Você está na página 1de 4

REPORTAGEM DE CAPA

O pequeno e incômodo visitante


Exatas duas décadas após ser detectado na água de lastro de navios na América do Sul, mexilhão-dourado
segue entupindo tubulações, causando desequilíbrio ambiental e prejuízos milionários para empresas

POR MAURO PASINI


alexandre marchetti itaipu binacional

1
Um tormento sem fim: nem os filtros do sistema de arrefecimento da Itaipu Binacional, a maior usina hidrelétrica
do mundo, escapa da ação do mexilhão dourado. No detalhe colônias aderidas aos equipamentos

O molusco bivalve de conchas doura- dos portos asiáticos, espalhou-se para


das é minúsculo - tem, no máximo, quatro outras partes do mundo. Durante a cap-
centímetros - mas uma incrível capacida- tação das toneladas de água nos portos Guaíba. Um ano depois, um levantamen-
de de reprodução e de se adaptar a novos orientais para manter a estabilidade das to do DMAE constatou que colônias do
ambientes. Nativo da Ásia, chegou à Amé- embarcações, o molusco pegou carona limnoperna fortunei já eram encontradas
rica na carona da água de lastro de navios nos navios mercantes para ser despeja- em todas as EBAB’s (Estação de Bombe-
mercantes, transformando-se em um dos do, sem intenção, nos portos de destino. amento de Água Bruta) e ETA’s (Estação
maiores problemas ambientais enfrenta- Em 1991, o mexilhão-dourado foi encon- de Tratamento de Água). O molusco já
dos por usinas hidrelétricas e empresas de trado pela primeira vez no Rio da Prata, estava aderido às tubulações de bombe-
abastecimento de água no Brasil. na Argentina. Sem predadores naturais, a amento de água bruta, grades e paredes
Nativo do rio das Pérolas, na China, o espécie exótica proliferou-se em grandes de câmaras, provocando a redução dos
mexilhão dourado (Limnoperna fortunei), proporções pelos rios Paraná e Paraguai, diâmetros internos e da velocidade do
reproduz-se através de larvas que se mo- chegando inclusive ao Pantanal brasileiro. fluxo. O molusco também desperta pre-
vimentam na água. Com um mês de vida (veja gráfico) ocupação na Lagoa Mirim, onde também
e meio centímetro de comprimento, já Da Argentina, o mexilhão-dourado foi identificado.
origina novos moluscos, com capacidade seguiu, em 1999, para o Rio Grande do Além do serviço de água e esgoto, o
de fixação em qualquer superfície - tan- Sul também na água de lastro de navios mexilhão-dourado é um tormento para
to natural (madeira e vegetação) quanto que operam no porto de Porto Alegre. A usinas hidrelétricas. Ainda na forma de
artificial (canos, muros, plásticos e vi- presença do molusco foi imediatamente larva, o molusco invade as tubulações - e
dros). Da China, a espécie rapidamente percebida pela Companhia Rio-Granden- lá se fixa. Na fase adulta, causa obstru-
proliferou-se pelo Sudeste Asiático. Em se de Saneamento (CORSAN) e pelo De- ção e o consequente superaquecimen-
1965, foi detectada no sistema de abas- partamento Municipal de Água e Esgoto to nas máquinas. Quando isso ocorre,
tecimento de água de Hong Kong. Em (DMAE) da capital gaúcha no Delta do a geração de energia é interrompida.
1990, invadiu Japão e Taiwan. A partir rio Jacuí e na região Hidrográfica do Lago Nem a Itaipu Binacional, a maior usina

06
edição 81 conexão marítima | dezembro de 2011
www.conexaomaritima.com.br

panhia Paranaense de Energia (COPEL),


A Cronologia da Invasão que convive com a espécie desde 2006,
na usina de Governador José Richa, no
rio Iguaçu. Em quatro usinas da Compa-
nhia Energética de São Paulo (CESP), a
aplicação de uma substância com cloro
nos rios Paraná e Tietê evita a formação
de colônias e a consequente paralisação
das máquinas. Os gastos anuais com o
sistema chegam a R$ 100 mil.
Exterminar o mexilhão-dourado é ta-
refa praticamente impossível, segundo
ambientalistas. “Atualmente, não exis-
tem formas para contê-lo, pois já é uma
espécie estabelecida. Contudo, cuidados
podem ser tomados, no intuito de inibir
sua proliferação. Por exemplo, a limpeza
dos cascos das embarcações que circu-
lem pelos rios contaminados, para evitar
que as larvas do mexilhão fixem-se no
casco e sejam transferidas para outros
rios”, afirma Newton Narciso Pereira,
pesquisador da Escola Politécnica da
2
Universidade de São Paulo (USP) e pre-
hidrelétrica do mundo, escapou da ação baixas concentrações, uso de tintas anti- sidente da OSCIP Água de Lastro Brasil
do minúsculo molusco. O primeiro sinal -incrustantes e a aplicação do gás ozônio (veja entrevista na página ao lado).
do invasor veio em abril de 2001, quan- em baixas concentrações na tubulação Apostar em ações educativas vem
do ele já estava em uma das tomadas dos trocadores de calor das unidades sendo outra estratégia adotada pelas
de água - compartimentos anteriores geradoras - por onde passa a água que empresas. Em setembro deste ano, a
às turbinas. A rapidez da reprodução do resfria o óleo que lubrifica as turbinas. Companhia Energética de Minas Gerais
molusco surpreendeu. Em 2001, a den- O método impede que a substância se- (CEMIG) detectou, pela primeira vez, a
sidade máxima era de dois indivíduos a gregada pelo mexilhão se solidifique e o presença do mexilhão-dourado em uma
cada metro quadrado. Dois anos depois, fixe nas estruturas. A ação de predado- das máquinas na Usina Volta Grande,
saltou para 184 mil mexilhões na mes- res naturais, como peixes, também cola- na região do Triângulo Mineiro. O mo-
ma área. Foi preciso implantar medidas borou. “O mexilhão-dourado aumentou lusco não ameaça o funcionamento da
para limpar os equipamentos, até hoje nosso intercâmbio técnico com outras hidrelétrica, mas serviu para reforçar as
em vigor. “São feitas limpezas pontuais empresas de geração hidroelétrica, fa- ações educativas, realizadas desde 2002.
dos filtros do sistema de arrefecimento e cilitando a disseminação de técnicas de Cerca de R$ 10 milhões já foram inves-
paredes da tomada de água dos condu- monitoramento e controle pontual do tidos em estudos sobre o molusco. Em
tos. A limpeza é realizada com bombas molusco, evitando, com a devida an- março deste ano, mil alunos de escolas
de pressão e a mão-de-obra rotineira tecedência, qualquer interferência na do entorno da Usina São Simão partici-
utilizada para as demais atividades das geração de energia”, afirma Romero param das atividades da campanha anu-
paradas de turbinas programadas”, afir- Neto. A utilização de métodos químicos al “Sai pra lá, mexilhão dourado!”. Tam-
ma Matheus Romero Neto, da Divisão também amenizou os prejuízos na Com- bém desde 2004, a Cemig promove um
de Reservatório da Itaipu Binacional. A
manobra gera custo adicional de R$ 20
mil reais a cada ano. Hoje, a média é de
7,3 mil moluscos nas paredes da toma-
da de água dos condutos forçados. Nas
tubulações, a média de indivíduos adul-
tos aderidos é próxima de zero. Além de
furnas / furg

remover mecanicamente os moluscos, a


Itaipu pôs em prática métodos de con-
trole como o aumento da vazão em en-
canamentos, injeções de hipoclorito em 3 4
Mexilhão causa prejuizo em Furnas (à esquerda) e é pesquisado na Lagoa Mirim no Rio Grande do Sul

07
dezembro de 2011 | conexão marítima edição 81
REPORTAGEM DE CAPA
trabalho de educação socioambiental
com a comunidade ribeirinha que vive
à jusante da Usina São Simão. Técnicos
da Companhia orientam os pescadores
sobre a importância da desinfecção dos
barcos e dos equipamentos de pesca. “É
fundamental que os barqueiros saibam
identificar o mexilhão-dourado e tenham

alexandre marchetti itaipu binacional


o cuidado com a limpeza da embarcação
antes de transpor o rio”, explica Marcela
Carvalho, analista de meio ambiente da
CEMIG. A Eletrobras Furnas também criou
um Grupo de Trabalho para acompanhar a
presença do mexilhão-dourado nas turbi-
nas da usina. Foi criada a campanha “Não
dê carona a esse bicho!”, que envolve a
apresentação do problema aos técnicos
das usinas em operação, o treinamento
para monitorar a presença do mexilhão 5
nas estruturas e palestras com segmentos Durante paradas programadas de manutenção, funcionários da Itaipu Binacional retiram manual-
sociais que usam o reservatório. mente mexilhões incrustados nas tubulações. Manobra gera custo adicional de R$20 mil ao ano

A cada ano, cinco bilhões de m³ E junto com a água, os navios mercantes é para embarcações que vem de portos
de água de lastro transportados acabam transportando cerca de três mil considerados de risco. De acordo com da-
espécies diferentes. dos da Inspeção Naval do Departamento
Em 1973, a Organização Marítima In- de Portos e Costas (DPC), o número de
ternacional (IMO) aprovou a Resolução navios que desrespeitam a Norman-20
18, a primeira a debater formas de mini- nos portos brasileiros vem diminuindo
mizar os efeitos da bioinvasão através da gradativamente, “estando atualmente
água de lastro. Em 2000, um programa abaixo de 5% do total”, afirma Jairo Fon-
avaliou a qualidade da água em seis por- tenelle, responsável pela assessoria de
tos no mundo. Quatro anos mais tarde, Comunicação Social do Departamento.
a IMO lançou a Convenção Internacional Em outubro de 2010, o DPC realizou
para Controle e Gerenciamento de Água o VI Seminário Brasileiro sobre Água
de Lastro de Navios e Sedimentos. A legis- de Lastro na cidade carioca de Arraial
lação determina que os navios realizem a do Cabo. Um dos destaques foi a Con-
governo da bahia

troca da água de lastro a, pelo menos, venção Internacional para o Controle e


200 milhas da costa e a 200 metros de Gerenciamento de Água de Lastro e Se-
profundidade. Em casos especiais, a troca dimentos de Navios (Convenção BWM).
deverá ser realizada a pelo menos 50 mi- A partir de 2016, todos os navios deve-
lhas náuticas ou em zonas determinadas rão cumprir, pelo menos, a Norma de
6 pela Autoridade Marítima. Só que a pro- Performance de Água de Lastro (Regra
posta ainda não foi aprovada por 30 es- D-2), que estabelece os números máxi-
A estimativa foi feita pelo pesquisa- tados membros da IMO, número mínimo mos de organismos e micro-organismos
dor Alexandre Leal Neto em sua de dou- para que o documento entre em vigor. presentes na água de lastro que os na-
torado pela Universidade Federal do Rio No Brasil, a primeira regulamentação vios podem descarregar. Para isso, vá-
de Janeiro (UFRJ). O número levou em foi a NORMAN 20, em vigor desde outu- rios sistemas de tratamento vêm sendo
contra os cerca de 65 mil navios transo- bro de 2005, que estabelece que todos desenvolvidos. Até agosto deste ano, 34
ceânicos atualmente em operação. Um os navios devem realizar a troca oceânica técnicas receberam a Aprovação Básica
cargueiro com capacidade para 200 mil antes de entrar em um porto brasileiro. da IMO e 20 a Aprovação Final. Além
toneladas, por exemplo, carrega até 60 Na prática, a regra nem sempre é res- desses, 17 sistemas de tratamento de
mil toneladas de água de lastro. A estatís- peitada. Segundo a Marinha do Brasil, a água de lastro foram homologados pe-
tica chega a aproximadamente 12 bilhões fiscalização é feita sem aviso prévio e os las respectivas Administrações. A bata-
de toneladas de água de lastro transpor- navios inspecionados são escolhidos ale- lha contra o molusco e novas formas de
tadas a cada ano ao redor do mundo (6). atoriamente. No entanto, a prioridade bioinvasão renderá novos capítulos.

08
edição 81 conexão marítima | dezembro de 2011
www.conexaomaritima.com.br

A principal forma de controle é monitorar

água de latro brasil


o despejo de água de lastro dos navios”
focado é a facilitação aos formulários de pagamento adicional de US$ 100 mil para
água de lastro entregues pelos navios. Smithsonian Environmental Research Cen-
Uma análise profunda dos formulários ter, além de três anos de serviços comuni-
7
poderia indicar se os navios cumpriram o tários. Essa foi a condição para que os seus
Newton Pereira procedimento de troca. Além disso, deve- dirigentes ficassem em liberdade condicio-
ríamos ter um banco de dados disponível nal. Além disso, todos os outros navios da
Presidente da Água de Lastro e atualizado com as informações relativas empresa ficaram impedidos de operar em
Brasil aos navios e a origem da água de lastro águas americanas por três anos.
despejada nos portos brasileiros. Existe
Newton Narciso Pereira é doutorando uma grande similaridade ambiental entre Quais os estudos atuais?
em Engenharia Naval e Oceânica pelo De- os portos brasileiros. Deste modo, o risco Existem sistemas de tratamento que
partamento de Engenharia Naval da Escola da água de lastro pode estar dentro do estão sendo fabricados por algumas em-
Politécnica da Universidade de São Paulo nosso próprio território. presas ao redor do mundo, homologados
(USP). Sua tese aborda “Alternativas de pela Organização Marítima Internacional
tratamento da água de lastro em portos As legislações existentes são as ideais (IMO). Esses sistemas atendem ao padrão
exportadores de minério de ferro”. Confira ou falta fiscalização? IMO-D2, que estabelece o número de indi-
a entrevista à Conexão Marítima do tam- A legislação é eficiente. No entanto, víduos residuais nos tanques. Ocorre que,
bém presidente da Água de Lastro Brasil, precisa-se avaliar a eficácia de sua aplica- desde 2009, a Califórnia, Nova Iorque e
OSCIP fundada por pesquisadores em ção. Se não existir monitoramento, con- Michigan estudam aumentar em 100 ve-
1998 em São Paulo para debater formas trole e fiscalização, não tem como garan- zes a restrição à eficiência do tratamento
de minimizar os efeitos da bioinvasão. tir que a lei seja cumprida. Nos Estados em relação a IMO-D2. A análise dos 60
Unidos, por exemplo, os navios que não sistemas disponíveis, considerando os
A existência do mexilhão-dourado no cumprirem o procedimento são seriamen- 18 homologados pela IMO, mostrou que
Brasil pode ser considerada crítica? te punidos. Em junho de 2009, o coman- nenhum atende a esses critérios de efici-
A população está crescendo, conforme dante, juntamente com o imediato filipino ência desses Estados. Diante desse cená-
diversos estudos. Em 2010, a Dra. Marcia e o engenheiro chefe do navio grego M/V rio, é possível que o problema da gestão
Divina, da Embrapa, detectou a presença Theotokos, confessaram ter violado a lei e controle da água de lastro recaia sobre
no Pantanal, acima da foz do rio Apa, apro- antipoluição americana pelo fato de terem uma solução que, para os fabricantes,
ximadamente 1,8 mil km da Argentina, por despejado água de lastro contaminada não é conveniente, como tratar a água de
onde o mexilhão entrou nos rios brasilei- na costa americana. A Corte Americana lastro no porto. Uma das principais vanta-
ros. Além disso, as usinas hidrelétricas dos proferiu as seguintes sentenças: o coman- gens desse sistema é que as autoridades
rios Tietê e Paraná são a prova da crescen- dante do navio foi condenado a dez meses do porto podem operar, manter as instala-
te população de mexilhão nos estados do de confinamento, multa de US$ 4 mil e ções e monitorá-las. No entanto, é neces-
Sul e Sudeste do Brasil. proibição de três anos de acessar as águas sário que os portos tenham infraestrutura.
territoriais americanas. O chefe do navio Porém, o investimento é muito menor em
O que pode ser feito? de máquinas foi condenado à liberdade relação a dotar todos os navios que o porto
É confirmado que a causa das invasões condicional e proibição de acesso por três recebe com sistemas individuais de água
em grande parte é o despejo de água de anos no país por apresentar declaração de lastro. Estudos recentes realizados pela
lastro. Deste modo, o monitoramento e falsa no livro de registro de água de lastro. Frost&Sullivan mostraram que o mercado
controle do local onde os navios coletaram O engenheiro-chefe foi condenado a pagar para os fabricantes de sistema de água de
a água de lastro, bem como dos procedi- uma multa de US$ 15 mil e um mandato de lastro até 2016 - quando deve entrar em
mentos de remediação, é a única forma de prisão preventiva, incluindo a proibição de vigor o item da convenção - é de US$ 30 bi-
reduzir os riscos de novas invasões. cinco anos de acesso aos EUA. Aos outros lhões. Deste modo, não é de estranhar que
nove ex-membros da tripulação, foram o tratamento em terra seja uma solução
Falta interesse público e político? concedidos um valor de US$ 540 mil por pouco renegada. Entendo que a busca de
Entendemos que deveria existir um terem contribuído com a investigação e in- novas soluções para a água de lastro não
debate mais amplo, além de um proces- dicado os culpados. A empresa Polembros deve baseado em paradigmas e soluções
so de fiscalização e controle eficiente nos Shipping, gestora do navio, foi condenada pré-concebidas e, sim, em alternativas efi-
portos. O primeiro ponto que deveria ser a pagar multa de US$ 2,7 milhões e um cientes para o problema.

09
dezembro de 2011 | conexão marítima edição 81

Você também pode gostar