Você está na página 1de 19
HERDER (1744-1803) Joxann Gorrrrtep Herper nasceu em 1744 numa cidadezinha da Prussia Oriental: Nohrungen. Depois de uma infancia luterana, fre- quentou a Universidade de Kénisberg, onde assistiu as licdes de Kant sobre filosofia; as ideias de Kant sobre a influéncia dos factores clima- téricos e geogtaficos no desenvolvimento humano também o afectaram. Em 1767 foi nomeado pastor de duas das igtejas mais importantes de Riga, cargo de que se demitiu em 1769. Passou algum tempo em Franca, 42 A Interpretagiio do Processo Histérico para de novo regressar 4 Alemanha ¢ ai se tornar o capelao do conde de Schaumburg-Lippe em Biickeburg. Aqui se encontrou com Geethe, a amizade que dai resultou foi de profundo significado para a obra dos dois homens. Em 1776 foi para Weimar, onde ocupou altos cargos religiosos as ordens do duque Carlos Augusto. Morren em 1803. Herder escreveu uma série de ensaios e livros sobre uma grande variedade de assuntos — histéria, teologia, literatura, linguistica — dos guais alguns dos mais conhecidos, exceptuadas as suas Ideen zur Philo- sophie der Geschischte der Menschheit (1784-91), sio Von Deutscher Art und Kunst (ensaios sobre Shakespeare ¢ poesia antiga, 1773), Volkslieder, (uma colectinea de poesia popular, 1779), e Gott (conversa sobre Espinoza, 1887). Dois dos seus ultimos escritos eram ataques mordazes 4 filosofia de Kant, que ele nunca compreendeu bem ¢ que considerava totalmente errada. Herder foi um homem apaixonado ¢ inquieto, insatisfeito tanto com as suas proptias realizagdes como com a época em que viveu. No entanto, as suas ideias tiveram uma importincia enorme, especialmente em conexfio com o desenvolvimento do movimento romantico: pot exemplo, 2 sua crenga de que a literatura duma nacio deve ser verda- deira para com as tradicdes ¢ 0 cardcter intimo da mesma nacao, ¢ a sua atitude para com a natureza. Mas foi talvez com a sua concepgio de histéria que cle mais contribuiu para a formacio do pensamento roman- tico. Isto implicava uma ruptura com © pressuposto de que o pensa- mento € 0 comportamento humanos podem interpretar-se como sendo conformes a um padrio uniforme, ao longo de periodos histéricos dife- rentes; e implicava também a tejeigio da pratica de julgar idades pas- sadas mediante pontos de vista contemporincos, sejam eles morais ou culturais. O pensamento histético de Herder esta no seu todo impreg- nado da conviccio de que a caractetistica mais marcante da historia € a variedade ¢ a individudlidade apresentadas pelas diferentes nacdes. Deste modo, € errado discutir a histérie como se ela fosse a manifes- tagio de certas caracteristicas da natureza humana; nem ela deveré set essencialmente encarada como a exposigao de ligdes a aprendét ¢ ertos a evitar, tal como-o sugetem alguns autores do Iluminismo, se bem que Herder nio fosse avesso a consideri-la uma «escola», no sentido em que a contemplagio das realizagdes € criagdes do passado podem inspirar os homens das épocas posteriores a lutarem pelas formas espe- ciais de perfeigdo que sto capazes de aleancar. Os excertos que se seguem foram escolhidos para ilustrar algumas das ideias principais de Herder: a énfase que dé & importancia dos conceitos de caracter nacional ¢ de meio ambiente ao descrever e inter- ptetar 2 evolugio € a mutacio histéricas; a sua insisténcia na. impar- cialidade e na compreens%o do historiador; a sua crenca nas leis de cres- Herner / Ideias para a Filosofia da Historia 43 cimento e decadéncia que presidem & evolugio do «organismo» nacio- nal; o ambito e a catolicidade da sua apreciagao das diferentes formas culturais; e, finalmente, a necessidade que ele vé de os homens obser- varem os limites impostos pelas situagdes e pelas circunstancias his- téricas. a Ideias para a Filosofia da Histéria da Humanidade (') A tei fundamental da Histéria. — Qual a lei fundamental que obser- vamos em todos os grandes fendmenos da Histéria? A mim patece-me ser esta: gue por toda a parte, na Terra, acontece tdo quanto nela pode acon- vecer, em parte de acordo com a situagao e as necessidades. do lugar, em parte de acordo com as circunstincias ¢ as condigdes da época, em parte de acordo com 0 cardcter nato ou adguirido dos povos. Ponde forgas vivas humanas em determinadas relagdes de lugar e tempo sobre a Terra, e produzir-se-ao todas as transformagées da histéria humana. Aqué cristalizam reinos ¢ estados, ali dissolvem-se ¢ assumem outras formas; aqui, duma tribo de némadas, surge uma Babilénia; ali, dum povo apertado num lito- ral, nasce uma ‘Tio; aqui forma-se em Africa um Egipto, ali, no deserto da Ardbia, surge um Estado judaico, B tudo isto numa rica parte do mundo, em proximidade vizinha uns dos outros. $6 tempos, lugares, catacteres nacionais —em resumo, a acgio combinada de forgas vivas na sua mais especifica individualidade € que decidem de todos os acon- tecimentos que ocorrem no reino dos homens, tal como decidem de todos os fenédmenos da natureza. Coloquemos esta lei predominante da ctiagao & luz que Ihe é devida 1. As forgas vias do homem sto as molas da histéria humana, & como © homem tem a sua origem a partir de, ¢ dentro de uma raga, a sua for- magio, educagio e modo de pensar sio desde logo genéticos. Dai aqueles caracteres nacionais especificos que, profundamente gravados @) Esta sclecgio compreende o cap. VI, ine ‘XII, extractos do cap. VIL, Livro XIII, e 2 Introdugio € partes dos caps. I’¢ V, Livro XV, da obra de Herder «deen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit». 44 A Interpretagéio do Processo Histérico nos povos mais antigos, se manifesiam inequivocamente em todas as suas tealizagdes sobre a Terra. Tal como a agua de uma nascente recebe do solo donde brota a sua composig&o, as suas qualidades actuantes © seu sabor, assim o antigo caracter dos povos proveio de tracos raciais, do clima, do tipo de vida e da educagio, das ocupagées primitivas ¢ das acgdes peculiares a cada um desses povos. Os costumes dos ante- passados enraizaram-se profundamente e¢ tornaram-se o protdtipo intimo da raga. Sitva como exemplo a forma de pensar dos Judeus, que todos conhecemos bem dos seus livros ¢ dos seus feitos: na terra dos antepassados, como no meio de outras nacdes, eles permaneceram sempre 0 que eram, e até mesmo quando misturados com outros povos & possivel distingui-los através de varias geracSes. © mesmo aconteceu e acontece com todos os povos da antiguidade: Egipcios, Chineses, Atabes, Hindus, etc. Quanto mais segregados viveram ¢ até mesmo quanto mais oprimidos, tanto mais firme se fez o seu cardcter; de tal forma que, se cada uma dessas nagdes tivesse ficado no seu ambiente, a Terra se poderia considerar um jardim, onde cada planta nacional humana floresceria, aqui uma, acolé outra, com a sua prépria forma e natureza e onde cada espécie animal, aqui uma, acolé outra, seguiia a sua evolugio, de acordo com os seus instintos e carécter. Como, porém, os homens nao sio plantas fitmemente enraizadas, puderam ¢ tiveram, de, com 0 tempo, mercé frequentes vezes de duros acasos como a fome, os tremores de terra, a guerra, etc. — mudar de lugar e estabelecer-se noutra regio mais ou menos diferente. E, emhora com obstinagdo’ quase igual ao instinto animal eles permanecessem ape- gados aos costumes dos seus antepassados e dessem mesmo as novas montanhas, rios, cidades e instituigdes nomes da sua primitiva patria, apesat disso, néo conseguiram continuar eternamente idénticos em todos os aspectos, sempre que se verificou uma grande alteracio de clima ¢ de solo. Aqui o povo transplantado continuow a fazer um vespeiro ou um formigueiro & sua propria maneira, A construgdo surgiu de ideias da terra origindria e de ideias do novo local. A isto costuma chamar-se a florescéncia juvenil dos povos. Assim se insta- Jaram os Fenicios na costa mediterranea, quando se tetiraram do Mar Vermelho; assim pretendeu Moisés instalar os Israelitas; assim acon- teceu com vatios povos asidticos; pois quase todos os poves da Terra migraram pelo menos wma vex, mais cedo ou mais tarde, por-mais ou por menos tempo. Ii facil de supor que neste proceso muito dependeu da altura em que essa migragio se deu, das circunsténcias que a provo- caram, da distancia a percorrer, do grau de cultura do povo na altura da sua deslocagao, das afinidades ou divergéncias que encontrou no seu novo pais, etc. E tio complicado proceder ao balango histérico, mesmo de povos nao mesclados, devido j4 a causas geograficas ¢ poli- Heeper / Ideias para a Filosofia da Historia 45 ticas, que se torna dificil a um espitito livre de hipoteses nao perder o fio 4 meada; muito mais facilmente o perde quem mostrar preferéncia por uma determinada raga de povos e desprezar tudo o mais que nio Ihe diga respeito, O historiador da humanidade, 4 semelhanga do ctiador da nossa espécie ou do génio da Terra, deve saber ver com olhos imparciais ¢ julgar sem paixto. O naturalista que queira conhe- cer ¢ ordenar todas as classes dos reinos que estuda, vota igual interesse rosa, ao cardo, 4 doninha, a preguiga ou ao clefante; ¢ 0 objecto da sua investigagio mais atenta é aquele que mais ensinamentos lhe pode fornecer. Ora a natureza deu a Terra inteita aos homens, seus filhos, ¢ nela decidiu que brotasse tudo quanto pudesse brotar segundo © local, © tempo e as forgas activas. Tudo quanto pode existir, existe; tudo quanto pode produzir-se, é produzido; se nio hoje, amanha. O ano da natureza ¢ longo e a flot das suas plantas € tho vatiada como as préprias plantas e como os clementos que 2s sustentam... 2. Se, portanto, a formag%o de um teino depende primordialmente do tempo e do lugar em que nasce, das partes gue o compiem e das circunstincias exteriores que 0 rodearam, vetnos entio que em grande parte o destino desse reino depende destes factores, Uma monarquia constituida por ndmadas, cujo sistema politico € a continuagio da sua forma de vida, dificilmente teré uma longa duragio; destruiré ¢ subjugard, até ser por sua vez destruida: a tomada da capital do reino ¢ muitas vezes a morte de um tei é 0 bastante para fazer cessar os seus actos de pilhagem. Assim aconteceu com a Babildnia e com Ninive, com Petsépolis ¢ com Ecbitana, ¢ assim acontece ainda com a Pérsia. O império dos Mongéis na India esta quase a desaparecer e 0 dos Turcos desaparecera, se con- tnuarem a set Caldeus, isto ¢, conquistadores esttangeiros, ¢ nado esta- belecerem o seu governo auma base mais moral. Pode a arvore chegar a0 céu e estender a sua sombra a continentes inteitos; se nao estiver bem enraizada na terra, um simples golpe de vento bastard muitas vezes para a derrubar. Poder cair pela astucia de um s6 escravo infiel, ou pelo machado de um sétrapa audacioso. A histéria antiga ¢ moderna da Asia estd cheia de revolugdes destas, por isso a filosofia dos estados pouco encontra que aprender nelas. Escorracam-se déspotas do trono, para neste se colocarem outros déspotas: 0 reino depende da pessoa do monatca, da sua tenda, da sua coroa; quem tiver esta na mio, ser o novo pai do povo, quer dizer, 0 chefe de um bando preponderante de salteadores. Um Nabucodonosor foi o terror de toda a Asia ocidental € nas mios do seu segundo sucessor o seu teino desfez-se em pd, por falta de alicerces; trés batalhas de Alexandre bastaram para destruir completamente o enorme império persa. 46 A Inlerpretagio do Processo Histérico Muito diferente ¢ 0 que se passa com aqueles estados que, tendo ctescido das proprias xaizes, se mantém nos seus prdptios alicerces. Podem ser subjagados, mas a nago permanece. Foi o que aconteceu com a China, onde se sabe 0 que custou aos conquistadores a introdugio de um simples costume, o corte de cabelo 8 maneira mongol; assim acontece com os Brimanes ¢ os Israelitas, cujo espirito de cerimonial basta para’ os separar eternamente de todos os outros povos da terra; assim resistin durante muito tempo o Egipto a cruzar-se com outros povos. B como foi dificil exterminar os Fenicios, por ser um povo ja muito cnraizado neste local! Se Ciro tivesse conseguido fundar um reino como os de Yao, de Krishna ou de Moisés, ainda hoje exis- tiria com todos os seus membros, embora mutilados. 3. Finalmente: de toda a regiio por onde temos andado, vemos como 6 transitiria toda a obra bumana, ¢ ate mesa quao opressiva vem a tor- uar-se a melbor das instituigies ao fim de algumaz geragtes. A planta floresce € fenece; os vossos pais morréram € tornaram-se pd; 0 vosso templo cai por tera; o teu taberndculo, as tuas tébuas da lei ja ndo existem; a prépria linguagem, eterno elo entre os homens, entra em desuso. E uma constituigao feita pelos homens, uma instituigio politica ou religiosa, que sé podem construir-se com base naquelas, essa devia, havia de durar eternamente? Para isso seria necessirio prender com cadeias as asas do tempo e transformat a esfera terrestre, sempre em movimento, num bloco de gelo, inerte sobre 0 abismo. Que senti- ramos nds se hoje vissemos © rei Salomao sacrificar 22.000 bois 120.000 cordeiros numa tinica festa, ou a rainha do Sabé, propondo-lhe adivinhas num banquete? Que diriamos de toda a sabedoria dos Egip- cios, se nos exibissem 0 boi Apis, 0 gato eo bode sagrados em templos sumptuosissimos? © mesmo se pode dizer do pesado cerimonial dos Bramanes, das superstigdes dos Parses, das ocas pretensdes dos Judeus, do absurdo orgulho dos Chineses ¢ de tudo o mais que, seja onde for, pretenda basear-se nas antiquissimas instituigdes humanas de hé trés mil anos. A douttina de Zoroastro pode ter sido uma tentativa notével para explicar a existéncia do mal no mundo e para estimulat os seus contemporineos a praticar boas obras; mas qual o significado actual dessa teodiceia, mesmo aos olhos de um maomerano? A metempsicose dos Bramanes pode ter 0 seu valor como sonho juvenil da imaginacio humana, que deseja manter a alma imortal dentro da esfera do vist- vel, ligando conceitos morais a esta ilusio bem intencionada; mas nao se tornou ela numa lei teligiosa absurda, com milhates de adita- mentos em forma de preceitos ¢ de normas priticas? A tradigéo é em siuma excelente instituicdo da natureza, indispensével a0 género humano; logo, porém, que cla cetceia a faculdade de pensar, quer nas institui- Haver / Ideias para a Filosofia da Historia 47 goes politicas praticas, quer na educagao, impedindo todo o progresso da razio humana ¢ todo o melhoramento adequado a novas circuns- tancias © a novos tempos, entio ela € 0 verdadeito dpio do espitito, tanto para os estados como para os partidos e para os individuos. A grande Asia, mie de todo o esclarecimento intelectual da parte habi- tada do nosso planeta, ingeriu muito deste doce veneno e dele deu muito a beber a outros. Grandes estados ¢ partidos dormem dentro dela como, segundo reza a lenda, S. Jodo dotme no seu tamulo: res- pirando suavemente, embora tenha mortido hé quase 2.000 anos e dormitando, & espera que chegue aquele que o hé-de despertar... Rejlextes sobre a Histéria da Grécia — O naturalista s6 é capaz de obter um conhecimento completo sobre uma planta, se a seguir na sua evolugio a partir da semente, ¢ através da sua germinagio, flores- cimento € morte. A histéria da Grécia € para nés como uma planta, $6 € pena que pelos processos até agora usados ela ainda esteja longe de ter sido tio estudada como a histéria de Roma. Chegou agora a altura de, daquilo que tem sido dito, destacar alguns pontos de vista que desde logo se impdem aos olhos do obser- vador nesse fragmento importante da histéria geral da humenidade. E aqui. comego por repetir este grande principio: Primeiro —O gue pode acontecer no reino da bumanidade, dentro do Gmbito de determinadas circunsténcias nacionais, temporais ¢ locais, acontece realmente. A Grécia é disso a prova mais florescente e maravilhosa. Na natureza fisica, nunca contamos com milagres. Observamos leis, que verificamos serem por toda a parte igualmente validas, imu- taveis e regulares. E 0 reino dos homens, com as suas forcas, as suas mudangas e paixdes havia de esquivar-se a estes vinculos da natureza? Povoassem a Grécia de Chineses e nunca teria existido a Grécia que conhecemos; levassem os nossos Gregos para onde Dario conduziu os escravos da Eritreia e eles nunca teriam fotmado Esparta, nem Atenas. Considerai a Grécia actual; jA ndo se encontram Gregos anti- gos, e muitas vezes nem mesmo a terra que foi pertenca deles. Se uns restos da sua lingua nao subsistissem, se nao fossem visiveis fragmen- tos da sua mancita de pensar, da sua arte, das suas cidades, ou pelo menos os seus antigos trios ¢ montanhas, serfeis levados a crer que a Grécia antiga era uma criagao da lenda, como a ilha de Calipso ou os jar- dins de Alcino. Tal como estes Gregos modernos se totnaram no que sio, devido apenas 20 curso do tempo ¢ por uma série de causas e efeitos, outro tanto aconteceu com és Gregos antigos ¢ acontece com todos os povos da Terra. A histéria da humanidade nao € mais do que uma histéria natural das forgas, das acgdes ¢ das tendéncias humanas, subor- dinadas ao lugar ¢ 4 época. 48 A Interpretagto do Proceso Histérico Este prinefpio é tanto mais simples, quanto € esclarecedor ¢ til para © tratamento da histétia dos povos. Todos os historiadores esto de acordo comigo, em que a admiragio e a aprendizagem passivas néo merecem o nome de Histéria, Sendo assim, 0 espitito observador deve exercitar toda a sua acui- dade em cada um dos fenémenos histéricos, como se se tratasse de um fendmeno da natureza. Ao narrar a histéria, ele deve procurar sempre € estritamente a verdade, bem como a maior coeréncia ao formar as suas concepgdes ¢ jufzos, ¢ nunca deve tentar explicar uma coisa que é ou que acontece pot meio de uma coisa que nfo é. Seguindo este principio rigotoso, desaparecerlio todas as fantasias ¢ todos os fan- tasmas de uma criagio mégica: procure-se ver em tudo simplesmente © que la esta e logo se revela na maior parte das vezes o motivo por que no poderia ser doutra maneita. Quando o espitito tiver adquirido este hdbito na apreciagio da histéria, teré encontrado o caminho da filosofia mais salutar, que fora do ambito da histéria natural e da mate- mética dificilmente poderia encontrar. Como consequéncia exactamente desta filosofia, evitaremos, por- tanto, desde logo € sobretudo, atribuir os factos da histéria a designios ocultos e particulares de um esquema de coisas que nos € desconhecido, ou A influéncia magica de deménios invisiveis, cujo nome nio ousa- tlamos sequet pronunciar se se tratasse de fendmenos da natureza. O destino revela os seus designios através daquilo que acontecé ¢ de Fore) acontece; por isso, o abservador da histétia deduz esses desi- “gnios apenas a partir daquilo que é ¢ do que se Ihe revela dentro de todo o seu ambito. Por que tazio surgiram no mundo os Gregos cultos? Porque surgiram e porque naquelas circunsténcias no poderiam ter sido seno Gregos cultos. Porque avancou Alexandre até A India? Porque cra Alexandre, filo de Filipe e porque, de acordo com as disposigdes de seu pai, com os feitos do seu povo, com a sua idade € caracter, com as suas leituras de Homero, ete., foi o melhor que soube fazer. Se atribuirmos a sua impetuosa resolugio a designios ocultos de um poder superior ¢ os seus feitos herdicos 4 proteccio especial da sua fortuna, corteremos © risco de, por um lado imputar’ os seus actos insensatos aos propésitos de uma divindade, por outro de dimi- nuir a sua coragem pessoal ea sua pericia de militar, e em ambos os casos de despojar todo o acontecimento da sua feicio natural. Todo aquele que tem crencas mégicas em selagdo A histéria natural, que acredita que espiritos invisiveis dao a cor 4 rosa ou salpicam @ sua corola de gotas prateadas de orvalho, todo aquele que cré que peque- nos génios luminosos se escondem no ventte do pirilampo ou brincam na cauda do pavao, pode ser um poeta engenhoso, mas nunca brilharé como naturalista ou como historiador. A histéria € a ciéncia daquilo Herver / Ideias para a Filosofia da Historia 49 que é ¢ nio a ciéncia daquilo que poderia porventuta ser, de acordo com 0s designids ocultos do destino Segundo: O gue é verdade em relagao a um povo, é igualmente vélido em relagio a varios povos ligados entre si. Eles permanecem ligados por cir canstancias de tempo ¢ de lugar; influenciam-se ins aos ontros, de acordo com a combinagto das snas forcas activas. Os Gregos sofreram a influéncia dos asiaticos ¢ estes, por sua vez, a daqueles, Foram conquistados por Romanos, Godos, ‘Turcos ¢ ctis- tdos e por sua vez Romanos, Godos, Turcos ¢ ctistéios receberam deles muitos e variados meios de cultura. Como se concatenam estes factos? Pelo lugar, pelo tempo e pela influéncia natural das forcas activas. Os fenicios transmitiram-lhes o uso do alfabeto. Mas nio descobriram © alfabeto propositadamente para cles; transmitiram-lho, porque se estabeleceram na Grécia com uma colénia. E assim foi com os Helenos e com os Egipcios; assim foi com os Gregos que emigraram para Bactra; assim foi com todos os dons da musa que deles recebemos, Homero cantou; mas nao para nés. $6 porque as suas obras chegaram até nés é que o conhecemos e pode- mos aprender os seus ensinamentos. Se por uma qualquer circuns- tancia do curso dos tempos tivéssemos sido privados das suas obras, como fomos de tantas outras igualmente excelentes, quem atribuiria isso ao designio de um destino oculto, quando estava a vista a causa natural dessa perda? Fagamos um balanco dos escritos que se perde- ram ¢ daqueles que foram conservados, das obras de arte que desapa- receram e das que ficaram, através dos relatos que nos falam da sua conservagio ou da sua destruigio; ousaremos eaunciar a regra segundo a qual o destino, em cada um dos casos, conservou ou destruiu? Das obras de Aristételes resta-nos um tnico exemplar, encontrado debaixo da terra, Outros escritos apareceram sob a forma de pergaminhos esquecidos em caves ¢ caixotes. O sarcastico Aristéfanes apareceu debaixo da almofada de um S. Criséstomo, que com ele aprendia a comport as suas homilias. E assim, toda a nossa cultura dependeu precisamente das mais ocasionais insignificantes circunsténcias... Terceiro: A cultura de um povo é a flor da sia existéncia, pela qual ele se revela duma forma deveras agradivel, mas transitéria. Tal como o homem, quando vem ao mundo, nada sabe € tem de aptender aquilo que quer saber, também os povos incultos adquirem conhecimentos pela pratica ou pelo intercimbio com outros. Mas toda a espécie de conhecimentos humanos tem os seus limites préprios, isto é, a sua natureza, o seu tempo, o seu ugar 0 seu petiodo de vida. ‘A cultura grega, por exemplo, cresceu de acordo com os tempos, os lugares ¢ as circunstancias e declinou com os mesmos. Certas attes ¢ a poesia precederam a filosofia onde as belas artes ou a retérica flores- 4 50 A Interpretagto do Proceso Histérico ceram, nao puderam florescer a arte da guerra ou as virtudes patrid- ticas: os oradores de Atenas, por exemplo, puderam revelar-se no miximo do seu entusiasmo, porque o estado se afundava e a sua inte- gridade havia desaparecido. Porém, uma coisa é comum a todas as espécies de conhecimento humano: o aspirar a um ponto de petfeigao, que, uma vez atingido por uma concatenagao de circunstancias felizes, ndo pode, nem mantet-se cternamente, nem rettoceder instantaneamente, mas inicia desde logo um ptocesso de declinio. Toda a obra perfeita — perfeita, na medida em que é possivel exigir do homem perfeigdo — representa o maximo dentro da sua espécie; tudo quanto possa vir depois dela, néo passa, portanto, de mera imitacio ou de tentativas infelizes para a ultrapas- sarem. Depois do canto de Homero, no eta possivel conceber um segundo Hometo dentro do mesmo género. O primeiro colheu as flores da grinalda épica e os que o seguiram tiveram de contentar-se apenas com folhas. Por isso os tragedidgrafos gregos escolheram outro trilho: comeram, como Esquilo diz, da mesa de Homero, mas ptepararam um banquete de iguatias diferentes para os seus comensais. Também a época destes passou. Os assuatos da tragédia esgo- taram-se e foram, quando muito, modificados pelos sucessores dos poetas maiores, isto é, assumiram uma forma inferior, porque a forma melhor, a forma superiormente bela do drama grego jé havia sido exibida naqueles modelos... Pobre e mesquinho seria, pois, se quiséssemos impor como lei a providéncia omnipotente 0 nosso amor por um objecto da cultura humana, pata conferir uma eternidade antinatural ao momento tnico em que ele pode ter Ingar, Esse desejo significaria nada menos do que aniquilar a esséncia do tempo e destruir a natureza mesmo daquilo que é finito. A nossa juventude nao volta, nem voltard a ser a mesma a acgio das nossas faculdades mentais como eram entio. O apareci- mento da flor mostra que ela hé-de murchar: da raiz absorveu as forcas da planta e quando ela morrer, seguit-se-d a morte da planta. Tetia sido uma infelicidade se a época que produziu um Péricles e um Sécra- tes tivesse dutado um momento mais que fosse para além do tempo determinado pela cadeia dos acontecimentos; ea uma época perigosa € insuportével para Atenas. Igualmente limitado seria se a mitologia de Homero se tivesse apoderado do espirito dos homens para sempre, se os deuses dos Gregos dominassem eternamente, se 0 seu Demés- tenes continuasse eternamente a discursar. E assim por diante. As plantas da natureza fenecem, mas a planta murcha espalha por sua vez. sementes, renovando-se assim 2 criagdo viva. Shakespeare nfo era Séfocles, Milton nao foi Hometo, Bolingbroke no era Péricles; mas foram no seu género e no seu tempo o que aqueles foram no deles. Heaper / Ideias para a Filosofia da Historia Bl Por isso, que cada qual aspire a sez, no seu lugar, aquilo que pode ser dentro do curso das coisas; isto cle sera e outta coisa nao lhe é pos- sivel set. Quarto: A sanidade e duragdo de um estado nao dependem do gran maximo da sua cultura, mas de um sdbio on felix equilibria das suas forgas vivamente activas. Quanto mais fundos forem estes alicerces vivos do sexi centro de gra- vidade, mais firme e duradouro ele serd. Em que se apoiaram aqueles antigos fundadores de estados? Nao foi na indoléncia inerte, ou numa grande exteriorizacao de actividade, mas na organizagio ¢ numa justa distribuigiéo de forcas nunca ador- mecidas, mas pelo contrario sempre vigilantes. O principio em que se baseavam esses sabios era uma sabedoria humana auténtica, extraida da natureza. Sempre que um estado foi levado ao apogeu, mesmo pela mao do mais eminente dos homens e sob o mais deslumbrante pretexto, correu sempre o risco da dertocada e s6 recuperou a sua forma anterior devido a qualquer feliz calamidade... ‘Todo o esplendor da Grécia foi devido 4 contribuicéo activa de muitos estados ¢ de muitas forgas vivas; em contrapartida, tudo quanto de sdlido ¢ estivel existiu no seu gosto e na sua constituigao politica, foi produzido por um sabio ¢ feliz equilibrio das suas forcas activas. © éxito das suas instituigdes foi sempre tanto mais dutadouto e mais nobre quanto mais humanisticas eram as suas bases, isto é, quanto mais esse éxito se bascava na razio e na justiga Perplexidades da Historia —«Pottanto, tudo é transitério na his- téria. No seu templo, pode ler-se esta insctigio: caducidade ¢ apodre- cimento. Nés pisamos as cinzas dos nossos antepassados e caminha- mos sobre os escombros sepultos de instituigées humanas e reinos des- trogados. O Egipto, a Pérsia, a Grécia, Roma, perpassaram diante dos nossos olhos como sombtas; como sombras erguem-se dos seus timu- los € aparecem-nos na Historia. «E quando qualquer instituisio politica esté ultrapassada, quem nio deseja que ela desapareca tranquilamente? Quem nfo sente cala- frios, quando no ambito dos seres vivos ¢ actives teopeca na sepultura de instituigdes antigas, que roubam luz e espaco aos vivos? BE uma vez essas sepulturas eliminadas pelos seus descendentes, quio ripida- mente as instituigoes destes parecerio por sua vez igualmente tamulos aos seus proprios descendentes, que do mesmo modo as sepultario sob a terral «A causa desta transitoriedade de todas as coisas terrenas reside na sua propria esséncia, no local em que se encontram, na lei getal a que esté subordinada toda a nossa natureza. O corpo humano é um invé- lucro fragil e sempre em renovagio, que por fim j4 mais nto pode renovar-se, O seu espitito, porém, sé actua na terra no e com 0 corpo. 52 A Interpretagao do Processo Histérico Julgamo-nos independentes ¢ afinal dependemos de tudo quanto existe na natuteza: entrclagados-numa cadeia de coisas inconstantes, somos forgados 2 seguir as leis da sua trajectéria, que mais nfo stio do que nascer, set ¢ morte. Um ténue fio une a raga dos homens, que 2 todo © momento se quebra, para novamente tornar a ligar-se. O anciao, que a idade tornou sabio, desce & terra para que o seu descendente possa iniciar como ele uma vida de crianga, destruit talvez insensatamente a obra do seu antecessor ¢ legar ao filho o mesmo esforco vio em que consome a vida. E assim se encadeiam os dias; assim se ligam as gera- Ges € os reinos uns aos outros. O sol poe-se, pata dar lugar & noite ¢ para que os homens possam regozijar-se com uma nova aurora. «& ainda se com tudo isto algum progresso fosse visivel! Mas onde se revela ele na histéria? Nesta sé se vé pot toda a parte desttuicao, sem qualquer vislumbre de 0 que aparece de novo set melhor do que © que foi destruido. Ha nagdes que florescem ¢ outras que declinam. Mas de nenhuma das que declinam surge uma flor nova, quanto mais uma flor mais bela. A cultura progride, mas nem por isso se torna mais perfeita: em novos locais desenvolvem-se novas capacidades; os lugares antigos dos lugares antigos desapareceram isremediavel- mente. Terio sido os Romanos mais sébios e mais felizes do que os Gregos? E és somo-lo mais do que ambos foram? «A natuteza do homem continua a set a mesma, No ano dez mil do mundo, ele continuaré a nascer com paixdes, como jé nascia com paixdes no ano dois mil ¢ passara pelas mesmas loucuras até chegar a uma sabedoria imperfeita, tardia ¢ inatil. Vagueamos num labirinto, de que a nossa vida é apenas um pequeno fragmento. Dai o poder set-nos quase indiferente se esse labirinto tem entrada au saida. «Triste destino 0 do género humano que, apesat de todos os seus esforgos, se encontra preso a roda de Ixion, agrilhoado 4 pedra de Sisifo, condenado a um suplicio de Tantalo! Temos de querer, temos de esforgat-nos, sem que vejamos jamais amadutecer 0 fruto do nosso labor ¢ sem que do curso da histdria possamos reconhecer um tnico resultado dos esforgos humanos, Se um poyo ficou isolado, o seu caracter diluiu-se nas mios do Tempo; se colidiu com outros. povos, foi langado no cadinho onde a sua feigio se desvaneceu igualmente. Construimos, pois, sobre o gelo e escrevemos nas ondgs do mar: a onda desfaz-se, 0 gelo derrete € 0 nosso palicio desaparece, como desapare- cem 0s nossos pensamentos. «Para qué entio a amaldicoada fadiga que Deus den 2o géneto humeno como tarefa didria durante a sua curta vida? Para qué a carga sob a qual cada um vai abrindo o seu caminho pata a sepultuta? E nin- guém foi interpelado sobre se sim ou nao desejava carregar com ela, se queria ter nascido neste lugar, nesta época e neste ambiente. Sim, Heroer | Ideias para a Pilosofia da Histéria 53 porque ja que a maior parte dos males que aflligem os homens deriva deles prdprios, das suas leis ¢ governos deficientes, da arrogancia dos optessores ¢ de uma quase inevitavel fraqueza de governantes ¢ govet- nados, que destino foi esse que submeteu o homem ao jugo da sua propria espécie, 4 fraca ou louca arbitrariedade do seu semelhante? ‘Adicionem-se os periodos de felicidade e infelicidade dos povos, dos seus bons e maus governantes, e, mesmo entre os povos melhores, os periodos de sensatez e de loucura, de tacionalismo e de paixio. A que elevado resultado negativo chegaremos! Considerem-se os déspotas da Asia, da Africa, do mundo inteito: tenham-se presentes os mons- tros que se sentaram no trono de Roma e sob o dominio dos quais 0 mundo sofreu durante séculos; contem-se as épocas de perturbagies, as guerras, as opresses e os tumultos violentos e observe-se por toda a parte o resultado: Bruto cai, Anténio triunfa; Germanico afunda-se, Tibério, Caligula, Neto dominam; Aristides ¢ banido, Confticio pet- seguido; Séctates, Fécion, Séneca motrem. Em todos estes factos é francamente reconhecivel este principio: «o que é, €; 0 que pode ser, sera; o que é susceptivel de perecimento, perecer. ‘Triste comprovacao esta, que dum modo geral nos leva necessiriamente a enunciar este segundo principio: nesta Terra, a prepoténcia e a sua irmi, a maligna astiicia, vencem sempre». Por isso o homem duvida e desespera, apesar de a expetiéncia histética ser fértil e clara. E a verdade é que, até certo ponto, a sua queixa melancélica é corroborada pelos factos tertestres, no seu aspecto superficial. Dai eu conhecer muitos que, no vasto oceano da histéria humana julgavam ter perdido aquele Deus que no'solo firme da inves- tigagZo naturalista viam com os olhos do espirito no mais infimo talo de relva ou grio de poeira, e que adoravam de todo 0 seu coragio. No templo da criagio terrestre tudo Ihes parecia omnipotente e pleno de bondosa sabedoria; pelo contrério, no teatro das acgdes humanas —em que a nossa vida se integra — viam apenas um campo de bata- lha de paixdes absurdas, de forgas brutais, de artes destruidoras sem qualquer finalidade benévola duradoura. A historia, para eles, € como que uma teia de aranha num canto do edificio do mundo, cujos fios intrincados evidenciam fortes vestigios das presas ja ressequidas, mas nunca do seu centro desolador: a aranha que a teceu. No entanto, se existe um Deus na natureza, existe igualmente na histéria. Porque também o homem faz parte da criagio, nos seus mais violentos excessos ¢ paixdes, obedece necessatiamente a leis que mao sao menos belas e excelentes do que aquelas por que se regem todos os corpos celestiais ¢ tettestres. Ora, como estou persuadido de que o homem tem capacidade e pode saber aquilo que deve saber, deixo a paisagem tumultuosa que temos vindo a atravessar e, confiada 54 A Interpretagto do Processo Histérico € livremente, passo @ analisar as belas e sublimes leis da natureza, a que essa paisagem esté igualmente. condicionada. O bumanismo é a finalidade da naiureza humana. A finalidade de uma coisa que é mais do que um instrumento inette reside necessariamente nessa propria coisa. Se, 4 semelhanga do ponteito magnético que aponta sempre o norte, tivéssemos sido criados pata atingir um ponto de perfeigio exterior a nds prdptios, que por mais etemnos ¢ baldados esforgos nunca lograriamos atingir, bem poderiamos lamentar nao s6 0 nosso papel de cegas maquinas, mas também 0 ente que nos tinha condenado a esse suplicio de Tantalo, ao criar a nossa espécie exclusi- vamente para seu malicioso deleite, indigno de um deus. E ainda que, para o desculpar, disséssemos que algo de bom se fomentava ¢ que 4 nossa natureza era mantida em perpétua actividade por meio desses esforgos vaos e nunca atingindo qualquer objectivo, muito imperfeito ¢ feroz continuaria a ser tal ente, para necessitar de semelhante desculpa. Porque na actividade sem qualquer objectivo nao pode tesidir qualquer bem, e ele ter-nos-ia enganado, por impoténcia ou maldade e com intui- tos indignos de si préprio, a0 pér ante os nossos olhos esse sonho. Felizmente, porém, nao é essa a doutrina que a natureza das coisas nos ensina. Se considerarmos a humanidade tal como a conhecemos ¢ segundo as leis que Ihe sao intrinsecas; nada encontramos de mais sublime no homem do que o sen humanismo. Porque mesmo quando imaginamos 08 anjos ou os deuses, imaginamo-los como homens ideais, supetiores. Como vimos jé, (") é para este fim evidente que a nossa natureza esté organizada. Para ele nos foram dados os nossos mais delicados sen- tidos e instintos, a nossa tazZo e a nossa liberdade, a nossa satide fragil © ao mesmo tempo estavel, a linguagem, a arte € a religido. Em todas as situagdes € sociedades, 0 homem aunca teve em vista nem péde aspirar a outra coisa sendo ao humanismo, fosse qual fosse a ideia que dele formasse. Foi por amor dele que a natuteza ordenou os sexos € as idades da vida, por forma a que a nossa infancia durasse mais tenipo © que, por meio da educagio, pudéssemos aprender uma espécie de humanismo. Por ele se’ estabeleceram em toda a vasta terra as mais diversas formas de vida humana e se introduziram as varias espécies de sociedade. Cacadores on pescadores, pastores, camponeses ou cita- dinos, em todas as condiges 0 homem aprendeu a seleccionar os meios de alimentacao, a erigir casas para sie para os seus, a transformar em adorno as roupas de ambos os sexos, a organizar a sua economia domés- tica, e inventou diversas leis ¢ formas de governo, todas elas com o ©) Livro a Heroer | Ideias para a Filosofia da Histéria 55 objectivo de cada qual poder desenvolver as suas capacidades ¢ usu- fruit a vida duma forma mais bela e mais livre, sem ser perturbado pelos outros. Nesse intuito se assegurou a proptiedade e se facilitou © trabalho, a arte, 0 comércio, o intercambio entre os homens: inven- taram-se castigos pata os delinquentes ¢ prémios pata os virtuosos; ceiaram-se milhares de normas motais para regulamentar a vida publica ¢ privada, ¢ até religiosa das varias classes. Para isso, finalmente, fize- ram-se guetras, celebraram-se tratados € foi-se ctiando a pouco € pouco uma espécie de direito marcial ¢ internacional, a pat de vatios pactos de hospitalidade ¢ de cométcio, para que também fora das fronteiras da sua prépria pétria o homem fosse considerado ¢ respeitado. Por- tanto, tudo quanto de bom se fez na histéria, foi feito em prol do huma- nismo; tudo quanto nela se perpetrou de insensato, de corrupto ou de atroz foi contra 0 humanismo. Sendo assim, 0 homem nfo pode conceber outro objective pata as suas instituigdes terrenas que nao aquele que reside nele proprio, isto é, na natureza fraca ou fotte, infe- tior ou nobre que Deus lhe deu. Ora, se em toda a criagdo conhecemos cada coisa apenas ¢ sémente por aquilo que ela € ¢ pelos efeitos que ptoduz, a finalidade do génetd humano na Terra é-nos evidenciada, como a mais clara demonstragao, pela sua natureza ¢ pela sua histéria. Lancemos um olhar retrospectivo pelas regides que percorremos até aqui: em todas as instituigdes dos povos, desde a China até Roma, nas miltiplas particulatidades das suas constituigdes politica, bem como em todas as suas invengdes, bélicas ou pacificas, ¢ até mesmo em todas as barbaridades ¢ erros que as nagdes cometeram, ¢ sempre reconhecivel esta lei fundamental da natureza: «Que o homem seja homem e forme a sua condigao segundo aquilo que Ibe parega melhor». Com esta finalidade se apoderaram os povos da sua terra ¢ nela se esta- beleceram como puderam. Das mulheres do governo, dos escravos, do vestudrio ¢ das casas, dos lazeres ¢ da alimentagao, da ciéncia e da arte, fez-se por toda a parte sobre’a Terra aquilo que se julgou melhor para cada um e para a generalidade, E assim verificamos que por toda a parte os homens possuiram e usuftuiram o direito de se cultivarem para uma espécie de humanismo, logo que discerniram tal possibilidade. Se erraram ou permaneceram a meio caminho de uma tradigio here- ditaria, sofreram as consequéncias do seu erro e pagaram a sua culpa. A divindade nao os manietou, a nao ser por aquilo que eles préprios exam, do tempo, do lugar ¢ das suas capacidades intrinsecas. ‘Também no os tirou dos erros por meio de milagres, mas antes deixou que esses exros produzissem os seus efeitos, para que os homens apren= dessem.a conhecé-los melhor. Esta lei da natureza é tdo simples quanto ¢ digna de Deus, € con- sistente, além de ser frutuosa nas suas consequéncias para a espécie 56 A Interpretagao do Proceso Histdrico humana, Para esta ser o que € € tornar-se no que era capaz de set, tinha de conservar uma natureza esponténea ¢ ter um campo de acsio livre, em que nfo interviesse qualquer milagre pteternatural. Toda a matéria inanimada, todas as espécies vivas comandadas pelo instinto permanecem © que eram ao tempo da criagio; 0 homem, esse fé-lo Deus um deus sobte a terra, insuflando-lhe 0 principio da auto-activi- dade, que pés desde o inicio em movimento através das necessidades internas ¢ externas da sua natureza. O homem néo poderia viver nem mantet-se, se nilo aprendesse a fazer uso da razio. Logo que ele come- gou a usi-la, abriu-se-lhe de par em par a porta pata milhares de erros e tentativas falhadas, mas ao mesmo tempo ¢ precisamente através des- ses ertos e tentativas falhadas abriu-se-Ihe o caminho para um melhor uso da mesma razio. Quanto mais depressa ele aprender a reconhecer 08 seus ertos, quanto mais energia puser na sua correccao, mais ele progride, maior ¢ melhor se forma o seu humanismo. E ele tem-neces- sariamente que o formar, se nfo quer permanecer durante séculos sob 0 fardo das suas proprias culpas. Portanto, vemos também que a natureza escolheu, para o esta- belecimento desta lei, um campo téo vasto quanto Iho permitiu a drea habitada pela nossa espécie, organizando 0 homem por uma forma tio variada quanto uma espécie humana podia ser organizada nesta Terra. Perto do macaco, ela colocou o negro ¢ a todos os povos de todos os tempos, desde o intelecto do negro até ao cérebro do homem mais culto, ela deixou a solugiio do grande problema do humanismo, Quase ado existe nagio no mundo que cateca do essencial, daquilo que o ins- tinto © a necessidade pedem; por outro lado, para um refinamento da condigio humana, existicam sempre povos melhores, de climas mais suaves, Como, porém, toda a pesfeicio ordenadora beleza se situam entre dois extremos, também a forma mais bela de razio e de huma- nismo tinha de encontrar necessariamente o seu lugar nesta zona média temperada que é a nossa, E encontrou-o plenamente, de acordo com a lei natural desta conveniéncia universal. Porque, se ¢ cetto que quase nenhuma das nagdes asiéticas pode considerar-se isenta duma indo- léncia que demasiado cedo se contentou com as suas boas instituigdes, passando 2 considerar as formas tradicionais como inalterdveis ¢ sagra- das, devemos no entanto desculpé-las, considerando a vasta extensio dos seus paises © as citcunstincias que as condicionavam, muito parti- cularmente as montanhas. Duma maneira geral, as suas primeiras tentativas de humanismo, precoces como foram, merecem louvor, cada uma considerada no seu tempo e no seu Iugat. Muito menos podemos deixar de reconhecer os progtessos feitos pelos povos mais activos da costa do Mediterraneo, que sacudiram 0 jugo do despotismo das antigas tradigdes ¢ formas de governo, demonstrando dessa maneira Herver / [deias para a Filosofia da Hisiéria 57 a grande e benfazeja lei que preside aos destinos humanos: «aquilo que um povo ou toda uma raga humana quer convictamente pata o seu proprio bem, e em que se empenha com todas as suas energias, é-Ihe concedido pela natureza, que Ihes impés como finalidade, nao déspo- tas nem tradigdes, mas a melhor forma possivel de humanismon. © principio fundamental desta lei divina da natureza reconci- lia-nos matavilhosamente com a forma da nossa espécie por toda a Terra ¢ com as transformagoes da mesma através dos tempos. Por toda a parte a bumanidade € 0 que foi capaz de fazer de si propria, o que desejou ¢ péde tornar-se. Sempre que se contentou com o seu estado ou sempre que no vasto campo dos tempos nio se encontravam ainda amadurecidos os meios para o seu progresso, ela permaneceu a mesma durante séculos no foi mais do que isso, Porém, sempre que apro- yeitou as armas que Deus lhe deu para uso da sua razio, da sua fora e de todas as oportunidades que um vento favordvel levou até ela, conseguiu elevar-se com arte e progredir com denodo. Se assim nko fez, essa prdpria indoléncia é a prova de que ela era pouco sensivel sua infelicidade, pois todo o sentjmento vivo de injustica, quando acompanhado de inteligéncia e de forga, torna-se necessiriamente um poder salvador. A longa submissio ao despotismo, por exemplo, nao foi de forma alguma determinada pela prepoténcia dos déspotas; a décil e confiante fraqueza dos subjugados, e posteriormente a sua paciente indoléncia, foram os seus inicos ¢ mais sélidos supottes. Porque sofret com resignagao é francamente mais facil do que reagir com energia. Dai 0 facto de muitos povos no se terem aproveitado do direito que Deus lhes conferiu através do divino dom da sua razao. Todavia, é indubitavel que, duma maneira geral, aquilo que ainda nio aconteceu na Terra aconteceré numa época futura; porque os direi- tos da humanidade sio imprescritiveis e as capacidades que Deus Ihe deu, inextinguiveis. E para nés motivo de espanto vetificar 0 pto- gresso que Gregos e Romanos alcangaram em poucos séculos dentro do seu 4mbito de objectos. Porque embora a finalidade dos seus actos nem sempre fosse das mais puras, eles provaram set capazes de o atingir. O seu exemplo ressalta da histéria ¢ estimula todo aquele que se Ihes assemelhe a intentar esforgos similares ou superiores, sob igual ou maior protecgio do destino. Vista a esta luz, toda a histéria dos povos nos aparece como uma escola de treino para a corrida que nos permi- tira alcangar a bela coroa do humanismo e da dignidade humana. Ini- metas e celebradas nagdes de antanho atingiram objectives menos clevados. Por que nao atingiremos nés um mais puro ¢ mais nobre? Essas nagoes eram constituidas por homens como nds; a sua aspiragio de uma melhor forma de humanismo € a nossa, de acordo com as nos- sas circunstincias de tempo, com o nosso saber, com os nossos deveres. 58 A Interpretagdo do Processo Histérico © que elas puderam fazer sem milagres também nds podemos ¢ deve- mos realizar. A divindade sé nos ajuda pela nossa propria diligéncia, pela nossa razdo, pelas nossas capacidades... O 180 mais nobre da Historia... A razio. humana prossegue o seu curso em toda a espécie em geral. Inventa, antes de poder aplicar; descobre, embora mios viciosas possam, durante muito tempo, fazer mau uso das suas descobertas. Este mau uso vird a punit-se a si pro- prio e a desordem, com o tempo, daré Ingar & ordem, devido ao zelo incansdvel de uma razio cada vez mais evolufda. Lutando contra as paixdes, ela fortalece-se e esclarece-se; oprimida num lugar, fugird para outro, alargando assim o ambito do seu dominio sobre a Terra. Nao é utopia esperar que por toda a parte em que haja homens venha a haver futuramente homens racionais, justos e felizes: felizes nio s6 devido 4 sua prépria razio, mas também a razio comum de toda a raga irma. Inclino-me de tio melhor mente perante este elevado projecto da sabedoria geral da Natureza acerca de toda a minha espécie quanto vejo que ele faz parte do plano universal da mesma Natureza. A lei que sege o sistema do universo, que forma cada ctistal, cada vermezi- nho e cada floco de neve, formou e rege também a minha espécie, fazendo da sua prépria natureza a base da sua duragio e continuidade, enquanto o homem existir. Todas as obras de Deus contém em sia sua propria estabilidade e a sua maravilhosa conexio, porque todas elas, dentro dos seus limites determinados, dependem de vétias forges antagénicas, mantidas em equilibrio por um poder interno que as ordena. E guiado por este fio condutor que eu percorro o labitinto da histéria e vejo por toda a parte uma ordem harménica e divina. Porque tudo quanto pode acontecer, acontece; tudo quanto pode agir, age; porém, s6 a razio ea justica perduram, porque a insensatez € a loucura destroem a Terra ¢ destroem-se a si prdprias. ‘Assim, quando de acordo com o que teza a histéria oigo Bruto, de punhal na mao, dizer a Filipe, sob um céu cheio de estrelas «Oh, vir- rude, sempre pensei que existisses; agora vejo que és um sonho», néo vislumbro 0 filésofo calmo na segunda parte deste queixume. Se ele possuisse verdadeira virtude, esta © bem assim a sua razio ter-The-iam trazido recompensas e deviam recompensé-lo também naquele momento. Porém, se a sua virtude era mero patriotismo romano, é porventura de admirar que 0 mais fraco tivesse de ceder ao mais forte ¢ o indo- lente 20 mais activo? Também a vitéria de Anténio, com todas as suas consequéncias, fez parte da ordem das coisas e do destino natural de Roma, Da mesma maneira, quando entre nds o homem virtuoso se queixa tanta vez de que as suas obras falham, que a forca brutal ¢ 2 opresséo Herper / Ideias para a Filosofia da Historia 5Y prevalecem na terra ¢ que a espécie humana parece nao set mais do que uma vitima da insensatez € das paixdes, é de descjar que 0 génio da sua razao lhe aparega ¢ lhe pergunte amigivelmente se a sua virtude sera auténtica € se estard ligada Aquela inteligéncia e Aquela actividade que inicamente merecem o nome de virtude. Nem todas as obras, devemos dizé-lo, tem sempre éxito. Mas, por isso mesmo, fazei o possivel por que elas tenham éxito, que dignifiquem a sua época e 0 seu lugar ¢ fomentem aquela estabilidade interna, a tinica em que o verdadeito bem perdura. As capacidades natas s6 podem ser orde- nadas por meio da razio; mas € necessirio um verdadeiro contrapeso, isto é prudéncia, seriedade ¢ toda a forca do bem, para as ordenar ¢ manté-las nessa ordem com salutar dominio. E um belo sonho pensar que numa vida futura o homem pode vir a conviver amigavelmente com tudo quanto é sabio ¢ bom, que sempre tem contribufdo pata beneficio da humanidade ¢ se tefugiou nas regides supremas com a doce recompensa da tarefa cumprida. Mas, até certo ponte, a histéria abre-nos jd esse agradavel remanso de conversa ¢ inti- midade com a razio € a justiga de tantas outras eras. Aqui vejo surgir Platio; ali oigo as amigaveis interrogacdes de Sdcrates e patticipo do seu ultimo destino! Quando Marco Antdnio fala no mais {ntimo do seu coragio, fala também com 0 meu; e 0 pobte Epicteto dé ordens, mais poderoso do que um rei. O atormentado Tilio, 0 infeliz Boécio falam comigo e confidenciam-me as circunstincias da sua vida, as tristezas ¢ as alegrias da sua alma, Como é amplo e ao mesmo tempo estreito 9 cotagio dos homens! Quio exclusivas e todavia constantes sio todas as suas paixdes ¢ desejos, as suas fraquezas ¢ os seus ertos, © seu ptazet ea sua esperanga! O problema do humanismo é resolvido de mil maneiras 4 minha volta ¢ por toda a parte 0 resultado dos esforgos humanos é 0 mesmo: «a esséncia da nossa espécie, a sua finalidade e 0 seu destino residem na razao ¢ na justigar. Nao hé uso mais nobre da hist6ria humana do que este; ele guia-nos como se fosse 0 conselho do destino ¢ ensina-nos, infimas criaturas que somos, a agir segundo leis eternas criadas por Deus. Apontando-nos os ertos © as consequéncias de todo o acto ittacional, cle aponta-nos © nosso pequeno lugar tran- quilo no grande sistema em que a razdo ¢ o bem, lutando embora com forgas selvagens, ctiam todavia ordem a partir da sua natureza e per- manecem no caminho da vitéria.

Você também pode gostar