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ESTUDOS

A experiência de uma escola rural


no contexto do projeto
de desenvolvimento local
de Massaroca, semi-árido baiano
Edmerson dos Santos Reis
Edonilce da Rocha Barros

Resumo
Apresenta a experiência de uma escola rural idealizada, construída e
operacionalizada na dinâmica de um projeto de desenvolvimento local iniciado em
1986, a da Escola Rural de Massaroca (Erum), localizada na Fazenda Lagoinha, no Dis-
trito de Massaroca, município de Juazeiro, situado no coração do semi-árido baiano. A
escola foi construída depois de dez anos de existência do “Projeto”, a partir de uma
demanda do Comitê das Associações Agropecuárias de Massaroca (Caam). A aborda-
gem metodológica baseia-se na utilização dos estudos qualitativos, que permitem res-
peitar a dimensão temporal de avaliar a causalidade local para formular explicações. O
conteúdo revela um dos múltiplos olhares sobre a experiência, sistematizada por edu-
cadores que vivenciaram o processo de execução do projeto. Na primeira década de
execução deste, as preocupações eram mais voltadas para o campo da produção
agropecuária e da organização dos produtores, com o objetivo de assegurar e prosseguir
o esforço de geração, adaptação e difusão das inovações tecnológicas. Com a evolução
dessas questões, percebeu-se que a educação era o elemento preponderante para o en-
tendimento e a assimilação do novo modo de pensar, agir e viver no local. Surgiu daí a
necessidade de introduzir os temas culturais e educativos, firmando-se como priorida-
des para um desenvolvimento local sustentável vinculado às competências humanas e
aos recursos naturais das comunidades, contexto no qual surgiu a Erum.

Palavras-chave: desenvolvimento local; escola rural; comunidade.

Abstract The experience of a rural school in the context


of the local development project of Massaroca,
semi arid region of Bahia State
The article aims at presenting the experience of an idealized rural school, built and
operationalised in the context of a local development project that started in 1986. It
concerns the Rural School of Massaroca (Erum), located in the Lagoinha Farm, district of
Massaroca, Juazeiro, situated in the middle of the semi arid of Bahia state. The school
was built after 10 years of existence of the “Project”, from a demand of the Farming
Associations Committee of Massaroca (Caam). The methodological approach was based
on the use of qualitative studies that allow one to respect time dimension; to evaluate the
local causalities to formulate explanations. The content of the article discloses one of the
multiple approaches to the experience, systematized by educators who have lived the
execution process of the project. In the first decade of the execution of the development

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A experiência de uma escola rural no contexto do projeto de desenvolvimento
local de Massaroca, semi-árido baiano

project, the concerns were more driven to farming production and to the organization of
the producers, with the objective of ensuring and continuing the effort of generation,
adaptation and diffusion of the technological innovations. With the evolution of these
questions, one perceived that the education was a key element for the understanding and
assimilation of the new way of thinking, acting and living in the region. Therefore, there
was the necessity of introducing cultural and educational subjects, prioritizing a
sustainable local development linked with human abilities and with the natural resources
of the communities, context in which Erum was created.

Keywords: local development; rural school and community.

Introdução evolução dessas questões, percebeu-se que


a educação era elemento preponderante
Em 1986, o conceito de desenvol- para o entendimento e assimilação do novo
vimento local ainda não era tão utilizado. modo de pensar, agir e viver no local
Mas foi exatamente nessa década que a (Barros et al., 1999a).
Empresa Brasileira de Pesquisa Neste sentido, os atores do processo
Agropecuária (Embrapa), através de seu do desenvolvimento de Massaroca já
Centro de Pesquisa Agropecuária do vislumbravam uma ruptura da via do de-
Trópico Semi-Árido (Cpatsa), localizado senvolvimento vigente entrando em
em Petrolina-PE, juntamente com o sintonia com a abordagem atual, como
Centre de Coopération Internationale en ressalta Martins (2006, p. 6), ao dizer que
Recherche Agronomique pour le
Développement (Cirad) e a Empresa de [...] tanto a Educação quanto o Desen-
Extensão Rural do Estado da Bahia, hoje volvimento vêm de uma tradição – a
Empresa Baiana de Desenvolvimento Tradição Moderna – em que os princí-
Agrícola (EBDA), selecionaram uma área pios mais caros foram a racionalidade,
piloto para implementar uma nova a universalidade, a imparcialidade, e a
metodologia de ação, com a finalidade de neutralidade. Tanto o desenvolvimento
experimentar e validar métodos e quanto a educação deveriam estar pau-
instrumentos de ação em apoio ao desen- tados por estes princípios universais. E
volvimento local, junto aos agricultores mais, sem contar que mesmo que a
familiares. A experiência foi realizada no educação tenha sido promovida a “ala-
1
Massaroca fica situada a 57 Distrito de Massaroca,1 no município de vanca” do desenvolvimento, o próprio
km de Juazeiro, BA, sede do Juazeiro, na Bahia. O objetivo principal sistema que pronunciou isso não se
município, encravada no
semi-árido baiano. Em torno era apoiar nove comunidades rurais (250 responsabilizou em torná-la acessível a
do distrito de Massaroca famílias) na elaboração de um projeto glo- todos. Além disso, tanto o desenvolvi-
existem várias comunidades
rurais – povoados com 15 a bal de desenvolvimento local, com base mento quanto a educação precisavam
20 famílias – historicamente nas suas demandas (Caron et al., 1993). ser descontextualizados. Os grupos
descendentes de um antigo
fazendeiro ou vaqueiro,
A “Nova Metodologia”, como ficou conhe- humanos, as comunidades, as culturas,
dono de uma fazenda de cida a experiência, baseava-se em um os saberes, as tecnologias, vida em si
gado, daí as comunidades diagnóstico participativo, estudo de rea- destes grupos humanos, eram tomados
serem também conhecidas
como “fazenda”. A ativida- lidade, discussão com os agricultores e como coisas que deveriam ser apagadas
de econômica principal, suas famílias e restituição dos resultados ou silenciadas, porque eram tidos como
hoje, nessas comunidades, é
a caprino-ovinocultura. A em reuniões comunitárias. Pode-se dizer empecilhos ao desenvolvimento.
Emater iniciou suas ações que foi uma das experiências pioneiras
nessa região em torno 1980,
com os Projetos Especiais de desenvolvimento local no Brasil Isso porque o mesmo desenvolvimento
para o Nordeste. O ano de (Barros et al., 1999b). e a mesma educação que se diziam univer-
1986 foi o marco da “Nova
Metodologia”, partindo-se
No marco da construção e execução sais e neutros, de fato, emanavam de
da comunidade de Lagoinha, do Projeto Global de Desenvolvimento de interesses nada neutros, como conclui
onde está situada a Escola, Massaroca, as primeiras preocupações se Martins (2006) em sua fala. A ruptura dessa
estendendo para mais oito
comunidades (Lagoa do deram em torno da produção agropecuária via de desenvolvimento se deu exatamente
Angico, Lagoa do Meio, Juá, e da organização dos produtores com o ob- quando surgiu a necessidade de introduzir
Saquinho, Curral Novo,
Jacaré, Cachoeirinha e jetivo de assegurar e prosseguir o esforço os temas culturais e educativos como no-
Caldeirão do Tibério) e atin- de geração, adaptação e difusão das ino- vos eixos do “projeto”, firmando-se como
gindo 200 famílias, perfa-
zendo uma população de
vações tecnológicas às necessidades de prioridades para aumentar as capacidades
1.500 pessoas. gerenciamento dos recursos locais. Com a humanas locais.

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Edmerson dos Santos Reis
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Este texto tem a finalidade de educativas existentes nas escolas do


apresentar e compartilhar um pouco esta campo que construiremos a teoria educa-
experiência, particularmente a prática pe- cional com materiais autóctones que pos-
dagógica da Escola Rural de Massaroca. sam dar bases para os fundamentos da
Trata-se do relato de uma experiência matriz pedagógica da Educação do Campo
pertinente ao momento atual, quando está no Brasil.
se discutindo a reorientação de uma No caso da Escola Rural de Massaroca
educação contextualizada. (Erum), ela surge, inclusive, muito antes
da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96) e
A escassez de da elaboração dos Parâmetros Curriculares
fundamentação teórica no Nacionais (PCNs). Seu principal referencial
campo da “educação do teórico foram os trabalhos e as contribui-
campo” ções do pedagogo brasileiro Luis de Sena,
contemporâneo de Paulo Freire, com uma
Pesquisar a relação escola e desenvolvi- vasta experiência educacional em países da
mento local não tem sido algo simples como África, Ásia e Europa na área de formação
aparentemente pode parecer. Quando torna- e educação para o desenvolvimento local.
mos o olhar para a escola rural nos damos Com ele idealizamos e construímos a Erum.
conta que poucos foram e são os suportes Não é do nada que partimos para
teóricos referentes à Educação do Campo. desenvolver esta temática, pois tivemos a
Este campo da educação foi por muito tem- oportunidade de participar ativamente des-
po abandonado não só nos aspectos didáti- se processo juntamente com o Comitê das
co-pedagógicos, como também na produção Associações Agropecuárias de Massaroca
de conhecimento. Revirando um pouco a (Caam) e a Associação de Desenvolvimento
história da educação brasileira, em relação à e Ação Comunitária (Adac), entre outras ins-
produção científica sobre as escolas rurais, tituições, com o objetivo de, junto às comu-
vamos encontrar alguma coisa somente nidades rurais de Massaroca, elaborar uma
depois de meados da década de 1960, vol- proposta pedagógica para a implantação de
tando a aparecer novamente na agenda de uma escola de ensino fundamental de 5a a
poucos pesquisadores após 1998, com a rea- 8a série, que levasse em conta todo o contexto
lização da I Conferência Nacional de e a realidade desse contexto.
Educação do Campo. Embora havendo um Durante mais ou menos oito meses,
interesse maior por parte de alguns educa- entre 1994 a 1995, juntamente com outros
dores a partir desta data, muitos desses estagiários e técnicos ligados às mais di-
estudos voltaram-se mais para as escolas fa- versas instituições participantes do proje-
mílias agrícolas e as experiências das esco- to de desenvolvimento local de Massaroca,
las do MST, que têm características bem imergimos na realidade de suas comuni-
particulares e diferenciadas da quase dades rurais para apreender o sentido da
totalidade das escolas brasileiras espalhadas vida cotidiana de seus habitantes, saber o
pelo Brasil e localizadas no campo. que pensavam da escola, que escola que-
Se na atualidade ainda são poucas as riam para os seus filhos, como funciona-
referências existentes e as abordagens que va a economia local, a produção, a organi-
poderiam dar suporte teórico a esta discus- zação social, a distribuição populacional
são, imaginemos no início da década de (homens, mulheres, jovens, crianças, etc.)
90, quando basicamente foi anunciado o e quais eram suas principais necessidades
desaparecimento do rural por alguns pes- e demandas.
quisadores e pela academia, que propaga- De posse dessas informações,
vam que o rural sucumbiria ao processo analisadas, restituídas e complementadas
“avançado” de urbanização. Nesse senti- pelos agricultores e agricultoras, produto-
do, este relato da experiência da Escola res e produtoras rurais, começamos a ela-
Rural de Massaroca pode traduzir-se como borar a proposta de educação rural, consi-
um “vazio” teórico para alguns leitores, derando a participação como o instrumen-
mas seu sentido é tornar-se “pleno” de far- to didático mais precioso nessa fase do
tos debates em torno do lugar e do contex- processo de construção da proposta
to da Educação do Campo. Entendemos pedagógica.
que é exatamente a partir da tematização/ Neste sentido, a proposta pedagógica
sistematização das práticas e experiências não foi fruto apenas do conhecimento

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técnico, mas da real necessidade do A produção da proposta, assim como


contexto e dos atores e atrizes sociais a construção das primeiras salas de aula e
locais, que não queriam ver mais repeti- do prédio escolar como um todo, deu-se
dos os ciclos de analfabetismo e da amea- de forma participativa; agricultores e
ça de miséria que quase sempre se repetia agricultoras ajudaram desde a limpeza do
naquela região semi-árida nordestina. espaço até a confecção dos blocos e levan-
A cada produção escrita que se tamento das paredes, algo que demonstra-
sistematizava buscávamos diversos va a riqueza da experiência. Essa dinâmica
referenciais que pudessem melhor embasar contribuiu para a definição dos princípios
o trabalho, já que algumas experiências pedagógicos e valores que norteiam a
isoladas do Nordeste e de outras regiões do proposta (solidariedade, ajuda mútua,
Brasil davam conta de um ensino cooperação, respeito às diferenças, valori-
contextualizado e que atendia às necessi- zação da realidade e da cultura local, etc.).
dades do povo do campo, como era o caso A escola, afinal, foi inaugurada em maio
do Projeto Caatinga, em Ouricuri, PE, que de 1995, com uma turma inicial de 5a série
visitamos na época. e com uma proposta idealizada e
Concluída a elaboração da proposta construída coletivamente com os atores
pedagógica, chegou o momento de retornar sociais locais.
às comunidades rurais as informações sis- É a partir desse tempo pedagógico
tematizadas e decodificadas, para que vivenciado pela escola que buscamos, nes-
estas compreendessem de fato como seria te artigo, não trazer referenciais atuais,
colocado em prática tudo o que aborda- desconectados do trabalho ali desenvolvi-
ram durante o período da imersão. Isso foi do, mas compreender a práxis educativa
feito mediante o uso de diversas dinâmi- que aconteceu/acontece naquele espaço, o
cas, de forma lúdica (reuniões, teatros, pro- movimento de uma prática educativa que
gramas de rádio em linguagem popular, se coloca a serviço da construção do de-
etc.), alimentando, assim, os sonhos de senvolvimento local. Desde o começo, o
uma escola desejada pela população. povo de Massaroca sabia que a escola so-
Na fase da apresentação da proposta zinha não seria capaz de dar conta dessa
ainda era possível aos atores locais se missão, mas que, juntamente com todos os
posicionarem, sugerindo ou alterando aquilo órgãos que atuavam por lá, poderia contri-
com que não concordavam, ou melhor, que buir para a escrita de uma nova história
não se adequava à sua realidade. Somente da educação do campo naquela realidade
depois da passagem pelas diversas comuni- concreta.
dades das quais se originariam os futuros
alunos e alunas é que de fato foi formatada
a proposta final. O processo foi demorado, 1. Refletindo sobre as
cansativo, mas compensador, pois o resul- práticas da escola rural de
tado foi a validação do que foi idealizado Massaroca (Erum)
antes e a definição de uma proposta de edu-
cação rural para o ensino fundamental de 5a Antes de iniciar a descrição das
a 8a série com pé na realidade rural. Isso foi práticas pedagógicas que vêm sendo
possível porque já existia toda uma gestadas na Erum, faz-se necessário dizer
mobilização comunitária em torno do pro- que a realização de uma experiência que
jeto de desenvolvimento local. leva em conta a tomada de decisão dos ato-
Vale lembrar que, em virtude da res envolvidos na dinâmica do trabalho não
escassa produção escrita nesse campo, toda é fácil, principalmente quando os saberes,
a construção coletiva (imersão nas comu- os conhecimentos, as posições e os luga-
nidades, seminários, elaboração de rese- res de cada segmento que participa do
nhas de obras diversas, grupos de estudo, processo de construção são diferentes. As
escrita e discussão da proposta) funcionou dificuldades, no entanto, não foram sinô-
como formação pedagógica e embasamento nimo de bloqueios ou impedimentos para
teórico necessário para a atuação dos pro- chegar ao fim, ou melhor, atingir os objeti-
fessores da futura escola, que previa, no seu vos. As barreiras foram ultrapassadas. As-
itinerário pedagógico, elementos de estu- sim foi o caso da legalização da escola jun-
do da realidade como instrumentos peda- to ao Conselho Municipal de Educação e à
gógicos fundamentais no trabalho com os Secretaria Municipal de Educação. Para
alunos no dia-a-dia da escola. que fosse legalizada, exigia-se uma

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entidade mantenedora, nas entrelinhas, o e de pequenos animais, dos


poder público local, neste caso a Prefeitu- cultivos agrícolas (feijão, mandio-
ra Municipal, que, a depender de quem ca, melancia, etc.) e o manejo dos
ocupa o posto, reage aos princípios demo- recursos naturais;
cráticos e participativos da população, Cultura e civilização: dizia respeito à
principalmente quando se refere à popu- organização social, às relações de
lação rural nordestina, historicamente trabalho, às expressões culturais,
dominada e manipulada. aos costumes, à história e à vida
Por se tratar de uma construção social e política das comunidades
baseada no “saber-fazer” dos atores, envolvidas;
principalmente dos atores locais, a Atividades de transformação e serviços:
primeira marca a ser ressaltada é a de que reunia os temas relacionados com a
o processo foi dinâmico. Em sendo dinâ- infra-estrutura local, os bens e ser-
mico, exigiu uma paciência pedagógica viços, as atividades extra-agrícolas,
para acompanhar ritmos e processos dife- as tecnologias e os equipamentos e
rentes, avanços e recuos. A Erum, hoje, não utensílios usados no atendimento
é a mesma de dez anos atrás – mudanças de outras necessidades das
ocorreram. Quais são essas mudanças? Esta comunidades;
e outras questões ficam a merecer novas Saúde e nutrição: relacionava-se com
pesquisas, novos olhares, e, agora, com o problema das doenças, a higiene,
novos referenciais teóricos. a alimentação e a água.

Cada bloco temático constituía um


2. Estrutura curricular – agrupamento de temas que, no seu bojo,
a inovação pedagógica faziam parte do cotidiano do aluno e eram
desenvolvidos em sintonia com o ciclo da
O ano de 1995 é o marco inicial da natureza, ou seja, de acordo com a impor-
experiência pedagógica da Erum. Sua tância que estes temas assumiam no espa-
estruturação curricular foi montada em ço-temporal da vida da comunidade. Den-
blocos temáticos, comentados a seguir. tro desses blocos temáticos, alguns temas
significativos foram evidenciados a partir
da vivência da equipe do projeto na
2.1 Blocos temáticos imersão do cotidiano das comunidades ru-
rais durante o processo de idealização da
Partindo das reflexões feitas ao longo proposta, como, por exemplo:
da elaboração da proposta pedagógica da
Escola Rural de Massaroca, foi montada Agropecuária: a mandioca, a melancia,
uma estrutura curricular cujos conteúdos a cabra, a forragem, o umbuzeiro;
seriam trabalhados através de blocos Cultura e civilização: a roda de São
temáticos, de maneira interdisciplinar. Gonçalo, a corrida de argolinha, a
Foram escolhidos quatro blocos feira de Massaroca, a comunidade,
temáticos que permitiam expressar os as- a migração, a seca, a vaquejada;
pectos socioeconômicos e culturais da Atividades de transformação e serviço:
área de abrangência do projeto, de forma o queijo, a construção de cisternas,
que a vida das comunidades pudesse as estradas, o transporte, o couro, a
estar dentro da escola. Assim sendo, o farinhada.
ensino se daria a partir do meio físico, Saúde e nutrição: furunculose,
social, cultural e econômico. Os blocos verminose, a água;
temáticos da proposta foram estru-
turados com base no saber popular das Nesse sentido, os temas passavam a
comunidades e nos conhecimentos glo- ser “objetos de estudo”, e dentro do esfor-
bais articulados pela equipe técnica do ço de compreensão e análise destes “obje-
projeto, sendo estes: tos” é que reapareciam os conteúdos
programáticos das disciplinas previstas no
Agropecuária: englobava as atividades currículo escolar comum.
produtivas que asseguram a alimen- As disciplinas do núcleo comum e da
tação e a renda familiar, através da parte diversificada eram contempladas,
criação de caprinos, ovinos, bovinos sendo que cada tema requeria naturalmente

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um conteúdo de uma determinada


disciplina (disciplina introdutória), e as Os conteúdos das disciplinas escolares
outras iam pouco a pouco dosadas. Cada mediante o estudo da mandioca
tema determinava uma seqüência ou uni-
dade de ensino que por si só condicionava I. O que se pode estudar das disciplinas esco-
o seu tempo de duração. O programa de- lares da ciência dentro do tema mandioca.
terminava uma coerência lógica (coerên- a) O mundo em que vivemos (a água, o
ar, o solo, o meio ambiente como um
cia interna), e a escola funcionava respei- todo).
tando o aprendizado do aluno (coerência b) Os seres vivos (evolução da planta, seus
externa). órgãos e suas funções, sua classifica-
ção, analogia com outros vegetais).
c) O homem (função digestiva e nutrição;
2.1.1 Como trabalhar um bloco elementos tóxicos nos alimentos).
temático d) A matéria e a energia (alguns fenô-
menos físicos e químicos).
Bloco temático: agropecuária;
II. As disciplinas escolares de natureza social
Tema: mandioca. a) Geografia (orientação e localização;
clima e estações: movimentos da ter-
A mandioca é estudada como ra; atmosfera; relevo; população; ci-
atividade humana; assim ela é vista como dade e campo; a formação de cida-
produto dentro de três ciclos produtivos: des; os sistemas de transporte; ativi-
o primeiro agrícola, o segundo de trans- dade econômica: a agricultura, trans-
formação (industrial) e o terceiro de serviço formação e o comércio).
(comercial). b) História (história contemporânea do
Vale do São Francisco: os pólos de de-
Os ciclos da atividade se passam: senvolvimento, a irrigação e agricultu-
ra tradicional; história da colonização
1) dentro de um meio físico que: e ocupação do Vale e os tipos de agri-
cultura; o valor do trabalho; a remune-
z se oferece como recurso; ração justa; a proteção social; as respon-
z se apresenta como forças sabilidades do Estado; as organizações
resistentes que o homem deve de produtores; festas e costumes locais
dominar utilizando sua força e em torno da vida rural; o folclore).
c) Religião (o homem em sociedade; o
sua inteligência;
valor religioso do trabalho; o traba-
z enfim, se manifesta como qua- lho agrícola no Antigo Testamento; o
dro limitante, que se impõe ao trabalho no Novo Testamento; as fes-
modo de trabalho do homem e à tas religiosas).
sua organização (ciclos naturais
do clima, da planta, etc.). III. As disciplinas escolares que dizem res-
peito à expressão e às atividades
2) dentro de um meio social onde: a) Português (produção de textos sobre
o conjunto de temas; leitura e com-
preensão de textos de diferentes
z a mandioca é uma fonte da base
gêneros literários sobre os temas tra-
de alimentação; tados anteriormente; aspectos grama-
z ela representa um elemento ticais; exercícios de oralidade).
importante para a conservação e b) Matemática (aplicação do programa
a reprodução do grupo social; aos conteúdos e às práticas pedagó-
z as atividades unem pessoas gicas identificadas anteriormente; te-
através de laços familiares, de oria dos conjuntos e dos números;
trabalho, de clientela e frações, razões e proporções; pesos e
medidas; figuras planas; iniciação ao
administrativos.
cálculo de vetores).
c) Educação Artística (figuras geométri-
cas; audiovisuais para a restituição de
2.2 Itinerário pedagógico – trabalhos de observação no campo e
o caminho metodológico divulgar os textos e documentos
produzidos).
Os conteúdos de cada tema são d) Diversificada (inúmeras aplicações
subdivididos em unidades, sendo que em práticas).
cada unidade o tema é tratado adotando

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um itinerário pedagógico composto por três dados e materiais. Na sala de aula, pode-
momentos lógicos: se também observar objetos e fenômenos,
entrevistar pessoas das comunidades
– Primeiro momento: a observação que podem falar sobre determinado
(estudo de meio); assunto e/ou demonstrar práticas
– Segundo momento: a busca da com- utilizadas no cotidiano, etc.
preensão (estudo científico); Os dados e informações coletados
– Terceiro momento: a volta ao real nesta etapa são identificados, classificados,
(trabalho prático). sistematizados e restituídos ao final de cada
estudo. Esta etapa também permite a for-
O guia diário do educador é a ficha mação de um “banco de dados”, podendo
pedagógica, que segue o itinerário peda- ser estruturado na biblioteca escolar.
gógico previamente elaborado. Para cada
unidade são elaboradas as fichas b) O estudo científico – É o momento
pedagógicas referentes à abordagem do específico do ensino formal, onde se ad-
tema em estudo, bem como uma ficha para quire as informações necessárias para
acompanhamento individual do aluno. O compreender a realidade do objeto e fenô-
conjunto das fichas pedagógicas é incor- meno estudados. Esta é a hora de trazer a
porado a um banco de dados, que registra contribuição das ciências, pois melhor do
todo o trabalho desenvolvido durante o que explicar é ensinar a procurar a expli-
ano letivo. Esses três momentos podem cação. Segundo Sena (1995), isso deve se
ocupar todo o dia letivo, com, em média, constituir um hábito de discussão com o
duas horas para cada um, e são avaliados grupo, buscando soluções, fazendo
com a mesma significação. Também, po- pesquisas nos livros, etc.
dem ser trabalhados durante uma unida-
de ou no desenvolvimento integral de um c) Trabalho prático – Sempre que
tema, ocupando assim uma carga horária possível, deve-se, nesta etapa, voltar para
variável dos três momentos. verificar como se dá a “complexidade da
realidade”. A reprodução do fenômeno é
a) Estudo de meio – O estudo de meio um bom instrumento de aprendizagem ci-
corresponde ao contato com o assunto den- entífica. É nesse exercício que se faz a co-
tro do tema a ser estudado mediante o nexão entre teoria-prática, escola-trabalho
exame ou levantamento de dados sobre o e escola-comunidade, por meio:
objeto e o fenômeno, permitindo assim dar
início ao processo de abstração e i) da experimentação de técnicas que
conceitualização. Nesse estudo, o saber preparem os alunos para transfor-
popular é revitalizado e introduzido no mar a realidade com base nos co-
ensino. A visão é interdisciplinar, e o tra- nhecimentos adquiridos nos dois
balho fica sendo percebido na intersecção primeiros momentos;
das relações homem-sociedade e homem- ii) da realização de um trabalho que
natureza, através da comunicação entre os ofereça um produto acabado, em
saberes diversos. Para Sena (1994), a pre- nível da própria família, em
ocupação é de fazer ver a realidade como benefício da comunidade e/ou da
um todo coerente, cheio de implicações própria escola, ou mesmo de
mútuas e interdependências. Isso implica atitude comunitária.
compreender cada elemento para, em se-
guida, reconstituir o real como um todo Os objetivos que se pretende alcançar
em que se manifesta. com este momento pedagógico são:
As formas e os instrumentos deste
estudo são variados e dependentes do a) pôr em prática o estudo teórico;
conteúdo, do objetivo e do local onde são b) educar para e pelo trabalho;
efetuados. Podem ser utilizados o estu- c) produzir coisas úteis para a escola
do de paisagem, o mapa mental, a e a comunidade;
reunião, visitas às comunidades, roças, d) ensinar a comunidade com exemplos
riachos, fundo de pasto, outros locais e concretos.
outras comunidades. Os alunos, sob ori-
entação de um ou mais educador, obser- Por certo, este momento sofre
vam, entrevistam, conversam, recolhem limitações referentes a sua ligação com o

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estudo científico, pois este possui um necessidades. Neste bloco, a escola estuda
ritmo próprio em função do calendário es- vários processos produzidos no mundo
colar. Associando-se a isto vem o fato de rural nordestino e semi-árido. Vai desde as
que se dá maior valorização ao conheci- técnicas mais rudimentares utilizadas pe-
mento do que a sua aplicação e a incerte- los/as sertanejos/as que moram no campo
za das proposições que realmente para produzir, até os caminhos que seguem
provocam uma ação transformadora. a sua produção e o seu destino final:
Esse foi o desenho inicial da atravessadores, mercado, indústrias, super-
proposta pedagógica que se buscou exer- mercados, mercearias, consumidor final,
citar na Erum, considerada na região, no etc. Procura-se o caminho que permita
seu tempo e lugar, como uma experimen- melhor produzir e a valorização dos pro-
tação educacional válida que deve ser dutos locais. Esse bloco é coordenado pela
apropriada. disciplina “Técnicas”.
Bloco Necessidades de Vida – Sabemos
que o espaço rural existe também pela ação
2.3 Reestruturação dos do homem e da mulher e que ambos
blocos temáticos – um enfrentam várias dificuldades e passam por
atendimento à práxis sérias necessidades que não podem ser ig-
pedagógica noradas pela escola. Neste bloco a disci-
plina Ciências busca trazer esses enfoques
No processo de implementação da para dentro da sala de aula, como também
proposta, muitas adaptações e adequações puxa a escola para as comunidades. Além
foram feitas. Atualmente, a proposta está de estudar e propor possíveis soluções para
estruturada em cinco blocos temáticos, a os problemas e necessidades enfrentados
saber: pelos/as homens/mulheres do semi-árido,
a Erum procura trabalhar de forma
Bloco Espaço – Tem como objetivo interdisciplinar e interinstitucional com a
estudar as origens e evoluções dos espa- participação de alunos, professores, comu-
ços do mundo rural, do mundo urbano e nidades e entidades governamentais e não-
do planeta, a partir das problemáticas e governamentais que atuam no campo, ou
potencialidades do espaço rural onde a seja, atores internos e externos.
escola está inserida. Este bloco tem à frente Bloco Convívio Social – Este bloco tem
a disciplina de Geografia, mas integra as como objetivo fortalecer cada vez mais a
contribuições das diversas áreas do conhe- relação escola-comunidade. O tema a ser
cimento – Português, Matemática, trabalhado reflete os conteúdos desenvol-
Educação Artística – através das práticas vidos em cada unidade, todos os respon-
interdisciplinares e transversais. sáveis pelas disciplinas trabalham
Bloco Organização Social – Para conjuntamente e todas as séries se mesclam
produzir e melhor utilizar o espaço em que em atividades preestabelecidas. As comu-
vive, é necessário que o homem e a mu- nidades também participam desde a fase
lher estejam organizados. Neste bloco a do planejamento até a execução das ativi-
escola busca desvendar o processo de or- dades do dia. É um momento muito
ganização social do homem e da mulher importante, em que a restituição dos co-
rural, como caminho para buscar a solu- nhecimentos adquiridos pelos alunos é re-
ção dos seus problemas, desenvolvimen- alizada, provocando a sua socialização e
to do espírito de ajuda mútua e da reflexão e repercutindo, dessa forma, nas
construção da solidariedade. Este bloco é ações do Plano de desenvolvimento das
puxado pela disciplina História, que, a par- comunidades.
tir da organização familiar (célula básica Este bloco é responsável pela animação
da sociedade), estuda as demais organiza- cultural, reforçando assim o convívio dos
ções sociais do País e do mundo, também diferentes atores sociais que habitam o
de forma interdisciplinar e transversal- espaço, têm necessidades comuns e se or-
mente, com a participação de alunos, ganizam socialmente para melhor desenvol-
demais professores e comunidade local. ver o seu processo produtivo, sem que
Bloco Processo Produtivo – No mundo percam a ajuda mútua e a solidariedade,
rural o homem e a mulher são os princi- para conviverem socialmente. A formação
pais agentes da transformação do espaço, desse bloco se deu a partir de 1998 (quarto
buscando produzir algo para suprir suas ano de existência da escola) e acontece uma

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vez em cada unidade escolar ou mesmo ao visão e a revalorização da sua auto-estima


final de cada estudo de realidade. como pessoa, portanto, sua autonomia,
Dessa forma, tem-se tentado, mediante libertando-se da dependência cristalizada.
os estudos de realidade, levantar os princi- Vale salientar que um trabalho deste
pais problemas, potencialidades, aspectos porte não pode nem deve ser desenvolvi-
culturais, econômicos, sociais e políticos das do aleatoriamente, sem compromisso,
comunidades rurais que compõem a escola. vontade e postura política e ousadia para
Procura-se estudar, discutir e redefinir alguns poder arriscar. Para isso, o planejamento
destes aspectos, através de uma ação semanal exerce uma função essencial,
interagida entre alunos, professores e comu- sendo esse momento utilizado para a re-
nidades para o fortalecimento da ação cole- alização de avaliação da semana anterior
tiva, visando consolidar uma via de desen- e, com base nesta, programar a atuação
volvimento sustentável com base nas capa- da próxima semana. Nos finais de sema-
cidades locais. Objetiva-se com isto fazer que na, os alunos estão nas suas comunida-
o camponês nordestino se veja como um “ci- des, ajudando os pais e, em alguns mo-
dadão”, pois quando este objetivo for atingi- mentos, realizando atividades de
do outros aspectos mudarão, como a sua pesquisas diversas originadas na escola.

Figura 3: Fluxograma dos blocos temáticos


Fonte: Professores da Erum.

3. Formação dos/as envolvidas na escola, esses professores se-


professores/as riam encaminhados à Secretaria Municipal
de Educação para a devida contratação.
A formação dos/as professores/as dentro A formação constitui-se de três
da implementação de uma proposta peda- momentos, a saber:
gógica como esta também assume uma posi-
ção de destaque. É preciso lembrar que as 1º Momento (saber) – Formação
instituições são constituídas pelas pessoas político-pedagógica, com destaque para os
que as habitam, e isso tem sido um dos prin- estudos de realidade;
cipais pontos de estrangulamento do proje- 2º Momento (ida à realidade – saber
to em andamento. No início, a seleção dos fazer) – Estudos de sistemas sociais, eco-
professores foi realizada pela Universidade nômicos, culturais e políticos nas comu-
do Estado da Bahia (Uneb), Departamento nidades rurais, com destaque para a
de Ciências Humanas – Campus III, através abordagem sistêmica das comunidades;
de critérios preestabelecidos que configura- 3º Momento (restituição) –
vam o perfil imaginário, ideal para o profes- Devolução dos resultados dos estudos,
sor da escola. Após quatro ou seis meses de com destaque para a análise dos
experiência vivenciados em meio aos estu- problemas e potencialidades das
dos teóricos e às comunidades rurais comunidades abordadas.

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A experiência de uma escola rural no contexto do projeto de desenvolvimento
local de Massaroca, semi-árido baiano

Com o concurso público de maio de Essa atividade foi escolhida para ser
1998, a Erum recebeu o mesmo tratamen- apresentada na Pré-Conferência de Educação
to das demais escolas da rede municipal, para Convivência com o Semi-Árido
e os novos professores concursados que Brasileiro, onde os alunos que participaram
assumiram imediatamente a função fica- deram uma aula de compreensão do
ram impossibilitados de passar pelo ecossistema local, destacando a importância
processo de formação. Tal fato provocou do bioma caatinga. Fizeram relações diversas
quebras momentâneas na condução da com a situação do ambiente local, a sobre-
experimentação pedagógica, o que vem carga de animais para a quantidade de pasto
sendo corrigido com a própria formação e o que poderia acontecer no decorrer dos
em processo. Essa formação acontece den- anos se não fosse tomada uma providência
tro da vivência dos processos pedagógicos por parte dos criadores das comunidades
da escola. Também são propiciados aos/às rurais: Tragédia dos Comuns, de Garrett
professores/as momentos de formação e Hardin (metáfora do manejo de recursos de
aperfeiçoamento mediante jornadas peda- propriedade comum).
gógicas e seminários diversos promovidos O trabalho demonstrou que existem
pela Secretaria de Educação Municipal. algumas comunidades que possuem um
rebanho imenso com um fundo de pasto pe-
queno, não suportando assim o abasteci-
4. A Escola Rural de mento dos seus animais. As aguadas exis-
Massaroca na perspectiva tentes são poucas e com baixos volumes de
do desenvolvimento água, assim como a capacidade de pasto dis-
sustentável: uma prática ponível. A escassez desses recursos faz com
à frente de seu tempo que os animais migrem para outras áreas,
onde também já existem outros animais.
Desde sua fundação, em 1995, a Nesse caso, grandes problemas começam a
Escola Rural de Massaroca já era uma es- acontecer, e isso tem provocado tanto a es-
cola à frente do seu tempo ou que conse- cola como os alunos a levarem esta proble-
guiu antecipar o futuro das políticas edu- mática para a discussão nas reuniões do
cacionais nas suas práticas educativas. Na Comitê das Associações Agropecuárias de
sua proposta de reorientação curricular Massaroca (Caam). Isso tem possibilitado
2
Segundo Rolim (1987),
convencionou-se chamar de isso ficou evidente, pois antes da aprova- aos criadores de Massaroca um repensar da
“fundo de pasto” as proprie- ção da Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e sobreexploração desse tão importante espa-
dades coletivas ocupadas, de
modo geral, por uma comu-
Bases da Educação Nacional), a Erum já ço de criação comunitária, assim como aos
nidade (muitas vezes de ori- estava fazendo na prática uma escola vol- alunos retornarem para a vida concreta o
gem familiar comum), onde tada para a realidade concreta do campo, objeto dos seus estudos como um inédito-
se realiza como atividade
predominante um pastoreio o que somente vem ganhar espaço na le- viável instrumento de transformação das
comunitário extensivo de gislação entre 1996 e 2002. práticas cotidianas dos atores e atrizes que
gado de pequeno porte e,
subsidiariamente, associado Uma das práticas que se destacam nessa fazem essas comunidades.
à agricultura itinerante. O experiência tem sido o estudo de realidade, O mais importante desse e dos demais
fundo de pasto, ou “feches”,
corresponde à figura jurídi-
que na Erum é realizado de diversas e vari- trabalhos didáticos desenvolvidos na Erum
ca do compáscuo, quer dizer, adas maneiras, sendo que, neste caso espe- é a demonstração de amadurecimento do
pasto comum ou local em cífico, destacamos o estudo do sistema fun- papel que essa escola exerce na vida desse
que se apascenta o gado co-
munitariamente. Essas do de pasto,2 desenvolvido pelos alunos da ambiente rural, onde as atividades pedagó-
comunidades “pasteiras” 8a série, durante o ano de 2003. gicas conseguem extrapolar o simples sen-
configuram um modelo sin-
gular de posse e uso da terra O referido estudo visava compreender tido do conteúdo pelo conteúdo, prática
cuja expressão social vai todo o sistema de fundo de pasto existente bem comum nas escolas do nosso País, mas
além da sua validade como
força produtiva, ao contrário nas comunidades rurais de Massaroca, bus- ir muito além, possibilitando aos alunos o
da maioria dos municípios cando assim levantar as suas problemáti- desenvolvimento de uma compreensão
do sertão, onde se obrigou,
por lei, os criadores, a cer-
cas, potencialidades e implicações no mais ampla do mundo em que vivem, mas
car os animais, acabando sistema produtivo local a partir de uma aná- tendo como princípio fundante das suas
com o pastoreio coletivo. No lise crítica e potencial da sua capacidade ações a relação concreta com o ecossistema.
nordeste da Bahia essa prá-
tica foi mantida. Foram zo- de suporte diante da grande quantidade de Vale lembrar que este mesmo estudo
nas de menor densidade ou animais que dele se utilizam, já que, para tem contribuído para o desenvolvimento
de ausência de latifúndios
onde se desenvolveu a muitos, a caprino-ovinocultura é a única de uma visão multidimensional da reali-
pequena produção, quando fonte de renda aliada à pequena agricultura dade concreta do semi-árido, onde a partir
os recursos hídricos permi-
tiam. É uma conseqüência
de sequeiro e, em raros casos, à criação de de uma atividade como essa os alunos pos-
da pressão fundiária menor. bovinos. sam despertar para compreender, por

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Edonilce da Rocha Barros

exemplo, o jogo pelo poder no mundo mudança social e do desenvolvimento é por


globalizado, onde muitas vezes as nações sua vez uma antropologia política, uma so-
mais poderosas transformam as nações ciologia das organizações, uma antropologia
subdesenvolvidas em vítimas das suas econômica, uma sociologia das redes, uma
ameaças e do seu poderio econômico, o que antropologia das representações e sistemas
por analogia se faz na situação citada aci- de sentidos (Olivier de Sardan, 1995). Foi
ma, onde as comunidades que possuem nesta perspectiva que a Escola Rural de
mais animais (sem critérios de qualidade) Massaroca formou e forjou os seus pilares
terminam por comprometer a vida e o de- de educação do campo e no campo.
senvolvimento das que possuem menos, já
que estes têm que dividir o mesmo espaço.
Retomando esta reflexão para o campo Considerações finais
da educação com foco para o desenvolvi-
mento sustentável e considerando que o Como bem reflete Luiz de Sena, “o
desenvolvimento “não é um ideal nem uma serviço de educação só tem sentido se for
catástrofe, mas antes de tudo um objeto de realizado segundo os interesses da comu-
estudo” (Olivier de Sardan, 1995), e que o nidade. Portanto, a realidade na qual está
sustentável trata das co-responsabilidades inserida continua a ser a grande
para com critérios públicos de convívio inspiradora da proposta pedagógica. Ela
coletivo e de cuidado com o meio e com o deve ser vista como uma grade transver-
outro (Martins, 2006) é que as práticas pe- sal e é por isso que a diversidade do meio
dagógicas desenvolvidas pelos/as professo- deve ser considerada” (Sena, 1996).
res/as e alunos/as da Erum, através do seu Um dos grandes desafios nessa
itinerário pedagógico, permitiram ir à co- trajetória da Erum foi responder à confiança
munidade e trabalhar os diversos conhe- depositada pelos alunos e pelas comuni-
cimentos. O que se buscava era explicar o dades em geral, que acreditaram ter a cer-
processo complexo que aparenta como sim- teza de possuir uma escola transformadora,
ples, que é a realidade (o meio ambiente, pensada e construída em conjunto com a
as condições de vida, as necessidades, o comunidade, trabalhando para o seu cres-
processo produtivo, as relações de poder, cimento e desenvolvimento sustentável. Por
a organização social, os processos de con- outro lado, a Erum é o elemento de maior
vivência, etc.), para que, com ações e/ou impacto do Projeto de Desenvolvimento das
atitudes concretas, a população possa Comunidades Rurais de Massaroca, pois a
transformar esta realidade. sua institucionalização é a concretização
A experiência mostrou que na Erum não materializada da luta do Caam por
há a necessidade de dizer se estamos melhores dias e condições de vida.
discutindo agora educação ambiental ou de- O caminho percorrido pelas comu-
senvolvimento sustentável, pois a compre- nidades é comprido. As pessoas mais
ensão da primeira como prática transversal ativas na organização dos agricultores e os
tem permeado todas as suas ações, onde o jovens que por lá passam e passaram têm
resultado maior é a construção de uma nova uma percepção do sistema em que vivem
ética nos relacionamentos socioeconômico, e, portanto, pouco a pouco, vão adquirin-
político, institucional e ambiental. Olivier de do as ferramentas essenciais para sua
Sardan (1995, p. 17) ressalta que as práticas transformação na busca do desenvolvi-
e as representações das populações, em face mento sustentável, onde os aspectos eco-
da mudança em geral e do desenvolvimento nômicos, sociais, culturais e ambientais
em particular, mobilizam todos os registros pressupõem a mesma importância.
possíveis, e ninguém pode ser, a priori, ex- A educação assume, com certeza, um
cluído ou desqualificado de avançar, nem o papel importantíssimo nesse caminho
econômico com suas relações de produção e percorrido até o momento, uma vez que
seus modos de ações econômicas, nem o po- possibilita uma real leitura do meio pelos
lítico com suas relações de dominação e suas atores e atrizes que habitam esse espaço,
estratégias de poder, nem o social, o simbó- permitindo, assim, o entendimento de que,
lico ou o religioso. A socioantropologia do na região semi-árida, a seca é um fenôme-
desenvolvimento não pode se decompor em no natural que faz parte do cotidiano e que
subdisciplinas: a transversalidade de seus é necessário se buscar alternativas de con-
objetos é indispensável à sua visão compa- vivência (as que já se tem e as que podem
rativa. Portanto, uma antropologia da ser criadas), para que cada um tenha uma

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A experiência de uma escola rural no contexto do projeto de desenvolvimento
local de Massaroca, semi-árido baiano

qualidade de vida melhor e possa usufruir A especificidade do contexto em que se


dignamente da sua cidadania de forma co- insere a Erum não permite maiores generali-
letiva, com eqüidade. zações para outras realidades, mas pode ser-
Entretanto, a educação não é um fim vir de parâmetro para se buscar o pensar de
em si mesmo, pois, como diz Araújo apud novas experiências voltadas para a educa-
Reis (2004, p. 61), a palavra educação, ção básica do campo, já que os seus elemen-
etimologicamente, origina-se do latim tos metodológicos e a sua intencionalidade
educere, que vai significar “conduzir, levar podem ser considerados em qualquer reali-
as pessoas para fora do lugar onde estão”, dade, dando conta de estudar o real, bem
lugar compreendido na perspectiva cultu- como dando a possibilidade de extrapolar
ral, antropológica, social, política, econô- para os outros níveis do conhecimento.
mica, etc., onde os sujeitos humanos tecem Nesse sentido, ressaltamos a eficácia,
e entretecem sua história tingida de signi- quando da utilização na prática. dos ins-
ficados, sentidos e saberes. Nessa experi- trumentos pedagógicos, dos princípios da
ência ela é somente parte de um projeto de proposta pedagógica e da importância que
desenvolvimento das comunidades de é dada aos saberes locais como ponto de
Massaroca, e sua contribuição só será efe- partida para a construção e aquisição de
tiva se estiver associada a outras políticas novos conhecimentos. Essa é a maior ri-
de apoio (ação fundiária, crédito, acesso ao queza da Erum, o que coloca a experiên-
mercado, infra-estrutura física e social, etc.) cia como um referencial. Ao se pensar
que possibilitem ações de continuidade. abordagens desta envergadura, ainda pre-
Nesse sentido, o compromisso com a valecem, no campo, a preponderância de
informação e com a educação e a troca de escolas que de rural possuem apenas
experiências entre as pessoas de todos os o nome, o que também tem sido, em
níveis e de todas as idades devem ser uma muitos casos, respaldado pelos órgãos
constante, o que possibilitará a reflexão e responsáveis pela Educação.
ação como prática de cada indivíduo, não Mudar essa lógica e tentar furar este
como um esforço a favor de programas ou cerco parece ser um dos maiores desafios,
sistemas econômicos internacionais, mas a pois o que percebemos até então, apesar
favor e em benefício de toda a coletividade. das aberturas deixadas pelas mudanças
O desenvolvimento “sustentável” não recentes nas leis e nos parâmetros que
pode ser uma promessa, nem uma propos- norteiam a educação no Brasil, é uma le-
ta que possa ser pensada e administrada targia, por parte do poder público, no que
apenas por alguns membros da comuni- se refere à redefinição da política educaci-
dade, mas por todos, já que a lógica da onal para o campo, que só recentemente
sustentabilidade deve ser a de uma com- começa a ganhar novos rumos.
preensão de sistema, em que todos devem Somos adeptos do pensamento de
estar comprometidos com os fins a que este Edgar Morin (2006, p. 16), quando diz:
servirá, que é a própria comunidade lo-
cal, e, numa escala maior, a própria vida e Educar para a era planetária significa que
garantia da existência da humanidade devemos nos questionar para saber se nos-
(Reis, 2004, p. 73). so sistema educacional está baseado na se-
Ainda são muitos os desafios. Alguns paração dos conhecimentos. Conhecimen-
deles se apresentam em forma interrogativa. tos estes que as disciplinas separam, e não
Como valorizar a experiência aprovada somente elas as separam como tampouco
pelos alunos, pelos pais, professores e comunicam. Nós aprendemos a analisar, a
visitantes nacionais e internacionais, se separar, mas não aprendemos a relacionar,
mesmo o município ainda não a assumiu a fazer com que as coisas se comuniquem.
como um espaço de formação de formado- Tudo está ligado, não só na realidade hu-
res para replicar a experiência? Como uma mana, como também na realidade planetá-
experiência dessa natureza pode engrossar ria. Portanto, podemos imaginar que nosso
o rol de algumas outras para se transfor- sistema educacional é inadequado.
marem em referências para diretrizes de
políticas de educação do campo? Como não Assim sendo, precisamos desconstruir
deixar tombar esta experiência pedagógica velhas e construir novas práticas, como a
de uma escola contextualizada, que no da Escola Rural de Massaroca e outras que
momento passa por sérias dificuldades, sucessivamente se recriam em outros
comprometendo sua continuidade? lugares e contextos.

R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 87, n. 216, p. 236-248, maio/ago. 2006. 247
Edmerson dos Santos Reis
Edonilce da Rocha Barros

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Edmerson dos Santos Reis, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educa-


ção da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), é professor
assistente do DCH-II da Universidade do Estado da Bahia (Uneb).

Edonilce da Rocha Barros, doutoranda do Curso de Pós-Graduação Interdisciplinar


em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), é professora
assistente da Universidade do Estado da Bahia (Uneb).

Recebido em 15 de março de 2006.


Aprovado em 30 de agosto de 2006.
248 R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 87, n. 216, p. 236-248, maio/ago. 2006.

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