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Introdução............................................................................................................................. 8
Considerações Finais......................................................................................................... 42
Referências Bibliográficas.............................. 44
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INTRODUÇÃO
Quando fiz a primeira associação entre a análise do território na esfera dos Estudos
Culturais e os shows de hardcore que frequento desde a minha adolescência, percebi que
havia ali um profundo desejo de compreender aquele espaço que há anos faz parte não
apenas da minha construção como pessoa, mas também da história de vida de diversos
amigos e pessoas queridas. Percebi logo de início o desafio de deslocar-se da posição de
sujeito dessas experiências para a de observador e intérprete. Ora, se por um lado é
instigante buscar entender de onde vêm e de que maneira se organizam os significados
por trás das ações dos sujeitos, por outro, é extremamente delicado interpretar
antropologicamente o seu próprio ‘‘rolê’*. Trata-se de um deslocamento subjetivo no qual
busco compreender aquilo que observo pra além dos afetos e percepções comuns do
cotidiano. Por outro lado, me parece interessante que minhas experiências e afetos
relacionados ao tema me permitam bons exercícios de empatia na interpretação dos
sujeitos. As presentes reflexões nascem da busca desse outro olhar, que inclui a
responsabilidade de deslocar-se para um novo lugar de compreensão das experiências, o
desafio de observar pessoas e lugares já familiares por uma outra perspectiva e o desejo
de compreender subjetivamente o show de hardcore, mais precisamente o seu papel na
construção de uma cena na qual mantém-se um ethos coletivo.
No Brasil é comum referir-se ao “show" de hardcore como forma de nomear um evento. O show está para
c Hardcore assim como o baile está para o Funk, concerto está para a música clássica ou a roda de samba
e-sca para o Samba. Ex: o público vai ao “show do Dead Fish", ainda que a banda não seja a única atração,
—as a principal. Recentemente o termo “rolê” também vem se popularizando entre o público.
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culturais e as trocas simbólicas em espaços de reunião coletiva destinados à subcultura
hardcore. subgênero proveniente do punk.
Fruto das manifestações culturais que apareciam em uma Nova York marcada
pelo crescimento do desemprego entre os jovens e do trânsito de tais eventos até os jovens
pobres da cidade de Londres, considera-se mais aceitável como momento de surgimento
da cultura Punk a metade dos anos 70. Ambos os cenários Rock n' Roll dos países já
demonstravam algum cansaço em relação ao Rock Progressivo, que além de carregado
de virtuosidades, alimentava uma relação de estrelato entre artistas e público. Nos dois
países, bandas com músicas mais simplificadas e comportamentos extravagantes já
surgiam apresentando indícios de maior rebeldia juvenil, como The Stooges, New York
Dolls e a britânica The Kinks. As primeiras bandas a apresentarem uma atitude e uma
sonoridade mais rápida, pesada e de estética claramente mais agressiva aos valores então
vigentes foram os Ramones, em Nova York, e os Sex Pistols, em Londres. A partir de
1977, o punk se tomaria um fenômeno cultural, social e estético impactante e seu
crescimento se deu de forma bastante acelerada. Não demorou muito para que mercado e
mídia explorassem ao máximo a estética do punk. Tal exploração levou ao esgotamento
do punk e um consequente desinteresse da mídia massiva. O Punk foi dado como morto.
Ainda assim, a mensagem transmitida por tais bandas e a simbolismo da subcultura
permaneceu e foi ressignificada no underground, possibilitando gradualmente o
reaparecimento não apenas do punk , mas de releituras e novas ramificações do
movimento, sendo o hardcore uma das mais conhecidas. Nos anos 80, Janice Caiafa
observou essa transição registrando que ‘"o som punk também transformou-se, ganhando
em aceleração e peso" - era o hardcore - que, para a autora, “representa a ausência de
toda musicalidade e harmonia do rock, deixando-o tão cru, que seria praticamente
impossível sua conversão ao gosto geral, como havia acontecido com o punk rock"
(CAIAFA apud TURRA NETO, 2012, p.2-3).
Esse movimento que ressurge em meados dos anos 80 a partir de bandas como
Dead Kennedys, Black Flag, Circle Jerks , Bad Brains, 7 Seconds e Minor Threat, foi
muitas vezes denomidado como hardcore punk se mostrou como “a segunda onda do
punk" e se destacava tanto pela maior velocidade e agressividade sonora nas músicas
quanto pelo teor político e social de suas letras, que possuíam também relatos de revolta
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e frustrações individuais. Tornou-se popular entre os praticantes do skateboarding2 na
Califórnia e na capital Washington DC. Em relação à sua estética, o hardcore adotou um
visual mais simples e menos exótico do que o punk. substituindo os moicanos e as
jaquetas com adereços por cortes de cabelo um pouco menos extravagantes e mais
simples, influenciado também pelo visual dos skatistas. Ao longo da década de 80 a
aproximação entre as cenas hardcore e a cena anarcopunk da Inglaterra, além do
surgimento do Straight Edge (em síntese, uma designação para “ hardcore sem drogas”,
que muito dialogava com o vegetarianismo/veganismo e propunha uma discussão sobre
sustentabilidade e ecologia) em Washington DC, revelou uma postura punk
significantemente mais construtiva e ativista que, apesar da agressividade presente nas
músicas, trazia consigo um discurso de atitude positiva, contrapondo a imagem do punk
vista por muitos como junkie e gangster.
- Esporte que surge nos Estados Unidos, mais precisamente na Califórnia dos anos 60, quando surfistas
adaptaram pranchas para serem utilizadas nas ruas.
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punk, ska-punk. crustcore, emocore, powerviolence, entre outros. Por outro lado, o termo
punk também é utilizado lá fora de forma abrangente, inclusive para fazer referência a
seus subgêneros e suas respectivas cenas, sempre que a especificidade de definição não
se faz necessária. Ainda assim, é importante também enfatizar que o hardcore, embora
descendente do punk , dele se distingue em diversos aspectos que vão além das marcas
musicais, incluindo as diferentes formas de sociabilidade e atribuições de valor. Nesse
sentido, esclareço que nesse trabalho utilizarei hardcore como compreendido aqui no
Brasil, e punk com o seu significado mais global, uma vez que, além de estarem
interligadas, ambas as terminologias representarão as cenas e subculturas que serão objeto
de análise do presente estudo.
Nesse sentido, este estudo busca defender o território físico, o espaço geográfico
constituído por todo seu aparato subjetivo, o encontro entre sujeitos, contra-
argumentando a ideia de uma possível desterritorialização que seria resultante do
surgimento de novas tecnologias. Nos interessa uma perspectiva diferente acerca das
novas territorialidades construídas ou mesmo das reterritorializações resultantes do uso
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feito pelos sujeitos dessas novas ferramentas da web. Busca-se afirmar que tais
ferramentas, embora alterem a maneira como se formam as identidades dessas
coletividades, também as reforçam, expõem, publicizam. compartilham e as transportam
a novos territórios, atingindo novos sujeitos. Uma vez que esses sujeitos passam a existir
"em tempo real" em novos espaços, tal identidade é mais uma vez reafirmada e recriada,
agora de forma mais descentralizada em relação aos centros de produção até então
hegemônicos. De qualquer maneira, tal fenômeno não seria possível sem o cerne de sua
existência: seu território de encontro de sujeitos, a reunião em tomo de algo que lhes é
comum e seus significados.
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Capítulo I - O papel do território no surgim ento de uma cena hardcore
brasileira
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cobertura midiática feita pelo do programa Lado B. da MTV e da rádio 89 FM3. No
Juntatribo tocaram bandas que mais tarde permaneceríam no underground e
participariam da emergência de uma cena hardcore, como Tube Screamers, Safari
Hamburguers e Garage Fuzz\ bandas que iriam compor uma cena rock independente no
Brasil, como Pin Ups, WRY, Brincando de Deus e Relespública\ e também bandas que
posteriormente ascenderíam ao mainstream, como Planei Hemp e Raimundos. Sobre o
Juntatribo, o jornalista Paulo Marchetti escreveu:
O exemplo do Juntatribo nos ajuda a refletir a partir das idéias de Santos acerca
do território e da compreensão do Mundo como “um conjunto de oportunidades, cuja
efetivação depende das oportunidades oferecidas pelos lugares” (SANTOS, 1997, p.337),
uma vez que o festival, se considerado um marco para as cenas que surgiríam
posteriormente a partir das ações dos sujeitos envolvidos, acaba por ilustrar que “o
exercício desta ou daquela ação, passa a depender da existência, neste ou naquele lugar,
^ O Lado B foi um programa televisivo da emissora paulista MTV dedicado ao rock alternativo e
.nderground. exibido entre 1991 e 2000e apresentado por Fabio Massari, Kid Vinil e Luiz Thunderbird.
Por sua \ez a 89 FM, A Rádio Rock, é uma emissora de rádio paulista que nos anos 90 ganhou grande
destaque no seguimento naquele estado, assim como a Fluminense “A Maldita” se tornou referência no
Rio de Janeiro.
' Ver em: http://setedoses.bloespot.com.br/2010/08/serie-anos-90-sp-5-festival-iuntatribo.html,
acessado em 15 de março de 2017.
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das condições locais que garantam eficácia aos respectivos processos" (SANTOS, 1997,
p.337). As interações entre os envolvidos (bandas, público, jornalistas, fanzineiros, etc)
não apenas ampliaram possibilidades para as cenas que viriam a se formar, mas também
enfatizaram a importância do espaço coletivo, partilhado e de circulação de conteúdo. E
importante lembrar que o início dos anos 90 é marcado pelo rock mainstream5 e pelos
grandes festivais como Rock In Rio e Hollywood Rock, sempre reunindo milhares de
pessoas em grandes espaços e oferecendo exclusivamente artistas consagrados pela
grande mídia. A reunião de produtores que não possuíam qualquer vínculo com grandes
gravadoras em um mesmo território, colabora então para a constituição, no Brasil, do que
\ iria a se transformar nas primeiras subculturas juvenis atreladas ao underground,
definido como:
' Estratégia de grande distribuição e amplo consumo, para o grande mercado, em contraposição ao
underground. por sua vez segmentado, independente e resistente às grandes gravadoras e ao mercado
fonográfico então hegemônico.
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a abertura do regime militar e o processo de redemocratização demarcam bem o
surgimento dos primeiros festivais undergrounds.
‘ Ricardo Alexandre: Dias de Luta - O Rock e o Brasil Dos Anos 80. Ia edição, DBA/Dórea Books and
An. São Paulo 2002. pág.61 seg. (ISBN 978-857234-253-7)
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com construção/consolidaçâo de uma identidade coletiva e um sentimento de
pertencimento, compõem e transformam determinada espacialidade para que os lugares
atendam seus anseios e as condições necessárias para sua reunião. Segundo Rogério
Haesbaert e Ester Limonad:
Ainda de acordo com Haesbart e Limonad (Id., ibid.), “a territorialidade pode ser
entendida como a estratégia geográfica para controlar/atingir a dinâmica de pessoas,
fenômenos e relações através da manutenção do domínio de uma determinada área”.
E nesse sentido que se tom a fundamental pensar o território não apenas como o
espaço físico destinado a abrigar o encontro desses sujeitos, mas sim como todo o
conjunto de produção de sentidos, significados, relações e diversas outras complexidades
que o compõe para além de suas materialidades. Aqueles que ali circulam cantam,
dançam, conversam, produzem ou consomem cultura, podem ser também mediadores ou
espectadores. Se vestir a camisa de uma banda, transitar segurando um skate, ter cabelos
coloridos ou tatuagens são formas de expressão mais comuns que produzem inúmeros
significados, o uso da língua e suas gírias, as relações de poder, de afeto, as atribuições
de \alo r também produzirão sentido na maneira como se organiza o território, no caso, o
show de hardcore.
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coletividades acabavam por produzir seus próprios fanzines (que contrapunham as
populares revistas das bancas de jornais, dedicadas a artistas já consagrados no rádio e na
televisão), suas fítas-demo (gravações de bandas independentes feitas com baixo custo),
camisas, entre outros. Diante da necessidade de fazer esse material circular, bandas e
produtores independentes, bem como seu público, acabam por se tomar parte
fundamental desse processo de reterritorialização dos espaços. Ao pesquisar o surgimento
da cena Heavy Metal entre a juventude de Pernambuco, Wilfred Gadelha destaca como
esse processo se deu, por exemplo, nas escolas:
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Segundo descrição7 em seu site na internet, o Hangar 110 surge "apostando na força do
hardeore e punk nacional" e “valoriza os grupos de outros estados do Brasil”, destacando
que “é enorme a quantidade com que surgem ótimas bandas nos quatro cantos do país, o
que toma frequente a presença de muitas delas na casa. Isso só prova que as bandas
estrangeiras são legais, mas aqui dentro do Brasil também tem muitas coisas boas que
precisam ser valorizadas”.
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pequenas bancas onde distribuíam seus produtos dentro dos espaços destinados aos
proprios shows. As 4>banquinhas’\ mais do que um espaço de comércio desses produtos,
proporcionam então uma forte interação entre bandas e público, pois mais do que
simplesmente adquirir um cd ou uma camiseta, a experiência de estar em contato direto
com os sujeitos que logo estariam no palco ou que dele acabaram de sair se revela como
um processo de interação social que irá desencadear em relações de afeto e proximidade.
Dessa maneira, quando uma banda visitava outro estado, era comum que levasse não
somente informações da cena local da qual fazia parte, mas também materiais de bandas
amigas, que assim circulariam em novos lugares, chegando a novas pessoas por meio de
mediadores e intermediários. A partir do sucesso dessas redes e conexões, bandas
rodaram o Brasil, e o show de hardcore se mostrou o grande lugar de reunião e realização
dos sujeitos que movimentam esse circuito.
Um caso muito curioso e também muito lembrado no Rio de Janeiro diz respeito
ao Motherfucker Ice Cream9. Negro, de grandes cabelos e bigodes grisalhos, sob tal
pseudônimo, um vendedor ambulante de sorvetes era personagem frequente dos shows
de hardcore na capital. Querido por muitos e com uma predileção por trabalhar vendendo
seus sorvetes em um pequeno isopor em frente aos espaços que abrigavam shows de rock,
Mothefucker Ice Cream é frequentemente lembrado por saudosos frequentadores do
Casarão Amarelo, em Copacabana, e do Kachanga, em Botafogo. Numa refinada busca
no Google, é possível localizar alguns fotologs10 ainda ativos com fotos e relatos sempre
muito afetuosos sobre esse vendedor. Se tornou uma marca dos shows de rock
undergound no Rio de Janeiro e seu pseudônimo é sempre lembrado com carinho. Neste
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caso. se considerarmos que o show de hardcore enquanto território possa se mostrar bem
exciudente no que diz respeito a frequentadores de outras tribos, é interessante pensar que
os afetos que ali surgem resultam num espaço compartilhado que pode acolher e abrigar
atores sociais de realidades consideravelmente distintas. Negro e pobr z^Motherfucker Ice
~Crearnjo vendedor de sorvetes que dali tirava seu ganha pão, ficou no coração de muitos
jovens da Zona Sul do Rio de Janeiro que frequentavam shows onde predominava um
público branco e de classe média.
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Capítulo II - Território e Identidade: o eu e o outro no show de hardcore
Ao propor uma reflexão sobre o papel do território na construção do que seria uma
“identidade hardcore" nos cabe pensar sobre os ritos de reunião e o encontro de sujeitos
que compõem tal coletividade. Mais do que a reunião em tomo de interesses comuns
ligados à produção cultural, há relações de pertencimento, identificação e diferenciação
que irão atravessar e impactar a experiência dos sujeitos nos lugares. Camisetas de bandas
e outros itens de vestuário, tatuagens, piercings e alargadores são alguns dos itens e
adereços estéticos que concomitantemente farão o papel de signos demarcadores de um
processo de identificação e pertencimento. No entanto, nem sempre signos que atuam
nesses processos estão restritos ao campo do visual: gírias, regras de comportamento,
discursos e práticas inerentes aos territórios de sociabilidade também estão em disputa na
tentativa de definir o que “é ou não hardcore”. Sendo assim, é interessante registrar, antes
de aprofundarmos nossas reflexões, que o “ser hardcore” carrega consigo uma
peculiaridade que o distingue do “ser punk”, no que diz respeito à forma de expressão dos
sujeitos ao se identificarem com a subcultura a qual pertencem. Se o punk se
autodenomina de punk ao afirmar que “é punk". os sujeitos que circulam e constituem
uma cena hardcore dificilmente usarão o termo que nomeia sua subcultura da mesma
forma. Como hardcore pode ter outros significados em outros contextos não-musicais ou
que não dizem respeito a subcultura que tratamos aqui, é bem incomum que os sujeitos
utilizem “sou hardcore” como um punk utilizaria “sou punk". Talvez existam outros
fatores além da multissignificância da palavra (e aí caberia um estudo semiológico mais
aprofundado, que não é objetivo deste trabalho), mas é muito comum ouvir “sou do
hardcore" ou “curto hardcore”, entre outras maneiras de dizer que apontem diretamente
para a subcultura e o gênero musical sem necessariamente transferir parte da terminologia
para o sujeito. Não será por conta dessa peculiaridade que os processos de identificação
e pertencimento estarão de alguma maneira comprometidos, afinal, outras subculturas
também não fazem tal relação terminológica: o sujeito “do heavy metal" não “é heavy
metal", mas “headbanger”, por exemplo. No entanto, se pretendemos investigar como
esses sujeitos se encontram e se identificam, torna-se relevante entender como se dão tais
declarações de pertencimento, autodenominações e demais maneiras de afirmar-se como
alguém que se sente pertencente a uma determinada subcultura.
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Na busca por uma maior compreensão dessas formas de definição, iremos recorrer
aos estudos de Tomás Tadeu da Silva sobre a concepção da identidade a partir da
diferença (e a relação de oposição e dependência entre ambos) para analisarmos
primeiramente os recursos linguísticos que irão introduzir nossa reflexão sobre o processo
de identificação na cena hardcore:
Nesse sentido é que definir-se como “do hardcore” será não apenas uma afirmação
de pertencimento a determinada coletividade ou grupo, mas também um marco de
distinção em relação aos demais, uma vez que o sujeito “não é punk “não é headbanger”
ou “não é do heavy metal”. Enfatizando que a linguagem age no campo das
diferenciações, Tadeu recorre a Ferdinand de Saussure ao lembrar que "a linguagem é,
fundamentalmente, um sistema de diferenças” e que “os elementos - os signos - que
constituem uma língua não têm qualquer valor absoluto, não fazem sentido se
considerados isoladamente” (TADEU DA SILVA. 2000, p.74). Desse modo, podemos
dizer que mais do que um termo a ser usado, há todo um contexto no qual uma
autodenominação como forma de demonstrar pertencimento se fará ou não necessária. E
providencial considerar que a linguagem nem sempre irá satisfazer certas definições e
que para os próprios sujeitos nem sempre definições objetivas “daquilo que se é” serão
tão fundamentais para que se sintam pertencentes ou não a determinados grupos. Se
tomarmos como exemplo o Samba, podemos pontuar fenômeno similar: “eu sou do
samba" não terá, em muitas ocasiões, o mesmo significado de “eu sou sambista”, uma
vez que nessa última afirmação o termo sambista pode fazer referência a alguém que é
compositor de samba, que possui atuação mais específica nos espaços e nas relações entre
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sujeitos daquela cultura. Não há um termo específico que identifique o sujeito fiel às rodas
de samba que frequenta e vivência. Já no caso do Funk, por outro lado. o termo funkeiro
pode denominar sem problemas tanto quem compõe músicas de funk como quem apenas
gosta de funk, frequenta bailes funk ou de alguma maneira pertence ao universo do funk.
[...]Mas a natureza da linguagem é tal que não podemos deixar de ter a ilusão de
ver o signo como uma presença, isto é, de ver no signo a presença do referente (a
"coisa") ou do conceito. E a isso que Derrida chama de "metafísica da presença".
Essa "ilusão" é necessária para que o signo funcione como tal: afinal, o signo está
no lugar de alguma outra coisa. Embora nunca plenamente realizada, a promessa
da presença é parte integrante da idéia de signo. Em outras palavras, podemos
dizer, com Derrida, que a plena presença (da "coisa", do conceito) no signo é
indefinidamente adiada. É também a impossibilidade dessa presença que obriga
o signo a depender de um processo de diferenciação, de diferença, como vimos
anteriormente. Derrida acrescenta a isso, entretanto, a idéia de traço: o signo
carrega sempre não apenas o traço daquilo que ele substitui, mas também o traço
daquilo que ele não é, ou seja, precisamente da diferença. Isso significa que
nenhum signo pode ser simplesmente reduzido a si mesmo, ou seja. à identidade.
Se quisermos retomar o exemplo da identidade e da diferença cultural, a
declaração de identidade "sou brasileiro", ou seja. a identidade brasileira, carrega,
contém em si mesma, o traço do outro, da diferença - "não sou italiano", "não sou
chinês" etc. A mesmidade (ou a identidade) porta sempre o traço da outridade (ou
da diferença). (Id. Ibid. p.74)
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reconhecimento, aprazimento, entre outras variáveis que irão constituir um processo de
construção identitária.
11 Corrente do PunkHardcore que surge em meados dos anos 80 criticando a ideia de que o punk teria um
comportamento autodestrutivo e defendendo a abstinência em relação ao uso de drogas legais ou ilegais.
Adeptos do Straight Edge não vêem sentido em fazer uso de drogas ou ingerir bebidas alcóolicas para se
divertir. Aos longo do tempo novas pautas ganharam força no estilo de vida Straight Edge, como
0 <
vegetarianismo e direito dos animais.
12 Sub-gênero do Hardcore que surge em Washington DC nos anos 80, privilegiando um som mais
melódico, com letras que abrangem conflitos individuais e questões emocionais. O termo vem de Emotiona!
Hardcore ou Hardcore Emocional.
Termo utilizado para fazer referência à tradição ou ao tradicional. A "velha escola” do hardcore.
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Temas Tadeu. ao pensar essas relações de poder, chama atenção para a presença do poder
de definir que acompanha esse processo de diferenciação:
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Numa perspectiva Geográfica, pensando a espacialidade como condição
necessária para o entrecruzamento dos sujeitos que constituem uma determinada
subcultura. o show de hardcore (pensado aqui como rito de encontro) está para além da
expectativa comum acerca da performance de um artista ou banda. Nesse espaço,
desenvolvem-se afetos, habilidades, narrativas, contradições, tensões e uma pluralidade
de interações que atravessam os sujeitos que ali circulam. Um fotógrafo que aprendeu a
fotografar em shows ou um produtor cultural que começou organizando pequenos eventos
com as bandas dos amigos terão suas trajetórias profissionais diretamente afetadas pelo
território que contribuiu para o desenvolvimento de tal habilidade. E importante lembrar
que o punk e o hardcore por muito tempo foram vistos como microrebeldias juvenis, como
cenas adolescentes transitórias entre a juventude e aquilo que costuma-se chamar de “vida
adulta”. De fato, há uma intensa transitoriedade nesses espaços: novos sujeitos que
chegam, antigos sujeitos que vão, novas bandas que surgem, bandas que acabam e
também jovens que “crescem”. Ainda assim, me parece reducionista uma abordagem que
não contemple com a devida amplitude a potencialidade do hardcore como modo ou estilo
de vida, uma vez que não é incomum que valores, formas de expressão e habilidades
desenvolvidas nesses espaços atravessem camadas limítrofes dos outros territórios
habitados pelos sujeitos como espaços familiares e profissionais: a tatuagem que ficará
visível no trabalho ou o vegetarianismo que será assunto do almoço de família.
Na medida que se criam laços mais fortes de amizade e que valores (estéticos ou
ideológicos) são abraçados coletivamente como forma de expressão e afirmação, o
hardcore acaba por se tomar um território habitado para além de “apenas uma fase da
vida”, desconstruindo a ideia reducionista de uma rebeldia juvenil adolescente. Do ponto
de vista do jovem recém-chegado nesses espaços, esse sujeito “adulto” que já incorporou
o hardcore ao seu modo de vida, que invariavelmente tem territórios e espacialidades
análogas afetadas por tal modo, está ilustrado por exemplo na figura do old school, do
"cara das antigas”.
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As identidades e comunidades juvenis criam um caldo de cultura efervescente,
com contrastes multidirecionais. E no espaço urbano que a vida juvenil ganha
contornos de incerteza, mas também aponta inúmeros caminhos em direção ao
protagonismo e afirmação dos sujeitos políticos. E o futuro que se faz no presente,
um futuro que se encontra “aberto”, da qual o espaço geográfico é a condição de
efetivação das novidades. [...]
Dentro desse fluxo contínuo e desestabilizador, o lugar emerge como um espaço
na qual os sentidos se aguçam, uma sede na qual as pessoas buscam refúgio,
contudo, diferentemente dos localismos exclusivistas, tal ancoragem identitária e
territorial pode ser construída em íntima relação com o global, através das novas
tecnologias da informação e comunicação. (CARDOSO e TURRA NETO, 2011,
p.7-8)
“N ós tocamos e tentamos confrontá-los. Não é chegar ali tocar e ir para casa. Não
me interessa estar ali tocando para corpos e cabeças, pois estes representam os
consumidores e eu não tenho nada a ver com isso. Eu quero estar ali com as
pessoas e quero que aquelas pessoas estejam ali comigo. Queremos algo em que
respeitemos uns aos outros, que nos tratemos melhor. Não algo tipo ‘aqui
estamos, viemos pegar seu dinheiro' e eles pensando 'eles estão lá em cima e nós
aqui em baixo’ (gesticula em relação ao palco) e no final, ‘ok, casa, foi um bom
sh ow ’. Não queremos isso, isso é lixo.”
Enquanto desenvolvo o presente trabalho, tem me parecido cada vez mais claro
que a potencialidade transformadora de sujeitos do hardcore está diretamente relacionada
a disputa discursiva do que é ser do hardcore. Nessa disputa, está presente de maneira
constante o embate entre “curtir o som” (discurso muito comum adotado por aqueles que
dizem estar ali exclusivamente por um gosto musical) e dar sentido aquilo que está sendo
cantado (muitas vezes letras políticas, reflexivas), de maneira que posicionar-se política
e ideologicamente de forma coerente com o que se diz gostar e do qual se diz fazer parte,
assim como pôr em prática essas idéias, torna-se também um critério de legitimação
daqueles sujeitos entre os seus. Na medida em que a sociedade como um todo tende a
problematizar representações, reivindicar direitos, desconstruir conceitos e questionar
formas de expressão, o território hardcore também é afetado por tais tensionamentos. Se
um estilo musical aborda com frequência temas como igualdade, feminismo.
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vegetarianismo, uso de drogas, uso do corpo, antifascismo, autonomia, entre outros, é de
se esperar que os sujeitos mais engajados em tais temas provoquem discussões e
questionam práticas numa perspectiva territorial. Um exemplo comum está relacionado
ao mosh14. E frequente que artistas questionem, de cima do palco, atitudes violentas e
abusos de parte do público em suas apresentações, tendo estes muitas vezes que lembrar
aos homens presentes que o fato de ter mulheres na “roda punk” ou fazendo stage diving15
não implica em nenhuma hipótese menos soberania sobre o próprio corpo, ou seja, não
estão ali para serem “tocadas” ou “apalpadas” de forma abusiva. Se há uma visão do
hardcore como forma de resistência e de contracultura, há também, dentro do próprio
território, a resistência da resistência: se considerarmos que o público é
predominantemente masculino, heterossexual, branco e de classe média, as minorias
(mulheres, negros, homossexuais, pobres...) eventualmente presentes disputarão também
território, visibilidade e a ideia do que está em jogo: o que é ser do hardcore, afinal? Há
uma identidade hardcore feminina em constante construção? Embora o hardcore e o punk
possuam suas especificidades e diferenças, embora as proporções variem, ambas as
subculturas convivem com uma boa dose de hegemonia masculina em seus territórios.
Muitas vezes, o protagonismo feminino, como no caso das bandas femininas, é visto
como pouco comum e/ou exótico e ocupam com frequência o lugar de “namoradas dos
rapazes do hardcore". Assim, acabam por muitas vezes ocupar o lugar da diferença
mesmo dentro de um território punk hardcore. Ao habitarem uma subcultura que brada
discursos igualitários, elas "não desejam ser a 'mulher objeto que dança a bundinha do
Tchan* e nem ter um papel passivo de ficar esperando em casa enquanto as coisas
acontecem lá fora" (GONÇALVES. 2005. p.206). Por outro lado. embora busquem ser
parte de uma coletividade hardcore e serem respeitadas como tal. muitas vezes "não se
rebelam totalmente contra as representações sociais esperadas para uma mulher, assumem
uma postura ambígua e ambivalente no grupo, reafirmando o seu lugar como o lugar da
diferença" (ld.. Ibid.). Numa investigação sobre uma identidade punk feminina Paula
Gonçalves afirma que:
14 Forma de dança com movimentos bruscos num espaço circular delimitado, mais associada a estilos
mais pesados do rock, como Punk, Hardcore ou Heavy-Metal.
15 Termo utilizado para descrever o ato de pular de cima do palco em direção ao público, que se tornou
comum em shows de punk e hardcore.
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entre elas muito mais do que um sentimento de igualdade. Com isto não
conseguem articular uma ação conjunta para modificar as práticas do grupo, ainda
muito centradas na masculinidade hegemônica e que lhes reserva um lugar
secundário no grupo e, geralmente, dependente dos rapazes. (GONÇALVES,
Paula V. P de A. 2005, p.205-206)
Em 2015. por exemplo, a banda Dead Fish. de Vitória/ES, conhecida por enfatizar
seu posicionamento político no palco para além das letras cantadas e uma das maiores
expoentes do estilo aqui no Brasil, foi alvo de polêmica quando um post em suas redes
sociais afirmou que “quem é de direita não deve colar em nossos shows’' 16 e que quem o
fizesse estaria “no lugar errado'’. O post foi interpretado tanto positivamente quanto
16 http://www.tenhomaisdiscosqueamigos.eom/2015/03/20/vocalista-do-dead-fish-se-pronuncia-sobre-
publicacao-da-banda-no-twitter/
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negativamente, e a banda teve que dar explicações sobre o ocorrido. O episódio ilustra a
crescente tensão discursiva que emerge na disputa pelo território do show de hardcore
entre aqueles que “apenas curtem o som” e os defensores de uma postura mais crítica dos
sujeitos inseridos em tal subcultura. Esse exemplo não deve excluir outras tantas tensões
possíveis no processo de legitimação dos sujeitos que circulam no show de hardcore, mas
ilustra bem determinada potencialidade do território na construção da identidade desses
sujeitos, que sendo “de direita” ou de “esquerda”, estarão protagonizando um constante
processo de ressignificação do que é ser do hardcore.
32
Capítulo III - Novas tecnologias, novos territórios
33
pocer intrinsecamente ligada às relações sociais num contínuo processo de dominação
e ou apropriação (ainda que simbólica) do espaço, desencadeando uma “multiplicidade
de poderes, neles incorporados através dos múltiplos agentes/ sujeitos envolvidos'’
(HASBAERT. 2005, p.6775-6776). Assim, a concepção de território aqui trabalhada
teria tanto um caráter funcional como simbólico, uma vez que “exercemos domínio sobre
o espaço tanto para realizar "funções' quanto para produzir ‘significados’” (Id. Ibid.)
34
diferente lógica espacial, construída a partir de algoritmos e conexões interligadas.
Irr.porta-nos agora de que maneira as redes sociais afetam e transformam o território do
show hardcore e de que maneira esse território, num fluxo complementar, se manifesta
online.
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Habitualmente presente nos shows de rock e assiduamente elemento constituinte
do território dos shows de hardcore, a "banquinha” ou “banquinha de CD ‘s” são, é o
espaço destinado às bandas para que ofereçam e comercializem seus produtos, tais como
discos, cd's, camisetas, adesivos e outros acessórios. A escolha da banca como um
exemplo se justifica pelas evidentes transformações observadas após a ascensão da web
2.0 e de uma “cultura do download” em meados dos anos 2000. estimulada pela
disseminação de arquivos mp3 e soítwares de compartilhamento como Napster. Soulseek,
Kazaa e outros. Com a popularização do acesso à internet banda larga, fenômenos como
o download e o streaming online de música ampliaram vigorosamente a oferta de
conteúdo audiovisual na rede mundial de computadores, alterando significativamente o
modo como se constituíam as bancas. Para melhor compreendermos tais transformações,
vamos dividir nossa análise em dois momentos que chamaremos de pré-download e pós-
download17.
Uma das características mais evidentes da banca de cd’s (no período que
chamamos de pré-download, anterior ao ano de 2004) era então sua qualidade de fonte
de novidades e descobertas. Naquele período era comum que os selos e bandas
oferecessem grande variedade de produtos (principalmente cd's) de uma vasta quantidade
de bandas, valorizando a abundância e a diversidade na oferta. Embora também fossem
ofertados produtos das bandas que no dia se apresentariam, era prática do público buscar
novidades no material disponível, interpelando quem estava à frente da banca (geralmente
membros das bandas, produtores e organizadores dos selos independentes) sobre novos
lançamentos, dicas de bandas que ganhavam espaço na cena e coletâneas, também muito
comuns à época. Essa troca de informações, mais do que aproximar público, bandas e
selos contribuíram para que houvesse reconhecimento e se desenvolvessem afetos de
ambos os lados, tornando-se assim rito constante nos dias de shows, de forma que as
banquinhas passaram a figurar nas expectativas de quem frequentava os espaços,
principalmente em regiões carentes de lojas especializadas.
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para o público. Com a popularização do mp3 e do streaming, além do comércio eletrônico,
tomou-se muito simples e intuitiva a busca por música na internet. Quem permanecia fiel
ao CD tinha ainda novas opções, como as lojas online, algumas com vasto catálogo e
grande oferta de títulos, como a PunkShop, a Ideal Distro e a Oba! Records. Tais
modificações na forma de distribuição e circulação de conteúdo contribuíram para maior
customização das bancas: selos e bandas passaram a privilegiar com mais ênfase o
material próprio e não mais a diversidade de títulos. Tomou-se prática cotidiana, com o
surgimento das redes sociais, que o conteúdo a ser oferecido nas bancas fosse previamente
exposto na divulgação do show (como nas páginas de evento do Facebook), priorizando
camisetas, bonés, cd’s e demais materiais quase que exclusivamente das bandas
agendadas. Nesse contexto, surgem estratégias como preços diferenciados e modelos
exclusivos para quem adquirir os produtos nos shows. brindes, entre outros. Manteve-se
assim a expectativa do público sobre as bancas, substituindo variedade por customização.
,s Tumê sul-americana de bandas internacionais que reuniu Lagwagon (tradicional banda da Califórnia,
Estados Unidos), MUTE (Canadá), Belvedere (Canadá) e Adrenalized (Espanha). No Rio de Janeiro, os
shows ocorreram dia 28 de fevereiro de 2016, no Teatro Odisséia, na Lapa,
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o material da banda), há todo um mecanismo simbólico que produzirá diferentes
significados.
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se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou
mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que. no fim das contas, é quase
impossível que ela consiga saber se participou ou não. (POLLAK. 1992. p.201)
20 Line-up é um termo utilizado em festivais musicais e que faz referência a lista de bandas que irão se
apresentar em determinada data e/ou festival.
21 https:/7www,facebook.com/uniaodasmulheresdounderground/posts/1348211875273995. Acessado em
27/06/2017.
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questionaram isso? Muitas dessas selecionadas, tem um discurso pro-feminismo.
Onde está a prática? E fácil assumir para si ou para sua banda uma pauta que você
até concorda. Difícil é cobrar e fazer autocrítica.”
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Dentro dessa complexa relação entre redes e áreas ou zonas como os dois
elementos fundamentais constituintes do território (para Raffestin, duas das três
“invariantes” territoriais - a terceira seriam os pólos ou nós. que no nosso ponto
de vista são, juntamente com os “dutos”, constituintes indissociáveis das redes),
devemos destacar a enorme variedade de tipos e níveis de controle territorial. Se
o território é moldado sempre dentro de relações de poder, em sentido lato. ele
envolve sempre, também, no dizer de Robert Sack, o controle de uma área.
Há, portanto, nas novas tecnologias e nas redes sociais, uma multiplicidade de
territórios possíveis que interligados podem, em maior ou menor intensidade, estabelecer
conexões e estimular reconfígurações em territórios tradicionais e com relações de poder
já historicamente consolidadas. E de se considerar que sua funcionalidade pode
invariavelmente se mostrar limitada e que sua capacidade de transformação bem como a
velocidade das mudanças pode variar em diferentes casos, afinal, as relações de poder
inerentes à constituição do território tendem a ser complexas e dependem de outros
fatores. Importante citar que quem detém um domínio privilegiado e/ou hegemônico
sobre um território tende a buscar pela manutenção de seus poderes e/ou privilégios, na
mesma medida que quem clama por mais espaço tende a resistir de forma contra-
hegemônica, como bem nos aponta Williams (2005).
Nesse sentido, o show de hardcore e as novas tecnologias, cada qual com suas
territorial idades, espacialidades e peculiaridades, se mostram espaços interligados e/ou
complementares de trocas simbólicas e fluxos informacionais dotados de uma
potencialidade transformadora, uma vez as ações dos sujeitos que os constituem podem
tanto preservar tradições e significados, quanto contribuir para reconfígurações dos
espaços partilhados pela referida subcultura.
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C o n sid e r a ç õ e s fin a is
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aspectos de uma coletividade que já se reúne, produz e circula há algumas décadas. Para
uns. mais do que um estilo de vida, o underground se torna também espaço de realização
pessoal e/ou profissional. As primeiras impressões dão indícios de que muitas
transformações ainda estão por vir junto às novas concepções de espacial idade e território,
modificando a materialidade das interações, dando voz a atores sociais antes carentes de
visibilidade e conectando sujeitos antes desconectados entre si.
Seguimos, no entanto, com questões em aberto: sujeitos de territórios já
tradicionais, com relações de poder e hegemonias bem demarcadas estariam, de fato,
dispostos a dialogar com essa nova realidade e abrir seus espaços para novos
protagonismos ou apenas tentam minimizar as contradições entre prática e discurso? Ao
expor tais contradições, a disputa por uma identidade hardcore supostamente coerente
com seus ideais resultará em novas estruturas, agora mais igualitárias, de
compartilhamento dos espaços? Ser do hardcore é ir aos shows, vestir a camisa, entrar na
“roda punk”, cantar letras de protesto, movimentar uma coletividade, mas apenas por
“curtir o som”? Até que ponto o alinhamento entre discurso e prática na subcultura
hardcore pode transformar a realidade social ao redor, como se propõe, e não somente o
interior dos seus próprios territórios? As transformações tecnológicas e as novas
espacialidades por vir trazem consigo não somente tais questionamentos, mas condições
para que eles sejam respondidos pelas apropriações que os sujeitos fazem e que ainda
farão desses novos territórios interconectados. A percepção de novas territorial idades e
formas de organização como ferramentas de transformação da realidade, objeto que
buscamos explorar nesse trabalho, nos deixará ainda um vasto campo de investigação
acerca dos processos identitários que levam coletividades distribuídas por todo território
nacional a se reunirem com guitarras e seus ideais, em suas garagens, galpões e espaços
diversos. Em uma época que o rock é questionado por sua potencialidade transgressora e
contestadora. eles nos dizem e elas, mais do que dizer, se manifestam: “ainda estamos
aqui”.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAIAFA, J. Movimento punk na cidade: a invasão dos bandos sub. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editora, 1989.
POLLAK, M. Memória e identidade social. In: Estudos Históricos, 5(10). Rio de Janeiro,
1992
TURRA NETO, N. A difusão da cultura punk como difusão da ideia de anarquia. In:
Revista Cidades (Presidente Prudente), v. 9, 2012.
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