~ KARL Mann
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Cometome octtes
Birmingham. DE nessa coletanea, os seguintes artigos: O In-
Pca CRUealee meleeReem elcol Fon
eM)esete-] Cn) Consciéneia: Lukdcs (Roisin orene
Polftica e tdeologja: Gramsci (Stuart Hall, Bob Lumley e Gregor McLen-
nan); A Teoria de Althusser sobre Ideologia (Gregor McLennan, Victor
ERCNM esCOREGCutieeM SarCrk:Ce lst)itEe M(tbeer)
no Poder Politi¢o e nas Classes Sociais (John Clarke, lan Connell e
Roisin McDonough); Democracia Social, Educagao e a Crise (Dan Finn,
Neil Grant e Richard Johnson); Ideologia, Subjetividade e o Texto Lite-
rario (Steve Burniston eChris Weedon).
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A CIENCIA COMO PNieeUY.
rHeaantc) e Hi
O autor analisa minuciasamente a Ciéncia eea ars
co, revelando a natureza do desenvolvimento cientifico 4 medida que
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&xaminaos cientistas Madd seres humanos, como CL LL ag
BUCCRLn Fedd CeeCC PeLc)
Fonde exercem sua atividade. Num capitulo especialmente importan’
CeERMCEts 11. ere te 7
BIBLIOTECA DE CIENCIAS SOCIAIS
Sociologia ¢ 4. Tope
KARL MANNHEIM
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IDEOLOGIA E UTOPIA
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Pror. César GUuIMARAES RES
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CIP-Brasil. Catalogagdo-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
Mannheun, Karl
M2466i Idcotogia ¢ utopia / Karl Mannheim, tra~
4ed dugdo de Sérgio Magalhdes Santerro — 4
ed — Run de Janeiro: Guanabara, 1996
T tode Ideology and utopna
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CIMENTO ....-- 143
oo A Sintese pas Diversas PEnsrectrvas como uM Pno-
BLEMA DE SocioLocia Potitica 172
O Propiema Socio.écico pa “INTELLIGENTSIA” 178 NOTA PRELIMINAR
ARH RA
Louis WirtH
e da investigacio modetnos, para muito do que antes se acci- a tentativa de transferir a tradigfio e todo o aparato de traba-
tava como incomteste passou-se a exigir demonstragfo e com- Iho cientifico do dominio fisico para o social tem muitas vézes
provagio. Os préprios critérios da prova tornaram-se objeto resultado em confus&o, incompreensio e esterilidade. O pensa-
de controvérsia. Estamos presenciando uma desctenca geral mento cientifico sébre questdes sociais teve de sustentar até
nfo apenas na validade das idéias, mas também nos motivos agora uma guerra contra, sobretudo, a intolerincia estabelecida
dos que as sustentam. Esta situacdo é agravada pela guerra de e a repressio institucionalizada. Vem lutando por se estabe-
cada um contra os demais na arena intelectual, onde, mais do lecer contra seus inimigos externos, o interésse autoritdrio da
que a verdade, o auto-engrandecimento se tornon o prémio al- Igreja, do Estado e da tribo. No decorrer dos ultimos séculos,
mejado. A crescente secularizacdo da vida. o agravamento dos contudo, logrou-se uma vitéria, pelo menos parcial, sdbre estas
antagonismos sociais e a acentuacdo do espfrito de competi¢zo fércas externas, do que resultou uma certa tolerancia ao livre
pessoal ocuparam regides que anteriormente se acreditava per- exame € mesmo um encorajamento ao pensamento livre. Por
tencerem totalmente ao dominio da busca objetiva ¢ desinte- um breve interregno entre as épocas do obscurantismo espiri-
ressada da verdade. tualizado medieval e do aparecimento das modernas ditaduras
secularizadas, o mundo ocidental deu promessas de realizar a
Por mais inquietante que possa parecer, esta mudanca
esperanca de tddas as mentes esclarecidas de tédas as épocas:
vem também exercendo influéncias benéficas. Dentre estas, po-
deriamos mencionar a tendéncia para um auto-exame mais pro- a de que, pelo exercicio pleno da inteligéncia, os homens pode-
riam triunfar sObre as adversidades da natureza e sdbre as per-
fundo € para uma consciéncia mais ampla das interconexdes —
versidades da cultura. Entretanto, como tantas vézes no pas-
das quais anteriormente se suspeitava — entre as idéias e as
situagdes. Embora venha a parecer de um humor inoportuno
sado, esta esperanca parece agora frustrada. Nacdes inteiras
entregaram-se oficial e orgulhosamente ao culto da irracionali-
falar-se das influ€ncias benéficas resultantes de um cataclismo
dade, e mesmo o mundo anglo-saxfo que, por tanto tempo,
que abalou os fundamentos de nossa ordem intelectual e social,
tinha sido o refigio da liberdade e da razio, ptoporcionou re-
deve-se reconhecer que o espetéculo de mudanca e confusio,
centemente o ressurgimento das cagadas As bruxas intelectuais
com que a ciéncia social depara, proporciona ao mesmo tempo
oportunidades sem precedente pata um névo e fecundo desen- Com o desenvolvimento do espfrito ocidental, a busca do
volyimento. Tal ndvo desenvolvimento. no entanto, depende conhecimento do mundo fisico resultou, apds as duras penas da
de que se tenha pleno conhecimento dos obstdculos antepos- perseguicfo teolégica, na concessio de um dominio auténomo
tos ao pensamento social. Isto nfo implica que @ste esclareci- para as Ciéncias Naturais, Desde o século XVI, afora algumas
mento seja a tinica condicfo para o posterior desenvolvimento excegSes notdveis, o dogmatismo teoldgico veio abandonando
da ciéncia social, como se verd adiante, mas apenas que se trata um apds outro todos os campos de investigacio até que se re-
de uma precondico necessdria para o desenvolvimento ulterior. conheceu amplamente a autoridade das Ciéncias Naturais. Face
ao progresso da investigacdo cientifica, a Igreja tem abandona-
do e periddicamente reajustado suas interpretacdes doutrinais
de modo que a divergéncia destas com relacio As descobertas
I
cientificas nfo scja por demais evidente.
O progresso do conhecimento social se acha impedido, se Finalmente, a voz da ciéncia era escutada com um respeito
nao paralisado, por dois fatéres fundamentais: um déles, exterior, préximo 4 reveréncia antes somente concedida aos pronuncia-
e€ opondo-se ao conhecimento, o outro atuando dentro do préprio mentos autoritdrios, religiosos. As revolucdes que a estrutura
dominio da ciéncia. De um lado, as fSrcas que bloquearam e re- tedrica da ciéncia sofreram nas ultimas décadas deixaram ina-
tardaram o avanco do conhecimento no passado ainda nao se cabado o prestigio da busca cientifica da verdade. Apesar de
convenceram de que o avanco do conhecimento social é com- nos ultimos cinco anos se haver ocasionalmente levantado o
pativel com o que consideram seus interésses, e, de outro lado, alarme de que a ciéncia exercia um efeito violentador da or-
12 IpEoLocia E Urorta PreFACIO 13
ganizacao econémica, devendo sua atividade ser limitada, qual- legitimavam a ordem polftica existente, tanto mais precdria se
quer refteamento que possa ter-se verificado neste perfodo no tornava a posigao da ciéncia social emergente.
progresso da pesquisa da ciéncia natural serd provavelmente © Japao contempordneo fornece um exemplo dramédtico da
mais o tesultado da procura econémica decrescente dos produ- diferenca entre os conhecimentos tecnoldgico e social, quer
tos da ciéncia do que uma tentativa deliberada de retardar o quanto a seus respectivos efeitos, quer quanto as atitudes em
avango cientifico com o intuito de estabilizar a ordem exis- relagfo a um e a outro. Desde que o pais se abrira as correntes
tente. de influéncia ocidental, os produtos e os métodos técnicos do
Ocidente toram avidamente aceitos. Nao obstante as influén-
A vitéria da ciéncia natural sdbre o dogma teoldgico e clas politicas, econdmicas e sociais vindas do exterior, séo ainda
metafisico contrasta violentamente com o desenvolvimento dos hoje encaradas com suspeita e a elas obstinadamente se resiste.
estudos da vida social. Ao passo que o procedimento empirico efe-
tuava profundas incisdes nos antigos dogmas referentes & nature- O entusiasmo com que se recebem no Japao os resultados
za, as doutrinas sociais cldssicas se mostraram mais impenetrdveis da ciéncia fisica e bioldgica contrasta vivamente com o cultivo
a investida do espfrito secular e empirico. Isto pode ser em parte cauteloso e limitado da investigacéo econémica, politica e social.
devido a que, entre os antigos, o conhecimento ¢ a ¢laboracdo Listes Ultimos assuntos ainda estao, em sua maior parte, su-
de teorias no que toca a questGes snciais estavam muito mais jeitos ao que os japonéscs chamam &Askenshiso ou “pensamen-
adiantados do que as noc6es relativas & Fisica ¢ A Biologia. tos pcrigosos”. As autoridades encaram como perigosa a dis-
cusséo da democracia, do constitucionalismo, do imperador, do
Ainda nao havia chegado a oportunide de demonstrat a utilida-
socialismo e de uma série de outros assuntos porque o conhe-
de prdtica da nova ciéncia natural, e a inutilidade das doutrinas
cimento déstes tépicos poderia subverter as crengas sanciona-
sociais existentes nado padia ser convincentemente comprovada.
das e minar a ordem existente.
Ao passo que a Logica, a Etica, a Estética, a Politica e a Psicolo-
gia de Aristételes impunham sua autoridade as épocas subseqiien- Para que n&o pensemos, porém, que esta situagaéo seja
tes, suas noc6es de Astronomia, Ffsica ¢ Biologia se viam pro- peculiar ao Japao, deve-se frisar que muitos dos tépicos que 14
gressivamente relegadas ao museu das supersticdes antigas. se reinem sob o titulo de “pensamento perigoso” era igual-
mente, até hé pouco, considerados tabu na sociedade ocidental.
Até o coméco do século XVIII a teoria politica e social Ainda hoje em dia, uma investigagao clara, franca e “‘objetiva”
ainda se encontrava sob o dominio das categotias de pensamen- nas instituigSes mais sagradas e queridas se vé mais ou menos
to elaboradas pelos filésofos medievais e antigos, sendo em striamente limitada em qualquer pais do mundo. I pratica-
grande parte utilizadas em bases teoldgicas. O ramo da ciéncia mente impossivel, por exemplo, mesmo na Inglaterra e nos Es-
social que tinha alguma utilidade prdtica se relacionava, otigi- tados Unidos, inquirir sébre a realidade dos fatos referentes ao
nalmente. com assuntos administrativos. O cameralismo e a arit- comunismo, nao importa quao desinteressadamente, sem correr 0
meética politica, que representavam esta corrente, limitavam-se aos risco de ser tachado de comunista.
fatos rotineiros da vida cotidiana, raramente se alcando A teoria.
Em conseqtiéncia, o ramo do conhecimento social que se preo- Que em tédas as sociedades exista, pois, uma d4rea de ‘‘pen-
cupava com questdes mais suieitas A controvérsia dificilmente po- samento perigoso” parece ser assunto praticamente indiscutivel.
dia aspirar ao valor prdtico alcancado pelas Ciéncias Naturais de- Embora reconhecamos que o que € petigoso de se pensar pode
pois de um certo estd4gio de seu desenvolvimento. Nem tampou- vatiat de pais a pais e de época a época, os assuntos em geral
co podiam os pensadores sociais, de quem dependia o progresso marcados com o sinal de perigo séo os que a sociedade ou os
dessas ciéncias, esperar o amparo da Igreja ou do istado, onde seus elemer.tos controladores acreditam ser de tal forma vitais,
os mais ortodoxos buscavam o seu sustento moral ¢ financeiro. e dai sagrados, que nao tolerariam sua profanacdo pelo fato de
Quanto mais secularizada a teoria politica e social se tornava e discuti-los. © que, entretanto, nfo é tao facilmente reconhe-
quanto mais completamente destrufa os mitos santificados que civel € 0 fato de que o pensamento mesmo na auséncia de uma
14 Iogoroeia E Uropia
PrerAcio 15
censura oficial € perturbador e, em determinadas condigdes,
De tato, grande parte da histéria da filosofia e da ciéncia
perigoso e subversivo. Pois o pensamento é um agente catali-
modernas revela uma inclinagio, se nfo uma clara orientagao
sador capaz de perturbar rotinas, desorganizar habitos, romper
para éste tipo de objetividade. Isto, admite-se, implica, negati-
costumes, solapar crencas e gerar o ceticismo.
vamente, a procura do conhecimento valido por meio da elimi-
© aspecto peculiar ao enunciado da ciéncia social deve nagio da percepgao tendenciosa e do raciocinio vicioso, e, posi-
ser buscado no fato de que téda afirmativa, néo importa quaéo tivamente, ma fornulagéo derum ponto de vista criticamente
wbjetiva possa ser, possui ramificagSes que se estendem para autoconsctinte e no desenvolvimento de sdlidos métodos de
além dos limites da ciéncia prdpriamente dita. Uma vez que observagio e de andlise. Se, a primeira vista, pode parecer
toda a afirmativa de um “fato” a respeito do mundo social afeta que ao claborar trabalhos de légica e metodologia da ciéncia os
os interésses de algum individuo ou grupo, nfo se pode nem pensadoies de outras nagdes tenham sido mais ativos do que os
ao menos chamar a atencio para a existéncia de determinados ingléses c os amcricanos, esla nogio bem poderia ser corrigida
“fatos’’ sem provocar as objecsdes daqueles cuja prdépria raison chamando-se a atengao para o grande numero de pensadores do
d’étre na sociedade repousa em uma interpretacio divergente mundo de lingua inglésa que se preocuparam exatamente com
da situacio “fatual”. éstes mesmos problemas sem os titular especificamente de me-
todologia. IE certo que a preocupagio com os problemas e pe-
rigos implicados ui busca do conhecimento vilido constituiu
It porgao cm nada desprezivel das obras de uma grande série de
A discussio em térno déste tema tem sido conhecida tra- brilhantes pensadores de Locke, Hume, Bentham, Mill e Spen-
dicionalmente como o problema da objetividade na ciéncia. Na cer a autores contemporaneos. Nem sempre consideramos estas
linguagem do mundo anglo-saxZo ser objetivo tem como signi- abordagens dos processos de conhecimento como tentativas sérias
ficado ser imparcial, nao ter preferéncias, predilecdes ou precon- de formular as premissas epistemoldgicas, ldgicas e psicoldgicas
ceitos, tendéncias, valéres ou juizos preconcebidos diante dos de uma sociclogia do conhecimento, quer por estarem investi-
fatos. Esta nogéo era uma expressdo da antiga concepcio da lei das do titulo explicito, quer por nao terem deliberadamen-
natural de acérdo com a qual a contemplacio dos fatos da na- te visado a tal fim. Nao obstante nenhuma atividade cientifica
tureza, ao invés de estar imptegnada pelas normas de conduta ter sido desenvolvida de maneira organizada e autoconsciente,
do contemplador, fornecia automaticamente estas normas.! De- éstes problemas sempre receberam considerdvel atengao. Na ver-
pois de haver decafdo a abordagem da lei natural ao problema dade, em trabalhos tais como o System of Logic de J. 8. Mill e
da objetividade, tal modo nao-pessoal de encarar os fatos foi o brilhante e bastante desprezado Study of Sociology de Herbert
novamente encontrar suporte, por algum tempo, por estar o Spencer, o problema do conhecimento social objetivo mereceu
positivismo em voga. A ciéncia social do século XIX é prddiga tratamento sincero e amplo. No perfodo que se seguiu a Spen-
em adverténcias contra as destorcivas influéncias da paixéo, do cer, o interésse pela objetividade do conhecimento social foi
interésse politico, do nacionalismo ¢ do sentimento de classe, algo desviado pelo predominio das técnicas estatisticas desen-
bem como em exortacdes de autopurificacdo. volvidas por Francis Galton e Karl Pearson, Contudo, em nos-
sos dias, os trabalhos de Graham Wallas e John A. Hobson,
entre outros, assinalam o retéreo destz.preoc pacao,
1 E justamente a corrente de pensamento que em seguida evo-
luiu para a Sociologia do Conhecimento, que constitui o tema central Os Estados Unidos, apesar do quadro infecundo de seu
déste livro, que devemos a nogio de que as normas ético-puliticas nao panorama intelectual, ao menos segundo descrigdes correntes
s6 nfo podem ser derivadas da contemplagio direta dos fatos, mas nos escritos europeus, tém produzido varios pensadores que se
exercem elas mesmas uma influéncia modeladora sébre os préprios interessam por éste tema. Neste sentido, é de se destacar o
modos de perceber og fatos, Cf., entre outros, os trabalhos de Thors-
tein Veblen, John Dewey, Otto Bauer e Maurice Halbwachs, trabalho de William Graham Sumner que, apesar de ter: abor-
dado o nrokizma igo vbliquamenie avravés da andlise da in-
16 ToroLocia E Urops PREFACIO 17
fluéncia dos folkways e dos mores sObre. as rorme: sociai: 20 cial, particularmente, a verdade no € meramente uma questio
invés de, diretamente, através da critica epistemoldgica, colocou de simples correspondéncia entre pensamento e existéncia, mas
o problema da objetividade num contexto caracteristicamente é permeada pelo interésse do investigador na questHo, por seu
sociolégico concreto dado o modo vigoroso com que encarou ponto-de-vista, por suas valoracdes, em suma, pela definicio
a destorciva influéncia do etnocentrismo sébre o conhecimento. de seu objeto de atengZo, Entretanto, esta concepgio de obje-
Infelizmente seus discipulos nao detam prosseguimento a ex- tividade nao implica que daqui por diante nao mais se possa
plorago das ricas potencialidades de sua abordagem, interessan- distinguir entre verdade e érro. Naosignifica que o que quer
do-se mais em elaborar outros aspectos de seu pensamento. De que as pessoas imaginem serem suas percepcdes, atitudes e
forma bastante similar no tratamento do problema, Thorstein idéias —- ou o que as pessoas desejem que os outros acreditem
Veblen, em uma serie de ensaios brilhantes e penetrantes, que elas sio — corresponda aos tatos. Mesmo nesta concepcao
explorou as intrincadas relagdes entre os valdres culturais e as da objetividade devemos considerar a distor¢ao produzida nao
atividades intelectuais. Uma discussio posterior e realista dés- apenas pela percepcZo inadequada ou pelo incorreto conheci-
te mesmo problema encontra-se em The Mind in the Along, mento de si mesmo, mas também pela dificuldade ou falta de
de james Harvey Kobinson, em que éste renomado historiador boa vontade, em certas circunstancias, para expor as prdprias
toca em muitos dos pontos analisados em detalhe pelo presente percepgdes ¢ idéias com honestidade.
volume. Ainda mais recentemente, em Lhe Nalure of the So- Esta concepgio de objetividade subjacente ao trabalho do
cial Sctences, o Protessor Charles A. Beard estudou as possi- Professor Mannheim n&o parecer4 totalmente estranha aqueles
bilidades do conhecimento social objetivo, do ponto-de-vista pe- que estejam familiarizados com a corrente de filosofia america-
dagogico, revelando alguns tragos de influéncia da obra do Pro- na representada por James, Peirce, Mead e Dewey. Embora a
fessor Mannheim. abordagem do Professor Mannheim seja o produto de uma di-
Muito embora tenha sido necessdria e salutar a enfase na ferente heranca intelectual, em que Kant, Marx e Max Weber
destorciva influéncia dos valéres e interésses culturats, éste as- desempenham os papéis principais, suas conclusdes sobre vatios
pecto negativo da critica cultural do conhecumento chegou a um temas centrais séo idénticas is dos pragmatistas americanos, Essa
ponto em que tinha que ser reconhecida a relevancia posiliva e convergéncia se verifica, entretanto, sdmente até os limites do
construtiva, para o pensamento, dos elementos valorativos, En- campo da Psicologia Social. Entre os socidlogos americanos,
quanto o siterior modo de encarar a objetividade acertu:va a ste ponto de vista foi explicitamente enunciado pelo falecido
euminacao da subyetividade pessoal ¢ coletiva, a abordagem mo- Charles 11. Cooley « por R. M. Maclver, e, implicitamente, por
derna acer 2a a importancia cognitiva positiva de tal subjetivi- W. 1. Thomas e Robert E. Park. Um motivo para nfo ligar-
dade. Encuanto anteriormente a busca da objetividade tendia mos imediatamente os trabalhos déstes escritores ao complexo
a propor vm “objeto” oposto ao “‘sujeito”, enfatiza-se atual- de problemas do presente volume é que nos Estados Unidos o
mente uma intima relacio entre o objeto e o sujeito que o per- assunto que a Sociologia do Conhecimento trata sistematica-
cebe. ‘Com efeito, a mais recente colocacgo sustenta que o obje- mente ¢ explicitamente ou nao foi abordado senfo ocasional-
to emerge para o sujeito quando, no decorrer da vivéncia, o in- mente dentro do quadro da disciplina especial da Psicologia So-
terésse do sujeito visa aquele especifico aspecto do mundo. cial ou tem sido um inexplorado subproduto da pesquisa empirica.
Assim, a cbjetividade aparece sob duplo aspecto: um, em que 0 A busca da objetividade faz surgir dificeis problemas para
objeto e ajeito so entidades distintas e separadas, o outro a tentativa de estabelecer um método cientifico rigoroso para
em que se enfatiza o intercurso dos deis. Se no ptimeiro sen- o estudo da vida social. Enquanto ao lidar com os objetos do
tido a obj-tividade refere-se 4 fidedignidade de ‘ assos dados mundo ffsico o cientista pode perfeitamente se limitar as uni-
ea validade de nossas conclusdes, no segundo sentido ela concet- formidades e regularidades externas que se apfesentam, sem
ne relevancemente aos nossos int’~ésses. No dominio do so- buscar penetrar no significado interno dos fendmenos, no mun-
PREFACIO 19
18 IpE*rocia & Uropra
cesso pelo qual se realiza a agéo e sao essenciais par: que se
do social a pesquisa existe fundamentalmente para uma com-
observe a relacdo das partes com o todo. Sem objetivo a maio-
preensdo déstes significados e conexdes internos.
tia dos atos nao teria qualquer significado ou interésse para
Pode ser que existam alguns fendmenos sociais e, talvez, nds. No obstante, existe uma diferenca entre considerar e
alguns aspectos de todos os acontecimentos sociais que se pos- postular objetivos. Qualquer que seja a possibilidade do des-
sam observar externamente como se féssem coisas. Mas isso vinculamento completo ao lidar com os objetos ffsicos, ndo nos
nao deve levar a inferir que sOmente sdo reais as manifestagdes podemos permitir na vida social nao considerar os valéres e os
da vida social que encontrem expresséo em colsas materiais. objetivos dos atos sem perdermos a significagdo de muitos dos
Seria uma concepgao bastante estreita da ciéncia social limitd-la fatos em questo. Em nossa escolha de dreas de pesquisa, em
aos objetos concretos externamente perceptiveis e mensurdveis. nossa vilecio de dadcs, em nosso método de investigagio, em
A literatura da ciéncia social demonstra amplamente que nossa organizacio de material, para ndo falar da formulasdo de
existem esferas amplas e bastante definidas de existéncia social nossas hipéteses e conclusdes, existe sempre manifesto algu-
em que € possivel se obter conhecimento cientifico no sémen- ma suposi¢fo ou esquema de valorago mais cu menos claro,
te fidedigno, mas que tem significativa relagfo com a politica explicito ov implicito.
@ a acéo sociais. O fato de que os séres humanos sejam dife- De acérdo com isso, cabe uma distingdo bem fundada entre
rentes dos demais objetos da natureza nfo implica que nada fatos subjctivos ¢ objetivos, resultante da diferenca entre obser-
exista de determinado a seu respeito. Apesar de que os séres vagado externa ¢ interna, ou, para usar os térmos de William James,
humanos demonstrem em suas agdes um tipo de acusagao que “conhecimento de” e “familiaridade com”. Se existe uma dife-
ngo se verifica em quaisquer outros objetos da natureza, qual renga entre os processos fisicos e mentais —- e nfo parece haver
wo
seja a motivacdo, deve-se, ndo obstante, reconhecer que seqiién- muita tazdo para se’ suprimir esta importante distincio — ela
cias causais determinadas podem ser inferidas no dominio do sugete uma diferenciagio correspondente nos modos de se co-
social, do mesmo modo como o séo no fisico, Claro que se nhecer ésses dois tipos de fendmenos. Os objetos ffsicos podem
poderia objetar que o conhecimento preciso que temos das se- ser conhecidos (e a ciéncia natural ocupa-se déles exclusiva-
qiiéncias causais nos outros dominios ainda nao foi estabelecido mente porque podem ser conhecidos) puramente do exterior,
no dominio social. Mas se h4 de existir algum conhecimento enquanto os processos mentais e sociais sémente podem ser co-
para além da sensata@o dos acontecimentos singulares e transi- nhecidos do interior, a nfo ser na medida em que também se
térios do momento, deve-se postular igualmente para o mundo mostram externamente através de indicios fisicos, nos quais,
social a possibilidade de se descobrit tendéncias gerais e séries por seu turno, captamos significados, Daf se poder considerar
previsiveis de acontecimentos, tais como as que se encontram no
a introspeccao (“Unsrghé”’) como o cerne do conhecimento social,
mundo fisico. Contudo, o determinismo pressuposto pela cién-
Chega-se a isto, estando-se no interior do fenémeno a ser obser-
cia social, de que neste volume o Professor Mannheim trata t@o
vado, co.» como ¢ exprossa Charles H. Cooley por introspeccio
penetrantemente, € de uma espécie diferente do implicado na
simpdtica, IE a participagio em uma atividade que gera o in-
mecdnica celeste de Newton.
terésse, o propdsito, o ponto-de-vista, a valor, o significado e a
Seguramente existem alguns cientistas sociais que preten- intcligibilidade assim como a parcialidade.
dem que a ciéncia se deve restringir 4 causacdo dos fendmenos
Ja que as Ciéncias Sociais se ocupam de objctos possuido-
teais, que a ciéncia nada tem a ver com o que seria feito, ou
com o que deve ser feito, mas com o que podeser feito e qual res de valor e significado, o observador que busca entendé-los
precisa necessariamente fazé-lo por meio de categorias que, por
a maneira de fazé-lo. De acdrdo com esta nogio a ciéncia social
sua vez, dependem de seus prdprios valéres e significados. Esta
seria uma disciplina exclusivamente instrumental e nado uma
nogéo foi repetidamente enunciada na controvérsia pot muitos
disciplina postuladora de objetivos. Mas, ao estudar o que é,
anos mantida entre os behavioristas, os cientistas socials que
nfo podemas eliminar totalmente o que deveria ser. Na vida
lidavam com a vida social exclusivamente como o cientista na-
humana, os motivas ¢ os objetivos da agdo fazem parte do pro-
20 IpgoLocia E UToria PREFACIO 21
tural lida com o mundo fisico, e os que adotaram a posigfo de ciéncia moral ocorrem caracteristicamente em situacdes marca-
introspeccionismo simpdatico e compreensio seguindo a orienta- das por conflito. O Professor Mannheim esta, portanto, de
cao tragada por umautor da importancia de Max Weber. acérdo com o ctescente nuimero de pensadores modetnos que,
No conjunto, todavia, enquanto o elemento valorativo do ao invés de postularem um intelecto puro, se preocupam com
conhecimento social recebia um reconhecimento formal, tem-se as condigGes sociais efetivas em que emergem a inteligéncia e o
dado relativamente pouca atengSo, principalmente entre os so- pensamento. Se, como parece ser verdade, nao somos mera-
cidlogos americanos e ingléses, 4 andlise concreta do papel dos mente condicionados pelos acontecimentos que ocorrem em
interésses e valdres efetivos tal como apareceram em doutrinas nosso mundo, mas somos ao mesmo tempo um instrumento que
e movimentos histéricos especificos. Uma excecdo deve ser feita os modeia, segue-se que os objetivos da aco nunca sfio comple.
quanto ao caso do marxismo que, apesar de ter elevado €ste te- tamente enuncidveis e determinados até que o ato esteja termi-
ma a uma posicao central, ainda nao formulou um enunciado nado ou que se o relegue téo completamente a rotinas autométi-
sistematico satisfatério do problema. cas que éle nao mais requeira consciéncia e atencio.
E neste ponto que a contribuicio do Professor Mannheim O fato de que, no domfnio do social, o observador faca
assinala um nitido avanco sdébre o trabalho até entdo realizado parte do observado e tenha isso um interésse pessoal no objeto
na Europa e na América. Ao invés de se contentar em chamar da observacio é um dos fatéres principais da gravidade do pro-
a atencao para o fato de que o interésse se reflete inevitavel- blema da objetividade nas Ciéncias Sociais. Além disso, deve.
mente em todo o pensamento, inclusive naquele scu aspecto a mos considerar que a vida social ¢ portanto a ciéncia social se
que se d4 o nome de ciéncia, o Professor Mannheim procurou acha em larga medida ligada as crencas relativas aos objeti-
reconstituir a especffica conexdo entre os cfetivos grupos de vos da acio. Quando advogamos algo, niio o fazemos como to-
interésse na sociedade e as idéias e modos de pensamento que tais exteriores ao que é e ao que aconteceté. Seria ingénuo
éles defendem. Conseguiu demonstrar que as ideologias, isto supot que nossas idéias féssem inteiramente conformadas pelos
é, os complexes de idéias que dirigem a atividade com vista a objetos de nossa contemplacio que se acham fora de nds. ou que
manutengao da ordem existente, e as utopias —- os complexos de nossos desejos e nossos receios nada tém a ver com o que per-
idéias que tendem a gerar atividades com vista a mudancas na cebemos ou com o que ira acontecer. Seria mais préximo da
ordem prevalecente — nZo apenas desviam o pensamento do vetdade admitir que os impulsos bdsicos geralmente denomina-
objeto da observacéo, mas também servem para fixar a atencio dos “interésses’” sao na realidade as fOrcas que ao mesmo tempo
sObre aspectos da situacdo que de outra forma permaneceriam getam os objetivos de nossa atividade prética e despertam nos-
obscuros ou passariam despercebidos. Dessa maneira, éle ela- sa atencdo intelectual, Enquanto em determinadas esferas da
borou, a partir de uma formulacSo tedrica geral, um efetivo ins- vida, especialmente em Economia e num grau menor em Poli-
trumento para uma fecunda pesquisa empfrica. tica, @stes “‘interésses” se fizeram explicitos e articulados, na
© cardter significativo da conduta, entretanto, nao garante maioria das demais esferas éles se colocam sob a superficie, dis-
a inferéncia de que esta conduta seja invariavelmente o produto farcando-se em modos de tal forma convencionais que nem sem-
da reflexdo e raciocinio conscientes. Nossa busca de compreen- pte os reconhecemos, mesmo se nos forem apontados. Por con-
séo surge da aco e até pode ser conscientemente preparatéria seguinte, a coisa mais importante que podemos saber de um
para mais acdo, mas precisamos reconhecer que a reflexfo cons- homem é o que éle tem por dado, ¢ os mais bdsicos e impor-
ciente ou o ensaio imaginativo da situacZo, a que chamamos de tantes fatos sébre a sociedade sfo os que raramente se debatem
“pensamento”, nao constitui parte indispensdével de cada ato. e que se encaram geralmente como assentados.
De fato, parece haver acérdo geral entre os psicdlogos sociais Em vao, porém, procuramos no mundo moderno setreni-
sdbre os fatos de que as iddias nao se geram espontaneamente dade e a calma que pareciam caracterizar a atmosfera em que
e de que, a despcito do que afirma uma psicologia antiquada, o viveram alguns pensadores das eras passadas. © mundo nao
ato antecede o pensamento. A razao, a consciéncia de e a cons- possui mais uma fé comum e nossa professada “‘comunidade de
22 IpzoLosia £ Uroria PrerAciu 23
interésse”’ pouco mais é do que umafigura de retérica. Com a medida de certeza aos participantes daquele mundo, e impri-
perda de um propdsito comum e de interésses comuns nos vi- mindo-lhes um sentido de respeito e confianca mUtuos, o mun-
mos igualmente privados de normas, modos de pensamento e do intelectual contemporfineo nao 6 mais um cosmos senio que
concepcdes do mundo comuns. Até a opinido publica transfor- apresenta o espetdculo de um campo de batalha de partidos em
mou;se num conjunto de puiblicos “fantasmas”. Os homens do guerra e doutrinas em conflito, Cada faccio conflitante nao sé
passddo podem ter habitado mundos menores e mais paroquiais, possui seu préprio conjunto de interésses e propdsitos, como
mas os mundos em que viviam eram aparentemente mais estd- cada uma possui sua imagem do mundo com a qual se atribui
veis e integrados para todos os membros da comunidade do que aos mesmos objetos significados ¢ valéres radicalmente diver-
nosso largo universo de pensamento, acio e crenca veio a ser, sos. Em um mundo déstes, as possibilidades de comunicagio
Uma sociedade 6, em tltima andlise, possivel porque os inteligivel e a fortiori de acérdo se reduzem a um minimo. A
individuos que nela vivem sdo portadores de algum tipo de auséncia de uma massa comum de apercepcdo prejudica a possi-
imagem mental desta sociedade. Contudo, nossa sociedade, nes- bilidade de se recorrer aos mesmos critérios de relevancia e
ta época de rigorosa divisio do trabalho, de extrema hetero- verdade, e uma vez que o mundo se mantém unido em ampla
geneidade e profundo conflito de interésses, atingiu um momen- medida por palavras, quando estas palavras deixam de significar
to em que estas imagens sfo nubladas e incongruentes. Daf nao a mesma coisa para os que as usam, segue-se que os homens
mais percebermos como reais as mesmas coisas, e, ao lado de irao necessatiamente se desentender e falar sem se escutar.
nosso amorfo sentido de uma realidade comum, estamos per- ; Afora esta inerente incapacidade de se compreender entre
dendo nosso meio comum de expressar e comunicar nossas ex- si, existe outro obstdculo para a obtencdo de um consenso, qual
periéncias. O mundo foi estilhacado em incontdveis fragmentos seja a obstinac&o absoluta dos partiddrios em negar-se a consi-
de‘individuos e grupos atomizados. A ruptura da integridade derar ou a encarar striamente as teorias de scus oponentes sim-
da experiéncia individual corresponde A desintegraco da cultu- plesmente porque pertencem a outro campo politico ou inte-
ta e da solidariedade de grupo Quando as bases da aco cole- lectual. Este deprimente estado de coisas é agravado pelo fato
tiva unificada comecam a se enfraquecer, a estrutura social tende de © mundointelectual nfo se achar liberto das lutas pela pro-
a se partir e a produzir um estado que Emile Durkheim deno- jesao pessoal e pelo poder. Isto levou & introducdo da asticia
minou anomie, com o qual se refere a uma situacHo que poderia comercial no reirn das idéias e deu origem a uma situacio em
ser descrita como uma espécie de vazio ou vacuo sociais. Em que MESMO vs Cdiistas plefemisam estar a direita do que com
tais condicdes o suicidio, o crime e a desordem sio fendmenos o direito.
correntes porque a existéncia individual nao se vé mais enrai-
zada em um ambiente social estdvel e integrado e 7 narte
da atividade da vida perde inteirameme o sentido. Ill
Que a atividade intelectual nfio seja isenta de tais influén- Se nos sentimos mais profundamente atemorizados, peia
cias € 0 que o presente volume documenta efetivamente. E, ameacadora perda de nossa heranca intelectual, do que nas cri-
se é que se pode dizer que possua um objetivo prdtico, afora a ses culturais anteriores, é porque nos tornamos vitimas de ev-
acumulacio e a ordenacio de nowas percepcSes sébre as pre- pectativas mais grandiosas. Pois em tempo algum anterior ao
condicées, os processos e os problemas da vida intelectual, @ste nosso tantos homens se viram levados a se abandonar a tio su-
serd o de questionar as possibilidades da racionalidade e da mtitua blimes sonhos sdbre os beneficios que a ciéncia podia trazer a
compreensao em uma época como a nossa, que parece to fre- espécie humana. A dissolucdio dos supostamente sdélidos funda-
qlientemente premiar a irracionalidade, e de onde parecem ter mentos do conhecimento e o desencanto que se seguiu levacam
desaparecido as possibilidades de um mituo entendimento. En- alguns dos de “espirito delicado” a0 anseio romantico pelo re-
quanto em perfodos mais remotos o mundo intelectual possufa térno de uma época que jd passou e por uma certeza irremedia-
pelo menos um universo comum de referéncia, oferecendo uma velmente perdits Prtcas da perplexidade ce do atordoamento,
PreFACIO 25
24 InzoLocia E Uroria
.
outros procuraram ignorar ou contornar as ambigilidades, os
eram situados fora do dominio da Ciencia Social visto nao serem
considerados processos sociais. Embora algumas das idéias apre-
conflitos e as incertezas do mundo intelectual por meio do hu-
sentadas pelo Professor Mannheim sejam o resultado de um
mor, do cinismo ou da negacao cabal dos fatos da vida.
gtadativo desenvolvimento da andlise critica dos processos de
Em uma época da histéria humana como a nossa, quando pensamento e constituam parte integrante da heranga cientifica
em todo o mundo as pessoas nado est&o apenas se sextindo in- do mundo ocidental, a contribuicéo especial do presente volu-
quietas, mas questionando as bases da existéncia so~ al, a vali- me parece ser o reconhecimento explicito de que o pensamento,
dade de suas verdades e a sustentacio de suas normas, dever-se-ia além de ser um objeto prdéprio da Légica e da Psicologia, sd-
tornar claro que nio existe valor «%o-vinculado a interésse e mente se torna totalmente compreensivel quando encarado so-
nem objetividade independente de acdrdo. Em tais condigées, cioldgicamente, Isto envolve a referéncia das bases dos jufzos
é diffcil se apegar tenazmente ao que se acredita scr a verdade sociais a suas especificas raizes na sociedade, vinculadas a in-
face A dissensdo, tendendo-se a questionar a prdpria possibili- terésses, por meio das quais a particularidade, e portanto as li-
dade de uma vida intelectual. A despeito do fato de que o mitagdes, de cada visfo se tormam evidentes. Nao se deve
mundo ocidental tenha sido nutrido por uma tradigao de liber- pressupor que a mera revelac#o déstes Angulos de visio diver-
dade e integridade intelectuais conseguidas durante cérea gentes levard automaticamente os antagonistas a adotar as con-
de dois mil anos, os homens comecam a se perguntar se a cepgdes uns dos outros ou de que isto resultaré imediatamente em
luta para conscgui-las valeu a pena, quando hoje em dia tantos harmonia universal. Mas o esclarecimento das fontes destas di-
aceitam complacentemente a ameaca de exterminio do que se ferengas parece ser precondic¢éo para qualquer tipo de petcep-
aleancou de racionalidade e de objetividade nos assuntos hu- gio, por parte de cada observador, das limitagdes de sua prdé-
manos. De um lado, a generalizada depreciacio do valor do ptia visZo e, pelo menos, da validade parcial das visdes dos ou-
pensamento, e, de outro, a sua repressiio sio indicios ncfastos tros. Embota isto nao implique necessariamente que os in-
do crescente creptisculo da cultura moderna. Sdmente por me- terésses de cada um sejam postos de lado, pelo menos totna
didas as mais resolutas ¢ csclarecidas se poderd evitar tal ca- possivel uma concordancia operacional sdbre o que sejam os fa-
tastrofe, tos de uma quest%o e sdbre um conjunto limitado de conclusdes
Ideologia e Utopia é em 1 mesma o produto déste perfodo a se tirar déles. E com tentativa semelhante que os cientistas
de caos e instabilidade. Uma das contribuicées que faz para a sociais, mesmo apesar de estarem em desacérdo quanto aos va-
solucio de nossa diffcil situacio é a andlise das fércas que the ldres tiltimos, podem hoje em dia erigir um universo de discur-
deram origem. F duvidoso que um livro como éste pudesse ter so dentro do qual podem ver os objetos a partir de perpectivas
sido escrito em qualquer outra época, pois os problemas de que similares e podem comunicar uns aos outros seus resultados com
trata, fundamentais como saa, s6 poderiam ter surgido em uma um minimo de ambigiiidade.
sociedade e em uma época marcadas por uma profunda crise so-
cial ¢ intelectual. Nao apresenta nenhuma soluc&o simples para as Iv
dificuldades que deparamos, mas realmente formula os problemas
basicos de tal mado a tornd-los suscetiveis de abordagem ¢ faz Haver levantado, nitida e lucidamente, os problemas impli-
avancgar a andlise de nossa crise intelectual mais do que até cados nas relacSes entre a atividadeintelectual e a exist@ncia social
entho se conseguira. Face a perda de uma concepgio comum dos constitui em si mesmo uma importante tealizacio. Mas o Profes-
problemas ¢ na auséncia de critérios de verdade undnimemente sor Mannheim nfo ficou af. Reconheceu que os fatdres que atuam
aceitos, procurou o Professor Mannheim indicar as linhas se- na mente humana, impulsionando e perturbando a razio, s#o os
gundo as quais se pudesse construir uma nova base para a in- mesmos fatéres dinamicos que constituem as fontes de téda a
vestigacio objetiva dos temas controvertides da vida social. atividade humana. Ao invés de postular um hipotético intelec-
tO puto que produzisse e ministrasse a verdade, sem conta-
Até hé pouco, o conhecimento e o pensar, por isso que mind-la com os chamados fatéres nao-légicos, éle procedeu efe-
considerados como o objeto préprio da Légica e da Psicologia,
26 InEoLocia E Uturta PREFACIO 27
tivamente a uma andlise das situagdes sociais concretas em que Um campo de imerésse estreitamente ligado 4 Sociologia
© pensamento ocorre e em que a vida intelectual se desenvolve. do Conhecimento é 0 da reelaboragdo dos dados da histéria in-
As quatro primeiras partes do presente volume demons- telectual, com vista 4 descoberta dos estilos e métodos de pen-
tram concretamente a fecundidade desta abordagem socioldgi- samento dominantes em determinados tipos de situagio histé-
ca e fornecem uma exemplificagio dos métodos desta nova dis- rico-sociais. A éste respeito, é essencial pesquisar as variacdes
ciplina, cujos fundamentos formais so esbocados na Parte V, do interésse e da atengio intelectuais que acompanham as mu-
sob o titulo de “A Suciologia do Conhecimento”. Esta nova dangas em outros planos da estrutura social. E aqui que a dis-
disciplina se situa historica e ldgicamente no A4mbito da Socio- tingfo entre ideologias e¢ utopias proposta pelo Professor
logia Geral concebida como a ciéncia social bdsica. Se os temas Mannheim oferece diretivas promissoras para a pesquisa.
tratados pelo Professor Mannheim fdéssem desenvolvidos siste- Ao analisar a mentalidade de uma época ou de um dado
maticamente, a Sociologia do Conhecimento se converteria em estrato da sociedade, a Sociologia do Conhecimento se interessa
um esf6rco especializado de lidar, de modo integrado, sob um nao apenas pelas idéias e os modos de pensar que se revelam,
ponto de vista unificador e por meio de técnicas apropriadas, mas por todo o contexto social em que ocorrem. Vale dizer
com uma série de questdes até aqui apenas discreta ¢ superfi- que se devem necessiriamente levar em conta os fatéres responsé-
cialmente encaradas, Seria prematuro definir a exata oricnta- veis pela aceitacdo ou rejeicio de determinadas idéias por certos
cio a ser eventualmente tomada por esta nova disciplina Os grupos da sociedade, r os motivos e interésses que impelem de-
trabalhos do falecido Max Scheler e os do préprio Professor terminados grupos a enunciar conscientemente e a disseminar
Mannheim se adiantaram, entretanto, suficientemente para per- estas idéias em setores mais amplos.
mitir que se tente apresentar os temas bdsicos de que cla se
deve ocupar. Além disso, a Sociologia do Conhecimento procura Jancar
luz sdbre a questio de como os interésses e os propédsitos de
O primeiro, e bdsico, déstes temas é a elaboracdo psico-so- determinados grupos sociais vém a encontrar expressdéo em cer-
ciolégica da prépria teoria do conhecimento, que até entio ti- tas teorias doutrinas 2 movimentos intelectuais. De fundamen-
nha seu lugar na Filosofia sob a forma da epistemologia. Por tal importancia para a compreensio de qualquer sociedade é 0
téda a histéria do pensamento, aste assunto obcecou os grandes reconhecimento concedido aos varios tipos de conhecimento e
pensadores, Apesar do esfdrco jé antigo para resolver a rela- a correspondente parcela dos recursos da sociedade consagrada
c#o entre experiéncia e reflexdo, crenca e verdade, o problema ao cultivo de cada um déles. De igual significacio é a andlise
da interconexfo entre ser e conhecer permanece ainda como um das variacSes nas relacdes sociais, ocasionadas pelos progressos
desafio para o pensador moderno, Mas nao é mais um proble- de determinados ramos do conhecimento, tais como o conheci-
ma de interésse exclusivo do fildsofo profissional. Passou a ser mento técnico e o crescente dominio sdbre a natureza e a socie-
um tema central nfo apenas na ciéncia, mas igualmente na edu- dade possibilitados pela aplicacio déste conhecimento. De mo-
cagio e na politica. A Sociologia do Conhecimento aspira a do semelhante, a Sociologia do Conhecimento, em virtude de
dar uma contribuicfo pata um maior entendimento.déste anti- seu interésse pelo papel do conhecimento e das idéias na manu-
go enigma. ‘Tal tarefa requer mais do que a aplicacHo de re- tengao ou na mudaneca da ordem social, deve dedicar uma aten-
gras Idgicas bem estabelecidas ao material existente, pois as co considerdvel aos instrumentos ou recursos através dos quais
préprias regras de Légica até aqui aceitas sdo colocadas em se difundem as idéias, e ao grau de liberdade de indagacdo e
questio e€ vistas, juntamente com o restante de nossos instru- expresso prevalecente. De forma conexa, deve-se atentar para
mentos intelectuais, como partes e produtos do conjunto de os tipos de sistema educacional existentes e o modo segundo o
nossa vida social. Isto implica a investigagio dos motivos sub- qual refletem e modelam a sociedade em que operam. A esta
jacentes 4 atividade intelectual e uma andlise do modo e da me- altura, o problema da doutrinacdo que tanta discussdo tem re-
dida em que os préprios processos de pensamento sao influen- centemente provocado na literatura educacional encontra um lu-
ciados pela participacdo do pensador na vida da sociedade. ger proeminente. Da mesma forma, as fungGes da imprensa, da
28 IpgEoLocia E£ Uroria
ou contra os outros. [Estas pessoas, reunidas em grupos, ou sivel, pela primeira vez, obter-se um névo modo de contréle
bem se empenham, de acérdo com o cardter ¢ a posigio dos gru- sébre fatéres do pensamento anterlormente incontrolados.
pos a que pertencem, em transformar 0 mundo da natureza e da Isto nos remete ao problema central déste livro. Estas
sociedade a sua volta, ou, entdo, tentam manté-lo em uma dada observagdes devem tornar claro que uma preocupaco com éstes
situacdo. A direcgio dessa vontade da atividade coletiva de trans- problemas e sua solugdo fornecerao um fundamento para as
formar ou manter é que produz o fio orientador pata a emetr- Ciéncias Sociais, e responderao 4 pergunta quanto a possibili-
géncia de seus problemas, seus conceitos ¢ suas formas de pen- dade de orientacao cientifica para a vida politica. E evidente-
samento. De acdrdo com o contexto particular da atividade mente verdade que nas Ciéncias Sociais, como em qualquer pat-
coletiva de que participam, os homens tendem sempre a ver di- te, vai encontrar-se o Ultimo critério de verdade ou de falsida-
ferentemente o mundo que os circunda. Exatamente da mesma de na investigacdo do objeto, e a Sociologia do Conhecimento
forma pela qual apartou o pensamento individual de sua situa- nao é um substituto para tal critétio. Mas o exame do objeto
géo de grupo, a andlise Idgica pura separou o pensamento da nao é um ato isolado; ocorre num ‘contexto permeado por va-
acio. E assim o féz na suposigdo tdcita de que aquelas conexdes léres e impulsos volitivos do inconsciente coletivo. Nas Cién-
inerentes que sempre existem na realidade entre, de um lado, o cias Sociais é @ste interésse intelectual, orientado por uma ma-
pensamento e, do outro, a atividade ¢ o giupo, ou fossem in- triz de atividade coletiva, que proporciona nfo apenas as ques-
significantes para o pensar “‘correto”, ou pudessem ser destaca- tOes gerais, mas as hipdtese de pesquisa concretas e os modelos
das déstes fundamentos sem que dai resultassem quaisquer di- de pensamento para a ordenacao da experiéncia. Sdmente na me-
ficuldades. Mas o fato de se ignorar algo no elimina, de forma dida em que conseguimos trazer 4 érea de observacao conseien-
alguma, sua existéncia. Nem é possivel, a quem antes nado se tenha te e explicita os varios pontos de partida e de abordagem dos
totalmente entregue A observago exata da riqueza de formas fatos correntes tanto na discuss4o cientifica, como na popular,
pelas quais os homens realmente pensam, decidir a priori se éste € que podemos esperar, no correr do tempo, controlar as moti-
secionamento da situacio social e do contexto de atividade pode vagdes € pressupostos inconscientes que, em ultima andlise, de-
ser realizado em todos os casos. Tampouco se pode determinar ram existéncia a @sses modelos de pensamento. Um névo tipo
de antemZo que uma dicotomia tao completa seja plenamente de objetividade pode ser obtido nas Ci€ncias Sociais, mas nao
desejavel, justamente no interésse do conhecimento objetivo dos por meio da exclusdo de valoragdes, e sim através da percep-
fatos. cao e do contrdéle critico destas.
Pode ser que, em certas esferas do conhecimento, seja o
impulso para a acdo que inicialmente torne os objetos do mun-
do acessiveis ao sujeito que age, e pode ser, além disso, que seja 2. OS CONDICIONAMENTOS CONTEMPORANEGOS
éste fator que determine a selegdo daqueles elementos da reali- DO PENSAMENTO
dade que participam do pensamento. E nao é inconcebivel que,
se se excluisse inteiramente éste fator volitivo (na medida em Nao se trata absolutamente de um acaso que o problema
que isto fésse possivel), 0 contetido concreto desaparecesse com- das taizes sociais e ativistas do pensar tenha emergido em nossa
pletamente dos conceitos, ¢ se perdesse o principio organizador geracdo. Nem € por acidente que o inconsciente, que até aqui
que possibilita uma colocagao compreensivel do problema. motivava nosso pensamento e nossa atividade, venha sendo gra-
Tal nao quer dizer, porém, que nos dominios onde a ade- dativamente elevado ao nivel da consciéncia, tornando-se dessa
so ao grupo € a orientacao para aco parecem ser um elemento forma acessivel ao contréle. Seria erréneo reconhecer sua rele-
essencial & situacto, seja va qualquer possibilidade de autocon- vancia pata nossa condicéo se n&o observdssemos que foi uma
trdle critico e intelectual. Talvez precisamente quando se tor- situagéo social especifica que nos induziu a tefletir sdbre as
nem visiveis a dependéncia oculta do pensamento a existéncia taizes sociais de nosso conhecimento. E uma das intuicgSes fun-
do grupo e scu enraizamento na agio, € que seja realmente pos- damentais da Sociologia do Conhecimento que o processo pelo
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34 IpgoLocia E Utopia ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA 35
qual se tornam conscientes as motivacdes coletivas inconscientes emerja como tema para reflexao. Assim, é principalmente a in-
nao pode operar em tédas as épocas, mas apenas em umasitua- tensificagao da mobilidade social que destrdi a ilus§o anterior,
cio bastante especifica. Esta situacfo pode ser socioldgicamen- prevalecente numa sociedade estdtica, de que tGdas as coisas
te determinada. Pode-se indicar com relativa precisio os fatd- podem mudar, mas o pensamento permanece eternamente o mes-
res que esto inevitavelmente forcando um nimero cada vez mo. Eo que é mais, as duas formas de mobilidade social, ho-
maior de pessoas a tefletir no apenas sébre as coisas no mun- tizontal e vertical, operam de forma diferente para revelar essa
do, mas também sdbre seu prdprio pensamento e, neste caso, multiplicidade de estilos de pensamento, A mobilidade horizon-
n&o tanto sObre a verdade em si mesma, mas sdbre o alarmante tal (movimento de uma posic¢Zo para outra ou de um pais para
fato de que o mesmo mundo possa se mostrar diferentemente a outro, sem mudanga do status social) nos mostra que povos di-
observadores diferentes. ferentes pensam diferentemente. Enquanto, contudo, as tradi-
E claro que tais problemas sdmente podem tornar-se gerais gdes do grupo local ou nacional a que uma dada pessoa perten-
numa época em que a discordancia predomina sébre a concor- Ga permanecem intactas, essa pessoa persiste tio apegada a sua
dancia. As pessoas se voltam da observacdo direta de coisas maneira de pensar costumeira que as maneiras de pensar perce-
para a consideracio dos modos de pensar sdmente quando fra- bidas nos demais grupos sao encaradas como curiosidades, erros,
cassa a possibilidade de elaboragZo continua e direta de concei- ambigtiidades ou heresias. Neste estdgio ninguém duvida seja
tos relativos a coisas e situagdes frente a uma multiplicidade de da coricgéo de suas prdéprias tradicSes de pensamento, seja da
definigdes fundamentalmente divergentes. Estamos agora capa- unidade ¢ uniformidade do pensamento em geral,
citados a apontar, de forma mais precisa do que uma andlise ge- Sdmente quando a mobilidade horizontal se faz acompa-
ral e formal o possibilitaria, exatamente em que situag&o social nhar de uma intensa mobilidade vertical, isto é, do movimento
e intelectual uma tal transferéncia de ateng&o das coisas para rapido entre estratos no sentido de ascensdo ou de descenso so-
opinides divergentes, e daf para as motivacdes inconscientes do cial, é que a crenga de alguém na validade geral e eterna das
pensamento, deve necessariamente ocorrer, Desejamos indicar préprias formas de pensamento é abalada. A mobilidade vertical
adiante apenas alguns dos fatéres sociais mais relevantes que € © fator decisivo para tornar as pessoas incertas e céticas de
esto operando nessa ditecdo. suas visdes de mundo tradicionais. EE evidentemente verdade
Antes de mais nada, a multiplicidade de modos de pensar nao que, mesmo nas sociedades estaticas com baixa mobilidade ver-
se pode tornar um problema em perfodos em que a estabilidade tical, os diferentes estratos de uma mesma sociedade experimenta-
social fundamenta e garante a unidade interna de uma visao do tam 0 mundo de modo diferente, Devemos a Max Weber? o ter
mundo. Enquanto os mesmos significados das palavras, as mes- demonstrado claramente, em sua sociologia da religido, como é
mas maneiras de se deduzir idéias, sao desde a infancia inculea- comum que a mesma religiio seja diversamente experimentada
dos em cada membro do grupo, nao podem existir nesta socie- por camponeses, artesdos, mercadores, nobres e intelectuais.
dade processos de pensamento divergentes. Mesmo uma modi- Em uma sociedade organizada segundo linhas de castas ou gru-
ficag#o gradativa nas maneiras de pensar (onde por acaso surja) pos fechados, a auséncia relativa de mobilidade vertical serviu
nfo se torna perceptivel aos membros de um grupo que vivam ou para isolar entre si as divergentes visdes de mundo ou no
em uma situagfo estdvel, enquanto o tempo nas adaptagdes de caso, por exemplo, de professarem uma religiaéo comum, para a
maneiras de pensar a novos problemas seja tao lento que se es- interpretarem de maneira diferente, de acérdo com seus dife-
tende por varias geragdes. Neste caso, uma mesma geracao di- rentes contextos de vida. Isto explica o fato de a diversidade de
ficilmente pode, no decorrer de sua vida, se tornar consciente da modos de pensamento das diferentes castas nfo convergir em
mudanga que ocorre.
Em acréscimo, todavia, 4 dinamica geral do processo his- 1 Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, vol, 1, cap. IV, § 7,
térico, fatéres de tipo bastante diverso devem intervir antes Religionssoziologie: Stinde, Klassen und Religion (Tubingen, 1925)
que a multiplicidade de modos de pensar se torne perceptivel e pags. 267-256.
36 Tpzo.ocia E Utopia ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA 37
uma mesma mente — o que seria um problema. Do ponto de vista fatidica, mas igualmente tio fundamental, na histéria do pensa-
sociolégico, a mudanga decisiva ocorre quando se atinge aquéle mento, qual seja a de como é possfvel que idénticos processos
estagio de descnvolvimento histérico em que os estratos ante- de pensamento humano, referidos ao mesmo mundo, produzam
riormente isolados comecam a se comunicar uns com os outros concepcées divergentes déste mundo, E basta apenas mais um
e se estabelece uma certa circulagdo social. O mais relevante passo pata que se indague: é possivel que os processos de pen-
estdgio dessa comunicagéo é atingido quando as formas de pen- samento aqui referidos nfo sejam idénticos? Nao se descobrird
samento e de experiéncia, que até entdéo desenvolviam indepen- que, uma vez examinadas tddas as possibilidades do pensamen-
dentemente, penetram em uma mesma consciéncia compelindo to humano, existem numerosos caminhos alternativos que po-
a mente a descobrir a itreconciliabilidade das concepgdes con- dem ser seguidos?
flitantes do mundo. Nao foi tal processo de ascens#o social que, na democtra-
Em uma sociedade bastante estabilizada, a mera infiltra- cia ateniense, dea margem ao primeiro grande surto de ceticis-
g30 dos modos de pensamento dos estratos mais baixos nos es- mo na histéria do pensamento ocidental? Nao foram os sofis-
tratos superiores nao teria maior importdncia, uma vez que a tas do Tluminismo grego a expresso de uma atitude de divida
simples percepgdéo pelo grupo dominante de possiveis variacdes que emergiu essencialmente do fato de que, quando pensa-
no pensamento nao os abalaria intelectualmente. Enquanto a yam em cada objeto, dois modos de explicacao colidiam? De
sociedade mantém-se estdvel com base na autoridade e se con- um lado havia a mitologia que era a maneira de pensar da no-
cede prestigio social somente as realizacdes do estrato superior, breza dominante, jd condenada ao declinio; de outro, estava
esta classe tem poucos motivos para colocar em questo sua o hdbito de pensamento mais analitico de um inferior estrato
propria existéncia e o valor de suas realizagdes. Além de uma urbano artesio, em processo de ascensio. Na medida em que
considerdvel ascensao social, ndo é sendo quando temos uma de- estas duas formas de interpretar o mundo convergiram no pen-
mocratizagao geral que a clevagao dos estratus inferiores permite samento dos sofistas, e visto que para cada deciséo moral havia
a seu pensamento adquirir uma relevancia publica.* iste pro- a disposicia pelo menos dois padrdes, e para cada acontecimen-
cesso de democratizagdo possibilita, pela primeira vez, as ma- to césmico e social pelo menos duas explicacdes, nao é de estra-
neiras de pensar dos estratos inferiores, antigamente sem vali- nhar éles que tivessem uma nocao cética do valor do pensa-
dade piblica alguma, adquirir validade ¢ prestigio. Quando mento humano. Torna-se portanto sem sentido censurd-los. 4
atingido o estigio de democratizagio, as técnicas de pensar e as maneira de mestre-escola, por terem sido céticos em seus traba-
idéias dos estratos inferiores esto pela primeira vez em condi- hos epistemoldgicos. Tinham, simplesmente, a coragem de ex-
gGes de se confrontarem com as idéias dos estratos dominantes ptimir o que téda pessoa realmente caracterfstica da época sen-
em um mesmo nivel de validade. E, ent&éo, também pela pri- tia, ow seja. que a inambigtiidade de normas e de interpretagdes
meira vez, estas idéias e éstes modos de pensamento sfo capazes fora destruida, e que a solucdo satisfatéria sémente seria en-
de impelir a pessoa que pensa dentro de tais parametros a sub- contrada por meio de um profundo questionamento e da me-
meter os objetos de seu mundo a um questionamento funda- ditacio sébre as contradicdes. Essa incerteza generalizada nao
mental. E é com €ste confronto de modos de pensamento, cada era absolutamente um sintoma de um mundo destinado 4 deca-
um com os mesmos reclamos de validade de representacéo, que déncia global, sendo, antes, o ponto de pattida de ura proces-
se torna pela primeira vez possivel a emergéncia da questao tio so salutar que caracterizava uma crise que conduzia A te-
cuperacdo.
Nise constituiu na grande virtude de Sdcrates o ter tido
2 Assim, por exemplo, em nossos dias, o pragmatismo, como se a cotagem de descer ao Amago désse ceticismo? Nio tinha tam-
verd mais adiante, quando visto sociolégicamente, constitui a legitima- bém éle sido originalmente um sofista que adotou a técnica de
Go de uma técnica do pensamento e de uma Epistemologia que ele-
vou os. critérios da experiéncia cotidiana ao nivel de discussio aca-
levantar questdes e mais questdes, fazendo-a sua? E nfo con-
démica. seguiu éle superar a crise questionando mais radicalmente do
38 IpeoLocIa & Urorra Anorpacro PreLIMIN’ x po PrRopii MA 39
que os prdéprios sofistas, alcangando dessa forma um nivel de igualmente advir da possibilidade de a concentracdo de poder
firmeza intelectual que, pelo menos para a mentalidade da épo- dentro da estrutura social se tornar tao pronunciada que se
ca, se demonstrou um fundamento seguro? E interessante possa impor a uniformidade de pensamento e de experiéncia,
observar que, com tal procedimento, o mundo de normas e do pelo menos aos membros da prépria casta a que se pertenca,
ser veio a ocupar o ponto central de sua indagacio. Sdcrates com maior sucesso do que até entio.
estava, além do mais, pelo menos téo interessado na questio
telativa a como os individuos so capazes de pensar e julgar os A segunda caracteristica déste, tipo monopolistico de pen-
mesmos fatos de maneiras diferentes quanto nos fatos mesmos. samento reside em seu relativo afastamento dos conflitos ma-
Mesmo neste estd4gio da histéria do pensamento, torna-se evi- nifestos da vida cotidiana; assim, também neste sentido, é
dente que, em varios periodos, os problemas do pensar no po- “escoldstico’”’, isto é, académico e sem vida. Este tipo de pen-
deriam ser resolvidos tnicamente pela preocupacgio com o obje- samento nfo surge primariamente do embate com os problemas
to, mas, pelo contrario, shmente por meio da descoberta do por- concretos da vida, nem da tentativa e érro, nem de experiéncias
qué as opinides referentes a éles realmente diferiam. de dominio sdbre a natureza e a sociedade, mas, pelo contrério,
Além déstes fatéres sociais que respondem pela unidade de sua prépria necessidade de sistematizagao, que sempre remete
inicial e pela subseqiiente multiplicidade das formas de pensa- os fatos emergentes na esfera religiosa e nas demais esferas de
mento dominantes, devemos mencionar outro fator importante. vida a dcterminadas premissas tradicionais e intelectualmente
Em cada sociedade, ha grupos sociais cuja tarefa especifica con- nao-controladas. Os antagonismos que emergem de tais discus-
siste em dotar aquela sociedade de uma interpretagio do mundo. sGes nao espelham o conflito dos vérios modos de experiéncia e,
Chamamos tais grupos de intelligentsia. Tanto mais estdtica uma sim, as varias posicdes de poder dentro de uma mesma estrutu-
sociedade, tanto mais tende @sse estrato a adquirir, nessa socie- ra social, posicSes estas que, na ocasifo, se haviam identifica-
dade, um status bem definido ou a posicfo de uma casta. Assim do com as diferentes interpretagées possiveis da “verdade”
os magicos, os brémanes ¢ o clero medieval devem ser encara- dogmatica tradicional. O conteido dogmatico das premissas de
dos como estratos intelectuais, cada um gozando em sua socie- que partiam tais grupos divergentes ¢ que, sob formas diversas,
dade de um contréle monopolistico sébre a formacdo da visio tal pensamento buscava justificar, revela-se, na maioria dos casos,
de mundo dessa sociedade, bem como sdbre a reordenacdo, ou uma questio de acidente, se julgado pelos critérios de evidéncia
a reconciliagao, das diferencas das visdes de mundo dos demais fatual Tal contevide é completamente arbitrdrio, na medida em
estratos, ing&nuamente formadas. Nesse sentido, o setmao, a que depende de qual seita consegue ter sucesso, de acérdo com
confissao e a li¢fo constituem meios pelos quais ocorre a recon- o destino politico-histérico, em fazer de suas tradigdes intelec-
ciliagdo das diferentes concepcdes do mundo, em niveis menos tuais ¢ de experiénria as tradigdes de tSda a casta clerical da
sofisticados de desenvelvimento social. igre}a
Este estrato intelectual, organizado como casta e monopo- Do ponto-de-vista sociolégico, o fato decisivo dos tempos mo-
lizando o direito de pregar, ensinar e interpretar 0 mundo, est4 dernos, em contraste com a situacao vigente na Idade Média, é o
condicionado pela aco de dois fatéres sociais. ‘Tanto mais éle de ter sido quebrado éste monopdlio da interpretacao eclesids-
se torna o intérprete de uma coletividade globalmente organi- tica do mundo, mantido pela casta sacerdotal, tendo surgido, no-
zada (por exemplo, a Igreja), tanto mais seu pensamento tende lugar de um estrato de intelectuais fechado e inteiramente or-
aum “escolasticismo”. Tem que conceder uma férca dogmati- ganizado, uma intelligentsia livre. Sua caracteristica principal
camente coercitiva aos modos de pensamento vdlidos anterior- é a de ser recrutada, de modo cada vez mais freqiente, em es-
mente apenas para uma seita, sancionando dessa forma a onto- tratos e situacdes de vida constantemente varidveis, e de seu
logia e a epistemologia implicitas neste modo de pensamento. modo de pensamento n&o mais estar sujeito a ser regulado por
A necessidade de se ter de apresentar uma frente unificada aos uma organizacio do tipo casta. Devido A auséncia de uma orga-
de fora compele a uma tal transigiio. O mesmo resultado pode Nizagéu social prépr., co watelectuals permitizar que os diversos
40 IpzoLocia E UTOPIA
ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA Al
Assim, na Idade Média, que nao sémente acreditava numa Conseqiientemente, no lugar de uma histéria tradicional
ordenagao do mundo inambfgua, mas que, igualmente, julgava da criagdo, garantida eclesidsticamente, emergiu uma concep-
conhecer um “valor existencial” a ser atribuido a cada objeto cio da formagio do mundo, estando suas varias partes sujeitas
da hierarquia das coisas, pravelecen uma explicacéo do valor ao contréle intelectual. Este modélo conceptual de produtibi-
das capacidades e do pensamento humanos que se baseava no lidade da viséo de mundo pelo ato cognitivo conduziu a solugdo
mundo dos objetos. Entretanto, depois da derrocada que des- do problema epistemoldgico. Esperava-se que se pudesse, por
crevemos,'a concepgao de ordem no mundo dos objetos, que ha- meio da inquiricio das origens da representagao cognitiva, atin-
via sido garantida pela predominancia da igreja, se tornou pro- gir alguma nocio do papel e da relevancia do sujcito no ato de
blemdtica, nfo restando outra alternativa que a reviravolta e 4 conhecer ¢ do valor de verdade do conhecimento humano em
tomada do caminho oposto, tomando-se o sujeito como ponto de geral.
pattida, para se determinar a natureza e o valor do ato humano Considerava-se, ndo obstante, que esta tortuosa aborda-
de cognic&o, tentando-se dessa maneira encantrar, no sujeito gem através do sujcito cra um substitutivo e um expediente, 4
conhecedor, um ancoradouro para a existéncia objetiva. falta de melhor solucto. Uma solugao completa do problema
Apesar de se poder encontrar seus precursores j4 no pen- sdmente scria possivel se uma mente extra-humana e infalivel
samento medieval, essa tendéncia emerge completamente pela pudesse emitir um juizo sébre o valor de nosso pensar. Tal
primeira vez na corrente racionalista da filosofia francesa ¢ método, perém, era o que precisamente fracassara no passado,
alema de Descartes a Leibnitz até Kant por um lado e, por outro, porque quanto mais se progredia na critica das teorias anterio-
pela epistemologia mais psicoldgicamente orientada de Hobbes, res, tanto mais claro se tornava que as filosofias que haviam
Locke, Berkeley e Hume. Era sobretudo ésse o significado do feito as reivindicacdes mais absolutas eram as que mais cafam
expetimento intelectual de Descartes, do conflito exemplar por em autodecepcdes facilmente perceptiveis. Dai vir a ser prefe-
meio do qual procurou pdr em duivida tédas as teorias tradicio- rido o método que, entrementes, se tinha demonstrado o mais
nais, pata atingir finalmente o cogito ergo sum nao mais ques- apropriado para a orientacgae natural frente ao mundo e para
tiondvel, Era @ste o tinico ponto a partir do qual @le poderia as Ciéncias Naturais, qual seja, o método empirico,
novamente intentar a nova colocagdo dos fundamentos de uma Quando no curso de tal desenvolvimento, se elaboraram
visio de mundo, as Ciéncias Tilolégicas ¢ Histéricas, surgiu também, para a and-
Tédas essas tentativas pressupGem a consideracio mais ou lise do pensamento, a possibilidade de recorrer as concepgdes
menos explicita de que o sujeito nos é mais imediatamente aces- do mundo histdricamente emergentes e de compreender esta
sivel que o objeto que, como resultado das muitas interpreta- riqueza de visdes filosdficas ¢ religiosas do mundo em térmos
gdes divergentes a que foi submetido, passou a ser por demais do processo genético pelo qual vieram a existir. Assim, 0
ambiguo. Por esta razio devemos, sempre que possivel, recons- pensamento passou a scr examinado em varios niveis diversos
truir empiricamente a génese do pensamento no individuo, que de seu desenvolvimento e em situacdes histdricas bastante dife-
é mais acessivel a nosso contréle. Na mera preferéncia pelas rentes. Tornou-se evidente que se podia dizer muito mais sébre
observacdes empiricas e pelos critérios genéticos que se torna- a maneira pela qual a estrutura do sujeito influencia sua visdo
tam gradativamente supremos, revelou-se em acdo a vontade de do mundo quando se fazia uso da psicologia animal, da psicolo-
destruir o prinefpio autoritdrio. Representa uma tendéncia gia infantil, da psicologia da linguagem, da psicologia dos povos
centrifuga em oposicéio & Igreja como o intérprete oficial do primitivos e da psicologia da histéria intelectual do que quando
universo. Sdmente tem validade o que eu puder controlar na s¢ utilizava uma andlise puramente especulativa das realizagdes
minha prépria percepc4o, 0 que f6r corroborado pela minha de um sujeito transcendente.
propria atividade experimental, on que eu mesmo posso produ- © recurso epistemoldégico ao sujeito tornou possivel, neste
zir ou, pelo menos, construir conceptualmente como possivel de sentido, a emergéncia de uma psicologia que se tornou cada vez
produzir, mal: precisa, inci “sls uma psicologia do pensamento que, co-
44 Ingotocra E Uropia ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA 45
mo indicam~s acima, se dividiu em numerosos campos de es- curso ao sujeito quanto a estas questdes nado proporcionou ne-
pecializagio. Entretanto, quanto mais precisa se tornou essa nhum auxilio real. Sdmente aquéle que mergulha em si mes-
psicologia empirica e quanto maior o reconhecimento da ampli. mo sem, no entanto, destruir quaisquer elementos de significado
tude da obs-rvag%o empirica, tanto mais evidente se fé que o ede valor pessoais tem condicécs de encontrar tespostas para
sujeito nfo era de forma alguma — como se havia pretendido as quest6es que implicam significado, Entretanto, neste meio
anteriormente — um ponto de partida tao seguro pata a obten-
tempo, como resultado desta formalizagdo radical, a cientifica
Ao de uma nova concepefo do mundo. E de fato verdade, em
obseivacio psiquica interna assume novas formas. Fundamen-
certo sentide, que a experiéncia interna é dada mais imediata-
mente que a experiéncia externa, e que a conexdo interna entre
talmente, esta observacio psiquica interna envolvia o mesmo
processo que caracterizava a experimentagZo com objetos no
experiéncias pode ser mais seguramente compreendida se, en-
tre coisas, se fr capaz de ter uma compreensdo simpdtica das mundo externo e o pensar sdbie éles. Tais interpretacdes atri-
motivagSes que produzem certas acdes. Nao obstante, é eviden- buidoras de significado, com contetidos qualitativamente ricos
te que nfo se pode evitar inteiramente os tiscos implicados em (tais como, por exemplo, pecado, desespéro, solidio, amor ctris-
uma ontolc-ia. Também a psique, com tédas as suas “expe tao) foram substituidas por entidades formalizadas teis como
riéncias” ir eriorizadas imediatamente perceptiveis, é um seg- o sentimento de ansiedade, a percepcao do conflito interior, a
mento da zalidade. E o conhecimento dessas experiéncias, experi€ncia do isolamento e a libido. Estas Gltimas buscavam
adquirido pvr ela, pressupde uma teoria da realidade, uma on- aplicar, & experiéncia interna do homem, esquemas interpreta-
tologia. Entretanto, exatamente como tal ontologia se tornara tivos derivados da mecanica. O objetivo ndo era tanto com-
mais ambiga com relacio ao mundo exterior, assim se tornou preender com o maximo de precisdo a riqueza conceptual in-
nado menos «mbigua com relacHo a realidade psiquica. terna das experiéncias, tal como coexistem no individuo e ope-
O tipo de psicologia que ligou a Idade Média com os tem- ram juntas pata a consecugao de um fim significativo; a tenta-
pos modernos e que extraiu seus contetidos da auto-observacaio tiva antes se destinava a excluir do conteido da experléncia
do homem treligioso permanece ainda de fato operando com todes os elementos distintivos, a fim de, sempre que possivel,
certos conceitos ricos em contetido, que evidenciam a conti- aproximar a concepsao dos acontecimentos psiquicos do esque-
nuada influcncia de uma ontologia religiosa da alma. Nesse ma simples da mecdnica (posicido, movimento, causa e efeito).
sentido, reportamo-nos & psicologia sutgida do conflito inter- © problema passa a ser nao o de como uma pessoa se com-
no pela escolha entre o bem e o mal, agora concebida como preende em térmos de seus prdprios ideais e normas e como,
ocortendo i.9 sujeito, Tal psicologia se desenvolveu nos con- tendo tais normas como antecedentes, seus feitos e suas rentn-
flitos de ccasciéncia e no ceticismo de homens como Pascal cias recebem significados, mas, antes, o de como pode uma
e Montaigne até Kirkegaard. Encontramos ainda neste, cheios situagéo externa, com um gtau verificdvel de probabilidade,
de significado, certos conceitos orientadores de um tipo onto- requerer mecinicamente uma reagaio interna. A categoria de
ldgico tal como desespéro, pecado, salvacio e¢ solidio, que con- causalidade eterna era crescentemente utilizada, operando-se com
iém uma certa riqueza da experiéncia, pois téda experiéncia, a idéia de uma sucessfo regular de dois acontecimentos for-
que desde inicio se oriente para um objetivo religioso, tem malmente simplificados, como se exemplifica no seguinte es-
contetido c nereto. Nao obstante, também estas experiéncias quema: “Surge o médo quando ocorre algo inusitado”, no
se tornam, -om o passar do tempo, mais desprovidas de conted- qual se negligenciou propositadamente o fato de que cada tipo
do, mais té-ues ¢ mais formais, na medida em que seu quadro de médo muda completamente de acédrdo com seu contetido
de teferéncia, sua ontologia religiosa, vio-se enfraquecendo. (médo em face da incerteza e médo em face de um animal),
Uma sociecade em que os diversos grupos nao podem mais ce de que também o inusitado varia totalmente de acérdo com
concordar sGbre o significado de Deus, da Vida e do Homem, © contexto em que as coisas séo usuais. O que se buscava era
sera igualmente incapaz de decidir undnimemente o que se deve precisamente a abstracao formal das caracteristicas comuns a
compreender por pecado, desespéro, salvagio ou solidio, © te- éstes fendmenos qualitativamente diferenciados.
46 TreoLocta # Uropia ABcC?S GEM DRELIMINAR pO P29BLEI 47
Seno se empregava a categoria de fungdo, no sentido de que sou eu efetivamente, ou o que significa ser um ser humano,
que os fendmenos simples eram interpretados a partir de sea da mesma forma nao pode surgir desta teoria a interpretagao do
papel no funcionamento formal do mecanismo psiquico total, si mesmo e do mundo requerida mesmo pela mais simples acao
como por exemplo no caso em que se interpretam os conflitos bascada em qualquer decisdo avaliativa.
mentais como, basicamente, o resultado de duas tendéncias con- A tecoria mecanicista e funcionalista é altamente valiosa
traditérias nao-integradas na esfera psiquica, como expressdes do como umacorrente, na pesquisa psicoldgica, Falha, entretanto,
desajustamento do sujeito. Sua fungio é compelir o sujeito a reor- quando ‘se réfere ad coAtésto ‘total da experiéncia vital, porque
ganizar seu processo de adaptacao e alcancar um névo equilibrio, nada diz sdbre o fim significativo da conduta, sendo, assim, in-
Seria reaciondrio, frente ao fecundo desenvolvimento da capaz de interpretar os elementos da conduta com referéncia a
ciéncia, negar valor cognitivo aos procedimentos simplificado- éle. O modo mecanicista de pensamento somente é util quando o
res tais como &stes, que sao facilmente controlaveis e aplicd- objetivo ou o valor sao indicados por outra fonte, e somente os
veis, com um alto grau de probabilidade, a grandes massas de “tmeios” sio considerados. O mais importante papel do pen-
fendmenos. A fecundidade destas ciéncias formalizadoras que tra- samento na vida consiste, entretanto, em proporcionar orienta-
balham em térmos de causas e fungdes estd ainda longe de se c&o para a conduta quando se tem de tomar decisdes. Téda
exaurir; e seria danoso impedir seu desenvolvimento. Uma coisa deciséo real (tal como uma avaliacgio de outras pessoas ou de
é testar uma liuha fecunda de investigac#o e outra é encaré-la como se deve organizar a sociedade) implica um juizo relativo
como o tnico caminho para o tratamento cientifico de um ao bem e¢ ao mal, concernente ao sentido da vida e da mente.
objeto. Na medida em que a Ultima é 0 ponto em questio, j4 Encontramo-nos a esta altura frente ao paradoxo de que
esté claro hoje em dia que a abordagem formal isolada nao esta extiapolagio dos elementos formalizados, por meio da me-
exaure o que pode ser conhecido do mundo, e especialmente cinica geral ¢ da tcoria da funcao, surgiu originalmente para
da vida psiquica dos séres humanos. auxiliar os homens, em suas atividades, a alcangar seus objeti-
As interconexGes de significado, que por meio désse pro- yoo mais ficilmente. © mundo das coisas © da mente foi exa-
cedimento foram heuristicamente excluidas (io interésse da sim- minado mecanicistiamente ¢ funcionalmente para se chegar,
plificagfo cientifica), para que se pudesse chegar a entidades através de uma andlise comparativa, a seus Ultimos elementos
formais e facilmente definfveis, nai so recapturadas pelo mero constituintes, rcagrupando-se-os entéo, de acdido com o obje
apetfeicoamento de formalizagio através da descoberta de cor- tivo da atividade. Quando se usou pela primeira vez o procedi-
relagdes e fungdes. Pode ser realmente necessdrio, com vista A mento anal{tico, o fim ou objetivo prescrito pela atividade ain-
precisa observacio da sequéncia formal de experiéncias, rejeitar da existia (geralmente composto por fragmentos de um mundo
os contetidos concretos de experiéncia e valéres. Constituir-se-ia, anterior religiosamente compreendido). Os homens buscavam
entretanto, num tipo fetichismo cientifico acreditar-se que tal pu- conhecer o mundo de forma que pudessem molda-lo em confor-
rificatiio metédica substituisse efetivamente a riqueza original midade com seu objetivo Ultimo; analisava-se a sociedade de
da experiéncia. E ainda mais errado pensar-se que uma extra- modo a se alcancar uma forma de vida social mais justa ou
polagdo cientffica e uma enfatizaco abstrata de um aspecto de mais agraddvel a Deus; os homens se preocupavam com a alma
um fendmeno, pela tnica razfo de se o haver concebido dessa a fim de controlar o caminho da salvagéo. Mas quanto mais os
forma, sejam capazes de enriquecer a exveriéncia original da homens se adiantavam na andlise, tanto mais o objetivo desa-
vida. parecia de seu campo de visao, de tal forma que hoje em dia
Apesar de podermos conhecer bastante acérca das condi- um pesquisador poderia dizer com Nietzsche: “Esqueci por que
gOes nas quais surgem os conflitos, podemos nada conhecer a comecei” (Ich habe meine Griinde vergessen). Caso alguém
respeito da situac%o interior dos séres humanos e de como, ao indague hoje em dia sdbre os fins a que serviu a andlise, a
se abalarem seus valores, éles se perdem ¢ buscam se reencon- questao nao pode ser respondida com referéncia 4 natureza, a
trar, Assim como a mais exata tcoria de causa e func¢ao nao alma ou a sociedade, seniio estarfamos formalmente colocando
pode responder 4 questo relativa a quem sou eu efetivamente, uma condigéo étima puramente técnica, psfquica ou social co-
48 IpgoLocta £ Urop1a ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA 49
mo, por exemplo, um maximo de “funcionamento sem fricc&o’’. 5 Vemos cada vez mais claramente que qualquer que seja a fon-
Este objetivo aparece como tinico quando, por exemplo, nao le- te de onde extraimos nossos significados, sejam elas falsas ou
vando em conta tédas as suas observacdes e hipdteses compli- verdadeiras, todas tém uma certa fung&o psicoldgico-sociolégica,
cadas, pergunta-se a um psicanalista qual o seu objetivo em curar que € a de fixar a atengio dos homens que desejam fazer al-
os pacientes. Na maioria dos casos nao terd outra resposta que guma coisa em comum sébre uma certa “definicgfo da situa-
a mnogo de um dtimo de adaptacao. Quanto ao que seja éste gio”. Uma situag&o se constitui como tal quando é definida da
étimo, éle nada poderd dizer tomando tnicamente como base mesma maneira pelos membros do grupo. Pode ser verdadeiro
sua ciéncia, uma vez que todo fim significativo ultimo foi, des- ou falso quando um grupo chama outro de herege, e como tal
de o inicio, eliminado dela. luta com éste, mas é apenas por esta definic&o que a luta é uma
Revela-se, assim, outro aspecto do problema. Sem con- situagdo social. Pode ser verdadeiro ou falso que um grupo
cepgdes valorativas, sem um minimo de objetivo significativo, lute somente por realizar uma sociedade fascista ou comunista,
nada podemos fazer seja na esfera do social, seja na esfera do mas € s6 por essa definicéo, doadora de significado e avaliativa,
psiquico. Com isto queremos dizer que, mesmo quando se que os acontecimentos produzem uma situac&o onde a atividade
adota um ponto de vista puramente causal ou funcional, somen- e a contta-atividade sHo passiveis de distincdo, e a totalidade de
te mais tarde é que se vai descobrir o sentido originalmente acontecimentos € articulada em um processo, A justaposic&o
oculto na ontologia de que s¢ partiu. al senudo preservou a ex post facto de elementos esvaziados de contetido significativo
experiéncia da atomizagao em observagdes isoladas, isto 6, ato- nao produz unidade de conduta. Como resultado da exclusao
mizagao sob o ponto de vista da atividade. Expressos nos tér- extensiva de elementos significativos da teoria psicolégica, tor-
mos da moderna teoria da gestalt, os significados que nos dé na-se mais e mais evidente que também na psicologia as situa-
nossa ontologia servem para integrar as unidades de conduta e gdes psiquicas, para nao se falar das histérias de vida interior,
nos capacita a ver os elementos de observagao individuais em nao podem ser percebidas fora de um contexto significativo.
um contexto configurativo, elementos que de outra forma ten-
Além disso, de um ponto de vista puramente funcionalista,
deriam a permanccer separados. a derivacio de nossos significados, quer sejam falsos ou verda-
Mesmo que todo o significado veiculado pela visdo de deiros, desempenha um papel indispensdvel, que é 0 de sociali-
mundo miagico-religiosa fésse ‘‘falso”, @le ainda serviria — zar os acontecimentos para um grupo. Pertencemos a um gru-
quando visto sob um ponto-de-vista puramente funcional — po n&o apenas porque néle nascemos, ndo porque professamos
para tormar coerentes os fragmentos da realidade tanto da ex- a éle pertencer, nem finalmente porque a éle prestamos nossa
periéncia psfquica interior quanto da cxperiéncia exterior, e lealdade e obediéncia, mas, principalmente, porque vemos o
para situd-los com referencia a um certo complexo de conduta. mundo e certas coisas no mundo do mesmo modo quc o grupo
os vé (isto é, em térmos dos significados do grupo em ques-
t8o). Em cada conceito, em cada significado concreto, est4
& Isto pode explicar a grande verdade contida na regulamenta- contida uma cristalizagio das experiéncias de um certo grupo.
g%0 segundo a qual, nos regimes parlamentares, os chefes de gabinete Quando alguém diz “reinado”, o térmo esté sendo usado no
devam ser escolhidos nao dentre os efetivos do pessoal administrativo, sentido em que tenha significado para um certo grupo. Outra
mas, pelo contrario, dentre os lideres politicos. O burocrata adminis- pessoa, para quem reinado é apenas uma organizacdo, como,
trativo, como todo especialista ¢ pete, inchna-se a perder de vista o
por exemplo, uma organizacao administrativa tal como a que se
contexto e o objetivo tinal de sua agéo. Presume-se aqui que a pessoa
que encarna a integragdo livremente formada da vontade coletiva na dé em um sistema postal, nao participa das acdes coletivas do
vida publica ~ o lider politico — pode integrar os meio, disponiveis grupo no qual se toma como dado o significado anterior. En-
necessdrios as referidas agées de mancira mais orgdnica que o perito tretanto, nao existe em cada conceito sdmente uma fixacg3o dos
administrative dcliberadamente neutralizado em questus de politica. individuos com referéncia a um grupo de um certo tipo e:,A sua
Cf, a segfo sébre a sociologia do pensamento buocratico, pigs, 143 ¢ ago, mas toda fonte de onde derivamos o significado e a in-
segs., Parte ILL. terptetacio atual igualmente como um fator estabilizador das
50 IpEOLOGIA E UTOPIA Aporpacem Prritiminar po Propiema 51
possibilidades de experimentar e conhecer objetos com referén- ser resolvida através do recurso e da concentragio no sujeito,
tia ao objetivo central de acdo que nos orienta. nao foi dessa forma contornada. E verdade que grande parte
do que é névo foi descoberta dos novos métodos empiricos.
O mundo dos objetos externos e da experiéncia psiquica
Eles nos habilitaram a penetrar na génese psiquica de muitos
parece estar em um fluxo continuo. Para esta situacdo os ver fendmenos culturais, mas as respostas adiantadas desviaram nos-
bos sic simbolos mais adequados do que os substantives. O sa atengao da questao fudamental, concernente a existéncia da
fato de darmos names a coisas que estéo em fluxo implica ine- mente na ordéem da realidade. Em particular, perdeu-se, pela
vitavelmente uma certa estabilizagdo, orientada segundo as li- funcionalizagéo e mecanizagao dos fenédmenos psiquicos, a uni-
nhas da atividade coletiva. A derivacio de nossos significados dade da mente bem como a da pessoa, Uma Psicologia sem uma
enfatiza e estabiliza o aspecto das coisas que é relevante para psique nao pode tomar o lugar de uma Ontologia. Tal Psicolo-
a atividade e encobre, no interésse da acao coletiva, o proces- gia era ela prépria o resultado do fato de que os homens estives-
so perpétuamente fluido, subjacente a téda as coisas. Exclui as sem tentando pensar em térmos de um quadro de categorias
outras organizagdes configuracionais que tendem a diregdes di- gue procurava negar téda avaliagZo, todo trago de significado
ferentes. Cada conceito representa uma espécie de tabu con- comum, on de configuracgao total. O que pode ser valioso como
tta outras possiveis fontes de significado — simplificando e uni- uma hipdrese de pesquisa para uma disciplina especializada
ficando, em beneficio da agHo, a multiplicidade da vida. pode, entretanto, ser fatal para a conduta dos séres humanos,
Nao é improvdvel que a visio das coisas formalizadora e¢ A incerteza quanto a se contar com a Psicologia cientifica na
funcionalizadora sOmente se tenha tarnado possivel, cm nossos vida pratica se torna dbvia Uio logo um pedagego ou um lider
dias, por jd estarem os tabus anteriormente dominantes, que politico nela busque orientagio. A impressfo a que se chega,
fizeram o homem impermedvel a significados derivados de ou- neste momento, é que a Psicologia existe noutro mundo, regis-
tras fontes, perdendo sua fOrca apdés a derrocada do monopdlio trando suas obseryagdcs de cidadaos que vivem em alguma ou-
intelectual da igreja. Nestas circunstancias, veio gradativamen-' tra sociedade que nfo a nossa. Esta forma de experiéncia do
te surgindo, para cada grupo opositor, a oportunidade de reve- homem moderno, que, devido a uma diviséo do trabalho alta-
lar abettamente ao mundo os significados contraditdrios que mente diferenciada, tende a falta de direcHo, encontra sua con-
correspondiam A sua compreenséo do mundo peculiarmente con- trapartida na falta de rafzes de uma Psicologia cujas categorias
cebida, O que era rei para um, era titano para outro. Jé se ti- n&o nos permitem, sequer, meditar sdbre os mais simples pro-
nhaassinalado, entretanto, que um ntimero demasiado de fontes cessos vitais. Que esta Psicologia constitua efetivamente uma
conflitan.es, de onde derivem, numa mesma sociedade, os sig- incapacidade treinada para lidar com os problemas da mente
nificados referentes a um dado objetivo, conduz, afinal 4 disso- responde pelo fato de que nfo forneca um esteio para os séres
luc%o de todos os sistemas de significado. Em tal sociedade, di- humanos em sua weda didria.
vidida internamente quanto a todo sistema concreto de signifi- Assim, duas tendéncias fundamentalmente. diferentes ca-
cado, somente se pode estabelecer um consenso quanto aos ele- racterizam a Psicologia moderna. Ambas tornaram-se possiveis
mentos formalizados do objeto (por exemplo, a definigdo de devido ao mundo medieval —- que concedia um Unico conjun-
monarca que teza: “O monarca € aquéle que, aos olhos de uma to de significados aos homens do mundo ocidental — estar em
maioria de pessoas em um pais, possui legalmente o direito de processo de dissolucdo. A primeira é a tendéncia de buscar por
exercer o poder absoluto”). Em definigdes déste e de tipo si- trés de cada significado e de compreendé-lo em térmos de sua
milares tudo que ha de substancial, t6da avaliac&o para a qual génese no sujeito (o ponto-de-vista genético). A segunda ten-
nao mais se encontra um consenso, é reinterpretada em térmos déncia consiste na tentativa de construir uma espécie de ciéncia
funcionais. mecanica dos elementos formalizados e despidos de sentido da
Voltando entéo 4 nossa discussfo das origens da Psicclo- experiéncia psiquica (mecfinica psiquica). Torna-se aqui evi-
gia moderna, que toma o sujeito como o ponto de partida, ve- dente que o modélo de pensamente mecanicista nfo se confina,
mos agora claramente que a dificuldade original, que deveria como se supunha ofiginalmente, ao mundo dos objetos meca-
52 IpeoLocia E Uropia ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA 53
nicos. O modélo de pensamento mecanicista represcata bisica- se psicogenética, que ‘trata da funcSo geradora de valor do res-
mente uma espécie de primeira aproximagdo aos objetos em sentimento, decidir se os cristfos ou as classes dominantes ro-
geral. Aqui, o objetivo néo é uma compreensio exata das pe- manas estavam com a razio. Em todo caso, tal andlise nos da
culiaridades qualitativas ¢ das cons'«lagdes unicas, mas antes, a mais profundamente compreensao do significado da sentenca.
detetminagao das mais dSbvias regularidades ¢ princfpios de or- Nao é irrelevante para o seu-entendimento saber que a frase nao
denago, obridos dentre elementos simplificados e formaliza- foi lancada por qualquer pessoa em geral, nem era enderecada
dos. Reconstituimos em detalhe o método por ultimo mencio- aos homens em geral, mas, pelo contrdrio, tinha um real apélo
nado e vimos como o método mecanicista, apesar das realiza- somente para aquéles que, como os cristéos, eram de alguma
gdes concretas de que lhe somos devedures, tem, sob o ponto- forma oprimidos e que, ao mesmo tempo, sob o impulso do res-
-de-vista da orientagio e da conduta de vida, contribuido em sentimento, desejavam libertar-se das injusticas vigentes. A in-
muito para a geral inseguranca do homem moderno. O homem terconexiio entre a génese psfquica, a motivacdo que conduz ao
atuante precisa saber quem é, e a ontologia da vida psiquica significado, e o préprio significado, difere, no caso citado, da
preenche uma certa funcdo quanto a agio. Na medida em que
que se d& nas proposicdes pitagdéricas. Os exemplos especial-
a Psicologia Mecanicista e secu paralclo na vida eletiva, o impe- mente elaborados, que os Idgicos aduzem, podem, sob certas
to social em direciio & mecanizacdo onienvolvente, negavam éstes
circunsténcias, fazer que as pessoas se totnem niao-receptiveis
valéres ontolégicos, destrufam um clemento importante na au-
as diferencas mais profundas entre um e outto significados, po-
to-orientacio dos séres humanos em sua vida cotidiana.
dendo levar a generalizagSes que obscurecem relagdes relevantes.
Gostarfamos agora de nos dedicar A abordagem genética. De- A abordagem psicogenética pode portanto contribuir na
vemos indicar aqui, inicialmente, que o ponto-de-vista gendtico, grande maioria dos casos para um mais ptofundo entendimento
que se liga 4 abordagem psicoldégica, tem contribufdo de muitas do significado, sempre que nos preocupamos nao com as in-
maneiras para uma compreensao mais profunda da vida no sen- ter-rclagdes mais abstratas e formais, mas, antes, com os signi-
tido acima indicado. Os expoentes dogmaticos da Légica ¢ da ficados, cuja motivacio pode ser simpaticamente experimenta-
Filosofia cldssicas se acostumaram a sustentar gue a génese de da, ou com um complexo de conduta significativa, que pode
uma idéia nada tem a dizer com relacio a sua validade ou sig- ser compreendida em térmos de sua estrutura motivacional ou
nificado. Evocam sempre o repetido exemplo a propdsito de de scu contexto de experiéncia. Assim, por exemplo, quando
que nosso conhecimento da vida de Pitdgoras e de scus confli- eu souber o que um homem foi quando crianga, quais os con-
tos internos, etc., é de pouco valor para a compreensio das pro- flitos sérios que experimentou, em que situacSes ocorreram e
posigdes pitagéricas. Nao acredito, entretanto, que se possa man- como os resolveu, saberei mais a seu respeito do que se tivesse
ter éste raciocinio para t6das as realizagdes intelectuais, Acredi- meramente uns poucos detalhes estéreis de sua histéria de vida
to que, do ponto-de-vista da interpretag%o estrita, somos infi- exterior. Saberei em que contexto ® se produziu néle a inovacao,
nitamente enriquecidos quando tentamos compreender a senten- & luz do qual se terd de interpretar cada detalhe de sua expe-
ca biblica, “Os uiltimos seréo os primeiros’, como a expresso riéncia. O grande mérito do método psicogenético é ter des-
psiquica da revolta dos estratos oprimidos. Acredito que a com- trufdo a concepgao mecdnica anterior que tratava as normas e
preendetemos melhor se, como Nietzsche ¢ outros nos indica- valdres culturais como coisas materiais. Quando confrontado
ram de varias formas, considerarmos ¢ tomarmos conhecimen- com um texto sacro, o método genético substituiu a obediéncia
to da significacio do ressentimento na formagio de juizos mo- formalmente aquiescente a uma norma pela apreciagio viva do
rais. Neste caso, por exemplo, se poderia dizer, quanto ao cris- processo pelo qual os valéres e normas culturais surgem inicial-
tianismo, que foi o ressentimento que deu coragem aos estra- mente, e com o qual éles devem manter-se em contato continuo
tos inferiores para se emanciparem, pelo menos fisicamente, da
dominacio de um sistema de valéres injusto e para estabelece- & Deve-se notar que o ponto-de-vista genético enfatiza a inter-
rem os seus em oposigio a éstes. Nao pretendemos aqui levan- dependéncia em contraste com a abordagem mecanicista que se preo-
tar a questao relativa a se podemos, com o auxilio desta andli- cupa com a atomizagio dos elementos da experiéncia,
54 To LOu-A EB UTU'LA AboRb liL: L'RELIMINAR DO T20aLEM’ 55
a fim de que sempre possam ser renovadamente interpretados mutacgéo acima indicada tem suas raizes basicamente em uma
e dominados. Assim, demonstrou-se que a vida .de um fenéd- situagao de grupo, na qual centenas e milhares de pessoas par-
meno psiguico € o préprio fendmeno. © significado da histdéria ticipam, cada uma 4 sua maneira, na subversio da sociedade
e da vida esté contido em seu vir-a-ser e em seu fluxo. Estas in- exisrente. Cada uma destas pessoas prepara e executa esta trans-
tuicgSes foram inicialmente formuladas pelos rom4nticos e por mutagdo, no sentido de que atua de uma manecira nova em um
Hegel, mas, desde entao, tiveram de ser repetidamcnte redes- complexo, total de situagdes de vida que lhe vio de encontro.
cobertas. O método genético de explicagio, ainda que atinja suficiente
Havia, entretanto, desde o inicio, uma dupla limitacio a profundidade, nfo pode, a longo prazo, limitar-se A historia de
éste conceito de génese psiquica na medida em que gradualmen- vida individual, mas deve unir elementos até atingir finalmente
te se desenvolveu, penetrando nas Ciéncias Culturais (tais co- a interdependéncia da histéria de vida e da siruacio de grupo
mo a histéria das religides, a histéria literdria, a histdria da mais inclusiva. Pois a histéria de vida individual é apenas um
arte, etc.); e esta limitacdo ameacava tormar-se com o tempo
dos componentes de uma sétie de historias de vida mituamen-
te interligadas, que tém seu tema comum na citada subversio;
uma restrigfo definitiva quanto ao valor desta abordagem.
a nova motivacao particular de um sé individuo é parte de um
A limitagio mais essencial da abordagem psicogenética é complexo motivacional do qual, de varias maneiras, muitas pes-
a importante observacio de que se tem de compreender cada soas participam, Constituin mérito, do ponto-de-vista sociold-
significado 4 luz de sua génese e no contexto original da expe- gico, estabelecer, ao lado da génese individual do significado, a
riéncia de vida que forma seu background. Mas esta observa- génese do contexto da vida de grupo.
cfo contém em si a danosa-restricdo de que esta abordagem sé
se aplica em térmos individuais. Na maioria dos casos, tem-se Os dois métodos de se estudar fenémenos culturais aqui
considerados, o epistemoldgico e o psicolégico, tinham em co-
buscado a génese de um significado no contexto individual de
mum uma tentativa de explicar o significado a partir de sua gé
vivéncia ao invés de em seu contexto coletivo, Assim, por exem-
hese no sujeito. O que importa neste caso nfo é tanto se pen-
plo, quem tivesse alguma idéia a considerar (vamos tomar o
savam no individuo concreta ou em uma mente genérica em si,
caso mencionado acima da transformacéo de uma hierarquia de
mas que, em ambos os casos, se concebia a mente individual
valéres morais como vem expressa na frase: “Os tltimos serio
como separada do grupo. Dessa forma fizeram, sem que o qui-
os primeiras”} e quisesse explicd-la gentticamente, iria ape-
sessem, falsas assumpc¢des quanto aos problemas fundamentais
gar-se 4 biografia individual do autor e tentaria compreender
da Epistemologia ¢ da Psicu.ogia, assumpcdes que a abordagem
tal idéia tomando tnicamente como base os acontecimentos ¢ socioldgica teve de corrigir. O mais importante a respeito desta
motivagSes especificos da histéria pessoal do autor. FE claro
Ultima € qu. pde um fim A ficc%o do desligamento do individuo
que muito se pode fazer com @sse método, pois assim como as
do grupo, dentro de cuja matriz o individuo pensa e tem ex-
experiéncias que verdadeiramente me motivam encontram sua
periéncias.
fonte e local originais em minha prépria histéria de vida, assim
também a histéria de vida do autor é o local de suas experién- A ficgéo do individuo isolado e auto-suficiente est4 sub-
cias. Mas é igualmente claro que, embora possa ser suficiente jacente, em varias formas, A Epistemologia individualista e a
para a explicacfo genética de um modo de comportamento bas- Psicologia genética. A Epistemologia trabalhou com éste indi-
tante especifico o retornar ao perfodo anterior da histéria de viduo isolado e auto-suficiente como se, desde o inicio, éle pos-
um individuo (a exemplo do que fatia a Psicandlise que, par- suisse em esséncia tédas as capacidades caracteristicas aos séres
tindo das experiéncias da infancia, explica os sintomas de pos- humanos, inclusive a do conhecimento puro, e como se éle pro-
teriores desenvolvimentos do carater), nfo basta para um modo duzisse seu conhecimento do mundo a partir apenas de si mes-
de comportamento de relevancia social — tal como a transmu- mo, através de mera justaposicdo ao mundo exterior. Similar-
tagfo de valéres que transforma todo o sistema de vida de uma mente, na Psicologia evolutiva individualista, o individuo passa
sociedade em tddas as suas ramificagdes — a preocupacao com necessariamente por certos estdégios de desenvolvimento no de-
a histéria de vida puramente individual, e sua andlise. A trans- correr dos quais o ambiente fisico e social externo nao tem ou-
ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA 57
56 IpgoLocia E Uropia
tentemente, de acérdo com os seus interésses vitais. O grau
tra fung&o senfo a de liberar estas capacidades preformadas. em que a concep¢io individualista do problema do conhecimen-
Ambas as teorias cresceram do solo de um individualismo ted-
to fornece uma descricao falsa do conhecimento coletivo corres-
tico exacerbado (tal como o que se pode encontrar no perfodo
da Renascenca e do liberalismo individualista) que sémente po- ponde ao que ocorreria se a técnica, modo de trabalho e a pro-
dutividade de uma fabrica internamente altamente especializa-
deria produzir-se em uma situagdo social em que se tivesse per-
dido de vista a conex&o original entre o individuo e o giupo.
da, de 2.000 operdrios, fSssem considerados como se cada um
dos 2.000 operdrios trabalhasse em um cubiculo separado, exe-
Em tais situagdes sociais, freqiientemente acontece que o obser-
vador perca de vista o papel da sociedade na formagao do indivi-
cutasse por si sé as mesmas operacGes, e por si sé elaborasse
duo, a ponto de derivar a maioria dos tracos, que evidentemen- cada produto individual, do infcio ao fim. Na realidade, é cla-
te sOmente sAo possiveis como resultado da vida em comum e TO, os operarios nao fazem as mesmas coisas de forma paralela,
da interacdo entre os individuos, da natureza original do indi- mas, pelo contrério, através de uma divisdo de funcdes, coleti-
viduo ou do embrido gerador. (Opomo-nos a esta ficcio no vamente elaboram o produto total.
a partir de algum ponto-de-vista filoséfico Ultimo, mas simples- Vamo-nos indagar por um momento o que estd faltando,
mente porque ela introduz dados incorretos no quadro da gé- na teoria antiga, quanto ao caso desta reinterpretacdo indivi-
nese do conhecimento e da experiéncia.) dualista de um processo de trabalho e realizaco coletivos. Em
Realmente, longe estd de ser correto pretender-se que um ptimeiro lugat, nfo se considerou o quadro que, em uma divi-
individuo de capacidades absolutas mais ou menos rigidas con- sao real do trabalho, determina o cardter do trabalho de cada
fronte 0 mundo ¢ que, buscando a verdade, construa uma visdo individuo, desde o presidente do conselho diretor até o menos
de mundo a partir dos dados de sua expetiéncia. Tampouco po- importante aprendiz e que integra em uma maneira inteligente
demos acreditar que éle entHio compare sua visio de mundo com a natureza de cada produto parcial elaborado pelo operdtio in-
a de outros individuos, que adquiriram as suas de uma forma dividual. A omissfo em observar o cardter social do conhece-
similarmente independente, e, numa espécie de discussio, a vi- dor e do experimentar nfo era devida, principalmente, como
sao de mundo verdadeira venha a luz e seja aceita pelos demais. muitos acreditam, a que nfo se considerava o papel da “‘massa”
Ao contrério, € muito mais correto dizer-se que o conhecimen- @ superestimava o do grande homem. Antes, deve-se buscar sua
to é, desde o primeiro momento, um processo cooperative de eaplicagio no fato de que jamais se analisou ¢ apreciou o nexo
vida de grupo, no qual cada pessoa desdobra seu conhecimen- social original, onde cada experiéncia e percepcaio individuais,
to no interior do quadro de um destino comum, de uma ativi- no grupo, se nutre e se desenvolve.? Esta interdependéncia
dade comum e da superacao de dificuldades comuns (em que, original dos elementos do processo vital, que é andloga mas
entretanto, cada um enfrenta-se com uma parte diferente), Em nfo idéntica a divisio do trabalho, difere, em uma sociedade
conformidade com isso, os produtos do process cognitivo jé agraria, do que é no mundo urbano, Além disso, no interior
est4o, pelo menos em parte, diferenciados, porque nem todos déste Ultimo, os diferentes grupos participantes da vida urba-
os aspectos possiveis do mundo se acham ao alcance dos mem-
bros de um grupo, mas apenas aquéles de que surgem dificul- 7 Nada é mais futil que supor que o contraste entre os pontos-
dades e problemas para o grupo. E mesmo ésse mundo comum -de-vista individualista e sociolégico seja o mesmo que o existente en-
(nao partilhado da mesma forma por quaisquer outros grupos tre a “grande personalidade” e a “massa”. Nada existe na abordagem
estranhos) aparece diferentemente aos grupos subordinados den- sociolégica que exclua sua preocupagio com a descrigio do significado
tro de um grupo maior. Aparece diferentemente porque os gru- da grande personalidade no processamento social. A distingio real é
gos e estratos subordinados numa sociedade funcionalmente di- que o ponto-de-vista individualista, na maioria dos casos, estd incapa-
ferenciada tém uma abordagem experimental diferente em rela- citado para ver o significado das varias formas de vida social para o
desenvolsimento das capacidades individuais, enquanto o ponto-de-vista
Gao aos contetidos comuns dos objetos de seu mundo. No do-
sociolégico busca, desde o inicio, interpretar a atividade individual em
minio intelectual sdbre os problemas da vida, cabem a cada um tédas as esferas do contexto da experiéncia grupal.
segmentos diferentes, com os quais cada um lida bastante dife-
38 Iprorocia E Uropra ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA 59
na tém, em qualquer tempo, problemas cognitivos diferentes e aquéles que se preocupavam com tais problemas, os intelectuais
chegam a suas experiéncias através de caminhos diferentes, mes- e as pessoas educadas na sociedade burguesa, achavam-se em cir-
mo comrelagao a exatamente os mesmos objetos. Somente quan- cunstancias em que o cardter original de interconexfo da ordem
do se introduz na abordagem genética, e isso desde o inicio, o social devia necessariamente estar amplamente invisivel para
ponto-de-vista segundo o qual um grupo de 2.000 pessoas nao éles. Podiam, pois, e com téda a boa-fé, apresentar o conheci-
percebe a mesma coisa 2.000 vézes, mas que, de acérdo com mento ¢ a experiéncia como fenémenos tipicamente individuais.
a atticulacio interna da vida grupal e com as varias fungdes ¢ Tanto mais que sdmente tinham em mente o segmento dareali-
interésses, surgem subgrupos que agem e pensam coletivamen- dade que se referia As minorias dominantes e que se caracteriza-
te um com ou contta outro — sdmente quando vemos as coi- va pela competicao entre os individuos, os acontecimentos sociais
sas sob éste Angulo é que podemos atingir uma compreensao de podiam aparecer como se os irdividuos auténomos tivessem em
como, tia mesma ‘sociédade inclusiva, podem sutgir significa- si mesmbsa iniciativa para agik é conhecer. Vista déste segmen-
dos diversos devidos as divergentes origens sociais dos diferen- to social, a sociedade aparecia como se fésse apenas uma multi-
tes membros da sociedade como um todo. plicidade complexa e incalculdvel de atos individuais esponta-
neos de fazer ¢ conhecer. Este cardter extremamente indivi-
Uma distorg%o inconsciente adicional, cometida pela Epis- dualista nao se d4 nem mesmo na assim chamada estrutura
temologia cl4ssica em sua caracterizacio da génese do processo social liberal, encarada como um todo, na medida em que tam-
cognitivo, consiste em que ela procede como se o conhecimen- bém aqui a iniciativa relativamente livre da lideranca dos in-
to surgisse de um ato de contemplacdo puramente teédrica. dividuos, tanto na aco como no conhecimento, é dirigida e
Neste caso, ela parece elevar um caso marginal ao nivel de prin- guiada pelas circunstancias da vida social e pelas tarefas por elas
cipio central. Em regra, 0 pensamento humano nao é motivado apresentadas. (Assim, também aqui vamos encontrar uma in-
por um impulso contemplativo, uma vez que requer uma cor- terconex&o social velada, subjacente 4 iniciativa individual.) Por
rente subterranea volitiva e emocional inconsciente que assegu- outro lado, € indubitavelmente verdadeiro que h4 estruturas so-
re, na vida grupal, uma orientagdo continua em direc&o ao co- ciais nas quais existe a possibilidade, para certos estratos (devi-
nhecimento. Precisamente porque o conhecer é fundamentalmen- do A d4rea maior de atuac&o da livre competigao), de possuir um
te um conhecer coletivo (o pensamento do individuo isolado € maior grau de individualizacio em seu pensamento e conduta.
apenas um momento especifico e um desenvolvimento recente}, Seria, entretanto, incorreto definir a natureza do pensamento
pressupde uma comunidade de conhecer, que cresce a partir de em geral com base nesta situacdo histérica especial em que se
uma comunidade de experiéncia formada no subconsciente En- permitiu a um modo de pensar relativamente individualizado
tretanto, uma vez percebido o fato de que a maior parte do deser volver-se em condigSes excepcionais. Seria forcar os fatos
pensamento € erigida sébre uma base de acGes coletivas, somos histéricos encarar-se esta condicfo excepcional como se fésse a
levados a reconhecet a férca do inconsciente coletivo, A plena caracteristica axiomdtica da Psicologia do Pensamento e da Epis-
emergéncia do ponto-de-vista socioldgico referente ao conheci- temologia. Nao conseguiremos atingir uma Psicologia e uma
mento traz consigo, inevitavelmente, o desccbrimento gtadativo teoria do conhecimento inteiramente adequadas, enquanto nos-
do fundamento irracional do conhecimento racional. sa Epistemologia deixar, desde 0 inicio, de reconhecer o carater
Encontramos a explicacio para que as andlises epistemold- social do conhecer e nfo encarar o pensar individualizado como
gicas e psicoldgicas da génese das idéias sé tardiamente depa- apenas um momento excepcional.
rassem com o fator social no conhecimento do fato de que ambas Também neste caso nfo se trata, dbviamente, de acidente,
as disciplinas surgiram na época da forma individualista de socie- que o ponto-de-vista sociolédgico somente em data relativamen-
dade. Elas adquiriram o quadro de referéncia de seus problemas te recente se tenha somada aos demais. Nem é por acaso que a
em periodos de individualismo e subjetivismo bastante radicais, perspectiva que realiza a uniao das esferas social e cognitiva ve-
na €poca da ordem social medieval em desintegracdo, e nos pri- nha emergir em uma época em que o empenho maximo da hu-
mérdios liberais da era capitalista burguesa, Nestes perfodos, menijade mais ur+ 2 consiste na tentativa de se contrapor
60 Ipgorocia E Uropia ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA 61
a tendéncia de uma sociedade individualista nio-dirigida, que lectual e social que, no fundo, abarcava a sociedade inteira. A
se aptoxima da anarquia, com um tipo mais orgdnico de ordem derrocada da visio de mundo objetiva, garantida na Idade Mé-
social, Em tal situacio, deve surgir um senso generslizado de dia pela Igreja, refletiu-se até nas mentes mais simples. O que
interdependéncia —- da interdependéncia que liga a experiéncia os fildsofos disputavam com uma terminologia racional era ex-
isolada ao caudal de experiéncia dos individuos isolauos, e estas, perimentado pelas massas na forma de conflito religioso.
por sua vez, 4 contextura da comunidade mais ampla de expe-
riéncia e de atividade. Assim, também a teoria do conhecimen- Quando muitas igrejas substituiram o sistema doutrinal tni-
to recentemente surgida é uma tentativa de se tomar em con- co, garantido pcla revelacdo, com o auxflio da qual se podiam
sideracdo o enraizamento do conhecimento na textura social. Nela explicar tédas as coisas essenciais em um mundo agratio esté-
pde-se em atuacao uma nova espécie de orientac&o de vida, bus- tico —- quando surgiram varios setores pequenos onde havia an-
cando sustar a alicnacio c a desorganizado que emergiram do teriormente uma teligido mundial, as mentes dos homens sim-
exagéro da atitude individualista ¢ mecanicista. Os modos cpis-
ples se viram atetadas por tensdes similares as que os intelec-
temoldgico, psicoldgico e sacioldgico de enunciar problemas sao tuais expcrimentavam no nivel filosdfico em térmos da coexis-
as tr€s mais importantes formas de investigar c levantar ques- téncia de numerosas teorias de realidade e de conhecimento.
tdes sébre a natureza do processo cognitivo. Procuramos apre- Nos primérdios dos tempos modernos, 0 movimento pto-
senta-los de tal forma que parecessem como pattes de uma si- testante estabeleceu, no lugar da salvagZo revelada, garantida
tuacao unitdria, emergindo, uma apés outta, em uma seqiiéncia pela instituigfo objetiva da Igreja, a nogio da certeza subjetiva
necess4ria, e se interpenetrando mtituamente. Dessa forma, pro- da salvacio. A luz desta doutrina, acreditava-se que cada pes-
porcionam a base das reflexdes do presente livro. soa deveria, de acérdo com a sua prdpria consciancia subjetiva,
decidir se sua conduta era agraddvel a Deuse se levava A salvaco.
Assim, 0 protestantismo tornou subjetivo um critério que até
4. O CONTROLE DO INCONSCIFNTE COTETIVO COMO entio tinha sido objetivo, atitude paralela ao que fazia a Epis-
UM PROBLEMA DE NOSSA EPOCA temologia moderna ao abandonar uma ordem de existéncia obje-
tivamente garantida pelo sujeito individual. Na&o hd que per-
A emergéncia do problema da multiplicidade de estilas de correr grande distancia da doutrina da certeza subjetiva de sal-
pensamento suraida no decorrer do desenvolvimento cientifico vagaéo até av ponto-de-vista psicoldgico, em que a observagio do
e a perceptibilidade de motivacSes do inconsciente coletivo, an: processo psiquico, transformada em verdadeira curiosidade, se tor-
teriormente veladas, é apenas um dos aspectos da preponderan- na gradativamente mais importante do que o apégo aos crité-
cia da inquietacao intelectual que caracteriza nossa época. Ape- trios de salvacgdo que os homens antigamente buscavam descobrir
sar da difusdo democrdtica do conhecimento, os problemas filo- em suas prdéprias almas.
séficos, psicoldgicos e sociolégicos por nds apresentados tém si-
Tampouco conduzia 4 crenga ptblica em uma ordenagio de
do confinados a uma minoria intelectual relativamente pequena.
mundo objetiva, quando a maioria dos Estados politicos tenta-
Esta inquietacHo intelectual veio gradativamente sendo encara-
vam, na época do absolutismo esclarecido, enfraquecer a Igteja
da, por tal minoria, como um seu privilégio profissional, e seria
por meios que haviam tomado & prdépria Igreja, isto é, através
considerada como preocupacio privada déstes grupos se todas
da tentativa de substituir a interpretago objetiva do mundo ga-
os esttatos no tivessem, com o crescimento da democracia,
rantida pela Igreja por outra, garantida pelo Estado. Assim fa-
sido atrafdos a discussdo politica e filosdfica.
zendo, fortalecia a causa do Iluminismo que era, ao mesmo tem-
A exposigao precedente j4 demonstrou, entretanto, que as po, uma das armas da burguesia ascendente. Tanto o Estado
raizes da discusstio encetada pelos intelectuais se introduziram moderno quanto a burguesia lograram sucesso, A medida em que
profundamente na situacio da sociedade como um todo. Em a viséo de mundo naturalista e racionalista ia cada vez mais des-
muitos aspectos, seus problemas nada mais eram que a intensi- locando a religiosa. N&o obstante, isto ocorreu sem que os es-
ficagéo sublimada e o refinamento racional de uma crise inte- tratos mais largos féssem atingidos por aquela plenitude de
62 “rerana ys Yeu ABOFDAGEM I” ZLIMINAR DO PRetLema 63
conhecimento requerida pelo pensamento racional. Além do vez que a religiio, mesmo considerada enfraquecida, ainda
mais, esta difuséo da visio de mundo racionalista era realizada, permaneceu sob a forma de modos de experiéncia de rito, culto,
sem que se trouxesse os estratos nela implicados a uma posigao devogfio e éxtase, seu impacto foi, nao obstante, suficientemente
social que permitisse uma individualizacéo das formas de viver forte para abalar grandemente a visao de mundoreligiosa, As
e€ pensar. formas de pensamento caracteristicas da sociedade industrial
Entretanto, sem uma situacio social de vida impelindo e
gradativamente penetraram naquelas dreas que tinham qual-
tendendo para a individualizacdo, um modo de vida despido de quer contato com a industria, eliminando, mais cedo ou mais
mitos coletivos se totna dificilmente suportével. O cometciante, tarde, um apés outro, os elementos da explicac%o religiosa do
© empresdrio, o intelectual, cada um a seu modo ocupa uma po- mundo, my |
sigfo que requer decisdes racionais relativas as tarefas ditadas O Estado absoluto, tendo como uma de suas prerrogativas
pela vida cotidiana. Para tomar tais decisdes, sempre é necessd- a consecucdo de sua prépria interpretacgio do mundo, deu um
tio que o individuo liberte seus juizos dos juizos dos outros e passo que, com a democratizacgéo da sociedade, posteriormente
medite certas possibilidades de uma maneira racional, do ponto- tendeu, cada vez mais, para a abertura de um precedente, Mos-
-de-vista de seus prdprios interésses. Isto nfo acontece com os cam- trou que a politica era capaz de usar sua concepgdo do mundo
poneses do tipo antigo, nem com a massa recentemente surgida de como uma arma e que a politica ndo era apenas uma luta pelo
subordinados trabalhadores white-collars, que detém posicdes que poder, mas veio realmente a se tornar pela primeira vez signifi-
requerem pouca iniciativa e nenhuma previsibilidade de tipo es- cativa quando, enfim, infundiu em seus objetivos uma espécie de
peculativo. Seus modos de comportamento sfo em certa me- {rlosofia politica com uma concepsio politica do mundo. Bem po-
dida regulados com base em mitos, tradicSes ou obediéncia mas- demos dispensar o delineamento detalhado do quadro de como,
siva ao lider. Homens que no sHo treinados em sua vida coti- com a demoeratizacio progressiva, nado sé o Tstado, mas tam-
diana por ocupagdes que os conduzam a individualizagio, no to- bém os partidos politicos buscaram dotar seus conflitos de fun-
mar suas préprias decisdes, a saber, de seu ponto-de-vista pessoal, damentos e sistematizacan filosdficos. Primeiro, o liberalismo,
© que é certo e o que é errado, que jamais tém ocasiao de anali- depois, seguindo hesitantemente o seu exemplo, o conservado-
sat as situagGes em seus elementos e que, ainda, nao desenvol- rismo, e, finalmente, o socialismo, todos fizeram de seus objeti-
vem uma autoconsciéncia que se manterd firme mesmo quando vos politicos um credo filoséfico, uma viséo de mundo com mé-
o individuo é separado do modo de juizo peculiar a seu grupo, todos de pensamento bem fundados e conclusdes prescritas.
e precisa pensar por si mesmo — tais individuos nao estarao Assim, a ruptura da viséo de mundo religiosa velo somar-se o
em condicdes, mesmo na esfera religiosa, de suportar crises in- fracionamento das visdes polfticas. Mas enquanto as Igrejas e
ternas tio graves quanto o ceticismo. Vida em térmos de equi- seitas conduzi in suas batalhas com artigos de fé irracionais dis-
Ifbrio interno a ser sempre conquistado de ndvo é o elemento tintos ¢ sOmente desenvolviam o elemento racional, em ultima
essencialmente original que o homem moderno precisa, ao nivel andlise, para os membros do clero e do pequeno estrato de in-
da individualizagio, elaborar para si mesmo, se pretende viver telectuais leigos, os partidos politicos emergentes incorpora-
com base na tacionalidade do Iluminismo. Umasociedade que, vam argumentos racionais e, se possivel, cientificos em seus
na sua divisdo do trabalho e diferenciagdo funcional, nao possa sistemas de pensamento em um grau muito maior, atribuindo-
oferecer a cada individuo um conjunto de problemas e campo -lhes muito mais importancia. Isto era em parte devido ao pos-
de atuac4o em que sé possa exercitar plena iniciativa e discerni- terior aparecimento déstes na histéria, em uma época em que a
mento individual) nfo pode igualmente realizar uma Wel- ciéncia como tal contava com a maior estima social, e, em parte,
tanschauung individualista e racionalista penetrante, que possa ao método pelo qual recrutavam seus funciondrios, uma vez que,
aspirar a se tornar uma realidade social efetiva, desde seus primérdios, eram amplamente escolhidos dentre os
Embora fésse falso acreditar — como os intelectuais ten- intelectuais emancipados que anteriormente mencionamos. Es-
dem facilmente a fazer — que os séculos do Uuminismo real- tava de acdrdo com as necessidades de umasociedade industrial
mente tivessem fundamentalmente transformado a plebe, uma e com as déstes estratos intelectuais que éles baseassem suas
64 IpEOLoGIA E Uroela ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA 65
agdes coletivas ndo em um enunciado sincera de seu credo, mas, © outro perigo que surge desta alianca entre a ciéncia e a
antes, em am sistema de idéias racionalmente justificdvel. politica € 0 de que uma crise que afete o pensamento politico
O resultado déste amdlgama de pensamentos politico e cien- venha também a se tornar uma ctise do pensamento cientifico.
tifico foi-se aplicar gradativamente, a cada tipo de politica, Déste complexo vamo-nos concentrar em apenas um fato que,
pelo menos nas formas em que se oferecia A aceitagiio, uma tin- entretanto, se reveste de significagdo para a situacdo contempo-
tinea. A politica € um conflito e tende cada vez mais a se tornar
tura cientifica, vindo cada tipo de atitude cientifica a ser, por
uma luta de vida e morte. Quanto mais violento se tornou éste
seu turno, dotado de uma coloragdo politica.
conflito, tanto mais firmemente captou as correntes subterra-
Este amdlgama teve efeitos negativos e positivos. Facili- neas emocionais que anteriormente operavam inconscientemen-
tou de tal forma a difusag de idéigs cientificas que estratos te, e com extrema intensidade, e as torgou ao dominjoyabertg.”,
cada vez mais amplos, no donjunto! de sua exigténgia politica, do consciente. * 1 ee Ty
tinham de buscar justificativas tedricas para suas posicdes. Apren- A discussao politica possui um cardter fundamentalmente
deram dessa forma —- muito embora freqiientemente de maneira diterente do da discussao académica. Busca nao apenas estar
bastante propagandistica — a pensar sdbre a sociedade - a po- com o direito mas, igualmente, demolir a base de existéncia so-
litica com as categorias da andlise cientifica. Tal amdlgama foi cial ¢ intelectual de seu oponente. Portanto, a discussio polt-
igualmente de valia para a ciéncia social e polftica, por ganhar tica penetra mais profundamente no fundamento existencial do
maior acesso a realidade, sendo assim dotado de um tema para pensamento do que o tipo de discussio que somente pensa em
o enunciado de seus problemas, o qual forneceu um vinculo con- térmos de uns poucos “pontos-de-vista” selecionados e somen-
tinuo entre esta ciéncia e o campo de realidade com o gual tem te considera a “relevdncia teédrica” de um atgumento. O con-
de operar, que é a sociedade. As crises ¢ as exigéncias da vida flito politico, uma vez que é desde o inicio uma forma racionali-
social ofereceram a matéria empirica, as interpretagdes sociais e zada da luta pela predominancia social, ataca o status social do
politicas e as hipdteses por meio des quais os acontccimentos opositor, seu prestigio ptiblico ¢ sua autocontianca. E dificil
se tornaram analisdveis. As teorias de Adam Smith, bem como decidir, nesse caso, se a sublimacdo ou a substituigao da discus-
as de Marx — para se mencionar apenas éstes dois — foram sao, em lugar das armas mais antigas de conflito, e o uso dire-
elaboradas e desenvolvidas com suas tentativas de interpretar to da térga e da opresséo constituitam realmente um progres-
e analisar eventos coletivamente experimentados. so fundamental da vida humana. A repressio fisica é, na verda-
de, mais dura de se suportar extetnamente, mas a vontade de
O principal risco, no entanto, desta conexdo direta entre
aniquilamento psiquico, que em muitas ocasides tomou o seu
a teoria e a politica reside no fato de que, enquanto o conhe- lugar, é talvez ainda mais insuportdvel. Por conseguinie, nfo é
cimento tem de manter sempre seu cardter experimental, se de admirar que, especialmente nesta esfera, cada refutacio ted-
deseja fazer justiga a um névo conjunto de fatos, o pensemento rica seja gradativamente transformada em um ataque muito mais
dominado pela atitude politica nao se pode dispor a ser cont}- fundamental ao todo da situacdo de vida do opositor, esperan-
nuamente readaptado a novas experiéncias. Os partidos poli- do-se, com a destruig&io de suas teorias, solapar igualmente sua
ticos, pelo prdéprio fato de serem organizados, nfo podem man- posigao social. Também nada ha de surpreendente em que éste
ter elasticidade em seus métodos de pensamento, nem estar pre- conflito, onde, desde o infcio, ndo somente se leva em conta o
parados para aceitar qualquer resposta que venha a surgir de que a pessoa disse, como também o grupo de que é porta-voz,
suas indagacdes. Estruturalmente, tratase de corporacGes pt- e a que ac4o tinha em vista quando expés seus argumentos, se
blicas e organizagdes de luta. Por si mesmo, isto j4 os forca a visualizasse o pensamento em conex4o com o modo de existén-
uma orientagao dogmética. Quanto mais os intelectuals se tor- cia a que estava ligado, E verdade que o pensamento’ sempre
nam os funciondrios de partido, tanto mais perdem a virtude tem sido a expresséo da vida e da acan gripais (exceto quanto
de receptividade e de elasticidade que trouxeram consigc de sua ao pensamento altamente académico, que em dada época era
flexivel situagZo anterior. capaz de se isolar da vida ativa). Mas a diferenca estava em
66 Togcotocia £ Utopia
ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA 67
que, nos conflitos religiosos, as possibilidades tedricas no eram
© conceito de pensar wtdpico reflete a descoberta oposta 4
de relevancia primordial; ou em que, ao analisar seus adversd-
primeira, que é a de que certos grupos oprimidos estado intelec-
trios, néo se chegava a uma andlise dos grupos a que seus adver-
tualmente téo firmemente interessados na destruicdo e na trans-
sdrios pertenciam porque, como j4 vimos, os elementos sociais
formagao de uma dada condig&o da sociedade que, mesmo in-
dos fenémenos intelectuais nZo se tinham tornado visiveis aos
voluntariamente, sOmente véem na situacio os elementos que
pensadores de uma época individualista.
tendem a negd-la. Seu pensamento é incapaz de diagnosticar
Na discuss%0 politica nas democracias modernas, onde as corretamente uma situagio existente da sociedade. Eles nao
idéias sfo mais claramente representativas de certos giupos, 4 esto absolutamente preocupados com o que realmente existe;
determinacfo social e existencial do pensamento tornou-se mais antes, em seu pensamento, buscam logo mudar a situacio exis-
facilmente perceptivel. Em principio, foi a politica que primei- tente. Seu pensamento nunca é um diagnéstico da situagdo;
to descobriu o método socioldgico no estudo dos fendmenos in- somente pode ser usado como uma orientagio para a acéo. Na
telectuais. Foi basicamente nas lutas polfticas que os homens mentalidade utépica, o inconsciente colctivo, guado pela repre-
pela primeira vez tomaram consciéncia das motivagGes coletivas stntagdo tendencial ¢ pelo desejo de agdo, occulta deverminados
inconscientes que sempre guiaram a direcio do pensamento. A
aspectos da realidade. Volta as costas a tudo o que pudesse
discussdo politica é, desde o inicio, mais do que argumentagao abalar sua crenga ou paralisar seu desejo de mudar as coisas.
teérica; ela é o desfazer-se de disfarces —_ 0 desmascaramento
dos motivos inconscientes que ligam a existéncia em grupo a O inconsciente calctivo © a atividade por éle smpelida servem
suas aspiracgSes culturais « a seus argumentos tedricos. Contu- para ocultar —em duas dicgdcs —~ certos aspectos da realidade
do, a medida que a politica moderna empregava em suas ba- social. E pos .vel, ademas, como ja foi visto, determinar especifi-
talhas armas tedricas, o processo de desmascaramento penetrava camente a fonte e a direcao da distorcio. E a tarcfa déste livro
as raizes sociais da teoria. alinhar ——- nas duas diresSes indicadas — as fases mats signifi-
cativas na cmergéncia desta descobeita do papel do inconscicn-
A descoberta de raizes social-situacionais do pensamento
te como aparece na histéma da idcologia e da utopia. A esta
adotou, pois, a principio, a forma de desmascaramento, Em
altura, estamos apenas preocupados em delinear o estado men-
acréscimo A dissolugdo gradativa da visio de mundo objetiva
tal que decorre destas nocgdes, uma vez que é caracteristico da
unitéria, que para o homem comum tomou a forma de uma plu-
situagaéo em que éste livro se produziu.
talidade de concepgdes do mundo divergentes, e para os inte-
lectuais se apresentou como a irreconcilidvel pluralidade de es- A principio, os partidos que possufam as novas ‘armas
tilos de pensamento, penetrou na mente publica a tendéncia intelectuais”, o desmascaramento do inconsciente, tinham uma
para desmascarar as motivagGes situacionais inconscientes do vantagem formiddvel sdbre os seus adversdrios. Os ultimostor-
pensamento grupal. Esta intensificacdo final da crise intelectual navam-se aterrorizados quando se demonstrava que suas idéias
podeser caracterizada pelos dois conceitos do tipo slogan “‘ideo- eram, meramente, ,reflexos destorcidos de sua situagao vital, an-
logia e utopia” que devido 4 sua importancia simbélica foram tecipagdes de seus interésses inconscientes. © mero fato de que
escolhidos para titulo déste livro. pudesse ser convincentemente demonstrado ao adversdrio que
motivagGes, até entio ocultas para éle, estayam atuando, deve
© conceito de “ideologia” reflete uma das descobertas
té-lo enchido de terror e despertado, na pessoa que utilizava a
emergentes do conflito politico, que é a de que os grupos do-
minantes podem, em seu pensar, tornar-se tao intensamente li-
arma, um sentimento de maravilhosa superioridade. Era, ao
gados por interésse a uma situacdo que simplesmente nao sao mesmo tempo, a aurora de um nivel de consciéncia que anterior-
mente a humanidade havia sempre ocultado de si mesma com a
mais capazes de ver certos fatos que iriam solapar seu senso de
dominacdéo, Est4 implicita na palavra “ideologia” a nocgfo de méxima tenacidade. Nem foi por acaso que sdmente o atacante
que, em certas situagGes, o inconsciente coletivo de certos gru- ousasse esta invasdo do inconsciente, enquanto o atacado se via
pos obscurece a condig&o real da sociedade, tanto para si como duplamente abatido —- primeiro, pelo desnudamento do incons-
ciente em si, e depois, c cm acréscimo, pelo fato de que o
para os demais, estabilizando-a portanto.
inconscicnte era desnudade ¢ evidenciado num espirito de int
68 Ipgotocia E Uroria ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA 69
mizade. Pois claro esté que se trata de uma considerdvel dife- plexidade basica de nossos dias, que pode ser resumida na sin-
renga se se lida com o inconsciente com propdésitos de ajuda e tomatica questio: “Como é possivel que o homem continue a
cura ou com propdésitos de desmascarar. pensat e a viver em uma época em que os problemas da ideo-
Hoje em dia, entretanto, j4 atingimos um estdgio em que logia e da utopia vém sendo radicalmente levantados e medita-
esta arma de desmascaramento e desnudamento reciprocos das dos em tédas as suas implicacdes?”
fontes inconscientes da existéncia intelectual se tornou proprie- E possivel, decerto, escapar a esta situacfo em que a plu-
dade nado de um grupo entre muitos, mas de todos os grupos talidade de estilos de pensamento se faz visivel, e a existéncia
Mas, na medida em que varios grupos buscavam destruir a con- de motivagdes coletivas inconscientes é reconhecida, bastando
fianga de seus adversdrios em seu proprio pens r, com esta simplesmente que nos furtemos a éstes processos. Pode-se bus-
arma intelectual mais moderna de desmuscaramento radical, des- car abrigo em uma ldgica supratemporal, afirmando que a ver-
trufam igualmente, visto que térlas as posicdes foram sendo dade como tal é imaculada, ndo tendo uma pluralidade de for-
gradativamente submetidas a andlise, a confianca do homem no mas nem qualquer conexfio com motivacdes inconscientes. Mas
pensamento humano em geral. O processo de expor os elemen- em am mundo em que o problema nao é apenas um interessan-
tos probleméticos do pensamento, latente desde 0 colapso da te tema de discussio, mas, antes, uma perplexidade interna, logo
Idade Média, culminou finalmente no colapso da confianca no surgird alguém, para sustentar contra estas nogSes que “nosso
pensamento em getal. Nada existe de acidental, mas, pelo con- problema nao é o da verdade em si, mas 0 nosso pensamento, tal
trdtio, mais que inevitdvel é 0 fato de que cada vez maior nu- como o enconttamos com seu enraizamento na acao na situacaéo
mero de pessoas se abriga no ceticismo ou no irracionalismo. social em motivagdes inconscientes. Mostre-nos como podemos
avancar, partindo de nossas percepgSes concretas a suas defini-
Duas correntes poderosas seguem aqui juntas, reforcando- cSes absolutas. Nao nos fale da verdade em si, mostre-nos o
“se uma 4 outra com forte pressio. uma, a desaparicio de um caminho pelo qual o que enunciamos ao impulso de nossa exis-
mundo intelectual unitdrio com normas e valdres tixos; e, outra,
téncia social possa alcar-se A esfera em que se transcenda o par-
© surgimento repentino do inconsciente, anteriormente oculto, tidarismo, a fragmentariedade da visio humana, em que a ori-
4 radiosa luz do dia da consciéncia, © pensamento do homem gem social ¢ o predominio do inconsciente no pensamento con-
havia-lhe, desde tempos imemoriais, aparccido como um seg- duzam a observagSes controladas ao invés de ao caos”. Né&o se
mento de sua cxisténcia espiritual ¢ no como, meramente, um atinge o absoluto do pensamento afiancgando-se, por meio de
fato objetivo distinto. A reorientaclo havia freqiientemente um principio geral, possuf-lo nem comecando a anunciar algum
significado, no passado, uma mudanga no prdéprio homem. Nes- ponto de-vista particular limitado (geralmente o prdéprio) como
tes perfodos mais remotos, trataya-se, na maiuria das vézes, de suprapartiddrio e dotado de autoridade. Tampouco temos saida
um caso de lenta alteracdo nos valéres e normas, de uma trans- quando somos dirigidos para umas poucas proposigSes em que
formagao gradativa no quadro de referéncia de onde as acdes hu- o contetido ¢ tio formal ¢ abstrato (como na Matematica, na Geo-
manas derivavam sua orientagGo Ultima. Mas nos tempos mo- metria e na Economia pura) que patecem estar totalmente des-
dernos, trata-se de algo muito mais profundamente desorgani- vinculados do individuo social pensante. Nao € a respeito destas
zador. O recurso ao inconsciente tende a escavar o solo de que proposigdes que se dé a luta, mas quanto a extensdéo maior de
emergiam os varios pontos-de-vista, Tornam-se expostas as determinacdes fatuais, nas quais o homem diagnostica concreta-
taizes, onde até aqui o pensamento humanose alimentava. Co- mente sua situagio individual e social, percebe as interdepen-
mega a ficar claro para todos nés que nZo podemos continuar déncias concretas da vida e quando os acontecimentos exterhos
vivendo da mesma maneira, j4 que conhecemos de nossos moti- sio, pela primeira vez, compreendidos corretamente. A bata-
vos inconscientes, da mesma forma que viviamos quando os igno- Ilha se aviva na referéncia As proposigSes para as quais desde o
rdvamos. O que experimentamos agora é mais do que uma nova infcio se orienta significativamente cada conceito, em que usa-
idéia, e as questGes que levantamos constituem mais do que um mos palavras tais como conflito, crise, alienacio, insurreicao,
névo problema. O que nos preocupa, neste instante, ¢ a per- ressentimento — palavras que nao reduzem situacdes complexas
70 LeoLcutaA EB Uioria ABORDAG P.eLu4inszr po Propiriaa 74
a uma descricgéo formal, externalizante, que nao sdo capazes de exemplo, sob o aspecto da cducagio das criangas) caso suas nor-
reconstruf-las de névo, e que perderiam seu contetido caso se mas mudem? Se quisermos compreender um [enémeno concre-
as despisse de sua orientacdo e de seus clementos valorativos, to tal como a situacdo ou o contetido normative de um ambien-
Ja dentonstramos em outra passagem que o desenvolvimen- te, jamais serd suficiente o esquema puramente mecanicista de
to da ciéncia moderna conduziu ao crescimento de uma técnica abordagem, tendo que ser introduzido, em acréscimo, concei-
tos adequados para o entendimento de clementos significativos
de pensamento, por meio da qual se exclufa tudo o que fésse
apenas significativamente inteligivel. O behaviorismo levou ao e incomensuréveis.
primeiro plano esta tendéncia A concentracio em reacdes intei- Seria falso, porém, pretender que as relagSes entre éstes
tamente perceptiveis do exterior, e procurou construir um mun- elementos se revelariam menos claras e menos perceptiveis do
do de fatos onde sdmente existem dados mensurdveis e correla- que as que se! encontram ‘entrel fendmenos puramente mensuré-
ges entre séries de fatéres, com as quais se poderd prever o veis. Muito pelo contrdrio, a interdependéncia recfproca dos
grau de probabilidade dos modos de comportamento em dadas elementos que constituem um acontecimento € muito mais in-
condigdes. E possivel, e mesmo provavel, que a Sociologia te- timamente compreensivel do que a de elementos externos estri-
nha de passar por éste estigio em que seus conteidos sofrerao ‘amente formalizados Aqui, assume sua dimensdo prépria a
uma desumanizagao e formalizacdo, mecanicistas, exatamente co- abordagem que, seguindo Dilthey, eu gostaria de designar como
mo aconteceu com a Psicologia, de modo que, na devogio a um compreensio da interdependéncia primdria da experiéncia (das
ideal de estreita exatidao, nada reste a nao ser dados estatisticos, verstebende Erfassen des “urspriinglichen Lebenszusammenban-
testes, levantamentosetc., e, ao fim de tudo, sera excluida toda ges®), Nesta abordagem pela utilizacdo da técnica da compreen-
formulacio significativa de um problema. Tudo o que se pode so, a interpenctracio funcional reciproca entre as experiéncias
~N
dizer aqui é que esta reducio de tudo a uma descritibilidade psiquicas ¢ as situacSes sociais torna-se imediatamente inteligi-
mensurdvel ou inventorial é significante como uma tentativa séria vel. Aqui nos confrontamos com um dominio de existéncia no
de determinar o que seja inambiguamente averigudvel e, ainda, qual a emergéncia das reacSes psfquicas interiores se torna ne-
de meditar o que acontece com o nosso mundo psiquico social, cessariamente evidente, ¢ nic ¢ compreensivel meramente como
quando se o restringe a relagSes comensurdveis puramente exte- o € uma causalidade externa, em térmos de gran de probabili-
tiores. Nao pode mais restar dtivida alguma de cue nenhuma dade de sua ~ eqiiéncia.
real penetragao na realidade social seja possivel através desta Tomervs algumas das observacées elaboradas pela Socio-
abordagem. Tomamos como exemplo o fendmeno relativamen- logia com a utilizacio do método de compreensio, consideran-
te simples denotado pelo térmo “situacdo”. O que resta déste do a natureza de sua evidéncia cientifica. Quando ao se referir
térmo? Seré éle de algum modointeligivel quando f6r reduzi- a ética das comunidades cristas primitivas, alguém declarou
do a uma constelacao externa de padrdes variados de comporta- que esta seria principalmente inteligivel em térmos de ressen-
mento reclprocamente relacionados, mas somente visiveis exter- timento dos estratos oprimidos, e quando outros acrescentaram
namente? Por outro lado, é claro que uma situagéo humana sd- que esta perspectiva ética era totalmente nao-polftica porque cor-
mente pode ser caracterizada quando se leva em consideraco as respondia & mentalidade de um estrato que ainda nao possufa
concepgSes que dela tém os participantes, como experimentam reais aspiragdes de dominio (‘Dai a César o que é de César’’),
nesta situagéo suas tensOes e como reagem As tensdes assim sur- e quando se disse também que esta ética nao é uma ética tribal,
gidas. Ora, tomemos um ambiente; por exemplo, o ambiente mas uma ética mundial, uma vez que cresceu do solo da j4 entdo
em que existe uma determinada famflia. Nao fazem as normas desintegrada estrutura tribal do Império Romano, claro est4 que
prevalecentes nesta familia e sdmente inteligiveis por meio de estas interconexGes entre as situacdes sociais, de um lado, e,
uma interpretagao significativa parte do ambiente, pelo menos
tanto quanto a vista ou a mobjilia da residéncia? Ainda mais,
nao se deve considerar esta familia, as outras coisas permane- 8 Utilizo aqui a expresséo de Dilthey, deixando em aberto a
cendo iguais, como um ambiente completamente diferente (por questio de como seu uso do térmo difere da utilizagio acima,
72 Ibrotocia gE Utopia ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA 73
do outro, os modos de comportamento ético-psiquicos nao sao primitivo, estatia inteiramente inacessivel para éle. Assim, tam-
verdadeiramente mensurdveis, mas, nao obstante, podem ser mui- bém aqui, a vontade orientada para um objetivo € a fonte de
to mais intensamente penetradas de seu cardter essencial do que compreensao da situacdo.
se fdssem estabelecidos coeficientes de correlagdo entre os vé
Para trabalhar nas Ciéncias Sociais ¢ preciso participar do
tios fatéres. As interconexdes sdo evidentes porque utilizamos processo social, mas esta participagdo na luta do inconsciente
uma abordagem compreensiva das interdependéncias priméarias
coletivo de forma algumasignifica que as pessoas dela partici-
da experiéncia de que surgiram estas normas.
pantes falsificam os fatos ou os véem incorretamente, Na ver-
Tornou-se claro que as proposigGes principais das Ciéncias dade, pelo contrério, a participagdo no contexto da vida social
Sociais no sAo mecanicisticamente externas nem formais, nem é um pressuposto para a compreensio da natureza interna déste
representam correlagSes puramente quantitativas, mas, pelo con- contexto de vida. © tipo de participagdo do pensador deter-
trério, diagndsticos situacionais, em que geralmente utilizamos mina como éste ira formular seus problemas. A nao-considera-
os mesmos conceitos e modelos de pensamento concretos que cio dos elementos qualitativos e da contenc&o total da vontade
foram criados para fins de atividade na vida real. Claro esrd, nfo constitui objetividade, mas, ao invés disso, é a negacdo da
além disso, que cada diagndstico da ciéncia social se acha estrei- qualidade essencial do objeto.
tamente ligado as avaliag&es ¢ oricntagdes inconscientes do obs Mas, ao mesmo tempo, o raciocinio invetso de que quanto
vador, ¢ que a autoclarificagio erftica das Ciéncias Sociais esti maior a subjetividade tanto maior a objetividade nfo € ver-
intimamente vinculada A autoclarifieagio critica cde nossa orien- dadeiro, Nesta esfera se obtém uma singular dinamica inter-
tagdo na mundo cotidiana. Um observador que niio esteja fun- na dos modos de comportamento em que, pela retengio do élan
damentalmente interessado nas rafzcs sociais das éticas cambian- politique, éste Elan se sujcita ao controle intelectual. Tixiste um
tes do periods em que vive, que nico medite os problemas da ponto em que o élan politique colide com algo, apés o que Te-
vida social em térmos das tenses entre os cstratos sociais, ¢ torna a xi ¢ passa a submetet-se ao contréle critico. Existe um
que nao tenha descoberto também o fecundo papel do ressen- ponto em que o préprio movimento da vida, principalmente
timento em sua prdpria experiéncia, jamais estard em condicdes em suas maiores crises, se eleva por sObre si mesmo e se torna
de observar a fase das éticas cristds acima descritas, sem se consciente de seus prdprios limites. E neste ponto que o com-
falar de sua capacidade de compreendé-la. Justamente na me- plexo de problemas da ideologia e utopia se torma o campo de
dida em que participa avaliativamente (simpdtica ou antagd- interésse da Sociologia do Conhecimento, ¢ em que o céticismo
nicamente) na Juta pela ascensdo dos estratos inferiores, na me- eo trelativismo, surgidos da destruigdo e da desvalorizacao dos
dida em que valora o ressentimento positiva ou negativamente, objetivos politicos divergentes, se tornam um meio de salvagao.
€ que se torna consciente da significacio dindmica da tensdo e Pois o relativismo e 0 ceticismo acatretam 9 autocontréle e a
tessentimento sociais. ‘Classe inferior”, “‘ascensao social” e autocritica, levando a uma nova concepoio de objetividade.
“ressentimento”, ao invés de serem conceitos formais, sao con- O que patece ser téo insuportavel na vida invididual — con-
ceitos significativamente orientados. Se féssem formalizados, e tinuat a viver com o inconsciente A mostra — é 0 pré-requisito
as valorag6es lhe féssem retiradas, 0 modélo de pensamento ca- histérico da autoconsciéncia critica cientifica. Também na vida
racteristico da situagio, no qual é justamente o ressentimento pessoal, o autocontréle e a autocorrec%o somente se desenvolvem
que produz novas ¢ fecundas normas, seria totalmente inconce- quando em nosso impulso vital, otiginalmente cego, nos defron-
bivel. Quanto mais detidamente se analisa a palavra ‘“‘ressen- tamos com um obstéculo que nos faca voltar sébre nés mesmos.
timento”’, tanto mais claro se torna que éste térmo aparente- No curso desta colisio com as outras formas de existéncia pos-
mente nao-valorador e descritivo de uma atitude esta repleto siveis, a peculiaridade de nosso prdprio modo de vida se nos
de valoragdes. Se estas valoracdes fdssem deixadas de lado, a mostra aparente. Mesmo em nossa vida pessoal somente nos
idéia perderia sua concretude. Mais ainda, se o pensador nao tornamos senhores de nés mesmos quando as motivagdes incons-
tivesse interésse em reconstruir o sentimento de ressentimento, cientes, de que anteriormente nao nos ddévamos conta, adentram
a tensdo, que permeia a situagfo acima descrita do cristianismo repentinamente nosso campo de visio, tornando-se assim aces-
74 Ipzotecia © Uroria ABC L4GE°" FL SLIIN.LR DO Prog’ 4A 75
siveis ao contréle consciente, Nao é desistindo de sua vontade to-esclarecimento do grupo. Embora aqui se deva novamente en-
de acio e colocando suas avaliagSes em suspenso, mas no con- fatizar que sdmente os individuos sao capazes de auto-esclare-
fronto e no exame de si mesmo, que o homem consegue objeti- cimento (nada existe de semelhante a uma “mente do povo e
vidade e conquista um self com referéncia A sua concepcia de os grupos como um todo so tao incapazes de auto-esclareci-
seu mundo. O critério para éste auto-esclarecimento é 0 de mento como 0 sao de pensar), ha grande diferenca entre o indi-
que nad sé o objeto, mas nds mesmos entramos totalmente em viduo se tornar conscjente das motivagGes inconscientes bastan-
nosso campo de viséo. Tornamo-nos visiveis para nds mesmos, te especfficas que caracterizavam particularmente seu pensa-
nao apenas vagamente, como um sujeito conhecedor em si, mas mento e atuacdo anteriores ou tomar conseiéncia daqueles ele-
em um determinado papel até entao escondido, em una situa- mentos de suas motivagdes ¢ ponto-de-vista que o ligavam aos
ao até entéo impenetrdvel e com motivacBes de que nao tinha- membros de um grupo particular.
mos até ent&o consciéncia. Em tais momentos, a conexao in- Constitui-se também em problema a prépria questao
terna entre nosso papel, nossas motivacSes e nossos tipos e ma- de se a seqtiéncia dos estdgios de auto-esclarecimento é in-
neita de experimentar o mundo aparecem-nos repentinamente. tegralmente uma questao de chance, Estamos inclinados a
Daf o patadoxo subjacente a estas experiéncias, que é o de que acreditar que o auto-esclarecimento individual ocupa uma
a oportunidade para a relativa emancipacio de determinacio social posicfo em um fluxo de auto-esclarecimento, cuja fonte
aumenta proporcionalmente A percepcao desta determinacio. As social é uma situagio comum a diferentes individuos. Mas es-
pessoas que mais falam de liberdade humana sdo as que, na tejamos aqui preocupados quer com o auto-esclarecimento de
realidade, se encontram mais cegamente sujeitas a determinacio individuos, quer com o de grupos, uma coisa é comum a am-
social, na medida em que, na maioria dos casos, nao suspeitam bos, que é a sua estrutura. A dimensio basicamente fundamen-
do profundo grau em que sua conduta é determinada por seus tal desta estrutura reside em que, na medida em que o mundo
interésses. Ao contrério, é de se notar que exatamente as que se torna um problema, nao o faz como um objeto desligado do
insistem na influéncia inconsciente dos determinantes sociais sujeito, mas, pelo contrdrio, vai ao encontro da contextura das
sdbre a conduta é que lutam por superar éstes determinantes experiéncias déste. A realidade & descoberta pelo modo em
tanto quanto possivel. Elas revelam as motivacdes incons- que aparece ao sujcito no decorrer de sua auto-extens&o (quan:
cientes a fim de fazer daqueles fércas que anteriormente as do- do se estende sua capacidade de experiéncia e scu horizonte).
minayam cada vez mais objetos de decisio racional consciente.
O que até entio ocultévamos de nds mesmos e nao inte-
Esta ilustracio de como a extensiio de nosso conhecimento grdvamos em nossa Epistemologia & o fato de que o conheci-
do mundo se acha intimamente relacionada com o crescente au- mento difere, nas Citncies Sociais e Polfticas, a partir de deter-
toconhecimento e autocontrdle pessoais nao é acidental nem pe- minado ponto, do conhecimento formal mecanicista, difere a
riférica, © processo de auto-extensio do individuo representa partir do ponto cm que transcende a mera enumeragao ¢ corre-
um exemplo tipico do desdobramento de cada tipo de conheci- Jago de fatos, e se aproxima do modélo do conhecimento- si-
mento situacionalmente determinado, isto é, de cada tipo de tuacionalmente determinado a que nos iremos referir varias vézes
conhecimento que nfo seja meramente a simples acumulacio no presente trabalho. .
objetiva de informacao sdbre os fatos e suas conexdes causais, Uma vez tornada evidente a inter-relagio entre a ciéncia
mas que se interesse pela compreensio de uma interdependén- social e o pensamento situacionalmente vinculado, como o que
cia interna do processo vital. A interdependéncia interna sé se pode encontrar, por exemplo, na orjentagao politica, temos
pode ser captada pelo método compreensivo de interpretacao, Tazo em investigar as potencialidades positivas bem como as
e os estdgios desta compreensaio do mundo estio ligados, a cada limitagSes e os perigos déste tipo de pensar. Além disso, € im-
passo, ao processo de autoclarificacdo. Esta estrutura, de acér- portante que tomemos como ponto de partida o estado de cri-
do com a qual o auto-esclarecimento possibilita a extensio de se e incerteza em que se revelaram os perigos déste tipo de pen-
nosso conhecimento do mundo que nos todeia, obtém nao sé
sar, bem como as novas possibilidades de autocritica, por meio
autoconhecimento individual, mas é igualmente o critério de au- da qua) se esperava encontrar uma solu¢io.
ABORDAGEM P2ELIMINAR DO PROBLEMA 77
76 IpgoLocia E Utcria
Se abordamos o problema déste poato d. vista, a incertesa tuacional que com o tempo seré possivel compard-los com os
que se havia tornado umaafligfo cada vez mais insuportdvel na métodos das Ciéncias Naturais. Este método teré em acrésci-
vida ptiblica passa a ser o solo de onde a ciéncia social moderna mo a vantagem de nfo se deixar de lado o dominio do signifi-
retira intuigdes inteiramente novas. Estas se agrupam em trés cado, pot incontrolavel, mas, pelo contrétio, fard da interpre-
tendéncias principais: a primeira, a tendéncia para a autoctitica taco do significado um veiculo de precisdo.? Se a técnica in-
das motivagdes inconscientes coletivas, na medida em que de- terpretativa da Sociologia do Conhecimento conseguisse obter
terminam o pensamento social moderno; a segunda, a tendén- @ste grau de exatidfio, e se, com seu auxilio, a importancia da
cia para o estabelecimento de um névo tipo de histéria intelec- vida social para a atividade intelectual pudesse tornar-se de-
tual, que seja capaz de interpretar as mudancas de idéiar rela- monstrivel através de uma cortelagéo cada vez mais precisa,
cionando-as As mudangas histdrico-sdciais; e' a terceira, a tendén ela traria igualmente consigo a vantagem de no ser ‘mais pre-
cia para a revisio de nossa Epistemologia que até agora no ciso, nas Ciéncias Sociais, renunciar ao tratamento dos proble-
levou suficientemente em conta a natuteza social do pensa- mas mais importantes, com o intuito de ser exato. Porque nao
mento. Neste sentido, a Sociologia do Conhecimento é uma sis- se deve negar que o transplante dos métodos da Ciéncia Nata-
tematizacio da divida que é encontrada, na vida social, 7b a ral para as Ciéncias Sociais conduz gradativamente a uma situa-
forma de inseguranca e incerteza vagas. O objetivo déste livro cio em que nfo se indaga mais o que se gostaria de saber ¢ 0
é, por um lado, a formulacio teérica wais clara Jo uy ro csma que seria de importncia decisiva para o proximo pas:o do de-
problema sob varios Angulos, e, do outro, a elaporagio az um senvolvimento social, mas em que apenas se tenta lidar com
método que, com base em critérios cada ver mais precisos. nos complexos de fatos que sao mensuraveis, de acérdo com um
habilite a distinguir e isolar diferentes est.cs ac pensar . fe: certo método jd existente. Ao invés de tentar-se descobrir o
laciond-los aos grupos de onde surgem.
Nada é mais simples do que sustentar que um certo tipo de © autor tentou elaborar éste mécodo de anilise sociolgica de
®
pensamento € feudal, burgués ou proletdrio, liberal, socialista significados em seu estudo, “Das Konservative Denken: Soziologische
ou conservador, enquanto nao existir método analftico algum Beitrage zum Werden des politisch-historischen Denkens in Deustsch-
para demonstré io e nao se tiver deduzido nenhum critério que land”, Archiv fiir Sozialwissenschaft und Sozialpolitik (1927), vol. 57.
todos
proporcione um contréle sébre a demonstracio. Por conseguin Neste trabalho tentou analisar tio precisamente quanto possivel
te, a principal tarefa, no atual estagio de pesquisa, é elaborat os pensadores importantes de uma tinica corrente politica, quanto a
e concretizar as hipdteses implicadas, de modo a se fazer delas seu estilo de pensamento, mostrando como usavam cada conceito de
a base de estudos indutivos. Ao mesmo temno. os segmentos modg diverso do utilizado pelos outros grupos e como, com a mudanga
En-
da realidade com que lidamos precisars set J. .3ripostos Cin La de sua base social, também mudavam seu estilo de pensamento.
quanto naquele estudo trabalhamos por assim dizer _“microsebpicamen-
tOres de forma bem mais exata do que a anteriormente realizada. te”, no sentido de qu. realizamos uma investigacao precisa de um
Assim, nosso objetivo é o de, primeiro, refinar a andlise do sig- sctor restrito da histéria social e intelectual, nos estudos contidos
no
nificado na esfera do pensamento tio profundamente que se presente volume usamos uma abordagem que poderia ser denominada
es
possa superat térmos e conceitos fortemente indiferenciados por “macroscapica”. Procuramos diagnosticar os passos mals important
ideologia- utopia; ou, em outras palavsas, es-
catacterizagdes cada vez mais detalhadas e exatas dos varios es- na histéna do compleso
vistos de uma
tilos de pensamento; e, segundo, aperfeicoar a técnica de re- clarecer os pontos-chave que pareciam eriticos quando
construgao da histéria social ao ponto de se ser capaz de perce- certa dittiacia, A abortag m macroscépica 6 a mais fecunda de tédas
os funda-
bet, ao invés de fatos isolados e distantes, a estrutura social quando, como no caso déste livro, alguém tenta estabelecer
mentos de um amplo complexo de problemas; a microscépica, quande
como um todo, isto é, a réde das fércas sociais em interacdo de as
alguém prccura verifiear detalhes de alcance restrito. Basicamente,
onde surgiram os varios modos de observar e pensar sdbre «as duas se completam ¢ devem sempre ser aplicadas de modo alternativ o
realidades existentes, que apareceram em diferentes épovas. ce complementar, © leitor que deseje obter uma visdo completa da
Existem possibilidades tA0 amplas de preciso na combina- apheabildits da Socal. a do Conhecimento na pesquisa hustérica
ga0 entre a andlise do significado ¢ o diagndstico sociolégico si- deve buscar referencias neste estudo,
78 IpgoLocia E Utopia AporDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA 79
que é mais relevante com o mais elevado grau de precisdo pos- pressio a fim de se poder verdadeiramente apteciar 0 ambito
sivel nag circunst&ncias existentes, tende-se em atribuir impor- da exposicio. 18 Ainda é sua convicgio que {reqientemente,
tancia ac que é mensurdvel meramente porque ocorre ser men- em nosso tempo, varias nogdes derivadas de estilos de pensa-
suravel. mento contraditérios atuam sébre um mesmo pensador, Somen-
No atual estégio de desenvolvimento ainda estamos Jonge re ndo as notamos, contudy, porque o pensador sistemético oculta
de ter formulado sem ambigiiidades os problemas ligados 4 teo- cuidadosamente suas contradigdes, tanto para si mesmo como
tia da Sociologia do Conhecimento, nem ainda retinamos, até para seus leitores. Enquanto para o sistematizador as contra-
o nivel necessdrio, a andlise socioldgica do significado. Este digdcs constituem uma fonte de desconstrto, o pensador expe-
sentimento de se estar no inicio de um movimento, e nao no rimental nelas percebe pontos de partida, em que o cardter fun-
fim, condiciona o modo pelo qual o livro é apresentado. Exis- damentalmente polémico de nossa situacio atual se torna pela
tem problemas a respeito dos quais nao se pode escrever livros- primeira vez realmente aberto ao diagndstico c i investigagao.
-texto ou sistemas perfeitamente consistentes. Sao as quesides Umbreve sumdrio do contetido dos capitulos seguintes de-
por enquanto ainda nfo inteiramente percebidas nem totalmen- yerd proporcionar uma base para que se os analise.
te meditadas por uma época. Para tais problemas, os séculos A Parte II examina as mudancas mais importantes na con-
anteriores, sacudidos pelas repercussdes da revolugio no pen- cepefio de fdeologia, indicande, por um Jado, como estas mu-
samento ¢ na experiéncia que se estendeu do século XVI ao dangas ho significado estio vineuladas as mucangas histdricas
século XVIII, inventaram a fdrmula do cnsarwo ceniifico, A
© soetis, ¢ tentande, por outta lade, demonstrar com excmplos
técnica dos pensadores daquele perfodo consistia em abordar conctelas como o mesmo conceito, em diferentes fases de sua
qualquer problema imediato, que estivesse conscientemente a histéria, pode significar, em um momento, uma atitude valo-
disposicdo, e observé-lo por tanto tempo ¢ sob tantos Angulos rativa €, em outro, unm atitude nfo-valorativa, ¢ como a pré-
que, finalmente, por meio de um caso individual acidental, se pria ontologia do conceito se vé implicada em suas mudangas
revelava e se iluminava algum problema marginal do pensamen- husigiicas, que quase passam despercebidas.
to e da exist€ncia, Esta forma de apresentagio, uma vez [re-
qlientemente comprovada sua val, serviu de piotdtipo ao autor A Parte LiL tata do problema da polftica cientifica: como
quando no presente volume, com excecdo da ultima parte, pre- & possivel uma ciéncia da politica face ao cardter inerentemente
ideolégico de todo o pensamento? Neste sentido, serd feita
feriu empregar a forma de emsaio e no o estilo sistemdtico de
tratamento. uma tentativa de se claborar empiricamente um importante exem-
plo de uma andlise do significado de um conccito, de acérdo com
Estes estudos constituem tentativas de aplicar uma nova as linhas da Sociologia da Conhecimenta. Serf, por exemple,
forma de ver as coisas ¢ um névo método de interpietacaio a
vérios problemas e conjuntos de fatos. Foram escritos em épo-
cas diferentes e independentemente um do outro e, apesar de Neste sentido, deve-sc obsersar como, na segunda parte do
se centralizarem em térno de um problema unitério, cada um presente havo, a chamadas possiihdlades relabvastas das mesmas
déles possui seu prdptio objetivo sntelectual. idéias, como, na quarta parte, os elementos utépico-ativistas, ¢, na ul-
oma, a tendéncia para uma sclugio harmoniosa ¢ sintética das mesmas
Esta forma ensaistico-experimental de pensamento explica possibilidades, sio apresentaday Na medida em que o método expe-
igualmente por que nao se eliminou as repetigdes ¢ as contradi- hinental de pensamente so dedica & cxplaragia das vduaus possibilida-
cgdes nfo foram resolvidas. O motivo pelo qual nao se eliminam dex contday nas adéns veradoras, o ponte acima iustrado se. torna
as repeticdes fol que a mesma iddia se apresentava em um ndvo manicstoy., que os mesmos ‘fatos’, sal a mbluéncia da vontade e do
contexto, revelando-se, portanto, sob uma nova luz. As contra- ponto-de-vista eambiante, podem com frequcnera conduzir a concep-
gbes divcaizentes da siluagio total Entretante, enquanta uma conexao
dicées nado foram eliminadas por ser convicciio do autor que um
Cutre addaas permanccer em processo de creseamenty e@ de transforma-
dado esbéco tedrico pode freqiientemente possuir latentes pos-
glo, ao mds de se acnllar as posinidades nela ainda latentes, de-
sibilidades variadas, as quais se dcve permitir que encontrem ex- vesse submeté-las, em ldday ay tty wirlagdcs, ao juiza do lestor.
80 Tpnoroata nm Uroria
ra pretende que éste ou aquéle interésse scja a causa de uma damos com aquela concepgio de ideologia que, por definigao,
dada mentira ou ilusio. A ultima pressupde simplesmente que s¢ prende mais aos contetidos isolados do que A estrututa glo-
existe uma correspondéncia entre uma dada situagao social e bal de pensamento, encobrindo modos falsos de pensamento ¢
uma dada perspectiva, ponto-de-vista ou massa aperceptiva. Nes- expondo mentiras. Quando utilizamos a concepgo total de ideo-
te caso, embora uma andlise das constelagdes de interésses pos- logia, procuramos reconstruir todo o modo de ver de um grupo
sa, com freqii€ncia, ser necessdria, ela nunca o sera para esta- social, e, neste caso, nem os individuos concretos nem o seu so-
belecer conexdes causais, mas para caracterizar a situacdo total, matério abstrato podem ser legitimamente considerados como
Assim, a psicologia de interésses tende a ser substitufda por uma portadores d@ste sistema ideoldgico de pensamento como um
andlise da correspondéncia entre a situacdo por conhecer e as todo. © objetivo da anélise neste nivel é a reconstrucio da base
formas de conhecimento. teérica sistematica subjacente aos jufzos isolados do individuo.
Uma vez que a concepcdo particular jamais realmente se As anélises de ideologias, no sentido particular, que fazem o
afasta do nivel psicoldgico, o ponto de referéncia em tais and- contetido do pensamento individual depender amplamente dos
lises é sempre o individuo, Isto ocorre mesmo quanJo estamos interésses do sujeito, jamais podem realizar esta reconstrucao
lidando com grupos, uma vez que todos os fenédm aos psiqui- bdsica do modo de ver total de um grupo social. Podem, no
cos devem ser finalmente referidos As mentes dos individuos. maximo, revelar os aspectos psicoldgicos coletivos da ideologia,
E verdade que o térmo “ideologia le grupo” aparece freqtien- ou conduzir a alguma evolucado da psicologia de massa, tratando
temente na linguagem popular. Neste sentido, existéncia de seja do comportamento diferente do individuo na multidao, seja
grupo sdmente pode significar que um gtupo de pessoas, seja dos resultados da integracdo na massa das experiéncia psiquicas
por suas reagdcs imediatas a uma mesma situacHo, seja como de varios individuos. E, apesar de que muitas vézes o aspecto
resultado de uma interagdo psiquica directa, reage de forma si- psicoldgico coletivo possa aptoximar-se dos problemas da ané-
milas. Em conseqiiéncia, condicionadas pela mesma situacio lise ideoldgica total, éle no responde com exatidfio a suas ques-
social eslo sujcitas As mesmas ilusdes. Se limitarimos nossas toes. Uma coisa é saber até que nonto minhas atitudes e meus
observagGes aos processos mentais que se produzem no indivi- juizos sdo influenciados ¢ altctados pela coexisténcia de outros
duo, encarando-o como o tinico portador possivel de ideclogias, séres humanos, mas j4 é outra coisa saber quais sejam as impli-
jamais conseguiremos captar, em sua totalidade, a estrutura do cages tedricas do meu modo de pensamento idénticas as de
mundo intelectual de um grupo social, em uma dada situacio meus semelhantes, membros do grupo ou doestrato social.
histérica. Apesar de que éste mundo mental como um todo Contentamo-nos, aqui, em meramente colocar a questdo sem
jamais pudesse ter existido sem as experiéncias c as reagdes pro- tentar uma andlise integral dos dificeis problemas metodoldgi-
dutivas dos diferentes individuos, nao se encontrard a estrutu- cos que ela levanta.
ra interna de tal mundo em uma mera integragio destas expe-
riéneias individuais. Os membros individuais da classe operd-
tia, por exemplo, no experimentam todos os elementos de um 2. O CONCEITO DE IDEOLOGIA NA PERSPECTIVA
horizonte que se poderia chamar de Weltanschauung proletaria. HISTORICA
Cada individuo participa apenas em determinados fragmentos
déste sistema de pensamento, cuja totalidade nao é de forma al- Assim como as concepgdes total e particular de ideologia
guma a simples soma destas expcriéncias individuais fragmentd- podem ser distinguidas uma da outra com base em suas dife-
tias. Sendo uma totalidade, o sistema de pensamento é inte- rencas de significado, assim também as origens histéricas déstes
grado sistematicamente, e nao € um mero ajuntamento casual dois conceitos podem ser igualmente diferenciadas apesar de que
de experiéncias fragmentdrias dos membros isolados de um gru- na realidade estejam sempre interligadas. Por enquanto, ainda
po. Segue-se, assim, que sOmente se pode considerar o indivi- nfo possufmos um tratamento histdrico adequado do desenvol-
duo como o portador de uma ideologia, na medida em que li- vimento do conceito de ideologia, para nao falar de uma histé-
86 IpgoLocia £ Uroria Tae ogra E Uropry 87
ria sociolégica das muitas variacgdes? de seu significado. Mes- logia. Nosso objetivo é simplesmente apresentar tais fatos a
mo que estivéssemos em condicdes de empreendé-la, nao seria partir das evidéncias dispersas, de tal forma que exibam mais
nossa tarefa, devido aos propdésitos que temos em mente, escre- claramente a distincdo entre os dois térmos feita no capitulo an-
ver uma histéria dos significados cambiantes do conceito de ideo- terior; e delinear o processo que conduziu gradativamente ao
significado refinado e especializado que os térmos vieram a pos-
suit. Cor-espondendo ao duplo significado do térmo ideologia,
Como uma biografia parcial do problema, o autor indica os se- por nds aqui designado como cancepcées particular e total, exis-
guintes dentre seus trabalhos:
tem respectivamente ‘duas correntes distintas de desenvolvimen-
Mannheim, K., “Das Problem einer Soziologic des Wassens”,
Archiv ftir Soztalwissenschaft und Sozialpolitik, 1925, vol. 54. to histérico.
Mannheim, K., “Ideologische und soziologische Interpretation der A descrenca e a suspeita que em téda parte os homensevi-
geistigen Gebilde”, Jahrbuch fur Soziologie, compilacgo de Gottfried denciam por seus adversdrios, em todos os estigios de desen-
Salomon, II (Karlsruhe, 1926), pags. 424 e¢ segs. volvimento histérico, podem ser encaradas como precursoras
Outros estudos de interésse serdio encontrados em: imediatas da nocdo de ideologia. Mas sémente quando a des-
Krug, W. T., Allgemeines Handwérterbuch der philosophischen crenca do homem para com « homem, mais ou menos evidente
Wissenschaften nebst ihrer Literatur und Geschichte, 2.* ed., Leipzig,
1833. em cada estégio da histGria humana, se torna explicita e reco-
Eisler, Philasaphisches Worterbuch. nhecida met® jicamente, é que podemos falar prdpriamente de
Lalande, Vocabulaire de la philosophie (Paris, 1926). uma coloracio ideolégica nas afirmacdes dos outros. Atingimos
Salomon, G., “Historscher Materialismus und Idcologienlehre”, aste nivel quando nao mais fazemos os individuos pessoalmente
Jahrbuch fiir Soziologie, Il, pags. 386 e segs. responsdveis pelos equfvocos que detectamos em suas afirma-
Ziegler, H. o. “Tdeollogienlehre”, Archiv fir Sozialwissenschaft ges, ¢ quando nao mais atribufmos o mal que fazem a sua as-
und Sozalpolitik, vol. 57, pags. 657 e segs.
tticia. maliciosa. SoOmente quando buscamos, mais ou menos
A maioria doy estudes de ideologia jamais atinge o plano da ten-
conscientemente, descobrir a fonte de sua inverdade em um fa-
tativa de uma analise sistemAatica, limitando-se, via de regra, a referén-
cias histéricas ou consideragdes mais gerais. Citamos a titulo de exem- tor social é que estamos prdpriamente fazendo uma interpre-
plo os conhecidos trabalhos de Max Weber, Georg Lukdcs, Carl Schmitt, tacio ideolégica. Comecamos a tratar as nocdes de nossos adver-
e mais recentemente: sdérios como ideologias sémente quando nao mais as considera-
Kelsen, Hans, “Die philosophischen Grundlagen der Naturrechsts- mos como mentiras calculadas e quando sentimos em seu com-
lehre und der Rechtspositivismus”, nimero 31 dos Vortrage der Kant pottamento total uma inseguranga que encatamos como uma
Gesellschaft, 1928. funcao social em que se encontra. A concepcdo particular de
As eminentes obras de W, Sombart, Max Scheler e Franz Oppenhei- ideologia é, portanto, um fenémeno intermedidrio entre, num
mer si9 por demais conhecidas para necessitar uma icferéncia deta-
pdlo, a simples mentira e, no outro, o érro, que é o resultado
Thada.
de um aparato conceptual destorcido e defeituoso. Refere-se a
Em um sentido mais amplo os seguintes estudos sao de especial
interésse:
uma esfera de erros de natureza psicolégica que, ao invés do en-
Riezler, K., “Idee und Interesse in der politischen Geschichte”, gano deliberado, nao s&o intencionais, mas decorrem inevitavel
Die Dioskuren, vol, UL (Munique, 1924). e involuntariamente de certos determinantes causais.
Szende, Paul, Verhiillung und Enthiillung (Leipzig, 1922), De acdrdo com esta interpretacio, a teoria dos idola de Ba-
Adler, Georg, Die Bedeutung der Ilusionen fiir Poltik und soziales
con pode ser encarada, até certo ponto, como precursora da
Leben (Iena, 1904).
Jankelevitch, “Du réle des idées dans Vévohition des sociétés”, concepcao moderna de ideologia. Os “fdolos” eram “fantasmas”
Revue philosophique, vol. 66, 1908, pdgs. 256 o segs. ou “preconcepgdes”, e, como sabemos, havia os fdolos da tribo,
Milliond, M., “La formation de Vidéal’, ibid., pigs. 138 e segs. da caverna, do mercado e do teatro. Todos eram fontes de
Dietrich, A., “Kritik der politischen Ideologien”, Archiv fiir Ges- érro, aleumas vézes derivados da propria natureza humana, ou-
chichte und Politik, 1923, 2s 2 individuos particulares. Também podem ser atribuidos
88 Inzotocia E Uropia InEoLocis E UTopra 89
4 sociedade ou a tradigao. Em qualquer caso, constituem obs- E extremamente prov4vel que tenha sido o trato cotidia-
téculos no caminho do conhecimento verdadeiro.3 Existe, com no com assuntos polfticos que, pela primeira vez, deu conscién-
certeza, alguma ligagdo entre o moderno térmo “ideologia” e 0 cia e senso critico ao homem face ao elemento ideoldgico de seu
térmo que Bacon utilizava, significando uma fonte de érto. pensamento. Durante a Renascenca, entre os concidadaos de
Ademais, a compreensao de que a sociedade e a tradicio podem Maquiavel, emergiu um névo addgio chamando a atengao para
tornar-se fontes de érro é uma antecipacio direta do ponto-de- uma observacio comum na época — que era a de que o pen-
-vista sociolégico. + Nao obstante, nao se pode afirmar que exis- samento do paldcio é uma coisa, e o da praca publica € outra.®
ta uma relac&o efetiva, que se pudesse acompanhar diretamente Isto era uma expressio do crescente gtau em que o publico
através da histéria do pensamento, ens esta cor cepcao e a ganhava acesso aos segredos da pol{tica. Podemos aqui obser-
concepcao moderna de ideologia. : vat o inicio do processo no decotrer do qual o que antes havia
sido apenas uma eclosio ocasional de suspeita e ceticismo, face
aos pronunciainentos publicos, evoluiu para uma procura me-
3 Eis aqui uma passagem caracteristie. do Netum Organum de tédica do elemento ideoldégico em todos éles. A diversidade de
Bacon, § 38. “Os {dolos e as noc6es falsas que jé proocuparam a :om- formas de pensamento entre os homens é ainda, neste estdgio,
preensio humana, « que nela estio profundamente enraizados, nig sd- atribuida a um fator que, sem exagerar o térmo indevidamente,
mente assaltam o espirito humano de tal form, que The dificulta o aces- poderia ser denominado sociolédgico. Maquiavel, em sua profun-
so, Mas mesmo Mando se consiga acesso novamente se antepiem e
da racionalidade, tomou como tarefa especffica relacionar as
nos perturbam na instauragin das cidncias, a menos que a humanidade,
estanda prevenida a sen respcito, se proteja com todo a cuidada pos-
variacées das opinides dos homens 4s variagdes corresponden-
sivel”, The Physical and Metaphysical Works of Lord Burton (ine. tes cm seus interésses. De acérdo com sua prescricdo de medi-
B
The Advancement of Learning and Novum Organum), Organizadi Q cina forte para téda subjetividade das partes interessadas
por Joseph Devey, pag. 389, GC. Bell and Sons (T.ondres, 1891). em uma controvérsia,® Maquiavel parecia estar explicitando e
4 “HA também {dolos formados pelo miituo relacionamento estabelecendo como regra geral do pensamento o que estava
e
pela seciedade da homem com op homem, a que chamamos idolos do implicito no addgio de seu tempo, \
merenada, devide an comércia ¢ A associneiq doy homens uny com os Parece haver uma lipacdo direta que déste ponto da orien-
outros; pois os homens conversam por meio da linguagem, mas as pa- taco intelectual do mundo ocidental conduz ao modo racional
lavras se formam segundo a vontade da generalidade, surgindo da for- e caleulado de pensamento caracterfstico ao periodo do Ilumi-
magig ma ¢ inepta de palavras uma formiddvel ¢‘strugio & mente.”
Bacon, op. cit. pag 390, § 43. Cf. também § 59, nismo. A psicologia de interésses parece nascer da mesma fon-
te. Uma das principais caracteristicas do método de andlise ra-
Sdbre “idolo da tradig&c” diz Bacon:
cional do comportamento humano, de que é exemplo a History
“A compreensio humana, quando se tenha apresentado uma_pro-
posigdo (soja pela admissio e crenga gerais, seja pelo prazer que pro- of England de Hume, eta a suposicio de que os homens eram
porciona), forca tudo o mais a She acrescentar um ndvo apoio e uma dados a “fingir’ 7 ¢ a enganar seus semelhantes. Encontra-se a
nova confirmacio: ec, existinda embora os mais abundantes e convin- mesma caracterfstica nos historiadores contemporaneos que ope-
centes clementos em contrario, ainda prefere au nao observé-los ou ram com a concepcao patticular de ideologia. Este modo de
desprezi-los ou se livrar déles e rejeité-los por qualquer distincSo, com pensamento se esforcard sempre, em concordancia com a psico-
um violento ¢ injusto preconccito, a sacrificar a autoridade de sua pri-
meira conclusio.” Op. cit., § 48, pag. 392.
Que nos encontremos aqui face a uma fonte de érro 6 0 que a se- 5 Machiavelli, Discors, vol. I, pag. 47, Citado por Meinecke,
guinte passagem evidencia: Die Idee der Staatsrdson (Munique e Berlim, 1925), pag. 40.
“A comprecnsig humana se assemelha 129 a uma luz céce, po 6 Ff Meinecke, ibid.
admite uma tintura de vontade e de paixdes que, em conseqiéncia,
feram seu proprio sistema, pois o homem sempre acredita mais pron-
7 Meusel, Fr, Edmund Burke und die franzdsische Revolution
tamente no \jue prifere.” Op, cit., § 49, pags. 393-4. (Berlim, 1913, pag. 102, nota 3,
Cf. também § 52.
90 IpEoLocia E Uropia IpEOLocia E UTOPIA 91
logia de interésses, por Iancar a diivida sobre a integridade do Enquanto as partes ronflitantes vivessem num mesmo mun-
adversério e denunciar seus motivos. Tal procedimento possui, do e tentassein representd-lo, ainda que ocupassem pdlos opos-
n&o obstante, um valor positivo ma medida em que estamos in- tos déste mundo, ou enquanto uma facc&o feudal combatesse
teressados, em um caso dado, em descobrir o significado au- contra outra, seria inconcebfvel tal destruigéo mutua mais pro-
téntico de uma afirmacdo que se oculta por trés de uma camu- funda. Esta profunda desintegracio da unidade intelectual sé
flagem de palavras. Esta tendéncia “desmistificadora” do pen- é possivel quando os valdres bdsicos dos grupos contendores
samento de nossos dias vem-se acentuando bastante,® muito constituem mundos 4 parte. A principio, no decorrer desta de-
embora em circulos mais amplos éste trago seja considerado in- sintegragio cada vez mais penetrante, a descrenca ingénua se
digno e desrespeitoso (e de fato a critica se verifica enquanto transforma em uma no¢io particular ¢ sistemdtica de ideologia,
a “desmistificacfo” seja um fim em si mesma), somos forcados que, entretanto, permanece no plano psicolégico. Mas, na se-
a tal posig&o intelectual em uma época de transi¢fo como a nos- qiiéncia do processo, ela se estende 4 esfera nooldgico-epistemo-
sa, que torna necessdério romper com muitas das tradicdes e for légicea. A burguesia ascendente, trazendo consigo um névo con-
mas antiquadas, junto de valéres, nao se contentava em lhe atribuir um lugar
circunscrito dentro da antiga ordem feudal. Ela representava
um névo “sistema econdémico” (no sentido de Sombart), acom-
3. DA CONCEPCAO PARTICULAR A CONCEPCKO panhado de um névo estilo de pensamento, que finalmente des-
TOTAL DE IDEOLOGIA locou os modos existentes de interpretar e explicar o mundo. A
mesma coisa parece verificar-se igualmente com o proletariado
E preciso lembrar que o desmascaramento que ocorre no de hoje em dia. Também aqui notamos um conflito entre duas
nivel psicoldgico nao deve ser confundido com o ceticismo mais visdes econdmicas divergentes, entre dois sistemas sociais e,
radical e com a andlise critica mais penetrante e destruidora que correspondentemente, entre dois estilos de pensamento,
se vetificam nos niveis ontoldgico e nooldgico. Mas nito se Quais foram as etapas na histéria das idéias que prepara-
pode separd-las completamente. As mesmas fércas histéricas ram o caminho para a concepcao total da idcologia? Certa-
que ocasionam continuas transformacSes em uma esfera atuam mente ela nao surgiu simplesmente da atitude de descrenga que
igualmente sdbre a outra. Na primeira, as ilusdes psicoldgicas
gradativamente deu origem 4 concepcio particular de ideologia.
s4o constantemente solapadas; na ultima, as formulacdes onto-
Etapas mais fundamentais tiveram de ser atingidas antes que
Iégica e Idgica surgidas de visdes do mundo e modos de pensa-
as numerosas tendéncias de pensamento, movimentando-se na
mento dados se dissolvem em um conflito entre as partes in-
mesma diregao geral, pudessem ser sintetizadas em uma con-
teressadas. Sdmente em um mundo em transformagao, em que
se estejam criando valéres novos fundamentais e destruindo os cepcio total de ideologia. A Filosofia desempenhou uma parte
antigos, pode o conflito intelectual chegar ao ponto em que os no processo, mas nao a Filosofia em um sentido estreito (como
antagonistas busquem aniquilar nZo sé as crencas e atitudes es- normalmente é concebida), como uma disciplina divorciada do
pecificas um do outro, mas igualmente os fundamentos intelec- contexto efetivo de vida. Seu papel foi antes o de intérprete
tuais sSbre os quais estas crengas e atitudes repousam. ultimo e fundamental do fluxo do mundo contemporaneo. Este
cosmo em fluxo deve, por sua vez, ser visto como umasérie de
conflitos que surgem da natureza da mente e de suas respostas
§ Carl Schmitt analisou muito bem éste modg de pensamentg con- a estrutura continuamente cambiante do mundo. Indicaremos
temporaneo caracteristico quando disse que estamos continuamente com aqui apenas os estdgios principais da emergéncia da concepgao
médo de nos desencaminhar. Em consequéncia nos encontramos per- total de ideologia nos nfveis noolégico e ontoldgico.
pétuamente em guarda contra os disfarces, as sublimagdes ¢ as refra-
gdes. Assinala que a palavra simulacra, aparecida na Hteratura politica © primeiro passo significante nesta direcZo consistiu no
do século XVII, pode ser tida como a precursora da atitude atual (Po- desenvolvimento de uma filosofia da consciéncia. A tese de
litische Romantik, 2.* ed, [Munique e Leipzig, 1925], p4g. 19) que a consciéncia seja uma unidade constituida por elementos
92 IpgoLocia & Uroria IpeoLocia & Uropta 93
coerentes levanta um problema de investigacio que, principal. decisivo — a saber, o de que esta unidade esté em um processo
mente na Alemanha, tem sido a base de monamentais tentati- de continua transformacio histérica e tende a uma constante
vas de andlise. A filosofia da consciéncia, no lugar de um mun- restauracao de seu equilfbrio em niveis sempre mais elevados,
do infinitamente variado e confuso, colocou uma organiza¢cao Durante o Iluminismo, o sujeito, enquanto portador da unida-
da experiéncia cuja unidade é garantida pela unidade do sujei- de de consciéncia, era visto como uma entidade totalmente
to que percebe. Isto nao implica que o sujeito meramente re- abstrata, supratemporal e supra-social: “‘a consciéncia em si”
flita o padréo estrutural do mundo externo, mas antes que, no Durante éste periodo, o Volksgeist, o “folk spirit’ vem a re-
decorrer de sua experiéncia com o mundo, elabore espontanea- presentar os elementos histdricamente diferenciados da cons-
mente os principios de organizagdo que o habilitam a compreen- ciéncia, que Hegel integra em um “espirito do mundo”. E
délo. Depois de demolida 4 unidade, ontplégica ,objetiva do evidente qua a crescente conctecio déste tipo de Filosofia re-
mundo, féz-se a tentativa de substitu{-la por uma' unidade im- sulta da preocupacdo mais imediata com as idéjas surgidas dd
posta pelo sujeito que percebe. Em lugar da unidade ontclé- interagdo social e da incorporacao de correntes histdrico-polf-
gica e medieval-ctista objetiva do mundo, emergiu a unidade ticas de pensamento ao dominio da Filosofia. Desde ent&o, no
subjetiva do sujeito absoluto do Huminismo — “a consciéncia entanto, as experiéncias da vida cotidiana nao mais s&o aceitas
em si”, por seu valor aparente, sendo meditadas em tédas as suas im-
Desde entdo, 0 mundo enquanto “mundo” sdmente existe plicagdes e referidas a seus pressupostos. Deve-se, contudo, no-
com referéncia § merte que conhece, ¢ a atividads mental do tar que a natureza histdricamente cambiante da mente foi des-
sujeito detezmina a forma pela qual o mundo aparece. Isto coberta nao tanto pela Filosofia, mas pela penetragéo da intui-
constitui, dz fato, a concepcio total embriondria de ideologia, cdo politica na vida cotidiana da época.
ainda que esteja, por enquanto, despida de suas implicacSes his- A reagio que se seguiu ao pensamento nio-histérico do
téricas e socioldgicas. perfodo da Revolugo Francesa revitalizou e deu ndvo impeto
Neste estdgio, concebe-se 0 mundo como uma unidade es- A perspectiva histérica. Em Ultima andlise, a transic#o do su-
trutural, e no mais como a pluralidade de acontecimentos es- jeito genérico, abstrato, unificador do mundo {a “consciéncia
parsos, tal como aparecia durante o perfodo intermediério, quan- em si”) para o sujeito mais concreto (o “folk spirit’ acids
do a ruptura da ordem objetiva parecia trazer o caos. Acha-se mente diferenciado) constituiu nfo tanto uma realizagio filo-
telacionado em sua integridade a um sujeito, mas, neste caso, sofica, mas a expresso de uma transformacéo na maneira* de
© sujeito nao é um individuo concreto. Antes se trata de uma se reagir ao mundo em todos os campos de experiéncia. Esta
ficticia “consciéncia em si”. Neste ponto-de-vista, particular. mudanca pode ser referida & revolugdo no sentimento popular
mente acentuado em Kant, o nivel nooldégico se diferencia ni- durante e apés as Guerras Napolednicas, quando realmente nas-
tidamente do psicolégico. Este é o primeiro estdgio na disso- ceu o sentimento de nacionalidade. O fato de se poder encon-
lugao de um dogmatismo ontoldégico que encarava ¢ undo como trar antecedentes mais remotos tanto para a perspectiva histé-
existindo independentemente de nés, de uma torma fixa e de- tica quanto para o Volksgeist nfo compromete a validade des-
finitiva. ta observacao. ®
Atinge-se o segundo estégio no d-senvolyvmento da con- A ultima e a mais importante etapa da criacio da concep-
cep¢io total de ideologia quando se vé na perspectiva histérica gf0 total de ideologia surgiu igualmente do processo histdérico-
a nogao total, mas supratemporal, de idcologia. Esta é prin.
cipalmente uma realizagao de Hegel e da escola histérica. Esta
Ultima, e Hegel em um grau ainda maior, partem da suposic¢ao ® Para posteriores referéncias, postulamos aqui que a Sociologia
de que o 1. :ndo é uma unidade e & sdmente concebivel com re- do Conhecimento, diversamente da hist6zia ortodoxa das idéias, nao
objetiva reconstituir as idéias até seus protétipos histéricos no passado
feréncia a um sujeito conhecedor. E neste ponto se acrescenta
remoto. Ser4 sempre possivel, a quem estiver inclinado a reconstituir
& concepcZ o que, para nds, constitui um elemento original motifs similares até suas primeiras origens, encontrar “precursores” para
94 IpbEoLocra © Uropra
IpEoLociA E UTOPIA 95
~social. Quando a “classe” tomou o lugar do “folk” ou da na- néo podem ser compreendidos pelo isolamento de seus elemen-
40, como portadora da consciéncia histdricamente em evolu- tos. Cada fato e cada acontecimento de um perfodo histérico
cao, aquela mesma tradigao tedrica, a que j4 nos referimos, absor- somente pode ser explicado em térmos de significado, e, por
veu a nocao que, entrementes, crescia através do processo social, seu turno, o significado se refere sempre a outro significado.
a saber — a de que a estrutura da sociedade e suas formasin. Assim, a concepcao da unidade e da interdependéncia dos sig-
telectuais correspondentes variam com as relagdes entre as clas- nificados de um periodo estd sempre subjacente a interpretagao
ses sociais. daquele perfodo. Em segundo lugar, éste sistema interdepen-
dente de significados varia tanto em cada uma de suas partes
; Assim como em uma época anterior, o “folk spirit” his- como -em sua totalidade de um periodo histdérico para outro.
toricamente diferenciado tomou o lugar da “consciéncia em si”, Assim, a reinterpretagaéo da continua e coerente mudanga de
assim, agora, o conceito de Volksgeist, ainda mais inclusivo, é significados torna-se a principal preocupacaio de nossas Ciéncias
substituido pelo conceito de consciéncia de classe, ou mais cor. Histéricas modernas. Embora tenha provavelmente feito mais
retamente ideologia de classe. Dessa forma, o desenvolvimen- do que ninguém, ao ‘enfatizar a necessidade de integragao dos
to destas idéias segue um curso dtplice: de um lado, existe um varios clementos do significado de uma dada experiéncia his-
processo de sintese e de integragdo, pelo qual o conceito de térica, Hegel procedeu de uma maneira especulativa, ao passo
consciéncia vem a fornecer um centro unitério em um que atingimos um estdgio de desenvolvimento que nos possibi-
mundo
infinitamente variavel; do outro, existe uma tentativa lita traduzir esta nogio construtiva, que nos foi dada pelos fi-
de tor-
nar a concep¢ao unitéria mais maledvel ¢ {lexivel, tentativa por Idsofas, em pesquisa empfrica,
demais rigida ¢ esquematicamente formulada no decorrer
do O que tem importancia para nés é que, se bem que as
processo de sintese.
separamos cm nossa andlise, as duas correntes que levaram res-
oO resultado desta tendéncia diéplice foi que, ao invés pectivamente As concepgdes total ¢ particular de idcologia, e¢
de
uma
uma |unidade ficticia de uma “consciéncia em si’ intemporal e que tinham aproximadamente a mesma origem histérica, come-
imutdvel ( que jamais foi efetivamente demonstrada), obtive- cam agora a se aproximar mais estreitamente uma da outra. A
mos umla concepgao que varia de acérdo com periodos histdri- concep¢io particular de ideologia se liga 4 total. Isto se torna
cos, nagdes e classes sociais. No decotrer desta transigd claro para o observador da seguinte maneira: a principio, um
o, con-
tinuamos a nos apegar a unidade de consciéncia, mas adversdrio, representando uma determinada posigao politico-so-
esta uni-
dade é agora dinamica e em constante processo de transfo
rma. cial, era acusado de falsificagdo, consciente ou inconsciente.
gao. Isto responde pelo fato de que, apesar do abando Agora, a critica é mais penetrante pelo fato de que, desacredita-
no da
concep¢do estdtica de consciéncia, o crescente corpo da a estrutura total de sua consciéncia, néo mais o considera-
de mate
riais descobertos pela pesquisa histérica nao perman mos capaz de pensar corretamente. Esta simples observacHo
ece uma
massa incoerente e descontinua de acontecimentos isolados, significa, a luz de uma andlise estrutural do pensamento, que
Esta
Ultima concepcio de consciéncia proporciona uma_pe nas anteriores tentativas de descobrir as fontes de érro, ao se
rspectiva
mais adequada para a compreensao da realidade histdric indicar as raizes pessoais de propensao intelectual, desvenda-
a.
; Duas conseqliéncias decotrem desta concepeo de va-se a distor¢io somente no plano psicolégico. A aniquilacio
conscién-
cla: primeira, percebemos claramente que os assunt é agora mais penetrante visto que a ofensiva se dd no nivel
os humanos
nooldégico, solapando-se a valitade das teorias do adversdrio pela
demonstracg&o de que so apenas uma funcdo da situacao social
qualquer idéia. Nada se disse que ja no se houvesse geral prevalec-nte. Neste ponto se atinge um névo e, talvez,
dity antes (Nul-
lum est iam dictum, quod non sit dictum prius). 9 mais decistvo estagio da histéria dos modos de pensamento.
O tema especifico
de nosso estudo consiste em observar como e sob que forma
a vida in- Contudo, torna-se diffcil lidar com @ste desenvolvimento, sem
telectual em um dado momento histérico se
relaciona com as féreas
politicas ¢ sociais existentes. CE. meu trabalho, “Das konser antes analisar algumas de suas implicagdes fundamentais, A
vative Den- concepgio total de idcologia levanta um problema, freqtiente-
ken”, loc. cit., pig. 103, nota 57.
96 Iprotocia © Uropia Inzotocia E Uropis 97
mente vislumbrado anteriormente, mas que, pela primeira vez, De importancia ainda maior é a mudanga que passaremos
adquire significagdo mais ampla, vale dizer, a problema de como a discutir. Desde que o problema se liberou de seu contexto
pode vir surgir algo como a “‘falsa consciéncia” (falsches puramente religioso, nao sé mudaram os métodos de compro-
Bewusstsein) — o problema da mente totalmente destorcida que vacio, de demonstracao da falsidade ou da verdade de uma no-
falsifica tudo 0 que se exponha ao sev alcance. O entendimen- Go, como também se transformou profundamente inclusive a
to de que nosso horizonte total, distinto de seus detalhes, pode escala de valéres pela qual aferimos a verdade e a falsidade, a
set destorcido empresta 4 concepcSo total de ideologia uma sig- realidade e a nao-realidade. Quando o profeta duvidava da au- |
nificacio e uma relevancia especiais para a compreensdo de nos- tenticidade de sua visio era porque se sentia abandonado por
sa vida social. Déste reconhecimento nasce a profunda inquie- Deus, e sua inquietagao se baseava em uma fonte transcendental
taco que sentimos em nossa presente situacdo intelectual, mas de referéncia. Quando, ao contrario, nds, hoje em dia, nos tor-
déle também nasce tudo queela tem de f¢cundoie estimulante. namos céticos sébte nossas idéias, é porque tememos que elas
no satisfacam a algum critério mais secular.
Para determinar a natureza exata do névo critério de rea-
4. OBJETIVIDADE E SUBJETIVISMO lidade que substituiu o critério transcendental, precisamos sub-
meter o significado da palavra “ideologia”, também sob éste
A suspeita Ge gue pudesse existir algo como a “falsa cons- aspecto, a uma andlise histérica mais precisa, Se, no decorrer
ciéncia”, téda a sua cognicao sendo necessariamente ertada, e de desta andlise, formos levados a tratar da linguagem da vida co-
que a mentira habita a alma, remonta a antiguidade. E de ori- tidiana, isto indica simplesmente que a histéria do pensamento
gem religiosa e chegou até nds como parte de nossa antiga he- nao estd confinada apenas aos livros, mas obtém seu significado
tanga intelectual. Aparece como problema sempre que a au- principal das experiéncias da vida cotidiana, e mesmo as prin-
tenticidade de uma inspiracdéo ou visio de um profeta fésse cipais mudancas nas avaliagdes de esferas diferentes de realida-
questionada quer por seu povo, quer pelo prdprio profeta. 1° de, tais como aparecem na Filosofia, podem ser eventualmente
Tudo indica que encontramos aqui uma ilustragao de que referidas aos valéres cambiantes do mundo cotidiano.
uma concepcao antiga se encontre subjacente a un 1 nocdo epis- A prépria palayra “ideologia” nZo possufa de inicio ne-
temoldgica moderna, existindo a tentagio de se dizer que a es- nhuma significagio ontolégica; nao inclufa nenhuma decisio
séncia da observacdo ja se achava presente na formulacdo anti- quanto ao valor das esferas diferentes de realidade, uma vez que
ga; o que ha de névo é€ apenas sua forma. Mas também aqui, originalmente denotava apenas a teoria das idéias. Os idedlo-
como em vutros pontos, devemos sustentar, em oposig#o aos gos, 1! etam, como se sabe, os membros de um grupo Filosofico
que tentam derivar tudo do passado, que a forma moderna ado-
tada pela idéia € muito mais importante do que sua origem.
Enquanto, antigamente, a suspeita de que pudesse existir algo
V1 CE, Rivavet, Les idéologues, essai sur [histoire des idées et
des théories scentifiques, philosophiques, réligieuses en France depuis
como a “falsa consciéncia” era apenas uma constatacio de fatos 1789 (Paris Alcan, 1891).
observados, hoje em dia, trabalhando com métodos analiticos Destutt de Tracy, fundador da escola mencionada acima, define
claramente definidos, fomos capazes de realizar uma ofensiva a viéncia das idéins como se segue: “A ciéncia pode ser chamada ideo-
mais fundamental aos problemas da consciéncia. O que antes logia, caso sc considere apenas seu objeto; gramatica geral, caso se con-
era um meto andtema tradicional tr.nsformouse em nossos sidere apenas scus métodos; ¢ légica, caso se considere apenas seu obje-
dias em um procedimento metdédico baseado em demonstracio tivo, Qualque: que seja o nome, contém necessariamente trés subdivi-
cientifica. ses, JA que nfo se pode tratar adequadamente de uma sem tratar
igualmente das duas outras, Ideologia me parece ser o térmo genérico
porque a ciéncia das idéias compreende tanto a de sua expresso quan-
to a de sua derivacio.” Les éléments de Videologie, 1.* ed. (Paris,
saber se os espiritos sfo de Deus, pois muitos falsos profetas andam 1801), citado segundo a 3% ed., a dnica que se encontra A minha dis-
por éste mundo,” I Joo, IV, 1. posicfo (Paris, 1817), pag. 4, nota.
98 IpgoLocia E Uroria IpEOLOGIA E UToria 99
na Franga que, seguindo a tradicao de Condillac, rejeitavam a alguma original; contudo, o fato de que esta questao viesse a
metafisica e buscavam basear as Ciéncias Culturais em funda- surgir na area de discussio publica (e nado apenas em circulos
mentos antropoldgicos e psicoldgicos. académicos isolados) parece indicay importante moditicagio. A
A concepgio moderna de ideologia nasceu quando Napolcio, nova conotacgio adquirida pela palavra ideologia, ao ser redefi-
achando que éste grupo de fildsofos se opunha a suas ambicdes nida pelo politico em térmos de suas experiéncias, parece evi-
imperialistas, os rotulou desdenhosamente de “‘idedlogos’”’. A par- denciar mudanga decisiva na formulagao do problema da na-
tir dai, a palavra tomou um significado pejorativo que, assim tureza da realidade. Se, por conseguinte, quisermos fazer fren-
como a palavra “doutrindrio”, reteve até o dia de hoje. En- te as demandas decorrentes da necessidade de andlise do pensa-
tretanto, investigadas as implicag3es teéricas déste desdém, ire- mento moderno, devemos cuidar que uma histéria socioldégica
mos descobrir que a atitude depreciativa existente é, no fundo, das idéias se preocupe com o pensamento real da sociedade, ¢
de natureza epistemolégica e ontoldgica. O que se deprecia é nao apenas com os sistemas de iddéias pretensamente auto-sufi-
a validade do pensamento do adversd4rio porque € considerado cientes ¢ que se autoperpetuam, elaborados numa rigida tradi-
irrealistico. Mas, se indagamos, irrealista com relagao a qué? — cao académica. Se, antigamente, o conhecimento erréneo era
a tesposta seria, irrealista com relacio 4 pratica, irrealista quando aferido pelo recurso a sangdo divina, que revelava infalivelmen-
contrastada com as questées em pauta na arena politica, A te o verdadeiro e o real, ou pela contemplagdo pura em que se
partir de entdo, todo pensamento rotulado de ‘“ideologia” é supunha descobrir as idéias verdadeiras, atualmente vai-se bus-
considerado fitil quando vem a prdtica, devendo-se buscar na car o critério de realidade, em primeiro lugar, em uma ontolo-
atividade prdtica o tinico acesso a realidade digno de confianga. gia derivada da experiéncia politica. A histéria do conceito de
Quando aferido por padrdes de conduta prdética, o mero pensa- ideologia de Napoledo ao marxismo, a despcito de suas modifi-
mento ou a reflexdo sébre uma dada situacdo tornam-se tri- cagdes em contetido, retém o mesmo critério politico de rea-
viais. Claro estd4, portanto, que o névo significado do térmo lidade. Este exemplo histérico evidencia, ao mesmo tempo, que
ideclogia traz a marca da posig&o e do ponto-de-vista daqueles © ponto-de-vista pragmdtico j4 estava implicito na acusacdo lan-
que o cunharam, a saber, os homens de acao politica. A nova gada por Napoledo_a seus adversdrios. De fato, podemos dizer
palavra sanciona a experiéncia especifica do politico com a rea- que, para o homem moderno, o piagmatismo se tornou, por
lidade, 12. ¢ empresta sustentacao A irracionalidade prdtica, que assim dizer, em alguns aspectos, o modo de ver apropriado e
tem tAo pouco apréco pelo pensamento como um snstrumento inevitdvel, ¢ que, neste caso, a Filosofia simplesmente adotou éste
para captar a realidade. modo de ver ¢ a partir déle féz decorrer conclusdo Idgica.
Durante o século XIX, o térmo ideologia, utilizado neste Chamamos a atengao para a nuance de significado dada por
sentido, passou a ter aceitacio corrente. Isto significa que o Napole&o a palavra ideologia a fim de mostrar, claramente, que
senso de realidade do politico passou a preceder e a deslocar o discurso comum contém freqiientes vézes mais filosofia e é de
os modos escoldsticos de pensamento e de vida, Dai em diante maior significagao, para a posterior colocagéo de problemas, do
o problema implicito no térmo ideologia — 0 que é verdadeira- que as controvérsias académicas que tendem a se tornar estéreis
mente real? — jamais desapareceu do horizonte. por cleixarem de tomar conhecimento do mundo externo aos
Mas esta transicdo precisa ser corretamente entendida. A muros académicos. 14
pergunta relativa ao que constitui a realidade nao é de forma
13 A respeito da estrutura e das peculiaridades do pensamento
escolastico e, neste caso, de todos os tipos de pensamento benefician-
12 Partindo das conclusdes da Parte III seria possivel definir com do-se de uma posigio monopolista, cf. o artigo do autor apresentado
maior exatidio, de acérdo com a posig¢éo social que ocupe, o tipo de em Zurique ao Sexto Congresso da Deutsch Gesellschaft fur Soziologie,
politico, cuja concepgio do mundo e cuja ontologia estamos aqui dis- “Die Bedeutung der Konkurrenz im Gebiete des Geistigen”, Verhandlun-
cutindo, pois nem todo politico se acha préso a esta ontologia irra- gen des sechsten deutschen Soziologentages in Zurich (J. C. B. Mohr,
cional. Cf. pags, 159 e segs. Tubingen, 1929)
100 IpzoLocia u Uroria IpgoLocia 2 Uropia 101
J4 nos adiantamos um passo em nossa andlise; mentos do pensamento mais relevantes para a realidade. Em
em condigdes de suscitar outro aspecto déste problema, referin- conseqiiéncia, nfo é de admirar que a concepcSo de ideologia
do-nos ao exemplo hd pouco citado, em outre sentido. No con- seja geralmente encarada como integrando, e até identificada com,
flito com seus criticos, Napoledo era capaz de, como foi visto, o movimento proletdrio marxista,
em tazao de sua posigio dominante, desacreditd-los, indicando Mas no decurso de desenvolvimentos sociais e intelectuais
a natureza ideoldgica de seu pensamento. Nos estdgios mais re- mais recentes éste estdgio j4 foi ultrapassado. Nao é mais um
centes de seu desenvolvimento a palavra ideologia é usada pelo privilégio exclusivo dos pensadores socialistas referir o pensa-
proletariado como uma arma contra o grupe dominante. Em mento burgués aos fundamentos ideoldgicos, desacreditando-o
suma, uma intuigfo tao revcladora séb.c a Le do pensarnento, dessa forma. Atualmente, grupos com quaisquer pontos-de-yis-
como a que oferece a nogio de ideologia, hio pole permaneter th usam esta ‘arma contra todos os demais. Como resultadb,
7 . ad :
por muito tempo comoprivilégio exclusiva ¢d . “classe Mics estamos ingressando em uma nova época do desenvolvimento in-
é precisamente esta expansdo e difusio da avordagem .decidgica telectual e social.
que levam, finalmente, a um ponto em que no é mais nocsfvel Na Alemanha, os primeiros passos nesta direcdo foram
para um ponto-de-vista e para uma inteipretacio refutar os de- dados por Max Weber, Sombart e Troeltsch — para se mencio-
mais por serem ideoldégicos, sem ter que en{rentar essa acusacio. nar apenas os mais proeminentes representantes déste movimen-
Atingimos assim, inadvertidamente, um n6vo est4gio mets luid- to. A verdade das palavras de Max Weber se torna cada vez
gico na andlise do pensamento em geral. mais clara A medida que o tempo passa: “A concepcao materia-
Houve de fato épocas em que utilizar ¢ andlise ideol+gica lista da histéria nao pode ser comparada a um fiacre em que
para desmascarar as motivagdes ocultas de seus aaversarios pa- se pudesse entrar e sair & vontade, pois uma vez ingressando
recia uma prerrogativa do proletariado militantc. O publico es- nem mesmo os tevoluciondrios estariam livres para deixd-lo.” 15
quecia rapidamente a origem histdrica do térmo que acabamos A anédlise do pensamento em térmos de ideologia é por demais
de indicar. Mas nao totalmente semjustificacdo, pois apesar de ampla em sua aplicagdo e uma arma importante demais para se
reconhecida anteriormente esta abordagem critica ao pensamen- tornar 0 monopdlio permanente de uma das partes, qualquer
to foi pela primeira vez enfatizada ¢ desc voly.da Sdica- que esta seja. Nada impedia que os opositores do marxismo se
mente pelo marxismo. Foi a teoria marxista que por primeiro apossassem da arma e a utilizassem contra o ptdéprio marxismo,
concretizou a fusio das concepgSes particular e total de ideolo-
gia. Foi esta teoria a que primeiro concedeu a devida énfase ao
papel da posicdo ¢ dos interésses de classe no pensamento. De- 5. A PASSAGEM DA TEORIA DA IDEOLOGIA A
vido, em grande parte, ao fato de se hz er originado no hecelia- SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO
nismo, 0 mataismo eta capaz de ultrapassar o nivel de andlise
meramente psicolégico e de colocar o problema nim quadrofi- © capitulo anterior delineou um processo de que se pode
losdfico mais amplo. A nogio de uma “‘talsa WUasuéncia’ #4 encontrar numerosos exemplos na histdéria intelectual e social.
adquiriu assim um névo significado. No desenvolvimento de um ponto-de-vista, enquanto uma das
O pensamento marxista atribufa 4 prdtica politica, junta- partes desempenha o papel pioneito as demais precisam neces-
mente com a interpretagao econdmica dos acontecimentos, uma satiamente fazer uso déste ponto-de-vista, a fim de correspon-
significacgfo t&o decisiva que estas duas se tornaram os critérios der & vantagem de seu adversdrio na disputa competitiva. Tal
definitivos para separar o que nao passasse de ideologia dos ele- é 0 caso com a nogao de ideologia. O marxismo nada mais féz
que descobrir a chave pata o entendimento e um modo de pen-
samento de cuja elaboracdo progressiva participou, entretanto, Enquanto nao sc tiver pdésto em questo a prdpria posigao,
todo o século XIX. A formulacdo acabada desta idéia nao é encarando-a como absoluta, ao passo que se interpretam as idéias
realizacdo exclusiva de um nico grupo nem se acha vinculada dos opositores como meras funcdes da posigao social que ocupam,
com exclusividade a nenhuma posic&o intelectual e social. O ainda nao se terad dado o decisivo passo adiante. E verdade,
papel desempenhado pelo maxismo merece um elevado pédsto claro esta, que neste caso se estard usando a concepsao total
na histéria, nfo devendo ser minimizado. Contudo, o processo de ideologia, uma vez que s¢ esta interessado em analisar a es-
pelo qual a abordagem ideolégica vem-se estendendo ao uso ge- trutura da mente do opositor em sua totalidade, e nao em des-
ral desenrola-se ante nossos préprios olhos, estando por conse- tacar meramente umas poucas proposicoes isoladas. Mas des-
guinte sujeito 4 observacéo empirica. de gue, neste exemplo, se esté apenas intercssado em uma
anilise sociolégica das idéias do opositor, jamais se ultrapassa
E interessante observar que, como resultado da expansio uma formulagio da tcoria altamente restritiva ou que eu gos-
do conceito ideolégico, um nédvo modo de compreensio vem taria de chamar de restrita. Em contraste com esta formula-
gradativamente se impondo. Este névo ponto de apoio intelec- cio restrita, a forma genérica 7 da concepcao total de ideolo-
tual constitui no apenas uma mudanca de grau de um fendme- gia serf usada pelo analista quando éste tiver a coragem de sub-
no j4 em atuagio. Temos aqui um exemplo do processo real- meter mio sd 0 ponto-de-vista do adversdiio, mas todos os pon-
mente dialético, com freqiiéncia mal interpretado para finali- tos-de-vista, inclusive o seu, A andlise ideoldgica.
dades académicas — pois aqui vemos, de fato, uma questiio de No presente estigio de nossa entendimento dificilmente €
diferenca de grau se tornar uma quest&o de diferenca de natu- possivel cvitar esta formulacio genérica da concep¢io total de
teza. Pois to logo tédas as partes estejam aptas a analisar as ideologia, de acdrdo com a qual o pensamento de todas as par-
idéias de seus opositores em térmos ideolégicos, todos os ele- tes em tddas as épocas ¢ de cardter ideoldgico. Praticamente
mentos de significado estarfo qualitativamente transformados, nfo existe uma sé posic¢do intelectual, e o marxismo nao cons-
adquirindo a palavra ideclogia um significado totalmente névo. titul uma excecio a esta regra, que nao se tenha transformado
No decorrer disso, todos os fatéres com que lidamos em nossa durante a histéria e¢ que, mesmo atualmente, nfo apareca sob
andlise histérica do significado do térmo estario, corresponden- muitas formas. Também o ..arxismo assumiu varias aparéncias
temente, também mudados. Os problemas da ‘‘falsa conscién- diversas. No deveria ser muito dificil para um marxista reco-
cia” e da natureza da realidade assumem a partir de entéo uma nhecer a bar. social delas.
significagao diversa. Este ponto-de-vista nos forca em definiti- Com . emergéncia da formulacio genérica da concepcio
vo a teconhecer que nossos axiomas, nossa ontologia e nossa total de ideologia, a tecria simples da ideologia evolui para a
epistemologia sofreram uma profunda transformacao. Vamo- Sociologia do Conhecimento. O que anteriormente constitufa
-nos limitar, no que se segue, a indicar as variacdes de signifi- o arsenal '§ intelectual de uma das partes se transformou em
cado por que passou o conceito de ideologia no decorrer desta
transformacio.
17 Acrescentamos aqui outra distingio a nossa disting&o prece-
Jé delineamos a evoluc&o da concepc%o particular para a
dente de “particular ¢ total”, que é a de “restrita e genénea”, Enquan-
total. Esta tendéncia vem-se intensificando constantemente. Ao to a primeira distingao diz respeito 4 questéo de saber se as idéias iso-
invés de se contentar em demonstrar que o adversdrio sofre de ladas ou se a mentalidade inteira devam ser consideradas ideolégicas,
ilusdes ou distorcdes em um plano psicoldgico ou vivencial, a e se a situagie social condiciona somente ay manifestagdes psicolégicas
tendéncia agora é submeter sua estrutura total de consciéncia de conceitos ou se penetra alé nos significados nooldgicos, na distingado
€ pensamento a uma andlise socioldgica profunda. 16 entre restrita e genérica a questo decisiva & saber se o pensamento
de todos os grupos (inclusive 9 nosso) ou apenas a de nossos adver-
sdrios & reconhecida como sendo socialmente determinado.
16 Isto n&o implica que a concepeSo particular de ideologia seja 18 Cf. a expressig marxista; “forjar ay armas itelectuais do pro-
inaplicdvel quanto a certos aspectos dos conflitos da vida cotidiana,: letariado”.
104 Ipronocra B Ureria IpgoLocia E UTOPIA 105
um método de pesquisa da histéria intelectual e soci il em geral, mento, ¢ que modelava seu conhecimento a partir de protdétipos
A principio, um dado grupo social cescobre a “‘determina- estéticos semelhantes ao que se poderia exemplificar pela pro-
g4o situacional” (Seinsgebundenheit) das idéias de seus oposito- posisfio 2 XK 2 = 4. Este velho tipo de pensamento, que enca-
res. A seguir, elabora-se o reconhecimento déste fato em um rava exemplos como éste como o modélo de todo o pensamento,
principio inclusivo, de acdrdo com o qual o pensamento de cada seria necessirjamente levado A rejeigdo de tddas as formas de
grupo é visto como emergindo de suas condigdes de vida. 19 conhecimento que dependessem do ponto-de-vista subjetivo ¢
Assim, torna-se a tarefa da histéria sociolégica do pensamento da situacio social do conhecedor e que, por isso, eram mera-
analisar, sem considerar tendéncias par.iddrias, todos os faté- mente “relativos”. © relativismo, portanto, deve sua existén-
res da situacdo social efetivamente existente que possam influen- cia A discrepancia entre esta introspeccéo recentemente atingi-
ciar o pensamento. Esta histéria das iddias socioldgicamente da nos piocessos cfetivos de pensamento e uma teoria do co-
otientada destina-se a dotar os homens modernos de uma visao nhecimento que até entio nfo tinha levado em conta esta nova
retrospectiva de todo o processo histérico. jntrospecgdo. '
; Clato estd, ent&o, que, neste caso, a concepsio de ideolo- Se desejamos cmancipar-nos déste relativismo, devemus
gia assume um névo significado. Partindo daste significado, sur-
procurar entender, com o ausilio da Sociologia do Conheci-
gem duas abordagens alternativas pata a investigacao ideoldgi-
mento, que nao é a Epistemologia em um sentido absoluto, mas,
ca. A primeira se limita a indicar, em todas as ocasides, as in-
antes, um determinado tpo historicamente transitério de Epis-
ter-relacdcs entre o ponto-de-vista intelectual sustentado e€ a po-
temologia que s¢ acha em conflito com o tipo de pensamento
sigfo social ocupada. Isto implica a rentincia a qualquer in- i
orientado para a situagio social, De fato. a Epistemologia estd
tengfio de expor ou desmascarar as visdes com que se esta em lo intimamente imersa no processo social quanto a totalidade
desacdrdo.
de nosso pensamento, ¢ progrediré na medida em que possa
Ao tentar expor as visdes de outro, o individuo esforca-se dominar os problemas que surgem da estrutura cambiante do
por fazer sua prdpria visio parecer infalivel ¢ absoluta, o que pensamento.
€ um procedimento a ser totalmente evitado caso se esteja fa-
zendo uma investigagaéo especificamente nao-valorativa. A se- Uma teoria moderna do conhecimento que considere o ca-
gunda abordagem possivel, no entanto, é se combinar esta and- réter relacional como distinto do caréter meramente telativo de
lise ndo-valorativa com uma epistemologia definida, Do Angu- todo o conhecimento histérico deve partir da suposicéo de que
r
lo desta segunda abordagem, existem duas solucdes distintas e existem esferas de pensamento em que seja impossivel concebe
uma verdade absoluta, independente dos valéres e da posigao
separadas para o problema referente ao que consiste um conhe-
cimento fidedigno — uma das solugSes pode ser denominada do sujeito, e sem relagdes com 0 contexto social, Nem mesmo
relacionismo, ¢ a outra relativisino. um deus poderia formulas uma proposigao sdbre questdes his-
téticas semelhante a2 X 2 = 4, pois o que é inteligivel na his-
___O telativismo é um produto do procedimento histérico-so- téria somente pode ser formulado com referéncia a problemas
cioldgico moderno que se bascia no reconhecimento de que todo @ construgdes conceptuais que emergem no fluxo da experiéncia
9 pensamento histérico se acha ligado 4 posic&o concreta na histérica.
vida do pensador (Standortsgebundenbeit des Denkers). Mas
o telativismo combina esta insergio histdrico-sociolégica com Desde que reconhegamos que todo o conhecimento histé-
ado
uma teoria do conhecimento antiga que desconhecia ainda o in- tico € um conhecimento relacional, e sd pode ser formul
tamo-n os mais
tercutso entre as condicSes de existéncia e os modos de pensa- com referéncia A posicéio do observador, defron
uma vez com a tatcfa de discriminar o que neste conhecimento
seja verdadeiro ou falso, Surge entio a questdo: que funda-
ida-
19 Com o térmo “determinagio situacional do conhecimento”, mento social vis-d-vrs da histéria oferece a melhor oportun
procuro diferenciar o contetdo propagandistico do contetido socioldgi- de se atingir um étimo de verdad e? Em todo caso, a éste
de
de se descobr ir a
co cientifico no conceit ideoldgico. grau, ter-se-A que desistir da va esperanga
106 Ipzotocia £ Uropta IpEo-octa E UTOPIA 107
verdade sob uma forma que independa de um conjunto de sig- uma visio de conjunto dos problemas, caso o observacor ou 0
nificados social e histdricamente determinado. © problema nao pensador se ache confinado a um dado lugar na socicdade. Por
esté de forma alguma resolvido quando tivermos chegado a exemplo, como j4& se assinalou, nao foi possivel a i's‘a socia-
esta concluséo, mas pelo menos estaremos em melhor posicdo lista de ideologia evoluir por si mesma até a Sociolo,. do Co
para constatar os problemas efetivos que surgem, de forma me- nhecimento. Parece inerente ao processo histdrico o fato de
nos resttita, A seguir, distinguiremes dois tipos de abordagem que a estreiteza e as limitacSes que restringem um ponto-de-vista
Al investibacio ideoldgica que surgem no nivel da‘concepcio to- tendam a der dorrigidas pelo! entrethoque com os pontos-de-vista
tal genérica de ideologia: primeiro, a abordagem caracterizada opostos. A tarefa de um estudo da ideologia, que tenta ser
pela liberdade de jufzos de valor, e, segundo, a abordagem nor- livre de jufzos de valor, consiste em compreendera lin tagio de
mativa orientada epistemoldégica e metafisicamente. Por enquan- cada ponto-de-vista individual e o intercurso entre «- as atitu-
to, nao abordaremos a questdo referente a se estarcmos, na tl- des distintas no processo social total. Aqui nos dcfrontamos
tima abordagem, lidando com o relativismo ou com o relacio- com um tema inesgotdvel. O problema é mostrar como, em
nismo. téda a histéria do pensamento, certos suportes intelectuais
A concepgio nio-valorativa genérica total de ideologia pode acham-se vinculados a certas formas de experiéncia, «i ‘lineando
ser encontrada, originalmente, nas investigacSes histéricas em a intima interagao entre as duas no curso da mudanga . telectual
gue, provisdriamenté, e visando a simplificacio do problema, ¢ sacial No dominio da moral, por exemplo, & preci.» descre-
n&o se pronunciem juizos quanto a corresfo das idéias a screm ver iio apenas as continuas mudancas da conduta hensina, mas
tratadas. Esta abordagem se limita a descobrir as relacSes entre também as normas em constante alteragio pelas quis se julga
determinadas estruturas mentais ¢ as situagdes de vida em que esta conduta. Captaremos mais profundamente o problema se
se dao. Devemos indagar constantemente como pode aconte- estivermos aptos a demonstrar que mesmo a moralidade e a
cer que um dado tipo de situacao social dé origem a uma dada ética so condicionadas por certas situagdes definidas, c que con-
interpretagéo. Dessa forma o elemento ideoldgico do pensamen- ceitos fndamentais tails coma dever, transgressio e pecado nao
to humano, visto a éste nivel, acha-se sempre ligado & situacho existiram sempre, mas surgiram em correlacio com situagdes
de vida do pensador. De acércdo com esta visio, 0 pensamento sociais distintas.?" A vis&o filoséfica prevalecente, que caute-
humano surge e opera néo em um védcuo social, mas em um losamente admite que o conteido da conduta tenha s:do deter-
melo social definido. minado histdricamente, mas que ao mesmo tempo insiste na
manutencio de formas etern’s de valor e de um conjunto for-
Nao precisamos encarar como fonte de érro o fato de todo mal de categorias, nfo é mais sustentavel. O fato de se haver
© pensamento se achar enraizado desta forma Assim como o efetuado e re onhecido « distingdo entre o contetido ¢ as formas
individuo, participando de um complexo de relacdes sociais vi- de conduta constitui uma importante concessao 4 abordagem his-
tais com outros homens, goza, por isso, da oportunidade de
térico-sociolégica, que torna cada vez mais dificil q'> os valé-
obter mais preciso e penetranic conhecimento de seus compa-
res contemporaneos sejam tidos por absolutos
oheiros, assim um dado ponto-de-vista e conjunto de corceitos,
por se acharem ligados e emergirem de uma determinada reali- Atingido ésse reconhecimento, torna-se igualmei te neces-
dade social, oferecem pelo contato intimo com esta realidade sdrio relembrar que o fato de se falar a respeito da vida cultu-
maior oportunidade de revelar seu significado. (© exemplo an- ral e social em térmos de valér constitui uma atitude peculiar
teriormente citado demonstrou que o ponto-de-vista proletdrio- ao nosso tempo. A nocdo de “valor” surgiu ¢ se difendiu atra-
-socialista se encontrava em uma posicio particularmente favo- vés da Economia, onde a escolha consciente entre .- vres era 0
ravel para descobrir os elementos ideolégicos do pensamento de
seus adversdrios.) Entretanto, o fato de que o pensamento es-
20° Cf, Weber, Max, Wirtschaft und Gesellschaft, Grundriss der
teja ligado a situagio de vida e social em que surge cria tanto Sozialukonomik, parle IIT, pig. 794, que Urata das condigc:s sociais re-
problemas quanto vantagens. Claro que é impossivel obter-se quendas para a génese da moral,
108 Ipeorocia E Uropra IpEoLocia E Uropia 109
ponto de partida da teoria. Esta idéia de valor foi mais tarde cas, se desintegra ou se transforma, sob o impacto da mudanga
transferida para as esferas ética, estética e religiosa, o que oca- social.
sionou uma distorgfo na descrigao do comportamento real do A pesquisa na Sociologia do Conhecimento promete alcan-
ser humano em tais esferas. Nada podia ser mais errado do gar um estagio de exatidfo, quando nao porque, em nenhuma
que descrever a atitude real do individuo ao contemplar uma outra esfera do dominio da cultura, a interdependéncia nas mo-
obra de arte, bastante irrefletidamente, ou ao agir de acdrdo dificagdes de significado e de énfase se mostram tao claramen-
com padrées éticos néle inculcados desde a infancia, em térmos te evidentes e passiveis de determinacZo téo precisa quanto o
de uma escolha consciente entre valéres. proprio pensamento. Pois o pensamento é indice particular
mente sensivel da mudanca cultural e social. A variagZo no
A nocgio que sustenta que téda a vida cultural constitui
significado das palavras e as multiplas conotagdes de cada con-
uma orientagéo para valétes objetivos néo passa de mais uma
ceito refletem polaridades de esquemas de vida mbtuamente
ilustragio de uma tipicamente moderna desatencio racionalista
antagénicos, implicitos nestas nuances de significado. 2*
pelos mecanismos irracionais bdsicos que governam a relacio do
homem com seu mundo. Longe de ser permanentemente valida, Entretanto, em nenhuma outta parte no dominio da vida
a interpretagao da cultura em térmos de valdres objetivos cons- social, encontraremos de modo tio nitidamente discernivel a in-
titui na verdade uma caracteristica peculiar ao pensamento de ierdependéncia e sensibilidade para mudanga e uma énfase va-
nossos dias. Mas apesar de que se conceda, por enquanto, que ridvel quanto ao significado das palavras. A palavra e o signi-
esta concepcao tenha algum mérito, a existéncia de determina- ficado a ela ligado constituem verdadeiramente umarealidade co-
das esferas formais de valéres e sua estrutura especifica ssmen- letiva. A mais leve wance no sistema total de pensamento re-
te poderia ser entendida se referida as situagdes concretas para percute na palavra individual e nos matizes de significado que
as quais tenham relevancia e nas quais sejam validas.2! Nao comporta. A palavra nos liga ao todo da histéria passada e, a0
existe, portanto, nenhuma norma que possa pretender uma va- mesmo tempo, espelha a totalidade do presente. Quando, ao
lidade formal ¢ que, na qualidade de clemento formal universal nos comunicarmos com os outros, buscamos um nivel comum
¢ constante, pudesse ser abstraida de seu conteddo histdrica- de entendimento, a palayra pode ser usada pata aplainar as di-
‘ferengas individuais de significado. Quando necessdrio, porém,
mente cambiante.
a palavra pode-se tornar um instrumento para enfatizar as di-
Chegamos atualmente ao ponto em que podemos obsetvar ferencas de sentido ¢ as experiéncias singulares de cada indivi-
com clareza que existem diferencas nos modos de pensamento, duo. Pode entéo servir de meio para detectar as aquisig6es no-
n#o apenas em perfodos histéricos diferentes, mas também em vas € originais que se produzem no decorrer da histéria da
culturas diferentes. Vai-se tornando progressivamente claro, cultura, icrescentando, assim, valdres anteriormente impercepti-
para nds, que nao apenas o contetido do pensamento se modifi- veis A escala da experiéncia humana. Em tédas estas investiga-
ca, mas também sua estrutura categdrica. S6é muito recentemen- Ges serd utilizada a concepsao total e genérica de ideologia em
te tornou-se possivel investigar a hipdtese de que, no passado seu sentido nio-valorativo.
assim como no presente, os modos de pensamento dominantes
féssem suplantados por novas categorias, quando a base social
do grupo, de que estas formas de pensamento sio caracteristi-
ae Por esta razéo, a andlise sociolégica dos significados viré a
desempenhar um papel importante nos estudos que se seguem. Pode-
21 Cf. Lask, E., Die Logik der Plulosophic und die Kategorien- mos suger aqui que esta anélise poderia ser desenvolvida numa sin-
Ichre (Tiibingen, 1911). Lask usa o térino hingelten para explicar que tomatologia baseada no princfpio de que, no dominio social, se pu-
as formas categéricas nfo siio \alidas em si, mas apenas com referén- dermos aprender a observar cuidadosamente, chegaremos a ver que cada
cia a seu contetido sempre cambiante, que inevitavelmente reage a elemento da situacdo analisada contém e lanca uma luz sdébre o con-
sua natureza, junto.
110 IpEoLocia E Utupia IDEULOGIA E UTOPIA 111
Esta primeira penetragio nfo-valorativa na histéria nio nificagio mais amplo e, finalmente, A estrutura da realidade his-
conduz inevitivelmente ao telativismo, mas antes ao relacionis- térica. Se, ao invés de admitirmos plenamente esta intuigao
mo. © conhecimento, visto & luz da concepgio total de ideolo- e suas implicagdes, nés as desconsiderdssemos, estariamos de-
gia, nfo constitui de forma alguma uma experiéncia ilusdria, pois sistindo de uma avancada posicio de realizagZo intelectual pe-
que a ideologia em seu conceito relacional nao se identifica nosamente conquistada.
absolutamente com a iluséo. O conhecimento, surgindo de nos- Tornou-se, assim, exttemamente questiondvel, no correr
sa experiéncia das situagdes efetivas de vida, embora nao abso-
da vida, se constitui um problema intelectual realmente valido
luto, é, nfo obstante, conhecimento. As normas surgidas de
procurar descobrir absolutos ou idéias fixas e imutdveis. Talvez
tais situagdes de vida se dao em um vacuo social, mas sao efe
se tratasse de tarefa intelectual mais valiosa aprender a pensar
tivas como sangdes reais da conduta. elacionismo signilica Em
dindmica e telacionalmente, mais do que estaticamente.
apenas que todos os elementos de significado em uma situa-
nosso estado intelectual e social contemporaneo nao é chocante
ga0 mantém referéncia um ao outro e derivam sua significagaéo
descobrir que as pessoas que pretendem ter descoberto um abso-
desta reciproca inter-relagao em um dado quadro de pensamen- luto sfo geralmente as mesmas que também pretendem ser su-
to., Tal sistema de signiticados somente é possivel e vdlido em Encontrar pessoas em nossos dias tentando
periores 4s demais.
um dado tipo de existéncia histérica, ao qual fornece por um disseminar pelo mundo e recomendando aos outros algum elixir
certo tempo sua expresséo apropriada, Quando a situag&o so-
do absoluto, que apregoam haver descoberto, nao passa de um
cial muda, o sistema de normas a que havia anteriormente dado ‘indicio da perda e da certeza intelectual ¢ moral, e da necessi-
origem deixa de estar cm harmonia com ela. O mesmo afasta- dade delas, sentidas por amplos setores da populacao, incapazes
mento se opera com referéncia ao conhecimento e a perspectiva
de encarar a vida de frente, Sera possivelmente verdade que,
histérica. ‘Lodo conhecimento esti orientado para algum obje- ,para continuar a viver ¢ agir em um mundo semelhante ao nos-
to e é influenciado em sua aproximagdo pela natureza do objeto so, seja vitalmente necessdrio procurar uma saida para essa in-
a que tende. Mas o modo de aproximacfo ao objcto a ser co- certeza frente a alternativas miltiplas; e, em conseqtiéncia, as
nhecido depende da natureza do conhecedor. I 9 se verifica, pessoas podem ser levadas a abracar algum objetive imediato
antes de mais nada, quanto a profundidade qualitativa de nosso como se fdsse absoluto, pelo que esperam fazer que seus pro-
conhecimento (especialmente quedo estamos buscando alcan- blemas parecamconcretos e reais. Mas nao é inicialmente o ho-
gar uma ‘“‘compreensao” de alguma coisa em que o grau de pe- mem de acao que busca o absoluto e o imutdvel, mas antes
netracio a ser obtido pressupde um parentesco mental ou inte- aquéle que deseja induzit os demais a se apegar ao Status quo
lectual entre aquéle que compreende e o que é compreendido). por se sentir confortével e satisfeito com as condigdes em que
Verifica-se, em segundo lugar, com relagio A possibilidade de estio. Os que estio satisfeitos com a ordem de coisas existente
formular intelectualmente nosso conhecimento, principalmente estario provavelmente tendentes a erigir a situacdo casual do
desde que, para que se-transmude em conhecimento, cada per- mundo como absoluta e eterna, de modo a possuir algo de estd-
cepgao deve e é ordenada e¢ organizada em categorias. Entre- vel em que se apegar e a minimizar os acasos da vida. Entre-
tanto, a extensdo em que podemos organizar ¢ exprimir nossa tanto, isto nao pode ser feito sem que se recorra a todo tipo de
experiéncia em tais formas conceptuais depende, por seu turno, mitos e nogdes romanticas. Defrontamo-nos, assim, com a ten
dos quadros de referéncia que se encontrem a disposic#o em um déncia curiosamente espantosa do pensamento moderno, em
dado momento histérico. Os conceitos que possuimos e 0 uni- que o absoluto que, em outra época, constitula um meio de se
verso de discurso em que nos movemos, bem como com as di- entrar em comunhao com o divino, tenha passado a ser agora
regdes em que tendem a se elaborar, dependem amplamente da um instrumento usado por aquéles que déle se beneficiam para
situagao histdrico-social dos membros do grupo intelectualmen- destorcer, perverter e ocultar a significagao do presente.
te ativos e tesponsdveis. ‘Tcmos, entio, como tema déste estudo
ndo-valorativo da ideclogia, o relacionamento de todo conhe-
cimento parcial e sets elementos componentes ao corpo desig-
114 IbEOLOGIA = Utopia IpEoLocia E UTOPIA 115
2 ee
mente irdo alarmat-se com éste reconbecimento os que séo dos bdsicos de pensamento, e de que, enquanto a particulari-
présa dos preconceitos positivistas da geracdo passada, e que dade do quadro tedrico convencional permanece inquestionada,
ainda acreditam na possibilidade de ser compleramente eman- continuaremos na penosa lida com um modo estdtico de pensa-
cipados em seu pensamento das pressuposicdes éticas, metafisi- mento, inadequado ao presente estdgio de desenvolvimento in-
telectual e histérico. Portanto, o que se precisa é de um alerta
24 Naturalmente, o tipo de juizos de valor e da ontologia que
empregamos, em parte inconsciente e em parte deliheradamente, re- diante uma andlise idcolégica, nao estaremos ao mesmo tempo erguen-
presenta um juizo de nivel inteiramente diferente, sendy uma ontologia do uma nova construcio, ¢ se a mancira pela qual colocamos em ques-
bastante diferente da ontologia de que falivamos ao criticar a tendén- tho erengas antigas nflo se acha inconscientemente envolvida na nova
~cla ao absolutismo que tenta reconstruir (no espirito da escola roman- decisio. Como certa vez dizia o sébio, “Frequentemente, quando al-
tica alem&) os escombros da histéria, A ontologia que implicita ¢ guém vem a mim em busca de canselho, fico sabendo, 4 medida que
inevitivelmente constitui a base de nossas agocs, Mesmo quando o escuto, de que moda @le se aconselha a si préprio.”
niio
desejamos acreditar nisto, nfo é algo a que se chegue por um
anseio 22 Um positivismo um tanta mais critica era mais modesto ©
yomantico e que impomos arbitrariamente 4 realidade, Marca o ho
rizonte dentro do qual se situa o nosso mundo de realidade @ que n&o estava disposto a admitir somenle um “minimo de pressupostos indis-
pode ser afastado simplesmente com o rétulo de ideologia. Neste pon- pensdveis”. Poderiamos levantar a questéo se éste “minimo de pres-
to vislumbramos uma “solucdo” para 9 nosso problema, muito embora supostos indispensiveis” nfin acabaria por equivaler a irredutivel onto-
logia eiementar contida em nossas condigdes de existéncia.
em nenhuma outra parte déste livro procuremos oferecer uma solugao.
A exposicéo dos elementos ideoldgicos ¢ utépicos do pensamento sé 26 Se o conhecimento empirico nfo fésse precedido por uma
tem eficiéncia em destruir as idéias com as qual, ng nos identifique- ontologia seria inteiramente inconcebivel, pois sdmente podemos ex-
mos muito intimamente, Pode-se entio perguntar sc, em determinadas trair significados objetivados de uma dada realidade na medida em
circunstincias, enquanto destrufmos a validade de certas id’.a0 -ne- que somos capazcs de fazer perguntas inteligentes ¢ reveladoras,
116 TpzoLocia & Utopia
IpgoLocia E Uropia 117
continuo em reconhecer que cada ponto-de-vista é particular a
uma determinada situagdo definida, ¢ descob:i-se, pela andlise, efetiva apenas imperfeitamente reflete. Os que sfio versados em
em que consiste esta particularidade. Uma admissa- clara e ex- histéria intelectual reconheceréo que tal ponto-de-vista € direta-
plicita das suposigées metafisicas subjaccntes ao conhecimento mente derivado do misticismo. Os misticos jé sustentaram que
empirico, e que o tornam possivel, ‘ard mais pelo esclarecimen- existem verdades e valdres além do tempo e do espaco, e que o
to e progresso da pesquisa do que uma negativa verbal da exis- tempo e€ 0 espaco, e tudo o que dentro déles ocorra, nada mais
téncia de tais pressuposicSes, acompanhada de sua admissdo sio do que aparéncias ilusdrias, quando compatados com a tea-
sub-repticia quase clandestina. lidade da experiancia extatica do mistico. Mas ma sua época os
misticos nfo eram capazes de demonstrar a verdade de suas afir-
magdes. O curso didrio dos acontecimentos eta aceito como uma
questo de fato, estdvel e concreta, e o incidente inusitado era
8. Juizos ONTOLOGICOS IMPLiCiros NA CONCEPCRKO
encarado como a vontade arbitrdtia de Deus. © tradicionalismo
NAO-VALORATIVA DI IDEOLOGIA tinha supremacia num mundo que, apesar de animado pelos acon-
Empreendemos esta incursdo nos campos da ontologia 27 ¢ tecimentos, admitia sOmente uma forma, estdvel, de interpre-
do positivismo porque nos pareceu cssencial chegar a um enten- talos. Além do mais, 0 tradicionalismo nao aceitava as teve-
dimento correto dus movimentos de pensamento nesta fase mais lacSes do misticismo cm sua forma pura; antes as interpretava a
recenie da histdéria intelectual. O que descievemos como uma luz de sua relacio com o sobrenatural, uma vez que esta expe-
transigao imperceptivel da abordagem nao-valorativa A valorati- riéncia extdtica era considerada uma comunhao com Deus. A
va nado caracteriza apenas o nosso pensamento pessoal: ¢ tipico interdependéncia geral de todos os elementos de significado e
de todo o desenvolvimento do pensamenty convemporaneo Nos sua rclatividade histdérica se tornou, entrementes, tao claramen-
sa conclusao, resultante desta andlise, é que a investigacdo his- te reconhecida que quase passou a constituir uma verdade de
senso comum, peralmente aceita sem contestacao. Oo que em
térica ce socioldgica déste perfoda foi originalmente dominada
pelo ponto-de-vista nao-valorativo, de onde evoluvram duas orien. uma €poca constitufa o conhecimento esotérico de uns poucos
tagdes metaffsicas, significativas e alternativas. A escolha entre iniciados pode ser hoje em dia demonstrado a todo o munda
estas duas alternativas resolve-se, na presente situacho, da se- metddicamente. Tao popular se tornou esta abordagem que a
guinte forma: por um lado, é possfvel accitar como um fato o interpretacfo sociolégica, nao diversamente da interprctacao his-
cardter transitério do evento histérico quando se tem a conviccio térica, sera utilizada em certas circunstanclas para negat a reali-
de que o que realmente importa nao reside na propria mudaaga dade da experiéncia quotidiana e da histéria por aquéles que
nem nos fatos que constituem esta mudanca. Segundo &ste pon- véem a realidade como existente fora da histéria, no dominio da
to-de-vista, tudo o que seja temporal, tude o que seja social, experiéncia mistica e extatica.
todos os mitos coletivos, e todo o contetido das significagdes e Por outro lado, hé um modoalternativo de abordagem que
das interpretacdes habitualmente atribufdos aos acontecimentos pode igualmente conduzir & pesquisa histérica e sociolégica.
histéricos, pode ser ignorado, porque se pressente que, para além Surge da nocio de que as mudancas nas relagdes entre os acon-
da abundancia e da multiplicidade de detalhes de que emerge a tecimentos e as idéias nao constituem o tesultado do designio
seqiiéncia histérica ordenada, residem as verdades uiltimas ¢ per atbitrario e voluntdrio, mas que estas relagSes, tanto em sua si-
manentes que transcendem a histéria ¢ para as quais o detathe multaneidade quanto em sua sucéssfo histérica, devem ser en-
histérico é irrelevante. Em conseqiiéncia, pensa-se existir uma caradas como se dando em uma determinada regularidade neces-
fonte intuitiva e inspirada da histéria que a prépria histéria sdtia que. apesar de nfo ser evidente na superficie, existe e pode
ser compreendida.
Desde que compreendamos o significado interno da histdé-
27 Cf. do autor: “Die Strukturanalyse der Erkenntnistheorie”,
Ergénzungsband der Kant-Studien, N° 57 (Berlim, 1922), pag. 37,
tia e percebamos que nenhum de seus estdgios é permanente e
n° 1; pag. 52, n° 1. absoluto, mas pelo contrério que a natureza do processo histé-
rico apresenta um problema n4o-resolvido e desafiante, nao nos
123 ToEOLOGIA £ Uropia Ipeotocia E UToPIa 119
contentaremos por muito tempo com o desinterésse orgulhoso -vista que deprecia a importdncia da realidade histérica uma real
do mistico pela histéria como “mera histéria”, Pode-se admi- compreensato da histéria. Um exame mais sério dos fatos ird
tir que a vida humana sempre seja algo mais do que se descobriu mostrar que, apesar de nenhuma cristalizagio definitiva emer-
ser em qualquer perfodo histérico ou em qualquer conjunto de gir do processo histérico, algo de profunda significacio trans-
condig6es sociais dado, e, mesmo ‘que depois de se haver levado pira no dominio do histérico. O préprio fato de cada aconte-
éstes fatéres em conta, restard ainda um dominio espiritual e cimento ¢ cada elemento significativo da histéria estar ligado a
eterno além da histéria, jamais completamente subordinado a uma posicdo situacional, espacial e temporal, e de que, por con-
propria histéria e que confere uma significacio A histéria e a seguinte, 0 que acontece uma vez ndo pode acontecer sempre,
experiéncia social. Néao devemos concluir disto que a funcio o fato de os acontecimentos e os significados na histéria nao
da histéria consista em fornecer um registro do que o homem serem reversiveis, 2 suvia, a circunstancia de nao encontrar-
nfo é, mas que, antes, devemos consider4-la a matriz pela qual mos na histéria situagdes absolutas, indicam que a histéria sd-
se €xpressa a natureza essencial do homem. A ascensdo dos mente € muda e sem significado para aquéle que nio espera
séres humanos de meras peas da histdéria & estatura de homens dela aprender coisa alguma, ¢ que, no caso da histéria, mais do
decorre e se torna inteligivel no curso da vatiacio nas normas, que em qualquer outra disciplina, 0 ponto-de-vista que encara
formas e obtas da humanidade, no curso da mudanca nas ins- a histéria como “rrzra bistérie”, como o fazem os mftticos, esta
tituigdes e objetivos coletivos, no curso de seus pressupostos € fadado a esterilidade.
pontos-de-vista em transformacSo, em cujos térmos cada sujeito O estudo da histéria intelectual pode e deve ser realizado
histérico-social toma consciéncia de si mesmo e faz uma aprecia- de tal forma que veré, na seqliéncia e na coexisténcia de fend-
gaéo de seu passado. Existe, é claro, a disposicio de cada vez menos, mais do que meras relagdes acidentais, e buscard desco-
mais se encarar todos éstes fendmenos como sintomas e de se brir, na totalidade do complexo histérico, o papel, a importan-
integré-los em um sistema, cuja unidade e significagdo torna-se cla e 0 sipnificado de cada elemento componente, E com éste
nossa tarefa compreender. E mesmo que se conceda que 4 ex- tipo de abordagem socioldgica da histéria que nos identifica-
periéncia mistica constitui o nico meio adequado de se revelar mos, Se esta penctracio fér progressivamente efetuada em de-
ao homem sua natureza ultima, ainda seria preciso admitir-se que talhes concretos, ao invés de se permitir permanecer em uma
o elemento inefével almejado pelos misticos deve necessitiamen- base puramente especulativa, e se cada avanco fr realizado com
te manter alguma relacZo com a realidade histérica e social. Em base em material concreto acessivel, alcancaremos finalmente uma
Ultima andlise, os fatéres que moldam a realidade histdrica e so- disciplina que colocaré 4 nossa disposigdo uma técnica sociold-
cial determinam também, de alguma forma, o préprio destino
gica para diagnosticar a cultura de uma época. Procuramo-nos
do homem, Talvez nao seja possivel que o elemento extatico aproximar déste objetivo nos capitulos anteriores que tentavam
da experiéncia humana, que na natureza do evento jamais se mostrar o valor da concepcdo de ideologia para a andlise da si-
tevela ou se expressa diretamente, e cujo significado jamais po- tuacdo intelectual contemporanea. Ao analisar os diferentes ti-
detia set plenamente comunicado, possa ser descoberto através pos de ideologia, nao pretendiamos simplesmente alinhar casos
dos vestigios que deixa na senda da histéria, dessa forma se diferentes de significado do térmo, mas objectivavamos pelo
revelando para nds. contrério apresentar, na seqiiéncia de seus significados cambian-
Este ponto-de-vista, que sem diiwida se baseia em uma ati- tes, um corte transversal da situagao intelectual e social total de
tude particular face 4 realidade histérica e social, revela tanto as nossos dias. Um tal método de diagnosticar uma época, embo-
possibilidades quanto os limites a ela inerentes no que concer- ra possa iniciar-se ndo-valorativamente, nao permanecerd dessa
ne 4 compreensio da histéria e da vida social. Devido a seu forma por longo tempo. Seremos eventualmente forcados a as-
desprézo pela histéria, uma visio mistica, que considera a his- sumir uma posicio valorativa. A passagem a um ponto-de-vista
tétia a partir de um fundamento em um outro mundo, corre valorativo é exigida desde o inicio pelo fato de a histéria en-
9 risco de nfo se aperceber de quaisquer das importantes licdes quanto histéria ser ininteligivel a menos que se enfatize alguns
que a histéria oferece. Nao se pode esperar de um ponto-de- de seus aspectos em contraste com outros. Esta selecdo e énfase
Tozotocta & UToria 121
120 IpEoLociA E Utopia
de determinados aspectos da totalidade histérica podem ser en- Em conseqiténcia, em nosso ponto-de-vista, uma atitude
caradas como o primeiro passo na diresio que, em Ultima ané- ética nao seria valida se estivesse orientada para normas com as
lise, conduz a um procedimento valorativo ¢ a juizos ontoldgicos. quais a acéo, em um dado ambiente histérico, ainda que com
as melhotes intencdes, ndo pudesse concordar. Seria entdo in-
vélida quando nZo se pudesse mais conceber a ago nfo Etica-
9. O PROBLEMA DA FALSA CONSCIENCIA mente aceita do individuo como devida a sua transgtessdo pes-
soal, devendo-se antes atribuila A compulsio de um conjunto
Através do processo dialético da histéria ocorre inevita- de axiomas morais de bases erradas. A interpretagdo moral de
velmente a gradativa passagem da concepgao de ideologia njo- uma de nossas préprias acdes é invdlida quando, por férga dos
-valorativa, total ¢ genérica & concepcao valorativa (cf. anterior- modos de pensamento e concepcdes da vida tradicionais, nao
mente). A valoracéo a que agora aludimos, entretanto, difere permita a adaptacdo da acko e do pensamento a uma situacao
bastante da que encaramos e descrevemos anteriormente. Nao
nova e cambiante e, afinal, obscureca e entrave tealmente éste
mais aceitamos os valéres de um dado perfodo como absolutos, ajustamento e esta transformagio do homem. Uma teoria serd
e j& no podemos, daqui por diante, desconhecer a compreensao
portanto errada se, em uma dada situacdo pratica, usar concei-
de que as normas e os valéres se achem histdrica e socialmente tos ¢ categorias que, utilizados, impediriam o homem de se
determinados. A énfase ontoldgica se transfere agora para outro adaptar aquele estdgio histérico. Normas, modos de pensamen-
conjunto de problemas. Sua finalidade ser4 a de distinguir o
to e teorias antiquados e inaplicdveis tendem a degenerar em
verdadeiro do nio-verdadeiro, 0 auténtico do espirio dentre
ideologias, cuja func&o consiste em ocultar o teal significado da
as normas, modos de pensamento e padrées de comportamento
conduta, a0 invés de reveld-lo. Nos pardgrafos seguintes cita-
existentes lado a lado em um dado periodo histérico, O perigo
mos uns poucos exemplos caracteristicos dos mais importantes
da ‘“‘falsa consciéncia” n@o estd, em nossos dias, no fato de esta
tipos de pensamento que acabamos de descrever.
nao poder captar uma realidade absoluta imutavel, mas, a ites,
no de obstruir a compreensao de uma realidade que é 0 resulta- A histéria do tabu levantado contra a cobranca de juros de
do da constante reorganizacéo dos processos mentais que com- empréstimos ?* pode servir como exemplo da evolucio de uma
poem os mundos em gue vivemos, Torna-se portanto compreen- ética antiga para uma ideologia. O regulamento de que o em-
sivel porque, impelidos pelos processos dialéticos do pensamen- préstimo se efetuasse sem juros sdmente poderia ser pdsto em
to, seja necessério concenttarmos com maior intensidade nossa pratica em uma sociedade que se baseasse econdmica e social-
atengiio sébre a tarefa de determinar quais, de todas as idéias mente em relacées de intimidade e boa vizinhanga. Neste mun-
em curso, sao as realmente vdlidas cm uma dada situacio. A do social, o “empréstimo sem juros” € um costume que impde
luz dos problemas com que nos defrontamos na atual crise do observancia sem dificuldade, porque constitui uma forma de com-
pensamento, vai-sc encontrar a questo da ‘‘falsa consciéncia” portamento que corresponde fundamentalmente 4 estrututa so-
em um ndvo contexto. A nociio da “falsa consciéncia’ j4 apare- cial. Surgindo em um mundo derelagdes de intimidade e boa
cera em uma de suas mais modernas formas quando, deixando vizinhanea, éste preceito foi assimilado e formalizado pela Igre-
de se referir aos fatéres religiosos transcendentais, transferiu ja em seu sistema ético, Quanto mais, porém, mudava a real
sua procura do critério da realidade para o campo da pratica e, estrutura da sociedade, tanto mais éste preceito ético assumia
em especial, para a da pratica politica, de uma maneira que evo- um carater ideolégico ¢ se tornava incapaz de aceitacao pratica.
cava O pragmatismo. Mas em oposicio 4 sua formulacdo mo- Sua arbitrariedade e irrealidade se tornaram ainda mais eviden-
derna, faltalhe ainda um sentido do histérico. Ainda se en- tes quando, no petiodo do capitalismo ascendente, tendo muda-
caravam o pensamento e a existéncia como pdélos fixos ¢ sepa-
rados, mantendo uma relacdo estética um coin o outro em um
universo imutdvel. Sdmente agora ¢ que o névo sentido his- 28 Para a documentacio histérica déste caso, cf. Max Weber,
térico comeca a ter penetragao e que se pode conceber um con- Wirtschaft und Gesellschaft. Grondriss der Sozialékonomik, Parte 1,
ceito dinamico de ideologia e realidade. pags, 801 e segs.
122 $+ SIA gc UL its Ipecrocia © Uroprs 123
do sua func&o, poderia ser usado como uma arma nas maos da Esta concepgio de ideologia (o conceito de utopia sera tra-
Igreja contra a emergente férca econdmica do capitalismo, No tado na Parte IV) ® pode ser caracterizada como valorativa e
decurso da emergéncia do capitalismo, a natureza ideoldgica des- dinamica. Valorativa porque pressupde determinados juizos con-
ta norma, que se exprimia no fato de que, quando muito ela cernentes a realidade das idéias e das estruturas de consciéncia,
era contornada, mas jamais obedecida, tornou-se t&o patente que e dindmica porque tais jufzos so sempre medides por uma rea-
até a Igreja a abandonou. lidade em constante fluxo. *}
Como exemplos da “falsa consciéncia”, assumindo a for- Embora estas distingSes possam parecer 4 primeira vista
ma de uma interpretacZo incorreta de si mesmo e seu papel, bastante complicadas, acreditamos nao serem nada artificiais,
podemoscitar aquéles casos em que as pessoas tentam encobrir porque nada mais sio do que uma formulacdo precisa de impli-
suas relagSes ‘“‘reais’ consigo mesmas € com o mundo, e falseiam cacées j4 contidas na linguagem cotidiana de nosso mundo mo-
para si mesmas os fatos bdsicos da existéncia humana, deifican- derno e uma tentativa explicita de enquadrd-las logicamente.
do-os, romantizando-os ou idealizando-os, recorrendo, em suma, Esta concepcéo de ideologia (e de utopia) sustenta que,
ao artificio de fugirem de si mesmas e do mundo, dando mar- para além das fontes de érro comumente reconhecidas, devemos
gem a falsas interpretacdes da experiéncia. Temos, portanto, um admitir igualmente os efeitos de uma estrutura mental deforma-
caso de distorg%0 ideolégica quando tentamos resolver conflitos da. Reconhece o fato de que a “realidade” que nao consegui-
e ansiedades recorrendo a absolutos, se bem que j4 nao é mais mos compreender pode ser uma realidade dinamica; e de que,
possivel viver de acérdo com astes. ‘Tal se dd quando criamos na mesma época histérica ¢ na mesma sociedade, possam existir
“mitos”, adoramos ‘a grandeza em si”, invocamos submissio varios tipos deformados de estrutura mental interna, uns por
a “ddeais”, ao passo que em nossa conduta efetiva seguimos ou- ainda nfo haverem chegado ao presente, outros por ja se en-
tros interésses, que tentamos mascarar simulando uma retidao contrarem além do presente. Em qualquer dos casos, entretan-
inconsciente, que € por demais transparente. Encontramos, fi- to, a realidade a ser compreendida se acha deformada e dissimu-
nalmente, um exemplo do terceiro tipo de distorcéo ideoldgica lada, pois esta concepcao da ideologia e da utopia trata de uma
quando esta ideologia como uma forma de conhecimento niio ¢ realidade que se desenroa sdmente na prdtica efetiva. Em todo
mais adequada para a compreensio da mundo atual. O que caso, tédas as suposicdes contidas na concep¢do valorativa e di-
poderfamos exemplificar com o proprietério de terras, cujos bens namica de ideologia repousam sébre experiéncias que, no mé-
j& se tivessem tornado uma emprésa capitalista, mas que ainda ximo, poderiam ser entendidas de uma maneira diferente da
tenta explicar suas relagSes com os seus lavradores ¢ sua pré- aqui desenvolvida, mas que em nenhuma hipétese poderiam ser
deixadas 4 margem.
pria funcSo na emprésa por meio de categorias remanescentes da
otdem patriarcal. Se tomarmos uma visdéo de conjunto de todos
éstes casos individuais, vemos a nocdo de “falsa consciancia”
assumindo um névo significado. Visto déste ponto-de-vista, 0
conhecimento é destorcido e ideolégico quando deixa de levar
em conta as novas realidades ao se aplicar uma situacio, e quan-
Esperamos demonstrar, ao tratarmos da mentalidade ut6pica,
do tenta ocultd-las ao refleti-las com categorias impréprias. 29 que a visio utépica, que transcende o presente e se orienta para o
futuro, néo constitui um mero caso negativo da perspectiva ideoldégica,
que oculta o presente procurando compreendé-lo em térmos do passado.
29 Uma pereepe&io pode ser errénea ou inadequada a situagio,
por estar mais avangada com relagdo a esta, bem como por ser dema- 31 Esta concepgio de ideologia somente 6 concebivel no nivel
siadamente antiquada. Investigaremos esta questio com maior preci- do tipo genérico e total de ideologia, constituindo o segundo tipo va-
sio na Parte IV, em que tratamos da mentalidade utépica. Por en- lorativo de ideologia que distinguimos anteriormente do primeira con-
quanto basta observar que estas formas de percepcio podem também ceito, ou conceito néo-valorativo, Cf, pags, 105 e segs; pag. 103, nota
antecipar-se 4 situagao, bem como se limitar a segui-la, 17; pag. 114, nota 24; pags. 119 e segs., da Parte Il.
IpgoLocra E UToPia 125
124 IpEoLocia E Uropia
especulativo da imagi-
realidade nado passasse de mero produto
a medida que nos
10. A PROCURA DA REALIDADE ATRAVES DA ANALISE nacio, poderfamos facilmente ignoré-lo. Mas, amente a
€ exat
DA IDEOLOGIA E DA UTOPIA adiantamos, torna-se cada vez mais evidente que uz a multi-
prod
multiplicidade das concepgdes de realidade que
s de pens amen to, ¢ que cada juizo on-
A tentativa de escapar as deformacdes ideoldgicas e utdpicas plicidade de nossos modo
a mais extensas
constitui, em Ultima andlise, a procura da realidade. Estas duas tolégico que fagamos conduz inevitavelmente onto-
concepgdes fornecem-nos uma base para um ceticismo firme, e conseqiiéncias. Sc examinarmos os varlos t1pOs de juizos
apresentam, come-
podem ser utilizadas positivamente para evitar as armadilhas légicos com que os diferentes grupos se nos um mun-
em
a que 0 nosso pensamento nos poderia levat. LEspecificamente, camos a suspeitar que cada grupo parece mover-se
podem ser usadas para combater a tendéncla a separarmos, em
nossa vida intelectual, o pensamento do mundo da realidade, a conflitantes, cadaum
diante de uma multiplicidade de pontos-de-vista
dissimular a realidade ou a exceder seus limites. O pensamen- de absolut a, embora , como tivem os oportuni age
déles a requerer valida o particu lar, sendo
to deveria conter nem mais nem menos do que a realidade em de demonstrar, estejam relacionados a uma posica
cujo meio opera. Assim como a verdadeira beleza de um estilo ados exclus ivamen te a esta posigi o a que esto relacionaoe S&
adequ
e pontos-de-¥ ta ore
literdrio forte consiste em exprimir exatamente o que se pre- mente apos haver assimilado tédas as motivagSes atual msao p
ndem por nossa
tende — em comunicar nem de mais, nem de menos — assim ciais, cujas contradigdes internas respo
de chegar a uma
o elemento valido de nosso conhecimento se determina mais Mtica ¢ social, estard o investigador em condigdes Se 0 investigar, a0
adequada a nossa atual situac ao de vida.
pela aproxiiagao do que pelo afastamento da situacio efetiva posig&io
definitiva, optar por incor
invés de assumir de imediato uma posicao
a ser compreendida. contr adité ria conflitante, seu pensa-
porar A sua visio cada corrente
Ao considerar as nocdes de ideologia e de utopia, a ques- rd flexive l e dialéti co, ao invés de rigido e dogms co.
mento resulta to de queexistam. mui-
tao da natureza da realidade entra novamente em cena. Ambos Esta elasticidade conceptual e 0 franco reconh ecimen
liaveis niio deverao, entrctantes
os conceitos contém o imperativo de que cada idéia deva ser tas contradigSes até aqui ainda inconci , oediedes
grande freqiiéncia nha pratica
julgada por sua congruéncia com a tealidade. Contudo, enquan- apesar de que isto ocorra com
Na verdade, a descoberta de con dices
to isso, mesmo a nossa concepsSo de realidade foi revista e pos- a visio do investigador.
constituir um esting -
ainda nfo solucionadas dever4, pelo contrario, , comevee
ta em questao. Todos os grupos e classes conflitantes da socie- situag &o requer
ao tipo de pensamento que a atual 0 jetivo ee er tee
dade buscam esta realidade em seus pensamentos e em seus atos, de indica r anteri orment e, temos por
oportunidade & os
na vida intelec
nao sendo por conseguinte de estranhar que esta paresa ser di- © que exista de ambiguo e de questiondvel contrél e, busea ndo i
e do
ferente pata cada um déles.82 Se o problema da natureza da sos dias ao nivel da consciéncia desperta freqie ntemen te bel os
os elemen tos engano sos
esta finalidade assinalar
procedimento com estas oe
e dissimulados em nosso pensamento, Um co que deve rejeitar
em um relaci onismo dindmi
Com relacio A diferenciag&o de ontologia de acérdo com as racteristicas resulta s ge jamasistema
efetua do atraye
posigdes sociais, cf. meu trabalho “Das konservative Denken”, loc. cit., qualquer sistema fechado, ja que foi
icos, cujas limi acesFie
parte Il. Cf. ainda Eppstein, P., “Dic Fragestcllung nach der Wirklich- tizacdlo de elementos distintos ¢ especif lee :
keit im historischen Materialismus”, em Archiv ftir Sozialtorssenschaft naram aparentes, Além disso, podemos indagar se a Poss ‘
um sistema fechado nfo va
und Sozialpolitik, 1x (1928), pags, 449 ¢ segs. necessidade de um sistema aberto ou de com as posigoes sociais.
riam de acérdo com as épocas e de acérdo
O leitor cuidadoso notarA talvez que a partir déste ponto a con- cer o leitor no 8 nto
a esclare
cepeao valoraliva de ideologia tende mais uma vez a assumir a forma Mesmo estas poucas observagées visam pensamen' °, sejam
de formul agéao usados em nosso
da concepeao nfo-valorativa, o que, no entanto, 6 devido & nossa in- de que os tipos meios mais ov a
rias, e sim
tenc&o de descobrir uma solucfo valorativa. A mstabilidade na defi- quais forem, nap sao criagdes arbitra
de compr ecnsa o e domini o das formas de exis éncia e. °
nigdo do conceito faz parte da técnica de pesquisa que, podcriamos adequados
se exprimem nos v' 8 po
dizer, teria atingido a maturidade, recusando-se, por isso, a se escravi+ pensamento cm constante mudanga que
tes & implicag&o socio! ogica
zar a qualquer ponto-de-vista particular que possa restringir scu cam- de formulacéo. Alguns comentarios referen
pensa mento encont ram-se em ‘Das konservative Den-
po de viséo. ste rclacionismo dimimico constitui a nica saida possi- dos “sistemas” de
vel para a situacgdo no mundo em que nos encontramos, onde vemno-nas ken”, op. cit., pags. 86 e segs.
ipec -Gia £ UloPIA 127
124 . SOLOGIA E Urop1a
as situacoes de * oda pri-
adequades para lidar empiricamente com
do de idéias separado e distinto, e que éstes diferentes sistemas para cpocas muis rem0-
mitiva encontradas. © problema tanto maneira seguin-
de pensamento, freqiientemente em conflito um com o outro, ser form ulad o da
tas quanto para a nossa pode
podem ser em iltima andlise reduzidos a diferentes modos de ex- o campo de cxperién-
te: em que condigdes podemos dizer que
perimentat a “mesma” realidade. fundamentalmente gue te
cia de um grupo tenha mudado tao
ia entre modo tradicio-
Claro que poderfamos ignorar esta crise de nossa vida in- nha se tornado aparente a discrepanc
de experiencia (a serem
telectual, como geralmente se faz na vida prdtica cotidiana, em nal de pensamento e€ os novos objetos uma o
Serla
amento)?
cujo decurso nos contentamos com encafar as coisas e suas te compreendidos por éste modo de pens
enderse que as e¢xp) &
lagSes como se féssem acontecimentos isolados cada um testri- plicagdo por demais intelectualistica pret
das por quaisquer ee
to a seu contexto particular imediato, 93 Enquanto encararmos nacdes antigas tenham sido abandona
, porém, ¢ra uma muc ange
os objetos de nossa experiéncia de um ponto de apoio particular tedricas. Nestes periodes anteriores
acarretava a eliminagao €
e na medida exata em que nossos recursos conceptuais bastem efetiva nas experiéncias sociais que estivessem
que nfo
pata lidar com uma esfera de vida altamente restrita jamais to- cettas atitudes ¢ esquemas de interpretagdo s fundamentais.
maremos consciéncia da necessidade de inquiricfo sébre o in- ruéneia com certas experiénci as nova
em cong
ter-relacionamento total dos fendmenos. Quando muito, em tais -de-vista de sua
As Ciéncias Culturais especiais, do ponto
circunstancias, iriamos ocasionalmente encontrar alguma obscuri- mais do que ° conh ecimento. empl
particularidade, nao valem
dade que, entretanto, somos normalmente capazes de superar na visualizam os objetos do
co cotidiano. ‘Também estas disciplinas
pratica. Dessa forma, a experiéncia cotidiana tem por longo s de maneira abstrata,
conhecimento ¢ formulam seus problema
tempo operado com sistemas mdgicos de explicacio; e até a um Ocorre, As vezes, que
certo est4gio de desenvolvimento histérico tais sistemas eram destacando-os de seus quadros concretos. com a
se faca de acérdo
a formulacéo coerente dos problemas
com que se apresentam, ¢ nab mera-
efetiva conexdo organica
enquadrados pela disci-
33 Nada seria mais sem sentido ou incorreto do que argumentar mente no sentido em que possam ser
iz um certo estagio, esta
déste modo: “Desde que cada forma de pensamento politico e histé- plina. Mas freqientemente, ao se ating
perdida. As quest6es
tico esté baseada até certo ponto em afirmagdes metatedricas, segue-se ordem organica e coerente € subisamente
, seja devi do a maneira limi-
que nao podemos confiar em nenhuma idéia ou forma de pensamento, histéricas sio sempre monograficas
sendo portanto absolutamente indiferente quais os argumentos teéricos o assun to, seja devi do a especializa-
tada pela qual se concebe
empregados em um caso especifico. Cada um deve, por conseguinte, é de fato necessizic,
cao do traramento. Para a histéria, isso
fiar-se em suas intuigdes pessoais e particulares, ou em seus interésses
lho impde certas mi-
privados, o que melhor lhe convier, Se assim fizéssemos, ¢ nao im- uma vez que a divisao académica do traba
se auto-clogia por
porta o partidarismo da visio de cada um, poderiamos manter nossos tagdes. Mas quando © pesquisador empirico
ializada ditada pelas
pontos-de-vista em boa consciéncia, e até sentirmo-nos satisfeitos a sua recusa em ir além da observacao espec
inclu sivas que sejam, éle
éste respeito”. Em defesa de nossa andlise contra a tentativa de utili- tradicSes de sua disciplina, por mais
za-la para fins propagandisticos do tipo das que se caemphficou aci- defes a que o protege contra
ma, é preciso mostrar que existe uma diferenca fundamental entre, de esté utilizando um mecanismo de
© questionamento de seus press upost os.
um lado, um partidatismo cego e« o irracionahsmo naseidos de mera
jamais transcende
indoléncia mental, que na atividade intelectual enxerga apenas juizos Mesmo aquéle tipo de investigagao que e
os mats dados
e propaganda pessoais e arbitrarios, e, do outro, o tipo de inquirigéo
voltado para uma andlise objetiva que, depois de eliminar téda a va-
os limites de sua especalidade pode fornecer-n o verdade. que
seja mesm
enriquecer nossa experiéncia. Talvez
loragdo consciente, percebe a existéncia de um irredutivel residuo de
houve uma época em que éste seria o ponto -de-vista apropriado.
valoragio inerente A estrutura de todo o pensamento. (Para uma ex- devem questio-
Naturais
posigao mais detalhada cf. as formulacGes finais da discussio contida Mas assim como também as Ciéncias
logo uma discrepan-
em meu artigo, “Die Bedeutung der Konkurrenz im Gebicte des Geis- nar suas hipéteses ¢ seus pressupostos, tio
e assim comoums
tigen”, e minhas observacdes ao artigo de W. Sombart sdbre metodo- cia surja a partir dos fatos que abordam,
possivel quando os
logia apresentado na mesma ocasiao, Verhandlungen des seohsten
pesquisa empirica ulterior sdmente se torna
deutschen Soziologentages, loc. cit.)
128 IpgoLocia © Uroria IpzoLocia E Uropia 129
cinones gerais de explicacdo tenham sido revistos, assim nas
nambula com referéncia ao problema da verdade, durante os
Ciéncias Culturais atingimos atualmente um ponto em que os
petiodos de estabilidade da histéria, torna-se dessa maneira in-
nossos dados empiricos nos levam a levantar determinadas ques-
teligivel. Contudo, uma vez quebrada a unanimidade, *4 as ca-
tOes a respeito de nossos pressupostos.
tegorias fixas que serviam para dar a experiéncia o seu cardter
A pesquisa empirica que se limite a uma esfera particular seguro € coerente softem uma desintegracao inevitdvel. Surgem
Ocupa por um longo tempo a mesma posicio do senso comum, modos de pensamento divergentes e conflitantes que (sem 0 co-
vale dizer, a natureza problemdtica ¢ a incucicncia de sua base nhecimento do sujeito pensante) ordenam os mesmos fatos da
tedrica permanecem ocultas porque a situacdo total jamais é le- experiéncia em diferentes sistemas de pensamento, fazendo-os
vada em consideragdo. Sustentava-se com justiga que a mente hu- setem percebidos através de diferentes categorias ldgicas.
mana pode realizar as mais hicidas observagdes com os conceito
s Isto resulta na peculiar perspectiva a nés imposta por nos-
mais inconsistentes. Mas atinge-se uma crise quando se intenta sos conceitor, e que fazem que o mesmo objeto apareca diferen-
refletir sObre estas observagdes e definir os conceitos fundamen- temente, de acdrdo com o conjunto de conceitos com que o ve-
tais das disciplinas em questdo. A exatidao desta afitmativa se mos. Em conseqiiéncia, nosso conhecimento da “realidade”, na
manifesta pelo fato de que, em determinadas disciplinas, as in- medida em que vai assimilando cada vez mais tais perspectivas
vestigagGes empiricas sio conduzidas tao trangiiilamente como divergentes, se tornard mais amplo. O que antes aparentava
de costume, enquanto se observa uma verdadeira guerra a res- ser meramente uma matgem deininteligibilidade, que nao podia
peito dos conceitos tundamentais e dos problemas da ciéncia. ser abarcada por um dado conceito, deu origem, hoje em dia, a
Mesmo esta afitmativa, entretanto, é limitada, porque & gui- um conceito complementar e as vézes oposto, por meio do qual
sa de uma proposigfo cientiiica destinada a deter uma signifi- se pode obter um conhecimento mais inclusivo do objeto.
cagao geral, formula uma situacio da ciéncia que sdmente ca- Mesmo na pesquisa empirica, reconnecemos cada vez mais
racteriza um dado periodo. Quando, no inicio do século atual, claramente a grande importancia do problema da identidade ou
estas idéias comecaram a ser formuladas, os sintomas da crise da falta de identidade de nossos pontos-de-vista fundamentais.
sémente eram visiveis na periferia da pesquisa, em discuss6es re- Para os que se preocuparam sériamente sdbre isto, ° problema
lativas a principios ¢ definicées. Tloje em dia, a situagio mudou apresentado pela multiplicidade de pontos-de-vista é claramen-
~— a crise pencirou até 0 prdprio coracio da pesquisa empifrica. te indicado pela limitacdo particular a téda definigio. Esta limi-
A multiplicidade de possiveis pontos de partida e definigdes tacao foi reconhecida ror Max Weber, por exemplo, mas Weber
a competigao entre os varios pontos-de-vista influem até na per justificava um ponto-de-vista particularista fundado em que 9
cepgao do que antes parecia ser uma relacio tinica e sem com- interésse particular que motiva a investigagdo determina a defi-
plicagdes. nicdo especifica a ser usada.
Ninguém nega a possibilidade da pesquisa empirica e nin- Nossa definigfo de conceitos depende de nossa posic&o €
guém sustenta que os fatos niéio existem. (Nada nos parece ponto-de-vista influenciados, por seu turho, por um bom ndme-
mais incorreto do que uma teoria ilusionista do conhecimento.) to de passos inconscientes de nosso taciocinio. A primeira rea-
Também recorremos a “fatos” para nossa comprovacéo, mas cao do pensador, ao se ver confrontado com a natureza limitada
a
quest4o da natureza dos fatos constitui em si mesma um proble- e com a ambigiidade de suas nogdes, é bloquear por quanto‘
ma a ser considerado. Eles existem para a mente sempre dentro tempo seja possivel o caminho para uma formulacio total e sis-
de um contexto intelectual e social. O fato de poderem ser temdtica do problema. O positivismo, por exemplo, esforcou-se
compreendidos e formulados j4 implica a existéncia de um apa- enormemente para ocultar a si mesmo o gbismo existente por
rato conceptual. E, se éste aparato conceptual é 0 mesmo para
todos os membros de um grupo, as pressuposicées (isto é, os
possiveis valéres intelectuais e sociais), subjacentes aos concei- 34 Para maiores detalhes no que respeita & causa sociolégica desta
desintegracio, cf, 0 artigo do autor, “Die Bedeutung der Konkurrenz
tos individuais, jamais se tornam perceptiveis.- A certeza so- im Gebiete des Geistigen”, > loc. cit.
130 IproLocia E Urorta IproLocia & Uropra 131
trds de todo o pensamento particularista. Por um lado, isto cra tuacio histérica, requer-se uina determinada cstrutura de pen-
necessdrio para promover o seguro prosscguimento de sua pes- samento que surgird em resposta ds demandas dos problemas reais
quisa dos fatos, mas, por outro lado, a sua recusa de tratar do ¢ efetivos encontrados, capaz de integrar o que haja de relevan-
problema conduziu repetidas vézes A obscuridade ¢ A ambigui- te nos varios pontos-de-vista em conflito. ‘Também neste caso
dade com relagZo a questGes referentes ao ‘“‘todo”. & necessitio descobri um ponto de partida axiomitico mais
Dois dogmas tipicos impediam particularmente que se le- fundamental, uma posicio de onde seja possivel sintetizar a si-
vantassem temas fundamentais. O primeiro déles era a teoria tuacho total, Uma dissimulagio temerosa ¢ incerta das contra
que simplesmente considerava irrelevantes as questdes metaffsi- digdes ¢ omissGes nao nos tard san da crise, da mesma forma
cas, filos6ficas e assemelhadas. De acdrdo com esta teoria, ape- gue nio o farao os métodos da extrema direita ¢ da extrema es-
nas as formas especializadas de conhecimento empirico possufam querda, que a exploram na propaganda para a glorificagio do
qualquer direito & validade. Até a Filosofia eta considerada uma passado Ou do futuro, esquecendy se momentaneamente que sua
disciplina especial cuja preocupa¢aéo primorial e legitima era 16- propria posiclo est4 sujeita & mesma critica, lampouco sera de
gica. O segundo déstes dogmas, que bloqueavam oa caminho grande valia interpretar a unilateralidade ¢ o cardter limitado
para uma perspectiva do todo, tentava uma conciliagdo, dividin- da perspectiva do adversdrio como sendo meramente outra pro-
do o campo em duas dreas muituamente exclusivas a serem ocupa- va da crise neste campo Isto sbmente pode ser feito quando
das respectivamente pela ciéncia empirica e pela Filosofia — para um método nao esté scado quesuonado por nenhum outro, c,
as questées particulares e imediatas a primeira fornecia respos- em conseqiéncia, somente rs medida cm que mio se tenha cons-
tas certas e itrecusdveis, 40 passo que para as questdes gerais ciéncia das limitagdes de scu préprio ponto-de-vista.
e para os problemas do “‘todo” se recorria a especulagdes filosd- Somer . quando estivermos completamente conscientes do
ficas “mais elevadas”. Isto implicava, quanto A Filosofia, o ambito limitado de cada ponto-de-wista, estaremos a caminho da
abandono da pretensdo de que suas conclusées estivessem basea- almejada compreensio do todo. A crise no pensamento nao é
das em uma evidéncia universalmente vélida. uma crise que simplesmente afete uma tinica posigdo intelectual,
Uma solugfo destas se assemclha estranhamente ao distico mas uma crise de todo um mundo que tenha atingido um certo
dos tedricos da monarquia constitucional, que proclama: “O rei estdgio de desenvolvimento intelectual. Ver mais claramente a
reina, mas nao governa”. Dessa forma, concedem-se tddas as conlusdo em que a nossa vida intelectual e social caiu representa
honras 4 Filosofia. -A especulacdo e a intuig&o sfo, em deter- mais um entiquecimento do que uma perda. Que a raz&o possa
minadas circunst4ncias, consideradas instrumentos mais eleva- penctrar mais profundamente em sua propria estrutura nado cons-
dos do conhecimento, mas apenas sob a condicdo de que nao se titui um indicio de faléncia intelectual. Nem se deve encarar
imiscuam na investigagio empfrica positiva, democratica e uni- como incompeténcia intelectual de nossa parte que um extraor-
versalmente vélida. E assim, mais uma vez, evita-se o problema dingrio alargamenta de perspectiva necessite de uma revisio apro-
do “todo”. A ciéncia empirica pés de lado @ste problema, e nao fundada de nossas, concepgdes fundamentais. O pensamento é
st pode inctiminar a Filosofia, que sdmente é responsdvel pe- um processo determinado por férgas sociais efetivas, continua-
rante Deus. Sua evidéncia somente é valida no dominio da es- mente questionando suas descobertas e corrigindo seu procedi-
peculag&éo e sémente é confirmada pela intuigdo pura. A con- mento, (Por esta razfio seria fatal recusar-se a reconhecer, de-
seqiiéncia de uma tal dicotomia € que a Filosofia, que deveria vido A puta timidez, o que jA se tornou claro.) Entretanto, o
ter a tarefa vital de esclarecer o espirito do observador dentro aspecto mais promissor da atual situagio é que jamais podere-
da situacao total, néo se acha em condigdes de fazé-lo, uma vez mos estar satisfeitos com perspectivas estreitas, e constantemen-
que perdeu contato com o todo, limitando-se a um dominio te procuraremos compreender ¢ interpretar intuigSes particula-
“mais elevado”, Ao mesmo tempo, o especialista, com seu res em um contexto sempre mais inclusivo.
ponto-de-vista tradicional (particularista), acha impossivel al- Até Ranke, em sua Politische Gesprach, colocou as seguin-
cancar esta visio mais ampla, que se faz tio necessdria na atual tes palavras na béca de Frederick: ‘‘Jamais serés capaz de alcan-
condicgao da investigacdéo empirica. Para o dominio de cada si- car a verdade meramente escutando afirmagdes extremas. A ver-
132 IpEoLocia & Uropra Ipzorocia E Uropia 133
dade reside sempre fora do dominio onde se encontra o suas prdéprias atividades no contexto do todo. E verdade que
érro.
Mesmo de tédas as formas de érro tomadas cm conjunto seria sua perspectiva pode permanecer tdo limitada quanto o permita
impossivel extrair a verdade. A verdade tera de ser buscada seu estreito Ambito de experiéncia; talvez a dimensio em que
e
encontrada por seu préprio beneficio e em seu préprio domini analisasse sua situag&o nao transcendesse o 4mbito da pequena
o.
Tédas as heresias do mundo nfo irdo te ensinar o que seja cidade ou do circulo social limitado em que se movesse. Nao
o
ctistlanismo —~ que sOmente pode ser aprendido no Evange obstante, ttatar acontecimentos e séres humanos como partes
-
Iho.” 85 Idéias tao simples e modestas, em sua puteza de situagGes similares as situacdSes em que ela prdépria se encon-
e inge-
nuidade, sao remanescentes de algum Eden que nada tra representa algo bastante diferente do que meramente reagir
sabe do
reerguimento do conhecimento depois da Queda. Descob imediatamente a um estimulo ou a uma impressao direta. Tendo
re-se
com demasiada freqiiéncia, que a sintese, apresentada com o individuo captado o método de se orientar no mundo, ser4
a cer.
teza de que abarca o mundo, resulta set, afinal, ex; ressio do inevitavelmente levado para além do estreito horizonte de sua
mais estreito provincianismo e que a adocdo sem critica propria cidade, aprendendo a se compreender como parte de
de
qualquer ponto-de-vista que esteja 4 mao vonstitui uma das uma situagdo nacional e, mais tarde, de uma situacao mundial.
mais
certas maneiras de se impedir o atingimento da compreensZo Da mesma maneira, seré capaz de compreender a posigio de sua
cada vez mais ampla e mais compreensiva possivel, hoje em propria geracdo, sua situacao imediata dentro da época em que
dia.
A totalidade, no sentido em que a concebemos, nao é uma vive, e éste perfodo, por sex turno, como parte do processo hiv
viséo da realidade imediata e eternamente vélida, sOmente térico total.
atri-
buivel a olhos divinos. Nao se trata de um horizonte estdvel Em seus contornos estruturais, éste tipo de orientacdo para
€ autodelimitado, Pelo contrdrio, uma visio total implica tanto a situagéo pessoal representa em miniatura o fenédmeno de que
a assimilagiio quanto a transcendéncia das limitagdes dos falamos como o impulso cada vez mais amplo em direcdo a uma
pontos-
-de-vista particulares. Representa o continuo processo de concepgao total Embora o material implicado nesta reorienta-
ex-
pansio do conhecimento, possuindo como objetivo nao Gio seja o mesmo das observacSes individuais que constituem a
atingir
uma conelusao vdlida supratemporalmente, mas a extensio investigagao empirica, a finalidade aqui é bastante diferente. A
mais
ampla possivel de nosso horizonte de vis QO, andlise situacional € 0 modo de pensamento em tédas as for-
. Tirando da experiéneia cotidiana uma ilustragao simples mas de experiéncia que se erguem acima do nivel do lugar-co-
déste esfarco em direcio a uma visio total, podemos mum. As possibilidades desta abordagem nao s§o utilizadas ple-
tomar o
caso de um individuo em uma dada posigio na vida, que namente pelas disciplinas especiais porque, de ordindrio, seus
se objetos de estudo sio delimitados por pontos-de-vista altamen-
ocupa dos problemas concretos individuais que encontra e
si- te especializados. Contudo, a Sociologia do Conhecimento pro-
bitamente desperta e descobre as condicdes fundamentais
que cura encarar até mesmo a crise em nosso pensamento como uma
determinam a sua existéncia intelectual e social. Neste
caso, uma
pessoa que se ocupa continua e exclusivamente com suas tarefas situagao que devemos visualizar como parte de um todo maior,
diarias nfo assumiria uma atitude inquisidora com relacio a si Se em uma situa¢do tao complicada como a nossa, prece-
mesma e sua posicao, €, no entanto, esta pessoa, a despeit
o de dida por um desenvolvimento intelectual tio diferenciado como
Sua seguranca, seria présa de um ponto-de-vista patticularista foi o nosso, surgirem novos problemas do pensamento, os ho-
e
parcial até que atingisse a crise que lhe trouxesse a perda mens ptecisario aprender a pensar novamente, porque o homem
das
ilus6es. No setia senio no momento em que pela primeira é um tipo de criatura que precisa continuamente se readaptar a
vez concebesse a si mesmo como sendo parte de uma situacdo sua histéria em mudanca. Até hoje, nossas atitudes face aos
concreta mais ampla, que iria nela despertar o impulso de ver nossos processos intelectuais (apesar de tédas as pretensdes 16-
gicas) nao foram muito diferentes das de uma pessoa ingénua.
Isto é, os homens estavam acostumados a agir em situagdSes que
35 Ranke, Das politische Gespriich, ed. Rothacker (Halle, 1925), nao compreendiam claramente. Mas assim como houve um mo-
pag. 13, mento na histéria politica em que as dificuldades de acio se tor-
134 IpgoLocia £ Uropia
da. Entao, o unico problema pedagégico consistiria na selecdo, cuidar de cada caso névo sob uma forma prescrita, temos nao
num estoque infinito de fatos existentes, daqueles mais relevan- a politica, mas o aspecto estabelecido e recorrente da vida social.
tes para os objetivos da conduta politica. Schaffle faz uso de uma expressio esclarecedoia, encontrada no
Entretanto, é provavelmente evidente que desta algo exa- proprio campo da administragdo, para reforgar sua distingdo.
gerada afirmac&o, as questdes “Sob que condicdes é possivel uma Para os casos que possaser resolvides pela simples consulta a
ciéncia polftica e de que forma deverd ser ensinada?” nao se uma regra estabelecida, isto é, de acdrdo com um precedente,
referem ao corpo de informacSes prdticas mencionado acima. usa a palavia alem& Schinrmel,* derivada do latim simile, sig-
Entéo em que consiste 0 problema? nificando que o caso em pauta pode ser resolvido de uma manei-
As disciplinas acima alinhadas estéo estrututalmente rela- ra similar a precedentes que j4 existem. Estamos no campo da
cionadas somente na medida em que se reforem A sociedade ¢ ao politica quando enviados a paises estrangeiros concluem trata-
Estado, como se féssem os produtos finais da histéria passada, dos anteriormente nunca celebrados; quando representantes par-
Todavia, a conduta politica est4 relacionada ao Estado ¢ A socie- lamentares discutem novas medidas tributdrias; quando se lan-
dade na medida em que esto ainda em processo de transforma- ¢a uma campanha eleitoral; quando certos grupos oposicionis-
gao. A conduta politica tem pela frente um processo no qual tas preparam uma revolta ou organizam greves -- ou quando
cada momento cria uma situacio singular ¢ procura extrair desta estas séo reprimidas.
permanente corrente de fércas alyo de cardter duradouro. TEn- Deve-se admitir que a frontcira entre csias duas classes é
tao, a questdo é: “Ha uma ciéncia desta transformagio, uma
na realidade muito flexivel. Por exemplo, o efcito cumulativo
ciéncia da atividade criadora?”’ de uma modificagio gradativa em uma extensa série de casos
O primciro estdgio no delincamento do problema esté assim concietos na conduta administrativa: pode realmente originar um
alcancado. Qual (no campo dosocial) é a importancia déste con- névo principio Ou, tomanda o exemplo aposta, algo tio sin-
traste entre o que jd se transformou ¢ o que est4 em processo gular quanto um névo movimento social pode-se achar profun-
de transformacdo? damente permeado por elementos “estereotipados” e rotinizan-
O socidlogo e estadista austriaco Albert Schaffle? assina- tes, Nao obstante, o contraste entre os ‘“assuntos de rotina do
lou que, em qualquer momento da vida sécio-politica, dois as- Estado” e¢ a “politica” oferece uma certa polaridade que pode
pectos sao discerniveis — primeiro, uma série de fatos sociais servir de fecunde ponto de partida. Concehendo a dicotomia
que adquiriram um padrao definido, e ocotrem regularmente: em térmos mais tedricos, podemos dizer que: todo processo so-
e, em segundo lugar, aquéles fatos que ainda esto em processo cial pode ser dividido em uma esfera racionalizada, que con-
de transformagio, nos quais, em casos individuais, as decisdes siste em procedimentos estabelecidos e rotinizados para lidar
deverdo ser tomadas, dando origem a situacdes novas e singula- com situacdes que se repetem de uma mancira ordenada, e a
res. A ptimeira éle denominou “negécios rotineiros de Estado”’, “irracional”, que a circunscreve.* Estamos portanto distinguin-
laufendes Staatsleben; & segunda, “a politica’. O significado
desta distingZo serd esclarecido por umas poucas ilustracées,
Quando, na vida rotineira de um funciondrio, as ocupacdes cor- 2 © térmo alemio Schimmel significa mofdc (“mould” — nota
rentes sdo resolvidas de acérdo com as regras e regulamentos do tradutor inglés),
existentes, estamos, segundo Schaffle, mais no campo da “admi- 3 Para maior precisio, devet-se-ia acrescentar a seguinte obser-
nistracio” do que no da “politica”, A administracdo é 0 domt- vagho: a expressio “elementos rotinizados estabelecidos” deve ser con-
nio onde podemos observar exemplos do que Schaffle quer dizer siderada em sentido figurativo, Mesmo os tragos mais formalizados e
com “assuntos de rotina do Estado”. Sempre que podemos ossificadas da sociedade nip podem ser considerados como algo guar-
dado num s6tio, a ser utilizado quando necessirio, As leis, os regu-
lamentos e os costumes estalclecido, somente ttm uma eaisténcia na
1 Cf. Schaffle, A. “Uber den wissenschaftlichen Beenff medida em que ay experiéncias vivas as fazem existir, Tal estabilidade
der
Politik”, Zeitschrift fur die gesamte Staatswissenschaften, vol, 53 (1897), significa Wo-s6 que a vida socal, ag renovar-se constantemente, con-
forma-sc as regras ¢ processos formais que Ihe sio inerentes ¢ isso
140 IpEoLociA E Uroria Teorta SociaL E Prdrica Porfrtca 141
do entre estrutura “racionalizada” da sociedade e matriz “irra- nao penetrada pela racionalizagfo, onde somos forcados a to-
cional”. A esta altura apresenta-se uma nova questdo. A ca- mar decisdes em situagdes até entio nao submetidas 4 regula-
racteristica basica da cultura moderna é a tendéncia a absorver mentagao. HE nessas situagdes que surge todo o problema das
o maximo possfvel na esfera do racional, submetendo-o ao con- relagdes entre a teoria e a pratica. A respeito déste problema,
trdle administrativo — e, por outro lado, a reduzit o elemento com base nas andlises até aqui realizadas, podemos, mesmo a
“Srracional” a insignificdncia. esta altura, arriscar mais algumas observacGes.
Um simples exemplo esclarecer4 o significado desta afir- Nao ha duvida de que possuimos algum conhecimento re-
mativa. O viajante de hd 150 anos expunha-se a mil acidentes. lativo A esfera da vida social em que tudo e a prépria vida j4
Hoje em dia tudo corre dentro de um programa. A tarifa é tenham sido racionalizados e ordenados. Aqui, o conflito entre a
calculada com exatidao, e toda uma série de medidas adminis- teoria e a prdtica nao se converte em problema porque, na ver-
trativas féz da viagem um empreendimento racionalmente con- dade, o mero tratamento de um caso isolado, subordinando-o a
trolado. A percepcdo da distingdo entre o esquema racionaliza- umalei generalizada existente, dificilmente poderia ser designado
do e © contexto irracional em que opera proporciona a possibi- de prdtica politica. Por mais racionalizada que nossa vida possa
lidade de uma definig&o do conceito de “conduta’”. parecer ter-se tornado, tédas as racionalizacSes que até aqui se de-
A agao do funciondrio nao-graduado que encaminha uma ram sio meramente parciais, uma vez que as mais importantes es-
sétie de documentos segundo a maneira prescrita, ou a de um fcras de nossa vida social se acham ainda agora présas ao irra-
juiz que acredita que um caso cabe dentro das provisées de um cional. Nossa vida econdmica, embora extensivamente raciona-
certo pardgrafo da lei e o encaminha de acdrdo com @ste, ou, lizada cm sua parte técnica, e, em alguns aspectos, calculdvel,
por ultimo, a de um operdrio fabril que produz um parafuso se- nao constitui em conjunto uma economia planificada. A des-
guindo a técnica prescrita, nao corresponderia & nossa definicao peito de tédas as tendéncias para a monopolizag#o e organiza-
de “conduta”. Nem tampouco a acio de um técnico que, para cao, a livre concorréncia ainda desempenha um papel decisivo.
obter um determinado fim, combinasse certas leis g 1ais da na- Nossa estrutura social estd construida segundo principios de
tureza, Todos éstes modos de comportainento setiam conside- classe, o que significa que nao so os fatéres objetivos, mas as
rados meramente “reprodutivos” po. jue sao executados dentro fércas irracionais, que decidem o lugar e a funcio do individuo
de um guadro racional, de acérdo com uma prescricio definida na sociedade. © predominio na vida nacional e na internacio-
nado exigindo nenhuma decisdio pessoal. A conduta, no sentido nal se consegue com luta, em si mesma irracional, em que o
utilizado por nés, sdmente comeca ao atingitmos a 4rea ainda acaso desempenha um papel importante. Estas fércas irracionais
da socicdade formam aquela esfera da vida social que nao é or-
ganizada nem racionalizada, e em que se tornam necessdrias a
esté em reprodugao constante, de forma recorrente. Da mesma for- politica e a conduta. As duas principais fontes de irracionalis-
ma o uso da expression “esfera racionalizada” deve yer tomade em mo na estrutura social (a compcetigéo sem contréle a a domina-
tido amplo. Pode significar quer uma abodagem tedrica oc racional, go pela fdrca) constituem a esfeta da vida social ainda n@o-
como no caso de uma técnica racionalmente caleulada e determinada;
-organizada onde a politica se torna necessdria. Em volta déstes
quer, também, no sentido de “racionalizagiio", na qual uma seqiiéncia
de acontecimentos segue um curso regular, esperado (provavel), como dois centros, acumulam-se os outros elementos irracionais mais
no caso da convengiio, dos sos ¢ costumes, em que a sequiénela dos profundos, a que geralmente chamamos de emogdes. Quanto
acontecimentos mio & plenamente entendida, may sua estrutura parece ao aspecto socioldgico, existe uma conexfio entre a extensdo da
ter um certo cardter determinado. Pode-se usar aqui o térmo “este- esfera ndo-organizada da sociedade, em que prevalecem a com-
reétipo”, tal como 0 utilizou Max Weber, tanto em sentido amplo, peticéo sem contréle e a dominacSo pela férca, e a integracado
quanto em sua dislingig das duay subclasses da tendéncia de estereo- social das reag6es emocionais.
tipar: a) tradicionalismo; b) racionalismo. Nao obstante tal distingdo
nao seja relevante para nossos propdsitos, usaremos 9 conceito de “es- O problema deve entSo ser colocado nos seguintes térmos:
trutura racionalizada” no sentido mais abrangente cm que Max Weber Que conhecimento é possfvel ou qual o que possuimos com re-
emprega a nog&o geral de estereotipar, lag&o a &ste campo da vida social e ao tipo de conduta que nela
142 IpgoLogia EB Urorsa ‘
Veo. Sc crab © Praticea Port .ca 145
se verifica? * Mas agora o nosso problemaoriginal foi colocado ticipante da Juta, a base de seu pensamento, Isto €, o seu apa-
em sua forma mais altamente desenvolvida, em que parece se rato observacional © a cu método de estabelccer as diferengas
prestar 4 elucidagdo. Tendo determinado onde a esfera do po- intelectuais, deve estar acima do conflito. Nao se pode resol-
litico realmente comeca, ¢ onde é possivel a conduta no seu ver- ver um problema obscurecendo-lhe as dificuldades, mas soémen-
dadeiro sentido, podemos indicar as dificuldades existentes na le definindo-as tio nitida ¢ pronunciadamente quanto possivel,
relagdo entre a teoria e a pratica, Por isso, nossa taicfa consiste em estabclecer de maneira defi-
“As grandes dificuldades com que o conhecimento cientifico nida a tese de que'na politiwa a'formulagdo de um problema e
se defronta neste campo surgem do fato de que nao estamosli- as técnicas ldgicas envo'vidas variam com a posigio politica do
dando com entidades objetivas e rfgidas, mas com tendéncias e observador.
anseios em constante fluxo, Outra dificuldade é que a conste-
lagio das fércas em interagéo muda continuamente. Onde quer
que as mesmas fércas, cada uma imutdvel em cardter, intera- 2. OS DLYLRMINANTES POLITICOS L SUCIAIS DO
jam, e onde a sua interacdo siga um curso regular, é possivel for- CONHECIMENTO
mular leis gerais. O que nao é tao facil quando novas férgas
estao penetrando incessantemente no sistema e formando com- Procuraremos demonstrar agora, por meio de um exemplo
binacdes imprevisiveis. Ainda outra dificuldade ¢ que o obser- conereto, que © pensamento politico-histdérico assume formas
vador nZo esté fora do dominio do irracional, mas participa no varias, de acérdo com correntes polifticas diversas, A fim de nao
conflito de férgas. Esta participagio o vincula inevitavelmente nos distanciarmos em demasia do assunto, concentrar-nos-emos
a uma visio partiddria, através de suas valoragdes ¢ interésses. principalmente na relacdo entre a teoria e a pratica. Veremos
lém disso, e da maior importancia, existe o fato de que o ted- que mesmo éste problema, o mais geral e fundamental de uma
tico politico ndo sé é um participante do confliro, em razZo de ciéncia da conduta politica, é diversamente concebido pelas di-
seus valéres e interésses, mas a maneira pela qual o problema ferentes correntes historico politicas.
se apresenta a éle, seu modo de pensamento mais geral, incluin-
do até suas categorias, se vincula as correntes politicas e sociais Isto pode ser facilmente constatado por um levantamento
gerais. Tanto quanto isso se dé, na esfera do pensamento po- das varias correntes politicas e sociais dos séculos XIX e XX.
ltico © social, devemos, a meu ver, reconhecer diferengas reais Como tipos ideals repre.entativos mais importantes, teremos os
nos estilos de pensamento — diferencas que se estendem mesmo seguintes:
ao campo da Légica. O conscrvantisno burocratico.
bBwWh be
Nisto, sem diivida, reside 0 maior obstaculo a uma ciéncia O historicismo conservador.
da politica, pois, de acérdo com as expectativas normais, uma
ciéncia da conduta sdmente seria possivel quando a estrutura © pensamento liberal-democrdtico burgués.
fundamental do pensamento independesse das diferentes formas A concepedo socialista-comunista.
de conduta em estudo. Apesar de que o observador é um par-
5. O fascismo.
Consideraremos inicialmente 0 modo de pensamento do con-
4 Deve-se aqui frisar que o conceito de “politico”, usado em
servantismo burocrdtico, A tendéncia fundamental de todo pen-
conjungZo com os conceitos correlativos de estrutura racionalizada e
campo irracional, é apenas um dos muitos conceitos possiveis de “pol{- samento burocratico é converter todos os problemas de politica
tico”. Embora particularmente apropriado para a compreensio de cer- em problemas de administragio. Como resultado, a maioria dos
tas relacdes, éle niio deve ser tido, absolutamente, como o unico. livros sobre polftica, na histéria da ciéncia politica alema, sao
Para uma nogdo oposta de “politico”, cf. C. Schmitt, “Der Begriff des de fato tratados de administragiv. Se considerarmos o papel
Politischen”, Archiv fur Soztalwissenschaft und Sozxialpolitik, yol, 58 sempre desempenhado pela burocracia, em especial no Estado
(1928), prussiano, e em que medida a infelligentsia cra amplamente re-
144 IbEoLocia & Uropia Tror1a Socta & Pratica Potfrica 145
crutada na burocracia, esta unilateralidade na histéria da ciéncia Cada burocracia, portanto, conforme a peculiar anfase que
politica na Alemanha torna-se facilmente comprcensivel. atribui a prépria posicdo, tende a generalizar sua experiéncia e 4
A tentativa de ocultar todos os problemas da politica sob desconsiderat o fato de que o campo da administracio e da ot-
a cobertura da administracéo pode ser explicada pelo fato de dem em funcionamento regular representa apenas uma parte da
que a esfera de atividade do funciondrio dése apenas nos limites realidade politica total. O pensamento burocrético nao mega a
de leis ja formuladas. Portanto, a génese e a evolucdo dalei se possibilidade de uma ciéncia da politica, mas a considera idén-
situam fora do Ambito de sua atividade. Como resultado de seu tica A ciéncia da administracio. Desta forma, descuida dos fa-
horizonte socialmente limitado, o funciondrio deixa de ver que, téres irracionais e quando, apesar de tudo, éstes fatOres aflo-
por tras de cada lei promulgada, s encontram os intergsses so- ram & superficie considera-os “‘assuntos de rotina do Estado”.
cialmente articulados e as Weltanschauungen de um gtupo social Uma expresso cldssica desta atitude vem contida em unr ditado
especifico. Aceita de antemao que a ordem especifica prescrita originétio de tais circulos: “Uma boa administracéo vale mais
pela lei vigente equivale 4 ordem em geial. No compreende do que a melhor constituicao.” >
que cada ordemracionalizada constitui apenas uma das muitas
Além do conservantismo burocratico, que governou a Ale-
formas pela quais as fdrcas irracionais socialmente conflitantes
manha e especialmente a Prissia em larga medida, houve um
se conciliam.
segundo tipo de conservantismo que se desenvolveu paralela-
A mentalidade legalistica administrativa possui seu tipo pe- mente ao primeiro e que se pode chamar conservantismo histé-
culiar de racionalidade. Ao se defrontar com um conjunto de rico. Era peculiar ao grupo social da nobreza e aos estratas bur-
férgas até entdo nav-controladas como, po. exemplo, a erupgio gueses entre os intelectuais que eram os dirigentes intelectuais
de energias coletivas em uma revolucio, somente pode concebé- e efetivos do pais, existindo, entretanto, entre astes ultimos e
-las como disturbios momentaneos. Wortanto, nfo é de admirar os consetvadores burocratas uma certa tenséo. Este modo de
que, diante de qualquer revolugéo, a burocracia busque encon- pensamento trazia a marca das universidade alemas, e, em es-
trar um remédio por meio de decretos arbitrdrios, ao invés de pecial, do grupo dominante de historiadores. Ainda hoje: em
enirentar a situacao politica nos seus préprios térmos. Consi- dia, esta mentalidade encontra apoio principalmente negtes
dera a revoluggo um acontecimento sinistre dentro de um siste- circulos.
ma de outra torma ordenado, e ndo a expressfo viva de fOrgas
sociais fundamentais de que dependem a existéncia, a preser- O conservantismo histérico se caracteriza pelo fato de estar
vacgaio e o desenvolvimento da sociedade. A mentalidade juridi- ciente do campoirracional na vida do Estado, que nao pode, ser
ca administrativa sd sabe construir sistemas de pcnsamento es- controlado pela administracao. Reconhece a existéncia de um
taticos e fechados, deparando sempre com a tarefa paradoxal de campo nao-organizado e imprevisivel que constitui a esfera .pré-
ter que incorporar em seu sistema novas leis, que emergem da pria da polftica, De fato, focaliza quase que exclusivamente sua
interagZo ndo-sistematizada de fOrcgas vivas, como se fdssem ape- atencao nos fatéres irracionais e impulsivos que propiciam a base
nas uma elaborag&o ulterior do sistema original. real para o desenvolvimento posterior do Estado e da sociedade.
Considera tais fércas como inteiramente superiores 4 compreen-
Um exemplo tipico da mentalidade militar-burocrdtica se
sao, inferindo que, em si, a razio humana é impotente para
encontra em cada variante da lenda da “‘punhalada pelas costas”
entendé-las e controld-las. Nesta esfera, ssmente um instinto
(Dolchstosslegende) que interpreta uma erupcSo revolucionéria
tradicionalmente herdado, fércas espirituais “‘operando silencio-
simplesmente como uma interfer&.ua o .a 1 sua estratégia
samente”, o “folk spirit”, Volksgeist, derivando sua férca das
cuidadosamente planejada. A unica preocupacéo do burocrata
profundezas do inconsciente, poderdo contribuir para moldar o
militar € a ac3o militar e, se esta se desenrola de acérdo com o
futuro.
plano, ent#o tudo o mais na vida est4é também em ordem. Essa
mentalidade faz lembrar a anedota do médico especialista, a quem
se atribui o dito: “A operacio foi um sucesso, Infelizmente o 5 Necroiugio de Bohiaa pelo jurista Bekker. Zeitschrift der
paciente morreu.” Savigny-Stiftung, Germanist. Abtlg., vol. VIII, pags. VI e segs.
146 IpgoLocia E Uropia TrEoRIA SociAL E PrAtica Poritica 147
Jé no fim do século XVIII esta atitude era enunciada por coisas’. * Nao basta ao lider politico meramente possuir o co-
Burke, que serviu de modélo 4 maioria dos conservadores ale- nhecimento correto e o dominio de determinadas leis e normas.
mes, através das seguintes palavras impressionantes: “A ciéncia Além déstes, precisa possuir o instinto inato, agucado median-
de construir ou renovar ou reformar uma comunidade nao pode, te longa experiéncia, que o conduza a resposta correta.
como qualquer outra ciéncia experimental, ser ensinada a priori. Dois tipos de irracionalismo foram conjugados para pro-
Tampouco seré uma experiéncia breve que nos poderd fazer duzir esta forma irracional de pensamento: por um lado, irra-
aprender nesta ciéncia prética”.% As raizes socioldgicas desta cionalismo tradicionalista pré-capitalistico (que considera o pen-
tese séo evidentes de imediato. Ela exprimia a ideologia da samento legal, por exemplo, como uma forma de sentir e nao
nobreza dominante na Inglaterra e na Alemanha, e servia para como um célculo mecdnico), e, por outro lado, o irracionalismo
legitimar suas pretensdes a lideranca do Estado. O je ne sats | romantico, Dessa forma, criou-se um modo de pensamento que
quoi (o elemento de imprecis’o) da politica, que sé pode ser- « concebe a histéria como sendo o dominio de fércas pré-racionais
adquirido através de uma longa experiéncia, e que em geral sd- e supra-racionais. Mesmo Ranke, o mais eminente representan-
mente se revelava aos que por muitas geracdes vinham partici- te da escola histdrica, se colocava neste ponto-de-vista intelec-
pando da lideranca politica, visava a justificar 0 Govérno por tual ao definir as relacées entre a teoria e a pratica,® De acdrdo
uma classe aristocrdtica. Isto esclarece a mancira pela qual os com Cle, a politica niio constitui uma ciéncia independente que
inter¢sses sociais de um dado grupo tornam os membros do possa ser cnsinada, O estadista realmente pode estudar a his-
grupo sensiveis a determinados aspectoys da vida social, a que tdtla com proveito, mas nfio de modo a derivar dela regras de
os situados em outra posigdo nao reagem. Lnquanto a buro- conduta, e, sum, porque ela serve para agugar o seu instinto po-
cracia é cega ao aspecto politico de uma situagho, em razio de litico, Pode-se designar éste modo de pensamento como a ideo-
suas preconcepcdes administrativas, a nobreza, desde o inicio, logia de grupos politicos que tenham tradicionalmente ocupado
sente-se totalmente A vontade nesta esfera. Desde o principio, uma posicéo dominante, mas que raramente participaram da bu-
esta Ultima tem os olhos voltados para a arena em que as esfe- rocracia administrativa.
tas de poder dentro e entre os Estados se entrechocam. Nesta Se confrontarmos as duas solugSes até aqui apresentadas,
esfera, a pequena sabedoria livresca nfo nos ajuda, e a solucéo tornar-se-4 claro que o burocrata tende a dissimular a esfera po-
dos problemas nao pode ser deduzida mecdnicamente das pre- Iftica, enquanto o historicista a considera mais forte e exclusi-
missas. Dai nao ser a inteligéncia individual que decide as vamente como irracional, muito embora destaque os fatéres tra-
quest@es; cada acontecimento € a resultante de fércas politicas dicionais nos acontecimentos histéricos e nos sujeéitos atuantes.
efetivas. A esta altura cncontramos o principal adversdrio desta teoria
A teoria histérica conservadora, que é essencialmente a que, conforme assinalamos, surgiu originalmente da mentalida-
expressio de uma tradig&io feudal? que toma consciéncia de si, de aristocr4tica feudal, a saber, a burguesia liberal-democrdtica
acha-se basicamente preocupada com problemas que transcen- e suas teorias.?° A ascensio da burguesia foi acompanhada de
dem a esfera da administracao. A esfera é considerada comple- um intelectualismo extremo. Intclectualismo, no sentido aqui
tamente irracional, nao podendo ser elaborada por métodos me-
canicos, mas se desenvolvendo por si. Esta visio refere tudo &
8 Ibidem, pag. 472, n.° 129,
dicotomia decisiva entre “a construcéo de acdrdo com um pla-
no caleulado” e a “ndo-interferéncia no desenvolvimento das 9 Cf. Ranke, Das politische Gesprach (1836), organizado por
Rothicker (Halle a. d., Saale, 1925), pags, 21 e segs. Outros ensaios
s6bre o mesmo tema; “Reflexionen” (1832), “Vom Einfluss der Theo-
8 Burke, Reflections on the Revolution in France, ed. por F. CG. rio”, “Uber die Verwandtschaft und den Unterschied der Historie und
Selby (Londres: MacMillan and Co., 1890), pag. 67. der Politik”,
7 Cf, “Das konservative Denken”, op. cit, pags. 89, 105, 133 ¢ 19 Para simplificar, nio distinguimos liberalismo de demoeracia,
segs. muito embora scjam inteiramente diferentes, social ¢ historicamente.
148 IpgoLogia E Uropia
TEoRIA SOCIAL E PrAtica Poritica 149
empregado, se refete a um modo de pensamento que ndo con-
sidera os elementos da vida e do pensamento que se fundam Heinrich Rickert 14 que, entretanto, aceita totalmente esta posi-
c4o. Existe, pois, uma ciéncia dos fins e uma ciéncia dos meios.
na vontade, no interésse, na emogio e na Weltanschauung — ou,
O fato mais notdével no tocante a esta tese consiste na completa
caso reconheca a existéncia déles, trata-os como se equivalessem
separagao entre a teoria e a pratica, entre a esfera intelectual e a
ao intelecto, acreditando que possam ser dominados e subordi- esfera emocional. O intelectualismo moderno se caracteriza por
nados 4 razio. Este intelectualismo burgués reclamava expres- sua tendéncia a nfo tolerar o pensamento valorativo e emocio-
samente uma politica cientifica e procurava efctivamente fun- nalmente determinado. Quando, no entanto, vem a deparar com
dar essa disciplina. Assiin como a burguesia descobriu as pri- éste tipo de pensamento (e todo o pensamento politico se en-
meiras instituigdes em que se podia canalizar a luta politica (pri- gasta essencialmente em um contexto irracional) tenta interpre-
meiro o parlamento e sistema eleitoral, e mais tardeia Liga das tar os fenémenos de modo que os elementos valorativos pare-
Nagdes), também criou um lugar sistemdtico para a nova dis- gam separdveis, e que, pelo menos, um residuo de teoria pura
ciplina da Polftica. A anomalia organizacional da sociedade bur- permaneca. Nesta tentativa, nem mesmo se colocou a questio
guesa aparece também na sua teoria socio], A tentativa bur- referente a se o elemento emocional nfo poderia em certas cir-
guesa no sentido de uma ampla e penetrante racionalizagéo do cunstancias se achar tao interligado com o irracional que viesse
mundo vé-se, no entanto, paralisada quando encontra cettos fe- a envolver a prdpria estrutura categérica, tornando de fato irrea-
némenos, Ao sancionar a livre concorréncia e a luta de classes, lizivel a prescrita segregacio dos elementos valorativos. O in-
chega mesmo a criar uma nova esfera irracional. Do mesmo telectualismo burgués, entretanto, nfo se incomoda com estas di-
modo, neste tipo de pensamento, o residuo irracional da reali- ficuldades. Com um otimismo a téda prova, langa-se 4 conquis-
dade permanece, sem se dissolver. Ademais, assim como o par- ta de uma esfera completamente purgada de irracionalismo.
lamento é uma otganizacéo formal —- uma racionalizacaéo formal No que se refere aos fins, esta teoria ensina que existe uma
do conflito politico, mas nfo sua solucdéo — a teoria burguesa Unica série legitima de fins para a conduta politica, série esta
alcanga apenas umaintelectualizagdo formal e aparente dos <le- que, caso nfo tenha ainda sido encontrada, pode ser alcancada
mentos inerentemente irracionais, pela discusséo. Assim a concepcio original do parlamentarismo
Claro, o espfrito burgués tem consciéncia déste ndvo do- era, como foi claramente demonstrado por Carl Schmitt, a de
minio irracional, mas é intelectualista na medida em que tenta, uma sociedade de debates em que se buscava a verdade através
exclusivamente através do pensamento, da discussao e da orga- de métodos teéricos.12 Sabemos muito bem e podemos com-
nizacio, dominar, como se jd estivessem racionalizados, o poder preender socioldgicamente em que reside a ilusdo déste miodo
de pensamento. Reconhecemos hoje em dia que, por tras de
e as outras relagSes que aqui imperam. .‘ osim, i alia, ac.?-
cada tecria, existem fOrcas coletivas que expressam propésitos,
ditava-se que a agdo politica pudesse, sem dificulaade, ser wen-
podéres e interésses de grupo. As discussSes parlamentares se
tificamente definida. A ciéncia em questo, ao que se supurks,
acham potarto longe de serem tedricas no sentido de que pos-
viria a se dividir em trés partes: sam atingir finalmente a verdade objetiva: concernem a ques-
Primeira — a teoria dos fins, isto é, a teoria do Estedo tdes extremamente reais, a serem decididas no choque de inte-
ideal. zésses, Foi tarefa do movimento socialista, surgido em seguida
Segunda — a teoria do Estado positivo.
como adversdrio da burguesia, elaborar especificamente @ste as-
pecto do debate em térno das questées reais.
Terceira — a “politica”, isto é, a descrigfo Ja r -neira ) 4
qual o Estado existente se transforma em um Estado perteito.
11. Of Rickert, Heinrich, “Ubcr idealistische Politik als Wissens-
Para ilustrar éste tipo de pensamento podemo-nos repor- chaft, in Beitrag zur Problemgeschichte der Staatsphilosophie”, Die
Akademie, Heft 4, Erlangen.
tar A estrutura do “Estado Comercial Fechado” de Fichte, neste
sentido recentemente analisado com bastante acuidade por 12° Ch Carl Schmitt, Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen
Parlamentarismus, 2." ed, (Leipzig, 1926),
TeoRIA SOCIAL E PrATICA POLITICA 151
150 IpEOLOGIA E Utopia
condigSes presentes. As condigdes em que éste movimento se de um irtacionalismo total, e que teve de contornar todos os pe-
processa resultam daquelas ora existentes.” 15 rigos que jd se haviam revelado no pensamento e na experién-
Se hoje em dia perguntarmos a um comunista, com uma cia conservadores e burgueses. As vantagens desta solugio re-
formagdo leninista, como serd realmente a sociedade futura, éle sidem no fato de que tenha assimilado as formulagSes prévias
nos responderd que esta pergunta é€ ndo-dialética, uma vez que do problema, e em sua abertura para o fato de que no campo
o futuro ser4 decidido no processo pratico dialético do vir-a-ser. da politica a corrente usual de pensamento é incapaz de reali-
Mas em que consiste éste processo dialético prdtico? zat seja o que fér. Por outro lado, esta visio é por demais pro-
Significa que nao podemoscalcular a priori 0 que uma coi- fundamente motivada pelo desejo de conhecimento pata que
sa deveria ser ou o que deverd ser. Podemos apenas influenciar caia em um irracionalismo total a exemplo do consetvantismo,
0 curso geral do processo de Vir-b-ser.”'O pbrobletha ‘concreto Do conflito entre as duas cotrentes de pensamento resulta uma
sempre presente sOmente pode ser, para nds, o préximo passo concepcfio bastante flexivel da teoria. Uma licdo bdsica deriva-
avante. Nao compete ao pensamento politico erigir um esque- da da experiéncia politica e magnificamente formulada por Na-
ma absoluto do que devesse set. A teoria. incluindo mesmo a polefio na maxima: “On s’engage, puis on voit,” 17 encontra aqui
teoria comunista, é uma funcao do processo de vir-a-ser, A re- sua sancéo metodoldgica. 18 Com efeito, o pensamento politico
lagdo dialética entre a teoria e a pratica consiste no fato de que, nao pode ser desenvolvido especulando-se a seu respeito exter-
antes de mais nada, a teoria, ao surgir de um impulso definida- namente, Antes, o pensamento vem a se clarificar quando se
mente social, clarifica a situagio. E no processo de clarifica- penetra em uma situacHo concreta, nao apenas pelo atuar e o
cao a realidade passa por uma mudanca. Penetramos assim em fazer, mas também pelo pensar que deve acompanhé-los.
uma nova situagio de que emerge uma nova teoria. O processo
se apresenta, entdéo como se segue: 1) A teoria é uma fun¢ao A teoria socialista-comunista constitui, assim, uma sintese do
da realidade; 2) esta teoria conduz a um cetto tipo de acio; 3) intuicionismo ¢ de um desejo determinado de compreender os
a acho modifica a realidade, ou, no caso de fracasso, nos forca fendmenos de uma maneira extremamente racional. O intui-
a uma trevisao da teoria inicial. A mudanca da situagdo efetiva cionismo aparece nesta teoria porque ela nega a possibilidade da
ocasionada pelo ato dé emergéncia a uma nova teoria. 1% avaliacio exata de acontecimentos antes de sua ocorréncia. A
Esta visio da relacio entre a teoria e a prdtica marca um tendéncia racionalista dela participa porque visa a ajustar a um
adiantado estagio na discuss’o do problena. Note-se que foi esquema racional qualquer novidade que, a qualquer momento,
precedido pela unilateralidade de um intclectualismo evtremo e venha a aparecer. Em momento algum se permite agir sem
teoria, mas a tearia que sutge no decorrer da acdo scré de nivel
oso
a apoteo se da
coragao de sua teoria e de sua pratica situa-se tida na formulacéo de Brodrero nfo pode ser comparada A con-
o, ¢ a import ancia atribu ida
acio direta, a crenga no feito decisiv cep¢io conservadora, a liberal-democrdtica ou a socialista. Té-
a con-
3 iniciativa de uma elite dirigente. A esséncia da politic das estas teorias, em outros aspectos tao antagénicas, partilham
e se apegar as exigén cias do momen to. _Os do pressuposto de que existe na histéria uma estrutura definida
siste em reconhecer
nfo tém import ancia, o que import a é a incondi cio- e averigudvel e que dentro dela, por assim dizer, cada aconteci-
ptogramas
a, nao se faz com as
nal subordinagio a um lider. ** A histéri mento detém sua devida posigao. Nem tudo é possivel em cada"
do em si-
massas, nem com as idéias, neta tom as fér¢as “‘atuan situagdo. *? Este quadro de referéncia estd em constante mu-
se afir-
léncio”, mas com as elites que de tempos em tempos danga e as alteragdes devem ser passiveis de compreenso. Cer-
, mas de forma al-
mam.25 £ste é um completo irracionalismo tas experiéncias, acdes e modos de pensamento, etc., sdmente
mo conhec ido pelos conser vadore s, sido possiveis em certos lugares e em certas épocas. Referéncias
guma o tipo de irracionalis
, nao o
nao o irtacional que ao mesmo tempo é supra-racional a histéria ¢ ao estudo da histéria ou da sociedade sao valiosas
nte,
folk spirit (Volksgeist), nao as farcas atuando silenciosame porque tomd-las como orlentagdo pode e deve tornar-se um fator
nao a crenca mistica na criativ idade de longos period es de tem- determinante na conduta e na atividade polftica.
eta:
po, mas o irracionalismo do feito que nega mesmo a interpr Por mais diferentes que sejam os modelos derivados da
er. Nés,
So da histéria. “Ser jovem significa ser capaz de esquec histéria pelos conservadores, liberais e socialistas, todos concor-
mas
os italianos, naturalmente nos orgulhamos de nossa histéria,
nfo precisamos fazer da histéri a o guia consci ente de nossas
agdes — ela vive em nds como parte de nossa constituicéo bio-
|
teoria fuscista. Idéiay institucionais como o Estado corporativo, orga-
nizagbey profissionais, etc., foram deliberadamente omitidas de nossa
légica.” 26 apresentagao, Nossa tarefa é analisar a atitude para com o problema
|:
da teoria ¢ da praca e a visio da Instéria que dai resulta, Por esta
gov2-aar razéo, considerainas necessdrio ocuparmo-nos, por vézes, des precurso-
24 Mussolini: “Nosso programa é sir sles: queremos res tedricos desta concepcdo, particularmente Bergson, Sorel e Pareto.
as, Ha program as em
a Itdlia, Vivem perguntando-nos sdbre program Na histéria do faseismo, dois periodos podem ser distinguidos — e cagla
da Itdla nao depende de program as, mas de ho-
demasia. A salvagio Meyer um déles teve repercussdes ideolégicas diferentes. A primeira fase, de
mens de vuatade vigorosa” (Mussoli ni, Reden, ed. por H.
|
mais ou menos dois anos, durante a qual o fascismo era um mero mo-
(Leipzig, 1928], pag. 105. Cf, também pags. 134 e segs.). vimento, caracterizava-se pela infiltragdo de elementos intuitivo-ativis-
25 Mussolini (op. cit. pag. 13): “Sabeis que eu nae sov um ticos em sua visio intelectual-espiritual. Foi 0 periodo em que as
de-
adorador do névo deus, as massas. De qualquer forma, a histona tcorias sindicalistas penctraram no fascismo. Os primeiros “fasci” eram
monstra que as mudanga s sociais sempre tém sido iniciadas por mino- sindicalistas, ¢ Mussolini, nesta época, dizia-se discipulo de Sorel, Na
rias, por um mero pugilo de homens”. segunda fase, iniciada em novembio de 1921, o fascisrno se estabiliza
26 De uma declaragio de Brodrero no Quarto Congresso Inter- e oricnta-se dcfinitvamente para a direita. Tomam entio énfase as
idéias nacionalistas, Para uma discussdo do modo pelo qual sua teoria
nacional de Coopcraciio Intelectual, Heidelburg, outubro, 1927.
£ muito dificil organizar as idéias fascistas numa doutrina coerer- se transformou, de acérdy cum a mudanca da base de classe, e espe-
cialmente das transformagées sofridas a partir de quandg a alta finanga
te. Além de ndo estar ainda desenvolvido, o fascismo nao da grande ea grande industria se aliaram a éle, ct. Beckerath, E, v., Wesen und
importancia a uma teoria integralmente organizada. Sen programa
da classe a que se dirija. Neste Werden des fascnstischen Staates (Balm, 1927),
muda constantemente, dependendo
pro-
caso, mais do que em qualquer outro, é essencial separa a mera Em contraste com isto, diz Mussolini: “De minha parte, nio
paganda da atitude real, a fim de obtcr-s. a compree nsiio de seu tenho grande confianga nestes ideais (os do pacifismo). Nao obstan-
cardter essencial. Este parece residir « \ seu absoluto irracionalismo e te, ndo os excluo. Nunca excluo o que quer que seja. Tudo é possi-
em seu ativismo, que explica também o cardter vacilante, volatil, da vel, mesmo o mais impossivel ¢ absurdo” (op. cit., pag. 74)
162 IpgoLocia E Uropia
Teorta Socta, E Priktica Poritica 163
dam em que a histéria se compde de um conjunto de inter-rela-
cSes inteligiveis, Acreditava-se, a principio, que a histéra ma- tir uma significagio. Nem todo acontecimento teria a possibi-
lidade de acontecer em cada situacdo, O fascismo considera t6-
nifestasse o plano da providéncia divina, mais tarde que demons-
trava o propésito superior de um espirito dindmica e panteisti- da a interpretagao da histéria como mera construcioficticia des-
camente concebido, Tais formulagdes nada mais eram do que tinada a desaparecer perante o feito do momento quando éste
tateios metafisicos em direcéo a uma hipdtese extremamente te-_ irrompe no padraéo temporal da histéria. 2!
cunda para a qual a histéria nao consisturia meramente em uma O estarmos aqui lidando com uma teoria que sustenta que
sucessio heterogénea de acontecimentos no tempo, e¢, sim, em a histéria é destituida de significado nfo sofre mudanga pelo
uma interacdo coerente dos fatéres de maior signiticacdo. Bus- fato de que na ideologia fascista, especialmente depois de sua
cava-se compreender a estrutura interna da historia para que dela virada para a direita, se encontrem as nocdes de “guerra nacio-
se derivasse uma unidade de mensuracdo para a conduta de cada nal” e¢ a ideologia do “Império Romano”. Afora a circunstin-
um, cia de que estas nogdes tenham sido, desde o inicio, conscien-
Enquanto os liberais e os socialistas continuam a acreditar temente experimentadas como mitos, isto é, como ficgdes, é pre-
que a estrutura histérica fésse inteiramente suscetivel de racio- ciso entender que © pensamento e a atividade histdricamente
nalizagéo, insistindo, os primeiros em que seu desenvolvimento orientados nao significam a idealizagio romfntica de alguma
eta progressivamente unilinear e os ultimos encarando-a como €poca ou de algum acontecimento passados, mas, antes, consis-
um movimento dialético, os conservadores buscavam compreen- tem na consciéncia do lugar que cada um ocupa no processo his-
der a estrutura da totalidade do desenvolvimento hisidrico in- térico, que tem uma estrutura nitidamente articulada. E esta
tuitivamente, através de uma abordagem morlolégica LEmbo- nitida articulagio da estrutura que torna intcligivel a partici-
ra diferentes em método e em conteddo, todos éstes pontos-de- pacdo do individuo no processo.
-vista compreendiam a atividade politica como ocorrendo num © valor intelectual de todo o conhecimento politico e his-
contexto histérico, concordando todos que, em nossa época, tor- tdérico gua conhecimento desaparece em face desta abordagem
na-se necessdrio que cada um se oriente face 4 situacio total em puramente intuitiva, que sdmente aprecia o seu aspecto ideold-
que se esteja colocado, a fim de se atingir objetivos politicos. gico e mitolégico. Nesta abordagem o pensamento sdmente pos-
Esta idéia de histéria como um esquema inteligivel desaparece sui significagio na medida em que expde o cardter ilusério destas
em face da irracionalidade da apoteose fascista do feito. Até teorias estéreis da histéria e as desmascara como enganos, Para
certo ponta isto j4 ocorria com o seu precursor sindicalista éste intuicionismo ativista, 0 pensamento apenas abre o cami-
Sorel, ®§ que negara a idéia de evolucéo cm umsentido andlogo. nho para o feito puro livre de ilusdes. O individuo superior, o
Os conservadores, os liberais e os socialistas se unem ao pres- lider, sabe que tédas as idéias polfticas e histéricas sio mitos.
supor que se pudesse demonstrar na histéita a existéncia de Ele préprio se acha delas inteiramente emancipado, mas as ava-
uma inter-relagdo entre os acontecimentos e as configuragdes,
lia — ¢ &ste € © reverso da medalha de sua atitude — porque
através da qual tudo, em virtude de sua posicio, vem a adqui-
28 Quanto as relacdes de Mussolini com Sorel, Sorel o conheceu Cf, o ensaio de Ziegler, H. O., “Ideologienlehre”, em Archiv
antes de 1914 e conta-se que, em 1912, @le disse: “Mussolini néo é um fia Somaltetssenschaft und Sosialpolitik, 1927, val, 57, pags. 657 ¢ segs.
socialista comum. Acreditem-me, um dia 0 veldo 4 fiente de um ba- Este autor assume o ponto-de-vista de Pareto, Sorel, etc., para demolir
talhio sagrado, saudando a bandeira itahana. Ele é um itahano ao o “mito da histéria”. Nega que a histérma tenha qualquer coeréncia
estilo do século XV, um verdadeiro condoitiere, Ninguém o conheve diseernivel @ aponta varias correntey de pensamcato contempordneas
ainda, mas éle é 0 tinico homem saficientemente ative para curar o que também adotam esta abordagem a-histénca. Mussolini expressou
Govérno de sua debilidade.” Citado por Pirou, Gactan, Georges Sorel 9 Mesmo pensamente e forma politico-retémea: “Nao somos mulheres
(1847-1922), Paris (Marcel Rividic), 1927, pag 53. Cl. também a histéricas que aguardam incdrosamente o que o future traré, Nao es-
resenha de Ernst Posse, em Archiv fir die Geschichte dey Sosalismus lamos esperunda o destne on a revelagio da historia” (op. cit, pig.
und der Arbeiterbewegung, vol, 13, pags. 431 ¢ segs. 129) © ainda: “Nio acreditamos que a histéria se repita, ou que siga
um cammho prefixado.”
164 IpgoLocia E Uropia THoRIA SOCIAL E Pratica PorfTica 165
séo “derivacdes” (no sentido de Pareto) que estimulam os sen- os vestigios de umafilosofia da histéria, de modo a se construir
timentos entusidsticos e que podem em agdo os “residuos” irra- uma Sociologia generalizadora. Por outro lado, os primérdios
cionais existentes nos homens, e sin as tnicas férgas que con- da concepsAo que caracteriza a teoria dos mitos titeis podem ser
duzem 4 atividade politica.** Eis uma traducao para a pratica amplamente referidos ao marxismo. Existem, contudo, ao se
do que Sorel e Pareto “1 formularam em suas teorias do mito ¢ examinar de mais perto a questio, diferencas essenciais.
que vieram a resultar em sua teoria do papel das elites e das Também o marxismo levanta a questao da ideologia no sen-
vanguardas. tido de “tecido de mentiras’, de ‘“mistificagdes”, de “ficgdes”’,
O ceticismo profundo frente 4 ciéncia e, em especial, em que procura desmascarar. Mas nao inclui nesta categoria tédas
face das Ciéncias Culturais, derivado da abordagem intuitiva, as tentativas de interpretacio da histéria, mas tio-s6 aquelas a
nao é dificil de compreender. Enguanto o marxismo dedicava que se opde. Nem todo tipo de conhecimento ganha o rétulo de
uma fé quase religiosa 4 ciéncia, Pareto a considerava uma me- “ideologia”. Sdmente os estratos sociais que tenham necessi-
cAnica social formal. No fascismo, encontramos o sdbrio ceticis- dade de disfarces e que, da posic&o histérica e social em que se
mo déste representante da decadéncia burguesa combinado a encontram, sao incapazes de perceber as vetdadeiras inter-rela-
autoconfianga de um movimento ainda na infancia. O ceticismo gdes tais como estas existem na realidade, serio necessariamen-
de Pareto face ao cognoscivel mantém-se intacto, sendo comple- te vitimas destas experié€ncias ilusdérias. Mas téda idéia, mes-
mentado por umafé no Leito em sie em sua vitalidade propria, *? mo uma idéia correta, pelo simples fato de que possa ser con-
Quando tudo o que seja peculiarmente histérico é tratado cebida, aparece como relacionada a uma certa situagao histdrico-
como inacessivel a ciéncla, resta apenas a pesquisa histérica a -social. © fato de que todo o pensamento se relaciona a uma
exploragio do estrato mais geral de regularidades que sejam as certa situagio histdérico-social nao o priva, entretanto, de qual-
mesmas para todos os homens ¢ para tédas as épocas, Afora quer possibilidade de atingir a verdade. Por outro lado, a abor-
a mecanica social, sd se reconhece a Psicologia Social. O conhe- dagem intuitiva, que tio repetidamente se afirma na teoria fas-
cimento da Psicologia Social tem utilidade para os lideres me- cista, concebe o conhecimento e a razoabilidade como algo in-
ramente como uma técnica para manipular as massas. Este pri- certo, e as idéias como fenédmenos de importancia inteiramente
mitivo estrato profundo da psiquc humana é idéntico em todos secundaria. * §6é um conhecimento limitado da histéria e da
os homens, quer tratemos do homematual, guer do romano an- politica é possivel — a saber, o que se acha contido na mec4nica
tigo, quer do homem da Renascenga. social e na Psicologia Social acima referidas.
Verificamos aqui que éste intuicionismo veio de stbito a Para o fascismo, a idéia marxista da histéria como uma in-
se fundir com a procura, por parte da burguesia contempora- tegracdo estrutural de f6reas econémicas e sociais também nao
nea, de leis gerais. O resultado foi a gradativa eliminagao no passa, em ultima andlise, de um mito. Assim como o cardéter do
positivismo, como Comte, por exemplo, o apresentava, de todos processo histérico se desintegra no decurso dos tempos, assim
também se rejcita a concepgao classista da sociedade. Nao existe
um proletariado — existem apenas proletdrios. 54 E caracteris-
80 CE. Sorel, G., Réflexions sur la ciolence (Paris, 1921), cap. 4,
tico déste tipo de pensamento e déste modo de vida dissolver-se
pags. 167 e segs.
a historia em uma variedade de situagdes transitérias em que
31 Uma exposigio concisa das posigdes sociolégicas de Pareto
dois fatéres séo decisivos; por um lado, o élan do grande lider
pode ser encontrada em Bousquet, Précis de suciologie d’aprés Vilfredo
Pareto (Paris, 1925). e da vanguarda ouelites, e, do outro, o dominio do nico tipo
32 Mussolini, em um de seus discursos, disse: “Criamos um mito.
Este mito é uma £6, um nobre entusiasmo. Nao precisa ser uma rea-'
lidade(!), 6 um impulso e uma esperanca, crenga @ coragem. Nosso 38 “Qs temperamentos dividem os homens mais do que as idéias”,
mito 6 a nagiv, a grande nacio que desejamos fazer realidade con- Mussolini, op. cit., pag. 55.
creta” (citado por C. Schmitt, Die geistesgeschichiliche Lage des heuti- 34 CF, Beckerath, E, v., op. cit. pag. 142. Também Mussolini,
gen Parlamentarismus, pag. 89). op. cit., pag. 96,
166 IpzoLocia EB Uroria Teoria Soctat © PrAtica PoLitica 167
de conhecimento que se acredita possivel obter ¢ que se refere com a histéria, Esta atitude assume varias formas aparecen-
& psicologia das massas e 4 técnica de sua manipulagéo. A poli- do de inicio do anargaismo de Bakunin e de Proudhon, de-
tica sdmente é possivel como ciéncia em um sentido restrito — pois no sindicalismo de Sorel, e finalmente no fascismo de
a saber, na medida em que abre caminho para a acdo. Mussolini, #6
Ela faz isso de duas maneiras: primeiro — destruindo 1é- Do ponto-de-vista sociolégico, seria esta a ideologia dos
das as ilusGes que nos fazem ver a histéria como um ptocesso; grupos “putschistas” guiade- por intelectuais estranhos ao es-
segundo — levando em conta e observando o espirito coletivo, trato de lideres liberal-hurgueses e socialistas, que esperam con-
e especialmente seus impulsos energéticos e seu funcionamento. quistar o peler explorando as crises que atacam constantemen-
Mas, em grande parte, esta psique coletiva segue, de fato, leis te a sociedade moderna em seu perfodo de transformacdo. Este
destituidas de conotacdo temporal, pois que ela mesma est4 fora perfodo dc transformacao, quer conduza ao socialismo, quer a
do curso do desenvolvimento histérico. Em contraposicio, o uma economia capitalisticamente planificada, se caracteriza pelo
cardter histérico da psique social sé é perceptivel a grupos e pes- fato de oferecer oportunidades intermitentes ao emprégo de té-
soas qué ocupam uma posicao definida na estrutura social his- ticas putschistas. Na medida em que contém em si os fatéres
térica, irracionais da vida econdmica e social, atrai os elementos irra-
Em ultima andlise, esta teoria da politica tem suas raizes cionais explosivos do espirita moderno.
em Maquiavel, que j4 havia lancado seus princfpios fundamen- A exatidio da interpretagio desta ideologia como expres-
tais. A idéia de virt# antecipa o élan do grande lider. Um rea- sfo de um determinado estrato social é comprovada pelo fato
lismo corrosivo que destréi todos os idolos, e o constante recur- de que as interpretacSes histéricas baseadas neste ponto-de-vista
so a uma técnica para a manipulacdo psiquica das massas, pro- se orientam na direcao da esfera irracional acima referida. Es-
fundamente desprezadas, seréo igualmente encontrados em seus tando psicoldgica e socialmente situados em um ponto de onde
escritos, muito embora @stes possam diferir em detalhe das con- sd conseguem discernir o que ha de desordenado e de nio-racio-
cepgGes fascistas. Finalmente, a tendéncia a negar a existéncia nalizado na evolugao da sociedade, o desenvolvimento estrutu-
de um plano na histéria e a adogdo da teoria da intervengio di- ral e o quadro integrado da sociedade permanecem ocultos a seu
reta do feito sfo igualmente antecipadas. Mesmo a burguesia campo de visio.
tem com fregiiéncia dado lugar em sua teoria a esta doutrina re- E quase possivel estabelecer uma cortelacdo socioldgica
ferente 4 técnica politica, colocando-a, como Stahl péde ver mui- entre o tipo de pensamento a que os grupos organizados ou of-
to acertadamente, ao lado da idéia da lei natural, que desempe- gAnicos recorrem, e uma interpretagio sistemdtica e consistente
nhava funcdo normativa, 98 sem no entanto ligar as duas, Quan- da histéria. Por outro lado, existe uma profunda afinidade en-
to mais os ideais burgueses e a correspondente visio da histdria tre os grupos sem raizes,sociais ¢ um intuicionismo a-histérico.
eram em parte realizados e em parte desintegrados pela desilu- Quanto mais os grupos organizados e organicos se expdem a
sio, em virtude da elevacio da burgnesia ao poder, tanto mais desintegracfo, tanto mais tendem a perder a inclinagdo a uma
éste cdlculo racional, destituido de quaisquer consideragdes pela concepcéo consistentemente ordenada da histéria e tanto mais
seqiiéncia histérica dos fatos, era reconhecido coma a unica for- se inclinam ao imponderdvel e ao fortuito, A medida que os
ma de conhecimento politico. No periodo mais recente, esta grupos golpistas espontaneamente organizados v&o-se tornando
técnica politica totalmente desvinculada veio a se associar ao mais estdveis, tornam-se igualmente mais receptivos 4s grandes
ativismo e ao intuicionismo, que negavam a inteligibilidade da perspectivas histéricas e a uma visio ordenada da sociedade.
histéria, convertendo-se na ideclogia dos grupos que a uma mu- Muito embora complicagdes histéricas entrem freqiientemente
danga gradual e evolutiva, preferem a colisdo direta ¢ explosiva no processo, deve-se manter sempre presente éste esquema, pois
que csineia tendemuas co ofereehipdteses fecundas. Umaclas-
35 Cf. Stahl, F. J., Die Philosophie des Rechts, vol I, 4.4 ed.,
livro 4, cap. 1, “Die neuere Politik”. 36 Cf, S_hmitt, Pariamentarismus, cap. 4.
168 IbEoLocIA = UTOPIA Teoria SoctaL & Pratica Pofrica 169
se Ou outro grupo org4nico similar nunca vé a histdéria como para os demais a histéria é uma transformacdo da estrutura his-
constituida de acidentes transitérios e desconexos; tal sdmente tdrico-social. Cada um déles sé consegue ver, fundamentalmen-
é possivel para grupos que surjam no seu interior. O ptdprio te, o aspecto da totalidade histdrica ¢ social a que o seu propé-
momento nao-histérico concebido pelo ativismo, que espera déle sito o oriente.
fazer uso, ¢ na realidade arrancado ao seu contexto histérico mais
No processo de transformagio da sociedade moderna exis-
amplo. C conceito de pratica, nesse modo de pensamento, cons-
tem, como j4 haviamos mencionado, petiodos em que os me-
titui, da mesma forma, parte integrante da técnica golpista, en-
canismos criados pela burguesia para a continuidade regulada
quanto os grupos socialmente mais integrados, mesmo quando
da luta de classes (como o parlamentarismo) se revelam insufi-
em oposicao 4 ordem existente, concebem @ acdo como um mo- cientes! H4 periodos em que o curso da evolugao falha tempo-
vimento continuo no sentido da‘ realizagdo de seus fins. °7
tiriamente, e as crises se tornam agudas. As relacdes de classe
Oc’ taste entre o éan dos grandes lideres e das elites, de ea estratificacio de classes se tornam tensas e deformadas. A
um lado, . a turba cega, do outro, revela o cunho de uma ideo- consciéncia de classe dos grupos em conflito se faz confusa.
logia caracterfstica de intelectuais mais interessados em conse- Nestes perfodos é facil emergirem formagGes transitérias, e ten-
guir autojustificagSes do que em obter apoio exterior, Trata- do os individuos perdido ou esquecido suas orientagdes de clas-
-se de uma contra-ideologia 4s pretensdes de uma lideranca que ses, vem a surgir a massa. E, em tais momentos, torna-se pos-
se considera um 6érgio de expresso dos interés: s de amplos stvel uma ditadura. A visao fascista da histéria e a sua aborda-
estratos scciais. O que vem a ser exemplificado pelo cstrato dos gem intuitiva, que serve de preparativo para a agao imediata,
lideres conservadores que se cons’ ‘eravam dtgio do “povo”; 38 transformaram o que niin passa de uma situag&o parcial em uma
pelos liberais que se acreditavam a encarnacio do espfrito da visio total da sociedade.
época (Zezigeist), e pelos socialistas ¢ comunistas que se su- Com a restauracio do equilfbrio que se segue a crise, as
poem agentes de um proletariado com consciéncia de classe. fareas histérico-sociais organizadas tornam-se de névo atuantes.
Essa diferenca nos métodos de autojustificagio permite ver Ainda que a elite, alcada ao poder durante a crise, seja capaz de
que os grupos que operam com a dicotomia lider-massa cons- s¢ ajustar satisfatdriamente & nova situacio, as fércas dindmicas
tituem elites ascendentes ainda socialmente desvinculadas, por da vida social voltam apesar disso a se afitmar como anterior.
assim dizer, e que ainda tém de criar uma posigio social para mente. Nao é que houvesse uma alteragao na estrutura sogial,
si. Nao se acham primariamente interessados em derrubar, re- mas um embaralhamento ~- uma troca de pessoal entre as varias
formar ou pfeservar a estrutura social — sua principal preo- classes sociais dentro do quadro do processo social, que con-
cupacdo <onsiste em suplantar as elites dominantes existentes, tinua a evoluir A histéria moderna j presenciou, com cettas
substituindo-as por outras. Nao é por acaso que um dos gru- modificacdes, um exemplo de tal ditadura: é 0 caso de Napoledo.
pos encara a histéria como uma circulacio de elites, enquanto Histdricamente, esta ditadura nao significou outra coisa que a
ascensio de certas elites, Sociolagicamente, constituiu uma in-
dicacio da vitéria da burguesia ascendente, que sabia como’ ex-
aT ¢ proprio Mussolini fala, convincenteren » da muday jy que ploiar 0 imperialismo napoleénico para as suas prdprias fina-
o golpista sofre, depois de chegado ao poder, “f inerivel come um fidades,
franco-alirador, um vagabundo, pode mudar quando se lorna depulado
ou funciondrio comunal, Comega a achar que é preciso iespeilar os Pode ocorrer gue os clementos do espirite que ainda nao
orgamento, municipais e que éstes niio podem ser violados” (op, cit., tenham sido racionalizados se ctistalizem sempre de névo em
pig. 166). uma estrutura social mais estdvel. Pode também acontecer que
38 Teste sentido, Savigny criou a f.ccio, para o conseryentismo a posicio subjacente a esta filosofia irracionalista seja inadequa-
evolucioniirio, de que os juristas ocupavam um status especial como da pata abarcar as amplas tendéncias de desenvolvimento his-
representantes do folk spirit (Vom Beruf unserer Zeit zur Gesetzgebung térico e social, Mesmo assim, a enisténcia destas explosdes de
und Rechtswissenschaft, Friburgo, 1892, pig. 7). curta duragéo atrai a atencio para os abismos irracionais ainda
170 Ingotocia E£ UTOPIA TEORIA SociaL © PrATiIcA PoLitica 171
n&o-compreendidos e incompreensfveis pelos métodos histéricos lipticos, s#o apesar disso, em muitos casos, pessoas bastante
ordindrios. Os elementos ainda nao-racionalizados juntam-se praticas.” 8” Assim, o homem pode agir a despeito de pensar.
aqui aos nao-histéricos e aos elementos da vida que nao pos- Tem insistido com freqiiéncia que mesmo o leninismo con-
sam ser reduzidos a categorias histéricas, Vislumbramos um tém umas tinturas de fascismo. Mas seria um equivoco des-
campo que, até agora, parece ter permanecido imutdvel. Inclui prezar-se as diferencas ao se enfatizar as similaridades, O ele-
os instintos bioldgicos cegos que, em sua identidade eterna, se mento comum 4s suas visdes restringe-se meramente A atividade
encontram na base de todos os acontecimentos histéricos. Estas de minorias agressivas. Sdmente porque o leninismo constituiu
férgas podem ser dominadas externamente por uma_ técnica, originalmente a teoria de uma minoria inflexivelmente deter-
nunca podendo, entretanto, atingir o nivel da significacdo, nun- minada a conquistar o poder por meios revoluciondrios foi que
ca podendo ser entendidas internamente. Além déste elemen- a teoria da importancia dos grupos dirigentes ¢ de sua energia
to biolégico sub-histérico, iremos igualmente encontrar nesta decisiva veio a ser colocada em primeiro plano, Mas esta teo-
esfera um elemento espiritual transcendental désse elemen- ria jamais se refugiou em um irracionalismo completo. O grupo
to, nado inteiramente incorporado na histéria, e que, como algo bolchevista cra apenas uma minoria ativa dentro de um movi-
nao-histérico e alheio a nosso pensamento, escapa A compreen- mento de classe de um proletariado cada vez mais autoconscien-
so, que os misticos falaram. Apesar de os fascistas nao o men- te, de modo que os aspectos ativistas irracionais de suas dou-
cionarem, devemos nao obstante alinhdé lo como o ontro grande trinas clam consiantemente sustentados pela assumpcao da in-
desafio ao racionalismo histérico, tclipibilidade racional do processo histérico,
Tudo o que se féz inteligivel, compreensfvel, racionaliza- O espfrito a-histérico do fascismo pode scr em parte deri-
do, organizado, estruturado, elaborado artisticamente e de ou- vado do espirito de uma burguesia j4 no poder, Uma classe
tras maneiras, e, conseqiientemente, tudo 0 que € histérico pa- que j4 tenha ascendido na escala social tende a conceber a his-
rece de fato se colocar entre astes dois pdélos extremos. Se ten- téria em térmos de eventos isolados e sem ligacio. Os aconte-
tatmos observar, déste ponto intermédio, as inter-relacdes dos cimentos histéricos sOmente aparecem como um processo en-
fendmenos, jamais chegaremos a ver o que se situa acima e quanto a classe que observa tais acontecimentos ainda espera
abaixo da histéria. Se, por outro Jado, nos colocarmos em alguma coisa déles. Sdmente estas expectativas podem dar oca-
qualquer déstes pdlos extremos e irracionais, perderemos com- sido a utopias, por um lado, e a conceitos de processo, do outro.
pletamente de vista a realidade histdérica em sua concretude. Contudo, o sucesso no conflito de classes afasta o elemento
utépico, e relega as visSes mais amplas para o segundo plano, a
Os atrativos do tratamento fascista do problema das rela- fim de melhor dedicar suas fGrcas As tarefas imediatas. O re-
gOes entre a teoria e a pratica residem no fato de designar co- sultado é que, em lugar de uma visio do conjunto que anterior-
moiluséo todo o pensamento. O pensamento politico pode ser mente levava em consideracto as tendéncias e as estruturas
de valia para despertar o entusiasmo para a acio, sendo contudo totais, surge uma imagem do mundo composta de meros acon-
indtil como um meio de compreensio cientifica do campo da tecimentos imediatos e fatos isolados. A idéia de um “proces-
“politica”, que envolve a previséo do futuro. E extraordindrio so” e da inteligibilidade estrutural da histéma se converte em
que o homem, vivendo no brilho ofuscante do irracional, ainda um simples mito.
seja capaz de dominar, em cada momento, o conhecimento em-
QO fascismo é capaz de adotar serenamente éste reptidio
pirico necessdtio para prosseguir sua vida cotidiana, Sorel obser-
burgués da histéria como estrutura e processo, sem nenhuma
vou certa vez a éste respeito: “Sabemos que os mitos sociais nio
inconyeniéncia, j4 que o préprio fascismo é o expoente de gru-
impedem o homem de ser capaz de aproveitar tédas as observa-
pos burgueses. Em conformidade com isso, néo tem a intencfo
ges feitas no curso da vida cotidiana nem interferem na exe- de substituir a ordem social existente por outra, mas apenas a
cugéo de suas tarefas regulares.” E, ao pé da pagina, acrescenta:
“Tem-se notado com freqiiéncia que os séctdrios americanos e
ingléses, cuja exaltagdo religiosa € sustentada por mitos apoca- 39 Sorel, 07? rit, pug. 177.
172 IneoLocia E Uroria Teoria Soctat E Prdvica Poririca 173
de substituir um grupo dirigente por outro grupo dirigente, bos praticdveis. Por um lado, pode-se dizer: desde que, no
dentro da configuracio de classes existente.'!° As probabi campo da politica, o Gnico conhecimento que possuimos é um
dades de uma vitdria fascista, bem como as de uma justifica- conhecimento limitado pela posig&o que ocupamos, e, desde que
g&0 de sua teoria histérica, dependem da ocorréncia de conjun- a formagio de partidos constitui estruturalmente um elemento
turas em que uma crise desorganize tio profundamente a or- irremovivel da politica, segue-se que a politica somente pode
dem capitalista burguesa que os meios mais evoluciondrios de ser estudada de um ponto-de-vista partidério e ensinada em uma
se levar avante o conflito de interésses ndo sejam mais suficien- escola partiddria. Acredito, de fato, que @ste raciocinio se mos-
tes. Nestes momentos as prpbabilidades de concquistar o poder tre um caminho de que se seguem desenvolvimentos imediatos.
esto com os que souberem utilizar a ocasiao com a necessdria Entretanto, tem-se tornado evidente e promete se tornar
energia, estimulando as minorias ativas ao ataque, e, dessa for- ainda mais que, devido ao cardter complexo da sociedade con-
ma, atrebatando o poder. temporanea, os métodos tradicionais de se preparar a futura ge-
ragdo de lideres politicos, que até ent@o possufam um cardter
largamente acidental, nfo sao mais adequados pata suprir o
3. A SiNVESE DAS DIVERSAS PERSPECTIVAS COMO UM politico moderno com o conhecimento necessério, Os partidos
PROBLEMA DE SOCIOLOGIA POLITICA politicos acharéo portanto necessdério desenvolver suas escolas
partiddrias com um cuidado e uma elaboracio sempre crescen-
Nas pdginas anteriores tentamos tmostrar concretamente tes. Nao sé iréo fornecer o conhecimento fatual que habilite os
como um mesmo problema, ou seja, o da relacdo entre a teoria provaveis lideres politicos a formular juizos fatuais quanto a
e a pratica, assumia uma forma diferente de acérdo com as po- problemas concretos, mas itao igualmente inculcar os pontos-de-
sigdes polfticas diferentes de que era abordado. O que ocorre -vista respectivos, a partir dos quais a experiéncia possa ser or-
com esta questio bdsica de qualquer polftica cientifica perma- ganizada e controlada,
nece igualmente vdlido para quaisquer outros problemas especi- Todo ponto-de-vista politico implica, ao mesmo tempo,
ficos. Pode-se demonstrar em todos os casos que nfo sé dife- mais do que a mera afirmacao ou rejeigfo de um conjunto in-
rem as orientacdes fundamentais, as avaliacdes ¢ o contetido das questiondvel de fatos. Implica também uma Weltanschauung
idéias, mas que a maneira de formular um problema, o tipo de bastante compreensiva. A significac&o atribuida a esta ultima
abordagem utilizada, e mesmo as categorias em que experién- pelos lideres polfticos vem a se evidenciar nos esforgos de to-
cias sfo classificadas, coligidas e ordenadas, variam de acdrdo dos os partidos em moldar o pensamento das massas, nao sé
com a posic&o social do observador. de um ponto-de-vista paitiddrio, mas também do ponto-de-vista
Se o decurso das lutas politicas até agora tem demonstra- de uma Weltanschauung. A pedagotia politica significa a trans-
do decisivamente que existe uma intima relacio cntre a nature- missio de uma particule: atitude fece ao mundo, que ird per-
za das decisées politicas e a perspectiva intelectual, a conclusao :mear todos os aspectos ua vida. A educagio politica significa,
aparente seria a de que é impossivel uma ciéncia da polftica. hoje em dia, uma concepgdo definida da histéria, um certo mo-
Mas é precisamente neste ponto, em que as dificuldades se tor do de interpretar os acontecimentos, e uma tendéncia a pto-
nam mais pronunciadas, que atingimos um momento decisivo. cutar uma orientagio filosdéfica de um modo definido.
A esta altura emergem duas novas possibilidades e, neste Esta clivagem de modos de pensamento e Weltanschauung,
ponto da formulacao do problema, vemos dois caminhos, am- bem como esta crescente diferenciagio de acérdo com posigdes
politicas, vém-se processando com intensidade cada vez maior
40 Quanto 4 atitude de Mussolini frente ao canitalismo: “ . a desde o inicio do :éculo XIX. A formacio de escolas partid4-
real histéria do capitalismo comegarA agora. O capitalismo nao 6 um tlas ra acentuar esta tendéncia, e a levard 4 sua conclusio légica.
sistema de opressio — pelo contrario, representa a selecéo dos mais A formagao de escolas partiddrias e o desenvolvimento de teo-
aptos, iguais oportunidades para os mais dotados, um mais desenvol-
vido senso de responsabilidade”, op. cit., pig. 96. tias partidérias constituem, no entanto, apenas uma das conse-
174 IpeoLocis E Uroria Teoria Sociat & Prarica Poritica 175
qiténcias inevitdveis da situaco atual. Conseqiiéncia que interessa mo na esfera dos usos e costumes, na associacao rcligiosa e
aos que, por ocuparem uma posigao extrema na ordem social, cultural, fOrgas organicas ¢ nao-organizadas estivessem atuando,
devam apegar-se a seu partidarismo, conceber os antagonismos O conservantismo histérico estava também ciente de que havia
como absolutos, e suprimir qualquer concepgao do todo, lugar para um tipo peculiar de racionalidade nesta esfera de
A. situagdo alual propicia ainda outra possibilidade, que
fércas organicas: unha de decifrar as tcndéncias inerentes de
repousa, por assim dizer, no reverso do cargtcr {undamental- crescimento, Apesar de sua unilateralidade consistir no exagé-
mente partiddrio da orientago politica. Esta alternativa, pelo ro da importancia dos elementos irracionais na mente e das fér-
mchos “io importante quanto a anterior, consiste no seguinte: qs socials irracionais, a éle correspondentes, na realidade his-
ago sé ¢ reconhecido o cardter necessittamente partidario de térica © social, o conservantismo histérico, ndo obstante, ressal-
tada forma de conhecimento politico, mas também o cardter tou uM ponto importante que nfo poderia ser percebido de
peculiar de cada variedade. ‘ornou-se hoje indiscutivelmente nenhum outro ponto-de-vista © mesmo se aplica aos pontos-
claro que todo conhecimento politico, ou que implique uma vi- -de-vista restantes © pensamento burgués democratico tanto
sio de mundo, é inevitavelmente partidério. O cardter frag- descobriu como desenvolveu a possibilidade de um meio racional
mentdrio de todo o conhecimento é reconhecivel claramente. Mas de evar avante o conflito de intercsses na sociedade, que man-
isso implica a possibilidade de uma integragdo de muitos pon- icrd sua reahdade ¢ funcio na vida moderna enquanto forem
tos-de-vista mutuamente complementares em um todo amplo. possivels os métodos pacilicas do conflito de classes
Exatamente por nos acharmos, hoje em dia, em uma posi- O desenvolvimento desta abordagem dos problemas polfti-
sao que nos possibilita ver com crescente mitides que as opi- cos comstituiu uma realzagho hisidiica ¢ duradoura da burgue-
nides e as reorias mutuamente opostas nado odo inlinitas em sia, podendo-se apreciar o seu valor, muito embora a unilatera-
nimero, nem produtos de uma vontade arbitraria ¢ sim mutua- Hidade de seu intelectualismo tenha ficado completamente ex-
mente complementares, derivanda de situagaus soctars espect posta, Oo cspftito burgucs tinha ani tterésse social vital em
ficas, € que a politica como ciéncia se torma, pela primcira vez, ocultar a si mesmo, por meio déste intelectualismo, os limites
possivel. A atual estrutura da sociedade possibilita uma cién- de sua tacionalizagéo. Dai agir como se os contlitos reais pu-
cia politica que nfo serd apenas uma ci¢ncia partiddria, mas dessem ser plenamente resolvidos pela discussie. Deixou, po-
uma ciéncia do todo. A Sociologia Politica, enquante ciéncia rém, de compreender que, intimamente ligado ao campo da po-
que engloba téda a esfera politica, atinge assim a fase de rea- litica, surgia um nédyo tipo de pensamento em que nfo se po-
lizacio. deria separar a teoria da prdtica, nem o pensamento da intencio.
Em parte alguma, o vardtcr mutuamente complementar
Com isso, surge a demanda de uma instituigdo de base mais
ampla que uma escola partidéria, em que se possa desenvolver das visSes parciais social e politicamente determinadas serd mais
nitidamente .isivel do que aqui. Pois é aqui que se torna mais
esta ciéncia da totalidade politica. Antes de nos dedicarmos 4
uma vez manifesto que o pensamento socialista comeca onde o
possibilidade e estrutura déste tipo de investigaglo, é necessd-
pensamento burgués democratico atinge seus limites, e que veio
tio estabelecer com maior firmeza a tese de que cada ponto-de-
a Jangar nova luz precisamente sdbre aquéles fendmenos que
-vista particular necessita ser complementado por todos os de-
seus predecessores, devido 4 conexao intima com seus prdprios
mais, Recordemos 0 exemplo que utilizamos para ilustrar a base
interésses, haviam deixado obscurecido, Ao marxismo deve-se
partiddria de todo problema. reconhecer a descoberta de que a politica nfo consiste simples-
Verificamos que apenas determinados aspectos e reas li- mente em partidos parlamentares e nas discussdes que man-
mitadas da realidade histérica e polftica se revelam a cada um tém, ¢ que éstes, qualquer que seja a forma concreta de que se
dos varios partidos. O burocrata restringia seu campo de visio revistam, sdo apenas a expressdo de superficie de situagdes so-
A parte estabilizada da vida do Estado, o conservantismo his- ciais ¢ ccondémicas mais profundas, que podem tornar-se inteli-
térico sOmente podia ver as regides em que o Volksgeist, atuan- giveis em grande parte, através de um névo modo de pensa-
do silenciosamente, ainda se achasse em operacgio e em que, co- mento. Estas descobertas assinalam a colocagdo da discussao
176 IpgoLtocia E Uropta Tzorta SociAL E PrAtica Porfrica 177
em um nivel mais alto, de onde se pode obter uma visdo mais senvolvido independentemente? Muito embora estas sinteses
extensa ¢ inclusiva da histéria e uma concepgio mais clara do se revelassem, repetidas vézes, sinteses parciais que se desin-
que realmente constitui o dominio da politica. A descoberta tegravam no decotrer do desenvolvimento subsegqiiente, produ-
do fenémeno da ideologia se acha estruturalinente associada, de zindo, por exemplo, o hegelianismo de direita e o hegelianismo
modo intimo, a esta descoberta. Apesar de bastante unilateral, de esquerda, muito embora nao féssem sinteses absolutas, mas
é a primeira tentativa de definir a posigéo do pensamento so- sinteses relativas, nado deixavam de indicar uma direcdo bastan-
cialmente vinculado em oposig&o 4 “teoria pura’. te promissora,
Finalmente, para voltar a ultima antitese, enquanto o mat- A exigéncia de uma sintese absoluta e permanente viria,
xismo dedicava uma atencgio exageradayc sypercnfatizava o fun- segundo nossa opiniao, a significar uma recaida na visio. de
damento puramente estretural da esfera politica e histérica, o mundoestdtica do intelectualismo. Numa esfera em que tudo
fascismo voltava sua atengio para os aspectos amorfos da vida, se acha em processo de ttansformacao, a tinica sintese adequa-
para os “momentos” ainda presentes e importantes em situa- da seria uma sintese dindmica, reformulada de tempos em tem-
Ges ctiticas, em que as fdrcas de classe se tornam desconexas pos. Existe ainda, contudo, a necessidade de solucionar um
e confusas, quando as acdes dos homens, agindo como membros dos mais importantes problemas que podem ser postos, ou seja,
de massas transitérias, assumem importancia, e quando o resul- de fornecer a viséo do todo mais englobante que seja possivel
tado depende inteiramente das vanguardas ¢ dos lideres que em um dado momento.
momentaneamentc dominem a situagio. Mas também aqui se Tentativas de sintese ndo aparecem sem relacdes umas com
trataria de uma superénfase de uma fase isolada da realidade his- as outras, pois cada sintese, ao resumir ds fOrcas ¢ opinides de
térica considerar estas eventualidades, muito embora de ocor- scu tempo, prepara o caminho para a seguinte. Pode-se notar
rénela freqiiente, como a essencia da realidade histérica, A di- um certo progresso em direcéo a uma sintese absoluta, no sen-
vergéncia das teorias politicas deve-se sobretudo ao fato de que tide utdpico, no fato de cada sintese tentar alcancar uma pers-
as diferentes posigdes e pontos sociais vantajosos, ao cmergirem pectiva mais ampla do que a precedente, vindo a ultima a in-
na corrente da vida social, habilitcam cada individuo a reco- corporar os resultados das que a precederam.
nhecer, do ponto de observacio particular que ocupa naquela Neste ponto da discussdo surgem duas dificuldades, mes-
cotrente, a prépria corrente. Assim, em diferentes épocas, emer- mo no tocante a sintese relativa.
gem interésses sociais ¢lementares dilerentes e, em consonaneia, A primeira provém do fato de nao mais podermos conce-
diferentes objetos de atengaio, na estrutura total, sao tlumina- ber a parcialidade de um ponto-de-vista como sendo meramen:
dos e vistos como se féssem os Unicos existentes, te uma questio de grau. Se a clivagem nas percepsdes politicas
Todos os pontos-de-vista, em politica, sto apenas parciais, ¢ filosdficas consistisse apenas em que cada uma delas se dedi-
porque a totalidade hisidrica & sempre demasiado mais ampla casse a outro lado ou secéo do conjunto, cada uma iluminando
para ser apreendida por qualquer dos pontos-de-vista indivi- apenas um s¢gmento particular dos acontecimentos histéricos,
duais que dela emergem. Contudo, ji que todos ées emergem uma sintese por adicéo seria possivel sem maiores problemas.
da mesma corrente social e histérica, ¢ jd que sua parcialidade Bastarja, tdo-s6, adicionar essas verdades patciais e reunilas em
existe na matriz de um todo emergente, € possivel vé-los em um todo,
justaposigao, ¢ sua sintese se torna um problema que deve ser Mas esta concepcio simplificada nfo é mais sustentdvel
continuamente reformulado e resolvido. A sintese constante- desde © momento em que vimos que a determinacao dos pon-
mente revista ¢ renovada dos pontos-de-vista particulares exis- tos-de-vista particulares por suas situacSes sc baseia nfo apenas
tentes torna-se tanto mais possivel quanto as tentativas de sin- na selegio do tema, mas também na divergéncia dos aspectos
tese, igualmente, possuem uma tradicao, da mesma forma que e das maneiras de colocar o problema, e, finalmente, na diver-
o conhecimento fundado no partidarismo. Nao tentou Hegel, géncia do aparato categérico e dos princfpios de organizacao.
chegando ao término de uma época relativamente fechada, sin- A questéo consiste, portanto, no seguinte: serd possivel a di-
tetizar, em sua obra, as tendéncias que até entfo se haviam de- ferentes estilos de pensamento (com o que nos referimos as di-
178 IpEoLocia E Uropia Teor1A SociAL E PrAtIcA PoLitica 179
ferengas nos modos de pensar acima descritas) fundir-se um com de perder de vista a nature interessada, até agora constante-
© outro e sofrer uma sintese? O curso do desenvolvimento mente enfatizada, do pensamento politico, e de presumir que a
histérico mostra a possibilidade desta sintese. Téda endlise con- sintese possa vir de uma fonte exterior 4 arena politica. Uma
creta do pensamento, que procede sociolégicamente e busca reve- vez reconhecido que o pensamento politico esta sempre vincula-
lar a sucesso histérica de estilos de pensamento, indica que do a uma posicgio na ordem social, € cocrente supor que a ten-
éstes sofrem uma ininterrupta fusdo e interpenctragao. déncia a uma sintese total deva estar incorporada na vontade
Ainda mais, as sinteses de estilos de pensamento nao sho de algum gruposocial,
efetuadas apenas pelos que sejam basicamente sintesistas e¢ que E, com efeito, um répido relance pela histéria do pensa-
tentem, mais ou menos conscientemente, englobar cm seu pensar mento politico mostra que os expositores de sintese sempre re-
téda uma época (Hegel, por exemplo). Fazem-nas também cer- presentaram estratos sociais definidos, sobretudo classes que
se
tos grupos contendores, na medida em que tentam umnificar e sentiam ameagadas de cima ¢ de baixo e que, por necessidade
conciliar pelo menos tédas as correntes em conflito que encon- social, procuram escapar por um caminho intermedidrio. Mas
trem em sua prépria esfera limitada. Assim Stahl pretendeu esta busca de um compromisso assume, desde o principio, tan-
reunir no conservantismo tédas as tendéncias afins de pensa- to uma forma estdtica quanto uma forma dindmica. A posic¢ao
mento, até ent&o existentes, ligando, por exemplo, o historicis- social do grupo a que se filiam os portadores da sintese deter-
mo o teismo. © préprio Marx dedicou-se 4 fusio da tendén- mina amplamente qual destas duas alternativas devera ser en-
cia generalizadora do pensamento Hiberal-burgués com O Aisto- fatizada.
ticismo hegeliano que era de origem conservadora, Claro est, por A forma estdtica de mediagio dos extremos foi tentada, em
tanto, que nfio apenas os contetidos do pensamento, mas também primeiro lugar, pela burguesia vitoriosa, especialmente no pe-
a prdépria base do pensamento, est4o sujcitos a sintese. Esta sintese riodo da monarquia burgucsa na Franca, onde se exprimia no
de estilos de pensamento, que até entio se desenvolviam sepa- principio do juste muliew. Este chavio constitui, no entanto,
mais
tadamente, parece tanto mais necessdria, j.A que o pensar deve uma caricatura de uma verdadeira sintese do que sua solugao, que
visar constantemente o aumento da capacidade de seu Ambito sdmente pode ser uma solugio dinamica. Assim, tal chavao bem
categérico formal, quanto pretenda dominar os problemas que pode servir para mostrar que erros uma soluciio precisa evitar.
crescem diariamente em niimero e dificuldade. Se mesmo, aqué- Uma verdadeira sintese nfio é a média aritmética de tédas
les cujos pontos-de-vistas so partidariamente vinculados cons- as diversas aspiracdes dos grupos existentes na sociedade. Se
tatam a necessidade de uma perspectiva mais ampla, esta ten- assim fdsse, tenderia apenas a estabilizar o status quo em bene-
déncia deveria mostrat-se ainda mais pronunciada entre os que, ficio dos que acabam de ascender ao poder e que desejam pro-
desde o inicio, buscaram a compreensiio mais inclusiva possivel teger seus ganhos contra os ataques tanto da “direita’’ como da
da totalidade. “esquerda”. Pelo contrério, uma sintese vélida deve-se basear
numa posi¢ao politica que venha a constituir um desenvolvi-
4. © PROBLEMA SOCIOLOGICO DA “INTELLIGENTSIA” mento progressivo, no sentido de reter e utilizar boa parte das
aquisigSes culturais e energias sociais acumuladas na época an-
A segunda dificuldade que surge no presente estdgio do terior, Ao mesmo tempo, a nova ordem deve permear os mais
problema consiste no seguinte: como devemos conceber os por- amplos setores da vida social, deve adquirir raizes naturais na
tadores sociais ¢ politicos de qualquer sintese existente? Que sociedade, a fim de colocar em aco o seu poder de transforma-
interésse politico ird assumir o problema da sintese e quem se go. Esta posigfo requer uma especial vigilancia para com a
empenhard em realizd-la na sociedade? realidade histérica do presente. O “aqui” espacial e o “agora”
Assim como em um periodo anterior irfamos recair em temporal de cada situacio devem ser considerados no sentido
um intelectualismo estdtico se, ao invés de visarmos uma sinte- histérico ¢ social, ¢ sempre lembrados a fim de, em cada caso,
se relativa dindmica, tivéssemos adotada uma sintese supratem- se determinar o que j4 nao é necessdrio e o que ainda nao é
poral e absoluta, da mesma forma corremos neste ponto o risco possivel,
180 IpEoLociA E UToPia Torta SociaL B PrAtTICA PoLfTica 181
Tal visio experimental, incessantemente sensivel a natu- progressivamente a suprimir as diferencas de nascimento, sta-
teza dinimica da sociedade e A sua unicidade, nao vird prova- tus, profissio e riqueza, e a unit os individuos instruidos com
velmente a ser desenvolvida por uma classe que ocupe uma base na educacSo recebida.
posicfo intermédia, mas por um estrato relativamente sem clas-
Em minha opinido, nada poderia ser mais errado do que in-
se, cuja situagio na ordem social nao seja demasiado firme. O
terpretar mal esta afirmacdo, sustentando que os lacos de classe
estudo da historia, com referéncia a esta questao, fornecerd
uma sugestéo bastante fecunda. e de status do individuo venham, em virtude disto, a desapare-
cer completamente. Constitui, entretanto, uma caracteristica
Este estrato desamarrado, relativamente sem classe, con- peculiar a esta nova base de associagio o fato de que preservera
siste, pata usar a terminologia:de Alfred Weber, na “‘ineelligent- multiplicidade dos elementos componentes em téda a sua Va-
sia socialmente desvinculada” (fresschwebende ' Intelligenz). riedade, por ctiar um meio homogéneo dentro do qual as par-
Seria impossivel, a éste respeito, esbogar mesmo o mais esque-
tes em conflito podem aferir suas fOrcas. A educacdo moderna
méatico dos resumos do diffcil problema socioldgico colocado
é, por sua origem, uma luta viva, uma réplica, em pequena es-
pela existéncia do intelectual. Mas os problemas de que estamos
cala, dos propésitos e tendéncias em conflito que se entrecho-
tratando nao poderiam ser formulados adequadamente, e muito
cam na sociedade mais ampla. Conseqiientemente, 0 homem ins-
menos tesolvidos, sem que abordd4ssemos certas questGes rela-
tivas A po-ico dos intelectuais. Uma Sociologia orientada ape- trufdo é determinado, quanto ao seu horizonte intelectual, de
nas para a referéncia a classes sdécio-econémicas jamais com- miltiplas maneiras. Essa hetanca cultural adquirida sujeita-o
preenderé adequadamente éste fendmeno. De acérdo com esta a influéncia de tendéncias opostas na realidade social, enquan-
teoria, os intelectuais constituem uma classe, ou, pelo menos, to a pessoa cuja orientacio face ao todo nao se processa em
um apéndice de uma classe. Poderia assim descrever correta- virtude da sua instrug&o, mas que participa diretamente no prto-
mente certos detcrminantes ¢ componentes désse corpo social cesso social de produgiio, tende simplesmente a absorver a
desvinculado, mas nunca a qualidade essencial do conjunto, Sem Weltanschautung désse grupo particular e a agir exclusivamente
dtivida, ocorre que grande parte de nossos intelectuais pro- sob a influéncia das condicSes impostas por sua situacho social
vém dos estratos rentistas, cujos rendimentos derivam dircta imediata.
ou indiretamente de aluguéis e juros sébre investimentos. Mas, Um dos fatos mais marcantes da vida moderna é que,
nesse caso, certos grupos de funciondtios e das chamadas pro- nela, divetsamente do que acontecia nas culturas precedentes,
fissSes liberais seriam igualmente membros da intelligentsia. a atividade intelectual nado é exercida de modo exclusivo por
Entretanto, um exame mais préximo da base social déstes es- um classe social rigidamente definida, como a dos sacerdotes,
tratos mostrar4 que séo menos claramente identificados a uma mas por um estrato social em gtande parte desvinculado de
classe do -ue aquéles que participam mais diretamente no pro- qualquer classe sucial e recrutado em uma 4rea mais extensa
cesso eco. ~mico. da vida social. Este fato socioldgico determina essencialmente
A se completar éste corte sociolégico por uma viso histd- a singularidade do espfrito moderno que, caracteristicamente,
rica da questo, veremos que se pronuncia uma heterogeneida- nao se baseia na autoi’dede de um clero, nao sendo fechado e
de ainda maior entre os intelectuais. As mudangas nas rela- acabado, mas dinamico, eldstico, em estado de constante fluidez
gSes de classe, ocorridas em épocas diversas, afetam favorivel- e perpétuamente confrontado com novos problemas. O ptd-
mente alguns désses grupos, e desfavoravelmente outros. Em prio humanismo j4 era, em grande parte, a exptessio de um
conseqiiéncia, no se pode sustentar que sejam homogéneamen- estrato mais ou menos socialmente emancipado, e sempre que
te determinados. Embora sejam por demais diferenciados para a nobreza se fazia portadora de cultura rompia em muitos pon-
que se os considere como umaclasse, existe, no entanto, entre tos a fixidez de uma mentalidade vinculada a classe. Mas s0-
todos os grupos de intelectuais, um vinculo sociolégico de uni- mente depois de chegarmos ao periodo da ascendéncia burgue-
ficagdo, ¢ 1 seja, a educaco, que os enlaca de modo surpreen- sa € que o nivel da vida cultural vaise tornando cada vez mais
dente. A participacdo em uma heranga cultural comum tende desligado de uma classe determinada,
182 IpEoOLOGIA E UTOPIA TeortA Soctat & Pr&tica Poritica 183
A burguesia moderna teve, desde o inicio, uma dupla raiz uma apreensio téo profunda da situagio total que a tendéncia
social — por um lado, os proprietdrios de capital; por outro, a uma sintese dinamica reaparecia constantemente, apesar das
os individuos cujo tnico capital consistia em sua instrugdo. deformagées tempordrias que ainda terernos de estudar.
Era comum, por isso, falar-se na classe proprietdria e instruida, Até agora, tem-se quase que exclusivamente enfatizado o
sem que, no entanto, o elemento instruido de forma alguma aspecto negativo do ‘“desvinculamento” dos intelectuais,
sua
estivesse ideoldgicamente de acdrdo com o elemento proprie- instabilidade social e o caréter predominantemente calculista
de
tario, #4 sua mentalidade. Foram, em especial, grupos politicamente ex-
Surge, entdo, no interior desta sociedade profunda- tremistas que, exigindo uma declaracio definida
de simpatias
mente dividida pot cisSes de classe um estrato que uma Socio- rotularam éste traco de “falta de caréter”. Resta
indagar en.
logia orientada exclusivamente em térmos de classe dificilmen- tretanto, se, na esfera politica, a decisio a favor de umamed
ia-
te poderia compreender. Nao obstante, a pasicio sacial espe- gio dinamica nao constituird uma decisto tanto quanto
o é a
cifica déste estrato pode ser adequadamente caracterizada, Ape- adogiio brusca de teorias de ontem ou a énfase unilater
al nas
sat de situado entre classes, nado forma uma classe média, Cla- teortas de amanha
ro qué nZo se acha suspenso em um vdcuo em que os interés- Duas siio as linhas de acko efctivamente adotadas pelos in-
ses sociais nao penetrem; pelo contrdrio, resume em si mesmo telectuais desvinculados camo. saida para esta posigio a meio
todos os interésses que permeiam a vida social, Com o aumen- caminho: uma, que coresponde a voluntaria filiagio a
uma ou
to em numero ¢ varicdade das classes ¢ estratos em que se re- eutra das varins chisses antaponicus; oulra,
oO exame de suas
crutam os diversos grupos de intelectuais, observam-se maiores Proprias raizes sociais ¢ a tentativa de cumprir sua
missao de
multiplicidade e contraste nas tendéncias que, atuando ao nivel defensores predestinados dos interésses intelectuais do todo,
intelectual, os ligam uns aos outros. Entao, o individuo parti- No que se refere A primeira saida, os intelectuais desyin-
cipa mais ou menos da massa de tendéncias em conflito miituo. culados slo encontrados em todos os campos no curso da his-
Enquanto os que patticipam diretamente no processo de toria. Assim, sempre forneceram teéricos aos conservadores
producio — o operdrio e o empresdrio — estando vinculados a que, devido A sua estabilidade social, dificilmente conseguiam
uma classe e a um ponto-de-vista particulares tém os seus pon- alcar-se até a autoconsciéncia tedrica. Forneceram, da mesma
tos-de-vista e atividades direta e exclusivamente determinados forma, tedricos ao prolctariado que, devido a suas condicSes so-
por suas situagdes sociais especificas, os intelectuais, além de ciais, carecia dos pré-tequisitos para a aquisicio do conheci-
portatem indubitavelmente a marca de sua afinidade especifica mento necessario em face do conflito politico moderno. Sua
de classe, sio também determinados, em seus pontos-de-vista, filiagfo & burguesia liberal j4 foi discutida.
por éste meio intelectual que contém todos os pontos-de-vista Esta capacidade de se ~incularem a classes a que original
contraditérios, Esta situacAo social sempre forneceu a energia mente nao pertenciam era possivel aos intelectuais porque éles
potencial que habilitava os intelectuais mais eminentes a desen- podiam adaptar-se a qualquer ponto-de-vista e porque eram os
volverem a sensibilidade social indispensdvel para que se tor- Unicos em condig6es de escolher uma filiacHo, ao passo que os
nassem sintonizados com as fdrcas dindmicamente em contflito. individuos imediatamente ligados por filiacdes de classe somen-
Cada ponto-de-vista era constantemente examinado quanto a te em raras excecSes sc mostravam capazes de transcender os
sua importancia para a situacZo presente. Além disso, exata- limites de sua visio de classe. Esta decisio voluntdria de
mente por meio dos vinculos culturais déste grupo, atingiu-se aliar-se As lutas politicas de uma classe determinada unia-os real-
mente a essa classe durante a luta, mas nao os punha a salyo
41 Cf, Fr, Briggemann, “Der Kampf um die burgerliche Welt- da desconfianga nutrida pelos membros originais da classe. Esta
und Lebensanschauung in der deutschen Literatur des 18. Jahrhunderts”, desconfianca constitui apenas um sintoma do fato socioldgico
Deutsche Vierteljahrsschrift fur Literaturwissenschaft und Gerstesges-
de que a condic&o de assimilacdo de intelectuais a uma classe
chichte, IIL (Halle, 1925), pags. 94 e segs. Trata-se de um bom tra-
tamento da recrudescéncia periddica do clemento supraburgués nos
estranha é limitada por suas préprias caracteristicas psiquicas e
cireulos literdrios da burguesia do século XVUI. sociais peculiares, Socioldgicamente, esta peculiaridade de per-
184 IpzoLocia E Utopia Teoria SociaL & PrATIcA Po.ftica 185
tencer 4 intelligentsia explica o fato de que um proletdrio que tas; por outro lado, em um sentido mais positivo, significava a
se torne um intelectual costuma mudar sua personalidade so- introdugao de certas exigéncias intelectuais na politica prdtica.
cial. Nao caberia aqui um estudo minucioso da atitude do in- Tim conseqiiéncia de sua colaboragio com partidos e classes, os
telectual ao deparar com essa desconfianca. Desejamos apenas intelectuais puderam deixd-los marcados por @ste cunho. Se
assinalar que o fanatismo dos intelectuais radicalizados deve nada mais tivessem a seu crédito, somente isso j4 teria sido uma
ser entendido 4 luz dessa desconfianga. Indica uma compreen- significativa contribuicio. Sua funcdo consiste em penetrar
so psiquica pela falta de uma integracdo mais fundamental em nas fileiras dos partidos em conflito, de modo a obrigd-los a
uma classe, bem como a necessidade de superar a prépria des- aceitat suas demandas. Esta atividade, considerada em térmos
confianga e a dos outros. sociolégicos, demonstrou, amplamente, em que ponto residem
Claro que se poderia condenar o rumo tomado pelos in- a peculiaridade socioldgica e a missfio déste estrato social des-
telectuais ¢ as suas infindas oscilacSes, mas sé nos interessa vinculado.
aqui explicar éste comportamento através da posic&o dos inte- A segunda saida para o dilema dos intelectuais consiste
lectuais na estrutura social total. Este abandono e transgressio precisamente cm tomar consciéncia de sua préptia posicfo so-
sociais podem ser encarados como nada mais do que um abuso cial e da missfo nela implicita. Uma vez feito isto, a filiacio
negativo de uma posigdo social peculiar. Ao invés de cancen- ou a oposigao politicas sero decididas com base em umaorien-
trar suas energias nas potencialidades positivas da situagio, o taco consciente dentro da sociedade e de acirdo com as exi-
individuo sucumbe as tentacdes potenciais da situacio. Nada géncias da vida intelectual.
seria mais incorreto do que se basear um juizo séhve a funcao Uma das tendéncias bdsicas no mundo contemporaneo é 0
de um estrato social no comportamentau apostdtico de alguns gradativo despertar da consciéncia de classe em tédas as clas-
de seus membros, deixando de ver que a freqtiente “falta de ses. Assim sendo, segue-se que mesmo os intelectuais atingi-
conviccfo” dos intelectuais constitui apenas o reverso do fato rio uma consciéncia — embora no uma consciéncia de classe
de que sdmente éles se acham em condicSes de ter conviccdes — da posicio social geral que ocupam e dos problemas e opor-
intelectuais. Em térmos de longo prazo, a histéria pode ser tunidades que ela envolve. Esta tentativa de compreender o
vista como uma série de experimentos de tentativa e¢ érro, em fendmeno sociolégico dos intelectuais, e a de, com base nisto,
que mesmo os fracassos humanos tém um valor provisdrio, tomar uma atitude face 4 politica, possuem tradigdes prdprias,
sendo os intclectuais aquéles que, no seu curso, se vitam mais tanto quanto a tendéncia de se assimiliar a outros partidos.
expostos ao fracasso, devido a sua falta de insetc#o em nossa N&o nos preocupamos aqui em examinar as possibilidades
sociedade. As repetidas tentativas de se identificarem com ou- de uma politica exchisivamente conveniente a intelectuais. Tal
tras classes, bem como as continuas recusas destas tltimas, de- exame provayelmente demonstraria que os intelectuais, no pe-
~ vem eventualmente conduzir a uma concepcio mais clara, por riodo atual, nZo poderiam tornat-se politicamente ativos em
parte dos intelectuais, do significado e do valor de sua prdptia térmos independentes, Em uma época como a nossa, em que
posicgéo na ordem social. os interésses e posigSes de classe vém atingindo uma definicdo
A primeira saida para a crise em que os intelecutais se en- cada vez mais acentuada, derivando sua férca e direcio da aciio
contram, que é a da filiac&o direta a classes e partidos, eviden- de massa, dificilmente seria possivel uma conduta politica que
cia uma tendéncia, ainda que inconsciente, a uma sintese dina- buscasse outros meios de apoio. O que, entretanto, nao impli-
mica. A classe que recebia o seu apoio era, em getal, a classe ca que sua posicio particular os impeca de realizar coisas de
que necessitava de desenvolvimento intelectual. Basicamente, indispensdvel significacio para o ptocesso social total. Destas,
o conflito de intelectuais é que transformava o conflito de in- a mais importante seria a descoberta da posigéo que possibili-
“ter€sses em um conflito de idéias. Esta tentativa de alcar o tasse uma perspectiva total. Désse modo, poderiam desempe-
conflito de interésses a um plano espititual tem dois aspectos: nhat o papel de vigias no que, de outra forma, seria uma noite
por um lado, significava a glorificago vazia de interésses indis- impenetravel. Resta saber se seria desejével descartar-se de td-
farcados através das tramas de mentiras tecidas por apologis- das as oportunidades decorrentes desta situac&o peculiar.
186 Ipeotocia E Uroria Teorra Soctat E PrAtica Poitica 187
© ponto-de-vista politico de um grupo, cuja posigao de Precisamente a estas tendéncias Jatentes é que devemos a
classe esteja mais ou menos definitivamente fixada, jd se encon- nossa atual concepsio de que todos os interésses e conhecimen-
tra por tal posicio definido. Quando isso nao sucede, como tos polfticos sio necessiriamente partidaristas e particulares.
no caso dos intelectuais, existe uma drea mais ampla de esco- SS hoje, quando nos iornamos cénscios de tddas as correntes
lha e uma correspondente necessidade de orientac&o total e de e em condicdes de compreender todo o processo de surgimen-
to dos interésses politicos e das, Weltanschauungen, a luz de um
sintese. Esta ultima tendéncia, oriunda da posigio dos inte-
proceso’ sociolégito ihteligivel,! é que percebemos a possibili-
lectuais, existe, ainda que a relacHo entre os vérids grupos nao
dade da politica como ciéncia. E provavel que, de acérdo com
conduza A formacéo de um partido integrado. Analogamente,
© espirito da época, venham a surgir mais e mais escolas pat-
os intelectuais permanecem capazes de chegar a uma orientacgao
tiddrias, e, assim, tanto mais seré de se desejar que se crie um
total mesmo depois de ingressarem em um partido. A capa- fro efetivy, quer nas universidades, quer em instituigGes espe-
cidade de adquirir um ponto-de-vista mais amplo deveria ser cializadas de ensino superior, que sirva A busca desta forma
considerada meramente um dnus? Nao se trataria, pelo contra- avancada de ciéncia pclitica, Se as escolas partiddrias se diri-
rio, de uma misso? S6 aquéle que realmente pode escolher é gem exclusivamente aqueles cujas decisdes polfticas jd foram
que tem interésse em petceber 0 conjunto da estrutura social e tomadas de antemio pelos partidos, éste outro modo de estudo
politica. SSmente no periodo de tempo c¢ no esté4gio de inves- se voltard para aquéles cujas decisSes continuam ainda por ser
tigacio que é dedicado a deliberacio é que se poderd encontrar tomadas Seria tanto melhor que aquéles intelectuais que tra-
a localizacZo socioldgica e Idgica do desenvolvimento de uma zem pronunciados interésscs de classe viessem, especialmente
perspectiva sintética. A elaboracio de uma decisio sé ¢ verda- na juventude, a assimilar o ponto-de-vista e a concepgio do todo.
deiramente possivel sob condicdes de liberdade baseadas numa Mesmo numa escola déste tipo, ndo se deve esperar que
possibilidade de escolha que continue a existir, mesmo depois os professéres sejam isentos de tendéncias partiddrias. Esta
de tomada a decisio. Devemos a possibilidade de interpene- escola no tem por objetivo evitar que se chcgue a decisdes po-
tragdo mitua e compreensdo das correntes de pensamento exis- Ifticas. Mas existe uma profunda diferenca entre um professor
tentes A presenca déste estrato médio relativamente desvin- que, apds cuidadosa deliberacio, se dirije a seus alunos, cujas
culado. que se encontra aberto ao ingresso constante de indivi- mentes ainda nao estéo formadas, de um ponto-de-vista adqui-
duos das mais diversas classes e grupos sociais, com todos os tido por uma cuidadosa meditacHo, conduzindo a uma com-
pontos-de-vista possiveis. Sé nessas condicdes pode surgir a preensio da situacdo total, e um professor exclusivamente in-
sintese incessantemente nova e ampla a que nos referimos. teressado em inculcar um ponto-de-vista partiddrio jd firme-
Mesmo o romantismo, devido 4 sua posic#o social, j4 mente estabelecido.
havia incluido em seu programa a exigéncia de uma mediacio Uma Sociologia Politica que vise ndo inculcar uma deci-
ampla e dinamica (dynamische Vermittlung) de pontos-de-vista so, mas prepatar o caminho para se chegar a decisdes, poderd
conflitantes. Pela natureza do caso, esta exigéncia conduziu a compreender relacdes até ent&o nem sequer percebidas no cam-
uma perspectiva conservadora. No entanto, a geracio que su- po politico, Esta disciplina sera especialmente valiosa para
cedeu ao romantismo suplantou esta visdo conservadora com o esclarecimento da natureza de interésses socialmente vincula-
uma visio revolucionéria que estaria mais de acérdo com as dos, Apontaré os fatéres determinantes subjacentes a ésses juf-
necessidades da época. O essencial, no momento, é que, somen- zos de classe, revelando assim a maneira pela qual as fércas co-
te nessa linha de desenvolvimento, veio a petsistir a tentativa letivas se acham vinculadas a interésses de classe, fato ésse que
de fazer desta mediaco uma mediag4o viva e de associat as de- precisa ser levado em conta por todo aquéle que trate de poli-
cisSes polfticas a uma orientac&o total prévia. Hoje, mais do tica. Servird para esclarecer relagdes do tipo: tal ou qual in-
que nunca, espeta-se que éste grupo médio dinamico se esforce terésse, dentro de determinado contexto de acontecimentos, pro-
por criar um féro, alheio as escolas de partido, que salvaguar duzird tal ou qual tipo de pensamento, e tal ou qual visdo do
de a perspectiva do todo e o interésse pelu tude. precesso socia! .1.., Entretanto, a composic¢ao déstes conjun-
188 IpgoLocia E Uroria Teoria Sociat £ Pr&tica Poritica 189
tos especfficos de interésses depende do canjunto especifico de podemos ter déles uma consciéncia mais ou menos adequada,
tradigSes que, por seu turno, depende dos determinantes estru- bem como podemos interpreté-los.
turais da situacdo social. Sé quem fér capaz de formular o pro-
blema desta maneira estaré em condicdes de transmitir a ou-
tros uma visdo da estrutura da cendrio politico, e de ajudd-los 5. A NATUREZA DO CONHECIMENTO POLiTICO
a obter uma concepcao relativamente completa do todo. Esta
diregio imprimida A investigacio permitird uma compreensio A pergunta sébre a possibilidade de uma ciéncia da po-
mais adequada da natureza do pensamento histdrico e politico, lftica e de seu ensino deve ser respondida, se resumirmos tudo
e demonstraré mais claramente as relacdes que sempre existem o que foi dito até agora, pela afirmativa. Naturalmente, nossa
entre as concepgdes de histdéria e os pontos-de-vista politicos. solugio implica uma forma de conhecimento muito diferente
Os que adotam esta abordagem so, no entanto, muito sofisti- da que geralmente se concebe. O intelectualismo puro nfo to-
cados, politicamente, para acreditar que as decisdes politicas leraria uma ciéncia tao intimamente associada A prdtica.
possam ser ensinadas ou que se possa suspendé-las arbitraria-
mente, enquanto forem ainda prevalecentes. Em resumo: quais- © fato de que a ciéncia politica, em sua forma espontanea,
quer que sejam os teus interésses, éles serio teus na qualidade n@o se ajuste ao quadro existente da ciéncia, como nés a en-
de pessoa politica, mas o fato de teres @stes ou aquéles interés- tendemos, e de que esteja em contradigdo com a nossa atual
ses implica também que facas isto ou aquilo para compreendé- concepcao da ciéncia nao significa que a politica seja culpada...
-los, e em que devas conhecer a posicao especifica que ocupas
Antes deveria ser um estimulo para a revisio de nossa con-
cep¢ao de ciéncia como um todo. Mesmo um passageiro relan-
no processo social total. 4?
ce 4s nocGes contemporaneas de ciéncia e A sua organizac&o ins-
Apesar de acreditarmos que interésses e propdsitos nfo po- titucional mostrard que nao temos sido capazes de lidar satisfa-
dem ser ensinados, é possivel, contudo, a investigagao e a co- toriamente com teorias nas quais a ciéncia em questo esteja
municagSo da relacio estrutural entre o juizo e o ponto-de-vista, estreitamente ligada a problemas praticos. Nao existe uma po-
entre o processo social e o desenvolvimento de interésse, Os Iftica cientifica tanto quanto nao existe uma ciéncia da peda-
que exigem que a politica, enquanto ciéncia, ensine normas e gogia. Ainda, nao se iria ganhar coisa alguma se, depois de
fins deveriam considerar que esta exigéncia implica, efetivamen- verificada nossa incapacidade para resolver os problemas mais
te, a negacSo da realidade da politica. A tunica coisa que pude- importantes déstes ramos da ciéncia, dispensdssemos tudo o que
mos exigir da politica, enquanto ciéncia, é que veja a realidade fésse prdpriamente pedagdgico e politico por se tratar de “‘ar-
com os olhos de séres humanos em aco, e que ensine a ho- tes” ou “dons intuitivos”. Tudo o que, dessa maneira, se teria
mens, na acéo, a compreenderem, mesmo os seus adversérios, conseguido seria uma fuga a problemas que tém de ser en-
a luz de seus motivos reais e de sua posicio na situacio histd- frentados.
rico-sacial. A Sociologia Politica, neste sentido, deve estar cons- A experiéncvia real mostra que, no ensino como na politica,
ciente de sua func&o de sintese mais completa das tendéncias de é precisamente no curso da conduta efetiva que se pode, em
uma época. Deve ensinar tinicamente o que se pode ensinar: proporcdes crescentes, obter um conhecimento especffico e re-
as relacdes estruturais; os jufzos nao podem ser ensinados, mas levante, comunicdvel em certas condicSes. Consegiientemen-
te, torna-se claro que nossa concepgfo de ciéncia é muito mais
restrita do que o Ambito dos conhecimentos atuais; e que o co-
42° Max Weber formulou os problemas da Sociologia Politica de
nhecimento atingivel e comunicdvel nao se restringe, de modo al-
modo algo semelhante, embora partisse de premissas inteiramente di-
versas. Seu desejo de imparcialidade na politica representa a velha gum, aos limites das ciéncias atualmente estabelecidas.
tradicio democratica. Nao obstante sua posig&io tenha o defeito de Se, no entanto, se verifica que a vida oferece possibilida-
separar a teoria da valoragio, sua pretensio de criar um ponto de par- des de conhecimento e de compreensfo, mesmo em campos em
tida comum para a anilise politica é objetivo digno dos maiores es- que a ciéncia nao desempenha papel algum, nao constitui solu-
forgos, cao denominar-se éste:conhecimento de “pré-cientifico” ou re-
ee
190 Ipgorocia © Urueia
Teoria SoctaL E Prhtica Potfrica 191
-a
moderno —- hd muito deixara de ter qualquer conhecimento.
déstes tipos de conhecimento ainda nao formulados, para depois
Segue-se dat que nfo se pode considerar o modélo mateméatico-
examinarmos a possibilidade de estender os horizontes e con-
natural da ciéncia adequado ao conhecimento como um tedo,
cepedes da ciéncia, de modo a serem incluidas essas pretensas
a
éreas pré-cientificas do conhecimento. A primeira dimensio a ser deslocada por éste estilo de
pensamento racionalista moderno que, socioldgicamente, se en-
A diferenca entre “cientifico” e “pré-cientifico” depende, contrava estreitamente ligado 4 burguesia capitalista, foi o in-
naturalmente, do que pressupomos serem os limites da ciéncia. A terésse pelo qualitativo. Mas, desde que a tendéncia funda-
esta altura, deveria estar claro que, até agora, a definiczo tem sido mental da ciéncia moderna era analitica, e desde que nada era
demasiado estreita, e que apenas determinadas ciéncias se tor- considerado cientifico a menos que tivesse sido reduzido a seus
naram, por motivos histéricos, modelos do que uma ciéncia de- elementos constitutivos, desapareceu o interésse pela percepcao
veria ser. E, por exemplo, bem sabido a que ponto o desen- direta e imediata de totalidades. Nao foi por acaso que o ro-
volvimento intelectual moderno reflete o papel dominante da mantismo foi o primeiro a assumir tendéncias do pensamento
Matemética. A rigor, ¢ segundo éste ponto-de-vista, sémente que davam nova énfase ao valor cognitiva especifice do conhe-
setia considerada cientifico o que fésse mensurdvel. Em época cimento qualitative e do conhecimento da totalidade. E de-
mais recente, o ideal da ciéncia tem sido o conhecimento ma- vemos relembrar que o romantismo representa a moderna con-
temdtica e geométricamente demonstrdvel, ao passo que tudo tracorrente que, na Alemanha, mesmo no campo da politica,
o que é qualitativo sdmente se admite como derivado do quan- dirigia o contra-ataque 4 concepg&o racionalista-burguesa do mun.
titativo. © positivismo moderno (que sempre manteve sua do. De modo semelhante, nio € por acaso que, hoje em dia,
afinidade com a visio liberal-burguesa e que se desenvolveu nes- a teoria gestaltista da percepcio, e as teorias da morfologia e
te espirito) aderiu sempre a éste ideal de ciéncia e de verdade. da caracterologia, etc., que constituem um contra-ataque cientt-
No méximo, acrescentou, em térmos de uma séria forma de co- fico e metodoldgico A metodologia positiva, vém-se impon-
nhecimento, a busca de leis gerais, De acdrdo com éste_ ideal do numa atmosfera que deriva sua concepsio do mundo (Wel-
predominante, o espirito moderno impregnou-se de_medigdes, lanschauung) ¢ sua visio politica do nco-romantismo.
formalizacSes e sistematizagdes com base em axiomas fixos. Isso
Nao nos compete tracar aqui um cxame detalhado do in-
teve bastante sucesso junto a certos estratos da realidade, aces-
siveis a uma abordagem formal quantitativa ou, pelo menos, tercurso entre os movimentos politicos ¢ as correntes da meto-
dologia cientifica, Entctanto, a argumentagdo mostra, até
subordinados a generalizagGes,
agora, que a concepsao intelectualista de ciéncia, subjacente ao
A medida que éste modo de investigagio se desenvolvia, positivismo, tem suas raizes em uma concepsao do mundo ( Wel-
tornava-se evidente que era adequado A compreensio cientifica tanschautung) definida, e que se tem desenvolvido cm estreita co-
de nivel homogéneo de questdes, mas que tais questdes abso- nexéo com interésses politicos definidos.
lutamente nado esgotavam a plenitude da realidade. Esta unila-
Do ponto-de-vista da Sociologia do Conhecimento, nfo re-
teralidade se manifesta, em particular, nas Ciéncias Culturais
velamos plenamente o cardter essencial déste estilo de pensa-
em que, por sua prépria natureza, niio nos interessa tanto a mento ao indicar suas tendéncias analiticas e quantitativas. Pre-
estreita esfera de questdes redutiveis a leis, mas a riqueza de fe-
cisamos reportar-nos aos intcrésses politicos e sociais expressos
némenos e estruturas singulares e concretos com que os homens
por @stes principios metodoldgicos. Tal somente serd possivel
préticos esto familiarizados, mas que sao inatingiveis pelos
apéds um exame do critério bdsico de realidade adotado pelos
axiomas da ciéncia positivista. O resultado disto foi que o ho
expositores déste estilo de pensamento, ste critério estd con-
mem pratico, lidando com situagSes concretas e aplicando in-
tido na tese de que rida serd considerado ‘“verdadeiro” ou
formalmente seu conhecimento, mostrava-sec mais entendido que
“cognoscivel”, a nado ser que possa ser apresentado como uni-
© tedrico que apenas observava uma esfera limitada, porque es-
192 Tozo.ocia £ Uroria Tgorta SociaL & Prdtica Ponirica 193
versalmente vdlido e necessério — sendo €stes dois requisitos Visto que a percepgao sensorial do individuo, em sua forma con-
qualificados, sem maiores cuidados, como sinédnimos. Presu- creta e singular, constitui uma funcdo do ser vivo como um
mia-se simplesmente que sdmente seria necessdrio o que fésse todo, e visto que sdmente com dificuldade esta percepgdo sen-
universalmente vdlido, isto é, comunicdvel a todos. sorial poderia ser comunicada, predominava a tendéncia de ne-
Entretanto, esta sinonimia nao é necessitiamente correta, gar-lhe todo valor especffico.
uma vez que é muito possivel existirem verdades ou intuisdes De modo semelhante, desconfiava-se de qualquer tipo de
corretas que sejam acessiveis apenas a uma certa disposigao conhecimento que sdmente pudesse ser adquiride por certos
pessoal ou a uma determinada orientagdn de inter’ »ses de um grupos histdrico-sociais. Desejava-se exclusivamente o tipo de
certo grupo. © cosmopolitismo democritico da burguesia as- conhecimento que estivesse livre de tédas as influéncias da con-
cendente negava o valor e o direitu A existéncia destas nocées. cepcao do mundo (Weltanschauung) do sujeito. O que nao se
Com isto, revelou-se um componente puramente socioldgico no notou foi que o mundo do meramente quantificdvel e analisdvel
critério de verdade, que é o da exigéncia democratica de que sé podia ser descoberto com base numa concepcéo do mundo
estas verdades sejam as mesmas para todos. (Weltanschauung) definida, De modo andlogo, nfo se percebia
Esta exigéncia de validade universal teve importantes con- que uma concepgséo do mundo (Wellanschauung) nao constitui
necessariamente uma fonte de érro, mas que, muitas vézes, pro-
seqiiéncias para a teoria do conhecimento que a acompanhava.
Decorria dai que somente seriam legitimas as formas de conhe- porciona acesso a esferas de conhecimento de outra forma im-
penctraveis,
cimento que se aplicassem ao que é comum a todos os séres
humanos, A elaboracdo da nog&o de “consciéncia em si” nada ; Mais importante, contudo, era a tentativa de eliminar os
mais é do que a destilacao dos trasos da consciéncia humana interésses e os valéres que constituem o elemento humano no
individual que pudéssemos presumir como sendo os mesmos em homem. Na caracterizagéo do intelectualismo burgués, volta-
todos os homens, quer negros ou europeus, medievais ou mo- va-se¢ a atengéo para o empenho em eliminar os interésses até
dernos. O fundamento comum bdsico desta consciéncia comum da politica, e em reduzir a discusso politica a uma espécie de
foi encontrado, antes de mais nada, nas concepcdes de tempo © consciéncia geral e universal determinada pela “lei natural”.
espaco, e, em estrcita associaco com estas, no campo puramen- Assim, 0 nexo organico entre, de um lado, o homem como
te formal da Matematica. Sentia-se af que féra construida uma sujeito histérico e como membro da sociedade, e, do outro, o
plataforma de que todos podiam partilhar. E, de modo seme- seu pensamento, foi arbitrariamente rompido. Eis a principal
lhante, acreditava-se na possibilidade de se construir, com base fonte de étro que, antes de tudo, teremos de examinar no pre-
em uns poucos caracteristicos axiomdticos, um homem econd- sente contexto. Pode-se dizer, quanto ao conhecimento for-
mico, um homem politico, etc., independentemente de tempo e mal, que seja essencialmente acessivel a todos e que seu contet-
de raga. Somente o que se podia conhecer pcie aplicacio déstes do nao é afetado pelo individuo e suas filiacdes histdérico-sociais.
axiomas era considerado cognoscivel. Tudo o mais devia-se sim- Mas, por outro lado, € certo que existe uma grande variedade
plesmente 4 perversa “multiplicidade do real”, com a qual a de temas sdmente acessiveis a certos individuos ou em certos
teoria “pura” ndo precisava preocupar-se, O principal objetivo perfodos histdricos, e que se tornam patentes através dos propé-
déste modo de pensamento consistia em um conjunto purificado sitos sociais individuais.
de conhecimento genéricamente valido, cognoscivel por te~ 5 Ee Uma ilustragéo do pilneiro caso é que sdmente a pessoa
a todos comunicdvel. que ama, ou odeia, consegue ver no objeto amado, ou adiado,
Todo o conhecimento que dependesse da receptividade to- certos caracteristicos invisiveis aos outros, meros espectadores.
tal dos homens, ou de certos catacterfsticos histérico-sociais do Além do mais, existe certo tipo de conhecimento que nunca
homem concreto, era suspeito e devia ser eliminado. Assim, pode ser concebido em térmos das categorias de uma conscién-
em primeiro lugar, eta suspeita tada a experigncia que se fun- cia em si, puramente contemplativa, ¢ cujo enunciado fundamen-
dasse em percepcdes puramente pessoais do individuo. Origi- tal consiste em que ¢ sdmente vivendo e agindo com os nossos
nou-se af o j4 mencionado reptidio ao conhecimento qualitativo. semelhantes que podemos chegar a conhecé-los, nfo sé porque
194 IpeoLocia £ Uroria
Teorta Soctat & PrAtica Potitica 195
se necessita de tempo para se observar as coisas, mas porque
tivo em nés, como sujeitos Cognoscentes, contribui para
os séres humanos nao possuem “tragos” que possamos conside- moldar
tar separadamente déles e que, como nos acostumamos a dizer © processo de transformagio, onde o pensamento nao 6 contem
-
erréneamente, ‘se manifestem automaticamente”. Tratamos
plagéo do ponto-de-vista de um espectador, mas, antes, a par-
ticipagao ativa e a remodelacio do proprio process
aqui com um processo dinamico do homem em que seus carac- a, parece
terfsticos emergem no curso de sua conduta concreta e€ no con- emergir um névo tipo de conhecimento, que é aquéle em
que
fronto com problemas reais. A propria autoconscitncia nao decisto e ponto-cde-vista. se acham inseparavelmente ligados.
surge da mera contemplacéo, mas sdmente através de nossas Nestes campos, nada existe que se parcga com uma visio pura-
jutas com o mundo — isto é, no decurso do processo em que, mente tedrica de parte do observador. A visio do homem
é
dada justamente pelas mtencdes que o homem tenha, muito
pela primeira vez, tomamos consciéncia de nds mesmos. em-
bora seus interésses lancem apenas uma luz parcial
Aqui a percepcao de si e a dos demais se interligam inse-+ e prdtica
sobre aquéle scymento da realidade total no qual se acha
pardvemente com a atividade e 0 interésse ¢ com os processos de: envol-
vido, © para o qual se orienta em virtude de seus
interagao social. Sempre que o produto é isolado do processo oe propdsitos
socials bdsicos.
participagio no ato, os fatos mais essenciais sao deformados, No
entanto, esta é a dimensZo fundamental do tipo de pensamento Nestes casos, nunca devemos separar do produto do pensa-
que se dirige para a natureza morta, pois que a todo custo descja mento o interésse, a valoracio, ¢ a concepgio
do mundo (Wel-
eliminar as relagSes subyjetivas, volilivas ¢ pracessuais do co- tanschauung), devendo-se mesmo, caso ja tenham
sido ‘Separa-
nhecimento ativo, de modo a chegar a resultados puros ¢ homo- dos, restabelecer a relagio. Esta & a tareta da Sociolo
gia, na me-
géneamente coordenados. dida em que a Sociologia é a ciéncia do que ¢ politico
, Nao
accita nenhum argumento tedrio como absolutamente
© exemplo que acabamos de citar mostra um caso de de- vdlido
emsi, mas reconsirdi 1s pontos-de-vista originirios
terminacdo situacional do conhecimento, atuando na relacio en- para os quais
© mundo se apresenta de tal ou qual forma, e procura
tre tipos especificos de personalidade e formas especificas de preender a totalidade das visdes, derivadas das varias com-
conhecimento. Mas existem também certos dominios de conhe- perspecti-
vas, através da totalidade do processo,
cimento cuja acessibilidade no depende de personalidades es-
pecificas, mas de certas precondigdes histdricas e sociais defini- A politica como ciér “ia, sob a forma de uma Sociol
ogia
das. Determinados acontecimentos da histéria e da vida psiqui- Politica, jamais constitui um d ominio fechado e
completo de
ca do homem sOmente se tornam visiveis em certas épocas his- conhecimer’o que se possa separar do continuo proce
sso em que
téricas, que, através de uma série de experiéncias coletivas ¢ se desenvolveu, LEsté sempre em transformago e,
no entanto,
de uma concepsao do mundo (Weltansehanung ) paralelamente permancee sempre ligada A corrente de que
deriva. Surge no
desenvolvida, abrem caminho a determinadas intuigées. Além desdobramento dinamico de forcas em contlito.
Consegqitente-
mente, pode-se construf-la com base em perspe
do mais, voltando ao nosso tema inicial, existem certos fené- ctivas bastante
menos cuja percepcao depende da presenca de determinados pro- unilat
erais, que reflitam as inter-relagdes de acont
ecimentos
tal
pésitos coletivos que refletem os interésses de estratos sociais como determinado partido politico os percebe,
ou pode surgir
especificos. Parece, entio, que um conhecimento preciso e pron- em sua forma mais avancada — como uma tentat
iva consta nte-
tamente objetivdvel € possivel na medida cm que se trata de mente renovada de sintese de tddas as perspectivas
existentes, vi-
captar aquéles elementos da realidade social que, de inicio, de- sando a umaconciliacdo dinamica.
finimos como componentes estdveis c¢ rotineiros da vida social, Bem pode ser que o nosso intelectualismo venha
a estimu-
Parece nfo haver obstaculo algum 4 formulagao de leis neste do- lar repetidamente em nés o anseio por um ponto-
de-vista que
minio, uma vez que os objetos de aten¢ao obedecem a um ritmo transcenda o tempo ¢ a histéria — por uma “cons
ciéncia em
periddico de seqiiéncia regular. si” de que se originem intuigdcs independentes
de perspecti-
Contudo, ao entrarmos no campo da politica, onde tudo vas particulares, ¢ passiveis de formulacgdo como
leis gerais, eter-
se acha em processo de transformago e onde o elemento cole- namente validas. Mas éste objetivo nao pode ser
aleangado sem
violentar o problema. Se buscamos uma ciéncia do que se acha
196 IpEoLocta £ Uroria TrEoRIA SocIAL E PrAticA PoLitica 197
em processo de transformacao, uma ciéncia da prdtica e para a titui uma fonte de érro, sendo que, muito freqiientemente, faz
prdtica, somente podemos realizd-la pela descoberta de uma nova surgir certas inter-relacSes que de outra forma nao apareceriam.
estrutura em que éste tipo de conhecimento possa encontrar A unilateralidade peculiar a uma posicfo social é sempre mais
uma expresso adequada. evidente ao se a considerar em justaposicao a todas as demais.
A vida polftica que engloba, como sempre, pensamentos oriun-
dos de pdlos opostos modifica-se no decorrer de seu prdprio
‘6. A COMUNICABILIDADE DO CONILECIMENTO POLITICO desenvolvimento, ao corrigir os exageros de um ponto-de-vista
pelo que é revelado por outro. Em cada situagdo sera, portan-
O impulso original para se investigar o problema da ideo- to, indispensdvel existir uma perspectiva total que abarque to-
logia surgiu da prépria vida politica, em seus mais recentes de- dos os pontos-de-vista.
senvolvimentos. Nao constitui uma ciéncia “‘forcada”, nascida © malor perigo para uma representacdo adequada das re-
de sutilezas intelectualistas e minuciosas. Jd temos um excesso lagSes que nos interessam na esfera politica reside, no entanto,
de tais formulacdes e seria realmente prejudicial aumentar-lhes na suposig¢ao por parte do investigador de uma atitude passiva
o ntimero. Pelo contrério, o estudioso de ideologia esté em- e contemplativa capaz de destruir as relacdes efetivas que, como
penhado tio-s6 em meditar sébre um problema que tem emba- tais, interessam ao homem polftico, Devemos ter sempre em
racado muita gente que procura oricntar-se na vida cotidiana mente que, por trds de qualquer trabalho cientifico (por mais
da sociedade. Este problema consiste essencialmence na inevi- impessoal que pareca), existem tipos de mentalidade que in-
tdvel necessidade de compreender-se a si mesmo * ao adversd- fluenciam em ampla medida a forma concreta da ciéncia. Con-
tio no scio do processo social. sideremos, por um momento, uma disciplina préxima que lida
A esta altura, torna-se indisprnsavel introduzir algumas re- tedricamente com materiais nao-teéricos — a saber, a histdria
flexdes referentes as formas exteriores desta ciéncia, sua comu- da arte. A atitude fundamental desta disciplina constitui uma
nicabilidade e os requisitos para sua transmissao as getagdes fusio das atitudes individuais de connoisseurs, colecionadores,
vindouras. Do que jd tivemos oportunidade de falar, segue-se fildlogos e historiadores de idéias. As histérias da arte seriam
que, no tocante A sua forma exteriur, a parte da ciéncia politica bem diferentes se féssem escritas por artistas pata artistas, ou
que se compde do conhecimento fatual concreto nao esta sujei- do ponto-de-vista do espectador. Esta ultima situac&o prevalece
ta as consideracdes problemdticas que acabamos de mencionar. quase exclusivamente na critica de arte, em nossos dias.
O que é particularmente problemético na politica como ciéncia, De modo andlogo, o sujeito teérico corre o risco de ser
e na politica propriamente dita, smente aparece depois de al- iludido no estudo da politica devido a que sua prdpria atitude
cancarmos a esfeta da vida em que nossos interésses e nossas contemplativa tende a subordinar sua atitude politicamente ati-
percepcdes estéo intimamente interligados, o que faz que os va, dissimulando as relagSes fundamentais ao invés de acentud-
acontecimentos anteriores venham a se apresentar sob uma nova -las e de tracar-lhes as ramificacdes. O fato de as ciéncias serem
luz. cultivadas em meios acad&émicos constitui um perigo, pois as
Foi mostrado que também aqui existem relacdes passiveis atitudes adequadas 4 compreensio de um setor real da expe-
de investigacéo, mas que, simplesmente por se acharem em flu- riéncia humana sao reprimidas na atmosfera contemplativa que
xo constante, somente podem ser ensinadas levando-se em con- predomina nas instituicSes académicas. Hoje em dia, pratica-
ta, no caso de cada aspecto a ser comunicady, a posigio de obser- mente aceitamos sem contestacdéo que a ciéncia comeca quan-
vacdo que faz que estas inter-relagdcs assumam um determinado do destréi nossa abordagem inicial e a substitui por outra, es-
caréter definido. Cada visio deve ser referida & posigio social tranha A experiéncia vivida. Eis a mais importante razio por
do observador. Se possivel, deveria investigar-se, em cada caso, que a prdtica nfo pode tirar proveito déste tipo de teoria. Isso
0 motivo por que as relagdes se apresentam de uma determinada cria uma tensao entre a teorla e a prdtica, agravada cada vez
maneira quando encaradas de um dado ponto-de-vista. Nunca mais pelo intelectualismo moderno. Resumindo a principal di-
serd demais insistir em que a equasio social nem sempre cons- ferenga entre éste ponto-de-vista intelectualista e contemplativo
198 Torotetta BO Uropra Teeovs Socran & Prétiey Ponisen4 199
e o ponto-de-vista resultante da experiéncia vivida e accito no € 0 principio de revolugaio, Sua classificacio oferece nfo ape-
campo da pratica, poderfamos dizer que o cientista aborda sem- nas um levantamento, mas também uma andlise das ideologias
pre seus temas com uma tendéncia ordenadora e esquematizadora, partiddrias existentes. Reduzindo-as a uma dicotomia filoséfica,
ao passo que o homem pratico —- em nosso caso o polftico — Stahl, sem divida, aprofunda nossa compreensio. © risco de
busca uma orientaco com referéncia A agio. Uma coisa € pro- semelhante deducio filnséfica esté em que confere uma énfase
curar uma visio panorAmica esquematicamente ordenada; outra indevida a um principio tedérico que, claro, esté presente no
edisa é buscar uma orientacio concreta para a aco. O'desejo desenvolvimento dd séchlo XIK, ‘mas que nao é decisivo. Tipo-
de uma orientac#o concreta leva-nos a ver as coisas somente no logias desta espécie criam a impressio de que o pensamento po-
contexto das situagdes de vida em que ocorrem. Um sumirio litico representa a formulacdo de possibilidades puramente ted-
esquematicamente ordenado rompe a interconexdo organica a ricas,
fim de chegar a um sistema ordenado que, apesar de construido © primeiro modo de exposigo representa o do coleciona-
artificialmente, pode, mesmo assim, ser ocasionalmente itil. dor de idéi: ., e o segundo representa a do sistematizador filo-
‘Uma ilustrac&o servird para esclarecer ainda mais esta dis- séfico. O que em ambos os casos acontece é que as formas de
tingéo central entre as atitudes esquematicamente ordenadoras experiéncia de tipos humanos contemplativos sao arbitraria-
e as ativamente orientadoras. H4 trés abordagens possiveis as mente impostas a realidade politica.
teorias politicas modernas: em primeiro lugar, podem ser apre- Outro modo de apresentagdo das teorias politicas é o pu-
sentadas por meio de uma tipologia desligada dos momentos ramente histérico, Este procedimento, naturalmente, nado des-
histéricos e das situacSes sociais comcretas a que se referem. taca as teorias do contexto histérico imediato em que se de-
Esta tipologia alinha as teorias em uma espécie qualquer de senvolyeram, de modo a justapé-las em um nivel abstrato, mas
série e, no mdximo, procura descobrir algum principio pura- incorre no érro oposto de se apegar em demasia ao histérico. O
mente tedrico para diferencid-las. Esta espécie de tipologia, tipo ideal de historiador se interessa, portanto, pelo complexo
muito em moda hoje em dia, pode ser chamada uma tipologia singular de causas que explicam estas teorias histéricas. Para
“de superficie’, porque constitui uma tentativa de apresentar chegar até elas, introduz todos os antecedentes da histéria das
a multiplicidade da vida em um nivel artificialmente uniforme. idéias e vincula as teorias as personalidades singulares de indi-
A tinica justificagio sensata de semelhante esquema é que exis- viduos criadores, O resultado é que se envolve tanto na unici-
tem diferentes modos de vida, e seguir um dentre éles nado dade histérica dos acontecimentos que se torna impossivel qual-
passa de uma questdo de escolha. Oferece, naturalmente, um quer espécie de conclusdes gerais s6bre o processo histérico e
levantamento, mas um levantamento puramente esquematico, social. De fato, os historiadores chegaram mesmo a se orgulhar
De acérdo com éste esquema, pode-se dar nomes As teorias e da tese de que nao se pode aprender coisa alguma com his-
afixar-lhe rdétulos, obscurecendo, no entanto, suas interconexdes toria. Se os dois primeiros tipos de apresentacdo mencionados
reais, uma vez que as teorias originariamente nao sio modos de acima etravam por estarem tdo distanciados dos acontecimen-
vida em geral, mas simples ramificagSes de situacSes concretas. tos histdricos que era impossivel achar o caminho de volta das
Uma forma algo mais complexa desta tipologia bidimensional é generalizag6es, dos tipos e sistemas até a histéria, a abordagem
aquela a que j4 nos referimos, e que procura descobrir uma histérica, mencionada por ultimo, se acha tao vinculada aos ime-
base de diferenciacgéo em algum principio —- de preferéncia um diatismos histéricos que seus resultados sfo vdlidos apenas com
princfpio filosdéfico. Assim, por exemplo, Stahl, ** 0 primeiro relagao as situagdes especificas e concretas de que trata.
tedrico e sistematizador do sistema pattiddrio alemfo, classifi-
Em oposigéo a éstes dois extremos, coloca-se uma terceira
cou as diferentes tendéncias polfticas de seu tempo em varian-
possibilidade que consiste em escolher 0 meio caminho entre,
tes de dois principios tedricos — o principio de legitimismo
de um Jado, a esquematizagio abstrata e, de outro, o imedia-
tismo histérico, Precisamente em térmos déste terceiro cami-
43° Stahl, Die gegenwirtigen Parteien in Staat und Kirche (Ber- nho ¢ que vive e pensa todo politico clarividente, embora nem
lim, 1863). sempre tenha consciéncia disto. Este terceiro método procede
200 Ingotocia E Uroria Teoria SociaL £ Pritica Porfrica 201
através da tentativa de compreender as teorias e suas mutacdes Esta capacidade de se reorientar numa constelacdo de fatéres
em estreita relagdo com os grupos coletivos e as situagdes totais em continua reconformacgéo constitui a capacidade essencial-
tipicas de que surgiram ¢ que expdem. Neste caso, as conexdes mente pratica do tipo de espirito que se acha na busca constan-
internas entre o pensamento e a existéncia social ttm de ser ie de orientagio para suas acdes. Despertar esta capacidade,
reconstruidas. Nao é a ‘“‘consciéncia em si” que esc olhe arbitra- manté-la alerta e torné-la eficiente com relacio ao material dis-
tiamente dentre vdrias alternativas possiveis, nem é¢ tampouco ponivel, eis no que consiste a tarefa especifica da educagao po-
o individuo que, isolado, constrdéi uma teoria ad boc que sirva litica.
as necessidades de uma determinada situacio isolada; mas, an- Nunca se deve permitir que, na exposicao de inter-relagdes
tes, so o8 grupos sociais que, possuindo um certo tipo de es- politicas, a atitude puramente contemplativa venha a deslocar a
trutura, formulam teorias correspondentes a seus interésses tais necessidade inicial que o homem politico tem de uma orienta-
como os percebem em determinadas situacgdes. O resultado é Go ativa. Considerando-se o fato de que nosso método educa-
que, para cada situac&o social especifica, sao descobertos certos cional se orienta sobretuda no sentido de uma atitude contem-
modos de pensar e possibilidades de orientacio. Somente por- plativa e de que na transmiss%o de nossa matéria tendemos mais
que estas fdrcas coletivas, estruturalmente condicionadas, con- para uma visio esquematica de conjunto do que para umaorien-
tinuam a existir além da duracio de umasituacdo histérica iso- tagdo concreta da vida, é imprescindivel que, pelo menos, se de-
lada, é que perduram as teorias e as possibilidades de orienta- termine um ponto de partida para os problemas que dizem
cio. Apenas quando as suas situagdes estruturais mudam e sao respeito 4 educacio de geracdes futuras no campo da a¢ao e da
substituidas gradativamente por outras é que surge a necessida- politica,
de de novas teorias € novas orientagdes.
Nao podemos tratar aqui de tédas as ramificacdes do pro-
Sdmente serd capaz de seguir inteligentemente o curso dos blema. Contentemo-nos em apresentar o principio estrutural
acontecimentos quem compreender o arranjo estrutural que é das relacdes essenciais ligadas ao problema. As formas e os mé-
subjacente a uma determinada situacao e a um determinado acon- todos de transmissao da matéria social e psicolégica variam com
tecimento histéricos, e que os possibilita. Os que, no entanto, a peculiaridade das bases estruturais em que repousam. ** Uma
nunca transcendem o curso imediato dos acontecimentos histé- certa forma de grupo social e uma certa técnica pedagdégica fa-
ricos, bem como os que se perdem t#o completamente em ge- vorecem a fotmaco artistica, outras favorecem a formagao cien-
neralidades abstratas que jamais encontram o caminho de volta tifica, Entre as vdrias ciéncias, o conhecimento mateméatico
a vida prdtica, nunca scrao capazes de captar o cambiante sig- requer méiodos pedagdgicos e relagSes entre professor e aluno
nificado do processo histérico. diferentes dos exigidos pela transmissio de matérias culturais.
Todo politico que opera neste nivel de consciéncia, ade- O mesmo se verifica no tocante a questdes filoséficas em con-
quado ao nosso atual estdgio de desenvolvimento intelectual, traste com questdes politicas, etc,
pensa — implicita, se nado explicitamente — em térmos de si-
A histéria e a vida prética mostram uma busca constante,
tuagSes estruturais. Este tipo de pensamento é 0 nico que
embora inconsciente, de métodos educacionais mais adequados
dé um significado e uma concretude 4 agHo orientada para um
objetivo distante, embora decisdes de momento possam basear-
-se em orientacgdes de momento. Assim, o politico est4 protegi- 4) A escola fenomenologica, em particular, procurou mostrar, em
do contra generalidades vazias e esqueméticas, conseguindo, ao oposigio ao intclectualismo moderno, que hA mais que uma forma de
mesmo tempo, bastante flexibilidade para nao se impressionar conhecimento, Cf. em especial Max Scheler, Die Formen des Wissens
em demasia com algum fato do passado — tomando-o como mo- tmd die Bildung (Bonn, 1925); Die Wissensformen und die Gesell-
délo inadequado de acdes futuras. schaft (Leipzig, 1926): Heidegger, “Sein und Zeit”, Jahrbuch fiir Philo-
—
A vida é um processo incessante de for- Do ponto-de-vista da matéria estudada, éste tipo de asso-
nos diversos campos.
ciagdo pedagdgica entre o conterencista e os ouvintes e o tipo
magao e educacio. Usos, costumes e hdbitos sio formados por
As for- de comunicagao que implica parecem justificar-se no caso das
ptocessos e em situacdes inteiramente desconhecidos.
ciéncias que Alfred Weber #5 chamou “civilizacionais”, isto é,
mas de associacdo mudam continuamente; as relagSes entre in-
as formas de conhecimento que nfo se acham sujeitas as influén-
dividuos, bem como entre individuos e grupos, variam a cada
cias da concepcio do mundo (Weltanschauung) ou dos impul-
momento. Em uma situagio encontramos a sugestao; em outra,
sos volitivos pessoais. E prob ematico que éste tipo de comu-
a participagdo espontinea; em outra, a simpatia; em outra, ain-
nicacio se aplique As Ciéncias Culturais e, ainda mais, as que
da, a coagdo, etc. N&o seria possfvel estabelecer aqui uma tipo-
se relacionam com a pratica imediata. Estd de acérdo com o
logia completa das formas de comunicacéo. Surgem e passam
tipo de conhecimento ¢ a tendéncia incrente no intelectualismo
no processo histérico, e sdmente podem ser entendidas através
moderno que éste mode especffico de associagio entre professor
de seu contexto vivo e de suas mudancas estruturais — nunca,
porém, no vacuo. e aluno e esta forma especifica de comunicacio viessem a ser
estabelecidos como modelos e que se tentasse aplicd-los a ou-
A titulo de primeira orientacao, apresentamos duas ten- tros campos de conhecimento.
déncias da vida moderna que desempenham um papel impor-
tante na formacio externa e interna da geracio vindoura, Por As instituicdes educacionais do escolasticismo medieval e,
um Jado, existe a tendéncia, em concordincia com o intelectua- talvez ainda miais, as universidades da época do absolutismo,
lismo moderno, de homogeneizar e¢ intelectualizar as formas de cujo principal propésito era a formagao de funcionérios estatais,
educacio e de propagacgio do conhecimento. Em oposicio a esta, serviram de instrumentes na elaboracio e na estabilizacdo déste
existe o romantismo, que deseja o retdrno as formas antigas ¢ tipo de instrucio. Sdmente as scitas ¢ os conventiculos que
mais “‘originais” de educagao, nfo estavam bisicamente interessados em um ensino técnica
especializado e para os quais o despertar espiritual constitufa o
© significado disto serg esclarecido por meio de uma ilus-
pré-requisito para a aquisicio de conhecimentos desenvolveram
tragao. Para a transmissdo de conhecimentos puramente clas-
a tradicio de outras formas ue associagio humana nos processos
sificadores, a prelecdo é 0 tipo mais adequado de técnica peda-
pedagdgicos, e cultivarim ovtras maneiras de transmissao in-
gégica. Se o conhecimento tem de ser sistematizado, classifica-
telectual.
do em tipos ov ordenado, a forma pedagdégica mais adequada
parece consistir naquela categoria peculiar de subordinacio que Em nossa época, a insuficiéncia de um sistema educacional
se evidencia quando se assiste a uma prelecio O “ouvinte”, que se restringiu a meramente entregar e comunicar conheci-
como mero ‘‘ouvinte”, toma “conhecimento” dela. Subjacente mentos ao estudante, por meio do sistema de prelecSes que su-
A preleco, encontramos o pressuposto — implicito na prdpria bordina o “ouvinte” ao “conferencista”, tornou-se evidente nos
prelecio — de que os fatéres pessoais puramente subjetivos fo- campos que costumamos chamar de “artes”. Também neste
ram eliminados. Assim, o intelecto age sdbre o intelecto em campo, a aprendizasem em academias organizadas substituiu a
uma atmosfera rarefeita, isolada da situacio concreta, Entre- forma mais antiga de associacdo aluno-professor, cujo protétipo
tanto, visto que a matéria da prelecio nao se refere a textos sa- era a oficina (atelier), Todavia, o tipo de associagdo caracteris-
gtados e autoritdrios, mas com dados ptblicos e sujeitos 4 in- tico da oficina corresponde melhor ao substrato a ser comuni-
vestigacio livre e independente, que podem ser conferidos, é cado do que a formacio em academias, A oficina ocasiona uma
possivel a discussio depois da prelegio. Isto justifica a chama- relacao de mutua participacio entre o mestre e o aprendiz. Na
da técnica de semindrio. Também aqui a caracteristica essen- oficina, nada é sistemAticamente exposto para que o aprendiz
cial est em que os impulsos subjetivos e emocionais, bem como “tome conhecimento”, Tudo o que se comunica € mostrado em
as relagdes pessoais, sao relegados, tanto quanto possfvel, ao se-
gundo plano, de modo que as possibilidades abstratas sejam
consideradas, umas em confronto com as outras, em uma base 45° Alfred Weber, “Piinzipiclles zur Kultursoziologie”, Archiv fur
fatual. Sozialwissenschaft und Sozialpolitik (1920).
204 IpkoLocia E Uropia Trorta Sociat £ PrAricA Po.frica 205
situagSes concretas segundo “‘as oportunidades aparegam”, e nfo super-racionalizagio e superburocratizagéo das emprésas capi-
apenas “dito”. © aprendiz e¢ o mestre trabalham juntos, assis- talistas.) Podemos ent&o definir exatamente os limites, além
tindo-se reciprocamente e participando em comum na realiza- dos quais a contracorrente romantica j4 nfo se justifica, A ins-
co de trabalhos criadores que podem ter-se originado de qual- titucionalizacio académica da instrugao no caso dos arquitetos,
quer um dos dois. A iniciativa é transmitida do profesor para por exemplo, nao pode ser atribufda exclusivamente ao intelec-
o aluno e neste encontra uma resposta. Juntamente com a trans- tualismo exagerado da nossa época, mas 4s condicdes fatuais da
missao da técnica, segue igualmente a transmissao da idéia, do complexidade do conhecimento técnico, conhecimento que é es-
estilo, nfo por meio da discussio tedérica, mas no decorrer de sencial e que tem de ser dominado. Além disso, é essencial re-
uma elucidacio colaborativa, criadora do objetivo que os une. conhecer que a existéncia e a predominancia do nosso intelec-
Dessa forma atinge-se a pessoa como um todo, havendo uma tualismo nao constituem um fendmeno intelectualmente preme-
diferenca profunda entre esta relacio humana e o mero “tomar ditado e provocado, mas que surgiu naturalmente da condigéo
conhecimento” que ocotre no sistema de prelecdes, Ensina-se nao organica do processo total de desenvolvimento social. Nao nos
um sistema esquemético, mas sempre uma otientacSo concreta cabe, portanto, afastar o intelectualismo de lugares onde cor-
responda realmente a uma necessidade organica surgida em tem-
(no caso do processo artistico, comunica-se um sentimento da
pos recentes, mas daquelas esferas em que, devido ao seu im-
forma). Também aqui, as situagdes andlogas se repetem, mas
pulso formal interno de expansdo, tende a aplicar métodos in-
so compreendidas 4 luz do cardter e da unidade da obra a ser
telectualistas mesmo onde abordagens mais diretas e esponta-
ctiada de maneira nova. neas continuam ainda hoje eficientes. Os requisitos puramente
O impulso romantico levou a um reconhecimento instinti- técnicos da engenharia j4 nao podem ser ensinados em oficinas.
vo da superioridade da forma de associacdo caracteristica da Li bem possivel, no entanto, quando se trata de impulsos cria-
oficina. Ressaltou o grande dano causado as artes plasticas pe- dores cuja forma se encontre ainda em processo de desenvolvi-
las academias; ou, no minimo, que a arte criadora existia nao mento, utilizar aquelas modalidades de associagéo educacional
por causa das academias, mas apesar delas. Qualquer movimen- mais vivas que se destinam a “despertar” o interésse e a ttans-
to que, de modo andlogo, tendesse a conformar a idéntico pa- mitir o conhecimento intuitivo.
drio a pedagogia politica ou jornalistica cra encarado com sus- A solugio jd néo pode ser encontrada em um ou em outro
peita. Também neste campo, o intelectualismo encontra uma exttemo, mas apenas com base em uma mediagio realista entre
férca compensadora no romantismo. © prestigio desta corren- as vdtias correntes antagdnicas da nossa época, o que requer
te romdntica alcancou, de fato, resultados praticos em alguns que procuremos descobrir com exatiddo, em cada caso concteto,
ramos como, por exemplo, no dos officios manuais — ou, to- até que ponto, de acérdo com a matéria particular, se deve
mando-se ama esfera muito diferente, nas escolas de puericul- usar o método sistematizador e, até que ponto, o de associacao
tura @ nos jardins de infancia. Encontrou accitacio em tédas as educacional colaborativa.
esferas de vida em que o intelectualismo, devido nao a uma O que se disse a respeito do ensino das “artes” aplica-se,
necessidade inerente ocasionada por fatos da situag3o, mas, an- mutatis mutandis, em ampla medida, 4 politica. Até agora, a
tes, a um impulso puramente formal de expansio. desalojou a for- politica como “arte” tem sido ensinada e transmitida apenas
ma colaborativa da relacdo artesanal inicialmente desenvolvida. ocasionalmente “A medida em que surgem as oportunidades”.
Mas a tendéncia rom4ntica atinge seus limites onde quer que o
conhecimento sistemdtico constitua um requisito indispensdvel Dessa forma, o conhecimento ¢ a aptiddo polfticos tem sido
da vida moderna. Quanto mais adiantado o nivel de formacdo transmitidos sempre de um modo informal e espasmédico. A
e mais complexo o artesanato artistico, tanto mais questiond- aprendizagem do especificamente politico tem sido deixada a oca-
vel se torna a utilizacdo de métodos artesanais, muito embora sides fortuitas. O papel desempenhado pelo estidio junto 4
nestes nfvcis mais altos de atividade intimeros excessos possam atte ctiadora, pela oficina junto 4 mec4nica, € o mesmo papel
ser atribufdes a uma racionalizagio exagerada e inttil. {Nota- desempenhado pela forma social do clube junto 4 politica da
mos neste ponto uma analogia estrutural com o fendmeno de burguesia liberal. O clube é uma forma especffica de associa-
EOLNT.A E Urvvia
on
inicial. Nossa atual orientacéo na vida nao estard completa até mente compreender as formas de exposicéo de um Angulo social-
que tenha apreciado sua continuidade com o passado, Uma vez -ativista, € a que nos oferece a Sociologia do Conhecimento. Sem
que éste ponto-de-vista se tenha estabelecido na vida, cnt@o tam- o tipo de formulagéo de problemas possibilitado pela Sociolo-
bém o passado se tornara inteligivel 4 luz do presente. gia do Conhecimento, nfo nos seria acessivel a natureza mais
TEOQ..A GUCIAL £ PaaTica Ponirica 211
210 IpEoLocia £ Uropta
Ainda nao esti definido até que ponto pode ir a separacaio
intima do conhecimento politico. No entanto, a Sociologia do destas duas esferas. Nao é, de forma alguma, impossivel a exis-
Conhecimento ainda deixa abertas trés vias de andlise. Na pri- téncia de campos onde isto possa ser feito. O cardter “ndo-va-
meira, depois de reconhecer que o conhecimento histérico-poli- lorativo”, “supra-bistérico e “supra-social” destas esferas sd-
tico estd sempre vinculado a um modo de existéncia e a uma mente estard fundamentalmente assegurado depois de se haver
posic’o social, alguns se inclinardo, precisamente devido a esta analisado o conjunt@ de jaxiomas gu o aparato categérico por nds
determinagao social, a negar a possibilidade de se alcancar a empregados com referéncia a suas “raizes” em uma concepcio
verdade e a compreensao. Esta sera a resposta dos que tomam do mundo (Weltanschauung). Com extrema freqiiéncia, ten-
seus critérios e modelos de verdade em outros campos do co- demos a aceitar como “‘objetivas” as estruturas categdricas e os
nhecimento, e que deixam de perceber que cada nfvel de rea- postulados bdsicos que nds mesmos tenhamos adquirido incons-
lidade pode ter sua prépria forma de conhecimento. Nada seria cientemente durante nossa <periéncia e que, sdmente depois,
mais perigoso do que esta orientacéo unilateral ¢ estreita para o
se revelam ao estudiosn da Sociologia do Conhecimento como
problema do conhecimento. os axiomas arciais, h.stdrica e socialmente condicionados, de
Caso j4 se tenha examinado o problema déste ponto-de-vis- uma particular corrente de pensamento. Nada é mais evidente
ta e chegado a estas conclusdes, surge a possibilidade de se ado- do que o 1ato de que justamente as nossas proprias formas de
tar outra abordagem. Esta abordagem consiste na tentativa de pensamenta séo aquelas cuja natureza limitada nos é mais diff
se airibuir a Sociologia do Conhecimento a tarefa de descobrir cil de perceber, ¢ de que sdmente um desenvolvimento histé-
e de analisar a “equacdo social” presente em toda a visio his- tico € social posterior nos proporciona a perspectiva que possi-
térico-politica. O que significa que a Sociologia do Conheci- bilita a compreensao de sua particularidade. Devido a isto, mes-
mento tem a tarefa de desvencilhar, de cada parcela concreta- mo os que se esforcam por atingir uma esfera nao-valorativa
mente existente de ‘conhecimento”, o elemento valorativo vin- separavel do resto do conhecimento devem procurar continua-
culado a interésses, e de elimind-lo como uma fonte de érro, mente, pelo menos como corretivo, a equacdo social de seu pen-
visando a alcancar um campo ‘“‘nao-valorativo”, “supra-social” samento, usando meios tais como a Sociologia do Conhecimento,
e “supra-histérico” de verdade ‘“‘objetivamente” vdlida. Embora nao se possa predizer de antem&o 0 resultado déste
Nao ha divida de que esta abordagem tem sua justifica- método, pode-se dizer o seguinte: se, depois de explanada a
co, pois, sem divida, existem dreas de conhecimento histérico- influéncia da posigéo polftico-social sébre o conhecimento, res-
-polftico onde h4 uma regularidade auténoma que pode ser for- tasse ainda um campo de conhecimento ndo-valorative (néo
mulada, em grande parte, independentemente da concepcao do simplesmente no sentido de liberdade com relagio ao juizo po-
mundo (Weltanschauung) e da posicdo social individuais. Vi- litico partiddrio, mas no sentido do emprégo de um aparato
mos que existe uma esfera da vida psiquica de que se pode tra- axiomatico © categdérico unfvoco e ndo-valorativo) — caso esta
tar, em grande parte, por meio da psicologia de massas, sem esfera realmente exista, somente poderfamos atingi-la se levar-
que se aborde a questo do significado objetivo. Andlogamen- mos em conta tédas as “equagdes sociais” do pensamento que
te, existe uma drea da vida social em que se podem perceber certas nos fdssem acessiveis.
regularidades estruturais gerais, isto é, as formas mais gerais de Chegamos, entio, A terceira alternativa que ndés mesmos
associacao humana (“Sociologia Formal”). Em Economia e So- apontamos, Consiste em afirmar que, no ponto em que come-
ciedade, Max Weber escolhen como tarefa central a elaboracao ga o que é prdpriamente politico, o elemento valorativo nao
déste estrato de relacSes puramente perceptiveis, de modo pode ser separado com facilidade, pelo menos ndo no mesmo
a atingir @ste campo nio-valorativo e objetivo da Socio- grau cm que isso ¢ possivel no pensamento sociolégico formal
jogia, Finalmente, mesmo as tentativas de extrair uma teo- e em outras espécics de conhecimento puramente formalizante.
tia pura da esfera da Economia Politica, livre dos obstdculos da Esta posic&o insistird em que o elemento de vontade detém uma
posigéo social e da concepgio do mundo (Weltanschanung) in- importincia essencial para o conhecimento na esfera politica e
dividuais, constitui outro exemplo do propédsito de distinguir histérica, embora possamos observar, no curso da histéria, uma
nitidamente entre “‘valoragio” e “contetido fatual”.
212 TIpgoLocia £ Uropia Teoria SocIAL E PrAtica PoLirica 213
gradativa sciecdo de categorias que adquirem cada vez mals 7a mas apenas as faz recuar cada vez mais. Mas o que ganhamos
lidade para todos os partidos. Entretanto, apesar de haver um com éste recuo das decisSes é uma ampliagio de nosso horizon-
consensus ex post*® ou um subistrato cada vez mais amplo de te e um maior dominio intelectual de nosso mundo. Podemos
conhecimentos validos para todos os partidos, nio deviamos conseqiientemente esperar, devido aos adiantamentos na pesqui-
deixar-nos enganar por isso ou deixar de levar em conta o fato sa socioldgica sdbre a ideologia, que as relagdes entte a posic&o
de que, em qualquer ponto histérico do tempo, existe uma social, os motivos e os pontos-de-vista, até agora sé parcial-
quantidade substancial de conhecimentos acessiveis sémente mente conhecidos, se tornem cada vez mais transparentes. Como
quando vistos de uma perspectiva social. Mas, uma vez que jd tivemos ocasifo de indicar, isto nos dar4 condigdes de calcular,
ainda néo vivemos em um periodo livre de complicagdes mun- com maior precisfo, os interésses coletivos e seus corresponden-
danas e situado acima da histéria, nosso problema consiste nao tes mudos de pensament> e de predizc- aproximadamente as
em como lidar com um tipo de conhecimento que seja a ‘‘ver- reacdes ideoldgicas dos diferentes estratos sociais.
dade em s.”, mas antes em como o homem lida com os seus
problemas cognitivos, vinculado que est4, em seu conhecimen- © fato de que a Sociologia do Conhecimento nos d4 uma
to, A sua posicéo no tempo e na sociedade. Se defendemos uma certa base nao nos exime da responsabilidade de chegar a de-
visio compreensiva do que ainda nao se pode sintetizar em um cisGes, mais amplia o campo de viséo em cujos limites as deci-
sistema é porque a consideramos como a possibilidade relativa sdes devem ser tomadas. Aquéles que temem que um maior
étima em nossa situagdo atual, e porque acreditamos que agin- conhecimento dos fatéres determinantes que influem na fotma-
do dessa forma (como sempre acontece na histéria) estejamos cao de suas decisSes venha a ameacar-lhes a “liberdade” podem
dando os passos preparatérios necessdrios pata a sintese seguin- ficar descansados. Na verdade, 0 menos livre e mais profun-
te. Contudo, depois de enunciada esta solugio para o proble- damente predeterminado em sua conduta é aquéle que ignora
ma, precisamos actescentar, de pronto, que a disposicao para os fatéres determinantes importantes, e que age sob a pressio
chegar a uma sintese, a partir do ponto-de-vista mais compreen- imediata de determinantes que desconhece. Téda vez que to-
sivo e avancado, traz implfcita um juizo prévio, que é a nossa mamos conhecimento de um determinante que nos dominava,
decisio de chegar a uma mediacdo intelectual dinamica, Cer- removemo-lo do campo de motivacto inconsciente para o da mo-
tamente, serfamos os ultimos a negar que tenhamos feito éste tivacio controlavel, calcul4vel e obietivada. A escolha c a decisio
jutzo de valor. De fato, nossa tese principal é que o co-theci- nao sao, dessa forma, eliminadas; pelo contrdrio, os motivos que
mento politico, enquanto a politica corresponder 4 definigéo an- anteriormente nos dominavam tornam-se sujeitos ao nosso do-
teriormente dada, é impossivel, sem tal decisdo, e que esta deci- minio; somos cada vez mais tefetidos a nosso verdadeiro self e,
séo a favor da mediacio intelectual dinamica deve ser vista co- ao passo que antigamente éramos escravos da necessidade, agora
Me
mo um e’emento da situac#o total. Mas existe uma diferenga achamos possivel unir-nos as fércas com as quais estejamos em
bastante grande entre o fato de esta pressuposis&o influenciar o total acérdo.
nosso ponto-de-vista de modo inconsciente e ingénuo (impedin- A consciéncia progressivamente mais nitida de fatéres an-
do uma ampliacao fundamental de nossa perspectiva) e o fato teriormente n&o-controlados e a tendéncia a suspender os juizos
de aparecer sdmente depois de tudo aquilo de que podemos ter imediatos até que sejam vistos em ‘um contexto mais amplo pa-
consciéncia e que j4 sabemos ter influido em nossas deliberagSes. recem constituir a principal tendéncia no desenvolvimento do
conhecimento politico. Isto corresponde ao fato, anteriormen-
A quinta-esséncia do pensamento politico parece-nos residir
te mencionado, de que a esfera do racionalizdvel e do racional-
no fato de que o conhecimento ampiiado nao elimina as decisdes,
mente controlavel (mesmo em nossa vida mais intima) se en-
contra em constante crescimento, ao passa que a esfera do irta-
46 © para mais detalhes a tese apresentada pe'o autor em 1923 em cional se vai tornando proporcionalmente mais estreita. Nao
Zurique (“Die Konkurrenz im Gebiete des Ceistigen”), em que ha uma iremos discutir se éste desenvolvimento nos levard, em ultima
apreciagao a respeito da natureza e génese do conhecimento consensual andlise, a um mundo plenamente racionalizado em que j4 nao
et post. poderiam existir a irtacionalidade e a valoracHo, ou se levard 4
214 IpEoLoGIA E Uroria Tror?* Soca, © Pratica Poifts3i 215
cessacéo da determinacao social no sentido da liberdade median- ciéncia deveria ser submetida ao auto-exame critico, a fim de
te uma total consciéncia de todos os fatéres sociais implicados. eliminar todos os fatéres que atuam cega e compulsivamente.
Trata-se de uma possibilidade utépica e remota, nao estando, Max Weber forneceu a primeira formulacio aceitdével des-
portanto, sujeita 4 andlise cientifica. ta concepgdo da politica. Suas idéias e pesquisas refletem o es-
Entretanto, pode-se afirmar com seguranca que a politica tdgio da ética e da politica, em que o destino cego parece en-
como politica ssmente é possivel enquanto o campo do irracio- contrar-sc, pelo menos parcialmente, em curso de desaparicio do
nal ainda existe (onde @ste desaparece, a ‘‘administragdo” toma processo social, ¢ o conhecimento de tudo que seja cognoscivel
o seu lugar). Além disso, pode-se afirmar que a natureza pe- se torna uma obrigagéo do homemativo. E neste ponto, se é
culiar do conhecimento politico, em contraste com as Ciéncias que em algum, que a politica pode vir a ser uma ciéncia, uma
“Exatas”, surge da inseparabilidade, neste campo, entte 0 co- vez que, de um lado, a estrutura do campo histérico a ser con-
nhecimento e o interésse e a motivac’o. Na politica, o elemen- trolado se tornou transparente, e, por outro lado, a partir da
to racional se acha inerentemente entrelacado com o irracional; nova ética emerge um ponto-de-vista que encara o conhecimento,
finalmente, existe uma tendéncia a se eliminar o irracional do no como contemplacio passiva, mas como auto-exame critico, e
campo do social e, em estreita ligagio com ela, ocotre uma cons- neste sentido prepara o caminho para a aco politica.
cientizacio mais elevada dos fatéres que, até ent#o, nos domina-
tam inconscientemente,
Na histétia da humanidade, isto se reflete no fato de os
homens terem originalmente aceito as condicdes sociais como
destino inalterdvel, da mesma maneira que, provavelmente, te-
temos sempte de aceitar limitacdes naturais tais como o nasci-
mento e a morte. Junto a esta concepcio aparecia um principio
ético — a ética do fatalismo, cujo principal dogma era a sub-
missfo a podéres superiores e imperscrutdveis. A primeira quebra
desta visio fatalista ocorreu com a emetgéncia da ética da cons-
ciéncia, segundo a qual o homem sobrepunha o seu self ao
destino inerente ao curso dos acontecimentos sociais, Guarda-
va sua liberdade pessoal, por um lado, no sentido de conservar
a capacidade de originar novas seqiiéncias causais no mundo
(embora renunciasse A capacidade de controlar as conseqiiéncias
déstes atos) e, por outro lado, mediante a crenca na indecermi-
nagio de suas prdprias decisdes.
A nossa época parece representar um terceiro estdgio dés-
te desenvolvimento: o mundo das relacdes sociais j4 nao é im-
perscrutdvel nem pertence ao destino, mas, pelo contrdrio, al-
gumas inter-relacSes sociais sio potencialmente prediziveis. A esta
altura comeca a surgir o principio ético da responsabilidade.
Seus imperativos principais sao: primeiro, que a acdo n&o sé de-
veria estar de acérdo com os ditames da consciéncia, mas deve-
tia levar em consideracdo suas possiveis conseqiiéncias, na me-
dida em que estas sejam calculdveis; segundo, o que se pode
acrescentar com base em nossa discussdo anterior, a prépria cons-
A Menraipave Urépica 217
Téda “ordem operante de vida” concreta deve ser conce- se vé, em sua conduta pessoal, sempre forgado — na medida em
bida e caracterizada mais claramente por meio da particular es- que nfo recorre A ruptura da estrutura social existente — a re-
trutura politica e econdmica em que se baseic. Mas abarca igual- Munclar a seus motives mais nobres.
mente tédas as formas de ‘“‘vida em conjunto”’ humana (formas O fato de que esta conduta ideoldgicamente determinada
especificas de amor, sociabilidade, conflito, etc.) que a estru- sempre fique aquém de sua significacio pretendida pode apre-
tura torna possivel ou requer; e também todos os modos e for- sentar-se sob varias formas —~ e correspondendo a estas formas
mas de experiéncia e pensamento caracteristicos déste sistema existe tdda uma série de tipos possfveis de mentalidade ideold-
social e, conseqiientemente, em congruéncia com éle. (Para ¢ gica. Podemos ter, como o primeiro tipo desta série, o caso em
presente enunciado do problema isso é suficientemente preciso. que o individue — que pensa e concebe — se ache impedido de
Nao se pode negar que, a se levar adiante o ponto-de-vista a tomar consciéncia da incongruéncia de suas idé¢ias com a reali-
partir do qual se faz a anélise, ainda haveria muito mais a ex- dade em virtude do corpo total de axiomas implicado em seu
plicar. A extensao em que um conceito explica algo jamais pode pensamento historica ¢ socialmente determinado, Um segundo
ser absoluta; sempre é correlata 4 expansao ¢ A intensificagao do tipo de mentalidade idealdgica é a “mentalidade hipécrita”, que
entendimento da estrutura total.) Mas téda ordem de vida ‘“‘cfe- se caracteriza pelo fato de que, histdricamente, tenha a possibi-
tivamente operante” contém concepcdes a que se pode designar lidade de desvendar a incongruéncia entre suas idéias e suas con-
de “transcendentes” ou “‘irreais” porque seus conteiidos jamais dutas, mas, ao invés de o fazer, oculta estas percepgdes, em
podem ser realizados nas sociedades em que existem e porque atencio a determinados interésses vitais e emccionais. Como
nao se poderia viver e agir segundo éles dentro dos limites da um tipo fine! existe a mentalidade idealégica que se basela no
ordem social existente. Iégro consciente, em que se deve interpretar a ideologia como
Em uma palavra, t6das as idéias que nio caibam na ordem sendo uma mentira deliberada, Neste casa nfio estamos tra-
em curso sao “‘situacionalmente transcendentes” ou irrcais. As tando com a auto-ilusio, mas antes com o enganar deliberada-
idéias que correspondem 4 ordem de facto, concretamente exis- mente outra pessoa, Existe um niimero infinddvel de estagios
tente, sfo designadas como “adequadas” e situacionalmente con- transicionais variando desde a mentalidade bem intencionada
gruentes. Estas sao relativamente raras, e somente um estado situacionalmente transcendente, passando pela “mentalidade hipd-
de espirite que tenha sido totalmente esclarecido sdciologica- crita”, até a ideologia no sentido de mentiras conscientes.2 A
mente opera com idéias e motivos situacionalmente congruentes. esta altura, nfo ha necessidade de nos ocuparmos ainda mais
Em contraste com as idéias adequadas e congruentes, existem com estes fendmenos. E entretanto necessdrio chamar a atencio
duas categorias principais de idéias que transcendem a situacio para cada um déstes tipos, a fim de perceber com maior clareza
— as ideologias e as utopias. a peculiaridade do elemento utdépico quanto a éste aspecto,
As ideologias so as idéias situacionalmente transcendentes As utopias também transcendem a situacdo social, pois tam-
que jamais conseguem de facto a realizacio de seus contetidos bém orientam a conduta para elementos que a situacio, tanto
pretendidos. Embora se tornem com freqiiéncia motivos bem quanto se apresente em daca época, nao contém. Mas nao sao
intencionados para a conduta subjetiva do individuo, seus signi- ideologias, isto é, nfo sda ideologias na medida e até o ponto
ficados, quando incorporados efetivamente 4 prdtica, sfo, na maior em que consequem, através da contra-atividade, transformar a
patte dos casos, deformados. A idéia do amor fraterno cristao, realidade histérica existente em outra realidade, mais de acdrdo
por exemplo, permanece, em uma sociedade fundada na servidao, com suas préprias concepgdes. Ao observador que delas tenha
uma idéia irrealizdvel e, neste sentido, uma idéia ideoldgica, mes- uma visio relativamente externa, esta distincio tedérica e com-
mo quando o significado pretendido constitui, em boa-fé, um pletamente formal entre utopias e ideologias parece oferecer pou-
motivo da conduta do individuo. E impossivel viver harmoniosa- ca difievldads Corside detom’nar ecr cretamer i: oO <3e em um
mente, 4 luz do amor fraterno cristdéo, em uma sociedade que
na@o se acha organizada sch o mesmo principio, © individuo 2 Para maiore, detalhes, cf. Parte II, “Ideologia e@ Utopia”.
220 Ingo oGia c Uvopia A Mine nw.pe Urée.ws 221
dado caso seja ideoldgico e o que seja utépico é extremamente cientemente, tenha assumido uma posi¢o a favor da ordem so-
dificil. Aqui nos defrontamos com a aplicacao de um conceito cial prevalecente, deve possuir uma concepgio ampla e indife
que envolve valéres e padrdes. Para que tal aplicacao se efetue, renciada do utépico; isto ¢é, uma concepgdo que suprime a dis-
deve-se necessariamente partilhar dos sentimentos e das motiva- tingdo entre a inviabilidade absoluta e a relativa. Desta posiciu,
gGes das partes em luta pelo assenhoreamento da realidade his- € praticamente impossivel transcender os limites do status quo.
tdrica. Esta relutancia em transcender o status quo tende para a posi-
O que em um dado caso aparece como utdpico, e o sue go de encatar algo invidvel apenas dentro da ordem dada, como
aparece como ideoldgico, depende essencialmente do estdgio e se fésse totalmente invidvel em qualquer ordem, de tal forma
do grau de realidade a que se esteja aplicando éste padrao. Claro que, ao se obscurecetem estas distincdes, se possa suprimir a va-
‘est4 que os estratos sociais representantes da ordem intelectual lidade das pretensdes da utopia relativa. Chamando de utdpico
e social prevalecente irao experimentar como realidade a estru- tudo o que ultrapasse a presente ordem existente, afastase a
tuta de relagdes de que sio portadores, ao passo que os grupos ansiedade que poderia ser provocada pelas utopias relativas,
de oposic#o 4 ordem presente irfo orientar-se em favor dos pri- vidveis em outra ordem.
meiros movimentos pela ordem social por que lutam e que, por
seu intermédio, se estd realizando. Os representantes de uma No extremo oposto se encontra o ararguista G. Landauer
ordem dada it%o rotular de utdépicas tédas as concepgdes de exis- (Die Revolution, pags. 7 e segs.) que considera a ordem exis-
téncia que do seu ponto-de-vista jamais poder&o, por principio, tente um todo indiferenciado e que, sdmente atribuindo valor a
se realizar. De acdrdo com esta utilizagdo, a conotagdo contem- revolugao e 4 utopia, vé em téda topia (a presente ordem exis-
poranea do térmo “utépico” & predominantemente a de uma tente) o prdéprio mal. Assim como os representantes de uma
idéia em principio irrealizdvel. (Pusemos deliberadamente de ordem existente nao diferenciam as variedades de utopia umas
lado esta significacfio do térmo na definicdo mais estreita.) Den- das outras (permitindo-nos falar de uma cegueira quanto A uto-
tre as idéias que transcendem a situacio, existem certamente pia), também se pode acusar o anarquista de cegueira quanto a or-
algumas que em principio jamais poderiam realizar-se. Nao dem existente. Percebemos em Landauer o que é caracteristico
obstante, os homens, cujos pensamentos e sentimentos se acham em todos os anarquistas, a saber, a antitese entre o “autoritd-
vinculados a uma ordem de exist€ncia na qual detém uma posi- tio” e o “‘libertdrio’” — uma oposic&o que simplifica tudo e que
Gio definida, manifestarao sempre a tendéncia a designar de encobre tédas as diferengas parciais, englobando como autorité-
absolutamente utdépicas todas as idéias que se tenham mostrado tio tudo, desde o Estado policial, passando pela repiblica demo-
irrealizdveis apenas no quadro da ordem em que éles prdéprios crdtica, até o Estado socialista, enquanto sOmente o anarquismo
vivem. Sempre, porém, que, nas paginas seguintes, falarmos é considerado libertério. A mesma tendéncia para a simplifica-
de utopia estaremos usando o térmo no sentido relativo, uma Gao se opera igualmente na forma pela qualse retrata a histéria.
utopia significando, assim, o que pareca irrealizdvel tdo-s6 do Esta dicotomizagao rude obscurece as indubitveis diferencas qua-
ponto-de-vista de uma dada ordem social vigente. litativas entre cada uma das formas de Estado. Similarmente,
ao se depositar a énfase valorativa na utopia e na revolucio,
A ptépria tentativa de determinar o significado do concei-
to “utopia” mostra a que ponto téda definicio, no pensamento obscurece-se a possibilidade de notar qualquer tipo de tendén-
cia evolutiva no dominio do histérico e do institucional. Se-
histérico, depende necessariamente da perspectiva da pessoa, isto
gundo éste ponto-de-vista, cada acontecimento histérico cons-
é, contém em si mesma todo o sistema de pensam nto que te-
titui uma libertagdo sempre renovada de uma topia (ordem exis-
presenta a posic#o do pensador em questGo e especialmente as
valoragdes polfticas subjacentes a vste sistema de pensamento. tente), a qual é efetuada por uma utopia que surge a partir da
A prdépria forma pela qual se define um conceito e o matiz com primeira. Sdmente existe verdadeira vida na utopia e na revo-
o qual é empregado jd encerra, em certo grau, um jufzo prévio
lug&o, a ordem institucional nada mais sendo do que o resfduo
maligno deixado pelas utopias e revolucdes em declinio. Dessa
quanto ao produto da cortente de idéias claborada sdbre éle.
forma, 0 caminho da histéria vai de uma topia, por uma utopia,
Nao € por acaso que um observador gue, consciente ou incons-
até a topia seguinte,etc.
A Mr raLapE UT6PICA 223
“spo.ecia E Usopla
da, as tendéncias nao-realizadas que representam as necessidades
A unilateralidade desta visio do mundo e desta estrutura de ta! época, Estes elementos intelectuais se transfor.> mn, entao,
conceptual € por demais evidente para requerer uma elaboragio no material explosivo dos limites da ordem existente. A ordem
posterior. Seu mérito, entretanto, reside no fato de, em opo- existente d4 surgimento a utopias que, por sua ve. rompem
a opinido “conservadora” que se pronuncia a faver da com ov lagos da ordem e:istente, deixando-a livre |. evoluir
o.dem estabelecida, evitar que a oidem existente se torne abso- em aiesao0 A ordem de cxisténcia seguinte. Testa ‘...1¢%0 dia-
luta, ao contempld-la como apenas uma das possiveis “topias” Iética” j.4 foi bem enunciada pelo hegeliano Droysen iinda que
de que irio emanar os elementos utdpicos que, por seu turno, de un.i maneira formal ¢ intelectualista. Suas defi. igdes po-
irdo solapd-la. Torna-se assim claro que, para encontrar a dem scr titeis para o esclarecimento inicial d@ste asp.cto dialé-
concepedo correta de utopia, ou, mais modestamente, a mais ade- tico. Assim, escreve éle: #
quada ao presente estdgio de nosso raciocinio, deve a andlise ba-
seada na Sociologia do Conhecimento ser empregada para icvelar § 77
a unilateralidade de cada uma destas posigdes antagénicas, elimi- “Toda evolucio no mundo histérico se processa wa seguin-
nando-as. ‘Toornar-se-4 entao claro aquilo em que exatamente te forma: O pensamento, que é a contrapartida ideal das coisas
consiste a particularidade das concepgdes precedentes, Sdmente como estas existem na realidade, se desenvolye como as coisas
depois de se haver esclarecido esta questéo é que se torna pos- deveriam ser...”
sivel, tomando por base o discernimento pessoal de cada um, § 78
atingir uma solucdo mais inclusiva, que supere a unilateralidade “Qs pensamentos constituem a critica do que é, sem no en-
que se tornou aparente. A concepcio de utopia por nds utiliza- tanto ser como deveria ser, Na medida em que possam elevar
da parece neste sentido a mais inclusiva. Procura levar em con- as condigdes ao nivel déles, alargando-se depois e¢ se enrijecendo
ta o cardéter dinamico da realidade, na medida em que nfo assu- de acérdo com o costume, o conservadorismo e a obstinacao,
me como ponto de partida uma “‘realidade em si”, mas, antes, uma nova critica se faz necessdria, e assim por diante.”
umarealidade concreta, histdrica e socialmente determinada, que
se acha em um constante processo de mudanga (cf. pags. 120 8 79
e segs. e pdég. 150, nota 13}. Além disso, propde-se a atin- “Que a partir de condicdes j4 dadas, surjam novos pensa-
git uma concepcao de utopia qualitaciva, histdrica e socialmente mentos ¢, a -artir dos pensamentos, novas condicde3 eis 0
diferenciada, e, finalmente, manter a distingdo entre o “relativa- trabalho dos homens.”
mente” e o “absolutamente utdpico”,
Esta formulacio da progressdo dialética, da situacZio e das
Tudo isso ocorre, em Ultima andlise, por ser nossa inten¢gdo contradigSes a serem encontradas no dominio do pensamento
nao estabelecer apenas abstrata e tedricamente algum tipo de deve ser encarada como apenas um esbéco formal. O verda-
relac&o arbitrdria entre a existéncia e a utopia, mas, antes, se pos- deiro problema reside em se tragar o.intercurso das formas di-
sivel, fazer justica 4 plenitude concreta da transformac%o histd- ferenciadas de existéncia social com as diferenciagSes correspon-
tica e social da utopia em um dado perfodo. Mais ainda, assim dentes nas utopias. Disso resulta que os problemas levantados
fazemos porque nfo apenas buscamos obsérvar contemplativa- se tornam mais sistemd‘icos e mais inclusivos, na medida em
mente e descrever morfoldgicamente esta transformacio de for- que refletem a riqueza « a variedade da histéria. O problema
ma na concepgfio de utopia, mas também porque desejamosassi- mais imediato para a pe.quisa consiste em levar o sistema con-
nalar o principio vital que vincula o desenvolvimento da utopia ceptual ¢ a realidade em sirica a um contato mais préximo um
com o desenvolvimento de uma ordemexistente. Neste sentido, com o outro,
a relacdo entre a utopia e a ordem existente apatece como uma
telagGo ‘“dialética”. Queremos dizer com isso que cada época
3 Droysen, T. G., Outline of the Principles of History, trad. por
permite surgir (em grupos sociais diversamente localizados) as Benjamin Andrews, Boston, 1893, pags. 45-6,
idéias e valéres em que se acham contidas, de forma condensa-
224 IproLocia © Uroria A MENTALIDADE UTOPIcA 225
Aqui cabe a observacio de que em geral o aparato conceptual em que, em sua utilizagao técnica histérica, compreendesse as
dos partidos progressistas se presta melhor ao estudo sistemd- estruturas que se assemelhassem em térmos conctetos 4 Utopia
tico —- na medida em que sua posicio social oferece possibili- de Thomas More, ou que, em um sentido histérico algo mais
dades mais amplas para o pensamento sistemdtico.?_ Por outro amplo, se referissem As ‘“‘comunidades ideais”. Nao pretendemos
lado, os conceitos histéricos que enfatizem a singularidade dos negar a utilidade de tais conceitos individualmente descritivos,
acontecimentos seriam tendencialmente produto dos elementos uma vez que o objetivo seja a compreensao dos elementos indi-
consetvadores da sociedade. Pelo menos nao pode haver di- viduais na histéria. Negamos, contudo, que seja esta a tnica
vida quanto 4 exatidao desta imputagao para a época em que abordagem aos fendémenos histdricos. Neste caso, a pretensdo
surgiu a idéia de singularidade histérica, em oposigéo a de ge- dos historiadores de que a histéria, em si e para si, seja exata-
neralizacio. mente éste encadeamento de fendmenos tinicos nao se coloca co-
Em conseqiiéncia, podemos prever que o fustoriadi. itd mo um argumento contra nossa afirmacio. Como poderia a
criticar nossa definicfio de utopia como sendo uma construgéo histéria ser algo melhor quando, com o simples enunciado do
por demais arbitrdria, de um lado, por nao se ter limitaco ao problema e a formulac&o dos conceitos, j4 se fechasse a possibi-
tipo de obras cujos titulos foram retirados da Utopia de Tho- lidade de se alcangar qualquer outta resposta? Quandose apli-
mas More, e, de outro, por incluir muitas coisas nao-relaciona- que .A histéria conceitos que néo foram projetados para revelar
das a éste ponto de partida histérico. estruturas, como podemos esperar chegar, por seu intermédio, a
Esta objecdo se apdia na suposicao mantida pelos historia- estruturas histdéricas? Se nossas indagagSes nao antecipam um
certo tipo de resposta tedrica, como podemos espetar obté-la?
dores de ie a) sua Unica tarela consiste na apresentacio dos
(Trata-se aqui de uma repeticao, em nivel mais elevado, do pro-
fendmeno histéricos em toda a singularidacde conereta pela qual
cedimento que tivemos a oportunidade de observar anterior-
se apresentam; ev que &) portanto, deve-se trabalhar exclusiva-
mente, no caso dos conservadores e dos anarquistas: a possibi-
mente com conceitos descritivos, isto é, conceitos yue, segundo
lidade de uma determinada resposta indesejdvel j4 se acha blo-
um ponto-de-vista sistemdtico, nfo sdo definidos com uma rigi-
queada pela maneira pela qual se enuncia o problema e através
dez tal que os impega de respeitar o cardter fluido dos fendme-
da formulago dos conceitos a serem aplicados. Cf. pdgs. 219 e
nos. Portanto, os acontecimentos devem ser agrupados e classi-
ficados tomando-se por base nao um principio de similaridade, segs. )
mus antes na qualidade de fendmenos cuja relacio pode ser des- Uma vez que a indagacio que fazemos 3 histéria se destina,
coberta (através de sinais perceptiveis), por se tratar de partes por sua prdépria natureza, a resolver o problema de existirem
de uma situagao histérica inica. Claro estd que quem se apro- ou nao iddias até ent&o n&o concretizadas na realidade, que
ximar do estudo da realidade histérica com tais pressuposigdes transcendam uma dada realidade, tais fendmenos podem ser
ira obstruir, por meio de seu aparato conceptual, o caminho para enunciados como um complexo de problemas sob a forma de um
a investigacio sistematica. Concedendo-se que a histdéria repre- conceito. Seria portanto coerente colocar a questio sébre se
senta mais do que uma quest@o de concretude e de individua- €ste conceito pode ser vinculado ao significado do térmo “‘uto-
lidade, e que possua alguma organizacio estrutural, chegando pla’. A questo permite uma resposta dupla; na medida em
mesmo, até certo ponto, a seguir leis (uma suposigdo que deve que definimos o térmo, “utopia ird significar isto e isto...”,
ser mantida aberta como uma das possibilidades), como se po- ninguém poderd objetar nosso procedimento, porque admitimos
deria descobrir éstes fatéres com conceitos tao ingénuos que s6- que a definicto foi proposta sdmente para determinados fins
mente se referem a unicidade histérica? Um conceilo ingénuo (como Max Weber viu perfeitamente). Quando, “entretanto,
histéricamente seria, por exemplo, o de “utopia”, na medida além disso, vinculamos esta definicéo 4 conotagio histéricamen-
te evoluida do térmo, o fazemos com o propédsito de mostrar que
os elementos por nds enfatizados em nossa concepsdo da utopia
4 Pora as causas, cf, meu Das Konsercative Denken, op. cit., pags. jé se achavam presentes nas utopias tal como estas apateceram
83 © segs na histéria. Por esta razZo, somos da opiniao de que nossos
226 IpsoLoci.. x. Jte7 A BR enrTaLipape UtT6Pica 227
da mentalidade burguesa dominante dos capazes de realizagao gécs complementares do retrato da realidade da época do que
subseqiiente, isto ¢, os clementos verdadciramente utdpicos, sd- utopias atuando em oposig’o ao status quo, e desintegrando-o.
mente poderia ser efetuada por um esttato social que mais Uma extraordindria pesquisa na histéria cultural © demons-
tarde se apresentasse em cena para desafiar a ordem existente. trou que as formas de aspiragSes humanas podem ser enuncia-
Tédas as incertezas por nds assinaladas como estando im- das em tétmos de principios gerais e que, em determinados pe-
plicadas ern uma definic#o especifica do que seja utépico e do rfodos histéricos, a consecugio de desejos se ptoduzia através da
que seja ideoldgico na mentalidade de uma dada época tornam projegdéo no tempo, ao passo que, em outros, se realizava atra-
de fato mais dificil a formulagéo do problema, mas nao impe- vés da projecio no espaco. De acérdo com esta diferenciacdo
dem sua investigacdo. Somente quando nos encontramos no seria possivel chamar de utopias os desejos espaciais, e de qui-
verdadeiro centro de idéias mttuamente conflitantes é que se liasmas, os desejos temporais. Esta definicdo de conceitos, se-
torna extremamente dificil determinar o que se deve conside- gundo os interésses da histdria cultural, objetiva apenas princt-
rar vetdadeiramente utdpico (isto é, vidvel no futuro) no hori- pios descritivos. Nao podemos, entretanto, aceitar a distincio
zonte de uma classe em ascens&o e o que se deve considerar me- entre projecio de descjos espacial e temporal como um crité
ramente como a ideologia de classes dominantes, bem como de tio decisivo para diferenciar tipos de ideologias e utopias. Con-
classes ascendentes. Mas, se olharmos pata o passado, parece sideramos utdépicas todas as idéias situacionalmente transcenden-
possivel encontrar um critério razoavelmente adequado para a tes (n&o apenas projecdes de desejos) que, de alguma forma,
distingao entre o utépico e o ideoldgico. Tal critério é sua rea- possuam um efeito de transformacao sdbre a ordem histérico-
lizagio. Idéias que posteriormente se mostraram como tendo -social existente. Sendo éste 0 passo inicial de nossa investiga-
sido apenas representacdes destorcidas de uma ordem social pas- co, vemo-nos diante de uma série de problemas.
sada ou potencial eram ideoldgicas, cnquanto as que foram ade- Ja que, sob éste aspecto, nos interessamosinicialmente pelo
quadamente realizadas na ordem social posterior eram utopias desenvolvimento da vida moderna, nossa primeira tarefa consis-
relativas. As realidades atualizadas do passado poem um térmo te em descobrir o momento em que as idéias situacionalmente
ao conflito de metas opinides sébre o que, nas idéias situacio- transcendentes se tornam pela primeira vez ativas, isto é, se
nalmente transcendentes de antigamente, era relativamente utd- tornam fércgas que conduzem A transformacio da realidade exis-
pico, rompendo os Jacos da ordem exi.tente, e v que era uma tente. Seria conveniente indagar aqui qual dos elementos si-
ideologia, servindo tnicamente para dissimular a realidade. A tuacionalmente transcendentes na mentalidade dominante, em di-
extensio em que as idd¢ias so tealizadas constitui um padrao ferentes épocas, assumiu esta funcio ativa. Pois na mentalidade
complementar ¢ retroativo para estabelecer distingSes entre fa- humana nem sempre séo as mesmas fércas, substancias ou ima-
tos que, na medida em que sao contemporancos, se acham imer-
sos no conflito de opinides partiddrias.
6 Doren, A., Wunseliriume und Wunschzeiten (Conferéncias,
1924-5, da Biblioteca Warburg, Leipzig, Berlim, 1927, pags. 158 ¢
segs.). Esta obra 6 citada para futura referéncia como o melhor guia
2. REALIZACGAQ DE DESEJOS E MENTALIDADE UTOPICA para o tratamento do problema do ponto-de-vista da histéria cultural e
da histéria day iddias, Contém, igualmente, uma excelente biografia.
© pensamento desiderativo sempre figurou mos assuntos No presente trabalho, citamos sémente aquelas obras que n&o aparecem
nas referéncias bibliogrificas do livro de Doren. O ensaio de Doren
humanos. Quando a imaginacZo nfo encontra sua satisfagdo na
pode ser classificado como uma histéria do motivo (algo semelhante
realidade existente, busca refiigio em lugares e épocas desidera- a iconografia na histéria da arte), Pata tal finalidade, sua termtnologia
tivamente construfdos. Mitos, contos de fada, promessas su- (aspiragiio espacial” ¢ “aspnagio temporal”) é particularmente apro-
praterrenas da religido, fantasias humanisticas, romances de via- priada, mas para nosso propdsito, isto 6, a construgio de uma histéria
gens tém sido expressdes, em continua mutacio, do que estava speiologica da estutura da moderna consciéncia, tem apenas valor in-
faltando na vida real. Constitufam, mais precisamente, colota- ireto.
230 Ipgotocia E UTopra A Menrarrpape UtTéprca 231
gens as que podem adotar uma func&o utdpica, ou seja, a fun- vemos, contudo, superestimar a significagto da importancia do
¢fo de romper os lacos da ordem existente. Veremos cm se- individuo em relagao A coletividade, como nos acostumamos a
guida que o elemento utdpico em nossa consciéncia estd sujei- fazer desde a Renascenca. Desde esta época, a contribuigao da
to a mudancas de contetido e forma. A situacgHo existente, em mente individual se eleva relativamente quando comparada ao
qualquer momento dado, acha-se constantemente abalada por papel que de-empenhou durante a Idade Média e nas culturas
diferentes fatéres situacionalmente transcendentes. orientais, mas sua sjgnifjcagio nao é absoluta. Mesmo quando
Esta mudanca de substdncia e forma da utopia na@o ocorre um individuo aparentemente isolado atribui uma forma A utopia
em um campo independente da vida social. Seria possivel de- de seu grupo, éste fato pode ser, em ultima andlise, atribufdo ao
monstrar que, pelo contrdrio, especialmente em desenvolvimen- grupo a cujo impulso coletivo sua realizacio se conformou.
tos histéricos modernos, as sucessivas formas de utopia se acham, Apdés havermos esclarecido as relagdes entre as realizacdes
no inicio, intimamente vinculadas a dados estdgios histéricos de do individuo e as do grupo, achamo-nos em condicdes de falar
desenvolvimento e, em cada um déstes, a particulares estratos de uma diferenciacio de utopias de acérdo com épocas histéri-
sociais. Ocorre com grande freqiiéncia que a utopia dominan- cas € estratos sociais, ¢ de encarar a histéria segundo @ste pon-
te surja inicialmente como a quimera de um tinico individuo, to-de-vista, No sentido de nossa definicio, uma utopia real nao
somente mais tarde incorporada nos objetivos politicos de um pode, a longo prazo, ser trabalho de um individuo, j4 que o in-
grupo mais inclusivo que, a cada estdgio sucessivo, pode ser so- dividuo n&o pode por si mesmo romper situacSo histérica e
cioldgicamente determinado com maior exatidio, Costuma-se social. Sémente quando a concepc&o utépica do individuo se im-
falar em tais casos de um precursor e do seu papel como pionei- pe a correntes jd existentes na sociedade, dando-lhes uma ex-
ro, atribuindo-se esta realizacdo individual, em térmos sociold- presséo, quando, sob esta forma, reflui de volta ao horizonte de
gicos, ao grupo a que transmitiu sua visio e em cujo beneficio todo o grupo, sendo por é@ste traduzida em acdo, sdmente entio
concebeu tais idéias. Isto implica a suposicao de que a aceita- pode a ordem existente ser desafiada pela Iuta por outra ordem
co ex post facto da nova viséo por determinados estratos apenas de existéncia. Com efeito, pode-se constatar, ainda mais, que se
evidencia 0 impulso e as rafzes sociais da concepc%o de que o trata de uma dimensao bastante essencial da histéria moderna
precursor j4 participava inconscientemente e de onde extraiu a 0 fato de que, na gradativa organizacio da acio coletiva, as
tendéncia geral de sua realizacdo, de outra forma indiscutivel- classes sociais somente se tornam eficientes na transformacao da
realidade histérica quando suas aspiracSes se encontram en-
mente individual. A crenga de que a significado do poder in-
carnadas em utopias apropriadas para a situacio em mudanca.
dividual de criacdo deve ser negada constitui um dos mais ge-
neralizados mal-entendidos a respeito das descohcrtas da So- Somentc porque existiu uma estreita correlacio entre as
ciologia. Pelo contrdrio, de onde se poderia esperar que o névo diferentes formas de utopia e os estratos sociais que estavam
se originasse a nao ser do espitito névo e singularmente pessoal transformando a ordem existente € que as mudancas nas idéias
do individuo que ultrapassa os limites da ordem existente? viopicas modernas consucuem um tema de investigacio socio-
Constitui tarefa da Sociologia mostrar sempre que, nZo obstante, ldgica. Se podemos falar de diferenciacdes histéricas e sociais
os primeitos indicios do que é néve (muito embera com fre- de idéias utépicas, devemos ent&o nos indagar se a forma e a
aiiéncia adotem a forma de oposicao a ordem existente) se acham substancia que em uma dada época possufram nao deveriam ser
de fato orientados para a ordem existente e que a prépria ordem compreendidas através de uma andlise concreta da situacdo his-
existente possui suas rafzes no alinhamento e na tensdo das fér- téticu-soc.al em que surgiram. Em outras palavras, a chave para
cas da vida social. Mais ainda, o que é névo na tealizacdo do a inteligibilidade das utopias consiste na situacdo estrutural do
individuo “carismético” singular ssmente podeser utilizado para estrato social que, em um dado tempo, as espose.
a vida coletiva quando, desde inicio, se acha em contato com As peculiaridades das formas particulares de utopias em
algum problema corrente importante e quando seus significados sucessiva emergéncia tornam-se de fato mais proximamente in-
estZo gen&ticamente enraizados nos objetivos coleuvos. Nao de- teligiveis, caso nao as consideremos meramente em térmos de
232 Ipgotocia cv Uroera A Meniatipape Urépica 233
filiago unilinear de uma para a outra, e, sim, levando em con- de diferentes configuragées e estdgios de mentalidade utdpica.
ta o fato de que vieram a existir e se mantiveram como con- E é exatamente esta tarefa de provar que tal inter-relacZo pro-
tra-utopias em muUtuo antagonismo. As diferentes formas das
funda realmente existe que constitui a culminacao de nossa pes-
utopias ativas apareceram nesta sucessdo histdérica em vincula-
quisa,
¢io com determinados estratos sociais definidos em luta
pela supremacia. Apesar de fregiientes excecdes, esta vincula- O elemento utdépico — isto é, a natureza do desejo domi-
¢fo continuou a existir de modo que, com o passar dos tempos, nante —- determina a seqiiéncia, a ordem e a valorac&o das ex-
se totna possivel falar de uma coexisténcia das diferentes for- periéncias singulares. Este desejo constitui o principio organi-
mas de utopia que inicialmente apareciam em uma sucess&o tem- zador que modela a prdépria maneira pela qual experimentamos
poral, © fato de existirem em intima vinculagdo, 4s vézes la- o tempo. A forma em que os acontecimentos se acham orde-
tente, 4s vézes manifesta, com estratos mutuamente antagéni- nados ¢ o ritmo inconscientemente enfatico que o individuo,
cos, reflete-se na forma que assumem, A mudanca de destino em sua observacio espontinea dos acontecimentos, impde ao flu-
das classes a que pertencem constantemente se expressa nas va- xo do tempo, aparece na utopia como um quadro imediatamen-
riagdes concretas na forma das utopias. O fato basico de pre- te perceptivel ou, pelo menos, como um conjunto de significa-
cisarem se orientar uma 4s outras por meio do conflito, ainda ces diretamente inteligivcis. A estrutura interna da menta-
que se trate apenas do sentido de aposicio, deixa sdbre elas Hidade de um grupo nunca pode ser mais claramente captada do
uma marca definitiva. Em conseqiléncia, o socidlogo somente que quando tentamos compreender sua concepgaio do tempo A
pode realmente compreender estas utopias como fazendo parte luz de suas esperancas, aspiracdes e propdsitos. Com base nes-
de uma constelacéo total em constante alteragdo. 7 tes propdsitos ¢ expeciativas, uma dada mentalidade ordena nao
Se a histéria social e intelectual se preocupasse exclusiva- sé os acontecimentos futuros, mas também os passados. Acon-
“mente com o fato anteriormente delineado de que cada forma tecimentos que a primeira vista se apresentam como uma meta
‘de ideologia socialmente vinculada esta sujeita a mudanca, sé acumulagko cronolégica, assumem, segundo éste ponto-de-vista,
teriamos o direito de falar de problemas que dissessem respeito o cardter de destino. Os simples fatos se colocam em perspecti-
4 transformagio socialmente vinculada da “utopia”, mas nao do va, distribuindo-se e parcelando-se énfases de significado a even-
problema da transformacio da “mentalidade utdépica”. Sdmen- tos isolados de acérdo com as direcdes fundamentais buscadas
te se poderdé falar corretamente de uma mentalidade utdpica pela personalidade. Nio é senao nesta significativa ordenacao de
quando, a configuracao da utopia, em qualquer época, constitua acontecimentos, prolongando-se muito além das meras ordenagdes
no apenas uma parte vital do “contetido” da mentaldade m cronoldgicas, que se iré descobrir o principio estrutural do tempo
questéo, mas quando pelo menos permeie, em sua tendéncia histérico. Mas é necessdrio ir ainda mais além: esta ordenacio
geral, todo o campo desta mentalidade. Sdmente quando o ele- de significados constitui, na verdade, o elemento mais impor-
mento utépico, neste sentido, tenda a se infundir completamen- tante na compreensdo e na interpretagio dos acontecimentos.
te em cada aspecto da mentalidade dominante na época, quando Assim como a Psicologia moderna demonstra que o todo (Ges-
as formas de experiéncia, de aco e de visio (perspectiva) este- talt) cede as partes, e que nossa primeira compreensio das partes
jam organizadas em concordancia com éste elemento utépico, surge através do todo, da mesma forma sucede com a compreen-
estaremos verdadeira e realisticamente no direito de falar nao sio histérica Também aqui temos o sentido do tempo histé-
apenas de diferentes formas de utopia, mas, ao mesmo tempo, tico como uma totalidade significativa que ordena os aconteci-
mentos “anteriormente” is partes, e através desta totalidade é
que verdadeiramente compreendemos pela primeira vez o curso
7 ¥£ merito de Alfred Weber o ter feito desta andlise de conste- total de acontecimentos e nosso lugar néle. Exatamente devido
lagdes um instrumento da Sociologia Cultural, Tentamos aplicar tal a esta significagio central do sentido de tempo histdérico, iremos
formulagio do problema, embora num sentido especifico, ao caso aci- enfatizar em especial as conexdes existentes entre cada utopia e
ma tratado. a correspondente perspectiva histérica de tempo.
234 “"ZOLOGIA EU. a T LNYAL.DAD. UIUPICA 235
tas estas idcias se transformaram nos movimentos ativadores de visio utdépica provocou uma visio contrétia. O otimismo qui-
estratos sociais especificos. Aspiragdes que até ent@o nao se ha- lidstico dos revolucion4rios veio finalmente a dar origem a for-
viam apegado a um objetivo especifico, ou se concentravam em magao da atitude conservadora de resignacio e, na politica, a
objetivos extraterrenos, assumiram subitamente uma compleicZo atitude realista.
mundana. Sentia-se que eram vidveis —- aqui ¢ agora — e in- Esta situagéo foi de grande importancia nao sé para a po-
fundiam um ardor singular 4 conduta social. Iitica, mas igualmente para as tendéncias espirituais que se ha-
A “espiritualizagiio da polftica’, de que se pode dizer que viam fundido com os movimentos praticos e que tinham aban-
comecou neste momento da histéria, afetou em maior ou me- donado sua posi¢éo desvinculada e afastada, Energias orgidsti-
‘nor escala tédas as correntes da época. A origem da tensio es- cas € iriupcSes extdticas comecatam a operar em um quadroter-
piritual estava, porém, na emergéncia da mentalidade utdpica reno e as tensOes que anteriormente transcendiam a vida coti-
originada nos estratos oprimidos da sociedade. E neste ponto diana sc tornaram agentes explosivos dentro do todo-o-dia. O
que tem inicio a politica, no sentido moderno do térmo, se en- impossivel faz nascer o possivel, 12 e o absoluto interfere no mun-
tendermos por politica uma participacdo mais ou menos cons- do e condiciona os acontecimentos efetivos. Esta forma funda-
ciente de todos os estratos da sociedade na consecugao de algu- mental, a mais radical de utopia moderna, foi conformada a par-
ma finalidade mundana, em contraste com a aceitagdo fatalista tir de um material singular. Corresponden a fermentacdo es-
dos acontecimentos como so ou com a do contréle de “cima”. 1! piritual e ao excitamento fisico dos camponeses, de um estrato
que vivia o mais préximo da terra. Era ao mesmo tempo ro-
No periodo pdés-medieval, sSmente muito gradativamente
bustamente material e altamente espiritual.
foram as classes tnais baixas assumindo csta funcio motora no
processo social total e atingindo uma consciéncia de sua prdpria Nada seria mais enganoso do que tentar entender éstes acon-
importancia polftica e social. Muito embora éste estdgio, como tecimentos sob o ponto-de-vista da “histéria das idéias”. Idéias
ja indicamos, se ache ainda bem distante do da ‘‘autoconsciéncia nao impeliram éstes homens a feitos revoluciondrios. Sua ex-
’ proletdria”, no obstante constitui o ponto de partida déste pro- plosio efetiva era condicionada por energias extdtico-orgidsticas.
cesso. Desde entZo as classes oprimidas da sociedade tendem, Os elementos da consciéncia transcendentes 4 realidade, que fo-
de uma forma mais claramente discernivel, a desempenhar um ram aqui despertados para uma fungao utépica ativa, nado eram
papel especffico no desenvolvimento dinémico do processo so- “déias”. Ver tudo o que ocorreu durante éste perfodo como
cial total. A partir desta época encontramos uma crescente di- o trabalho de ‘“‘idéias” constitui uma deformacio inconsciente
ferenciacgic social de propésitos e de atitudes psiquicas. produzida durante o estdgio liberal-humanitdrio da mentalidade
utdpica.1® A histéria das idéias foi a criagio de uma época mar-
Isto nao implica de forma alguma que esta forma mais ex-
cada pela idéia, que reinterpretava involuntariamente o passado
trema de mentalidade utdpica tenha sido o unico fator determi-
nante da histéria desde essa época. N&o obstante, sua presenca a luz de suas préprias experiéncias centrais. Nido foram as
“idéias” que impeliram os homens, durante as Guertas Cam-
no campo social tem exercido uma influéncia quase continua até
ponesas, 4 acio revoluciondéria. Esta erupcdo tinha suas rafzes
sdbre as mentalidades antitéticas, Mesmo os opositores desta
em niveis bem mais elementares e mais profundamente vitais
forma extrema de mentalidade utdépica se orientaram, embora
da psique, 14
involuntétia e inconscientemente, com referéncia a cla. A
Aqui, como na maioria dos demais perfodos da histéria, a gico, incorporou a decepcionante experiéncia dos estratos médios
Arte, a Cultura e a Filosofia nada mais séo do que a expressao apés a queda dos girondinos ao conceito de histéria sustentado
da utopia central da época, configurada pelas [ércas sociais ¢ por éstes estratos. Nao se renunciava ao fim viltimo de um es-
politicas contemporaneas. Exatamente como a auséncia de pro- tado de perfeic#io, mas se considerava a revolucia apenas como
fundidade ¢ de cér caracteriza a arte correspondente a esta teo- um mero estdgio de transicio, A idéia de progresso colocava di-
ria, uma auséncia semclhante se tornma aparente no contedido fieuldades em seu nrdpro camipho, ao descobiir os passos ne-
desta idéia liberal-humanitéria. A auséneia de cdr cortesponde ressérios © os estdpios de transicio impticados no processo de
a vacuidade de contetido em todos os ideais dominantes, no apo- desenvolvimento, que, ainda se acreditava, fdsse unilinear. En-
geu déste modo de pensamento: a cultura no sentido mais es- quanta anteriormente tudo o que fésse provisdrio era afastado,
treito, a liberdade, a personalidade constituem apenas arcabou- do ponto-de-vista da razdo, como érro ou preconceito, vamos
gos para um contetdo que, se poderia dizer, tenha sido proposi- encontrar em Condorcet pelo menos uma concessao de validade
tadamente deixado indeterminado. Ja nas Cartas sGbre a Huma- relativa aos estd4gios experimentais que precediam a um estado
nidade de Herder, e, portanto, nos estdgios iniciais do ideal de de perfeicio Os “preconceitos” prevalentes em qualquer época
“humanidade”, nado hé nenhum enunciado definido daquilo em dada eram reconhecidos como inevitdveis. Foram assimilados
gue consiste o ideal: em um dado momento consiste na “razig a idéia de progresso como “partes do quadro histérico” do pe-
e@ justica”, que aparecem como o objetivo; em outro consiste no riado, que, com o correr de tempo, veio-se diferenciando em
“bem-estar do ,homem”, que éle considera digno de nosso cm- estdgios e perfodos.
penho. Outra fonte da idéia de progresso se encontra na Alema-
A énfase demasiada na forma em Filosofia, bem como em nha. Na Erziehung des Menschengeschlechts de Lessing, a idéia
outros campos, corresponde a esta posigfo média ¢ A falta de emeraente de evolicia possufa, seeundo as oninides de von der
concretude de tédas as suas idéias. A auséncia de profundida- Goltz e Gerlich. 2% um carster nietista secularizado, Se, em
de nas artes pldsticas ¢ a predominincia do puramente linear acréscimo a esta derivagin, considerar-se que o pietismo. trans-
correspondem A mancira de experimentar o tempo histérico co- plantade da Tlolandy para a Alemanha, continha originalmente
mo um ptogresso ec uma evolucio unilincares. Esta concepgio certos elementos batistas, a idéia religiosa de desenvolvimento
de progresso unilinear deriva, essencialmente, de duas fontes pode, nesse caso, ser entendida como um refluxo do impulso
distintas. quilidstico — como um processo em que a fé permanente
Uma das fontes surgiu no desenvolvimento capitalista oci- (Harren) se torna, no cmbiente alemAo, uma “espera e anteci-
dental. © ideal burgués de razio, crigide como v objetivo, pacie”. vindo o sentido quilidstica de tempo se fundir imper-
contrastava com o estado de coisas existente, sendo necessirio ceptivelmente a um sentido evolucionista.
preencher o hiato entre a imperfeicdo das coisas, tais como ocor- Partindo de Arndt, Cocceius, Spener e Zinzendorf, a linha
tiam em umestado de natureza, e os ditames da razio, por meio condnz a Bengel, o contempordneo pietista de Lessing, que ja
do conceito de progresso, Esta reconciliacgdo das normas com o falava da direc%o histérica de Deus e do progresso continuo e
estado de coisas existente se efetuou através da crenca de que uniforme desde o princfpin até o fim do mundo. E déle que se
a tealidade se movesse continuamente para uma proximidade
cada vez maior com o racional, Embora esta idéia da aproxi-
macio cada vez maior fésse inicialmente vaga ¢ indeterminada, 28 von der Goltz, “Dic theologische Bedeutung J. A. Bengels und
a ela é€ dada uma forma relativamente concreta e cldssica pelo seer Schuler”, Jahrbiicher fiir deutsche Thealogic (Gota, 1861), vol.
girondino Condorcet. Condorcet, como Cunow, 27 teve a opor- VI, pags 460-506. Gerlich, Fr, Der Kommunismus aly Lehre vom
tausendjahrigen Reich (Mumque, 1920), Este livio, escrito para fins
tunidade de analisar corretamente sob o ponto-de-vista sociold-
propagandisticos, é em muitos aspectos simplificado e superficial, mas
muitas idéias bAsicas, como as citadas acima, pareecm estar muito bem
27 Cunow, H., Die Marzsche Geschichis-, Geselischufis- und compreendidas, (Cf. o apéndice.) Doren (op. cit.) fé% uma correta
Staatstheorie (Berhm, 1920), I, pag, 158. apreciacio déste livro.
248 IpEoLocia E UTOPIA A MENTALIDADE UTOPICA 249
pretende tenha Lessing recebido a idéia da infinita perfectibili- se tefere a acontecimentos histéricos terrenos, bastante mais con-
dade da espécie humana, por éle entHo secularizada e combinada creta do que a mentalidade quilidstica com seu afastamento da
com a crenga na razio, sendo assim legada, como uma heranga, ao histéria. Esta maior proximidade ao histérico transparece no
idealismo alemio. fato de que o sentido histérico do tempo, sempre um sintoma
Quaiquer que seja a maneira pela qual esta concepgéo de seguto da estrutura de uma mentalidade, se encontra muito
progresso tenha surgido, seja como uma continuada transforma- mais definido do que na mentalidade quilidstica. A mentalidade
cao da mentalidade religiosa, seja como um contramovimento quilidstica nao possufa, como vimos, sentido algum do processo
por parte do racionalismo, nela jd vinha contida, em contraste de vir a ser; somente era sensivel para o momento stibito, °
com a mentalidade quilidstica, uma crescente preocupasio com presente impregnado de sentido. O tipo de mentalidade que
o “aqui e agora’ concreto do processo em curso. permanece ao nivel quilidstico tampouco sabe ou reconhece —
mesmo quando seus opositores j4 tenham absorvido éste ponto-
O preenchimento das expectativas quilidsticas podia ocor- -de-vista — 0 caminho que conduz a um objetivo ou um pro-
rer a gualquer momento. Agora, com a idéia liberal-tbumanitdria, cesso de desenvolvimento —— conhece apenas o fluxo e o refluxo
o elemento utépico recebe uma localizacdo definida no processo do tempo, Por exemplo, o anarquismo revolucionario, em que
histérico — constitui o ponto culminante da evolugdo histérica. a mentalidade quilidstica se acha preservada em sua mais pura
Em contraste com a concepgao mais remota de utopia, que viria e auténtica forma, encara os tempos modernos, desde o declinio
a irromper subitamente no mundo vinda totalmente do “exte- da Idade Média, como uma tinica revolugao. “Faz parte do fato
rior”, esta nocao significa, a longo prazo, uma atenuacao rela- e do conceito de revolugdo que, 4 semelhanca de uma febre de
tiva da nogio de uma sibita mudanca histérica. Desde entao, convalescenca, ela venha entre dois acessos da enfermidade. Nao
mesmo uma viséo utépica encara o mundo como se movendo existiria de todo se nao fésse precedida pela fadiga nem segut-
na direcao de uma realizagio de seus objetivos, ou de uma uto- da pela exaustfo.” 2 Assim, muito embora esta atitude apreen-
pia. De outro Angulo, o utopismo se torna crescentemente vin- da muito de seus opositores, algumas vézes. assumindo um as-
culado ao processo de vir a ser. A idéia, que somente poderia pecto conservador e outras um aspecto socialista, ela surge, mes-
ser completamente realizada em algum tempo distante, torna-se, too em nossos dias, nos instantes decisivos.
no decurso do continuado desenvolvimento do presente, uma
A experiéncia quilidstica absoluta do “agora’’, que exclui
norma que, aplicada a detalhes, efetua uma gradativa melhoria.
qualquer possibilidade de se experimentar o desenvolvimento, set-
Quem qu-r que critique os detalhes se torna lisado por esta
ve, entretanto, & tinica fungio de nos prover de uma diferencia-
mesma critica ao mundo como @ste se ‘ncontra. .\ participagao
c&o qualitativa do tempo, Existem, segundo esta visio, tempos
nas mais imediatas tendéncias do desenvolvimento cultural do
presente, a intensa fé no institucivaalismo ¢ no poder de forma- impregnados de significado e tempos destituidos de significado.
Reside neste fato uma importante abordagem & diferenciagao his-
sao da politica ¢ da economia caracterizam os herdeiros de uma
tradicfo que nfo se encontram somente interessados cm culti-
tdtico-filoséfica dos acontecimentos histéricos. Sua significagao
somente poderd ser estimada apdés se haver tornado clara a im-
var, mas que querem colhér a safra desde agora
possibilidade de uma considerac&o empirica da histéria sem uma
Contudo, a politica déste estrate social ascendente ainda diferenciac’o histérico-filosdfica do tempo (com freqiiéncia, la-
n&o velo a captar cfetivamente o verdadeiro problema da socie- tente e portanto imperceptivel em seus efeitos). E, muito em-
dade, e, nas épocas do antagonismo liberal contra o [stado, ain- hora possa parecer improvavel & primeira vista, a primeira ten-
da nao havia compreendido a importancia histérica dequilo que tativa, acima mencionada, de uma disposigao qualitativa das épo-
da
os estratos dominantes dotavam de valor absoluto, ou seja, a cas histéricas surge realmente do distanciamento quilidstico e
importancia do poder ¢ da violéncia indisfarcada. Abstrata co- experiéncia extdtica. A mentalidade normativo-liberal igualmen-
mo possa parecer, quando vista segundo o ponto-de vista dos te contém esta diferenciacéo qualitativa dos acontecimentos his-
conservadaores, esta visio que repousa tedricamente sébre a cultu-
ra, no sentido mais estreito, e na Filosofia, e, praticaimente, na
Economia e na Polftica, no obstante cla é, na medida em que Landauer, op. cit.. pag. 91.
250 IpgoLocia E Uropra A MENTALIDADE UTOPICA 251
toricos, manifestando, além do mais, um desprézo como a uma mental peculiar aos camponeses, aos jornaleiros, a um Lumpen-
tealidade maligna a tudo o que se tenha tornado uma parte do proletariat incipiente, a pregadores fanaticamente emocionais,
passado ou que seja parte do presente. Adia para o futuro re- etc, 31
moto a realizacio efetiva destas normas, e, ao mesmo tempo, a0
contrario do quiliasta, que antecipa sua realizagio em algum pon- Longo tempo se passou até a aparicdo da forma seguinte de
to extético além da histéria, vé esta realizacdo como surgindo do utopia. Entrementes, o mundo social havia sofrido uma com-
processo de vir a ser do aqui e agora, a partir dos acontecimen- pleta transformacio. ‘‘O cavaleiro se tornou um funcionério,
tos de nossa vida cotidiana. A partir disto se desenvolveu, como © grande lavrador um cidaddo obediente.” (Freyer.) Tampou-
vimos, a concepgio tipicamente linear de evolucdo e a conexdo co a nova forma de utopia era a expresso do estrato mais baixo
relativamente direta entre um objeto anteriormente transcenden- na ordem social; antes, era o estrato médio que se estava dis-
tal e significativo ¢ a existéncia presente efetiva. ciplinando através de auto-elaboracdo consciente e que conside-
rava a ética e a cultura intelectual sua principal autojustificagao
A idéia liberal somente pode ser adequadamente entendida (contra a nobreza), ¢ que, inconscientemente, deslocou as bases
como uma contrapartida da atitude extdtica do quillasta fre- da experiéncia do plano extético para um plano educacional.
qiientemente oculta por trés de uma fachada racionalista e que
oferece histérica e socialmente uma ameaca continua e poderosa Abstrata como possa parecer ao ponto-de-vista do quilias-
contra o liberalismo. Trata-se de um grito de guerra contra o ta, ou a abordagem concreta dos conservadores, a idéia liberal,
estrato da sociedade cujo poder advém de sua posicfo herdada nao obstante, deu vida a um dos mais importantes periodos da
na ordem existente, estrato capaz de dominar o aqui e agora, a histéria moderna. Seu cardter abstrato, apenas graduslmente re-
principio inconscientemente e mais tarde através do célculo ta-
cional. Vemos aqui a diversidade com que as utopias podem mo- 41 Holl (op. cit., pag. 435) procura ver um argumento contra uma
delar téda a estrutura da prdpria consciéncia, € podem refletir interpretag&o sociolégica no fato de que as idéias de Miinzer, as quais,
a divergéncia entre dois mundos histéricos e os dois estratos de _sérdo com a tipologia geral de Max Weber (Wirtschaft und Ge-
sociais correspondentes, fundamentalmente diferentes, e que cor- selis-iaft: Grundriss der Sozialékonomik, Parte III, V, I, pags. 201
porificam dois horizontes, e segs., pardg. 7), devem ser correlacionadas com as classes baixas, fOs-
sem também aceitas pelos “intelectuais” do periodo (como Seb. Franck,
© Quiliasma encontrou seu perfodo de existéncia no mun- Karlstadt, Schwenkenfeld, ete.). Se alguém simplificar tanto 9 proble-
do da Idade Média em decadéncia, um perfodo de tremenda de- ™ma da Sociologia como éle o féz, 6 de esperar que se acabe porrejei-
sintegracio. Tudo conflitava com tudo, Era o mundo de no- la-l2. Max Weber sempre insistiu que sua tipologia geral foi criada
bres, patricios, aldedes, jornaleiros, vagabundos e mercenérios, para caracterizar tendéncias ideal-tipicas, e ndo constelagdes unicas ime-
todos se guerreando mituamente, Tratava-se de um mundo em diatamente perceptiveis (ibid., pag. 10). A Sociologia que procura ana-
sublevagZo e em inquietacéo, em que os mais profundos impul- lisa, “siccicarc one constelagdes tinicas deve proceder com cuidados e3
sos do espirito humano buscavam expressZo externa, Neste con- peciais ao abordar a determinacdo sociolégica da posig&io dos intelec-
flito, as ideologias nfo se cristalizam de modo suficientemente toets Bo necess4 io consiJorar o« seguintes questdes na formulacao do
claro, nem sempre sendo fdcil determinar em definitivo a posi- < oloma.
a) A questao de sua ambivaléncia sociolégica (no é esta ja uma
gao social a que cada uma delas pertencia. Como Engels obser-
carncteristica sociolégiea particular, quando consideramas que nao se
vou claramente, foi a Revolta Camponesa que, pela primeira vez, ud cia todos O8 volts socials?)
reduziu a térmos mais simples e menos ambiguos o turbilhao es- b) Em que ponto particular do tempo os representantes dos in-
piritual e intelectual da Reforma.3° Torna-se agora mais claro telectuaiy sfio induvido, a um ou a outro campo?
que a experiéncia quilidstica é caracteristica dos esttatos mais c) De que mancira as idéias que os intelectuaiy derivam de ou-
baixos da sociedade. Subjacente a ela encontra-se uma esttutura tros campos sio modificadas no curso de sua assimilacgdo? (EH fre-
quentemente possivel determinar as mudangas de posigio social pelo
“Angulo de refragio” cm que as idéiay sio accitas. }
. 30 Engels, Der deutsche Bauernkrieg, ed. por Mehring {Berlim,
Assim, o préprio Holl (pags, 435 e segs, 459, 460) apresenta uma
1920), pags. 40 © segs,
wuSLuragdc Cocus- tal anit. isicressante da corregfo da Sociolo-
252 TDEOLOGIA E UTopt:
A MENTALIDADE UTOPIca 253
velado pela « ‘tica da esquerda e da dircita, jamais foi scntido
pelos exposi -s originais da idéia. Talvez residisse exatamen- to de ser indeterminado e incondicionado, © cardter distintivo da
te nesta ind...rminacdo, que deixava em aberto uma gama de mentalidade conservadora consistia, entretanto, no fato de que
possibilidade. ¢ que estimulava a imaginacio, aquela qualiaods cegava o fio desta experiéncia. E, se alguém deseja formular em
fresca e juvenil, aquela atmosfera estimulante e sur -stiva que uma sé sentenga a realizacio mdxima do conservadorismo, po-
mesmo o Hegel envelhecido, apesar de sux reorientacio para o der-se-ia dizer que em consciente oposicao a visdo liberal, deu
conservadoris. >, sentiu quando, no: dultimos dias de vide .c- énfase positiva 4 nogao de determinagao de nossas visdes e de
lembrava 9 penettante impacto das grandes idéias do perfodo re- nosso comportamento.
volucionatio Em contraste com as sombtias profundeza: da
agitagfo quilidstica, os elementos centrais da mentalidade inte- c) A Terceira Forma da Mentalidade Usdpica: A Idéta
lectualista se achavam abertos A luz clara do dia O Animo do- Conservadora
minante do “’ minismo, a esperanca de que enfim as luzes taia-
tiam sdbre o mundo sobreviveu o bastante para dar a estas A mentalidade consetvadora, como tal, wAo possui predis-
idéias, mesmo neste Ultimo estdgio, seu poder de conducio posic¢ao alguma a teorizar. O que se acha de acérdo com fato
de que os séres humanos nao teorizam sdbre as condigSes con-
/ Entrete em acréscimo a ésia prc nessa que estin
a imaginacay 2 mirava um horizonte distante, as mais plolun-
x cretas cm que vivem enquanto a estas se encontram bem ajus-
tados. Tendem, em tais condicdes de existéncs., a encarar o am-
das férgas o.:nsivas das idéias do Tluminismo residem no [ato
de que apelavim 4 vontade livre e mantinham vivo o sentimen- biente como fazendo parte de uma ordenagic watural do mundo,
que, em conseqiiéncia, no apresenta problema algum. A men-
talidady conservadora, como tal, néo detém nenhuma utopia. Em
gia a que se ve. Mostra que, quando as pessoas instrufdas . 1
térmos ideais, acha-se por sua propria estrutura completamente
vam os concer’ - de Miinzer, ndo eram capazes de elabord-las e em haimonia com a realidade sébre a qual, por hora, mantém
em nada
de fundamen . contribuiam para a doutrina, Recornam muiti, sus dominio. Faltam-lhe todos os reflexos e aclaramentos do pro-
aos livros @ extitas doy misticos germanicos, partcularmente
logia deutsch, Im com a Agostinho, do que & sua piopria
a Iheo- cesso histérico que advenbam de tm impulso progressista. O
eaperiincia tlpo conservador de conhecimento consiste originalmente no gé-
interlor imed, ') Niio trouseram qualquer Onigueciments da lic
gem. Defon moo que era singularmente imfslico om pontos decuisie nero de conhecimento que formece um contréle praético, Com-
yos ¢ fizeran um inédcuo amdlgama dos ensinamentoy dos mit
licos
poe-se das orientagdes habituais e, freqiientemente, também re-
medievais e d.. loutrina da cruz de Miinzer, {Tudo iste so arguinen- flexivas, face aos fatdres imanentes 4 situagZo, Existem elemen-
tos diretos err ‘avor da teoria sociolégica acima referida, concernente tos ideais em sobrevivéncia no presente como vestigios da ten-
a determinabil ade do “Angulo de refragho” intelectual, que se dé rpran-
do um estrat)
sao em perfodos anteriores, quando o mundo ainda nao se en-
sume as idéias de outro. )
contrava estabilizado e que, agora, somente atuam ideoldgica-
Além d. Holl conta-nos que og intclectuais, entre outros. ae
vés de seus keg ja mencionados, se afastaram mais ¢ mais do movi- mente como fés, religides e¢ mitos, que se viram banidos para
mento, a mec’ que éste avangava e se radicalizava; que, entice untias, um mundo além da histéria, Neste estagio, o pensamento, como
Franck, em su. Chronika, condena a guerra camponesa ainda mais du- assinalamos, se inclina a aceitar o ambiente total na concretude
Tamente que o préprio Lutero; que, em seguida a éste afastamentn de acidental com que se dd, como se fésse a ordem adequada do
Miinzer, sua cltanschauung sofrea wma transformagiio radical, que, mundo, a ser aceita de antema@o e sem aptesentar nenhum pro-
apds tal afas onto, a concepgao de mundo dos intelectuais adquiria blema. Sdmente o contra-ataque de classes oponentes e a sua
tragos misantr: ,:cos; como perdeu suas “caracteristicas sociais’; @ como tendéncia a romper com os limites da ordem existente ird moti:
em lugar da 'ransigéncia _quilidstica, emergiu a idéia mais tol nte, var a mentalidade conservadora para questionar as bases de seu
quase sineréli. , da “Iyreja invis{vel” (ibid., pags. 459 ¢ segs.)
dominio, ocasionando necessiriamente, entre os conservadores,
Aqui, muita coisa pode ser entendida socioldgicamente, bastando
que se coloquem as questées apropriadas 2 se u ‘ize 9 > 1arate cone
as reflexdes histérico-filoséficas concernentes a éles mesmos. Sur-
1 ge, dessa forma, uma cont - vtop'a que serv: como um melo de
que delas pre >
auto-ortentagio e de defes
254 TDEOLOGTA & Uropra A MentTaLipaDe Utdpica 255
Se as classes socialmente ascendentes nao tivessem, na rea- © mécho de Minerva sdmente alca seu vdo quando chega o cre-
lidade, levantado éstes problemas e se nao Ihes tivessem dado ptisculo,” #3 Na mentalidade conservadora, o “macho de Mi-
expressio em suas respectivas contta-ideologias, a tendéncia do nerva” realmente sé inicia seu vOo com a escuriddo que se apro-
conservadorismo a se tornar consciente de si teria permanecido xima.
latente, e o horizonte conservador teria permanecido em um ni- Em sua forma original, a mentalidade conservadora nao se
vel de comportamento inconsciente. Mas o ataque ideolégico de achava, como mencionamos, preocspada com idéias. Foi o seu
um grupo socialmente ascendente, representando uma nova épo- opositor liberal quem, por assim dizer, veio a forgar sua entra-
ca, ocasiona de fato uma certa consciéncia das atitudes e idéias da no campo de conflito. A particular caracteristica do desen-
que tnicamente se afirmavam na vida e na acto. Evoluindo agui- volvimento intelectual parece residir exatamente no fato de que
Thoada por teorias oponentes, a mentalidade conservadora sd- © mais recente antagonista é que dita o ritmo e a forma da luta.
mente descobre sua idéia ex post facto. Nao € por acaso que, Seguramente pouca verdade existe na chamada idéia progressis-
enquanto todos os grupos progressistas encaram a idéia anterior ta de que somente o ndvo detém os horizontes da existéncia fu-
ao ato, para o conservador Hegel a idéia de uma realidade his- tura, enquanto tudo o mais gradativamente evanesce. Pelo con-
térica somente se torna visivel posteriormente, quando o mundo trério, deve o mais velho, guiado pelo mais névo, transformar-se
ja tenha assumido uma forma interna fixa: “Apenas mais uma continuamente, acomodando-se ao nivel do mais recente ope::-
palavra concernente ao desejo de ensinar ao mundo o que de- tor. Assim, em nossos dias, os que tenham utilizado modos de
veria ser. Para tanto, a Filosofia, pelo menos, chepa sempre pensamento remotos, ao depararem com argumentos socioldgi-
demasiado tarde. A Filosofia, como o pensamento do mundo, cos, devem igualmente recorrer a éstes mesmos métodos. Da
nao aparece até que a realidade tenha completado seu pracesso mesma forma, no principio do século XIX, o modo de pensa-
de formacZo e se tenha dado por acabada. A histdria, portanto, mento intelectualista liberal leyou os conservadores a se inter-
corrobora os ensinamentos da concepcio de que sémente na ma- pretarem por meios intelectualistas
turidade da realidade vem a aparecer o ideal como uma contra-
FE interessante observar que as classes sociais originalmente
partida do real, apreende o mundo real em sua substancia e 0
conforma como um reino intelectual. Quando a Filosofia pinta conservadoras, que haviam anteriormente adquirido estabilida-
de pelo apégo a terra (Moser, v. d. Marwitz) nao conseguiram
seu cinza sObre cinza, uma forma de vida envelheceu, e por meia
uma interpretac&o tedérica de sua prépria posic&o, e que a des-
do cinza ela nao pode ser rejuvenescida, mas sSmente conhecida.
coberta da idéia conservadora se tornou o trabalho de um corpo
de idedlogos que se vincularam aos conservadores.
82 Devemos considerar também a ideologia do absolvtrme sob A cealizayao nesta direcio, dos romanticos ccnservadores,
aste aspecto, muito embora nfo possamos aborda-la em detalhes. Ela e especialmente de Hegel, consistia em sua andlise intelectual
também mostra uma concepedo originalmente voltada para o dominio
do significado da existéncia .onservadora. Tendo af um port.
de uma situagio vital, © que adquire a tendéncia a refletir friamente
sdbre a técnica de dominagio ~ da mesma forma que o chamado ma- de partida, forneceram uma interpretacdo intelectual de uma ati-
quiavelismo. Sdmente mais tarde (em grande parte compelida por tude face ar mundo que ja se encontrava implicita na conduta
seus adversdrios) aparece a necessidade de uma justificagio mais in- 2 auva, mes que nfo se havia ainda explicitado. Dai, no caso
telectual e elaborada da ocupacgdo do poder. Para a confirmacdo desta dos conservadotes, o que corresponde & idéia é, em esséncia, algo
proposigio mais geral, citamos a seguinte passagem de Meinecke que bastante diferente da idéia liberal. Constituiu a grande reali-
observa o processo referido: zacio de Hegel estabelecer, em oposi¢ao & idéia liberal, uma con-
“Assim surgiu 0 ideal do Estado modemo que aspira nfo apenas trapartida conservadora, nao no sentido de criar, por uma com-
a ser um Estado politico (Machtstaat), mas também um Estado cultu- Lunacgay artificial, uma atitude e um modo de comportamento,
zal, e a raison d'état quanto a meros problemas de manutengao imediata
do poder, que ocupon largamente a atenclo dos tedricos do século
XVII, foi ultrapassada”, Isto se refere particularmente 4 época de Fre-
derico, 0 Grande, Meinecke, Fr., Die Idee der Staatsriison in der neueren 32 Famoso pardgrafo final do prefacio da Filosofia do Direito,
Geschichte (Munique, Berlim, 1925), pag. 353. de Hegel.
256 IpEOLOGIA E Uroria
A Menrraripape Urdépica 257
mas, antes, elevando um modo de experiéncia ja existente a um
nivel intelectual e enfatizando as caracteristicas distintivas que o que o presente nos defronta continuamente com tarefas e pro-
destacassem da atitude liberal face ao mundo. blemas novos que nfo tenham ainda sido dominados. No intui-
to de atingir alzuma norma de orientagao, nao deveriamos con-
Os conservadores encaravam a idéia liberal que caracteri- fiar em impulsos subjetivos, mas recorrer as fércas e idéias que
zou o periodo do Iluminismo como algo fluido e carente de em nds, ou em nosso passado, tenham adquirido objetivacéo; ao
concretude. E foi déste angulo que a atacaram, depreciando-a. espirito que, até agora, tenha atuado dentro de nds para a cria-
Hegel a considerava nada mais do que uma mera “opinido” — ¢So daquclas, que séo nossas obras. Mas esta idéia, éste espi-
uma simples imagem — uma possibilidade apenas por trds da rito, nado foi racionalmente conclamado nem arbitrariamente es-
qual as pessoas se refugiam, escapam, fugindo 4s demandas do colhido o melhor dentre um nimero de possibilidades. Ou se
momento. acha em nds, como uma “férca atuando silenciosamente”
Em oposi¢io a esta mera “opinido”’, esta imagem puramen- (Savigny}. percebida subjetivamente, ou se trata de algo como
te subjetiva, os conservadores conceberam a idéia como enrai- uma enteléquia que se desdobra nas criagdes coletivas da comu-
zada e se expressando concretamente na realidade viva do aqui nidade, do povo, da nagdo ou do Estado, como uma forma in-
e agora. Significado e realidade, norma e existéncia, ndo estao terna a ser, em sua maior parte, morfoldgicamente percebida. A
aqui sepatados, porque o utépico, a “idéia concretizada”’, acha- perspectiva mo.foldgica, dirigida para a linguagem, para a arte
-se, em um sentido vital, presente neste mundo. O que nolibe- e para o Estado se desenvolve a partir déste ponto. Praticamen-
ralismo nao passa de ums norma formal adquire, no conserva- te no mesmo momento em que a idéia liberal colocou a ordem
dorismo, um conteddo concreto nas leis prevalentes do Estado. existente cm movimento, estimulando a especulagdo construtiva,
Nas objetivagdes da cultura, na arte e na ciéncia, a espirituali- Goethe se voltou desta abordagem ativistica para a contempla-
dace se desdobra, ¢ a iddéia se expressa em uma plenitude tan- cio — para a morfologia. Dispds-sc a usar a apercepgdo intui-
givel. tiva como um instrumento de ciéncia. A abordagem da escola
Ja tivemos ocasiaéo de observar que, na utopia liberal, na histérica é em alguns aspectos andloga 4 de Goethe. Seguem a
idéia humanitdria, em oposigao ao éxtase quilidstico, existe uma emanacio de “idéias” através da observacdo da linguagem, dos
relativa aproximacgao ao “‘aqui e agora”. LEncontramos no con- costumes, da lei, etc., fazendo uso nao de generalizacdes abstra-
servadorismo completado o processo de aproximacg%o ao “aqui e tas, mas, antes, de intuicdo simpatica e descricao morfoldgica.
agora”, A utopia se encontra neste caso, desde os momentos Também neste caso, a idéia que assume uma posic¢ao central
iniciais, implantada na realidade existente. na experténcia polftica (isto é, a forma de utopia corresponden-
A isto corresponde, evidentemente, o fato de que a reali- te a esta posicio social) auxiliou na conformacéo do segmento
dade, o ‘aqui e agora”, néo venha mais a ser vivenciada como da vida intelecttal que se achava vinculado 4 politica. Em té-
uma realidade “maligna”, mas como a corporificagio dos mais das as variacdes destas buscas pela “forma interna”, persistia a
elevados valdres e significados. mesma atitude conservadora de determinacZo e, quando se pro-
jetar exteriormente, irdé igualmente encontrar expressdo na én-
Embora se verifique que a utopia, ou a idéia, tenha-se tor- fase sobre a determinacdo histérica. De acérdo com esta nogio,
nado completamente congruente com a realidade concretamente ¢ segundo o ponto-de-vista desta atitude face ao mundo, o ho-
existente, isto é, tenha sido assimilada a esta, éste modo de mem nao é de forma alguma absolutamente livre. Nem tédas
experiéncia — pelo menos no mais elevade ponto do periodo ay coisas em geral, e cada coisa em particular, séo possiveis a
ctlador desta corrente —- nado conduz, todavia, a uma climina-
todo momento e em tédas as comunidades histéricas. A forma
Gao das tensdes e a uma aceitacao inerte e passiva da situacio
interna de individualidade histérica existente em qualquer época
como esta se apresenta. Um certo grau de tensio entre a idéia
dada, seja a de uma personalidade isolada, seja a de um espirito
e a existéncia surge do fato de que nem todo clemento desta
de povo, ¢ as condigées externas que, juntamente com o passa-
existéncia encarna significacdo e de ser sempre necessério distin-
do, se encontram por tras dela, todas determinam a conformagio
guir entre c que é essencial e o que é rio-essencial, c, ainde, de
das coisas por existir. E por esta razéo que a configuracio his-
258 IDECLOGIA 2 UTOPIA w\ MSNTALIDADE Urdépica 259
torica existente em uma dada época nao pode ser construida ar- a importancia do passado, na descoberta do tempo como um
tificialmente, mas cresce como uma planta, a partir da semente, #4 criador de valor. A duragio absolutamente nao existia para a
Mesmo a forma conservadora de utopia, a nogio de uma mentalidade quilidstica, “ somente existindo para o liberalismo
idéia implantada e expressa na realidade, sdmente pode ser en- na medida em que, desde entdo, possibilita o progresso. Con-
tendida, em ultima andlise, A luz de seus conflitos com as de- tudo, para o conservadorismo, tudo o que existe possui um va-
mais formas coexistentes de utopia. Seu antagonista imediato lor positivo e nominal, simplesmente porque veio lenta e gra-
é a idéia liberal, que foi traduzida em térmos racionalistas. En- dativamente a existir. Em conseqiiéncia, nado sd se volta a aten-
quanto nesta ultima acentuase a experiéncia do normativo, o cdo para o passado, fazendo-se um esf6rco para salvd-lo do es-
“deveria”, no conservadorismo a énfase se desloca para a reali- quecimento, como também a presenca e a imediagao de todo o
dade existente, o “é”. © fato da mera existéncia de uma coisa passado se torna uma experiéncia concreta. Nesta visio, nao
dota-a de um valor mais eleyada, seja isto devide, como no caso se pode mais pensar a histéria como uma mera extensdo unili-
de Hegel, ao teor de racionalidade mais elevado por ela encar- near de tempo, nem tampouco ela consiste em simplesment:
nado, ou, como no caso de Stahl, devido aos efeitos fascinantes unir a linha que, do presente, conduz ao futuro, Aquela que, do
e mistificadores exatamente de sua irracionalidade, “Existe algo passado, conduziu ao presente. A concepgio de tempo ora em~
de maravilhoso em experimentar aquilo de que se pode dizer questio possui uma imagindria terceira dimenséo que deriva do
que é -— ‘Este é 0 teu pai, éste é o teu amigo, e, através déles,
fato de o passado ser experimentado como virtualmente presen-
atingistes esta posic&o.’: ‘Por que exatamente a esta?’ ‘Por que
te. “A vida do espfrito contemporaneo constitui um ciclo de es- ,
és exatamente a pessoa que és? Esta incompreensibilidade con-
tdgios, que, por um lado, ainda contém uma coexisténcia sincré-
siste no fato de que a exist€ncia jamais pode ser plenamente
nica, ¢ sOmente por outro prisma aparece como uma seqiién-
absorvida no pensamento, e de que a existéncia ndo ¢ uma ne-
cessidade légica, mas tem suas bases em um poder auténomo cia no tempo jd passado. As experiéncias que o espirito parece
mais elevado.” #* Aqui, o fecundo antagonismo entre, de um ter atraés de si existem igualmente nas profundidades de seu ser
lado, a idéia encarnada e expressa na realidade e, do outro, a presente.” (Hegel.) 97
que meramente existe (derivada dos dias sossegados do conser-
vadorismo) ameaca transformar-se em uma congruéncia total,
36° Miinzer diz, além disso: “Os intelectuais ¢ eruditos nado sabem
tendendo o quietismo conservador a justificar, por meios irra-
por que as Santas Escrituras devem ser aceitas ou rejeitadas, mas s0-
cionais, simplesmente tudo o que exista. mente que vém sendo transmitidas desde um passado remoto... os
O sentido de tempo déste modo de experiéncia e de pensa- judeus, os turcos e todos os outros povos tém também tal forma simies-
mento se opde completamente ao do liberalismo, Enquanto, ca, ‘mitativa, de justificar suas crengas”, (Holl, pag, 432, nota 2.)
para o liberalismo, o futuro constitufa tudo ¢ o passado nada, 8T Hegel, Vorlesungen uber die Philosophie der Geschichte
o modo conservador de experimentar o tempo encontrou a me- (Leipzg, Reclam, 1907), ef. pags, 123-5, Maiores referéncias poderio
hor corroboragio de seu sentido de determinagio ao descobrir ser encontradas em minha obra Das konservative Denken, pigs. 98 e
segs. onde tentei, pela primeira vez, compreender as formas de “senti-
do histérico do tempo” 4 luz da estrutura da consciéncia politica dada,
34 “A constituigao dos Estados nfo pode ser inventada; os mais em determinado momento. Para outras referéncias, cf. o seguinte: Stahl
esclarecidos célculas nesta matéria sfio tho ineficazes como a total igno- procura caracterizar 9 sentimento de tempo e da vida de Schelling,
rincia, N&o ha substitutvo para o espirito do povo, para a forga ¢ ordem Goethe e¢ Savigny com as seguintes palavras: “nestes escritores aconte-
que déle dimanam, que néo podem ser encontrados mesmo nay men- ce o mesmo que em tédas as fases ¢ nuancas da vidar parece que o
tes mais brilhantes dos grandes génios’, (Muller, Adam, Uber Konig que é, sempre foi assim. Mas quando olhamos para tras, descobrimos
Friedrich Ho und die Natur, Wurde, und Bestimmung der preussischen
o que mudou, Mas nao é tho dbvio para nés descobrir onde e como a
Monarchie (Berlim, 1810), p4g. 49), Este idda, derivada 1 -ermantis-
qrunsigdo de um estdgio a outro ocorreu. No curso do mesmo desen-
mo, tornou-sc o tema central de téda a tradig&o vonscrsadora,
volvimento invisivel, as situagdes e circunstincias préximas emergem
25° Stahl, Fr. J, Die Philosophie des Rechts, 4, pag 272. e mudam, Da mesma forma que nas situagdes de nossa vida, @ no seu
260 IproLogia E Urot A A Menrratiwape Urérica 261
A experiéncia quilidstica localiza-se fora do dominio do Mesmo quando introvertida, a experiéncia extdtica repre-
tempo, mas, nas ocasides em que irrompeu no dominio tempo- senta um perigo para a ordem existente, pois se acha constan-
ral, santificava 0 momento incidental. A experiéncia liberal es- temente tentada a se expressar exteriormente, e sdmente a pro-
tabeleceu uma conex4o entre a existéncia e a utopia, ao reportar longada disciplina e a repress%o transformam-na em quietismo.
ao futuro a idéia, enquanto objetivo pleno de significado e per- A ortodoxia, por isso, manteve um combate constante contra o
mitindo, através do progresso, que as promessas da utopia ve- pietismo, sémente entrando em uma unido aberta com éste quan-
nham, pelo menos em alguns aspectos, gradativamente a ser do a ofensiva revoluciondria necessitou da conclamagio de t6-
realizadas em nosso prdéprio meio. A experiéncia conservadora das as fércas disponiveis pata a espiritualizacdo dos podéres do-
se funde ao espirito que, em um dado momento, surgiu sdbre minantes. Sob pressdes externas e devido 4s situacdes estrutu-
nés vindo de fora, e ao qual damos expressio, com o que jd tais socioldgicamente inligiveis, a experi€ncia quilidstica, atra-
existe, permitindo que se tornasse objetivo, sc expandisse em vés justamente desta introversdo, naturalmente sofre uma mu-
tédas as dimensdes, dotando, assim, cada acontecimento de um danga de cardter. Neste, como em outros casos, a interpenetta-
valor intrinseco e imanente. cao estrutural dos fatéres socialmente “internos” e dos fatéres
O modo conservador de experiéncia, afora seu conflito com “externos” pode ser acompanhada em detalhe. Enquanto ori-
a idéia liberal, teve que manter seu combate particular com a ginalmente a experiéncia quilidstica manifestava um impulso
concepcdo quilidstica, a que sempre encarara como um inimigo corpéreo e robusto, ao se ver reprimida tornou-se, pelo con-
interno. A mesma experiéncia quilidstica, que comecou na épo- trério, docemente indcua e fluida, liquefez-se em meto entu-
ca dos anabatistas a desempenhar um papel ativo no mundo, siasmo, somente vindo o elemento extdtico a reviver novamen-
tinha outro destino a esperd-la, algo diverso dos ate agora men- te, embora de uma forma suavemente mitigada, na “experiéncia
cionados. Vimos ja trés tendéncias alternativas na experiéncia do despertar’” pietista.
quilidstica. Ou bem permanece inultcrada, persistindo em sua
forma emergente original, freqtientemente vinculada a ideolo- O que, entretanto, é mais importante para as conexdes que
gias as mais fundamentalmente divergentes — como, por exem- desejamos assinalar é que, através da perda de contato com o
plo, no anarquismo extremista — e1 reflui, desaparccencdo, ou, mundo no processo efetiva de vir a set (éste contato, observado
ainda, se ‘‘sublima’ em uma idéia, Sep ie outra caminhe, dis- sepundo o ponto-cde-vista do conjunto, ocorre na esfera polftica
tanciando-se dos acima mencionados, quando mantém sua ten- e nfo na esfera privada), esta atitude desenvolve uma incerteza
déncia supratemporal ¢ extdtica introvertendo-se, e¢, neste caso, interna Surge no Jugar do tom pontificante da profecia quilids-
nfo mais ousando aventurarse no mundy, perdendo seu contato tica a vacilacdio insegura. a indecisdo pietista frente A acio. Sd-
com os evertos mundanos. Impelido por circunstancias exter- mente se poderd entender adequadamente a “escola histérica”’
nas, o modo quilidstico-extético de experiéncia seguiu na Ale- na Alemanha, com seu quietismo e sua auséncia de padrdes,
manha, em uma extensdo bastante ampla, éste caminho de intro- quando se tiver levado em conta sua continuidade com o pietis-
versao. As subcorrentes pietistas, que podem ser acompanha- mo. Tudo o que uma pessoa ativa expressa espontaneamente,
das durante longos periodos nos paises germénicos, represen- sendo desde logo aceito, se acha aqui destacado de seu contex-
tam esta introversio do que f6ra o é.tase quilidstico. to erigido em problema. A “deciso” se torna uma fase inde-
pendente de aco, sobrecarregada de problemas, e esta separa-
cdo conceptual entre o ato e a decisdo tinicamente aumenta a
decurso, aqui também percchemos o sentimento de existéncia cterna e
necessdria e, ao mesmo tempo, o da emergéncia ¢ mudanga tcmporais. incerteza, ao invés de elimind-la. O esclarecimento interno pro-
piciado pelo pietismo nao oferece solucdo alguma para a maio-
Este descnvolhimento sem fim, éste processo vivo de vir-a-ser, tam-
bém domina a visio de Schelling e seu sistema representa uma luta tia dos problemas da vida cotidiana, e se, de stitbito, se tornar
sem trégua para expressd-lo. Savigny, em seu dominio, apresenta a necessdtio atuar no processo histérico, procuta-se interpretar os
mesma caracteristica.” (Die Philoshophie des Rechts, 14, pags. 394 e acontecimentos da histéria como se fdssem indicagSes da von-
segs. ) tade de Deus. Neste momento, instala-se 0 movimento das in-
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lismo com a idéia liberal, em sua orientagfo para um objetivo vestigado, de modo a serem identificadas as fércas do processo
localizado no futuro, encontra explicagdo em sua comum oposi- contemporineo, cujo cardter dinamico e imanente, sob nossa
¢&o a aceitacio e afirmacio conservadoristas diretas e imediatas diregio, conduza passo a passo 4 realizagao da idéia. Enquan-
da ordem existente. A ampla indefinicao ¢ espiritualidade do to o conservadorismo depreciava a idéia liberal como uma mera
objetivo distante corresponde, igualmente, A rejeigéo liberal e opinide, o socialismo, em sua andlise da ideologia, elaborou um
socialista da excitaco quilidstica e ao seu comum reconhecimen- método critico coerente, que, na verdade, constitufa uma ten-
to de que as energias extdticas latentes devam ser sublimadas tativa de anular a utopia dos antagonistas, ao demonstrar que
através de ideais culturais. tinham suas rafzes na situagdo existente.
Contudo, na medida em que a questio seja a da penetra- Desde entio. vem ocorrendo um conflito desesperado vi-
gio da idéia no processo de evolucio e no desenvolvimento sando a desintegracio fundamental das crengas do adversério.
gradativo dela, a mentalidade socialista nao a experimenta nesta Cada uma das formas de mentalidade utépica até o momento
forma espiritualmente sublimada. Defrontamo-nos aqui com a tratadas por nds, voltando-se contra as demais, exige que cot-
idéia sob a forma de uma nova substancia, quase 4 semelhanca de respondam & realidade, e, em cada caso, apresenta ao adver-
um organismo vivo que tenha condicées definidas “e existéncia, sdrio, como “realidade’”, uma forma de existéncia diversamente
cujo conhecimento pode tornar-se 0 objeto de investigacdo cienti- constituida. A estrutura econdmica e social da sociedade tor-
fica. Neste contexto, as idéias nfo -Jo sonhos nem desejos, im-
na-se para o socialista a realidade absoluta. Transforma-se na
perativos imaginatios baixados de alguma esfera absoluta; antes,
portadora da totalidade cultural que os conservadores j4 haviam
possuem uma vida concteta prépria e uma func&o definida no
percebido como uma unidade. A concepgio conservadora de
processo total. Arrefecem quando se tornam antiquadas e po- espirita de povo (Volbsgeist) foi a primeira tentativa relevante
dem ser realizadas quando o processo social atinge uma dada
de compreender os fatos aparentemente isclados da vida intelec-
situagdo estrutural. Destituidas desta relevancia para a reali-
tual ¢ psiquica, como emanacdes de um unico centro de energia
dade, tornam-se meras ‘“‘ideologias” obscurizantes.
criadora,
Ao se analisar a posigio liberal, descobre-se, de uma pers-
Para os liberais, tanto quanto para os conservadores, esta
pectiva bastante diversa da empregada pelo conservador, 0 ca-
farea propulsora constitufa algo de espiritual, Na mentalidade
rater abstrato ¢ puramente formal de sua idéa. A “mera opi-
nifo”, a mera imagem da idéia que sdmente se realiza na atitude socialista, pelo contririo, emerge, da secular afinidade dos es-
iratos optimidos por uma oricntacao materialista, uma glorifi-
subjetiva, é também aqui reconhecida como inadequada, estan-
cacio dos aspectos materiais da existéncia, anteriormente ex-
do sujeita A critica sob outro Angulo, que nao o da oposicio
perimeniados apenas como fatéres negatives e obstrutivos.
conservadora, No basta ter boas intencSes em abstrato ¢ pos-
tular no futuro remoto um dominio realizado de liberdade, Mesmo na valoracio ontolégica dos fatéres que constituem
cujos elementos n@o se acham sujeitos a contréle, Seria antes o mundo — sempre o mais caracteristico de qualquer estrutura
necessdtio tomar consciéncia das condigdes reais (neste caso eco- de consciéncia — uma hierarquia de valéres, inversa A empre-
ndmicas e sociais) sob as quais esta tealizaciio de desejos possa gada por outros mados de pensamento, vai aos poucos atin-
tornar-se de alguma forma operante. © caminho que, do pre- gindo predaminio As condicdes ‘‘materiais”’, anteriormente
sente, conduz a ste objetivo distante deve ser igualmente in- encatadas tao-s6 como obstéculos malignos no caminho da idéia,
sio aqui hipostasiadas em farca motota dos assuntos do mundo,
sob a forma de um determinismo econémico reinterpretado em
gum modo mantinha viva a meméria das instituigdes “comunistas” do térmos materialistas.
passado, Quanto a esta relagio, muitos detalhes podem ser encontra-
dos em Girberger, H., Der utopische Sozialismus des 18. Jahihunderts A utopia que aleanca a mais préxima relagio com a situa-
in Frankreich und seine philosophischen und matericllen Grundlagen: co histérica ¢ social déste mundo evidencia esta aproximacao
Ziircher Volkswirtschaftliche Forschungen, eft 1, of. esp. pags. 94 nfo apenas ao localizar seu objetivo cada vez mais no interior
e@ segs. do quadro da histéria, mas ao elevar e espiritualizar a estrutu-
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ta econdmica e social imediatamente acessivel. O que acontece Na histéria da moderna experiéncia quilidstica foi decisi-
aqui é, essencialmente, uma particular assimilacfo do sentido vo #! 0 conflito entre Marx e Bakunin, Foi no desenrolar déste
conservador de determinismo A utopia progressista que busca conflito que veio a ter fim o utepismo quilidstico.
refazer o mundo. O conservador, devido a sua consciéncia de Quanto mais um grupo que se prepara para assumir 0 po-
ser determinado, glorificava o passado, a despeito ou mesmo der busca tornar-se um partido, tanto menos ird tolerar um
devido 4 sua funcio determinante e, ao mesmo tempo, dava, de movimento que, de uma forma sectdria e jrruptiva, visa, em
uma vez por tédas, uma indicasio adequada da importincia do algum momento indeterminado, a tomar de assalto as fortalezas
passado pata o desenvolvimento histérico. Entretanto, para os da historia, Também aqui, a desaparicio de uma atitude fun-
socialistas, € a estrutura social que se totna a férba mais, influen- damental —1 pelo menas sob.a forma de que faldvamos — se
té no momento histérico, encarando-se seus podéres conforma- acha Intimamente ligada & desintegracdo da realidade econémi-
dores (em uma forma glorificada} como os fatéres deterrninan- ca e social que constitui seu embasamento (como Brupbacher
tes de todo o desenvolvimento. teve ocasifo de demonstrar #2). A vanguarda de Bakunin, os
O fenédmeno névo que aqui encontramos, o sentimento de anarquistas da Federacao de Jura, desintegrou-se quando o sis-
determinismo, é perfeitamente compativel, entretanto, com uma tema doméstico de manufatura relojoeira, em que se achavam
utopia localizada no futuro. Enquanto a mentalidade conserva- aplicados e que Shes possibilitava uma atitude sectaria, foi su-
dora estabelecia naturalmente a conexao do sentimento de de-
perada pelo sistema industrial de producdo. No lugar de uma
experiéncia oscilante ¢ nae rganizada da utopia extdtica, sur-
terminac¢#o com a afirmagao do presente, o socialismo combina
ge o bem organizado movimento revoluciondrio marxista. Po-
uma f6rca social progressista com as restricSes que a aco re-
demos nova vente notar aqui que a maneira de o grupo conceber
voluciondria automaticamente se impde ao perceber as fércas
© tempo manifesta mais claramente o tipo de utopia em con-
determinantes da histéria.
sonancia com o qual a consciéncia do grupo se organiza. Aqui
Estes dois fatéres, a principio imediatamente interligados, se experimenta o tempo como uma série de pontos estratégicos.
divergem no decorrer do tempo para formar duas faccdes opo- Esta desintegracio da utopia extética anarquista foi brusca
nentes, mas em interagfo miuitua no movimento socialista-comu- e brutal, tendo sido contudo ditada, como fatal, uma necessida-
nista. Os grupos que chegaram recentemente ao poder e que, de pelo préprio pracesso histérico. Uma visio de apaixonada
ao participar e ao partilhar da responsabilidade pela ordem exis- profundidade desapareceu do primeiro plano da cena politica
tente, se comprometam com as coisas como sao, exercem uma
eo sentido de determinismo velo a se impor sdbre uma esfera
influéncia de retardamento, ao esposarem a mudanca através de mals wupla,
uma evolugdo ordenada. Por outro lado, os estratos que ainda
© pensamento liberal se relaciona ao pensamento anarquis-
nao possuiam nenhum interésse investido nas coisas tais quais também possufa um sentido de indeterminismo, mui-
ta porque
séo tornatam-se os portadores daquela teoria comunista (e tam-
to embora (coma j4 foi visto) chegasse, através da idéia de
bém da sindicalista} que enfatiza a suprema importancia da re-
volugio. ,
No entanto, antes da cisdo, que corresponde a um posterior +1 S8bre Bakunin, ver as obras de Nettlau, Ricarda Huch ¢ Fr.
Brupbacher. A obra déste ultimo, Marr und Bakunin (Berlim-Wil-
estégio no processo, esta mentalidade progressista tinha antes
mersdorf, 1922), olerece uma exposigio concisa de muitos problemas
de mais nada de se estabelecer face 4 oposig&o dos demais par- importantes. As obras completas de Bakunin foram editadas na Ale-
tidos. Dois obstd4culos tinham que ser ultrapassados: o sentido manha por “Der Syndikalse’, Cf, também a confissio de Bakunin ao
de indeterminacao histérica contido no quiliasma, que assumiu Czar Nicolau I, descoherta nes arquivos secretos do chefe da terceira
uma forma moderna no anarquismo radical, e esta mesma ce- segio da Chancelaria do titimo Czar, e traduzida por K. Kersten, Ber-
gueira quanto as férgas determinantes da histéria que acompa- lim, 1926.
nha o sentido de indeterminacio da ‘“idéia” liberal. 12 Brupbacher, op. cif, pags. ov e segs., 204 @ segs,
268 IpgoLocia E Uroria A MeEnraLtpapE Urdérica 269
progtesso, a uma relativa proximidade com o processo histdérico Aqui, novamente, existe uma diferenca na maneira de se
concreto. ‘) sentido liberal de indeterminismo se baseava na expetimentar o tempo histérico: enquanto o liberal concebia o
fé em um relacionamento imediato com uma esfera absoluta de tempo futuro como sendo uma linha reta conduzindo direta-
impetativos éticos —- A prépria idéia. Esta esfera de imperati- mente a um objetivo, surge agora uma distincdo entre o prdxi-
vos éticos nado derivava sua validade da histdria; nao obstante, mo e€ o remoto, uma distingdo cujos primérdios j4 se encontra-
para o liberal, a idéia podia, nela, tornar-se uma f6rca impul- vam em Condorcet e que é de importancia tanto para o pensa-
sora. Nio é que o processo histérico produza as idéias, mas sd- mento quanto para a aco, O conservadorismo ja diferenciava
mente a descoberta das idéias, sua expansio ¢ o “esclarecimen- o passado desta maneira, mas desde que sua utopia ia tendendo
to” a seu tespeito é que as torna fércas histéricas. Uma verda- cada vez mais para uma completa harmonia com o estégio de
deira revolug&o copernicana ocorreu quando o homem comecou realidade jd atingido na época, o futuro permanecia, pata o con-
a considerar nZo apenas a si préprio, néo sé 0 homem, mas tam- servador, completamente indiferenciado. Sdmente através da
bém a existéncia, a validade e a influéncia destas idéias como unifio de um sentido de determinagao com uma concep¢fo viva
fatéres condicionados, encarando o desenvolvimento das idéias do futuro, seria possivel criar um sentido histérico de tempo
como vinculado A existéncia e integrante do processo histéri- com mais de uma dimensio, Mas esta perspectiva mais com-
co-social. O que antes de mais nada importava ao socialismo plexa de tempo histdrico, que o conservadorismo j4 havia cria-
nao era combater esta mentalidade absolutista entre seus oposi- do para o passado, possui, aqui, uma estrutura completamente
tores, mas, antes, estabelecer, em seu prdprio campo, a nova diferente.
atitude em oposigio ao idealismo ainda dominante. Bem cedo, Nao é somente através da virtual presenca de cada aconte-
portanto, ocorreu éste afastamento das utopias da “alta burgue- cimento passado que cada experiéncia presente encarna uma
sia”, cuja melhor andlise pode ainda ser encontrada em E igels. terccira dimensdo apontando de volta ao passado, mas igual-
Saint-Simon, Fourier e Owen ainda sonhavam suas utopias mente porque o futuro estd4 sendo nela preparado. Nao é apenas
no estilo intelectualista antigo, embora j4 trouxessem a matca o passado. mas igualmente o futuro, que tem uma existéncia
de idéias socialistas. A situagdo déles & margem da sociedade virtual no presente. Uma pondetacdo de cada um dos fatéres
se exprimia em descobertas gue alargavam as perspectivas so- existentes no presente e uma intuicdo das tendéncias latentes
ciais e ecordmicas; entretanto, retinham em seu método o as- nestas {Orcas sOmente podem ser obtidas se se compreender o
pecto de indeterminacgio caracteristico do Iluminismo. “Para presente & luz de sua concreta realizagdo no futuro. **
todos éles, o socialismo é a expressdo da verdade, da razdo e da Enguanto a concepcao liberal do futuro era inteiramente
justiga absolutas, precisando apenas ser descoberto pata con- formal, cstamos aqui lidando com um processo de concretiza-
quistar o mundo através de seu prdprio poder.’ 43 ~Também cio gradativa. Embora esta conclusiio do presente pelo fututo
aqui, tinha que se vencer uma idéia e, em conseqiiéncia, o sen-
tido de dezerminagao histérica deslocou a outra forma competi-
dora de utopia. A mentalidade socialista, em um sentido bem 44 Uma confirmacfio da andlise acima e uma quase matematica-
mais fundamental do que a idéia liberal, representa uma rede- mente c\ata confrmagio de nossa teoria sébre os modos diferenciais,
finigo da utopia em térmos de realidade. Serd sdmente ao tét- social e politicamente, de experimentar o tempo histérico, 6 dada pelo
seguinte excerto de um artigo do comunista J. Révai: “O presente s6
mino do processo que a idéia se estabelece em sua indefinicio
existe realmente cm virtude da existéncia do passado e do futuro — 0
e indeterminag&o proféticas, mas o caminho que, das coisas tais presente é a forma do passado desnecessario e do futuro irreal. A
sao, conduz A tealizacto da idéia ja se encontra claramente de- tdtica 6 9 futuro manifestando-se como presente.” (“Das Problem der
marcado histérica ¢ socialmente. Taktik”, em Kommuunismus: Zeitschrift der Kommunistischen Interna-
tionale, 1920, 11, pag. 1676. A presenga virtual do fulura no presente
é af claramente expressada, Esta em completo contraste com a citagio
48° Engels, Ft., Die Entwicklung des § zidlismis von der Ulopic de Hegel, anteriormente feita.) Dever-se-ia comparar csta frase com
zur Wissenschaft, 4.* ed., Berlim, 1894, outras citagGes dispersas no presuute texto.
270 IpeoLocia co Utopia A Mentaripape Urdépica 271
seja, de inicio, imposta pela vontade e por imagens desiderati- cia-chave, cuja perspectiva permeia tédas as Ciéncias Histéricas
vas, @ste esférgo orientado para um objetivo atua como um especiais que tenham alcangado um estado similar de desenvol-
fator heuristicamente seletivo, tanto na pesquisa quanto na a¢do. vimento. Uma confianga e uma seguranga, autorizadas pelo sen-
De acérdo com éste ponto-de-vista, o futuro esté continuamente timento de determinacio, fazem surgir ao mesmo tempo um ce-
se testando no presente. Ao mesmo tempo, a idéia, que a prin- ticismo criador e um élan disciplinado. Um tipo especial de
cipio era apenas uma vaga profecia, esté sendo constantemente “realismo” permeia o dominio da arte. O idealismo do filis-
corrigida ¢ tornada mais concreta 4 medida que o presente se teu burgués de meados do século XIX dissipou-se e, enquanto
adianta para o futuro, A “idéia” socialista, em sua interagdo persistir uma tensao fecunda entre o ideal e a existéncia, os va-
com os acontecimentos “reais”, opera néo como um principio léres transcendentes, concebidos a partir de agora como encar-
transcendente e puramente formal, que do exterior regula o nados na existéncia efetiva, serio buscados no préximo e no
acontecimento, mas, antes, como uma “tendéncia” no interior imediato.
da matriz desta realidade, contlnuamente se corrigindo com re-
feréncia a éste contexto, A investigagZo concreta da interdepen-
déncia de téda a gama de acontecimentos, dos econdmicos aos 4. A UTOPIA NA SITUAGAO CONTEMPORANEA
psiquicos e aos intelectuais, deve reunir as observacdes isola-
das em uma unidade funcional, contra o embasamento de um
Na momento atual o problema assumiu sua forma prdépria
todo em desenvolvimento. ¢ singu'tr. © oo: ‘prea processo histérico nos mostra uma uto-
Dessa forma, nossa visio da histéria vai adquirindo um pia que, em uma dada época, transcendia completamente a his-
quadro de referéncia cada vez mais concreto, diferenciado, mas toria, vir gradativamente descendo em uma aproximacio cada
ao mesmo tempo mais flexivel. Examinamos cada aconteci- vez mais chegada 4 vida real, Ao se tornar mais préxima da rea-'
mento com vista a descobrit o que significa e qual a sua posi- lidade histérica, sua forma sofre mudangas tanto em fungado
cio na estrutura total em desenvolvimento. quanto em substancia. O que de origem se colocava em abso-
Seguramente, a drea de livre escolha se torna, assim, mais luta oposigao & realidade histérica tende agora, seguindo o mo-
restrita; descobre-se um numero maior de determinantes, pois délo do conservantismo, a perder seu cardter de oposigao, Cla-
nao s6 o passado constitui um fator de determinacdo, mas a s!- ro esta que nenhuma das formas destas fércas dindmicas que
tuagéo econdmica e social do presente também condiciona 0 acon- emergem em uma seqiiéncia histérica jamais desaparece por
tecimento possivel, O propdsito orientador nao consiste mais, completo, e tampouco em época alguma qualquer delas é incon-
aqui, em uma atividade com base em impulsos fortuitos em di- testavelmente dominante. A coexisténcia destas forcgas, sua opo-
recio a algum aqui e agora arbitrariamente escolhido, mas, an- sigéo reciproca, bem como sua constante interpenetracao mitua,
tes, em fixar a atencfo sdbre um ponto de ataque favordvel no dao existéncia a formas cuja riqueza de experiéncia histérica
todo estrutural em que vivemos. Torna-se tarefa do Ifder polf- aparece pela primeira vez.
tico reforcar deliberadamente as fércas cuja dindmica parega A fim de nado obscurecer com umexcesso de detalhes o
adiantar-se na direcio por éle desejada, e orientar em sua pré- que € decisivo, sémente ressaltamos as mais importantes ten;
ptia diregdo, ou pela menos tornar impotentes as que parecam déncias em téda esta variedade, emprestando-lhes uma énf2.2
opor-se a éle. A experiéncia histérica se torna, dessa forma, um maior ao retratd-las como tipos-ideais. Muito embora, no de-
verdadeiro plano estratégico. Tudo o que existe na histéria cotter da histéria, jamais se perca realmente nada desta multi-
pode ser agora experimentado como um fenémenointelectual e plicidade de coisas ¢ de acontecimentos, é possfvel mostrar com
volitivamente controlével. crescente clareza diversos graus cle predominio e de alinhamen-
Também neste caso, 0 ponto-de-vista inicialmente formu- to das fOrgas em atuacHo na sociedade. Iddias, formas de pen-
lado na drea politica penetra téda a vida cultural: da investiga- samento é energias psfquicas persistem e sao transformadas em
cao sébre a determinaco social da histdéria surge a Sociologia estrcita conexiio com as férgas seciais. Nunca é por acaso que
que, por seu turno, se transforma gradativamente em uma cién- aparecem ent determinades momentos do processo social.
272 IpgoLocia E Urovia A Menrauipape Urdépica 273
A éste propdsito, estd a vista um determinante estrutu- rem em uma situagéo mais conducente ao conservadorismo, ado-
ral especifico que, pelo menos, merece indicacéo. Quanto taram intermitentemente as idéias que o conservadorismo thes
maior a classe que adquire um certo dominio sébre as condicdes oferecia como modélo, preferindo, entretanto, em geral adaptar
concretas de existéncia, e tanto maiores as possibilidades de uma A nova situacdo as suas ideologias originais. Quando 4stes es-
vitéria por meio de uma evolucdo pacifica, tanto mais tenderd tratos vieram a ocupar a posicdo social préviamente mantida pe-
esta classe a seguir o caminho do conservadorismo. Isso signifi- los consetvadores, desenvolveram espontaneamente um sentimen-
ca, porém, que os diversos movimentos terio renunciado aos to de vida e modos de pensamento que se encontravam estrutu-
elementos utdpicos em seus modos de vida. ralmente relacionados ao conservadorismo. A intuicg&o inicial
Isso se demonstra de uma maneira mais nitida pelo 1.10, do conservador quanto A estrututa do determinismo histérico, a
j4 mencionado, de que a forma relativamente mais pura da men- énfase e, sempre que possivel, a superénfase das fOrcas em si-
talidade quilidstica moderna, tal como ss acha encarnada no lenciosa atuagéo, a continua absorcfo do elemento utdpico na
anarquismo radical, desaparece quase que por completo da cena vida cotidiana apareceram também no pensamento déstes estra-
politica, resultando dai que se elimina um elemento de tensio tos, as vézes sob a forma de uma nova criacgéo espontanea, ou-
das formas remanescentes de utopia politica. tras como umareinterpretacdo de antigos padrdes conservadores.
E verdade, certamente, que muitos dos elementos que cons- Vetificamos portanto que, condicionado pelo processo so-
titufam a atitude quilidstica foram transmutados e se refugia- cial, se desenvolve nestes tipos de pensamento, em diversos
tam no sindicalismo e no bolchevismo, sendo assimilados e in- pontos e sob diversas formas, um relativo afestamento em rela-
corporados a atividade déstes movimentos. Dessa forma, trans- c&o 4 utopia. Este processo, que por si sé j4 possui uma quali-
ferese para éles, ¢ particularmente para o bolchevismo, a fun- dade dindmica prépria, é acelerado ainda mais em seu ritmo e
cao de acelerar c de catalisar a agdo revolucioniria, ao invés de intensidade pelo fato de que diferentes formas coexistentes de
deificd-la. mentalidade utépica se estejam destruindo em um conflito re-
» © abrandamento generalizado da intensidade utépica se ve- c{proco. Tal conflito recfproco entre as diversas formas de uto-
tifica ainda noutro sentido importante: cada utopia que se for- pia nao acarreta necessariamente o aniquilamento do préprio
ma em um estdgio posterior de desenvolvimento, manifesta uma utopismo, pois o conflito, por si mesmo, n&o faz sen&o elevar a
aproximacio -naior ao processo histérico-social. Quanto a éste intensidade utdépica. A forma moderna de conflito rec{proco
aspecto, a idéia liberal, a socialista e a conservadora nada mais apresenta, todavia, uma peculiaridade j4 que a destru’cio do
sféo do que estdgios diversos e, na verdade, formas de oposicao adversério nao se verifica a um nivel utépico, fato que se torna
no processo ~1e vai continuamente se distanciando do quilias- mais nitidamente perceptivel no modo pelo qual os socialistas
ma e se apivxims..to cada vez mais dos acontecimentos déste empreenderam o desmascaramento das ideologias de seus anta-
mundo. gonistas. !> Nao acusamos o adversdrio de adorar falsos deuses;
destruimos a intensidade de sua idéia demonstrando que ela é
Tédas estas fornias de oposic&o A utopia quuidstica <.0- histérica € socialmente determinada.
luem em intima conex%o com o destino dos estratos sociais que
© pensamento socialista, que até aqui vem desmascarando
as adotaram originalmente. Como tinhamos visto, constituem
formas j4 moderadas do éxtase quilidstico original, mas no de- as utopias de todos os seus adversdrios como ideologias, jamais
levantou o problema da determinacZo com respeito 4 sua prdé-
curso de um desenvolvimento posterior climinam éstes derra-
pria posicic. Jamais aplicou o método a si mesmo e nunca re-
deiros vestigios utdépicos, aproximando-se involuntariamente da
freou scu préprio desejo de ser absolute. No entanto, é inevi-
atitude conservadora, Ao que tudo indica, constitui lei geral-
tavel que também aqui o elemento utdépico desaparega, com o
mente vdlida da estrutura do clesenvolvimento intelectual o fato
de que, na ocasiao em que novos grupos penetram em uma si-
tuagio jd estabelecica, éles nao adotem de imediato as ideologias 45 A mudanga de significado de conceito de ideologia, que apre-
ja elaboradas, mas, antes, adaptem as suas idéias tradicionais sentamos na Parte IH, ¢ simplesmente uma fase déste processo mais
4 nova situacdo. Assim, o liberalismo e o socialismo, ao entra- geral.
274 IpEoLociaA E Uioria ENTALIDADE UtT6pIica 275
aumento do sentido de determinacgio. Aproximamo-nos, assim, A viséo sociolégica das classes que ascendem ao poder so-
de uma situagdo em que o elemento utépico, através de suas mui- fre transformagdes segundo linhas particulares. Estas teorias so-
tas formas divergentes, ter-se-4 (pelo menos na politica) ani- ciolésicas, 4 semelhanca de nossa atual concepcio cotidiana do
quilado completamente. Ao se tentar seguir as tendéncias que mundo, encarna os “‘pontos-de-vista possfveis” conflitantes que
ja se ddo, projetando-as no futuro, a profecia de Gottfried Keller nada mais séo do que transformagdes gradativas de utopias an-
— “O triunfo final da liberade serd estéril” 4" —- passa a assu- teriores. O que esta situagao tem de peculiar é que, nesta luta
mir, pelo menos para nés, um alarmante significado. competitiva pela correta perspectiva social, todas estas aborda-
Sintomas desta “‘esterilidade” se revelam em muitos fend- gens e pontos-de-vista conflitantes de forma alguma se ‘‘desa-
menos contemporaneos, podendo ser claramente entendidos co- creditam” a si préprios, isto é, nao se revelam fiteis ou incor-
mo radiagdes da situacio politica e social nas esferas mais remo- retos. Antes, demonstram com uma clareza crescente ser pos-
tas da vida cultural. Com efeito, quanto mais ativamente um
sivel pensar pro-‘itosamente, de qualquer ponto-de-vista, em-
partido em ascenséo colabora em uma coalizio parlamentar, bora o grau de provcito a ser atingido varie de posigdo a posi-
tanto mais abandona seus impulsos utépicos originais ¢, com cao. Cada um déstes pontos-de-vista revela, de um Angulo di-
éles, sua perspectiva ampla, tanto mais seu poder para transfor- verso, as inter-relagdes no complexo total de acontecimentos,
mar a sociedade tenderd a ser absorvido por seu interésse em crescendo dessa forma a suspeita de que o processo histérico
detalhes isolados e concretos. Em térmos bastante paralclos 4 seja algo mais abrangente que todos os pontos-de-vista indivi-
mudanga que pode ser observada no dominio politico, cfetua-se
duais existentes, ¢ de que nossa base de pensamento nio alcan-
ce, no presente estado de atomizagao, uma visio compreensiva
uma mudanga na visio cientifica que se conforma as demandas
politicas: o que constituira meramente um esquema formal ¢
dos acontecimentos. A massa de fatos e de pontos-de-vista é
muito maior do que o atual estado de nosso aparato tedérico e
uma visio total e abstrata tende a se dissolver em uma investi-
de nossa capacidade de sistematizagio pode comportar.
gacdo de problemas especificos e distintos. O esfdrco utdpico
visando a um objetivo e a possibilidade, intimamente relaciona- Teto, porém, lanca uma nova luz sdbre a necessidade de
da a éle, de uma perspectiva ampla desintegram-se, no conselho nos achirmos continuamente preparados para uma sintese, em
consultivo parlamentar e no movimento sindical, em mero con- um mundo que vai atingindo um dos altos pontos de sua exis-
junto de orientagdes para dominar um vasto nimero de detalhes téncia. QO que anteriormente se desenvolvera aleatoriamente, a
concretos, com vista a assumir posigio politica quanto a éles. partic das particulares necessidades intelectuais de classes e cir-
Da mesma forma, no campo da pesquisa, o que anteriormente culos sociais restritos se torna de stibito perceptivel como um
constitula uma Weltanschauung unificada e sistematizada con- todo, ¢ a profusio de acontecimentos e de idéias produz um
verte-se, no intento de lidar com problemas individuais, em uma quacdia bastante Cofluse,
mera perspectiva orientadora e em um principio heurfstico. Mas Nao € por fiaqucza que um povo, chegado a um estdgio
desde que tédas as formas miituamente conflitantes de utopia mad o de d.sensal- riento histZrico e social, se submete do
atravessam o mesmo ciclo de vida, tornam-se, tanto no dominio diferentes possibilidades de visualizar o mundo, tentando en-
da céncia quanto no da prdtica parlamentar, cada vez menos contrar um quadio tedrico que as abranja todas, Essa submissao
artigos de fé mttuamente conflitantes, e cada vez mais partidos surge antes da is uigtc de que cada uma das certezas intelectuais
em competic#o ou possiveis hipdéteses de pesquisa. Enquanto em antecedentes repousava sdbre pontos-de-vista parciais tornados
uma poca de ideais liberais a Filosofia refletia melhor a situacao absolutos. Constitui uma caracteristica de nassos dias o fato de
social ¢ intelectual, hoje em dia a condig&o interna das situacdes que se limi. accics puntos-de-vista parciais se tenham revelado
intelectuais e sociais se reflete mais claramente nas diversas for- evidentes.
mas de Sociologia. Neste estdgio maduro e adiantado de desenvolvimento, a
perpectiva total tende a desaparecer em proporcio ao desapare-
cimento da utopia. Sdmente os grupos da cxtrema esquerda e
16 “Der Fretheit letzter Sieg ward tecken sc”. de <.'rema direita, na vida moderna, acreditam haver uma uni-
276 IproLlocia £ Uroria
A Mrnratipape Urdetca 277
dade no processo de desenvolvimento. No primeiro encontra-
mos o neomarxismo de um Lukdcs, com a sua obra de profunda tipos e de generalizacdes vdlidas eternamente, e a realidade se
importancia, ¢ no tiltimo o universalismo de um Spann. Seria torna apenas uma combinagiio especial déstes fatéres gerais (cf.
supérfluo demonstrar, a esta altura, as diferencas no pontos-de- a Sociologia Geral de Max Weber).
-vista sociolédgicos déstes dois extremos, reportanac-nos as di- O quadro conceptual da Filosofia Social que fundamentava
ferengas em suas concepsdes da totalidade. Nao estamos inte- os trabalhos dos uiltimos séculos parece desaparecer com a fé
ressados em esgotar essa quest4o, mas, antes, em uma determi- nas utopias como alvos coletivos dos esforcos humanos, Esta
nagdo provisdéria dos fendmenos sintomiticos da situagao atual. atitude cética, fecunda em muitos sentidos, corresponde prima-
Diferentemente dos autores acima mencionados, que encaram tiamente A posigéo social de uma burguesia j4 no podet, cujo
a categoria de totalidade como uma entidade metaffsico-ontoldgica, futuro se coiverteu gradativamente em seu presente. Os demais
Troeltsch a utilizou como uma hipdtese de trabalho na pesquisa. estratos da sociedade manifestam tendéncias idénticas, 2 medi-
Empregou-a em uma forma um tanto experimental como um da que também se aproximam da tealizacio de seus objetivos.
principio ordenador para uma abordagem da massa de dados e¢, Nao obstante, a evoluc&o concreta de seu modo de pensamento
recotrendo a diferentes linhas de tratamento do material, buscou atual também se acha até cetto ponto socioldgicamente deter-
descobrir os elementos que em qualquer época lhe conferissem minada pela situac&o histérica em que tiveram origem. Caso se
uma unidade, Alfred Weber procura reconstruir o todo de uma retire do método sociolégico marxista a concepcio dindmica de
época histérica passada como uma Gestalf — uma unidade con- tempo, também aqui teremos uma teoria generalizante da ideo-
figurativa por meio da qual se pode observar intuitivamente. logia que, sendo cega as diferenciagdes histdéricas, iria vincular
Seu método se coloca em decidida oposigio ao dogmatismo ra- as idéias exclusivamente as posicSes sociais dos gue as mantém,
cionalista fundado sdbre a deducdo. O fato de que Troeltsch e sem considerar a sociedade em que ocotrem nem a funcdo par-
Alfred Weber, como democratas, se encontrem entre os dois ex- ticular que ali possam exercer.
'tremos de Lukdcs ¢ de Spann se reflete cm suas respectivas es- Os contornos de uma Sociologia indiferente A nocio histd-
‘truturas mentais. Embora aceitem a concepcao de totalidade, o tica de tempo j4 cram perceptiveis na América, onde o tipo do-
primeiro evira qualquer pressuposto metafisico ¢ ontoldgico ao minante de mentalidade tornou-se mais completo e rapidamen-
falar dela, e o uildmo rejeita a atitude raciunalista geralmente te congrucnte com a realidade da socicdade capitalista do que
associada a essa concepcao pelos radicais. ecorreu no pensamento alemao. Na América, a Sociologia de-
tivada da Filosofia da Histéria foi bem mais cedo posta de
Em contraste com os adeptos do marxismo ov com 1 tradi-
lado. A Sociologia, ao invés de constituit um retrato adequado
cao histérico-conservadora em sua concepsio da totalidade, ou-
da estrutura do conjunto da sociedade, esfacelou-se em uma série
tro elemen:> do grapo intermedidrio procura ignorar inteira-
de problemas técnicos distintos de reajustamento social.
mente o ¢ “lema da totalidade a fim de, com base nesti re-
nincia, ser capaz de concentrar mais plenamente sua atencado na “Realismo” tem diferentes significacSes em contextos
abundancia de problemas particulares. Téda vez que a utopia diferentes. Na Europa, significava que a Sociologia tinha
desaparece, a histéria deixa de ser um processo que conduz a de focar sua atengio na tensdo bastante acentuada entre as
um fim ultimo. O quadro de referéncia de acérdo com o qual classes, enquanto na América, onde havia maior liberda-
avaliamos os fatos deixa de existir, restando-nos uma série de de de ag&o no campo econdmico, néo eta tanto o problema
acontecimentos, todos idénticos no que se refere a sua significa- das classes que se consideraya o centro “real” da sociedade, mas
cio interna. Desaparece o conceito de tempo histérico, que os problemas de técnica e de organizacko sociais. Pata as for-
conduzia a épocas qualitativamente diferentes, e a histdéria se mas de pensamento europeu que se encontravam em oposicio ao
torna cada vez mais semelhante ao espaco nio-diferenciado. To- status quo, Sociologia significava a solugio do problema das
dos os elementos de pensamento enraizados nas utopias sao relagdes de classe — de um modo mais getal, um diagnéstico
agora vistos de um ponto-de-vista cético e relativista. Ao invés cientifico da época atual, Para o ameticano, pelo contrério,
da concepcao de progresso e da dialética, adotamos a busca de significava a solugio dos problemas técnicos e imediatos da
vida social. Isto ajuda a explicar por que, na formulacdo eu-
278 IpEoLoaia E Utorta A MENTALIDADE Urépica 279
ropéia de problemas socioldgicos, sempre se faz a desconcertan- mesma, em seus principios e manifestagdes. Os mesmos moti-
te pergunta sSbre o que nos guarda o futuro e, de maneira se- vos produzem sempre as mesmas acdes. Os mesmos aconteci-
melhante, se lanca a luz sdbre o impulso, estreitamente corre- mentos decorrem sempre das mesmas causas. A ambicio, a
lato, para uma perspectiva total. Do mesmo modo é possivel avareza, O egoismo, a vaidade, a amizade, a generosidade, o es-
explicar, com base nesta diferenca,’o tipo de pensamento envol- pirito puiblico: estas paixdes, combinadas em varios graus e dis:
vido na formulagio americana do problema, representado da tribuidas pela sociedade, tém sido desde o inicio do mundo, e
seguinte forma: Como é que faco isso? Como € que resolvo ainda o sao, a fonte de tédas as agdes ¢ iniciativas que se tém
éste problema concreto isolado? E em tddas estas indagacdes sempre observado na humanidade.” 47
sentimos o eco otimista: n&o preciso preocupar-me com o todo, Este processo de completa destruigdo de todos os elemen-
o todo toma conta de si prdprio. tos espirituais, os utépicos bem como os ideoldgicos, encontra
Na Europa, contudo, o desaparecimento completo de tédas
um pwalelo nas mais recentes tendéncias da vida moderna, e
as doutrinas que transcendem a realidade —- as utdpicas bem nas tendéncias correspondentes no dominio da arte. Nio deve-
como as ideoldgicas — ocorreu nfo apenas pelo fato de se mos- mos ¢ncarar o desaparecimento na arte do humanitarismo, 4
emergéncia de um “constatagio de fato” (Suchlichkeit) na viaa
trar que todas estas nacdes eram relativas A situac%o econdmico-
sexual, na arte ¢ na arquitetura ¢ a expressio dos impulsos na-
-social, mas também por outros meios. A esfera da realidade wl-
turais no esporte — niio se deveria interpretar tudo isso como
tima repousava na esfera econdémica e social, pois era a ¢sta que
sintomitico do crescente recesso dos elementos utépicos e “du:
o marxismo vinculava, em Ultima andlise, todas as idéias ¢ valé-
Idgicos da mentalidade dos estratos que virio a dominar a si-
res; estava ainda historica e intelectualmente diferenciada, isto
tuacéo atual? Nao deveriam a gradativa redugio da Politica
é, ainda continha algum fragmento da perspectiva histérica (de-
a Economia, em cuja direcio existe pelo menos uma tendéncia
vido amplamente A sua derivagdo hegeliana). © materalismo
perceptivel, a rejcicfo consciente do passado e da nocgao de
histérico era materialista apenas no nome; a esfera econdmica
tempo histérico, o abandono consciente de qualquer “ideal cyl>u-
era, em Ultima andlise, apesar de ocasionais negativas déste fato,
ra, $cc inter: taces como um desaparecimento, tambér wa
um inter-relacionamento estrutural de atitudes mentais © sis-
arena politica, de qualquer forma de utopismo?
tema econdmico existente era exatamente um “sistema”, isto é,
algo que se forma na esfera do espirito (0 espirito objetivo, Aqui, uma certa tendéncia para agir sobre 0 mundo promo-
como o entendida Hegel). © processo que de inicio comecou ve uma ativucle para a qual tédas as idéias se acham desacreti-
por solapar a validade dos elementos espirituais na histéria pas- tadas e tédas as utopias, destruidas. Esta atitude ptosaica que
sou, mais tarde, a perturbar esta esfera do espirito, reduzindo vem surgindo atualmente deve ser em grande parte bem rece-
oiaa como o unico instrumento de dominio sébre a situacHo
todos os acontecimentos a fungSes de impulsos humanos, com-
atual, como a transformac&o do utopismo em ciéncia ¢ como a’
pletamente desligados dos elementos histéricos e espirituais.
detruicio $13 id.clogi-s enganadoras que se acham em incon-
Isto também possibilitou uma teoria generalizante; os elementos
gruéncia com a realidade de nossa presente situacZo, Seria ne-
que transcendem A realidade, as ideologias, as utopias, etc. —
cessdrio ou bem uma insensibilidade que nossa peracdo prova-
jé n&¥o se achavam em relacdo com situagSes sociais de grupo,
velmente jf nfo poderia adguirir ou, entao, a crédula ingenui-
mas com impulsos — com formas eternas da estrutura dos im-
dade de uma geracHo recentemente nascida para o mundo, para
pulsos humanos (Pareto, Freud, etc ), Esta teoria generalizan-
se poder viver em inteira congruéncia com as realidades déste
te dos impulsos ja féra prenunciada na Vilosofia Social e na
mundo, totalmente despidas de qualquer elemento transeenden-
Psicologia Social inglésas dos séculos XVIT ¢ XVUT Assim,
te, quer sob a forma de uma utopia, quer sob a de uma ideologia.
por exemplo, em seu Enquiry concerning Human Understan-
ding, dizia Hume:
“Reconhece-s¢ universalmente que haja uma grande uni- 'T ume, Enquiries concerning the Human Understanding and
formidade entre as acdes dos homens, cm tédas as nagdes ¢ em prning the Principle. af Alveals, Ws. pa L. A. Selby-Digge, 2.7 ed.
tédas as épocas, ¢ que a natureza humana permancca sempre a on, 1927), aig. os
280 Ipro.ocia © Uroria A MeEnTaLipapn Urérica 281
Em nosso atual estagio de autoconsciéncia, esta setia talvez a lativo bem-estar, ou que éste capitalismo seja antes transforma:
Unica forma de existéncia real possivel em um mundo que j4 do em comunismo.) Se aste estdégio posterior do desenvolvi-
nao se acha em formacao. E possivel que o melhor que nossos mento industrial somente puder ser obtido através da revolucio,
ptincipios éticos tém a oferecer seja a “‘autenticidade” e a “fran- os elementos utépicos e ideolégicos do pensamento voltarfo a
queza”, no lugar dos antigos ideais. A “autenticidade” (Echthei- flotescer, com renovado vigor, por téda parte. Seja como fér,
tskategorie) e a franqueza aparentam nao ser mais do que a seri no podersocial desta ala da oposico & ordem existente que
ptojecao da ‘“‘constatacao de fato” ou do “realismo” gerais de se ird encontrar um dos determinantes de que depende o destino
nossos dias, no campo da Etica. Talvez um mundo que nao dos conceitos que transcendem a realidade,
esteja mais cm formacg&o possa permitir-se isso. Mas acaso
teremos atingido um est4gio em que possamos dispensar o es- Mas a forma futura da mentalidade utdpica e da intelectua-
fSrco? Nao itia esta eliminacio de tddas as tensdes significar lidade n&o desende apenas das vicissitudes déste estrato social
extremo, Em acréscimo a éste fator socioldgico, ainda existe
igualmente a eliminacdo da atividade politica, do cuidado cien-
outro a ser considerado neste sentido: um estrato médio social
tifico ~- numa palavra, do préprio contetido da vida?
e intelectual distinto que, apesar de manter uma telacdo defi-
: Assim, se néo nos quisermos contentar com esta “cou nida com a atividade intelectual, ndo foi considetado em nossa
tagiio de fato”, devemos levar avante nossa pesquisa ¢ indagar andlisc anterior. Até agora tédas as classes abrangeram, além
se nao existiriam outras fércas em atividade no campo social, dos que efetivamente representavam seus interésses diretos, ou-
além dos estratos sociais que, pela sua atitude satisfcita, promo- tro estrato mais otientado para o que se pode chamar de teino
vem éste relaxamento da tensdo psicoldgica. Caso a petgunta do espfrite, Sociolagicamente, podetiam ser denominados “in-
'seja colocada desta maneira, contudo, a tesposta deverd ser a telectuais”, mas, para nossas finalidades, precisamos ser mais
seguinte: precisos. No nos referimos aqui aos que portam as insignias
i A aparente auséncia de tens&o no mundo de hoje esta sen- exteriores da instrucéo, mas aos poucos dentre @stes que, cons-
ido solapada por dois lados. De um lado, acham-se os estratos ciente ou inconsclentemente, se acham interessados em algo mais
cujas aspiracdes ainda nfo se realizaram e que se incunam para do que o sucesso no esquema de competicao que visa a desalojat
0 comunismo e para o socialismo. Para éles, a inidade da o atual Por maior que seja a serenidade com que se encare a
utopia, do ponto-de-vista e da acao é inconteste enquanto rer- questaéo, néo se poderd negar que éste pequeno grupo quase
manegam 4 margem do mundo atua. A sua presenga na socie- sempre existiu. Sua posicdo nao aptesentava nenhum problema
dade implica a ininterrupta exist€ncia de, pelo menos, uma for- enquanto seus interésses intelectuais e espirituais estivessem em
ma de utopia, e, assim, até certo ponto, sempre fard que tornem congruéncia com os da classe em luta pela supremacia social.
a se acender e a se conflagrar contra-utopias, pelo menos tédas Experimentava e conhecia o mundo segundo a mesma perspecti-
as vézes que esta ala de extrema esquerda entre em acto. Se va utépica do grupo ou esttato social com cujos inter€sses se
isto ira ou sao de fato acontecer, depende amplamente da for- identificava. Isto se aplica tanto a Thomas Mtinzer quanto aos
ma estrutural do processo de desenvolvimento com que atual- combatentes burgueses da Revolucio Francesa, tanto a Hegel
mente nos defrontemos. Se formos capazes de, através de uma quanto a Karl Marx.
evolucio pacifica, alcangar, em um estdgio postctior, uma for- A situagio déles se torna, no entanto, questiondvel sempre
ma algo superior de industrialismo que seja suficientemente clds- que o stupa a que se identificam aleanca uma posicio de poder.
tica e que proporcione aos estratos mais baixos um gtau de re- quando, em decorréncia desta obtencdo de poder, a utopia se des-
lativo bem-estar, entio também elas sofrerdo o tipo de trans- liga da politica. Conseqtientemente, o estrato que era identifi-
formacia que jd se evidenciou nas classes detentoras do poder. cado com tal grupo, com base nesta utopia, é igualmente des-
(Déste ponto-de-vista, pouco importa que esta forma supcrior ligado.
de organizagio social do industrialismo, através do acesso dos Os intelectuais serio também desligados déstes vinculos
estratos mais baixos a uma posicao de poder, redunde em um socinis tio logo o estrato mais oprimido da sociedade venha a
capitalismo suficicntemente eldstico para assegurar-lhes um re- partilhar do dominio da ordem social. Os intelectuais social-
282 TpEOLOGIA £ UTopia A MENTALIDADE Utdérica 283
mente desvinculados serfo, ainda mais do que hoje em dia, re- ma déste fato, por exemplo, na arte moderna expressionista, em
crutados em proporgSes crescentes dentre todos os cstratos so que os objetos perderam seu significado original, parecendo
ciais ¢ nado simplesmente dentre os mais privilegiados. Rote servir simplesmente como um meio para a comunicacgéo do ex-
setor intelectual, que sc vem tornando cada vez mats scparado
tdtico De modo semelhante, no campo da Filosofia, varios pen-
do resto da sociedade ¢ se vé entregue a seus prdéprios recursos, sadores niic-académicos, como Kierkegaard, rejeitaram, na bus-
defronta-se, sob outro aspecto, com o que acabamos de caracte- ca de fé, todos os elementos histéricos concretos da religifo,
tizar como uma situacdo total que tende para o completo desa- e tendem, em tiltima andlise, para uma pura e extdtica “existén-
parecimento de tensao social. Mas uma vez que os intelectuais cia em si”. Tal afastamento do elemento quilidstico do meio da
nfio se encontram de forma alguma em concordancia com a si- cultura ¢ da politica talvez preservasse a pureza do espirito ex-
tuacdo existente, e que ela nao deixa de lhes aparecer como pro- tdtico, mas dcixaria o mundo sem significacio nem vida, Este
blema, também éles se esforcam por ultrapassar esta situagao afastamento acabard sendo fatal também ao éxtase quilidstico,
desprovida de tensao. desde que, como jd vimos, ao se interiorizar e abandonar scu
conihto com o mundo concreto imediato, éle tende a se tornar
As seguintes quatro alternativas se apresentam aos intclec-
manso ¢ inécuo, ou a se perder em um pura auto-edificacao,
tuais que dessa forma se viram rejeitados pelo processo social: 0
primeiro grupo de intelectuais que se filiam a ala radical do Terminada esta andlise, é inevitdvel que nos indagassem
proletariado socialista-comunista em absoluto nos intercssa aqui. © que o futuro nos guardu, e a dificuldade desta questo pde a
Para éle, pelo menos sob @ste aspecto, n@o existem problemas, nu a estrutura da compreensio histérica. Predizer é tarefa de
o conflito entre a lealdade social e a intelectual ainds nao existe profetas, cada profecia transforma necessiriamente a histéria
O segundo grupo, que se viu rejeitado pelo processo social em um sistema puramente determinado, privando-nos, dessa
ao mesmo tempo que sua utopia era afastada, torna-se cético e forma, da possibilidade da escolha e decisio. Como um resul:
passa, em nome da integridade intelectual, a destruir os clemen- tado posterior, desfaz-se o impulso a pesar e a refletir com re-
tos ideolégicos da ciéncia pela manecira acima descrita (Max lacio a esta esfera constantemente emergente de novas possi-
bilidades.
Weber, Pareto).
O terceiro grupo se refugia no passado e¢ tenta encontrar A iinica forma em que o futura se nos apresenta € a da
af uma época ou uma socicdade em que uma forma extinta de possibilidade, ao passo que o imperativo, o “deveria”, nos diz
transcendéncia 4 realidade dominasse o mundo, e, através desta qual destas possibilidades devemos escolher. No que se refere
reconstrugfo romantica, tenta espiritualizar o presente. A mes- ao conhecimento, o futuro —~ enquanto nado estamos interessa-
ma fungio, déste ponto-de-vista, € desempenhada pelas tenta- dos na parte puramente organizada e racionalizada — se apre-
tivas de reanimar o sentimento religioso, o idealismo, os sfm- senta coma um meio impenetrdvel, um muro intransponfvel.
bolos e os mitos. E, quando nossas tentativas de devassd-los sio repelidas, come-
© quarto grupo se isola do mundo e renuncia consciente- gamos a tomar consciéncia da necessidade de escolher resoluta-
mente 4 participagdo direta no processo histérico. Tornam-se mente o nosso caminho, e, em estreita conexdo, da necessidade
de um imperativo (uma utopia) que nos leve avante. Sdmen-
extéticos como os quiliastas, mas com a diferenca de que j4 nao
Se preocupam com movimentos politicos radicais. Tomam par te quando sabemos quais os interésses e impcrativos envolvidos,
te no grande processo histérico do desengano, em que todo sig- é que estamos em posicao de questionar as possibilidades da si-
nificado concreto das coisas, bem como os mitos e as crencas tuagaéo presente ¢. assim, de obter nosso primciro “insight” da
vio sendo Ientamente postos de lado, Diferem, entretanto, dos histéria. Aqui, finalmente, vemos por que sé pode existir uma
romanticos, que visam essencialmente a conservar as crencas interpretagao da histéria na medida em que esta se oriente pelo
antigas em uma época moderna. Este éxtase a-histérico que ins- interésse e pelo esfdrco intencional, Das duas tendéncias em
pirou tanto o mfstico quanto o quiliasta, se bem que de manei- conflito no mundo moderno — as correntes utdépicas em luta
ras diferentes, se encontra agora colocado, em tdda a sua crueza, contra uma tendéncia complacente a aceitar o presente — é di-
no préprio centro da experiéncia. Vamos encontrar um sinto- ficil dizer de antem&o qual acabaré por vencer, pois o curso da
284 IpEzoLocIA E UTOPIA
A MENTALIDADE Urépica 285
tealidade histo :ca que determinard esta vitéria repousa ainda do-o em condigdes de realmente escolher. Entdo, e sdmente
no futuro. Poderfamos mudar téda a sociedade amanhia, caso entdo, suas decisGes realmente procederao déle.
todos concordassem. O verdadeiro obstaculo € que cada indi-
viduo se acha préso a um sistema de relagGes estabelecidas que, Tudo o que foi dito até aqui, neste livro, destina-se a au-
em grande parte, entrava a sua vontade.*® Mas estas “rela- xiliar o individuo a penetrar nestes motivos ocultos e a revelar
ces estabelecidas” repousam, em Ultima andlise, sdbre decisdes as implicagSes de sua escolha, Enttetauto, para o nosso propd-
n@o-controladas dos individuos. A tarefa consiste, pottanto, em sito analitico mais resttito, que podemos designar como uma
remover esta fonte de dificuldade, revelando os motivos ocultos histéria sociolégica dos modos de pensamento, torna-se clato que
subjacentes as decisdes do individuo, e dessa forma colocan- as mudancas mais importantes da estrutura intelectual da época
de que nos ocupamos devem ser compreendidas a luz das trans-
formacdes do elemento utépico. E possivel, portanto, que no
, 48 Aqui, t mbém, em quest6es tao decisivas quanto estas, “oO futuro, em um mundo em que nunca haja nada de névo, em
reveladas as dif. engay mais fundamentais nos modos de experiment. . que tudo esteja terminado, sendo cada momento uma repeticzo
a lrealidade. © anarquista Landauer pode ser citado, representando do passado, venha a existir uma condiggo em que o pensamento
um extreme: seja completamente despido de quaisquer elementos ideoldgi-
“QO que entendeis entéo pelos fatos duros e objetivos da histéria cos e utdépicos. Mas a completa eliminagdo de elementos trans-
humana? , Nao, certamente, o solo, as casas, as mAquinas, as estradas cendentes & realidade, em nosso mundo, nos levaria a uma “cons-
de ferro, as linhas telegrdficas e coisas semelhantes. Sc, porém, vos tatagao de fato” que significaria, em Ultima andlise, a decom-
referis assim a tradicdo, ao costume e ao compleso de relagdes, ob,ctos
de pia reveréncia, tais como 0 Estado ¢ organizagées, condigses ¢ si- posig¢fo da vontade humana. Neste aspecto reside a mais es-
tuagdes similares, entio n&o é possivel desfazermo-nos déles, dizcendo sencial diferenga entre éstes dois tipos de transcendéncia A rea-
que sio simples 2paréncias. A possibilidade e a necessidade do proces- lidade: enquanto o declinio da ideologia representa uma crise
so social, tal como da estabilidade 4 decadéncia, e dai para a recons- apenas para certos estratos, e a objetividade que nasce do des-
trucio, baseia-se no fato de que n&o ha organismo desenvolvido que mascaramento das ideologias sempre assume a forma de um
esteja acima do individuo, mas uma complexa rclagio de razio, amor auto-esclarecimento para a sociedade como um todo, a comple-
e,autoridade. Assim, sempre novamente, ocorrem, na histéria de uma ta desaparicao do elemento utdépico do pensamento e da acao
estrutura social, que é uma estrutura tho-sé6 enquanto os individuos a humanos significaria que a natureza e o desenvolvimento huma-
alimentam com sua vitalidade, ocasies em que os Vivos se envergo- nos iriam assumir um caréter totalmente névo. A desaparicio
nham dela, como um fantasma estranho do rassado, ¢@ eriam noves
agrupamentos. Por isso afastel meu amor, razio, obediéncia e vontac2
da utopia ocasiona um estado de coisas estético em que o ptd-
daquilo que chrmo ‘Estado’, Que eu seja capaz de fazer isso de- ptio homem se transforma em coisa. Irlamos, entdo, nos de-
pende da minl vontade, O nfo serdes capazes de fazer isto né frontar com o maior paradoxo imagindvel, ou seja o do homem
tera o fato decisivo de que esta incapacidade particular est4 insepa. que, tendo alcancado o mais alto grau de dominio racional da
velmente ligada com vossa propria personalidade e nao com a natureza existéncia, se vé deixado sem nenhum ideal, totnando-se um
do Estado.” (De uma carta de Gustav Landauer a Margarete Susmann, mero produto de impulsos. Assim, ao término de um longo ¢
transcrita em Landauer, G., sein Lebensgang in Bricfen, ed, por Martin tortuoso, mas herdico desenvolvimento, justamente no mais ele-
Buber (1929), vol. II, pag. 122.) vado estdgio de consciéncia, quando a histéria vai deixando de
! No outro estremo, eis a seguinte citacio de Hegel: set um destino cego e se tornando cada vez mais uma criacZo do
“Visto que as fases do sistema ético sio a concepgae da liberdade, ptéprtio homem, o homem perderia, com o abandono das uto-
elas sfo a substaneia da esséncia universal doy jndividuos, Fxistam pias, a vontade de plasmar a histdria e, com ela, a capacidade
ou n&o os individuos, isto 6 indiferente para a ordem ética objetiva, de compreendéla.
que se basta a si mesma. Ela é a fOrca que goverma a vida dos indi-
viduos, Tem Jo repiesentada pelas nagdes como a cterna justica, ou
como deidades :bsolutas em confronto com as quais a luta dos indi{-
duos 6 um jég> vazio, como o barulho das ondas.” Hegel, Philosophy
of Right, trad. 2or J. W. Dyde (Londres, 1896), pag. 156, § 145, em 2
A SocloLtociA Do CONHECIMENTO 287
lidar adequadamente com os fatéres que condicionam cada pro- Chamamos de particular a esta concepgda de ideclogia por-
duto do pensamento — fatéres mais claramente evidenciados pelo que ela se refere sOmente a afirmativas especificas gue podem
proprio desenvolvimento mais recente da ciéncia. Em vista disso, ser consideradas como dissimulagdes, falsificagdes ou mentiras,
a Sociologia do Conhecimento se atribuiu a tarefa de resolver o sem que com isso se atinja a integridade da estrutura mental
problema do .condicionamento social do pensamento, reconhe- total do sujeito que as enuncia, A Sociologia do Conhecimento, por
cendo ousadamente estas relacdes, trazendo-as pata o horizonte outro lado, foma como seu problema exatamente esta estrutura
da propria ciéncia e usando-as pata verificar as conclus6es de nos- mental ev sua totalidade, tal como ela aparece nas diferentes cor-
sa pesquisa. Enquanto as antecipagdes concernentes a influéncia rentes de pensamento e grupos hist6rico-sociais. A Sociologia do
do “background” social permaneceram vagas, inexatas € cxage- Comwciments ic crinca © peasamento ao 2°, 1 das prdéprias
radas, a Sociologia busca reduzir as conclusGes tiradas a suas
288 IproLoaia © Uroria A SocioLocia Do CONHECIMENTO 289
afirmativas, que podem envolver enganos e disfarces, mas as do conhecimento” (“Seinsverbundenheit + des Wissens’’), Como
examina ao nivel estrutural ou nooldgico, que vé nao como sen- um fato concreto, éle pode ser melhor abordado por meio de
do necessariamente o mesmo para todos os homens, mas, ao con- uma ilustragdo. A determinagio existencial do pensamento pode
trétio, como petmitindo que um mesmo objeto assuma diferen- scr encarada como um fato demonstrado naqueles dominios de
tes formas e aspectos no decurso do desenvolvimento social. Uma pensamento em que podemos demonstrar: 4) que o processo de
vez que a suspeita de falsificagéo nao se inclui na concepgao to- conhecer de fato nao se desenvolve histdricamente de acdrdo com
tal de ideologia, o uso do térmo “ideologia” na Sociologia do leis imanentes; que n&o ptocede da “‘natuteza das coisas” ou das
Conhecimento nao possui intengZo moral ou denunciadora. An- “possibilidades puramente ldgicas”, e que nao é dirigido por
tes, indica um interésse de pesquisa que leva a se colocar a ques- uma ‘“‘dialética interna”. Pelo contratio, a emergéncia e a cris-
to de quando e onde as estruturas sociais vém expressar-se na talizagio do pensamentoefetivo sao influenciadas em muitos pon-
estrutura de assercdes, e em que sentido as primeiras determinam tos decisivos por fatéres extratedricos dos mais diversos tipos.
concretamente as Ultimas. No dominio da Sociologia do Co- Tais fatéres podem ser chamados fatéres existenciais, em con-
nhecimentos, iremos, pois, na medida do possivel, evitar o uso traposicfo aos fatéres puramente tedéricos. Tal determinacio
do téemo “ideologia”, devido 4 sua conotac’o moral, e, ao invés existencial do pensamento também terd de ser encarada como
déle, falaremos da “perspectiva” de um pensador. Com éste tér- um fato: 6) se a influéncia désses fatéres existenciais sébre o
mo queremosreferir-nos ao modo global de o sujeito conceber contetido concreto do conhecimento fér de importancia nZo ape-
as coisas, tal como determinado por seu contexto histérico e nas periférica, se éles forem relevantes nfo sé pata a génese de
social. idéias, mas penetrarem em suas formas e contetido e se, além
disso, determinarem decisivamente o alcance e a intensidade de
nossa experiéncia e de nossa observacao, isto é, aquilo a que nos
2. AS DUS DIVISOES DA SOCIOLOGIA DO CONHEC' 1ENTO referimos anteriormente como a “perspectiva” do sujeito.
Os Processos Sociais gue Influenciam o Processo de Co-
: a) A Teoria da Determinagéo & cial do Conbecimento nbecimento. Considerando agora o primeiro conjunto de crité-
tlos para a detcrininagio das conexdes existenciais do conheci-
A Sociologia do Conhecimento é, por um lado, uma teotia, mento, isto é, o papel cfclivamente desempenhado pelos fatéres
e€, por outro, um método histérico-sociolégico de pesquisa. En- extratedricos na histéria do pensamento, descobrimos que as mais
quanto teoria, pode assumir duas formas. E, em primeiro lugar, rectntes investigagées, empreendidas no espirito da histéria socio-
umainvestigaséo puramente empirica, atrayds da desc:igdo e and- logicamente orientada do pensamento, proporcionam um crescen-
lise estrutural das maneiras pelas quais as relagdes sociais influen- te actimulo de evidéncias comprobatérias. Em nossos dias, j4 pa-
ciam, de fato, o pensamento. O que pode levar, em segundo rece estar perfeiramente claro o fato que o antigo método de
lugar, a uma inquiricéo epistemoldégica voltada para o significa- histéria intelectual, orientado para a concepsfo @ priori de que
do desta inter-relacio para o problema da validade. E importan- as mudangas de idéias devessem ser entendidas ao nivel das idéias
te notar que éstes dois tipos de indagacdo nao estdo necessaria- (histétia intelectual imanemic), bloqueava o reconhecimento da
mente ligados, podendo-se aceitar os resultados empiricos sem penetracio do processo social na esfera intelectual. Com a am-
se tirar as conclusdes epistemoldgicas.
O Aspecto Puramente Empirico da Investigacéo da Deter-
minagio Social do Conhecimento. De acérdo com esta classifi- 1 Por “determinagio” nfo nos referimos aqui a uma seqiiéncia
cagéo e nao levando em consideracéo, na medida do possivel, as mecinica de causa-efeito: deixamos em aberto o significado de “de-
terminago”, e somente a investigacio empfrica nos poderA mostrar até
implicagdes epistemoldgicas, apresentaremos a Sociologia do Co-
que ponto 6 estrita a correlagfo entre situagao de vida e processo de
nhecimento como uma teoria da determinacao social ou existen- pensamento, ou qual a gama de variagdes existente na correlagio, (A
cial do pensamento efetivo. Setia bom comegar pela explicagao expressio alem&i “Seinsverbundenes Wissens” proporciona um_ signifi-
do que significa o térmo mais amplo “determinago existencial cadg que deixa em aberto a natureza exata do determinismo.)
290 IpEoLoGia EF Utopia A Socto.octa po CoNHECIMENTO 291
pliagio das provas das falhas de tal assumpcao apriorfstica, um- como dadas, mas que nio devem, em condicio alguma, ser hi-
niimero crescente de casos concretos torna evidente que a) téda postasiadas como “mente de grupo”. Ha que observar, numa
formulagéo de um problema sdmente é possibilitada por uma inspesio mais prdxima, que nado hd apenas um complexo de ex-
experiéncia humana propria efetiva que envolve tal problema; penénea coletiva com wma tendéncia exclusiva, como sustenta-
b) a selegfo da multiplicidade de dados implica um ato de von- va a teorta do folk sprit. Conhece-se o mundo através de mui-
tade do sujeito cognoscente; e c) as forcas que emergem da ¢x- tas orlentagdes diferentes, porque existem muitas tendéneias de
periéncia vivida sao significativas para a diregio que o trata- pensamento simultanea ¢ mituamente contiaditérias (de modo
mento do problema tomard. algum de valor igual), lutande entre si, com suas diferentes in-
Em conexdo com estas investigagdes, tornar-se-d cada vez terpretagdes da caperiéncia “comum’’. Nao se ha de encontrar,
mais claro que as férgas vivas e as atitudes efetivas subjacentes pertanto, a chave déste con{lito no “objeto em si mesmo” (se
As atitudes tedricas nao sfo, de maneira alguma, meiamente de assim lOsse, scria impossivel compreender por que o objeto apa-
natureza individual, vale dizer, néo tém sua origem, em primel- rece cm lantas ieliagdes diferentes), mas nas vdrias ¢ diversas
to lugar, na tomada de consciéncia de seus interésses pelo indivi- expectativas, propdsitos ¢ impulsos que nascem da experiéncia.
duo, no decurso de seu pensar. Antes, emergem dos propdésitos Se, na nossa explicagio, tivermos que nos reportar ao desempe-
coletivos do grupo, subjacentes ao pensamento do individuo, e nho ¢ contradesempenho 'os diferentes impulsos na esfera so-
de cuja visio prescrita éle apenas participa. Neste sentido, tor- cal, uma andlise mais canta mostrard que a causa déste conflito en-
na-se mais claro que nao se pode compreender corretamente tre os imp ‘sos cyneictos deve ser procurada nfio na propria teo-
uma grande parte do pensar e do saber, enquanto nao se levar em tia, mas nesics impulsos variados opostos, enraizados, por seu
consideragZo suas conexdes com a existéncia ou com as implica- turno, na matriz global dos interésses coletivos, Estas divergén-
ges: sociais da vida humana. clas, na aparéncia “‘puramente tedricas”, podem, a luz de uma
Seria impossivel relacionar todos os miultiplos processos andlise sociolégica (que descobre os ocultos passos intermedié-
sociais que, no sentido acima, condicionam e conformamnossas tios entre os impulsos originais a observar e a conclusdo pura-
teorias, e nos confinaremos, portanto, a uns poucos exemplos. mente tedrica), ser reduzidas, em sua maior parte, a diferencas
filoséficas mais fundamentais. Mas estas Wltimas esto, por sua
Podemos encarar a competic¢#o como um dos casos represen- vez, invisivelmente guiadas pelo antagonismo e pela competicao
tativos em que os processos extratedricos afetam a emergéncia
entre grupos conflitantes concretos.
e a diregio do desenvolvimento do conhecimento. A competi-
c%o 2 controla nao apenas a atividade econémica através do me- Para mencionar apenas uma das muitas outras bases pos-
sfveis de existéncia coletiva, das quais podem surgir diferentes
canismo do mercado, nem sdmente o curso dos acontecimentos
interpretacdes do mundo e diferentes formas de conhecimento,
politicos e sociais, mas, igualmente, fornece o impulso motor
podemos indicar o papel desempenhado pela relacio entre ge-
de diversas interpretagdes do mundo que, quando se vem a des-
cobrir seu fundamento social, se revelam como expressdes inte- ragGes diferentemente situadas. Em muitos casos, tal fator in-
lectuais de grupos conflitantes em luta pelo poder. fluencia os principios de selegdo, organizacao e polarizagao das
teorias e pontos-de-vista predominantes em uma dada sociedade,
Na medida em que vemos éstes fundamentos sociais emer- num determinado momento. (A éste ponto é dada uma aten¢ao
girem e se tornarem reconheciveis como fércas invisfveis subya- mais detalhada no ensaio do autor, “Das Problem der Genera-
centes ao conhecimento, compreendemos que pensamentos e tionen”.3) Do conhecimento advindo de nossos estudos sdbre
idéias nao resultam da inspiracdo isolada de grandes génios Mes- competigao e geragdes, concluimos que o que parece ser, do
mo A profunda intuigo do génio estio subjacentes as experién- ponto-de-vista da histéria intelectual imanente, a “dialética in-
clas coletivas histéricas de um grupo, as quais o individuo toma terna” no desenvolvimento das idéias, torna-se, do ponto-de-vis-
ta da Sociologia do Conhecimento, o movimento ritmico na his-
2 Para exemplos concretos, cf, 9 artigo do aulor “Wig Bedeutung
der Konkurrenz im Cebicte des Geistigen”, op, cit.
292 IvgoLocia E Uropra A SociolocIa po CONHECIMENTO 293
téria das idéias enquanto afetadas pela competicao e pela suces- tas (embota, hoje em dia, a noc&o da estabilidade da estrutura
séo das geragdes. categérica das Ciéncias Exatas esteja, em comparacZo com a 1é-
Ao considerar a relagao entre formas de pensamento e for gica da Fisica classica, consideravelmente abalada). Para a his-
mas de sociedade, lembraremos a observacdo de Max Weber 4 tétia das Ciéncias Culturais, entretanto, os estégios anteriores
de que o interésse na sistematizagao pode ser em grande patte nfo sdo tio simplesmente suplantados pelos estdgios posterio-
atribuido a um “background” escoldstico, que o interésse pelo tes, e nao é téo facilmente demonstrdvel que erros anteriores
pensamento ‘“‘sistemdtico” é correlato ao das escolas cientiticas tenham sido subseqtientemente corrigidos. Cada época tem sua
e juridicas de pensamento, e que a origem desta forma orguni- abordagem fundamentalmente nova e seu ponto-de-vista carac-
zadora de pensamento repousa na continuidade das instituicdes teristico, e, consegiientemente, vé o “mesmo” objeto de uma
pedagdgicas. A esta altura deveriamos também mencionar o re- perspectiva nova.
levante empreendimento de Max Scheler,* visando a estabelecer Por conseguinte, a tese de que o processo histérico-social
a telag&o entre as varias formas de pensamento ¢ certos tipos de é de essencial importincia para a maioria dos dominios do co-
grupos que sfio os tinicos em que elas podem surgir e ser ela- nhecimento tem apoio no fato de que podemos observar, quan-
boradas. to A maioria das afirmacées concretas dos séres humanos, quan-
Isto deve bastar para indicar o que se quer dizer com a do e onde surgiram, quando e onde foram formuladas. A histd-
correlagao entre, por um lado, tipos de conhecimento e de idéias tia da arte tem mosttado, bastante conclusivamente, que se pode
€, por outro, os grupos e processos sociais de que sao caracte- definitivamente datar as formas artisticas de acérdo com seu
tisticos, estilo, uma vez que cada forma sé é possivel em condicdes his-
téricas dadas e revela as caracter{sticas de tal época. O que €
A Penetragéo Essencial do Processo Social na ‘‘Perspecti- verdadeito quanto A arte petmanece vdlido, mutatis mutandis,
va’ do Pensamento. Os fatdres existenciais so de importancia quanto ao conhecimento. Assim como na arte podemos datar
meramente periférica no processo social, devem ser encarados, formas particulares com base na sua associacao definida com um
meramente, como condicionando a origem ou o desenvolyimen- perfodo particular da histéria, podemos, no caso do conhecimen-
to fatual de idéias (isto é, sdo éles de relevdncia meramente ge- to, detectar, com crescente exatidao, a perspectiva devida a um
nética), ou penetram na “‘perspectiva” de afirmacdes particula- contexto histérico particular. Mais ainda, podemos determinar,
res concretas? Esta é a questao que ota tentaremos responder. pela utilizagfo da pura anélise da estrutura de pensamento, onde
A génese histdérica e social de uma idéia sdmente seria irrelevan- e quando o mundo se apresentou de tal modo, e somente déste,
te para sua validade ultima se as condicdes temporais e sociais ao sujeito que féz a afirmacdo, e freqiientemente a andlise pode
de sua emer: 4ncia nao tivessem efeito algum sdbre seu contet- prosseguir até que se responda A quest%o mais inclusiva: por
do e forma. Sendo éste o caso, sé se distinguiriam dos perfodos que o mundo se apresentou precisamente de tal modo?
quaisquer da histéria do conhecimento humano pelo fato de, no
petfodo mais remoto, ainda se desconhecerem certas coisas e ain-
Enquanto a afirmativa (pata se citar o caso mais simples)
da existirem certos erros, que foram totalmente corrigidos pelo de que duas vézes dois sfo quatro nfo indica quando, onde e por
conhecimentc posterior. Esta relagdo simples entre um perfodo
quem foi formulada. sempre é possivel, no caso de uma obra
de conhecimento anterior incompleto ¢ um posterior completo de Ciéncias Sociais, dizer se foi inspirada pela “escola histérica”’,
pelo “positivismo” ou pelo “‘marxismo”, e de que estdgio, no
pode ser, em larga medida, apropriada quanto 4s Ciéncias Exa-
desenvolvimento de cada um déstes, ela data. Em afirmativas
déste tipo, podemos falar de uma “‘infiltracdo da posicéo social”
4° Cf, Mix Weber, Wirtschaft und Cesellschaft, op. cit., especial- do investigador nos resultados de seu estudo e da “‘relatividade-
mente a parte referente 4 Sociologia do Dircito. situacional” (‘“Sitwations-gebundenheit”), ou a relacdo destas
afirmativas com a tealidade subjacente.
5 Cf. principalmente scus trabalhos, Die Wissensformem und de
Gesellschaft, Leipzig, 1926, e Die Formen des Wissens und der Bil- Neste sentido, “perspectiva” significa a maneira pela qual
dung, I, Bonn, 1925. se vé um objeto, o que se percebe néle, e como alguém o cons-
294 IpEOLOGIA E UTOPIA A Sociotocia po CoNHECIMENTO 295
tréi em pensamento. A perspectiva é, portanto, algo mais do que litdria, externa e legal Por outro lado, a idéia conservadora de
a determinagdo meramente formal do pensamento. Refere-se, liberdade cra a de um estrato que nao desejava ver quaisquer
também, a elementos qualitativos da estrutura de pensamento, mudangas na ordem externa das coisas, espeiando que os acon-
elementos que devem ser necessariamente negligenciados por uma tecimentos continuassem em sua singularidade tradicional; a fim
Idgica puramente formal. Sao precisamente tais fatéres os res- de sustentar as coisas como ¢stavam, tinham igualmente que des-
ponsaveis pelo fato de que duas pessoas possam — ainda que viar ay questées referentes A liberdade do campa politico exter-
apliquem de forma idéntita as mesmas regras légico-forntais, co- no para o campo nio-politico interno. O fato de que o liberal
mo, por exemplo, a lei da contradic&o ou a fdrmula do silogis- visse apenas um, ¢ o conseryador visse apenas outro lado do con-
mo —~ julgar o mesmo objeto de forma bastante difcrente. eeito e do problema, esté clara e comprovadamente ligado a suas
Dentre os tragos pelos quais se pode caracterizar a perspec- respectivas posigSes na estrutura politica e social.© Em suma,
tiva de uma afirmagSo, e dentre os critérios que nos auxiliarao mesmo na formulagao dos conceitos, o Angulo de visio é guiado
a atribui-la a uma dada épaca ou situac&o, exporemos apenas uns pelos interésses do observador. Isto ¢, 0 pensamento é dirigido
poucos exemplos: a andlise do significado dos conceitos utiliza- de acérdo com as expectativas de um grupo social especffico.
dos; o fendmeno do contraconceito; a auséncia de certos concel- Assim, entre os possiveis dados da experiéncia, cada conceito
tos; a estrutura do aparato categérico; os modelos duminantes incorpora apenas aquéles que, A Juz dos interésses do investiga-
de pensamento; o nivel de abstracdo; ¢ a ontologia pressuposta. dor, seja essencial dominar ¢ abranger. Daf, por exemplo, o con-
Por meio de uns poucos exemplos, pretendemos mostrar, no que ceito cunservador de Valbvgeist ter sido provavelmente formu-
se segue, a aplicabilidade déstes tragos e critérios identificado- lado como um contraconceito em oposic#o ao conceito progres-
res na andlise da perspectiva. Serd4 mostrado, ao mesmo tempo, sista de “espirito da época” (Zeitgeist). A prépria andlise dos
até que ponto a posico social do observador afeta seu modo conceitos em um dado esquema conceptual proporciona a mais
de ver. direta aproximacdo A perspectiva de estratos distintamente si-
Comecaremos com o fato de que a mesma palavra, ou na
tuados.
maioria dos casos o mesmo conceito, significa coisas muito di- A auséncia de certos conceitos freqitentemente indica nao
ferentes quando usados por pessoas diferentemente situadas. apenas a auséncia de certos pontos-de-vista, mas também a au
séncia de um impulso definido para se atingir uma compreen-
Quando, nos primeiros anos do século XIX, um conserva-
so de certos problemas vitais, Assim, por exemplo, o apareci-
dor alem&o do estilo antigo falava de “‘liberdade”, quetia com mento relativamente tardio do conceito de “social” da histéria
isto dizer o direito de cada Estado viver de acérdo com seus pri-
comprova o fato de nio se haver até ento colocado as questées
vilégios (liberdades). Se pertencesse ao movimento protestante implicadas no conceito de “social”, e, da mesma forma de nao
e romdntico-conservador, compreenderia a expressio como “‘li-
existir, até ert*o um aodo de experiéncia definido, denotado
berdade interna’, isto &, 0 direito de cada individuo viver de
pelo conceito de “socia:”.
acérdo com sua personalidade individual. Ambos os grupos pen-
Entretanto, nio sé os conceitos, em seus conteddos concre-
savam em térmos do “conceito qualitativo de liberdade”’ porque
tos, divergem uns dos outros, como também as categorias basi-
entendiam que liberdade significava o direito de manter <4 in-
dividualidade histérica ou {ntima. vas de pensameins podem igualmente divergir.
Assim, por excmplo, o conservadorismo alemao do inicio
Quando um liberal do mesmo perfodo usava o térmo “‘li-
ao século XIX (tiramos a maioria de nossas ilustragdes desta
berdade”, estava pensando exatamente em liberdade déstes pri- época porque ela tem sido, do ponto-de-vista socioldgico, mais
vilégios que ao conservador ao estilo antigo pareciam set as ptd- completamente estudada do que qualquer outra}), ¢ quanto a
prias bases de téda liberdade. A concepcfo liberal era, entaa, haw ese bém oo cor er torino cuntemporaneo tende a usar ca-
uma “‘concepgao igualitaria de liberdade’”, para a qual “sc: tivre”
queria dizer que todos os homens tém os mesmos dircitos fun-
damentais 4 sua disposicfo. A concepeda liberal de liberdade 6 Cf de auto: “Day konservatiwe Denken”, Archiv ftir Sozial-
era a de um grupo que buscava subverter a ordem social nio-igua- svissenschiaft aud Suztalpoluik, vol. 57, pags, GO vo segs.
296 TpEoLoGIA E UTOPIA A Sociorocia po ConHEcIMENTO 297
tegorias morfoldgicas que nio rompem a totalicdade concreta dos torial, das classes deslocadas ¢ do campesinato. O névo cardter
dados da experiéncia, mas, pelo contrério, preservam-na em téda de desenvolvimento cultural e as formas ascendentes de orienta-
qa sua singularidade, Opondo-se 4 abordagem morfoldgica, a aborda- go face ao mundo pertenciam a um modo de vida que nao o
gem analftica, caracteristica dos partidos de esquerda, rompeu cada seu. As formas da ascendente perspectiva de mundo modela-
totalidade concteta a fim de atingir unidades menores, mais gerais, das pelos princfpios da ciéncia natural chegaram a estas classes
que pudessem ser entio recombinadas através da categoria de como se viessem de fora. Na medida em que o intercurso das
causalidade ou de integrago funcional. E nossa tarefa aqui nao fOrcas sociais trouxe para a linha de frente da histéria outros
sé indicar o fato de que pessoas em posicdes sociais diferentes grupos, representando as classes mencionadas acima e expres-
pensam diferentemente, inas tornar inteligiveis as causas de sua sando sua situagiio de vida, os modelos de pensamento opostos,
diferente ordenagio do material das experi€ncias em categorias como, por exemplo, o “organicista” e o “personalista”’, foram
diferentes. Os grupos de tendéncia esquerdista intentam fazer lancados contta o tipo “‘funcional-mecanicista” de pensamento.
algo de ndvo do mundo como é dado, e, por conseguinte, desviam Dessa forma, Stahl, por exemplo, que aparece no 4pice déste de-
o olhar das coisas como estdo, tornam-se abstratos e atomizam senvolvimento, ja era capaz de estabelecer conexdes entte mode-
a situaco dada em seus elementos componentes, a fim de recom- los de pensamento e correntes polfticas. ?
bind-los originalmente. Sdmente aparece configurativa ou mot-
folégicamente aquilo que estamos preparados a aceitar sem maio- Por tras de cada pergunta e tesposta definidas ha de se en-
res questdes e que, fundamentalmente, nao desejamos mudar. Mais contrar, implicita ou explicitamente, um modélo de como o pen-
ainda, pretende-se estabilizar por meio da concepgao configura- samento proveitoso pode ser desenvolvido. Se se pudesse tra-
tiva justamente aquéles elementos que ainda estéo em fluxo e, ao car em detalhe, em cada caso individual, a origem e 0 raio da di-
mesmo tempo, invocar a aprovagfo para o que existe porque ¢ fusio de um determinado modélo de pensamento, descobrirfamos
como é. Tudo isto torna bastante claro a que ponto até mesmo a peculiar afinidade que tem para com a posic¢do social de deter-
as categorias ¢ princfpios de organizacgio abstratos, aparente- minados grupos e sua mancita de éstes interpretarem o mundo.
mente tho distantes da luta politica, t¢m sua origem na natureza Com éstes grupos queremos referir-nos nfo apenas a classes, co-
pragmatica e metatedrica da mente humana e nos recdnditos mais mo o faria um tipo dogmdatico de marxismo, mas também a ge-
tagSes, grupos de stafus, seitas, grupos ocupacionais, escolas, etc.
profundos da psique e da consciéncia. E por isso que escapa a
quest&o falar-se aqui de ilusiio conscientc, no sentido de criar A menos que se preste cuidadosa atencao a grupamentos sociais
déste tipo, altamente diferenciados, e as cotrespondentes dife-
ideologias.
renciagdes de conceitos, categorias e modelos de pensamento, vale
© préxino fator que pode servir para caracterizar a pers- dizer, a menos que se refine o problema da relacdo entre superes-
pectiva de pensamento é o assim chamado modélo de pensa- trutura e infra-estrutura, serd impossivel demonstrar que, cor-
mento; isto € o modélo implicito na mente de uma pessoa, quan- tespondendo 4 riqueza de tipos de conhecimento e perspectivas
do se pée a refletir sSbre um objeto. aparecidos no decorrer da histéria, existem diferenciagdes simi-
E bem sabido que, por exemplo, uma vez formulada a ti- lares na infra-estrututa da sociedade. E claro que nao preten-
pologia de objetos nas Ciéncias Naturais, e que as categorias e demos negar que o mais importante, dentre os gtupamentos e
métodos de pensamento derivados déstes tipos se tornaram mode- unidades sociais mencionados acima, seja a estratificaco de clas-
los, intentou-se resolver todos os problemas em outros campos ses, uma vez que, em ultima andlise, todos os demais grupos so-
da existéncia, incluindo o social, através déste método. (Esta ciais surgem e sao transformados como partes das condigdes mais
tendéncia € representada pela concepcfo mecinico-atomista dos basicas de producdo e dominaciio. Nao obstante, o investigador
fenémenos sociais. ) que, face 4 variedade de tipos de pensamento, tenta situd-los
E importante observar que quando isso aconteceu, como
em todos os casos similares, nem tacos estratos da sociedade se A histéria das teorias do Estado, prineipalmente como as vé
a
orientaram, de saida, para éste modélo unico de pensamento. Oppenheimer, F., em seu System der Soziologte (vol. TI, “Der Staat’”),
Durante éste perfodo histérico nada se ouvia da nobreza terri- é um tesouro de material ilustrativo.
298 Tngotocia £ Uropia ~ C_uoLocia po CONHECIMENTO 299
corretamente, néo pode mais se contentar com o conceito indi- cular imediatamente obtida e a impedir que se coloque a ques-
ferenciado de classe, mas deve considerar as unidades e fatéres tao sdbre se o fato de estar o conhecimento ligado & existéncia
sociais existentes, além dos de classe, que condicionam a posi- nao é inerente A estrutura humana de pensamento em si. Além
fo social, disso, a tendéncia do marxismo a se intimidar com uma formu-
Encontra-se outra caracterfstica da perspectiva através da lagiio geral sociolégica pode muitas vézes ser ligada a uma limi-
investigacao do nivel de abstracdo, além do qual uma dada teo- tagio similar que um dado ponto-de-vista impde a um método
tia no progride, ou do grau em que ela resiste a uma formula- de pensar. Por exemplo, nao se permite a ninguém levantar a
questao de se a “reificagio” (Verdinglichung), tal como foi ela-
(Ho teérica sistematica,
borada por Marx e Lukdcs, é um fenémeno de consciéncia mais
Nunca € por acaso que uma certa teoria deixa, total'ou par- ou menos geral e se a reificacdo capitalista é, meramente, uma
cialmente, de se desenvolver para além de um determinado es- de suas formas particulares. Enquanto esta forte énfase na con-
tégio de relativa abstracfo e oferece resisténcia a que tendéncias cretude ¢ no historicismo surge de uma localizacZo social parti-
posteriores se tornem mais concretas, seja censurando esta cular, a tendéncia oposta, ou seja o vo imecdiato aos mais altos
tendéncia, ou declarando-a irrelevante: Também aqui ¢ significa- dominios de abstragio ¢ de formalizagio, pode levar, como o
tiva a posic¢&o social do pensador. marxismo enfatizou acertadamentc, a um obscurecimento da si-
Pode-se mostrar, precisamente no caso do marxismo e da tuagéo concreta e de scu cardter unico. Isto poderia ser mais
relacfo que mantém com as descobertas da Sciologia do Co- uma vez demonstrado no caso da ‘Sociologia Formal’.
nhecimento, como uma inter-relagio sé pode muitas vézes ser Nao desejamos de forma alguma colocar em questao a le-
formulada numa forma de concretude que é prépria a um pon- gitimidade da Sociologia Formal como um tipo possivel de So-
to-de-vista particular. Pode ser demonstrado, no caso do mar-
ciologia. Quando, entretanto, face 4 tendéncia de introduzir
xismo, que um observador, cuja visdo esteja présa a uma dada
maior concretude na formulacéo de problemas socioldégicos, ela
posicao social, jamais conseguird por si mesmo assinalar os as-
se propde como a unica Sociologia, esté inconscientemente guia-
pectos mais gerais e tedricos, implficitos nas observacdes concre-
da por motivos similares aos que impediam seu precedente his-
tas que realiza, Seria de esperar, por exemplo, que h4 muito
térico, a modo de pensamento burgués-liberal de ultrapassar, em
tempo o marxismo tivesse formulado de maneira mais tedrica as
sua teoria, um modo de observacio abstrato e generalizante.
descobertas fundamentais da Sociologia do Conhecimento con-
Ela se intimida de lidar histérica, concreta e individualmente
cernentes 4 relacfo entre o pensamento humano e as condicdcs
com os problemas da sociedade, com médo de que seus préprios
de existéncia em geral, principalmente porque sua descoberta da antagonismos internos, por exemplo os antagonismos do capi-
teotia da ideologia também implicava pelo menos as prelimina-
talismo, se tornem visfveis. Assemelha-se nisto a crucial dis-
res da Sociologia do Conhecimento. Que implicacaéo jamais pu-
cussin burguesa do problema da liberdade, onde normalmente
desse ser expressa e elaborada tedricamente, e que, no maximo,
se colocava ¢ se coloca o problema apenas tedérica e abstratamen-
apenas foi enunciada parcialmente, deve-se ao fato de que, no
te. E mesmo quando colocada dessa maneira, a questao da liber-
momento concreto, esta relacio sé f&sse percebida no pensa-
dade é& sempre de direitos polfticos, antes que sociais, uma vez
mento do oponente. Além do mais, isto foi provavelmente de-
que se se considerasse a viltima esfera, os fatares de propriedade e
vido a uma relutancia subconsciente em meditar sdbre as impli-
de posic#o de classe, em sua relacio com a ltherdade e a igual-
cagdes de uma percepc%o concretamente formulada, até o ponto
dade, viriam inevitavelmerte a surgir.
em que as formulacGes tedricas latentes nesta percepe&o fdssem
suficientemente claras para produzir um efeito inquietante na Emresumo. a ahordagem de um problema, o nivel em que
posicéo do préptio pensador. Vemos, assim, como um foco es- vem a ser “ormulado, o estdgio de abstrag%o ¢ o estagio de con-
treito impésto por uma determinada posicio e os impulsos di- cretude ane se espera atingir estio todos, ¢ da mesma maneira,
tigidos que governam suas meditacdes tendem a obstruir a for- ligados 4 existéncia social.
mulacfo geral e tedrica destas visdes e a restringir a capacidade Seria finalmente apropriado lidar com o substrato subja-
de abstragio, H4 uma tendéncia a sustentar uma visio parti- cente a todos os modos de pensamento, com suas ontologias
A SocioLociA DO CONHECIMENTO 301
300 IpEOLOGIA © UTOPIA
as varias nacdes do Ocidente, mas também os vdrios estratos
pressupostas e suas diferenciagdes sociais. E precisamente por- sociais destas nacdes, anteriormente mais ou menos isolados, e,
que o substrato ontolégico é fundamentalmente relevante para 0 tinalmente, também os diferentes grupos ocupacionais dentro
pensar e o perceber que nao podemos, em espaco limitado, lidar déstes estratos e os grupos intelectuais neste mundo altamente
adequadamente com os problemas dai sutgidos; reportamo-nos, diferenciado —- todos éles toram agora arrancados do estado au-
pois, a estudos mais elaborados em outro local.§ Aqui basta di- to-suficiente e complacente, no qual se tinham por absolutos, e
zet que, apesar de se justificar o desejo da Filosofia moderna em fotam forcados a manter a si mesmos e as suas idéias, face a in-
elaborar uma “‘ontologia basica”, ¢ perigoso abordar tais proble- vestida destes grupos heterogéneos.
thas ingénuamente, sem primeiro levar em consideragao os te- Mas ccmo desenvolvem esta luta? No que se refere a an-
sultados sugeridos pela Sociologia do Conhecimento. Pois se abor- tagonismos intelectuais, éles normalmente o tazem, afora umas
damos ingénuamente ste problema, o resultado quase inevitd- poucas excegdes, ‘“‘discutindo sem se reconhecerem”; isto é, mes-
vel serd o de, ao invés de obtermos uma auténtica ontologia, ba- mo estando mais ou menos clentes de que a pessoa com quem
sica, tornamo-nos vitimas de uma ontologia acidental arbitra- discutem o assunto representa outro gtupo, e de que é provdvel
tia que o processo histérico casualmente nos possibilite. que suc csttutura imental, como um todo, seja muitas vézes bas-
Estas reflexdes devem ser suficientes, a esta altura, para tante diterente quando se discute algo concreto, falam como se
esclarecer a nocio de que as condigdes de existéncia afetam nfo suas diterengas se confinassem 4 quest&o especifica em pauta, em
sdmente a génese histérica das idéias, mas constituem uma par- tdrno da qual se cristalizou seu desacérdo presente. Desprezam
te essencial dos produtos do pensamento e se fazem sentir em o fato de que seu antagonista difere déles em seu aspecto total e
seu contetido e forma, Os exemplos que acabamos de citar de- nio apenas na opiniao acérca do ponto em discussao.
vem servi para esclarecer a estrutura peculiar ¢ as fungSes da So- Isto indica que hé4 também tipos de intercurso intelectual
ciologia do Conhecimento. entre pessoas heterogéneas. No primeiro, as diferencas na estru-
‘ A Abordagem Especial Caracteristica da Sociologia do Co- tura mental total permanecem obscuramente no fundo, na medi-
‘nhecimento. Duas pessoas, desenvolvendo uma discussao num da em que dizem respeito ao contato entre os participantes. Para
mesmo univetso de discurso —— correspondente &s mesmas con- ambos, a consciéncia se cristaliza em térno da circunstancia con-
digdes histérico-sociais — podem e devem discutir de _maneira creta, © “objeto” tem um significado mais ou menos diferen-
bastante diversa de duas pessoas identificadas com posicdes so- te para cada um dos participantes porque se desenvolve a partir
‘ciais diversas. Estes dois tipos de discussdo, isto ¢, entre par- do conjunto de seus respectivos quadros de referéncia, e, em
‘ticipantes social e intelectualmente homogéneos e entte partici- conseqiiéneia, o significado do objeto na perspectiva da outra
pantes social e intelectualmente heterogéneos, devem ser cla- pessoa permanece, pelo menos em parte, obscuro. Portanto, a
ramente distinguidos. Nao é por acaso que a distinc&o entre Estes “discusséo sem reconhecimento” é um fendmeno inevitdvel da
dois tipos de discussfio foi reconhecida explicitamente como um “época da igualagio”.
ptoblema, nzma época como a nossa. Max Scheler chamou nos- Por outro lado, pode-se abordar os participantes divergen-
so periodo contemporaneo de “época da igualacao” (Zeitalter tes com a intencdo de usar cada ponto tedrico de contato como
des Ausgleiches), 0 que, aplicado a nossos ptoblemas, significa uma ocasido para remover os desentendimentos, avetiguando a
que o nosso mundo é um mundo no qual os grupamentossociats, origem das diferengas. LExtrairemos, assim, os pressupostos va-
‘que até entdo viviam mais ou menos isolados uns dos outros, ridveis implicados nas duas respectivas perspectivas como conse-
cada qual se tendo, e ao seu modo de pensamento, por absolu- quéncias das duas situagdes sociais diferentes. Em tais casos, o
o
tos, esto agora, de uma forma ou de outra, se interpenetrand socidlogo do conhecimento nfo encara seu antagonismo na ma-
mituamente. Nao apenas o Oriente e o Ocidente, nao apenas neira usual, de ac&rdo como a qual se lida diretamente com os
argumentos do outro. Pelo contrario, procura compreendé-lo
489 através da definicgio da perspectiva total, vendo-a como uma fun-
8CE ¢o autor “Das konservative Denken” (loc. cit., pags.
e segs., e pr-cipalmente pag. 494), e pags. 116 e segs., 125 € segs, © cdo de uma determinada posigao social.
217 e segs, Jéste volume,
302 IpgoLocia = T'ropr4
/ Socrotocta po CoNHECIMENTO 303
Devido a &sse procedimento, tem-se acusado o socidlogo do
conhecimento de evitar a questdo real, de nfo se preocupar com Esta perspectiva desligada pode ser adquirida das seguintes
o assunto efetivo em discusséo, mas de buscar, ao invés disso, maneiras: 4) um membro de um grupo deixa sua posicdo social
por tras do assunto imediato de debate, a base total de pensa- (ascendendo a uma classe mais alta, emigrando, etc.}; 6) alte
mento do argitidor, a fim de a revelar como apenas uma dentre tam-se as bases de existéncia de todo um grupo com relacgio a
muitas bases de pensamento e como nio mais do que umapers- suds normas ¢ instituigdes tradicionais; ¥ c) dois ou mais modos
pectiva parcial, Passar por cima das alirmagdes dos oponentes socialmente detcrminados de interpretacdo, dentro de uma mes-
e nao considerar os argumentos efetivos é, em certos casos, legi- ma sociedade, entram em conflito e, criticando um ao outro, se
timo, onde quer que, devido 4 auséncia de uma base comum de tornam miituamente transparentes e cada um estabelece pers-
pensamento, néo haja um problema comum. A Sociologia do pectivas com referéncia ao outro, Resulta dai que uma perspec-
tiva desligada — através da qual se descobrem os contornos dos
Conhecimento busca ultrapassar a “discussio sem reconheci-
modos de pensamento contrastantes — entra na esfera de possi-
mento” dos vdrios antagonistas, assumindo, como scu tema ex-
plicito de investigag’o, a descoberta das origens dos desentendi- bilidade para tédas as diferentes posigdes © passa a ser, mais
tarde, o modo de pensamento reconhecido. ja haviamos indi-
mentos patciais que nunca seriam percebidos pelos disputantes,
cado que a génese social da Sociologia do Conhecimento repou-
devido 4 sua preocupacéo com o assunto imediato do debate. E
sa primariamente na ultima possibilidade mencionada.
supértluo ressaltar que sé se justitica que o socidlogo do conhe-
cimento acompanhe os argumentos até a propria base de pensa- Retacionismo. O que ja foi dito dificilmente deixaria qual-
mento e 4 posigaéo dos disputantes no caso e enquanto exista quer dtivida quanto ao que se tem em mente quando se designa
uma disparidade real entre as perspectivas da discussio, resul- o procedimento da Sociologia do Conhecimento como “relacio-
tando num desentendimento fundamental. Lnquanto a discussdo nal”, Quando o menino camponés urbanizado caracteriza como
procede da mesma base de pensamento se situa dentro do mes- “risticas” certas opiniées sociais, filosdficas ou politicas encon-
mo universo de discurso, sua intervengéo € desnecessdria. Apli- tradas entre scus parentes, éle néo mais questiona tais opinides
cada desnecessariamente, pode-se tornar um meio de desviar a como um participante homogénco, isto é, lidando diretamente
discussAo. com o contetido especifico do que é dito. Antes, as relaciona ‘a
um certo modo de interpretar o mundo que, por sua vez, estd,
A Aguisicgao de Perspectiva como uma Precondigdo para 4 em Ultima andlise, relacionado a uma certa estrutura social que
Sociologia do Conbecimento. Para um filho de camponés que constitui a sua situagdo. Eis af um exemplo do procedimento
eresceu dentro dos estreitos limites de sua vila e que passa a vida “relacional”. Abordaremos mais adiante o fato de que, quando
inteira no lugar onde nasceu, o modo de pensar e de talar carac- tratamos desta forma com assergdes, nao estd implicito que elas
teristico a esta aldeia é algo que éle toma inteiramente como sejam falsas. A Sociologia do Conhecimento sémente supera
dado. Mas para o jovem camponés que vai para a cidade e se aquilo que, de uma forma téo crua, as pessoas fregiientemente
adapta gradativamente 4 nova vida, o modo rural de viver e fazem hoje em dia, na medida em que consciente ou sistema-
pensai deixa de ser algo a ser tomado como dado. Conquistou ticamente subordina todos os fenémenos intelectuais, sem ex-
um certo desligamento déste, e agora distingue, talvez bastante cecao, a seguinte questiio: em conexfo com que estrutura social
conscientemente, entre modos “rural’’ e “urbano” de pensamen- surgiram ¢ sdo vdlidos? Nao se deve confundir o relacionar
to e de idéias. Ha nesta distin¢Zo os primeiros indicios daquela idéias individuais a estrutura total de um dado objeto histdrico-
-social com umrelativismo filoséfico que negue a validade de
aptoximagdo que a Sociologia do Conhecimento procura desen-
quaisquer padrdes e da exist€ncia de ordem no mundo. Assim
volver detalhadamente. O que dentro de um dado grupo se
como o fato de téda mensuragéo no espago depender da natu-
aceita como absoluto aparece, a quem estd de fora, como con-
reza da luz nfo significa que nossas medidas sao arbitrdrias, mas
dicionado pela situacéo do grupo e é reconhecido como parcial
(no caso acima, como “rural”). Este tipo de conhecimento pres-
supde uma perspectiva mais desligada. a Um bom exvemplo é fornecido por Karl Renner, em Die Rechts-
institute des Privatiechts (J, C, B. Mohr, Tubingen, 1929}.
304 IpgeoLocia & Urorra A SocioLocia po CONHECIMENTO 305
apenas que somente sao vdlidas em relagdo 4 natureza da Juz, da to completa e profunda delimita, tanto em contetido quanto em
mesma forma s¢ aplica a nossas argumentagdes nao o relativis- estrutura, a viséo a ser analisada. Em outras palavras, tenta nado
mo, no sentido de arbitrariedade, mas o reluciouisio Relacio- apenas estabelecer a existéncia da relagd0o, mas, ao mesmo tem-
nismo nao significa que nao haja critérios de veidade e érro nu- po, particularizar seu alcance e a extensdo de sua validade. As
ma discussao. Insiste, entretanto, no lato de que é da natureza implicagdes déste fato serio, a seguir, desenvolvidas em maio-
de certas afirmativas a impossibilidade de se as enunciar de mo- res detalhes.
do absoluto, mas apenas em térmos da perspectiva de uma dada O que a Sociologia do Conhecimento intenta com sua ané-
situagao. lise foi claramente exposto em nosso exemplo do jovem campo-
Particularizagao. Tendo descrito o processo relacional, tal nés. A descoberta e a identificagfo de seu anterior modo de
como é concebido pela Sociologia do Conhecimento, inevitivel- pensamento como “rural”, em contraste com o “urbano”, j4 en-
“mente se cc.oca a pergunta: 0 que nos pode garantir a validade volvem a nac&o de que as perspectivas diferentes nao sao parti-
de uma afirmativa que nfo conheceriamos se nfo féssemos ca- culares sOmente por pressupor esferas diferentes de visio e di-
pazes de relaciond-la ao ponto-de-vista do enunciador? Dizemos ferentes setores da realidade total, mas, igualmente, porque os
alguma coisa a respeito da verdade ou falsidade de uma afitma- interésses e os podéres de percep¢do das diferentes perspectivas
¢do quando demonstrarmos que deve ser imputada ao liberalis- estéo condicionados pelas situagdes sociais nas quais surgiram e
mo ou ao marxismo? para as quais sao relevantes.
A esta questio podem ser dadas trés respostas: J4 nesse nivel o processo relacional tence a se tornar um
a) Pode-se dizer que se nega a validade absoluta de uma processo particularizante, pois nao se est4 somente relacionando
afirmagao quando ¢ demonstrada sua relago estrutural a uina a afirmativa a um ponto-de-vista, mas se est4, ao fazé-lo, res-
dada situagao social. Neste sentido, ha, de fac, sa Sociologia tringindo sua pretensdo de validade, antes absoluta, a um Ambi-
do Conhecimento e na teoria da ideologia uma corrente que acei- to mais estreito.
‘ta a demonstracio déste tipo de relagio como uma refutagio Uma Sociologia do Conhecimento totalmente desenvolvida
‘da afirmativa oponente, ¢ que usatia tal método como um re- segue a mesma abordagem por nés ilustrada acima com o caso
‘curso para anular a validade de tédas as afirmacécs. do jovem :amponés: apenas o faz com um método deliberado.
: 5) Pode haver outra resposta, em oposigdo a esta, ou seja, Com o auxilio de uma andlise da perspectiva, consistentemente
a de que as imputagdes, estabelecidas pela Sociologia do Conhe- elaborada, a particularizagio adquite um instrumento orientador
cimento, entre uma afirmagdo e seu enunciador nada nos dizem eum cohjunto de critérios para tratat dos problemas de imputa-
com referéncia ao valor de verdade da afirmacio, uma vez que sao. © alcance e grau de compreensdo de cada um déstes vé-
a maneira pela qual ela se origina nfio afeta sua validade. O fato tios pontos-de-vista tornam-se mensurdveis e delimitaveis atra-
de uma afirmacao ser liberal ou conservadora nao nos da, em si vés de seu aparato categérico e da variedade de significados que
ou por si mesmo, nenhuma indicacfo quanto a sua cortecdo. cada um apresenta. A orientacZo para certos significados e va-
léres, inerentes a uma dada posi¢Ho social (o modo de ver e a
c) 4 uma terceira forma possivel de julgar o valor das atitude condicionados pelos propésitos coletivos de um grupo),
afirmagées feitas pelo socidlogo do conhecimento, a qual repre-
e as razdes concretas das diferentes perspectivas que a mesmasi-
senta o nosso ponto-de-vista. Difere da primeira vis#o por mos- tuacdo apresenta para as diferentes posicdes, tornam-se, assim,
trar que a mera demonstragio e identificagdo fatuais da posi¢Ho
ainda mais determindveis, inteligiveis e suscetiveis de estudo me-
‘social do enunciador ainda nada nos diz quanto ao valor de ver- tédico, gracas ao aperfeigoamento da Sociologia do Conhe-
dade de sua afirmativa. Implica, apenas, a suspeita de que esta
cimento. 1°
afirmacao paderia representar meramente uma visdo parcial. Em
oposicao 4 segunda alternativa, sustenta que seria incorreto en-
carar a Sociologia do Conhecimento como dando nfo mais que 10 Para maiores detalhes, cf. o tratamento da relagdo entre teorla
uma descrigio das condigdes efetivas das quais surge a afirma- e pratica, supra, Parte III, onde pretendemos desenvolver esta anilise
tiva (génese fatual). Téda a andlise sociolégica do conhecimen- socioligica da perspectiva,
306 IpEOLOGIA E UTOPIA A SocioLocia po CoNHECIMENTO 307
Com os refinamentos metodoldgicos crescentes da Sociolo- desinteressada de determinadas relacSes concretas, sem distor-
gia do Conhecimento, a determinagao da particularidade de uma ges oriundas de preconceitos tedricos. Todavia, uma vez que
perspectiva torna-se um fndice cultural e intelectual da posigao as relagdes fundamentais entre as situacdes sociais e os aspectos
do grupo em questéo. A Sociologia do Conhecimento avanga, correspondentes estéo fidedignamente estabelecidas, nada nos
por intermédio da particularizacio, mais um passo em relacdo resta senéo devotarmo-nos a dar franca relevancia As valoracdes
A anterior determinacio dos fatos, 4 qual se limita o mero rela- que delas decorrem. Quem quer que tenha condicdes de captar
cionismo. Cada passo analitico empreendido no espirito da So- a interconexéo dos problemas que surgem, inevitavelmente, da
ciologia do Conhecimento chega a um ponto em que esta se interpretagéo de dados empfricos, e quem, ao mesmo tempo, nio
torna mais que uma descric¢io sociolégica de tatos que nos in- esteja ofuscado pela complexidade da especializacgio no ensino
formam como certas visdes se originaram de um dado mlieu; moderno — a qual muitas vézes impede um acesso direto aos
ela passa a ser igualmente umacritica, pela redefiniciio do alcan- problemas — deve ser notado que os fatos apresentados na seco
ce e limites da perspectiva implicita em determinadas afirmati- denominada Particularizagéo so, por sua prépria natureza, di-
vas. Neste sentido, as andlises caracteristicas da Sociologia do ficeis de serem aceitos como meros fatos. Fles transcendem o
Conhecimento nfo sao de modo algumirrelevantes para a deter- puro fato ¢ exigem maior reflexdo epistemoldgica. Temos, pot
minago da validade de uma afirmacio; mas, por outro lado, um lado, 0 puro fato de que, quando se assinala, por meio da
tais andlises, por si sds, nao revelam completamente a verdade, Sociologia do Conhecimento, uma relacdo entre uma afirmativa
porque a mera delimitagao das petspectivas nio & de modo al- © umasituagdo, cxiste, contida na prdpria intengio déste proce-
gum um substitutivo para a discussio direta ¢ imediata dos pon- dimento, a tendéncia para ‘“‘particularizar” sua validade. Fe
tos-de-vista divergentes ou para o cxame directo dos fatos. A nomenoldgicamente, pode-se tomar conhecimento déste fato sem
fungio das descobertas da Sociologia do Conhecimento esta, ¢ se questionar a pretensiio de validade néle implicita, Mas, por
isto alé agora nfo foi compreendido claramente, entic, de um outro lado, o fata posterior de que a posigio do observador in-
lado, a irrelevancia para o estabelecimento da verdade c, do ou- fluencia os resultados do pensamento, e o fato (intencional-
tro, a total adequacao para determind-la. Tal pode ser demons- mente tratado por nés cm maiores detalhes) de que a validade
trado por uma cuidadosa andlise da intenciio original das afir- parcial de uma dada per ,ectiva é perfeitamente determindvel,
magdes singulares da Sociologia do Conhecimento e pela natu- devem levar-nos, mais cedo ou mais tarde, a levantar a questdo
reza de suas descobertas. Uma andlise baseada na Sociologia de da releva: ia déste problema para a epistemologia,
Conhecimento é 0 primeiro passo preparatério que conduz A dis-
Norsa opinido, pois, nado é que a Sociologia do Conhecimen-
cussao direta, numa época ciente da heterogencidade de seus in-
to ird, por sua prépria natureza, superar a inquiric#o epistemo-
terésses e da desunidade de suas bases de pensamento, ¢poca que
Idgica e nooldgica, mas, pelo contrdrio, que ela tem feito certas
busca atingir essa unidade num nivel mais elevado.
descobertas que possuem uma relevancia mais do que meramen-
te fatual e que nao podemser tratadas adequadamente antes que
b) As Consegtiéncias Epistemoldgicas da Sociologia do sejam revistos alguns dos preconceitos e concepgdes da epistemo-
Conhecimenio
logia contempordnea. Descobrimos, no fato de sempre atribuir-
Sustentdvamos, no pardgrafo inicial déste capitulo, que era mos a afirmativas particulares uma validade sdmente parcial,
possivel apresentar a Sociologia do Conhecimento como uma aquéle elemento névo que nos impele a rever os pressupostos
teoria empirica das relagSes efetivas do conhecimento coma si- fundamentais da epistemologia contemporfnea. Estamos aqui
tuagHo social sem levantar quaisquer problemas epistemoldgicos. lidando com um caso em que a pura determinacdo de um fato
Partindo de tal assumpcao, todos os problemas epistemoldgicos (o fato da parcialidade de uma perspectiva, demonstrdvel em
foram evitados ou colocados num segundo p.ano. E possivel afirmagdes concretas) pode tornar-se relevante para a determi-
tal reserva de nossa parte, e é mesmo desejavel tal isolamento nagdo da validade de uma proposicéo, e em que a natureza da
artificial de um conjunto puramente abstrato de problemas, na génese de uma afirmativa pode originar um significado (wo eine
medida em que nosso objetivo seja sémente o de uma andlise Genesis Sinngenests zu sein vermag). Isto cria, para se dizer o
308 IpEoLocia £ Uropria
A SocIoLociA pO CONHECIMENTO 309
minimo, um obstdéculo para a construcdo de uma esfera de sali-
dade na qual os critérios de verdade sao independentes das ori- implicita no préptio problema da Sociologia do Conhecimento.
gens. Devemos antes aduzir aquéles argumentos que enfraquecem ou
Serd i: ossfvel, em térmos dos pressupostos dominantes pelo menos colocam em questo a autonomia absoluta da Epis-
na Filosofia itual, utilizar esta nova visio na epistemologia, por temologia quanto 4s ciéncias especificas, e sua primazia sdbre
estar a teoria moderna de conhecimento baseada na suposicao de estas.
que a mera descoberta de fatos n@o tem relevancia alguma para Epistemologia e Créncias Espectficas, Verifica-se uma du-
‘a validade. Sob a sang&o déste artigo de fé, qualquer enriqueci pla telagdéo entre a Epistemologia e as ciéncias especificas. A
mento de conhecimento nascido da pesquisa concreta, que — primeira, de acétdo com suas aspiracSes construtivas, é funda-
‘encarado de um ponto-de-vista mais amplo — ouse <brir mental para tédas as ciéncias especificas, uma vez que fornece
derages mais fundamentais, é estigmatizado com o térmo “tc as jus.ificativas bdsicas para os tipos de conhecimento e as con-
ciologismo”. Uma vez que se decide, e se eleva ao dominio do cepgGes de verdade e correc#o em que tais ciéncias se apdiam,
a priori, que nada que tenha relevancia para a validade de afir- em seus métodos concretos de procedimento, e isto afeta suas
magées pode surgir do mundo de fatos empiricos, tornamo-ncs descobertas. Entretanto, isto no altera o fato de que téda teo-
cegos & observacao de que éste a priori mesmo era, orlginalmen- tia de conhecimento é, ela mesma, influenciada pela forma assu-
te, uma hipostasia prematura de uma inter-relacdo fatual, derivada mida na época pela ciéncia, ssmente da qual pode obter sua con-
de um tipo -:pecifico de afirmativa e formulada, apressadamenc, cepcdo da natureza de conhecimento. Em principio, sem divi-
como axiom. epistemoldgico. Com a paz de espfrito provenien- da, ela proclama ser a base de téda ciéncia, mas, de fato, é de-
te da premissa @ priori de que a Epistemologia independe das terminada pela condisao da ciéncia em qualquer época dada. O
ciéncias especificas “empiricas”, a mente se fecha, de uma vez problema torna-se, assim, mais diffcil, pelo fato de que os pré-
por tédas, 4 percepedo que um empirismo mais amplo poderia priog princfpios, & luz dos quais se vai criticar o conhecimento,
itrazer. © resultado é que se deixa de ver que esta teoria de aparecem social e histdricamente condicionados. Por conseguin-
auto-suficiéncia, esta atitude de autopreservacio, no serve a te, sua aplicag&o é limitada a perfodos histdricos dados e aos ti-
nenhum outro propésito que o de baluarte para um certo tipo pos especfficos de conhecimento ent&o prevalecentes.
\de Epistemologia académica que, em scus ultimos estdgios, ten- Uma vez que tais inter-relagSes sdo claramente reconheci-
ta preservar-se do colapso que poderia resultar de um empitis- das, nao se pode mais sustentar a ctenca de que a Epistemolo-
mo mais avangado, Os defensores desta visio antiquada menos- gia e a Noologia, devido A sua justificdvel pretensdo de desem-
prezam o fato de que, dessa forma, estéo perpetuando nao a penharem funcdes de fundamento, devam desenvolver-se au-
Epistemologia como tal, que estariam preservando de uma revi- ténoma e independentemente do progresso das ciéncias especi-
so pelas ciéncias individuais, mas, antes, meramente um tipo ficas, e de que nfo estejam sujeitas a setem basicamente modifi-
especifico de Epistemologia, cuja singularidade consiste, apenas, cadas por estas. Consegiientemente, somos fotcados a reconhe-
no fato de ter éstado anteriormente em conflito com um estd- cet que sé é possivel um desenvolvimento global da Epistemolo-
gio mais remoto de um empirismo mais estreitamente concebido. gia e da Noologia se concebermos sua relacio com as ciéncias es-
Estabilizou, ent&o, a concepcao de conhecimento derivada de ape- pecificas da seguinte maneira:
nas um segmento especifico da realidade e que representava tao-sé Novas formas de conhecimento surgem, em tltima andli-
uma das muitas variedades possiveis de conhecimento. se, das condicdes da vida coletiva e nao dependem, para sua
A fim de descobrir onde a Sociologia do Conhe-iments 20s emergéncia, da demonstracHo anterior de sua possibilidade por
pode levar, devemos mais uma vez nos reportar 20 problema uma teoria do conhecimento; elas nao necessitam, portanto, de
da alegada primazia da Epistemologia sdbre as ciéncias espect- set primeiro legitimadas pot uma Epistemologia. A relacdo é,
ficas. Tendo iniciado a discussio do problema com um exame na realidade, a inversa: o desenvolvimento das teorias de conhe-
critico, estaremos em condigdes de formular, pelo menos esque- cimento cientifico nasce da pteocupaco com os dados empfricos
maticamente, uma apresentagio positiva da Epistemologia ja ea sorte das primeiras varia com a dos ultimos. As revolucdes
na Metodologia e na Epistemologia so sempre conseqiiéncias ¢
310 IpgoLocia £ Uropia A SocioLocia po CoNHECIMENTO 311
tepercusses das revolugdes nos procedimentos empiricos ime- pensamento que conseguimos estabelecer no curso da historia,
diatos para se adquirir conhecimento. Sdmente através de um Podemos agora examinar até que ponto é verdade que as Epis-
recurso constante ao procedimento das ciéncias empfricas espe- temologias e Noologias até aqui dominantes fornecem apenas um
cificas podem os fundamentos epistemoldgicos tornar-se suficien- fundamento especffico para um unico tipo de conhecimento.
temente flexiveis e extensos para nao sdmente sancionar as pre-
tensdes das formas mais antigas de conhecimento (sua finali-
dade original) mas, igualmente, dar 1¢espaldo as formas mais 3. A DEMONSTRAGAO DA NATUREZA PARCIAL DA
tecentes. Esta situacHo peculiar é caracterfstica de todas as dis- EPISTEMOLOGIA TRADICIONAL
ciplinas filosdficas e teéricas. Sua estrutura é mais claramente
perceptivel na Filosofia do Direito que pretende ser o juiz e cri
a) A Orientagaéo Para a Ciéncia Natural como um Modé-
tico do Direito positivo, mas que, na maioria dos casos, nfo € lo de Pensamento. A particulandade da teoria do conhecimento
efetivamente mais que a formulacio post facto e a justificacio predominante hoje em dia é, agora, claramente demonstravel pe-
dos princfpios do Direito positivo. lo fito de terem sido escolhidas as Ciéncias Naturais como um
Ao se dizer isto, nfo se esté negando a importancia da Epis- ideal ao qual todo o conhecimento devesse aspirar. Sdmente
temologia ou da Filosofia como tais. As indagagSes bdsicas que porque a ciéncia natural, principalmente em suas fases quantifi-
empreendem sfio indispensdveis e, na verdade, quem atacasse a cdveis, pode ser amplamente destacada da perspectiva histdrico-
Epistemologia e a Filosofia em térmos tedricos nao podetia evi- -social do investigador, é que foi elaborado um ideal de conheci-
taro emprégo de princfpios teéricos. E claro que tal ataque mento verdadeiro tal que tadas as tentativas para se atingir um
teérico, justamente na medida em que penctrasse cm aspectos tipo de conhecimento que visasse 4 compreensio de qualidade.
fundamentais, seria, em si mesmo, uma preocupacdo filosdfica. séo consideradas métodos de valor inferior, Pois a qualidade
A cada forma fatual de conhecimento corresponde um funda- contém elementos mais ou menos entrelagados com a concepcio
mento tedrico. Esta funcao bdsica da teoria, a ser entendida de mundo (Weltauschauung) do sujeito cognoscente. No mo-
num sentido estrutural, jamais deve ser desvirtuada para mento em que as férgas histdrico-sociais colocam outros tipos de
dar
uma certeza 4 priori a descobertas particulares. Se assim mal conhecimento no centro de debate, torna-se necessdrio rever as
utilizada, iria frustrar o progresso da ciéncia ¢ conduviria ao nito- premissas antigas que foram, se nfo exclusivamente, pelo menos
-aproveitamento, em vittude das certezas a priori, de visdes em grande parte formuladas para o entendimento e justificacio
de-
tivadas de observacdes empiricas. Os erros e a parcialidade
nas das Ciéncias Naturais. Exatamente como Kant uma vez coloca-
bases tedricas da ciéncia devem ser continuamente revistos aA ta os fundamentos da Epistemologia moderna indagando a res-
luz dos novos desenvolvimentos nas atividades cientificas ime- peito das Ciéncias Naturais ja existentes, “Como sao posstveis?”,
diatas. Nao se deve permitir que a luz lancada, pelo ndvo co- devemos fazer hoje em dia a mesma pergunta com referéncia ao
nhecimento fatual, sébre o fundamento tedrico scja obscurecida tipo de conhecimento que busca o entendimento qualitativo ¢
porpossiveis obstéculos ao pensamento, derivados da teoria. tende, pelo menos, a afetar ttda a questo. Devemos, além dis-
Des-
cobrimos, mediante o procedimento particularizante da Socio- so, indagar como ¢ em que sentido podemos chegar 4 verdade
logia do Conhecimento, que a Epistemologia antiga esta
corre- por meio déste tipo de conhecimento.
lacionada com um modo’ particular de pensamento, Este b) A Relagdo entre os Critérios de Verdade e a Situacio
é um
exemplo da possibilidade de estender nosso campo de visio, Historico-Social. Estamos aqui em face-de uma conexdo ainda
per-
mitindo-se as comprovacdes empiricas recentemente descoher mais profundamente enraizada entre a Epistemologia, em suas
-
tas lancar nova luz sdbre nossos principios tedricas. Fistamos variedades histéricas concretas, ¢ a ‘“‘situagdo existencial” cor-
assim implicitamente convocados a procurar um fundamento epis- respondente, A teoria do conhecimento assume das condic