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Escutar No futuro haverd possivelmente, uma pro- fissao que se chamara escutador [Zuhérer]. Em troca de pagamento se fornecera, ao outro, a escuta. Vai-se ao escutador pois, caso contra- rio, mal havera outra pessoa que escutara 0 outro. Hoje, perdemos cada vez mais a capaci- dade de escuta. Sobretudo 0 foco crescente no ego, a narcisificacao da sociedade, o dificulta. Narciso nao responde a voz amavel da nir ssim, que seria, na verdade, a voz do outro. ¢ ela degenera na repeti¢ao da propria voz. vo, Uma ativi- O escutar nao é um ato pa: dade especial o caracteriza. Bu tenho, primei- ramente, de dar boas-vindas ao outro; ou seja, afirmar o outro em sua alteridade. Entio, eu 0 presenteio com a escuta, O escutar é um pre- sentear, um dar, um dom, So ele traz 0 outro primeiramente 4 fala. Ele néo segue passiva- mente o discurso do outro. Em certo sentido, © escutar antecede a fala. S6 0 escutar traz 6 outro A fala. Eu ja escuto antes que 0 outro fale, ou eu escuto para que 0 outro fale. O es cutar convida o outro a falar, liberta-o em sua alteridade. O escutador é um espaco de resso nancia no qual o outro fala livremente. Assim, o escutar pode ser curativo. Elias Canetti eleva Hermann Broch a um escutador ideal, que altruisticamente presen teia 0 outro com a sua escuta. Seu silencio hospitaleiro, de quem escuta, convida o ou tro a falar livremente: “Seria possivel dizer-lhe qualquer coisa, ele nao rejeitava nada; so sen tia repulsa enquanto nao lhe tivesse dito abso lutamente nada. Enquanto, geralmente, em tais didlogos, chega-se a um lugar, onde se diz para si, com um solavanco repentino, ‘Pare! ‘Até aqui apenas, e nado mais!, uma vez que 4 renuincia que se teria desejado se torn pet! gosa — pois como se encontraria 0 caminho de volta para si e como se deveria estar Nov amen te sozinho depois disso? -, nunc havia esse lugar e esse instante em Broch; nie gritava - se esl ava elm para parar, em nenhum lugar se esbart 124 um sinal de alerta ou em uma marcacio, se tropegava adiante, mais velozmente, e se esta- va como que inebriado. E sobrepujante viven- ciar 0 quanto se tem para falar de si mesmo; quanto mais nos atrevemos e nos perdemos, tanto mais se flui”"”’. O siléncio de Broch é afavel [freundlich]; sim, hospitaleiro [gastfre- undlich]. Ele se retira inteiramente para [dar lugar para] o outro. Ele se torna inteiramente ouvidos, sem uma boca incémoda. O siléncio de Broch é um siléncio hospita- leiro, que se distingue do siléncio de um ana- lista [Analytikers], que ouve a tudo, em vez de escutar 0 outro. O escutador hospitaleiro se esvazia em um espago de ressonancia do ou- tro, que libera esse espago para si. Apenas 0 escutar pode curar. O siléncio do escutador sé é, “interrompido {por] peque! que dao testemut s, de que se foi regis- ada frase que Se segundo Ca- nas pontua- netti nho de goes com a respiragao, nado se ouve apena que m como se com ¢ trado, assi schichte, 1931- o7.ch -Lebensee: : Munique, ieee . 7, CANETTI, £. Das Augensple! ; “ 3937 [0 jogo dos olhos ~ Biografia, 1931-1937] 1985, p- 36- 125 tivesse dito se tivesse entrado em uma casa € se deixado se instalar 14 prolixamente’, pequenos sons de respiragao sao sinais de hos- pitalidade, um encorajamento que vem sem julgamento. Eles sio um minimo de reagao, pois palavras e frases inteiramente formadas ja seriam um juizo e ja se comparariam a uma tomada de posigao. Canetti aponta para uma parada peculiar, que se iguala a uma suspen- sio do juizo. O escutador se abstém de um juizo, como se todo juizo [Urteil] equivalesse a um preconceito [Vorurteil], que seria uma traigao com outro. A arte da escuta se realiza como uma arte da respiracao. O registro hospitaleiro do ou- tro é um inspirar que, todavia, nao incorpora © outro, mas sim o acolhe e 0 protege. O es- cutador se esvazia. Ele se torna ninguém. Sua afabilidade consiste nesse vazio: “Ele parecia registrar as coisas mais diferentes possiveis, fim de protegé-las”"™. A nte A postura responsavel d lo escutador fre ciénci passt- ao outro se expressa como paciéncia. A pe 108. Ibid., p. 32. 126 antl Vidade da Paciéencia & a Primeira m escutar, O escutador se dxima do expée se Star-exposto [Ausgese @ maxima d. impede que m reservas ao outro. O ¢. tzheit| 6 4 do escutar, Apenas ela S€ curta a si Mesmo. O ego aco do e: 0 de ressonancia do outro s uma outr; a btic ) nao con Segue escutar, O esp: ‘scutar como espa- e abre onde o ego é Suspenso. No lugar do 80 narcisista entra uma obsessio pelo outro, um de O cuidado da escut: fato, sejo pelo outro, a vale para o outro e, de €M Oposi¢ao ao cuidado de Heidegger, o cuidado consigo mesmo. Por cuidado, Canetti quer escutar 0 outro. $6 0 escutar possibilita ao outro o falar: “O mais importante é 0 falar com desconhecidos. E preciso organizar tudo, contudo, de modo que eles falam, e tudo que se faz ai é trazé-los a fala. Se nao é possivel fazer isso, entao se come¢ou a morte”, Essa morte nao é minha morte, mas a morte do ou- tro. Meu discurso, meu juizo, mesmo minha admiragio, fazem sempre com que morra algo t : vocé nao fala; do outro: “Deixe todos falarem: vocé nic ne ~ Aufzeichnun- 109, CANETTI, E. Die Provinz des pcrscleg oa Recs 8en, 1942-1972 [A provincia do ser hum: 1942-1972], Munique, 1970, p. 307. 127 , as pessoas a sua figura, suas palavras tomam d AS, | 4 A sua admiragao apaga suas fronteir 5 clas nado. ef; 4 “e110 se conhecem mais, se vocé fala; clas sio voce : A cultura do curtir rejeita toda forma de ferida e trepidagao. Quem, porém, quer se es- quivar de toda ferida, nao experimenta nada, Pertence a toda experiéncia profunda, a todo conhecimento a negatividade da ferida. O mero curtir € 0 estagio de atrofia absoluta da experiéncia. Elias Canetti distin de espiritos, das, gue dois tipos “aqueles que se instalam nas feri- € aqueles que se instalam em casas”!!! 4 ferida é a abertura Por meio da qual o outro entra. Ela também é 0 ouvido que se m: aberto para 0 Outro. Quem est4 inteira: consigo em casa, quem se fecha em cas consegue escutar, A Cas: antém, mente ‘a, nao ‘a protege o ego do ferida Tompe a int Narcisista, Assim, el; ra 0 outro, assalto do Outro, A eriori- dade doméstica, ‘se torna 4 Porta aberta Pp lo. CANETTI, frimento das m 111. canery, Ser humano} 128 E, Ole Fliegenpein — Au sca = Anotagées}. M f2eichnungen [0 so. i LE. Die Proving des Men: Op, cit., p. 3 4. unique, 1992, », 64, schen [A Provincia do Na comunicagao analdgica, temos, via de regra, um destinatario concreto, um de frente pessoal. A comunicagao digital promove, em contrapartida, uma comunicacao expansiva, impessoal, que se da sem um de frente pessoal, sem olhar e sem voz. No Twitter, por exem- plo, enviamos, constantemente, mensagens. Mas elas nao sao direcionadas a uma pessoa concreta. Elas nao visam a ninguém. Midias sociais nao promovem necessariamente uma cultura de discussao. Elas sao, frequentemen- Jo uma te, conduzidas pelo afeto. Shitstorms s enchente desordenada de afetos, que nao cons- titui nenhuma esfera publica. Eu obtenho informagées pela internet e, para isso, nado preciso me voltar para um de frente pessoal. Eu nao me apresento no espago publico para obter informagoes ou mercado- rias, Antes, deixo que elas venham até mim. A comunica¢ao digital me conecta, po. Ela aniquila, de fato, 2 dis- séncia de distancia nao produz mas me isola ao mesmo tem tancia, mas a aus ainda uma proximi Sem a presenga d se degrada em uma trot dade pessoal. jo outro, a comunicagao ca acelerada de infor- 129 tana com Canscanet ma relagdo, mae aim Ela no produz u nunica Hla & uma cot jmidade avish Ao. magoes s uma coneNdO. sm nenhuma Prox 40 completan Na escula, hi, 8 ar significa al vente sem VIE nhada, Hiscul igoe' diferente de trocat de infor iodo nenhum, nenhuma tro nao ocorre, den gem escula, nao se CONS ca, Sem vizinhanga, ma comunidade. A comunidade é {umal] titui ur comunidade de esculadores [Zuhdrerschaft|. No Facebook nao se fala de problemas que podemos abordar ¢ disculir juntos. Enviam propagandas, que nao care -se, antes de tudo, 1 obler 0 ‘oe servem apenas pare cem de discus perfil do remetente. Assim, nao se chega a ima ginar que 0 outro poderia ter dores ¢ preocu Na comunidade do like, nos encontra pago mos apenas com nds mesMos Oo im discurso [Diskurs] : ul COM NOSSOS iguais. Também nenhu possivel ai. O espago politico é um es ‘os, falo com ou pago em que eu me confronto com outr tros e os escuto, Oescutar tem uma dimensao politica. Ele na existéncia do éuma agio, participagao ativa je liga outro e também no seu sofrimento. Sé el e medeia os seres humanos primeiramente em 130 uma comunidade, Hoje, ouvimos muito, mas desaprendemos cada vez, mais a habilidade de escutar outros e de dar escuta A sua fala, ao Seu sofrimento. Hoje, cada um esta, de algum modo, sozinho consigo, com seus sofrimen- tos, com suas angtstias. O sofrimento é pri- vatizado e individualizado. Assim, ele se torna um objeto da terapia, que tentar curar o eu, a sua psyché. Todos se envergonham, culpam apenas a si mesmos por sua fraqueza e insufi- ciéncia. Nao se produz nenhuma ligacao entre meu sofrimento e seu sofrimento. Ignora-se, assim, a socialidade do sofrimento. A estratégia de dominaco consiste, hoje, em privatizar o sofrimento, a angustia, e, assim, ocultar sua socialidade; ou seja, impedir a sua socializagéo, a sua politizacdo. A politizagao sig- nifica a traducdo do privado no publico. Hoje, se dissolve, antes, 0 puiblico no privado. A esfera publica se decompde em espagos privados. Desaparece radicalmente a constituicao de uma vontade politica, de um espago publico, de uma comunidade do escutar, de uma comu- nidade politica de escutadores. A conexao digi- tal favorece esse desenvolvimento. A internet 131 nao se manifesta hoje como um espago do ayir comum e comunicativo. Antes, ela se degrada em espacos de exposicao do eu, nos quais se promove, antes de tudo, a si mesmo. A inter- net nao é, hoje, senao a camara de ressonancia do si isolado. Nenhuma propaganda escuta. Pode-se elaborar, a partir de Momo, de Michael Ende, uma ética do escutar. Primei- ramente, Momo caracteriza uma riqueza de tempo: “Tempo era, afinal, a tinica coisa de que Momo era rico” O tempo de Momo é um tempo especial. Ele é 0 tempo do outro; a sa- ber, o tempo que ela da aos outros ao escu- té-los. Momo é admirada por sua capacidade de escutar. Ela aparece como Escutadora: “O que a pequena Momo podia como ninguém era escutar. Isso nao é nada de especial, tal- vez alguns leitores digam; qualquer um pode escutar. Mas isso é um engano. Apenas pou- cas pessoas conseguem realmente escutar. E o modo como a Momo se entendia com 0 escutar era inteiramente unico” Momo sim- plesmente senta e escuta. O seu escutar faz, Porem, milagres. Ela faz as pessoas pensarem 132 sll coisas que elas nunca teriam pensado sozi- nhas. O seu escutar lembra, de fato, o escutar hospitaleiro de Hermann Broch, que livra o outro para si mesmo: “Nisso ela via os outros com seus grandes e escuros olhos, e quem era atingido por eles se sentia como se surgissem nele pensamentos que ele nao fazia ideia de que se escondiam nele. Ele podia escutar de tal modo, que pessoas desorientadas ou indecisas vinham a saber de uma vez s6 exa- tamente o que elas queriam. Ou de modo que pessoas timidas se tinham subitamente livres € corajosas. Ou de modo que pessoas infelizes e deprimidas se sentiam confiantes e felizes. Se alguém pensava que a sua vida era um fra- casso e sem sentido e que ele era apenas um entre milhées, alguém que nao teria nada de especial e que poderia ser substituido tao rapi- damente quanto uma panela quebrada - e ele ia e contava tudo para a pequena Momo, entao se tornava, de um modo inteiramente miste- rioso, claro para ele, enquanto ele ainda falava, que ele estava tremendamente enganado, que ele, exatamente como ele era, s6 houve uma 133 vez entre todas as pessoas, ¢ que, por isso, ele era importante para o mundo da sua propria maneira especial. Era assim que a Momo con- seguia escutar!” O escutar devolve a cada um ° Seu [Seine]. Apenas pelo mero escutar, Momo também arbitra 0 conflito. O escutar reconci- lia, cura e redime: “Uma outra vez, um peque- no garoto trouxe para ela um canario que nao queria cantar. Essa foi uma missao muito mais dificil para Momo. Ela precisou escutd-lo por uma semana inteira, até que, por fim, ele co- mecou a trinar e jubilar”. A barulhenta sociedade do cansago é sur- da. A sociedade do porvir poderia, trapartida, em con- ser uma sociedade dos escutadores [Zuhérenden] e escutantes (Lauschenden]. & uma revolucdo temporal, que Permita que um tempo inteiramente diferente comece. A crise atual do tempo nao é leracéo, mas a totalizacio do te tempo do outro se furta a logi necessaria, hoje, a ace- ™po do si. O ca do aumen- to do desempenho e da eficiéncia, que pro- que seria, para ela, um tempo improdutivo. A totalizagio do tempo do si caminha conjun- tamente com a totalizagéo da producao, que hoje abrange todas as esferas da vida e ela a exploracio total do ser humano. A politica temporal neoliberal também desfaz 0 tempo da festa, o tempo do apogeu [Hoch-Zeit], que se furta a légica da produgao. Nele vigora, a saber, a des-produgdo. Em oposi¢ao ao tempo do si, que nos isola e separa, o tempo do outro promove uma comunidade. Ele é, por isso, um bom tempo. 135 Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Han, Byung-Chul A expulsdo do outro : sociedade, percepcao e comunicacao hoje / Byung-Chul Han ; traducao de Lucas Machado - Petrdpolis, RJ : Vozes, 2022. Titulo original: Die Austreibung des Anderen ISBN 978-65-5713-350-7 1. Filosofia 2. Sociedade I. Titulo. 21-81542 CDD-100 Indices para catalogo sistematico: 1. Filosofia 1000 Aline Graziele Benitez - Bibliotecaria - CRB-1/3129

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