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Dalai Lama
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Psicóloga Clínica, especialista em estresse pós-traumático, em terapia corporal e sistêmica. Atua em
consultório particular e como técnica pericial do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.
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igualdade dos cônjuges na tomada de decisões acerca da família; isonomia entre os filhos,
independentemente de suas origens, proteção especial à família em seus diversos arranjos.
Mais tarde, o Código Civil de 2002, influenciado pela Constituição Federal de
1988, concebeu uma forma mais ampla das relações de parentesco, onde o afeto e a
responsabilidade foram considerados os pontos mais relevantes na formação da estrutura
familiar. O pátrio poder passou a ser denominado poder familiar. A família socio afetiva
surgiu, constituída pelos cuidados e compromissos recíprocos, reforçados no dia a dia
entre seus integrantes. A supremacia do princípio da dignidade humana provocou um
desmoronamento nas estruturas atrasadas e arraigadas em valores tiranos, materiais e
autoritários, elevando a figura do afeto como norteador absoluto das relações familiares.
Este fato trouxe grandes mudanças na relação entre pais e filhos.
Apesar de todos os avanços conquistados, o vigente Código Civil precisa estar
constantemente se adaptando às mudanças sociais que ocorrem, para poder resguardar
essas novas relações paterno-filiais, visto que a paternidade socio afetiva já é uma
realidade constitucionalmente reconhecida, e que, sem forma de dúvida, visa atender aos
interesses da criança. O Estado não pode mais se manter silente, precisa assegurar os
direitos das pessoas que integram as famílias brasileiras construídas sobre os laços do
afeto. Assim como a união estável foi há alguns anos inovadora no direito de família, a
desbiologização em algum momento vai precisar ser absorvida pelo direito, que é o
regulador das situações fáticas de uma sociedade e que, portanto, precisa evoluir para
acompanhá-la. Para isso, a questão não pode ser analisada apenas sobre o prisma jurídico,
a visão da psicologia e das demais área afins sobre os novos arranjos familiares é
fundamental para contribuir com a regulamentação das diretrizes de nossas relações
sociais.
Por mais ampla que seja a legislação de um país, não é possível abarcar todos os
fatos da vida. Certamente, muitas situações que escapam às regras, desafiando limites e
possibilidades vão continuar a existir, nos permitindo rever conceitos e teorias para lidar
com novas situações. O Brasil, por exemplo, não colocou o preceito do afeto, que
configura o ponto central da paternidade socio afetiva no que se refere à posse do estado
de filho, em seu Código Civil, como fez a França, Bélgica e Portugal. No entanto, mesmo
sem regulamentar essa paternidade desbiologizada, nossa jurisprudência vem priorizando
a mesma sobre os laços afetivos em muitos casos. O direito brasileiro estaria realizando
um grande avanço se fundamentasse a paternidade nas três espécies: biológica, jurídica e
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psíquico e intelectual da criança, oferecendo a ela todo e qualquer suporte que se faça
necessário para seu crescimento e evolução como ser humano. Em muitos casos, a criança
que vive em estado de posse afetiva com seus pais, está muito mais bem-criada e
amparada social e psicologicamente do que se estivesse com seus pais biológicos.
Para Chodorow (1990), por exemplo, as diferentes atuações de mães e pais não se
devem a um fator natural, mera consequência das funções fisiológicas maternas. Nem são
comportamentos adquiridos por mero treino de papéis. São, ao contrário, fruto das
identificações feitas pelo indivíduo desde sua própria infância, que passaram a integrar
sua personalidade.
O antropólogo Lévi-Strauss (1976) afastou a ideia da essência natural biológica
da família, quando demonstrou com suas pesquisas que “a família biológica é uma
abstração indeterminada, sem relação mais profunda com a realidade histórica”. O autor
fala de família muito mais como uma “invasão da cultura no campo da natureza” do que
algo biologicamente dado.
Nem o homem nem a mulher nascem pai e mãe, mas se tornam pai e mãe através
da construção de suas identidades parentais, incorporando valores e características que
lhes são transmitidas através de modelos oriundos de quem desempenhou tais funções em
suas vidas. São os modelos de pai ou mãe, introjetados a partir das vivências da infância
de uma pessoa, que contribuirão com o exercício da paternidade ou maternidade no
futuro. Como diz Freud (1996 apud PAULO, 2005), “os pais são os primeiros modelos
de filhos, ideais a partir dos quais eles constroem toda a sua subjetividade”. Insta salientar
que algumas pessoas têm a oportunidade de exercitar a maternidade ou paternidade de
uma forma diferente do que experimentaram quando estavam do lado oposto enquanto
filhos. Através da ressignificação de sentimentos, pensamentos e emoções vivenciadas,
somos capazes de sermos pais afetivos mesmo tendo experimentado o desafeto enquanto
filhos, sendo exatamente o inverso do que foram para nós.
Desde o nascimento, todo sujeito está inserido em uma rede relacional na qual
constrói a sua compreensão de família, balizada pelo contexto sociocultural e normas que
regulam um ideal de família. Sendo um sistema complexo, que se transformou ao longo
da história, a família é considerada por muitos a primeira e mais importante instituição
organizada do mundo, a principal unidade básica de desenvolvimento do ser humano.
A família pode se apresentar como uma estrutura social, uma construção humana
que se consolida, transformando-se conforme a influência do meio social, sendo,
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Temos ainda as concepções de família propostas por autores como Pereira (1997),
que afirma ser a família uma estrutura psíquica onde cada integrante possui um lugar
definido, independentemente de qualquer vínculo biológico, e Lacan (2002), que define
família como a relação simbólica e estrutural que liga as pessoas entre si num projeto de
vida (apud PAULO, 2005).
Apesar de todas as contribuições da psicologia para a compreensão dos vínculos
familiares, críticas ainda podem ser feitas, e nem mesmo o pai da Psicologia Moderna
permaneceu distante delas. Para Paulo (2005), “se por um lado Freud, em sua análise da
estrutura e do funcionamento do psiquismo humano, é de uma profundidade espantosa,
analisando exaustivamente os vínculos e as relações intrafamiliares, e colocando a
repressão sexual na família como a grande causadora de neuroses, o recorte que fez desses
fenômenos foi, ao mesmo tempo, bastante limitado, uma vez que esqueceu o tecido social
mais amplo, os papéis que homens e mulheres desenvolvem na organização social,
retirando assim, de sua teoria, uma perspectiva social e histórica.
Sem esta perspectiva, deixamos de incluir o que é peculiar a cada sociedade e,
quando precisamos definir conceitos e delimitar teorias, ficamos arraigados em recortes
reducionistas, que não expressam com fidedignidade os avanços conquistados. A
reformulação do conceito de família só foi possível a partir de uma mudança de
paradigma, onde ampliamos os critérios de filiação, favorecendo o aparecimento de novos
modelos de paternidade e maternidade embasados no afeto como norteador dos vínculos
familiares.
Cada vez mais nossa cultura vem reconhecendo que é a ligação sócio afetiva que
se tem com a criança que é a crucial na estruturação da personalidade e no
desenvolvimento do sujeito. Qualquer pessoa que substitua a mãe ou o pai no desempenho
de suas funções estará contribuindo para esta estruturação, auxiliando o indivíduo a
encontrar sua posição na vida e influenciando suas referências futuras.
Para Paulo (2005), “se um dia o ser humano aprender a aceitar e lidar melhor com
as diferenças, deixando de fazer como Narciso, que achava feio tudo o que não era
espelho, talvez possamos chegar a esse ponto, em que todas as famílias sejam
reconhecidas e respeitadas como tais, independentemente de sua estrutura e de sua
configuração. Neste dia, as famílias serão valorizadas, antes de tudo, por serem núcleos
de afeto de extrema importância para os seus integrantes, e para o corpo social como um
todo, consequentemente”.
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Referências Bibliográficas: