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Resumo
Apresenta a experiência de uma escola rural idealizada, construída e
operacionalizada na dinâmica de um projeto de desenvolvimento local iniciado em
1986, a da Escola Rural de Massaroca (Erum), localizada na Fazenda Lagoinha, no Dis-
trito de Massaroca, município de Juazeiro, situado no coração do semi-árido baiano. A
escola foi construída depois de dez anos de existência do “Projeto”, a partir de uma
demanda do Comitê das Associações Agropecuárias de Massaroca (Caam). A aborda-
gem metodológica baseia-se na utilização dos estudos qualitativos, que permitem res-
peitar a dimensão temporal de avaliar a causalidade local para formular explicações. O
conteúdo revela um dos múltiplos olhares sobre a experiência, sistematizada por edu-
cadores que vivenciaram o processo de execução do projeto. Na primeira década de
execução deste, as preocupações eram mais voltadas para o campo da produção
agropecuária e da organização dos produtores, com o objetivo de assegurar e prosseguir
o esforço de geração, adaptação e difusão das inovações tecnológicas. Com a evolução
dessas questões, percebeu-se que a educação era o elemento preponderante para o en-
tendimento e a assimilação do novo modo de pensar, agir e viver no local. Surgiu daí a
necessidade de introduzir os temas culturais e educativos, firmando-se como priorida-
des para um desenvolvimento local sustentável vinculado às competências humanas e
aos recursos naturais das comunidades, contexto no qual surgiu a Erum.
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project, the concerns were more driven to farming production and to the organization of
the producers, with the objective of ensuring and continuing the effort of generation,
adaptation and diffusion of the technological innovations. With the evolution of these
questions, one perceived that the education was a key element for the understanding and
assimilation of the new way of thinking, acting and living in the region. Therefore, there
was the necessity of introducing cultural and educational subjects, prioritizing a
sustainable local development linked with human abilities and with the natural resources
of the communities, context in which Erum was created.
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Edonilce da Rocha Barros
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um itinerário pedagógico composto por três dados e materiais. Na sala de aula, pode-
momentos lógicos: se também observar objetos e fenômenos,
entrevistar pessoas das comunidades
– Primeiro momento: a observação que podem falar sobre determinado
(estudo de meio); assunto e/ou demonstrar práticas
– Segundo momento: a busca da com- utilizadas no cotidiano, etc.
preensão (estudo científico); Os dados e informações coletados
– Terceiro momento: a volta ao real nesta etapa são identificados, classificados,
(trabalho prático). sistematizados e restituídos ao final de cada
estudo. Esta etapa também permite a for-
O guia diário do educador é a ficha mação de um “banco de dados”, podendo
pedagógica, que segue o itinerário peda- ser estruturado na biblioteca escolar.
gógico previamente elaborado. Para cada
unidade são elaboradas as fichas b) O estudo científico – É o momento
pedagógicas referentes à abordagem do específico do ensino formal, onde se ad-
tema em estudo, bem como uma ficha para quire as informações necessárias para
acompanhamento individual do aluno. O compreender a realidade do objeto e fenô-
conjunto das fichas pedagógicas é incor- meno estudados. Esta é a hora de trazer a
porado a um banco de dados, que registra contribuição das ciências, pois melhor do
todo o trabalho desenvolvido durante o que explicar é ensinar a procurar a expli-
ano letivo. Esses três momentos podem cação. Segundo Sena (1995), isso deve se
ocupar todo o dia letivo, com, em média, constituir um hábito de discussão com o
duas horas para cada um, e são avaliados grupo, buscando soluções, fazendo
com a mesma significação. Também, po- pesquisas nos livros, etc.
dem ser trabalhados durante uma unida-
de ou no desenvolvimento integral de um c) Trabalho prático – Sempre que
tema, ocupando assim uma carga horária possível, deve-se, nesta etapa, voltar para
variável dos três momentos. verificar como se dá a “complexidade da
realidade”. A reprodução do fenômeno é
a) Estudo de meio – O estudo de meio um bom instrumento de aprendizagem ci-
corresponde ao contato com o assunto den- entífica. É nesse exercício que se faz a co-
tro do tema a ser estudado mediante o nexão entre teoria-prática, escola-trabalho
exame ou levantamento de dados sobre o e escola-comunidade, por meio:
objeto e o fenômeno, permitindo assim dar
início ao processo de abstração e i) da experimentação de técnicas que
conceitualização. Nesse estudo, o saber preparem os alunos para transfor-
popular é revitalizado e introduzido no mar a realidade com base nos co-
ensino. A visão é interdisciplinar, e o tra- nhecimentos adquiridos nos dois
balho fica sendo percebido na intersecção primeiros momentos;
das relações homem-sociedade e homem- ii) da realização de um trabalho que
natureza, através da comunicação entre os ofereça um produto acabado, em
saberes diversos. Para Sena (1994), a pre- nível da própria família, em
ocupação é de fazer ver a realidade como benefício da comunidade e/ou da
um todo coerente, cheio de implicações própria escola, ou mesmo de
mútuas e interdependências. Isso implica atitude comunitária.
compreender cada elemento para, em se-
guida, reconstituir o real como um todo Os objetivos que se pretende alcançar
em que se manifesta. com este momento pedagógico são:
As formas e os instrumentos deste
estudo são variados e dependentes do a) pôr em prática o estudo teórico;
conteúdo, do objetivo e do local onde são b) educar para e pelo trabalho;
efetuados. Podem ser utilizados o estu- c) produzir coisas úteis para a escola
do de paisagem, o mapa mental, a e a comunidade;
reunião, visitas às comunidades, roças, d) ensinar a comunidade com exemplos
riachos, fundo de pasto, outros locais e concretos.
outras comunidades. Os alunos, sob ori-
entação de um ou mais educador, obser- Por certo, este momento sofre
vam, entrevistam, conversam, recolhem limitações referentes a sua ligação com o
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estudo científico, pois este possui um necessidades. Neste bloco, a escola estuda
ritmo próprio em função do calendário es- vários processos produzidos no mundo
colar. Associando-se a isto vem o fato de rural nordestino e semi-árido. Vai desde as
que se dá maior valorização ao conheci- técnicas mais rudimentares utilizadas pe-
mento do que a sua aplicação e a incerte- los/as sertanejos/as que moram no campo
za das proposições que realmente para produzir, até os caminhos que seguem
provocam uma ação transformadora. a sua produção e o seu destino final:
Esse foi o desenho inicial da atravessadores, mercado, indústrias, super-
proposta pedagógica que se buscou exer- mercados, mercearias, consumidor final,
citar na Erum, considerada na região, no etc. Procura-se o caminho que permita
seu tempo e lugar, como uma experimen- melhor produzir e a valorização dos pro-
tação educacional válida que deve ser dutos locais. Esse bloco é coordenado pela
apropriada. disciplina “Técnicas”.
Bloco Necessidades de Vida – Sabemos
que o espaço rural existe também pela ação
2.3 Reestruturação dos do homem e da mulher e que ambos
blocos temáticos – um enfrentam várias dificuldades e passam por
atendimento à práxis sérias necessidades que não podem ser ig-
pedagógica noradas pela escola. Neste bloco a disci-
plina Ciências busca trazer esses enfoques
No processo de implementação da para dentro da sala de aula, como também
proposta, muitas adaptações e adequações puxa a escola para as comunidades. Além
foram feitas. Atualmente, a proposta está de estudar e propor possíveis soluções para
estruturada em cinco blocos temáticos, a os problemas e necessidades enfrentados
saber: pelos/as homens/mulheres do semi-árido,
a Erum procura trabalhar de forma
Bloco Espaço – Tem como objetivo interdisciplinar e interinstitucional com a
estudar as origens e evoluções dos espa- participação de alunos, professores, comu-
ços do mundo rural, do mundo urbano e nidades e entidades governamentais e não-
do planeta, a partir das problemáticas e governamentais que atuam no campo, ou
potencialidades do espaço rural onde a seja, atores internos e externos.
escola está inserida. Este bloco tem à frente Bloco Convívio Social – Este bloco tem
a disciplina de Geografia, mas integra as como objetivo fortalecer cada vez mais a
contribuições das diversas áreas do conhe- relação escola-comunidade. O tema a ser
cimento – Português, Matemática, trabalhado reflete os conteúdos desenvol-
Educação Artística – através das práticas vidos em cada unidade, todos os respon-
interdisciplinares e transversais. sáveis pelas disciplinas trabalham
Bloco Organização Social – Para conjuntamente e todas as séries se mesclam
produzir e melhor utilizar o espaço em que em atividades preestabelecidas. As comu-
vive, é necessário que o homem e a mu- nidades também participam desde a fase
lher estejam organizados. Neste bloco a do planejamento até a execução das ativi-
escola busca desvendar o processo de or- dades do dia. É um momento muito
ganização social do homem e da mulher importante, em que a restituição dos co-
rural, como caminho para buscar a solu- nhecimentos adquiridos pelos alunos é re-
ção dos seus problemas, desenvolvimen- alizada, provocando a sua socialização e
to do espírito de ajuda mútua e da reflexão e repercutindo, dessa forma, nas
construção da solidariedade. Este bloco é ações do Plano de desenvolvimento das
puxado pela disciplina História, que, a par- comunidades.
tir da organização familiar (célula básica Este bloco é responsável pela animação
da sociedade), estuda as demais organiza- cultural, reforçando assim o convívio dos
ções sociais do País e do mundo, também diferentes atores sociais que habitam o
de forma interdisciplinar e transversal- espaço, têm necessidades comuns e se or-
mente, com a participação de alunos, ganizam socialmente para melhor desenvol-
demais professores e comunidade local. ver o seu processo produtivo, sem que
Bloco Processo Produtivo – No mundo percam a ajuda mútua e a solidariedade,
rural o homem e a mulher são os princi- para conviverem socialmente. A formação
pais agentes da transformação do espaço, desse bloco se deu a partir de 1998 (quarto
buscando produzir algo para suprir suas ano de existência da escola) e acontece uma
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Com o concurso público de maio de Essa atividade foi escolhida para ser
1998, a Erum recebeu o mesmo tratamen- apresentada na Pré-Conferência de Educação
to das demais escolas da rede municipal, para Convivência com o Semi-Árido
e os novos professores concursados que Brasileiro, onde os alunos que participaram
assumiram imediatamente a função fica- deram uma aula de compreensão do
ram impossibilitados de passar pelo ecossistema local, destacando a importância
processo de formação. Tal fato provocou do bioma caatinga. Fizeram relações diversas
quebras momentâneas na condução da com a situação do ambiente local, a sobre-
experimentação pedagógica, o que vem carga de animais para a quantidade de pasto
sendo corrigido com a própria formação e o que poderia acontecer no decorrer dos
em processo. Essa formação acontece den- anos se não fosse tomada uma providência
tro da vivência dos processos pedagógicos por parte dos criadores das comunidades
da escola. Também são propiciados aos/às rurais: Tragédia dos Comuns, de Garrett
professores/as momentos de formação e Hardin (metáfora do manejo de recursos de
aperfeiçoamento mediante jornadas peda- propriedade comum).
gógicas e seminários diversos promovidos O trabalho demonstrou que existem
pela Secretaria de Educação Municipal. algumas comunidades que possuem um
rebanho imenso com um fundo de pasto pe-
queno, não suportando assim o abasteci-
4. A Escola Rural de mento dos seus animais. As aguadas exis-
Massaroca na perspectiva tentes são poucas e com baixos volumes de
do desenvolvimento água, assim como a capacidade de pasto dis-
sustentável: uma prática ponível. A escassez desses recursos faz com
à frente de seu tempo que os animais migrem para outras áreas,
onde também já existem outros animais.
Desde sua fundação, em 1995, a Nesse caso, grandes problemas começam a
Escola Rural de Massaroca já era uma es- acontecer, e isso tem provocado tanto a es-
cola à frente do seu tempo ou que conse- cola como os alunos a levarem esta proble-
guiu antecipar o futuro das políticas edu- mática para a discussão nas reuniões do
cacionais nas suas práticas educativas. Na Comitê das Associações Agropecuárias de
sua proposta de reorientação curricular Massaroca (Caam). Isso tem possibilitado
2
Segundo Rolim (1987),
convencionou-se chamar de isso ficou evidente, pois antes da aprova- aos criadores de Massaroca um repensar da
“fundo de pasto” as proprie- ção da Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e sobreexploração desse tão importante espa-
dades coletivas ocupadas, de
modo geral, por uma comu-
Bases da Educação Nacional), a Erum já ço de criação comunitária, assim como aos
nidade (muitas vezes de ori- estava fazendo na prática uma escola vol- alunos retornarem para a vida concreta o
gem familiar comum), onde tada para a realidade concreta do campo, objeto dos seus estudos como um inédito-
se realiza como atividade
predominante um pastoreio o que somente vem ganhar espaço na le- viável instrumento de transformação das
comunitário extensivo de gislação entre 1996 e 2002. práticas cotidianas dos atores e atrizes que
gado de pequeno porte e,
subsidiariamente, associado Uma das práticas que se destacam nessa fazem essas comunidades.
à agricultura itinerante. O experiência tem sido o estudo de realidade, O mais importante desse e dos demais
fundo de pasto, ou “feches”,
corresponde à figura jurídi-
que na Erum é realizado de diversas e vari- trabalhos didáticos desenvolvidos na Erum
ca do compáscuo, quer dizer, adas maneiras, sendo que, neste caso espe- é a demonstração de amadurecimento do
pasto comum ou local em cífico, destacamos o estudo do sistema fun- papel que essa escola exerce na vida desse
que se apascenta o gado co-
munitariamente. Essas do de pasto,2 desenvolvido pelos alunos da ambiente rural, onde as atividades pedagó-
comunidades “pasteiras” 8a série, durante o ano de 2003. gicas conseguem extrapolar o simples sen-
configuram um modelo sin-
gular de posse e uso da terra O referido estudo visava compreender tido do conteúdo pelo conteúdo, prática
cuja expressão social vai todo o sistema de fundo de pasto existente bem comum nas escolas do nosso País, mas
além da sua validade como
força produtiva, ao contrário nas comunidades rurais de Massaroca, bus- ir muito além, possibilitando aos alunos o
da maioria dos municípios cando assim levantar as suas problemáti- desenvolvimento de uma compreensão
do sertão, onde se obrigou,
por lei, os criadores, a cer-
cas, potencialidades e implicações no mais ampla do mundo em que vivem, mas
car os animais, acabando sistema produtivo local a partir de uma aná- tendo como princípio fundante das suas
com o pastoreio coletivo. No lise crítica e potencial da sua capacidade ações a relação concreta com o ecossistema.
nordeste da Bahia essa prá-
tica foi mantida. Foram zo- de suporte diante da grande quantidade de Vale lembrar que este mesmo estudo
nas de menor densidade ou animais que dele se utilizam, já que, para tem contribuído para o desenvolvimento
de ausência de latifúndios
onde se desenvolveu a muitos, a caprino-ovinocultura é a única de uma visão multidimensional da reali-
pequena produção, quando fonte de renda aliada à pequena agricultura dade concreta do semi-árido, onde a partir
os recursos hídricos permi-
tiam. É uma conseqüência
de sequeiro e, em raros casos, à criação de de uma atividade como essa os alunos pos-
da pressão fundiária menor. bovinos. sam despertar para compreender, por
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Referências bibliográficas
ARAÚJO, Miguel Almir Lima de. Educação e enraizamento: a fecundidade das raízes
culturais na educação. Não publicado.
SENA, Luís de. Elementos para reflexão e avaliação do projeto de Formação Rural de
Massaroca: Eixo escolar. Paris: IRFED,1996. 29 p.