
7. Hanseníase, forma indeterminada e tuberculoide
8. Hipopigmentação nevoide linear (hipomelanose de Ito)e
9. Incontinência pigmentar (estágio IV)
10.Esclerose tuberosa
11.Síndrome de Waardenburg e síndrome de Shah-Waardenburg
aAusência de melanócitos em áreas de leucodermia. bQuantidades normais de melanócitos. cAnormalidade do armazenamento plaquetário e

doença pulmonar restritiva secundária à deposição de material tipo ceroide ou imunodeficiência; devido à mutação da subunidade β ou δ do
complexo da proteína relacionada ao adaptador 3 e também das subunidades da biogênese do complexo de organelas relacionadas com os
lisossomos (BLOC-1, 2 e 3). dGrânulos lisossômicos gigantes e infecções repetidas. eMinoria de pacientes em ambiente primário tem
anormalidades sistêmicas (musculoesqueléticas, sistema nervoso central, ocular).

O diagnóstico diferencial da hipomelanose localizada inclui os seguintes


distúrbios cutâneos primários: hipomelanose gutata idiopática, hipopigmentação
pós-inflamatória, pitiríase versicolor, vitiligo, leucodermia induzida por
fármacos ou compostos químicos, nevo acrômico (ver adiante) e piebaldismo (T
ab. 54-10). Nesse grupo de doenças, as áreas acometidas são máculas ou placas
com diminuição ou ausência de pigmentação. Os pacientes com vitiligo também
apresentam incidência maior de vários distúrbios autoimunes, como tireoidite de
Hashimoto, doença de Graves, anemia perniciosa, doença de Addison, uveíte,
alopécia areata, candidíase mucocutânea crônica e síndromes autoimunes
poliglandulares (tipos I e II). As doenças da glândula tireoide são os distúrbios
mais frequentemente associados e ocorrem em até 30% dos pacientes com
vitiligo. Com frequência, detectam-se autoanticorpos circulantes e os tipos mais
comuns são os anticorpos antitireoglobulina, antimicrossomo e antirreceptor do
hormônio estimulante da tireoide.

TABELA 54-10 ■ Hipopigmentação (distúrbios cutâneos primários localizados)


Características Exame com Amostra de Patogênese Tratamento
clínicas lâmpada de biópsia de
Wood (UVA; pele
pico = 365 nm)

Hipomelanose Comum; adquirida; Menos realçada Redução Possíveis mutações Nenhum


gutata idiopática geralmente 2-4 mm do que o vitiligo súbita do teor somáticas associadas
de diâmetro de melanina ao envelhecimento
Região pré-tibial e da epiderme ou exposição à
superfícies radiação UV
extensoras dos
antebraços
Hipopigmentação Pode formar-se em Depende da O tipo de O bloqueio da Tratar a doença
pós-inflamatória lesões em atividade doença específica infiltrado transferência da inflamatória subjacente
(p. ex., lúpus Geralmente há inflamatório melanina dos
cutâneo subagudo) menos depende da melanócitos para os
ou depois da acentuação que doença ceratinócitos poderia
regressão das lesões no vitiligo específica ser secundário ao
(p. ex., dermatite edema ou à redução
atópica) do tempo de contato
Destruição dos
melanócitos, se as
células inflamatórias
atacarem a camada
basal
Pitiríase Distúrbio comum Fluorescência Hifas e Invasão do estrato Sulfeto de selênio a 2,5%
versicolor Parte superior do dourada leveduras em córneo pela levedura em xampu; imidazóis
tronco e região germinação Malassezia tópicos; triazóis orais
cervical no estrato A levedura é
(distribuição em córneo lipofílica e produz
xale), regiões ácidos dicarboxílicos
inguinais C9 e C11, que inibem
Adultos jovens a tirosinase in vitro
Máculas com fina
descamação branca
quando são
raspadas
Vitiligo Adquirido; Mais aparente Ausência de Fenômeno Glicocorticoides tópicos;
progressivo Branco-giz melanócitos autoimune, que inibidores tópicos da
Áreas simétricas de em lesões provoca a destruição calcineurina; UVB (banda
despigmentação bem dos melanócitos – estreita); PUVA;
completa desenvolvidas principalmente transplantes, inibidores de
Periorificial – ao Inflamação celular (linfócitos T JAK, se estiver estável;
redor da boca, do leve autorreativos despigmentação (MBEH
nariz, dos olhos, circulantes que se tópico), se as lesões forem
dos mamilos, do localizam na pele) generalizadas e resistentes
umbigo e do ânus ao tratamento
Outras áreas –
flexoras dos
punhos, faces
extensoras das
pernas
A forma segmentar
é menos comum –
unilateral,
semelhante aos
dermátomos
Leucodermia Aspecto semelhante Mais aparente Quantidades Exposição às Evitar a exposição ao
induzida por ao do vitiligo Branco-giz reduzidas ou substâncias químicas agente desencadeante;
fármacos ou Geralmente começa ausência de que destroem depois tratar da mesma
compostos nas mãos, quando melanócitos seletivamente os forma que o vitiligo
químicos está associada à melanócitos, A variante induzida por
exposição química principalmente fenóis fármacos pode repigmentar
Lesões satélites nas e catecóis quando o agente
áreas que não foram (germicidas; desencadeante é
expostas à produtos de interrompido
substância química borracha), ou
ingestão de fármacos,
como o imatinibe
A liberação de
antígenos celulares e
a ativação dos
linfócitos circulantes
podem explicar a
presença das lesões
satélites
Possível inibição do
receptor KIT
Piebaldismo Autossômica Acentuação da Áreas Anormalidade na Nenhum; transplante em
dominante leucodermia e amelanóticas migração dos alguns casos
Congênito, estável das máculas – poucos ou melanoblastos da
Topete branco hiperpigmentadas nenhum crista neural para a
As áreas de melanócito pele envolvida, ou
hipomelanose incapacidade de os
contêm máculas melanoblastos
normalmente sobreviverem ou se
pigmentadas e diferenciarem nessas
hiperpigmentadas áreas
de vários tamanhos Mutações do proto-
Acometimento oncogene KIT, que
simétrico da região codifica o receptor de
central da fronte, tirosina-cinase do
parte anterior do fator de crescimento
tronco e regiões das células-tronco
intermediárias dos (ligante kit)
membros superiores
e inferiores
Siglas: MBEH, monobenzil éter de hidroquinona; UVB, radiação ultravioleta B; PUVA, psoralenos + raios ultravioleta A.
Existem quatro doenças sistêmicas que devem ser levadas em consideração
no paciente que apresenta anormalidades cutâneas sugestivas de vitiligo –
síndrome de Vogt-Koyanagi-Harada, esclerose sistêmica, oncocercose e
leucodermia associada ao melanoma. Uma história de meningite asséptica,
uveíte não traumática, zumbido, perda auditiva e/ou disacusia indica o
diagnóstico de síndrome de Vogt-Koyanagi-Harada. Nesses pacientes, a face e o
couro cabeludo são os locais mais comuns de perda de pigmento. A leucodermia
semelhante ao vitiligo, que é observada nos pacientes com esclerodermia,
assemelha-se clinicamente ao vitiligo idiopático que começou a pigmentar-se
novamente em consequência de tratamento; ou seja, máculas perifoliculares de
pigmentação normal são encontradas dentro das áreas despigmentadas. A
etiologia dessa leucodermia é desconhecida; não há evidências de inflamação
nas áreas comprometidas, mas o processo pode regredir se a doença subjacente
do tecido conectivo tornar-se inativa. Em contrapartida com o vitiligo idiopático,
a leucodermia associada ao melanoma frequentemente começa no tronco, e seu
surgimento espontâneo deve levantar a suspeita de doença metastática. Isso
também é observado nos pacientes submetidos à imunoterapia para melanoma,
incluindo o ipilimumabe, porque os linfócitos T citotóxicos provavelmente
reconhecem os antígenos de superfície das células do melanoma e dos
melanócitos normais; esse também é um sinal de probabilidade maior de ocorrer
resposta clínica.
Há dois distúrbios sistêmicos (neurocristopatias) que podem apresentar os
achados cutâneos do piebaldismo (Tab. 54-9): as síndromes de Shah-
Waardenburg e de Waardenburg. Uma explicação possível para esses dois
distúrbios consiste na migração ou na persistência embrionária anormal de dois
elementos derivados da crista neural, um deles sendo melanócitos, e o outro, as
células ganglionares mioentéricas (resultando na doença de Hirschsprung e na
síndrome de Shah-Waardenburg) ou células do nervo auditivo (síndrome de
Waardenburg). Essa última síndrome caracteriza-se por perda auditiva
neurossensorial congênita, distopia dos ângulos do olho (deslocamento lateral
dos ângulos mediais dos olhos, mas com distância interpupilar normal), íris
heterocrômicas e base nasal larga, além de piebaldismo. O dismorfismo facial
pode ser explicado pela origem na crista neural dos tecidos conectivos da cabeça
e da região cervical. Os pacientes com síndrome de Waardenburg apresentam
mutações em quatro genes, incluindo PAX-3 e MITF, todos eles codificando
fatores de transcrição, enquanto os pacientes que apresentam a doença de
Hirschsprung e também manchas brancas têm mutações em um dos três genes
seguintes – endotelina 3, receptor de endotelina B e SOX-10.
Na esclerose tuberosa, o primeiro sinal cutâneo é uma hipomelanose
macular chamada de mancha em forma de folha de freixo (ash leaf). Essas lesões
geralmente estão presentes desde o nascimento e comumente são múltiplas; no
entanto, para serem detectadas, pode ser necessário o exame com lâmpada de
Wood, especialmente nos indivíduos de pele clara. O pigmento dentro das lesões
apresenta-se reduzido, mas não ausente. O tamanho médio é de 1 a 3 cm, e as
formas comuns são poligonal e lanceolada. É recomendável examinar o paciente
para detectar outros sinais cutâneos, inclusive angiofibromas múltiplos da face
(adenoma sebáceo), fibromas ungueais e intraorais, placas fibrosas cefálicas e
nevos do tecido conectivo (placa “Shagreen”). É importante lembrar que a
mancha semelhante à folha de freixo localizada no couro cabeludo forma uma
área circunscrita de cabelos com pigmentação clara. As manifestações sistêmicas
incluem convulsões, incapacidade intelectual, hamartomas do sistema nervoso
central (SNC) e da retina, linfangioleiomiomatose pulmonar (mulheres),
angiomiolipomas renais e rabdomiomas cardíacos. Os últimos são detectados em
até 60% das crianças (< 18 anos) que têm esclerose tuberosa pela
ecocardiografia.
O nevo acrômico é uma hipomelanose bem circunscrita estável que está
presente ao nascimento. Em geral, o paciente tem uma única lesão oval ou
retangular, mas, quando as lesões são múltiplas, a possibilidade de esclerose
tuberosa deve ser considerada. Na hipopigmentação nevoide linear, termo
utilizado em substituição à hipomelanose de Ito e nevo acrômico segmentar ou
sistematizado, são encontradas faixas e espirais de hipopigmentação. Até um
terço dos pacientes em centros de cuidados terciários têm anormalidades
associadas envolvendo o sistema musculoesquelético (assimetria), SNC
(convulsões e incapacidade intelectual) e olhos (estrabismo e hipertelorismo). O
mosaicismo cromossômico foi detectado nesses pacientes, sustentando a
hipótese de que o padrão cutâneo resulta da migração de dois clones de
melanócitos primordiais, cada um com um diferente potencial pigmentar.
Áreas localizadas de hipopigmentação são encontradas comumente em
consequência de inflamação cutânea (Tab. 54-10) e foram observadas na pele
sobrejacente às lesões ativas de sarcoidose (ver Lesões cutâneas
papulonodulares, adiante) e também no LCTC. As infecções cutâneas também se
manifestam com hipopigmentação e, na hanseníase tuberculoide, ocorrem
algumas manchas assimétricas de hipomelanose que exibem anestesia, anidrose
e alopécia associadas. As amostras de biópsia da borda palpável mostram
granulomas dérmicos que contêm, em alguns casos, raros microrganismos
Mycobacterium leprae.
HIPERPIGMENTAÇÃO
(Tab. 54-11) Os distúrbios evidenciados por hiperpigmentação também se
dividem em dois grupos – localizados e difusos. As formas localizadas devem-se
à alteração da epiderme, à proliferação dos melanócitos ou ao aumento da
produção de pigmento. As ceratoses seborreicas e a acantose nigricans
pertencem ao primeiro grupo. As ceratoses seborreicas são lesões comuns, mas
raramente são sinais de doença sistêmica – especialmente quando surgem várias
lesões repentinamente, geralmente com base inflamatória e associadas aos
acrocórdons (apêndices cutâneos) e à acantose nigricans. Essa condição clínica é
conhecida como sinal de Leser-Trélat e deve alertar o médico para a necessidade
de buscar uma neoplasia maligna dos órgãos internos. A acantose nigricans
também pode ser um reflexo de câncer interno, mais comumente do trato
gastrintestinal, quando se evidencia por hiperpigmentação aveludada,
principalmente nas áreas flexoras. Porém, na maioria dos pacientes, a acantose
nigricans está associada à obesidade e à resistência à insulina, mas pode ser um
reflexo de endocrinopatia, como acromegalia, síndrome de Cushing, síndrome
dos ovários policísticos ou diabetes melito resistente à insulina (tipo A, tipo B e
formas lipodistróficas).

TABELA 54-11 ■ Causas de hiperpigmentação


I. Distúrbios cutâneos primários
A. Localizados
1. Alteração da epiderme
a. Ceratose seborreica
b. Ceratose actínica pigmentada
2. Proliferação dos melanócitos
a. Lentigo
b. Nevo melanocítico (sinal)
c. Melanoma
3. Produção aumentada de pigmento
a. Efélides (sardas)
b. Mancha café com leite
c. Hiperpigmentação pós-inflamatória
d. Melasma
4. Pigmentação da derme
a. Eritema medicamentoso fixo
B. Localizados e difusos
1. Fármacos (p. ex., minociclina, hidroxicloroquina, bleomicina)
II. Doenças sistêmicas
A. Localizadas
1. Alteração da epiderme
a. Ceratoses seborreicas (sinal de Leser-Trélat)
b. Acantose nigricans (resistência à insulina, outros distúrbios endócrinos, paraneoplásicos)
2. Proliferação dos melanócitos
a. Lentigos (síndromes de Peutz-Jeghers e LEOPARD/Noonan com múltiplos lentigos; xeroderma pigmentoso)
b. Nevos melanocíticos (complexo de Carney [síndromes LAMB e NAME])a
3. Produção aumentada de pigmento
a. Manchas café com leite (neurofibromatose, síndrome de McCune-Albrightb)
b. Urticária pigmentosac
4. Pigmentação da derme
a. Incontinência pigmentar (estágio III)
b. Disceratose congênita
B. Difusas
1. Endocrinopatias
a. Doença de Addison
b. Síndrome de Nelson
c. Síndrome do ACTH ectópico
d. Hipertireoidismo
2. Metabólicas
a. Porfiria cutânea tarda
b. Hemocromatose
c. Deficiência de vitamina B12, folato
d. Pelagra
e. Má absorção, incluindo doença de Whipple
3. Melanose secundária ao melanoma metastático
4. Doenças autoimunes
a. Cirrose biliar
b. Esclerose sistêmica (esclerodermia)
c. Síndrome POEMS
d. Síndrome da eosinofilia-mialgiad
5. Fármacos (p. ex. ciclofosfamida) e metais (p. ex. prata)
aTambém lentigos. bDisplasia fibrosa poliostótica. cVer também “Lesões cutâneas papulonodulares”. dSurgiu no final da década de 1980.

Siglas: LAMB, lentigos, mixomas atriais, mixomas mucocutâneos e nevos azuis (blue nevi); LEOPARD, lentigos, anormalidades no ECG,
hipertelorismo ocular, estenose pulmonar e estenose subaórtica valvar, genitália anormal, retardo de crescimento e deficiência auditiva
(neurossensorial); NAME, nevos, mixoma atrial, neurofibroma mixoide e efélides (sardas); POEMS, polineuropatia, organomegalia,
endocrinopatias, proteína M e alterações cutâneas (skin changes).

Uma proliferação de melanócitos resulta nas seguintes lesões pigmentadas:


lentigo, nevo melanocítico e melanoma (Cap. 72). No adulto, a maioria dos
lentigos relaciona-se com a exposição ao sol, o que explica a sua distribuição.
Contudo, nas síndromes de Peutz-Jeghers e LEOPARD (lentigos; alterações de
ECG, principalmente distúrbios da condução; hipertelorismo ocular; estenose
pulmonar e estenose valvar subaórtica; genitália anormal [criptorquidia,
hipospadia]; retardo do crescimento; e deficiência auditiva [neurossensorial]), os
lentigos representam indícios de doença sistêmica. Na síndrome
LEOPARD/Noonan com múltiplos lentigos, centenas de lentigos surgem durante
a infância e espalham-se por toda a superfície corporal. Os lentigos dos pacientes
com a síndrome de Peutz-Jeghers localizam-se basicamente ao redor do nariz e
da boca, nas mãos e nos pés e na cavidade oral. Embora as máculas pigmentadas
da face possam clarear com a idade, as lesões orais persistem. Entretanto, lesões
intraorais semelhantes também são observadas na doença de Addison, na
síndrome de Laugier-Hunziker (nenhuma manifestação interna) e como achado
normal nos indivíduos de pele mais pigmentada. Os pacientes com essa
síndrome autossômica dominante (decorrente de mutações de um gene da serina
treonina cinase recém-identificado) apresentam vários pólipos benignos do trato
gastrintestinal, tumores testiculares ou ovarianos e risco mais alto de cânceres
gastrintestinais (basicamente cólon) e pancreáticos.
No complexo de Carney também ocorrem numerosos lentigos, mas estão
associados aos mixomas cardíacos. Esse distúrbio autossômico dominante
também é conhecido como síndrome LAMB (lentigos, mixomas atriais, mixomas
mucocutâneos e nevos azuis [blue]) ou síndrome NAME (nevos, mixoma atrial,
neurofibroma mixoide e efélides [sardas]). Esses pacientes também podem
apresentar evidências de hiperatividade endócrina na forma de síndrome de
Cushing (doença adrenocortical nodular pigmentada) e acromegalia.
O terceiro tipo de hiperpigmentação localizada decorre do aumento local da
produção de pigmento e inclui efélides e manchas café com leite (MCCL).
Embora uma única MCCL possa ser encontrada em até 10% dos indivíduos
normais, a presença de MCCLs grandes ou múltiplas aumenta a possibilidade de
genodermatoses associadas (p. ex., neurofibromatose [NF] ou síndrome de
McCune-Albright). As MCCLs são planas e de coloração castanha uniforme
(geralmente dois tons mais escuros que a pele normal) e variam em tamanho de
0,5 a 12 cm ou mais. Mais de 90% dos pacientes adultos com NF tipo I têm seis
ou mais MCCLs com diâmetros ≥ 1,5 cm. As outras anormalidades dessa doença
estão descritas na seção sobre neurofibromas (ver “Lesões cutâneas
papulonodulares”, adiante). Em comparação com a NF, as MCCLs dos pacientes
com síndrome de McCune-Albright (displasia fibrosa poliostótica com
puberdade precoce em mulheres, decorrente de mosaicismo para uma mutação
ativadora em um gene da proteína G [Gsα]) são geralmente maiores, de
contornos mais irregulares e tendem a respeitar a linha média.
Na incontinência pigmentar, na disceratose congênita e na pigmentação
causada pela bleomicina, as áreas de hiperpigmentação localizada formam um
padrão – espiralado na primeira doença, reticulado na segunda e flagelado na
terceira. Na disceratose congênita, a hiperpigmentação reticulada atrófica é
encontrada na região cervical, no tronco e nas coxas e acompanha-se de distrofia
ungueal, pancitopenia e leucoplasia das mucosas oral e anal. A leucoplasia
frequentemente evolui para carcinoma epidermoide. Além da pigmentação
flagelada (estrias lineares) no tronco, os pacientes tratados com bleomicina
frequentemente apresentam hiperpigmentação recobrindo os cotovelos, os
joelhos e as pequenas articulações das mãos.
A hiperpigmentação localizada é encontrada como efeito colateral de
diversos fármacos sistêmicos, inclusive os que causam o eritema pigmentado
fixo (anti-inflamatórios não esteroides [AINES], sulfonamidas e barbitúricos e
tetraciclinas) e os que podem formar complexos com a melanina ou o ferro
(antimaláricos e minociclina). O eritema pigmentado fixo recidiva na mesma
localização como áreas circulares de eritema que podem se tornar bolhosas e
depois regredir formando máculas castanhas. Em geral, a erupção aparece horas
depois da readministração do fármaco desencadeante, e os locais comuns são os
órgãos genitais, os membros e a região perioral. A cloroquina e a
hidroxicloroquina produzem coloração castanho-acinzentada a negro-azulada
nas regiões tibiais anteriores, no palato duro e na face, enquanto possam ser
encontradas máculas azuis (frequentemente confundidas com equimoses) nos
membros inferiores e em locais de inflamação com a administração prolongada
de minociclina. O estrogênio dos contraceptivos orais pode induzir o melasma –
manchas castanhas simétricas na face, especialmente nas regiões malares, no
lábio superior e na fronte. Alterações semelhantes são encontradas nas gestantes
e nos pacientes tratados com fenitoína.
Nas formas difusas de hiperpigmentação, o escurecimento da pele pode ser
de igual intensidade sobre todo o corpo ou mais acentuado nas áreas expostas ao
sol. As causas de hiperpigmentação difusa podem ser divididas em quatro grupos
principais: endócrinas, metabólicas, autoimunes e farmacodérmicas. As
endocrinopatias que frequentemente estão associadas à hiperpigmentação são
doença de Addison, síndrome de Nelson e síndrome da secreção ectópica de
hormônio adrenocorticotrófico (ACTH). Nessas doenças, a hiperpigmentação é
difusa, mas é mais acentuada nas áreas expostas ao sol, nas dobras palmares, nas
áreas de atrito e nas cicatrizes. A produção excessiva dos hormônios hipofisários
α-MSH (hormônio estimulador dos melanócitos) e ACTH pode acarretar
aumento da atividade dos melanócitos. Esses peptídeos são produtos do gene da
propiomelanocortina e exibem homologia (p. ex., o α-MSH e o ACTH têm 13
aminoácidos em comum). Um pequeno número de pacientes com doença de
Cushing ou hipertireoidismo apresenta hiperpigmentação generalizada.
As causas metabólicas de hiperpigmentação incluem porfiria cutânea tarda
(PCT), hemocromatose, deficiência de vitamina B12, deficiência de ácido fólico,
pelagra e má absorção, inclusive doença de Whipple. Nos pacientes com PCT
(ver “Vesículas/bolhas”, adiante), o escurecimento da pele ocorre nas áreas
expostas ao sol e reflete as propriedades fotorreativas das porfirinas. O nível
aumentado de ferro na pele dos pacientes com hemocromatose tipo I estimula a
produção do pigmento melânico e provoca a coloração bronzeada clássica. Os
pacientes com pelagra apresentam coloração castanha da pele, especialmente nas
áreas expostas ao sol, em virtude da deficiência de ácido nicotínico (niacina).
Nas áreas hiperpigmentadas, ocorre descamação fina e luzidia. Essas alterações
também são observadas nos pacientes com deficiência de vitamina B6 ou
tumores carcinoides em atividade (consumo aumentado de niacina) ou que são
tratados com isoniazida. Cerca de 50% dos pacientes com doença de Whipple
apresentam hiperpigmentação generalizada associada à diarreia, à perda
ponderal, à artrite e à linfadenopatia. Os pacientes com melanose secundária ao
melanoma metastático apresentam coloração azul-acinzentada difusa. A cor
reflete a deposição disseminada de melanina dentro da derme como resultado da
alta concentração de precursores da melanina circulante.
Entre as doenças autoimunes associadas à hiperpigmentação difusa, cirrose
biliar e esclerose sistêmica são as mais comuns e, em alguns casos, os dois
distúrbios são encontrados no mesmo paciente. A pele apresenta coloração
castanho-escura, especialmente nas áreas expostas ao sol. Na cirrose biliar, a
hiperpigmentação acompanha-se de prurido, icterícia e xantomas, ao passo que,
na esclerodermia, há esclerose dos membros, da face e, com menor frequência,
do tronco. Outros indícios do diagnóstico de esclerodermia são telangiectasias
emaranhadas e cuticulares, calcinose cutânea, fenômeno de Raynaud e
ulcerações distais (ver “Telangiectasias” nas seções anteriores). O diagnóstico
diferencial da esclerose cutânea com hiperpigmentação inclui as síndromes
POEMS (polineuropatia; organomegalia [fígado, baço, linfonodos];
endocrinopatias [impotência, ginecomastia]; proteína M; e alterações cutâneas
[de skin]). As alterações cutâneas incluem hiperpigmentação, induração,
hipertricose, angiomas, baqueteamento digital e lipoatrofia facial.
A hiperpigmentação difusa provocada por medicamentos ou por metais
pode ter diversos mecanismos – estimulação da síntese do pigmento melânico;
formação de complexos do fármaco ou de seus metabólitos com a melanina; e
deposição do fármaco na derme. Bussulfano, ciclofosfamida, 5-fluoruracila e
arsênico inorgânico induzem a produção de pigmento. Complexos que
contenham melanina ou hemossiderina combinada com o fármaco ou seus
metabólitos são encontrados nos pacientes em tratamento com minociclina; além
da pigmentação das mucosas, dos dentes, das unhas, dos ossos e da tireoide, os
pacientes podem ter coloração marrom-acinzentada pardacenta difusa nas áreas
expostas ao sol. A administração de amiodarona pode acarretar uma erupção
fototóxica (queimadura solar exagerada) e/ou coloração cinza-ardósia a violácea
na pele exposta ao sol. As amostras de biópsia dessas manchas mostram
grânulos castanho-amarelados nos macrófagos dérmicos, que representam
acúmulos intralisossômicos de lipídeos, amiodarona e seus metabólitos. A
deposição direta de um fármaco ou metal na pele ocorre com a prata (argiria),
que confere coloração azul-acinzentada; ouro (crisíase), que torna a pele marrom
ou azul-acinzentada; e clofazimina, que torna a pele marrom-avermelhada. A
pigmentação associada é mais acentuada nas áreas expostas ao sol, e as
alterações da cor dos olhos ocorrem com o ouro (escleras) e a clofazimina
(conjuntivas).
VESÍCULAS/BOLHAS
(Tab. 54-12) Dependendo do seu tamanho, as lesões cutâneas bolhosas são
denominadas vesículas (< 1 cm) ou bolhas (> 1 cm). Os distúrbios bolhosos
autoimunes primários incluem pênfigo vulgar, pênfigo foliáceo, pênfigo
paraneoplásico, penfigoide bolhoso, penfigoide gestacional, penfigoide
cicatricial, epidermólise bolhosa adquirida, dermatose bolhosa da IgA linear
(DBAL) e dermatite herpetiforme (Cap. 55).

TABELA 54-12 ■ Causas de vesículas/bolhas


I. Doenças mucocutâneas primárias
A. Doenças bolhosas primárias (autoimunes)
1. Pênfigo foliáceo e vulgara
2. Penfigoide bolhosob
3. Penfigoide gestacionalb
4. Penfigoide cicatricialb
5. Dermatite herpetiformeb,c
6. Dermatose bolhosa da IgA linearb
7. Epidermólise bolhosa adquiridab,d
B. Doenças bolhosas secundárias
1. Dermatite de contatoa,b
2. Eritema multiformee
3. Síndrome de Stevens-Johnsone
4. Necrólise epidérmica tóxicae
C. Infecções
1. Vírus varicela-zóstera,f
2. Herpes-vírus simplesa,f
3. Enteroviroses (p. ex., doença mão-pé-boca)f
4. Síndrome da pele escaldada estafilocócicaa,g
5. Impetigo bolhosoa
II. Doenças sistêmicas
A. Doenças autoimunes
1. Pênfigo paraneoplásicoa
B. Infecções
1. Êmbolos cutâneosb
C. Metabólicos
1. Bolhas diabéticasa,b
2. Porfiria cutânea tardab
3. Porfiria variegadab
4. Pseudoporfiriab
5. Dermatose bolhosa da hemodiáliseb
D. Isquemia
1. Bolhas do coma
E. Doenças bolhosas secundárias
1. Necrólise epidérmica tóxicae (pode haver envolvimento dos tratos respiratório e gastrintestinal)
aIntraepidérmicas. bSubepidérmicas. cAssociada à enteropatia causada pelo glúten. dAssociada à doença inflamatória intestinal. eA degeneração

das células da camada basal da epiderme pode dar a impressão de que as fendas são subepidérmicas. fTambém sistêmica. gNos adultos, está
associada à insuficiência renal e à imunossupressão.

As vesículas e as bolhas também ocorrem na dermatite de contato em suas


formas alérgica e por irritante (Cap. 53). Quando há distribuição linear das
lesões vesiculares, deve-se suspeitar de uma causa exógena ou herpes-zóster. A
doença bolhosa secundária à ingestão de fármacos pode assumir diversas formas,
inclusive erupções fototóxicas, bolhas isoladas, síndrome de Stevens-Johnson
(SSJ) e necrólise epidérmica tóxica (NET) (Cap. 56). Clinicamente, as erupções
fototóxicas assemelham-se a uma queimadura solar exagerada com eritema
difuso e bolhas nas áreas expostas ao sol. Os fármacos mais comumente
associados são a doxiciclina, as quinolonas, os tiazídicos, os AINEs, o
voriconazol e os psoralenos. O desenvolvimento de uma erupção fototóxica
depende das doses do fármaco e da exposição à radiação ultravioleta A (UVA).
A necrólise epidérmica tóxica caracteriza-se por bolhas que surgem em
áreas disseminadas de eritema sensível e depois se desprendem. Isso resulta na
formação de grandes áreas de pele desnuda. As taxas de morbidade (p. ex.,
sepse) e a mortalidade associadas são relativamente altas e dependem da
extensão da necrose epidérmica. Além disso, esses pacientes também podem
apresentar lesões das mucosas e dos tratos intestinal e respiratório. Os fármacos
são as causas principais da NET, e os agentes etiológicos mais comuns são
anticonvulsivantes aromáticos (fenitoína, barbitúricos, carbamazepina),
sulfonamidas, aminopenicilinas, alopurinol e AINEs. A doença do enxerto contra
o hospedeiro aguda e grave (grau 4), a DBAL induzida pela vancomicina e
agudizações de lúpus também podem assemelhar-se à NET.
No eritema multiforme (EM), as lesões primárias são manchas vermelho-
rosadas e pápulas edematosas, cujos centros podem se tornar vesiculares. Ao
contrário da erupção morbiliforme, o indício do diagnóstico do EM e
principalmente da SSJ é o aparecimento de cor violeta “opaca” no centro das
lesões. As lesões em alvo também são características de EM e surgem como
consequência dos centros e das margens em atividade, combinados com a
disseminação centrífuga. No entanto, as lesões em alvo não precisam estar
presentes para estabelecer o diagnóstico de EM.
O EM foi subdividido em dois grupos principais: (1) EM menor, associado
ao herpes-vírus simples (HSV), e (2) EM maior, provocado pelo HSV, pelo
Mycoplasma pneumoniae ou ocasionalmente por fármacos. O comprometimento
das mucosas (oral, nasal, ocular e genital) é encontrado com maior frequência no
segundo grupo. As crostas hemorrágicas dos lábios são típicas do EM maior e da
SSJ, bem como do herpes simples, do pênfigo vulgar e do pênfigo
paraneoplásico. Febre, mal-estar, mialgias, odinofagia e tosse podem preceder ou
acompanhar a erupção. As lesões de EM geralmente regridem em 2 a 4 semanas,
mas podem recorrer, especialmente quando são causadas por HSV. Além desse
vírus (com o qual as lesões surgem 7-12 dias depois da erupção viral), o EM
também pode ocorrer depois de vacinações, radioterapia e exposição às toxinas
ambientais, inclusive à resina oleosa da hera venenosa.
Na maioria dos casos, a SSJ é desencadeada por fármacos, principalmente
sulfonamidas, fenitoína, barbitúricos, lamotrigina, aminopenicilinas, inibidores
não nucleosídeos da transcriptase reversa (p. ex., nevirapina) e carbamazepina.
As máculas pardacentas generalizadas e o acometimento significativo das
mucosas são típicos dessa síndrome, e as lesões cutâneas podem ou não evoluir
com desprendimento da epiderme. Se essa última anormalidade ocorrer, por
definição, a área afetada limita-se a < 10% da área de superfície corporal (ASC).
O acometimento de áreas maiores define o diagnóstico de SSJ/NET superpostas
(10-30% da ASC) ou apenas NET (> 30% da ASC).
Além dos distúrbios bolhosos primários e das reações de hipersensibilidade,
as infecções bacterianas e virais podem acarretar vesículas e bolhas. Os agentes
infecciosos mais comuns são HSV (Cap. 187), vírus varicela-zóster (Cap. 188)
e S. aureus (Cap. 142).
A síndrome da pele escaldada estafilocócica (SPEE) e o impetigo bolhoso
são dois distúrbios bolhosos associados à infecção estafilocócica (fagos do grupo
II). Na SPEE, os achados iniciais são eritema e hipersensibilidade da parte
central da face, da região cervical, do tronco e das zonas intertriginosas. Em
seguida, surgem bolhas flácidas de curta duração e há desprendimento ou
esfoliação da epiderme superficial. Depois, surgem áreas crostosas,
caracteristicamente ao redor da boca com padrão radial. A SPEE é diferenciada
da NET pelas seguintes manifestações: faixa etária menor (principalmente
lactentes), localização mais superficial das bolhas, ausência de lesões orais,
resolução mais rápida, taxas de morbidade e mortalidade menores e associação à
toxina esfoliativa estafilocócica (“esfoliatina”), em vez de aos fármacos. A
diferenciação diagnóstica rápida entre a SPEE e a NET pode ser realizada por
meio de um corte de congelação da cobertura da bolha ou por citologia
esfoliativa do conteúdo da bolha. Na SPEE, a localização da infecção
estafilocócica geralmente é extracutânea (conjuntivite, rinorreia, otite média,
faringite, tonsilite), e as lesões cutâneas são estéreis, enquanto, no impetigo
bolhoso, as lesões cutâneas ocorrem no local de infecção. O impetigo é mais
localizado que a SPEE e, em geral, manifesta-se com crostas cor de mel. Em
alguns casos, também se formam bolhas purulentas superficiais. Os êmbolos
cutâneos provenientes de infecções por Gram-negativos podem causar bolhas
isoladas, mas a base da lesão é violácea ou necrótica e podem se transformar em
uma úlcera (ver “Púrpura”, adiante).
Vários distúrbios metabólicos estão associados à formação de bolhas,
inclusive diabetes melito, insuficiência renal e porfiria. A hipoxemia local
secundária ao fluxo sanguíneo cutâneo diminuído também pode provocar bolhas,
o que explica sua presença sobre pontos de pressão dos pacientes comatosos
(bolhas do coma). No diabetes melito, surgem bolhas tensas com líquido viscoso
límpido estéril sobre a pele normal. As lesões podem alcançar 6 cm de diâmetro
e localizam-se nas partes distais dos membros. Existem vários tipos de porfiria,
mas a forma mais comum com anormalidades cutâneas é a porfiria cutânea
tarda (PCT). Nas áreas expostas ao sol (principalmente as mãos), a pele é muito
frágil e o traumatismo provoca erosões misturadas com vesículas tensas. Em
seguida, essas lesões regridem, deixando cicatrizes e milia (pápulas brancas ou
amarelas, firmes, de 1-2 mm, que representam cistos de inclusão epidérmica). As
anormalidades associadas podem incluir hipertricose da região malar lateral
(homens) ou da face (mulheres) e, nas áreas expostas ao sol, hiperpigmentação e
placas escleróticas firmes. Os níveis elevados das uroporfirinas urinárias
confirmam o diagnóstico e devem-se à diminuição da atividade da
uroporfirinogênio-descarboxilase. A PCT também pode ser exacerbada por
álcool, hemocromatose e outras formas de sobrecarga de ferro, hidrocarbonetos
clorados, infecções por vírus da hepatite C e HIV e hepatomas.
O diagnóstico diferencial de PCT inclui (1) porfiria variegada – sinais
cutâneos de PCT além de achados sistêmicos de porfiria intermitente aguda; o
plasma tem emissão de fluorescência diagnóstica da porfirina em 626 nm; (2)
pseudoporfiria farmacodérmica – os achados clínicos e histológicos são
semelhantes aos da PCT, mas as porfirinas são normais; os agentes etiológicos
incluem naproxeno e outros anti-inflamatórios não esteroides, tais como
furosemida, tetraciclina e voriconazol; (3) dermatite bolhosa da hemodiálise – o
mesmo aspecto da PCT, mas as porfirinas em geral são normais ou mostram
elevação borderline; os pacientes têm insuficiência renal crônica e fazem
hemodiálise; (4) PCT associada aos hepatomas e à hemodiálise; e (5)
epidermólise bolhosa adquirida (Cap. 55).
EXANTEMAS
(Tab. 54-13) Os exantemas caracterizam-se por uma erupção generalizada
aguda. A apresentação clínica mais comum é de máculas e pápulas eritematosas
(morbiliforme) e, menos comumente, eritema confluente que empalidece à
compressão (escarlatiniforme). As erupções morbiliformes geralmente são
causadas por fármacos ou infecções virais. Por exemplo, até 5% dos pacientes
que usam penicilinas, sulfonamidas, fenitoína ou nevirapina apresentam erupção
maculopapular. Os sinais associados podem incluir prurido, febre, eosinofilia e
linfadenopatia transitória. Erupções maculopapulares semelhantes são
encontradas nos exantemas virais clássicos da infância, como (1) sarampo –
pródromo de coriza, tosse e conjuntivite, seguido de manchas de Koplik na
mucosa oral; a erupção começa atrás das orelhas, na linha de implantação dos
cabelos e na fronte e, em seguida, dissemina-se para o corpo, tornando-se com
frequência confluente; (2) rubéola – a erupção começa na fronte e na face e, em
seguida, espalha-se pelo corpo; regride na mesma ordem e está associada às
linfadenopatias retroauricular e suboccipital; e (3) eritema infeccioso (quinta
moléstia da infância) – eritema das regiões malares seguido de um padrão
reticulado nos membros; é secundário à infecção pelo parvovírus B19 e observa-
se artrite associada nos adultos.

TABELA 54-13 ■ Causas de exantemas


I. Morbiliforme
A. Drogas e fármacos
B. Virais
1. Sarampo
2. Rubéola
3. Eritema infeccioso (eritema das regiões malares; reticulado nas extremidades)
4. Infecções por vírus Epstein-Barr, ecovírus, coxsackievírus, CMV, adenovírus, HHV-6/HHV-7a, vírus da dengue, vírus Zika,
Chikungunya e vírus do Nilo Ocidental
5. Exantema da soroconversão do HIV (mais ulcerações mucosas)
C. Bacterianas
1. Febre tifoide
2. Fase inicial da sífilis secundária
3. Fase inicial das riquetsioses
4. Fase inicial da meningococemia
5. Erliquiose
D. Doença do enxerto contra o hospedeiro aguda
E. Doença de Kawasaki
II. Escarlatiniforme
A. Escarlatina
B. Síndrome do choque tóxico
C. Doença de Kawasaki
D. Fase inicial da síndrome da pele escaldada estafilocócica
aInfecção primária em lactentes e reativação em casos de imunossupressão.

Siglas: CMV, citomegalovírus; HHV, herpes-vírus humano; HIV, vírus da imunodeficiência humana.
O sarampo e a rubéola podem ocorrer nos adultos não vacinados, e uma
forma atípica dessa doença é observada nos adultos imunizados com vacina
antissarampo de vírus morto ou na imunização com vacina de vírus mortos
seguida da vacina de vírus vivos. Em contrapartida com o sarampo clássico, a
erupção do sarampo atípico começa nas palmas, nas plantas, nos punhos e
tornozelos, e as lesões podem se tornar purpúricas. O paciente com sarampo
atípico pode manifestar comprometimento pulmonar e desenvolver doença
grave. As erupções rubeoliformes e roseoliformes também estão associadas às
infecções pelo vírus Epstein-Barr (5-15% dos pacientes), ecovírus,
coxsackievírus, citomegalovírus, adenovírus, vírus da dengue, vírus Zika e vírus
do Nilo Ocidental. A detecção de anticorpos IgM específicos ou elevação de
quatro vezes nos anticorpos IgG costumam permitir o diagnóstico, mas a reação
em cadeia da polimerase (PCR) está gradualmente substituindo os exames
sorológicos. Ocasionalmente, a farmacodermia maculopapular é o reflexo de
uma infecção viral subjacente. Por exemplo, cerca de 95% dos pacientes com
mononucleose infecciosa tratados com ampicilina desenvolvem exantema.
É importante salientar que, no início da evolução das infecções por
Rickettsia e meningococos e antes do aparecimento de petéquias e púrpuras, as
lesões podem ser máculas e pápulas eritematosas. Esse também é o caso da
varicela antes do aparecimento de vesículas. As erupções maculopapulares estão
associadas à fase inicial da infecção pelo HIV, à sífilis secundária, à febre tifoide
e à doença do enxerto contra o hospedeiro aguda. Nesse último caso, as lesões
frequentemente começam nos dorsos das mãos e nos antebraços; as máculas
rosadas da febre tifoide envolvem principalmente a parte anterior do tronco.
O protótipo das erupções escarlatiniformes é a escarlatina e deve-se a uma
eritrotoxina produzida pelas infecções por estreptococos β-hemolíticos do grupo
A contendo bacteriófagos, mais comumente em casos de faringite. Essa erupção
caracteriza-se por eritema difuso que começa na região cervical e na parte
superior do tronco e por pontos foliculares vermelhos. Outras anormalidades
incluem língua em morango branca (revestimento branco com papilas
vermelhas) seguida de língua em morango vermelha (língua vermelha com
papilas vermelhas); petéquias no palato; rubor facial com palidez perioral;
petéquias lineares nas dobras dos antebraços; e descamação da pele afetada, das
palmas e das plantas 5 a 20 dias depois do início da erupção. Uma descamação
semelhante das palmas e das plantas ocorre com a síndrome do choque tóxico
(SCT), a doença de Kawasaki e depois de doenças febris graves. Certas cepas de
estafilococos também produzem uma eritrotoxina que provoca as mesmas
manifestações clínicas da escarlatina estreptocócica, exceto pelos títulos de
antiestreptolisina O ou anti-DNase B, que não aumentam nesses casos.
Na síndrome do choque tóxico, as infecções estafilocócicas (fagos do grupo
I) produzem uma exotoxina (TSCT-1) que provoca a febre e a erupção, e
também enterotoxinas. Inicialmente, a maioria dos casos era relatada nas
mulheres que usavam absorventes internos no período da menstruação. Contudo,
outros locais de infecção (como feridas e tamponamento nasal) podem acarretar
a SCT. O diagnóstico de SCT baseia-se em critérios clínicos (Cap. 142), e três
deles incluem lesões mucocutâneas (eritema difuso da pele, descamação das
palmas e das plantas dentro 1-2 semanas depois do início da doença e lesões das
mucosas). As lesões mucosas caracterizam-se por hiperemia da vagina, da
orofaringe ou das conjuntivas. Achados clínicos semelhantes foram descritos na
síndrome do choque tóxico estreptocócico (Cap. 143) e, embora o exantema seja
visto com menor frequência do que na SCT devido a uma infecção
estafilocócica, a infecção subjacente costuma se localizar em tecidos moles (p.
ex., celulite).
A erupção cutânea na doença de Kawasaki (Cap. 356) é polimorfa, mas as
duas formas mais comuns são morbiliforme e escarlatiniforme. Outras
anormalidades mucocutâneas são congestão conjuntival bilateral; eritema e
edema das mãos e dos pés seguidos de descamação; e eritema difuso da
orofaringe, língua em morango vermelha e lábios secos fissurados. Esse quadro
clínico pode assemelhar-se à SCT e à escarlatina, mas os indícios ao diagnóstico
da doença de Kawasaki são linfadenopatia cervical, queilite e trombocitose. A
manifestação sistêmica mais grave associada a essa doença são os aneurismas
coronarianos secundários à arterite. As erupções escarlatiniformes também são
encontradas na fase inicial da SPEE (ver “Vesículas/bolhas”, anteriormente) em
adultos jovens com infecção por Arcanobacterium haemolyticum e nas reações
aos fármacos.
URTICÁRIA
(Tab. 54-14) A urticária caracteriza-se por lesões transitórias compostas de um
vergão central circundado por um halo eritematoso. As lesões individuais são
redondas, ovais ou figuradas e frequentemente pruriginosas. As urticárias aguda
e crônica têm grande variedade de etiologias alérgicas e são decorrentes do
edema na derme. Lesões urticariformes também são encontradas nos pacientes
com mastocitose (urticária pigmentosa), hipotireoidismo ou hipertireoidismo,
síndrome de Schnitzler e artrite idiopática juvenil de início sistêmico (doença de
Still). Nas formas juvenil e adulta da doença de Still, as lesões coincidem com o
pico febril, são transitórias e secundárias à infiltração dérmica por neutrófilos.

TABELA 54-14 ■ Causas de urticária e angioedema


I. Distúrbios cutâneos primários
A. Urticárias aguda e crônicaa
B. Urticária física
1. Dermografismo
2. Urticária solarb
3. Urticária do friob
4. Urticária colinérgicab
C. Angioedema (hereditário e adquirido)b,c
II. Doenças sistêmicas
A. Vasculite urticariana
B. Infecção viral por hepatite B ou C
C. Doença do soro
D. Angioedema (hereditário e adquirido)
aUma pequena minoria desenvolve anafilaxia. bTambém sistêmica. cO angioedema adquirido pode ser idiopático, associado a distúrbio

linfoproliferativo ou causado por fármacos, por exemplo, inibidores da enzima conversora da angiotensina (ECA).

As urticárias físicas comuns incluem o dermografismo, a urticária solar, a


urticária provocada pelo frio e a urticária colinérgica. Os pacientes com
dermografismo desenvolvem lesões urticariformes lineares depois da mais leve
compressão ou arranhadura da pele. Trata-se de um distúrbio comum, que
acomete cerca de 5% da população. A urticária solar geralmente ocorre minutos
depois do início da exposição ao sol e é um sinal cutâneo de uma doença
sistêmica – protoporfiria eritropoiética. Além da urticária, esses pacientes têm
cicatrizes deprimidas sutis no nariz e nas mãos. A urticária provocada pelo frio é
precipitada pela exposição às temperaturas baixas e, sendo assim, as áreas
expostas geralmente são afetadas. Em alguns pacientes, a doença está associada
a proteínas circulantes anormais – mais comumente crioglobulinas e, com menor
frequência, criofibrinogênios. Outros sintomas sistêmicos incluem dificuldade
respiratória e síncope, e isso explica a necessidade de esses pacientes evitarem
nadar em água fria. A urticária provocada pelo frio com herança autossômica
dominante está associada à disfunção da criopirina. A urticária colinérgica é
desencadeada por calor, exercícios ou emoção e caracteriza-se por pequenas
lesões urticariformes com edema relativamente intenso. Ela está algumas vezes
associada à sibilância.
Enquanto as urticárias são causadas pelo edema da derme, o edema
subcutâneo produz o quadro clínico de angioedema. Os locais acometidos
incluem as pálpebras, os lábios, a língua, a laringe, o trato gastrintestinal e
também o tecido subcutâneo. O angioedema ocorre isoladamente ou está
associado à urticária, inclusive vasculite urticariana e urticárias físicas. O
angioedema pode ser adquirido ou hereditário (autossômico dominante) (Cap. 3
47) e, nesse último, a urticária é rara ou ausente.
A vasculite urticariana é uma doença por imunocomplexos que pode ser
confundida com a urticária simples. Ao contrário da urticária simples, as lesões
individuais tendem a permanecer por mais de 24 horas e, em geral, surgem
petéquias centrais que podem ser observadas mesmo depois da resolução da fase
urticariana. O paciente também pode queixar-se de ardência em vez de prurido.
A biópsia revela vasculite leucocitoclástica dos pequenos vasos sanguíneos da
derme. Embora a vasculite urticariana possa ser idiopática na origem, a afecção
pode ser o reflexo de uma doença sistêmica subjacente, inclusive lúpus
eritematoso, síndrome de Sjögren ou deficiência hereditária do complemento.
Existe um espectro de vasculites urticarianas, que variam de comprometimento
puramente cutâneo até as formas multissistêmicas. Os sinais e os sintomas
sistêmicos mais comuns são artralgias e/ou artrite, nefrite e dor abdominal em
cólica, enquanto asma e doença pulmonar obstrutiva crônica são diagnosticadas
com menor frequência. A hipocomplementemia ocorre em um a dois terços dos
pacientes, mesmo nos casos idiopáticos. A vasculite urticariana também pode ser
diagnosticada nos pacientes com infecções pelos vírus das hepatites B e C,
doença do soro e doenças semelhantes à doença do soro (p. ex., causada por
cefaclor ou minociclina).
LESÕES CUTÂNEAS PAPULONODULARES
(Tab. 54-15) Nas doenças papulonodulares, as lesões são elevadas acima da
superfície da pele e podem coalescer e formar placas. A localização, a
consistência e a cor das lesões são fundamentais para o diagnóstico; esta seção
está organizada com base na cor das lesões.

TABELA 54-15 ■ Lesões cutâneas papulonodulares classificadas de acordo com a cor


I. Brancas
A. Calcinose cutânea
B. Osteoma cutâneo (também cor da pele ou azul)
II. Cor da pele
A. Nódulos reumatoides
B. Neurofibromas (doença de von Recklinghausen [NF1])
C. Angiofibromas (esclerose tuberosa, síndrome NEM tipo 1)
D. Neuromas (síndrome NEM tipo 2b)
E. Tumores anexiais
1. Carcinomas basocelulares (síndrome do nevo basocelular)
2. Tricolemomas (doença de Cowden)
F. Osteomas (surgem no crânio e na mandíbula na síndrome de Gardner)
G. Distúrbios cutâneos primários
1. Cistos de inclusão epidérmicaa
2. Lipomas
III.Rosadas/translúcidasb
A. Amiloidose primária sistêmica
B. Escleromixedema/mucinose papular
C. Retículo-histiocitose multicêntrica
IV.Amarelas
A. Xantomas
B. Tofos
C. Necrobiose lipoídica
D. Pseudoxantoma elástico
E. Adenomas sebáceos (síndrome de Muir-Torre)
V. Vermelhasb
A. Pápulas
1. Angioceratomas (doença de Fabry)
2. Angiomatose bacilar (principalmente na Aids)
B. Pápulas/placas
1. Lúpus cutâneo
2. Linfoma cutâneo
3. Leucemia cutânea
4. Síndrome de Sweet
C. Nódulos
1. Paniculite
2. Vasculite de vasos de médio calibre (p. ex., poliarterite nodosa cutânea)
D. Distúrbios cutâneos primários
1. Picadas de artrópodes
2. Hemangiomas rubis
3. Infecções; p. ex., celulite estreptocócica, esporotricose
4. Erupção polimorfa à luz
5. Hiperplasia linfoide cutânea (linfocitoma cutâneo, pseudolinfoma)
VI.Vermelho-acastanhadasb
A. Sarcoidose
B. Urticária pigmentosa
C. Eritema elevatum diutinum (vasculite leucocitoclástica crônica)
D. Lúpus vulgar
VII.Azuladasb
A. Malformações venosas (síndrome blue rubber bleb)
B. Distúrbios cutâneos primários
1. Lago venoso
2. Nevo azul
VIII. Violáceas
A. Lúpus pérnio (sarcoidose)
B. Linfoma cutâneo
C. Lúpus cutâneo
IX.Purpúricas
A. Sarcoma de Kaposi
B. Angiossarcoma
C. Púrpura palpável (ver Tab. 54-16)
X. Marron-negrasc
XI.Qualquer cor
A. Metástases
aSe forem múltiplas a aparecerem na infância, considerar síndrome de Gardner. bPode ter tonalidade mais escura nos indivíduos mais

intensamente pigmentados cVer também “Hiperpigmentação”.


Sigla: NEM, neoplasia endócrina múltipla.

LESÕES BRANCAS
Na calcinose cutânea, ocorrem pápulas firmes brancas ou branco-amareladas de
superfície irregular. Quando o conteúdo é espremido, observa-se um material
branco-giz. A calcificação distrófica é encontrada nos locais de inflamação ou
em lesão prévia da pele. Isso ocorre nas cicatrizes da acne e também nas
extremidades distais dos pacientes com esclerodermia, e no tecido subcutâneo,
bem como nos planos fasciais intermusculares na DM. As lesões dessa última
doença são mais extensivas e encontradas com maior frequência nas crianças. A
elevação do produto fosfato × cálcio, mais comumente causada por
hiperparatireoidismo secundário associado à insuficiência renal, pode acarretar
os nódulos de calcinose cutânea metastática, que tendem a ser subcutâneos e
periarticulares. Esses pacientes também podem desenvolver calcificação das
artérias musculares e necrose isquêmica (calcifilaxia) subsequente. O osteoma
cutâneo, na forma de pequenas pápulas, ocorre mais comumente na face de
indivíduos com história de acne vulgar, enquanto as lesões planas ocorrem em
raras síndromes genéticas.

LESÕES COR DA PELE


Existem vários tipos de lesões cor da pele, inclusive cistos de inclusão
epidermoides, lipomas, nódulos reumatoides, neurofibromas, angiofibromas,
neuromas e tumores dos anexos, como os tricolemomas. Os cistos de inclusão
epidérmica e os lipomas são nódulos subcutâneos móveis muito comuns – os
primeiros têm consistência elástica e, quando são incisados, drenam material
caseoso (sebo e queratina). Os lipomas são firmes e algo lobulados à palpação.
Quando os cistos de inclusão epidérmica faciais extensivos desenvolvem-se
durante a infância ou quando existe histórico familiar dessas lesões, o paciente
deve ser examinado para outros sinais da síndrome de Gardner, inclusive
osteomas e tumores desmoides. Os nódulos reumatoides são firmes, medem de
0,5 a 4 cm e tendem a se localizar ao redor de pontos de pressão, especialmente
os cotovelos. Esses nódulos são encontrados em cerca de 20% dos pacientes com
artrite reumatoide e em 6% dos indivíduos com doença de Still. As biópsias dos
nódulos mostram granulomas em paliçada. Lesões semelhantes, mas de tamanho
menor e de duração mais curta, são vistas na febre reumática.
Os neurofibromas (tumores benignos das células de Schwann) são pápulas
ou nódulos moles que apresentam o sinal da “casa de botão”, ou seja, invaginam
na pele sob pressão de maneira semelhante a uma hérnia. As lesões isoladas são
detectadas nas pessoas normais, porém neurofibromas múltiplos, em geral
associados a seis ou mais MCCLs, medindo > 1,5 cm (ver “Hiperpigmentação”,
anteriormente), sardas axilares e múltiplos nódulos de Lisch, são observados na
doença de von Recklinghausen (NF tipo I, Cap. 86). Em alguns pacientes, os
neurofibromas são localizados e unilaterais e devem-se ao mosaicismo somático.
Os angiofibromas são pápulas firmes, cor da pele ou róseas, medindo de 3
mm a 1,5 cm de diâmetro. Quando várias lesões estão localizadas na parte
central das regiões malares (adenomas sebáceos), o paciente tem esclerose
tuberosa ou síndrome da neoplasia endócrina múltipla (NEM) tipo 1. Essa
primeira doença é um distúrbio autossômico causado por mutações de dois genes
diferentes, e as outras manifestações clínicas estão descritas na seção sobre as
manchas em folhas de freixo e também no Capítulo 86.
Os neuromas (proliferações benignas de fibras nervosas) também são
pápulas firmes cor da pele. Essas lesões são encontradas com maior frequência
em locais de amputação e na polidactilia rudimentar. Contudo, quando existem
múltiplos neuromas nas pálpebras, nos lábios, na porção distal da língua e/ou na
mucosa oral, devem-se pesquisar outros sinais da síndrome NEM tipo 2b. As
anormalidades associadas incluem compleição marfanoide, lábios protuberantes,
ganglioneuromas intestinais e carcinoma medular da tireoide (> 75% dos
pacientes; Cap. 381).
Os tumores anexiais originam-se de células pluripotenciais da epiderme,
que podem se diferenciar em pelos, glândulas sebáceas, apócrinas ou écrinas, ou
podem permanecer indiferenciadas. Os carcinomas basocelulares (CBCs) são
exemplos de tumores anexiais que apresentam pouca ou nenhuma evidência de
diferenciação. Do ponto de vista clínico, essas lesões são pápulas translúcidas
com margens elevadas, telangiectasias e erosão central. Os CBCs surgem com
frequência na pele da cabeça e da região cervical danificada pelo sol, bem como
na região superior do tórax. Quando um paciente apresenta vários CBCs,
especialmente antes dos 30 anos de idade, deve-se suspeitar de síndrome do
nevo basocelular. Essa síndrome é herdada como traço autossômico dominante e
está associada a cistos no maxilar, depressões palmares e plantares,
protuberância frontal, meduloblastomas e calcificação da foice cerebral e da sela
do diafragma. Os tricolemomas também são tumores anexiais da cor da pele,
mas se diferenciam no sentido dos folículos pilosos e podem ter aspecto
verrucoso. A presença de vários tricolemomas na face e o aspecto de pedras de
calçamento na mucosa oral apontam para o diagnóstico da doença de Cowden
(síndrome dos hamartomas múltiplos) provocada por mutações no gene
homólogo da fosfatase e tensina (PTEN). O acometimento dos órgãos internos
(em ordem decrescente de frequência) inclui doença fibrocística e carcinoma de
mama, adenomas e carcinomas da tireoide e polipose gastrintestinal. Também
são vistas ceratoses nas palmas, nas plantas e no dorso das mãos.

LESÕES ROSADAS
As lesões cutâneas associadas à amiloidose sistêmica primária geralmente são de
cor rosa ou rosa-alaranjada e translúcidas. As localizações frequentes são face
(especialmente nas regiões periorbital e perioral) e superfícies flexoras. A
biópsia mostra depósitos homogêneos de amiloide na derme e nas paredes dos
vasos sanguíneos, levando ao aumento da fragilidade da parede vascular. Em
consequência, petéquias e púrpura surgem na pele clinicamente normal e
também na pele lesada por traumatismo leve, daí o nome púrpura do beliscão.
Os depósitos de amiloide também são encontrados no músculo estriado da
língua, causando macroglossia.
Mesmo que lesões mucocutâneas específicas estejam presentes apenas em
cerca de 30% dos pacientes com amiloidose (AL) sistêmica primária, o
diagnóstico pode ser feito por meio do exame histológico da gordura subcutânea
abdominal em conjunto com exame sérico para cadeias leves livres. Com a
utilização de corantes especiais, os depósitos de amiloide são detectados ao redor
dos vasos sanguíneos ou dos adipócitos isolados em até 40 a 50% dos pacientes.
Também existem três formas de amiloidose limitadas à pele, que não devem ser
consideradas lesões cutâneas da amiloidose sistêmica. Esses distúrbios são
amiloidose macular (na parte superior do dorso), amiloidose liquenoide
(geralmente nos membros inferiores) e amiloidose nodular. Nas amiloidoses
macular e liquenoide, os depósitos são constituídos de queratina epidérmica
alterada. As amiloidoses macular e liquenoide de início precoce foram
associadas à síndrome da NEM tipo 2a.
Os pacientes com retículo-histiocitose multicêntrica também apresentam
pápulas e nódulos de cor rosada na face e nas mucosas e também na superfície
extensora das mãos e dos antebraços. Esses pacientes desenvolvem poliartrite
que pode simular clinicamente a artrite reumatoide. Ao exame histopatológico,
as pápulas apresentam células gigantes características, que não são encontradas
nas biópsias dos nódulos reumatoides. Pápulas de coloração rósea ou cor da pele,
de consistência firme, com 2 a 5 mm de diâmetro e frequentemente distribuídas
em padrão linear ocorrem nos pacientes com mucinose papular. Essa doença
também é chamada de escleromixedema. Esse último nome origina-se da
induração rija da face e dos membros, que pode acompanhar a erupção papular.
As amostras da biópsia das pápulas apresentam depósito localizado de mucina, e
a eletroforese das proteínas séricas e a eletroforese de imunofixação mostram um
pico monoclonal de IgG geralmente com uma cadeia leve λ.

LESÕES AMARELAS
Vários distúrbios sistêmicos caracterizam-se por pápulas ou placas cutâneas de
cor amarela – hiperlipidemia (xantomas), gota (tofos), diabetes (necrobiose
lipoídica), pseudoxantoma elástico e síndrome de Muir-Torre (tumores
sebáceos). Os xantomas eruptivos são as formas mais comuns de xantomas e
estão associados à hipertrigliceridemia (principalmente hiperlipoproteinemias
tipos I, IV e V). Grupos de pápulas amarelas com halo eritematoso ocorrem
principalmente nas superfícies extensoras dos membros e das nádegas e
desaparecem espontaneamente quando os triglicerídeos séricos diminuem. Os
tipos II e III resultam em um ou mais dos seguintes tipos de xantoma:
xantelasma, xantomas tendíneos e xantomas planos. Os xantelasmas são
encontrados nas pálpebras, enquanto os xantomas tendíneos estão
frequentemente associados ao tendão do calcâneo e aos tendões extensores dos
dedos; os xantomas planos são achatados e ocorrem mais frequentemente nas
pregas palmares e em pregas de flexão. Com frequência, os xantomas tuberosos
estão associados à hipercolesterolemia; porém, eles são também encontrados na
hipertrigliceridemia e com maior frequência nas grandes articulações ou nas
mãos. As amostras de biópsia de xantomas mostram coleções de macrófagos
contendo lipídeos (células espumosas).
Os pacientes portadores de vários distúrbios, incluindo cirrose biliar, podem
apresentar uma forma secundária de hiperlipidemia com xantomas tuberosos e
planos associados. Contudo, os pacientes com discrasias plasmocitárias
apresentam xantomas planos normolipêmicos. Essa última forma de xantoma
pode alcançar ≥ 12 cm de diâmetro e é encontrada com maior frequência na
região cervical, na parte superior do tronco e em pregas cutâneas flexoras. É
importante salientar que o contexto mais frequente para os xantomas eruptivos é
o diabetes melito não controlado. O sinal menos específico para hiperlipidemia é
o xantelasma, porque pelo menos 50% dos pacientes com essa lesão apresentam
perfis lipídicos normais.
Na gota tofácea, ocorrem depósitos de urato monossódico na pele, ao redor
das articulações, particularmente das mãos e dos pés. Outros locais de formação
de tofos são as hélices das orelhas e as bolsas olecraniana e pré-patelar. As lesões
são firmes, amarelas ou amarelo-esbranquiçadas e ocasionalmente secretam
material semelhante ao giz. Seu tamanho varia de 1 mm a 7 cm, e o diagnóstico
pode ser estabelecido por meio da microscopia óptica polarizada do conteúdo
aspirado de um tofo. As lesões da necrobiose lipóidica são encontradas
principalmente na região tibial anterior (90%), e os pacientes podem ter diabetes
melito ou desenvolver essa doença mais tarde. Os achados típicos incluem
coloração central amarela, atrofia (transparência), telangiectasias e borda
vermelha ou castanho-avermelhada. Ulcerações também podem se desenvolver
no interior das placas. As amostras das biópsias mostram necrobiose do colágeno
e inflamação granulomatosa.
No pseudoxantoma elástico (PXE), causado por mutações do gene ABCC6,
há deposição anormal de cálcio nas fibras elásticas da pele, nos olhos e nos
vasos sanguíneos. Na pele, as superfícies flexoras, como a região cervical, as
axilas, as dobras dos antebraços e a região inguinal, são os primeiros locais
afetados. As pápulas amarelas coalescem, formando placas reticuladas
semelhantes à pele de frango depenado. Na pele acometida de forma intensa,
surgem pregas redundantes e pendentes. As amostras de biópsia da pele
comprometida mostram fibras elásticas acumuladas de modo irregular e
intumescidas com depósitos de cálcio. No olho, os depósitos de cálcio na
membrana de Bruch provocam estrias angioides e coroidite; nas artérias do
coração, dos rins, do trato gastrintestinal e dos membros, os depósitos provocam
angina, hipertensão, hemorragia digestiva e claudicação respectivamente.
Os tumores anexiais que se diferenciaram em glândulas sebáceas incluem o
adenoma sebáceo, o carcinoma sebáceo e a hiperplasia sebácea. Exceto pela
última, que é comumente encontrada na face, esses tumores são muito raros. Os
pacientes com síndrome de Muir-Torre apresentam um ou mais adenomas
sebáceos e também podem desenvolver carcinomas sebáceos e hiperplasia
sebácea, além de ceratoacantomas. As manifestações internas da síndrome de
Muir-Torre incluem carcinomas múltiplos do trato gastrintestinal (principalmente
do intestino grosso), bem como cânceres do trato geniturinário.

LESÕES VERMELHAS
As lesões cutâneas de cor vermelha apresentam uma grande variedade de
etiologias; na tentativa de simplificar sua identificação, essas lesões são
subdivididas em pápulas, pápulas/placas e nódulos subcutâneos. As pápulas
vermelhas comuns incluem picadas de artrópodes e hemangiomas rubis; esses
últimos são pápulas pequenas, cupuliformes e vermelho-vivas que representam
proliferação benigna dos capilares. Nos pacientes com Aids (Cap. 197), o
desenvolvimento de várias lesões vermelhas semelhantes aos hemangiomas
sugere angiomatose bacilar, e as amostras de biópsia mostram aglomerados de
bacilos, que se coram positivamente com o corante de Warthin-Starry; os
patógenos foram identificados como Bartonella henselae e Bartonella quintana.
A doença visceral disseminada é encontrada principalmente nos hospedeiros
imunossuprimidos, mas pode ocorrer em pacientes imunocompetentes.
Os angioceratomas múltiplos são encontrados na doença de Fabry, um
distúrbio recessivo do armazenamento lisossômico ligado ao cromossomo X,
causado pela deficiência de α-galactosidase A. As lesões são vermelhas ou azul-
avermelhadas, podem ser muito pequenas (1-3 mm) e são encontradas mais
frequentemente na parte inferior do tronco. As anormalidades associadas
incluem insuficiência renal crônica, neuropatia periférica e opacidades da córnea
(córnea verticilada). As fotografias de microscopia eletrônica dos
angioceratomas e da pele clinicamente normal mostram depósitos lipídicos
lamelares nos fibroblastos, nos pericitos e nas células endoteliais, que são
diagnósticos dessa doença. As erupções agudas disseminadas com pápulas
eritematosas estão descritas na seção de exantemas.
Existem várias doenças infecciosas que se manifestam com pápulas ou
nódulos eritematosos em um padrão linfocutâneo ou esporotricoide, ou seja,
disposição linear ao longo dos canais linfáticos. As duas etiologias mais comuns
são as infecções causadas por Sporothrix schenckii (esporotricose) e a
micobactéria atípica Mycobacterium marinum. Os microrganismos são
introduzidos em consequência de traumatismo, e o local de inoculação primária
é frequentemente visualizado, além dos nódulos linfáticos. Mais causas incluem
Nocardia, Leishmania, outras micobactérias atípicas e outros fungos dimórficos;
a cultura ou PCR do tecido lesionado ajudam no diagnóstico.
As doenças que se caracterizam por placas eritematosas com descamação
estão revistas na seção sobre alterações papuloescamosas, e as diferentes formas
de dermatite estão descritas na seção sobre eritrodermia. Outros distúrbios a
serem levados em consideração no diagnóstico diferencial das pápulas/placas
vermelhas incluem celulite, erupção polimorfa à luz (EPL), hiperplasia linfoide
cutânea (linfocitoma cutâneo), lúpus cutâneo, linfoma cutâneo e leucemia
cutânea. As primeiras três doenças representam distúrbios cutâneos primários,
embora a celulite possa estar acompanhada por bacteremia. A EPL caracteriza-se
por pápulas e placas eritematosas distribuídas principalmente nas áreas expostas
ao sol – dorso da mão, face extensora do antebraço e parte superior do tronco.
As lesões ocorrem depois da exposição à UVB e/ou à UVA, e, nas latitudes
maiores, a EPL é mais grave no final da primavera e no início do verão. Um
processo denominado “tolerância” ocorre com a exposição contínua à UV e a
erupção desvanece, mas, nas regiões de clima temperado, ela recidiva na
primavera. A EPL deve ser diferenciada do lúpus cutâneo, e isso é conseguido
por observação da história natural, pelo exame histológico e, algumas vezes, pela
imunofluorescência direta das lesões. A hiperplasia linfoide cutânea
(pseudolinfoma) é uma proliferação policlonal benigna de linfócitos na pele, que
se manifesta com pápulas e placas infiltradas de cor vermelho-rósea ou roxo-
avermelhada; essa última doença deve ser diferenciada do linfoma cutâneo.
Diversos tipos de placas vermelhas são encontrados nos pacientes com
lúpus sistêmico, inclusive (1) placas urticariformes eritematosas nas regiões
malares e no nariz, que constituem a clássica erupção em asa de borboleta; (2)
lesões discoides eritematosas com descamação fina ou “tachas de tapete”,
telangiectasias, hipopigmentação central, hiperpigmentação periférica,
tamponamento folicular e atrofia localizada no couro cabeludo, na face, nas
orelhas, nos braços e na parte superior do tronco; e (3) lesões psoriasiformes ou
anulares do lúpus subagudo com centros hipopigmentados localizadas
principalmente nas superfícies extensoras dos braços e na parte superior do
tronco. Outras anormalidades cutâneas são (1) rubor violáceo na face e no V do
pescoço; (2) fotossensibilidade; (3) vasculite urticariforme (ver “Urticária”,
anteriormente); (4) paniculite lúpica (ver adiante); (5) alopécia difusa; (6)
alopécia secundária às lesões discoides; (7) telangiectasias e eritema cuticulares;
(8) lesões semelhantes ao EM ou NET que podem se tornar bolhosas; (9) úlceras
orais ou nasais; (10) livedo reticular; e (11) ulcerações distais secundárias ao
fenômeno de Raynaud, à vasculite ou à vasculopatia livedoide. Os pacientes que
apresentam apenas lesões discoides geralmente têm a forma de lúpus limitada à
pele. Porém, até 10 a 15% desses pacientes por fim desenvolverão lúpus
sistêmico. A imunofluorescência direta da pele comprometida, especialmente das
lesões discoides, mostra depósitos de IgG ou IgM e C3 em distribuição granular
ao longo da junção dermoepidérmica.
No linfoma cutâneo, há proliferação clonal dos linfócitos malignos na pele,
e o aspecto clínico assemelha-se ao da hiperplasia linfoide cutânea – pápulas e
placas infiltradas de cor vermelho-rósea ou roxo-avermelhada. O linfoma
cutâneo pode acometer qualquer parte da superfície da pele, enquanto as
localizações mais frequentes dos linfocitomas são a crista malar, a ponta do nariz
e os lobos das orelhas. Os pacientes com linfomas não Hodgkin apresentam
lesões cutâneas específicas com maior frequência que os que têm a doença de
Hodgkin e, ocasionalmente, os nódulos cutâneos precedem ao desenvolvimento
de linfoma não Hodgkin extracutâneo ou representam o único local de
comprometimento (p. ex., linfoma de células B cutâneas primário). Em alguns
casos, encontram-se lesões arqueadas no linfoma e no linfocitoma cutâneos e
também no LCTC. A leucemia/linfoma de células T do adulto, que está
associada à infecção pelo HTLV-1, caracteriza-se por placas cutâneas,
hipercalcemia e linfócitos CD25+ circulantes. A leucemia cutânea apresenta o
mesmo aspecto do linfoma cutâneo, e as lesões específicas são encontradas mais
frequentemente nas leucemias monocíticas que nas leucemias linfocíticas ou
granulocíticas. Os cloromas cutâneos (sarcomas granulocíticos) podem preceder
ao aparecimento de blastos circulantes na leucemia mielocítica aguda e, assim,
representam uma forma de leucemia cutânea aleucêmica.
A síndrome de Sweet caracteriza-se por placas edematosas rosa-
avermelhadas ou castanho-avermelhadas geralmente dolorosas, que ocorrem
principalmente na cabeça, na região cervical e nos membros superiores. Os
pacientes também apresentam febre, neutrofilia e infiltrado dérmico denso de
neutrófilos nas lesões. Em cerca de 10% dos pacientes, há uma neoplasia
maligna associada, mais comumente leucemia mielocítica aguda. A síndrome de
Sweet também foi relatada em pacientes com doença inflamatória intestinal,
lúpus eritematoso sistêmico e tumores sólidos (principalmente do trato
geniturinário), mas também foi associada a alguns fármacos (p. ex., ácido all-
trans-retinoico, fator estimulador das colônias de granulócitos [G-CSF]). O
diagnóstico diferencial inclui hidradenite écrina neutrofílica; formas bolhosas do
pioderma gangrenoso; e, ocasionalmente, celulite. Os locais extracutâneos de
comprometimento incluem articulações, músculos, olhos, rins (proteinúria, às
vezes glomerulonefrite) e pulmões (infiltrados neutrofílicos). A forma idiopática
da síndrome de Sweet é encontrada com maior frequência nas mulheres após
uma infecção do trato respiratório.
As causas frequentes de nódulos subcutâneos eritematosos incluem cistos
de inclusão epidérmicos inflamados, cistos da acne e furúnculos. A paniculite,
uma inflamação do tecido adiposo, também se manifesta com nódulos
subcutâneos e comumente é um sinal de doença sistêmica. Existem diversas
formas de paniculite, como o eritema nodoso, o eritema endurado/vasculite
nodular, a paniculite lúpica, a lipodermatosclerose, a deficiência de α1-
antitripsina, úlceras factícias e adiponecrose secundária à doença pancreática.
Exceto pelo eritema nodoso, essas lesões podem romper-se e ulcerar ou regredir,
formando uma cicatriz. A superfície tibial anterior é a localização mais comum
dos nódulos do eritema nodoso, enquanto a panturrilha é o local mais comum
das lesões do eritema indurado. No eritema nodoso, os nódulos inicialmente são
vermelhos, mas depois adquirem uma coloração azul à medida que melhoram.
Os pacientes que têm eritema nodoso, mas não apresentam doença sistêmica
subjacente, podem ainda apresentar febre, mal-estar, leucocitose, artralgias e/ou
artrite. Contudo, a possibilidade de uma doença subjacente sempre deverá ser
excluída, e as associações mais comuns são infecções estreptocócicas, infecções
virais do trato respiratório superior, sarcoidose e doença inflamatória intestinal,
além dos fármacos (anticoncepcionais orais, sulfonamidas, penicilinas,
brometos, iodetos e inibidores de BRAF). As associações menos frequentes são
com gastrenterites bacterianas (Yersinia, Salmonella) e coccidioidomicose,
seguidas de tuberculose, histoplasmose, brucelose e infecções por
Chlamydophila pneumoniae ou Chlamydia trachomatis, Mycoplasma
pneumoniae ou vírus da hepatite B.
O eritema indurado e a vasculite nodular têm manifestações clínicas e
histológicas semelhantes e ainda não está claro se representam duas doenças
diferentes ou as fases finais de um único distúrbio; em geral, a vasculite nodular
geralmente é idiopática, enquanto o eritema indurado está associado à presença
do DNA do Mycobacterium tuberculosis detectado dentro das lesões cutâneas
pela PCR. As lesões da paniculite lúpica são encontradas principalmente nas
regiões malares, nos braços e nas nádegas (locais de gordura abundante) e estão
associadas às formas cutânea e sistêmica do lúpus. A pele sobrejacente pode ser
normal, eritematosa ou mostrar as alterações do lúpus discoide. A necrose da
gordura subcutânea que está associada à doença pancreática é presumivelmente
secundária às lipases circulantes e é diagnosticada nos pacientes com carcinoma
pancreático e pancreatites aguda e crônica. Nesse distúrbio, pode haver artrite,
febre e inflamação da gordura visceral associadas. O exame histopatológico das
amostras de biópsia incisional profunda facilita o diagnóstico do tipo específico
de paniculite.
Nódulos eritematosos subcutâneos também são encontrados na poliarterite
nodosa cutânea e como manifestação das vasculites sistêmicas quando há
envolvimento de vasos de médio calibre (p. ex., poliarterite nodosa sistêmica,
granulomatose alérgica ou granulomatose eosinofílica com poliangeíte) (Cap. 35
6). A poliarterite nodosa cutânea apresenta-se com nódulos subcutâneos
dolorosos e úlceras com padrão reticulado roxo-avermelhado de livedo reticular.
Esse último padrão resulta do fluxo sanguíneo lento pelo plexo venoso
horizontal superficial. A maioria das lesões é encontrada no membro inferior e,
embora artralgias e mialgias possam acompanhar a poliarterite nodosa cutânea,
não há evidências de comprometimento sistêmico. Nas formas cutâneas e
sistêmicas de vasculite, as amostras de biópsias de pele dos nódulos associados
mostrarão as alterações características de uma vasculite necrosante e/ou
inflamação granulomatosa.

LESÕES CASTANHO-AVERMELHADAS
Nos casos clássicos, as lesões cutâneas da sarcoidose (Cap. 360) são vermelhas
ou castanho-avermelhadas e, por meio da diascopia (pressão com uma lâmina de
vidro), observa-se coloração residual castanho-amarelada secundária ao
infiltrado granulomatoso. Pápulas e placas céreas podem ser encontradas em
qualquer ponto da pele, mas a face é a localização mais comum. Em geral, não
há alterações superficiais, mas pode haver descamação das lesões. As amostras
de biópsia das pápulas exibem o granuloma “nu” na derme, ou seja, granulomas
circundados por um número mínimo de linfócitos. Outras anormalidades
cutâneas da sarcoidose são lesões anulares com centro atrófico ou escamoso,
pápulas no interior das cicatrizes, pápulas e placas hipopigmentadas, alopécia,
ictiose adquirida, eritema nodoso e lúpus pérnio (ver adiante).
O diagnóstico diferencial da sarcoidose inclui granulomas de corpo
estranho produzidos por substâncias químicas como berílio e zircônio; sífilis
secundária tardia; e lúpus vulgar. Essa última doença é uma forma de
tuberculose cutânea observada nos indivíduos previamente infectados e
sensibilizados. Em geral, o paciente também tem tuberculose ativa em qualquer
outro órgão, geralmente nos pulmões ou nos linfonodos. As lesões ocorrem
principalmente na região cervical e da cabeça e são placas castanho-
avermelhadas de coloração castanho-amarelada à diascopia. Pode haver fibrose
secundária dentro da porção central das placas. As culturas ou análise por PCR
das lesões devem ser realizadas, junto com um ensaio com liberação de γ-
interferona em sangue periférico, porque a coloração para bacilos álcool-ácido-
resistentes raramente apresenta esses microrganismos nos granulomas dérmicos.
A distribuição generalizada de máculas e pápulas castanho-avermelhadas
são observadas na forma de mastocitose conhecida como urticária pigmentosa (
Cap. 347). Cada lesão representa uma coleção de mastócitos na derme com
hiperpigmentação da epiderme sobrejacente. Estímulos como a fricção induzem
a degranulação desses mastócitos, o que desencadeia a formação de urticária
localizada (sinal de Darier). Outros sintomas podem resultar da degranulação
dos mastócitos e incluem cefaleia, rubor, diarreia e prurido. Os mastócitos
também infiltram vários órgãos como fígado, baço e trato gastrintestinal, e os
acúmulos dos mastócitos nos ossos podem revelar lesões osteoscleróticas ou
osteolíticas nas radiografias. No entanto, na maioria desses pacientes o
acometimento interno permanece indolente. Um subtipo de vasculite crônica dos
pequenos vasos, o eritema elevatum diutinum (EED), também se apresenta com
pápulas castanho-avermelhadas. As pápulas coalescem e formam placas nas
superfícies extensoras dos joelhos, dos cotovelos e das pequenas articulações das
mãos. As exacerbações do EED foram associadas a infecções estreptocócicas.

LESÕES AZULADAS
As lesões azuladas originam-se de ectasias, hiperplasias e tumores vasculares, ou
do pigmento melânico na derme. Os lagos venosos (dilatações) são lesões azul-
escuro compressíveis encontradas com frequência na região cervical e da cabeça.
As malformações venosas também são lesões papulonodulares e placas azuis
compressíveis, que podem ocorrer em qualquer região do corpo, incluindo a
mucosa oral. Quando há várias lesões papulonodulares em vez de lesões
congênitas únicas, o paciente pode apresentar a síndrome blue rubber bleb ou a
síndrome de Mafucci. Os pacientes com a síndrome blue rubber bleb também
apresentam anomalias vasculares do trato gastrintestinal que podem sangrar,
enquanto os pacientes com síndrome de Mafucci apresentam osteocondromas
associados. Os nevos azuis (sinais) são encontrados quando existem grupos de
células névicas que produzem pigmento na derme. Essas lesões papulares
benignas são cupuliformes e ocorrem mais comumente no dorso da mão ou do
pé ou na região cervical e da cabeça.

LESÕES VIOLÁCEAS
As pápulas e as placas violáceas são encontradas no lúpus pérnio, no linfoma
cutâneo e no lúpus cutâneo. O lúpus pérnio é um tipo especial de sarcoidose que
envolve a ponta e a borda do nariz e os lobos das orelhas, com lesões violáceas
em vez de castanho-avermelhadas. Essa forma de sarcoidose está associada ao
comprometimento do trato respiratório superior. As placas do linfoma cutâneo e
do lúpus cutâneo podem ser vermelhas ou violáceas e foram descritas
anteriormente.

LESÕES PURPÚRICAS
Pápulas e placas de cor púrpura são vistas em tumores vasculares, como o
sarcoma de Kaposi (Cap. 197) e angiossarcomas, e quando há extravasamento
de hemácias para a pele em associação com inflamação, como na púrpura
palpável (ver “Púrpura”, adiante). Os pacientes com fístulas AVs congênitas ou
adquiridas e hipertensão venosa podem ter pápulas roxas nos membros
inferiores, que se assemelham clínica e histologicamente ao sarcoma de Kaposi;
essa condição é denominada pseudossarcoma de Kaposi (angiodermatite acral).
O angiossarcoma é encontrado com maior frequência no couro cabeludo e na
face dos pacientes idosos ou nas áreas de linfedema crônico e apresenta-se com
pápulas e placas roxas. Na região cervical e da cabeça, o tumor muitas vezes se
estende além das margens clinicamente definidas e pode estar acompanhado de
edema facial.

LESÕES MARRONS E NEGRAS


As pápulas marrons e negras estão revisadas, anteriormente, na seção sobre
“Hiperpigmentação”.

METÁSTASES CUTÂNEAS
Essas lesões estão descritas por último porque podem apresentar uma ampla
variedade de cores. Na maioria dos casos, as metástases evidenciam-se por
nódulos subcutâneos firmes cor da pele ou por lesões papulonodulares firmes, de
cor vermelha ou castanho-avermelhada, enquanto o melanoma metastático pode
ter cor rosa, azul ou preta. As metástases cutâneas desenvolvem-se por
disseminação hematogênica ou linfática e provêm, com maior frequência, dos
seguintes carcinomas primários: nos homens, melanoma, orofaringe, pulmão e
intestino grosso; nas mulheres, mama, melanoma e ovário. Essas lesões
metastáticas podem ser as primeiras manifestações clínicas do carcinoma,
especialmente quando a lesão primária encontra-se no pulmão.
PÚRPURA
(Tab. 54-16) As púrpuras são vistas quando ocorre extravasamento dos
eritrócitos para a derme e, como consequência, as lesões não empalidecem à
compressão. Esse aspecto contrasta com as lesões eritematosas ou roxas
provocadas por vasodilatação localizada – estas empalidecem sob pressão. A
púrpura (≥ 3 mm) e as petéquias (≤ 2 mm) podem ser divididas em dois grupos
principais: palpáveis e impalpáveis. As causas mais frequentes de petéquias e
púrpuras impalpáveis são distúrbios cutâneos primários como traumatismo,
púrpura solar (actínica) e capilarite. As causas menos comuns são púrpura
secundária aos corticoides e vasculopatia livedoide (ver “Úlceras”, adiante). A
púrpura solar é diagnosticada principalmente nas superfícies extensoras dos
antebraços, enquanto a púrpura secundária aos glicocorticoides tópicos potentes
ou à síndrome de Cushing endógena ou exógena pode apresentar uma
disseminação mais ampla. Nos dois casos, existe alteração do tecido conectivo
de sustentação que circunda os vasos sanguíneos dérmicos. Por outro lado, as
petéquias resultantes da capilarite são encontradas principalmente nos membros
inferiores. Na capilarite, ocorre extravasamento de eritrócitos em consequência
de inflamação linfocítica perivascular. As petéquias são de cor vermelho-
brilhante, medem de 1 a 2 mm de tamanho e estão dispersas em máculas
castanho-amareladas. A cor castanho-amarelada é causada pelos depósitos de
hemossiderina na derme.

TABELA 54-16 ■ Causas de púrpura


I. Distúrbios cutâneos primários
A. Impalpáveis
1. Trauma
2. Púrpura solar (actínica, senil)
3. Púrpura dos corticoides
4. Capilarite
5. Vasculopatia livedoide com hipertensão venosaa
II. Fármacos (p. ex., agentes antiplaquetários, anticoagulantes)
III.Doenças sistêmicas
A. Impalpáveis
1. Distúrbios da coagulação
a. Trombocitopenia (inclusive PTI)
b. Função plaquetária anormal
c. Distúrbios dos fatores da coagulação
2. Fragilidade vascular
a. Amiloidose (em pele com aparência normal)
b. Síndrome de Ehlers-Danlos
c. Escorbuto
3. Trombos
a. Coagulação intravascular disseminada
b. Necrose induzida por varfarina
c. Trombocitopenia e trombose induzidas pela heparina
d. Síndrome antifosfolipídeo
e. Crioglobulinemia monoclonal
f. Vasculopatia induzida por cocaína adulterada por levamisol
g. Púrpura trombocitopênica trombótica
h. Trombocitose
i. Deficiência homozigótica de proteína C ou S
4. Êmbolos
a. Colesterol
b. Gordura
5. Possível imunocomplexo
a. Síndrome de Gardner-Diamond (autossensibilidade eritrocitária)
b. Púrpura hipergamaglobulinêmica de Waldenström
B. Palpáveis
1. Vasculite
a. Vasculite cutânea de pequenos vasos, incluindo casos de vasculite sistêmica
2. Êmbolosb
a. Meningococemia aguda
b. Infecção gonocócica disseminada
c. Febre maculosa das Montanhas Rochosas
d. Ectima gangrenoso
aTambém associada às doenças sistêmicas que causam hipercoagulabilidade/trombofilia, inclusive deficiência/disfunção do fator V de Leiden

ou de proteína C. bBactérias (incluindo riquétsias), fungos ou parasitas.


Sigla: PTI, púrpura trombocitopênica idiopática.

As causas sistêmicas da púrpura impalpável são classificadas em várias


categorias; as secundárias aos distúrbios da coagulação e à fragilidade vascular
serão descritas primeiramente. O primeiro grupo inclui a trombocitopenia (Cap.
111), as anormalidades da função plaquetária causadas pela uremia e os
distúrbios dos fatores da coagulação. O local de apresentação inicial das
petéquias induzidas por trombocitopenia é a parte distal do membro inferior. A
fragilidade capilar acarreta púrpura impalpável nos pacientes com amiloidose
sistêmica (ver “Lesões cutâneas papulonodulares”, anteriormente), distúrbios da
produção de colágeno (p. ex., síndrome de Ehlers-Danlos) e escorbuto. No
escorbuto, ocorrem pelos achatados em forma de saca-rolha com hemorragia
circundante nos membros inferiores, além de gengivite. A vitamina C é um
cofator da lisil-hidroxilase, enzima envolvida na modificação pós-traducional do
pró-colágeno essencial à formação das ligações cruzadas.
Em contraste com o grupo anterior de distúrbios, a púrpura não inflamatória
encontrada no grupo de doenças descritas a seguir está associada à formação de
trombos intravasculares e tem configuração retiforme. É importante observar que
esses trombos são detectáveis nas amostras de biópsia de pele. Esse grupo de
distúrbios inclui a coagulação intravascular disseminada (CIVD), a
crioglobulinemia monoclonal, a trombocitose, a púrpura trombocitopênica
trombótica, a síndrome antifosfolipídeo e as reações à varfarina e à heparina
(trombocitopenia e trombose induzidas pela heparina). A CIVD é desencadeada
por diversos tipos de infecção (Gram-negativos, Gram-positivos, vírus e
riquétsias) e também por lesão tecidual e neoplasias. Nesses casos, há púrpura
disseminada e infartos hemorrágicos dos membros distais. Lesões semelhantes
são encontradas na púrpura fulminante, que é uma forma de CIVD associada à
febre e à hipotensão e que ocorre com maior frequência nas crianças depois de
uma doença infecciosa como varicela, escarlatina ou de uma infecção do trato
respiratório superior. Nos dois distúrbios, podem surgir bolhas hemorrágicas na
pele acometida.
A crioglobulinemia monoclonal está associada a discrasias de plasmócitos,
à leucemia linfocítica crônica e ao linfoma. Esses pacientes têm púrpura
(principalmente nas pernas) e infartos hemorrágicos nos dedos das mãos e dos
pés, além de nas orelhas. As exacerbações da atividade da doença podem ser
subsequentes à exposição ao frio ou ao aumento da viscosidade do soro. As
amostras de biópsia demonstram precipitados da crioglobulina no interior de
vasos sanguíneos da derme. Depósitos semelhantes são encontrados no pulmão,
no cérebro e nos glomérulos renais. Os pacientes com púrpura trombocitopênica
trombótica também podem apresentar infartos hemorrágicos em consequência
das tromboses intravasculares. Outros sinais incluem anemia hemolítica
microangiopática e anormalidades neurológicas flutuantes, especialmente
cefaleia e confusão.
A administração de varfarina pode causar áreas dolorosas de eritema que se
tornam purpúricas e depois necróticas com formação de escaras negras
aderentes; essa condição é conhecida como necrose induzida pela varfarina. Essa
reação é encontrada com maior frequência nas mulheres e nas áreas de gordura
subcutânea abundante – mama, abdome, nádegas, coxas e panturrilhas. O
eritema e a púrpura surgem entre o terceiro e o décimo dias de terapia, mais
provavelmente como resultado de desequilíbrio transitório nos níveis de fatores
dependentes de vitamina K anticoagulantes e pró-coagulantes. A continuação da
terapia não exacerba as lesões preexistentes e os pacientes com deficiência
herdada ou adquirida de proteína C estão sob risco para essa reação específica,
bem como para púrpura fulminante e calcifilaxia.
A púrpura secundária aos êmbolos de colesterol geralmente é encontrada
nos membros inferiores dos pacientes com vasculopatia aterosclerótica.
Frequentemente, essa lesão está associada ao tratamento anticoagulante ou a um
procedimento vascular invasivo (p. ex., arteriografia), mas também ocorre
espontaneamente em consequência da desintegração das placas ateromatosas. As
anormalidades associadas incluem livedo reticular, gangrena, cianose e úlceras
isquêmicas. Podem ser necessários vários cortes seriados da amostra de biópsia
para comprovar a presença de fendas de colesterol dentro dos vasos. As
petéquias também são sinais importantes de embolia gordurosa e ocorrem
basicamente na parte superior do corpo 2 a 3 dias depois de um traumatismo
importante. Com a utilização de fixadores especiais, a presença de êmbolos pode
ser demonstrada nas biópsias das petéquias. Êmbolos de tumor ou trombos são
encontrados nos pacientes com mixomas atriais e endocardite marântica.
Na síndrome de Gardner-Diamond (autossensibilidade eritrocitária), as
mulheres apresentam grandes equimoses dentro das áreas de eritema doloroso e
quente. Injeções intradérmicas de eritrócitos autólogos ou de fosfatidilserina
derivada da membrana eritrocitária podem reproduzir as lesões em algumas
pacientes; no entanto há casos em que a reação é detectada no local de injeção
do antebraço, mas não na região média do dorso. Essa última característica levou
alguns observadores a considerarem a síndrome de Gardner-Diamond como uma
manifestação cutânea do estresse emocional intenso. Mais recentemente, alguns
autores sugeriram a possibilidade de uma disfunção plaquetária (evidenciada nos
estudos da agregação plaquetária). A púrpura hipergamaglobulinêmica de
Waldenström é um distúrbio crônico caracterizado por agrupados recorrentes de
petéquias e máculas purpúricas maiores nos membros inferiores. Existem
complexos circulantes de moléculas de IgG-anti-IgG e as exacerbações estão
associadas a períodos longos na posição ereta ou caminhadas longas.
As púrpuras palpáveis são subdivididas em vasculíticas e embólicas. No
grupo dos distúrbios vasculíticos, a vasculite dos pequenos vasos cutâneos,
também conhecida como vasculite leucocitoclástica (VLC), está associada mais
comumente à púrpura palpável (Cap. 356). As etiologias subjacentes incluem
fármacos (p. ex., antibióticos), infecções (p. ex., hepatite C) e doenças
autoimunes do tecido conectivo (p. ex., artrite reumatoide, síndrome de Sjögren,
lúpus). A púrpura de Henoch-Schönlein (PHS) é um subtipo de VLC aguda
encontrada mais comumente nas crianças e nos adolescentes depois de infecções
do trato respiratório superior. A maior parte das lesões é encontrada nos
membros inferiores e nas nádegas. As manifestações sistêmicas incluem febre,
artralgias (principalmente dos joelhos e tornozelos), dor abdominal, hemorragia
gastrintestinal e nefrite. O exame de imunofluorescência direta mostra depósitos
de IgA no interior das paredes de vasos sanguíneos dérmicos. A doença renal é
particularmente preocupante nos adultos com PHS.
Vários tipos de êmbolos infecciosos podem causar púrpura palpável. Em
geral, essas lesões embólicas apresentam um contorno irregular em contraste
com as lesões da VLC, que são circulares. O contorno irregular indica infarto
cutâneo, e o tamanho corresponde à área da pele que recebia suprimento
sanguíneo daquela arteríola ou artéria em particular. A púrpura palpável da VLC
é circular porque os eritrócitos simplesmente saem uniformemente das vênulas
pós-capilares em consequência da inflamação. Os êmbolos infecciosos são
provocados com maior frequência por cocos Gram-negativos (meningococos,
gonococos), bastonetes Gram-negativos (enterobactérias) e cocos Gram-
positivos (Staphylococcus). Outras causas incluem Rickettsia e, nos pacientes
imunocomprometidos, Aspergillus e outros fungos oportunistas.
As lesões embólicas da meningococemia aguda são encontradas
principalmente no tronco, nas pernas e nos locais de compressão, e uma
coloração cinza-bronzeada muitas vezes aparece no seu interior. O tamanho
varia de alguns milímetros até vários centímetros, e os microrganismos podem
ser isolados das lesões. As anormalidades associadas incluem infecção
precedente do trato respiratório superior; febre; meningite; CIVD; e, em alguns
pacientes, deficiência dos componentes terminais do complemento. Na infecção
gonocócica disseminada (síndrome de artrite-dermatite), um pequeno número de
pápulas e vesicopústulas inflamatórias, geralmente com púrpura central ou
necrose hemorrágica, é encontrado nas regiões distais dos membros. Outros
sintomas incluem artralgias, tenossinovite e febre. Para estabelecer o
diagnóstico, deve-se obter uma coloração de Gram dessas lesões. A febre
maculosa das Montanhas Rochosas é uma doença transmitida por carrapatos
provocada por Rickettsia rickettsii. A história clínica de alguns dias de febre,
calafrios, cefaleia intensa e fotofobia precede o início da erupção cutânea. As
lesões iniciais são máculas e pápulas eritematosas nos punhos, tornozelos,
palmas e plantas. Com o tempo, as lesões se disseminam de modo centrípeto e
tornam-se purpúricas.
As lesões de ectima gangrenoso começam com pápulas ou placas
eritematosas e edematosas que, em seguida, desenvolvem púrpura central e
necrose. Também ocorre a formação de bolhas nessas lesões, que são
frequentemente encontradas na região da cintura. O microrganismo
classicamente associado ao ectima gangrenoso é a Pseudomonas aeruginosa,
mas outros bastonetes Gram-negativos, como Klebsiella, Escherichia coli e
Serratia, podem produzir lesões semelhantes. Nos pacientes
imunocomprometidos, a relação de patógenos potenciais é mais ampla e inclui
Candida e outros fungos oportunistas (p. ex., Aspergillus, Fusarium).
ÚLCERAS
A abordagem ao paciente que apresenta uma úlcera cutânea está descrita na Tabe
la 54-17. As doenças vasculares periféricas dos membros estão revisadas no Cap
ítulo 275, da mesma forma que o fenômeno de Raynaud.

TABELA 54-17 ■ Causas de úlceras mucocutâneas


I. Distúrbios cutâneos primários
A. Doença vascular periférica (Cap. 275).
1. Venosa
2. Arteriala
B. Vasculopatia livedoide com hipertensão venosab
C. Carcinoma espinocelular (p. ex., em cicatrizes), carcinoma basocelular
D. Infecções (p. ex., ectima estreptocócico) (Cap. 143).
E. Fatores físicos (p. ex., traumatismo, pressão)
F. Fármacos (p. ex., hidroxiureia)
II. Doenças sistêmicas
A. Parte inferior das pernas
1. Vasculite dos vasos de pequeno e médio calibresc
2. Hemoglobinopatias (Cap. 94).
3. Crioglobulinemiac, criofibrinogenemia
4. Êmbolos de colesterola,c
5. Necrobiose lipoídicad
6. Síndrome antifosfolipídeo (Cap. 112).
7. Neuropáticae (Cap. 396).
8. Paniculite
9. Sarcoma de Kaposi, angiodermatite acral
10.Angiomatose dérmica difusa
B. Mãos e pés
1. Fenômeno de Raynaud (Cap. 275).
2. Doença de Buerger
C. Generalizadas
1. Pioderma gangrenoso, embora seja mais comum nas pernas
2. Calcifilaxia (Cap. 403).
3. Infecções (p. ex., fungos dimórficos, leishmaniose)
4. Linfoma
D. Face (principalmente perioral) e região anogenital
1. Herpes simples crônicof
III.Mucosa
A. Síndrome de Behçet (Cap. 357).
B. Eritema multiforme maior, síndrome de Stevens-Johnson, NET
C. Distúrbios bolhosos primários (Cap. 55).
D. Lúpus eritematoso, líquen plano
E. Doença inflamatória intestinal
F. Infecção aguda pelo HIV
G. Artrite reativa
aAterosclerose coexistente. bTambém associada aos distúrbios subjacentes que causam hipercoagulabilidade/trombofilia, p. ex., fator V de

Leiden, deficiência/disfunção de proteína C, síndrome antifosfolipídeo. cRevisada na seção sobre Púrpuras. dRevisada na seção sobre Lesões
cutâneas papulonodulares. eAcomete preferencialmente a superfície plantar do pé. fSinal de imunossupressão.
Siglas: HIV, vírus da imunodeficiência humana; NET, necrólise epidérmica tóxica.

A vasculopatia livedoide (vasculite livedoide; atrofia branca) representa


uma combinação de vasculopatia com trombose intravascular. As lesões
purpúricas e o livedo reticular são encontrados em associação com ulcerações
dolorosas dos membros inferiores. Essas úlceras frequentemente demoram a
cicatrizar, mas quando isto ocorre, formam-se cicatrizes brancas com contornos
irregulares. A maioria dos casos é secundária à hipertensão venosa, mas doenças
subjacentes possíveis incluem hipercoagulabilidade, por exemplo, síndrome
antifosfolipídeo, fator V de Leiden (Caps. 113 e 350).
No pioderma gangrenoso, as bordas das úlceras ativas não tratadas têm
aspecto típico evidenciado por margens violáceas necróticas solapadas e halo
eritematoso periférico. Com frequência, as úlceras começam com pústulas que
depois se expandem com certa rapidez até atingir diâmetros de até 20 cm.
Embora sejam mais comuns nos membros inferiores, essas lesões podem surgir
em qualquer parte do corpo, inclusive áreas de traumatismo (patergia). Algumas
estimativas sugeriram que 30 a 50% dos casos sejam idiopáticos e os distúrbios
associados mais comumente são retocolite ulcerativa e doença de Crohn. Menos
comumente, o pioderma gangrenoso está associado à artrite reumatoide
soropositiva, às leucemias mielocíticas aguda e crônica, à leucemia de células
pilosas, à mielofibrose ou à gamopatia monoclonal, geralmente por IgA. Como a
histologia do pioderma gangrenoso pode ser inespecífica (infiltrado dérmico de
neutrófilos, quando o paciente não é tratado), o diagnóstico geralmente é
definido em bases clínicas por meio da exclusão de causas menos comuns de
úlceras semelhantes, como vasculite necrosante, úlcera de Meleney (infecção
sinérgica em local de traumatismo ou cirurgia), infecções por fungos dimórficos,
amebíase cutânea, picada de aranha e úlcera factícia. Nos distúrbios
mieloproliferativos, as úlceras podem ser mais superficiais com borda
pustulobolhosa, e essas lesões estabelecem uma conexão entre o pioderma
gangrenoso clássico e a dermatose neutrofílica febril aguda (síndrome de Sweet).
FEBRE E EXANTEMA
As principais considerações em um paciente com febre e exantema são doenças
inflamatórias versus doenças infecciosas. No ambiente hospitalar, o cenário mais
comum é o de um paciente que apresenta farmacodermia além de febre
secundária a uma infecção subjacente. Contudo, deve-se enfatizar que a
farmacodermia pode causar erupção cutânea e febre (“febre medicamentosa”),
principalmente em presença da síndrome DRESS, PEGA ou reação do tipo
doença do soro. Outras doenças inflamatórias frequentemente associadas à febre
são psoríase pustulosa, eritrodermia e síndrome de Sweet. Doença de Lyme,
sífilis secundária e exantemas virais e bacterianos (ver “Exantemas”,
anteriormente) são exemplos de doenças infecciosas que produzem exantema e
febre. Por fim, é importante determinar se as lesões cutâneas representam ou não
êmbolos sépticos (ver “Púrpura”, anteriormente). Essas lesões geralmente
apresentam evidências de isquemia em forma de púrpura, necrose ou necrose
iminente (cor cinza-bronzeada). Contudo, no paciente com trombocitopenia, a
púrpura pode estar associada às reações inflamatórias como farmacodermias
morbiliformes e lesões infecciosas. Ver também o Capítulo 16.

LEITURAS ADICIONAIS
Bolognia JL, Schaffer JV, Cerroni L (eds): Dermatology, 4th ed. Philadelphia,
Elsevier, 2018.
Callen JP et al (eds): Dermatological Signs of Systemic Disease, 5th ed.
Edinburgh, Elsevier, 2017.
Rigopoulos D, Larios G, Katsambas A: Skin signs of systemic diseases. Clin
Dermatol 29:531, 2011.
Taylor SC et al (eds): Taylor and Kelly’s Dermatology for Skin of Color, 2nd ed.
New York, McGraw-Hill, 2016.
Thiers BH, Sahn RE, Callen JP: Cutaneous manifestations of internal
malignancy. CA: Cancer J Clin 59:73, 2009.

1 Ver Nota de R.T. na p. 338.


55
Doenças de pele imunologicamente
mediadas
Kim B. Yancey, Thomas J. Lawley

Diversas doenças cutâneas imunologicamente mediadas e doenças sistêmicas


imunologicamente mediadas com manifestações cutâneas são atualmente
reconhecidas como entidades específicas que apresentam achados clínicos,
histológicos e imunopatológicos coerentes. Clinicamente, esses distúrbios
caracterizam-se por morbidade (dor, prurido, desfiguração) e, em alguns casos,
resultam em morte (principalmente devido à perda da função de barreira da
epiderme e/ou por infecção secundária). Neste capítulo, estão resumidas as
principais características das doenças cutâneas imunologicamente mediadas mais
comuns (Tab. 55-1) bem como os distúrbios sistêmicos autoimunes com
manifestações cutâneas.

TABELA 55-1 ■ Doenças bolhosas imunologicamente mediadas


Doença Manifestações clínicas Histologia Imunopatologia Autoantígenosa

Pênfigo vulgar Bolhas flácidas, pele desnuda, Bolha acantolítica Depósitos de IgG na Dsg3 (mais Dsg1 em
lesões na mucosa oral formada na camada superfície celular dos pacientes com
suprabasal da ceratinócitos envolvimento
epiderme cutâneo)
Pênfigo Crostas e erosões rasas no couro Bolha acantolítica Depósitos de IgG na Dsg1
foliáceo cabeludo, região central da face, formada na camada superfície celular dos
região superior do tórax e costas superficial da ceratinócitos
epiderme
Pênfigo Estomatite dolorosa com erupções Acantólise, necrose Depósitos de IgG e C3 na Membros da família
paraneoplásico papuloescamosas ou liquenoides de ceratinócito e superfície celular dos da proteína plaquina
que podem progredir para bolhas dermatite da interface ceratinócitos e e caderinas
vacuolar imunorreagentes desmossômicas (ver
(variavelmente) semelhantes texto para detalhes)
na ZMB epidérmica
Penfigoide Bolhas grandes tensas nas Bolha subepidérmica Faixa linear de IgG e/ou C3 AgPB1, AgPB2
bolhoso superfícies flexoras e tronco com infiltrados ricos na ZMB epidérmica
em eosinófilos
Penfigoide Placas urticariformes, pruriginosas, Bolhas Faixa linear de C3 na ZMB AgPB2 (mais AgPB1
gestacional margeadas por vesículas e bolhas subepidérmicas em epidérmica em alguns pacientes)
no tronco e nos membros forma de lágrima nas
papilas dérmicas;
infiltrado rico em
eosinófilos
Dermatite Pequenas pápulas extremamente Bolha subepidérmica Depósitos granulares de IgA Transglutaminase
herpetiforme pruriginosas e vesículas nos com neutrófilos nas nas papilas dérmicas epidérmica
cotovelos, joelhos, nádegas e nuca papilas dérmicas
Dermatose da Pequenas pápulas pruriginosas nas Bolha subepidérmica Faixa linear de IgA na ZMB AgPB2 (ver texto
IgA linear superfícies extensoras; com infiltrado rico epidérmica para detalhes
ocasionalmente, bolhas maiores em neutrófilos específicos)
arciformes
Epidermólise Bolhas, erosões, cicatrizes e milia Bolha subepidérmica Faixa linear de IgG e/ou C3 Colágeno tipo VII
bolhosa nos locais expostos a traumatismos; que pode ou não na ZMB epidérmica
adquirida bolhas tensas, inflamatórias e incluir um infiltrado
disseminadas podem ser leucocitário
observadas inicialmente
Penfigoide da Lesões erosivas e/ou bolhosas de Bolha subepidérmica Faixa linear de IgG, IgA e/ou AgPB2, laminina
membrana membranas mucosas e que pode ou não C3 na ZMB epidérmica 332 ou outros
mucosa possivelmente da pele; formação de incluir um infiltrado
cicatriz em alguns locais leucocítico
aAutoantígenos ligados pelos autoanticorpos desses pacientes são definidos como se segue: Dsg1, desmogleína 1; Dsg3, desmogleína 3;

AgPB1, antígeno penfigoide bolhoso 1; AgPB2, antígeno penfigoide bolhoso 2.


Sigla: ZMB, zona da membrana basal.
DOENÇAS CUTÂNEAS AUTOIMUNES
PÊNFIGO VULGAR
Pênfigo refere-se a um grupo de doenças bolhosas intraepidérmicas mediadas
por autoanticorpos, caracterizadas pela perda de coesão entre as células
epidérmicas (processo denominado acantólise). A pressão manual sobre a pele
desses pacientes pode causar a separação da epiderme (sinal de Nikolsky). Esse
achado, embora típico do pênfigo, não é específico de tal grupo de distúrbios e
pode ser observado na necrólise epidérmica tóxica, na síndrome de Stevens-
Johnson e em algumas outras doenças cutâneas.
O pênfigo vulgar (PV) é uma doença mucocutânea bolhosa que ocorre
predominantemente em pacientes com > 40 anos de idade. O PV começa nas
superfícies das mucosas e frequentemente evolui envolvendo a pele. Essa doença
é caracterizada por bolhas flácidas e frágeis que se rompem produzindo a
desnudação extensa das membranas mucosas e da pele (Fig. 55-1). Costuma
haver envolvimento de boca, couro cabeludo, face, regiões cervical e inguinais,
axilas e tronco. Pode estar associado à dor intensa na pele; alguns pacientes
também apresentam prurido. As lesões geralmente regridem sem formar cicatriz,
exceto nos locais onde há complicação por infecção secundária ou lesões
dérmicas mecanicamente induzidas. Costuma haver hiperpigmentação pós-
inflamatória por algum tempo nos locais de lesões cicatrizadas.
FIGURA 55-1 Pênfigo vulgar. A. Bolha flácida facilmente rompida, resultando em erosões múltiplas e
placas crostosas. B. O envolvimento da mucosa oral, que é quase invariável, pode apresentar-se com
erosões de gengiva, mucosa bucal, palato, faringe posterior ou língua. (B, cortesia de Robert Swerlick, MD;
com permissão.)

As biópsias das lesões iniciais demonstram a formação intraepidérmica de


vesículas secundária à perda da coesão entre as células epidérmicas (i.e., bolhas
acantolíticas). As cavidades das bolhas contêm células epidérmicas acantolíticas
que aparecem como células redondas homogêneas contendo núcleos
hipercromáticos. Os ceratinócitos basais permanecem ligados à membrana basal
epidérmica, por isso a formação de bolhas ocorre na porção suprabasal da
epiderme. A pele lesionada pode conter coleções focais de eosinófilos
intraepidérmicos na cavidade das bolhas; as alterações da derme são discretas,
muitas vezes limitadas a infiltrado leucocitário com predomínio de eosinófilos.
A microscopia de imunofluorescência direta da pele lesada ou íntegra do
paciente mostra depósitos de IgG na superfície dos ceratinócitos; depósitos de
componentes do complemento são encontrados na pele lesada, mas não na
íntegra. Os depósitos de IgG nos ceratinócitos são derivados de autoanticorpos
circulantes dirigidos contra os autoantígenos da superfície celular. Tais
autoanticorpos circulantes podem ser demonstrados, em 80 a 90% dos pacientes
com PV, à microscopia por imunofluorescência indireta; o substrato ideal para
esses exames é o esôfago de macacos. Os pacientes com PV têm autoanticorpos
IgG contra as desmogleínas (Dsg), glicoproteínas desmossômicas
transmembrana que pertencem à família da caderina de moléculas de aderência
dependentes de cálcio. Esses autoanticorpos podem ser quantificados
precisamente por meio do ensaio de imunoabsorvente ligada à enzima (ELISA).
Os pacientes com PV inicial (i.e., doença das mucosas) têm autoanticorpos IgG
anti-Dsg3; os pacientes com PV avançado (i.e., doença mucocutânea)
apresentam autoanticorpos IgG contra Dsg3 e Dsg1. Estudos experimentais
mostraram que os autoanticorpos de pacientes com PV são patogênicos (i.e.,
responsáveis por formação de bolhas) e que sua titulação corresponde à
atividade da doença. Estudos recentes mostraram que o perfil sorológico de
autoanticorpos anti-Dsg desses pacientes e a distribuição tecidual de Dsg3 e
Dsg1 determinam os locais de formação de bolhas nos pacientes com PV. A
coexpressão de Dsg3 e Dsg1 por meio de células epidérmicas protege contra
anticorpos IgG patogênicos contra qualquer uma dessas caderinas, mas não
contra autoanticorpos patogênicos contra ambas.
O PV pode ameaçar a vida. Antes da disponibilidade dos glicocorticoides, a
taxa de mortalidade variava de 60 a 90%; a mortalidade atual é de
aproximadamente 5%. As causas comuns de morbidade e mortalidade são
infecção e complicações do tratamento. Os fatores prognósticos ruins incluem
idade avançada, acometimento disseminado e necessidade de altas doses de
glicocorticoides (com ou sem agentes imunossupressores) para o controle da
doença. A evolução do PV em cada paciente é variável e difícil de predizer.
Alguns pacientes alcançam remissão embora outros possam requerer tratamentos
de longo prazo ou sucumbir a complicações da doença ou do tratamento. A base
do tratamento é constituída pelos glicocorticoides sistêmicos. Os pacientes com
PV moderado a grave geralmente começam com prednisona, 1 mg/kg/dia. Se
novas lesões continuarem a aparecer após 1 a 2 semanas de tratamento, poderá
ser necessário aumentar a dose e/ou combinar a prednisona com outros agentes
imunossupressores, como a azatioprina (2-2,5 mg/kg/dia), o micofenolato
mofetila (20-35 mg/kg/dia), o rituximabe (375 mg/m2 por semana × 4 ou 1.000
mg nos dias 1 e 15) ou a ciclofosfamida (1-2 mg/kg/dia). Os pacientes com
doença grave resistente ao tratamento podem beneficiar-se de plasmaférese (seis
trocas de alto volume [i.e., 2-3 L por troca] durante aproximadamente 2
semanas), e/ou imunoglobulina IV (IgIV) (2 g/kg durante 3-5 dias a cada 6-8
semanas). É importante controlar rapidamente a doença grave ou progressiva a
fim de diminuir a gravidade e/ou a duração da doença. Cada vez mais, o
rituximabe e os glicocorticoides diários são usados precocemente em pacientes
com PV para evitar o desenvolvimento de doença avançada e/ou resistente ao
tratamento.

PÊNFIGO FOLIÁCEO
O pênfigo foliáceo (PF) é diferente do PV em vários aspectos. No PF, as bolhas
acantolíticas localizam-se na porção mais alta da epiderme, geralmente logo
abaixo do estrato córneo. Assim, o PF é uma doença bolhosa mais superficial
que o PV. A distribuição das lesões nos dois distúrbios é bem semelhante, exceto
que, no PF, as mucosas quase sempre são poupadas. Os pacientes com PF
raramente apresentam bolhas intactas, exibindo, em vez disso, erosões
superficiais associadas a eritema, descamação e formação de crostas. Os casos
leves de PF podem se assemelhar à dermatite seborreica grave; o PF grave pode
provocar esfoliação extensa. A exposição ao sol (radiação ultravioleta – UV)
pode ser um fator agravante.
O PF tem características imunopatológicas em comum com o PV.
Especificamente, a microscopia de imunofluorescência direta da pele
perilesional demonstra a presença de IgG na superfície dos ceratinócitos. De
maneira semelhante, os pacientes com PF têm autoanticorpos IgG circulantes
contra a superfície dos ceratinócitos. No PF, os autoanticorpos são dirigidos
contra a Dsg1, uma caderina desmossômica de 160 kDa. Esses autoanticorpos
podem ser quantificados por ELISA. Como observado no PV, o perfil de
autoanticorpos dos pacientes com PF (i.e., IgG anti-Dsg1) e a distribuição
tecidual desse autoantígeno (i.e., expressão na mucosa oral compensada pela
coexpressão de Dsg3) parecem ser responsáveis pela distribuição das lesões
nessa doença.
Formas endêmicas do PF são encontradas em áreas rurais do centro-sul do
Brasil, onde a doença é conhecida como fogo selvagem (FS), bem como em
alguns outros locais da América Latina e Tunísia. O PF endêmico, como outras
formas dessa doença, é mediado por autoanticorpos IgG contra Dsg1.
Aglomerados de casos de FS se sobrepõem àqueles de leishmaniose, uma doença
transmitida por picada do mosquito Lutzomyia longipalis. Estudos recentes
mostraram que antígenos salivares do mosquito (especificamente a proteína
salivar LJM11) são reconhecidos por autoanticorpos IgG de pacientes com FS
(bem como por anticorpos monoclonais contra Dsg1 derivada desses pacientes).
Além disso, camundongos imunizados com LJM11 produzem anticorpos contra
Dsg1. Assim, esses achados sugerem que as picadas de insetos podem liberar
antígenos salivares que iniciam uma resposta imune humoral cruzada, o que
pode causar o FS em pessoas geneticamente suscetíveis.
Embora o pênfigo tenha sido associado a doenças autoimunes graves, sua
associação ao timoma e/ou à miastenia gravis destaca-se particularmente. Até
hoje, relataram-se > 30 casos de timoma e/ou miastenia gravis associados ao
pênfigo, geralmente com o PF. Os pacientes também podem desenvolver pênfigo
em consequência da exposição a medicamentos; o pênfigo medicamentoso
costuma se assemelhar ao PF em vez de ao PV. Os fármacos que contêm um
grupo tiol em sua estrutura química (p. ex., penicilamina, captopril, enalapril)
são mais comumente associados ao pênfigo induzido por fármaco. Os fármacos
não tiol ligados ao pênfigo incluem as penicilinas, cefalosporinas e piroxicam.
Alguns casos de pênfigo medicamentoso são duradouros, requerendo tratamento
com glicocorticoides sistêmicos e/ou imunossupressores.
O PF costuma ser uma doença menos grave que o PV, apresentando melhor
prognóstico. A doença localizada pode, algumas vezes, ser tratada com
glicocorticoide tópico ou intralesional; os casos mais ativos em geral podem ser
controlados com glicocorticoides sistêmicos isoladamente ou em combinação
com outros agentes imunossupressivos. Os pacientes com doença grave,
resistente ao tratamento, podem requerer intervenções mais agressivas, como
descrito anteriormente para os pacientes com PV grave.

PÊNFIGO PARANEOPLÁSICO
O pênfigo paraneoplásico (PPN) é uma doença acantolítica mucocutânea
autoimune associada à neoplasia oculta ou confirmada. Os pacientes com PPN
geralmente apresentam estomatite dolorosa associada a erupções
papuloescamosas e/ou liquenoides que muitas vezes evoluem para bolhas. O
acometimento palmoplantar é comum nesses pacientes e levanta a possibilidade
de que os relatos anteriores de eritema polimorfo associado a neoplasias
indiquem na realidade casos não identificados de PPN. As biópsias da pele
lesionada desses pacientes mostram combinações variadas de acantólise, necrose
dos ceratinócitos e dermatite de interface vacuolar. A microscopia de
imunofluorescência direta da pele dos pacientes mostra depósitos de IgG e
complemento na superfície dos ceratinócitos, bem como imunorreagentes
(variavelmente) semelhantes na zona da membrana basal epidérmica. Os
pacientes com PPN têm autoanticorpos IgG contra as proteínas citoplasmáticas
da família das plaquinas (p. ex., desmoplaquinas I e II, antígeno do penfigoide
bolhoso [AgPB] 1, envoplaquina, periplaquina e plectina), além de proteínas das
superfícies celulares da família das caderinas (p. ex., Dsg1 e Dsg3). Os estudos
de transferência passiva mostraram que os autoanticorpos dos pacientes com
PPN são patogênicos em modelos animais.
As neoplasias predominantemente associadas ao PPN são o linfoma não
Hodgkin, a leucemia linfocítica crônica, o timoma, os tumores das células
fusiformes, a macroglobulinemia de Waldenström e a doença de Castleman; a
última neoplasia citada é particularmente comum em crianças com PPN. Foram
relatados casos raros de PPN soronegativo em pacientes com neoplasias
malignas de célula B previamente tratados com rituximabe. Além das lesões
cutâneas graves, muitos pacientes com PPN desenvolvem bronquiolite
obliterante potencialmente fatal. A PPN geralmente é resistente a terapias
convencionais (i.e., as usadas para tratar o PV); raramente, a doença pode
melhorar (ou mesmo sofrer remissão) após ablação ou remoção das neoplasias
subjacentes.
PENFIGOIDE BOLHOSO
O penfigoide bolhoso (PB) é uma doença bolhosa autoimune subepidérmica
polimórfica, geralmente observada em idosos. As lesões iniciais podem consistir
em placas urticariformes; em seguida, a maioria dos pacientes apresenta bolhas
tensas sobre a pele normal ou eritematosa (Fig. 55-2). Em geral, as lesões se
distribuem na região inferior do abdome, nas regiões inguinais e na face flexora
dos membros; são encontradas lesões na mucosa oral em alguns pacientes. O
prurido pode ser inexistente ou intenso. À medida que as lesões evoluem, as
bolhas tensas tendem a romper-se e ser substituídas por erosões com ou sem
sobreposição de crostas. As bolhas que não sofreram traumatismos desaparecem
sem deixar cicatrizes. O alelo HLA-DQβ1*0301 da classe II do complexo
principal de histocompatibilidade é prevalente nos pacientes com PB. Apesar de
relatos isolados, diversos estudos demonstraram que os pacientes com PB não
apresentam maior incidência de câncer em comparação com controles
adequadamente pareados para idade e sexo.
FIGURA 55-2 Penfigoide bolhoso com vesículas tensas e bolhas sobre bases eritematosas, urticariformes.
(Cortesia de Yale Resident’s Slide Collection; com permissão.)

Biópsias de pele das lesões iniciais mostram bolhas subepidérmicas e


características histológicas que se correlacionam, grosseiramente, com o caráter
clínico de cada lesão sob estudo. As lesões sobre a pele de aparência normal
geralmente mostram um infiltrado leucocitário perivascular esparso com alguns
eosinófilos; já as biópsias das lesões inflamatórias mostram um infiltrado rico
em eosinófilos nos locais de formação das vesículas e nas áreas perivasculares.
Além dos eosinófilos, as lesões ricas em células também contêm células
mononucleares e neutrófilos. Não é possível diferenciar o PB de outras doenças
bolhosas subepidérmicas apenas por exames histológicos rotineiros.
A microscopia de imunofluorescência direta da pele perilesional de
aparência normal dos pacientes com PB mostra depósitos lineares de IgG e/ou
C3 na membrana basal epidérmica. O soro de aproximadamente 70% desses
pacientes contém autoanticorpos circulantes IgG que se ligam à membrana basal
epidérmica da pele humana normal à microscopia de imunofluorescência
indireta. A IgG de um percentual ainda maior de pacientes reage com o lado
epidérmico da pele separada com NaCl 1 M (exame alternativo de microscopia
de imunofluorescência do substrato utilizado para diferenciar autoanticorpos
antimembrana basal IgG circulantes nos pacientes com PB dos pacientes com
doenças bolhosas subdérmicas semelhantes, porém diferentes [ver adiante]). No
PB, os autoanticorpos circulantes reconhecem as proteínas associadas aos
hemidesmossomos de 230 e 180 kDa nos ceratinócitos basais (i.e., AgPB1 e
AgPB2, respectivamente). Acredita-se que autoanticorpos contra AgPB2 se
depositam in situ, ativam o complemento, produzem degranulação dos
mastócitos dérmicos e geram infiltrados granulocitários que provocam dano
tecidual e formação de bolhas.
O PB pode persistir durante meses ou anos, com exacerbações ou
remissões. O acometimento extenso pode resultar em erosões disseminadas e
comprometer a integridade cutânea; pacientes idosos e/ou debilitados podem
morrer por causa da doença. A base do tratamento é constituída pelos
glicocorticoides sistêmicos. A doença local ou mínima pode, às vezes, ser
controlada apenas com glicocorticoides tópicos; os pacientes com lesões mais
extensas geralmente respondem aos glicocorticoides sistêmicos sozinhos ou
associados a outros imunossupressores. Os pacientes costumam responder à
prednisona (0,75-1 mg/kg/dia). Em alguns casos, pode haver necessidade de
tratamento adjunto com azatioprina (2-2,5 mg/kg/dia), micofenolato de mofetila
(20-35 mg/kg/dia), rituximabe (375 mg/m2 por semana × 4 ou 1.000 mg nos dias
1 e 15).

PENFIGOIDE GESTACIONAL
O penfigoide gestacional (PG), também conhecido como herpes gestacional, é
uma doença bolhosa rara, subepidérmica, não virótica, da gestação e do
puerpério. Pode surgir em qualquer trimestre da gestação ou logo após o parto.
As lesões em geral se distribuem pelo abdome, tronco e membros; lesões de
mucosas são raras. As lesões cutâneas nessas pacientes podem ser bem
polimorfas, consistindo em pápulas e placas eritematosas urticariformes,
vesicopápulas e/ou bolhas francas. As lesões são quase sempre extremamente
pruriginosas. As exacerbações graves do PG frequentemente ocorrem após o
parto, geralmente dentro de 24 a 48 horas. O PG tende a recorrer em gestações
subsequentes, em geral começando mais cedo durante essas gestações. Breves
surtos da doença podem ocorrer no reinício das menstruações e desenvolver-se
nas pacientes posteriormente expostas a contraceptivos orais. Às vezes, os
recém-nascidos de mães acometidas têm lesões cutâneas transitórias.
As biópsias da pele das lesões incipientes mostram vesículas
subepidérmicas em forma de lágrima nas papilas dérmicas, associadas a
infiltrado leucocitário rico em eosinófilos. A diferenciação do PG de outras
doenças bolhosas subepidérmicas à microscopia óptica é difícil. Porém, a
microscopia com imunofluorescência direta da pele perilesional de pacientes
com PG revela a característica imunopatológica desse distúrbio: depósitos
lineares de C3 na membrana basal epidérmica. Esses depósitos se desenvolvem
em consequência da ativação do complemento produzida por títulos baixos de
autoanticorpos IgG contra a membrana basal dirigidos contra AgPB2, a mesma
proteína associada a hemidesmossomos que é alvo de autoanticorpos em
pacientes com PB – uma doença bolhosa subepidérmica que lembra
clinicamente, histologicamente e imunopatologicamente o PG.
Os objetivos do tratamento nos pacientes com PG são prevenir o
desenvolvimento de novas lesões, aliviar o prurido intenso e tratar as erosões nos
locais de formação de bolhas. Muitos pacientes requerem tratamento com doses
moderadas de glicocorticoides diários (i.e., 20-40 mg de prednisona) em algum
momento da evolução. Os casos leves (ou exacerbações breves) podem ser
controlados pelo uso intenso de potentes glicocorticoides tópicos. Os bebês de
mães com PG parecem estar sob risco aumentado de serem ligeiramente
prematuros ou pequenos para a idade gestacional. Evidências atuais sugerem que
não há diferença na incidência de nascidos vivos sem complicações entre as
pacientes com PG tratadas com glicocorticoides sistêmicos e as tratadas de modo
mais conservador. Se houver administração de glicocorticoides sistêmicos, os
recém-nascidos correm risco de desenvolver insuficiência suprarrenal reversível.

DERMATITE HERPETIFORME
A dermatite herpetiforme (DH) é uma doença cutânea papulovesicular
intensamente pruriginosa que se caracteriza por lesões de distribuição simétrica
nas faces extensoras (i.e., cotovelos, joelhos, região glútea, dorso, couro
cabeludo e nuca) (ver Fig. 52-8). As lesões primárias nesse distúrbio consistem
em pápulas, papulovesículas ou placas urticariformes. Como o prurido
predomina, os pacientes podem apresentar escoriações e pápulas crostosas, mas
sem lesões primárias visíveis. Os pacientes às vezes queixam-se de que seu
prurido tem um componente em queimação ou urticante diferente; o início
desses sintomas locais anuncia com segurança o desenvolvimento de lesões
clinicamente características em 12 a 24 horas. Quase todos os pacientes com DH
têm associação com enteropatia sensível ao glúten, geralmente subclínica (Cap.
318), e > 90% expressam os haplótipos HLA-B8/DRw3 e HLA-DQw2. A DH
pode surgir em qualquer idade, inclusive na infância; o início na segunda ou
quarta décadas de vida é mais comum. A doença costuma ser crônica.
A biópsia da pele das lesões incipientes revela infiltrados ricos em
neutrófilos nas papilas dérmicas. A presença de neutrófilos, fibrina, edema e
formação de microvesículas nesses locais é típica da doença inicial. As lesões
mais antigas podem apresentar características inespecíficas de bolha
subepidérmica ou pápula escoriada. Como as características clínicas e
histológicas dessa doença podem ser variadas e se assemelhar a outros distúrbios
bolhosos subepidérmicos, o diagnóstico é confirmado pela microscopia de
imunofluorescência direta da pele perilesional de aparência normal. Tais exames
evidenciam depósitos granulares de IgA (com ou sem componentes do
complemento) na derme papilar e ao longo da zona da membrana basal
epidérmica. Os depósitos de IgA na pele não são alterados pelo controle
medicamentoso da doença; no entanto esses imunorreagentes podem diminuir de
intensidade ou desaparecer nos pacientes mantidos durante muito tempo em uma
dieta rigorosa isenta de glúten (ver adiante). Os pacientes com DH têm depósitos
granulares de IgA na zona da membrana basal epidérmica, devendo ser
diferenciados daqueles com depósitos lineares de IgA nesse local (ver adiante).
Embora a maioria dos pacientes com DH não relate sintomas
gastrintestinais francos nem apresente evidências laboratoriais de má absorção,
as biópsias de intestino delgado geralmente revelam apagamento das vilosidades
intestinais e infiltrado linfocitário na lâmina própria. Como ocorre nos pacientes
com doença celíaca, tal anomalia gastrintestinal pode ser revertida por uma dieta
sem glúten. Além disso, a manutenção dessa dieta pode, sozinha, controlar a
doença cutânea e resultar na remoção dos depósitos de IgA na zona da
membrana basal epidérmica dos referidos pacientes. A exposição subsequente ao
glúten em tais pacientes altera a morfologia do intestino delgado, promove uma
exacerbação de doença cutânea e está associada ao ressurgimento de IgA na zona
da membrana basal epidérmica. Assim como em pacientes com doença celíaca, a
sensibilidade ao glúten alimentar em pacientes com DH está associada a
autoanticorpos IgA antiendomísio que visam à transglutaminase tecidual.
Estudos indicam que os pacientes com DH também possuem autoanticorpos IgA
de alta atividade contra a transglutaminase epidérmica 3, e que os últimos se
colocalizam com os depósitos granulares de IgA na derme papilar dos pacientes
com DH. Os pacientes com DH também têm maior incidência de anomalias da
tireoide, acloridria, gastrite atrófica e autoanticorpos contra as células parietais
gástricas. Essas associações provavelmente estão correlacionadas com a alta
frequência do haplótipo HLA-B8/DRw3 nesses pacientes, uma vez que tal
marcador geralmente está ligado às doenças autoimunes. A base do tratamento
da DH é a dapsona, uma sulfona. Os pacientes respondem rapidamente (entre 24
e 48 horas) à dapsona (50-200 mg/dia), mas requerem avaliação rigorosa pré-
tratamento e acompanhamento estreito, de modo a garantir a prevenção e o
controle das complicações. Todos os pacientes em uso de > 100 mg/dia de
dapsona irão apresentar algum grau de hemólise e metemoglobinemia, que são
efeitos colaterais esperados desse fármaco. A restrição do glúten pode controlar a
DH e diminuir as exigências decorrentes do uso de dapsona; a dieta deve excluir
completamente o glúten para obter benefício máximo. Podem ser necessários
vários meses de restrição alimentar antes de se alcançar um bom resultado. É
fundamental haver uma boa orientação alimentar por um nutricionista treinado.

DERMATOSE DA IgA LINEAR


A dermatose da IgA linear, anteriormente considerada uma forma variante da
DH, na verdade é uma entidade distinta e característica. Clinicamente, os
pacientes com dermatose da IgA linear podem se assemelhar a indivíduos com
DH, PB ou outras doenças bolhosas subepidérmicas. As lesões consistem em
papulovesículas, bolhas e/ou placas urticariformes que predominam nas regiões
centrais ou flexoras. Há o acometimento da mucosa oral em alguns pacientes. O
intenso prurido se assemelha ao observado nos pacientes com DH. Os pacientes
com dermatose da IgA linear não apresentam aumento da frequência do
haplótipo HLA-B8/DRw3 ou enteropatia associada, não sendo, portanto,
candidatos ao tratamento com dieta isenta de glúten.
As alterações histológicas nas lesões iniciais podem ser praticamente
indistinguíveis daquelas da DH. No entanto, a microscopia de
imunofluorescência direta da pele perilesional de aparência normal revela faixas
lineares de IgA (e muitas vezes de C3) na zona da membrana basal epidérmica.
A maioria dos pacientes com dermatose da IgA linear apresenta autoanticorpos
IgA antimembrana basal circulantes contra neoepítopos no domínio extracelular
proteoliticamente processado da AgPB2. Esses pacientes geralmente respondem
ao tratamento com dapsona (50-200 mg/dia).

EPIDERMÓLISE BOLHOSA ADQUIRIDA


A epidermólise bolhosa adquirida (EBA) é uma doença bolhosa subepidérmica
rara, não hereditária, polimorfa e crônica. (A forma hereditária é discutida no
Cap. 406.) Os pacientes com EBA clássica ou não inflamatória apresentam
bolhas na pele sem inflamação, cicatrizes atróficas, milia, distrofia ungueal e
lesões orais. Como as lesões ocorrem geralmente nos locais expostos a pequenos
traumatismos, a EBA clássica é considerada uma doença bolhosa mecânica.
Outros pacientes com EBA apresentam lesões bolhosas inflamatórias e
cicatriciais disseminadas que se assemelham ao PB grave. A EBA inflamatória
pode evoluir para a forma não inflamatória clássica dessa doença. Raros
pacientes apresentam-se com lesões predominantes nas mucosas. O haplótipo
HLA-DR2 é encontrado com maior frequência nesses pacientes. Estudos
sugerem que a EBA algumas vezes está associada à doença inflamatória
intestinal (especialmente a doença de Crohn).
A histologia da pele lesada varia conforme o caráter da lesão estudada. As
bolhas não inflamatórias são subepidérmicas com infiltrado leucocitário esparso
e se assemelham às dos pacientes com porfiria cutânea tarda. As lesões
inflamatórias consistem em bolhas subepidérmicas ricas em neutrófilos. Os
pacientes com EBA têm depósitos contínuos de IgG (e frequentemente C3) em
um padrão linear na zona da membrana basal epidérmica. Em termos
ultraestruturais, esses imunorreagentes são encontrados na região da sublâmina
densa, associados a fibrilas de ancoragem. Aproximadamente 50% dos pacientes
com EBA têm autoanticorpos IgG circulantes antimembrana basal demonstráveis
dirigidos contra o colágeno tipo VII – a espécie de colágeno que forma as
fibrilas de ancoragem. Tais autoanticorpos IgG ligam-se ao lado dérmico da pele
separada em NaCl 1 M (ao contrário dos autoanticorpos IgG nos pacientes com
PB). Estudos mostraram que a transferência passiva de IgG experimental ou
clínica contra o colágeno do tipo VII pode produzir lesões em camundongos que
são clínica, histológica e imunopatologicamente semelhantes às observadas nos
pacientes com EBA inflamatória.
O tratamento da EBA costuma ser insatisfatório. Alguns pacientes com
EBA inflamatória podem responder aos glicocorticoides sistêmicos, sozinhos ou
associados a imunossupressores. Outros pacientes (especialmente aqueles com
lesões inflamatórias ricas em neutrófilos) podem responder à dapsona. A forma
crônica não inflamatória da EBA é amplamente resistente ao tratamento, embora
alguns pacientes possam responder à ciclosporina, azatioprina, IgIV ou
rituximabe.

PENFIGOIDE DA MEMBRANA MUCOSA


O penfigoide da membrana mucosa (PMM) é uma doença imunobolhosa
subepitelial rara, adquirida, que se caracteriza por lesões erosivas das mucosas e
da pele, resultando em cicatrizes em alguns locais acometidos. Os locais comuns
de acometimento são a mucosa oral (especialmente a gengiva) e conjuntiva;
outros locais que também podem ser acometidos são as mucosas nasofaríngea,
laríngea, esofágica e anogenital. As lesões cutâneas (presentes em um terço dos
pacientes) tendem a predominar no couro cabeludo, na face e na parte superior
do tronco, consistindo geralmente em poucas erosões dispersas ou bolhas tensas
sobre uma base eritematosa ou urticariforme. O PMM é normalmente um
distúrbio crônico e progressivo. Podem ocorrer complicações graves
consequentes de lesões oculares, laríngeas, esofágicas ou anogenitais. A
conjuntivite erosiva pode levar a diminuições do fórnice, simbléfaro,
ancilobléfaro, entrópio, opacidades das córneas e (nos casos graves) cegueira.
Do mesmo modo, as lesões erosivas da laringe podem provocar rouquidão, dor e
perda tecidual que, se não forem reconhecidas e tratadas, podem causar
destruição total da via aérea. As lesões esofágicas podem ocasionar estenoses
e/ou estreitamentos que colocam o paciente em risco de broncoaspiração. O
envolvimento anogenital também pode ser complicado pelos estreitamentos.
A biópsia dos tecidos lesados geralmente mostra vesiculobolhas
subepiteliais e infiltrado leucocitário mononuclear. Podem-se observar
neutrófilos e eosinófilos nas biópsias das lesões incipientes; as lesões mais
antigas podem apresentar infiltrado leucocitário mínimo e fibrose. A microscopia
de imunofluorescência direta do tecido perilesional revela depósitos de IgG, IgA
e/ou C3 na membrana basal epidérmica. Como muitos dos pacientes com PMM
não têm evidências de autoanticorpos antimembrana basal circulantes, o exame
da pele perilesional é importante para o diagnóstico. Embora o PMM tenha sido
considerado uma entidade nosológica única, atualmente é considerado um
fenótipo patológico que pode desenvolver-se em consequência de reação
autoimune contra diversas moléculas na membrana basal epidérmica (p. ex.,
AgPB2, laminina 332, colágeno tipo VII, α6β4 integrina) e outros antígenos ainda
não inteiramente definidos. Estudos sugerem que os pacientes com PMM e
autoanticorpos contra a laminina 332 têm aumento no risco relativo de câncer. O
tratamento do PMM depende em grande parte dos locais de acometimento.
Devido à gravidade das complicações em potencial, os pacientes com
acometimento ocular, laríngeo, esofágico e/ou anogenital requerem tratamento
sistêmico agressivo com dapsona, prednisona ou essa última associada a um
imunossupressor (p. ex., azatioprina, micofenolato mofetila, ciclofosfamida ou
rituximabe) ou IgIV. As apresentações menos ameaçadoras da doença podem ser
tratadas com glicocorticoides tópicos ou intralesionais.
DOENÇAS SISTÊMICAS AUTOIMUNES COM ACHADOS
CUTÂNEOS PROEMINENTES
DERMATOMIOSITE
As manifestações cutâneas da dermatomiosite (Cap. 358) costumam ser
características, mas algumas vezes podem lembrar aquelas do lúpus eritematoso
sistêmico (LES) (Cap. 349), esclerodermia (Cap. 353) ou outras doenças
sobrepostas do tecido conectivo (Cap. 353). A extensão e a gravidade da doença
cutânea podem correlacionar-se ou não com a extensão e a gravidade da miosite.
As manifestações cutâneas da dermatomiosite são semelhantes, quer a doença
apareça em crianças, quer em idosos, exceto pela calcificação do tecido
subcutâneo, uma sequela tardia comum da dermatomiosite infantil.
Os sinais cutâneos de dermatomiosite podem preceder ou suceder o
desenvolvimento da miosite em meses ou anos. Também foram relatados casos
sem acometimento muscular (i.e., dermatomiosite sem miosite ou
dermatomiosite amiopática). A manifestação mais comum é uma coloração
vermelho-violácea das pálpebras superiores, às vezes associada a descamação
(eritema heliotrópico; Fig. 55-3) e edema periorbitário. O eritema nas bochechas
e no nariz em distribuição em “asa de borboleta” pode assemelhar-se à erupção
malar do LES. Placas eritematosas ou violáceas descamativas são comuns na
região anterossuperior do tórax, na nuca, no couro cabeludo e nas faces
extensoras dos braços, pernas e mãos. O eritema e a descamação podem ser
particularmente predominantes nos cotovelos, joelhos e face dorsal das
articulações interfalângicas. Cerca de um terço dos pacientes apresentam pápulas
violáceas achatadas sobre a face dorsal das articulações interfalângicas,
patognomônicas de dermatomiosite (pápulas de Gottron) (Fig. 55-4). Pápulas e
placas violáceas finas nos cotovelos e joelhos de pacientes com dermatomiosite
são chamadas de sinal de Gottron (Fig. 55-4). Essas lesões podem ser
confrontadas com o eritema e a descamação no dorso dos dedos que preserva a
pele sobre as articulações interfalângicas de alguns pacientes com LES. As
telangiectasias e edema periungueais podem ser proeminentes em pacientes com
dermatomiosite. Um eritema rendilhado ou reticulado pode estar associado à
descamação fina das faces extensoras e laterais das coxas e da parte superior dos
braços. Outros pacientes, particularmente aqueles com doença de longa
evolução, desenvolvem áreas de hipopigmentação, hiperpigmentação, atrofia
leve e telangiectasias conhecidas como poiquilodermia. A poiquilodermia é rara
no LES e na esclerodermia e, assim, pode servir como sinal clínico que
diferencia a dermatomiosite dessas duas doenças. As alterações cutâneas podem
ser semelhantes na dermatomiosite e em várias síndromes de sobreposição, onde
podem ser vistos o espessamento e endurecimento da pele das mãos
(esclerodactilia), assim como o fenômeno de Raynaud. No entanto, a presença
de doença muscular grave, pápulas de Gottron, eritema heliotrópico e
poiquilodermia serve para diferenciar os pacientes com dermatomiosite. A
biópsia cutânea das lesões eritematosas e descamativas da dermatomiosite pode
revelar apenas inflamação inespecífica leve, mas, às vezes, mostra alterações
indistinguíveis das encontradas no lúpus eritematoso (LE) cutâneo, consistindo
em atrofia da epiderme, degeneração hidrópica dos ceratinócitos basais e
alterações dérmicas consistentes com edema da parte superior da derme,
deposição intersticial de mucina e leve infiltrado de células mononucleares. A
microscopia de imunofluorescência direta da pele das lesões é geralmente
negativa, embora já tenham sido descritos, em alguns pacientes, depósitos
granulares de imunoglobulina(s) e complemento na zona da membrana basal da
epiderme. O tratamento deve ser dirigido à doença sistêmica. Os glicocorticoides
tópicos algumas vezes são úteis; os pacientes devem evitar exposição à radiação
UV e adotar medidas fotoprotetoras vigorosas, como o uso de filtros solares de
amplo espectro.
FIGURA 55-3 Dermatomiosite. O eritema violáceo periorbital caracteriza o exantema heliotrópico
clássico. (Cortesia de James Krell, MD; com permissão.)
FIGURA 55-4 Pápulas de Gottron. A dermatomiosite frequentemente envolve as mãos com pápulas
eritematosas achatadas sobre os nós dos dedos. Também são evidentes as telangiectasias periungueais.

LÚPUS ERITEMATOSO
As manifestações cutâneas do LE (Cap. 349) podem ser divididas em formas
agudas, subagudas e crônicas ou discoides. O LE cutâneo agudo caracteriza-se
por eritema no nariz e nas proeminências malares, com um aspecto em “asa de
borboleta” (Fig. 55-5A). O eritema muitas vezes é de início súbito,
acompanhado por edema e descamação fina, e correlacionado com o
acometimento sistêmico. Os pacientes podem apresentar acometimento
disseminado da face, assim como eritema e descamação nas faces extensoras dos
membros e da região superior do tórax (Fig. 55-5B). Essas lesões agudas, às
vezes passageiras, geralmente duram dias e, em muitos casos, estão associadas a
exacerbações da doença sistêmica. A biópsia cutânea de lesões agudas
tipicamente mostra degeneração hidrópica de ceratinócitos basais, edema
dérmico e (em alguns casos) um infiltrado esparso de células mononucleares na
derme superior, além de mucina dérmica. A microscopia de imunofluorescência
direta da pele lesionada frequentemente revela depósitos de imunoglobulina(s) e
complemento na zona da membrana basal epidérmica. O tratamento deve ser
voltado para o controle da doença sistêmica. A fotoproteção é muito importante
nessa doença e em outras formas de LE.
FIGURA 55-5 Lúpus eritematoso (LE) cutâneo agudo. A. LE cutâneo agudo na face que mostra eritema
malar proeminente, escamoso. O envolvimento de outros locais expostos ao sol também é comum. B. LE
cutâneo agudo na região superior do tórax que demonstra pápulas e placas eritematosas brilhantes e
ligeiramente edematosas. (B, cortesia de Robert Swerlick, MD; com permissão.)

O lúpus eritematoso cutâneo subagudo (LECS) caracteriza-se por erupção


disseminada com fotossensibilidade, sem formação de cicatrizes. Na maioria dos
pacientes, o envolvimento renal e do sistema nervoso central é leve ou ausente.
O LECS pode se apresentar como erupção papuloescamosa semelhante à
psoríase ou como lesões anulares policíclicas. Na forma papuloescamosa,
surgem pápulas eritematosas características no dorso, tórax, ombros, faces
extensoras dos braços e dorso das mãos; as lesões são incomuns na região
central da face, superfícies flexoras dos braços e abaixo da cintura. Essas pápulas
levemente descamativas tendem a coalescer em grandes placas, algumas de
aparência reticular. A forma anular acomete as mesmas áreas e apresenta pápulas
eritematosas que evoluem para lesões ovais, circulares ou policíclicas. As lesões
do LECS são mais disseminadas, porém apresentam menor tendência à formação
de cicatrizes do que as lesões do LE discoide. Em muitos pacientes com LECS,
os fármacos (p. ex., hidroclorotiazida, bloqueadores dos canais de cálcio,
inibidores da bomba de prótons) podem induzir ou exacerbar a doença. A biópsia
cutânea revela alterações epidérmicas que incluem atrofia, degeneração
hidrópica de ceratinócitos basais e apoptose acompanhados por infiltrado de
células mononucleares na derme superior. A microscopia de imunofluorescência
direta da pele lesionada revela depósitos de imunoglobulina(s) na zona da
membrana basal epidérmica em metade dos casos. Um padrão específico de
depósitos de IgG em toda a epiderme foi associado ao LECS. A maioria dos
pacientes com LECS tem autoanticorpos anti-Ro. O tratamento tópico isolado
geralmente fracassa. A maioria dos pacientes requer tratamento com
antimaláricos aminoquinolinas. Às vezes é necessário um tratamento com baixas
doses de glicocorticoides orais. Medidas fotoprotetoras contra os raios com
comprimentos de onda UVB e UVA são muito importantes.
O lúpus eritematoso discoide (LED, também chamado de LE cutâneo
crônico) caracteriza-se por lesões típicas, na maior parte das vezes encontradas
na face, no couro cabeludo e/ou na parte externa das orelhas. As lesões são
pápulas ou placas eritematosas com descamação espessa e aderente que oclui os
folículos pilosos (obstrução folicular). Ao remover a descamação, sua superfície
inferior mostra pequenas excrescências relacionadas com a abertura dos
folículos pilosos (as chamadas “tachas de carpete”), achado relativamente
específico do LED. As lesões antigas desenvolvem atrofia central, cicatrizes e
hipopigmentação, mas frequentemente apresentam bordas eritematosas, às vezes
elevadas (Fig. 55-6). Essas lesões persistem durante anos e tendem a se expandir
lentamente. Até 15% dos pacientes com LED acabam preenchendo os critérios
de LES do American College of Rheumatology. As lesões discoides típicas
costumam ser observadas nos pacientes com LES. A biópsia das lesões do LED
mostra hiperceratose, obstrução folicular, atrofia da epiderme, degeneração
hidrópica dos ceratinócitos basais, espessamento da zona da membrana basal
epidérmica e infiltrado de células mononucleares adjacentes às membranas
basais epidérmicas, anexiais e microvasculares. A microscopia de
imunofluorescência direta demonstra depósitos de imunoglobulina(s) e
complemento na zona da membrana basal em cerca de 90% dos casos. O
tratamento enfatiza o controle da doença cutânea local e consiste principalmente
em fotoproteção e glicocorticoides tópicos ou intralesionais. Se o tratamento
local for ineficaz, pode ser indicado o uso de antimaláricos aminoquinolinas.
FIGURA 55-6 Lúpus eritematoso (LE) discoide (cutâneo crônico). Placas atrófica violáceas e
hiperpigmentadas, obstrução folicular e fibrose são características do LE cutâneo crônico.

ESCLERODERMIA E MORFEIA
As alterações cutâneas da esclerodermia (Cap. 353) geralmente surgem nas
mãos, dos pés, nos pés e na face, com episódios de edema recorrente sem cacifo.
A esclerose da pele começa na extremidade distal dos dedos (esclerodactilia) e se
propaga em direção proximal, geralmente acompanhada por reabsorção óssea
das pontas dos dedos das mãos, que podem apresentar úlceras em saca-bocado,
cicatrizes estreladas ou áreas de hemorragia (Fig. 55-7). Os dedos podem
realmente encolher e adquirir forma de salsicha, e as unhas, como não são
acometidas, podem se curvar sobre a extremidade dos dedos. Geralmente há
telangiectasia periungueal, mas o eritema periungueal é raro. Nos casos
avançados, os membros mostram contraturas e calcinose cutânea. O
acometimento da face inclui fronte lisa e sem rugas, pele retesada sobre o nariz,
encolhimento do tecido em volta da boca e sulcos radiais periorais (Fig. 55-8).
Muitas vezes, há telangiectasias estriadas, particularmente na face e nas mãos. A
pele acometida fica endurecida, lisa e aderida às estruturas subjacentes; muitas
vezes também há hiper e hipopigmentação. O fenômeno de Raynaud (palidez,
cianose e hiperemia reativa induzidas pelo frio) é documentado em quase todos
os pacientes e pode preceder, em muitos anos, o desenvolvimento da
esclerodermia. A esclerodermia linear é uma forma limitada de doença que se
apresenta em distribuição linear, semelhante a uma faixa, e tende a envolver
tanto as camadas cutâneas profundas como as superficiais. A associação de
calcinose cutânea, fenômeno de Raynaud, dismotilidade esofágica,
esclerodactilia e telangiectasia denomina-se síndrome CREST. Relataram-se
autoanticorpos anticentrômeros em um percentual muito alto de pacientes com a
síndrome CREST, mas em pequena minoria dos pacientes com esclerodermia. A
biópsia cutânea revela espessamento da derme, homogeneização dos feixes de
colágeno, atrofia de glândulas pilossebáceas e écrinas e um infiltrado
mononuclear esparso na derme e gordura subcutânea. A microscopia com
imunofluorescência direta da pele lesionada costuma ser negativa.
FIGURA 55-7 Esclerodermia mostrando esclerose acral e úlceras digitais focais.
FIGURA 55-8 A esclerodermia frequentemente resulta em desenvolvimento de fácies sem expressão,
semelhante a uma máscara.

A morfeia é caracterizada por espessamento e esclerose localizados da pele,


predominando no tronco. Esse distúrbio pode acometer crianças ou adultos.
Começa com placas eritematosas ou róseas que se tornam escleróticas,
desenvolvem hipopigmentação central e apresentam uma borda eritematosa. Na
maioria dos casos, os pacientes têm apenas uma ou poucas lesões, e a doença é
denominada morfeia localizada. Em alguns pacientes, há disseminação cutânea
das lesões sem acometimento sistêmico (morfeia generalizada). Muitos adultos
com morfeia generalizada apresentam distúrbios reumáticos concomitantes ou
outros distúrbios autoimunes. A biópsia cutânea da morfeia é geralmente
indistinguível daquela da esclerodermia. A esclerodermia e a morfeia são
geralmente muito resistentes ao tratamento. Por isso, utiliza-se a fisioterapia
como auxílio para evitar as contraturas articulares e manter a função. As opções
de tratamento para doença inicial rapidamente progressiva incluem fototerapia
(UVA1 [radiação ultravioleta A1] ou PUVA [psoralenos + radiação ultravioleta
A]) ou metotrexato (15-20 mg/semana) isoladamente ou em combinação com
glicocorticoides diários.
A fascite difusa com eosinofilia é uma entidade clínica que às vezes pode
ser confundida com esclerodermia. Há geralmente início súbito de tumefação,
endurecimento e eritema dos membros, frequentemente após grande esforço
físico. As partes proximais dos membros (parte superior dos braços, antebraços,
coxas e panturrilhas) são acometidas com maior frequência do que as mãos e os
pés. Apesar de a pele ser endurecida, ela costuma mostrar aspecto lenhoso,
encovado ou de “pseudocelulite” em vez da rigidez da esclerodermia; pode
haver contraturas precoces secundárias ao envolvimento da fáscia. Esse último
também pode causar a separação de grupos musculares e fazer as veias
parecerem deprimidas (i.e., “sinal do sulco”). Tais achados cutâneos são
acompanhados de eosinofilia no sangue periférico, aumento da velocidade de
hemossedimentação e, às vezes, hipergamaglobulinemia. A biópsia de áreas
profundas da pele acometida revela inflamação e espessamento da fáscia
profunda que recobre o músculo. Em geral, encontra-se um infiltrado
inflamatório composto de eosinófilos e células mononucleares. Os pacientes com
fascite eosinofílica parecem correr maior risco de desenvolver insuficiência da
medula óssea ou outras anomalias hematológicas. Embora a evolução final da
fascite eosinofílica seja incerta, muitos pacientes respondem favoravelmente ao
tratamento com prednisona em doses de 40 a 60 mg/dia.
A síndrome da eosinofilia-mialgia – um distúrbio com números epidêmicos
de casos relatados em 1989, associado à ingestão de L-triptofano fabricado por
uma única companhia japonesa – é um distúrbio multissistêmico que se
caracteriza por mialgias debilitantes e eosinofilia absoluta, associado a várias
combinações de artralgias, sintomas pulmonares e edema periférico. Em uma
fase subsequente (3-6 meses após os sintomas iniciais), esses pacientes
frequentemente apresentam alterações cutâneas esclerodérmicas localizadas,
perda ponderal e/ou neuropatia (Cap. 353). A causa exata dessa síndrome, que
pode se assemelhar a outras afecções cutâneas escleróticas, é desconhecida.
Porém, os lotes de L-triptofano implicados continham o contaminante 1,1-
etilideno-bis[triptofano]. Esse contaminante pode ser patogênico ou pode ser um
marcador para outra substância que provoque a doença.

LEITURAS ADICIONAIS
Bolognia JL et al (eds): Dermatology, 4th ed. Philadelphia, Elsevier, 2018.
Goldsmith LA et al (eds): Fitzpatrick’s Dermatology in General Medicine, 8th
ed. New York, McGraw-Hill, 2012.
Hammers CM, Stanley JR: Mechanisms of disease: Pemphigus and bullous
pemphigoid. Annu Rev Pathol 11:175, 2016.
Schmidt E, Zillikens D: Pemphigoid diseases. Lancet 381:320, 2013.
56
Farmacodermias
Robert G. Micheletti, Misha Rosenbach, Bruce U. Wintroub, Kanade
Shinkai

As reações cutâneas situam-se entre as mais frequentes reações adversas aos


fármacos. A maioria é benigna, mas algumas podem ser potencialmente fatais. O
reconhecimento imediato de reações graves, a suspensão do medicamento e as
intervenções terapêuticas apropriadas podem minimizar a toxicidade. Este
capítulo enfoca as farmacodermias causadas por medicamentos sistêmicos;
abrange a incidência, as características e a patogênese, bem como fornece
algumas diretrizes sobre o tratamento, determinação da etiologia e futura
utilização dos fármacos.
USO DE FÁRMACOS VENDIDOS COM PRESCRIÇÃO NOS
ESTADOS UNIDOS
Nos Estados Unidos, mais de 3 bilhões de prescrições para mais de 60 mil
produtos farmacêuticos, que incluem mais de 2 mil agentes ativos diferentes, são
dispensadas anualmente. Somente os pacientes internados em hospitais recebem
anualmente cerca de 120 milhões de procedimentos de terapia medicamentosa, e
metade dos americanos adultos recebem fármacos prescritos regularmente em
atendimentos ambulatoriais. Os efeitos adversos de um medicamento prescrito
podem resultar em 4,5 milhões de consultas de urgência e emergência
anualmente nos Estados Unidos. Muitos pacientes usam medicamentos isentos
de prescrição que podem causar reações cutâneas adversas.
INCIDÊNCIA DE REAÇÕES CUTÂNEAS
Vários estudos de coorte de grande porte estabeleceram que reações cutâneas
agudas a fármacos afetam cerca de 3% dos pacientes internados. As reações
costumam ocorrer de alguns dias até 4 semanas após o início da terapia.
Muitos fármacos de uso comum são associados a uma taxa de 1 a 2% de
exantemas durante os experimentos clínicos anteriores à comercialização. O
risco frequentemente é mais alto quando os medicamentos são usados em
populações não selecionadas. A taxa pode atingir 3 a 7% para amoxicilina,
sulfametoxazol, muitos anticonvulsivantes e agentes anti-HIV.
Além das erupções agudas, uma variedade de doenças cutâneas pode ser
induzida ou exacerbada pela utilização prolongada de fármacos (p. ex., prurido,
pigmentação, distúrbios nas unhas ou nos cabelos, psoríase, penfigoide bolhoso,
fotossensibilidade e até neoplasias cutâneas). Essas reações medicamentosas não
são frequentes, mas nem sua incidência nem seu impacto na saúde pública foram
avaliados.
Em uma série de 48.005 pacientes internados durante um período de 20
anos, o exantema morbiliforme (91%) e a urticária (6%) foram as reações
cutâneas mais frequentes. As reações graves são demasiadamente raras para
serem detectadas nessas coortes. Embora raras, as reações cutâneas graves aos
fármacos têm um impacto importante na saúde devido às sequelas significativas,
incluindo a mortalidade. As erupções medicamentosas adversas são responsáveis
por hospitalizações, aumento da permanência hospitalar, além de poderem
ameaçar a vida. Algumas populações têm risco aumentado de farmacodermias,
incluindo idosos, pacientes com doenças autoimunes, receptores de transplante
de células-tronco hematopoiéticas e aqueles com infecção aguda pelos vírus
Epstein-Barr (EBV) ou vírus da imunodeficiência humana (HIV). A
fisiopatologia subjacente a essa associação não é conhecida, mas pode estar
relacionada a imunocomprometimento ou desregulação imune. As pessoas com
doença avançada pelo HIV (p. ex., contagem de linfócitos T CD4+ < 200
células/μL) têm risco 40 a 50 vezes aumentado de reações adversas ao
sulfametoxazol (Cap. 197) e risco aumentado de reações graves de
hipersensibilidade.
PATOGÊNESE DAS FARMACODERMIAS
As respostas cutâneas adversas a fármacos podem surgir como resultado de
mecanismos imunológicos e não imunológicos.

REAÇÕES MEDICAMENTOSAS NÃO IMUNOLÓGICAS


Exemplos de reações medicamentosas não imunológicas são as alterações
pigmentares relacionadas ao acúmulo na derme de medicamentos ou de seus
metabólitos; alteração dos folículos pilosos por antimetabólitos e inibidores da
sinalização; e lipodistrofia associada a efeitos metabólicos de medicamentos
anti-HIV. Esses efeitos colaterais são previsíveis e, algumas vezes, podem ser
evitados.

REAÇÕES MEDICAMENTOSAS IMUNOLÓGICAS


As evidências sugerem uma base imunológica para a maioria das erupções
medicamentosas agudas. As reações medicamentosas podem resultar da
liberação imediata de mediadores pré-formados (p. ex., urticária, anafilaxia),
reações mediadas por anticorpos, deposição de complexos imunes e respostas
específicas a antígenos. Clones de células T fármaco-específicos podem originar-
se do sangue ou de lesões cutâneas de pacientes com uma variedade de alergias
medicamentosas, sugerindo fortemente que essas células T medeiam a alergia
medicamentosa de uma maneira específica para antígenos. Clones específicos
são gerados por medicamentos que são frequentemente causa de
farmacodermias: penicilina G, amoxicilina, cefalosporinas, sulfametoxazol,
fenobarbital, carbamazepina e lamotrigina. Tanto os clones de CD4 como os de
CD8 foram obtidos, entretanto seus papéis específicos na alergia não foram
elucidados. A apresentação de fármacos a células T é restrita ao complexo de
histocompatibilidade principal (MHC) e provavelmente envolve o
reconhecimento de complexos fármacopeptídeo por receptores de células T
(TCRs) específicos.
Após o fármaco induzir uma resposta imune, o fenótipo final da reação é
determinado pela natureza dos efetores: células T citotóxicas (CD8+) em reações
bolhosas e em determinadas reações de hipersensibilidade, quimiocinas para
reações mediadas por neutrófilos ou eosinófilos e colaboração com células B
para a produção de anticorpos específicos para as reações urticariformes. As
reações imunológicas foram recentemente classificadas em outros subtipos,
fornecendo um modelo útil para a designação de reações medicamentosas
adversas com base no envolvimento de vias imunes específicas (Tab. 56-1).

TABELA 56-1 ■ Classificação das reações medicamentosas adversas de acordo com a via imune
Tipo Via principal Mediadores imunes Tipo de reação medicamentosa adversa
principais

Tipo IgE IgE Urticária, angioedema, anafilaxia


I
Tipo Citotoxicidade mediada por IgG IgG Hemólise induzida por fármacos, trombocitopenia
II (p. ex., penicilina)
Tipo Imunocomplexos IgG + antígeno Vasculite, doença do soro, lúpus induzido por
III fármacos
Tipo Inflamação com macrófagos mediada por γ-IFN, TNF-α Teste cutâneo com tuberculina, dermatite de
IVa linfócitos T Células TH1 contato
Tipo Inflamação com eosinófilos mediada por IL-4, IL-5, IL-13 DIHS
IVb linfócitos T Células TH2 Erupção morbiliforme
Eosinófilos
Tipo Inflamação com linfócitos T citotóxicos Linfócitos T SSJ/NET
IVc mediada por linfócitos T citotóxicos Erupção morbiliforme
Granzima
Perforina
Granulisina (SSJ/NET
apenas)
Tipo Inflamação com neutrófilos mediada por CXCL8, IL-17, GM- PEGA
IVd linfócitos T CSF
Neutrófilos
Siglas: DIHS, síndrome de hipersensibilidade induzida por fármacos; GM-CSF, fator estimulante de colônias de granulócitos-macrófagos;
IFN, interferona; IL, interleucina; NET, necrólise epidérmica tóxica; PEGA, pustulose exantemática generalizada aguda; SSJ, síndrome de
Stevens-Johnson; TNF, fator de necrose tumoral.

Reações imediatas As reações imediatas dependem da liberação de mediadores


da inflamação pelos mastócitos do tecido ou pelos basófilos circulantes. Esses
mediadores consistem em histamina, leucotrienos, prostaglandinas, bradicininas,
fator de ativação das plaquetas, enzimas e proteoglicanas. Os fármacos podem
desencadear a liberação do mediador diretamente (reação “anafilactoide”) ou por
meio de anticorpos IgE-específicos. Essas reações em geral manifestam-se na
pele e nos sistemas gastrintestinal, respiratório e cardiovascular (Cap. 346). Os
sinais e sintomas primários incluem prurido, urticária, náuseas, vômitos, cólicas
abdominais, broncospasmo, edema laríngeo e, ocasionalmente, choque
anafilático com hipotensão e morte. Eles ocorrem em um período de minutos
após a exposição ao fármaco. Os fármacos anti-inflamatórios não esteroides
(AINEs), inclusive o ácido acetilsalicílico, e os meios de contraste, são causas
frequentes de degranulação direta de mastócitos ou de reações anafilactoides que
podem ocorrer na primeira exposição. As penicilinas e os relaxantes musculares
usados na anestesia geral são as causas mais frequentes de reações
medicamentosas dependentes da IgE que requerem sensibilização prévia. A
liberação dos mediadores é desencadeada quando conjugados proteicos de
fármacos polivalentes fazem ligação cruzada com as moléculas de IgE fixadas
nas células sensibilizadas. Determinadas vias de administração favorecem
padrões clínicos diferentes (p. ex., efeitos gastrintestinais por via oral, efeitos
circulatórios por via intravenosa).

Reações dependentes de imunocomplexo A doença do soro é produzida por


depósitos teciduais de imunocomplexos circulantes com consumo de
complemento. Caracteriza-se por febre, artrite, nefrite, neurite, edema e um
exantema urticariforme, papular ou purpúrico (Cap. 356). Foi descrita pela
primeira vez após a administração de soro não humano, atualmente ocorre com
anticorpos monoclonais e outros medicamentos semelhantes. Na doença do soro
clássica, os sintomas desenvolvem-se 6 dias ou mais após a exposição ao
fármaco, com o período latente representando o tempo necessário para sintetizar
o anticorpo. As vasculites, complicações medicamentosas relativamente raras,
também podem ser resultado do depósito de imunocomplexos (Cap. 356). As
cefalosporinas e outros medicamentos, incluindo anticorpos monoclonais, como
infliximabe, rituximabe e omalizumabe, podem estar associados a reações
clinicamente semelhantes às reações da doença do soro. O mecanismo dessa
reação é desconhecido, mas não está relacionado com a formação de
imunocomplexos ou a ativação do complemento.

Hipersensibilidade tardia Apesar de não ser completamente compreendida, a


hipersensibilidade tardia causada por células T específicas para fármacos é um
mecanismo importante para as erupções medicamentosas mais comuns (i.e.,
erupções morbiliformes) e também formas raras e graves como a síndrome de
hipersensibilidade induzida por fármacos (DIHS) (também conhecida como
reação medicamentosa com eosinofilia e sintomas sistêmicos [DRESS]),
pustulose exantemática generalizada aguda (PEGA), síndrome de Stevens-
Johnson (SSJ) e necrólise epidérmica tóxica (NET) (Tab. 56-1). As células T
fármaco-específicas foram detectadas nesses tipos de erupções medicamentosas.
Na NET, as lesões cutâneas contêm linfócitos T reativos a linfócitos e
ceratinócitos autólogos em uma via fármaco-específica, restrita ao antígeno
leucocitário humano (HLA) e mediada pela perforina/granzima.
Não se sabe qual(is) o(s) mecanismo(s) responsável(is) pela ativação de
células T. Há duas hipóteses principais: primeiro, que os antígenos responsáveis
por essas reações possam ser o próprio fármaco nativo ou componentes do
fármaco que formam complexos covalentes com proteínas endógenas,
apresentadas em associação com moléculas HLA às células T por meio da via
clássica de apresentação de antígenos ou, de modo alternativo, por meio de
interação direta do fármaco/metabólito com o TCR ou HLA carregada com
peptídeo (p. ex., a interação farmacológica de fármacos com receptores imunes
ou hipótese p-i). Dados recentes de cristalografia com raios X caracterizando a
ligação entre moléculas HLA específicas e determinados fármacos que
sabidamente causam reações de hipersensibilidade demonstram alterações
exclusivas no sulco de ligação do peptídeo MHC, sugerindo uma base molecular
para a ativação de células T e o desenvolvimento de reações de
hipersensibilidade.

FATORES GENÉTICOS E FARMACODERMIAS


Determinantes genéticos podem predispor um indivíduo a reações
medicamentosas graves que afetam ou o metabolismo do fármaco ou as
respostas imunológicas aos fármacos. Polimorfismos em enzimas do citocromo
P450, metilação e acetilação de fármacos (como a atividade da tiopurina-
metiltransferase e da azatioprina) e outras formas de metabolismo (como a
glicose-6-fosfato-desidrogenase e dapsona) podem aumentar a suscetibilidade à
toxicidade farmacológica ou à subdose, salientando o papel de efeitos
farmacocinéticos ou farmacodinâmicos diferenciais. O valor do rastreamento de
rotina de enzimas P450 não foi determinado, embora sua custo-efetividade em
determinadas populações (p. ex., pacientes com distúrbios convulsivos) tenha
sido sugerida.
Associações entre hipersensibilidades medicamentosas e haplótipos HLA
sugerem um papel importante para os mecanismos imunes. A hipersensibilidade
ao medicamento anti-HIV abacavir está fortemente associada ao HLA B*57:01 (
Cap. 197). Em Taiwan, em uma população homogênea de chineses Han,
observou-se uma associação de 100% entre SSJ/NET (mas não DIHS)
relacionada com a carbamazepina e com o HLA B*15:02. Na mesma população,
outra associação de 100% foi encontrada entre HLA-B*58:01 e SSJ, NET ou
DIHS em relação com alopurinol. Essas associações são específicas para
fármaco e fenótipo; isto é, a estimulação de células T HLA-específicas por
medicamentos leva a reações diferentes. Entretanto, as fortes associações
encontradas em Taiwan não foram observadas em outros países com populações
mais heterogêneas.
CONSIDERAÇÕES GLOBAIS
O reconhecimento das associações do HLA com hipersensibilidade a
fármacos resultou em recomendações para o rastreamento em populações de
alto risco. O rastreamento genético para o HLA-B*57:01 para evitar a
hipersensibilidade ao abacavir, que tem um valor preditivo negativo de 100%
quando confirmado por teste cutâneo e 55% de valor preditivo positivo
generalizável entre as etnias, está se tornando o padrão de cuidados clínicos no
mundo todo (número necessário para tratar = 13). A Food and Drug
Administration recomendou o rastreamento para o HLA-B*15:02 em indivíduos
asiáticos antes de receber uma nova prescrição de carbamazepina. O American
College of Rheumatology recomendou o rastreamento para o HLA-B*58:01 de
pacientes chineses Han que recebem alopurinol. Até o momento, o rastreamento
para um único HLA (mas não para múltiplos haplótipos de HLA) em populações
específicas se mostrou custo-efetivo.
Vários investigadores propuseram que haplótipos específicos do HLA
associados com hipersensibilidade a fármacos na verdade têm um papel
patogênico; a estimulação de linfócitos T citotóxicos (LTCs) carbamazepina-
específicos no contexto do HLA-B*15:02 resulta na produção de um mediador
putativo de necrose de ceratinócitos na NET. Outros estudos identificaram LTCs
reativos à carbamazepina que utilizam repertórios TCR V-alfa e V-beta restritos
em pacientes com hipersensibilidade à carbamazepina e que não são encontrados
em pessoas tolerantes à carbamazepina. A testagem genética para haplótipos
HLA específicos e o rastreamento funcional para o repertório TCR para a
identificação de pacientes em risco está se tornando mais amplamente disponível
e antecipa a era da medicina personalizada e farmacogenômica.
APRESENTAÇÃO CLÍNICA DAS FARMACODERMIAS
REAÇÕES CUTÂNEAS NÃO IMUNES
Exacerbação ou indução de doenças dermatológicas Uma variedade de
agentes pode exacerbar doenças preexistentes ou induzir – ou desmascarar –
uma doença que pode ou não desaparecer após a suspensão do medicamento
indutor. Por exemplo, AINEs, lítio, betabloqueadores, antagonistas do fator de
necrose tumoral (TNF), α-interferona (IFN) e inibidores da enzima conversora
da angiotensina (ECA) podem exacerbar a psoríase em placas, enquanto os
antimaláricos e a retirada dos glicocorticoides sistêmicos podem piorar a
psoríase pustular. A situação dos inibidores do TNF-α é incomum, pois essa
classe de medicamentos é usada para tratar a psoríase; porém, elas podem
induzir a psoríase (especialmente palmoplantar) em pacientes tratados para
outras doenças. A acne pode ser induzida por glicocorticoides, androgênios, lítio
e antidepressivos. Erupções foliculares papulares ou pustulares de face e tronco,
algumas vezes simulando a acne, frequentemente ocorrem com os antagonistas
do receptor do fator de crescimento epidérmico (EGFR). A gravidade da erupção
se correlaciona com um melhor efeito anticâncer. Essa erupção costuma
responder e ser prevenida por antibióticos tipo tetraciclina.
Vários medicamentos induzem ou exacerbam doença autoimune. A
interleucina (IL) 2, a α-IFN e o anti-TNF-α estão associados a lúpus eritematoso
sistêmico (LES) de início recente. O lúpus induzido por fármacos é
classicamente marcado por fatores antinucleares e anti-histona e, em alguns
casos, anti-DNA de fita dupla (D-penicilamina, anti-TNF-α) ou anticorpos
perinucleares contra o citoplasma de neutrófilos (p-ANCA) (minociclina). O
lúpus eritematoso cutâneo subagudo (LECS) pode ser induzido por uma lista
crescente de fármacos, incluindo diuréticos tiazídicos, inibidores de TNF,
terbinafina e minociclina. IFN e inibidores de TNF podem induzir doença
granulomatosa e sarcoidose. Doenças bolhosas autoimunes também podem ser
induzidas por fármacos: pênfigo por D-penicilamina e inibidores da ECA,
penfigoide bolhoso por furosemida e inibidor da PD-1 e dermatose bolhosa por
IgA linear por vancomicina. Outros medicamentos podem causar reações
cutâneas altamente específicas. O agente de contraste gadolínio foi associado a
fibrose sistêmica nefrogênica, uma condição de esclerose da pele com raro
envolvimento de órgãos internos; o comprometimento renal avançado pode ser
um fator de risco importante. Fator estimulante de colônias de granulócitos,
azacitidina, ácido all-trans-retinoico e a classe de fármacos inibidores de FLT3
podem induzir dermatoses neutrofílicas. Nesses casos, a hipótese de que um
fármaco pode ser o responsável deve sempre ser considerada, mesmo após o
tratamento estar completo. Além disso, podem surgir reações em casos de terapia
medicamentosa por longo prazo devido a alterações pequenas na dose ou no
metabolismo do hospedeiro. A resolução da reação cutânea pode ser retardada
após a suspensão do medicamento.

Erupções por fotossensibilidade As erupções por fotossensibilidade em geral


são mais acentuadas nas áreas expostas ao sol, mas podem estender-se para as
áreas protegidas do sol. O mecanismo é quase sempre fototóxico. As reações
fototóxicas são semelhantes às queimaduras solares e podem ocorrer com a
primeira exposição ao fármaco. Pode haver formação de bolhas na
pseudoporfiria relacionada a fármacos, mais comumente com AINEs. A
gravidade das reações depende do nível de fármaco no tecido, de sua eficiência
como fotossensibilizador e da extensão da exposição aos comprimentos de onda
de luz ultravioleta (UV) (Cap. 57).
Fármacos orais fotossensibilizantes comumente administrados incluem
fluoroquinolonas, tetraciclina e sulfametoxazol-trimetoprima. Outros fármacos
menos frequentemente implicados são clorpromazina, tiazídicos, AINEs e
inibidores de BRAF. O voriconazol pode resultar em fotossensibilidade grave,
fotoenvelhecimento acelerado e carcinogênese cutânea.
Pelo fato de a UVA e de a luz visível, que desencadeiam essas reações, não
serem facilmente absorvidas por filtros solares não opacos e serem propagadas
através do vidro da janela, as reações por fotossensibilidade podem ser difíceis
de serem bloqueadas. As reações de fotossensibilidade diminuem com a
suspensão do fármaco ou da radiação UV, uso de filtros solares que bloqueiam a
luz UVA e tratamento da reação como se fosse uma queimadura solar.
Raramente, os indivíduos desenvolvem reatividade persistente à luz, e precisam
evitar, por um longo tempo, a exposição à luz solar. Alguns agentes
quimioterápicos, como o metotrexato, podem induzir uma reação de reativação
UV caracterizada por erupção eritematosa discretamente descamativa em locais
de exposição solar prévia intensa.

Alterações na pigmentação Fármacos sistêmicos ou tópicos podem causar uma


variedade de alterações pigmentares na pele ao desencadear a produção de
melanina por melanócitos (como no caso de contraceptivos orais causando
melasma) ou devido à deposição de fármacos ou de seus metabólitos. O uso por
longo período de minociclina e amiodarona pode causar uma pigmentação cinza-
azulada. Fenotiazina, ouro e bismuto resultam em pigmentação marrom-
acinzentada das áreas expostas ao sol. Inúmeros agentes quimioterápicos contra
o câncer podem ser associados a padrões característicos de pigmentação (p. ex.,
bleomicina, bussulfano, daunorrubicina, ciclofosfamida, hidroxiureia,
fluoruracila e metotrexato). A clofazimina causa uma lipofuscinose induzida por
fármacos com coloração característica vermelho-amarronzada. A
hiperpigmentação da face, membranas mucosas e regiões pré-tibiais e
subungueais ocorre com os antimaláricos. A quinacrina causa descoloração
generalizada amarelada. As alterações de pigmentação também podem ocorrer
em mucosas (bussulfano, bismuto), conjuntivas (clorpromazina, tioridazina,
imipramina, clomipramina), unhas (zidovudina, doxorrubicina, ciclofosfamida,
bleomicina, fluoruracila, hidroxiureia), pelos e dentes (tetraciclinas).

Necrose cutânea devido à varfarina Essa reação rara (0,01-0,1%) normalmente


ocorre entre o terceiro e o décimo dia de terapia com varfarina, em geral nas
mulheres. Os locais comuns são os seios, as coxas e as nádegas (Fig. 56-1). As
lesões são nitidamente demarcadas, eritematosas ou purpúricas, podendo
progredir, formando bolhas grandes e hemorrágicas com necrose e formação de
escaras.

FIGURA 56-1 Necrose por varfarina envolvendo as mamas.

A anticoagulação da varfarina na deficiência de proteína C ou S causa uma


queda adicional nos níveis circulantes de endógenos que já estão reduzidos,
permitindo hipercoagulabilidade e trombose na microvasculatura cutânea, com
áreas resultantes de necrose. A necrose induzida pela heparina pode apresentar
aspectos clinicamente semelhantes, mas provavelmente é causada pela
agregação de plaquetas induzida pela heparina com a subsequente oclusão dos
vasos sanguíneos; pode afetar áreas adjacentes ao local da injeção ou locais mais
distantes se infundida.
A necrose cutânea induzida pela varfarina é tratada com vitamina K,
heparina, desbridamento cirúrgico e cuidado intensivo das feridas. O tratamento
com concentrados de proteína C também pode ser útil. Novos anticoagulantes,
como o etexilato de dabigatrana, podem evitar a necrose pela varfarina em
pacientes de alto risco.

Distúrbios de cabelos induzidos por fármacos • PERDA DE CABELOS


INDUZIDA POR FÁRMACOS As medicações podem afetar os folículos
pilosos em duas fases diferentes de seu ciclo de crescimento: anágeno
(crescimento) e telógeno (repouso). O eflúvio anágeno ocorre em um período de
dias após a administração do fármaco, especialmente com antimetabólitos ou
outros fármacos quimioterápicos. Em contrapartida, no eflúvio telógeno, o atraso
é de 2 a 4 meses após o início de uma nova medicação. Ambos se apresentam
como alopécia não cicatricial difusa, mais comumente reversível após a
suspensão do agente responsável.
Um número considerável de fármacos foram associados com a perda de
cabelos. Isso inclui agentes antineoplásicos (agentes alquilantes, bleomicina,
alcaloides da vinca, compostos de platina), anticonvulsivantes (carbamazepina,
valproato), betabloqueadores, antidepressivos, fármacos antitireoidianos, IFNs,
contraceptivos orais e agentes redutores do colesterol.

CRESCIMENTO DE CABELOS INDUZIDO POR FÁRMACOS Os


medicamentos também podem causar crescimento de cabelos. Hirsutismo é um
crescimento excessivo de pelos terminais em padrão masculino em uma mulher,
mais comumente na face e no tronco, devido à estimulação androgênica de
folículos pilosos sensíveis a hormônios (esteroides anabolizantes, contraceptivos
orais, testosterona, corticotrofina). A hipertricose é um padrão distinto de
crescimento dos pelos, de padrão não masculino, geralmente localizado na fronte
e regiões temporais da face. Os fármacos responsáveis pela hipertricose
consistem em anti-inflamatórios, glicocorticoides, vasodilatadores (diazóxido,
minoxidil), diuréticos (acetazolamida), anticonvulsivantes (fenitoína), agentes
imunossupressores (ciclosporina A), psoralenos e zidovudina.
As alterações na cor ou na estrutura dos cabelos são efeitos adversos
incomuns de medicamentos. A descoloração dos cabelos pode ocorrer com a
cloroquina, α-IFN, agentes quimioterapêuticos e inibidores da tirosina-cinase. As
alterações na estrutura capilar foram observadas em pacientes que receberam
inibidores do EGFR, inibidores de BRAF, inibidores da tirosina-cinase e
acitretina.

Distúrbios de unhas induzidos por fármacos Os distúrbios ungueais


relacionados com fármacos em geral envolvem as 20 unhas e precisam de meses
para desaparecer após a suspensão do medicamento. A patogênese é mais
frequentemente tóxica. As alterações ungueais induzidas por fármacos incluem a
linha de Beau (depressão transversal da lâmina ungueal), onicólise
(descolamento da parte distal da lâmina ungueal), onicomadese (descolamento
da parte proximal da lâmina ungueal), pigmentação e paroníquia (inflamação da
pele periungueal).

ONICÓLISE A onicólise ocorre com tetraciclinas, fluoroquinolonas, retinoides,


AINEs e outros, incluindo muitos agentes quimioterápicos, podendo ser
desencadeada pela exposição à luz do sol.

ONICOMADESE É causada por parada temporária da atividade mitótica da


matriz ungueal. Entre os fármacos comuns relatados como indutores de
onicomadese, estão a carbamazepina, o lítio, os retinoides e os agentes
quimioterápicos.

PARONÍQUIA A paroníquia e o granuloma piogênico múltiplo com abscessos


periungueais progressivos e dolorosos dos dedos das mãos e dos pés são um
efeito colateral dos retinoides sistêmicos, lamivudina, indinavir e anticorpos
monoclonais anti-EGFR.

MUDANÇA DE COR DAS UNHAS Alguns fármacos, como antraciclinas,


taxanos, fluoruracila, psoralenos e zidovudina, podem induzir à
hiperpigmentação do leito ungueal por meio da estimulação do melanócito. Isso
parece ser reversível e dependente da dose.
Eritema tóxico e outras reações decorrentes da quimioterapia Como muitos
agentes usados na quimioterapia contra o câncer inibem a divisão celular, os
elementos da pele que se proliferam rapidamente, como cabelos, membranas
mucosas e apêndices, são sensíveis a seus efeitos. Um amplo espectro de
toxicidades cutâneas relacionadas à quimioterapia foi relatado, incluindo
hidradenite écrina neutrofílica, celulite estéril, dermatite esfoliativa e eritema
flexural; a nomenclatura recente classifica essas alterações sob o diagnóstico
único de eritema tóxico da quimioterapia (TEC) (Fig. 56-2). O eritema acral é
marcado por disestesia e uma erupção eritematosa e edematosa das palmas e
plantas. Causas comuns incluem citarabina, doxorrubicina, metotrexato,
hidroxiureia, fluorouracila e capecitabina.

FIGURA 56-2 Eritema tóxico da quimioterapia.

A recente introdução de muitos anticorpos monoclonais e pequenos


inibidores da sinalização molecular para o tratamento do câncer foi
acompanhada por inúmeros relatos de toxicidade na pele e nos cabelos; apenas
os casos mais comuns são relatados nesse texto. Os antagonistas do EGFR
induzem erupções foliculares e toxicidade ungueal após um intervalo médio de
10 dias na maioria dos pacientes. Xerose, erupções eczematosas, erupções
acneiformes e prurido são comuns. O erlotinibe está associado a alterações
marcantes na textura dos cabelos. O sorafenibe, um inibidor da tirosina-cinase,
pode resultar em erupções foliculares e erupções bolhosas focais em regiões
palmoplantares, flexurais ou de pressão por fricção. Os inibidores de BRAF
estão associados a fotossensibilidade, hiperceratose palmoplantar,
encaracolamento de pelos, erupção disceratótica (tipo Grover), neoplasias
cutâneas benignas hiperceratóticas e carcinomas espinocelulares tipo
ceratoacantomas. Erupção, prurido e descoloração tipo vitiligo foram relatados
em associação com o tratamento com ipilimumabe (anti-CTLA4). Até 50% dos
pacientes experimentam erupções cutâneas imunomediadas, incluindo reações
granulomatosas, dermatomiosite, paniculite e vasculite.

REAÇÕES CUTÂNEAS IMUNES COMUNS


Erupções maculopapulares As erupções morbiliformes ou maculopapulares (Fi
g. 56-3) são as mais comuns entre todas as reações induzidas por fármacos.
Frequentemente começam no tronco ou em áreas intertriginosas e consistem em
máculas e pápulas eritematosas simétricas e confluentes que empalidecem à
compressão. Máculas que não empalidecem à compressão, de cor escura ou
vermelho-vivo devem levar a uma suspeita de reação mais grave. O
envolvimento de mucosas é raro e deve levar à consideração de SSJ. O
envolvimento facial nas erupções morbiliformes também é incomum, e a
presença de lesões faciais extensas com edema facial sugere DIHS. O
diagnóstico de erupções morbiliformes raramente é auxiliado por exames
laboratoriais. A biópsia de pele mostra alterações inflamatórias inespecíficas.
FIGURA 56-3 Erupção medicamentosa morbiliforme.

As erupções morbiliformes podem estar associadas a prurido moderado a


intenso e febre. Um exantema viral é outra consideração diagnóstica diferencial,
especialmente em crianças, e doença do enxerto contra o hospedeiro também é
uma consideração no contexto clínico adequado. A ausência de enantemas, de
sintomas nas orelhas, nariz, garganta, bem como no trato respiratório superior, e
o polimorfismo das lesões cutâneas sustentam o diagnóstico de erupção
medicamentosa em detrimento da viral. Causadores comuns incluem
aminopenicilinas, cefalosporinas, sulfonamidas antibacterianas, alopurinol ou
antiepilépticos. Betabloqueadores, bloqueadores dos canais de cálcio e inibidores
da ECA raramente são os culpados; porém, qualquer fármaco pode causar um
exantema morbiliforme. Alguns medicamentos têm taxas muito altas de erupção
morbiliforme, incluindo nevirapina e lamotrigina, mesmo na ausência de reações
de DIHS. A erupção morbiliforme da lamotrigina está associada a doses iniciais
mais elevadas, aumento rápido da dose, uso concomitante de valproato (o que
aumenta os níveis e a meia-vida da lamotrigina) e o uso em crianças.
As reações maculopapulares em geral desenvolvem-se em um período de 1
semana a partir do início da terapia e duram menos de 2 semanas.
Ocasionalmente, essas erupções melhoram mesmo com o uso contínuo do
fármaco responsável. Como a erupção pode também piorar, o fármaco suspeito
deve ser suspenso a menos que seja essencial. É importante observar que a
erupção pode continuar a progredir por alguns dias até 1 semana após a
suspensão do fármaco. Anti-histamínicos orais e os emolientes podem ajudar a
aliviar o prurido. Cursos curtos de glicocorticoides tópicos potentes podem
reduzir a inflamação e os sintomas. O tratamento com glicocorticoides
sistêmicos raramente é indicado.

Prurido O prurido está associado a quase todas as erupções medicamentosas e,


em alguns casos, pode representar o único sintoma da reação cutânea adversa.
Ele pode ser aliviado por anti-histamínicos, como hidroxizina ou difenidramina.
O prurido causado por determinados medicamentos pode necessitar de
tratamento distinto, como antagonistas seletivos de opioides para o prurido
relacionado a opioides.

Urticária/angioedema/anafilaxia A urticária, o segundo tipo mais frequente de


reação cutânea a fármacos, se caracteriza por vergões pruriginosos vermelhos de
tamanho variável que raramente duram mais de 24 horas. Ela foi observada em
associação com quase todos os fármacos, mais frequentemente inibidores da
ECA, ácido acetilsalicílico, AINEs, penicilina e derivados de sangue. Entretanto,
a alergia medicamentosa explica não mais que 10 a 20% dos casos de urticária
aguda. O edema profundo nos tecidos dérmicos e subcutâneos é conhecido como
angioedema, que pode envolver as membranas mucosas respiratórias e
gastrintestinais. A urticária e o angioedema podem ser parte de uma reação
anafilática potencialmente fatal.
A urticária induzida por fármacos pode ser causada por três mecanismos:
por um mecanismo dependente de IgE, por imunocomplexos circulantes (doença
do soro) e pela ativação não imunológica das vias efetoras. As reações urticárias
dependentes de IgE em geral ocorrem dentro de 36 horas a partir da exposição
ao fármaco, mas podem ocorrer dentro de minutos. A urticária induzida por
imunocomplexos associada a reações tipo doença do soro em geral ocorre 6 a 12
dias após a primeira exposição. Nessa síndrome, a erupção urticariforme
(normalmente com placas policíclicas sobre articulações distais) pode ser
acompanhada de febre, hematúria, artralgias, disfunção hepática e sintomas
neurológicos. Determinados fármacos, como os AINEs, inibidores da ECA,
antagonistas da angiotensina II, contrastes radiográficos e opioides podem
induzir às reações urticariformes, angioedema e anafilaxia na ausência de
anticorpo de fármaco específico por meio de degranulação direta de mastócitos.
Os agentes de contraste radiológicos são uma causa comum de urticária e,
em casos raros, podem causar anafilaxia. Os meios de radiocontraste de alta
osmolalidade apresentam uma probabilidade cerca de cinco vezes maior de
induzir urticária (1%) ou anafilaxia do que os meios mais recentes com baixa
osmolalidade. Cerca de um terço daqueles com reações leves à exposição
anterior reagem novamente na reexposição. O pré-tratamento com prednisona e
difenidramina reduz as taxas de reação.
O tratamento da urticária ou do angioedema depende da gravidade da
reação. Em casos graves com comprometimento respiratório ou cardiovascular, a
epinefrina e os glicocorticoides intravenosos são a base da terapia. Para
pacientes com urticária sem sintomas de angioedema ou anafilaxia, a suspensão
do medicamento e o uso de anti-histamínicos orais costumam ser suficientes. É
recomendado evitar a reexposição ao fármaco; a retestagem, especialmente em
pessoas com reações graves, só deve ser feita em ambiente de cuidados
intensivos.

Reações anafilactoides A vancomicina está associada à síndrome do “homem


vermelho”, uma reação anafilactoide relacionada à histamina e caracterizada por
rubor, erupção maculopapular difusa e hipotensão. Em casos raros, pode haver
parada cardíaca em associação com a infusão IV rápida do medicamento.

Dermatite de contato por irritante/alérgica Os pacientes que usam


medicamentos tópicos podem desenvolver uma dermatite de contato por irritante
ou alérgica ao medicamento ou a um conservante ou outro componente da
fórmula. São comuns as reações a sulfato de neomicina, bacitracina e polimixina
B. A dermatite de contato pode ser induzida por fitas adesivas, levando a
irritação ou bolhas ao redor de cateteres e acessos IV (Fig. 56-4). Soluções mais
agressivas para desinfecção da pele podem levar a dermatite localizada irritativa.
FIGURA 56-4 Dermatite de contato alérgica (bolhosa) por fita adesiva.

Eritema pigmentado fixo Essas reações menos comuns se caracterizam por


uma ou mais lesões bem demarcadas vermelhas ou marrons, algumas vezes com
eritema violáceo escuro e bolha central (Fig. 56-5). A hiperpigmentação
frequentemente ocorre após a resolução da inflamação aguda. Com a retestagem,
o processo recorre na mesma localização (fixa), mas pode se espalhar também
para outras áreas. As lesões frequentemente envolvem lábios, mãos, pernas, face,
genitália e mucosa oral, causando uma sensação de queimação. A maioria dos
pacientes apresenta múltiplas lesões. O eritema pigmentado fixo foi associado à
pseudoefedrina (frequentemente uma reação não pigmentada), fenolftaleína (em
laxantes), sulfonamidas, tetraciclinas, AINEs, barbitúricos e outros.
FIGURA 56-5 Eritema pigmentado fixo.

REAÇÕES CUTÂNEAS IMUNES RARAS E GRAVES


Síndrome de hipersensibilidade induzida por fármacos A síndrome de
hipersensibilidade induzida por fármacos (DIHS) é uma reação medicamentosa
sistêmica também conhecida como DRESS (reação medicamentosa com
eosinofilia e sintomas sistêmicos); como a eosinofilia nem sempre está presente,
o termo DIHS é atualmente preferido. Clinicamente, a DIHS se apresenta com
um pródromo de febre e sintomas gripais por vários dias, seguidos pelo
surgimento de uma erupção morbiliforme difusa, geralmente envolvendo a face (
Fig. 56-6). Edema de face e de mãos/pés costuma estar presente. As
manifestações sistêmicas incluem linfadenopatia, febre e leucocitose (geralmente
com eosinofilia ou linfocitose atípica), bem como hepatite, nefrite, pneumonite,
miosite e gastrenterite, em ordem descendente. Pode haver padrões distintos de
momento do início e de envolvimento dos órgãos; por exemplo, o alopurinol
classicamente induz DIHS com envolvimento renal, os envolvimentos cardíaco e
pulmonar são mais comuns com a minociclina, o envolvimento gastrintestinal é
visto quase exclusivamente com o abacavir, e alguns medicamentos tipicamente
não causam eosinofilia (abacavir, dapsona, lamotrigina). A reação cutânea em
geral começa 2 a 8 semanas após o fármaco ser iniciado e persiste após a
suspensão dele. Os sinais e sintomas podem persistir durante várias semanas,
especialmente aqueles associados à hepatite. A erupção recorre com a
readministração, e as reações cruzadas entre os anticonvulsivantes aromáticos,
como a fenitoína, carbamazepina e fenobarbital, são comuns. Outros fármacos
que causam DIHS incluem sulfonamidas e outros antibióticos. A
hipersensibilidade a metabólitos de fármacos reativos, hidroxilamina para
sulfametoxazol e areno-óxido para anticonvulsivantes aromáticos, podem estar
envolvidos na patogênese da DIHS. A reativação do herpes-vírus, especialmente
o herpes-vírus 6 e 7, o vírus Epstein-Barr (EBV) e o citomegalovírus (CMV),
tem sido frequentemente relatada nessa síndrome, embora o papel causal da
infecção viral seja motivo de debate. Pesquisas recentes sugerem que fármacos
causadores podem reativar o vírus do herpes quiescente, resultando na expansão
de linfócitos T CD8+ vírus-específico com subsequente dano a órgãos-alvo. A
reativação viral pode estar associada a pior prognóstico clínico. Relataram-se
taxas de mortalidade de até 10%, com a maioria das mortes resultando de
insuficiência hepática. Os glicocorticoides sistêmicos (1,5-2 mg/kg/dia
equivalente de prednisona) devem ser iniciados e reduzidos lentamente ao longo
de 8 a 12 semanas, acompanhando-se cuidadosamente os sintomas e exames
laboratoriais (incluindo hemograma com diferencial, painel bioquímico básico e
função hepática). Um agente poupador de esteroides, como o micofenolato
mofetila, pode estar indicado em casos de rápida recorrência com a redução do
esteroide. Em todos os casos, a imediata suspensão do fármaco suspeito é
necessária. Considerando as complicações graves a longo prazo da miocardite,
os pacientes devem ser submetidos a uma avaliação cardíaca nos casos de DIHS
grave ou se o envolvimento do coração for suspeitado por hipotensão ou
arritmias. Os pacientes devem ser rigorosamente monitorados para
desaparecimento da disfunção orgânica e para o desenvolvimento de tireoidite
autoimune de início tardio e diabetes (até 6 meses).
FIGURA 56-6 Síndrome de hipersensibilidade induzida por fármacos/reação medicamentosa com
eosinofilia e sintomas sistêmicos (DIHS/DRESS).

Síndrome de Stevens-Johnson e necrólise epidérmica tóxica SSJ e NET são


caracterizadas por bolhas e descolamento de mucosas/epiderme resultante de
necrose de toda a espessura epidérmica na ausência de inflamação dérmica
substancial. O termo síndrome de Stevens-Johnson (SSJ) descreve casos em que
a área total de superfície corporal com bolhas e descolamento é < 10% (Fig. 56-
7). O termo sobreposição de síndrome de Stevens-Johnson/necrólise epidérmica
tóxica (SSJ/NET) é usado para descrever os casos com 10 a 30% de
descolamento (Fig. 56-8), e o termo NET para descrever os casos com > 30% de
descolamento (Figs. 56-9 e 56-10).

FIGURA 56-7 Síndrome de Stevens-Johnson (SSJ).


FIGURA 56-8 Sobreposição de SSJ/NET.
FIGURA 56-9 Necrólise epidérmica tóxica (NET) afetando a mão.
FIGURA 56-10 Necrólise epidérmica tóxica.

Outras erupções bolhosas com mucosite concomitante podem ser


confundidas com SSJ/NET. Eritema multiforme (EM) associado ao vírus do
herpes simples se caracteriza por lesões mucosas dolorosas e lesões em alvo
geralmente com distribuição mais acral e com descolamento limitado da pele. A
infecção por Mycoplasma em crianças causa uma apresentação clínica distinta
com mucosite proeminente e envolvimento cutâneo limitado. O nome erupção e
mucosite induzidas por Mycoplasma foi proposto para ajudar a diferenciar essa
entidade clínica, a qual alguns acreditam que possa ser a síndrome originalmente
descrita por Stevens e Johnson.
Os pacientes com SSJ/NET inicialmente apresentam febre > 39°C; dor de
garganta; conjuntivite; e início agudo de lesões escuras e dolorosas atípicas em
forma de alvo (Fig. 56-11). O envolvimento do trato intestinal e respiratório
superior está associado com prognóstico ruim, da mesma forma que idade
avançada e maior extensão do descolamento epidérmico. Pelo menos 10%
daqueles com SSJ e 30% daqueles com NET morrem em função da doença. Os
fármacos que mais comumente causam SSJ/NET são sulfonamidas, alopurinol,
antiepilépticos (p. ex., lamotrigina, fenitoína, carbamazepina), AINEs do tipo
oxicam, β-lactâmicos e outros antibióticos e nevirapina. A biópsia cutânea de
corte congelado pode ajudar no diagnóstico rápido. Atualmente não há consenso
sobre o tratamento mais efetivo para SSJ/NET. Os melhores desfechos derivam
de diagnóstico precoce, imediata suspensão do fármaco suspeito e terapia de
suporte meticulosa em unidade de terapia intensiva ou de queimados. Problemas
como manejo de fluidos, cuidado atraumático de feridas, prevenção e tratamento
de infecções e suporte oftalmológico e respiratório são fundamentais. A terapia
com glicocorticoides sistêmicos (prednisona 1-2 mg/kg) pode ser útil no início
da evolução da doença, mas o uso de glicocorticoides sistêmicos por longo
período ou tardio tem sido associado a maior mortalidade. Após o entusiasmo
inicial pelo uso de imunoglobulina intravenosa (IgIV) no tratamento de
SSJ/NET, alguns dados mais recentes questionam os benefícios. Estão surgindo
dados apoiando o tratamento com ciclosporina e etanercepte. Os estudos
randomizados para avaliar terapias potenciais são poucos e de difícil realização.
FIGURA 56-11 Lesões em alvo da síndrome de Stevens-Johnson.

Erupções pustulares PEGA é um padrão raro de reação que afeta 3 a 5 pessoas


por milhão de habitantes anualmente. Acredita-se que ela seja secundária a
exposição a medicamentos em >90% dos casos (Fig. 56-12). Os pacientes
tipicamente apresentam eritema difuso ou eritrodermia, bem como picos febris e
leucocitose. Um a dois dias depois há o desenvolvimento de inúmeras pústulas
puntiformes sobre o eritema. As pústulas são mais pronunciadas em áreas de
pregas corporais; porém, elas podem ficar generalizadas e, quando coalescem,
podem causar erosão superficial. Em tais casos, a diferenciação com a erupção
da SSJ em seus estágios iniciais pode ser difícil; na PEGA, quaisquer erosões
tendem a ser mais superficiais, não havendo envolvimento proeminente de
mucosas. A biópsia cutânea mostra coleções de neutrófilos e ceratinócitos
necróticos esparsos na parte superior da epiderme, diferentemente da necrose
epidérmica em toda a espessura que caracteriza a NET. Antes do aparecimento
das pústulas, a PEGA também pode simular a DIHS devido a febre proeminente
e eritrodermia.

FIGURA 56-12 Pustulose exantematosa generalizada aguda.

O principal diagnóstico diferencial da PEGA é a psoríase pustular aguda, a


qual tem um aspecto clínico e histológico idêntico. Muitos pacientes com PEGA
têm história pessoal ou familiar de psoríase. A PEGA classicamente começa
dentro de 24 a 48 horas após a exposição ao fármaco, embora possa ocorrer até 1
a 2 semanas depois. Antibióticos β-lactâmicos, bloqueadores dos canais de
cálcio, macrolídeos e outros agentes causadores (incluindo radiocontraste e
dialisatos) foram relatados. O teste de contato com o fármaco responsável resulta
em uma erupção pustular localizada.

Síndromes de hipersensibilidade sobrepostas Um importante conceito que está


surgindo na abordagem clínica para erupções medicamentosas graves é a
presença de síndromes de sobreposição, mais notavelmente com características
de DIHS com NET, DIHS com erupção pustular (tipo PEGA) e PEGA com
achados tipo NET. Em diversas séries de casos de PEGA, 50% dos casos tinham
características tipo NET ou DRESS e 20% dos casos tinham envolvimento de
mucosas lembrando SSJ/NET. Em um estudo, até 20% de todas as erupções
medicamentosas graves tinham características sobrepostas, sugerindo que
PEGA, DIHS e SSJ/NET representam um espectro clínico com mecanismos
fisiopatológicos comuns. A designação de um único diagnóstico com base no
envolvimento cutâneo e extracutâneo pode nem sempre ser possível em casos de
hipersensibilidade; nessas situações, o tratamento deve ser direcionado às
características clínicas dominantes. O momento de início da erupção em relação
à administração do fármaco, o que costuma ser mais retardado na DIHS, e a
presença de manifestações sistêmicas como hepatite são indicadores úteis para
aquele diagnóstico.

Vasculite A vasculite de pequenos vasos cutâneos (VPVC) tipicamente se


apresenta com pápulas e máculas purpúricas envolvendo as extremidades
inferiores e outras áreas dependentes (Fig. 56-13) (Cap. 356). Vesículas
pustulares e hemorrágicas, bem como úlceras arredondadas, também ocorrem. É
importante observar que a vasculite pode envolver qualquer órgão, incluindo os
rins, articulações, trato gastrintestinal e pulmões, exigindo uma avaliação clínica
abrangente para o envolvimento sistêmico. Os fármacos constituem uma causa
em cerca de 15% de todos os casos de vasculite de pequenos vasos. Antibióticos,
particularmente os β-lactâmicos, são comumente implicados; porém, quase
qualquer fármaco pode causar vasculite. A vasculite pode também ser idiopática
ou causada por infecção, doença do tecido conectivo ou (raramente) câncer
subjacentes.
FIGURA 56-13 Vasculite de pequenos vasos cutâneos (VPVC, vasculite leucocitoclástica)

Tipos raros, mas importantes, de vasculite induzida por fármacos incluem a


vasculite por ANCA induzida por fármacos. Esses pacientes apresentam
manifestações cutâneas, mas podem desenvolver toda a gama de sintomas
associados com a vasculite por ANCA, incluindo glomerulonefrite em crescentes
e hemorragia alveolar. Propiltiouracila, metimazol e hidralazina são fármacos
comumente envolvidos. A poliarterite nodosa induzida por fármacos tem sido
associada com a exposição por longo prazo à minociclina. A presença de
eosinófilos perivasculares na biópsia de pele pode ser um indício de possível
etiologia medicamentosa.
MANEJO DO PACIENTE COM SUSPEITA DE ERUPÇÃO
MEDICAMENTOSA
Há quatro perguntas principais a serem respondidas no que diz respeito a uma
possível erupção medicamentosa:

1. A erupção observada é causada por um medicamento?


2. A reação é grave ou está aumentando?
3. Qual(is) os fármaco(s) suspeito(s), e deve haver a suspensão dele(s)?
4. Que recomendação pode ser feita para o uso futuro de medicamentos?

DIAGNÓSTICO PRECOCE DE ERUPÇÕES GRAVES


O rápido reconhecimento de reações potencialmente graves ou que ameacem a
vida é de fundamental importância. Nesse aspecto, é melhor definir inicialmente
uma suspeita de erupção medicamentosa pelo que ela não é (p. ex., SSJ/NET,
DIHS). A Tabela 56-2 lista as manifestações clínicas e laboratoriais que, se
presentes, sugerem que a presença de uma reação grave. A Tabela 56-3 lista as
mais importantes entre essas reações, junto com os achados principais e os
medicamentos comumente associados. Qualquer dúvida em relação a uma
reação grave deve levar a uma consulta imediata com um dermatologista e/ou o
encaminhamento do paciente a um centro especializado.

TABELA 56-2 ■ Achados clínicos e laboratoriais sugestivos de farmacodermia grave


Cutâneos
Eritema generalizado
Edema facial
Dor na pele
Púrpura palpável
Lesões escuras ou em alvo
Necrose cutânea
Bolhas ou descolamento epidérmico
Sinal de Nikolsky positivo
Erosões na membrana mucosa
Edema de lábios ou língua
Gerais
Febre alta
Aumento dos linfonodos
Artralgias ou artrite
Falta de ar, rouquidão, sibilância e hipotensão
Resultados laboratoriais
Contagem dos eosinófilos > 1.000/μL
Linfocitose com linfócitos atípicos
Provas de função hepática ou renal anormais
Fonte: Adaptada de Roujeau JC, Stern RS: Severe adverse cutaneous reactions to drugs. N Engl J Med 331:1272, 1994.
TABELA 56-3 ■ Manifestações clínicas de reações medicamentosas cutâneas graves
Diagnóstico Lesões das Lesões cutâneas típicas Sinais e Fármacos mais
mucosas sintomas comumente
frequentes implicados
Síndrome de Stevens-Johnson Erosões Pequenas bolhas em máculas escuras ou A maioria dos Sulfonamidas,
(SSJ) geralmente alvos atípicos; áreas raras de confluência; casos envolve anticonvulsivantes,
em dois ou descolamento ≤ 10% da área de febre alopurinol, anti-
mais locais superfície corporal inflamatórios não
esteroides (AINEs)
Necrólise epidérmica tóxica Erosões Lesões individuais como aquelas vistas Quase todos os Os mesmos que
(NET)a geralmente na SSJ; eritema escuro confluente; casos envolvem para SSJ
em dois ou grandes lâminas de epiderme necrótica; febre,
mais locais descolamento total de > 30% da área de “insuficiência
superfície corporal cutânea aguda”,
leucopenia
Síndrome de hipersensibilidade Mucosite Erupção morbiliforme difusa vermelho Febre, Anticonvulsivantes,
induzida por fármacos/erupção relatada em profundo com envolvimento facial; linfadenopatia, sulfonamidas,
medicamentosa com eosinofilia até 30% edema facial e acral hepatite, nefrite, alopurinol,
e sintomas sistêmicos miocardite, minociclina
(DIHS/DRESS) eosinofilia,
linfocitose
atípica
Pustulose exantemática Erosões Inúmeras pústulas puntiformes sobre Febre alta, Antibióticos β-
generalizada aguda (PEGA) orais em erupção eritematosa difusa; pode leucocitose lactâmicos,
talvez 20% desenvolver erosões superficiais (neutrofilia), bloqueadores dos
hipocalcemia canais de cálcio,
macrolídeos
Doença do soro ou reação tipo Ausentes Erupção urticariforme serpiginosa ou Febre, artralgias Globulina
doença do soro policíclica; erupção purpúrica nas laterais antitimócito,
dos pés e mãos é característica cefalosporinas,
anticorpos
monoclonais
Necrose induzida por Infrequentes Púrpura e necrose, especialmente de áreas Dor nas áreas Varfarina, heparina
anticoagulantes gordurosas centrais afetadas
Angioedema Geralmente Urticária ou edema da parte central da Insuficiência Inibidores da
envolvidas face, outras áreas respiratória, enzima conversora
colapso de angiotensina
cardiovascular (ECA), AINEs,
contraste
radiológico
aSobreposição da SSJ e NET com manifestações de ambas e descolamento de 10-30% da área de superfície corporal podem ocorrer.

Fonte: Adaptada de Roujeau JC, Stern RS: Severe adverse cutaneous reactions to drugs. N Engl J Med 331:1272, 1994.

CONFIRMAÇÃO DE REAÇÃO MEDICAMENTOSA


A probabilidade de etiologia medicamentosa varia de acordo com o padrão de
reação. Apenas o eritema pigmentado fixo é sempre induzido por fármacos. As
erupções morbiliformes em geral são virais em crianças e induzidas por
fármacos em adultos. Entre as reações graves, os fármacos são responsáveis por
10 a 20% para a anafilaxia e vasculite e entre 70 e 90% para a PEGA, DIHS, SSJ
e NET. A biópsia cutânea ajuda a caracterizar a reação, mas não indica o agente
etiológico medicamentoso. Hemogramas e testes das funções renal e hepática
são importantes para a avaliação do envolvimento orgânico. A associação de
elevação discreta das enzimas hepáticas e contagem eosinofílica alta é frequente,
mas não específica para uma reação medicamentosa. Os exames sanguíneos que
podem identificar uma causa alternativa, exames de anticorpo anti-histona (para
descartar lúpus induzido por fármacos) e sorologia ou reação em cadeia da
polimerase para infecções podem ter grande importância para a determinação da
etiologia.

DE QUAIS FÁRMACOS SUSPEITAR E QUAIS FÁRMACOS


SUSPENDER
A maioria dos casos de erupções medicamentosas ocorre durante o primeiro
curso do tratamento com um novo medicamento. Uma exceção notável é a
urticária e anafilaxia mediadas pela IgE que precisam de pré-sensibilização e
desenvolvem-se de minutos a horas após a readministração. Os prazos
característicos para o início de uma reação medicamentosa após a administração
são os seguintes: 4 a 14 dias para erupções morbiliformes, 2 a 4 dias para PEGA,
5 a 28 dias para SSJ/NET e 14 a 48 dias para DIHS. Uma relação dos fármacos,
compilando informações de todos os medicamentos/suplementos atuais ou
prévios e o momento da administração em relação à erupção, é uma ferramenta
diagnóstica importante para identificar o fármaco causador. Os medicamentos
introduzidos pela primeira vez no período relevante são os primeiros suspeitos.
Dois outros elementos importantes para serem suspeitos da causa nesse estágio
são (1) a experiência anterior com o fármaco na população e (2) os candidatos
etiológicos alternativos.
A decisão de continuar ou descontinuar qualquer medicamento depende da
gravidade da reação, da gravidade da doença primária sendo tratada, do grau de
suspeição da causalidade e da viabilidade de um tratamento alternativo mais
seguro. Em qualquer reação medicamentosa potencialmente fatal, deve-se tentar
eliminar imediatamente todos os possíveis fármacos ou medicamentos
desnecessários. Alguns exantemas podem melhorar com o “tratamento” para
uma erupção benigna relacionada a fármacos. Contudo, a decisão de tratar sem
interrupção uma erupção deve continuar sendo a exceção, e a suspensão de
qualquer fármaco suspeito deve ser a regra geral. Por outro lado, os fármacos
não suspeitos e importantes para o paciente (p. ex., agentes anti-hipertensivos)
geralmente não devem ser suspensos rapidamente. Essa abordagem pode
permitir o uso judicioso desses agentes no futuro.

RECOMENDAÇÃO PARA O USO FUTURO DE FÁRMACOS


Os objetivos são (1) evitar a recorrência da erupção medicamentosa e (2) não
comprometer futuros tratamentos ao contraindicar de forma inacurada
medicamentos que de outra forma seriam úteis.
Uma avaliação abrangente da causalidade de fármacos se baseia no
momento da reação, na avaliação de outras causas possíveis e no efeito da
retirada ou continuação do fármaco. O grupo RegiSCAR propôs o Algorithm of
Drug Causality for Epidermal Necrolysis (ALDEN) para classificar a
probabilidade da causalidade de fármacos na SSJ/NET; a validação deste e de
outros instrumentos, como a escala Naranjo de probabilidade de reação
medicamentosa adversa, é limitada. Um fármaco com uma causalidade
“definitiva” ou “provável” deve ser contraindicado, o paciente deve usar um
cartão de alerta ou outro alerta médico (p. ex., pulseira) e os fármacos devem ser
listados no prontuário do paciente como alergênicos.

SENSIBILIDADE CRUZADA
Devido à possibilidade de sensibilidade cruzada entre fármacos quimicamente
relacionados, muitos médicos recomendam evitar não apenas o medicamento
que induziu a reação, mas também todos os fármacos da mesma classe
farmacológica.
Há dois tipos de sensibilidade cruzada. As reações que dependem de uma
interação farmacológica podem ocorrer com todos os fármacos que têm como
alvo a mesma via, sejam elas estruturalmente semelhantes ou não. Esse é o caso
do angioedema causado por AINEs e inibidores da ECA. Em tal situação, o risco
de recorrência varia de fármaco para fármaco em uma determinada classe;
entretanto, geralmente se recomenda evitar todos os fármacos dessa classe. O
reconhecimento imunológico de fármacos estruturalmente relacionados é o
segundo mecanismo pelo qual ocorre a sensibilidade cruzada. Um exemplo
clássico é a hipersensibilidade a antiepilépticos aromáticos (barbitúricos,
fenitoína, carbamazepina), com até 50% de reação a um segundo fármaco em
pacientes que reagiram a um. Para outros fármacos, dados in vitro e in vivo
sugeriram que a reatividade cruzada existe apenas entre compostos com
estruturas químicas muito semelhantes. Os linfócitos específicos de
sulfametoxazol podem ser ativados por outras sulfonamidas antibacterianas, mas
não os diuréticos, fármacos antidiabéticos ou AINEs anti-COX-2 com um grupo
sulfonamida. Aproximadamente 10% dos pacientes com alergias à penicilina
também irão desenvolver reações alérgicas a antibióticos da classe das
cefalosporinas.
Dados recentes sugerem que, embora o risco de desenvolver erupção
medicamentosa devido a outro fármaco seja aumentado em pessoas com reação
anterior, a “sensibilidade cruzada” provavelmente não é uma explicação. Como
exemplo, aqueles com história de reação alérgica à penicilina apresentam maior
risco de desenvolver uma reação às sulfonamidas antibacterianas do que às
cefalosporinas.
Esses dados sugerem que a lista de fármacos a serem evitados após a reação
medicamentosa deve ser limitada a um medicamento causador e a poucos outros
muito semelhantes.
Devido às crescentes evidências de que algumas reações cutâneas graves
aos fármacos estão associadas a genes HLA, recomenda-se que os membros da
família de primeiro grau dos pacientes com reações cutâneas graves também
evitem esses agentes causadores. Isso pode ser mais relevante para sulfonamidas
e antiepilépticos.

PAPEL DOS TESTES DE CAUSALIDADE E READMINISTRAÇÃO DE


FÁRMACOS
A utilidade de exames laboratoriais, testes cutâneos de punção ou testes de
contato para determinar a causalidade é motivo de debate. Muitos ensaios
imunológicos in vitro foram desenvolvidos para uso em pesquisas, mas o valor
preditivo de tais testes não foi validado em qualquer série numerosa de pacientes
acometidos. Em alguns casos, pode ser apropriado repetir o desafio diagnóstico,
mesmo com fármacos com altas taxas de reações adversas.
O teste de punção cutânea tem valor clínico em situações limitadas. Nos
pacientes com história sugestiva de reações imediatas mediadas pela IgE à
penicilina, o teste cutâneo por puntura com penicilinas ou cefalosporinas provou
ser útil para identificar os pacientes em risco de reações anafiláticas a esses
agentes. Testes cutâneos negativos não descartam totalmente a reatividade
mediada por IgE, mas o risco de anafilaxia em resposta à administração de
penicilina em pacientes com testes cutâneos negativos é de cerca de 1%. Por
outro lado, dois terços dos pacientes com teste cutâneo positivo experenciam
uma resposta alérgica com a repetição do desafio. Os testes cutâneos em si
carregam um risco pequeno de anafilaxia.
Nos pacientes com hipersensibilidade tardia, a utilidade clínica dos testes
cutâneos permanece questionável. Pelo menos um de uma combinação de vários
testes (por punção, contato e intradérmico) é positivo em 50 a 70% dos pacientes
com uma reação “definitivamente” atribuída a um único medicamento. Essa
baixa sensibilidade corresponde à observação de que a readministração de
fármacos com teste cutâneo negativo resultou em erupções em 17% dos casos.
A dessensibilização pode ser considerada naqueles com história de reação a
um medicamento que tem de ser novamente utilizado. A eficácia de tais
procedimentos foi demonstrada em casos de reação imediata à penicilina e testes
cutâneos positivos, reações anafiláticas à quimioterapia com platina e reações
tardias a sulfonamidas em pacientes com Aids. A dessensibilização
frequentemente é bem-sucedida nos pacientes infectados por HIV com erupções
morbiliformes causadas por sulfonamidas, mas não recomendada aos pacientes
infectados por HIV que desenvolveram eritrodermia ou reação bolhosa em
resposta à exposição anterior à sulfonamida. Vários protocolos estão disponíveis,
incluindo as abordagens oral e parenteral. A dessensibilização oral parece ter um
risco mais baixo de reações anafiláticas graves. A dessensibilização carrega o
risco de anafilaxia, independentemente de como é realizada e deve ser feita em
locais clínicos monitorados como uma unidade de terapia intensiva. Após a
dessensibilização, muitos pacientes experenciam reações não ameaçadoras da
vida durante a terapia com o fármaco causador.

NOTIFICAÇÃO
Qualquer reação grave a fármacos deve ser relatada para uma agência reguladora
ou a empresas farmacêuticas. Pelo fato de reações graves serem demasiadamente
raras para serem detectadas nos experimentos clínicos pré-comercialização, os
relatos espontâneos são de importância crucial para a detecção precoce de
eventos ameaçadores da vida inesperados. Para ser útil, a notificação deve conter
detalhes suficientes para permitir que se determine a gravidade e a causalidade
do fármaco.

Agradecimento Somos gratos à contribuição dos Drs. Jean-Claude Roujeau e


Robert S. Stern a este capítulo em edições anteriores.

LEITURAS ADICIONAIS
Belum VR: Characterisation and management of dermatologic adverse events to
agents targeting the PD-1 receptor. Eur J Cancer 60:12, 2016.
Cornejo-Garcia JA et al: The genetics of drug hypersensitivity reactions. J
Investig Allergol Clin Immunol 26:222, 2016.
Creamer D et al: U.K. guidelines for the management of Stevens-Johnson
syndrome/toxic epidermal necrolysis in adults 2016. Br J Dermatol
174:1194, 2016.
Harp JL et al: Severe cutaneous adverse reactions: impact of immunology,
genetics, and pharmacology. Semin Cutan Med Surg 33:17, 2014.
Ko TM et al: Use of HLA-B*5801 genotyping to prevent allopurinol induced
severe cutaneous adverse reactions in Taiwan: National prospective cohort
study. BMJ 351:h4848, 2015.
Lacouture ME et al: Ipilimumab in patients with cancer and the management of
dermatologic adverse events. J Am Acad Dermatol 71:161, 2014.
Mayorga C et al: In vitro tests for drug hypersensitivity reactions: An
ENDA/EAACI Drug Allergy Interest Group position paper. Allergy
71:1103, 2016.
Oussalah A et al: Genetic variants associated with drug-induced immediate
hypersensitivity reactions: A PRISMA-compliant systematic review.
Allergy 71:443, 2016.
Petrelli F et al: Antibiotic prophylaxis for skin toxicity induced by antiepidermal
growth factor receptor agents: A systematic review and meta-analysis. Br J
Dermatol, 2016 ePub ahead of print. Accessed September 28, 2016.
Sassolas B et al: ALDEN, an algorithm for assessment of drug causality in
Stevens-Johnson syndrome and toxic epidermal necrolysis: Comparison
with case-control analysis. Clin Pharmacol Ther 88:60, 2010.
White KD et al: Evolving models of the immunopathogenesis of T cell-mediated
drug allergy: The role of host, pathogens, and drug response. J Allergy Clin
Immunol 136:219, 2015.
Wolverton SE: Practice gaps: Drug reactions. Dermatol Clin 34:311, 2016.
57
Fotossensibilidade e outras reações à luz
Alexander G. Marneros, David R. Bickers
RADIAÇÃO SOLAR
A luz solar é a mais visível e óbvia fonte de conforto no ambiente. O sol
proporciona os efeitos benéficos de calor e de síntese de vitamina D. Contudo, a
exposição aguda e crônica ao sol também tem consequências patológicas. A
exposição da pele à luz do sol é uma importante causa de câncer de pele em
humanos e também pode ter efeitos imunossupressores.
A energia solar que alcança a superfície da Terra está limitada aos
componentes do espectro ultravioleta (UV), do espectro visível e porções do
espectro infravermelho. O ponto de corte na extremidade curta do UV é de
aproximadamente 290 nm, basicamente devido ao ozônio estratosférico,
formado por radiação ionizante altamente energética, prevenindo a penetração na
superfície da Terra dos comprimentos de onda menores da radiação solar, mais
energéticos e potencialmente mais lesivos. De fato, a preocupação com a
destruição da camada de ozônio por clorofluorocarbonos liberados na atmosfera
levou à assinatura de acordos internacionais a fim de reduzir a produção dessas
substâncias químicas.
As medições do fluxo solar mostraram uma variação regional de 20 vezes
na quantidade de energia a 300 nm que alcança a superfície da Terra. Essa
variabilidade relaciona-se com efeitos sazonais; com o trajeto que a luz solar
percorre através do ozônio e do ar; e com a altitude (aumento de 4% para cada
300 metros de elevação), a latitude (crescente intensidade com a diminuição da
latitude) e a quantidade de cobertura de nuvens, nevoeiro e poluição.
Os principais componentes do espectro de ação fotobiológica capazes de
afetar a pele humana são o UV e os comprimentos de onda visíveis entre 290 e
700 nm. Além disso, os comprimentos de onda além de 700 nm no espectro
infravermelho basicamente emitem calor e, em certas circunstâncias, podem
exacerbar os efeitos patológicos da energia nos espectros UV e visível.
O espectro UV que alcança a Terra representa < 10% da energia solar
incidente total e divide-se arbitrariamente em dois segmentos principais: UVB e
UVA, constituindo os comprimentos de onda entre 290 e 400 nm. A radiação
UVB consiste em comprimentos de onda entre 290 e 320 nm. Essa parte do
espectro de ação fotobiológica é a mais eficiente na produção de vermelhidão ou
eritema na pele humana, e por isso algumas vezes é conhecida como “espectro
da queimadura solar”. A UVA inclui os comprimentos de onda entre 320 e 400
nm e é aproximadamente mil vezes menos eficiente na produção de vermelhidão
cutânea do que a UVB.
Os comprimentos de onda entre 400 e 700 nm são visíveis ao olho humano.
A energia de fótons no espectro visível não é capaz de lesionar a pele humana se
não houver uma substância química fotossensibilizante. Sem a absorção de
energia por uma molécula, não há fotossensibilidade. Assim, o espectro de
absorção de uma molécula é definido como a amplitude dos comprimentos de
onda absorvidos por ela, e o espectro de ação para um efeito de radiação
incidente é definido como a amplitude dos comprimentos de onda que suscitam a
resposta.
Ocorre fotossensibilidade quando uma substância química que absorve
fóton (cromóforo) presente na pele absorve energia incidente, torna-se excitada e
transfere a energia absorvida para diferentes estruturas ou para o oxigênio.

RADIAÇÃO UV (RUV) E ESTRUTURA E FUNÇÃO DA PELE


A pele consiste em dois compartimentos principais: a epiderme externa, que é
um epitélio escamoso estratificado, e a derme subjacente, que é rica em proteínas
matriciais, como o colágeno e a elastina. Os dois compartimentos são suscetíveis
à lesão provocada pela exposição ao sol. A epiderme e a derme contêm vários
cromóforos capazes de absorver energia solar incidente, incluindo ácidos
nucleicos, proteínas e lipídeos. A camada epidérmica mais externa, o estrato
córneo, é um absorvedor importante de UVB, e < 10% dos comprimentos de
onda UVB incidentes penetram através da epiderme, chegando à derme.
Aproximadamente 3% da radiação abaixo de 300 nm, 20% da radiação abaixo
de 360 nm e 33% da radiação visível curta alcançam a camada de células basais
na pele humana não bronzeada. A UVA penetra facilmente na derme, sendo
capaz de alterar as proteínas estruturais e matriciais, contribuindo para o
fotoenvelhecimento da pele exposta ao sol de forma crônica, particularmente em
pessoas de pele clara. Dessa forma, comprimentos de onda mais longos podem
penetrar mais profundamente na pele.

Alvos moleculares para os efeitos cutâneos induzidos pela RUV O DNA


epidérmico, predominantemente em ceratinócitos e nas células de Langerhans,
que são células dendríticas apresentadoras de antígeno, absorve UVB e sofre
alterações estruturais entre as bases de pirimidina adjacentes (timina ou
citosina), incluindo a formação de dímeros de ciclobutano e 6,4-fotoprodutos.
Tais alterações estruturais são potencialmente mutagênicas e são encontradas na
maioria dos carcinomas basocelulares e espinocelulares (CBCs e CECs
respectivamente). Elas podem ser reparadas por mecanismos celulares que
resultam no seu reconhecimento e excisão, bem como na restauração das
sequências de bases normais. O reparo eficiente dessas aberrações estruturais é
crucial, já que os indivíduos com reparo defeituoso de DNA estão sob alto risco
de câncer cutâneo. Por exemplo, os pacientes com xeroderma pigmentoso, um
distúrbio autossômico recessivo, caracterizam-se por reparo variavelmente
deficiente de fotoprodutos induzidos por UV. A pele desses pacientes muitas
vezes tem aspecto ressecado, coriáceo, de pele fotoenvelhecida prematuramente,
e esses pacientes têm uma frequência aumentada de câncer de pele já nas
primeiras duas décadas de vida. Estudos em camundongos transgênicos
verificaram a importância dos genes funcionais que regulam essas vias de reparo
na prevenção do desenvolvimento do câncer de pele induzido por UV. A lesão do
DNA nas células de Langerhans também pode contribuir para os conhecidos
efeitos imunossupressores da UVB (ver “Fotoimunologia” adiante).
Além do DNA, o oxigênio molecular é um alvo para RUV solar incidente,
levando à geração de espécies reativas de oxigênio (ROS). Essas ROS podem
danificar componentes da pele através de dano oxidativo do DNA, oxidação de
ácidos graxos poliinsaturados em lipídeos (peroxidação lipídica), oxidação de
aminoácidos em proteínas, ou elas podem levar à desativação oxidativa de
enzimas específicas. A RUV também pode promover aumento da reticulação
(cross-linking) e degradação de proteínas matriciais na derme e acúmulo de
elastina dérmica anormal que leva a alterações de fotoenvelhecimento,
conhecidas como elastose solar.

Óptica cutânea e cromóforos Os cromóforos são componentes químicos


endógenos ou exógenos que podem absorver energia física. Os cromóforos
endógenos são de dois tipos: (1) componentes normais da pele, incluindo ácidos
nucleicos, proteínas, lipídeos e 7-desidrocolesterol, o precursor da vitamina D, e
(2) componentes que são sintetizados em outro local no corpo e que circulam na
corrente sanguínea e se difundem para a pele, como as porfirinas. Normalmente,
encontram-se apenas traços de porfirinas na pele, mas, em algumas doenças
conhecidas como porfirias (Cap. 409), quantidades aumentadas de porfirina são
liberadas na circulação, oriundas da medula óssea e do fígado, sendo
transportadas para a pele, onde absorvem energia incidente tanto na faixa de
Soret (cerca de 400 nm; visível curta), quanto em menor grau, na porção
vermelha do espectro visível (580-660 nm). Essa absorção de energia resulta na
geração de ROS, que podem mediar lesão estrutural da pele, manifestada como
eritema, edema, urticária ou formação de bolhas. É interessante que as porfirinas
fotoexcitadas são atualmente usadas no tratamento de CBC e CEC e de suas
lesões precursoras, ceratoses actínicas. Conhecida como terapia fotodinâmica
(PDT, de photodynamic therapy), essa modalidade gera ROS na pele, levando à
morte celular. Fotossensibilizadores tópicos usados na PDT são os precursores
porfirínicos do ácido 5-aminolevulínico e metil aminolevulinato, que são
convertidos em porfirinas na pele. Acredita-se que a PDT atinja células tumorais
mais seletivamente para destruição do que atinge as células não neoplásicas
adjacentes. A eficácia da PDT requer a sincronia apropriada da aplicação de
metil aminolevulinato ou de ácido 5-aminolevulínico para a pele afetada seguida
pela exposição a fontes artificiais de luz visível. A luz azul de intensidade alta
tem sido usada com sucesso para o tratamento de ceratoses actínicas finas. A luz
vermelha tem um comprimento de onda maior e penetra mais profundamente na
pele, sendo mais benéfica no tratamento de CBCs superficiais.

Efeitos agudos da exposição ao sol Os efeitos agudos da exposição cutânea à


luz solar consistem em queimadura solar e síntese da vitamina D.

QUEIMADURA SOLAR Essa condição cutânea dolorosa é uma resposta


inflamatória aguda da pele principalmente à UVB. Em termos gerais, a
capacidade de um indivíduo de tolerar a luz solar é proporcional ao grau de
pigmentação melânica desse indivíduo. A melanina, um polímero complexo de
derivados da tirosina, é sintetizada em células dendríticas epidérmicas
especializadas conhecidas como melanócitos e depositada nos melanossomos,
transferidos por meio de processos dendríticos aos ceratinócitos, promovendo,
dessa forma, a fotoproteção (dissipando a grande maioria da RUV absorvida na
pele) e simultaneamente escurecendo a pele. A melanogênese induzida pelo sol é
uma consequência da atividade aumentada de tirosinase nos melanócitos. Central
à resposta de bronzeamento solar está o receptor de melanocortina-1 (MC1R), e
as mutações nesse gene são responsáveis pela grande variação na cor da pele
humana e dos cabelos; indivíduos com cabelos ruivos e pele clara normalmente
têm baixa atividade de MC1R. Na pele há dois tipos principais de melanina:
eumelanina (fornecendo pigmentação marrom a negra associada com alta
atividade de MC1R) e feomelanina (fornecendo pigmentação vermelha
associada com baixa atividade de MC1R). A feomelanina é um polímero
vermelho de unidades de benzotiazina o qual contém cisteína, tendo capacidade
de proteção muito menor contra a RUV em comparação com a eumelanina. Isso
pode explicar o porquê de indivíduos com maior proporção de feomelanina
(cabelo vermelho/pele clara) terem risco aumentado de formação de melanoma.
Além disso, a feomelanina também pode promover a formação de melanoma
através da indução de dano oxidativo ao amplificar as ROS induzidas por UVA,
mas também por meio de mecanismos independentes da RUV.
Estudos genéticos revelaram genes adicionais que influenciam a variação
da cor da pele em humanos, como o gene para tirosinase (TYR) e os genes
APBA2[OCA2], SLC45A2 e SLC24A5. O gene MC1R humano codifica um
receptor acoplado à proteína G que liga o hormônio estimulador do α-melanócito
(α-MSH), que é secretado na pele principalmente pelos ceratinócitos em resposta
à RUV. A expressão desse hormônio induzida por UV é controlada pelo
supressor tumoral p53, e a ausência de p53 funcional atenua a resposta de
bronzeamento. A ativação do receptor da melanocortina leva a um aumento
intracelular de 5’-monofosfato de adenosina cíclico (AMPc) e ativação da
proteína-cinase A, que resulta em um aumento do fator de transcrição associado
à microftalmia (MITF), que estimula a melanogênese. Visto que o precursor do
α-MSH, a pró-opiomelanocortina produzida por ceratinócitos, também é o
precursor de β-endorfina, a RUV pode resultar não apenas em aumento da
pigmentação, mas também no aumento da produção de β-endorfina na pele, um
efeito que hipoteticamente estimularia uma busca maior de exposição ao sol
pelas pessoas, podendo mesmo causar adição ao bronzeamento.
A classificação de Fitzpatrick da pele humana é baseada na eficiência da
unidade epiderme-melanina e, em geral, pode ser determinada fazendo duas
perguntas ao paciente: (1) Você se queima após exposição ao sol? (2) Você se
bronzeia após exposição ao sol? As respostas a essas perguntas permitem a
divisão da população em seis tipos cutâneos, que variam do tipo I (sempre se
queima, jamais se bronzeia) até o tipo VI (jamais se queima, sempre se bronzeia)
(Tab. 57-1).

TABELA 57-1 ■ Tipo de pele e sensibilidade à queimadura solar (Classificação de Fitzpatrick)


Tipo Descrição

I Sempre se queima, jamais se bronzeia


II Sempre se queima, às vezes se bronzeia
III Algumas vezes se queima, às vezes se bronzeia
IV Às vezes se queima, sempre se bronzeia
V Jamais se queima, às vezes se bronzeia
VI Jamais se queima, sempre se bronzeia
O eritema da queimadura solar é provocado pela vasodilatação dos vasos
sanguíneos dérmicos. Há uma lacuna de tempo (geralmente 4-12 horas) entre a
exposição da pele à luz solar e o desenvolvimento de vermelhidão visível. O
espectro de ação para o eritema da queimadura solar consiste na UVB e na UVA,
embora a UVB seja mais eficiente do que a UVA para provocar a resposta.
Contudo, a UVA pode contribuir para o eritema de queimadura solar ao meio-
dia, quando existe quantidade muito maior de UVA do que UVB no espectro
solar. O eritema que acompanha a resposta inflamatória induzida pela RUV
resulta da liberação orquestrada de citocinas junto com os fatores de crescimento
e a geração de ROS. Além disso, a ativação induzida pela UV da transcrição
gênica dependente do fator nuclear-kB pode aumentar a liberação de diversas
citocinas pró-inflamatórias de mediadores vasoativos. O acúmulo local dessas
citocinas e desses mediadores ocorre na pele queimada pelo sol, fornecendo
fatores quimiotáticos que atraem neutrófilos, macrófagos e linfócitos T, que
promovem a resposta inflamatória. A RUV também estimula a infiltração de
células inflamatórias por meio da expressão induzida de moléculas de adesão
como a E-seletina e a molécula de adesão intercelular-1 nas células endoteliais e
nos ceratinócitos. A RUV também mostrou ativar a fosfolipase A2, resultando
em aumento de eicosanoides, como a prostaglandina E2, que é conhecida por ser
um potente indutor de eritema da queimadura solar. O papel dos eicosanoides
nessa reação foi verificado por estudos que mostram que os anti-inflamatórios
não esteroides (AINEs) podem reduzir o eritema da queimadura solar.
As mudanças epidérmicas na queimadura solar incluem a indução de
“células da queimadura solar”, que são ceratinócitos que sofrem apoptose
dependente do p53 como uma defesa para eliminação de células que abrigam o
DNA estrutural danificado induzido por UVB.

SÍNTESE E FOTOQUÍMICA DA VITAMINA D A exposição cutânea à UVB


provoca a fotólise do 7-desidrocolesterol epidérmico, convertendo-o em pré-
vitamina D3, que, em seguida, sofre isomerização dependente da temperatura,
formando o hormônio estável vitamina D3. Esse composto se difunde para a
vasculatura dérmica e circula para o fígado e os rins, onde é convertido no
hormônio funcional di-hidroxilado 1,25-di-hidroxivitamina D3. Os metabólitos
da vitamina D oriundos da circulação e aqueles produzidos na própria pele
podem aumentar a sinalização de diferenciação na epiderme e inibem a
proliferação de ceratinócitos. Esses efeitos sobre os ceratinócitos são usados
terapeuticamente na psoríase com a aplicação tópica de análogos sintéticos da
vitamina D. Além disso, a vitamina D é cada vez mais reconhecida como tendo
efeitos benéficos em várias outras condições inflamatórias e há alguma evidência
sugerindo que ela está associada a risco reduzido para várias doenças malignas
internas, além de seus efeitos fisiológicos clássicos sobre o metabolismo do
cálcio e a homeostase óssea. Há controvérsia em relação ao riscobenefício da
exposição solar para a homeostase da vitamina D. Atualmente, é importante
enfatizar que não há evidências claras que sugiram que o uso de filtros solares
diminuam de maneira substancial os níveis de vitamina D. Como o
envelhecimento também diminui de maneira substancial a capacidade da pele
humana produzir de forma fotocatalítica a vitamina D3, o uso disseminado de
filtros solares que evitam o UVB levou a preocupações de que os idosos
poderiam estar indevidamente suscetíveis à deficiência de vitamina D. Contudo,
a quantidade de luz solar necessária para produzir vitamina D suficiente é
pequena e não justifica os riscos de câncer de pele e de outros tipos de fotolesão
relacionados ao aumento da exposição solar ou o comportamento de
bronzeamento. A suplementação nutricional de vitamina D é uma estratégia
preferida para pacientes com deficiência de vitamina D.

Efeitos crônicos da exposição ao sol não malignos Os aspectos clínicos do


fotoenvelhecimento (dermatoeliose) consistem em enrugamento, manchas e
telangiectasias, bem como um aspecto coriáceo irregular e rugoso, “curtido pelo
tempo”.
A RUV é importante na patogênese do fotoenvelhecimento na pele humana,
e a ROS provavelmente está envolvida. A derme e sua matriz de tecido
conectivo são os principais locais da lesão crônica associada ao sol, manifestada
como elastose solar, um aumento volumoso nas massas irregulares espessadas de
fibras elásticas de aparência anormal. As fibras de colágeno também se
encontram aglomeradas anormalmente, na derme mais profunda, nos casos de
pele lesionada pelo sol. Os cromóforos, espectros de ação e eventos bioquímicos
específicos que orquestram essas alterações são conhecidos apenas parcialmente,
embora a UVA, que penetra mais profundamente na derme, pareça estar
primariamente envolvida. A pele envelhecida cronologicamente e protegida do
sol, assim como a pele fotoenvelhecida compartilham aspectos moleculares
importantes, como o dano do tecido conectivo e metaloproteinases matriciais
(MPMs) elevadas. As MPMs são enzimas envolvidas na degradação da matriz
extracelular. A UVA induz a expressão de algumas MPMs, incluindo MPM-1 e
MPM-3, levando a um aumento da degradação do colágeno. Além disso, a UVA
reduz a expressão do RNA mensageiro (mRNA) do pró-colágeno tipo I. Assim, a
RUV crônica altera a estrutura e a função do colágeno dérmico ao inibir sua
síntese e ao aumentar sua degradação. Com base nessas observações, não é
surpreendente que a fototerapia de alta dose de UVA pode ter efeitos benéficos
em alguns pacientes com doenças fibróticas localizadas da pele, como a
esclerodermia localizada.

Efeitos crônicos da exposição ao sol malignos Uma das principais


consequências conhecidas da exposição crônica excessiva à luz solar é o câncer
de pele do tipo não melanoma (CPNM). Os dois tipos mais comuns de CPNM
são o CBC e o CEC (Cap. 72). O modelo para indução de câncer de pele
envolve três etapas principais: iniciação, promoção e progressão. A exposição da
pele humana à luz solar resulta em iniciação, uma etapa pela qual alterações
estruturais (mutagênicas) no DNA provocam uma alteração irreversível na
célula-alvo (ceratinócito) que desencadeia o processo tumorigênico. Acredita-se
que a exposição a um iniciador tumoral, como a UVB, seja uma etapa
necessária, porém não suficiente, no processo maligno, já que as células cutâneas
iniciadas não expostas a promotores tumorais geralmente não desenvolvem
tumores. O segundo estágio do desenvolvimento tumoral é a promoção, um
processo de múltiplos estágios pelo qual a exposição crônica à luz solar provoca
alterações adicionais que culminam na expansão clonal das células iniciadas e
provoca o desenvolvimento de crescimentos pré-malignos, conhecidos como
ceratoses actínicas, que podem progredir, formando os CECs. Como resultado
de extensos estudos, parece claro que a UVB é um carcinógeno completo,
significando que pode agir tanto como iniciador quanto como promotor tumoral.
A terceira e última etapa no processo maligno é a conversão maligna de
precursores benignos em lesões malignas, um processo que, acredita-se, precisa
de alterações genéticas adicionais.
Em nível molecular, a carcinogênese cutânea resulta do acúmulo de
mutações genéticas que causam a inativação de supressores tumorais, a ativação
de oncogenes ou a reativação de vias de sinalização celular que normalmente são
expressas somente durante o desenvolvimento embriológico da epiderme. É
interessante observar que um grande número de mutações desencadeadoras de
oncogênese induzidas por UV que estão presentes em CECs já podem ser
encontradas na pele normal envelhecida exposta ao sol, levando a uma vantagem
de crescimento e a inúmeros clones pré-cancerosos portadores de mutações
causador de câncer. Essas mutações ocorrem com frequência particular em genes
que afetam a proliferação de células-tronco epidérmicas (p. ex., genes receptores
NOTCH). O padrão de mutações de genes oncogênicos na pele envelhecida
exposta ao sol mostra considerável sobreposição com as mutações identificadas
em CECs, embora haja pouca sobreposição com as mutações identificadas em
CBCs ou melanomas. Por exemplo, cerca de 20% das células da pele
envelhecida normal exposta ao sol e cerca de 60% dos CECs são portadores de
mutações desencadeadoras em NOTCH1. Além disso, o acúmulo de mutações no
gene de supressão tumoral p53 pode também promover a carcinogênese cutânea.
De fato, os cânceres de pele humanos e murinos, induzidos pelo UV, apresentam
mutações características induzidas pela RUV no p53 (transições C → T e CC →
TT). Estudos em camundongos mostraram que os filtros solares podem reduzir
substancialmente a frequência de tais mutações típicas no p53 e inibir
abruptamente a indução de tumores. A comparação de mutações gênicas
induzidas por RUV entre a pele normal envelhecida exposta ao sol e CECs
sustenta a hipótese de um acúmulo progressivo de mutações oncogênicas
adicionais que acabam levando a uma transição de clones celulares pré-
cancerosos para CECs. Foi estimado que os CECs abrigam cerca de 10 vezes
mais mutações desencadeadoras de oncogênese por célula que as células da pele
normal envelhecida exposta ao sol. Além disso, embora a pele envelhecida
exposta ao sol e os CECs contenham mutações semelhantes induzidas por RUV
em receptores p53 ou NOTCH, mutações oncogênicas em outros genes (p. ex.,
CDKN2A) foram encontradas principalmente em CECs e não na pele normal
exposta ao sol, as quais provavelmente sejam importantes na progressão
maligna.
Em comparação com os CECs, os CBCs contêm um perfil distinto de
mutações em genes específicos que são fundamentais para sua formação. Os
CBCs demonstram mutações inativadoras principalmente no gene supressor
tumoral conhecido como patched, ou mutações ativadoras no oncogene
smoothened, o que resulta na ativação constitutiva da via de sinalização de
hedgehog e proliferação celular aumentada. Uma nova evidência liga alterações
na via de sinalização Wnt/β-catenina, conhecida como crucial para o
desenvolvimento do folículo piloso, como também para o câncer de pele. Assim,
as interações entre essa via e a via de sinalização hedgehog parecem estar
envolvidas na carcinogênese cutânea e no desenvolvimento embriológico da pele
e dos folículos pilosos.
A análise clonal em modelos murinos de CBC revelou que as células
tumorais surgem de células-tronco da epiderme interfolicular e do infundíbulo
superior do folículo piloso. Essas células iniciadoras de CBC são reprogramadas
para lembrar progenitores de folículo piloso embriônico, cuja habilidade de
iniciação tumoral depende da ativação da via de sinalização Wnt/β-catenina.
A iniciação de CEC ocorre tanto na epiderme folicular quanto nas
populações de células-tronco do bulbo piloso. Em modelos murinos, a
combinação de K-Ras mutante e p53 é suficiente para induzir CECs invasivos a
partir dessas populações de células.
O fator de transcrição Myc é importante para a manutenção das células-
tronco na pele, e a ativação oncogênica da Myc esteve implicada no
desenvolvimento de CBCs e CECs. Assim, o CPNM envolve mutações e
alterações em múltiplos genes e vias que ocorrem como resultado do acúmulo
crônico dessas alterações promovidas pela exposição a fatores ambientais, como
a RUV solar.
Estudos epidemiológicos associaram a exposição solar excessiva a um risco
aumentado de CPNM e melanoma; as evidências são muito mais diretas para
CPNM (CBC e CEC) do que para melanoma. Aproximadamente 80% dos
CPNMs desenvolvem-se em áreas do corpo expostas ao sol, o que inclui a face,
a região cervical e as mãos. Os principais fatores de risco são sexo masculino,
exposição solar na infância, idade avançada, pele clara e residência em latitudes
mais próximas do Equador. As pessoas com pele mais escura apresentam um
risco mais baixo de desenvolver câncer de pele do que as pessoas de pele clara.
Mais de 2 milhões de pessoas nos Estados Unidos apresentam CPNM
anualmente, e o risco de um indivíduo de pele clara desenvolver durante a vida
tal neoplasia é estimado em aproximadamente 15%. A incidência do CPNM na
população está aumentando em uma taxa de 2 a 3% por ano.
A relação entre exposição solar e desenvolvimento de melanoma é menos
direta, porém fortes evidências apoiam uma associação. Os fatores de risco mais
prováveis para o melanoma incluem uma história familiar positiva para
melanoma, múltiplos nevos displásicos e melanoma anterior. Os melanomas
podem ocorrer na adolescência, indicando que o período latente para o
crescimento do tumor é inferior ao do CPNM. Por razões pouco compreendidas,
os melanomas estão entre os cânceres humanos com crescimento mais rápido (C
ap. 72). Uma potencial explicação é o uso disseminado de bronzeamento
artificial. Estima-se que 30 milhões de pessoas façam bronzeamento artificial
nos Estados Unidos, anualmente, incluindo > 2 milhões de adolescentes. Além
disso, estudos epidemiológicos sugerem que a vida em um clima ensolarado
desde o nascimento ou no início da infância aumenta o risco de melanoma. Em
geral, o risco não se correlaciona com a exposição cumulativa ao sol, mas pode
estar relacionado com a duração e extensão da exposição na infância.
Porém, em contraste com o CPNM, o melanoma frequentemente se
desenvolve em áreas de pele não expostas ao sol, e as mutações oncogênicas no
melanoma também podem não ser mutações características da RUV. Essas
observações sugerem que fatores independentes da RUV podem contribuir para
a gênese do melanoma, o que é consistente com achados em modelos murinos
mostrando que a feomelanina pode promover a formação de melanoma através
de mecanismos independentes da RUV.
É importante observar que as mutações em BRAF e NRAS que levam à
ativação de uma cascata de sinalização promotora de crescimento são
frequentemente encontradas no melanoma (mas não em CECs ou CBCs), o que
levou ao desenvolvimento de inibidores específicos dessa via para o tratamento
de melanoma com mutação BRAF. Porém, uma elevada carga mutacional no
melanoma pode não equivaler a um prognóstico mais desfavorável. As mutações
missense específicas do tumor em melanomas podem resultar em neoantígenos
que facilitam uma resposta imune à célula tumoral. Uma nova abordagem
terapêutica para melanoma, chamada de bloqueio de checkpoint imunológico,
tem como alvo inibidores da ativação de células T (como CTLA-4 ou PD-1) que
em um subgrupo de pacientes resultou em destruição imune durável e potente de
células do melanoma, resultando em sobrevida prolongada em pacientes com
melanoma metastático. Recentemente foi demonstrado que uma elevada carga
mutacional em melanomas se relacionava com melhores desfechos terapêuticos
com o bloqueio do checkpoint imunológico, o que é consistente com a hipótese
de que mutações missense adquiridas nas células tumorais levam a neoantígenos
que aumentam a vulnerabilidade dessas células do melanoma ao ataque de
células T ativadas.

CONSIDERAÇÕES GLOBAIS A frequência do câncer de pele mostra


forte variação geográfica, dependendo do fototipo cutâneo da maioria da
população nessas áreas geográficas, mas também dependendo da intensidade da
RUV. Por exemplo, tanto melanoma quanto CPNM são particularmente comuns
na Austrália.

Fotoimunologia A exposição à radiação solar provoca imunossupressão local


(inibição de respostas imunes a antígenos aplicados no local irradiado) e
sistêmica (inibição de respostas imunes a antígenos aplicados em locais remotos
não irradiados). Por exemplo, a administração de doses moderadas de UVB à
pele humana pode diminuir as células que apresentam o antígeno epidérmico,
conhecidas como células de Langerhans, reduzindo, desse modo, o grau de
sensibilização alérgica ao dinitroclorobenzeno de contato no local irradiado.
Um exemplo dos efeitos imunossupressores sistêmicos de doses mais altas
de RUV é a resposta imunológica diminuída aos antígenos introduzidos de forma
epicutânea ou intracutânea em locais distantes do local irradiado. Vários fatores
de imunomodulação e células imunes estão implicados na imunossupressão
sistêmica induzida por RUV, incluindo fator de necrose tumoral α, interleucina 4,
interleucina 10, ácido cis-urocânico e eicosanoides. A evidência experimental
sugere que a sinalização de prostaglandina E2 por intermédio do subtipo do
receptor de prostaglandina E4 medeia a imunossupressão induzida pela RUV
elevando o número de células T reguladoras, e esse efeito pode ser inibido com
AINEs.
Os principais cromóforos da epiderme superior que iniciam a
imunossupressão mediada por UV incluem DNA, ácido trans-urocânico e
componentes de membrana. O espectro de ação para a imunossupressão induzida
pela UV mimetiza estreitamente o espectro de absorção do DNA. Os dímeros da
pirimidina nas células de Langerhans podem inibir a apresentação de antígeno. O
espectro de absorção do ácido urocânico epidérmico mimetiza rigorosamente o
espectro de ação para a imunossupressão induzida pela UVB. O ácido urocânico
é um produto metabólito do aminoácido histidina e se acumula na epiderme
superior por meio da ruptura da proteína rica em histidina filagrina devido à
ausência de sua enzima de catabolização nos ceratinócitos. O ácido urocânico é
sintetizado como um isômero trans, e a isomerização trans-cis induzida por UV
de ácido urocânico no estrato córneo acarreta seus efeitos imunossupressores. O
ácido cis-urocânico foi proposto para exercer seus efeitos imunossupressores por
meio de uma variedade de mecanismos, incluindo inibição de apresentação de
antígeno por células de Langerhans.
Uma consequência importante da exposição crônica ao sol e a concomitante
imunossupressão é o risco aumentado de câncer de pele. Em parte, a UVB ativa
as células T reguladoras que suprimem as respostas imunes antitumorais via
expressão da IL-10, ao passo que, na ausência de grande exposição à UVB, as
células que apresentam antígenos epidérmicos mostram antígenos associados a
tumores e induzem à imunidade protetora, inibindo, assim, a tumorigênese
cutânea. O dano ao DNA induzido por UV é o principal deflagrador molecular
desse efeito imunossupressor.
Talvez a demonstração mais vívida do papel da imunossupressão no
aumento do risco de CPNM venha de estudos com pacientes que são receptores
de transplante de órgão que são tratados cronicamente com esquemas
antirrejeição com imunossupressores. Mais de 50% dos pacientes transplantados
desenvolvem CBC e CEC, sendo tais cânceres as neoplasias malignas mais
comuns que surgem nesses pacientes. As taxas de CBC e CEC aumentam com a
duração e o grau de imunossupressão. Esses pacientes precisam de monitoração
periódica atenta e fotoproteção rigorosa por meio do uso de filtros solares,
roupas protetoras e devem evitar a exposição ao sol. É importante observar que
os fármacos imunossupressivos que têm como alvo a via mTOR, como sirolimo
e everolimo, podem reduzir o risco de CPNM em receptores de transplante de
órgãos em comparação com o uso de inibidores da calcineurina (ciclosporina e
tacrolimo). Este último pode contribuir para a formação de CPNM não apenas
através de seus efeitos imunossupressivos, mas também através da supressão das
vias de senescência de células cancerosas dependentes de p53 independentes da
imunidade do hospedeiro.

DOENÇAS DE FOTOSSENSIBILIDADE
O diagnóstico de fotossensibilidade requer uma cuidadosa anamnese para definir
a duração dos sinais e sintomas, o intervalo de tempo entre a exposição ao sol e
o desenvolvimento de sintomas subjetivos e as alterações visíveis na pele. A
idade de início também pode ser um indicador diagnóstico útil. Por exemplo, a
fotossensibilidade aguda da protoporfiria eritropoiética (PPE) quase sempre
começa em lactentes ou crianças pequenas, enquanto a fotossensibilidade
crônica da porfiria cutânea tarda (PCT) tipicamente começa na quarta e quinta
décadas de vida. A história de exposição a fármacos tópicos e sistêmicos, bem
como a substâncias químicas pode fornecer indícios diagnósticos importantes.
Muitas classes de fármacos podem causar fotossensibilidade devido à
fototoxicidade ou à fotoalergia. Fragrâncias, como o almíscar, empregado
anteriormente em muitos produtos cosméticos, também são fotossensibilizantes
potentes.
O exame da pele pode oferecer indícios importantes. As áreas anatômicas
naturalmente protegidas da luz solar direta, como o couro cabeludo piloso, as
pálpebras superiores, as regiões retroauriculares, além das regiões infranasais e
submentonianas, podem não estar acometidas, porém as áreas expostas mostram
aspectos típicos do processo patológico. Esses padrões de localização anatômica
frequentemente são úteis, mas não infalíveis, na determinação do diagnóstico.
Por exemplo, os sensibilizantes de contato transportados pelo ar que atingem a
pele podem produzir dermatite difícil de ser diferenciada da fotossensibilidade,
embora tal material possa desencadear reatividade cutânea em áreas protegidas
da luz solar direta.
Muitas afecções dermatológicas podem ser causadas ou agravadas pela luz
solar (Tab. 57-2). O papel da luz no desencadeamento dessas respostas pode
depender de anormalidades genéticas que variam desde defeitos bem descritos
no reparo do DNA que ocorrem no xeroderma pigmentoso até anormalidades
hereditárias na síntese do heme que caracterizam as porfirias.

TABELA 57-2 ■ Classificação das doenças de fotossensibilidade


Tipo Doença
Genéticas Porfiria eritropoiética
Protoporfiria eritropoiética
Porfiria cutânea tarda familiar
Porfiria variegada
Porfiria hepatoeritropoiética
Albinismo
Xeroderma pigmentoso
Síndrome de Rothmund-Thomson
Síndrome de Bloom
Síndrome de Cockayne
Síndrome de Kindler
Fenilcetonúria
Metabólicas Porfiria cutânea tarda – esporádica
Doença de Hartnup
Kwashiorkor
Pelagra
Síndrome carcinoide
Fototóxicas
Internas Drogas e fármacos
Externas Fármacos, plantas, alimentos
Fotoalérgicas
Imediatas Urticária solar
Tardias Fotoalergia ao fármaco
Reação persistente à luz/dermatite actínica crônica
Neoplásicas e degenerativas Fotoenvelhecimento
Ceratose actínica
Câncer de pele melanoma e não melanoma
Idiopáticas Erupção polimorfa à luz
Hidroa estival
Prurigo actínico
Fotoagravadas Lúpus eritematoso
sistêmico
cutâneo subagudo
discoide
Dermatomiosite
Herpes simples
Líquen plano actínico
Acne vulgar (estival)
Erupção polimorfa à luz O tipo mais comum de doença de fotossensibilidade é
a erupção polimorfa à luz (EPL). Muitas pessoas acometidas jamais procuram
orientação médica porque a alteração frequentemente é transitória, tornando-se
manifesta a cada primavera com as primeiras exposições ao sol, mas depois
cedendo espontaneamente com a manutenção da exposição, um fenômeno
conhecido como tolerância. As principais manifestações da EPL são as pápulas
eritematosas pruriginosas (com frequência, intensamente) que podem coalescer
formando placas que se distribuem de forma irregular nas áreas expostas do
tronco e dos antebraços. Em geral, a face é envolvida de modo menos grave.
Enquanto os achados morfológicos da pele permanecem semelhantes para cada
paciente com recidivas subsequentes, as variações interindividuais significativas
nos achados da pele são características (por isso o termo “polimorfo”).
O diagnóstico pode ser confirmado por biópsia da pele e por meio de
procedimentos de fototestagem nos quais a pele é exposta a múltiplas doses de
UVA e UVB capazes de provocar eritema. O espectro de ação para EPL costuma
estar dentro dessas faixas do espectro solar.
Enquanto o tratamento de um surto agudo de EPL pode precisar de
glicocorticoides tópicos ou sistêmicos, as abordagens para prevenir EPL são
importantes e incluem o uso de filtros solares de amplo espectro e elevado FPS,
além de indução da tolerância por meio de administração cautelosa artificial de
radiação UVB (de faixa larga ou de faixa estreita) e/ou radiação UVA ou o uso
de psolareno mais fotoquimioterapia de UVA (PUVA) durante cerca de 4
semanas antes da exposição inicial ao sol. Tal fototerapia profilática ou
fotoquimioterapia no início da primavera pode prevenir a ocorrência de EPL
durante todo o verão.

Fototoxicidade e fotoalergia Esses distúrbios de fotossensibilidade estão


relacionados com a administração tópica ou sistêmica de fármacos e de outras
substâncias químicas que podem agir como cromóforos. As duas reações
precisam da absorção de energia por um fármaco ou por uma substância
química, resultando na produção de um fotossensibilizante estimulado que pode
transferir sua energia absorvida para uma molécula próxima ou ao oxigênio
molecular, gerando, assim, estruturas químicas destruidoras de tecido, incluindo
ROS.
A fototoxicidade é uma reação não imunológica que pode ser causada por
fármacos e por ampla gama de substâncias químicas, alguns dos quais citados na
Tabela 57-3. As manifestações clínicas comuns são o eritema semelhante à
reação por queimadura solar que descama rapidamente ou “descasca” no período
de alguns dias. Além disso, também podem ocorrer edema, vesículas e bolhas.

TABELA 57-3 ■ Fármacos que podem causar uma reação fototóxica


Fármaco Tópicos Sistêmicos

Ácido nalidíxico +
Amiodarona +
Dacarbazina +
Fenotiazinas +
Fluoroquinolonas +
5-fluoruracila + +
Furosemida +
Psoralenos + +
Retinoides +/– +
Sulfonamidas +
Sulfonilureias +
Tetraciclinas +
Tiazídicos +
Vimblastina +

A fotoalergia é muito menos comum e se distingue por ser um processo


imunopatológico. O fotossensibilizante estimulado pode criar radicais livres do
tipo hapteno bastante instáveis que se ligam, de modo covalente, a
macromoléculas, formando um antígeno funcional capaz de provocar uma
resposta de hipersensibilidade tardia. Alguns dos fármacos e substâncias
químicas que produzem fotoalergias são citados na Tabela 57-4. As
manifestações clínicas diferem daquelas da fototoxicidade, porque ocorre uma
dermatite eczematosa intensamente pruriginosa que tende a predominar e evoluir
para alterações coriáceas, espessadas e liquenificadas nas áreas expostas ao sol.
Um pequeno subgrupo (talvez 5-10%) de pacientes com fotoalergia pode
desenvolver extraordinária hipersensibilidade persistente à luz mesmo quando o
fármaco ou a substância química agressora são identificados e eliminados,
alteração conhecida como reação persistente à luz.

TABELA 57-4 ■ Fármacos que podem causar uma reação fotoalérgica


Fármaco Tópicos Sistêmicos
Ácido aminobenzoico e ésteres +
Almíscar +
Bitionol +
Clorpromazina +
Diclofenaco +
Fluoroquinolonas +
Hipericina (erva-de-são-joão) + +
6-metilcumarina +
Piroxicam +
Prometazina +
Salicilanilidas halogenadas +
Sulfonamidas +
Sulfonilureias +

Um tipo muito incomum de fotossensibilidade persistente é conhecido


como dermatite actínica crônica. Os pacientes afetados são tipicamente homens
idosos com uma longa história de dermatite por contato alérgica preexistente ou
fotossensibilidade. Em geral são bastante sensíveis à UVB, UVA e
comprimentos de onda visíveis.
A confirmação diagnóstica da fototoxicidade e fotoalergia frequentemente
pode ser obtida empregando-se procedimentos de fototeste. Nos pacientes
suspeitos de fototoxicidade, a determinação da dose eritematosa mínima (DEM),
enquanto o paciente é exposto a um agente suspeito, e depois a repetição da
DEM, após a descontinuação do agente, podem fornecer uma indicação do
fármaco ou da substância química causal. O fototeste de contato pode ser
realizado para confirmar o diagnóstico de fotoalergia. Essa é uma variante
simples do teste de contato comum, no qual uma série de fotoalérgenos
conhecidos é aplicada na pele em duplicata e um conjunto é irradiado com uma
dose suberitematosa de UVA. O desenvolvimento de alterações eczematosas nos
lugares expostos ao sensibilizante e à luz é um resultado positivo. A
anormalidade característica nos pacientes com reação persistente à luz é um
limiar diminuído para a formação de eritema desencadeado pela UVB. Os
pacientes com dermatite actínica crônica geralmente manifestam amplo espectro
de hiper-responsividade ao UV e precisam de meticulosa fotoproteção, incluindo
evitar a exposição ao sol, filtros com fator de proteção solar (FPS) alto (> 30) e,
em casos graves, imunossupressão sistêmica, preferivelmente com azatioprina.
O tratamento da fotossensibilidade medicamentosa envolve, em primeiro
lugar, e principalmente, a eliminação da exposição aos agentes químicos
responsáveis pela reação e minimização da exposição ao sol. Os sintomas
agudos de fototoxicidade podem ser aliviados por compressas frias e úmidas,
glicocorticoides tópicos e AINEs administrados por via sistêmica. Nos pacientes
gravemente afetados, um ciclo de glicocorticoides sistêmicos com redução
gradual pode ser útil. O uso criterioso de analgésicos pode ser necessário.
As reações fotoalérgicas exigem uma abordagem terapêutica semelhante.
Além do mais, os pacientes com reação persistente à luz e dermatite actínica
crônica devem ser protegidos cuidadosamente contra a exposição à luz. Em
alguns pacientes nos quais doses altas permanentes de glicocorticoides por via
sistêmica acarretam riscos inaceitáveis, pode ser necessário o emprego de um
fármaco imunossupressor, como a azatioprina, ciclofosfamida, ciclosporina ou
micofenolato mofetila.

Porfirias As porfirias (Cap. 409) são um grupo de doenças que têm em comum
desarranjos hereditários ou adquiridos na síntese da heme. Heme é um tetrapirrol
quelado com ferro ou porfirina, sendo as porfirinas queladas não metálicas
fotossensibilizantes potentes que absorvem intensamente a luz nos
comprimentos de onda curtos (400-410 nm) e longos (580-650 nm) do espectro
visível.
O heme não pode ser reutilizado, devendo ser sintetizado continuamente.
Os dois compartimentos corporais com a maior capacidade para tal produção são
a medula óssea e o fígado. Em consequência, as porfirias originam-se em um
desses dois órgãos, com o resultado final da produção endógena excessiva de
porfirinas fotossensibilizantes potentes. As porfirinas circulam na corrente
sanguínea e se difundem para a pele, onde absorvem energia solar, tornam-se
fotoativadas, geram ROS e desencadeiam fotossensibilidade cutânea. Sabe-se
que o mecanismo de fotossensibilização da porfirina é fotodinâmico, ou
oxigênio-dependente, e mediado por ROS, como o oxigênio singleto e ânions
superóxido.
O grupo de porfirias cutâneas pode ser classificado como causando (1)
fotossensibilidade bolhosa crônica ou (2) fotossensibilidade não bolhosa aguda.
As porfirias cutâneas crônicas incluem a porfiria cutânea tarda (PCT), a porfiria
eritropoiética congênita (PEC), a porfiria hepatoeritropoiética (PHE), a
coproporfiria hereditária (CPH) e a porfiria variegada (PV). PEC, PHE e PCT
manifestam apenas sintomas cutâneos, enquanto a CPH e a PV têm sintomas
neuroviscerais agudos além da fotossensibilidade cutânea. As porfirias cutâneas
não bolhosas agudas incluem a protoporfiria eritropoiética (PPE) e a
protoporfiria ligada ao X (PLX). Exemplos representativos de porfirias cutâneas
crônicas e agudas são discutidos adiante.
A porfiria cutânea tarda (PCT) é o tipo mais comum de porfiria e está
associada à diminuição da atividade da enzima uroporfirinogênio-descarboxilase
(UROD) da via heme para < 20% do normal. Aumento de ferro e vários fatores
adquiridos (p. ex., consumo de álcool, estrogênios, tabagismo, hepatite C ou
infecção por HIV) podem reduzir a atividade da UROD. Existem dois tipos
básicos de PCT: (1) o tipo esporádico ou adquirido, geralmente visto em pessoas
que ingerem etanol ou recebem estrogênios; e (2) o tipo hereditário, no qual há
transmissão autossômica dominante de deficiência na atividade da enzima
(resultando em heterozigose para UROD com redução para 50% da atividade
enzimática da UROD e, assim, predispondo a pessoa à PCT). As duas formas
estão associadas a aumento das reservas hepáticas de ferro.
Nos dois tipos de PCT, o aspecto predominante é o de fotossensibilidade
crônica, caracterizada por maior fragilidade da pele exposta ao sol,
particularmente nas áreas sujeitas a traumatismo repetido, como o dorso das
mãos, os antebraços, a face e as orelhas. As lesões cutâneas predominantes são
vesículas e bolhas que se rompem, produzindo erosões úmidas, frequentemente
com base hemorrágica, que cicatrizam lentamente com a formação de crostas e
coloração arroxeada da pele afetada. Hipertricose, alteração pigmentar
mosqueada e endurecimento semelhante à esclerodermia são manifestações
associadas. A confirmação bioquímica do diagnóstico pode ser obtida pela
determinação da excreção urinária de porfirina, pelo teste da porfirina plasmática
e pelo teste de UROD eritrocitária e/ou hepática. Múltiplas mutações do gene da
UROD foram identificadas em populações humanas. Alguns pacientes com PCT
apresentam mutações associadas no gene HFE, que é ligado à hemocromatose e
aumenta a absorção de ferro ao reduzir a expressão da hepcidina; essas mutações
podem contribuir para a sobrecarga de ferro precipitando a PCT, embora o
estado do ferro, quando medido por ferritina sérica, níveis de ferro e saturação
de transferrina, não seja diferente do exibido por pacientes com PCT sem
mutações no HFE.
O tratamento da PCT consiste em flebotomias repetidas, com o intuito de
diminuir os depósitos hepáticos excessivos de ferro, e/ou doses baixas
intermitentes (duas vezes por semana) de hidroxicloroquina por via oral. Este
tratamento é altamente efetivo para a PCT, mas não é adequado para outras
porfirias. A remissão prolongada da doença pode geralmente ser alcançada se o
paciente eliminar a exposição aos agentes porfirinogênicos, como etanol ou
estrogênios, e evitar a exposição ao sol.
A protoporfiria eritropoiética (PPE) é uma porfiria cutânea não bolhosa
aguda que se origina na medula óssea e se deve a mutações genéticas que, na
maioria dos casos, diminuem a atividade da enzima mitocondrial ferroquelatase.
A principal manifestação clínica consiste em fotossensibilidade aguda,
caracterizada por queimação e ardência dolorosa da pele exposta, que
frequentemente surgem durante ou logo após a exposição ao sol. Pode haver
edema cutâneo concomitante e, após episódios repetidos, cicatrizes ceráceas.
O diagnóstico é confirmado pela demonstração de níveis elevados de
protoporfirina eritrocitária livre. A detecção de protoporfirina plasmática elevada
ajuda a diferenciar entre a PPE e a intoxicação por chumbo e a anemia
ferropriva, porque, nos dois casos, os níveis de protoporfirina eritrocitária
elevados ocorrem na ausência de fotossensibilidade cutânea e na ausência de
níveis elevados de protoporfirina plasmática.
A proteção rigorosa contra a luz do sol é fundamental no manejo da PPE.
As terapias que podem aumentar a tolerância à luz do sol em pacientes com PPE
podem também ser úteis, como a administração oral de β-caroteno, que é um
neutralizador (scavenger) de radicais livres. É importante observar que um
estudo recente mostrou que um análogo peptídeo sintético de α-MSH,
afamelanotida, aumentava a pigmentação cutânea através da melanogênese e,
assim, aumentava a tolerância à luz do sol em pacientes com PPE. Os pacientes
tratados com afamelanotida toleraram a exposição ao sol sem dor por maiores
períodos de tempo e tiveram melhora na qualidade de vida em comparação com
os pacientes não tratados. É interessante observar que, os estudos iniciais
sugerem que a afamelanotida pode também ser benéfica em combinação com
NBUV-B no tratamento de pacientes com vitiligo (em pacientes com fototipos
cutâneos IV-VI).
A Figura 57-1 apresenta um algoritmo para o manejo dos pacientes com
fotossensibilidade.
FIGURA 57-1 Algoritmo para o diagnóstico de um paciente com fotossensibilidade. DEM, dose
eritematosa mínima; FAN, fator antinuclear; UVA e UVB, segmentos do espectro ultravioleta que incluem
comprimentos de onda de 320-400 nm e 290-320 nm, respectivamente.
FOTOPROTEÇÃO
Como a fotossensibilidade da pele resulta da exposição à luz solar, logicamente a
exclusão absoluta do sol deverá eliminar esses distúrbios. Porém, os estilos de
vida contemporâneos tornam essa abordagem impraticável para a maioria das
pessoas. Assim, foram buscadas abordagens melhores para a fotoproteção.
A fotoproteção natural é proporcionada por proteínas estruturais da
epiderme, particularmente ceratina e melanina. A quantidade de melanina e sua
distribuição nas células são reguladas geneticamente, e os indivíduos com pele
mais escura (pele tipos IV a VI) encontram-se sob menor risco de queimadura
solar aguda e câncer de pele.
As roupas e os filtros solares são outras formas de fotoproteção. As roupas
feitas de tecidos de trama fechada que protegem contra o sol, independentemente
da cor, conferem substancial proteção. Os chapéus de abas largas, as mangas
compridas e as calças compridas reduzem a exposição direta. Atualmente, os
filtros solares são fármacos de venda livre (sem prescrição), e os ingredientes da
categoria 1 são reconhecidos pela Food and Drug Administration (FDA) como
seguros e efetivos. Esses ingredientes são mencionados na Tabela 57-5. Os
filtros solares são classificados pelo seu efeito fotoprotetor de acordo com seu
fator de proteção solar (FPS). O FPS é simplesmente uma relação do tempo
necessário para o aparecimento de um eritema de queimadura solar com ou sem
a aplicação do filtro solar. O FPS dos filtros solares em sua maioria reflete
principalmente a proteção de UVB, mas não a de UVA. A FDA estipula que os
filtros solares devem ser classificados em uma escala que varia desde proteção
mínima (FPS ≥ 2 e < 12), moderada (FPS ≥ 12 e < 30) até alta (FPS ≥ 30,
representado como 30+).

TABELA 57-5 ■ Componentes dos filtros solares de categoria 1 da FDA


Componentes Concentração máxima (%)

Ácido p-aminobenzoico (PABA) 15


Ácido sulfônico fenilbenzimidazol 4
Antranilato de metila 5
Avobenzona 3
Cinoxato 3
Dioxibenzona (benzofenona-8) 3
Dióxido de titânio 25
Ecansule 15
Homossalato 15
Metoxicinamato de octila 7,5
Octocrileno 10
Oxibenzona (benzofenona-3) 6
Óxido de zinco 25
Padimato O (octila dimetil PABA) 8
Salicilato de octila 5
Salicilato de trolamina 12
Sulisobenzona (benzofenona-4) 10
Sigla: FDA, Food and Drug Administration.

Os filtros solares de espectro amplo possuem substâncias químicas


absorventes de UVB e UVA, essa última incluindo avobenzona e ecamsule
(ácido tereftalideno dicânfora sulfônico). Essas substâncias químicas absorvem
RUV e transferem a energia absorvida para as células adjacentes. Em
contrapartida, bloqueadores físicos de UV (óxido de zinco e dióxido de titânio)
dissipam ou refletem a RUV.
Além da absorção da luz, um determinante fundamental do efeito
fotoprotetor persistente dos filtros solares é a sua resistência à água. A
monografia da FDA definiu critérios estritos de testagem para os filtros solares
que anunciam essa característica. Algum grau de fotoproteção pode ser
alcançado limitando o tempo de exposição durante o dia. Como a grande parte
da exposição ao sol de toda a vida de um indivíduo ocorre até os 18 anos de
idade, é importante orientar os pais e as crianças pequenas acerca dos riscos da
luz solar. A eliminação da exposição ao meio-dia reduz substancialmente a
exposição à UVR ao longo da vida.
FOTOTERAPIA E FOTOQUIMIOTERAPIA
A RUV pode ser empregada com fins terapêuticos. A administração de UVB
individualmente ou associada a agentes aplicados topicamente pode induzir a
remissões de muitas doenças dermatológicas, incluindo psoríase e dermatite
atópica. Em particular, os tratamentos com UVB de faixa estreita (com bulbos
fluorescentes que emitem radiação em aproximadamente 311 nm) aumentaram a
eficiência comparados com a UVB de faixa larga no tratamento da psoríase.
A fotoquimioterapia em que psoralenos aplicados topicamente ou por via
sistêmica são associados ao UVA (PUVA) também é eficaz no tratamento da
psoríase assim como nos estágios iniciais do linfoma de células T cutâneo e no
vitiligo. Os psoralenos são furocumarinas tricíclicas que, quando intercaladas no
DNA e expostas à UVA, formam combinações com bases de pirimidina e
finalmente estabelecem ligações cruzadas no DNA. Acredita-se que essas
mudanças estruturais diminuam a síntese do DNA e se relacionem com a
melhora que ocorre na psoríase. A razão pela qual a fotoquimioterapia com
PUVA é eficaz no linfoma de células T cutâneo ainda não está clara, mas ela
mostrou a indução de apoptose de populações de linfócitos T atípicos na pele.
Consequentemente, o tratamento direto de linfócitos atípicos circulantes por
fotoquimioterapia extracorpórea (fotofereses) tem sido usado na síndrome de
Sézary bem como em outras doenças sistêmicas graves com linfócitos atípicos
circulantes, como a doença do enxerto contra o hospedeiro.
Além dos seus efeitos sobre o DNA, a fotoquimioterapia com PUVA
estimula o espessamento epidérmico e a síntese de melanina; essa última em
conjunto com os seus efeitos anti-inflamatórios proporciona a base racional para
o seu uso na doença que provoca despigmentação, o vitiligo. 8-metoxipsoraleno
VO e UVA parecem ser mais eficazes nesse aspecto, mas podem ser necessárias
até cem sessões de tratamento durante 12 a 18 meses para que ocorra
repigmentação satisfatória.
Não surpreende o fato de os principais efeitos colaterais da fototerapia com
UVB prolongada e a fotoquimioterapia com PUVA simularem aqueles
verificados em indivíduos com exposição crônica ao sol. Apesar de tais riscos, o
índice terapêutico dessas modalidades continua a ser excelente. É importante
escolher a abordagem fototerapêutica mais apropriada para uma doença
dermatológica específica. Por exemplo, a UVB de faixa estreita foi relatada em
vários estudos como tão efetiva quanto a fotoquimioterapia PUVA no tratamento
da psoríase, mas tem um risco menor de desenvolvimento de câncer de pele que
a PUVA.

LEITURAS ADICIONAIS
Fell GL et al: Skin beta-endorphin mediates addiction to UV light. Cell
157:1527, 2014.
Jansen R et al: Photoprotection: Part II. Sunscreen: development, efficacy, and
controversies. J Am Acad Dermatol 69:867, 2013.
Martincorena I et al: Tumor evolution. High burden and pervasive positive
selection of somatic mutations in normal human skin. Science 348:880,
2015.
Sanchez-Danes A et al: Defining the clonal dynamics leading to mouse skin
tumour initiation. Nature 536:298, 2016.
Van Allen EM et al: Genomic correlates of response to CTLA-4 blockade in
metastatic melanoma. Science 350:207, 2015.
Seção 9 Alterações hematológicas
58
Interpretando esfregaços de sangue
periférico
Dan L. Longo

Alguns dos achados mais relevantes no sangue periférico, em linfonodos


aumentados e na medula óssea estão ilustrados neste capítulo. Um exame
histológico sistemático da medula óssea e dos linfonodos está além do escopo de
um livro-texto de medicina geral. Entretanto, todo internista deve saber como
examinar um esfregaço de sangue periférico.
O exame de um esfregaço de sangue periférico é um dos exercícios mais
informativos que um médico pode realizar. Embora os avanços na tecnologia
automatizada tenham diminuído a importância do exame de esfregaço de sangue
periférico feito por um médico, a tecnologia não é um substituto totalmente
satisfatório para um profissional treinado que também conheça a história clínica,
a história familiar, a história social e os achados do exame físico do paciente. É
útil solicitar ao laboratório que faça um esfregaço de sangue periférico corado
pelo método de Wright para examiná-lo.
O melhor local para examinar a morfologia das células sanguíneas é a borda
fina do esfregaço, onde os eritrócitos encontram-se em uma única camada, lado a
lado, apenas ligeiramente em contato uns com os outros, porém sem
sobreposição. A abordagem do autor é procurar, em primeiro lugar, os menores
elementos, as plaquetas, e seguir por ordem crescente de tamanho para os
eritrócitos e, em seguida, para os leucócitos.
Usando uma lente de imersão em óleo com capacidade de aumento de 100
vezes, contamos as plaquetas em 5 a 6 campos, calculamos a média por campo e
multiplicamos esse número por 20.000 para obter uma estimativa bruta da
contagem de plaquetas. As plaquetas geralmente têm diâmetro de 1 a 2 μm com
uma aparência granulada e azulada. Em geral, há 1 plaqueta para cerca de 20
eritrócitos. É claro que a contagem automatizada é muito mais precisa, mas
grandes disparidades encontradas entre as contagens manual e automatizada
devem ser avaliadas. A presença de plaquetas grandes pode ser um sinal de
renovação plaquetária rápida, visto que as plaquetas jovens são geralmente
maiores do que as plaquetas mais velhas; por outro lado, algumas síndromes
hereditárias raras podem produzir plaquetas grandes. Se a contagem de plaquetas
for baixa, a ausência de plaquetas grandes (jovens) pode ser um indicador de
problemas de produção da medula. A presença de aglomerados plaquetários
visíveis no esfregaço pode estar associada a contagens automatizadas falsamente
baixas. Aglomerados também podem ser causados por anticoagulantes. De
forma semelhante, a fragmentação de neutrófilos pode ser uma fonte de
contagens automatizadas falsamente elevadas do número de plaquetas. A
ausência de grânulos de plaquetas pode ser um produto do manuseio do sangue
ou pode indicar uma doença medular ou síndrome da plaqueta cinzenta, uma
anomalia congênita rara. Contagens de plaquetas elevadas geralmente sugerem
um distúrbio mieloproliferativo ou uma reação à inflamação sistêmica.
A seguir, são examinados os eritrócitos. Pode-se medir o seu tamanho
comparando-os com o núcleo de um linfócito pequeno. Ambos medem
normalmente cerca de 8 μm de largura. Os eritrócitos que são menores do que o
núcleo de um pequeno linfócito podem ser microcíticos, enquanto os maiores
podem ser macrocíticos. As células macrocíticas também tendem a ser mais
ovais do que esféricas e, algumas vezes, são denominadas macro-ovalócitos. O
volume corpuscular médio (VCM) automatizado pode ajudar a efetuar uma
classificação. Entretanto, alguns pacientes podem apresentar deficiências tanto
de ferro quanto de vitamina B12, produzindo um VCM com valores normais, mas
com grande variação no tamanho das hemácias. Quando há uma grande variação
no tamanho, diz-se que se está diante de uma anisocitose. Já quando
encontramos uma grande variação na forma, diz-se que se está diante de uma
poiquilocitose. O contador de células eletrônico fornece uma avaliação
independente da variabilidade no tamanho dos eritrócitos. Ele mede a amplitude
dos volumes dos eritrócitos e fornece os resultados como “índice de anisocitose”
(RDW, red cell distribution width, ou “largura de distribuição dos eritrócitos”).
Esse valor é calculado a partir do VCM; por conseguinte, o que está sendo
medido não é a largura, mas o volume da célula. O termo deriva da curva que
representa a frequência de células em cada volume, também denominada
distribuição. A largura da curva de distribuição de volume dos eritrócitos é que
determina o RDW. O RDW é calculado da seguinte maneira: RDW = (desvio-
padrão do VCM ÷ VCM médio) × 100. Na presença de anisocitose morfológica,
o RDW (cujo valor normal é de 11-14%) aumenta para 15 a 18%. O RDW
mostra-se útil em pelo menos dois contextos clínicos. Em pacientes com anemia
microcítica, o diagnóstico diferencial é geralmente efetuado entre deficiência de
ferro e talassemia. Na talassemia, os eritrócitos pequenos apresentam, em geral,
um tamanho uniforme, com valor normal baixo do RDW. Na deficiência de
ferro, a variabilidade do tamanho e o RDW são grandes. Além disso, a obtenção
de um RDW alto pode sugerir anemia dimórfica, quando a presença de gastrite
atrófica crônica pode produzir tanto má absorção de vitamina B12, causando
anemia macrocítica, quanto perda de sangue, causando deficiência de ferro.
Nessas situações, o RDW também está alto. Foi também relatado um RDW
elevado como fator de risco para mortalidade por todas as causas em estudos
populacionais, um achado que permanece inexplicado atualmente.
Após a avaliação do tamanho dos eritrócitos, deve-se examinar o conteúdo
de hemoglobina das células. Os eritrócitos podem ter coloração normal
(normocrômicos) ou pálida (hipocrômicos). Nunca são “hipercrômicos”. Se
houver uma quantidade de hemoglobina maior do que o normal, as células ficam
mais volumosas – mas não se tornam mais escuras. Além do conteúdo de
hemoglobina, os eritrócitos são examinados quanto à presença de inclusões. As
inclusões encontradas nos eritrócitos são as seguintes:

1. Pontilhado basofílico – pontos azuis finos ou grosseiros distribuídos


difusamente nos eritrócitos, representando geralmente resíduos de RNA –
particularmente comuns na intoxicação por chumbo.
2. Corpúsculos de Howell-Jolly – inclusões circulares azuis e densas que
representam remanescentes nucleares – a sua presença implica deficiência
na função do baço.
3. Núcleos – os eritrócitos podem ser liberados ou expulsos prematuramente
da medula óssea, antes da extrusão do núcleo – a sua presença
frequentemente implica um processo mieloftísico ou uma resposta intensa
da medula à anemia, normalmente anemia hemolítica.
4. Parasitas – os parasitas dos eritrócitos incluem a malária e babésia (ver Ca
p. A6.).
5. Policromatofilia – o citoplasma dos eritrócitos possui uma tonalidade
azulada, que reflete a persistência de ribossomos que ainda sintetizam
ativamente a hemoglobina em um eritrócito jovem.

São necessários corantes vitais para visualizar a hemoglobina precipitada,


denominada corpúsculos de Heinz.
Os eritrócitos podem assumir uma variedade de formas diferentes. Todos os
eritrócitos com formato anormal são denominados poiquilócitos. Os eritrócitos
pequenos que carecem da palidez central são denominados esferócitos; podem
ser encontrados na esferocitose hereditária, em anemias hemolíticas de outras
etiologias e na sepse por clostrídeos. Os dacriócitos são células em forma de
lágrima, que podem ser encontrados nas anemias hemolíticas, na deficiência
grave de ferro, nas talassemias, na mielofibrose e nas síndromes
mielodisplásicas. Os esquizócitos são células em forma de capacete que refletem
a presença de anemia hemolítica microangiopática ou fragmentação de uma
valva cardíaca artificial. Os equinócitos são eritrócitos espiculados, com
espículas regularmente espaçadas; podem representar um artefato causado pelo
ressecamento anormal do esfregaço sanguíneo ou podem refletir alterações no
sangue armazenado. Além disso, eles podem ser observados na presença de
insuficiência renal e desnutrição e, com frequência, são reversíveis. Os
acantócitos são eritrócitos espiculados em que as espículas estão distribuídas de
modo irregular. Esse processo tende a ser irreversível e reflete a presença de
doença renal subjacente, abetalipoproteinemia ou esplenectomia. Os eliptócitos
são eritrócitos em forma de elipse cuja presença pode refletir um defeito
hereditário da membrana celular; entretanto, são também observados na
deficiência de ferro, nas síndromes mielodisplásicas, na anemia megaloblástica e
nas talassemias. Os estomatócitos são eritrócitos cuja área de palidez central
assume a morfologia de uma fenda, em lugar do formato redondo habitual. Os
estomatócitos podem indicar um defeito hereditário da membrana celular do
eritrócito e também podem ser observados no alcoolismo. As células-alvo
possuem uma área de palidez central, que contém um centro denso ou “olho de
boi”. Essas células são observadas classicamente na talassemia, mas também
podem estar presentes na deficiência de ferro, na doença hepática colestática e
em algumas hemoglobinopatias. Além disso, podem ser produzidas como
artefato quando a lâmina é preparada de modo inadequado.
O último aspecto dos eritrócitos a ser examinado antes de passar para os
leucócitos é a sua distribuição no esfregaço. Na maioria dos indivíduos, as
células distribuem-se em uma única camada, lado a lado. Alguns pacientes
apresentam aglomerados (denominados aglutinação), em que os eritrócitos
ficam empilhados uns sobre os outros; esse processo é observado em algumas
paraproteinemias e em anemias hemolíticas autoimunes. Outra distribuição
anormal envolve a formação de fileiras, com um eritrócito sobre o outro, à
semelhança de moedas empilhadas. Esse processo é denominado formação de
rouleaux e reflete a presença de níveis séricos anormais de proteína.
Por fim, são examinados os leucócitos. Em geral, verifica-se a presença de
3 tipos de granulócitos: os neutrófilos, os eosinófilos e os basófilos, em
frequência decrescente. Em geral, os neutrófilos são os leucócitos mais
abundantes. São redondos, têm 10 a 14 μm de largura e contêm um núcleo
lobulado, com 2 a 5 lobos conectados por um fino filamento de cromatina. Os
bastões são neutrófilos imaturos, que não completaram a condensação nuclear e
que possuem um núcleo em forma de U. A presença de bastões reflete um desvio
da maturação dos neutrófilos para a esquerda, em uma tentativa de produzir mais
células mais rapidamente. Os neutrófilos podem fornecer indícios para uma
variedade de condições. Os neutrófilos vacuolados podem constituir um sinal de
sepse bacteriana. A presença de inclusões citoplasmáticas azuis de 1 a 2 μm,
denominados corpúsculos de Döhle, pode refletir infecções, queimaduras ou
outros estados inflamatórios. Os grânulos dos neutrófilos, quando maiores do
que o normal e quando adquirem uma coloração azul mais intensa, são
designados “granulações tóxicas” e também sugerem uma inflamação sistêmica.
A presença de neutrófilos com mais de cinco lobos nucleares sugere anemia
megaloblástica. Grânulos grandes e de formato anormal podem refletir a
síndrome de Chédiak-Higashi congênita.
Os eosinófilos são ligeiramente maiores do que os neutrófilos, possuem
núcleos bilobulados e contêm grandes grânulos vermelhos. As doenças dos
eosinófilos estão associadas a um aumento de sua contagem, e não a qualquer
alteração morfológica ou qualitativa. Normalmente, representam menos de 3%
do número de neutrófilos. Os basófilos são ainda mais raros do que os
eosinófilos no sangue. Apresentam grandes grânulos azul-escuro, e o seu número
pode estar aumentado como parte da leucemia mielocítica crônica.
Os linfócitos podem estar presentes em diversas formas morfológicas. Nos
indivíduos saudáveis, os mais comuns consistem em pequenos linfócitos com
um núcleo escuro pequeno e citoplasma escasso. Na presença de infecções
virais, uma maior parte dos linfócitos são de tamanho maior, aproximadamente
do tamanho dos neutrófilos, com citoplasma abundante e cromatina nuclear
menos condensada. Essas células são denominadas linfócitos reativos. Cerca de
1% dos linfócitos são maiores e contêm grânulos azuis em um citoplasma azul-
claro; esses são os denominados grandes linfócitos granulares. Na leucemia
linfocítica crônica, os pequenos linfócitos estão aumentados em número, e
muitos sofrem ruptura durante a preparação do esfregaço sanguíneo, deixando
restos de material nuclear sem citoplasma circundante ou membrana celular; eses
constituem as denominadas sombras de Gumprecht, que são raras na ausência de
leucemia linfocítica crônica.
FIGURA 58-1 Esfregaço de sangue periférico normal. Pequeno linfócito no centro do campo. Observar
que o diâmetro do eritrócito é semelhante ao diâmetro do núcleo do pequeno linfócito.

FIGURA 58-2 Preparação para contagem de reticulócitos. Este novo esfregaço sanguíneo corado por
azul de metileno mostra um grande número de reticulócitos densamente corados (as células que contêm
precipitados de RNA de coloração azul-escuro).
FIGURA 58-3 Anemia microcítica hipocrômica por deficiência de ferro. O pequeno linfócito no campo
ajuda a estimar o tamanho dos eritrócitos.

FIGURA 58-4 Anemia ferropriva comparada com eritrócitos normais. Os micrócitos (à direita) são
menores do que os eritrócitos normais (diâmetro celular < 7 µm) e podem ou não ser pouco
hemoglobinizados (hipocrômicos).
FIGURA 58-5 Policromatofilia. Observe os grandes eritrócitos com coloração púrpura-clara.

FIGURA 58-6 Macrocitose. Essas células são maiores (volume corpuscular médio > 100) do que o normal
e exibem um formato ligeiramente oval. Alguns morfologistas dão a essas células o nome de macro-
ovalócitos.
FIGURA 58-7 Neutrófilos hipersegmentados. Os neutrófilos hipersegmentados (leucócitos
polimorfonucleares multilobados) são maiores do que os neutrófilos normais, com cinco ou mais lobos
nucleares segmentados. São encontrados comumente nas deficiências de ácido fólico ou de vitamina B12.

FIGURA 58-8 Esferocitose. Observe as células hipercromáticas pequenas, sem a área central clara
habitual.
FIGURA 58-9 Formação de Rouleaux. Pequeno linfócito no centro do campo. Esses eritrócitos alinham-
se em pilhas e estão relacionados a níveis séricos elevados de proteína.

FIGURA 58-10 Aglutinação dos eritrócitos. Pequeno linfócito e neutrófilo segmentado na parte central
superior, à esquerda. Observe os agrupamentos irregulares de eritrócitos.
FIGURA 58-11 Eritrócitos fragmentados. Hemólise de valva cardíaca.

FIGURA 58-12 Células falciformes. Doença falciforme homozigota. Um neutrófilo e um eritrócito


nucleado também são visualizados no campo.
FIGURA 58-13 Células-alvo. As células-alvo são reconhecidas pelo seu aspecto em olho de boi. São
observadas em pequeno número na doença hepática e na talassemia. A presença de números maiores é
típica da doença da hemoglobina C.

FIGURA 58-14 Eliptocitose. Pequeno linfócito no centro do campo. A forma elíptica dos eritrócitos está
relacionada ao enfraquecimento da estrutura da membrana, normalmente devido a mutações na espectrina.
FIGURA 58-15 Estomatocitose. Eritrócitos caracterizados por uma ampla fenda ou estoma transversal.
Com frequência, esses eritrócitos são observados como artefato em um esfregaço sanguíneo desidratado.
Podem ser observados nas anemias hemolíticas e em condições nas quais os eritrócitos estão
excessivamente hidratados ou desidratados.

FIGURA 58-16 Acantocitose. Existem dois tipos de eritrócitos espiculados: os acantócitos são células
densas contraídas com projeções irregulares da membrana, que variam quanto ao comprimento e largura; os
equinócitos possuem projeções da membrana pequenas, uniformes e de distribuição regular. Os acantócitos
estão presentes na doença hepática grave, em pacientes com abetalipoproteinemia e nos raros pacientes com
grupo sanguíneo de McLeod. Os equinócitos são encontrados em pacientes com uremia grave, em defeitos
das enzimas glicolíticas dos eritrócitos e na anemia hemolítica microangiopática.

FIGURA 58-17 Corpúsculos de Howell-Jolly. Os corpúsculos de Howell-Jolly consistem em


remanescentes nucleares minúsculos, que normalmente são removidos pelo baço. Aparecem no sangue após
esplenectomia (defeito na remoção) e na presença de distúrbios de maturação/displásicos (produção
excessiva).

FIGURA 58-18 Células em forma de lágrima e eritrócitos nucleados característicos da


mielofibrose. Um eritrócito em forma de lágrima (à esquerda) e um eritrócito nucleado (à direita),
observados na mielofibrose e hematopoiese extramedular.

FIGURA 58-19 Mielofibrose na medula óssea. Substituição total dos precursores da medula óssea e dos
adipócitos por um infiltrado denso de fibras de reticulina e colágeno (coloração por H&E).

FIGURA 58-20 Coloração para reticulina na mielofibrose da medula óssea. A coloração de uma
medula mielofibrótica pela prata mostra aumento das fibras de reticulina (filamentos corados em preto).
FIGURA 58-21 Eritrócito pontilhado na intoxicação por chumbo. Hipocromia leve. Eritrócito com
pontilhado grosseiro.

FIGURA 58-22 Corpúsculos de Heinz. Sangue misturado com solução hipotônica de cristal violeta. O
material corado consiste em precipitados de hemoglobina desnaturada dentro das células.
FIGURA 58-23 Plaquetas gigantes. As plaquetas gigantes, juntamente com aumento acentuado da
contagem plaquetária, são encontradas nos distúrbios mieloproliferativos, particularmente na
trombocitopenia primária.
FIGURA 58-24 Granulócitos normais. O granulócito normal possui um núcleo segmentado com
cromatina densa e aglomerada; os grânulos neutrofílicos finos estão dispersos por todo o citoplasma.
FIGURA 58-25 Monócitos normais. O esfregaço foi preparado a partir da camada leucoplaquetária do
sangue de um doador normal. L, linfócito; M, monócito; N, neutrófilo.

FIGURA 58-26 Eosinófilos normais. O esfregaço foi preparado a partir da camada leucoplaquetária do
sangue de um doador normal. N, neutrófilo; E, eosinófilo; L, linfócito.
FIGURA 58-27 Basófilo normal. O esfregaço foi preparado a partir da camada leucoplaquetária do sangue
de um doador normal. B, basófilo; L, linfócito.

FIGURA 58-28 Anomalia de Pelger-Hüet. Nesse distúrbio benigno, os granulócitos são, em sua maioria,
bilobulados. Com frequência, o núcleo possui uma aparência de óculos, ou configuração em pince-nez.
FIGURA 58-29 Corpúsculo de Döhle. Neutrófilo em bastão com corpúsculo de Döhle. O neutrófilo com
núcleo em forma de salsicha no centro do campo é um bastão. Os corpúsculos de Döhle consistem em áreas
não granulares distintas, de coloração azul, encontradas na periferia do citoplasma dos neutrófilos nas
infecções e em outros estados tóxicos. Representam agregados de retículo endoplasmático rugoso.

FIGURA 58-30 Doença de Chédiak-Higashi. Observe os grânulos gigantes no neutrófilo.

Os monócitos são os maiores leucócitos, com diâmetro variando de 15 a 22


μm. O núcleo pode assumir uma variedade de formatos, porém geralmente
parece dobrado; o citoplasma é cinza.
Podem aparecer células anormais no sangue. Com mais frequência, essas
células originam-se de neoplasias de células derivadas da medula óssea,
incluindo células linfoides, células mieloides e, em certas ocasiões, eritrócitos.
Mais raramente, outros tipos de tumores podem ter acesso à corrente sanguínea,
e pode-se identificar a presença de células malignas epiteliais raras. A
probabilidade de visualizar essas células anormais aumenta se forem examinados
esfregaços sanguíneos preparados a partir da camada leucoplaquetária, a camada
de células visível na parte superior dos eritrócitos sedimentados quando se deixa
o sangue em repouso no tubo de ensaio por uma hora. Os esfregaços preparados
a partir de punção digital podem incluir células endoteliais raras.

Agradecimento As figuras deste capítulo foram retiradas de Williams


Hematology, 7th edition, M Lichtman et al (eds). New York, McGraw-Hill, 2005;
Hematology in General Practice, 4th edition, RS Hillman, KA Ault, New York,
McGraw-Hill, 2005.
59
Anemia e policitemia
John W. Adamson, Dan L. Longo
HEMATOPOIESE E A BASE FISIOLÓGICA DA PRODUÇÃO
DE ERITRÓCITOS
A hematopoiese refere-se ao processo de produção dos elementos figurados do
sangue. O processo é regulado por meio de uma série de etapas que começa com
a célula-tronco hematopoiética. As células-tronco têm a capacidade de produzir
eritrócitos, granulócitos de todas as classes, monócitos, plaquetas e células do
sistema imune. O mecanismo molecular específico pelo qual as células-tronco se
diferenciam em uma determinada linhagem não está completamente definido.
Entretanto, experimentos em camundongos sugerem que as células eritroides
originam-se de um progenitor eritroide/megacariocítico comum que não se
desenvolve na ausência da expressão dos fatores de transcrição de GATA1 e
FOG-1 (de friend of GATA-1) (Cap. 92). Após a diferenciação em determinada
linhagem, as células progenitoras e precursoras hematopoiéticas ficam cada vez
mais sob a influência reguladora dos fatores de crescimento e hormônios. A
eritropoietina (EPO) é o hormônio regulador envolvido na produção dos
eritrócitos. A EPO é necessária para a manutenção das células progenitoras
eritroides diferenciadas que, na ausência do hormônio, sofrem morte celular
programada (apoptose). O processo regulado de produção dos eritrócitos é
denominado eritropoiese, e seus elementos-chave estão ilustrados na Figura 59-
1. Ver também Capítulo A5, “Atlas de hematologia”.

FIGURA 59-1 Regulação fisiológica da produção dos eritrócitos pela tensão tecidual de oxigênio. Hb,
hemoglobina.
Na medula óssea, o pró-normoblasto é o primeiro precursor eritroide
morfologicamente identificável. Essa célula pode sofrer 4 a 5 divisões celulares,
que resultam na produção de 16 a 32 eritrócitos maduros. Em caso de aumento
na produção de EPO ou administração de EPO como fármaco, ocorre
amplificação do número de células precursoras imaturas, as quais dão origem a
número aumentado de eritrócitos. A regulação da própria produção de EPO está
ligada à oxigenação tecidual.
Nos mamíferos, o O2 é transportado até os tecidos ligados à hemoglobina
contida no interior dos eritrócitos circulantes. O eritrócito maduro tem 8 μm de
diâmetro, é anucleado, de forma discoide e extremamente flexível para
atravessar com sucesso a microcirculação. A integridade de sua membrana é
mantida pela geração intracelular de ATP. A produção normal dos eritrócitos
permite a reposição diária de 0,8 a 1% das hemácias circulantes no corpo, pois a
sobrevida média dos eritrócitos é de 100 a 120 dias. O órgão responsável pela
produção dos eritrócitos é denominado éritron. Trata-se de um órgão dinâmico,
constituído por um reservatório de células precursoras eritroides medulares de
rápida proliferação e por uma grande massa de eritrócitos circulantes maduros. O
tamanho da massa eritrocitária reflete o equilíbrio entre a produção e a
destruição dos eritrócitos. A base fisiológica da produção e destruição dos
eritrócitos fornece uma compreensão dos mecanismos que podem levar à
anemia.
O regulador fisiológico da produção dos eritrócitos, o hormônio
glicoproteico EPO, é sintetizado e liberado por células de revestimento dos
capilares peritubulares nos rins. Essas células são do tipo epitelial e altamente
especializadas. Os hepatócitos sintetizam uma pequena quantidade de EPO. O
estímulo fundamental para a produção de EPO é a disponibilidade de O2 para as
necessidades metabólicas dos tecidos. O fator induzível por hipoxia (HIF)-1α
representa um elemento fundamental na regulação do gene da EPO. Na presença
de O2, o HIF-1α é hidroxilado em uma prolina-chave, que possibilita a
ubiquitinação e degradação do HIF-1α por meio da via do proteassoma. Caso o
O2 se torne um fator limitante, essa etapa de hidroxilação crítica não ocorre,
permitindo ao HIF-1α unir-se a outras proteínas, ser transportado até o núcleo e
suprarregular o gene da EPO, entre outros.
Um aporte deficiente de O2 para os rins pode resultar de uma diminuição da
massa eritrocitária (anemia), da ligação deficiente do O2 à molécula de
hemoglobina ou de hemoglobina mutante de alta afinidade pelo O2 (hipoxemia)
ou, raramente, do fluxo sanguíneo deficiente para os rins (estenose da artéria
renal). A EPO regula a produção diária dos eritrócitos, e os níveis do hormônio
podem ser medidos no plasma por meio de imunoensaios sensíveis – o nível
normal de EPO é de 10 a 25 U/L. Quando a concentração de hemoglobina cai
abaixo de 100 a 120 g/L (10-12 g/dL), os níveis plasmáticos de EPO aumentam
proporcionalmente à gravidade da anemia (Fig. 59-2). Na circulação, a EPO tem
meia-vida de depuração de 6 a 9 horas e atua mediante sua ligação a receptores
específicos na superfície dos precursores eritroides medulares induzindo sua
proliferação e maturação. Sob o estímulo da EPO, a produção de eritrócitos pode
aumentar 4 a 5 vezes em um período de 1-2 semanas, porém apenas na presença
de nutrientes adequados, particularmente o ferro. Por conseguinte, a capacidade
funcional do éritron exige uma produção renal normal de EPO, medula eritroide
funcionante e um suprimento adequado de substratos para a síntese de
hemoglobina. A ocorrência de um defeito em qualquer um desses componentes-
chave pode acarretar anemia. Em geral, a anemia é reconhecida no laboratório
quando os níveis de hemoglobina ou o hematócrito do paciente estão reduzidos
abaixo de um valor esperado (faixa normal). A probabilidade e intensidade da
anemia são definidas com base no desvio dos níveis de hemoglobina/hematócrito
do paciente dos valores esperados para os indivíduos normais da mesma idade e
sexo. No adulto, a concentração de hemoglobina exibe uma distribuição
gaussiana. O valor médio do hematócrito para homens adultos é de 47% (desvio-
padrão de ±7), enquanto nas mulheres adultas, é de 42% (±5). Qualquer valor
isolado do hematócrito ou da hemoglobina está associado a uma probabilidade
de anemia. Por conseguinte, um hematócrito < 39% em um homem adulto ou <
35% em uma mulher adulta tem probabilidade de apenas cerca de 25% de ser
normal. O hematócrito tem menos utilidade do que os níveis de hemoglobina na
avaliação da anemia, visto que ele é calculado, em lugar de ser medido
diretamente. Os valores baixos suspeitos da hemoglobina ou do hematócrito
serão interpretados com mais facilidade se valores anteriores do mesmo paciente
forem conhecidos para comparação. A Organização Mundial da Saúde (OMS)
define a anemia como um nível de hemoglobina < 130 g/L (13 g/dL) nos homens
e < 120 g/L (12 g/dL) nas mulheres.
FIGURA 59-2 Níveis de eritropoietina (EPO) na resposta à anemia. Quando o nível de hemoglobina
cai para 120 g/L (12 g/dL), os níveis plasmáticos de eritropoietina aumentam logaritmicamente. Na
presença de doença renal ou inflamação crônica, os níveis de EPO geralmente ficam mais baixos do que o
esperado para o grau de anemia. À medida que o indivíduo envelhece, o nível de EPO necessário para
sustentar níveis normais de hemoglobina parece aumentar. (De RS Hillman et al.: Hematology in Clinical
Practice, 5th ed., New York, McGraw-Hill, 2010.)

Os elementos essenciais da eritropoiese – produção de EPO,


disponibilidade de ferro, capacidade de proliferação da medula óssea e
maturação efetiva dos precursores eritroides – são utilizados para a classificação
inicial da anemia (ver adiante).
ANEMIA
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS DA ANEMIA
Sinais e sintomas A anemia é mais frequentemente diagnosticada em exames
laboratoriais de rastreamento. Uma situação menos comum é a presença de
anemia avançada com seus sinais e sintomas associados. A anemia aguda é
causada por perda de sangue ou hemólise. Se a perda de sangue for leve,
ocorrerá aumento da liberação de O2 por meio de alterações na curva de
dissociação da O2-hemoglobina mediadas por uma redução do pH ou aumento
do CO2 (efeito Bohr). Em caso de perda aguda de sangue, a hipovolemia domina
o quadro clínico, e tanto o hematócrito quanto os níveis de hemoglobina não
refletem o volume de sangue perdido. Surgem sinais de instabilidade vascular
com perdas agudas de 10-15% do volume sanguíneo total. Nesses pacientes, o
problema não é a anemia, mas a hipotensão e redução da perfusão dos órgãos.
Quando ocorre perda súbita de > 30% do volume sanguíneo, o paciente é
incapaz de compensar com os mecanismos habituais de contração vascular e
alterações do fluxo sanguíneo regional. Ele prefere permanecer deitado,
apresentando hipotensão postural e taquicardia. Se a perda de volume sanguíneo
for > 40% (i.e., > 2 L no adulto médio), aparecerão sinais de choque
hipovolêmico, como confusão, dispneia, sudorese, hipotensão e taquicardia (Cap
. 97). Esses pacientes apresentam déficits significativos na perfusão dos órgãos
vitais e necessitam de reposição volêmica imediata.
Na hemólise aguda, os sinais e sintomas dependem do mecanismo que leva
à destruição dos eritrócitos. A hemólise intravascular com liberação de
hemoglobina livre pode estar associada à dor lombar aguda, hemoglobina livre
no plasma e na urina, bem como insuficiência renal. Os sintomas associados à
anemia mais crônica ou gradual dependem da idade do paciente e do suprimento
sanguíneo adequado para órgãos cruciais. Os sintomas associados à anemia
moderada incluem fadiga, perda da energia, dispneia e taquicardia
(particularmente com esforço físico). Todavia, em virtude dos mecanismos
compensatórios intrínsecos que influenciam a curva de dissociação da O2-
hemoglobina, o início gradual da anemia – particularmente em pacientes jovens
– pode não ser acompanhado de sinais ou sintomas, até que a anemia se torne
grave (nível de hemoglobina < 70-80 g/L [7-8 g/dL]). Quando a anemia se
desenvolve no decorrer de um período de vários dias ou semanas, o volume
sanguíneo total apresenta-se normal ou ligeiramente aumentado, e as alterações
no débito cardíaco e no fluxo sanguíneo regional ajudam a compensar a perda
global da capacidade de transporte de O2. As alterações na posição da curva de
dissociação da O2-hemoglobina são responsáveis por parte da resposta
compensatória à anemia. Na anemia crônica, verifica-se uma elevação dos níveis
intracelulares de 2,3-difosfoglicerato, deslocando a curva de dissociação para a
direita e facilitando a liberação de O2. Esse mecanismo compensatório pode
manter um suprimento normal de O2 para os tecidos na presença de um déficit de
20 a 30 g/L (2-3 g/dL) na concentração de hemoglobina. Por fim, uma proteção
adicional do transporte de O2 para os órgãos vitais é alcançada pelo desvio de
sangue de órgãos relativamente ricos em suprimento sanguíneo, particularmente
os rins, o intestino e a pele.
Certos distúrbios encontram-se comumente associados à anemia. Os
estados inflamatórios crônicos (p. ex., infecção, artrite reumatoide, câncer) estão
associados à anemia leve a moderada, enquanto os distúrbios linfoproliferativos,
como a leucemia linfocítica crônica e determinadas outras neoplasias das células
B, podem causar hemólise autoimune.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Anemia
A avaliação do paciente com anemia exige uma cuidadosa anamnese e exame
físico minucioso. Convém avaliar sempre a história nutricional relacionada
com o uso de fármacos ou o consumo de álcool, bem como a história familiar
de anemia. Certas regiões geográficas e origens étnicas estão associadas a
uma maior probabilidade de distúrbio hereditário da hemoglobina ou do
metabolismo intermediário. A deficiência de glicose-6-fosfato-desidrogenase
(G6PD) e certas hemoglobinopatias são observadas mais comumente em
indivíduos do Oriente Médio e afrodescendentes incluindo negros que
apresentam alta frequência de deficiência de G6PD. Outras informações que
podem ser úteis incluem a exposição a determinados agentes tóxicos e
sintomas relacionados com outros distúrbios que costumam estar associados
à anemia. Esses sinais e sintomas incluem sangramento, fadiga, mal-estar,
febre, perda de peso, sudorese noturna e outros sintomas sistêmicos. Os
indícios relativos aos mecanismos da anemia podem ser obtidos no exame
físico pelo achado de infecção, sangue nas fezes, linfadenopatia,
esplenomegalia ou petéquias. A esplenomegalia e a linfadenopatia sugerem
doença linfoproliferativa subjacente, enquanto a presença de petéquias indica
alguma disfunção plaquetária. Os resultados de exames laboratoriais
anteriores são úteis para estabelecer a época de início.
No paciente anêmico, o exame físico pode revelar um batimento
cardíaco vigoroso, pulsos periféricos fortes e sopro sistólico. A pele e as
mucosas poderão se mostrar pálidas se o nível de hemoglobina for < 80 a 100
g/L (8-10 g/dL). Essa parte do exame físico deve concentrar-se nas áreas em
que os vasos estão perto da superfície, como as mucosas, os leitos ungueais e
as pregas palmares. Se a coloração das pregas palmares for mais clara que a
pele circundante com a mão em hiperextensão, o nível de hemoglobina será
habitualmente < 80 g/L (8 g/dL).

AVALIAÇÃO LABORATORIAL
A Tabela 59-1 fornece uma lista dos exames utilizados na investigação
inicial da anemia. O hemograma completo (HC) de rotina é necessário como
parte da avaliação e inclui o nível de hemoglobina, o hematócrito e os índices
eritrocitários: o volume corpuscular médio (VCM), expresso em fentolitros, a
hemoglobina corpuscular média (HCM), em picogramas por célula, e a
concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM) por volume de
eritrócitos, em gramas por litro (Sistema Internacional). O HCM é o índice
menos útil; ele tende a acompanhar o VCM. Os índices eritrocitários são
calculados como mostra a Tabela 59-2, e as variações normais da
hemoglobina e do hematócrito com a idade são apresentadas na Tabela 59-3.
Diversos fatores fisiológicos afetam o hemograma, como idade, sexo,
gravidez, tabagismo e altitude. Podem-se observar valores normais altos da
hemoglobina em homens e mulheres que vivem em grandes altitudes ou que
são fumantes inveterados. As elevações da hemoglobina em decorrência do
tabagismo refletem uma compensação normal devido ao deslocamento do O2
pelo CO na ligação à hemoglobina. Outras informações importantes são
obtidas com a contagem dos reticulócitos e as determinações do suprimento
de ferro, incluindo o nível de ferro sérico, a capacidade total de ligação ao
ferro (TIBC; medida indireta do nível de transferrina) e a ferritina sérica.
Alterações acentuadas nos índices eritrocitários geralmente refletem
distúrbios da maturação ou deficiência de ferro. Uma cuidadosa avaliação do
esfregaço de sangue periférico é importante, e os laboratórios clínicos
frequentemente fornecem uma descrição da morfologia dos eritrócitos e
leucócitos, contagem diferencial e contagem plaquetária. Em pacientes com
anemia grave e anormalidades na morfologia dos eritrócitos e/ou contagens
baixas dos reticulócitos, o aspirado ou a biópsia de medula óssea podem
ajudar a estabelecer o diagnóstico. Outros testes valiosos no diagnóstico de
anemias específicas são discutidos nos capítulos que tratam de cada doença.

TABELA 59-1 ■ Exames laboratoriais no diagnóstico de anemia


I. Hemograma completo (HC)
A. Contagem eritrocitária
1. Hemoglobina
2. Hematócrito
3. Contagem de reticulócitos
B. Índices eritrocitários
1. Volume corpuscular médio (VCM)
2. Hemoglobina corpuscular média (HCM)
3. Concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM)
4. Índice de anisocitose (RDW)
C. Leucograma
1. Contagem diferencial
2. Segmentação nuclear dos neutrófilos
D. Contagem de plaquetas
E. Morfologia celular
1. Tamanho da célula
2. Conteúdo de hemoglobina
3. Anisocitose
4. Poiquilocitose
5. Policromasia
II. Estudos de suprimento de ferro
A. Ferro sérico
B. Capacidade total de ligação ao ferro
C. Ferritina sérica
III.Exame da medula
A. Aspirado
1. Razão M/Ea
2. Morfologia celular
3. Coloração para o ferro
B. Biópsia
1. Celularidade
2. Morfologia
aRazão M/E, razão entre os precursores mieloides e eritroides.

TABELA 59-2 ■ Índices eritrocitários


Índice Valor normal
Volume corpuscular médio (VCM) = (hematócrito × 10)/(contagem de eritrócitos × 106) 90 ± 8 fL
Hemoglobina corpuscular média (HCM) = (hemoglobina × 10)/(contagem de eritrócitos × 106) 30 ± 3 pg
Concentração de hemoglobina corpuscular média = (hemoglobina × 10)/hematócrito ou HCM/VCM 33 ± 2%

TABELA 59-3 ■ Alterações nos valores normais de hemoglobina/hematócrito conforme a idade, o sexo
e a gravidez
Idade/sexo Hemoglobina (g/dL) Hematócrito (%)
Ao nascimento 17 52
Infância 12 36
Adolescência 13 40
Homem adulto 16 (±2) 47 (±6)
Mulher adulta (menstruando) 13 (±2) 40 (±6)
Mulher adulta (pós-menopausa) 14 (±2) 42 (±6)
Durante a gravidez 12 (±2) 37 (±6)
Fonte: De RS Hillman et al: Hematology in Clinical Practice, 5th ed. New York, McGraw-Hill, 2010.

Os componentes do HC também ajudam na classificação da anemia. A


microcitose reflete-se por um VCM inferior ao normal (< 80), enquanto
valores elevados (> 100) indicam macrocitose. A CHCM reflete defeitos na
síntese da hemoglobina (hipocromia). Os contadores celulares automáticos
descrevem o índice de anisocitose (RDW). O VCM (que representa o pico da
curva de distribuição) não é sensível ao aparecimento de pequenas
populações de macrócitos ou micrócitos. Um técnico de laboratório
experiente é capaz de identificar pequenas populações de células grandes ou
pequenas, ou de células hipocrômicas antes do aparecimento de alteração nos
índices eritrocitários.

Esfregaço de sangue periférico O esfregaço de sangue periférico fornece


informações importantes sobre defeitos na produção dos eritrócitos (Cap.
58). Como complemento dos índices eritrocitários, o esfregaço de sangue
periférico também revela a presença de variações no tamanho (anisocitose) e
na forma (poiquilocitose) das células. Em geral, o grau de anisocitose
correlaciona-se com aumento no RDW ou na faixa de tamanho das células. A
poiquilocitose sugere um defeito na maturação dos precursores eritroides na
medula óssea ou a ocorrência de fragmentação dos eritrócitos circulantes. O
esfregaço de sangue periférico também pode revelar a existência de
policromasia – eritrócitos ligeiramente maiores do que o normal e que
exibem uma cor azul-acinzentada à coloração de Wright-Giemsa. Essas
células consistem em reticulócitos liberados prematuramente da medula
óssea, e a sua cor revela a presença de quantidades residuais de RNA
ribossômico. Essas células aparecem na circulação em resposta à estimulação
da EPO ou a alguma lesão estrutural da medula óssea (fibrose, infiltração
medular por células malignas, etc.), resultando em sua liberação desordenada
pela medula. O aparecimento de eritrócitos nucleados, corpúsculos de
Howell-Jolly, células em alvo, células falciformes e outras anormalidades
pode fornecer indícios sobre distúrbios específicos (Figs. 59-3 a 59-11).
FIGURA 59-3 Esfregaço sanguíneo normal (coloração de Wright). Campo de grande aumento
mostrando eritrócitos normais, um neutrófilo e algumas plaquetas. (De RS Hillman et al.: Hematology
in Clinical Practice, 5th ed., New York, McGraw-Hill, 2010.)

FIGURA 59-4 Anemia ferropriva grave. Eritrócitos microcíticos e hipocrômicos menores do que o
núcleo de um linfócito associados a uma acentuada variação de tamanho (anisocitose) e forma
(poiquilocitose). (De RS Hillman et al.: Hematology in Clinical Practice, 5th ed., New York, McGraw-
Hill, 2010.)
FIGURA 59-5 Macrocitose. Os eritrócitos são maiores do que um linfócito pequeno e estão com
conteúdo normal de hemoglobina. Com frequência, os macrócitos exibem uma forma ovalada (macro-
ovalócitos).

FIGURA 59-6 Corpúsculos de Howell-Jolly. Na ausência de um baço funcional, os remanescentes


nucleares não são removidos dos eritrócitos e continuam como pequenas inclusões de cor azul
homogênea na coloração de Wright. (De RS Hillman et al.: Hematology in Clinical Practice, 5th ed.,
New York, McGraw-Hill, 2010.)
FIGURA 59-7 Alterações dos eritrócitos na mielofibrose. A imagem da esquerda mostra uma célula
em forma de lágrima. A imagem da direita mostra um eritrócito nucleado. Essas formas podem ser
observadas na mielofibrose. (De RS Hillman et al.: Hematology in Clinical Practice, 5th ed., New
York, McGraw-Hill, 2010.)

FIGURA 59-8 Células-alvo. Essas células apresentam um aspecto em olho de boi e são observadas na
talassemia e na doença hepática. (De RS Hillman et al.: Hematology in Clinical Practice, 5th ed., New
York, McGraw-Hill, 2010.)
FIGURA 59-9 Fragmentação dos eritrócitos. Os eritrócitos podem tornar-se fragmentados na
presença de corpos estranhos na circulação, como valvas cardíacas mecânicas, ou em caso de lesão
térmica. (De RS Hillman et al.: Hematology in Clinical Practice, 5th ed., New York, McGraw-Hill,
2010.)

FIGURA 59-10 Uremia. Os eritrócitos na uremia podem adquirir diversas projeções em forma de
espinhos pequenas e regularmente espaçadas. Essas células, chamadas de células espiculadas ou
equinócitos, são imediatamente distinguíveis dos acantócitos irregularmente espiculados mostrados na
Figura 59-11.
FIGURA 59-11 Células espiculadas. Essas células são reconhecidas como eritrócitos deformados que
contêm várias projeções semelhantes a espinhos irregularmente distribuídas. As células com essa
anormalidade morfológica também são chamadas de acantócitos. (De RS Hillman et al.: Hematology in
Clinical Practice, 5th ed., New York, McGraw-Hill, 2010.)

Contagem de reticulócitos A contagem precisa dos reticulócitos é essencial


para a classificação inicial da anemia. Os reticulócitos são eritrócitos que
foram recentemente liberados da medula óssea. São identificados pela sua
coloração com corante supravital que precipita o RNA ribossômico (Fig. 59-
12). Esses precipitados aparecem como manchas puntiformes azuis ou pretas
e podem ser contados manualmente ou, na atualidade, pela emissão
fluorescente de corantes que se ligam ao RNA. Esse RNA residual é
metabolizado nas primeiras 24 a 36 horas de vida do reticulócito na
circulação. Em condições normais, a contagem de reticulócitos varia de 1 a
2% e reflete a reposição diária de 0,8 a 1,0% da população circulante de
eritrócitos. O percentual corrigido de reticulócitos ou o número absoluto de
reticulócitos fornece uma medida confiável da produção efetiva de
eritrócitos.
FIGURA 59-12 Reticulócitos. A coloração com azul de metileno demonstra a presença de RNA
residual nos eritrócitos recentemente formados. (De RS Hillman et al.: Hematology in Clinical
Practice, 5th ed., New York, McGraw-Hill, 2010.)

Na classificação inicial da anemia, a contagem de reticulócitos


observada é comparada com a resposta esperada dessas células. Em geral, se
as respostas da EPO e da medula eritroide à anemia moderada (hemoglobina
< 100 g/L [10 g/dL]) estiverem intactas, a taxa de produção dos eritrócitos
aumentará 2 a 3 vezes o normal dentro de 10 dias após o início da anemia.
Na presença de anemia estabelecida, uma resposta dos reticulócitos inferior a
2 a 3 vezes o normal indica uma resposta inadequada da medula óssea.
Para utilizar a contagem de reticulócitos como estimativa da resposta da
medula óssea, é necessário fazer duas correções. A primeira ajusta a
contagem de reticulócitos com base no número reduzido de eritrócitos
circulantes. Na presença de anemia, a porcentagem de reticulócitos pode
estar aumentada, enquanto o número absoluto permanece inalterado. Para
corrigir esse efeito, multiplica-se a porcentagem de reticulócitos pela razão
entre a hemoglobina ou o hematócrito do paciente e o valor esperado da
hemoglobina/hematócrito para a idade e o sexo dele (Tab. 59-4). O valor
obtido fornece uma estimativa da contagem de reticulócitos corrigida para a
presença de anemia. Para converter a contagem de reticulócitos corrigida em
índice de produção medular, é necessário efetuar outra correção, dependendo
da liberação prematura de reticulócitos na circulação. Para essa segunda
correção, examina-se o esfregaço de sangue periférico à procura de
macrócitos policromatófilos.

TABELA 59-4 ■ Cálculo do índice reticulocítico


Correção 1 para a anemia:
Esta correção resulta na contagem de reticulócitos corrigida.
Em uma pessoa cuja contagem dos reticulócitos é de 9%, a hemoglobina, de 7,5 g/dL, e o hematócrito, de 23%, a contagem absoluta dos
reticulócitos = 9 × (7,5/15) (ou × [23/45]) = 4,5%
Nota: Essa correção não é efetuada se a contagem de reticulócitos for expressa em números absolutos (p. ex., 50.000/μL de sangue)
Correção 2 para a sobrevida mais longa dos reticulócitos prematuramente liberados no sangue:
Essa correção resulta no índice reticulocítico.
Em uma pessoa cuja contagem de reticulócitos é de 9%, a hemoglobina, de 7,5 gm/dL, e o hematócrito, de 23%, o índice de produção
de reticulócitos é
(7,5/15)(correção de hemoglobina
= 9 × = 2,25
2(correção do tempo de maturação)

Essas células, que representam reticulócitos liberados prematuramente,


são descritas como “desvio”, e a relação entre o grau de desvio e a
necessidade do fator de correção de desvio é mostrada na Figura 59-13. A
correção é necessária, visto que essas células liberadas prematuramente
sobrevivem como reticulócitos durante > 1 dia, fornecendo, assim, uma
estimativa falsamente elevada da produção diária dos eritrócitos. Se houver
aumento da policromasia, a contagem de reticulócitos, já corrigida para a
anemia, deverá ser novamente corrigida por 2, para considerar o tempo de
maturação prolongado dos reticulócitos. O segundo fator de correção varia de
1 a 3, dependendo da gravidade da anemia. Em geral, utiliza-se simplesmente
uma correção de 2. A Tabela 59-4 apresenta uma correção apropriada. Na
ausência de células policromatófilas no esfregaço periférico, a segunda
correção não é indicada. A contagem de reticulócitos duplamente corrigida
constitui o índice reticulocítico, que fornece uma estimativa da produção
medular com relação ao normal. Em muitos laboratórios hospitalares, a
contagem de reticulócitos é expressa não apenas como porcentagem, mas
também em valor absoluto. Nesse caso, não há necessidade de correção para
a diluição. A Tabela 59-5 fornece um resumo da resposta apropriada da
medula óssea a graus variáveis de anemia.
FIGURA 59-13 Correção da contagem de reticulócitos. Com o objetivo de usar a contagem de
reticulócitos como um indicador da produção efetiva de eritrócitos, o número de reticulócitos precisa
ser corrigido com base no nível de anemia e tempo de sobrevida dos reticulócitos na circulação. As
células eritroides levam aproximadamente 4,5 dias para amadurecer. Com níveis normais de
hemoglobina, os reticulócitos são liberados na circulação e permanecem nesse estágio por cerca de 1
dia. Entretanto, com níveis diferentes de anemia, os reticulócitos (e até mesmo células eritroides mais
imaturas) podem ser liberados prematuramente da medula. A maioria dos pacientes procura
atendimento médico com hematócritos em torno de 25%, e, por conseguinte, utiliza-se comumente um
fator de correção 2, visto que os reticulócitos observados irão permanecer por 2 dias na circulação
antes de perderem seu RNA.

TABELA 59-5 ■ Resposta normal da medula à anemia


Hemoglobina Índice de produção Contagem de reticulócitos
15 g/dL 1 50.000/μL
11 g/dL 2,0-2,5 100.000-150.000/μL
8 g/dL 3,0-4,0 300.000-400.000/μL

A liberação prematura dos reticulócitos normalmente decorre de


aumento na estimulação pela EPO. Entretanto, se houver perda da
integridade do processo de liberação da medula óssea em consequência de
infiltração tumoral, fibrose ou outros distúrbios, o aparecimento de eritrócitos
nucleados ou de macrócitos policromatófilos ainda deverá exigir a segunda
correção dos reticulócitos. A correção do desvio deve ser sempre aplicada a
pacientes com anemia e uma contagem muito elevada de reticulócitos, para
obter um índice verdadeiro da produção efetiva dos eritrócitos. Os pacientes
com anemia hemolítica crônica grave podem aumentar a sua produção de
eritrócitos até 6 a 7 vezes. Por isso, essa medida por si só confirma uma
resposta apropriada à EPO, bem como a presença de função normal da
medula óssea e ferro disponível suficiente para suprir as demandas para a
formação de novos eritrócitos. Se o índice reticulocítico for < 2 na presença
de anemia estabelecida, isso significa a existência de um defeito na
proliferação medular ou na maturação das células eritroides.

Testes de suprimento e armazenamento de ferro As medidas laboratoriais


que refletem a disponibilidade de ferro para a síntese da hemoglobina
incluem o ferro sérico, a TIBC e a porcentagem de saturação da transferrina.
A porcentagem de saturação da transferrina é obtida ao se dividir o nível
sérico de ferro (× 100) pela TIBC. Os níveis séricos normais de ferro variam
de 9 a 27 μmol/L (50-150 μg/dL), enquanto a TIBC normal é de 54 a 64
μmol/L (300-360 μg/dL). A saturação da transferrina varia normalmente de
25 a 50%. Uma variação diurna nos níveis séricos de ferro resulta em
variação na porcentagem de saturação da transferrina. Utiliza-se o nível
sérico de ferritina para avaliar as reservas corporais totais de ferro. Os
homens adultos apresentam níveis séricos de ferritina de cerca de 100 μg/L
em média, correspondendo a reservas de ferro de cerca de 1 grama. As
mulheres adultas têm níveis séricos mais baixos de ferritina, de 30 μg/L em
média, refletindo reservas menores de ferro (cerca de 300 mg). Níveis séricos
de ferritina de 10 a 15 μg/L refletem depleção das reservas corporais de ferro.
Contudo, a ferritina também é um reagente da fase aguda que, na presença de
inflamação aguda ou crônica, pode aumentar várias vezes acima dos valores
basais. Como regra, um nível sérico de ferritina > 200 μg/L indica a
existência de pelo menos alguma reserva tecidual de ferro.

Exame da medula óssea O aspirado ou a biópsia por agulha da medula óssea


podem ser úteis na avaliação de alguns pacientes com anemia. Nos pacientes
com anemia hipoproliferativa e reserva de ferro normal, o exame da medula
óssea é indicado. Esse exame pode diagnosticar distúrbios primários da
medula, como a mielofibrose, um defeito na maturação dos eritrócitos ou a
presença de doença infiltrativa (Figs. 59-14 a 59-16). A ocorrência de
aumento ou diminuição de uma linhagem celular em comparação com outra
(mieloide versus eritroide) é detectada pela contagem diferencial das células
nucleadas em um esfregaço da medula óssea (a razão mieloide/eritroide
[M/E]). Um paciente com anemia hipoproliferativa (ver adiante) e índice
reticulocítico < 2 irá apresentar uma razão M/E de 2 ou 3:1. Em
contrapartida, os pacientes com doença hemolítica e índice de produção > 3
terão uma razão M/E de pelo menos 1:1. Os distúrbios de maturação são
identificados a partir da discrepância entre a razão M/E e o índice
reticulocítico (ver adiante). O esfregaço ou a biópsia da medula óssea podem
ser corados para verificar se há reservas de ferro ou a presença de ferro nos
eritrócitos em desenvolvimento. O ferro armazenado encontra-se na forma de
ferritina ou hemossiderina. Nos esfregaços de medula óssea adequadamente
preparados, podem-se observar pequenos grânulos de ferritina na imersão em
óleo em 20 a 40% dos eritroblastos em desenvolvimento. Essas células
denominam-se sideroblastos.

FIGURA 59-14 Medula óssea normal. Visão em pequeno aumento de uma secção de biópsia de
medula óssea normal corada por hematoxilina e eosina (H&E). Observar que os elementos celulares
nucleados são responsáveis por cerca de 40-50%, enquanto a gordura (áreas claras) responde por cerca
de 50-60% da área. (De RS Hillman et al.: Hematology in Clinical Practice, 5th ed., New York,
McGraw-Hill, 2010.)
FIGURA 59-15 Hiperplasia eritroide. Essa medula apresenta um aumento na fração de células na
linhagem eritroide, como se pode ver quando a medula normal compensa a perda de sangue aguda ou a
hemólise. A razão mieloide/eritroide (M/E) é de cerca de 1:1. (De RS Hillman et al.: Hematology in
Clinical Practice, 5th ed., New York, McGraw-Hill, 2010.)

FIGURA 59-16 Hiperplasia mieloide. Essa medula apresenta um aumento na fração de células na
linhagem mieloide ou granulocítica, como se pode observar em medula normal que responde à
infecção. A razão mieloide/eritroide (M/E) é > 3:1. (De RS Hillman et al.: Hematology in Clinical
Practice, 5th ed., New York, McGraw-Hill, 2010.)

OUTRAS MEDIDAS LABORATORIAIS


Outros exames laboratoriais podem ser valiosos na confirmação de
diagnósticos específicos. Ver os detalhes desses exames e suas aplicações
nos distúrbios específicos nos Capítulos 93 a 97.

DEFINIÇÃO E CLASSIFICAÇÃO DA ANEMIA


Classificação inicial da anemia A classificação funcional da anemia tem três
categorias principais: (1) defeitos na produção medular (hipoproliferação), (2)
defeitos na maturação dos eritrócitos (eritropoiese ineficaz) e (3) diminuição da
sobrevida dos eritrócitos (perda de sangue/hemólise). Essa classificação é
apresentada na Figura 59-17. Tipicamente, a anemia hipoproliferativa é
observada em associação a um baixo índice reticulocítico, juntamente com
pouca ou nenhuma alteração na morfologia dos eritrócitos (anemia normocítica
normocrômica) (Cap. 93). Os distúrbios da maturação geralmente exibem um
aumento discreto a moderado do índice reticulocítico, acompanhado de índices
eritrocitários macrocíticos (Cap. 95) ou microcíticos (Caps. 93, 94). O aumento
da destruição dos eritrócitos em consequência de hemólise resulta na elevação de
pelo menos 3 vezes o normal do índice reticulocítico (Cap. 96), contanto que
haja ferro suficiente. Em geral, a anemia por sangramento não resulta em índices
de produção maiores que 2,0 a 2,5 vezes o normal, devido às limitações à
expansão da medula eritroide pela disponibilidade do ferro (Cap. 97).
FIGURA 59-17 Classificação fisiológica da anemia. HC, hemograma completo.

No primeiro ponto do algoritmo da classificação da anemia, um índice


reticulocítico > 2,5 indica maior probabilidade de hemólise. Um índice
reticulocítico < 2 indica anemia hipoproliferativa ou distúrbio da maturação.
Com frequência, essas duas últimas possibilidades podem ser diferenciadas pelos
índices eritrocitários, exame do esfregaço de sangue periférico ou exame da
medula óssea. Se os índices eritrocitários estiverem normais, a anemia será
quase certamente de natureza hipoproliferativa. Os distúrbios da maturação
caracterizam-se pela produção ineficaz dos eritrócitos e baixo índice
reticulocítico. No esfregaço de sangue periférico, observam-se eritrócitos com
morfologia bizarra – macrócitos ou micrócitos hipocrômicos. Na presença de
anemia hipoproliferativa, não há hiperplasia eritroide na medula óssea, enquanto
os pacientes com produção ineficaz dos eritrócitos apresentam hiperplasia
eritroide e razão M/E < 1:1.

Anemias hipoproliferativas Pelo menos 75% dos casos de anemia são de


natureza hipoproliferativa. A anemia hipoproliferativa reflete insuficiência
medular absoluta ou relativa, em que a medula eritroide não prolifera
apropriadamente para o grau de anemia. A maioria das anemias
hipoproliferativas é causada por deficiência leve a moderada de ferro ou
inflamação. A anemia hipoproliferativa pode resultar de dano à medula óssea,
deficiência de ferro ou estimulação inadequada pela EPO. A última pode refletir
a ocorrência de disfunção renal, supressão da síntese da EPO por citocinas
inflamatórias, como a interleucina 1, ou necessidade tecidual reduzida de O2 em
consequência de doença metabólica, como o hipotireoidismo. Apenas em certas
ocasiões é que a medula óssea se mostra incapaz de produzir eritrócitos em uma
taxa normal, e essa situação é mais prevalente em pacientes com insuficiência
renal. Com diabetes melito ou mieloma, a deficiência de EPO pode ser mais
acentuada do que seria esperado pelo grau de insuficiência renal. Em geral, as
anemias hipoproliferativas caracterizam-se pela existência de eritrócitos
normocíticos e normocrômicos, embora possam ser observadas células
microcíticas e hipocrômicas com deficiência leve de ferro ou doença
inflamatória crônica de longa duração. Os testes laboratoriais essenciais para
distinguir as várias formas de anemia hipoproliferativa incluem os níveis séricos
de ferro e a capacidade de ligação ao ferro, a avaliação das funções renal e da
tireoide, a biópsia ou o aspirado de medula óssea para detectar a presença de
lesão medular ou doença infiltrativa, e a ferritina sérica para a avaliação das
reservas de ferro. A coloração da medula óssea para ferro irá determinar o
padrão de distribuição de ferro. Os pacientes com anemia de inflamação aguda
ou crônica exibem um padrão distinto de ferro sérico (baixos valores), TIBC
(normal ou baixa), porcentagem de saturação da transferrina (baixa) e ferritina
sérica (normal ou elevada). Essas alterações nos valores de ferro surgem devido
à hepcidina, o hormônio regulador do ferro, que é produzido pelo fígado e que
está aumentado na presença de inflamação (Cap. 93). Observa-se um padrão
distinto de resultados na deficiência de ferro leve a moderada (baixos níveis
séricos de ferro, TIBC elevada, baixa porcentagem de saturação da transferrina e
níveis séricos baixos de ferritina) (Cap. 93). A lesão da medula óssea por
fármacos, a presença de doença infiltrativa, como leucemia ou linfoma, ou a
aplasia medular são diagnosticadas com base na morfologia das células no
sangue periférico e na medula óssea. Em caso de doença infiltrativa ou fibrose, é
necessária uma biópsia da medula óssea.

Distúrbio de maturação A presença de anemia com índice reticulocítico


inapropriadamente baixo, macro ou microcitose no esfregaço e índices
eritrocitários anormais sugere um distúrbio de maturação. Os distúrbios de
maturação dividem-se em duas categorias: defeitos da maturação nuclear,
associados à macrocitose, e defeitos da maturação citoplasmática, associados à
microcitose e hipocromia, habitualmente em decorrência de defeitos na síntese
da hemoglobina. O índice reticulocítico inapropriadamente baixo reflete a
eritropoiese ineficaz que ocorre em consequência da destruição dos eritroblastos
em desenvolvimento no interior da medula óssea. O exame da medula óssea
revela hiperplasia eritroide.
Os defeitos da maturação nuclear resultam de deficiência de vitamina B12
ou de ácido fólico, lesão por fármacos ou mielodisplasia. Os fármacos que
interferem na síntese do DNA celular, como o metotrexato ou os agentes
alquilantes, podem provocar um defeito na maturação nuclear. O álcool
isoladamente também é capaz de produzir macrocitose ou grau variável de
anemia; contudo essa situação geralmente está associada à deficiência de ácido
fólico. As medidas laboratoriais do ácido fólico e da vitamina B12 são
fundamentais não apenas para identificar a deficiência da vitamina específica,
como também pelo fato de refletirem diferentes mecanismos patogênicos (Cap.
95).
Os defeitos da maturação citoplasmática resultam da deficiência grave de
ferro ou de anormalidades na síntese da globina ou do heme. A deficiência de
ferro ocupa uma posição incomum na classificação das anemias. Se a anemia
ferropriva for leve a moderada, a proliferação medular eritroide é reduzida, e a
anemia é então classificada como hipoproliferativa. Entretanto, se a anemia for
grave e prolongada, a medula eritroide se tornará hiperplásica apesar do
suprimento inadequado de ferro, sendo a anemia classificada como causada por
eritropoiese ineficaz com defeito da maturação citoplasmática. Em ambos os
casos, um índice reticulocítico inapropriadamente baixo, a microcitose e a
observação de um padrão clássico nos valores do ferro tornam o diagnóstico
evidente e permitem diferenciar facilmente a deficiência de ferro de outros
defeitos da maturação citoplasmática, como as talassemias. Os defeitos na
síntese do heme, diferentemente da síntese da globina, são menos comuns e
podem ser adquiridos ou hereditários (Cap. 409). Em geral, as anormalidades
adquiridas são associadas à mielodisplasia, podem resultar em anemia
macrocítica ou microcítica e, com frequência, estão associadas a sobrecarga
mitocondrial de ferro. Nesses casos, o ferro é retido pelas mitocôndrias das
células eritroides em desenvolvimento, porém não incorporado ao heme. As
mitocôndrias incrustadas com ferro circundam o núcleo da célula eritroide,
formando um anel. Com base no achado distinto dos chamados sideroblastos em
anel na coloração para ferro medular, estabelece-se o diagnóstico de anemia
sideroblástica – refletindo quase sempre mielodisplasia. Novamente, os exames
dos parâmetros de ferro são úteis no diagnóstico diferencial desses pacientes.

Perda de sangue/anemia hemolítica Diferentemente das anemias associadas a


um índice reticulocítico inapropriadamente baixo, a hemólise está associada a
índices de produção de eritrócitos ≥ 2,5 vezes o normal. A eritropoiese
estimulada reflete-se no esfregaço periférico pelo aparecimento de número
aumentado de macrócitos policromatófilos. Raramente, será indicado o exame
da medula óssea se houver um aumento apropriado no índice reticulocítico. Os
índices eritrocitários são geralmente normocíticos ou ligeiramente macrocíticos,
refletindo o aumento do número de reticulócitos. A perda aguda de sangue não
está associada a aumento do índice reticulocítico, devido ao tempo necessário
para aumentar a produção de EPO e, subsequentemente, a proliferação medular (
Cap. 97). A perda subaguda de sangue pode estar associada à reticulocitose
moderada. A anemia da perda sanguínea crônica manifesta-se mais
frequentemente na forma de deficiência de ferro do que com um quadro de
produção aumentada de eritrócitos.
A avaliação da anemia por perda de sangue não costuma ser difícil. A
maioria dos problemas surge quando o paciente apresenta aumento no índice de
produção dos eritrócitos em decorrência de um episódio de perda aguda de
sangue que não foi reconhecido. A causa da anemia e do aumento na produção
de eritrócitos pode não ser óbvia. A confirmação de um estado de recuperação
pode exigir observação durante um período de 2 a 3 semanas, quando a
concentração de hemoglobina deverá aumentar, com queda no índice
reticulocítico (Cap. 97).
A doença hemolítica, embora dramática, está entre as formas menos
comuns de anemia. A capacidade de manter um elevado índice reticulocítico
reflete a capacidade da medula eritroide de compensar a hemólise e, no caso da
hemólise extravascular, a reciclagem eficiente do ferro dos eritrócitos destruídos
para sustentar a produção de eritrócitos. Na hemólise intravascular, como a
hemoglobinúria paroxística noturna, a perda de ferro pode limitar a resposta da
medula. O nível de resposta depende da gravidade da anemia e da natureza da
doença subjacente.
As hemoglobinopatias, como a anemia falciforme e as talassemias, exibem
um quadro misto. O índice reticulocítico pode estar elevado, porém é
inapropriadamente baixo para o grau de hiperplasia eritroide medular (Cap. 94).
As anemias hemolíticas manifestam-se de diferentes maneiras. Algumas
surgem subitamente como episódio agudo e autolimitado de hemólise intra ou
extravascular, um padrão de apresentação frequentemente observado em
pacientes com hemólise autoimune ou com defeitos hereditários da via de
Embden-Meyerhof ou a da glutationa redutase. Os pacientes com distúrbios
hereditários da hemoglobina ou da membrana dos eritrócitos geralmente
apresentam história clínica típica do processo mórbido desde a infância. Os
pacientes com doença hemolítica crônica, como a esferocitose hereditária,
podem não apresentar anemia, exibindo complicações pelo aumento prolongado
da destruição dos eritrócitos, como cálculos biliares sintomáticos ou
esplenomegalia. Os pacientes com hemólise crônica também são suscetíveis a
crises aplásicas se um processo infeccioso interromper a produção de eritrócitos.
O diagnóstico diferencial de um episódio agudo ou crônico de hemólise
exige cuidadosa integração entre a história familiar, o padrão de apresentação
clínica e – se a doença for congênita ou adquirida – um exame cuidadoso do
esfregaço de sangue periférico. O diagnóstico preciso pode requerer exames
laboratoriais especializados adicionais, como a eletroforese da hemoglobina ou
rastreamento das enzimas eritrocitárias. Os defeitos adquiridos da sobrevida dos
eritrócitos com frequência são mediados imunologicamente e exigem um teste
da antiglobulina direto ou indireto, ou título das crioaglutininas para detectar a
presença de anticorpos hemolíticos ou de destruição dos eritrócitos mediada pelo
complemento (Cap. 96).

TRATAMENTO
Anemia
Um princípio importante é iniciar o tratamento da anemia leve a moderada só depois do estabelecimento de
um diagnóstico específico. Raramente, em uma situação aguda, a anemia pode ser grave a ponto de exigir
transfusão de hemácias antes do estabelecimento do diagnóstico. Independentemente de a anemia ser de
início agudo ou gradual, a escolha do tratamento apropriado é determinada pela(s) causa(s) documentada(s)
da anemia. Com frequência, a etiologia da anemia é multifatorial. Assim, por exemplo, um paciente com
artrite reumatoide grave que utilizou anti-inflamatórios pode apresentar anemia hipoproliferativa associada
à inflamação crônica, bem como perda crônica de sangue devido à ocorrência de hemorragia digestiva
intermitente. Em todas as circunstâncias, é importante avaliar por completo o estado do paciente em relação
ao ferro antes e no decorrer do tratamento de qualquer anemia. A transfusão é discutida no Capítulo 109;
o tratamento com ferro é discutido no Capítulo 93; o tratamento da anemia megaloblástica é
discutido no Capítulo 95; o tratamento de outras entidades é discutido em seus respectivos capítulos
(anemia falciforme, Capítulo 94; anemia hemolítica, Capítulo 96; anemia aplásica e mielodisplasia, C
apítulo 98).
As opções terapêuticas para o tratamento das anemias aumentaram notavelmente nos últimos 30 anos.
A terapia com hemocomponentes está disponível e é segura. A EPO recombinante como adjuvante do
tratamento da anemia transformou a vida dos pacientes com insuficiência renal crônica submetidos à diálise
e reduziu as necessidades de transfusão dos pacientes anêmicos portadores de câncer que estão recebendo
quimioterapia. Por fim, os pacientes com distúrbios hereditários da síntese de globina ou mutações no gene
da globina, como a anemia falciforme, poderão ser beneficiados com a introdução bem-sucedida da terapia
gênica (Cap. 458).
POLICITEMIA
A policitemia é definida como um aumento da hemoglobina acima do normal.
Esse aumento pode ser real ou apenas aparente, devido a uma diminuição do
volume plasmático (policitemia espúria ou relativa). O termo eritrocitose pode
ser utilizado como sinônimo de policitemia; todavia alguns fazem uma distinção
entre eles: a eritrocitose implica na documentação de um aumento da massa
eritrocitária, enquanto a policitemia refere-se a qualquer aumento dos eritrócitos.
Com frequência, os pacientes com policitemia são detectados em decorrência do
achado casual de níveis elevados de hemoglobina ou do hematócrito. Em geral,
surge a preocupação de que o nível de hemoglobina possa estar anormalmente
elevado quando atinge 170 g/L (17 g/dL) em homens e 150 g/L (15 g/dL) em
mulheres. Níveis de hematócrito > 50% nos homens ou > 45% nas mulheres
podem ser anormais. Os valores do hematócrito > 60% em homens ou > 55% em
mulheres estão quase sempre associados a um aumento da massa eritrocitária.
Tendo em vista o fato de que o equipamento que quantifica os parâmetros
eritrocitários mede, na realidade, a concentração de hemoglobina e calcula o
hematócrito, o nível de hemoglobina pode ser considerado o melhor índice.
Os aspectos da história clínica que se mostram úteis no diagnóstico
diferencial incluem história de tabagismo, residência atual em grandes altitudes
ou história clínica de uso de diuréticos, cardiopatia congênita, apneia do sono ou
doença pulmonar crônica.
Os pacientes com policitemia podem ser assintomáticos ou apresentar
sintomas relacionados ao aumento da massa eritrocitária ou o processo mórbido
subjacente que leva ao aumento da massa de eritrócitos. Os sintomas dominantes
em decorrência do aumento da massa eritrocitária estão relacionados com
hiperviscosidade e trombose (venosa e arterial), visto que a viscosidade
sanguínea aumenta de modo logarítmico com hematócritos > 55%. As
manifestações incluem sintomas neurológicos como vertigem, zumbido, cefaleia
e perturbações visuais. Com frequência, há hipertensão. Pacientes com
policitemia vera podem apresentar prurido aquagênico, sintomas relacionados a
hepatoesplenomegalia, facilidade para desenvolver equimose, epistaxe ou
sangramento gastrintestinal. É comum a ocorrência de úlcera péptica. Tais
pacientes também podem apresentar isquemia digital, síndrome de Budd-Chiari,
trombose venosa hepática ou esplênica/mesentérica. Os pacientes com
hipoxemia podem manifestar cianose com esforço mínimo ou cefaleia, redução
da acuidade mental e fadiga.
Em geral, o exame físico revela uma aparência pletórica. A esplenomegalia
favorece a policitemia vera como diagnóstico (Cap. 99). A presença de cianose
ou evidências de shunt direita-esquerda sugerem uma cardiopatia congênita que
se manifesta no adulto, particularmente a tetralogia de Fallot ou síndrome de
Eisenmenger (Cap. 264). O aumento da viscosidade sanguínea eleva a pressão
arterial pulmonar; a hipoxemia pode resultar em aumento da resistência vascular
pulmonar. Em seu conjunto, esses fatores podem provocar cor pulmonale.
A policitemia pode ser espúria (relacionada com diminuição do volume
plasmático; síndrome de Gaisbock), de origem primária ou secundária. As
causas secundárias são todas mediadas pela EPO: nível apropriado e
fisiologicamente adaptado, baseado na hipoxia tecidual (doença pulmonar,
grandes altitudes, intoxicação por CO, hemoglobinopatia de alta afinidade) ou
superprodução anormal (cistos renais, estenose da artéria renal, tumores com
produção ectópica de EPO). Uma forma familiar rara de policitemia está
associada a níveis normais de EPO, porém com receptores de EPO hiper-
responsivos devido a mutações.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Policitemia
Como mostra a Figura 59-18, a primeira etapa é documentar a presença de
aumento da massa eritrocitária utilizando o princípio da diluição isotópica
mediante a administração de hemácias autólogas marcadas com Cr51 do
paciente e determinar a radioatividade do sangue em 2 horas. Se a massa
eritrocitária estiver normal (< 36 mL/kg em homens; < 32 mL/kg em
mulheres), pode-se estabelecer o diagnóstico de policitemia espúria ou
relativa. Se a massa eritrocitária estiver aumentada (> 36 mL/kg em homens;
> 32 mL/kg em mulheres), será necessário determinar os níveis séricos de
EPO. Se os níveis de EPO estiverem baixos ou indetectáveis, será mais
provável que o paciente tenha policitemia vera. Uma mutação em JAK2
(Val617Phe), um membro essencial da via de sinalização intracelular de
citocinas, pode ser encontrada em 90 a 95% dos pacientes com policitemia
vera. Muitos dos pacientes portadores dessa mutação JAK2 específica
apresentam mutações no éxon 12. Por uma questão prática, poucos centros
determinam a massa eritrocitária na presença de nível de hemoglobina
elevado. A investigação rápida consiste em medir os níveis de EPO, verificar
a presença da mutação JAK2 e efetuar uma ultrassonografia de abdome para
avaliar o tamanho do baço. Os exames que corroboram o diagnóstico de
policitemia vera incluem contagem elevada de leucócitos, contagem absoluta
aumentada de basófilos e trombocitose.

FIGURA 59-18 Abordagem ao diagnóstico diferencial de pacientes com hemoglobina elevada


(possível policitemia). AV, atrioventricular; DPOC, doença pulmonar obstrutiva crônica; TC,
tomografia computadorizada; EPO, eritropoietina; Ht, hematócrito; Hb, hemoglobina.

Se os níveis séricos de EPO estiverem elevados, é necessário distinguir


se a elevação representa uma resposta fisiológica à hipoxia ou se está
relacionada com a produção autônoma de EPO. Nos pacientes com baixa
saturação de O2 arterial (< 92%), deve-se efetuar uma avaliação adicional à
procura de cardiopatia ou doença pulmonar, se não estiverem residindo em
grandes altitudes. Os pacientes fumantes com saturação normal de O2 podem
apresentar níveis elevados de EPO, devido ao deslocamento do O2 pelo CO.
Se os níveis de carboxiemoglobina (COHb) estiverem elevados, o
diagnóstico será de “policitemia do fumante”. Esses pacientes devem ser
aconselhados a abandonar o tabagismo. Os que não conseguem fazê-lo irão
necessitar de flebotomia para controlar a policitemia. Os pacientes com
saturação normal de O2 que não fumam apresentam hemoglobina anormal,
que não libera O2 para os tecidos (avaliada pelo achado de hemoglobina de
alta afinidade pelo O2), ou possuem uma fonte de produção de EPO que não
está respondendo à inibição normal por feedback. Qualquer avaliação
adicional é determinada pelo diagnóstico diferencial de neoplasias produtoras
de EPO. Hepatoma, leiomioma uterino e câncer ou cistos renais são
detectáveis na tomografia computadorizada abdominopélvica. Os
hemangioblastomas cerebelares podem produzir EPO, porém estão
associados a sinais e sintomas neurológicos e não relacionados à policitemia
na apresentação.

LEITURAS ADICIONAIS
Hillman RS et al: Hematology in Clinical Practice, 5th ed. New York, McGraw-
Hill, 2010.
McMullin MF et al: Guidelines for the diagnosis, investigation and management
of polycythaemia/erythrocytosis. Br J Haematol 130:174, 2005.
Sankaran VG, Weiss MJ: Anemia: Progress in molecular mechanisms and
therapies. Nat Med 21:221, 2015.
60
Distúrbios de granulócitos e monócitos
Steven M. Holland, John I. Gallin

Os leucócitos são as principais células que compõem as respostas inflamatórias e


imunes, e incluem neutrófilos, linfócitos T e B, células natural killer (NK),
monócitos, eosinófilos e basófilos. Essas células desempenham funções
específicas, como a produção de anticorpos pelos linfócitos B ou a destruição de
bactérias pelos neutrófilos; todavia, não foi possível estabelecer por completo o
papel exato dos tipos celulares em nenhuma doença infecciosa isolada. Por
conseguinte, embora os neutrófilos sejam classicamente considerados
fundamentais na defesa do hospedeiro contra bactérias, eles também podem
desempenhar um importante papel na defesa contra infecções virais. Ver
também Capítulo A5, “Atlas de hematologia”.
O sangue distribui os leucócitos para os vários tecidos a partir da medula
óssea, onde são produzidos. As contagens normais dos leucócitos no sangue
circulante são de 4,3-10,8 × 109/L, com os neutrófilos representando 45 a 74%
das células; as células em bastão, 0 a 4%; os linfócitos, 16 a 45%; os monócitos,
4 a 10%; os eosinófilos, 0 a 7%; e os basófilos, 0 a 2%. A variação observada
entre os indivíduos e entre os diferentes grupos étnicos pode ser substancial, com
menor número de leucócitos em determinados grupos étnicos negros. Os
diferentes leucócitos originam-se de uma célula-tronco comum na medula óssea.
Cerca de 75% das células nucleadas da medula óssea estão comprometidas com
a produção de leucócitos. A maturação dos leucócitos na medula óssea encontra-
se sob o controle regulador de diversos fatores, conhecidos como fatores
estimuladores das colônias (CSFs) e interleucinas (ILs). Como uma alteração no
número e no tipo de leucócitos está frequentemente associada a processos
mórbidos, a contagem total dos leucócitos (células por μL) e as contagens
diferenciais fornecem informações importantes. Este capítulo trata dos
neutrófilos, dos monócitos e dos eosinófilos. Os linfócitos e os basófilos são
discutidos nos Capítulos 342 e 346, respectivamente.
NEUTRÓFILOS
MATURAÇÃO
A Figura 60-1 fornece um resumo dos eventos importantes na vida dos
neutrófilos. Nos humanos normais, os neutrófilos são produzidos apenas na
medula óssea. Estima-se que o número mínimo de células-tronco necessário para
manter a hematopoiese seja de 400 a 500 em qualquer momento. Os monócitos
do sangue circulante, os macrófagos teciduais e as células do estroma nos
humanos produzem CSFs, hormônios essenciais para o crescimento dos
monócitos e dos neutrófilos na medula óssea. O sistema hematopoiético não
apenas produz neutrófilos em número suficiente (cerca de 1,3 × 1011 células/dia
em um indivíduo com 80 kg) para desempenhar funções fisiológicas, como
também dispõe de uma grande reserva na medula óssea que pode ser mobilizada
em resposta à inflamação ou infecção. Um aumento do número de neutrófilos no
sangue circulante é denominado neutrofilia, enquanto a presença de células
imaturas é designada como desvio para a esquerda. A redução do número de
neutrófilos no sangue circulante é chamada de neutropenia.

FIGURA 60-1 Diagrama dos eventos na produção e recrutamento de neutrófilos e na inflamação. Os


quatro sinais principais da inflamação (rubor, tumor, calor e dor) estão indicados, assim como as interações
dos neutrófilos com outras células e citocinas. G-CSF, fator estimulador das colônias de granulócitos; IL,
interleucina; PMN, neutrófilos polimorfonucleares (leucócitos); TNF-α, fator de necrose tumoral α.
Os neutrófilos e monócitos evoluem a partir de células-tronco pluripotentes,
sob a influência de citocinas e CSFs (Fig. 60-2). A fase de proliferação até o
estágio de metamielócito leva cerca de 1 semana, enquanto a de maturação do
metamielócito até o neutrófilo maduro requer outra semana. O mieloblasto é o
primeiro precursor celular reconhecível, e é seguido pelo promielócito. O
promielócito evolui quando são produzidos os grânulos lisossômicos clássicos,
chamados grânulos primários ou azurófilos. Os grânulos primários contêm
hidrolases, elastase, mieloperoxidase, catepsina G e proteínas catiônicas, bem
como proteína bactericida e de aumento da permeabilidade, que é importante na
destruição das bactérias Gram-negativas. Os grânulos azurófilos também contêm
defensinas, uma família de polipeptídeos ricos em cisteína, com ampla atividade
antimicrobiana contra bactérias, fungos e certos vírus com envoltório. O
promielócito divide-se para produzir o mielócito, célula responsável pela síntese
dos grânulos específicos ou secundários, que contêm constituintes peculiares
(específicos), como lactoferrina, proteína de ligação à vitamina B12,
componentes de membrana da oxidase do fosfato de dinucleotídeo de adenina-
nicotinamida reduzido (NADPH), necessária à produção de peróxido de
hidrogênio, histaminase e receptores de certos quimiotáticos e fatores
promotores da aderência (CR3), bem como receptores do componente da
membrana basal, a laminina. Os grânulos secundários não contêm hidrolases
ácidas e, por isso, não são lisossomos clássicos. O acondicionamento do
conteúdo dos grânulos secundários durante a mielopoiese é controlado por
CCAAT/proteína de ligação intensificadora ε. O conteúdo dos grânulos
secundários é prontamente liberado no meio extracelular, sendo sua mobilização
importante na modulação da inflamação. Durante os estágios finais da
maturação, não ocorre mais divisão celular, a célula passa pelo estágio de
metamielócito e, a seguir, de neutrófilo em bastão, com núcleo em forma de
salsicha (Fig. 60-3). Quando a célula em bastão amadurece, o núcleo assume
uma configuração lobulada. Em condições normais, o núcleo dos neutrófilos
contém até quatro segmentos (Fig. 60-4). A segmentação excessiva (> 5 lóbulos
nucleares) pode ser uma manifestação de deficiência de folato ou vitamina B12
ou da síndrome da neutropenia congênita denominada VHIM (verrugas,
hipogamaglobulinemia, infecções e mielocatexia), descrita adiante. A anomalia
de Pelger-Hüet (Fig. 60-5), um caráter hereditário dominante benigno e de
ocorrência incomum, resulta em neutrófilos com núcleos bilobulados distintos
que devem ser diferenciados das formas em bastão. Os núcleos bilobulados
adquiridos, pseudoanomalia de Pelger-Hüet, podem ocorrer em infecções agudas
ou em síndromes mielodisplásicas. O papel fisiológico do núcleo multilobulado
normal dos neutrófilos é desconhecido, entretanto é possível que permita uma
grande deformação da célula durante a sua migração dos tecidos para os locais
de inflamação.

FIGURA 60-2 Estágios de desenvolvimento do neutrófilo. O fator estimulador das colônias de


granulócitos (G-CSF) e o fator estimulador das colônias de granulócitos-macrófagos (GM-CSF) são
cruciais para esse processo. As características celulares de identificação e os marcadores de superfície
celular específicos estão listados para cada estágio de maturação.
FIGURA 60-3 Neutrófilo em bastão com corpúsculo de Döhle. O neutrófilo com núcleo em forma de
salsicha no centro do campo é um bastão. Os corpúsculos de Döhle consistem em áreas não granulares
distintas, de coloração azul, encontradas na periferia do citoplasma dos neutrófilos nas infecções e em
outros estados tóxicos. Representam grupos de retículo endoplasmático rugoso.
FIGURA 60-4 Granulócito normal. O granulócito normal possui um núcleo segmentado, com cromatina
densa e aglomerada; os grânulos neutrofílicos finos estão dispersos por todo o citoplasma.
FIGURA 60-5 Anomalia de Pelger-Hüet. Nesse distúrbio benigno, os granulócitos são, em sua maioria,
bilobulados. Com frequência, o núcleo possui uma aparência de óculos, ou configuração em pince-nez.

Na infecção bacteriana aguda grave, observam-se, em certas ocasiões,


grânulos citoplasmáticos proeminentes nos neutrófilos, denominados
granulações tóxicas. As granulações tóxicas consistem em grânulos azurófilos
imaturos ou de coloração anormal. Podem-se observar inclusões citoplasmáticas,
também denominadas corpúsculos de Döhle (Fig. 60-3), durante uma infecção;
elas são fragmentos de retículo endoplasmático rico em ribossomos. Com
frequência, são observados grandes vacúolos neutrofílicos na infecção bacteriana
aguda, os quais provavelmente representam a membrana que sofreu pinocitose
(interiorizada).
Os neutrófilos exercem funções heterogêneas. Foram desenvolvidos
anticorpos monoclonais que reconhecem apenas um subgrupo de neutrófilos
maduros. O significado da heterogeneidade dos neutrófilos permanece
desconhecido.
A morfologia dos eosinófilos e basófilos é mostrada na Figura 60-6.
FIGURA 60-6 Eosinófilo (à esquerda) e basófilo (à direita) normais. O eosinófilo contém grandes
grânulos de cor-de-laranja e, em geral, um núcleo bilobulado. O basófilo possui grandes grânulos
pretos/roxos, que preenchem a célula e ocultam o núcleo.

LIBERAÇÃO MEDULAR E COMPARTIMENTOS CIRCULANTES


Os leucócitos da medula óssea são mobilizados e liberados no sangue, em um
estado não estimulado, por sinais específicos, incluindo IL-1, fator de necrose
tumoral α (TNF-α), CSFs, fragmentos do complemento e quimiocinas. Em
condições normais, cerca de 90% do reservatório de neutrófilos encontra-se na
medula óssea, enquanto 2 a 3% estão na circulação, e o restante permanece nos
tecidos (Fig. 60-7).
FIGURA 60-7 Distribuição dos neutrófilos e a sua cinética entre os diferentes reservatórios anatômicos e
funcionais.

O reservatório circulante está em dois compartimentos dinâmicos: um


compartimento de fluxo livre e outro marginado. O reservatório de fluxo livre
contém cerca de metade dos neutrófilos no estado basal e é constituído pelas
células que estão no sangue e não estabelecem contato com o endotélio. Os
leucócitos marginados são os que estão em estreito contato físico com o
endotélio (Fig. 60-8). Na circulação pulmonar, onde existe um extenso leito
capilar (cerca de 1.000 capilares por alvéolo), ocorre marginação, visto que os
capilares têm aproximadamente o mesmo tamanho de um neutrófilo maduro. Por
conseguinte, a fluidez e a deformabilidade dos neutrófilos são imprescindíveis
para o trânsito dessas células através do leito pulmonar. O aumento de rigidez
dos neutrófilos e a redução de sua deformabilidade resultam em aumento da
retenção e marginação dessas células nos pulmões. Em contrapartida, nas
vênulas pós-capilares sistêmicas, a marginação é mediada pela interação de
moléculas de superfície específicas, denominadas selectinas. Tratam-se de
glicoproteínas expressas nos neutrófilos e nas células endoteliais, entre outras
células, que causam uma interação de baixa afinidade, resultando em “rolagem”
do neutrófilo ao longo da superfície endotelial. Nos neutrófilos, a molécula de L-
selectina (determinante de grupo [CD] 62L) liga-se a proteínas glicosiladas sobre
as células endoteliais (p. ex., molécula de adesão celular dependente da
glicosilação [GlyCAM-1] e CD34). As glicoproteínas nos neutrófilos, entre as
quais a mais importante é a sialil-Lewisx (SLex, CD15s), são alvos para a ligação
de selectinas expressas nas células endoteliais (E-selectina [CD62E] e P-
selectina [CD62P]) e outros leucócitos. Em resposta a estímulos quimiotáticos
provenientes dos tecidos lesionados (p. ex., o produto do complemento C5a,
leucotrieno B4, IL-8) ou a produtos bacterianos (p. ex., N-formilmetionil-
leucilfenilalanina [f-metleufe]), a aderência dos neutrófilos aumenta, e as células
“grudam” no endotélio por intermédio das integrinas. As integrinas são
glicoproteínas leucocitárias existentes na forma de complexos de uma cadeia β
comum de CD18 com CD11a (LFA-1), CD11b (denominada Mac-1, CR3 ou
receptor de C3bi) e CD11c (denominada p150,95 ou CR4). As moléculas
CD11a/CD18 e CD11b/CD18 ligam-se a receptores endoteliais específicos
(moléculas de adesão intercelular [ICAMs] 1 e 2).

FIGURA 60-8 O trânsito do neutrófilo através dos capilares pulmonares depende de sua
deformabilidade. A rigidez do neutrófilo (p. ex., causada por C5a) aumenta a sua retenção pulmonar e
resposta a patógenos pulmonares de forma a não depender tanto dos receptores de superfície celular. Os
fatores quimiotáticos intra-alveolares, como os causados por determinadas bactérias (p. ex., Streptococcus
pneumoniae), levam à diapedese dos neutrófilos a partir dos capilares pulmonares para o espaço alveolar. A
interação dos neutrófilos com o endotélio das vênulas pós-capilares sistêmicas depende de moléculas de
fixação. O neutrófilo “rola” ao longo do endotélio, usando selectinas: a CD15s do neutrófilo (sialil-Lewisx)
liga-se à CD62E (E-selectina) e CD62P (P-selectina) sobre as células endoteliais; a CD62L (L-selectina)
nos neutrófilos liga-se à CD34 e a outras moléculas (p. ex., GlyCAM-1) expressas no endotélio. As
quimiocinas ou outros fatores de ativação estimulam uma “adesão firme” mediada pela integrina:
CD11a/CD18 (LFA-1) e CD11b/CD18 (Mac-1, CR3) ligam-se a CD54 (ICAM-1) e CD102 (ICAM-2) no
endotélio. Ocorre diapedese entre as células endoteliais: a CD31 (PECAM-1), expressa pelo neutrófilo em
migração, interage com CD31 expressa na junção célula-célula endotelial. CD, determinante de grupo;
GlyCAM, molécula de adesão celular dependente de glicosilação; ICAM, molécula de adesão intercelular;
PECAM, molécula de adesão de plaquetas/células endoteliais.

Com a estimulação da célula, a L-selectina é liberada dos neutrófilos, e a E-


selectina aumenta no sangue, presumivelmente devido à sua liberação a partir
das células endoteliais; os receptores quimiotáticos e de opsoninas são
mobilizados; e os fagócitos orientam-se para a fonte de quimioatração no espaço
extravascular, aumentam sua atividade móvel (quimiocinese) e migram de modo
dirigido (quimiotaxia) para dentro dos tecidos. O processo de migração nos
tecidos é denominado diapedese e envolve o rastejamento dos neutrófilos entre
as células endoteliais pós-capilares, que abrem junções entre células adjacentes
para permitir a passagem dos leucócitos. A diapedese envolve a molécula de
adesão de plaquetas/células endoteliais (PECAM) 1 (CD31), expressa tanto nos
leucócitos migratórios quanto nas células endoteliais. As respostas endoteliais
(aumento do fluxo sanguíneo em virtude do aumento da vasodilatação e da
permeabilidade) são mediadas por anafilatoxinas (p. ex., C3a e C5a), bem como
por vasodilatadores, como histamina, bradicinina, serotonina, óxido nítrico, fator
de crescimento do endotélio vascular (VEGF) e prostaglandinas E e I. As
citocinas regulam alguns desses processos (p. ex., indução do VEGF pelo TNF-
α, inibição da prostaglandina E pela γ-interferona [IFN]).
No adulto sadio, a maioria dos neutrófilos deixa o corpo por migração
através da mucosa do trato gastrintestinal. Normalmente, os neutrófilos
permanecem por curto tempo na circulação (meia-vida de 6-7 horas). Os
neutrófilos senescentes são eliminados da circulação pelos macrófagos no
pulmão e no baço. Uma vez no interior dos tecidos, os neutrófilos liberam
enzimas, como a colagenase e a elastase, que podem ajudar a formar abscessos
cavitários. Os neutrófilos ingerem materiais patogênicos que foram opsonizados
pela IgG e C3b. A fibronectina e o tetrapeptídeo tuftsina também facilitam a
fagocitose.
A fagocitose é acompanhada de um pico de consumo de oxigênio e ativação
da via da hexose-monofosfato. Uma NADPH-oxidase associada à membrana,
que consiste em componentes da membrana e do citosol, é organizada para
catalisar a redução monovalente do oxigênio a ânion superóxido, que é então
convertido pela superóxido-dismutase em peróxido de hidrogênio e outros
produtos tóxicos de oxigênio (p. ex., radical hidroxila). O peróxido de
hidrogênio + cloreto + mieloperoxidase do neutrófilo produzem ácido
hipocloroso (alvejante), hipoclorito e cloro. Esses produtos oxidam e halogenam
os microrganismos e as células tumorais, podendo, quando descontrolados,
lesionar o tecido do hospedeiro. As proteínas fortemente catiônicas, as
defensinas, a elastase, as catepsinas e, provavelmente, o óxido nítrico também
participam da destruição microbiana. A lactoferrina quela o ferro, um fator de
crescimento importante para os microrganismos, especialmente os fungos.
Outras enzimas, como a lisozima e as proteases ácidas, ajudam a digerir restos
microbianos. Depois de 1 a 4 dias nos tecidos, os neutrófilos morrem. A
apoptose dos neutrófilos também é regulada por citocinas; o fator estimulador
das colônias de granulócitos (G-CSF) e a γ-IFN prolongam sua vida. Em certas
condições, como na hipersensibilidade tardia, ocorre acúmulo de monócitos 6 a
12 horas após o início da inflamação. O exsudato inflamatório, conhecido como
pus, é constituído por neutrófilos, monócitos, microrganismos em vários estágios
de digestão e células teciduais locais alteradas. A mieloperoxidase confere ao
pus sua cor esverdeada típica e pode participar na resolução do processo
inflamatório ao inativar os quimiotáticos e imobilizar as células fagocíticas.
Os neutrófilos respondem a determinadas citocinas (γ-IFN, fator
estimulador das colônias de granulócitos-macrófagos [GM-CSF] e IL-8) e
produzem citocinas e sinais quimiotáticos (TNF-α, IL-8, proteína inflamatória
dos macrófagos [MIP] 1) que modulam a resposta inflamatória. Na presença de
fibrinogênio, a f-met-leu-fe ou o leucotrieno B4 induzem a produção de IL-8
pelos neutrófilos, proporcionando uma amplificação autócrina da inflamação. As
quimiocinas (quimiotáticas, citocinas) são pequenas proteínas produzidas por
muitos tipos diferentes de células, como as células endoteliais, fibroblastos,
células epiteliais, neutrófilos e monócitos, que regulam o recrutamento e a
ativação dos neutrófilos, monócitos, eosinófilos e linfócitos. As quimiocinas
transduzem seus sinais através de receptores heterotriméricos ligados à proteína
G, que possuem sete domínios que atravessam a membrana celular, constituindo
o mesmo tipo de receptor de superfície celular que medeia a resposta aos
quimiotáticos clássicos, f-metleufe e C5a. São reconhecidos quatro grupos
principais de quimiocinas com base na estrutura da cisteína próximo à
extremidade N-terminal: C, CC, CXC e CXXXC. As citocinas CXC, como a IL-
8, atraem principalmente os neutrófilos; as quimiocinas CC, como a MIP-1,
atraem os linfócitos, monócitos, eosinófilos e basófilos; a quimiocina C,
linfotactina, é trópica para as células T; e a quimiocina CXXXC, fractalcina,
atrai neutrófilos, monócitos e células T. Essas moléculas e seus receptores não
apenas regulam o trânsito e a ativação das células inflamatórias, como também
os receptores da quimiocina específicos servem de correceptores para a infecção
pelo HIV (Cap. 197) e desempenham um papel em outras infecções virais, como
a infecção pelo vírus do Nilo Ocidental, e na aterogênese.

ANORMALIDADES DOS NEUTRÓFILOS


A ocorrência de um defeito no ciclo biológico do neutrófilo pode resultar em
disfunção e comprometimento das defesas do hospedeiro. A inflamação em geral
é deprimida, sendo o resultado clínico, com infecções bacterianas e fúngicas
graves, com frequência recorrente. As úlceras aftosas das mucosas (úlceras
cinzentas sem pus), bem como a ocorrência de gengivite e doença periodontal,
sugerem um distúrbio das células fagocíticas. Os pacientes com defeitos
congênitos dos fagócitos podem apresentar infecções nos primeiros dias de vida.
Infecções da pele, das orelhas, das vias aéreas superiores e inferiores e dos ossos
são comuns. Sepse e meningite são raras. Em alguns distúrbios, a frequência de
infecção é variável, e os pacientes podem passar meses ou mesmo anos sem
infecção significativa. O manejo agressivo dessas doenças congênitas, incluindo
transplante de células-tronco hematopoiéticas e terapia gênica, estende o tempo
de vida dos pacientes até a idade adulta.

Neutropenia As consequências da ausência de neutrófilos são drásticas. A


suscetibilidade a doenças infecciosas aumenta acentuadamente quando as
contagens dos neutrófilos caem abaixo de 1.000 células/μL. Quando ocorre a
queda da contagem absoluta dos neutrófilos (CAN); soma das formas em bastão
e neutrófilos maduros) para < 500 células/μL, verifica-se um comprometimento
no controle da flora endógena (p. ex., boca e intestino). Quando a CAN é < 200/
μL, não há processo inflamatório local. A neutropenia pode ser causada por
produção diminuída, aumento da destruição periférica ou acúmulo periférico
excessivo. A queda da contagem dos neutrófilos ou uma redução significativa no
número de neutrófilos abaixo dos níveis no estado de equilíbrio dinâmico, junto
com a incapacidade de aumentar a contagem dos neutrófilos em situações de
infecção ou outra estimulação, exigem investigação. A neutropenia aguda, como
a causada por quimioterapia do câncer, tem mais tendência a estar associada a
um risco aumentado de infecção do que a neutropenia de longa duração (meses a
anos) que reverte em resposta à infecção ou administração cuidadosamente
controlada de endotoxina (ver “Diagnóstico laboratorial e tratamento”, adiante).
Algumas causas de neutropenia hereditária e adquirida estão listadas na Tab
ela 60-1. As neutropenias mais comuns são as iatrogênicas e resultam do uso de
terapia citotóxica ou imunossupressora para o câncer ou para o controle de
doenças autoimunes. Esses fármacos provocam neutropenia, visto que causam
uma redução da produção das células progenitoras (células-tronco) de
crescimento rápido na medula óssea. Certos antibióticos, como o cloranfenicol, o
sulfametoxazol-trimetoprima, a flucitosina, a vidarabina, e o agente
antirretroviral zidovudina podem causar neutropenia ao inibir a proliferação dos
precursores mieloides. A azatioprina e a 6-mercaptopurina são metabolizadas
pela enzima tiopurina-metiltransferase (TPMT), cujos polimorfismos
hipofuncionais são encontrados em 11% dos indivíduos brancos e podem levar
ao acúmulo de 6-tioguanina, com toxicidade profunda da medula óssea. Em
geral, a supressão da medula óssea está relacionada com a dose e depende da
administração contínua do fármaco. A interrupção do agente agressor e o G-CSF
humano recombinante normalmente revertem essas formas de neutropenia.

TABELA 60-1 ■ Causas de neutropenia


Produção diminuída
Induzida por fármacos – agentes alquilantes (mostarda nitrogenada, bussulfano, clorambucila, ciclofosfamida); antimetabólitos (metotrexato,
6-mercaptopurina, 5-flucitosina); agentes não citotóxicos (antibióticos [cloranfenicol, penicilinas, sulfonamidas], fenotiazinas, tranquilizantes
[meprobamato], anticonvulsivantes [carbamazepina], antipsicóticos [clozapina], alguns diuréticos, agentes anti-inflamatórios, fármacos
antitireoidianos, muitos outros)
Doenças hematológicas – neutropenia idiopática, cíclica, síndrome de Chédiak-Higashi, anemia aplásica, distúrbios genéticos infantis (ver
texto)
Invasão tumoral, mielofibrose
Deficiência nutricional – vitamina B12, folato (especialmente alcoolistas)

Infecção – tuberculose, febre tifoide, brucelose, tularemia, sarampo, mononucleose infecciosa, malária, hepatite viral, leishmaniose, Aids
Destruição periférica
Anticorpos antineutrófilos e/ou sequestro esplênico ou pulmonar
Distúrbios autoimunes – síndrome de Felty, artrite reumatoide, lúpus eritematoso
Fármacos como haptenos – aminopirina, α-metildopa, fenilbutazona, diuréticos mercuriais, algumas fenotiazinas
Granulomatose com poliangeíte (de Wegener)
Acúmulo periférico (neutropenia transitória)
Infecção bacteriana maciça (endotoxemia aguda)
Hemodiálise
Bypass cardiopulmonar
Outro mecanismo importante para a neutropenia iatrogênica é o efeito dos
fármacos que atuam como haptenos imunes e sensibilizam os neutrófilos ou seus
precursores à destruição periférica imunologicamente mediada. Essa forma de
neutropenia induzida por fármacos pode ser observada até 7 dias após a
exposição ao agente; com exposição prévia ao fármaco, resultando em
anticorpos preexistentes, a neutropenia pode surgir poucas horas após a sua
administração. Embora qualquer fármaco possa provocar essa forma de
neutropenia, as causas mais frequentes são os antibióticos de uso comum, como
os compostos que contêm sulfa,as penicilinas e as cefalosporinas. A febre e a
eosinofilia também estão associadas a reações medicamentosas, mas esses sinais
frequentemente estão ausentes. A neutropenia induzida por fármacos pode ser
grave, porém a interrupção do agente sensibilizante é suficiente para a
recuperação, que costuma ser observada em 5 a 7 dias, completando-se em 10
dias. Deve-se evitar a readministração do agente sensibilizante, visto que isso
resulta frequentemente em neutropenia abrupta. Por esse motivo, deve-se evitar
qualquer teste provocativo diagnóstico.
As neutropenias autoimunes provocadas por anticorpos antineutrófilos
circulantes são outra forma de neutropenia adquirida, que resulta em aumento da
destruição dos neutrófilos. A neutropenia adquirida também pode ser observada
em infecções virais, incluindo aquela pelo HIV. Pode ser de natureza cíclica,
ocorrendo em intervalos de várias semanas. A neutropenia cíclica ou estável
adquirida pode estar associada a uma expansão dos grandes linfócitos granulares
(GLG), que podem ser células T, células NK ou células semelhantes às NK. Os
pacientes com linfocitose de grandes linfócitos granulares podem apresentar
linfocitose sanguínea e medular moderada, neutropenia, hipergamaglobulinemia
policlonal, esplenomegalia, artrite reumatoide e ausência de linfadenopatia.
Esses pacientes podem seguir uma evolução crônica e relativamente estável. As
infecções bacterianas recorrentes são frequentes. Ocorrem formas benignas e
malignas dessa síndrome. Em alguns pacientes, houve regressão espontânea,
mesmo depois de 11 anos, sugerindo um defeito da imunorregulação como a
origem de pelo menos uma forma do distúrbio. Os glicocorticoides, a
ciclosporina e o metotrexato são comumente utilizados para tratamento dessas
citopenias.

Neutropenias hereditárias São raras, podendo manifestar-se no início da


infância, na forma de neutropenia profunda constante ou agranulocitose. As
formas congênitas de neutropenia incluem a síndrome de Kostmann (contagem
de neutrófilos < 100/μL), que frequentemente é fatal e se deve a mutações no
gene HAX-1 de antiapoptose; a neutropenia crônica grave (contagem de
neutrófilos de 300-1.500/μL) causada por mutações na elastase do neutrófilo
(ELANE); a neutropenia cíclica hereditária ou, mais apropriadamente,
hematopoiese cíclica, também causada por mutações na elastase do neutrófilo
(ELANE); a síndrome de hipoplasia da cartilagem e dos pelos, devido a
mutações na endorribonuclease de processamento do RNA mitocondrial, RMRP;
a síndrome de Shwachman-Diamond associada à insuficiência pancreática,
causada por mutações no gene da síndrome de Shwachman-Bodian-Diamond,
SBDS; a síndrome VHIM (verrugas, hipogamaglobulinemia, infecções,
mielocatexia [retenção de leucócitos na medula óssea]), caracterizada por
hipersegmentação dos neutrófilos e parada mieloide da medula óssea em
consequência de mutações no receptor das quimiocinas CXCR4; e neutropenias
associadas a outros defeitos imunes, como a agamaglobulinemia ligada ao X, a
síndrome de Wiskott-Aldrich e a deficiência do ligante CD40. Na neutropenia
congênita severa, podem ocorrer mutações no receptor de G-CSF que estão
ligadas à leucemia. Verifica-se a ausência de células mieloides e linfoides na
disgenesia reticular, devido a mutações na enzima mitocondrial codificada pelo
genoma nuclear, a adenilato-cinase 2 (AK2).
Fatores maternos podem estar associados ao desenvolvimento de
neutropenia no recém-nascido. A transferência transplacentária de IgG dirigida
contra antígenos nos neutrófilos fetais pode resultar em destruição periférica.
Certos fármacos (p. ex., tiazídicos) ingeridos durante a gravidez podem causar
neutropenia no recém-nascido devido à produção diminuída ou destruição
periférica.
Na síndrome de Felty – a tríade de artrite reumatoide, esplenomegalia e
neutropenia (Cap. 351) –, os anticorpos produzidos pelo baço podem encurtar a
vida dos neutrófilos, enquanto os grandes linfócitos granulares podem atacar os
precursores dos neutrófilos da medula óssea. A esplenectomia pode aumentar a
contagem dos neutrófilos nos pacientes com síndrome de Felty e reduzir a IgG
sérica ligada aos neutrófilos. Alguns pacientes com síndrome de Felty também
apresentam neutropenia associada a um aumento no número de GLG. Observa-
se também a ocorrência de esplenomegalia com retenção periférica e destruição
dos neutrófilos nas doenças de depósito dos lisossomos e na hipertensão portal.

Neutrofilia A neutrofilia resulta do aumento na produção de neutrófilos,


liberação aumentada da medula óssea ou marginação defeituosa (Tab. 60-2). As
infecções constituem a causa aguda mais importante de neutrofilia. A neutrofilia
em decorrência de infecção aguda representa um aumento tanto na produção
quanto na liberação pela medula óssea. A produção aumentada também está
associada à inflamação crônica e a certas doenças mieloproliferativas. Os
glicocorticoides induzem o aumento da liberação pela medula óssea e
mobilização do reservatório dos leucócitos marginados. A liberação de
epinefrina, como a que ocorre com o exercício físico vigoroso, excitação ou
estresse, desmargina os neutrófilos do baço e dos pulmões e duplica sua
contagem em questão de minutos. O tabagismo pode elevar a contagem dos
neutrófilos acima da faixa normal. Ocorre leucocitose, com contagens de 10.000
a 25.000/μL, em resposta à infecção e a outras formas de inflamação aguda; a
presença de leucocitose resulta da liberação do reservatório marginado, bem
como da mobilização das reservas medulares. A neutrofilia persistente com
contagens ≥ 30.000 a 50.000 μL é denominada reação leucemoide – uma
expressão frequentemente utilizada para diferenciar esse grau de neutrofilia da
leucemia. Na reação leucemoide, os neutrófilos circulantes em geral são
maduros e não são de origem clonal.

TABELA 60-2 ■ Causas de neutrofilia


Produção aumentada
Idiopática
Induzida por fármacos – glicocorticoides, G-CSF
Infecção – bacteriana, fúngica, às vezes viral
Inflamação – lesão térmica, necrose tecidual, infarto do miocárdio e pulmonar, estados de hipersensibilidade, colagenoses
Doenças mieloproliferativas – leucemia mielocítica, metaplasia mieloide, policitemia vera
Aumento da liberação pela medula óssea
Glicocorticoides
Infecção aguda (endotoxina)
Inflamação – lesão térmica
Redução ou defeito de marginação
Fármacos – epinefrina, glicocorticoides, anti-inflamatórios não esteroides
Estresse, agitação, exercício vigoroso
Deficiência de adesão dos leucócitos tipo 1 (CD18); deficiência de adesão dos leucócitos tipo 2 (ligante da selectina, CD15s); deficiência de
adesão dos leucócitos tipo 3 (FERMT3)
Diversas
Distúrbios metabólicos – cetoacidose, insuficiência renal aguda, eclâmpsia, intoxicação aguda
Fármacos – lítio
Outros – carcinoma metastático, hemorragia aguda ou hemólise
Sigla: G-CSF, fator estimulador das colônias de granulócitos.
Função anormal dos neutrófilos As anormalidades hereditárias e adquiridas da
função fagocítica são citadas na Tabela 60-3. As doenças resultantes são mais
bem consideradas em termos de defeitos funcionais na adesão, quimiotaxia e
atividade microbicida. As características que diferenciam entre os distúrbios
hereditários importantes e a função dos fagócitos são apresentadas na Tabela 60-
4.

TABELA 60-3 ■ Tipos de distúrbios dos granulócitos e monócitos


Causa da disfunção indicada
Função Induzidos por Adquiridos Hereditários
fármacos

Adesão- Ácido Estado neonatal, hemodiálise Deficiência de adesão dos leucócitos tipos 1, 2 e
agregação acetilsalicílico, 3
colchicina, álcool,
glicocorticoides,
ibuprofeno,
piroxicam
Deformabilidade Leucemia, estado neonatal, diabetes melito,
neutrófilos imaturos
Quimiocinesia – Glicocorticoides Lesão térmica, neoplasia maligna, Síndrome de Chédiak-Higashi, deficiência de
quimiotaxia (dose alta), desnutrição, doença periodontal, estado grânulos específicos dos neutrófilos, síndrome da
auranofina, neonatal, lúpus eritematoso sistêmico, hiper-IgE-infecção recorrente (síndrome de Job)
colchicina (efeito artrite reumatoide, diabetes melito, sepse, (em alguns pacientes), síndrome de Down,
fraco), infecção pelo vírus da influenza, infecção deficiência de α-manosidase, deficiências de
fenilbutazona, por herpes-vírus simples, acrodermatite adesão dos leucócitos, síndrome de Wiskott-
naproxeno, enteropática, Aids Aldrich
indometacina,
interleucina 2
Atividade Colchicina, Leucemia, anemia aplásica, determinadas Síndrome de Chédiak-Higashi, deficiência de
microbicida ciclofosfamida, neutropenias, deficiência de tuftsina, lesão grânulos específicos dos neutrófilos, doença
glicocorticoides térmica, sepse, estado neonatal, diabetes granulomatosa crônica, defeitos do eixo γ-
(alta dose), melito, desnutrição, Aids IFN/IL-12
anticorpos
bloqueadores do
TNF-α
Siglas: γ-IFN, γ-interferona; IL, interleucina; TNF-α, fator de necrose tumoral α.

TABELA 60-4 ■ Distúrbios hereditários da função fagocítica: características diferenciais


Manifestações clínicas Defeitos celulares ou Diagnóstico
moleculares
Doenças granulomatosas crônicas (70% ligadas ao X, 30% autossômicas recessivas)
Infecções graves de pele, orelhas, pulmões, fígado e osso por Ausência de cadeia respiratória, Teste de NBT ou DHR; ausência
microrganismos catalase-positivos, como o Staphylococcus devido à falta de 1 das 5 de produção de superóxido e H2O2
aureus, complexo Burkholderia cepacia, Aspergillus spp., subunidades de NADPH-oxidase pelos neutrófilos; immunoblotting
Chromobacterium violaceum; cultura do microrganismo nos neutrófilos, monócitos e para os componentes da NADPH-
frequentemente difícil; inflamação excessiva com granulomas, eosinófilos oxidase; detecção genética
supuração frequente de linfonodos; os granulomas podem
obstruir os tratos GI ou GU; gengivite, úlceras aftosas,
dermatite seborreica
Síndrome de Chédiak-Higashi (autossômica recessiva)
Infecções piogênicas recorrentes, especialmente por S. aureus; Redução da quimiotaxia e fusão Grânulos primários gigantes nos
muitos pacientes adquirem doença semelhante ao linfoma na do fagolisossomo, aumento do neutrófilos e outras células que
adolescência; doença periodontal; albinismo oculocutâneo extresse oxidativo, saída deficiente
parcial, nistagmo, neuropatia periférica progressiva, deficiência da medula, janela cutânea possuem grânulos (coloração de
intelectual em alguns pacientes anormal; defeito em CHS1 Wright); detecção genética
Deficiência de grânulos específicos (autossômica recessiva e dominante)
Infecções recorrentes da pele, orelhas e trato sinopulmonar; Quimiotaxia anormal, Ausência de grânulos secundários
cicatrização tardia de feridas; redução da inflamação; diátese comprometimento do estresse (específicos) nos neutrófilos
hemorrágica oxidativo e destruição bacteriana, (coloração de Wright), nenhum
incapacidade de suprarregulação conteúdo dos grânulos específicos
dos receptores quimiotáticos e de dos neutrófilos (i.e., lactoferrina),
adesão com estimulação; defeito ausência de defensinas,
na transcrição das proteínas dos anormalidade dos grânulos α das
grânulos; defeito em C/EBP-ε plaquetas; detecção genética
Deficiência de mieloperoxidase (autossômica recessiva)
Clinicamente normal, exceto em pacientes com doença Ausência de mieloperoxidase Ausência de peroxidase nos
subjacente, como diabetes melito; em seguida, candidíase ou devido a defeitos pré e pós- neutrófilos; detecção genética
outras infecções fúngicas tradução na deficiência de
mieloperoxidase
Deficiência de adesão dos leucócitos
Tipo 1: separação tardia do cordão umbilical, neutrofilia Comprometimento da adesão dos Expressão reduzida da superfície
duradoura, infecções recorrentes da pele e mucosa, gengivite, fagócitos, agregação, dos fagócitos das integrinas que
doença periodontal disseminação, quimiotaxia, contém CD18 com anticorpos
fagocitose das partículas monoclonais contra LFA-1
revestidas por C3bi; defeito na (CD18/CD11a), Mac-1 ou CR3
produção da subunidade CD18 (CD18/CD11b), p150,95
comum às integrinas dos (CD18/CD11c); detecção genética
leucócitos
Tipo 2: deficiência intelectual, baixa estatura, fenótipo Comprometimento do rolamento Expressão reduzida de sialil-
sanguíneo de Bombay (hh), infecções recorrentes, neutrofilia dos fagócitos ao longo do Lewisx na superfície dos fagócitos,
endotélio com anticorpos monoclonais
contra CD15s; detecção genética
Tipo 3: hemorragia petequial, infecções recorrentes Redução da sinalização para Redução da sinalização para
ativação das integrinas, resultando adesão por meio das integrinas;
em comprometimento da adesão detecção genética
devido à mutação em FERMT3
Defeitos de ativação do fagócito (ligados ao X e autossômicos recessivos)
Deficiência de NEMO: displasia ectodérmica hipo-hidrótica Comprometimento da ativação dos Resposta in vitro precária à
leve; amplo defeito de base imunológica: bactérias piogênicas fagócitos por IL-1, IL-18, TLR, endotoxina; comprometimento da
e encapsuladas, vírus, Pneumocystis, micobactérias; ligada ao CD40L, TNF-α, resultando em ativação de NF-κB; detecção
X problemas de inflamação e genética
produção de anticorpos
Deficiência de IRAK4 e MyD88: suscetibilidade a bactérias Comprometimento da ativação dos Resposta in vitro precária à
piogênicas, como estafilococos, estreptococos, clostrídeos; fagócitos pela endotoxina através endotoxina; ausência de ativação
resistente à Candida; autossômica recessiva de TLR e outras vias; sinalização de NF-κB pela endotoxina;
do TNF-α preservada detecção genética
Síndrome da hiper-IgE-infecção recorrente (autossômica dominante) (síndrome de Job)
Dermatite eczematoide ou pruriginosa, abscessos cutâneos Quimiotaxia reduzida em alguns Manifestações somáticas e imunes
“frios”, pneumonias recorrentes por S. aureus com fístulas pacientes, redução das células B e envolvendo os pulmões, o
broncopleurais e formação de cistos, eosinofilia leve, T de memória, mutação em STAT3 esqueleto e o sistema imune; IgE
candidíase mucocutânea, fácies típica, doença pulmonar sérica > 2.000 UI/mL; teste
restritiva, escoliose, queda tardia da dentição primária genético
Deficiência de DOCK8 (autossômica recessiva), eczema grave, Comprometimento da proliferação Alergias graves, infecções virais,
dermatite atópica, abscessos cutâneos, HSV, HPV e infecções de células T a mitógenos; mutação IgE elevada, eosinofilia, IgM
por molusco, alergias graves, câncer em DOCK8 baixa, linfopenia progressiva,
detecção genética
Suscetibilidade a micobactérias (formas autossômicas dominante e recessiva)
Infecções extrapulmonares ou disseminadas graves pelo bacilo Incapacidade de destruir Níveis anormalmente baixos ou
de Calmette-Guérin (BCG), micobactérias não tuberculosas, microrganismos intracelulares, muito altos do receptor 1 da γ-IFN;
salmonela, histoplasmose, coccidioidomicose, formação devido à baixa produção ou ensaios funcionais de produção e
deficiente de granulomas resposta de γ-IFN; mutações nos resposta de citocinas; detecção
receptores de γ-IFN, receptor de genética
IL-12, IL-12 p40, STAT1, NEMO,
ISG15, GATA2

Deficiência de GATA2 (autossômica dominante)


Verrugas persistentes e disseminadas, doença micobacteriana Comprometimento da atividade Monocitopenia circulante
disseminada, baixa contagem de monócitos, células NK, dos macrófagos, citopenias; profunda, citopenias de células NK
células B; mielodisplasia hipoplásica, leucemia, anormalidades mutações de GATA2 e B; detecção genética
citogenéticas, proteinose alveolar pulmonar
Siglas: C/EBP-ε, CCAAT/proteína de ligação intensificadora ε; DHR, di-hidrorrodamina (teste de oxidação); DOCK8, dedicador de citocinese
8; GI, gastrintestinal; GU, geniturinário; HPV, papilomavírus humano; HSV, herpes-vírus simples; IFN, interferona; IL, interleucina; IRAK4,
cinase 4 associada ao receptor de IL-1; LFA-1, antígeno 1 associado à função leucocitária; MyD88, gene 88 da resposta primária de
diferenciação mieloide; NADPH, fosfato de dinucleotídeo de adenina-nicotinamida; NBT, tetrazólio nitroazul (teste do corante); NEMO,
modulador essencial de NF-κB; NF-κB, fator nuclear κB; NK, natural killer; STAT1-3, transdutor de sinal e ativador da transcrição 1-3; TLR,
receptor semelhante ao Toll; TNF, fator de necrose tumoral.

DISTÚRBIOS DA ADESÃO Foram descritos três tipos principais de


deficiência de adesão dos leucócitos (DAL). Todos são herdados de modo
autossômico recessivo e resultam na incapacidade dos neutrófilos em abandonar
a circulação e migrar para locais de infecção, resultando em leucocitose e
aumento da suscetibilidade à infecção (Fig. 60-8). Os pacientes com DAL 1
apresentam mutações no CD18, o componente comum das integrinas LFA-1,
Mac-1 e p150,95, resultando em defeito na adesão firme entre os neutrófilos e o
endotélio. O heterodímero formado por CD18/CD11b (Mac-1) também é o
receptor da opsonina derivada do complemento, C3bi (CR3). O gene CD18
localiza-se na parte distal do cromossomo 21q. A intensidade do defeito
determina a gravidades da doença clínica. A ausência completa de expressão das
integrinas leucocitárias resulta em um fenótipo grave, em que os estímulos
inflamatórios não aumentam a expressão das integrinas leucocitárias nos
neutrófilos ou nas células T e B ativadas. Os neutrófilos (e monócitos) dos
pacientes com DAL 1 aderem precariamente às células endoteliais e superfícies
recobertas por proteínas, exibindo deficiência em sua propagação, agregação e
quimiotaxia. A incapacidade dos neutrófilos de saírem da vasculatura para o
tecido priva os macrófagos teciduais da ingestão esperada de neutrófilos,
levando à produção de IL-23 pelos macrófagos, que induz a produção de IL-17
pelas células T, a qual é uma potente citocina pró-inflamatória. Esses processos
acabam levando à inflamação na DAL 1. Os pacientes com DAL 1 apresentam
infecções bacterianas recorrentes que acometem a pele, as mucosas oral e
genital, assim como os tratos respiratório e intestinal; leucocitose persistente
(contagens dos neutrófilos em condições basais de 15.000-20.000/μL), visto que
as células não sofrem marginação; e, nos casos graves, história de queda tardia
do coto umbilical. As infecções, particularmente da pele, podem tornar-se
necróticas com o aumento progressivo das bordas, cicatrização lenta e formação
de cicatrizes displásicas. As bactérias mais comuns incluem Staphylococcus
aureus e bactérias Gram-negativas entéricas. A DAL 2 é causada por
anormalidade da fucosilação de SLex (CD15s), o ligante dos neutrófilos que
interage com as selectinas nas células endoteliais e é responsável pela rolamento
dos neutrófilos ao longo do endotélio. A suscetibilidade à infecção na DAL 2
parece ser menos grave do que na DAL 1. A DAL 2 também é conhecida como
distúrbio congênito da glicosilação IIc (CDGIIc), devido a uma mutação em um
transportador de GDP-fucose (SLC35C1). A DAL 3 caracteriza-se por
suscetibilidade à infecção, leucocitose e hemorragia petequial em consequência
do comprometimento da ativação da integrina causado por mutações no gene
FERMT3.

DISTÚRBIOS DOS GRÂNULOS DOS NEUTRÓFILOS O defeito mais


comum dos neutrófilos é a deficiência de mieloperoxidase, um defeito dos
grânulos primários herdado de modo autossômico recessivo, com incidência de
cerca de 1 em 2 mil indivíduos. A deficiência isolada de mieloperoxidase não
está associada a comprometimento clínico das defesas, presumivelmente devido
à amplificação de outros sistemas de defesa do hospedeiro, como a geração de
peróxido de hidrogênio. A atividade microbicida dos neutrófilos encontra-se
retardada, mas não ausente. A deficiência de mieloperoxidase pode tornar outros
defeitos adquiridos das defesas do hospedeiro mais graves, e pacientes com
deficiência de mieloperoxidase e diabetes melito são mais suscetíveis a infecções
por Candida. Ocorre uma forma adquirida de deficiência de mieloperoxidase na
leucemia mielomonocítica e na leucemia mielocítica aguda.
A síndrome de Chédiak-Higashi (SCH) é uma doença rara de herança
autossômica recessiva, causada por defeitos na proteína de transporte
lisossômica LYST, codificada pelo gene CHS1 em 1q42. Essa proteína é
necessária para o acondicionamento normal e liberação dos grânulos. Os
neutrófilos (e todas as células que contêm lisossomos) de pacientes com SCH
geralmente apresentam grânulos grandes (Fig. 60-9), tornando-a uma doença
sistêmica. Os pacientes com SCH são acometidos por nistagmo, albinismo
oculocutâneo parcial e um número elevado de infecções causadas por diversos
agentes bacterianos. Alguns pacientes com SCH desenvolvem uma “fase
acelerada” na infância com uma síndrome hemofagocítica e linfoma agressivo,
exigindo transplante de medula óssea. Os neutrófilos e monócitos da SCH
exibem quimiotaxia comprometida e taxas anormais de destruição microbiana
devido à velocidade lenta de fusão dos grânulos lisossômicos com os
fagossomos. A função das células NK também se torna comprometida. Pacientes
com SCH podem desenvolver neuropatia periférica grave e debilitante na vida
adulta.

FIGURA 60-9 Síndrome de Chédiak-Higashi. Os granulócitos contêm grânulos citoplasmáticos enormes


formados a partir da agregação e fusão de grânulos azurofílicos e grânulos específicos. Os grânulos grandes
anormais são encontrados em outras células que contêm grânulos em todo o corpo.
A deficiência de grânulos específicos é uma doença autossômica recessiva
rara, em que a produção de grânulos secundários e seu conteúdo, bem como a
das defensinas dos grânulos primários, são deficientes. O defeito na destruição
das bactérias resulta em infecções bacterianas graves. Um tipo de deficiência de
grânulos específicos é causado por mutação da CCAAT/proteína de ligação
intensificadora ε, um regulador da expressão dos componentes dos grânulos. Foi
também descrita uma mutação dominante em C/EBP-ε.

DOENÇA GRANULOMATOSA CRÔNICA A doença granulomatosa crônica


(DGC) compreende um grupo de distúrbios do metabolismo oxidativo dos
granulócitos e monócitos. Apesar de ser rara, com incidência de cerca de 1 em
200 mil indivíduos, a DGC fornece um importante modelo de deficiência do
metabolismo oxidativo dos neutrófilos. Em cerca de dois terços dos pacientes, a
DGC é herdada como traço recessivo ligado ao X; o restante dos pacientes herda
a doença de acordo com um padrão autossômico recessivo. As mutações nos
genes das cinco proteínas que se organizam na membrana plasmática são
responsáveis por todos os casos de DGC. Duas proteínas (uma proteína de 91
kDa, anormal na DGC ligada ao X, e uma proteína de 22 kDa, ausente em uma
forma de DGC autossômica recessiva) formam o citocromo heterodimérico b-
558 na membrana plasmática. Três outras proteínas (40, 47 e 67 kDa, anormais
nas outras formas autossômicas recessivas de DGC) são de origem
citoplasmática e interagem com o citocromo após ativação celular, formando a
NADPH-oxidase, necessária à produção de peróxido de hidrogênio. Os
leucócitos dos pacientes com DGC apresentam acentuada redução na produção
de peróxido de hidrogênio. Os genes envolvidos em cada um dos defeitos foram
clonados, e a sua sequência estabelecida, com identificação de sua localização
cromossômica. Geralmente, os pacientes com DGC apresentam um número
aumentado de infecções por microrganismos catalase positivos (microrganismos
que destroem o seu próprio peróxido de hidrogênio) como S. aureus,
Burkholderia cepacia e espécies de Aspergillus. Quando infectados, os pacientes
com DGC frequentemente exibem reações inflamatórias extensas, e é comum
haver supuração dos linfonodos, apesar da administração de antibióticos
apropriados. Em muitos casos, observam-se úlceras aftosas e inflamação crônica
das narinas. Os granulomas são frequentes, podendo causar obstrução do trato
gastrintestinal ou do geniturinário. A inflamação excessiva resulta da
incapacidade de infrarregular a inflamação, refletindo uma incapacidade de
inibir a síntese e a degradação das ILs ou dos quimiotáticos, ou a resposta a eles,
levando a reação mieloide persistente. A destruição dos microrganismos
intracelulares pelos macrófagos pode resultar em ativação imune celular
persistente e formação de granulomas. Na DGC, há também um aumento de
complicações autoimunes, como púrpura trombocitopênica imune e artrite
reumatoide juvenil. Além disso, por razões não explicadas, o lúpus discoide é
mais comum naqueles com doença ligada ao X. Complicações tardias, incluindo
hiperplasia regenerativa nodular e hipertensão portal, são cada vez mais comuns
em pacientes mais velhos com DGC.

DISTÚRBIOS DA ATIVAÇÃO DOS FAGÓCITOS Os fagócitos dependem


da estimulação de sua superfície celular para induzir sinais capazes de
desencadear múltiplos níveis da resposta inflamatória, como a síntese das
citocinas, quimiotaxia e apresentação de antígenos. Detectaram-se mutações que
afetam a principal via de sinalização por meio do NF-κB em pacientes com uma
variedade de síndromes de suscetibilidade a infecções. Se os defeitos estiverem
localizados em um estágio muito avançado da transdução de sinais, na proteína
fundamental à ativação de NF-κB, conhecida como modulador essencial de NF-
κB (NEMO), os indivíduos do sexo masculino acometidos apresentarão displasia
ectodérmica e imunodeficiência grave, com suscetibilidade a bactérias, fungos,
micobactérias e vírus. Se os defeitos na ativação de NF-κB estiverem mais
próximos dos receptores de superfície celular, nas proteínas que traduzem os
sinais dos receptores semelhantes ao Toll, na cinase 4 associada ao receptor de
IL-1 (IRAK4) e no gene 88 de resposta primária da diferenciação mieloide
(MyD88), as crianças exibirão então uma acentuada suscetibilidade às infecções
piogênicas no início da vida; no entanto, posteriormente, irão desenvolver
resistência à infecção.
FAGÓCITOS MONONUCLEARES
O sistema mononuclear fagocitário é composto de monoblastos, pró-monócitos e
monócitos, além dos macrófagos teciduais de estrutura variada que compõem o
anteriormente denominado sistema reticuloendotelial. Os macrófagos são células
fagocíticas de vida longa, capazes de desempenhar muitas das funções dos
neutrófilos. Além disso, são células secretoras que participam em muitos
processos imunológicos e inflamatórios distintos daqueles dos neutrófilos. Os
monócitos abandonam a circulação por diapedese mais lentamente que os
neutrófilos e apresentam meia-vida no sangue de 12 a 24 horas.
Uma vez nos tecidos, os monócitos do sangue diferenciam-se em
macrófagos (“grandes comedores”) com funções especializadas apropriadas para
localizações anatômicas específicas. Os macrófagos são particularmente
abundantes nas paredes capilares dos pulmões, baço, fígado e medula óssea,
onde sua função é remover microrganismos e outros elementos nocivos do
sangue. Os macrófagos alveolares, células de Kupffer do fígado, macrófagos
esplênicos, macrófagos peritoneais, macrófagos da medula óssea, macrófagos
linfáticos, células microgliais do cérebro e macrófagos dendríticos possuem
funções especializadas. Os produtos secretados pelos macrófagos incluem
lisozima, proteases neutras, hidrolases ácidas, arginase, componentes do
complemento, inibidores enzimáticos (plasmina, α2-macroglobulina), proteínas
de ligação (transferrina, fibronectina e transcobalamina II), nucleosídeos e
citocinas (TNF-α; IL-1, 8, 12 e 18). A IL-1 (Caps. 15 e 342) exerce muitas
funções, como o desencadeamento da febre no hipotálamo, a mobilização dos
leucócitos da medula óssea e a ativação dos linfócitos e neutrófilos. O TNF-α é
um pirógeno que duplica muitas das ações da IL-1 e desempenha importante
papel na patogênese do choque por microrganismos Gram-negativos (Cap. 297).
O TNF-α estimula a produção de peróxido de hidrogênio e espécies de oxigênio
tóxicas relacionadas pelos macrófagos e neutrófilos. Além disso, o TNF-α
produz alterações catabólicas que contribuem para a profunda debilidade
(caquexia) associada a muitas doenças crônicas.
Outros produtos secretados pelos macrófagos incluem oxigênio reativo e
metabólitos do nitrogênio, lipídeos bioativos (metabólitos do ácido araquidônico
e fatores ativadores das plaquetas), quimiocinas, CSFs e fatores estimuladores da
proliferação dos fibroblastos e vasos sanguíneos. Os macrófagos ajudam a
regular a replicação dos linfócitos e participam da destruição de tumores, vírus e
certas bactérias (Mycobacterium tuberculosis e Listeria monocytogenes). Os
macrófagos são células efetoras essenciais na eliminação dos microrganismos
intracelulares. Sua capacidade de fusão para formar células gigantes que
coalescem em granulomas em resposta a alguns estímulos inflamatórios é
importante na eliminação de micróbios intracelulares e está sob o controle da γ-
IFN. O óxido nítrico induzido pela γ-IFN é um importante efetor contra parasitas
intracelulares, como a tuberculose e Leishmania.
Os macrófagos desempenham um importante papel na resposta imune (Cap
. 342). Processam e apresentam antígenos aos linfócitos e secretam citocinas que
modulam e dirigem o desenvolvimento e a função dos linfócitos. Os macrófagos
participam dos fenômenos autoimunes ao remover imunocomplexos e outras
substâncias da circulação. Os polimorfismos nos receptores dos macrófagos para
imunoglobulina (FcγRII) determinam a suscetibilidade a algumas infecções e
doenças autoimunes. No processo de cicatrização de feridas, os macrófagos
eliminam células senescentes e contribuem para o desenvolvimento de ateromas.
A elastase dos macrófagos medeia o desenvolvimento do enfisema causado pelo
tabagismo.

DISTÚRBIOS DO SISTEMA DOS FAGÓCITOS MONONUCLEARES


Muitos distúrbios dos neutrófilos estendem-se aos fagócitos mononucleares. A
monocitose está associada a tuberculose, brucelose, endocardite bacteriana
subaguda, febre maculosa das Montanhas Rochosas, malária e leishmaniose
visceral (calazar). A monocitose também ocorre em neoplasias malignas,
leucemias, síndromes mieloproliferativas, anemias hemolíticas, neutropenias
idiopáticas crônicas e doenças granulomatosas, como sarcoidose, enterite
regional e algumas doenças vasculares do colágeno. Os pacientes com DAL,
síndrome da hiperimunoglobulina E-infecção recorrente (síndrome de Job), SCH
e DGC apresentam defeitos no sistema de fagócitos mononucleares.
A produção de citocinas pelos monócitos ou a sua resposta mostram-se
afetadas em alguns pacientes com infecção micobacteriana não tuberculosa
disseminada que não estão infectados pelo HIV. Os defeitos genéticos nas vias
reguladas por γ-IFN e IL-12 levam a um comprometimento na destruição das
bactérias intracelulares, micobactérias, salmonelas e certos vírus (Fig. 60-10).
FIGURA 60-10 Interações linfócito-macrófago subjacentes à resistência a micobactérias e outros
patógenos intracelulares, como Salmonella, Histoplasma e Coccidioides. As micobactérias (e outros
microrganismos) infectam os macrófagos, levando à produção de IL-12, que ativa as células T ou NK por
meio de seu receptor, levando à produção de IL-2 e γ-IFN. A γ-IFN age por meio de seu receptor nos
macrófagos para suprarregular o TNF-α e a IL-12, bem como para destruir os parasitas intracelulares.
Outras moléculas de interação de importância clínica incluem transdutor de sinais e ativador da transcrição
1 (STAT1), fator regulador da interferona 8 (IFR8), GATA2 e ISG15. As formas mutantes das citocinas e
receptores mostrados em negrito foram encontradas em casos graves de infecção micobacteriana não
tuberculosa, salmonelose e outros patógenos intracelulares. BAAR, bacilo álcool-ácido-resistente; IFN,
interferona; IL, interleucina; NEMO, modulador essencial do fator nuclear-κB; NK, natural killer; TLR,
receptor semelhante ao Toll; TNF, fator de necrose tumoral.

Algumas infecções virais comprometem a função dos fagócitos


mononucleares. Por exemplo, a infecção pelo vírus da influenza provoca
quimiotaxia anormal dos monócitos. Os fagócitos mononucleares podem ser
infectados pelo HIV ao utilizar o CCR5, o receptor das quimiocinas que atua
como correceptor com CD4 para o HIV. Os linfócitos T produzem γ-IFN, que
induz a expressão do FcR e a fagocitose, assim como estimula a produção de
peróxido de hidrogênio por fagócitos mononucleares e neutrófilos. Em certas
doenças, como a Aids, a produção de γ-IFN pode estar deficiente, enquanto em
outras doenças, como os linfomas de células T, a liberação excessiva de γ-IFN
pode estar associada a eritrofagocitose por macrófagos esplênicos.
As doenças autoinflamatórias são caracterizadas por regulação anormal das
citocinas, levando à inflamação excessiva na ausência de infecção. Essas
doenças podem mimetizar as síndromes infecciosas ou de imunodeficiência. As
mutações com ganho de função no receptor do TNF-α causam síndrome
periódica associada ao receptor TNF-α (TRAPS), caracterizada por febre
recorrente na ausência de infecção, devido à estimulação persistente do receptor
do TNF-α (Cap. 362). As doenças com regulação anormal de IL-1 que
provocam febre incluem a febre familiar do Mediterrâneo causada por mutações
na PYRIN. As mutações na síndrome autoinflamatória induzida por frio 1
(CIAS1) causam doença autoinflamatória multissistêmica de início neonatal,
urticária familiar provocada pelo frio e síndrome de Muckle-Wells. A síndrome
de pioderma gangrenoso, acne e artrite piogênica estéril (síndrome PAPA) é
causada por mutações em PSTPIP1. Diferentemente dessas síndromes de
hiperexpressão de citocinas pró-inflamatórias, o bloqueio do TNF-α pelos
antagonistas infliximabe, adalimumabe, certolizumabe, golimumabe ou
etanercepte tem sido associado a infecções graves, devido a tuberculose,
micobactérias não tuberculosas e fungos (Cap. 362).
Ocorre monocitopenia na presença de infecções agudas, estresse e após
tratamento com glicocorticoides. Os fármacos que suprimem a produção de
neutrófilos na medula óssea podem causar monocitopenia. A monocitopenia
circulante grave persistente é observada na deficiência de GATA2, embora
macrófagos sejam encontrados nos locais de inflamação. A monocitopenia
também ocorre na anemia aplásica, na leucemia das células pilosas, na leucemia
mielocítica aguda e como resultado direto de agentes mielotóxicos.
EOSINÓFILOS
Os eosinófilos e neutrófilos compartilham morfologia semelhante, numerosos
constituintes lisossômicos, capacidade de fagocitose e metabolismo oxidativo.
Os eosinófilos expressam um receptor específico quimiotático e respondem a
uma quimiocina específica, a eotaxina, porém sabe-se pouco a respeito do papel
que precisam desempenhar. Essas células apresentam uma sobrevida muito mais
longa que a dos neutrófilos, e, ao contrário destes, os eosinófilos teciduais
podem recircular. Os eosinófilos não parecem importantes na maioria das
infecções. Todavia, nas helmintíases invasivas, como a ancilostomose,
esquistossomose, estrongiloidíase, toxocaríase, triquinelose, filariose,
equinococose e cisticercose, essas células desempenham um papel fundamental
na defesa do hospedeiro. Os eosinófilos estão associados a asma brônquica,
reações alérgicas cutâneas e outros estados de hipersensibilidade.
A característica diferencial do grânulo eosinofílico de coloração vermelha
(coloração de Wright) é seu cerne cristalino, que consiste em uma proteína rica
em arginina (proteína básica principal) com atividade de histaminase, importante
na defesa do hospedeiro contra parasitas. Os grânulos eosinofílicos também
contêm uma peroxidase eosinofílica peculiar que catalisa a oxidação de muitas
substâncias pelo peróxido de hidrogênio, podendo facilitar a destruição dos
microrganismos.
A peroxidase eosinofílica, na presença de peróxido de hidrogênio e haloide,
desencadeia a secreção in vitro dos mastócitos e, dessa maneira, promove a
inflamação. Os eosinófilos contêm proteínas catiônicas, algumas das quais se
ligam à heparina e reduzem sua atividade anticoagulante. A neurotoxina
derivada dos eosinófilos e a proteína catiônica eosinofílica são ribonucleases que
têm a capacidade de destruir o vírus sincicial respiratório. O citoplasma dos
eosinófilos contém a proteína do cristal de Charcot-Leyden, um cristal
bipiramidal hexagonal observado pela primeira vez em um paciente com
leucemia e, a seguir, no escarro de pacientes com asma; essa proteína é a
lisofosfolipase e pode atuar na desintoxicação de determinados lisofosfolipídeos.
Diversos fatores potencializam a função dos eosinófilos na defesa do
hospedeiro. Os fatores derivados das células T aumentam a capacidade dos
eosinófilos de destruir parasitas. O fator quimiotático eosinofílico da anafilaxia
(ECF-A), oriundo dos mastócitos, aumenta o número de receptores de
complemento dos eosinófilos e potencializa a destruição dos parasitas pelos
eosinófilos. Os CSF dos eosinófilos (p. ex., IL-5) produzidos por macrófagos
aumentam a produção de eosinófilos na medula óssea e ativam essas células para
que destruam os parasitas.

EOSINOFILIA
Refere-se à presença de > 500 eosinófilos/μL de sangue. É comum em muitos
contextos, além das parasitoses. Pode ocorrer eosinofilia tecidual significativa
sem elevação da contagem das células sanguíneas. A causa mais comum da
eosinofilia consiste nas reações alérgicas a fármacos (iodetos, ácido
acetilsalicílico, sulfonamidas, nitrofurantoína, penicilinas e cefalosporinas). As
alergias, como rinite alérgica, asma, eczema, doença do soro, vasculite alérgica e
pênfigo, estão associadas à eosinofilia. Ocorre também eosinofilia em doenças
vasculares do colágeno (p. ex., artrite reumatoide, fascite eosinofílica, angeíte
alérgica e periarterite nodosa) e em neoplasias malignas (p. ex., doença de
Hodgkin, micose fungoide, leucemia mieloide crônica e cânceres de pulmão,
estômago, pâncreas, ovário ou útero), bem como na síndrome de Job, na
deficiência de DOCK8 (ver adiante) e na DGC. É comum observar a ocorrência
de eosinofilia nas helmintíases. A IL-5 é o fator de crescimento dominante dos
eosinófilos. A administração terapêutica das citocinas IL-2 e GM-CSF resulta
frequentemente em eosinofilia transitória. As síndromes hipereosinofílicas mais
graves são a de Loeffler, a eosinofilia pulmonar tropical, a endocardite de
Loeffler, a leucemia eosinofílica e a síndrome de hipereosinofilia idiopática
(50.000-100.000/μL). A IL-5 constitui o fator de crescimento dos eosinófilos
dominante e pode ser especificamente inibida com o anticorpo monoclonal, o
mepolizumabe.
A síndrome de hipereosinofilia idiopática representa um grupo heterogêneo
de distúrbios com a característica comum de eosinofilia prolongada de causa
desconhecida e disfunção de sistemas orgânicos, como coração, sistema nervoso
central, rins, pulmões, trato gastrintestinal e pele. A medula óssea é afetada em
todos os indivíduos acometidos, porém as complicações mais graves são
observadas no coração e no sistema nervoso central. As manifestações clínicas e
a disfunção orgânica são altamente variáveis. Os eosinófilos são encontrados nos
tecidos acometidos e tendem a causar lesão tecidual em virtude do depósito local
de proteínas eosinofílicas tóxicas, como a proteína catiônica eosinofílica e a
proteína básica principal. No coração, as alterações patológicas acarretam
trombose, fibrose endocárdica e endomiocardiopatia restritiva. A lesão dos
tecidos em outros sistemas orgânicos é semelhante. Alguns casos resultam de
mutações envolvendo o receptor do fator de crescimento derivado de plaquetas,
e esses pacientes são extremamente sensíveis ao inibidor da tirosina-cinase
imatinibe. Os glicocorticoides, a hidroxiureia e a IFN-α têm sido usados com
sucesso, assim como os anticorpos terapêuticos contra a IL-5. As complicações
cardiovasculares devem ser tratadas de maneira agressiva.
A síndrome de eosinofilia-mialgia é uma doença multissistêmica com
manifestações cutâneas, hematológicas e viscerais proeminentes, que muitas
vezes evolui de forma crônica e, às vezes, é fatal. Caracteriza-se por eosinofilia
(contagem dos eosinófilos > 1.000/μL) e mialgias incapacitantes generalizadas
sem outras causas reconhecidas. Podem ocorrer fascite, pneumonite e miocardite
eosinofílicas; neuropatia, que culmina em insuficiência respiratória; e
encefalopatia. A doença é causada pela ingestão de contaminantes contidos em
produtos que contêm L-triptofano. Verifica-se o acúmulo de eosinófilos,
linfócitos, macrófagos e fibroblastos nos tecidos acometidos; todavia seu papel
na patogênese ainda não foi bem elucidado. A ativação dos eosinófilos e dos
fibroblastos, bem como o depósito de proteínas tóxicas derivadas dos eosinófilos
nos tecidos acometidos, podem contribuir para o processo. A IL-5 e o fator de
crescimento transformador β foram implicados como mediadores potenciais. O
tratamento consiste em suspender os produtos que contêm L-triptofano e
administrar glicocorticoides. A maioria dos pacientes recupera-se por completo,
permanece estável ou apresenta recuperação lenta; todavia a doença pode ser
fatal em até 5% dos pacientes.
As neoplasias eosinofílicas são discutidas no Capítulo 106.

EOSINOPENIA
Ocorre em situações de estresse, como infecção bacteriana aguda e após
tratamento com glicocorticoides. O mecanismo da eosinopenia na infecção
bacteriana aguda é desconhecido, porém não depende dos glicocorticoides
endógenos, visto que ocorre em animais após adrenalectomia total. A
eosinopenia não exerce qualquer efeito adverso conhecido.
SÍNDROME DA HIPERIMUNOGLOBULINA E-INFECÇÃO
RECORRENTE
A síndrome da hiperimunoglobulina E-infecção recorrente ou síndrome de Job é
uma doença multissistêmica rara na qual os sistemas imune e somático estão
acometidos, incluindo neutrófilos, monócitos, células T, células B e osteoclastos.
A ocorrência de mutações autossômicas dominantes no transdutor de sinal e
ativador da transcrição 3 (STAT3) leva à inibição da sinalização normal do
STAT, com efeitos abrangentes e profundos. Os pacientes apresentam uma fácies
típica com o nariz largo, cifoescoliose e eczema. Os dentes decíduos nascem
normalmente, mas não caem, o que exige frequentemente a sua extração. Os
pacientes desenvolvem infecções sinopulmonares e cutâneas recorrentes, as
quais tendem a apresentar muito menos inflamação do que o esperado para o
grau de infecção, sendo designadas “abscessos frios”. Normalmente, há
cavitação da pneumonia, resultando em pneumatocele. Os aneurismas das
artérias coronárias são comuns, assim como o aparecimento de placas
desmielinizadas cerebrais, que se acumulam com a idade. Um aspecto
importante é o fato de que as células T produtoras de IL-17, que se acredita
serem responsáveis pela proteção contra infecções extracelulares e das mucosas,
estão profundamente reduzidas na síndrome de Job. Mesmo com níveis bastante
elevados de IgE, esses pacientes têm níveis de alergia apenas levemente
elevados. Uma síndrome importante exibindo sobreposição clínica com a
deficiência de STAT3 negativa dominante se deve a defeitos autossômicos
recessivos no dedicador de citocinese 8 (DOCK8). Na deficiência de DOCK8, a
elevação da IgE está associada a alergia grave, suscetibilidade viral e aumento da
taxa de câncer. Mutações de ganho de função autossômicas dominantes em
STAT3 levam a uma doença caracterizada por início na infância de
linfadenopatia, citopenias autoimunes, automunidade multiorgãos, infecções e
doença pulmonar intersticial.
DIAGNÓSTICO LABORATORIAL E TRATAMENTO
Os exames iniciais dos leucócitos, a contagem diferencial e, com frequência, o
exame da medula óssea são seguidos de avaliação das reservas medulares (teste
de estimulação com esteroides), do reservatório circulante marginado de células
(teste provocativo com epinefrina) e da capacidade de marginação (teste
provocativo com endotoxina) (Fig. 60-7). É possível efetuar uma avaliação in
vivo da inflamação com o teste da janela cutânea de Rebuck ou um ensaio de
formação de vesículas in vivo na pele, que mede a capacidade de acúmulo dos
leucócitos e mediadores inflamatórios na pele. Os testes in vitro de agregação,
adesão, quimiotaxia, fagocitose, desgranulação e atividade microbicida (contra o
S. aureus) dos fagócitos podem ajudar a estabelecer as lesões celulares ou
humorais. As deficiências do metabolismo oxidativo são detectadas pelo teste do
corante tetrazólio nitroazul (NBT) ou pelo de oxidação da di-hidrorrodamina
(DHR). Esses testes baseiam-se na capacidade dos produtos do metabolismo
oxidativo de alterar os estados de oxidação das moléculas propagadoras, de
modo que possam ser detectadas ao microscópio (NBT) ou por citometria de
fluxo (DHR). Os estudos qualitativos da produção de superóxido e peróxido de
hidrogênio podem definir ainda melhor a função oxidativa dos neutrófilos.
Os pacientes com leucopenias ou disfunção leucocitária frequentemente
apresentam respostas inflamatórias tardias. Por conseguinte, as manifestações
clínicas podem ser mínimas apesar de infecção maciça, devendo-se sempre
suspeitar da possibilidade de infecções incomuns. Os primeiros sinais de
infecção exigem cultura imediata e agressiva dos microrganismos, uso de
antibióticos e drenagem dos abscessos. Com frequência, é necessário um ciclo
prolongado de antibióticos. Nos pacientes com DGC, os antibióticos
(sulfametoxazol-trimetoprima) e agentes antifúngicos (itraconazol) profiláticos
diminuem acentuadamente a frequência de infecções potencialmente fatais. Os
glicocorticoides podem aliviar a obstrução do trato gastrintestinal ou do
geniturinário por granulomas em pacientes com DGC. Embora os agentes
bloqueadores do TNF-α possam aliviar acentuadamente os sintomas intestinais
inflamatórios, é preciso ter extrema cautela no seu uso em pacientes portadores
de DGC com doença inflamatória intestinal, visto que esses fármacos aumentam
profundamente a suscetibilidade já elevada desses pacientes à infecção. A γ-IFN
recombinante humana, que estimula de modo inespecífico a função das células
fagocíticas, reduz em 70% a frequência de infecções em pacientes com DGC e
diminui a gravidade das infecções. Esse efeito da γ-IFN na DGC é aditivo ao dos
antibióticos profiláticos. A dose recomendada é de 50 μg/m2 via subcutânea, 3
vezes por semana. A γ-IFN também foi utilizada com sucesso no tratamento de
hanseníase, infecções micobacterianas não tuberculosas e leishmaniose visceral.
A higiene oral rigorosa diminui o desconforto ocasionado pela gengivite,
doença periodontal e úlceras aftosas, porém não o elimina; o colutório de
clorexidina e a escovação dos dentes com pasta que contenha peróxido de
hidrogênio-bicarbonato de sódio ajudam muitos pacientes. Os antifúngicos orais
(fluconazol, itraconazol, voriconazol, posaconazol) reduziram a candidíase
mucocutânea em pacientes com síndrome de Job. Androgênios, glicocorticoides,
lítio e terapia imunossupressora têm sido utilizados para restaurar a mielopoiese
em pacientes com neutropenia causada por redução da produção. O G-CSF
recombinante mostra-se útil no tratamento de certas formas de neutropenia
secundária à produção diminuída de neutrófilos, em particular as relacionadas
com a quimioterapia do câncer. Os pacientes com neutropenia crônica e
evidências de boa reserva medular não precisam receber antibióticos profiláticos.
Os pacientes com contagens de neutrófilos crônicas ou cíclicas < 500/μL podem
beneficiar-se dos antibióticos profiláticos e G-CSF durante os períodos de
neutropenia. A administração oral de sulfametoxazol-trimetoprima (800/160
mg), 2 vezes ao dia pode evitar infecção. Não são observados números
aumentados de infecções fúngicas em pacientes com DGC aos quais se
administra esse esquema. As quinolonas orais, como levofloxacino e
ciprofloxacino, são alternativas.
Dentro do contexto da quimioterapia citotóxica com disfunção grave e
persistente dos linfócitos, o sulfametoxazol-trimetoprima evita a pneumonia por
Pneumocystis jiroveci. Esses pacientes, bem como os com disfunção das células
fagocíticas, devem evitar a exposição maciça a solo, poeira ou material em
decomposição transportados pelo ar (estrume, adubo), frequentemente ricos em
Nocardia, bem como esporos de Aspergillus e outros fungos. A restrição das
atividades ou do contato social não tem papel comprovado na redução do risco
de infecção para os defeitos dos fagócitos.
Embora o tratamento clínico agressivo para muitos pacientes com
distúrbios dos fagócitos possa lhes permitir uma sobrevida durante anos sem
qualquer infecção potencialmente fatal, eles ainda podem apresentar efeitos
tardios do uso prolongado de antimicrobianos e outras complicações
inflamatórias. A cura da maioria dos defeitos congênitos dos fagócitos é possível
com transplante de medula óssea, e as taxas de sucesso estão melhorando (Cap.
110). A identificação de defeitos gênicos específicos em pacientes com DAL 1,
DGC e outras imunodeficiências levou a ensaios de terapia gênica em vários
distúrbios genéticos dos leucócitos.

LEITURAS ADICIONAIS
Casanova JL: Severe infectious diseases of childhood as monogenic inborn
errors of immunity. Proc Natl Acad Sci USA 112:E7128, 2015.
Kolaczkowska E, Kubes P: Neutrophil recruitment and function in health and
inflammation. Nat Rev Immunol 13:159, 2013.
Leiding JW et al (eds): GeneReviews® [Internet]. Seattle (WA): University of
Washington, Seattle; 1993–2017. 2012 August 9 [updated 2016 February
11].
Lionakis MS et al: Immunity against fungi. JCI Insight 2: pii: 93156, 2017.
Moutsopoulos NM et al: Interleukin-12 and interleukin-23 blockade in leukocyte
adhesion deficiency type 1. N Engl J Med 376:1141, 2017.
Soehnlein O et al: Neutrophils as protagonists and targets in chronic
inflammation. Nat Rev Immunol 17:248, 2017.
Williams KW et al: Eosinophilia associated with disorders of immune deficiency
or immune dysregulation. Immunol Allergy Clin North Am 35:523, 2015.
Wu UI, Holland SM: Host susceptibility to non-tuberculous mycobacterial
infections. Lancet Infect Dis 15:968, 2015.
61
Sangramento e trombose
Barbara A. Konkle

O sistema hemostático humano proporciona um equilíbrio natural entre forças


pró-coagulantes e anticoagulantes. As forças pró-coagulantes consistem na
adesão e agregação plaquetárias, bem como na formação de coágulos de fibrina;
as forças anticoagulantes incluem os inibidores naturais da coagulação e
fibrinólise. Sob circunstâncias normais, a hemostasia é regulada para promover o
fluxo sanguíneo; entretanto também está preparada para coagular o sangue
rapidamente a fim de interromper o fluxo sanguíneo e evitar a exsanguinação.
Após o sangramento ser estancado com sucesso, o sistema remodela o vaso
lesionado para restaurar o fluxo sanguíneo normal. Os principais componentes
do sistema hemostático, que funcionam em consonância, são (1) plaquetas e
outros elementos figurados do sangue, como monócitos e eritrócitos; (2)
proteínas plasmáticas (os fatores e inibidores fibrinolíticos e da coagulação); e
(3) a parede do vaso.
ETAPAS DA HEMOSTASIA NORMAL
FORMAÇÃO DO TAMPÃO PLAQUETÁRIO
Na lesão vascular, as plaquetas aderem ao local da lesão, em geral no endotélio
vascular lesado. A adesão plaquetária é mediada principalmente pelo fator de
von Willebrand (FvW), uma proteína multimérica grande presente tanto no
plasma como na matriz extracelular da parede subendotelial do vaso, que serve
como “cola molecular” primária, fornecendo força suficiente para suportar os
altos níveis de estresse de cisalhamento que tenderiam a separá-las com o fluxo
sanguíneo. A adesão plaquetária também é facilitada pela ligação direta ao
colágeno subendotelial por meio de receptores específicos de colágeno da
membrana plaquetária.
A adesão das plaquetas resulta em ativação e agregação plaquetárias
subsequentes. Esse processo é intensificado e amplificado por mediadores
humorais no plasma (p. ex., epinefrina, trombina); por mediadores liberados das
plaquetas ativadas (p. ex., difosfato de adenosina, serotonina); e por constituintes
da matriz extracelular da parede dos vasos, que entram em contato com as
plaquetas aderentes (p. ex., colágeno, FvW). As plaquetas ativadas passam por
reação de liberação, durante a qual secretam o conteúdo que depois promove a
agregação e inibem os fatores celulares endoteliais (anticoagulantes naturais).
Durante a agregação plaquetária (interação plaqueta-plaqueta), as plaquetas
adicionais são recrutadas a partir da circulação para o local da lesão vascular,
levando à formação de um trombo plaquetário oclusivo. O tampão plaquetário é
ancorado e estabilizado pela malha de fibrina em desenvolvimento.
O complexo da glicoproteína plaquetária (Gp) IIb/IIIa (αIIbβ3) constitui o
receptor mais abundante na superfície das plaquetas. A ativação da plaqueta
converte o receptor Gp IIb/IIIa, normalmente inativo, em um receptor ativo,
possibilitando a ligação ao fibrinogênio e FvW. Pelo fato da superfície de cada
plaqueta ter cerca de 50 mil sítios de ligação de Gp IIb/IIIa, inúmeras plaquetas
ativadas recrutadas para o local da lesão vascular podem formar rapidamente um
agregado oclusivo por meio de uma densa rede de pontes de fibrinogênio
intercelular. Como esse receptor é o principal mediador da agregação de
plaquetas, tornou-se um alvo efetivo para a terapia antiplaquetária.

FORMAÇÃO DO COÁGULO DE FIBRINA


As proteínas plasmáticas da coagulação (fatores da coagulação) normalmente
circulam no plasma nas suas formas inativas. A sequência de reações das
proteínas da coagulação que culminam na formação da fibrina foi originalmente
descrita como uma cachoeira ou cascata. Duas vias de coagulação sanguínea
foram descritas no passado: a via extrínseca ou de fator tecidual e a via
intrínseca ou de ativação de contato. Hoje se sabe que a coagulação
normalmente é iniciada por meio da exposição e ativação do fator tecidual (TF,
de tissue factor) por meio da via extrínseca clássica, mas com amplificação
criticamente importante por meio da via intrínseca clássica, como ilustrado na F
igura 61-1. Essas reações ocorrem nas superfícies fosfolipídicas, em geral a
superfície plaquetária ativada. O teste de coagulação no laboratório pode refletir
outras influências devido à natureza artificial dos sistemas in vitro utilizados (ver
adiante).

FIGURA 61-1 A coagulação é iniciada pela exposição do fator tecidual (TF), que, juntamente com o
fator (F) VIIa, ativa o FIX e o FX, o qual, por sua vez, tendo o FVIII e o FV como cofatores,
respectivamente, resultam em formação de trombina e conversão subsequente do fibrinogênio em fibrina. A
trombina ativa o FXI, o FVIII e o FV, amplificando o sinal de coagulação. Uma vez formado o complexo
TF/FVIIa/FXa, o inibidor da via do fator tecidual (TFPI) inibe a via TF/FVIIa, tornando a coagulação
dependente da alça de amplificação por meio de FIX/FVIII. A coagulação requer cálcio (não mostrado) e
ocorre nas superfícies fosfolipídicas, geralmente a membrana da plaqueta ativada.

O gatilho imediato para a coagulação é a lesão vascular que expõe o sangue


ao TF constitutivamente expresso nas superfícies dos componentes celulares
subendoteliais da parede do vaso, como as células musculares lisas e
fibroblastos. O TF também está presente nas micropartículas circulantes,
presumivelmente oriundas de células como os monócitos e as plaquetas. O TF
liga a serina-protease fator VIIa; o complexo ativa o fator X em fator Xa.
Alternativamente, o complexo pode ativar indiretamente o fator X convertendo
inicialmente o fator IX em fator IXa, que, em seguida, ativa o fator X. A
participação do fator XI na hemostasia não depende primariamente de sua
ativação pelo fator XIIa, mas sim de sua ativação pela trombina por feedback
positivo. Assim, o fator XIa age na propagação e amplificação, e não na
iniciação da cascata de coagulação.
O fator Xa pode ser formado por meio de ações do complexo TF/fator VIIa
ou fator IXa (tendo o fator VIIIa como cofator) e converte a protrombina em
trombina, a protease essencial do sistema de coagulação. O cofator essencial
para essa reação é o fator Va. Assim como o fator VIIIa homólogo, o fator Va é
produzido pela proteólise limitada induzida pela trombina do fator V. A trombina
é uma enzima multifatorial que converte o fibrinogênio plasmático solúvel em
uma matriz de fibrina insolúvel. A polimerização da fibrina envolve um processo
ordenado de associações intermoleculares (Fig. 61-2). A trombina também ativa
o fator XIII (fator de estabilização da fibrina) em fator XIIIa, que faz ligação
cruzada covalente e, portanto, estabiliza o coágulo de fibrina.
FIGURA 61-2 Formação e dissolução de fibrina. (A) O fibrinogênio é uma estrutura trinodular, que
consiste em dois domínios D e um domínio E. A ativação da trombina resulta em uma montagem lateral
ordenada de protofibrilas (B) com associações não covalentes. O fator XIIIa estabelece uma ligação cruzada
com os domínios D nas moléculas adjacentes (C). A lise da fibrina e do fibrinogênio (não mostrados) pela
plasmina ocorre em locais distintos e resulta em produtos de degradação intermediários da fibrina
(fibrinogênio) (não mostrados). Os dímeros-D são o produto da lise completa da fibrina (D), mantendo os
domínios D com ligação cruzada.

O conjunto dos fatores de coagulação nas superfícies da membrana celular


ativada acelera grandemente suas taxas de reação e também serve para localizar
a coagulação sanguínea nos sítios de lesão vascular. Componentes cruciais da
membrana celular, os fosfolipídeos ácidos normalmente não são expostos nas
superfícies da membrana celular íntegras. Entretanto, quando plaquetas,
monócitos e células endoteliais são ativados pela lesão vascular ou estímulos
inflamatórios, os principais grupos pró-coagulantes dos fosfolipídeos aniônicos
da membrana são translocados para as superfícies dessas células ou liberados
como parte de micropartículas, tornando-as disponíveis para sustentar e
promover as reações de coagulação plasmática.
MECANISMOS ANTITROMBÓTICOS
Vários mecanismos antitrombóticos fisiológicos agem em consonância para
evitar a coagulação sob circunstâncias normais. Esses mecanismos operam para
preservar a fluidez do sangue e para limitar a coagulação sanguínea em locais
específicos da lesão vascular. As células endoteliais exercem muitos efeitos
antitrombóticos. Produzem prostaciclina, óxido nítrico e ectoADPase/CD39, que
atuam para inibir a ligação, a secreção e a agregação das plaquetas. As células
endoteliais produzem fatores anticoagulantes que incluem as proteoglicanas de
heparan, antitrombina, inibidor da via TF e trombomodulina. Também ativam
mecanismos fibrinolíticos por meio da produção do ativador do plasminogênio
tecidual 1, urocinase, inibidor do ativador do plasminogênio e anexina 2.
A antitrombina é o principal inibidor da protease plasmática da trombina e
outros fatores da coagulação. A antitrombina neutraliza a trombina e outros
fatores de coagulação ativados formando um complexo entre o local ativo da
enzima e o centro reativo da antitrombina. A taxa de formação desses complexos
de inativação aumenta milhares de vezes na presença de heparina. A inativação
pela antitrombina da trombina e outros fatores de coagulação ativados ocorre
fisiologicamente nas superfícies vasculares, onde os glicosaminoglicanos,
incluindo os sulfatos de heparan, estão presentes para catalisar essas reações. As
deficiências hereditárias quantitativas e qualitativas da antitrombina levam a uma
predisposição ao tromboembolismo venoso durante toda a vida.
A proteína C é uma glicoproteína plasmática que se torna um
anticoagulante quando ativada pela trombina. A ativação da proteína C induzida
pela trombina ocorre fisiologicamente na trombomodulina, um sítio de ligação
para a trombina, formado por proteoglicanas transmembranas na superfície das
células endoteliais. A ligação da proteína C a seu receptor nas células endoteliais
a coloca em proximidade com o complexo trombina-trombomodulina,
aumentando sua eficiência de ativação. (Ver Fig. 61-3.) A proteína C ativada age
como um anticoagulante clivando e inativando os fatores V e VIII ativados. Essa
reação é acelerada por um cofator, a proteína S, que, à semelhança da proteína C,
é uma glicoproteína que sofre modificação pós-tradução dependente da vitamina
K. As deficiências quantitativas ou qualitativas da proteína C ou da proteína S,
ou a resistência à ação da proteína C ativada por uma mutação específica em seu
sítio de clivagem no fator Va (fator V de Leiden), levam a estados
hipercoaguláveis.
FIGURA 61-3 A via da proteína C ativada (PCA) na regulação da trombose. A geração de trombina
resulta em ativação da proteína C por interação com trombomodulina e proteína C ligada ao receptor
endotelial de proteína C (EPCR). A PCA com proteína S livre converte fatores ativados (F) VIII e V em
formas inativadas, reduzindo assim a geração de trombina. F, fator; IIa, trombina.

O inibidor da via do fator tecidual (TFPI) é um inibidor da protease


plasmática que regula a via extrínseca da coagulação induzida pelo TF. O TFPI
inibe o complexo TF/fator VIIa/fator Xa, desligando essencialmente a iniciação
da coagulação pelo TF/fator VIIa, que se torna, então, dependente da “alça de
amplificação” por meio da ativação do fator XI e do fator VIII pela trombina. O
TFPI é ligado à lipoproteína e também pode ser liberado pela heparina das
células endoteliais, (onde é ligado a glicosaminoglicanos) e das plaquetas. A
liberação de TFPI mediada pela heparina pode desempenhar um papel no efeito
anticoagulante das heparinas de baixo peso molecular (HBPM) não fracionadas.

O SISTEMA FIBRINOLÍTICO
Qualquer trombina que escapa dos efeitos inibitórios dos sistemas
anticoagulantes fisiológicos está disponível para converter o fibrinogênio em
fibrina. Em resposta, o sistema fibrinolítico endógeno é ativado para descartar a
fibrina intravascular e, assim, manter ou restabelecer a desobstrução da
circulação. Assim como a trombina é a enzima protease essencial do sistema da
coagulação, a plasmina é a principal enzima protease do sistema fibrinolítico,
atuando na digestão da fibrina em produtos de degradação da fibrina. O esquema
geral de fibrinólise e seu controle são mostrados na Figura 61-4.

FIGURA 61-4 Diagrama esquemático do sistema fibrinolítico. O ativador do plasminogênio tecidual


(tPA) é liberado das células endoteliais, liga-se ao coágulo de fibrina e ativa o plasminogênio em plasmina.
O excesso de fibrina é degradado pela plasmina em produtos da degradação (PDF) distintos. Qualquer
plasmina livre forma um complexo com a α2-antiplasmina (α2PI). PAI, inibidor do ativador do
plasminogênio; uPA, ativador do plasminogênio do tipo urocinase.

Os ativadores do plasminogênio, o ativador do plasminogênio tecidual


(tPA) e o ativador do plasminogênio do tipo urocinase (uPA) clivam a ligação
Arg560-Val561 do plasminogênio para gerar a plasmina enzimática ativa. Os
locais de ligação à lisina na plasmina (e plasminogênio) permitem que ela se
ligue à fibrina, de forma que a fibrinólise fisiológica seja “específica da fibrina”.
Tanto o plasminogênio (por meio de locais de ligação à lisina) como tPA
possuem afinidade específica para a fibrina e, portanto, ligam-se seletivamente
aos coágulos. A montagem de um complexo ternário, que consiste em fibrina,
plasminogênio e tPA, promove a interação localizada entre plasminogênio e tPA,
bem como acelera muito a taxa de ativação do plasminogênio em plasmina.
Além disso, a degradação parcial da fibrina pela plasmina expõe novos sítios de
ligação do plasminogênio e tPA nos resíduos de lisina carboxiterminal dos
fragmentos de fibrina, aumentando ainda mais essas reações. Isso cria um
mecanismo altamente eficiente para gerar plasmina focalmente no coágulo de
fibrina, que passa então a constituir o substrato de plasmina para digestão em
produtos de degradação da fibrina.
A plasmina cliva a fibrina em locais distintos de sua molécula, resultando
na produção de fragmentos de fibrina característicos durante o processo da
fibrinólise (Fig. 61-2). Os locais de clivagem da fibrina pela plasmina são os
mesmos que aqueles no fibrinogênio. Entretanto, quando a plasmina age na
fibrina com ligação cruzada covalente, os dímeros-D são liberados; e, assim,
podem ser medidos no plasma como um teste relativamente específico de
degradação da fibrina (e não de fibrinogênio). Estudos de dímeros-D podem ser
usados como marcadores sensíveis de formação de coágulos e foram validados
para uso clínico, visando excluir o diagnóstico de trombose venosa profunda
(TVP) e embolia pulmonar em populações selecionadas. Além disso, a
determinação dos dímeros-D pode ser usada para estratificar os pacientes
(particularmente mulheres), para risco de recorrência de tromboembolismo
venoso (TEV) quando medido dentro de 1 mês após interrupção da
anticoagulação administrada para tratamento de um evento idiopático inicial. Os
níveis de dímeros-D aumentam com a idade. O uso de um ponto de corte mais
alto para idosos é controverso.
A regulação fisiológica da fibrinólise ocorre primariamente em três níveis:
(1) os inibidores do ativador do plasminogênio (PAI), especificamente PAI-1 e
PAI-2, inibem os ativadores fisiológicos do plasminogênio; (2) o inibidor da
fibrinólise passível de ativação pela trombina (TAFI) limita a fibrinólise; e (3) a
α2-antiplasmina inibe a plasmina. O PAI-1 constitui o principal inibidor do tPA e
do uPA no plasma. O TAFI cliva os resíduos de lisina N-terminais da fibrina, o
que ajuda na localização da atividade da plasmina. A α2-antiplasmina é o
principal inibidor da plasmina no plasma humano, inativando qualquer plasmina
associada a coágulo sem fibrina.
ABORDAGEM AO PACIENTE
Sangramento e trombose
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
Os distúrbios da hemostasia podem ser hereditários ou adquiridos. Uma
anamnese pessoal e familiar detalhada é a chave para determinar a
cronicidade dos sintomas e a probabilidade do distúrbio ser hereditário,
fornecendo indícios de condições subjacentes que contribuíram para o
sangramento ou estado trombótico. Além disso, a anamnese pode apresentar
indícios da etiologia ao determinar (1) o local do sangramento (mucosa e/ou
articulação) ou trombose (arterial e/ou venosa) e (2) se uma tendência a
sangramento ou formação de coágulos subjacente foi aumentada por outro
distúrbio clínico ou pela introdução de medicamentos ou suplementos
dietéticos.

História do sangramento A história de sangramento é o preditor mais


importante do risco de sangramento. Ao avaliar um paciente com distúrbio
hemorrágico, a história das situações de risco, como a resposta a cirurgias
anteriores, deve ser analisada. O paciente tem uma história de sangramento
espontâneo ou induzido por traumatismo/cirurgia? As hemartroses
espontâneas constituem uma característica essencial da deficiência moderada
e grave dos fatores VIII e IX e, em raras circunstâncias, de outras
deficiências de fatores coagulação. Os sintomas de sangramento de mucosa
são mais sugestivos de distúrbios plaquetários subjacentes ou de doença de
von Willebrand (DvW), chamados distúrbios de hemostasia primária ou
formação de tampões plaquetários. Os distúrbios que afetam a hemostasia
primária são mostrados na Tabela 61-1.

TABELA 61-1 ■ Distúrbios da hemostasia primária (adesão plaquetária)


Defeitos da adesão plaquetária
Doença de von Willebrand
Síndrome de Bernard-Soulier (ausência ou disfunção da Gp Ib-IX-V plaquetária)
Defeitos da agregação plaquetária
Tromboastenia de Glanzmann (ausência ou disfunção da Gp IIb/IIIa plaquetária)
Afibrinogenemia
Defeitos da secreção plaquetária
Redução da atividade da cicloxigenase
Induzida por fármacos (ácido acetilsalicílico, agentes anti-inflamatórios não esteroides, tienopiridinas)
Hereditários
Defeitos no reservatório de armazenamento de grânulos
Hereditários
Adquiridos
Defeitos secretores hereditários inespecíficos
Efeitos medicamentosos inespecíficos
Uremia
Revestimento plaquetário (p. ex., paraproteína, penicilina)
Defeito da atividade coagulante plaquetária
Síndrome de Scott

Um escore de sangramento foi validado como instrumento para prever


os pacientes que têm maior tendência a apresentar DvW do tipo 1
(International Society on Thrombosis and Haemostasis Bleeding Assessment
Tool [www.isth.org/resource/resmgr/ssc/isth-ssc_bleeding_assessment.pdf]).
Trata-se do instrumento de maior utilidade para excluir o diagnóstico de
distúrbio hemorrágico, evitando, assim, a realização desnecessária de
exames. Em um estudo, foi constatado que um escore de sangramento baixo
(≤ 3) e um tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPa) normal tinham
um valor preditivo negativo de 99,6% para o diagnóstico de DvW. Os
sintomas de sangramento que parecem ser mais comuns em pacientes com
distúrbios hemorrágicos incluem sangramento prolongado com cirurgia,
procedimentos odontológicos e extrações dentárias e/ou traumatismo,
sangramento menstrual intenso (SMI) ou hemorragia pós-parto (HPP) e
grandes equimoses (frequentemente acompanhadas de aumento de volume).
Os hematomas de formação fácil e o SMI constituem queixas comuns
em pacientes com e sem distúrbios hemorrágicos. A formação fácil de
hematomas também pode ser um sinal de distúrbios clínicos nos quais não há
coagulopatia identificável; em vez disso, as condições são causadas por uma
anormalidade dos vasos sanguíneos ou de seus tecidos de suporte. Na
síndrome de Ehlers-Danlos, pode haver sangramento pós-traumático e
história de hiperextensibilidade articular. A síndrome de Cushing, o uso
crônico de esteroides e o envelhecimento resultam em mudanças na pele e
tecido subcutâneo, ocorrendo sangramento subcutâneo em resposta a
traumatismos menores. Esse último é denominado púrpura senil.
A epistaxe é um sintoma comum, particularmente em crianças e em
climas secos, e pode não refletir um distúrbio hemorrágico subjacente.
Entretanto, é o sintoma mais comum na telangiectasia hemorrágica
hereditária e em meninos com DvW. Os indícios de que a epistaxe é um
sintoma de distúrbio hemorrágico subjacente são ausência de variação
sazonal e sangramento que requer avaliação clínica ou tratamento, como
cauterização. Observa-se a ocorrência de sangramento com a erupção dos
dentes primários em crianças com distúrbios hemorrágicos mais graves,
como hemofilia moderada ou grave. É incomum em crianças com distúrbios
hemorrágicos leves. Os pacientes com distúrbios da hemostasia primária
(adesão plaquetária) podem apresentar aumento do sangramento após higiene
dentária e outros procedimentos que envolvam manipulação da gengiva.
O SMI é definido quantitativamente como uma perda de > 80 mL de
sangue por ciclo, com base na quantidade de perda sanguínea necessária para
produzir anemia ferropriva. Uma queixa de menstruação intensa é subjetiva e
tem pouca correlação com perda excessiva de sangue. Os preditores de SMI
consistem em sangramento resultando em anemia ferropriva ou necessidade
de transfusão de sangue, eliminação de coágulos de > 2,5 cm de diâmetro e
troca de absorvente a intervalos de menos de 1 hora. O SMI é um sintoma
comum em mulheres com distúrbios hemorrágicos subjacentes, e a sua
ocorrência é relatada na maioria das mulheres com DvW, mulheres com
deficiência de fator XI e portadoras sintomáticas de hemofilia. As mulheres
com distúrbios hemorrágicos subjacentes têm mais tendência a apresentar
outros sintomas hemorrágicos, incluindo sangramento após extrações
dentárias, sangramento pós-operatório e pós-parto, e têm muito mais
probabilidade de apresentar SMI na menarca, em comparação com mulheres
com SMI devido a outras causas.
A HPP é um sintoma comum em mulheres com distúrbios hemorrágicos
subjacentes. Em mulheres com DvW do tipo 1 e portadoras sintomáticas de
hemofilia A, cujos níveis de FvW e de fator VIII se normalizam
habitualmente durante a gravidez, a HPP pode ser tardia. As mulheres com
história de HPP podem ter risco mais alto de recidiva em gestações
subsequentes. A ruptura de cistos ovarianos com hemorragia intra-abdominal
também foi relatada em mulheres com distúrbios hemorrágicos subjacentes.
A tonsilectomia é um importante desafio hemostático, pois os
mecanismos hemostáticos íntegros são essenciais para evitar sangramento
excessivo do leito tonsilar. O sangramento pode ocorrer logo após a cirurgia
ou aproximadamente 7 dias após, com perda da crosta no local cirúrgico.
Sangramento tardio semelhante é observado após ressecção de pólipo
colônico. O sangramento gastrintestinal (GI) e a hematúria geralmente são
causados por patologia subjacente, devendo-se adotar procedimentos para
identificar e tratar o local do sangramento mesmo em pacientes com
distúrbios hemorrágicos conhecidos. A DvW, particularmente tipos 2 e 3, foi
associada a angiodisplasia do intestino e hemorragia digestiva.
As hemartroses e os hematomas musculares espontâneos são
característicos de deficiência congênita moderada ou grave do fator VIII ou
do IX. Também podem ser observados em deficiências moderadas e graves
do fibrinogênio, protrombina, bem como dos fatores V, VII e X. As
hemartroses espontâneas ocorrem raramente em outros distúrbios
hemorrágicos exceto na DvW grave, com níveis de fator VIII associados <
5%. O sangramento do músculo ou de tecidos moles também é comum na
deficiência de fator VIII adquirida. O sangramento em uma articulação
resulta em dor e edema graves, assim como perda da função, mas raramente
está associado a alteração de cor devido à formação de hematoma ao redor da
articulação. Os locais de sangramento com risco de vida incluem a
orofaringe, em que a hemorragia pode obstruir a via aérea, o sistema nervoso
central e o retroperitônio. O sangramento no sistema nervoso central constitui
a principal causa de morte relacionada com sangramento em pacientes com
deficiências congênitas graves de fator.

Efeitos pró-hemorrágicos dos medicamentos e suplementos dietéticos O


ácido acetilsalicílico e outros fármacos anti-inflamatórios não esteroides
(AINEs) que inibem a cicloxigenase 1 prejudicam a hemostasia primária,
podendo exacerbar o sangramento devido a outra causa ou mesmo revelar um
sangramento leve previamente oculto, como DvW. Contudo, todos os AINEs
podem precipitar hemorragia digestiva, que pode ser mais grave em pacientes
com distúrbios hemorrágicos subjacentes. O efeito do ácido acetilsalicílico
persiste pelo tempo de vida da plaqueta, embora em indivíduos com
renovação plaquetária típica o defeito funcional retorna para perto do normal
em um período de 2-3 dias após a última dose. O efeito de outros AINEs é
mais curto, pois o efeito inibidor é revertido quando o fármaco é suspenso.
Inibidores do receptor ADP P2Y12 (clopidogrel, prasugrel e ticagrelor)
inibem a agregação plaquetária mediada pelo ADP e, à semelhança dos
AINEs, podem precipitar ou exacerbar os sintomas hemorrágicos. O risco de
sangramento com estes fármacos é maior do que com AINEs.
Muitos suplementos fitoterápicos podem prejudicar a função
hemostática (Tab. 61-2). Alguns estão mais convincentemente associados a
risco de sangramento do que outros. O óleo de peixe ou suplementos
concentrados de ácido graxo ômega-3 prejudicam a função plaquetária. Eles
alteram a bioquímica das plaquetas, produzindo mais PGI3, um inibidor
plaquetário mais potente do que a prostaciclina (PGI2), e mais tromboxano
A3, um ativador plaquetário menos potente do que o tromboxano A2. Na
verdade, as dietas naturalmente ricas em ácidos graxos ômega-3 podem
resultar em um tempo de sangramento prolongado e exames de agregação
plaquetária anormais, porém o verdadeiro risco de sangramento associado é
incerto. A vitamina E parece inibir a agregação plaquetária mediada pela
proteína-cinase C e produção de óxido nítrico. Nos pacientes com hematoma
ou sangramento inexplicados, é prudente revisar quaisquer novas medicações
ou suplementos e descontinuar os que podem estar associados a
sangramentos.

TABELA 61-2 ■ Suplementos fitoterápicos associados ao aumento do sangramento


Ervas com potencial de atividade antiplaquetária
Ginkgo (Ginkgo biloba L.)
Alho (Allium sativum)
Mirtilo (Vaccinium myrtillus)
Gengibre (Gingiber officinale)
Dong quai (Angelica sinensis)
Tanaceto (Tanacetum parthenium)
Ginseng asiático (Panax ginseng)
Ginseng americano (Panax quinquefolius)
Ginseng siberiano/eleutero (Eleutherococcus senticosus)
Cúrcuma (Circuma longa)
Ulmeira (Filipendula ulmaria)
Salgueiro (Salix spp.)
Ervas que contêm cumarina
Agripalma (Leonurus cardiaca)
Camomila (Matricaria recutita, Chamaemelum mobile)
Castanha-da-índia (Aesculus hippocastanum)
Trevo-vermelho (Trifolium pratense)
Feno-grego (Trigonella foenum-graecum)

Doenças sistêmicas subjacentes que causam ou exacerbam uma tendência


a sangramento Os distúrbios hemorrágicos adquiridos são geralmente
secundários ou associados à doença sistêmica. Por isso, a avaliação clínica de
um paciente com tendência a sangramento tem de incluir uma avaliação
abrangente para evidências de doença subjacente. Hematomas ou
sangramento de mucosa podem ser a queixa de apresentação na doença
hepática, deficiência renal grave, hipotireoidismo, paraproteinemias ou
amiloidose, além de distúrbios que causam insuficiência da medula óssea.
Todos os fatores da coagulação são sintetizados no fígado, e a insuficiência
hepática resulta em deficiência combinada de fatores. Isso é frequentemente
complicado pela trombocitopenia associada a insuficiência hepática e
hipertensão portal. Os fatores de coagulação II, VII, IX, X e as proteínas C, S
e Z são dependentes da vitamina K para modificação pós-traducional.
Embora a vitamina K seja necessária nos processos pró-coagulantes e
anticoagulantes, o fenótipo da deficiência de vitamina K ou o efeito da
varfarina na coagulação é o sangramento.
A contagem normal de plaquetas varia de 150.000 a 450.000/μL. A
trombocitopenia resulta de redução da produção, aumento da destruição e/ou
sequestro. Embora o risco de sangramento varie um pouco conforme a causa
da trombocitopenia, raramente ocorre sangramento na trombocitopenia
isolada com contagens > 50.000/μL e, em geral, não antes de < 10.000-
20.000/μL. As coagulopatias coexistentes, conforme observado na
insuficiência hepática ou coagulação disseminada; a infecção, os fármacos
inibidores de plaquetas; e os distúrbios clínicos subjacentes, podem aumentar
o risco de sangramento no paciente trombocitopênico. A maior parte dos
procedimentos pode ser realizada em pacientes com uma contagem
plaquetária de 50.000/μL. O nível necessário para cirurgia de grande porte
depende do tipo de cirurgia e do estado clínico subjacente do paciente,
embora uma contagem de aproximadamente 80.000/μL provavelmente seja
suficiente.

HISTÓRIA DE TROMBOSE
O risco de trombose, assim como o de sangramento, é influenciado pela
genética e pelo ambiente. O principal fator de risco para trombose arterial é a
aterosclerose, enquanto os fatores de risco para trombose venosa consistem
em imobilidade, cirurgia, distúrbios clínicos subjacentes (p. ex., neoplasias
malignas), medicações, (p. ex.,terapia hormonal), obesidade e predisposições
genéticas. A Tabela 61-3 apresenta os fatores que aumentam os riscos para
trombose tanto venosa quanto arterial.

TABELA 61-3 ■ Fatores de risco para trombose


Venosa Venosa e arterial

Hereditários Hereditários
Fator V de Leiden Homocistinúria
Protrombina G20210A Disfibrinogenemia
Deficiência de antitrombina Adquiridos
Deficiência de proteína C Neoplasia maligna
Deficiência de proteína S Síndrome antifosfolipídeo
Fator VIII elevado Terapia hormonal
Adquiridos Policitemia vera
Idade Trombocitopenia essencial
Trombose anterior Hemoglobinúria paroxística noturna
Imobilização Púrpura trombocitopênica trombótica
Cirurgia de grande porte Trombocitopenia induzida por heparina
Gravidez e puerpério Coagulação intravascular disseminada
Hospitalização Outrosa
Obesidade Fatores II, IX, XI elevados
Infecção Níveis de TAFI elevados
Resistência à PCA não genética Níveis baixos de TFPI
Tabagismo
aNão se sabe se o risco é hereditário ou adquirido.

Siglas: PCA, proteína C ativada; TAFI, inibidor da fibrinólise passível de ativação pela trombina; TFPI, inibidor da via do fator tecidual.

O aspecto mais importante em uma história relacionada com trombose


venosa é determinar se o evento trombótico foi idiopático (significando que
não houve fator precipitante evidente) ou se foi um evento precipitado. Nos
pacientes sem neoplasia maligna subjacente, a ocorrência de um evento
idiopático constitui o preditor mais forte de recidiva de TEV. Nos pacientes
que têm uma vaga história de trombose, história de tratamento com varfarina
sugere TVP pregressa. A idade é um fator de risco importante para a
trombose venosa – o risco de TVP aumenta a cada década, com uma
incidência aproximada de 1/100.000 por ano no início da infância até 1/200
por ano entre octogenários. A história familiar mostra-se útil para determinar
se há predisposição genética e qual parece ser o grau de predisposição. Uma
trombofilia genética que confere um aumento relativamente pequeno de
risco, como ser heterozigoto para a protrombina G20210A ou mutação do
fator V de Leiden, é um determinante menor de risco em indivíduos idosos
que passam por procedimento cirúrgico de alto risco. Conforme ilustrado na
Figura 61-5, um evento trombótico normalmente apresenta mais de um fator
contribuinte. Os fatores predisponentes precisam ser cuidadosamente
avaliados para determinar o risco de trombose recorrente e, com a
consideração do risco de sangramento do paciente, deve-se determinar a
duração da anticoagulação. Exames para trombofilias hereditárias em adultos
devem se limitar às ocasiões em que os resultados mudariam os cuidados
clínicos.
FIGURA 61-5 Risco trombótico com o passar do tempo. Esta figura mostra de modo esquemático o
risco trombótico de um indivíduo com o passar do tempo. A ocorrência de uma mutação subjacente do
fator V de Leiden fornece um risco aumentado “teoricamente” constante. O risco trombótico aumenta
com a idade e, intermitentemente, com contraceptivos orais (CPO) ou o uso de terapia de reposição
hormonal (TRH); outros eventos podem aumentar ainda mais o risco. Em algum ponto, o risco
cumulativo pode aumentar até o limiar para trombose, resultando em trombose venosa profunda (TVP).
Nota: A magnitude e a duração do risco mostradas na figura são usadas apenas como exemplo e podem
não refletir precisamente o risco relativo determinado pelo estudo clínico. (De BA Konkle, A Schafer,
em DP Zipes et al. [eds.]: Braunwald’s Heart Disease, 7th ed. Philadelphia, Saunders, 2005;
modificada com permissão de FR Rosendaal: Venous thrombosis: A multicausal disease. Lancet 353:
1167, 1999.)

AVALIAÇÃO LABORATORIAL
A anamnese e o exame clínico cuidadosos são componentes essenciais na
avaliação do sangramento e risco trombótico. O uso de exames laboratoriais
de coagulação complementa, mas não substitui, a avaliação clínica. Não
existe nenhum exame que forneça uma avaliação global da hemostasia. O
tempo de sangramento tem sido usado para avaliar o risco de sangramento;
entretanto ele não prevê o risco de sangramento com uma cirurgia e
tampouco é recomendado para essa indicação. O PFA-100, um instrumento
que mede a coagulação dependente das plaquetas em condições de fluxo, é
mais sensível e específico para a DvW do que o tempo de sangramento;
todavia não é sensível o suficiente para excluir a possibilidade de distúrbios
hemorrágicos leves. Os tempos de fechamento do PFA-100 são prolongados
em pacientes com alguns distúrbios plaquetários hereditários, mas não todos
eles. Além disso, sua utilidade para prever o risco de sangramento não foi
determinada. A tromboelastografia pode ser útil na orientação da transfusão
intraoperatória mas não é amplamente aplicável para o diagnóstico de
distúrbios de hemostasia e trombose.
Para exames pré-operatórios e pré-procedimentos de rotina, um tempo
de protrombina (TP) anormal pode detectar doença hepática ou deficiência
de vitamina K que não foram previamente analisadas. Estudos não
confirmaram a utilidade de um TTPa nas avaliações pré-operatórias de
pacientes com história negativa de sangramento. O uso primário de exame de
coagulação deve ser para confirmar a presença e o tipo de distúrbio
hemorrágico em um paciente com história clínica suspeita.
Devido à natureza dos exames de coagulação, a aquisição e manuseio
adequados da amostra são cruciais para obter resultados válidos. Nos
pacientes com exames de coagulação anormais que não têm história de
sangramento, a repetição dos exames com atenção para esses fatores
frequentemente resulta em valores normais. A maioria dos exames de
coagulação é realizada em plasma anticoagulado com citrato de sódio
recalcificado para o exame. Pelo fato de o anticoagulante estar em uma
solução líquida e precisar ser adicionado ao sangue em proporção ao volume
plasmático, tubos de coleta incorretamente preenchidos ou inadequadamente
misturados apresentam resultados errados. Os tubos Vacutainer devem ser
preenchidos para > 90% do preenchimento recomendado, o que em geral é
denotado por uma linha no tubo. Um hematócrito elevado (> 55%) pode
resultar em um falso valor devido a uma razão reduzida entre plasma e
anticoagulante.

Exames de rastreamento Os exames de rastreamento mais comumente


usados são o TP, o TTPa e a contagem de plaquetas. O TP avalia os fatores I
(fibrinogênio), II (protrombina), V, VII e X (Fig. 61-6). O TP mede o tempo
para a formação de coágulo do plasma citrado após recalcificação e adição de
tromboplastina, uma mistura de TF e fosfolipídeos. A sensibilidade do exame
varia de acordo com a fonte de tromboplastina. A relação entre os defeitos na
hemostasia secundária (formação de fibrina) e as anormalidades dos testes de
coagulação é mostrada na Tabela 61-4. Para ajustar essa variabilidade, a
sensibilidade geral das diferentes tromboplastinas para a redução dos fatores
de coagulação II, VII, IX e X dependentes da vitamina K nos pacientes
anticoagulados é expressa como o Índice de Sensibilidade Internacional
(ISI). A razão normalizada internacional (INR) é determinada com base na
fórmula: INR = (TPpaciente/TPmédia normal)ISI.

FIGURA 61-6 Atividade do fator de coagulação testada no tempo de tromboplastina parcial ativada
(TTPa) em vermelho e tempo de protrombina (TP) em verde, ou ambos. F, fator; HMWK, cininogênio
de alto peso molecular; PC, pré-calicreína.

TABELA 61-4 ■ Distúrbios hemostáticos e anormalidades dos testes de coagulação


Tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPa) prolongado
Nenhum sangramento clínico – ↓ fatores XII, cininogênio de alto peso molecular, pré-calicreína
Sangramento variável, porém habitualmente leve – ↓ fator XI, leve ↓ fator VIII e fator IX
Sangramento grave, frequente – deficiências graves dos fatores VIII e IX
Heparina e inibidores diretos da trombina
Tempo de protrombina (TP) prolongado
Deficiência de fator VII
Deficiência de vitamina K – precoce
Anticoagulação com varfarina
Inibidores diretos de Xa (rivaroxabana, edoxabana, apixabana – observar que o TP pode estar normal)
TTPa e TP prolongados
Deficiência de fatores II, V, X ou fibrinogênio
Deficiência de vitamina K – tardia
Inibidores direto da trombina
Tempo de trombina prolongado
Heparina ou inibidores semelhantes à heparina
Inibidores diretos da trombina (p. ex., dabigatrana, argatrobana, bivalirudina)
Sangramento leve ou ausente – disfibrinogenemia
Sangramento grave, frequente – afibrinogenemia
TP prolongado e/ou TTPa não corrigido com mistura de plasma normal
Sangramento – inibidor de fator específico
Ausência de sintoma ou formação de coágulo e/ou perda de gestação – anticoagulante lúpico
Coagulação intravascular disseminada
Heparina ou inibidor direto da trombina
Solubilidade anormal do coágulo
Deficiência de fator XIII
Inibidores ou ligação cruzada defeituosa
Lise rápida de coágulo
Deficiência de α2-antiplasmina ou inibidor do ativador do plasminogênio 1

Tratamento com terapia fibrinolítica

A INR foi desenvolvida para avaliar a anticoagulação estável causada


pela redução dos fatores de coagulação dependentes da vitamina K; é
comumente usado na avaliação dos pacientes com doença hepática. Enquanto
permite uma avaliação entre laboratórios, a sensibilidade do reagente, quando
usada para determinar o ISI, não é a mesma na doença hepática do que com a
anticoagulação com varfarina. Além disso, a insuficiência hepática
progressiva está associada a alterações variáveis nos fatores de coagulação; o
grau de prolongamento do TP e da INR prevê o risco de sangramento apenas
de maneira aproximada. A geração de trombina apresentou-se normal em
muitos pacientes com disfunção hepática leve a moderada. Como o TP mede
apenas um aspecto da hemostasia afetada pela disfunção hepática,
provavelmente superestimamos o risco de sangramento de uma INR
levemente elevada nessa situação. Reagentes de TP apresentam sensibilidade
variada aos inibidores diretos do Xa e o TP costuma ser normal em pacientes
em tratamento com apixabana.
O TTPa avalia as vias da coagulação intrínseca e comum; os fatores XI,
IX, VIII, X, V e II; o fibrinogênio; a pré-calicreína; o cininogênio de alto
peso molecular; e o fator XII (Fig. 61-6). O reagente de TTPa contém
fosfolipídeos derivados de fontes animais e vegetais que funcionam como
substitutos plaquetários nas vias de coagulação e inclui um ativador do
sistema de coagulação intrínseco, como o ácido elágico não particulado, ou
os ativadores particulados caulim, celite ou sílica micronizada.
A composição fosfolipídica dos reagentes no TTPa varia, o que
influencia a sensibilidade dos reagentes individualmente às deficiências do
fator de coagulação e aos inibidores, como a heparina e os anticoagulantes
lúpicos. Assim, os resultados do TTPa variam de um laboratório para outro e
a faixa normal no laboratório em que o teste ocorre deve ser usada na
interpretação. Os laboratórios locais podem relacionar seus valores de TTPa
com a anticoagulação terapêutica da heparina correlacionando valores de
TTPa com mensurações diretas da atividade da heparina (ensaios anti-Xa ou
titulação da protamina) em amostras de pacientes heparinizados, embora a
correlação entre esses ensaios frequentemente seja precária. O reagente do
TTPa irá variar em sensibilidade às deficiências isoladas de fator e em geral
se tornará prolongado com as deficiências de fator na ordem de 30 a 50%.

Teste da mistura Os testes da mistura são usados para avaliar um TTPa ou,
menos comumente, um TP prolongado distinguindo entre uma deficiência de
fator e um inibidor. Nesse ensaio, o plasma normal e o plasma do paciente
são misturados em uma proporção de 1:1, sendo o TTPa e o TP determinados
imediatamente e após incubação a 37°C por tempos variados, normalmente
30, 60 e/ou 120 minutos. Com deficiências de fator isoladas, o TTPa será
corrigido com a mistura e permanecerá corrigido com incubação. Com o
prolongamento de TTPa causado por anticoagulante lúpico, a mistura e a
incubação não irão apresentar correção. Nos anticorpos neutralizantes do
fator adquiridos, como um inibidor do fator VIII adquirido, o exame inicial
pode ou não ser imediatamente corrigido após a mistura, mas se prolongará
ou continuará prolongado com a incubação a 37°C. A falha em corrigir com a
mistura pode também ser causada pela presença de outros inibidores ou
substâncias de interferência, como a heparina, produtos da degradação da
fibrina e paraproteínas.
Ensaios de fatores específicos As decisões para avançar com os ensaios de
fator de coagulação específicos serão influenciadas pela situação clínica e os
resultados dos testes de rastreamento de coagulação. O diagnóstico preciso e
o tratamento efetivo das deficiências de coagulação hereditárias e adquiridas
necessitam de quantificação dos fatores relevantes. Quando o sangramento é
grave, existe uma necessidade urgente de ensaios específicos para orientar o
tratamento adequado. Os ensaios de fator isolados em geral são realizados
como modificações do teste da mistura, em que o plasma do paciente é
misturado com plasma deficiente no fator que está sendo estudado. Isso irá
corrigir todas as deficiências de fator em > 50%, tornando, assim, o
prolongamento da formação do coágulo devido à deficiência de fator
dependente do fator ausente no plasma adicionado.

Teste de anticorpos antifosfolipídeos Os anticorpos dirigidos contra


fosfolipídeos (cardiolipina) ou proteínas de ligação aos fosfolipídeos (β2-
microglobulina e outras) são detectados pelo ensaio imunoabsorvente ligado
à enzima (ELISA). Quando estes anticorpos interferem nos testes de
coagulação dependentes de fosfolipídeos, são chamados de anticoagulantes
lúpicos. O TTPa exibe uma variabilidade quanto à sensibilidade aos
anticoagulantes lúpicos, dependendo, em parte, dos reagentes de TTPa
usados. Um ensaio que utiliza um reagente sensível foi denominado LA-PTT
(lupus anticoagulant – partial thromboplastin time). O teste do veneno de
víbora de Russel diluído (TVVRD) e o teste de inibição da tromboplastina
tecidual (TTI) são modificações dos testes-padrão com o reagente
fosfolipídico diminuído, aumentando, assim, a sensibilidade aos anticorpos
que interferem no componente fosfolipídico. Contudo, os testes não são
específicos para anticoagulantes lúpicos, pois as deficiências de fator ou
outros inibidores também irão resultar em prolongamento. A documentação
de um anticoagulante lúpico requer não apenas o prolongamento de um teste
de coagulação dependente de fosfolipídeo, mas também a ausência de
correção quando misturado com plasma normal e a correção com a adição de
membranas plaquetárias ativadas ou determinados fosfolipídeos (p. ex., fase
hexagonal).

Outros testes de coagulação O tempo de trombina e o de reptilase medem a


conversão do fibrinogênio em fibrina, sendo prolongados quando o nível de
fibrinogênio é baixo (em geral, < 80-100 mg/dL) ou qualitativamente
anormais, como observado em disfibrinogenemias hereditárias ou adquiridas;
ou quando há interferência dos produtos de degradação da
fibrina/fibrinogênio. O tempo de trombina, mas não o de reptilase, é
prolongado na presença de heparina. O tempo de trombina está
acentuadamente prolongado na presença do inibidor direto da trombina, a
dabigatrana; pode-se utilizar um tempo de trombina diluída para avaliar a
atividade do fármaco. A determinação da atividade inibitória plasmática do
antifator Xa é um teste frequentemente usado para avaliar os níveis de
HBPM, ou como mensuração direta da atividade da heparina não fracionada
(HNF), além de avaliar a atividade dos inibidores diretos do fator Xa, a
rivaroxabana, apixabana e edoxabana. O fármaco na amostra do paciente
inibe a conversão enzimática de um substrato cromogênico específico do
fator Xa em produto colorido pelo fator Xa. São criadas curvas-padrão
usando múltiplas concentrações do fármaco específico, e essas curvas são
usadas para calcular a concentração de atividade anti-Xa no plasma do
paciente.

Exames laboratoriais para trombofilia Os ensaios laboratoriais para detectar


estados trombofílicos incluem diagnóstico molecular e ensaios imunológicos
e funcionais. Esses ensaios variam quanto à sua sensibilidade e
especificidade para o distúrbio que está sendo testado. Além disso, a
trombose aguda, as doenças agudas, os distúrbios inflamatórios, a gravidez e
determinados medicamentos afetam os níveis de muitos fatores de
coagulação e seus inibidores. A antitrombina é reduzida pela heparina e em
caso de trombose aguda. Os níveis das proteínas C e S podem ser
aumentados em caso de trombose aguda, sendo reduzidos pela varfarina. Os
anticorpos antifosfolipídicos frequentemente são transitoriamente positivos
na doença aguda. Em geral, os testes para as trombofilias genéticas só devem
ser realizados se houver uma forte história familiar de trombose e quando os
resultados obtidos afetarem a tomada de decisão clínica.
Como as avaliações de trombofilia são habitualmente realizadas para
avaliar a necessidade de estender a anticoagulação, o teste, se indicado, deve
ser realizado em estado de equilíbrio e longe do evento agudo. Na maioria
dos casos, a anticoagulação com varfarina pode ser interrompida depois dos
3 a 6 meses iniciais de tratamento, e pode-se realizar um teste depois de pelo
menos 3 semanas. Como marcador sensível da ativação da coagulação, o
ensaio quantitativo dos dímeros-D, realizado 4 semanas após interromper a
anticoagulação, pode ser usado para estratificar o risco de trombose
recorrente em pacientes, especialmente mulheres, que apresentam um evento
idiopático.

Medidas da função plaquetária O tempo de sangramento tem sido usado


para avaliar o risco de sangramento; no entanto não há comprovação de que
prevê o risco de sangramento com cirurgia nem é recomendado para essa
indicação. O PFA-100 e instrumentos semelhantes que medem a coagulação
dependente das plaquetas em condições de fluxo são geralmente mais
sensíveis e específicos para os distúrbios plaquetários e a DvW do que o
tempo de sangramento; todavia os dados são insuficientes para sustentar o
seu uso na previsão do risco de sangramento ou para monitorar a resposta ao
tratamento, e são obtidos resultados normais em alguns pacientes com
distúrbios plaquetários e DvW leve. Quando usados na avaliação de um
paciente com sintomas de sangramento, os resultados anormais, assim como
ocorre com o tempo de sangramento, requerem testes específicos, como
ensaios de DvW e/ou estudos de agregação plaquetária. Como todos esses
ensaios de “rastreamento” podem negligenciar os pacientes com distúrbios
hemorrágicos leves, estudos adicionais são necessários para definir seu papel
na avaliação da hemostasia.
Para a agregometria plaquetária clássica, são adicionados vários
agonistas ao sangue total ou plasma rico em plaquetas do paciente, e a
agregação plaquetária é medida. Os testes de secreção plaquetária em
resposta aos agonistas também podem ser medidos. Esses testes são afetados
por muitos fatores, incluindo diversos medicamentos, e a associação entre
defeitos menores na agregação ou secreção nesses estudos e o risco de
sangramento ainda não foi claramente estabelecida.

LEITURAS ADICIONAIS
Giannakopoulos B, Krilis SA: The pathogenesis of the antiphospholipid
syndrome. N Engl J Med 368:11, 2013.
Hicks LK et al: The ASH choosing wisely® campaign: Five hematologic tests
and treatments to question. Blood 1222:3879, 2013.
Konkle BA: Direct oral anticoagulants: Monitoring anticoagulant effect, in
Direct Oral Anticoagulants in Clinical Practice, Connors JM, ed., Hematol
Oncol Clin North Am 30:995, 2016.
Mackie I et al: Guidelines on the laboratory aspect of assays used in haemostasis
and thrombosis. Int Jnl Lab Hem 35:1, 2013.
Middeldorp S: Evidence-based approach to thrombophilia testing. J Thromb
Haemost 31:275, 2011.
Rydz N, James PD: The evolution and value of bleeding assessment tools. J
Thromb Haemost 10:2223, 2012.
Wagenman BL et al: The laboratory approach to inherited and acquired
coagulation factor deficiencies. Clini Lab Med 29:229, 2009.
Yau JW et al: Endothelial cell control of thrombosis. BMC Cardiovasc Disord
15:130, 2015.
62
Linfadenopatia e esplenomegalia
Dan L. Longo

Este capítulo é um guia para a avaliação de pacientes que apresentam aumento


dos linfonodos (linfadenopatia) ou do baço (esplenomegalia). A linfadenopatia é
um achado clínico bastante comum nas instituições de atenção primária,
enquanto a esplenomegalia palpável é menos frequente.
LINFADENOPATIA
A linfadenopatia pode ser um achado incidental em pacientes que estão sendo
examinados por vários motivos, ou pode representar um sinal ou sintoma inicial
da doença do paciente. O médico precisará decidir se a linfadenopatia representa
um achado normal ou se exige exames adicionais, incluindo até mesmo uma
biópsia. Os linfonodos submandibulares lisos e macios (< 1 cm) são
frequentemente palpáveis em crianças e adultos jovens sadios; os adultos sadios
podem ter linfonodos inguinais palpáveis de até 2 cm, considerados normais.
Não há necessidade de avaliação adicional desses linfonodos normais. Por outro
lado, se o médico acreditar que o(s) linfonodo(s) está(ão) anormal(is), será
preciso estabelecer um diagnóstico mais preciso.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Linfadenopatia
A linfadenopatia pode ser uma manifestação primária ou secundária de
inúmeros distúrbios, como mostra a Tabela 62-1. Muitos desses distúrbios
são causas infrequentes de linfadenopatia. Na atenção primária, mais de 66%
dos pacientes com linfadenopatia apresentam causas inespecíficas ou
doenças das vias aéreas superiores (virais ou bacterianas), enquanto < 1%
possuem uma neoplasia maligna. Em um estudo, 84% dos pacientes
encaminhados para avaliação da linfadenopatia tiveram um diagnóstico
“benigno”. Os 16% rentantes apresentavam uma neoplasia maligna (linfoma
ou adenocarcinoma metastático). Dos pacientes com linfadenopatia benigna,
63% apresentavam uma etiologia inespecífica ou reativa (não foi encontrado
agente causal), enquanto o restante apresentou uma causa específica
demonstrada, mais comumente mononucleose infecciosa, toxoplasmose ou
tuberculose. Assim, a grande maioria dos pacientes com linfadenopatia
apresenta uma etiologia inespecífica, exigindo a realização de alguns exames
complementares.

TABELA 62-1 ■ Doenças associadas à linfadenopatia


1. Doenças infecciosas
a. Virais – síndromes de mononucleose infecciosa (EBV, CMV), hepatite infecciosa, herpes simples, herpes-vírus-6, vírus varicela-
zóster, rubéola, sarampo, adenovírus, HIV, ceratoconjuntivite epidêmica, vacínia, herpes-vírus-8
b. Bacterianas – estreptococos, estafilococos, doença da arranhadura do gato, brucelose, tularemia, peste, cancroide, melioidose,
mormo, tuberculose, infecção micobacteriana atípica, sífilis primária e secundária, difteria, hanseníase, Bartonella
c. Fúngicas – histoplasmose, coccidioidomicose, paracoccidioidomicose
d. Por clamídias – linfogranuloma venéreo, tracoma
e. Parasitárias – toxoplasmose, leishmaniose, tripanossomíase, filariose
f. Riquetsioses – tifo rural, riquetsiose variceliforme, febre Q
2. Doenças imunológicas
a. Artrite rematoide
b. Artrite reumatoide juvenil
c. Doença mista do tecido conectivo
d. Lúpus eritematoso sistêmico
e. Dermatomiosite
f. Síndrome de Sjögren
g. Doença do soro
h. Hipersensibilidade a fármacos – difenil-hidantoína, hidralazina, alopurinol, primidona, ouro, carbamazepina, etc.
i. Linfadenopatia angioimunoblástica
j. Cirrose biliar primária
k. Doença do enxerto contra o hospedeiro
l. Associadas ao silicone
m. Síndrome linfoproliferativa autoimune
n. Doença relacionada com IgG4
o. Síndrome inflamatória de reconstituição imune (SIRI)
3. Doenças malignas
a. Hematológicas – doença de Hodgkin, linfomas não Hodgkin, leucemia linfocítica aguda ou crônica, leucemia de células pilosas,
histiocitose maligna, amiloidose
b. Metastáticas – de inúmeros locais primários
4. Doenças de depósito de lipídeos – Gaucher, Niemann-Pick, Fabry, Tangier
5. Doenças endócrinas – hipertireoidismo
6. Outros distúrbios
a. Doença de Castleman (hiperplasia gigante de linfonodos)
b. Sarcoidose
c. Linfadenite dermatopática
d. Granulomatose linfomatoide
e. Linfadenite necrosante histiocítica (doença de Kikuchi)
f. Histiocitose sinusal com linfadenopatia maciça (doença de Rosai-Dorfman)
g. Síndrome do linfonodo mucocutâneo (doença de Kawasaki)
h. Histiocitose X
i. Febre familiar do Mediterrâneo
j. Hipertrigliceridemia grave
k. Transformação vascular dos seios linfonodais
l. Pseudotumor inflamatório de linfonodos
m. Insuficiência cardíaca congestiva
Siglas: CMV, citomegalovírus; EBV, vírus Epstein-Barr; HIV, vírus da imunodeficiência humana.

AVALIAÇÃO CLÍNICA
A obtenção de uma cuidadosa história clínica, o exame físico, a realização de
exames laboratoriais selecionados e, talvez, uma biópsia excisional do
linfonodo auxiliarão o médico na busca de uma explicação para a
linfadenopatia.
A anamnese deve revelar o contexto em que a linfadenopatia está
ocorrendo. Devem-se investigar sintomas como faringite, tosse, febre,
sudorese noturna, fadiga, perda de peso ou dor nos linfonodos. Outros
aspectos importantes da anamnese são idade, sexo, ocupação, exposição a
animais domésticos, comportamento sexual e uso de fármacos, como a
difenil-hidantoína. Por exemplo, crianças e adultos jovens geralmente
apresentam distúrbios benignos como responsáveis pela linfadenopatia
observada, como infecções virais ou bacterianas das vias aéreas superiores,
mononucleose infecciosa, toxoplasmose e, em alguns países, tuberculose. Em
contrapartida, depois dos 50 anos de idade, a incidência de distúrbios
malignos aumenta, enquanto a dos distúrbios benignos diminui.
O exame físico pode fornecer indícios úteis, como extensão da
linfadenopatia (localizada ou generalizada), tamanho dos linfonodos, textura,
presença ou ausência de dor à palpação dos linfonodos, sinais de inflamação
no linfonodo, lesões cutâneas e esplenomegalia. Indica-se um exame
otorrinolaringológico completo para os pacientes adultos com adenopatia
cervical e história de tabagismo. A adenopatia localizada ou regional implica
o comprometimento de uma única área anatômica. A adenopatia generalizada
foi definida como o comprometimento de três ou mais áreas de linfonodos
não contíguas. Muitas das causas da linfadenopatia (Tab. 62-1) podem
produzir adenopatia localizada ou generalizada, então essa diferenciação tem
utilidade limitada no diagnóstico diferencial. Contudo, a linfadenopatia
generalizada está frequentemente associada a distúrbios não malignos, como
a mononucleose infecciosa (por vírus Epstein-Barr [EBV] ou
citomegalovírus [CMV]), toxoplasmose, Aids, outras infecções virais, lúpus
eritematoso sistêmico (LES) e doença mista do tecido conectivo. As
leucemias linfocíticas aguda e crônica, bem como os linfomas malignos,
também provocam adenopatia generalizada em adultos.
A região anatômica da adenopatia localizada ou regional pode fornecer
um indício útil sobre a causa. Com frequência, a adenopatia occipital reflete
uma infecção do couro cabeludo, enquanto a adenopatia pré-auricular
acompanha infecções das conjuntivas e a doença da arranhadura do gato. O
local mais frequente da adenopatia regional é o pescoço, e a maioria das
causas é benigna – infecções das vias aéreas superiores, lesões orais e
dentárias, mononucleose infecciosa ou outras doenças virais. As principais
causas malignas incluem cânceres metastáticos de cabeça e pescoço, mama,
pulmão e tireoide. O aumento dos linfonodos supraclaviculares e escalenos
sempre é anormal. Como tais linfonodos drenam regiões do pulmão e do
espaço retroperitoneal, podem refletir a presença de linfomas, outros tipos de
câncer ou processos infecciosos que surgem nessas áreas. O nódulo de
Virchow é um linfonodo supraclavicular esquerdo aumentado, infiltrado com
câncer metastático proveniente de neoplasia gastrintestinal primária.
Ocorrem também metástases para os linfonodos supraclaviculares a partir de
câncer de pulmão, mama, testículos ou ovários. Tuberculose, sarcoidose e
toxoplasmose são causas não neoplásicas da adenopatia supraclavicular. Em
geral, a adenopatia axilar é produzida por lesões ou infecções localizadas no
membro superior ipsolateral. As causas malignas incluem melanoma ou
linfoma e, em mulheres, câncer de mama. A linfadenopatia inguinal é
geralmente secundária a infecções ou a traumatismo dos membros inferiores
e pode acompanhar infecções sexualmente transmissíveis, como
linfogranuloma venéreo, sífilis primária, herpes genital ou cancroide. Esses
linfonodos também podem ser acometidos por linfomas ou câncer
metastático proveniente de lesões primárias do reto, da genitália ou dos
membros inferiores (melanoma).
O tamanho e a textura do(s) linfonodo(s) e a presença de dor constituem
parâmetros úteis na avaliação do paciente com linfadenopatia. Linfonodos
com área < 1,0 cm2 (1,0 cm × 1,0 cm ou menos) são quase sempre
secundários a causas reativas inespecíficas e benignas. Em uma análise
retrospectiva de pacientes mais jovens (9-25 anos de idade) submetidos a
biópsia de linfonodo, o diâmetro maior com > 2 cm serviu como
discriminante para predizer que a biópsia poderia revelar a existência de
doença maligna ou granulomatosa. Outro estudo mostrou que um linfonodo
com tamanho de 2,25 cm2 (1,5 cm × 1,5 cm) era o melhor limite de tamanho
para diferenciar a linfadenopatia maligna ou granulomatosa das outras causas
da linfadenopatia. Os pacientes com linfonodo(s) ≤ 1,0 cm2 devem ser
observados após a exclusão de mononucleose infecciosa e/ou toxoplasmose,
a menos que existam sinais e sintomas de doença sistêmica subjacente.
A textura dos linfonodos pode ser descrita como macia, firme, elástica,
dura, isolado × agrupado, hipersensível, móvel ou fixa. Ocorre
hipersensibilidade quando a cápsula é distendida durante um aumento rápido,
em geral de modo secundário a algum processo inflamatório. Certas doenças
malignas, como a leucemia aguda, podem provocar aumento rápido e dor nos
linfonodos. Os linfonodos acometidos por linfoma tendem a ser grandes,
distintos, simétricos, elásticos, firmes, móveis e indolores. Os linfonodos
envolvidos por câncer metastático com frequência são duros, indolores e
imóveis, em virtude de fixação aos tecidos circundantes. A coexistência de
esplenomegalia no paciente com linfadenopatia indica doença sistêmica,
como mononucleose infecciosa, linfoma, leucemia aguda ou crônica, LES,
sarcoidose, toxoplasmose, doença da arranhadura do gato ou outros
distúrbios hematológicos menos comuns. A história do paciente deve
fornecer indícios úteis sobre a doença sistêmica subjacente.
Uma apresentação não superficial (torácica ou abdominal) da
adenopatia é normalmente detectada em decorrência de avaliação diagnóstica
orientada para os sintomas. A adenopatia torácica pode ser detectada pela
radiografia de tórax de rotina ou durante uma avaliação para adenopatia
superficial. Também pode ser encontrada porque o paciente se queixa de
tosse ou sibilos em decorrência de compressão das vias aéreas; rouquidão por
comprometimento do nervo laríngeo recorrente; disfagia por compressão do
esôfago; ou edema do pescoço, da face ou dos braços secundário à
compressão da veia cava superior ou da veia subclávia. O diagnóstico
diferencial de adenopatia mediastinal e hilar inclui distúrbios pulmonares
primários e doenças sistêmicas que normalmente acometem os linfonodos
mediastinais ou hilares. No indivíduo jovem, a adenopatia mediastinal está
associada à mononucleose infecciosa e à sarcoidose. Nas regiões endêmicas,
a histoplasmose pode causar comprometimento unilateral dos linfonodos
paratraqueais, simulando um linfoma. A tuberculose também pode provocar
adenopatia unilateral. Nos pacientes de mais idade, o diagnóstico diferencial
deve incluir câncer primário de pulmão (sobretudo entre fumantes), linfomas,
carcinoma metastático (geralmente do pulmão), tuberculose, micose e
sarcoidose.
O aumento dos linfonodos intra-abdominais ou retroperitoneais em
geral é maligno. Embora a tuberculose possa manifestar-se como linfadenite
mesentérica, essas massas geralmente devem-se a linfomas e, em homens
jovens, tumores de células germinativas.

INVESTIGAÇÃO LABORATORIAL
A investigação laboratorial de pacientes com linfadenopatia deve ser
individualizada para elucidar a etiologia suspeita com base na história clínica
e nos achados físicos do paciente. Um estudo realizado em ambulatório de
medicina familiar avaliou 249 pacientes mais jovens com “linfonodos
aumentados de causa não infecciosa” ou “linfadenite”. Não foram feitos
exames laboratoriais em 51% dos pacientes. Quando realizados, os mais
comuns foram hemograma completo (HC) (33%), cultura de material da
orofaringe (16%), radiografia de tórax (12%) ou teste de rastreamento da
mononucleose infecciosa (10%). Apenas 8 pacientes (3%) foram submetidos
à biópsia de linfonodo, e metade dos linfonodos biopsiados era normal ou
reativa. O HC pode fornecer dados úteis para o diagnóstico de leucemia
aguda ou crônica, mononucleose por EBV ou CMV, linfoma com
componente leucêmico, infecções piogênicas ou citopenias imunes em
doenças como o LES. Os exames sorológicos podem demonstrar anticorpos
específicos contra componentes do EBV, CMV, HIV e de outros vírus;
Toxoplasma gondii; Brucella; etc. Se houver suspeita de LES, justifica-se a
realização de pesquisa para fator antinuclear e anticorpos anti-DNA.
A radiografia de tórax geralmente é negativa, porém a presença de
infiltrado pulmonar ou de linfadenopatia mediastinal deve sugerir a
existência de tuberculose, histoplasmose, sarcoidose, linfoma, câncer de
pulmão primário ou câncer metastático, exigindo investigação adicional.
Diversas técnicas de imagem (tomografia computadorizada [TC],
ressonância magnética [RM], ultrassom, ultrassonografia com Doppler
colorido) foram utilizadas para diferenciar os linfonodos benignos dos
malignos, particularmente em pacientes com câncer de cabeça e pescoço. A
TC e a RM são de precisão comparável (65-90%) no diagnóstico de
metástases para os linfonodos cervicais. A ultrassonografia tem sido usada
para determinar o eixo maior, o eixo menor e a razão entre os eixos maior e
menor nos linfonodos cervicais. Uma razão eixo maior/eixo menor < 2,0 tem
uma sensibilidade e especificidade de 95% para diferenciar linfonodos
benignos de malignos em pacientes com tumores de cabeça e pescoço. Essa
razão tem maior especificidade e sensibilidade do que a palpação ou medição
do eixo maior ou do eixo menor isoladamente.
As indicações para biópsia de linfonodos são imprecisas, porém ela é
um valioso instrumento de diagnóstico. A decisão quanto à realização de
biópsia pode ser tomada no início da avaliação do paciente ou adiada até
depois de 2 semanas. Deve ser feita uma biópsia imediatamente se a
anamnese e o exame físico do paciente sugerirem neoplasia maligna; são
exemplos o linfonodo cervical solitário, duro e indolor em um paciente de
idade mais avançada que seja fumante crônico; adenopatia supraclavicular e
adenopatia solitária ou generalizada de consistência firme, móvel e sugestiva
de linfoma. Se houver suspeita de câncer primário de cabeça e pescoço com
base em um linfonodo cervical duro e solitário, deverá ser realizado um
cuidadoso exame otorrinolaringológico. Toda lesão em mucosas que gera
suspeita de processo neoplásico primário deve ser inicialmente submetida à
biópsia. Se não for detectada lesão alguma na mucosa, deve ser feita uma
biópsia excisional do maior linfonodo. A aspiração com agulha fina não deve
ser realizada como primeiro procedimento diagnóstico. Na maioria dos casos,
o diagnóstico exige mais tecido que a aspiração pode fornecer e, com
frequência, retarda o diagnóstico definitivo. A aspiração com agulha fina
deve ser reservada para nódulos da tireoide e confirmação de recidiva em
pacientes cujo diagnóstico primário é conhecido. Se o médico de cuidados
primários tiver dúvida quanto à realização de biópsia, poderá ser útil
consultar um hematologista ou oncologista clínico. Nos ambulatórios de
assistência primária, < 5% dos pacientes com linfadenopatia necessitam de
biópsia. Essa porcentagem é consideravelmente maior em clínicas
especializadas, ou seja, hematologia, oncologia ou otorrinolaringologia.
Dois grupos apresentaram algoritmos que, segundo eles, devem
identificar de maneira precisa quais pacientes com linfadenopatia que devem
ser submetidos à biópsia. Ambos os relatos foram análises retrospectivas em
clínicas especializadas. O primeiro estudo incluiu pacientes de 9 a 25 anos de
idade que foram submetidos a uma biópsia de linfonodos. Identificaram-se
três variáveis que indicam quais pacientes jovens com linfadenopatia
periférica devem ser submetidos à biópsia. Linfonodos com diâmetro > 2 cm
e radiografias de tórax anormais tiveram valor preditivo positivo, enquanto
sintomas otorrinolaringológicos recentes apresentaram valores preditivos
negativos. No segundo estudo, foram avaliados 220 pacientes com
linfadenopatia em um centro de hematologia e identificadas cinco variáveis
(tamanho do linfonodo, localização [supraclavicular ou não], idade [> 40
anos ou < 40 anos], textura (não duro ou duro) e dor à palpação) que foram
utilizadas em um modelo matemático para identificar os pacientes que
necessitam de biópsia. Encontrou-se um valor preditivo positivo para idade >
40 anos, localização supraclavicular, linfonodo com tamanho > 2,25 cm2,
consistência dura e ausência de dor ou de hipersensibilidade à palpação. Um
valor preditivo negativo foi evidente para uma idade < 40 anos, linfonodo <
1,0 cm2, consistência não dura e linfonodos hipersensíveis ou dolorosos.
Cerca de 91% dos pacientes que necessitaram de biópsia foram corretamente
classificados por esse modelo. Como ambos os estudos foram análises
retrospectivas e um deles limitou-se a pacientes jovens, desconhece-se a
utilidade desses modelos quando aplicados prospectivamente em uma
instalação de atenção primária.
A maioria dos pacientes com linfadenopatia não necessita de biópsia e
pelo menos metade não precisa de exames laboratoriais. Se a anamnese e os
achados físicos do paciente indicarem uma causa benigna da linfadenopatia,
poderá ser efetuado um cuidadoso acompanhamento após um intervalo de 2 a
4 semanas. O paciente deverá ser instruído a retornar para reavaliação se
houver aumento no tamanho dos linfonodos. Os antibióticos não são
indicados para o tratamento da linfadenopatia, a menos que tenham fortes
evidências de infecção bacteriana. Os glicocorticoides não devem ser usados
no tratamento da linfadenopatia, visto que seu efeito linfolítico obscurece
alguns diagnósticos (linfoma, leucemia, doença de Castleman), e esses
fármacos contribuem para a resolução tardia ou ativação de infecções
subjacentes. Uma exceção é a obstrução faríngea potencialmente fatal por
tecido linfoide aumentado no anel de Waldeyer, às vezes observada na
mononucleose infecciosa.
ESPLENOMEGALIA
ESTRUTURA E FUNÇÃO DO BAÇO
O baço é um órgão reticuloendotelial que tem a sua origem embriológica no
mesogástrio dorsal em torno de 5 semanas de gestação. Surge em uma série de
proeminências, migra para sua localização normal no adulto, no quadrante
superior esquerdo (QSE), e insere-se no estômago por meio do ligamento
gastresplênico e ao rim pelo ligamento esplenorrenal. Quando as proeminências
não se unem em uma única massa de tecido, surgem baços acessórios em cerca
de 20% dos indivíduos. A função do baço é indefinível. Galeno acreditava que o
baço era a fonte da “bile negra” ou melancolia, e a palavra hipocondria
(literalmente, “embaixo das costelas”) contribui para a crença de que o baço tem
uma importante influência na psique e nas emoções. Nos humanos, suas funções
fisiológicas normais parecem ser as seguintes:

1. Manutenção do controle de qualidade dos eritrócitos na polpa vermelha


pela remoção dos eritrócitos senescentes e defeituosos. O baço realiza essa
função em virtude da organização singular de seu parênquima e
vascularização (Fig. 62-1).
FIGURA 62-1 Estrutura esquemática do baço. O baço é composto de muitas unidades de polpas
vermelha e branca centralizadas ao redor de pequenos ramos da artéria esplênica, chamados artérias
centrais. A polpa branca é de natureza linfoide e contém folículos de células B, uma zona marginal ao redor
dos folículos e áreas ricas em células T, formando uma bainha ao redor das arteríolas. As áreas de polpa
vermelha consistem nos seios da polpa e cordões da polpa. Os cordões são terminações em fundo cego. Para
ter novamente acesso à circulação, os eritrócitos precisam atravessar minúsculas aberturas no revestimento
sinusoidal. Os eritrócitos rígidos, lesionados ou senescentes não conseguem entrar nos seios. REs,
reticuloendoteliais. (Parte inferior da figura de RS Hillman, KA Ault: Hematology in Clinical Practice, 4th
ed., New York, McGraw-Hill, 2005.)

2. Síntese dos anticorpos na polpa branca.


3. Remoção das bactérias recobertas por anticorpos e das células sanguíneas
também recobertas por anticorpos de circulação.

Um aumento dessas funções normais pode resultar em esplenomegalia.


O baço compõe-se de polpa vermelha e polpa branca, termos utilizados por
Malpighi para referir-se aos seios repletos de eritrócitos e cordões revestidos por
células reticuloendoteliais, bem como aos folículos linfoides brancos dispostos
na matriz da polpa vermelha. O baço encontra-se na circulação portal. O motivo
disso é desconhecido, mas pode estar relacionado com o fato de que a pressão
arterial menor permite um fluxo menos rápido e minimiza a lesão dos eritrócitos
normais. O sangue flui para o baço a uma taxa aproximada de 150 mL/min
através da artéria esplênica, que finalmente se ramifica em arteríolas centrais.
Parte do sangue flui das arteríolas para os capilares e, a seguir, para as veias
esplênicas, saindo do baço, enquanto a maior parte do sangue proveniente das
arteríolas centrais flui para os seios e cordões revestidos por macrófagos. O
sangue que penetra nos seios entra novamente na circulação através das vênulas
esplênicas, enquanto o sangue que penetra nos cordões está sujeito a uma
inspeção para controle de qualidade. Para retornar à circulação, as células
sanguíneas nos cordões precisam espremer-se por meio de fendas nos
revestimentos dos cordões para penetrar nos seios que levam às vênulas. Os
eritrócitos senescentes e lesionados exibem menor deformabilidade e, por isso,
são retidos nos cordões, onde são destruídos, enquanto seus componentes são
reciclados. Corpúsculos de inclusão dos eritrócitos, como parasitas (Caps. 219, 2
20 e A6.), resíduos nucleares (corpúsculos de Howell-Jolly, ver Fig. 59-6), ou
hemoglobina desnaturada (corpúsculos de Heinz) são removidos no processo de
passagem através das fendas, um processo denominado retirada seletiva. A
seleção das células mortas e lesionadas, bem como a retirada seletiva de células
com inclusões parecem ocorrer sem demora significativa, visto que o tempo de
trânsito do sangue através do baço é apenas um pouco mais lento que em outros
órgãos.
O baço também é capaz de auxiliar o hospedeiro a adaptar-se ao ambiente
hostil. Desempenha pelo menos três funções de adaptação: (1) depuração das
bactérias e substâncias particuladas do sangue, (2) geração de respostas imunes a
determinados patógenos e (3) produção de componentes celulares do sangue em
circunstâncias nas quais a medula óssea é incapaz de suprir as necessidades (i.e.,
hematopoiese extramedular). A última adaptação representa uma recapitulação
da função hematopoiética desempenhada pelo baço durante a gestação. Em
alguns animais, o baço também desempenha um papel na adaptação vascular ao
estresse, visto que armazena eritrócitos (frequentemente hemoconcentrado com
hematócritos mais altos que o normal) em circunstâncias normais e sofre
contração sob a influência da estimulação β-adrenérgica para fornecer ao animal
uma autotransfusão e melhorar a capacidade de transporte de oxigênio.
Entretanto, o baço humano normal não sequestra nem armazena eritrócitos,
tampouco sofre contração em resposta a estímulos simpáticos. O baço humano
normal contém aproximadamente um terço das plaquetas corporais totais, bem
como um número significativo de neutrófilos marginados. Essas células
sequestradas estarão disponíveis quando for necessário responder a sangramento
ou infecção.

ABORDAGEM AO PACIENTE
Esplenomegalia
AVALIAÇÃO CLÍNICA
Os sintomas mais comuns produzidos por doenças que acometem o baço são
a dor e sensação de peso no QSE. A esplenomegalia maciça pode causar
saciedade precoce. A dor pode resultar do aumento de volume agudo do baço
com estiramento, infarto ou inflamação da cápsula. Durante muitos anos,
acreditou-se que o infarto esplênico era clinicamente silencioso, o que, às
vezes, é verdadeiro. Entretanto, Soma Weiss, em seu clássico relato de 1942
sobre auto-observações feitas por um estudante de medicina de Harvard a
respeito da evolução clínica da endocardite bacteriana subaguda, documentou
que a dor intensa no QSE e a dor torácica pleurítica podem acompanhar a
oclusão tromboembólica do fluxo sanguíneo esplênico. A oclusão vascular,
com infarto e dor, é comumente observada em crianças com crises de anemia
falciforme. A ruptura do baço, seja por traumatismo, seja por doença
infiltrativa que desintegra a cápsula, pode resultar em sangramento
intraperitoneal, choque e morte. A ruptura propriamente dita pode ser indolor.
Um baço palpável é o principal sinal físico produzido por doenças que
afetam o baço e sugere aumento de tamanho do órgão. O baço normal pesa <
250 g, diminui de tamanho com a idade, situa-se, em condições normais,
totalmente dentro da caixa torácica, possui um diâmetro cefalocaudal
máximo de 13 cm na ultrassonografia ou comprimento máximo de 12 cm
e/ou largura de 7 cm na cintilografia com radionuclídeo, sendo geralmente
impalpável. Entretanto, foi encontrado um baço palpável em 3% de 2.200
estudantes universitários assintomáticos do sexo masculino. O
acompanhamento realizado durante um período de 3 anos revelou que 30%
desses estudantes ainda tinha baço palpável sem qualquer aumento na
prevalência de doenças. Um acompanhamento de 10 anos não revelou
nenhuma evidência de processos malignos linfoides. Além disso, em alguns
países tropicais (p. ex., Nova Guiné), a incidência de esplenomegalia pode
atingir 60%. Por conseguinte, o fato de um baço ser palpável nem sempre
significa que há doença. Ainda que exista alguma doença, a esplenomegalia
pode não refletir a doença primária, mas sim uma reação a ela. Por exemplo,
em pacientes com doença de Hodgkin, apenas 66% dos baços palpáveis
exibem comprometimento pelo câncer.
No exame físico do baço, utilizam-se basicamente as técnicas de
palpação e percussão. A inspeção pode revelar plenitude no QSE, que desce
com a inspiração, achado associado a um baço maciçamente aumentado. A
ausculta pode revelar um rumor venoso ou ruído de atrito.
A palpação pode ser efetuada por palpação bimanual, rechaço e
palpação a partir de cima (manobra de Middleton). Na palpação bimanual,
tão confiável quanto as outras técnicas, o paciente deve ficar em decúbito
dorsal com os joelhos fletidos. O médico coloca a mão esquerda sobre a parte
inferior da caixa torácica e puxa a pele em direção à margem costal,
permitindo que as pontas dos dedos da mão direita percebam a ponta do baço
à medida que ele desce enquanto o paciente inspira de forma lenta, suave e
profunda. A palpação é iniciada com a mão direita no quadrante inferior
esquerdo, com movimento gradual em direção à margem costal esquerda,
identificando, assim, a borda inferior de um baço com aumento maciço.
Quando a ponta do baço é percebida, o achado é registrado em centímetros
abaixo da margem costal esquerda em algum ponto arbitrário, isto é, 10 a 15
cm a partir do ponto médio do umbigo ou da junção xifoesternal. Isso
permite que outros examinadores possam comparar os achados, ou que o
examinador inicial determine a ocorrência de alterações no tamanho com o
passar do tempo. A palpação bimanual com o paciente em decúbito lateral
direito nada acrescenta ao exame em decúbito dorsal.
A percussão para macicez esplênica é realizada por meio de qualquer
uma das três técnicas descritas por Nixon, Castell ou Barkun:

1. Método de Nixon: o paciente é colocado sobre o lado direito, de modo


que o baço fique em cima do cólon e do estômago. A percussão começa
no nível inferior do som timpânico pulmonar, na linha axilar posterior, e
prossegue diagonalmente ao longo de uma linha perpendicular em
direção à margem costal anterior média. A borda superior da macicez
fica normalmente 6 a 8 cm acima da margem costal. Presume-se que
uma macicez > 8 cm em adulto indique esplenomegalia.
2. Método de Castell: com o paciente em decúbito dorsal, a percussão no
espaço intercostal mais inferior, na linha axilar anterior (oitavo ou nono
espaços) produz um som ressonante se o baço tiver tamanho normal.
Isso ocorre durante a expiração ou a inspiração total. Um som maciço na
percussão à inspiração completa sugere esplenomegalia.
3. Percussão do espaço semilunar de Traube: as bordas do espaço de
Traube são a sexta costela superiormente, a linha axilar média esquerda
lateralmente e a margem costal esquerda inferiormente. O paciente é
colocado em decúbito dorsal com o braço esquerdo em leve abdução.
Durante a respiração normal, efetua-se a percussão desse espaço da
margem medial para a lateral, obtendo um som timpânico normal. Uma
nota surda à percussão sugere esplenomegalia.

Os estudos realizados que compararam os métodos de percussão e


palpação com um padrão de ultrassonografia ou cintilografia revelaram
sensibilidade de 56 a 71% para a palpação e de 59 a 82% para a percussão. A
reprodutibilidade entre os examinadores é melhor para a palpação do que
para a percussão. Ambas as técnicas são menos confiáveis em pacientes
obesos ou nos que acabaram de comer. Por conseguinte, as técnicas de exame
físico de palpação e percussão são imprecisas. Foi sugerido que o médico
realize primeiro a percussão e, se positiva, proceda à palpação; se o baço for
palpável, poderá ser afirmada, razoavelmente, a existência de
esplenomegalia. Contudo, nem todas as massas no QSE são baços
aumentados; tumores do estômago ou cólon, e cistos pancreáticos ou renais
podem imitar a esplenomegalia.
A presença de um baço aumentado pode ser determinada com maior
precisão, se necessário, por cintilografia hepatoesplênica com radionuclídeo,
TC, RM ou ultrassonografia. Esta última constitui o procedimento de escolha
atual para a avaliação de rotina do tamanho do baço (normal = diâmetro
cefalocaudal máximo de 13 cm), visto que tem alta sensibilidade e
especificidade, sendo um procedimento seguro, não invasivo, rápido, móvel e
de menor custo. As cintilografias nucleares são precisas, sensíveis e
confiáveis, porém de elevado custo; além disso, exigem maior tempo para
fornecer dados e utilizam um equipamento imóvel. Têm a vantagem de
mostrar a presença de tecido esplênico acessório. A TC e RM fornecem uma
determinação precisa das dimensões do baço, porém o equipamento é imóvel
e os procedimentos são de custo elevado. A RM não parece oferecer
vantagem alguma sobre a TC. As alterações na estrutura do baço, como
lesões expansivas, infartos, infiltrados heterogêneos e cistos, são mais
facilmente avaliadas pela TC, RM ou ultrassonografia. Nenhuma dessas
técnicas é muito confiável na detecção de infiltração irregular (p. ex., doença
de Hodgkin).

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Muitas das doenças associadas à esplenomegalia estão listadas na Tabela 62-
2. São classificadas de acordo com os mecanismos básicos pressupostos
responsáveis pelo aumento de tamanho do órgão:

TABELA 62-2 ■ Doenças associadas à esplenomegalia agrupadas por mecanismo patogênico


Aumento causado por demanda aumentada da função esplênica
Hiperplasia do sistema reticuloendotelial (para a remoção dos Malária
eritrócitos defeituosos) Leishmaniose
Esferocitose Tripanossomíase
Anemia falciforme precoce Erliquiose
Ovalocitose Imunorregulação comprometida
Talassemia maior Artrite reumatoide (síndrome de Felty)
Hemoglobinopatias Lúpus eritematoso sistêmico
Hemoglobinúria paroxística noturna Doenças vasculares do colágeno
Anemia perniciosa Doença do soro
Hiperplasia imune Anemias hemolíticas imunes
Resposta à infecção (viral, bacteriana, fúngica, parasitária) Trombocitopenias imunes
Mononucleose infecciosa Neutropenias imunes
Aids Reações medicamentosas
Hepatite viral Linfadenopatia angioimunoblástica
Infecção pelo citomegalovírus Sarcoidose
Endocardite bacteriana subaguda Tireotoxicose (hipertrofia linfoide benigna)
Sepse bacteriana Terapia com interleucina 2
Sífilis congênita Hematopoiese extramedular
Abscesso esplênico Mielofibrose
Tuberculose Lesão da medula por toxinas, radiação, estrôncio
Histoplasmose Infiltração da medula por tumores, leucemias, doença de
Gaucher
Aumento causado por fluxo sanguíneo esplênico ou portal anormal
Cirrose Aneurisma da artéria esplênica
Obstrução da veia hepática Esquistossomose hepática
Obstrução da veia porta, intra-hepática ou extra-hepática Insuficiência cardíaca congestiva
Transformação cavernosa da veia porta Equinococose hepática
Obstrução da veia esplênica Hipertensão portal (qualquer causa, incluindo as anteriores):
“Doença de Banti”
Infiltração do baço
Depósitos intracelulares ou extracelulares Doença de Hodgkin
Amiloidose Síndromes mieloproliferativas (p. ex., policitemia vera,
trombocitose essencial)
Doença de Gaucher Angiossarcomas
Doença de Niemann-Pick Tumores metastáticos (o melanoma é o mais comum)
Doença de Tangier Granuloma eosinofílico
Síndrome de Hurler e outras mucopolissacaridoses Histiocitose X
Hiperlipidemias Hamartomas
Infiltrações celulares benignas e malignas Hemangiomas, fibromas, linfangiomas
Leucemias (aguda, crônica, linfoide, mieloide, monocítica) Cistos esplênicos
Linfomas
Etiologia desconhecida
Esplenomegalia idiopática Anemia ferropriva
Beriliose

1. Hiperplasia ou hipertrofia relacionadas com determinada função


esplênica, como a hiperplasia reticuloendotelial (hipertrofia funcional)
em doenças como a esferocitose hereditária ou as síndromes
talassêmicas que exigem a remoção de grande número de eritrócitos
defeituosos; hiperplasia imune em resposta a infecção sistêmica
(mononucleose infecciosa, endocardite bacteriana subaguda) ou a
doenças imunológicas (trombocitopenia imune, LES, síndrome de
Felty).
2. Congestão passiva decorrente da redução do fluxo sanguíneo do baço
em distúrbios que provocam hipertensão portal (cirrose, síndrome de
Budd-Chiari, insuficiência cardíaca congestiva).
3. Doenças infiltrativas do baço (linfomas, câncer metastático, amiloidose,
doença de Gaucher, distúrbios mieloproliferativos com hematopoiese
extramedular).
As possibilidades de diagnóstico diferencial tornam-se muito menores
quando o baço está “maciçamente aumentado” > 8 cm abaixo da margem
costal esquerda ou apresenta um peso drenado de ≥ 1.000 g (Tab. 62-3). A
grande maioria desses pacientes apresenta linfoma não Hodgkin, leucemia
linfocítica crônica, leucemia das células pilosas, leucemia mieloide crônica,
mielofibrose com metaplasia mieloide ou policitemia vera.

TABELA 62-3 ■ Doenças associadas à esplenomegalia maciçaa


Leucemia mieloide crônica Doença de Gaucher
Linfomas Leucemia linfocítica crônica
Leucemia de células pilosas Sarcoidose
Mielofibrose com metaplasia mieloide Anemia hemolítica autoimune
Policitemia vera Hemangiomatose esplênica difusa
aO baço estende-se > 8 cm abaixo da margem costal esquerda e/ou pesa > 1.000 g.

AVALIAÇÃO LABORATORIAL
As principais anormalidades laboratoriais que acompanham a esplenomegalia
são determinadas pela doença sistêmica subjacente. A contagem de
eritrócitos pode estar normal, diminuída (síndromes de talassemia maior,
LES, cirrose com hipertensão portal) ou aumentada (policitemia vera). A
contagem de granulócitos pode se mostrar normal, diminuída (síndrome de
Felty, esplenomegalia congestiva, leucemias) ou aumentada (infecções ou
doença inflamatória, distúrbios mieloproliferativos). De modo semelhante, a
contagem plaquetária pode ser normal, reduzida quando houver aumento do
sequestro ou da destruição das plaquetas no baço aumentado (esplenomegalia
congestiva, doença de Gaucher, trombocitopenia imune) ou elevada nos
distúrbios mieloproliferativos, como a policitemia vera.
O HC pode revelar citopenia de um ou mais tipos de células sanguíneas,
sugerindo hiperesplenismo. Essa condição caracteriza-se por esplenomegalia,
citopenia(s), medula óssea normal ou hiperplásica e resposta à
esplenectomia. A última característica é menos precisa, visto que a reversão
da citopenia, sobretudo da granulocitopenia, às vezes não persiste após a
esplenectomia. As citopenias resultam de destruição aumentada dos
elementos celulares em consequência de uma redução do fluxo sanguíneo
através dos cordões aumentados e congestos (esplenomegalia congestiva) ou
devido a mecanismos imunomediados. No hiperesplenismo, vários tipos
celulares geralmente exibem uma morfologia normal no esfregaço de sangue
periférico, embora os eritrócitos possam ser esferocíticos devido à perda da
área de superfície durante o seu trânsito mais prolongado através do baço
aumentado. O aumento na produção de eritrócitos pela medula deve ser
refletido como um aumento no índice reticulocítico, embora o valor possa ser
inferior ao esperado devido ao sequestro aumentado dos reticulócitos no
baço.
A necessidade de outros exames laboratoriais é determinada pelo
diagnóstico diferencial da doença subjacente da qual a esplenomegalia é uma
das manifestações.
ESPLENECTOMIA
A esplenectomia é raramente realizada para fins diagnósticos, sobretudo na
ausência de doença clínica ou de outros exames complementares que sugiram
doença subjacente. Com mais frequência, a esplenectomia é feita para o controle
dos sintomas em pacientes com esplenomegalia maciça, para o controle da
doença em pacientes com ruptura traumática do baço ou para a correção das
citopenias em pacientes com hiperesplenismo ou destruição imunomediada de
um ou mais elementos celulares do sangue. A esplenectomia é necessária para o
estadiamento dos pacientes com doença de Hodgkin apenas naqueles com
doença clínica nos estágios I ou II, para os quais se planeja instituir radioterapia
isolada. O estadiamento não invasivo do baço na doença de Hodgkin não fornece
uma base confiável o suficiente para a tomada de decisões terapêuticas, visto que
um terço dos baços com dimensões normais estão acometidos pela doença de
Hodgkin e um terço dos baços aumentados não apresentam tumor. O uso
disseminado da terapia sistêmica para tratar todos os estágios da doença de
Hodgkin tornou desnecessário a laparotomia de estadiamento com
esplenectomia. Apesar de a esplenectomia na leucemia mielocítica crônica
(LMC) não afetar a história natural da doença, a remoção do baço maciço em
geral faz o paciente se sentir bem mais confortável e simplifica o tratamento ao
reduzir significativamente as necessidades de transfusão. Os avanços na terapia
da LMC reduziram a necessidade de esplenectomia para o controle dos sintomas.
A esplenectomia é um tratamento secundário ou terciário efetivo para duas
leucemias crônicas de células B, a leucemia de células pilosas e a leucemia pró-
linfocítica, bem como para o raríssimo linfoma da zona marginal ou de células
do manto esplênico. Nessas doenças, a esplenectomia pode estar associada a
uma regressão significativa do tumor na medula óssea e em outros locais da
doença. Foram observadas regressões semelhantes da doença sistêmica após
irradiação do baço em alguns tipos de tumores linfoides, particularmente a
leucemia linfocítica crônica e a leucemia pró-linfocítica. Esse processo foi
denominado efeito abscopal. Essas respostas tumorais sistêmicas à terapia local
direcionada para o baço sugerem que algum hormônio ou fator de crescimento
produzido pelo baço, pode afetar a proliferação das células tumorais, mas tal
suposição ainda não foi comprovada. Uma indicação terapêutica comum para
esplenectomia é ruptura esplênica traumática ou iatrogênica. Em uma fração de
pacientes com ruptura esplênica, a implantação peritoneal de fragmentos
esplênicos pode resultar em esplenose – presença de múltiplos restos de tecido
esplênico sem conexão com a circulação portal. Esse tecido esplênico ectópico
pode provocar dor ou obstrução gastrintestinal, como na endometriose. Inúmeras
causas hematológicas, imunológicas e congestivas de esplenomegalia podem
levar à destruição de um ou mais elementos celulares do sangue. Na maioria
desses casos, a esplenectomia pode corrigir as citopenias, sobretudo a anemia e
trombocitopenia. Em uma grande série de pacientes assistidos em dois hospitais
de cuidados terciários, a indicação da esplenectomia foi diagnóstica em 10% dos
pacientes, terapêutica em 44%, houve estadiamento da doença de Hodgkin em
20% e casual em associação a outro procedimento em 26%. Talvez a única
contraindicação à esplenectomia seja a presença de insuficiência medular, na
qual o baço aumentado é a única fonte de tecido hematopoiético.
Frequentemente, a esplenectomia é feita de forma laparoscópica, o que está
associado a uma permanência hospitalar mais curta e recuperação mais rápida do
que na cirurgia aberta; porém, há preocupação de que abordagem laparoscópica
esteja associada a um risco maior de trombose venosa sistêmica portal pós-
operatória e síndrome de Budd-Chiari.
A ausência do baço tem efeitos mínimos em longo prazo sobre o perfil
hematológico. No período pós-esplenectomia imediato, pode haver
desenvolvimento de leucocitose (até 25.000/μL) e de trombocitose (até 1 × 106/
μL); todavia, dentro de 2 a 3 semanas, o hemograma e a sobrevida de cada
linhagem celular costumam estar normais. As manifestações crônicas da
esplenectomia consistem em variação acentuada no tamanho e na forma dos
eritrócitos (anisocitose, poiquilocitose), bem como presença de corpúsculos de
Howell-Jolly (remanescentes nucleares), corpúsculos de Heinz (hemoglobina
desnaturada), pontilhado basofílico e eritrócitos nucleados eventuais no sangue
periférico. Quando essas anormalidades eritrocitárias aparecem em um paciente
cujo baço não foi removido, deve-se suspeitar de infiltração esplênica por tumor,
interferindo em suas funções normais de seleção e remoção.
A consequência mais grave da esplenectomia é um aumento da
suscetibilidade a infecções bacterianas, em particular as causadas por
microrganismos encapsulados, como Streptococcus pneumoniae, Haemophilus
influenzae e alguns microrganismos entéricos Gram-negativos. Os pacientes <
20 anos de idade são particularmente suscetíveis à sepse maciça por S.
pneumoniae, e o risco atuarial global de sepse em pacientes submetidos à
esplenectomia é de cerca de 7% em 10 anos. A taxa de letalidade da sepse
pneumocócica em pacientes esplenectomizados é de 50 a 80%. Cerca de 25%
dos pacientes esplenectomizados desenvolvem infecção grave em algum
momento de suas vidas. A frequência é maior nos primeiros 3 anos após a
esplenectomia. Cerca de 15% das infecções são polimicrobianas, e os locais
mais comuns de acometimento incluem os pulmões, a pele e o sangue. Não se
observou maior risco de infecção viral em pacientes submetidos à
esplenectomia. A suscetibilidade a infecções bacterianas está relacionada com a
incapacidade de remover as bactérias opsonizadas da corrente sanguínea e ao
defeito na produção de anticorpos contra antígenos independentes das células T,
como os componentes polissacarídicos das cápsulas bacterianas. Deve-se
administrar vacina pneumocócica a todos os pacientes 2 semanas antes da
esplenectomia eletiva. O Advisory Committee on Immunization Practices
recomenda que esses pacientes recebam vacina de reforço 5 anos após a
esplenectomia. A eficácia ainda não foi comprovada para esse grupo, e a
recomendação não leva em conta a possibilidade de que a administração da
vacina possa, na verdade, baixar os títulos de anticorpos antipneumocócicos
específicos. Atualmente, há disponibilidade de uma vacina pneumocócica
conjugada mais eficaz que envolve as células T na resposta (Prevenar,
heptavalente). A vacina contra a Neisseria meningitidis também deve ser
administrada a pacientes para os quais se planeja uma esplenectomia eletiva.
Embora os dados de eficácia para a vacina contra o Haemophilus influenzae tipo
B não estejam disponíveis para crianças mais velhas ou em adultos, ela pode ser
administrada em pacientes que sofreram esplenectomia.
Os pacientes esplenectomizados devem ser orientados a considerar qualquer
febre inexplicada como emergência médica. O atendimento médico imediato
com avaliação e tratamento de bacteremia suspeita pode salvar a vida do
paciente. A quimioprofilaxia de rotina com penicilina oral pode resultar no
aparecimento de cepas resistentes a fármacos, não sendo recomendada.
Além da maior suscetibilidade a infecções bacterianas, os pacientes
submetidos à esplenectomia também são mais propensos à doença parasitária
babesiose. O paciente esplenectomizado deve evitar áreas onde o parasita
Babesia seja endêmico.
A remoção cirúrgica do baço é uma causa óbvia de hipoesplenismo. Os
pacientes com anemia falciforme muitas vezes sofrem autoesplenectomia em
consequência da destruição do baço pelos vários infartos associados às crises
falciformes durante a infância. Com efeito, a presença de baço palpável em um
paciente com anemia falciforme depois dos 5 anos de idade sugere uma
hemoglobinopatia concomitante, por exemplo, talassemia ou hemoglobina C.
Além disso, os pacientes submetidos a irradiação esplênica para uma doença
neoplásica ou autoimune também são funcionalmente hipoesplênicos. O termo
hipoesplenismo é preferido a asplenismo para referir-se às consequências
fisiológicas da esplenectomia, por ser a asplenia a anormalidade congênita rara,
específica e fatal que se caracteriza por ausência de desenvolvimento normal do
lado esquerdo da cavidade celômica (que inclui o primórdio esplênico). Os
lactentes com asplenia não têm baço, embora esse seja o menor de seus
problemas. O lado direito do embrião em desenvolvimento mostra-se duplicado
no lado esquerdo, de modo que o fígado se encontra no local onde deveria estar
o baço, existem dois pulmões direitos, e o coração é composto por dois átrios
direitos, assim como por dois ventrículos direitos.

Agradecimento Patrick H. Henry, MD, amigo e mentor agora falecido, foi autor
deste capítulo em edições anteriores, e grande parte do seu trabalho foi mantida
aqui.

LEITURAS ADICIONAIS
Barkun AN et al: The bedside assessment of splenic enlargement. Am J Med
91:512, 1991.
Facchetti F: Tumors of the spleen. Int J Surg Pathol 18:136S, 2010.
Girard E et al: Management of splenic and pancreatic trauma. J Visc Surg
153(suppl 4): 45, 2016.
Graves SA et al: Does this patient have splenomegaly? JAMA 270:2218, 1993.
Kim DK et al: Advisory committee on immunization practices reocommended
immunization schedule for adults aged 19 years or older—United States,
2017. MMWR 66:136, 2017.
Kraus MD et al: The spleen as a diagnostic specimen: A review of ten years’
experience at two tertiary care institutions. Cancer 91:2001, 2001.
McIntyre OR, Ebaugh FG Jr: Palpable spleens: Ten year follow-up. Ann Intern
Med 90:130, 1979.
Pangalis GA et al: Clinical approach to lymphadenopathy. Semin Oncol 20:570,
1993.
Williamson HA Jr: Lymphadenopathy in a family practice: A descriptive study
of 240 cases. J Fam Pract 20:449, 1985.

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