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Diaspora africana: travessia atlantica e identidades recriadas nos espacos coloniais FLAVIA MARIA DE CARVALHO Doutoranda em Histéria - UFF Mestre em Histéria - UFF Resumo O presente trabalho analisa as condigdes com que eram transportados e embareados os escravos captados na Africa Centro Ocidental que tinham como destino as colénias americanas. Abordamos questées relacionadas as formas com que eram tratados esses corpos, que se configuravam como importantes mercadorias do cireuito comercial do Império Ultramarino Portugués. Consideramos as viagens como relevantes etapas do processo de recriacdo das identidades africanas, transformadas em func&o da diaspora. Analisamos em nosso artigo as condicdes de transporte e aprisionamento dos escravos, relacionando os momentos anteriores ao cativeiro americano como espacos onde africanos de origens diversas encontraram alternativas para estabelecer uma comunicac&o, e dar inicio 4 construcio de novas identidades. Palavras-chave tra fico de escravos, identidades culturais, escravidao. coméreio de escravos foi responsvel por intimeras transformacdes nas sociedades africanas. Além do impacto demogritfico ji analisado por varios autores, e de seus desdobramentos na economia colonial’, a migracéo forcada de milhares de pessoas também foi responsivel por transformagdes politicas nos reinos e potentados que atuavam no fornecimento de escravos para o mercado atlantico Aescravidao j4 era uma pratica comum entre varios grupos de afrieanos, mas possuia significados diferentes daquele que posteriormente passou a predominar no cativeiro americano.i Entre os povos de origem bantoii, a escravidao representava uma alternativa para a aquisicio de mao-de-obra, além de ser uma forma de aumentar o séquito das autoridades locais. Entre esses africanos, a extensio do poder politico era medida pelo niimero de pessoas que compunham seu séquito, nio importando a extensao territorial de suas propriedades. Obter escravos representava, “MNEME — REVISTA DE HUMANIDADES, 11 (27), ‘blended Departed Had Unite Four do io Grande do Nor (Cnizo de Ensin Superior da Serids~Camparde Cains Sommstrl ISSN 1518-3994 Disponivel em ktp worn priodics atin r/os/index phpaneme 10 14 portanto, uma forma de reconhecimento da soberania politico de reis e demais autoridades bantos*. ‘A presenca dos europeus no continente africano alterou a fungao social do escravo, que se tornou mercadoria e propriedade de seus senhores. O processo de mercantilizagiio dos corpos foi responsfvel pela transposicao cultural de variados grupos, ¢ pela recriagao de priticas aps a aproximagio promovida pela convivéncia nos barracées e nas embarcagdes que os conduziram A América Portuguesa. As informagoes sobre a participagao dos poderes locais africanos nas etapas que precediam o embarque sio dados que permitem compreender 0 cenério anterior a viagem dos tumbeiros* — nome dados ais embareagdes que transportavam escravos em fungao da alta taxa de mortalidade vigente entre as tripulagdes*. Para a aquisi¢io de escravos os europeus dependiam da permisstio dos chefes locais africanos. Inicialmente eram solicitadas licengas para a construgio de barracées no litoral, ¢ depois eram combinadas as formas de pagamento ¢ o niimero estimado de escravos desejados. Geralmente essas negociagdes eram feitas por intermediérios dos reise potentados locais, funcionarios que agiam como embaixadores dessas autoridades prineipais". [As rivalidades entre reinos foi um dos elementos que facilitou a obtengao de escravos para o mercado atlintico. Muitas dessas divergéncias foram fomentadas pelos europeus, que viam nessas guerras vantagens para seus negécios africanos. O histérico da presenga portuguesa no antigo reino do Ndongo, e posteriores impasses deste com o reino do Congo, possibilita essa constataciio", No inicio do século XVI, 0 Ndongo era um pequeno Estado loealizado na fronteira sul do reino do Congo. Nesse periodo o territério do antigo reino de Angola, cujo nome deriva de Ngola, titulo de seus reis, correspondia principalmente a regio entre os rios Kwanza e Lukala ou Bengo. A maior parte de sua populac&o era formada pelo grupo dos mbimdus®, falantes de quimbundu. O dito reino foi fundado antes da chegada dos portugueses em seus territérios, mas teve sua trajetéria mareada por esse contato’. Os mbundus, povo de origem banto, teriam vindo das terras altas a leste do reino de Matamba, ¢ teriam se estabelecido nas regides a leste de Luanda. As terras do Ngola eram cereadas por cinco poderosos reinos: 0 reino do Congo, o reino de Matamba, o reino de Massinga e 0 reino do Massongo. Joseph Miller’ cita que esse territério nao se estendia até o litoral. A regiio que fazia a intersecao entre o Ndongo e a Costa Atlantica era habitada por falantes de kikongo, e correspondia a provincia de Mbamba subordinada ao reino do Congo. Durante o decorrer do século XVI o Ndongo se expandiu em diregao & Costa e fomentou as rivalidades com o reino do Congo. A chegada dos portugueses na regito fez com que os mbundus reavaliassem a importincia de possuir uma safda maritima, “MNEME — REVISTA DE HUMANIDADES, 11 (27), 2010 Fabled do Departed iad UnveraePoerl de Cenizo de Ensin Super do Serids~ Carp de Cains Someta 8 Disponivel em ktp worn priodics atin r/os/index phpaneme Grande do Norte "518-3395 15 anteriormente utilizada somente para o fornecimento de sal, que era utilizado como moeda. Beatrix Heintze cita que os comerciantes portugueses que negociavam escravos em Sio Tomé passaram a influenciar as relagdes na area, sobretudo de forma “indireta’™®,, ou seja, a nao contestar as autoridades locais, buscando atingir seus objetivos através de aliangas e negociagdes com esses grupos. Os interesses dos portugueses no dito reino extrapolaram os negécios promovidos pelo comércio de escravos, 0 que fez com que a venda de armas de fogo para os habitantes da regio fossem uma preocupacio politica, além de ser usada como estratégia e ameaca de coergio, quando comercializada com reinos rivais, A cooperacio € 0 entrosamento entre portugueses e a elite politica dos mbundus foi essencial para os negécios negreiros nas duas margens do Atlantico portugués. Varios personagens da corte do Ngola participam dessa dinfmica: além do soberano, os sobas (chefes locais), os mafougnes (embaixadores) e os pumbeiros (responsiveis pelas negociagdes ¢ pelo transporte dos escravos dos sertoes aos barracées, locais onde os africanos permaneciam até o momento de seu embarque) Apés a construgio dos barracdes 0 passo seguinte dependia de pumbeiros, quando estes conseguiam o niimero estimado de escravos partiam dos sertdes rumo & costa. Nesse percurso os escravos também passavam por desgastes fisicos ¢ emocionais: ja haviam suportado o peso dos libambos — correntes que unia os escravos pelas mios, eram mal alimentados e queimados com as mareas de seus proprietarios. Esses monogramas evidenciavam a nova condigio de escravos- mercadorias que passava a predominar no mereado atléntico. Entre os portugueses eram comuns batismos coletivos em africanos nas etapas que precediam a viagem atlantica. A Coroa Portuguesa ditava como exigéncia o abandono da condigtio de pagio, ja que uma das justificativas para a escravidio, era 0 discurso que defendia a salvagio das almas através do cativeiro™ As condigées de transporte dos africanos evidenciavam uma das modalidades de violéncia que fazia parte do cendrio do comeércio de escravos, como indica a deserigiio de um navio negreiro chamado Veloz que tinha como destino a Bahia, no ano de 1829: Os compartimentos destinados aos prisioneiros, de um metro de altura, obrigavam os adultos a se conservarem agachados. [...] como eram muitos, vinham todos sentados entre as pernas um dos outros, de modo que a disposigio da earga era a de compactas fileiras de individuos. Luz quase nao havia, nem ventilagao..* As vingens responsiveis pela travessia atlintica eram marcadas por diferentes transtornos, como a superlotagaéo das embarcacdes, que extrapolavam as taxas de arqueacdes estipuladas pela legislagao, ¢ as mas condigdes de higiene. ‘MNEME ~ REVISTA DE HUMANIDADES, 11 (27), 2010 Publiaglo do Departamento de Hisiia da Unversdade Federal do Cenizo de Ensin Super do Serids~ Carp de Cains Someta 8 Disponivel em ktp worn priodics atin r/os/index phpaneme Grande do Norte "518-3395 16 comerciantes de escravos de obter o ma A mortalidade de eseravos na travessia alcangava indices elevados, eonforme a distancia entre os portos. Até chegar ao Rio de Janeiro, entre 3795 e 181, navios vindos da Guiné apresentavam uma média de 63 mortos para mil eseravos transportados; o mesmo destino, mas partindo 0 navio da Africa Ocidental, ao sul do Equador, ampliava a cifta para 103 (viagens de Luanda) € 74 (viagens de Benguela); de Mogambique, viagem que demorava cerea de trés meses,234 mil O procedimento de superlotar os navios era um dos exemplos da intengao dos mo de hucro transportando o maior nimero possivel de escravos em um niimero reduzido de viagens. A travessia atlAntica exigia custos ¢ uma série de investimentos, como o valor destinado & aquisi¢io ou arrendamento das embarcagdes, para 0 abastecimento da tripulagio e também para 0 pagamento dos tributos necessirios para a legalizagio da atividade, os chamados direitos de exportagao. De acordo com esse raciocinio, muitos negociantes preferiram, correr o risco de transportar mais escravos do que o mimero permitido, mesmo sabendo que eram atos ilegais de acordo com a legislacio portuguesa PRE Ae A a TE A ere ae kt ieee CAREW OTA POY AVANTE re PUTT Plan of a slave ship Corte horizontal do navio negreiro “Brookes” Ainda no século XVI, o rei portugués Dom Manuel proibiu 0 embarque de escravos doentes, e escreveu aos governadores ordenando que os cativos fossem bem alimentados ¢ protegidos das intempéries**#. Em 18 de marco de 1684 0 entio rei portngués Dom Pedro IT expedin uma lei que dizia que “os cativos de Angola como se hao de embarear para o Estado do Brasil, dando ~se varias providéncias sobre seu transporte, lotacdo de navios, sustentacao, tratamento de moléstias, ete”. ‘As condigdes sob as quais se perpetuavam as formas de violéncia no comércio de escravos estiveram também associadas As estratégias adotadas pelos agentes negreiros para escapar do controle tributario estabelecido pela Coroa Portuguesa, que ditava o pagamento de uma quantia estipulada pela Fazenda Real sobre cada escravo transportado. O procedimento de conferéncia era realizado com a contagem e comparagio entre os escravos listados nos livros de registro e a quantidade real dos embareados. A etapa seguinte era a revista feita por um escri vio da Coroa Portuguesa, que passava 4 bordo tomando os depoimentos dos tripulantes para efetivar a prestagao de contas ¢ 0 devido recolhimento dos direitos. Muitos desses ‘MNEME — REVISTA DE HUMANIDADES, 11 (27), 201 Pableagiodo Disponivel em tp wore mento de Hsia da Universidade Paderal do Rio Grande do Nor EnsineSuporio do Serids~Camporde Calas Somestrl ISSN 1518-3994 odes fabr/os/iadex php /mneme Ww homens alegavam j4 terem quitados os ditos direitos ainda nos portos africanos, apresentando papéis para a comprovagio, ¢ outros assumiam a tentativa de burlar as contas piblicas e tinham seus eseravos confiscados™. Na documentagao da Junta do Comércio, do acervo do Arquivo Nacional, encontramos depoimentos de tripulantes que estavam sob investigagio da Fazenda Real, na busea por informagdes sobre eseravos traficados: Roberto Dias dos Santos, escrivao da nau de guerra Nossa Senhora de Belém, que proximamente tinha chegado de Angola a esta cidade, e perguntando-the pelos eseravos de sua conta que tinham vindo na mesma nau, declarou que trouxera nave escravos, de que pagara os direitos reais em Angola, a razio de nove mil réis cada um, ¢ que na viagem falecera um, ¢ dos oito que chegaram fugira um e vendera cinco por diversos precos™. Os tripulantes dos negreiros tinham direito de trazer escravos para negécios particulares, desde que seguissem as determinacées legais. Alvaro Teixeira de ‘Macedo, capitao da mesma nau Nossa Senhora do Belém, foi inquirido por um meirinho a respeito dos escravos que havia trazido de Angola, ¢ como de costume nessas argitigdes se justificou dizendo que ele trouxera de Angola na referida nau quatro eseravos, de que consta a relagdo junta & mesma portaria, que eram dois novos pequenos, e dois Tadinos para o seu servigo, chamados Feliciano e [Nenteiro], e que deles ndo pagava em Angola os direitos pela confusdio que houve na safda da nau por chegarem a ela tarde os oficiais, que foram a essa diligencia, depois de terem ido primeiramente 2 sumaca, que na mesma ocasido saira, ¢ que chegando logo a esta cidade no ‘mesmo ato os denunciou ao juiz da alfandega, que vinham para pagar os direitos" De acordo com os depoimentos dos tripulantes podemos apreender etapas do procedimento de averiguagio do cumprimento das ordens reais. Deveriam ser conferidos 0 livro de carga, a capacidade de arqueagio dos navios, 0 mimero de escravos transportados € as obrigagdes de seus respectivos consignatarios, responsiveis pela entrega dos escravos encomendados aos seus proprietirios. A documentacao cita que eram comuns atrasos dos meirinhos para a averiguactio nos portos do Rio de Janeiro, o que permitiu que os tripulantes vendessem os escravos antes da conferéncia. Aavaliagio fisica dos corpos era um dos métodos utilizados para a identificagio dos eseravos. Eram comparadas as caracteristica detalhadas nos livros de carga com os escravos checados pelos funcionarios da Mesa de Inspectio™ii, Identificamos esse cuidado com a descrigao fisica dos africanos nos autos de seqiiestro dos eseravos: € assim seqiiestrados, os ditos seus escravos que sio os seguintes: Bonifficio Moleque, Joio Moleque, Gongalo Moleque com um sinal no olho direito, Joao Negro ja com barba, e uma negrinha por nome Esménia, logo que os depositou em mio, e poder do dito Francisco Peenez Lisboa, que novamente os recebeu, obrigando se as leis de fiel depositario a dar conta deles todas as vezes que por este Juizo Ihe foi mandado, Rio de Janeiro, 1784" ‘MNEME — REVISTA DE HUMANIDADES, 11 (27), 2010 Publiagio do Departamento de Histiia da Uniesdade Federal do Cenizo de Ensin Super do Serids~ Carp de Cains Someta 8 Disponivel em ktp worn priodics atin r/os/index phpaneme Grande do Norte "518-3395 18 Acchegada ao Rio de Janeiro da nau Nossa Senhora do Belém gerou uma grande agitagio entre os fiscais da Fazenda Real. No mesmo ano, em 1784, a Coroa Portuguesa expediu um oficio “comunicando que a Mesa de Inspecio lhe representava sobre a necessidade de segurar os direitos de tresdobros de varios escravos. Trazidos por diversos oficiais da nau Nossa Senhora do Belém, sem exibirem os despachos provando terem sido pagos os reais direitos; e bem assim as providéncias que a este respeito propusera”s* Partindo do citado oficio concluimos que muitas das justificativas dadas por tripulantes de navios negreiros em relagao A omissto do pagamento dos direitos, eram justificadas pelo mau funcionamento do aparelho fiscal da Coroa. Essas falhas identificadas no controle tributario tanto do porto de Luanda, quanto do porto do Rio de Janeiro permitiram esse comércio paralelo de escravos, realizado A margem dos negécios da Coroa A maioria dos navios destinados ao transporte de escravos nao havia sido projetado para essa funcio, nao tendo, portanto sistemas de ventilagio em seus pordes, além das doencas que se propagavam. Analisando o Livro de Registros de escravos desembareados na Freguesia de Santa Rita (Rio de Janeiro), durante a primeira metade do século XIX, identificamos um grande mimero de escravos que chegava a0 porto do Rio de Janeiro com variola, doenca denominada na documentacaio de época como bexiga ou bexiga pele de lixa*™. De acordo com a mesma fonte identificamos um grande percentual de escravos que j chegavam falecidos, excluindo aqueles que apés o ébito durante as vingens eram jogados a0 mar, Nessa mesma documentagao € possivel identificar dezenas de monogramas de proprietarios de escravo, marcas que eram queimadas nos corpos dos africanos com fungao de evidenciar a condicao de cativo e facilitar a identificagao, O alvaré de 1813 sinaliza um ponto de controvérsia: a0 mesmo tempo em que era estipulada a pritica de registrar na documentagio do navio a marea queimada nos corpos dos escravos, para que dessa forma fosse controlada a identificagio ¢ a tributagio, o texto do alvara proibe o uso da queimadura das iniciais dos nomes dos senhores nos corpos escravos: E repugnando altamente os sentimentos de humanidade que se permitia, que tais marcas se imprimam com ferro quente. Determino que tao barbaro invento mais se nao pratique; devendo substituir-se por uma manilha ou coleiva, em que se grave a marea, que se haja de servir de distintivo, fieando 0 sujeito os que ao contririo praticaram a pena da Ordenagio livro quinto, titulo trinta e seis" Apesar dessa determinagio real, ¢ com a ameaga de punigio, a pritica de marear os corpos de escravos nao foi exterminada. Registros posteriores a 1813 apresentam registros de escravos novos, desembareados no porto do Rio de Janeiro, que traziam em seus corpos queimaduras indicando seus proprietérios™*. Da safda dos sertées africanos até o desembarque e a venda dos escravos nos “MNEME — REVISTA DE HUMANIDADES, 11 (27), 2010 Fabled do Departed iad UnveraePoerl de Cenizo de Ensin Super do Serids~ Carp de Cains Someta 8 Disponivel em ktp worn priodics atin r/os/index phpaneme Grande do Norte "518-3395 19 mereados da Amériea Portuguesa j4 havia se passado meses. Nesse pereurso muitos lagos de parentescos e niicleos familiares j4 tinham sido desmembrados, a0 mesmo tempo em que novos lacos e vinculos foram gradativamente surgindo entre os grupos de escravos. Desde os libambos nos percursos que conduziam os africanos aos barracées, passando pelas dificuldades das viagens atlinticas e posteriormente ja na realidade do cativeiro, os escravos estabeleceram aliangas e estratégias para sobrevivéncia e preservacio de identidades culturais, que passava por processos de transformacoes, até assumir novas feigdes nas sociedades coloniais. Nos navios negreiros embareavam escravos de varias etnias, que em muitos casos falavam linguas distintas, mas que conseguiram estabelecer formas de comunieagio através da criacio de uma gramatica comum, denominada pelos antropélogos e historiadores de pidgins. Essa linguagem constituida de voebulos simples, foi favorecida pelo fato de que diferentes linguas de origem banto tinham semelhancas entre sit. Varios idiomas utilizados entre povos da Africa Centro Ocidental tem origem no ramo lingiiistico banto, como o kimbundo, o kikongo e o umbundo. Mesmo entre essa diversidade a palavra malungo encontra significados semelhantes. A expresso malungo de forma genérica entre as linguas bantos “ilustra como os escravos da Africa banto podiam encontrar-se, através das palavras, nao apenas no mesmo “bareo” semantico, mas no mesmo mar ontolégico”*, No idioma em kimbundu malungo tem o significado de barco navio, literalmente canoa gigantesca, além do sentido de companheiro™#, Ja no idioma umbundu foi anteriormente associado a uma forma antiga de dizer embareacao, mas que atualmente se refere a idéia de companheiro. Entre os atuais falantes de kikongo 0 vocibulo nao esta associado ao conceito de companheiro, utilizado somente para barcos ¢ navios. Roberto Slenes essa discussio citando que “nao pode haver diivida de que falantes de kimbundu e umbundu, juntos com os de kikongo, teriam chegado a “malungo” como companheiro de embareagaio"=¥i A convivéncia entre esses companheiros de viagem fez com que esses escravos passassem a se tratar como malungos, vocdbulo de origem banto que significa companheiros de viagem, de travessia, de cativeiro e de suplicios. Entre diferentes grupos de africanos de origem banto, a tavessia era chamada de kalunga. Na cultura desses povos o dito termo se refere a varios tipos de passagem, podendo ser a0 mesmo tempo a representacio da viagem de um corpo fisico, como uma passagem sobrenatural. Ainda de acordo com o universo cultural banto, a 4gua também era um elemento cercado de interpretacdes miticas. O mar poderia simbolizar um espaco intermediario entre uma determinada origem e um novo destino, ou um meio onde se realizaria a passagem — kalunga™ Relacionando a kalunga as fungdes simbélicas da Agua, a diéspora africana representou para os bantos uma migragao e uma transposicéo para uma nova realidade desconhecida até entio para os eseravos. A passagem pelas Aguas do Atlantico passou a ser o caminho para uma nova vida, no cativeiro americano, “MNEME — REVISTA DE HUMANIDADES, 11 (27), 2010 Publicado do Deparaneato de Huta da Uaivertads Pedr da Cenizo de Ensin Super do Serids~ Carp de Cains Someta 8 Disponivel em ktp worn priodics atin r/os/index phpaneme Grande do Norte "518-3395 20 ‘As discussées sobre as formas de se organizar as vingens dos tumbeiros estiveram em pauta em um grande mimero de correspondéncias trocadas entre governadores portugueses encarregados do governo de Angola ¢ 0s vice-reis, como no caso da carta escrita no ano de 1790 por Dom Antdnio de Lencastre enviada ao Conde de Resende. Nessa documentagao fica nitida a preocupagio com itens como a higiene dos navios, ¢ com a catequese, que deveria ser ministrada aos africanos antes do batismo**. De acordo com o governador de Angola faltavam alimentos para o abastecimento da tripulacao e dos escravos, 0 que teria sido agravado ainda pelas guerras ocorridas entre reinos africanos e pela escassez de chuvas na regio", A solicitagio enviada ao vice rei era o auxflio através de mantimentos que deveriam ser Ievados em navios que safam dos portos americanos para negociar escravos, Em 1798, entre as queixas do entio governador de Angola Dom Miguel de Melo, estavam as criticas ao despreparo da tripulagio dos navios negreiros: “pilotos sio ignorantes na arte de navegar”, citava também a falta de barras magnéticas para a maior seguranca da navegacio™“, O clima africano mais uma vez surgia na correspondéneia administrativa portuguesa como um dos obsticulos para 0 bom. desempenho do comércio de escravos: Neste ano faltaram a que quase totalmente as chuvas, ¢ como que 0 clima desse pais seja de natureza tal, que quando as ha abundantes morrem os homens de doengas, e quando elas faltam. de fome [...] € se a estacao é muito chuvosa, ou excessivamente seca, poucos, poucos S80 os eseravos que descem para os portos, ¢ dagui vem que umas vezes hé muitos eseravos, outras potteos ou nenhum =, Dom Miguel esclarecia que a aquisigao dos escravos, assim como a saida dos navios dos portos africanos, dependia das negociagdes com as elites politicas locas: ‘A maior parte ou menor demora da expedicio dos navios dos portos deste reino depende da maior ou menor abundancia de escravos descidos do sertio, Ora isto depende da facilidade ou dificuldade com que no mesmo sertio se vendem as fazendas e géneros que para eles importam, do maior ou menor mtimero de escravos que concorrem as feitas, do valor que eles acham tanto aqui como no Brasil, e sobretudo das estagoes do ano Essas preocupagées com a higiene ¢ com os cuidados com os corpos revelam um traco da politica mercantil portuguesa, onde o comércio de escravos representou a mais rentvel e lucrativa atividade entre os séculos XVIII e XIX. Os corpos deveriam ser transportados e vendidos, e para isso eram necessérios minimos de cuidados com as mereadorias vivas, escravos mercantilizados no circuito comercial entre diferentes possessdes coloniais que aproximava de forma singular as duas margens do Atlantico portugués. Momentos como a captagio, a prisio nos barraedes e a viagem ocefinica ‘MNEME ~ REVISTA DE HUMANIDADES, 11 (27), 2010 Publiaglo do Departamento de Hisiia da Unversdade Federal do Cenizo de Ensin Super do Serids~ Carp de Cains Someta 8 Disponivel em ktp worn priodics atin r/os/index phpaneme Grande do Norte "518-3395 21 representaram para os africanos espacos alternativas para a reconstrucio de suas identidades. Através do contato com diferentes etnias, ¢ em fungio da busea por alternativas para a vida no cativeiro americano, a populacio escrava preservou elementos culturais auténticos e reinventou outros, mareando de forma singular a heterogeneidade cultural da América Portuguesa. 4 Entre os trabalhos que analisam esse assunto destacamos Luiz, Felipe de Aleneastro. O trato dos viventes. Formagio do Brasil no Atlantico Sul. Sao Paulo: Cia das Letras, 2000, Manolo Florentino ¢ ‘Joio L. Fragoso. 0 areaismo como projeto ~ mercado atlantico, sociedade agraria e elite mereantil no Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Ed. Sette Letras, 1908 # Sobre a escravidio africana anterior 2 presenca dos europeus ver John Thorthon. African and Africans in the making off Atlantic World, 1400-1680. Cambridge: Cambridge University Press, 1992., Paul Lovejoy. A escravidio em Africa: uma historia de suas transformagées. Rio de Janeiro: Ed. Civilizagio Brasileira, 2000., Joseph C Miller. Poder politico e parenteseo. Os Estados mbundus em Angola. Luanda: Arquivo Histérieo Nacional, 1995. 4% Consideramos como bantos povos que por volta do ano 2000 aC_migraram de regides préximas aos atuais territ6rios da Nigéria, e que povoaram diferentes regides do continente africano. Historiadores africanistas divergem em relacao aos movimentos migratérios dos povos bantos, ef Jan Vasina. Paths in the Rainforests. Toward a History of political tradicional in Equatorial Africa. Madison: Wisconsin, 1990., David Birmingham. Aliangas e conflitos. Os primérdios da ocupagao estrangeira em Angola. 1483-1790. Luanda: Arquivo Historieo de Angola. Ministério da Cultura, 2004. Thornton, John. Op. cit. ¥0 trabalho de Charles Ralph Boxer foi pioneiro nesse campo de investigagio, ao trazer para o debate historiografico a participacao dos sobas, chefes locais do reino de Angola, na dinamica do comércio de escravos. Cf. Charles Ralph Boxer. Salvador de Sa e a luta pelo Brasil e Angola (1602-1680). Sao Paulo: Ed, Nacional / EDUSP, 1973. % Aleneastro, Luiz Felipe de. Op cit. Robert Conrad. Tumbeiros ~ 0 trifico de eseravos para o Brasil. Sio Paulo: Ed. Brasiliense, 1982 * Um importante relato que descreve essas etapas foi transcrito e analisado por Gilberto Ferrez publicado na RHIGB, Diario andnimo de uma viagem as costas d’Africa e as Indias espanholas. Rio de Janeiro: Ferrez, Gilberto (org). RIHGB, vol. 267, 1952: p. 3-42 ~# Arquivo Historico de Angola. Livro 70. Portaria dos ilustrissimos ¢ excelentissimos senhores governadores de Angola. & Mbundu no plural Ambundu, Mbundu, grupo etnokinguistieo do centro-norte de Angola, euja dlifspora, se estende pelas soguntes regides: Lengue, Songo, Mbondo, Ndongo, Pend, Hungu, ¢ ‘bolo, Adriano Parreira. Dicionério Glossogrifico © Toponimico da documentagio sobre Angola. Sees MY NUE Libea, Batol Stampa, 1990. De acordo com Roy Glasgow “Os Ambundus ou Mbundos eram religiosos, dando grande éniase a idolos e orixas. Usavam braceletes, colares e argolas nos tornozelos feitos de cobre.”. Roy Glasgow. Nzinga. SP: Ed. Perspectiva, 1982, p. 19. 0 contato dos portugueses com os mbundus da regio do Ndongo é datada do inieio do século XVI, ¢ foi formalizada pela presenca de comerciantes que busearam convener 0 Ngola Irene — nome do primeiro soberano do Ndongo, a enviar o enviar tm embaixador para estabelecer negécios com 0 rei de Portugal. Desde 1575 portugueses ja se estabeleciam na regiao como conquistadores e comerciantes, ‘ocupavam basicamente algumas areas de lamba (regiao entre os rios Bengo e Kwanza), e controlavam também o tréfico fluvial no Kwanza até a foz do Lukala, nesse percurso construiram trés fortalezas que se tormaram fundamentais para o estabelecimento das bases da colonizacio: Muxima, Massangano e Cambembe. Mesmio antes de se estabelecerem no Ndongo os portugueses ja faziam comércio e ja estabeleciam alguns contatos com os habitantes do Congo. No ano de 1482 08 portugueses chegaram & regio do Sonyo, onde estabeleceram os primeitos contatos com esse reino. Suas provincias formavam uma cadeia de relagoes comerciais e politicas, todas controladas pelo soberano da regio. Cf. David Birminghan. Aliancas e conflitos. Os primérdios da ocupacao estrangeira em Angola. 1483- 1790. Luanda: Arquivo Histérico de Angola. Ministério da Cultura, 2004. * Miller, Joseph C. Op. cit. Luanda: Arquivo Histérieo Nacional, 1995. ® Beatrix Heintze. Angola nos séculos XVI ¢ XVI. Estudos sobre fontes, métodos ¢ Historia, Luanda: Editorial Kilombelombe, 2007. ‘MNEME — REVISTA DE HUMANIDADES, 11 (27), 2010 FPabliagio do Deparameato de Histdra da Universidade Federal do Rio Gran (ner ie Ensio Supror do Sori ~ Corpor So Clos Sementral SSN 8 ‘Dispotiel em hp worn: periods afar oj/tadepbp/ineme 22 i Arquivo Historica de Angola. Livro 70. Portaria dos ilustrissimos e excelentissimos senores sgovernadores de Angola ** Arquivo Historieo de Angola. Livro 70. Portaria dos ilustrissimos e excelentissimios senhores sgovernadares de Angola. ® Trecho da descrigso de um navio negreiro chamado Veloz. que tinha como destino a Bahia em 1829. Citado por José Roberto Pinto Gées. Cordeiro de Deus: trfico, demografia e politia no destino dos escravos. In: Marco A. Pamplona. (org.). Escravidao, exclusio e eidadania. Rio de Janeiro: Ed. Access, 2004, p. 32. i Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, Mareas de escravos: lista de escravos emaneipados vindo bordo de navios negreiros (1839-1841). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, p. 6. +8 Tlustragio publicada pela Sociedade da Moral Crista, Comité pela Aboligio do Trifico de Escravos, 1822 +8 Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. Op. cit. + Manoel Fernandes Thomaz. Repertorio geral ou indice alfabético das leis extravagantes do reino de Portugal, publicadas depois das ordenagoes, compreendendo também algumas que se achem em “observancia, Coimbra: Imp. da Universidade, 1843. = Arquivo Nacional, Fundo: Junta do Comércio, Negociantes e diversos. Caixa 388, pacotes 1¢ 2 =! Arquivo Nacional: Fundo Junta do Comércio, Negociantes e Diversos. Caixa 388, pacotes 1, Data. 1802 ~ 1827) ‘88 Arquivo Nacional: Fundo Junta do Coméreio. Negociantes e Diversos. Caixa 388, pacotes 2. Data: 1802 ~ 1827). sil As Mesas de Inspecio foram drgios fiseais eriados pela Coroa Portuguesa para auxiliar os intendentes gerais das alfandegas na tarefa de coibir e punir contrabandistas. Foram estabelecidas nas principais pragas de comércio da América Portuguesa: Bahia, Rio de Janeizo, Belém, Maranhao e Pernambuco, Cf. Corcino Madeira dos Santos. Aljandegas. In: Maria Beatriz Nizza da Silva. (coord.) Dicionasio da Historia da Colonizagio Portuguesa no Brasil. Lisboa: Ed. Verbo, 1994. ‘8 Arquivo Nacional. Fundo: Junta do Coméreio, Negociantes e diversos, Caixa 388, pacote 2 +» Publicagio Historica do Arquivo Nacional. PH-02. Indice dos oficios dirigidos & Corte de Portugal pelos vice-reis do Brasil no Rio de Janeiro. Regimento da Corte, fl. 263, liv. 6, extraido do cédice 67. =" Arquivo da Ciiria Metropolitana do Rio de Janeiro: Livro de registros de dbitos de escravos da freguesia de Santa Rita — Rio de Janeito (1824-1830) = CONRAD, Robert. Op. cit. =" O titulo 36 do V Livro das Ordenacdes Filipinas tem como enunciado “Das penas pecunidrias dos ‘que matam, ferem ou tiram arma na Corte”, e determina que: “Todo aquele que matar qualquer pessoa na Corte onde nés estivermos, até uma légua, ou no lugar onde a Casa de Suplicagiio estiver sem nos ou fem sens arrebaldes, se for em rixa nova, pague cinco mil e quatrocentos réis, ¢ se for de propésito, pague o dobro. [..] E se de propésito tirar uma arma ou ferir ou aleijar, pague o dobro do que pagaria sendo em rixa; e isto além das penas pecuniérias contetidas nos fornis dos ligares onde forem feitos os ditos maleficios’. Silvia Hunold Lara (org.) OrdenagSes Filipinas. Livro V. Sio Paulo: Cia das Letras, 3999, p. 147-148. = Arquivo da Ciria Metropolitana do Rio de Janeiro. Livro de registros de dbitos de eseravos da freguesia de Santa Rita — Rio de Janeiro (1824-1830). Nessa documentagéo eram anotadas as informagGes sobre os escravos que deveriam ser sepultados no Cemiitério dos Pretos Novos, localizado nna regiao onde atualmente se localiza o bairro da Gamboa. Nesses assentos podemos conferit importantes informacoes sobre as condigies fisicas dos escravos, como por exemplo as marcas dos senhores, definicdes de origem étinica ou loeais de embarque (informagses que aparecem misturadas), ¢ classificagdes como escravo novo, ladino, erioulo, preto, moleque, cria,cria-de-peito, ete 5 Slenes, Robert W. A. Malungo NGomia vem! Africa encoberia e descoberta no Brasil. Luanda: Ministério da Cultura, 1995 = Idem, p. 51 ssi Jdem, p-51 sil Idem, p. 0. 5% Slenes, Robert W. A. Na senzala uma flor: esperancas e recordagées da familia escrava. RJ: Nova Fronteira, 1999. = Arquivo Nacional. Fundo: Vice Reinado. Caixa 502. Correspondéncia dos governadores de Angola ‘com os vice reis, ‘MNEME ~ REVISTA DE HUMANIDADES, 11 (27), 2010 Publiagho de Deparameato de Histria da Univenidade Federal do Rio Gran (Cero de Eoaino Supario do SridS~Cartpar de Cans Semestral ISSN i585 Dispooiel en tp: fron periodico. uta byoj/indexphp/aneme 23 +08 Joseph Miller considera esses fatores em suas anilises sobre as transformagées internas dos reinos africanos envolvidos na dinamica internacional do comércio de escravos. Joseph Miller. Op. cit. si Arquivo Nacional. Fundo: Vice Reinado, Caixa 502. Correspondéncia dos governadores de Angola ovii Arquivo Nacional. Fundo: Vice Reinado, Caixa 502. Correspondéncia dos govemadores de Angola ssh Arquivo Nacional. Fundo: Vice Reinado, Caixa 302. Correspondéncia dos governadores de Angola ‘MNEME ~ REVISTA DE HUMANIDADES, 11 (27), 2010 ‘Publiagio do Deparamento de Histna da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Cero de EosinoSupaio do Srids~ Campos de Cains Somestral ISSN 3528-3994, Dispooiel en tp: fron periodico. uta byoj/indexphp/aneme 24

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