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As psicoses melancélicas e a mania Carlos Lu Sobre a melancolia: um pouco de histéria Da teoria da bilis negra surgiu o termo “melancolia” — deri- vado do grego melas (negro) ¢ cholé (bilis), que corresponde 4 transliteragao latina melaina-kole. A bilis negra era considerada a causa dos estados de excitagdo com delirio, em oposi¢io ao termo latino pituita, que designava as secregdes provindas da hipdfase, glindula considerada importantissima e responsivel pelos delitios calmos. “Melancolia” € 0 termo mais antigo para a patologia dos humores tristes. Suas origens remontam 4 Grécia Antiga, alguns séculos antes de Cristo, ¢ esto associadas a Hipécrates, conside- rado © pai da medicina. Para este, 0 termo “melancolia” nio diz somente do humor triste, mas inclui qualquer tipo de delirio par- cial que seja relativo a uma temética determinada. Ainda na Grécia Antiga, poucos séculos antes de Cristo, a melancolia é a protagonista de um tratado de Aristdteles (384-322 aC), a Problemata 30, Nesse tratado h4 uma relagio interessante entre a genialidade ¢ a loucura referente 4 melancolia. Segundo Aristételes, existiria um tipo de melancolia natural que, devido 4 ago da bilis negra, tornaria genial a quem a portasse. Assim, a melancolia é considerada como condigio de genialidade, responsi- vel por capacidades distintivas. Nese tratado, muitos herdis miti- cos ¢ filésofos foram considerados melancélicos. Assim, para o filésofo criacdo ¢ melancolia estariam associadas: um homem triste seria também um homem profundo. Os melancélicos seriam homens excepcionais por natureza e nio por doenga, concepgio gue difere daquela de Hipécrates. Essas duas concepgdes opostas, a hipocritica e a aristotélica, marcaram o pensamento ocidental moderno sobre a melancolia, de modo que as reflexdes sobre o tema esto ligadas a essas bases antigas Jana época medieval, para Dante, € no inferno que se encon- tram os homens tristes, submersos em uma Agua nauseabunda em. gue permanecem como que por inércia. A tristeza consistiria em se afndar nela mesma, em condescender com essa tendéncia de satisfa¢io pela via do sofimento. Data também dessa época a ace~ considerada um dos pecados capitais, nomeagio dada a uma afeccio dos clérigos que se deixavam evar por um estado de lassi~ dao ¢ de abandono em lugar de serem felizes com a tarefa divina a eles encomendada. Para Espinosa, principal referéncia utilizada por Lacan para tra~ tar © tema, os efeitos de lassidio subjetiva, quando se referem as paixdes da tristeza, encontram sua causa adequada no abandono da tensio que as paixdes ¢ os afetos provocam. Essas mesmas pai- xées, que para o espirito humano sio ideias confusas, encontram sua causa adequada em Deus ou na natureza, que so, para Espi- nosa, a mesmissima coisa. Sua ética se estabelece como um projeto gue visa determinar a légica da afetividade. Ele supde a natureza como uma rede de conexdes causais cuja inteligibilidade pode ¢ deve ser aleangada pelo pensamento. Nio hi, para Espinosa, afec- io do corpo da qual nao se possa formar um conceito claro e distinto, como nfo ha tampouco dominio de ideias obscuras. O. que existe sio muitas ideias amputadas, desconectadas de sua cau- salidade propria. Espinosa entende que as paixdes, embora sejam fonte de engano e de erro, constituem uma realidade irredutivel da condigio humana, ¢ que nio podem ser sacrificadas em nome da razio, Por causa disso, ele chega a desvalorizar a fiamgio da consciéncia na inteligibilidade da caus que nos determina, e isso leva Lacan a tomar Espinosa como referéncia para uma causali- dade inconsciente. No perfodo da Renascenga a melancolia era considerada um grande tormento, mas também uma grande oportunidade para os homens de estudo. Lutero, na Reforma, instala a melanc os grandes homens, impossibilitando a expiagio da culpa pelas ia entre de quase dois milénios, predomina o ensimesmar-se, a autocon- templacio e a autoculpabilidade Um dos grandes acontecimentos associados 4 melancolia em todas as épocas ¢ 0 softimento amoroso. O amor melancélico apresenta a incidéncia do empuxo ao furor ¢ A célera dentro de um modo heroico de amar. Ele é a fonte fundamental de uma pai- xio miserivel. Estabeleceu-se esse paralelo entre amor-paixto e melancolia, como doenga de amor ou doenga erética. No século XVII, o amor é a causa de toda afei¢io ou perturbagio d’alma. Ai, © sujeito entra no amor por uma via imaginiria e enganadora, pela beleza, pela esperanga e pela ilusio. Uma cegueira engaja a alma em um proceso que a leva a sofrer uma série de sintomas: no comego o medo, depois a perda e, no final, a dor. Trata-se obviamente de um amor-paixio. Nio deixa de ser interessante ainda mencionar que nos come- gos da Idade Média surgiu a figura do amor cortés, que continua vigorando até hoje. Trata-se de um amor sublimado no qual a mulher figura como a musa de um amor impossivel; tratado pela poesia provencal, esse modo de amor, que nio deixa de ser melan- célico e até mesmo masoquista, nio é raro entre os sujeitos neurd- ticos obsessivos. icolia Contribuigdes da psiquiatria classica para a Para Pinel (1745-1826), nos comecos da psiquiatria na Franca dos finais do século XVII, a melancolia fazia parte dos quadros patolégicos. Era descrita como uma doenga cujas vitimas tinham fixagio em um orgulho desmedido, podendo ser acometidas de abatimento, consternagio e desespero. A melancolia designava o delirio limitado a um objeto ou a uma série de objetos, e, fora do nicl irante, as faculdades mentais permaneciam intactas, ¢ © comportamento, coerente. O estado afetivo, assim como o tema do delirio, podia ser de natureza triste, alegre ou exaltada. Ji Esquirol (1772-1840), discipulo de restringe emprego do termo “mel propondo a classe das monoma- nias, on soja, de afeegdes que afetam o espirito de forma parcial. Cunhou 0 termo ia” (Iypemanie) para definir “uma doenca cerebral io parcial crOnico, entretido por uma paixio triste, debilitante, opressiva, ¢ uma viciosa associagio de ideias", denominando-a também como monomania triste (Terxetra, 2005). Para Esquirol, o que caracteriza os lipomanfacos € a recusa a falar, a se movimentar ¢ a se alimenté intelectual marcada pelo cariter delirante de perda, medo e opres~ sio; existe ideias de serem envenenados, desonrados, penitencia— dos ou perseguidos, encontrand por vezes, desesperados, apavorados, terrificados, arrependidos; chegam mesmo a acreditar ter perdido tudo. Guislain Joseph (1797-1860), psiquiatra belga, utili “frenopatias”, através do qual se referia a reagdes psicolégicas a um estado de dor moral, a fienalgia. Com isso, a ideia de uma dor ini- ial viria antes das Ioucuras de tonalidade afetiva alegre. Guislain distinguiu as psicoses delirantes (mais tarde classificadas como paranoia) dos distiirbios afetivos do tipo maniaco e depressivo. © médico alemio Wilhelm Griesinger (1817-1868) declarou que todas as doengas mentais seriam doengas do cérebro; entio, uma falha nessa estrutura deveria ser encontrada para ser tratada curada, Ele apresentou 0 conceito de causalidade, que ganha toda relevincia na psicandlise, tanto para Freud, com sua formulagio do inconsciente, quanto para Lacan, que acrescentari a categoria da causalidade ao proprio conceito de sujeito. Griesinger representou um papel importante na psiquiatria ao propor a teoria de uma psi- cose Ginica, na qual a melancolia seria apenas 0 estigio inicial de uma doenga que progrediria até outros estégios mais severos, podendo chegar até a insanidade total Griesinger caracteriza a melancolia fandamentalmente pela dor moral, que consiste em um sentimento vago de opressio, ansie~ dade ¢ tristeza. Ideias isoladas a prinefpio que, com frequéncia, transformam-se em um verdadeiro delirio. Ele distingue a melan- colia simples e a delirante; descreve também a melancolia com ou o termo estupor, em doentes que pareciam dementes, mas que, posterior mente, mostravam-se com um pensamento ativo, delirante, sentin- do-se constantemente ameagados por uma desgraga. Destacava neles também o fato de nao saberem dizer por que nio tinham © menor ato de vontade, experimentando uma completa passividade e imobilidade, isto &, uma falta de agio. Na Franga, a melancolia foi aproximada 4 mania, seja sob 0 nome de “‘loucura circular”, cunhado por Jean-Pierre Falret (1794-1870), ou de “loucura de forma dupla”, por Baillarger (1809-1890). Entre as duas fases, melancolia e mania, havia um periodo de pseudointermit uma vez que nio se tratava de um retorno a um estado anterior. Jules Falret (1824-1902) conti- nua as ideias do pai e define a exaltagio maniaca como uma forma pura ou como constituindo uma fase da loucura circular. Inclui-se ai a hipocondria moral, que sera retomada posteriormente por Jules Séglas (1856-1939) e Jules Cotard (1840-1889) como melan- colia simples. A hipocondria moral é uma entidade fiando de pessimismo e prostragio, envolvia-se um estado em que © mundo externo parecia desbotado, alterado, sem atrativos; 0 sujeito sentia-se transformado, insensivel e indiferente a tudo, incapaz de agir ou de querer, sem iniciativa, sem gosto e sem energia. Podia apresentar crises de terror ¢ obsessSes impulsivas proximas da vertigem (atracao e horror ante o suicidio, o assassinato, atos incongruentes ou obscenos, cenestopatias ¢ equi- valentes ansiosos), Em 1890, Magnan (1835-1916) isolou a loucura propriamente dita, ou seja, a psicose, como uma loucura intermitente que inclufa a mania ¢ a melancolia como clementos ou estados que poderiam aparecer em outras psicoses. Jé ai, em 1890, ele diferencia a melan- colia € 0 que denomina a depressio “com consciéncia”, 0 que nos permite evocar a depressio neurética ou reativa. Na Alemanha, Emil Kraepelin (1856-1926), considerado 0 pai da psicobiologia, integrou a melancolia 3 insanidade manfaco- depressiva, dentro da segao das psicoses, findindo-a, mais tarde, & psicose maniaco-depressiva. Kraepelin continuou adotando o termo “melancolia” e seus subtipos, utilizando-se do termo “de- pressio” para descrever afetos. Para ele, os ataques manfaco-depres- sivos seriam de trés tipos: do humor, da ideag’o e da vontade. Na melancolia pura, haveria depressio do humor, lentificagio ideativa € inibigio psicomotora, jf na mania haveria pura exaltagio do humor, fuga de ideias e excitagao psicomotora. Ele crever estados mistos como estupor manfaco, a mel faga de ideias e a mania com inil Em 1894, Séglas descreve 0 intelectivos, estes iltimos denominados como “parada psiquica”. Os distiirbios fisicos sio dores vagas e generalizadas, fadiga intensa, zumbidos, palpitagSes, anorexia, constipagio, insénia e sonoléncia Além desses, abulia, falta de resolucio, lentidio dos movimentos e da fala, negligéncia da higiene ¢ clinofilia (0 paciente permanece todo o dia no leito). Outros sintomas seriam a dificuldade de atengio, de agrupar as ideias, de seguir um raciocinio, lentidio em compreender ou responder as perguntas, lentidio que pode chegar até o mutismo. Ocorreria ainda uma dificuldade de evocar e de conservar as lembrangas, prevalecendo uma tendéncia ao automa- tismo do pensamento. Para Séglas, a dor moral pode provocar um_ estado de anestesia, fazendo com que o individuo se isole cada vez mais do mundo exterior e se feche sobre si mesmo. Essa dor moral, além de amplificar os distirbios fisicos e aumentar o penar, comporta toda uma gama de paixdes tristes que vio desde © aba- timento ¢ o tédio até a angistia,o terror e, até mesmo, o estupor. Ao lado dos distiirbios formais de ides casos ditos de hipocondria moral, estio os distiirbios de contetido, ou s¢ja, 0 delirio com ideia de ruina, de humildade, de incapacidade, de autoacusagao, de culpa em relagao a sociedade ou a Deus, Além dessas, ocorrem ideias de danagio, de perseguicio, temor de casti- gos, de suplicios do inferno ¢, por vezes, ideias de negagio ¢ de imortalidade. E importante destacar que o denominador comum é a dor moral. O delirio localiza uma falta moral no lugar de uma causa desconhecida, Ha uma dor em existir; 0 simples fato de ser vivente se transforma em uma dor ¢, até mesmo, em um crime por estar vivo, cujo prego a pagar pode chegar a se materializar em um crime efetivamente perpetrado. Assim, 0 delirio da melancolia descreve sua natureza de penalidade e & a expressio, em ideias, de um estado de dor subjetiva profunda. Para Cotard, a acentuagio da dor, que marca a hipocondria moral, vai até a formagio de ideias de culpa, de rnina e de nega do sistematizada. No estigio final da doenga, ao del driaco moral vem se acrescentar a hipocondria fisica, entio, os individuos sentem e afirmam que nao tém mais coragio nem éncia; terminam por nao ter corpo. Melancolia na psiquiatria atual: CID, DSM e psicofarmacologia ‘A entidade nosolégica psicose maniaco-depressiva (PMD), termo cunhado por Kraepelin, desaparece das classficagdes predo- minantes em uma das vertentes da psiquiatria contemporinea, cujos parimetros sio dados pelo Manual diagnéstico ¢ estatistico de transtornos mentais (DSM) ¢ pelo Cédigo Internacional de Doengas (CID), fazendo surgir em seu lugar “as modernas classes” de trans- tornos afetivos (CID-10) ou transtornos de humor (desde o DSM-III), também denominado transtorno afetivo bipolar (TAB) © termo “melancolia”, por sua vez, torna-se uma subclasse dentro dos disttibios de humor nomeados como depressio maior, consti- tuindo uma subclasse: depressio maic célicas. Cabe destacar que, desde seu inicio, a classificagio DSM cenfatiza as carateristicas proprias de cada transtorno, sem diferen- Gié-los em categorias como neurose € psicose. A depressio e a mania podem se comportar em um espectro que vai da neurose 4 psicose, e o uso do termo “bipolar” torna-se dependente das alte~ ragdes do humor, Passa a vigorar a nogao de “transtorno”, enten- dida em geral como algo associado ao funcionamento cerebral e, portanto, de etiologia cerebral. Esses manuais de classificagdes ¢ diagnésticos psiquitricos mencionados, produzidos a partir de 1980, seriam supostamente at os ¢ primariam pela observagio e pela descrigio dos fend- menos. Os transtornos seriam, entio, diagnosticados a partir dos sintomas manifestos, levando-se em conta sua duragio, frequéncia ¢ intensidade. A guisa de exemplo, mencionamos a primeira parte do capitulo dos transtorn« ‘icos, que estabelece que, nesses casos, produz-se uma alteracio do humor. Ao seguirmos as defini~ ‘ges descritivas do DSM, lemos: com carat is melan- 1) © episédio depressive maior (humor depressivo, anedonia, problemas de sono, anorexia e agitacio ou enlentecimento psico- motor, inibigio quotidiana e ideias de morte), cujos sintomas ndo siio melhor expressados pelo tuto. O epis6dio depressivo maior, sem episédio manfaco ou hipomanfaco, ou seja, enquanto episédio iso- lado ou recorrente, que nao pode ser melhor expressado pelo transtorno esquizofiénico (0s it .credita~ mos, uma intengio de diferenciar uma categoria propria, ou seja, 2 depressio, fora do luto e da esquizofienia. 2) Os episddios manfacos com ideias de grandeza, diminuigio 8, grande atividade e falta de critica, 3) Os episédios ciclotimicos. 4) Os episédios hipomaniacos (tais como na mania, mas sem afetar a vida social ou profissional do individuo). Esses epis6dios sio um subtipo do diagnés (TAB). Os sujeitos atualmente classificados com transtornos do humor bipolares sio referidos 4 diade “depressio-mania”, ¢ nio mais 3 diade “melancolia-mania”. Assim, teremos, por exemplo, “trans- torno bipolar I", depressio maior com episédio de mania, ou “transtorno bipolar II”, depressio maior com episédio de hipo- mania. O grau de severidade do episédio depende do contetido das ideias delirantes ou das alucinacées em relagio aos temas depressivos de desvalorizagio, de cilpabilidade, de doenga ou morte, de niilismo ou de puni¢ao merecida. O episodio depressivo pode conter partes cataténicas ou caracteristicas melancélicas (humor depres sivo matinal, com diminui¢io do sono, culpabilidade delirante). Com essa descrigio, 0 diagnéstico no se separa totalmente da ‘0s sio meus). Pode-se observar antiga psicose manfaco-depressiva (PMD) de Kraepelin, no entan- to, embora tenham elementos em comum, muda-se a tese da rela~ io entre os diversos fatores psicol6gico, psicopatologico e soci de modo a que se chegue até a distingio entre endégeno e geno ¢ que, finalmente, a base do transtorno seja considerada somuitica. Nese sentido, em 2014 e 2018 0 grupo denominado Neuro- biology of Mental Ilness, compilado por Charney ¢ Nestler, apre- senta os ReDoC (critérios de pesquisa: de base neurobiolégic: em que inclui 0 transtorno bipolar dentro dos transtornos psicéti- cos com base somitica; mais precisamente, com uma origem comum com a esquizofienia, por compartilharem alteracdes poli génicas comuns. Classifica-se, assim, o transtorno afetivo bipolar como uma psicose afetiva, juntamente & esquizofrenia; cria-se com isso um spectrum afetivo da psicose que passa pela esquizofrenia esquizoafetiva e vai até as psicoses afetivas: melancélica e maniaca. Cabe ainda mencionar que nos finais do século XX houve uma intensa discussio no campo da psiquiatria clissica sobre 0 termo depressio, envolvendo suas diversas formas clinicas de apre- sentagio, tais como a depressio neurética ou reativa, a “depressio lepressio endégena ou endoreativa”, estas diltimas seguindo as orientacées psicobiolégico-reativas de Adolf Meyer (1866-1950), psiquiatra de origem suica, que emigrou em 1892 para os Estados Unidos ¢ que foi presidente da Associagio Ameri- cana de Psiquiatria (APA). Um dos problemas mais comuns que se colocavam era tentar discriminar entre uma “depressio endégena” e uma “depressio reativa”: a primeira seria um subtipo com causas onginicas, € a segunda, causada por situagdes existenciais. Considerou-se, entio, que se tratava de um estado depressivo no caso de uma depressio reativa e de uma estrutura psicética nos casos denominados como melancolia, aqui ja considerando as formulagées da psicanilise. A ideia de uma interacio entre gene e ambiente nio era cogi- tada até © iiltimo quarto do século XX. A dificuldade de aceitar essa interacio se relaciona com questées psicossociais, embora seja também reflexo do pensamento cientifico moderno sobre uma natureza dividida entre mente € corpo. Com isso em vista, pode- se dizer que pacientes deprimidos nao gostavam de pensar que desmoronavam diante de dificuldades que outros conseguiam resolver. Portanto, ter depressio na segunda metade do século XX era motivo de vergonha, a ponto de ser escondido. Agora, se a depressio pudesse ser creditada a algo que acontecesse sem razio externa, sem a implicacio do sujeito, e se como resultado de problemas no plano genético e quimico, isso eximiria 0 sujeito de culpa e de responsabilidade, pois ele nada poderia fazer para impedir o surgimento de sua doenca. Assim, houve ¢ ainda hi um interesse social em se dizer que a depressio € causada por processos quimicos internos. Com o avango das neurociéncias e da psicofarmacologia apés os anos 1950, a psiquiatria péde, finalmente, transformar-se em uma ciéncia médica, aproximando-se da medicina somitica. Pre~ tendendo construir uma leitura do psiquismo de base inteira~ mente bic cias forneceram ao campo psiquidtrico instrumentos teéricos e técnicos que passaram a ori- entar sua pritica. Essa transformagio deve ser compreendida como uma transformagio epistemol6gica que produziu mudangas ime- fosse entendida ica, as neuro diatas na terapéutica psiquidtrica. A mais importante delas € que a medicagio psicofarmacolégica passou a ser a principal modalidade de intervengao da psiquiatria, transformando-se em seu referencial fundamental. Melancolia na psicopatologia freudo-lacaniana clissica No “Rascunho G” (1895), Freud parte de quatro pontos para explicar a melancolia: + Relagio entre a melancolia ¢ a “anestesia sexual”, 0 que significa indiferenga, falta de vontade para qualquer coisa ¢, especialmente, falta de vontade sexual. Aboligio do desejo. + Relagio entre a melancolia ¢ a neurastenia, implicando perda de vitalidade, cansaco ¢ fraqueza. + Relagio entre a melancolia ¢ a angistia, ou seja, esta no significa economia de angistia. + Freud propée ainda a existéncia de uma melancolia que pode ser transformada em mania, porém sem deixar de ser melancolia como tipo clinico. ‘Ao retomar a discussio da melancolia em seu ensaio de 1915, “Luto e melancolia” 4 Freud afirma ser 0 luto 0 afeto que corres- ponde, melancolia, isto 6, 0 “lamento amargo de haver perdido algo, que tanto pode ser uma pessoa amada, uma abstra¢lo como a patria ou a liberdade, um ideal, etc.” Para ele, na melancolia nio é ficil diferenciar claramente o que se perdeu, embora seja claro que ocorre af uma extraordinéria diminuigio no sentiment do eu, € © mundo se torna pobre e vazio. © paciente se descreve como “indigno, estéril, moralmente desprezivel”, humilha-se perante os outros e pede perdio por ser uma pessoa indigna Chama a atengio de Freud que o melancélico nao se com- porte como alguém arrependido: “falta Ihe a vergonha?”, “perdeu © respeito por si mesmo?”. Instigado por essas perguntas, Freud conclui que as acusagdes que o melancélico dirige a si mesmo sio, na verdade, dirigidas a0 objeto perdido, introjetado no sen en por via identificatéria. Portanto, na melancolia uma parte do eu toma 2 outra como objeto, julgando-a criticamente. A essa identificagio do eu com o objeto Freud se refere ao dizer que, no caso da melancolia, “a sombra dc caiu sobre 0 eu”, De modo a comentar as formulagdes freudianas de “Luto melancolia” a partir dos conceitos lacanianos, no que se segue vou me servir do livro Manie, melancolie et factenurs blancs, de G. Arce Ross, publicado em Paris, em 2009, no capitulo sobre a foraclusio propria psicose-maniaco-depressiva, bem como ao livro Psicose € lago social de A. Quinet, publicado no Rio de Janeiro, em 2006, no capitulo sobre a melan Se equivaléssemos estruturalmente a articulagio neuronal do aparelho psiquico a articulagio icante, servindo-nos de sugestdes feitas por Lacan ao ler 0 “Projeto para uma psicologia 895), a transmissio através de neurdnios constituiria a cientifica cadeia de pensamentos inconsciente. Freud, que, como sabemos, era originalmente um neurologista, faz equivaler os neurdnios a representaces inconscientes, o que abre a possibilidade de uma leitura estrutural do aparelho psiquico como uma rede de significantes. Na melancolia, apresenta-se uma dor psiquica, que € produzida pela dissolugio das associagdes na cadeia dos pensamentos incons- cientes. Para Freud, essa dissolugio, essa quebra da cadeia de signi- ficantes & concomitante a uma hemorragia de libido. Tal empobrecimento se parece a uma “hemorragia interna”. A disso lugio das asociagdes corresponde a um furo no psiquismo, pelo qual a libido se esvai; trata-se, portant, de um proceso hemorri- gico. Daf o sujeito se tornar, como no delirio de ruina, completa~ mente empobrecido, arruinado; tudo, todos os seus bens se esvaem nessa hemorragia, que € descrita como uma excitagao escorrendo por um furo que funciona como um ralo, Trata-se de um fracasso do aparelho psiquico, quando ele deixa de ser eficiente para tratar grandes quantidades de energia, as quais, entio, irrompem e, nesse caso especifico, escorrem. ‘Ao formular uma segunda tépica do apz siquico, conc bendo-o estruturado no mais em termos de inconsciente, pré- consciente consciente, mas de isso, superego € ego (ou, nos ter~ mos usados pela tradugao Standard da Imago: id, superego e ego), Freud (1923) caracteriza a economia da dor com a exploragio do que ocorre para além do par prazer-desprazer e com os conceitos de pulsio de morte e de masoquismo primordial. A dor corres ponde 4 satisfagio da pulsiio de morte, desvelada tanto em uma situagio como aquela da perversio masoquista quanto naquela do gozo do sintoma neurético. Em “Inibi¢io, sintoma ¢ angistia”, Freud (1926) articula a dor 4 entrada de uma grande soma de excitagio, mas, além disso, d4 a entender que & a perda que pro- move a chegada de uma intensa excitagio doloros e que, a cada momento da vida, as perdas sio susceptiveis de provocar dor. Para Lacan, essa dor pode corresponder 4 emergéncia de um gozo inadequado para o sujeito, por estar referida a um excesso de ozo que rompe a barreira do simbélico, ultrapassando 0 limite do funcionamento do simbélico, mas, por outro lado, pode também estar associada 4 experiéncia de castragio, na qual 0 sujeito é remetido a situagdes de perda que fizem parte da prépria vida, a perdas que correspondem, por exemplo, a travessia do campo dos ideais. No caso do neurético, as perdas, ou melhor, a castragio se ins- creve como a falta de um significante que complete 0 Outro; no caso do psicético, a falta de inscri¢io simbélica da castragio se manifesta como um fro real correlativo A elisio do falo (@,). Para Lacan, esse furo equivale 20 fixro da foraclusio do Nome-do-Pai (P,), ou seja, ele nos indica que nio houve uma mediagio simbé- ica que permitisse ao sujeito por vir responder ao enigma do desejo da mie (“afinal, o que seri que ela quer?") conectando-o a0 Pai, ou a algo que no fosse ele proprio. Nos casos em que esse proceso, denominado metéfora paterna (processo oposto ao da foraclusio), ocorre, a0 no se ver constrangido a obturar 0 Desejo da Mie, e ao poder associar 0 enigma desse desejo a0 Pai, o sujeito por vir funciona em falta (g-), a0 ndo tamponar o desejo da mie com uma rolha que seria ele proprio, o desejo pode circular ¢ ele se libera, constituindo-se como sujeito desejante. A dor do luto é a dor constitutiva da castragao que, em vez de aparecer como angtistia, deixa 0 sujeito triste. Com a nostalgia do Ideal, sandade do Um que encobria a falta, 0 luto nos mostra que a falta déi e que a castragio evoca para o sujeito a inadequagio do gozo. A essa dor, Lacan, a partir do budismo, denominari dor de existir. Freud ¢ Lacan se interessam pelo budismo, sobretudo a pattir do estado de nirvana. Para o budismo, a dor de existir & pri- © nascimento, o envelhecimento, a doenga, a morte, a tristeza, os tormentos, a uniio com o que se detesta, a separacio daquilo que se ama, a no obten¢io do que se deseja Nenhum ser escapa 4 dor, pois tudo o que existe compée-se de elementos de duragio limitada, e qualquer principio pessoal é vazio. Para o budismo nio existiria em-si, ou seja, algo que seja proprio a alguém. O que existe € a dor estritamente vinculada auséncia de um si-mesmo. Portanto, no budismo a dor esta associ- ada ao vazio de ser do sujeito, a dor é relativa a propria existéncia como vazio. As “raizes do mal” (assim nomeadas para o budismo) estio causadas pela ignordncia e pelas paixdes da cobiga, do édio do erro, Para se liberar & preciso atingir 0 nirvana, extinguindo-as totalmente. Para a psicanilise, a via da saida da dor nio é a aboli¢io do desejo ou 0 retorno ao inanimado (pulsio de morte), mas a con jungao das paixdes com o desejo de saber. Acertar as contas é rea~ lizar aquilo que se julgava ser impotente para resolver. A passagem da impoténcia, que corresponde a faléncia do desejo, ao impossivel marca a safda do Tuto. Trata-se da passagem do “eu no dou con- ta” do sujeito enlutado, deprimido, ao “o que nao tem remédio remediado esti” da castracio assumida pelo sujeito. Porém, na melancolia, quando a vida é desapossada da sua fala, quando o furo é inabordé Nome-do-Pai, instala-se 0 masoquismo primordial. Trata-se de um lugar fora do simbélico, para além do principio do prazer, onde reina 0 siléncio da pulsio de morte € 0 gozo é impossivel de pois pressupde a foraclusio do ser suportado. A morte torna-se, entio, 0 tema frequente da melancolia, submundo de trevas marcado pelo apagamento do desejo. No contexto do masoquismo primordial, a vida nio tem fala, naio quer sarar, s6 quer morrer, silenciar, calar-se. A saida que insiste frente 4 culpa ¢ & dor leva is ideias de morte autoproduzida Fica claro que o sujeito vai ser sempre confrontado com perdas ao longo de sua vida, e af aparecera a dor da falta. Para dar conta dessa falta, o sujeito deve elabori-la ¢ fazer renascer 0 desejo. Mas, quando o sujeito cede de seu desejo, a falta se transforma em falta 0 que advém para ele é a culpa. Em primeiro lugar, 0 uulpa a sociedade, em segundo lugar, culpa 0 Outro, que nio dé 0 que cle quer. Na medida em que 0 Outro tomado como Ideal vacila e © sujeito se depara com a falta no Outro ou do Outro, ele no pode mais culpé-lo. Entio, 0 sujeito acaba tomando para si a culpa da castrago como inadequagio do gozo. Eo que era a falta, vinculada ao desejo, transforma-se em falta moral, levando o sujeito a se sentir triste e culpado. O sentimento de culpa é 0 indice do supereu que vigia, critica € pune 0 sujeito. O resultado é 2 autodepreciagio a autoacusa~ gio. A queixa, experimentada como uma impoténcia, como um nao dar conta, transforma-se em um prestar contas. Eo sujeito esté sempre aquém das contas que tem de prestar aos olhos do Ideal; 0 credor € 0 supereu. Desse modo, é justamente quando hi perda do Ideal ¢ sujeito cede ao imperativo do supereu que a inadequacio do gozo se desvela para esse sujeito. Surgem, entio, as formas de tristeza correlativas 4 dor de existir, que se dé do luto 3 melancolia, ¢ que sio extravios do desejo. O efeito de lassidio, de auséncia de tensio necessaria ao exerci- cio légico do pensamento é considerado por Lacan, alinhando-se com Espinosa, como uma falta ética em relagio ao exercicio de bem-dizer, a0 & jo de um dizer que leva em conta e acredita na existéncia do inconsciente. Ao se recusar ao bem-dizer, 0 sujeito recua ¢ se abandona em telagio ao proprio desejo. A falta de von- tade constante do sujeito depressive corresponde, em certo senti- do, ao que poderiamos denominar como covardia moral, como uma recusa ética de situar, através do pensamento, a estrutusa simbélica que o determina no inconsciente. © tristonho, seja deprimido ou melant aquele que nio se orienta no inconsciente, ¢ cujo desejo se encontra extraviado, desorientado em relagio a0 desejo inconsciente. Ou seja, nio tem um dizer sobre o desejo nem quer saber sobre ele. Bticamente falando, o sujeito triste é um frouxo; a tristeza 6 uma frouxidio do desejo. Embora, por outro lado, seja preciso lembrar que essa rejeigio do inconsciente pode também ico, de falta moral ¢ a0 sentimento inconsciente de culpabilidade, mencionado por Freud, uma forma de gozo no desprazer, che~ gando até o delirio de indignidade, de pequenez, de ruina. *Luto e melancol Em seu artigo Freud (191! melancolia como uma afligio profindamente dolorosa, em que hi uma suspensio do interesse pelo mundo externo, uma perda da capacidade de amar, uma inibigo de toda atividade e uma dimi- nuigio do sentimento de autoestima que se manifesta em autoinjiirias e que pode ir até uma espera delirante de punigio. Tal como dito antes, a perda do melancélico é indefinida, ele sabe que perdeu alguma coisa, mas nlo sabe cxatamente o qué. Esse é um indice de um fio estrutural, indice da presenga da estrutura psi- cética, determinada pela foraclusio (Verwerfung). O. fracasso. da operacio da metifora paterna faz com que a invasio de gozo se dirija a esse Outro que, pelo efeito da introjecio, seri ele mesmo. Entio, tal como vimos, 0 sujeito torna-se indigno, ruim e pequeno (em contraposi¢o ao delirio de grandeza). O ser mes- quinho, vil, egoista se desvela sem qualquer vergonha ¢ sem nada que tampone esse fato que retorna do real. Na melancolia, diferentemente da paranoia, em que 0 édio é dirigido externamente ao Outro, hi um enderecame: esse Outro que, dada a impossibilidade de realizagio do processo de luto, sera introduzido no eu através de um processo de identifi- cago, tomando, portanto, as feigdes do proprio sujeito. Freud (1923) menciona existir na melancolia “uma pura cultura da pul séo de morte”, 0 que nos permite supor que haja af uma espécie de foraclusio do amor, restando um édio puro que o sujeito vol- tar’ contra si proprio, denotando a presenca mortifera do supereu. O sujeito esti colocado como uma ferida aberta: ele proprio é esse vazio, torma-se a propria hemorragia da libido. Trata-se de uma identificagio com 0 vazio deixado pelo Nome-do-Pai ausente. Para Freud (1915), 0 processo de adoccimento comega através de uma dor de perda, nesse sentido o desencadeamento da melan- co é semelhante ao do luto. Se essa perda é da ordem de um Ideal, 0 que temos em jogo é um significante-mestre, S,, que poderia estar sendo sustentado por alguém, ou mesmo por um significante idealizado, como a patria, a liberdade, isto é, um S, © contra que faria as vezes, que cumpriria a do Nome-do-Pai, proceso a0 qual denominamos supléncia. Em outros termos, um significante- mestre pode funcionar de modo a suprir a falta simbélica da ope ragio do Nome-do-Pai, quando ele, ou aquilo que o sustentava, 6 perdido, a melancolia é desencadeada, pois o sujeito se vé diante do “furo no psiquismo", furo ao qual nos referimos anteriormente. No caso do sujeito enlutado, esse significante se encontrava no lugar do Ideal do Eu, lugar de onde o sujeito se via como amivel. © Ideal do Eu, 1(A), € 0 trago do Outro, ou seja, a insignia do Outro que situa o eu-ideal, i(a), através do qual o sujeito se vé ¢ a sua imagem como amada pelo Outro, imagem com a qual se identifica. Em vista disso, 0 Ideal do Eu opera por projegio sim- bilica, © 0 eu-ideal, como uma introjegio imaginaria. Se o Ideal do Eu é abalado e sua sustentagio é perdida, havera um abs eu-ideal, uma perda narcisica. Isso pode ter um eftito de dissolu- io imaginaria e teri, como consequéncia, 0 desvelamento do estatuto real do objeto. Ocorre assim uma separagio entre a ima- gem (i) € © objeto (a); este diltimo, ao perder a sua vestimenta imaginiria, leva o sujeito a se identificar a0 objeto como resto. O melancélico se acusa de ser responsivel pela ruina, pelas per~ das, pela miséria de seus familiares e, até mesmo, do mundo. No que tange a isso, a interpretacio freudiana ¢ a de que o lamento melancélico é sempre uma queixa contra alguém que sustentava ‘ou fazia o papel do Ideal, como supléncia do Nome-do-Pai, e que foi deslocado desse lugar. Isso, que as vezes & vivido como um abandono de quem cuida ou ama, gera uma sensagio de desam- no paro fundamental para o sujeito, provoca desolagio ¢ desarvoramento. Se, no melancélico, a estrutura do Outro é totalmente anulada © © proceso permanece como uma estrutura de autoacu: de autoinjiiria, a sua tendéncia seri a de negar tudo que existe, a comecar pelo proprio corpo, pelos proprios érgios, podendo até mesmo chegar a dizer que profinda dor de existir, mas cla no é experimentada como angiistia de castragio, que poderia dar sentido a perda, se a fangio filica estivesse operando, Em vez disso, ha um real nao ou mundo nfo existe. Constata-se uma primario na melancolia é a perda do objeto situado no lugar do Ideal do Eu, 0 que tem como consequéncia, secundaria, uma im, quando ha um abalo no Ideal do Eu, ha a consisténcia imaginaria do eu se esvai. No ‘momento em que o sujeito se depara com a foraclusio do Nome- do-Pai, h4 uma perda das vestes narcisicas do objeto: a imagem cai © © sujeito se vé identificado com 0 objeto. O eu perde o seu revestimento narcisico ¢ evidencia-se seu status de objeto como vazio, como furo no simbélico. O sujeito se torna oco, sem consis- téncia. Em vista disso, diriamos que o melancélico atinge 0 objeto, cai como dejeto. Freud assinala que na melancolia toda vertente de Eros desapa- receu ¢ $6 ficou o ddio, que o sujeito volta contra si mesmo, sur gindo ento a autotortura, Na medida em que foraclusio do Outro do amor, ¢ que esse Outro que ama ¢ cuida é perdido, sobra um supereu extremamente cruel ¢ que odeia 0 sujeito. Freud explica 0 gozo da autotortura na melancolia: a pul- ‘orre ai uma sio que prende o melancélico 4 vida se desprende, ¢ 0 gozo do masoquismo fiz da melancolia a “pura cultura da pulsio da mor te” (FREUD, 1923), tal como antes mencionado. Na medida em que a estrutura do Out liminada, 0 sujeito se encontra em um proceso {utocastigo, autotortura, autorreprovagio etc.) contra si mesmo. No delirio melancélico ele estara na espera delirante de punicio. No delirio retrospectivo, © melancélico encontrar’ algum crime que tenha cometido para justificar tudo aquilo e,a0 aguardar a punicio, ele reconstituird um ‘Outro do tr ‘Com seu delirio, 0 melancélico tenta reconsti- tuir um Outro que vai puni-lo por um crime que tido, e do qual se acusa dentro de uma total devastagio. Nesse caso, trata-se de um Outro sem rosto, opaco, de um Outro que o sujeito desconhece. © delirio localiza uma falta moral no lugar da causa incégnita (x), detectada por Freud (1915) como uma desconhecida”. Essa falta moral justifica os distiirbios que acome- tem 0 sujeito. Aprendemos com Freud, em seu texto “Luto (1915), que os processos de luto, quando conectados ao campo das neuroses, terminam, 0 que nio deixa de representar um alivio, uma alegria para sujeito, posto que Ihe surge uma energia nova, liberada do trabalho do luto, Uma vez concluido o luto, 0 indivi- duo sai da depressio ¢ se reconecta 4 cadeia metonimica do dese jo. Tal nao € 0 que ocorre na melancolia, 0 que nos leva a siderar a existéncia para o melancélico de outras tentativas de saida, tal como aquela da solugio maniaca. ‘A solugio maniaca decorrente da impossibilidade de elabora- io das perdas melancélicas é evidentemente, diferente de um le teria come- e melanc processamento do luto; 0 melancélico no processa simbolica~ mente a perda, nio realiza o trabalho do luto, em vez disso, ele sai do luto entrando em mania, Por isso Lacan insistiré em que, no que concerne 4 melancolia e 4 mania, ou seja, ao que foi classica~ mente denominado psicose-maniaco-depressiva (PMD), temos apenas uma estrutura: a da melancolia, mesmo que 0 sujeito se situe ora no polo manfaco, ora no polo melancélico. Mesmo que © melaneélico esteja estabilizado, com algo fazendo supléncia da foraclusio do Nome-do-Pai, terfamos uma s6 estrutura. Na mania 0 sujeito é invadido pelo destizamento incessante de significantes, que aparece na forma de uma fuga de ideias. Ele passa do delirio de pequenez para o delitio de grandeza, no qual ele & a causa do bem de todos; ele surge entio em sua prodigalida- de, Ao entrar na solugao manfaca, ele pode dilapidar os proprios bens, gastando em excesso. No manfaco, 0 furo do psiquismo melancélico est tamponado, ¢ o individuo é aquele que tem. A diferenga do melancélico, que € a ruina encarnada, 0 maniaco se encontra na posigo da fortuna dos outros. Na mania hé o preen- chimento superficial do furo, da falta, e 0 sujeito entra em uma metonimia permanente, mas sem lastro; experimenta uma sensa~ gio de plenitude, de completude na relagio com 0 outro. E isso a tal ponto que nao hi qualquer autocritica que possa perturbar seu humor. © sujeito fica apaixonado por si mesmo, portanto a mania é uma paixao por si mesmo. Se a melancolia mostra a constituiga0 do eu como um objeto narcisicamente investido como imagem, mas também desvela o sentimento de culpa inconsciente na auto- acusagio, outro nome do masoquismo moral, para Freud a mania € uma defésa contra o supercu. Podemos dizer que h4, do lado da mania, uma tentativa de se agarrar ao Imagindrio, mas também podemos supor que o Ideal possa operar ai como um significante que supre a foraclusio do momentos de estabilidade “ , podemos pensar em uma recomposicio do Imaginirio, com um reinvestimento da imagem narcisica, que funcionaria como uma supléncia imagin’- ria, A partir dessas consideragdes, fisndamentadas nas leituras feitas e Lacan, podemos constatar que a melancolia é classifi na qual 0 Outro, até mesmo pi cesso de introjecio, esti no eu mesmo do individuo, de tal modo que, para apagi-lo, o sujeito tenta se autoeliminar. Temos af, de modo, avesso da paranoia, na qual 0 Outro é 0 Clinica diferencial da depressio Nos meses de janeiro fevereiro de 2006, uma revista argen- tina de psicanilise, VIRTUALIA, Revista digital de La Escuela e la uacién Lacaniana (EOL), publicagio bastante conceituada nos meios psicanaliticos lacanianos, trouxe no seu niimero 14 um dos- sié no qual podemos acompanhar os modos como a melanc tema clissico da psicopatologia, ressur; debates contemporineos sobre a assim dit: Para Pierre Skriabine, embora 0 termo “depres nalitica refutta a entidade “depressio”. Ela tem o que dizer a res- peito, mas certamente nio se engana quanto 4 tentativa vigente de se mascarar, sob esse rétulo, uma clinica sem sujeito. Eric Laurent, insista, em princfpio a por sua vez, a0 se aproximar da conjungdo entre a época contem~ porinea e a depressio, o fiz a partir da oposi¢io entre a castragio ea depressio, o que Ihe permite situar a experiéncia contempori- nea da morte do pai, do declinio do pai, como aquilo que retorna na experiéncia da falta, da perda. Para ele, a morte do pai é 0 que leva © sujeito a realizar a experiéncia do fim, experiéncia muito presente desde o século XX e que é imaginarizada com o termo “depressio". Frente a isso, ele propde a experiéncia de uma anilise como 0 que nos conduz a nos darmos conta, em um relimpago, de que hi outro modo de gozo que nao aquele da tristeza, tam- bém dita depressio. Posto isso, serviremos-nos de alguns comentirios recortados aqui ¢ ali desse dossié sobre a depressio, deixando sugerida a lei- tura dos artigos af inseridos Comegamos por anotar que 0 termo “depressio” usado atu- almente para nomear o desfalecimento do sujeito, a sensagio de vazio, a sensagio da queda da tensio do desejo. Ironicamente, dirfamos que o significante “depressio” € criacionista, pois parece ter engendrado uma quantidade imensa de sujeitos que se encon- tram tristes, desanimados, frustrados, enlutados, anoréxicos, apiti- cos, desiludidos, entediados, impotentes, angustiados etc. Em vista disso, o significante “depressio” parece indicar que 0 sujeito do inconsciente se esvaziou sob o peso de um goz0 que o coloca fora do tempo, frente ao vazio que é cle mesmo. Faz-se propaganda impulsionando 0 consumo para atingir 0 sonho do bem-estar. A resposta social empurra para a coletivizagio e 2 homogeneiza¢io através da midia, que oferece um leque muito diverso de gadgets, ou seja, de objetos produzidos pela ciéncia e pela técnica e que, aliados a0 consumo capitalista, passam a comandar a vida dos suj Trata-se, para a sociedade atual, de produzir um “modo de ser” que responde fazendo desaparecerem as particularidades, Tenta-se produzir sujeitos idénticos e transparentes para evitar angistias, iistérios, falhas, surpresas etc. © sujeito passa a ser um objeto a mais na cadeia de consumo, sem desejo e sem identidade. Em que pese isso, a sociedade atual tenta fabricar respostas que gerem um sentimento de poder, de fortaleza ¢ de um dominio sem falhas. dade de uma dificuldade neu- rotica, de um conflito p de qualquer outra a hipotese de uma incapacidade ou insuficiéncia. O conifito entre “o que se &” e “o que se deveria ser” recoloca o tema da angustia eda culpa em relagao a0 que, entio, nao se 6 mas que se deveria ser. Por outro lado, constata-se a perda dos ideais da modernidade, senti- Bes, a psiquiatria oferece os novos produtos antidepressivas, que prometem 0 retorno A produtividade que viri junto com o impe- rativo da safide e do bom humor. Além deles, a sociedade oferece diversas alternativas para se alcancar a beleza, a perfei¢io, o desta~ que com diversas técnicas, sejam elas a malhagio do corpo, as comidas ¢ bebidas para toda ¢ para cada oportunidade, cirurgias , autoajuda, credos diversos ete. Muitos autores dedicaram-se a compreender a depressio como ‘© mal da contemporaneidade ou da pés-modernidade e passaram a correlacioni-la com a organizagio social, econémica e politica predominante neste tempo. As relagées interpessoais frigeis superficiais, a valorizagio exacerbada da imagem; assim as formas de sofrimento psiquico predominantes na pés-modernidade esta- iam fortemente correlacionadas e refletiriam uma sociedade na qual reina a légica do espetéculo ¢ uma cultura do narcisismo. Frente ao panorama contemporineo tragado pelos adeptos dessa “nova clinica”, a psicopatologia lacaniana nao inclui a depressio como uma nova entidade, registra, isso sim, os estados depressivas de sujeitos desorientados em relagio a seu desejo ou atravessando a perda dos ideais. Para a psicandlise, a forma como se sustenta a fungio da castra¢io, na qual se situa a relag3o a0 objeto, ou a forma de se posicionar diante do Outro sio questées de estrutura. A depressio & uma nogio polissémica e suficientemente fluida, sem especificidade, de modo que pode ser entendida como uma tendéncia, uma forma de expressio geral, algo do senso comum. Ji a melancolia é considerada uma estrutura precisa, patolégica, psi- cética e esté dentro do campo da psicose maniaco-depressiva. Sendo assim, dentro do que é considerado como uma depressio pelo senso comum, pode se tratar de uma reagio a um evento pontual, sem que isso implique que o sujeito tenha necessaria- mente uma estrutura psicética. Nessa situagio, pode ser um trago cultural em um momento de crise social, a fase depressiva de uma neurose ou, também, o comego no curso de uma psicose. Para a clinica psicanalitica, a depressio nio é considerada um sintoma ou uma estrutura; trata-se de um afeto, de algo que cerne a0 campo do humor e que é efeito de uma tensio psiquica ou de uma falta moral. Trata-se de uma resposta afetiva, que se caracteriza pela tristeza e inibigio, a estase e a diminuigio sensivel da atividade, na qual sujeito recua frente a uma exig@ncia ética, exigéncia de dizer ou, nos termos de Lacan, de bem-dizer. , a depressio pode ser consi- derada como um conceita transclinico que atravessa as diversas estru- turas e que pode ser encontrado com intiumeras apresentagées, Principalmente se se considera a dor psiguica. No dosié sobre 2 do sujeito?", Skriabine nos lembra que, com a pucopatologia laca- niana, a psicandlise nos orienta para uma articulagio entre o afeto depressivo & 0 goz0, mais especificamente para os diversos modos através dos quais 0 gozo se apresenta nos estados depressivos, seja angistia, inibicZo, covardia moral, identificagio melan- célica a0 objeto, desinvestimento libidinal, deflagio narcisica, dor de existir etc., modalidades de apresentag3o que abrem uma cli- nica diferencial da depressio. Enfim, uma clinica diferencial da depressio orienta-se con- forme 0s diversos modos como cada sujeito se sustenta em fungao da castragio, da sua relagio ao objeto e ao Outro. Isso se apresenta em cada um dos estados depressivos dos quais 0 sujeito se queixa ao chegar para um tratamento ¢, também, nos afetos depressivos que podem surgir no decorrer do préprio tratamento. Referéncias ALMEIDA, C. P; MOURA, J. M. (Org). 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A casuistica publicada e as autobiografias dos autistas demonstram 0 quanto as suas possibilidades de insergao dependem do acolhimento de suas invengdes pelas familias, pelas escolas, pela sociedade em geral ¢, particularmente, pelo discurso psicanalitico. A lingua do Outro que daria acesso ao lago social é tao absolutamente tra para © autista que ele se abriga na solidio. Ao se defender, acaba imerso no real, fora do discurso, fora das convengdes, porém predisposto as inven¢des. O autista tem a maior afinidade com a invengio e a reinvengao do mundo. © antismo como estrutura clinica 6 uma formulacio que se estabeleceu a partir da pesquisa em varias frentes de trabalho em que o psicanalista vem sendo chamado a dizer sobre os autistas, PSICOPATOLOGIA LACANIANA Now Antari’ rin Rose PSICOPATOLOGIA LACANIANA

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