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ARTIGO

GÊNERO, CULTURA E REDE SOCIAL: A CONSTRUÇÃO


SOCIAL DA DESIGUALDADE DE GÊNERO POR MEIO DA
LINGUAGEM*

GENDER, CULTURE AND SOCIAL NETWORK: THE SOCIAL CONSTRUCTION


OF GENDER INEQUALITY BY THE LANGUAGE

RESUMO: Baseado na visão sistêmico-cibernética- ABSTRACT: Based on systemic-cybernetic-new MARIANNE FEIJÓ


-novo paradigmática e no construcionismo social, paradigm vision and social constructionism, the Coordenadora do projeto
o presente artigo é um convite à reflexão sobre a paper is an invitation to reflect on the importance de mediação de conflitos
importância da linguagem na manutenção e na of language in the maintenance and the possibili- da fundação Gol de Letra,
possibilidade de mudança de padrões relacionais ty of changing unequal relational patterns, main- professora assistente, doutora
desiguais entre pessoas, principalmente ligados ly related to issues of gender. Studies on lan- da Unesp-Bauru, professora
às questões de gênero. Estudos sobre a linguagem guage and verbal behavior of women and men, e supervisora dos cursos de
e sobre o comportamento verbal das mulheres e besides their representation in the media, are mediação da PUC-SP/Cogeae,
dos homens, além das representações destes na examples to illustrate the need advocated here, Terapia Familiar e Intervenção
mídia, servem de exemplos para evidenciar a ne- to changing patterns of inequality guided by gen- Sistêmica da PUC-SP, Famerp,
cessidade aqui defendida de mudança nos padrões der differences that influence and are influenced FTSA e Unifesp.
de desigualdade pautados em diferenças de gêne- by the culture, conveyed in our social network.
ro, que influenciam e sofrem influência da cultura, This paper is a contribution for the clinical work ROSA MARIA STEFANINI
transmitida em nossas redes sociais, marcando with families and couples, from the perspective DE MACEDO
posições privilegiadas segundo a tipificação sexual of the current behaviors, based on refrains spre- Psicólogo, profª titular do
na sociedade. Este artigo é uma contribuição para ad by the media which became popular, since it Programa de Estudos Pós-
o trabalho clínico com famílias e casais, do ponto is based on clinical and nonclinical observations graduados em Psicologia
de vista dos comportamentos correntes baseados about human relationships and its representation Clínica da PUC-SP, líder
em bordões veiculados pela mídia que se tornam in the media and artistic productions. do Núcleo de Família e
populares, uma vez que se baseia em observações Comunidade da Anpepp.
de situações clínicas e não clínicas sobre relações KEYWORDS: gender, culture, social network, lan-
humanas e sobre a representação destas na mídia e guage.
nas produções artísticas.

Recebido em 11/07/2012.
PALAVRAS-CHAVE: gênero, cultura, rede social,
linguagem. Aprovado em 28/08/2012.

INTRODUÇÃO

Assumindo o posicionamento sistêmico-cibernético novoparadigmático (Esteves


de Vasconcelos, 2004) de que somos seres em relação e de que nossa identidade,
assim como nossos padrões de comportamento, é construída socialmente (Sluzki,
1997), não é possível desvincular as questões de gênero da cultura e da rede que são * Parte desse trabalho foi
apresentada no Congresso
o contexto desta construção. Internacional “Valores
As desigualdades de posições quanto ao gênero entre homens e mulheres resul- Universais e o Futuro da
Sociedade” em setembro de
taram do deslocamento das diferenças biológicas entre os sexos para diferenças de 2001 no SESC/ São Paulo. Foi
posições na sociedade. Com base nas diferenças biológicas, padrões de comporta- feita versão revista e ampliada
no II Simpósio de Sexualidade
mentos típicos foram transmitidos a homens e mulheres, porém as desigualdades na Família em maio de 2007,
resultaram das diferenças de oportunidades que geraram as questões de domi- UNIFESP/São Paulo.
nação e poder do sexo masculino e de zam nossa posição sobre a construção
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subordinação do sexo feminino (Ma- de significados. Para Falicov, cultura
cedo, 2006; 2007; Soares et al., 2011; “são visões de mundo compartilhadas
Vieira, 2012). e comportamentos adaptáveis
Tais questões podem ser mais bem derivados da localização simultânea
observadas do ponto de vista de gêne- em vários contextos” (1988, p. 336).
ro, que se refere ao status cultural do Geertz (1973, p. 5), citando Weber,
que vem a ser masculino ou femini- apresenta a definição de cultura que,
no, distinto do status biológico como a nosso ver, complementa a anterior:
macho ou fêmea (Greenglas, 1982). “Uma rede de significados tecida pelo
Em termos de comportamento, o que próprio homem.”
interessa é saber que masculinidade e Atividade eminentemente relacional,
feminilidade são construídos social- a construção do significado do que é ser
mente, são histórica, relacional e cul- homem ou mulher se dá socialmente
turalmente determinados (Abundis, na linguagem. Portanto, a forma como
2007; Greenglas, 1982; García, 2000; são vivenciadas a masculinidade e a
Macedo, 2007; Vieira, 2012). feminilidade depende de significados
Gênero é uma forma de estrutura- atribuídos por nós e por aqueles que
ção de práticas sociais e, como tal, im- nos rodeiam, ou seja, nossas redes so-
plica variações de tempo e lugar, além ciais (Feijó & Macedo, 2012).
de ser vinculado à etnicidade e nível
socioeconômico.
Passando para o nível microssocial, COMPORTAMENTO VERBAL E
ao articularmos vida pessoal e estru- DESIGUALDADE ENTRE GÊNEROS
turas sociais podemos perceber como
as relações de gênero permeiam todos Os trabalhos sobre o papel da lin-
os aspectos da vida cotidiana: grupos guagem e as diferenças no compor-
sociais de que fazemos parte, portanto tamento verbal das mulheres e dos
redes a que pertencemos, lugares que homens em diversos países e culturas,
frequentamos, a qualidade e a quan- como os de Albisher e Forel (1991), de
tidade dos contextos significativos na Mead (1969) e de Dias (2005), retra-
formação de valores, crenças, constru- taram como o que falamos e como fa-
ção de padrões de comportamento, sua lamos reforça algo que se mantém ou
manutenção ou mudança. Todos eles pode impulsionar uma mudança, já
são sujeitos a qualificações de gênero. que a realidade é construída por seres
Ao ressaltar a função constitutiva em relação, ideia básica do construcio-
da cultura na definição da identidade nismo social, como apontamos ante-
de gênero, bem como sua caracterís- riormente (Freedman & Combs, 1996;
tica estritamente relacional, atenção Grandesso, 2000).
especial deve ser dada à linguagem, As relações de poder, a hierar-
por meio da qual significamos o mun- quia, ficam evidentes na linguagem
do, segundo o construcionismo social da maior parte das culturas e línguas
(McNamee, 2008; Grandesso, 2000; ameríndias, africanas e asiáticas, mar-
Gergen, 1994). cando claramente uma diferenciação
A noção de cultura abrange tanta baseada no sexo do locutor. No Japão,
diversidade, que é difícil abarcar todos por exemplo, diferenças entre o ta-
os seus significados em uma única de- manho das expressões utilizadas pe-
finição. Escolhemos duas que, a nosso los homens e mulheres, bem como a
ver,�����������������������������������
são bastante abrangentes����������
e enfati- forma de falar dependendo do locutor,

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mostram claramente a posição sub- pressões culturais, bem como alguns Gênero, cultura e rede social
aspectos da linguagem utilizada por 23
missa reservada às mulheres indepen- Marianne Feijó e Rosa Maria
Stefanini de Macedo
dente de sua condição social. homens e mulheres no Brasil nas últi-
Estudos antropológicos em algu- mas duas décadas como indicativo do
mas comunidades de língua Gros Ven- status cultural da postura feminina e
tre (Flannery, 1946) mostravam que as masculina, portanto de gênero como
mulheres usavam palavras “mais mo- categoria social, ressaltando alguns as-
destas” e se usassem alguns termos ex- pectos importantes para a reflexão dos
clusivos dos homens eram considera- profissionais das áreas de saúde, so-
das “mulheres masculinas”. Da mesma cial e da educação, no intuito de abrir
forma, um estrangeiro poderia passar o diálogo sobre os novos modelos de
por “efeminado” ao trocar certas pala- feminino e masculino. Pretendemos
vras ou falar com menos segurança. alcançar tal objetivo utilizando o crité-
Esse é um exemplo que se aplica ao rio de analise da linguagem de acordo
Brasil atual, onde, guardando as dife- com a visão dos estudos antropolin-
renças de tempo e lugar, às mulheres guísticos, isto é, de acordo com o sexo
ainda cabe o estereótipo de delicadas e do locutor, não com a definição de
gentis; espera-se que sua linguagem re- gênero do ponto de vista linguístico,
flita essa condição, diferentemente dos portanto com foco no já mencionado
homens de quem a sociedade tolera e ponto de vista social.
até estimula um modo mais grosseiro A importância de citar esses estudos
de falar. Prova disso é a estranheza que é a evidê����������������������������
ncia das diferenças masculi-
causa em muitos ambientes homens no/feminino marcadas na estrutura
gentis, delicados, que evitam termos da linguagem mais claramente detec-
de baixo calão na linguagem corrente, t�������������������������������������
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veis nessas culturas. Os estudos ci-
a quem são atribuídos adjetivos pe- tados não se referem às linguagens da
jorativos, como “bichas”, “viadinhos”, cultura europeia da qual deriva nossa
“boiola”, “boneca”, “biba”, entre outros. tradiç�������������������������������
ão linguí����������������������
stica, por������������
����������
m, como sa-
As desigualdades socioeconômi- bemos, nessas línguas as variações lé-
cas também são visíveis pelo uso da xicas decorrem de acordo com o inter-
língua. Trudgill (1991) falou de sexo locutor, a quem se fala, e do que se fala.
e prestígio linguístico, estudando Desse modo, falas masculinas e femi-
os fenômenos linguísticos ligados à ninas são marcadas basicamente pe-
estratificação social, idade e sexo. los códigos de gênero como categoria
Tanto para Trudgill como para Hou- social, isto é, como se espera que fale
debine (1991), foram apontadas dife- uma menina ou um menino, de acor-
renças entre homens e mulheres nas do com seu nível social e educacional.
interrupções e no uso de perguntas e
de formas de criar abertura para expor
seu ponto de vista. Concluíram, em EXPRESSÕES CULTURAIS: UM RETRATO
um desses estudos, que o uso da língua DE NOSSO TEMPO NO QUE SE REFERE
segue uma hierarquia que parece esta- ÀS QUESTÕES DE GÊNERO
belecer uma sequência da maneira que  
segue: o homem poderoso, a mulher, Como sabemos, as expressões cul-
o homem subordinado e a criança, se- turais (arte, música, literatura) têm
gundo a ordem de importância social. um enorme peso no retrato de nosso
A partir dessas considerações, este tempo e são muito úteis para estudar
artigo, em formato de ensaio teórico, questões que se referem às relações de
pretende discutir determinadas ex- gênero, sobretudo na linguagem.

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No Brasil, a mídia, a moda, a música (inferiores), contribuindo para a ma-
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e a literatura nos dão uma boa ideia de nutenção do status quo, que implica
como padrões de comportamento di- transformar uma diferença inegável
ferentes e antagônicos convivem lado em posições desiguais.
a lado, no que se refere aos papéis e à A mudança de papel da mulher na
posição dos homens e das mulheres na sociedade brasileira e, principalmente,
sociedade, na medida em que são res- sua entrada no mercado de trabalho
ponsáveis pela criação e divulgação de trouxeram alterações significativas,
expressões que vão caindo no domínio uma vez que, do ponto de vista sistê-
público e sendo empregadas geralmen- mico, ao se alterar a posição da mulher,
te sem muita crítica pela população. a do homem também sofre alterações,
Apesar de a mulher vir ganhando apesar das suas resistências. Ainda as-
espaço no mercado de trabalho, ocu- sim, apesar do discurso sobre igualda-
pando posições vistas como mascu- de de direitos e divisão de tarefas, na
linas, e de os homens virem partici- prática, constatamos que estas ainda
pando mais no ambiente doméstico, não atingiram um nível igualitário de
compartilhando tarefas consideradas fato. Muitas mulheres trabalham em
até então próprias da mãe, mulher e dupla jornada, assumindo a maior
“dona-de-casa”, esta mudança ainda parte das tarefas domésticas, mesmo
é abordada de forma pejorativa em que também respondam pelo sustento
muitos grupos sociais, em algumas ex- financeiro da família (Macedo, 2007;
pressões culturais e mesmo em comer- Vieira, 2012).
ciais na veiculação de propagandas nos De qualquer forma, todas as con-
diversos meios midiáticos, indicando quistas das mulheres nos últimos
a convivência de padrões conflitantes tempos, a possibilidade de saída do
que oscilam entre o arcaico e o moder- ambiente doméstico, a melhora na
no, a família tradicional idealizada, de possibilidade de divisão de papéis, as
organização patriarcal com regras se- mudanças tecnológicas, as exigências
xualmente tipificadas para a educação cada vez maiores no ambiente de tra-
dos filhos, e as novas configurações balho, geraram uma situação comple-
familiares, um pouco mais igualitárias xa. Cada vez mais os casais necessitam
desse ponto de vista (Abundis, 2007; criar um padrão de relacionamento
Figueira, 1987; Cerveny, 2011). que seja compatível com esta deman-
Acreditamos que assim como as da (Horta & Feijó, 2007; Feijó, 2007).
produções culturais, alguns de nós, A rede social, aquelas pessoas que
profissionais da área de saúde, tam- nos são mais significativas, têm papel
bém oscilamos entre uma postura de importante na validação desta nova
formadores de novas opiniões sobre identidade. Aí entram as característi-
modelos e costumes e uma postura cas dessa rede, que, de maneira geral,
que reforça padrões tradicionais. tende a ser mais distante ultimamente;
Além disso, concordamos com Mar- há distância geográfica e pouco tem-
tin e Mahoney (1996) que é preciso po para contato (Sluzki, 1997; Feijó,
estar atentos ao “mito da igualdade”, 2006), especialmente nas cidades gran-
que nos leva enganosamente a igno- des. Como já dizia Medina (1974), se
rar a consideração das diferenças se- esta teia é frouxa, há ambiguidade face
xuais em nosso trabalho, e, com isso, à validação de nosso mundo e de nos-
desconsiderar a desigualdade social sas identidades. Na medida em que o
entre homens (superiores) e mulheres contato face a face rareia, tanto pelas

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dificuldades impostas pela vida nas vida de solteira, sexualmente ativa, Gênero, cultura e rede social
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grandes cidades, como pela exiguida- sem assumir maiores compromissos Marianne Feijó e Rosa Maria
Stefanini de Macedo
de do tempo para atividades de lazer, familiares, ainda persiste; já para o ho-
nosso contato com o mundo vai sendo mem, ser sustentado é um problema,
em grande parte proporcionado pela uma vez que ainda cabe a ele garantir
tecnologia que põe ao nosso alcance o equilíbrio financeiro, prover a casa,
uma série de meios, não só para nos segundo os padrões de gênero cons-
informar como para nos distrair. truídos como valores masculinos e in-
A música, a propaganda, as novelas corporados firmemente na formação
e a televisão, entre outros meios, to- de sua identidade de homem, na con-
mam um espaço significativo na vida cepção de sua autoimagem, autoesti-
das pessoas, não só retratando seus ma e autoconfiança como “sexo forte”,
padrões de relacionamento, mas tam- detentor do poder.
bém exercendo influência sobre eles, Essas observações mostram como
pois, como diz Morin (2006) em sua as questões de gênero constantemente
teorização do paradigma da complexi- vêm à tona, ora reforçando um padrão
dade, somos ao mesmo tempo produ- de desigualdade polarizado no qual a
zidos pela e produtores da sociedade, mulher ocupa sempre a menor posição,
ou ainda, conforme Motta e Ciurana ora apontando para mudanças já alcan-
(2002), a cultura que nos produz ao çadas ou em andamento, criando ten-
mesmo tempo é produzida por nós. sões entre homens e mulheres, às vezes
Por estarmos plenamente de acor- implícitas, e, em outras, explícitas.
do com tais afirmações, justifica-se a
importância de ressaltarmos o que e
como vem sendo falado (mostrado, A TELEVISÃO COMO PROPAGADORA DE
significado) sobre o que é ser homem e PADRÕES RELACIONAIS DESIGUAIS
ser mulher na nossa sociedade no sen-
tido de masculino e feminino. A mídia, principalmente a propa-
Ainda existem muitas contradi- ganda que é estruturada a partir dos
ções, tensões e impasses relacionais, desejos dos consumidores, cada vez
que estão diretamente relacionados mais retrata homens exercendo papéis
ao contexto social em que vivemos e que eram tidos como femininos na
que construímos. Um bom exemplo sociedade brasileira (cuidar de bebê,
de dicotomia em relação à rede so- arrumar a casa, expor os sentimentos)
cial é a situação de muitas mulheres para muito acertadamente alcançar o
jovens, que, atualmente, têm o maior grande número de mulheres que tra-
apoio de sua família para alcançar au- balham; por outro lado, veiculam tam-
tonomia por meio de suporte material bém situações domésticas com uma
e psicológico para obter um elevado divisão tradicional de papéis (mulhe-
nível nos estudos, e que, no entanto, res donas de casa, cuidando das refei-
passam a sofrer pressões e restrições ções da família, das roupas do mari-
desta mesma família quando querem do; a conhecida “família margarina”)
viver com independência, saindo da como exemplo de família feliz, além de
casa paterna. Há uma dupla mensa- sátiras sobre o homem dominado pela
gem de que a mulher tem que estudar, mulher moderna, alvo de chacotas do
e ser independente, mas nem tanto, grupo masculino (machão).
pois a expectativa de que precisa se ca- Medrado et al. (1997) estudou a re-
sar, constituir família e não levar uma presentação social da masculinidade

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na propaganda televisiva brasileira no co em geral, resultando na aparição da
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horário nobre da emissora Globo no mesma em capas de revista de notícias
primeiro semestre de 1996 e levantou, e em caderno de jornais, ambos de re-
entre outros aspectos, que a imensa percussão nacional. Outro personagem
maioria dos comerciais é narrada por que se tornou bastante popular, imita-
homens, pois, segundo os autores, do e admirado, mas também ridiculari-
isto dá mais credibilidade ao produto. zado, era um homem jovem com orien-
Além disso, usam mais homens em co- tação homossexual, que trabalhava
merciais de produtos mais caros e rela- como serviçal, submisso à sua patroa,
cionados a contextos não-domésticos. preso a padrões estéticos e ao valor do
Como se não bastasse, 87,4% dos per- status conferido pelos bens materiais,
sonagens são homens e mulheres bran- que se expressava de maneira efemi-
cos. No entanto, produtos domésticos e nada estereotipada, e cheia de trejeitos,
relacionados a lazer e a status masculi- recebendo agressões verbais e ameaças
no usam como apresentadores mulhe- constantes da patroa, lembrando mais
res mais famosas pela beleza, glamour a figura de um “bobo da corte”.
e apelo “sexy”, o máximo do feminino! A dona da casa, bastante precon-
Os homossexuais vêm sendo mais ceituosa e classista, maltratava não só
retratados na mídia ultimamente, o este funcionário, que era uma espécie
que poderia ser sinal de redução de de mordomo e assistente pessoal, mas
preconceito, mas, infelizmente, depen- também o motorista e a cozinheira/
dendo de como são representados nas arrumadeira. Além disso, escondia ser
novelas, por exemplo, a discriminação filha de uma empregada doméstica,
por parte da população pode até au- pois isto “mancharia o seu passado”,
mentar. e mantinha relações sexuais com um
Ainda é comum apresentá-los com homem de menor poder aquisitivo, a
comportamentos exagerados e estereo- quem “mandava chamar quando que-
tipados em personagens mais propen- ria”. Autoritária e mau caráter, valia-se
sos a ser ridicularizados pelo seu com- de sua condição material para impor
portamento, vinculado à sua orientação suas vontades e caprichos aludindo
homossexual. Em 2012, o contraste claramente a uma ideia de que o di-
entre novos e antigos padrões e visões nheiro tudo compra.
sobre o homem e a mulher hetero e ho- As relações entre personagens da
mossexual apareceu no imenso sucesso telenovela acima referida retratam de
feito por dois personagens da novela forma estereotipada, mas não muito
das 21 horas, horário nobre, da referida distante da real, as desigualdades pau-
emissora. Uma mulher, mãe, separa- tadas em diferenças enfatizadas neste
da, realiza profissionalmente consertos artigo.
hidráulicos e elétricos em residências, No que se refere aos estereótipos da
sendo tratada por um nome masculi- relação homem-mulher na TV, na dé-
no; apresenta autoridade na educação cada de 1990, a “Tiazinha”, um ícone
dos filhos e expressa constantemente sadomasoquista, fez grande sucesso
seus valores (honestidade, respeito ao usando máscara, chicote e lingeries
próximo, solidariedade) em palavras e minúsculas para depilar os homens
ações, reforçando o valor de uma con- que errassem as perguntas em um pro-
figuração de família comum em nosso grama de auditório. Já a “Feiticeira”,
tempo (chefiada pela mulher). Tal per- criada no mesmo programa, era uma
sonagem foi muito elogiada pelo públi- loira escultural, vestida de odalisca, se-

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minua, com o rosto coberto pelo véu, de maior poder aquisitivo, tais este- Gênero, cultura e rede social
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que dançava e quase se encostava nos reótipos não aparecem de forma tão Marianne Feijó e Rosa Maria
Stefanini de Macedo
homens, se insinuando aos que cum- arraigada e explícita, sendo muitas ve-
prissem as tarefas determinadas pelo zes questionados; o que não impediu
jogo do programa. Atualmente, no um músico respeitado (Frejat), de um
lugar dessas figuras, temos a “Mulher conjunto com grande prestígio, com-
Samambaia” e a “Mulher Melancia”, por a música: “Homem não Chora.’’
explorando seus corpos com a função O movimento funk, que explodiu
de atrair audiência. São mais exemplos no Brasil nas duas últimas décadas,
da contribuição da mídia na manuten- iniciou-se nos bailes de periferia, onde
ção e no reforço de padrões desiguais a violência era constante. Atualmente,
de relação. no entanto, estas festas atraem público
de todas as classes sociais, quer para
um programa extravagante, quer para
A DESIGUALDADE RETRATADA PELA se divertir. O que parece estar mais
MÚSICA exacerbado hoje em dia nesses bailes,
atraindo tanta gente, é o apelo sexual
Na música, há também indícios de e sensual, como apontou Fernanda
mudanças de padrões convivendo com Schmidt (2007) no site da Folha de
preconceitos e estereótipos. Alguns S. Paulo. Os hits propagaram termos
conjuntos que vêm fazendo sucesso e como “popozuda”, que seria o mesmo
que tocam músicas apontadas como as que “bunduda”, mas com o sentido
mais ouvidas em determinadas rádios de gostosa, poderosa; “cachorra”, que,
exploram a imagem da mulher domi- na gíria construída nas comunidades
nada e subordinada ao homem e/ou funkeiras, tem um sentido negativo:
do homem dominado pela sedução, “sua cachorra!” – mulher que trapa-
pelo lado erótico, “sexy” e superficial ceia, engana, faz mal para alguém. Por
da mulher, seu corpo, suas formas, sua outro lado, é comum usar o termo
beleza. cachorro, como coitado: “tratado(a)
Muitas letras de samba, pagode e como um cachorro”. Isso dá um sen-
músicas regionalistas retratam tais es- tido duplo para a gíria referida: a mu-
tereótipos construídos em torno das lher cachorra é aquela que se insinua,
questões de gênero, ressaltando as ex- domina, usa o homem (se aproveita de
pectativas de que o homem seja o pro- sua condição material), mas ao mes-
vedor financeiro e que a mulher seja mo tempo é usada por ele sexualmen-
sempre sensível, dependa dele, seja te. Depois do “Bonde do Tigrão” que
bela, cuide da comida e da casa. Este é valorizou a mulher do baile, as “prepa-
o caso das letras das músicas: “Mulher radas” que desfrutavam o prazer com
Chorona” e “Nóis Não Vive Sem Muié” maridos que se “esquentavam” com
(Teodoro e Sampaio), “Ratatuia” (Zeca elas, enquanto as esposas ficavam em
Pagodinho). Há também “Você Não casa esquentando a marmita para eles,
Passa de uma Mulher” (Martinho da veio o sucesso da Popozuda, e, em se-
Vila) e “É Disso que o Velho Gosta” guida, a música da Eguinha Pocotó,
(Os Serranos), música gaúcha antiga conhecida por meninas de diferentes
que também se ouve muito em outras idades e níveis socioeconômicos, que
regiões do país. rebolavam ao som de uma letra que
Nas letras de MPB e de Rock, mais falava da mulher e de sua posição de
ouvidas nas rádios dirigidas às classes forma pejorativa; outras vieram de-

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pois desta, com o mesmo apelo. Atual- financeira. Numa delas, a mulher gla-
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mente, fazem sucesso músicas que dei- morosa, poderosa, balança gostoso
xam clara a ética das relações baseadas requebrando até o chão, é a rainha do
no uso da sexualidade expressa pelo funk, na música “Glamorosa” de MC
desejo expl�������������������������
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cito do homem e pela ma- Marcinho.
nipulação desse desejo com um jogo
de sedução e oferta da mulher: “Ai se
eu te pego”; “Ai, ai, ai, ai, ai, ai... assim DE RAINHA DO LAR A RAINHA DO BAILE
você mata o papai”; “Eu quero tchu, eu FUNK?
quero tcha...”, todas acompanhadas de
gestual que deixa muito claro do que O antropólogo Hermano Viana,
se está falando. Enfim, apesar das inú- que estuda a cultura brasileira, assim
meras diferenças entre as letras e os se manifestou sobre a “Cultura popo-
conjuntos de músicas funk, a criação zuda” em um dos jornais mais impor-
dos mesmos com tal apelo continua tantes de São Paulo: “Pós-feministas,
crescendo. Há um movimento apa- as meninas do funk carioca só são sub-
rentemente menos radical quanto a missas quando querem: loucas por sta-
essa postura na mídia brasileira e em tus perdem a linha por motos, celular e
muitos bailes funk, mas determinados roupas (apud Palomino, 2001).”
conjuntos ainda contribuem para a O termo “perdem a linha” também
manutenção dos padrões de domina- vem de uma das músicas funk e, no
ção e de poder entre homens e mulhe- nosso entender, está relacionado a um
res e entre classes com base justamente ditado que os homens antigamente
nessa linguagem erotizante eivada de usavam muito, mas ainda hoje se ouve
malícia e duplos sentidos. Mais ainda, por aí: “A única mulher que andou na
tais músicas frequentemente retratam linha o trem matou”, retratando uma
o valor que é dado aos bens mate- posição machista, na qual não se pode
riais – motos, carros, roupas de grifes confiar na fidelidade da mulher. No
caras, além do culto ao corpo ressal- entanto, no código machista parece
tado por mulheres de barriga de fora que a linha é outra: o homem sair com
e calças muito justas, que ressaltam as outras mulheres é da sua “natureza”.
formas do corpo feminino, e homens Tanta naturalidade parece estar anco-
fortes de camisa semiaberta exibindo rada ainda na herança do código cul-
a musculatura. Uma delas, tocada nos tural de antanho, ligado à vigilância da
bailes citados, se chama “Chapeuzinho virgindade feminina. Nessa tradição,
Mercenária”, fazendo referência à per- a mulher era rapidamente classificada
sonagem da história infantil na qual, como “puta” se fizesse sexo antes do
como se sabe, uma menina ingênua casamento, o que hoje não faz mais
vai levar doces para a Vovozinha e é sentido. Dada a liberalidade dos costu-
comida pelo Lobo Mau. A música traz mes hoje em dia com relação à sexua-
uma conotação da mulher que se deixa lidade, a mulher que usa o sexo não
“comer” (sentido sexual) pelo homem, profissionalmente apenas para “se dar
mas que no fundo está de olho no que bem” é, no máximo, uma “periguete”.
ele tem a oferecer financeiramente. Um sério problema quanto à natu-
Em outras�����������������������
músicas���������������
, são as mulhe- ralização desse vocabulário e do senti-
res que assumem o poder e que de- do que ele tem em termos da relação
vem cuidar para que o homem não entre os sexos é o fato de essas músicas
as domine, utilizando a sua condição serem utilizadas largamente nas festi-

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nhas de crianças e púberes, inclusive assumir um papel masculino, de do- Gênero, cultura e rede social
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pelos animadores e hostess como co- minação, para sair do papel de domi- Marianne Feijó e Rosa Maria
Stefanini de Macedo
reografia grupal para divertir a turma. nada?
São repetidas muito frequentemente De nosso ponto de vista, o paradoxo
sem a compreensão exata do seu sig- está justamente em manter o jogo do-
nificado (pelas crianças menores), ou minante/dominado.
então com a malícia que já desponta Nesse sentido, a metáfora que gri-
por meio do interesse erótico dos pú- tam nestes bailes nos é útil: “Tá do-
beres e adolescentes, passando a ser minado! Tá tudo dominado!” Os pa-
usadas no vocabulário corrente, em drões de desigualdade, de violência e
blogs e outros sites de relacionamento. de dominação são mantidos, mesmo
Não se dão conta de que, ao reproduzir que aparentemente invertidos, difi-
tais expressões sem crítica, estão con- cultando a construção de modelos de
tribuindo com a construção de um pa- relacionamento que permitam o cres-
drão de relações chulo e desrespeitoso, cimento, a liberdade e a dignidade,
sem a necessidade de compromisso, de tanto do homem quanto da mulher. A
que só se darão conta bem mais tarde, nossa sociedade continua a disseminar
quando estiverem em busca do “amor a violência, implícita e explícita, como
verdadeiro”. se vê na mídia impressa, na TV e nos
A autora do referido artigo da Folha espaços públicos. “Cachorra”, como se
de S. Paulo, a colunista Erika Palomino, diz no sul do país sobre uma situação
cita Hermano Vianna (2001), que cha- constrangedora, sem saída, é a nossa
mou a atenção para algo muito sério: condição relacional em meio a tantos
“Na linha de frente, essas meninas que estereótipos e confusões, onde se sabe
se autodenominam ‘cachorras’ insta- mais competir e se defender do que
lam um novo modelo feminino. É uma “apaziguar’’, que é o título de outra
‘nova mulher’ em cena, pós-feminista, música de uma dupla regional, que faz
criada vendo Xuxa na TV, que não tem sucesso nas rádios (Bruno e Marrone).
medo de homem nenhum, que não é Outros grupos que tocam bastante
nem um pouco submissa: ela decide nas rádios nos dias atuais retratam a
quando, como, onde e com quem quer importância dada à beleza da mulher
fazer sexo (‘quebrar barraco’) e ain- e ao poder econômico do homem. É
da humilha o cara de ‘pau molão’.” A o caso dos dois sucessos interpretados
nosso ver, é um tanto paradoxal falar por Caju e Castanha e de um terceiro
assim dessa “nova mulher”, justamente cantado por Teodoro e Sampaio, res-
porque nossa postura enfatiza a neces- pectivamente: “A mulher feia e a mu-
sidade de pensar o feminino além dos lher bonita”; “O poder que a bunda
atributos tradicionalmente forjados tem” e o já citado neste texto, “Mulher
desde os tempos imemoriais: a arte de Chorona”. São letras que estouram nas
seduzir. Criar novos modelos de rela- paradas de sucesso, falando do poder
cionamento sim, porém com papéis da mulher bonita, do poder da bun-
menos desiguais, onde nem o homem da feminina e da mulher que chora
nem a mulher exerçam o poder sobre por tudo, reforçando o estereótipo da
o outro, isto é, sem implicar submissão mulher frágil, sensível, indecisa e das
de uma das partes é o ideal pretendido relações entre homem e mulher pau-
desde o início das lutas feministas. tadas em dinheiro e troca de favores
Será que a mulher precisa assumir sexuais. Mesmo considerando os di-
uma condição radicalmente oposta, ferentes conjuntos e estilos musicais

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ouvidos por grupos sociais diferentes Os estudos já citados sobre o com-
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em diferentes proporções e por meios portamento verbal em diversos paí-
midiáticos diversificados (TV, Rádio, ses e culturas mostram que também
IPod, Internet entre outros), a disse- e principalmente nesta área existem
minação de tais padrões de desigual- fortes contradições (Albischer & Forel,
dade relacionados a poder nas relações 1991; Galli de Paratesi, 1991). Dentre
de gênero atinge todas as camadas da muitos exemplos trazidos pelos auto-
população. Poucos são os meios de res, o uso pelas mulheres italianas de
comunicação, programas de televisão exclamações como “foder” e “trepar”
ou de rádio que propõem discussões no sentido de vencer, “ferrar” alguém,
sobre tais padrões ou representações, mostram como, com expressões se-
apresentando tal situação de modo a manticamente inadequadas, a mulher
propiciar reflexão sobre o valor de re- adotou a linguagem que conota o ato
lações mais equitativas no que se refere sexual como agressão, como uma vitó-
ao assunto.  ria para quem é “ativo” e humilhante
Como foi colocado anteriormente, para quem se deixa penetrar. Isto tam-
tem-se criado, na música, persona- bém ocorre atualmente no Brasil, com
gens com mulheres que oscilam en- a mesma conotação.
tre a dominação e a subordinação de Então, como os autores colocaram,
acordo com certos atributos. Como na as italianas e as brasileiras apropria-
música cantada por Caju e Castanha: ram-se da bandeira e da propaganda,
“Dizem que a mulher feia, quando ela de quem tem uma ideia do ato sexual
é ciumenta, se o seu marido é bonito como fonte de poder ou de prazer ape-
e ela não lhe sustenta, quando ela sai nas para os homens. Poder����������
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amos pen-
com ele dá coice que nem jumento... a sar como Bourdieu e Wacquant (1992)
mulher bonita tem um olhar atraente, que os mecanismos de resistência po-
tem o cheiro de maçã, tem um sorri- dem ser alienantes e a submissão pode
so inocente... E com isso ela conse- ser libertadora? Talvez para as jovens
gue amansar qualquer valente.” Estes das periferias esse seja o resultado da
modelos, ao mesmo tempo em que identificação com o dominador. No
parecem colocar a mulher no poder, entanto, ���������������������������
ao se disseminarem para ou-
retomam a imagem do homem pode- tros grupos sociais, tornam-se mais
roso, que submete e que, portanto, tem um veículo de propagação de uma
direito à mulher bonita, ao seu corpo pseudossubmissão feminina, como es-
escultural como fonte de prazer. tratégia para “levar vantagem”, isto é,
conseguir benefícios pelo uso do sexo,
A CONTRIBUIÇÃO DA LINGUAGEM jogo perigoso sujeito a más interpreta-
NA CONSTRUÇÃO SOCIAL DE NOVOS ções e duplas mensagens que, no final
PADRÕES DE RELACIONAMENTO das contas, não contribui para tirar
o significado das relações de gênero
Além da mídia e das produções baseadas em domínio, cuja moeda é a
artísticas atuais, as mudanças na força da sedução, da sexualidade e dos
forma de falar, principalmente das bens materiais entre os contendores.
mulheres, que hoje usam termos tabu O homem “fodido” é bom, podero-
antigamente exclusivos dos homens, so, forte e a mulher “fodida” é a mu-
têm relevância na expressão do que se lher que não tem medo. Mas tanto a
pensa e de como se age em relação às um quanto a outro pode ser atribuído
questões de gênero. o adjetivo no sentido de “ferrado”, hu-

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milhado, que perdeu. Ambos utilizam tentam padrões e construções, inclu- Gênero, cultura e rede social
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atualmente este vocabulário. sive relacionadas à nossa identidade e Marianne Feijó e Rosa Maria
Stefanini de Macedo
Voltando à música como expressão a identidade dos demais, deixar de re-
dos tempos atuais, temos o exemplo de forçar os padrões que ainda reduzem
“Eu já fui de você”, que cantada rapi- as possibilidades de relacionamento
damente dá o sentido de “fodi” você. cooperativo e que favorecem práticas
“Foda-se”, dane-se, também é utili- violentas, exploradoras e desiguais.
zado por homens e mulheres, no sen- Enxergar as dinâmicas de poder, o
tido de “não me importo,” ou “que se sistema mais amplo, a cultura consu-
vire”, “que se estrepe”. mista, materialista, ávida por prazer
Já os termos “gostoso” e “gostosa” imediato, amplifica o cenário e o con-
atualmente são utilizados pelos dois texto da construção desses padrões e
sexos sem que marque uma conotação nos ajuda a entender as atuais tentati-
de submissão ou de poder, referindo- vas de alcançar relacionamentos mais
-se ao corpo, ao prazer sexual tanto equitativos, mesmo que inicialmente
de um quanto de outro, bem como as de forma exacerbada, onde o poder
expressões “ele é um tesão”, “ela é um apenas muda ou parece mudar de
tesão” ou “é tesuda”. mãos.
Contrastando com os exemplos Para isso, podemos iniciar questio-
dados, os homens brasileiros dizem nando e não repetindo o que se fala e
“dei uma foda”, e as brasileiras dizem, como se fala, uma vez que isso se pro-
na maioria das vezes, “fizemos amor”, paga e o sistema gira no mesmo eixo
“transamos”. Algumas já se apropria- sem sair do lugar.
ram de termos como “trepamos”. Mas É preciso, porém, considerar que a
quando a mulher se apropria da forma linguagem traz consigo significados,
de falar e de vestir, antes assumida pe- e é sinal de pertencimento e de iden-
los homens numa sociedade machista, tificação com um grupo ou geração.
troca de posição, assume o controle e Talvez esta geração esteja expressando,
domina? Ou dá um tiro no próprio pé? mesmo através dos exageros e apelos
Cada vez mais se fala, nas socieda- sexuais, a dificuldade de sair de pa-
des ocidentais, no aumento da busca drões rígidos sem cair na repetição
de relações pautadas em amor, carinho pelo oposto. Para não se sentirem sub-
e compromisso, dada a dificuldade de missas, as mulheres estariam tentando
consegui-las. Será que experimentar mostrar o controle, o poder.
tanta competição, poder e controle do
sexo oposto tem resultado em novas
buscas? CONSIDERAÇÕES FINAIS
Será que aquilo que as pessoas as-
sistem na TV ainda é o que querem Apesar da convivência de pontos de
para si no âmbito privado? Ou esta- vista diferentes e falas que reforçam a
mos chegando a uma era em que a es- questão da desigualdade relacionada
pontaneidade na relação entre os sexos a gênero, estamos assistindo a uma
poderá ser vivenciada de forma mais flexibilização, embora cheia de pa-
igualitária? Não igual. Igualitária! radoxos. Pensamos que essa posição
Devemos, porém, enquanto pro- pós-feminista citada pela articulista
fissionais, e parte das nossas redes, as indica sim uma mudança na balan-
quais se entrelaçam com as redes de ça do poder entre os gêneros, porém
muitas outras pessoas, redes que sus- com a polarização invertida, manten-

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do assim o desequilíbrio da mesma. É de fundamental importância que
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É preciso não esquecer que as ações homens e mulheres, pais, mães, edu-
não são o que define a realidade, mas cadores, terapeutas, pesquisadores e
sim o significado a elas atribuído e outros profissionais tenham uma clara
que estes são eivados de valores que consciência de suas posições nas rela-
subsidiam, motivam as ações. Pen- ções de gênero para que possam agir
sar uma nova ética nas relações de de acordo, com crítica, sabendo do que
gênero vai muito além de inverter precisam e o que sentem. Devem refle-
as posições de quem domina quem, tir, portanto, se concordam com uma
pois, em última an����������������
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lise, quem apa- posição tradicional de divisão de pa-
rentemente domina decidindo como péis, com a subordinação da mulher,
e com quem usar seu poder de sedu- se estão numa posição de discutir essa
ção e de dar prazer, não deixa de estar divisão e subordinação, ou se já se en-
dominada pelo poder do dinheiro ou contram em um nível de construção
pelas facilidades que ele proporciona de uma posição mais equilibrada, sem
em troca. Portanto, todo dominador polarização, com plena consciência
também em algum sentido é domi- das diferenças, porém com senso de
nado, é a lógica do relacionamento. equidade, capacidade de cooperação,
Daí a necessidade de buscar menos que demanda flexibilidade, respeito
polarização, menos desequilíbrio entre as partes, negociação clara, ex-
nessa balança, pois isso impede qual- plícita sobre desejos e possibilidades
quer negociação na direção de maior de cada um, e sobre como se comple-
igualdade e equidade. mentarem para alcançá-los.
Não é possível, porém, esperar Para isso, faz-se necessária uma
uma unicidade, já que em cada con- ampla discussão pública e a educação
texto as mudanças ocorrerão de for- é ponto crucial deste processo. Livros
mas diversas. infantis que retratem homens e mu-
O que concluímos é que a divisão lheres com diferentes formas de viver e
rígida de papéis de gênero não tem de se expressar, educadores conscientes
mais sentido na sociedade atual pelas das necessidades de valorizar diferenças
conquistas das mulheres a novas posi- sem desigualdade, pais exercitando um
ções e as inevitáveis mudanças na si- novo modelo de relacionamento. Isso
tuação dos homens daí consequentes. pode trazer (possivelmente para a nova
Parece, no entanto, que esse linguajar geração) a condição de incluir um leque
agressivo, depreciativo e desqualifica- mais amplo de escolhas na construção
dor reservado ao feminino, à mulher da identidade dos que estão por vir. Aí
como objeto de manipulação mascu- devemos lembrar que caberá aos mais
lina, tem o significado de uma resis- velhos legitimar estas novas formas de
tência masculina para�����������������
não pe����������
rder a su- relacionar-se, já que serão parte impor-
premacia. Ao inverter posições como tante da rede social dos jovens adultos e
fazem certos grupos de mulheres, das crianças de amanhã.
apropriando-se de tais expressões, elas Possivelmente teremos a chance de
se confirmam como coisa, como ob- dar a eles o que buscamos e raramen-
jeto, em uma comunicação de duplo te encontramos em nossas famílias
sentido, além de reforçar e propagar de origem: a coragem e a ousadia de
tais significados. questionar o status quo político, social,
Como mudar esta situação? econômico, doméstico e religioso.

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