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Linguagem, interação e sociedade: diálogos sobre o Enem

Book · June 2015

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2 authors:

Leilane Ramos da Silva Raquel Meister Ko. Freitag


Universidade Federal de Sergipe Universidade Federal de Sergipe
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LINGUAGEM, INTERAÇÃO E
SOCIEDADE
DIÁLOGOS SOBRE O ENEM

1
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

REITORA
MARGARETH DE FÁTIMA FORMIGA DINIZ
VICE-REITOR
EDUARDO RABENHORST

CENTRO DE COMUNICAÇÃO, TURISMO E ARTES

Diretor do CCTA
JOSÉ DAVID CAMPOS FERNANDES
Vice-Diretor
ELI-ERI LUIZ DE MOURA

Editora do
CCTA
Conselho Editorial
CARLOS JOSÉ CARTAXO
GABRIEL BECHARA FILHO
HILDEBERTO BARBOSA DE ARAÚJO
JOSÉ DAVID CAMPOS FERNANDES
MARCÍLIO FAGNER ONOFRE
Editor
JOSÉ DAVID CAMPOS FERNANDES
Secretário do Conselho Editorial
PAULO VIEIRA

Laboratório de Jornalismo e Editoração


Coordenador
PEDRO NUNES FILHO

2
LINGUAGEM,
INTERAÇÃO E
SOCIEDADE
DIÁLOGOS SOBRE O ENEM

LEILANE RAMOS DA SILVA


RAQUEL MEISTER KO.FREITAG
Organizadoras

Coleção Gelins
Volume II

Editora do CCTA
João Pessoa
2015
3
© Copyright by Gelins, 2015

Produção Gráfica e Capa


DAVID FERNANDES

Revisão
DÉBORA REIS AGUIAR

Ficha catalográfica

4
Sumário

Apresentação ................................................................................................. 9

Introdução ............................................................................................... 15

Linguagem, interação e sociedade: o Enem como foco de pesquisas


Gelins
Raquel Meister Ko. Freitag, Leilane Ramos da Silva, Denise Porto Cardoso, Isabel Cristina
Michelan de Azevedo & Taysa Mércia dos Santos de Souza Damaceno .......................................... 25

Seção I
As Competências da Prova de Redação

A competência I na prova de redação do Enem


Raquel Meister Ko. Freitag ................................................................................................................. 23

Organização de textos dissertativo-argumentativos em prosa: o


que se percebe em dez anos de realização do Enem?
Isabel Cristina Michelan de Azevedo ................................................................................................. 33

O estatuto da leitura na redação do Enem 2014: o caso da fuga


ao tema
Solange dos Santos & Débora Reis Aguiar ........................................................................................ 51

Argumentação e matriz de referência do Enem: o espaço da


competência III no livro didático em Sergipe
Leilane Ramos da Silva, Danillo da Conceição Pereira Silva, Layane Mayara Dantas da Cruz &
Nathalia da Silva Paixão ................................................................................................................... 63

5
A produção escrita em processos seletivos e o desenvolvimento de
competências e capacidades
Aline Malaquias da Silva & Regina Celi Mendes Pereira ................................................................. 79

Exercício da cidadania e direitos humanos: as funções da


competência v na redação do Enem
Ricardo Nascimento Abreu ................................................................................................................ 97

Seção II
A prova de Linguagens, códigos e suas tecnologias

O estatuto da variação linguística nas provas do Enem


Sammela Rejane de Jesus Andrade ................................................................................................... 111

Performatividade e modalização na prova do Enem


Leilane Ramos da Silva, Jaqueline dos Santos Nascimento, Layane Mayara Dantas da Cruz &
Nathalia da Silva Paixão ................................................................................................................... 129

Alternância gênero/texto nas questões da prova de Linguagens,


Códigos e suas Tecnologias do Enem
Denise Porto Cardoso, Fabíola dos Santos Lima & Francielle Santos Araújo .................................. 139

Seção III
Impactos e percepções do Enem

O Enem enquanto política pública


Marlucy Mary Gama Bispo ................................................................................................................ 151

6
O desempenho na prova de redação do Enem da rede estadual de
Sergipe
Raquel Meister Ko. Freitag, Fernando da Cunha Mendonça & José Júnior de Santana Sá ............ 163

Impactos do Enem sobre o Colégio de Aplicação da Universidade


Federal de Sergipe
Maria Josefa de Menezes Almeida ..................................................................................................... 173

O Enem: mal estar contemporâneo


Onireves Monteiro de Castro ............................................................................................................. 179

7
8
Apresentação

A Coleção Gelins firma-se na proposta de divulgar à comunidade


acadêmica resultados das pesquisas que têm sido desenvolvidas no âmbito do
grupo de estudos de nome homônimo, cujo foco é intercambiar áreas do saber
linguístico, fomentando abordagens centradas na tríade ‘linguagem, interação e
sociedade’. Neste seu segundo volume, a ideia é trazer à baila pesquisas que têm
sido desenvolvidas, no escopo da linha ‘Competências comunicativas: formação
docente ensino de língua materna’, sobre o Exame Nacional do Ensino Médio –
Enem, dada a importância que este instrumento de aferição das habilidades dos
egressos da educação básica assume nos dias atuais.
Incurso num conjunto de políticas públicas que sistematicamente
instituem avaliações seletivas e/ou diagnósticas em larga escala, o Enem é, sem
dúvida, um dos instrumentos mais comentados junto às escolas, secretarias de
educação, universidades e demais espaços sociais e, como tal, tem despertado
estudos nos diversos segmentos que legitimam a educação no país. A par dessa
emergência, o Gelins, desde 2009, subsidia e incentiva estudos que vão desde a
observação do estatuto da leitura, do tipo de gênero e de questão na prova do
Enem, até àqueles cujo olhar se volta para a ideologia que perpassa a formulação
desse exame como política pública, passando pelos que analisam como a sua
inserção vem, gradativamente, contribuindo para uma mudança na práxis
educacional em Sergipe.
Considerada, então, a relevância social da temática e, claro, em razão do
bom número de projetos já executados com foco no Enem, com alegria, a equipe
Gelins aprovou a publicação em livro do que tem desenvolvido sobre tão
impactante teste diagnóstico e seletivo da educação básica brasileira. Este livro
abriga, então, a introdução da proposta de trabalho, intitulada “Linguagem,
interação e sociedade: o Enem como foco de pesquisas Gelins”, assinada pelas
pesquisadoras sêniores do grupo, a qual situa o Enem como um exame em larga
escala e aponta alguns dos estudos realizados pelo Gelins, 12 capítulos e um
ensaio, distribuídos em três seções: i) Competências da prova de redação; ii) A
prova de Linguagem, códigos e suas tecnologias; e iii) Impactos e percepções do
Enem.
9
Abrindo a seção I, Raquel Freitag, em seu “A competência I na prova de
redação do Enem”, analisa os documentos norteadores do Enem, as diretrizes
desse exame seletivo e a matriz de competência para a avaliação da prova de
redação, especificamente no que diz respeito ao tratamento da norma e da
diversidade linguística no cenário brasileiro, e mostra que a competência I da
referida matriz não condiz com o que preveem os Parâmetros Curriculares
Nacionais e o Programa Nacional de Livro Didático. A autora aponta, entre outras,
que essa divergência penaliza o estudante da escola pública, de modo a ampliar o
abismo social em terras brasileiras.
Em “Organização de textos dissertativo-argumentativos em prosa: o que
se percebe em dez anos de realização do Enem?”, Isabel Azevedo apresenta uma
discussão sobre o escopo da competência II, enfatizando como sua respectiva
evolução no processo avaliativo parece estar alinhada ao reconhecimento do
gradativo valor que a argumentação passou a ter na sociedade.
Em sendo a intepretação da proposta o elemento primeiro da
competência II, e dado o número expressivo de redações avaliadas com nota 0
pelo critério ‘fuga ao tema’, na edição de 2014, Solange dos Santos e Débora
Aguiar, em “O estatuto da leitura na redação do Enem 2014: o caso da fuga ao
tema”, trazem questionamentos sobre os motivos que provocaram esse
desempenho deficitário dos egressos do ensino médio. Em linhas gerais, validam
que o deslocamento temático na prova, que se traduz como ‘fuga ao tema’,
relaciona-se às dificuldades afetas ao tratamento da leitura, na medida em que o
candidato não identifica adequadamente o eixo temático sobre o qual o seu texto
deve versar.
Também na linha de destaque para o estatuto da argumentação, Leilane
Ramos da Silva, Danillo Pereira, Layane Cruz e Nathalia Paixão reconhecem, no
capítulo “Argumentação e matriz de referência do Enem: o espaço da competência
III no livro didático em Sergipe”, a definição da competência III da matriz de
avaliação das redações do Enem enquanto habilidade cognitiva e voltam-se para a
análise do espaço que esse expediente linguístico-discursivo ocupa nas atividades
voltadas para a produção do texto dissertativo-argumentativo da coleção de língua
portuguesa/ensino médio mais adotada na Grande Aracaju. Grosso modo, os
autores evidenciam a dissociação entre o que preveem os documentos oficiais que
legitimam o Enem, o currículo de língua portuguesa considerado nesse tipo de
avaliação e a concepção de linguagem respaldada no livro didático selecionado
para análise.
À luz de aportes teórico-metodológicos do Interacionismo Sociodiscursivo,
em “A produção escrita em processos seletivos e o desenvolvimento de
10
competências e capacidades”, Aline Malaquias e Regina Pereira apresentam,
focando os eixos avaliativos propostos pela matriz do Enem, especificamente os
relacionados à Competência IV, referente ao conhecimento dos mecanismos
gramaticais necessários à construção da argumentação, uma análise de redações
elaboradas por candidatos inscritos no Processo Seletivo Seriado 2012 da
Universidade Federal da Paraíba.
O último capítulo da seção I, intitulado “Exercício da cidadania e direitos
humanos: as funções da competência V na redação do Enem”, de Ricardo Abreu,
a par de uma discussão necessária sobre a formação cidadã do indivíduo como
meta da educação, discute as peculiaridades da competência V da matriz de
avaliação da redação do Enem e faz emergir a responsabilidade de a escola
garantir ao indivíduo uma formação menos apegada a preconceitos e mais
consciente de uma sociedade plural, em que todos têm direito à dignidade
humana.
A seção II é aberta com o capítulo “O estatuto da variação linguística nas
provas do Enem”, de Samella Andrade, cuja finalidade é observar as competências
exigidas na prova de Linguagens, códigos e suas tecnologias do Enem, do
período compreendido entre 2000 e 2012, a partir da ênfase nos aspectos
sociolinguísticos, de modo a responder se a prova aplicada nessas edições
mantém (ou não) um diálogo com as diretrizes dos PCN, com as do PNLD e com a
própria matriz de avaliação das redações do Enem.
Em “Performatividade e modalização na prova do Enem”, Leilane Ramos
da Silva, Jaqueline Nascimento, Layane Cruz e Nathalia Paixão, a par de uma
perspectiva acional, apresentam uma análise dos atos de fala incursos na prova de
Linguagens, códigos e suas tecnologias do Enem 2011. Tal análise focaliza
aspectos inerentes à estruturação dos atos de fala impressos nas referidas
questões, à expressão de modalização que atualizam, aos mecanismos de
definição dos lugares do locutor e do interlocutor nesse tipo de situação e, por fim,
à própria relação que o tipo de ato de fala em avaliação mantém com cada uma
das questões formuladas na prova.
Ainda com foco em edições de prova na área de Linguagens, códigos e
suas tecnologias, Denise Porto Cardoso, Fabíola Lima e Franciele Araújo
conduzem o capítulo “Alternância gênero/texto na prova de questões de
Linguagens, códigos e suas tecnologias do Enem”. De modo prático, as autoras
espelham os gêneros e os domínios discursivos característicos das questões que
integram a prova de 2013, observando como tais categorias estão incursas no
exame e em que medida contribuem para a avaliação das competências e
habilidades conquistadas pelos egressos da educação básica.
11
A terceira e última seção tem início com a leitura de “O Enem enquanto
política pública”, de Marlucy Bispo. O capítulo guarda como característica
principal analisar, a partir da consideração de fenômenos que envolvem conceitos
técnicos do modelo teórico de avaliação da policy cicle, de que modo a política de
avaliação em larga escala que legitima o Enem tem sido implementada e como
este exame se delineia nos dias atuais.
No limiar dessa questão, em “O desempenho na prova de redação do
Enem da rede estadual de Sergipe”, Raquel Meister Ko. Freitag, Fernando da
Cunha Mendonça & José Júnior de Santana Sá apresentam dados acerca dos
impactos e reflexos das avaliações externas do INEP no currículo da rede escolar,
analisando o desempenho dos estudantes da rede pública estadual de Sergipe na
prova de redação/Enem aplicada em 2012 e exibindo percepções e avaliações de
alunos e professores dessa esfera sobre esse desempenho.
A propósito desse olhar sobre ‘impactos’, Maria Josefa Almeida realça, no
capítulo “Impactos do Enem sobre o Colégio de Aplicação da Universidade Federal
de Sergipe”, o significado que o Enem tem na atualidade, dando vez a um diálogo
cujo foco reside em destacar a atuação (ou não) desse instrumento de avaliação
na organização curricular do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de
Sergipe.
O desfecho desta edição se concretiza com o capítulo “O Enem: mal estar
contemporâneo”, de Onireves Castro, que traz algumas considerações peculiares
ao Enem, enquanto processo seletivo, focando o modo como este exame tem
impactado no ingresso de estudantes do Centro de Formação de Professores da
Universidade Federal de Campina Grande, em Cajazeiras-PB.
Agora que as linhas norteadoras deste volume já foram apresentadas,
ressaltamos o que há de mais protocolar: a alegria de estarmos cumprindo nosso
papel como professoras e pesquisadoras trazendo a lume mais uma publicação na
área de estudos linguísticos aplicados à prática pedagógica e de, para isso, contar
com outras tantas mãos. Sem dúvida, a produção é de todos, assim como a alegria
também o é, porque, para além de dedicação e compromisso diários,
empreendemos amor ao que fazemos. Nossos agradecimentos, então, a todos que
integram a família Gelins, que não mediram esforços para compilar os dados de
seus projetos e nos enviar um capítulo e, também, aos colegas que, não
integrando formalmente este grupo, também se dispuseram com zelo e atenção
ao nosso pedido. De modo especial, registramos nossa gratidão aos colegas de
outros centros universitários, na torcida por futuras parcerias de sucesso.
A você, que, como nós, dedica-se ao exercício do magistério, prepara-se
para esta atuação profissional ou simplesmente nos respeita pela singular
12
contribuição social que deixamos para as gerações, dedicamos este livro, um dos
frutos de nossa preocupação em dirimir a suposta distância entre a universidade e
o ensino promovido na educação básica. Boa leitura!

São Cristóvão, 08 de setembro de 2015.

Leilane Ramos da Silva e Raquel Meister Ko. Freitag


-organizadoras-

13
14
Introdução
LINGUAGEM, INTERAÇÃO E SOCIEDADE:
O ENEM COMO FOCO DE PESQUISAS GELINS
Raquel Meister Ko. Freitag
Leilane Ramos da Silva
Denise Porto Cardoso
Isabel Cristina Michelan de Azevedo
Taysa Mércia dos Santos Souza Damaceno

No bojo das mudanças operacionalizadas na estrutura educacional


brasileira, especialmente do final dos anos de 1990 para cá, está a adoção de uma
série de políticas públicas que legitimam avaliações (seletivas e diagnósticas) em
larga escala, como Provinha Brasil, Prova Brasil e Enem. Desses instrumentos,
sem dúvida, este último tem merecido um destaque à parte, sendo foco de
discussões em diferentes segmentos da sociedade nacional e, também,
internacional, já que outros países passaram a usar a nota que o candidato tirou
no exame para ingresso em suas universidades. Neste capítulo, uma espécie de
introdução dialogada com uma memória sobre o Enem, fazendo jus ao título que
lhe foi atribuído, o propósito é listar algumas das ações que o Grupo de Estudos
em Linguagem, Interação e Sociedade – Gelins executou (ou ainda executa) em
torno de tão discutido exame de aferição das competências e habilidades dos
egressos da educação básica nacional. Avante!
Seguindo a mesma premissa das demais avaliações em larga escala, a de
avaliar a educação do país, e em consonância com documentos norteadores da
educação nacional, a exemplo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB,
em sua edição de 1996, e dos Parâmetros Curriculares Nacionais, instituídos em
1997, em 1998, por intermédio da Portaria Ministerial Nº 438 de 28 de maio, o
Inep criou o Enem, um exame cuja proposta é definir políticas públicas voltadas
para o ensino médio, tal como a disseminação da interdisciplinaridade por meio
de habilidades e competências.
Com a portaria nº 109, de 27 de maio de 2009, este exame tornou-se
mecanismo de seleção para o ingresso no ensino superior, especialmente das
instituições que aderiram ao Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e
15
Expansão das Universidades Federais (REUNI), com o decreto nº 6.096, de 24 de
abril de 2007. Nesse cenário de democratização de acesso aos cursos superiores, a
Universidade Federal de Sergipe, conforme a Resolução nº 21/2009/CONEPE,
regulamentou que o seu processo seletivo passaria a utilizar as notas do Enem
para classificar os candidatos ao ingresso nos cursos de graduação, o que foi
implementado somente em 2013.
No entanto, o Enem tem múltiplas finalidades. Segundo o edital nº 12, de
08 de maio de 2014, as informações obtidas a partir dos resultados do Enem
podem ser utilizadas para:
 compor a avaliação de medição da qualidade do ensino médio no país;
 subsidiar a implementação de políticas públicas;
 criar referência nacional para o aperfeiçoamento dos currículos do ensino médio;
 desenvolver estudos e indicadores sobre a educação brasileira;
 estabelecer critérios de acesso do participante a programas governamentais;
 constituir parâmetros para a autoavaliação do participante, com vista à continuidade de
sua formação e à sua inserção no mercado de trabalho;
 certificar nível de conclusão do ensino médio;
 servir como mecanismo de acesso à educação superior ou em processos de seleção nos
diferentes setores do mundo do trabalho.

Ainda como efetivação de políticas públicas, o Enem compõe o


documento do Plano Nacional de Educação – (PNE), que, por intermédio da lei
presidencial nº 13.005, de 25 de junho de 2014, apresenta a nota do exame como
uma das estratégias previstas para a garantia da meta de número 13 do plano:
“Elevar a qualidade da educação superior, a medida que propõe “substituir o
Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE aplicado ao final do
primeiro ano do curso de graduação pelo Exame Nacional do Ensino Médio –
Enem, a fim de apurar o valor agregado dos cursos de graduação”, e
principalmente, no que se refere à educação básica, a estratégia de “incorporar o
Exame Nacional do Ensino Médio, assegurada a sua universalização, ao sistema de
avaliação da educação básica, bem como apoiar o uso dos resultados das
avaliações nacionais pelas escolas e redes de ensino para a melhoria de seus
processos e práticas pedagógicas” está vinculada à meta 7: “Fomentar a qualidade
da educação básica em todas as etapas e modalidades”.
Dada sua amplitude e relevância no cenário educacional, é de se esperar
que o exame tenha se tornado alvo de estudos e críticas, o que fez com que
passasse por mudanças e adaptações e chegasse aos moldes do que conhecemos
hoje. Desde o ano de 2009, as proporções da avaliação se tornaram ainda maiores,
tendo em vista que o resultado do exame está sendo utilizado pela maioria das
16
universidades federais do país como forma de ingresso ao Ensino Superior, em
substituição aos exames vestibulares. A multifuncionalidade do exame teve como
consequência o aumento na participação (figura 1) e cabe às escolas considerar,
em sua proposta político-pedagógica, as especificidades do exame.

Figura 1: Evolução na participação no Enem (nacional, 1998-2014)

Diferentemente dos tradicionais vestibulares, cujo foco são os conteúdos,


a matriz de avaliação do Enem está estruturada em competências e habilidades.
Segundo o documento básico, as competências podem ser concebidas como
modalidades estruturais da inteligência, ou seja, evidenciam, por meio de ações e
operações que utilizamos para estabelecer relações com e entre objetos, situações,
fenômenos e pessoas, as capacidades que cada um possui para responder aos
desafios cotidianos. As habilidades, por sua vez, decorrem das competências
adquiridas e referem-se ao plano imediato do “saber fazer”. Nesse sentido, é por
meio dessas ações e operações que as habilidades podem ser articuladas e
aperfeiçoadas, o que possibilita nova reorganização das competências.
A fundamentação do exame se dá através de uma matriz que indica a
associação de conteúdos, competências e habilidades, que devem ser de domínio
dos jovens concluintes dessa etapa de ensino.

Para estruturar o exame, concebeu-se uma matriz com a


indicação de competências e habilidades associadas aos
conteúdos do ensino fundamental e médio que são próprias ao
sujeito na fase de desenvolvimento cognitivo, correspondente ao
término da escolaridade básica. Tem como referência a LDB, os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), a Reforma do Ensino
17
Médio, bem como os textos que sustentam sua organização
curricular em Áreas de Conhecimento, e, ainda, as Matrizes
Curriculares de Referência para o SAEB. (BRASIL, 2000, p. 2).

Atualmente, o exame é configurado em quatro provas objetivas –


Linguagens, códigos e suas tecnologias; Matemática e suas tecnologias;
Ciências da Natureza e suas Tecnologias, e Ciências Humanas e suas
Tecnologias – e uma prova discursiva, a prova de redação. As provas têm em
comum cinco eixos cognitivos, que correspondem às áreas de conhecimentos
adquiridos ao longo da vida escolar do candidato. Para avaliar a aprendizagem e o
modo com que cada um interpreta as questões, os eixos apresentam uma mescla
entre os domínios da linguagem, fenômenos naturais e ciências exatas. Os eixos
cognitivos da prova, comuns a todas as áreas de conhecimento, são:

I. Dominar linguagens (DL): dominar a norma culta da Língua


Portuguesa e fazer uso das linguagens matemática, artística e
científica e das línguas espanhola e inglesa.
II. Compreender fenômenos (CF): construir e aplicar conceitos
das várias áreas do conhecimento para a compreensão de
fenômenos naturais, de processos histórico-geográficos, da
produção tecnológica e das manifestações artísticas.
III. Enfrentar situações-problema (SP): selecionar, organizar,
relacionar, interpretar dados e informações representados de
diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar situações-
problema.
IV. Construir argumentação (CA): relacionar informações,
representadas em diferentes formas, e conhecimentos disponíveis
em situações concretas, para construir argumentação consistente.
V. Elaborar propostas (EP): recorrer aos conhecimentos
desenvolvidos na escola para elaboração de propostas de
intervenção solidária na realidade, respeitando os valores
humanos e considerando a diversidade sociocultural. (BRASIL,
2009, p.34).

Além desta classificação cognitiva, cada área possui matrizes de


referência. A da prova de redação do Enem é tratada a partir de cinco
competências distintas:

I - Demonstrar domínio da norma padrão da língua escrita (0 a


200 pontos)
II - Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das
várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro

18
dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo (0 a
200 pontos)
III - Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações,
fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista (0 a
200 pontos)
IV - Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos
necessários para a construção da argumentação (0 a 200 pontos)
V - Elaborar proposta de solução para o problema abordado,
respeitando os valores humanos e considerando a diversidade
sociocultural (0 a 200 pontos) (BRASIL, 2009, p. 63)

Enquanto as provas objetivas do Enem são avaliadas pela metodologia da


Teoria de Resposta ao Item, de modo que duas provas, ainda que tendo o mesmo
quantitativo de acertos, não obterão a mesma nota, a prova de redação apresenta
critério objetivo e aplicado do mesmo modo a todos os participantes. Por conta
deste fator, os ranqueamentos das instituições participantes consideram
paritariamente o peso da nota de redação. Desde a edição de 2013, o aluno pode
ter acesso ao espelho da sua prova, motivando divulgações e julgamentos externos
ao exame, extensíveis à instituição escolar. Por esses motivos, consideramos que a
prova de redação apresenta visibilidade maior no espaço escolar, merecendo uma
investigação mais acurada, o que foi objeto do projeto “Impactos da prova de
redação do ENEM no currículo da rede pública estadual”, financiado pela
Fundação de Apoio à Pesquisa e Inovação Tecnológica de Sergipe – FAPITEC,
proposto em função das demandas da Secretaria Estadual de Educação de Sergipe,
que tem interesse em estudos sobre impactos e reflexos das avaliações externas do
INEP no currículo da rede escolar (edital FAPITEC NAP 13/2012).
Esse projeto foi desenvolvido pelo Gelins, no período de 2012 a 2015, e
envolveu, se associou a outras iniciativas e ainda se desdobra em diferentes ações,
como os projetos de Iniciação Científica “Impacto da prova de redação do Enem
no currículo escolar da rede estadual de Sergipe” (2013-2014), “Performatividade
e modalização: o pacto acional nas questões de língua portuguesa do Enem”
(2013-2014), “Os gêneros textuais na prova do Enem” (2014-2015),
“Argumentação e matriz de referência do Enem: o espaço da competência III no
livro didático de LP/Sergipe” (2014-2015), “Argumentação, livro didático de língua
portuguesa e redação do Enem: o estatuto da competência III nas coleções
adotadas em Sergipe” (em andamento desde agosto de 2015), a dissertação de
mestrado de Sammela Rejane de Jesus Andrade “Competências linguísticas na
prova do ENEM: uma abordagem sociolinguística”, defendida junto ao Programa
de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Sergipe, em 2015, e a
tese de doutorado de Marlucy Mary Gama Bispo, “Políticas públicas para o ensino
19
médio: impacto do ENEM no currículo de Língua Portuguesa da escola pública do
estado de Sergipe”, em andamento junto ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Sergipe.
Para tal empreendimento, contamos com a interação com outros grupos
de pesquisa, a exemplo do Grupo de Estudos em Letramentos, Interação e
Trabalho (GELIT/CNPq/UFPB), que tem investigado processos de ensino-
aprendizagem da escrita em vários contextos, buscando analisar, dentre outras
realidades, as estratégias de didatização desenvolvidas, o contexto de produção, os
parâmetros dos gêneros e os elementos linguísticos-discursivos presentes na
materialidade textual.
Sem receio com a modéstia, urge reafirmar que a equipe Gelins, seja com
um projeto-piloto focado no impacto que a prova de redação do Enem tem
causado no currículo do Estado de Sergipe, seja com ações desdobradas e/ou
paralelas a ele associadas, que se voltaram, entre outras, para a avaliação do tipo
de questões e de gêneros incursos da prova de Linguagens, códigos e suas
tecnologias, para o espaço das competências da matriz de avaliação da redação no
livro didático adotado na rede pública da Grande Aracaju, cumpre seu papel de
fomentar e prolongar um conjunto de discussões legítimas sobre a problemática
da avaliação do Enem, ao tempo que também se debruça sobre outros vieses
inerentes a avaliações em larga escala e, claro, sobre os diferentes campos
conceituais tratados nas pesquisas descritivas e analíticas contempladas pelas
linhas investigativas que congrega.
Enfim, a proficuidade na formação de recursos humanos, por si só, já é
um indicador do impacto e da relevância acadêmica das ações desses projetos. No
entanto, destacamos outro: a inserção social do Gelins, que vem contribuindo
para a melhoria da qualidade do ensino em Sergipe. Desde 2007, ano de sua
criação, o grupo tem se dedicado a temáticas relacionadas ao currículo de Língua
Portuguesa, que, com todo o respeito acadêmico que se deve ter às diferentes
filiações teóricas com as quais lida, subsidiam propostas de aplicação em
programas de ensino e, em última instância, na sala de aula. Eis o que a
sociedade espera de uma universidade centrada na tríade
ensino/pesquisa/extensão.

Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira. Exame Nacional do Ensino Médio: fundamentação teórico-metodológica. Brasília, 2000.
BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira. Matriz de Referência do Enem 2009. Brasília, 2009.

20
Seção I

AS COMPETÊNCIAS DA PROVA
DE REDAÇÃO

21
22
A competência I na prova de
redação do Enem
Raquel Meister Ko. Freitag

Introdução1

O cenário atual da educação básica no Brasil é modelado por uma série


de políticas públicas que vem sistematicamente instituindo avaliações (seletivas e
diagnósticas) de larga escala, como Provinha Brasil, Prova Brasil e Enem. Tais
políticas educacionais são pautadas em diretrizes curriculares que, em muitos
casos, não dialogam com as diretrizes da academia (universidades e centros de
pesquisa e de formação docente), e, em caso mais grave, não dialogam sequer
entre si, configurando um cenário tenso e dissonante que impacta, diretamente,
na sala de aula e nas decisões do professor.2
A partir da análise dos documentos norteadores do Enem, as diretrizes do
exame seletivo e a matriz de competência para a avaliação da prova de redação,
especificamente no que tange ao tratamento da norma e da diversidade linguística
no cenário brasileiro, mostramos que a matriz de competência para avaliação da
prova de redação do Enem não está em consonância com as diretrizes dadas pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa e com o Programa
Nacional do Livro Didático.

1
Este texto é uma versão do que se encontra publicado na Interdisciplinar: Revista de Estudos de Língua e Literatura, v. 20, n. 20
(FREITAG, 2014).
2
Por exemplo, como resultado do projeto “Ler+Sergipe: Leitura para o letramento e cidadania” (Observatório da Educação –
CAPES/INEP/2012), constatamos que, nas diretrizes de exame de avaliação diagnóstica de leitura, especificamente na Provinha Brasil,
o conteúdo da matriz de competências está alinhado com os resultados de pesquisas internacionais, que preconizam o trabalho com a
consciência fonológica para o aprendizado inicial da leitura, o que, no entanto, não é componente curricular dos cursos de formação
docente, nas licenciaturas em Pedagogia (FREITAG, 2013; 2010; FREITAG; ALMEIDA; ROSÁRIO, 2013).
23
1 O tratamento da diversidade linguística nos documentos oficiais

Num país de dimensão continental como o Brasil, a ideia de que todos


falamos o mesmo português é efeito de planificação linguística. O reconhecimento
e o tratamento da diversidade são basilares nos documentos oficiais. Tanto os
Parâmetros Curriculares Nacionais, quanto o edital do Programa Nacional do Livro
Didático apresentam concepção convergente no que diz respeito ao ensino de
língua, focado na relação entre uso e reflexão. Enquanto o primeiro documento
traça as diretrizes curriculares, o segundo avalia a sua operacionalização; a
coerência entre ambos é uma consequência desejável, que mostra o alinhamento
entre as propostas. Vejamos, a seguir, como se dá a avaliação da implementação
dessa proposta, examinando a matriz de referência do Enem e os critérios de
avaliação da prova de redação.
No que diz respeito às competências e habilidades, a matriz de
referências cognitivas do exame prevê que, quanto à linguagem, o candidato deve
“dominar a norma culta da Língua Portuguesa e fazer uso das linguagens
matemática, artística e científica e das línguas espanhola e inglesa”. (BRASIL,
2012b).
Por trás das competências da Matriz de Referência, há objetos de
conhecimento associados que, em Língua Portuguesa, voltam-se,
primordialmente, ao “estudo dos aspectos linguísticos da língua portuguesa: usos
da língua: norma culta e variação linguística - uso dos recursos linguísticos em
relação ao contexto em que o texto é constituído”. (BRASIL, 2009, p. 62). A prova
de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias segue a matriz de referência
apresentada na figura 1.

Figura 1: Matriz de Referência de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias


24
A competência de área 8 prevê que o estudante deve “Compreender e
usar a língua portuguesa como língua materna, geradora de significação e
integradora da organização do mundo e da própria identidade”, implementada
pelas habilidades 25-27:

Observamos que, na matriz de referência, a habilidade privilegiada pelo


Enem é o reconhecimento das variedades da Língua Portuguesa, conceito
parcialmente convergente com os Parâmetros Curriculares Nacionais e com o
Programa Nacional do Livro Didático: ambos os documentos preconizam uma
noção mais ampla de domínio da norma, seja com o conceito de “norma urbanas
de prestígio” presente no Programa Nacional do Livro Didático, seja com o
reconhecimento da pluralidade de normas. No entanto, a habilidade 27 retoma o
conceito de norma padrão “em uso”, uma condição que diverge dos conceitos
assumidos em outros documentos, que a concebem como idealizada, referencial e
atemporal, e, portanto, desvinculada do uso. A ênfase da norma padrão é
retomada na matriz de avaliação da redação no Enem.

2 A prova de Redação do Enem

A prova de Redação do Enem avalia o desempenho do candidato em cinco


competências: 1) demonstrar domínio da modalidade escrita formal na língua
portuguesa; 2) compreender a proposta e aplicar conceitos das várias áreas de
conhecimento para desenvolver o tema; 3) selecionar, relacionar, organizar e
interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de
vista; 4) demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para
a construção da argumentação, e 5) elaborar proposta de intervenção para o
problema abordado, respeitando os direitos humanos.
O tratamento da norma e da diversidade linguística no cenário brasileiro,
preconizado nas competências e habilidades da matriz do Enem, é desviado para o
domínio da norma padrão, implementado na competência 1 da matriz da prova
de redação.
25
O Guia do Participante do Enem na edição de 2012, cujo objetivo é, em
suas palavras “tornar o mais transparente possível a metodologia de correção da
redação, bem como o que se espera do participante em cada uma das
competências avaliadas” (BRASIL, 2012, p. 3), avalia o candidato, na competência
1, sua capacidade de “demonstrar domínio da norma padrão da língua
escrita” (BRASIL, 2012, p. 10, grifos acrescidos). A habilidade cobrada na
competência 1 contrasta com o que preconiza o Programa Nacional do Livro
Didático (BRASIL, 2011), com o domínio das normas urbanas de prestígio,
especialmente em sua modalidade escrita; contrasta ainda com a própria matriz
cognitiva geral do Enem, que cobra o domínio da norma culta da Língua
Portuguesa. Diferenças de terminologias ou diferenças de propósito?
No detalhamento da matriz de avaliação por competência, o Guia do
Participante do Enem 2012 reitera que “a primeira competência a ser avaliada no
seu texto é o domínio do padrão escrito formal da língua [...] Na escrita formal,
por exemplo, deve-se evitar o emprego repetido de palavras, como ‘e’, ‘aí’, ‘daí’,
‘então’, próprias de um uso mais informal, para relacionar ideias”. (BRASIL,
2012, p. 11, grifos acrescidos).3 Outro conceito é apresentado, já que “padrão
escrito formal” é diferente de “norma padrão da língua escrita”, no início do
mesmo documento. Formal e informal (e suas gradações) constituem um
contínuo, que é diferente da modalidade falada e escrita. Podemos ter fala formal
e fala informal, assim como escrita formal e escrita informal, em todas as
variedades de uma língua. A confusão terminológica, dissonante dos documentos
oficiais que norteiam inclusive o próprio exame, como o caso da matriz cognitiva
geral do Enem, fica mais evidente no seguinte excerto: “Na redação do seu texto,
você deve procurar ser claro, objetivo, direto; empregar um vocabulário mais
variado e preciso do que o que utiliza quando fala e seguir as regras prescritas
pela norma padrão da Língua Portuguesa”. (BRASIL, 2012, p. 11, grifos
acrescidos).
O termo “norma” pode tanto remeter a preceito, ou seja, aquilo que é
normativo; como a descrição de usos recorrentes, ou seja, aquilo que é normal.
Faraco (2008) faz uma distinção interessante entre norma culta, norma-padrão,
norma gramatical e norma curta. A norma culta é definida como “conjunto de
fenômenos linguísticos que ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados
em situações mais monitoradas de fala e escrita” (FARACO, 2008, p. 73). Refere-

3
Especificamente sobre “e”, “aí”, “daí”, “então”, itens linguísticos que atuam na função de sequenciação discursiva, é interessante
observar os resultados de estudos descritivos (TAVARES, 2008; 2010; BARRETO; FREITAG, 2009) que apontam tendências de uso de
cada uma das formas associadas a um contínuo de formalidade e informalidade, na fala e na escrita.
26
se aos usos linguísticos socialmente prestigiados, vistos pelos falantes como
pertencentes a uma variedade superior em relação às chamadas variedades não-
padrão ou populares. O prestígio não decorre de propriedades gramaticais, ou
linguísticas, mas de características extralinguísticas relacionadas a processos
sócio-históricos: enquanto algumas variedades são socialmente avaliadas
positivamente, outras recebem valoração negativa, podendo até ser estigmatizadas.
Essa noção de norma culta se aproxima à noção de normas urbanas de prestígio,
do Programa Nacional do Livro Didático (BRASIL, 2011). Já a norma-padrão não é
uma variedade da língua (como é a norma culta), mas “uma codificação
relativamente abstrata, uma baliza extraída do uso real para servir de referência,
em sociedades marcadas por acentuada dialetação, a projetos políticos de
uniformização linguística” (FARACO, 2008, p. 75). Regulando explicitamente os
comportamentos dos falantes, a norma-padrão funciona como coerção social em
busca de um efeito unificador e como uma referência suprarregional e
transtemporal. Norma culta e norma padrão são conceitos distintos; não há quem
escreva na norma padrão, pois esta não é uma variedade da língua,
diferentemente do que é previsto na Habilidade 27 da Competência 8 da matriz do
Enem, como vimos anteriormente. Tal confusão conceitual tem implicações na
abordagem do estudante no que tange às escolhas a serem feitas no decorrer do
exame.
O guia do participante do Enem 2012 (BRASIL, 2012, p. 12-13) tipifica o
que considera como prescrição de norma padrão – tais como concordância
nominal e verbal, regência nominal e verbal, pontuação, flexão de nomes e verbos,
colocação de pronomes átonos, grafia das palavras, acentuação gráfica, emprego
de letras maiúsculas e minúsculas; e divisão silábica na mudança de linha – e
ainda estabelece uma gradação de penalidades (desvios mais graves, graves e
leves) que não apresenta respaldo na literatura:

ATENÇÃO!

Seguem algumas inadequações do uso linguístico ao registro


formal escrito que são penalizadas na Competência 1.
Desvios mais graves:
- falta de concordância do verbo com o sujeito (com sujeito antes
do verbo);
- períodos incompletos, truncados, que comprometem a
compreensão;
- graves problemas de pontuação;

27
- desvios graves de grafia e de acentuação (letra minúscula
iniciando frases e nomes de pessoas e lugares); e
- presença de gíria

Desvios graves:
- falta de concordância do verbo com o sujeito (com sujeito
depois do verbo ou muito distante dele);
- falta de concordância do adjetivo com o substantivo;
- regência nominal e verbal inadequada (ausência ou emprego
indevido de preposição);
- ausência do acento indicativo da crase ou seu uso inadequado;
- problemas na estrutura sintática (frases justapostas sem
conectivos ou orações - subordinadas sem oração principal);
- desvios em palavras de grafia complexa;
- separação de sujeito, verbo, objeto direto e indireto por vírgula;
e
- marcas da oralidade.

Desvios leves
- ausência de concordância em passiva sintética (exemplo: uso de
“vende-se casas” em vez de “vendem-se casas”); e
- desvios de pontuação que não comprometem o sentido do texto.

Tal posicionamento prescritivista esbarra no que preconizam os


Parâmetros Curriculares Nacionais:

[...] por exemplo, professores e gramáticos puristas continuam a


exigir que se escreva (e até que se fale no Brasil!):
O livro de que eu gosto não estava na biblioteca,
Vocês vão assistir a um filme maravilhoso,
O garoto cujo pai conheci ontem é meu aluno,
Eles se vão lavar / vão lavar-se naquela pia,
quando já se fixou na fala e já se estendeu à escrita,
independentemente de classe social ou grau de formalidade da
situação discursiva, o emprego de:
O livro que eu gosto não estava na biblioteca,
Vocês vão assistir um filme maravilhoso,
O garoto que eu conheci ontem o pai é meu aluno,
Eles vão se lavar na pia. (BRASIL, 1998, p. 31)

As inconsistências no guia do participante 2012 não passaram


desapercebidas; o guia do participante 2013, ao invés de avaliar o domínio da
norma padrão, busca avaliar o “domínio da modalidade escrita formal da Língua
28
Portuguesa” (BRASIL, 2013), sinalizando uma mudança de postura e revisão dos
equívocos conceituais apresentados no documento do ano anterior. A mudança
pode ser percebida na explicação acerca do que é modalidade escrita formal, com
a explicitação das dimensões formalidade e informalidade, oral e escrito:

Você já aprendeu que as pessoas não escrevem e falam do


mesmo modo, uma vez que são processos diferentes, cada qual
com características próprias. Na escrita formal, por exemplo,
deve-se evitar, ao relacionar ideias, o emprego repetido de
palavras, como “e”, “aí”, “daí”, “então”, próprias de um uso mais
informal. Por isso, para atender a essa exigência, você precisa ter
consciência da distinção entre a modalidade escrita e a oral, bem
como entre registro formal e informal.
Outra diferença entre as duas modalidades diz respeito à
constituição das frases. No registro informal, elas são muitas
vezes fragmentadas, já que os interlocutores podem
complementar as informações com o contexto em que a interação
ocorre, mas, no registro escrito formal, em que esse contexto não
está presente, as informações precisam estar completas nas
frases.
A entoação, recurso expressivo importante da oralidade, e as
pausas, que conferem coerência ao texto, são muitas vezes
marcadas, na escrita, por meio dos sinais de pontuação. Por isso,
as regras de pontuação assumem também essa função de
organização do texto. (BRASIL, 2013, p. 11)

Na edição de 2013, o edital do Enem apresentou duas especificidades em


relação à prova de redação: a anulação de redações que tragam “parte do texto
deliberadamente desconectada com o tema proposto”; e o tratamento como
“excepcionalidade” de desvios gramaticais desde que “não caracterizem
reincidência” (BRASIL, 2013).
A edição de 2014 voltou, novamente, à concepção de escrita em norma
padrão, conforme o enunciado da proposta de redação da prova.
Ainda persiste a desarticulação entre o que preconizam os documentos
que orientam as práticas de ensino, como os Parâmetros Curriculares Nacionais e
o Programa Nacional do Livro Didático, e os documentos que embasam a
avaliação do Enem. Tal desarticulação, em última instância, prejudica os
estudantes da escola pública, cujo currículo e seleção de materiais didáticos são
direcionados por estes documentos. Escolas privadas tendem a balizar seu
currículo pelos editais de seleção: antes o vestibular, agora o Enem.

29
Considerações finais

A prova de redação do Enem, apesar das modificações na edição de 2013,


ainda precisa ser mais bem analisada, pois, nas diretrizes de exame seletivo, a
matriz de competência para a avaliação da redação não considera as discussões
sociolinguísticas e os resultados de investigação no Brasil, nem apresenta
coerência com as diretrizes dadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de
Língua Portuguesa, ao cobrar norma padrão (e não norma culta) e tipificar os
erros em “leves”, “médios” e “graves”, sem, no entanto, apontar justificativas ou
embasamento linguístico (seja teórico, seja empírico). Este cenário penaliza o
estudante da escola pública e amplia ainda mais o abismo social existente hoje no
Brasil.
Entender como está estruturada a prova de redação, considerando os
aspectos linguísticos elencados para a avaliação da competência do candidato
(norma culta/norma padrão, tipos de textos/gêneros textuais; propostas de
intervenção; autoria), é essencial para o planejamento de ações e adequações nos
currículos escolares.
Ainda não há estudos que avaliem o impacto da prova de redação do
Enem na modelagem dos currículos, menos ainda estudos sobre as percepções e
anseios dos atores escolares diretamente envolvidos com o exame – alunos e
professores. Os resultados destes estudos são essenciais para embasar decisões
que, em última instância, determinam o futuro do estudante, ao lhe abrir (ou
fechar) as portas de acesso ao ensino superior.

Referências
BARRETO, E. A.; FREITAG, R. M. K. Procedimentos discursivos na escrita de Itabaiana/SE:
estratégias de sequenciação de informação. Scientia Plena, v. 5, p. 115801-1, 2009.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Média e Tecnológica. A redação no
Enem 2012: Guia do participante. Brasília: Ministério da Educação, 2012.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Média e Tecnológica. A redação no
Enem 2013: Guia do participante. Brasília: Ministério da Educação, 2013.
BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais do ensino médio: Linguagens, códigos e suas
tecnologias. Brasília: Ministério da Educação,1998.
BRASIL. Programa nacional do livro didático. Edital de convocação para inscrição no processo
de avaliação e seleção de coleções didáticas para o PNLD 2011. Brasília: Ministério da Educação,
2011.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e
quarto ciclos do ensino fundamental. Brasília: Ministério da Educação, 1998.
30
FARACO, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008.
FREITAG, R. M. K. Entre norma e uso, fala e escrita: contribuições da Sociolinguística à
alfabetização. Nucleus, n. 8, v. 1, p.1-10, 2010.
FREITAG, R. M. K. Leitura, Letramento e Cidadania: explorando a Provinha Brasil. Curitiba:
Appris, 2013.
FREITAG, R. M. K. Prova de redação do Enem: divergências entre as orientações para a prática e as
diretrizes de avaliação. Interdisciplinar, n.20, v.20, p. 61-72, 2014.
FREITAG, R. M. K.; ALMEIDA, A. N. S.; ROSARIO, M. M. S. Contribuições para o aprimoramento da
Provinha Brasil enquanto instrumento diagnóstico do nível de alfabetização e letramento nas séries
iniciais. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 94, n. 237, p. 390-416, 2013.
TAVARES, M. A. Aí especificador na fala, na escrita e na escola. Odisseia, v. 1, p. 45-58, 2008.
TAVARES, M. A. Conectores sequenciadores E, AÍ e ENTÃO na fala de Natal (RN): indícios de
especialização funcional. Interdisciplinar: Revista de Estudos em Língua e Literatura, v. 12, p.
195-213, 2010.

31
32
Organização de textos
dissertativo-argumentativos em
prosa: o que se percebe em dez
anos de realização do Enem?
Isabel Cristina Michelan de Azevedo

Introdução

O Enem, desde sua primeira edição, em 1998, tem o objetivo de medir e


qualificar as estruturas responsáveis pelas interações cognitivas mobilizadas
diariamente no mundo físico e social, por isso focaliza, especificamente, as
competências e habilidades básicas desenvolvidas, modificadas e fortalecidas pela
mediação da escola.
Segundo o documento básico (BRASIL, 2000), as competências podem
ser concebidas como modalidades estruturais da inteligência, ou seja, evidenciam,
por meio de ações e operações que utilizamos para estabelecer relações com e
entre objetos, situações, fenômenos e pessoas, as capacidades que cada um possui
para responder aos desafios cotidianos. As habilidades, por sua vez, decorrem das
competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do “saber fazer”. Nesse
sentido, é por meio dessas ações e operações que as habilidades podem ser
articuladas e aperfeiçoadas, o que possibilita nova reorganização das
competências.

O modelo de avaliação do Enem foi desenvolvido com ênfase na


aferição das estruturas mentais com as quais construímos
continuamente o conhecimento e não apenas na memória, que,
importantíssima na constituição dessas estruturas, sozinha não
consegue fazer-nos capazes de compreender o mundo em que
vivemos. Há uma dinâmica social que nos desafia, apresentando
novos problemas, questiona a adequação de nossas antigas
soluções e exige um posicionamento rápido e adequado ao
cenário de transformações imposto pelas mudanças sociais,
econômicas e tecnológicas com as quais nos deparamos nas
33
últimas décadas. Este cenário permeia todas as esferas de nossa
vida pessoal, mobilizando continuamente nossa reflexão acerca
dos valores, atitudes e conhecimentos que pautam a vida em
sociedade (BRASIL, 2005, p. 7).

Apesar de haver mudanças na matriz do Enem1, a redação continua


sendo elaborada a partir de uma questão problematizadora que suscita a escrita
de uma reflexão acerca de um tema de ordem política, social, cultural ou
científica. Os relatórios pedagógicos são organizados pelo INEP a cada ano, e o de
2004 declara que o participante é um escritor, autor de um texto que deve atender
à proposta apresentada. A situação-problema é colocada para que cada
participante selecione um recorte apropriado a partir da leitura dos textos
motivadores2 que compõem a proposta de redação e de seu acervo pessoal,
reorganizando os conhecimentos já construídos para enfrentar a proposição,
tendo por base uma reflexão própria da realidade, transcrevendo-a em seu projeto
de texto.
Além disso, a redação sempre foi avaliada em relação às cinco
competências da primeira Matriz, transpostas para produção de um texto escrito.
Cada uma delas foi subdividida inicialmente em quatro níveis (critérios de
avaliação da competência), sendo que atualmente são cinco (BRASIL, 2013), além
de explicitarem os motivos que anulam a redação (tangenciar o tema, fugir
totalmente do tema, não cumprimento ao tipo textual, uso de impropérios,
inserção de parte desconectada ao assunto em questão e desrespeito aos direitos
humanos).
Os elementos analisados nas competências passaram por modificações ao
longo do tempo, mas é possível perceber regularidades, quando se compara a
proposta de avaliação de 2001 (sutilmente alterada em relação à versão de 1998)
com a de 2004, e mesmo quando se considera as indicações da segunda Matriz. A
comparação das informações mostra que as mudanças periódicas visavam
garantir o maior grau de uniformização.

1
A primeira matriz do Enem (de 1998 a 2008) era composta por cinco competências, que correspondiam a domínios específicos
expressos em vinte e uma habilidades; a segunda Matriz (a partir de 2009) passou a ter cinco eixos cognitivos, entre sete a nove
competências e trinta habilidades para cada uma das áreas, totalizando 120 distribuídas igualmente nas quatro áreas de
conhecimento: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; Matemática e suas Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias e
Ciências Humanas e suas Tecnologias.
2
Os textos motivadores são pequenos textos verbais e não-verbais que constituem um acervo mínimo que contextualiza o tema
proposto para discussão na prova de redação do Enem.
34
Também foi mantida a exigência da competência 53, ou seja, ao organizar
a conclusão do texto, o autor tem que necessariamente apontar soluções para a
situação-problema, que respeitem os direitos humanos.
As competências gerais foram adequadas à análise das redações, por isso,
desde 1998, temos as seguintes competências na avaliação dos textos produzidos
em prosa:

I- demonstrar domínio da norma culta da língua escrita;


II - compreender a proposta de redação e aplicar conceitos
das várias áreas do conhecimento para desenvolver o
tema, dentro dos limites estruturas do texto dissertativo-
argumentativo;
III - selecionar, relacionar, organizar e interpretar
informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de
um ponto de vista;
IV - demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos
necessários para a construção da argumentação;
V- elaborar proposta de intervenção para o problema
abordado, demonstrando respeito aos direitos humanos.

O Enem focaliza as competências e habilidades básicas que são


estimuladas e transformadas pelas práticas pedagógicas. Entende-se que os
conhecimentos são construídos por meio das interações contínuas realizadas pelo
sujeito na sociedade. Assim, os conceitos, ideias, teorias, leis, fatos, pessoas,
história, manifestações artísticas, meios de comunicação, políticas, etc., traduzidos
em conteúdos curriculares das diferentes áreas, são mobilizados pelo participante
ao produzir um texto que discuta uma temática em uma perspectiva
contextualizada, que valorize os conhecimentos construídos na escola e também
fora dela (BRASIL, 2004).

3
As cinco competências avaliadas até 2008 são: I. dominar a norma culta da Língua Portuguesa e fazer uso das linguagens
matemática, artística e científica; II. construir e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento para a compreensão de fenômenos
naturais, de processos histórico-geográficos, da produção tecnológica e das manifestações artísticas; III. selecionar, organizar,
relacionar, interpretar dados e informações representados de diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar situações-problema;
IV. relacionar informações, representadas em diferentes formas, e conhecimentos disponíveis em situações concretas, para construir
argumentação consistente; V. recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para elaboração de propostas de intervenção
solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade sociocultural. Essas competências passaram a ser
tratadas como eixos cognitivos na nova Matriz em vigor desde 2009.
35
Quadro 1: Competências e critérios para análise da Redação do Enem.
(BRASIL,2001, p. 53-54)

Em todas as edições, o participante precisou produzir um texto


dissertativo-argumentativo, pois os organizadores do exame consideram que é o
tipo que mais atende à representatividade das tarefas usualmente presentes na
escola e na vida em sociedade. Observa-se no quadro 1 que a competência 2, que
é destaque neste capítulo, é a que reúne os conteúdos relacionados a esse tipo do
texto por avaliar: diferenças entre pontos de vista, mobilização de variados
conceitos e os tipos de argumentos (por meio citações, alusões, analogias,
exemplificações, etc.) na discussão do tema, a estrutura composicional
característica dessa modalidade de escrita e as posições assumidas no e pelo
discurso.
36
Ao sobressair a importância da autoria, torna-se claro que é a maneira
como o participante reflete acerca das relações sociais e o modo como se
posiciona na materialidade linguística que evidenciam seu protagonismo na
produção textual. Além disso, a interligação interdisciplinar entre saberes e
contextos em um certo sentido indica a compreensão crítica elaborada pelo autor.
Em 20044, os indícios de autoria ganham maior relevância uma vez que
foi transformado em um tópico destacado dos outros aspectos, embora os
aspectos argumentativos tenham sido minimizados e os textuais, realçados.

Quadro 2: Competências e critérios para análise da Redação do Enem


(BRASIL, 2004. p. 73)

Como está descrito no quadro 2, a competência II está diretamente ligada


à compreensão da proposta de redação e à aplicação de conceitos de várias áreas
de conhecimento para discutir um tema, por isso considera: como o
desenvolvimento do conteúdo temático instaura a problemática que será discutida

4
Optamos por analisar o ano de 2004 para que pudéssemos comparar com as redações produzidas dez anos depois, em 2014.
37
pelo texto; como o encadeamento das partes do texto promove a progressão
temática; bem como as marcas pessoais manifestadas na organização textual.
Em função dessas exigências, essa competência permite a análise e a
interpretação dos dados reunidos, a observação das informações e dos conceitos
selecionados, tendo em vista a construção de uma argumentação consistente.
Como o participante deve ler uma coletânea de textos e considerar o repertório de
informações oferecido, além de outras informações obtidas na escola e fora dela, a
construção de argumentos revela também as estratégias persuasivas acionadas
pelo autor.
O aprimoramento dos critérios relativos à competência 2 é bastante
evidente no quadro 3, pois, além de apresentar descrição específica para seus
cinco níveis de análise, há uma pontuação única para cada um deles.

CRI T ÉRI O S D E AV A LI AÇ Ã O D A R E D AÇ Ã O
NÍVEL Pont. DESCRIÇÃO
Desenvolve texto que não contempla a proposta de redação, desenvolve
Nível 0 0 outro tema e/ou elabora outra estrutura textual que não a dissertativo-
argumentativo.
Desenvolve de maneira tangencial o tema ou apresenta inadequação ao tipo
Nível I 200
texto textual dissertativo-argumentativo.
Desenvolve de forma mediana o tema a partir de argumentos do senso
Nível II 400 comum, paráfrases dos textos motivadores ou apresenta domínio precário
do tipo textual dissertativo-argumentativo.
Desenvolve de forma adequada o tema, a partir de argumentação previsível e
Nível III 600
apresenta domínio adequado do tipo textual dissertativo-argumentativo.
Desenvolve bem o tema a partir de argumentação consistente e apresenta
Nível IV 800
bom domínio do tipo textual dissertativo-argumentativo.
Desenvolve muito bem o tema a partir de um repertório sociocultural
Nível V 1000 produtivo e de argumentação consistente e apresenta excelente domínio do
tipo textual dissertativo-argumentativo.
Quadro 3: Critérios de avaliação da redação – Competência 2 (BRASIL, 2011, p. 5)
adaptado.

Excetuando o nível 0 que anula a redação, do nível I ao V há uma


gradação em relação ao desenvolvimento de um texto de tipo dissertativo-
argumentativo. Embora no nível I haja a indicação de que textos com problemas
na estruturação receberão uma pontuação mínima, não está claro o que seja
“tangenciar o tema”. O nível II faz referência direta aos textos que apresentam
meras retomadas dos textos motivadores e que mantêm graves problemas de
estruturação; e a partir do nível III ocorre a diferenciação entre argumentação

38
previsível e consistente, mas não se explica exatamente como isso pode ser
identificado.

Quadro 4: Exigências de elaboração de um texto dissertativo-argumentativo.


(BRASIL, 2013, p. 16)

Dois anos depois, visando responder a muitos questionamentos, o


Ministério da Educação lançou um guia para orientar os participantes do Enem na
escrita da redação. Nesse documento a competência 2 é detalhadamente
explicada. O tema, por exemplo, é definido como o “núcleo das ideias sobre as
quais a tese se organiza. Em âmbito mais abrangente, o assunto recebe a
delimitação por meio do tema, ou seja, um assunto pode ser abordado por
diferentes temas” (BRASIL, 2013, p. 13). Também se encontram trechos de
redações reunidas em 2012 para exemplificar o que é tangenciar ou fugir
totalmente de um tema; o que é um texto dissertativo-argumentativo e como pode

39
ser composto. Por fim, há um esquema montado para esclarecer os dois
princípios de estruturação desse tipo de texto, como se vê no quadro 4.
Nota-se que o documento relaciona a tese aos argumentos na composição
de justificativas para compor um ponto de vista, ou seja, ressalta-se que a
elaboração de argumentos em função da tese apresentada tem a função de
colaborar para a constituição do processo argumentativo da justificação (LEITÃO,
2007).
A especificação das estratégias argumentativas é apresentada como um
recurso importante para a discussão do problema proposto. Por meio do
acionamento de exemplos, dados estatísticos, pesquisas, fatos comprováveis,
citações ou depoimentos, alusões, comparações são constituídas não apenas como
formas de sustentação, mas também como de negociação de ideias e sentidos, o
que promove a possibilidade de revisão das próprias concepções acerca de objetos,
fenômenos, ideias ou pessoas, articulada a um processo de autorregulação do
pensamento pelo autor do texto (LEITÃO, 2007, 2011).
Essa evolução no processo de avaliação da competência 2 parece estar
alinhada ao reconhecimento do crescente valor que a argumentação passou a ter
na sociedade atual. Em nossos tempos, basta ser estabelecida alguma conexão na
internet, ser ligada a televisão, ocorrer a leitura de um jornal, a audição de um
político ou de alguma mensagem publicitária para se constatar que a todo instante
os discursos estão tentando apresentar uma imagem ou um ponto de vista que
visa agradar, seduzir, provocar ou persuadir o outro, a partir de um conjunto de
recursos que há muito tempo foi estudado pela retórica, mas ultimamente vem
sendo atualizado devido às inúmeras demandas sociais contemporâneas. Segundo
Meyer (1998), tudo se tornou comunicação persuasiva.

[...] Da amizade ao amor, da política à economia, as relações


fazem-se e desfazem-se por falta ou por excesso de retórica. A
fragilidade do homem ocidental, demasiado mimado, exige
atenções, e por conseguinte, formas. Para fazermos parte de um
grupo que nos aceite, precisamos de boa etiqueta, bom vestuário
e de um bom automóvel: outros tantos sinais de reconhecimento
nos quais cada um, por semelhança, sentirá que faz parte dos
eleitos. O look, a aparência, introduziram a retórica na mente dos
nossos contemporâneos: tudo é sinal, mensagem e vontade de
persuadir que se conforma com uma convicção comum cujo
credo é, justamente, a preocupação de persuadir por persuadir e
de agradar por agradar [...] (MEYER, 1998, p. 11-12).

40
Diante desse cenário, os organizadores do Enem propõem ao autor que
ao apresentar uma opinião ou um ponto de vista suponha outros que se
encontram em circulação na sociedade, por isso deve acionar ao mesmo tempo o
conjunto de crenças ao qual está ligado, os valores que possui e as representações
de mundo, construídos sócio-historicamente, colocando-os em prol dos
posicionamentos assumidos no texto. Assim, a escrita é argumentativa porque
defende uma tese ou opinião e dissertativa porque apresenta explicações para
justificá-la (BRASIL, 2013, p. 15-16).

1 Caracterização do texto dissertativo-argumentativo

A discussão em torno do texto dissertativo-argumentativo em situação de


exame escolar, particularmente em exames vestibulares e em exames nacionais
de medida da aprendizagem, ocorre há bastante tempo e em diferentes
perspectivas, ou seja, são vários os pesquisadores que discutem formas de
caracterização dessa modalidade de escrita (HAAS; GUIMARÃES, 2014; AGUSTINI;
BORGES, 2013; SOUZA, 2007; PILAR, 2002; entre outros). Esses estudos tomam
por base referências teóricas diversas que orientam para opções distintas de
classificação.
Em comum, as perspectivas reconhecem ser um tipo ou gênero que
circula principalmente no espaço escolar, seguindo uma tradição que tem início
por volta do ano 1.000, com o surgimento das universidades, período em que as
disputationes serviam para colocar à prova a capacidade de mestres e alunos.
Segundo Alain Viala (1990, p. 108-109), a dissertação, com características
próximas ao gênero que utilizamos hoje, torna-se mais frequente nas práticas de
ensino a partir do século XVIII, quando a retórica e os exercícios latinos de caráter
dissertativo começaram a ser realizados sistematicamente. Tais exercícios eram
decompostos em três partes:

1. praelectio (preleção) – explicação dos textos;


2. eruditio (erudição) – análise de textos históricos;
3. disputatio (disputa) – exercício de argumentação, herança da
retórica clássica.
Contudo, a dissertação era prática da filosofia, mais do que das
humanidades, evidenciando que é ao lado da latinidade que se encontra o modelo
escolar stricto sensu da dissertação. Chama-nos a atenção o fato de já no século
XVII a dissertação ser da prática corrente na ordem das Letras Francesas, fato que
41
possibilitou a construção de exemplos muito familiares que influenciaram a
definição desse gênero na escola.
Ao analisar as características dos textos dissertativo-argumentativos,
encontra-se, por um lado, um grupo de pesquisadores que os consideram na
perspectiva da tipologia textual (CITELLI, 1994; SAYEG-SIQUEIRA, 1995, entre
outros). A ênfase dessa perspectiva é o caráter explicativo, analítico e interpretativo
do texto, cujo viés temático possibilita avaliar as situações sociais e articular
conceitos amplos, muitas vezes abstraídos do tempo e do espaço, e a estrutura
textual: apresentação de tese ou premissa inicial (proposição), construção de
justificativas/argumentos em prol do ponto de vista apresentado, discussão de
possíveis contra-argumentos (argumentação) e conclusão. Nesse sentido, é
considerado um texto mais abstrato – em relação ao tipo narrativo e descritivo que
podem ser utilizados para ilustrar as afirmações –, que explica os dados concretos
da realidade. Enfatizam-se os elementos coesivos e os fatores de coerência que
colaboram com a organização textual.
Por outro lado, há os que consideram o texto dissertativo-argumentativo
um gênero de texto escolar. Essa perspectiva crescente destaca o fato de esse
gênero ser “feito para o ensino da escrita”, ter saído de sua esfera comunicativa,
sendo integrada a outras práticas sociais, como: processos seletivos de empresas
públicas e privadas, concursos públicos e exames vestibulares, por exemplo
(SOUZA, 2007). Além disso, são considerados nessa produção sociocultural os
aspectos contextuais envolvidos na discussão dos temas e/ou questões propostos e
as formas como os escritores tomam a palavra para estabelecer posicionamentos,
ou seja, as relações sócio-históricas incluem as dissertações, seus propósitos
comunicativos e os diálogos que os alunos-escritores estabelecem com os outros
participantes da interação sócio-discursiva.
Como na vida cotidiana os sujeitos se confrontam com inúmeras situações
de argumentação, cuja finalidade última é a partilha de crenças e valores, o
participante do Enem acaba por se inscrever nas “ciências da comunicação” que,
segundo Breton (1999, p. 25-26), envolve três elementos essenciais:

 argumentar é comunicar, isso quer dizer que em toda “situação de comunicação”


existem parceiros em interação pela linguagem, de acordo com uma dinâmica própria;
 argumentar não é convencer a qualquer preço, é preciso saber se restringir em nome de
uma ética;
 argumentar é raciocinar, propor uma opinião aos outros dando-lhes boas razões para
aderir a ela.

42
Dessa forma, ao tomar a perspectiva do texto dissertativo-argumentativo
como um gênero escolar, a interação entre diferentes sujeitos, ideias e recursos
torna-se uma característica fundamental, pois permite estabelecer relações
diversas entre o sujeito-escritor e leitor de seu texto, entre enunciação e discurso e
entre os elementos constitutivos do contrato estabelecido entre eles. Assim,
espera-se que o participante seja capaz de:

 identificar o assunto a ser desenvolvido a partir do tema indicado para estímulo da


produção;
 relacionar as partes ao todo e as partes entre si, mantendo a coerência lógica com a
unidade temática;
 articular os temas envolvidos, de acordo com a natureza requerida na proposta de texto
dissertativo;
 separar argumento/fato e opinião/hipótese;
 utilizar recursos linguísticos adequados à natureza da proposta textual (vocabulares,
sintáticos e semânticos);
 utilizar as convenções (escrita correta das palavras, acentuação, paragrafação,
pontuação, maiúsculas e minúsculas, recursos gráficos), as regras da concordância,
regência e colocação pronominal e as regras de emprego de formas gramaticais, como
tempo/modo verbais, pronomes e advérbios.

Tais procedimentos exigem levar em conta se a opinião é verossímil e


quais argumentos seriam mais adequados frente aos sujeitos que se tem em
mente, pois esses elementos orientarão a construção do plano argumentativo, a
seleção das estratégias de sedução, bem como os tipos de argumentos e de figuras
a serem utilizadas na argumentação.
Como a dissertação está relacionada à defesa de posicionamentos em
diferentes contextos sociais, é preciso saber argumentar. Espera-se, então, que os
participantes do exame compreendam a proposta apresentada, consigam aplicar
conceitos, revelem reflexão crítica e sejam capazes de exercer sua cidadania por
meio de ideias bem articuladas, que indiquem caminhos para a solução dos
problemas apresentados, considerando também a pluralidade cultural que
caracteriza a sociedade brasileira, uma vez que, ao final da educação básica, o
participante precisa revelar a capacidade de ter uma participação responsável na
realidade na qual se encontra inserido.
Para ilustrar quanto os participantes do Enem têm correspondido a essas
exigências, propomos a seguir uma análise de produções realizadas em 2004 e em
2014. Nesse período de tempo, foi visível o crescimento da importância desse

43
exame nas práticas escolares, a cada dia o efeito retroativo5 do Enem torna-se
mais evidente (VICENTINI, 2014; AZEVEDO, 2015), por isso, se busca observar se
houve mudanças significativas nas produções dos participantes. Contudo, é
importante sublinhar que esta análise é sugestiva, pode e deve ser confrontada
com outros textos produzidos nos exames.6

2 Análise de textos

Com o intuito de comparar redações produzidas em dois períodos,


distantes em dez anos, foram selecionados textos na prova do Enem em 20047 e
em 20148. Nas duas edições, os temas em debate suscitaram polêmica e a
assunção de posicionamentos por meio dos participantes. Em 2004, foi proposta
uma reflexão acerca de Como garantir a liberdade de informação e evitar
abusos nos meios de comunicação? e, em 2014, propôs-se discutir a Publicidade
infantil em questão no Brasil. Seguindo o padrão da prova, os escritores, em
ambos os exames, tiveram acesso a textos motivadores que buscaram iniciar a
problematização dos temas. Como as redações divulgadas pela mídia em 2014
receberam nota 1000, buscou-se entre as disponíveis em 2004 um texto bem
avaliado.
Segundo Bakhtin e Volochinov (1995), o tema de uma produção
discursiva pode ser entendido como o sentido da enunciação, ou seja, é único,
individual e não reiterável, posto que “ele se apresenta como a expressão de uma
situação histórica concreta que deu origem à enunciação” (BAKHTIN;
VOLOCHINOV, 1995, p. 128). Assim, quando as ideias são retomadas em uma
enunciação, assumem sentidos diferentes, próprios, constituindo uma certa visão
de mundo. Dessa forma, nota-se que o tema não é determinado apenas pelas
formas linguísticas que colaboram com a composição do texto, mas pelos

5
Conceito proposto por Alderson e Wall, em 1992, para explicar o efeito (positivo ou negativo) que os exames institucionais têm sobre
as ações dos professores.
6
Na amostra fornecida pelo INEP, em 2004, não haver nenhuma com nota 1000, e as que obtiveram 800-900 constituírem um grupo
com apenas 6,4% das redações recebidas (AZEVEDO, 2009). Também inquieta verificar que, em 2014, após a publicação de vários
documentos orientadores ao longo de dez anos e do aumento do efeito retroativo do Enem nas escolas, há apenas um conjunto com 250
redações com nota 1000, em 5,9 milhões dos textos corrigidos (0,004%), e do total 4.444 não atendem ao tipo textual.
7
Os textos reunidos neste trabalho são provenientes do (composto por textos representativos de produções oriundas de diversos
estados brasileiros), organizado por Azevedo (2009) para a pesquisa que investigou as capacidades linguístico-discursivas observadas
em textos produzidos para o Enem, em 2004.
8
Devido à dificuldade em ter acesso aos textos produzidos em 2014, foram aproveitados apenas os que foram divulgados pelo meio
jornalístico.
44
elementos não verbais presentes na situação discursiva. O tema da enunciação,
então, é concreto, tão concreto como o instante histórico ao qual ela pertence.
Apesar disso, o recorte temático produzido pelo sujeito-escritor faz uso de
formas e lugares conhecidos, reiteráveis, por vezes fundados sobre convenções,
que permitem a retomada de variadas práticas de linguagem pelos sujeitos.
Quando se observa a abertura dos textos selecionados para a análise, é
evidente que os autores partem de situações bastante divulgadas na sociedade
brasileira para apresentar o ponto de vista que serve de base para a argumentação
que em andamento.

Texto 1, Texto 2,
produzido em 20049 produzido em 201410
Um canal mostra um assalto, o outro É comum vermos comerciais direcionados ao
mostra um assassinato, enquanto um público infantil. Com a existência de
último faz uma visita para um presídio de personagens famosos, músicas para crianças e
segurança máxima para entrevistar um parques temáticos, a indústria de produtos
traficante. É isto que se vê na televisão destinados a essa faixa etária cresce de forma
brasileira, com o intuito de mostrar e não nunca vista antes. No entanto, tendo em vista a
informar, vender e não educar. Mas como idade desse público, surge a pergunta: as
associar liberdade de expressão com direitos crianças estariam preparadas para o
humanos? bombardeio de consumo que as propagandas
veiculam?

Ambos partem do lugar do existente (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,


1996, p. 106), isto é, estão apoiados na realidade, em fatos possíveis e eventuais
que ocorrem em sociedade e são facilmente identificados pelo leitor. As imagens
recortadas de experiências observadas pelos escritores, e possivelmente pelos
leitores, são mobilizadas para criar um contraponto para a premissa inicial,
anunciada por meio de uma pergunta retórica. Essa estratégia persuasiva parte de
uma interrogação que não espera uma resposta direta, mas que visa estimular a
reflexão do leitor acerca do tema que está sendo anunciado. Esse procedimento
também é capaz de atuar junto às mentes e aos corações do interlocutor, pois
introduz questionamentos que podem estar inquietando-o, servindo, portanto,
como um eficiente mecanismo de envolvimento do outro na discussão proposta.
As constatações de partida preparam o leitor para a argumentação que é
desenvolvida ao longo de cada texto. O texto 1 retoma a questão problematizadora

9
A redação n. 0130000-8, produzida em Campo Grande/MS, com nota 925, constitui o organizado com 249 textos.
10
Texto recolhido e divulgado pelo jornal O Globo, em 21 de janeiro de 2015, produzido por um participante do Rio de Janeiro/RJ,
que recebeu nota 1000.
45
proposta pelo exame, com ênfase para o desafio de os meios de comunicação
respeitarem os direitos humanos; o texto 2 revela a reação do sujeito frente as
circunstâncias sociais e a preocupação que quer dar destaque. São formas
parecidas de organização discursiva, distinguindo-se apenas pelo conteúdo
temático mobilizado.

Texto 1 – 2004 Texto 2 - 2014


A lei de liberdade de expressão foi um Há quem duvide da capacidade de
direito conquistado depois de muita luta convencimento dos meios de comunicação. No
contra a censura que retirava a voz da entanto, tais artifícios já foram responsáveis por
imprensa, deixando-a calada diante de mudar o curso da História. A imprensa, no
grandes problemas sociais, além de fazer século XVIII, disseminou as ideias iluministas e
dela apenas uma propagandista do governo foi uma das causas da queda do absolutismo.
ditatorial. Mas não é preciso ir tão longe: no Brasil
Mas com a conquista desse direito a redemocratizado, as propagandas políticas e os
imprensa começou a manipular a debates eleitorais são capazes de definir o
população com seus noticiários e resultado de eleições. É impossível negar o
programas e a abusar do seu poder, impacto provocado por um anúncio ou uma
passando por cima de artigos da retórica bem estruturada.
constituição federal brasileira que O problema surge quando tal discurso é
asseguram que a privacidade é inviolável, direcionado ao público infantil. Comerciais para
invadindo lares e vidas que anseiam por essa faixa etária seguem um certo padrão:
serem deixados em paz. enfeitados por músicas temáticas, as cenas
Além disso a televisão brasileira está mostram crianças, em grupo, utilizando o
deixando de fazer seu principal papel, que é produto em questão. Tal manobra de
educar e informar, para se tornar apenas “marketing” acaba transmitindo a mensagem
uma forma de se ganhar dinheiro, de que a aceitação em seu grupo de amigos está
mostrando programas absurdamente condicionada ao fato dela possuir ou não os
imorais e sem conteúdo intelectual e mesmos brinquedos que seus colegas. Uma
informativo. estratégia como essa gera um ciclo interminável
de consumo que abusa da pouca capacidade de
discernimento infantil.

O parágrafo colocado na continuidade do tema recorre a fatos históricos


para contextualizar as discussões, promovendo o processo de sustentação das
argumentações. No texto 1, retoma-se o período de ditadura militar que cerceou a
liberdade de expressão no Brasil por mais de duas décadas. No texto 2, a alusão à
história da imprensa fundamenta as razões que podem explicar a força da
propaganda eleitoral no Brasil (a expansão das ideias iluministas) e se coloca ao
lado da eficiência desse tipo de propaganda, notada especialmente pelo impacto
dela nos resultados dos políticos nas urnas. Ambos optaram pelo lugar da ordem
46
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 105), que aponta causas, princípios,
objetivos e fins que podem servir de base para os pontos em discussão, dando
seguimento ao processo de sustentação.
Na sequência, o texto 1 introduz um contra-argumento, marcado pelo uso
do operador argumentativo mas, que contrapõe um argumento em relação ao que
se apresentou anteriormente (a luta pela conquista da liberdade de expressão).
Apoiado em uma frase-feita, um lugar-comum, a imprensa começou a
manipular a população, o sujeito-escritor declara sua posição contrária ao que
chama de abuso de poder por parte dos noticiários e programas jornalísticos,
especialmente quando invadem a privacidade e a vida das pessoas.
O texto 1 ainda acrescenta um parágrafo que no qual explicita sua posição
a respeito do papel dos meios de comunicação: informar e educar as pessoas,
evitando mostrar programas imorais, sem conteúdo intelectual e informativo. Ao
declarar uma crítica à televisão brasileira que parece se interessar mais por
dinheiro do que pela veiculação de informações, o autor reafirma seu
posicionamento crítico acerca das práticas televisivas no Brasil.
O texto 2, por sua vez, opta pelo reforço da ideia colocada no início: a
força da imprensa pode ser considerada ainda maior quando está direcionada ao
público infantil. Por meio do argumento pela ilustração, um tipo de argumento
que fundamenta a estrutura do real (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p.
399ss) – [comerciais] enfeitados por músicas temáticas; cenas mostram
crianças, em grupo, utilizando o produto em questão –, o autor busca reforçar a
adesão a uma ideia conhecida, e possivelmente aceita, recortando fatos que
podem robustecer a impressão anteriormente causada no leitor, visto que
também se tratam de lugares-comuns. Esses recursos são avaliados e
denominados pelo sujeito-escritor como manobra de “marketing”, declarando,
assim, seu posicionamento contrário à força da publicidade, quando direcionada
para fins comerciais, com alvo em crianças.
Ao mesmo tempo constrói uma crítica às pessoas que valorizam outras
por meio dos objetos que possuem, chamando isso de ciclo interminável de
consumo, que estaria apoiado na pouca capacidade de discernimento infantil.
A contra-argumentação, no texto 2, é construída, então, por dois
procedimentos distintos: uma crítica aos anúncios publicitários produzidos para
os pequenos consumidores e outra direcionada àqueles que valorizam o outro
pelas posses adquiridas. Tais recursos discursivos operam uma restrição em
relação a orientação argumentativa inicial de valorização das conquistas da
propaganda.

47
Essas estratégias argumentativas colaboram para o processo de
negociação, pois são realizadas revisões das próprias posições, dos fatos
selecionados, das ideias em circulação, articulando, assim, um processo de
análise que promove o desenvolvimento do pensamento reflexivo (LEITÃO, 2011).

Texto 1 – 2004 Texto 2 - 2014


Por isso a imprensa em geral deve ser Fica clara, portanto, a necessidade de uma
duramente fiscalizada não pelo governo ampliação da legislação atual a fim de limitar,
mas pela sociedade que tem o direito e o como já acontece em países como Canadá e
dever de criticá-la e puni-la não lhe dando a Noruega, a propaganda para esse público,
sua audiência para programações que achar visando à proibição de técnicas abusivas e
moral e eticamente errados. inadequadas. Além disso, é preciso focar na
conscientização dessa faixa etária em escolas,
com professores que abordem esse assunto de
forma compreensível e responsável. Só assim
construiremos um sistema que, ao mesmo
tempo, consiga vender seus produtos sem obter
vantagem abusiva da ingenuidade infantil.

Na fase da conclusão, o texto 1 procura responder à questão do primeiro


parágrafo com uma defesa ao controle da imprensa, não pelo governo e sim pela
sociedade, mas não explica como isso poderia ser viabilizado. Como a
competência 5 requer o respeito aos direitos humanos, a ausência dos meios
indicados para que o controle seja efetivado revela fragilidade no atendimento a
essa exigência.
O texto 2, por sua vez, sugere alterações na legislação atual a fim de
limitar a ação das agências de publicidade voltada ao público infantil, como já
acontece no Canadá e na Noruega, e a ampliação das estratégias de esclarecimento
em escolas, entre professores e estudantes, por isso a nota máxima se justifica.
A análise de dois textos adequados às expectativas dos organizadores do
Enem, pois também não são observados problemas formais de escrita, indica, por
um lado, que os participantes, ao concluírem a educação básica, são capazes de
atender aos requisitos associados às cinco competências avaliadas pelos corretores.
Por outro, provoca espanto identificar o uso de recursos tão parecidos, considerando
que os textos foram produzidos em diferentes regiões do Brasil com dez anos de
distanciamento. Essa constatação importuna, incomoda, no sentido de se pensar
que as práticas escolares podem estar circunscritas a um único modelo de
argumentação, impedindo, assim, a aprendizagem de estratégias e procedimentos
variados.
48
Considerações finais

Têm sido grandes os esforços governamentais em aprimorar o sistema de


avaliação de redações produzidas para o Enem, pois são visíveis o aprimoramento
dos critérios de avaliação das redações e a elaboração contínua de materiais que
possam orientar os participantes do exame, particularmente em relação à
competência 2.
Destaca-se, aqui, a necessidade de haver um conhecimento mais
aprofundado das características do gênero escolar dissertativo-argumentativo. Essa
demanda reforça a preocupação com:

 os cursos de formação inicial de professores (será que em suas matrizes curriculares


das faculdades e universidades de letras garantem o conhecimento das características
composicionais e temáticas desse gênero?);
 com os cursos de formação continuada (será que as propostas favorecem o
aprofundamento dos estudos, sobretudo pelos professores formados há mais tempo?);
 com os modos como professores e alunos se apropriam das orientações oficiais;
 com as práticas pedagógicas para o ensino de gêneros realizadas nas escolas de
educação básica;
 com os materiais didáticos disponíveis para o apoio do trabalho dos professores e para
o desenvolvimento das aprendizagens dos estudantes.

Esta reflexão inicial, que reúne elementos que impactam a produção da


redação do Enem, é ponto de partida para propor continuidade e aprofundamento
dos tópicos associados ao pleno desenvolvimento da competência 2.

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49
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50
O estatuto da leitura na
redação do Enem 2014:
o caso da fuga ao tema
Solange dos Santos
Débora Reis Aguiar

Introdução

O desenvolvimento das habilidades de leitura e de escrita é imprescindível


para o progresso escolar. Nas séries iniciais, dominar o código escrito é
considerado critério de avaliação para que o aluno possa prosseguir para as séries
posteriores. Para ingressar no Ensino Superior, um dos requisitos dos processos
seletivos consiste em um bom desempenho na prova de redação. Além disso, é
por meio da leitura que o educando adquire conhecimento, não só em língua
materna, mas também em outras áreas de conhecimento.
Entretanto, a realidade educacional brasileira mostra que o processo de
ensino-aprendizagem tem apresentado falhas e muitos estudantes acabam sendo
promovidos para séries seguintes sem saber ler e escrever. Nesse sentido, por
mais que se enfatizem alternativas de se trabalhar a leitura em sala de aula,
muitos alunos chegam às séries finais do Ensino Fundamental e até mesmo ao
Ensino Superior com dificuldades relativas às habilidades de leitura e de escrita,
evidenciando, assim, problemas que não foram solucionados nas séries iniciais.
Nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), na introdução da
caracterização da Língua Portuguesa, é apresentada a visão de que “no Ensino
Fundamental, o eixo da discussão, no que se refere ao fracasso escolar, tem sido a
questão da leitura e da escrita” (BRASIL, 1997, p. 19). Os índices de repetência
na primeira e quinta séries (atuais 2º e 6º anos) são atribuídos à dificuldade da
escola em ensinar a ler e a escrever: i) na primeira série, por problemas no ensino
de alfabetização; ii) na quinta série, por não desenvolver o uso eficaz da
linguagem. Com relação ao Ensino Superior, os PCN ressaltam que
51
a dificuldade dos alunos universitários em compreender os textos
propostos para leitura e organizar ideias por escrito de forma
legível levou universidades a trocar os testes de múltipla escolha
dos exames vestibulares por questões dissertativas e a não só
aumentar o peso da prova de redação na nota final como também
a dar-lhe um tratamento praticamente eliminatório. (BRASIL,
1997, p. 19)

As dificuldades quanto à proficiência em leitura e escrita fazem parte de


debates pedagógicos há tempo. Porém, embora seja um tema muito estudado,
ainda nos deparamos com situações que revelam a falta de êxito da escola no
desenvolvimento dos alunos, notadamente, no baixo desempenho destes nos
resultados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), dos exames do
Programa para Avaliação Internacional de estudantes (Pisa) e do Exame Nacional
do Ensino Médio (Enem).
Na edição de 2014 do Enem, o número de textos com “fuga ao tema”
chamou a atenção, fazendo surgir questionamentos acerca dos motivos que
provocaram essa queda de desempenho. Diante desse panorama, este capítulo
tem como objetivo problematizar o número expressivo de fugas ao tema na prova
de 2014, ressaltando-o como decorrente da má compreensão/interpretação da
proposta de redação. Dentro dessa perspectiva, nota-se um reflexo das
dificuldades no ensino de leitura, o que torna necessário fazer algumas
considerações a respeito.

1 O ensino de leitura e seus reflexos na produção escrita

Os PCN atribuem à escola a responsabilidade de formar leitores, tendo


em vista que através da leitura se desenvolve a escrita do aluno. Assim, a
perspectiva de leitura envolve a concepção de linguagem como interação, com o
objetivo de desenvolver a capacidade do leitor e, por conseguinte, as habilidades
de escrita, como podemos confirmar no excerto a seguir:

O trabalho com leitura tem como finalidade a formação de


leitores competentes e, consequentemente, a formação de
escritores, pois a possibilidade de produzir textos eficazes tem sua
origem na prática de leitura, espaço de construção da
intertextualidade e fonte de referências modalizadoras. A leitura,
por um lado, nos fornece a matéria prima para a escrita: o que
escrever. Por outro, contribui para a constituição de modelos:
como escrever. (BRASIL, 1997, p. 40)
52
Essa percepção condiz com a abordagem das Orientações Educacionais
Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+), que
consideram a prática de leitura como processo interativo, como é ressaltado no
tópico Competências e habilidades: “No plano da escrita, espera-se que, durante
a leitura, o aluno interaja com o texto de tal forma que possa produzir respostas a
perguntas formuladas e, assim, consolidar progressivamente seu texto escrito”
(BRASIL, 2002, p. 65).
Tanto os PCN destinados ao Ensino Fundamental (BRASIL, 1997, 1998)
quanto os dedicados ao Ensino Médio (BRASIL, 2000) e o PCN+ (BRASIL, 2002)
sugerem a atividade de leitura interligada à atividade de escrita, como se esta só se
realizasse por intermédio daquela. Apesar disso, por mais que se cultue a
relevância da leitura, não só para o ensino de língua materna, como também para
outras disciplinas, ainda fica a impressão de que a leitura não está sendo
trabalhada adequadamente em sala de aula. E isso fica mais evidente em
resultados de avaliações de larga escala, como podemos notar na prova de redação
do Enem.
Apesar de consistir em uma prova que avalia competências concernentes
à atividade de produção textual, a redação do Enem requer do candidato a leitura
da proposta, que geralmente é composta por um enunciado e três textos
motivadores. Nesse sentido, para chegar à escrita, torna-se necessária a habilidade
de leitura atrelada à atividade de interpretação, exigindo do leitor uma interação
entre seus conhecimentos prévios e estratégias que estão muito além da
decifração das palavras.
Nessa perspectiva, a produção textual do Enem se volta para a noção de
texto como uma atividade interativa, na qual o participante deverá fazer pontes
com as noções linguísticas e sua cultura. Evidencia-se, assim, a importância de o
leitor interligar o texto a seus conhecimentos extralinguísticos, pois a atividade de
leitura se dá por meio da ativação de vivências e experiências que o leitor possui,
havendo, consequentemente, “uma pluralidade de leituras e sentidos em relação
a um mesmo texto” (KOCH; ELIAS, 2011, p.21). De acordo com Solé (1998),
espera-se que o leitor da concepção interacional “seja um crítico, que ele refute,
avalie, dê significado e sentido ao que lê”, pois o ato de ler exige a mobilização de
um conjunto de conhecimentos, uma vez que um texto pode ou não exigir
conhecimento prévio do assunto. Assim, para o leitor compreender o texto, é
necessário lançar mão de seus conhecimentos armazenados na memória e
acionar seu conjunto de saberes.
Porém, a própria concepção de leitura, por vezes, não é devidamente
considerada nas práticas escolares. O texto é usado como pretexto para outras
53
atividades, desprezando a atividade de leitura propriamente dita. Na maioria das
vezes, o texto serve apenas de base para o ensino gramatical ou, quando se
pretende trabalhar a interpretação de textos, a abordagem se limita em extrair
informações objetivas. Quando isso ocorre, a leitura não passa de um processo de
decodificação e perde-se a oportunidade de desenvolver a criticidade do aluno.
Essas noções distorcidas proclamadas no espaço escolar causam o
desinteresse pela leitura. E não é de se admirar o grande número de alunos que
não gostam de ler e apenas leem quando obrigatório os livros didáticos. Estes, por
sua vez, são apontados como um dos elementos responsáveis pelo insucesso do
ensino de leitura por não oferecer, em suas atividades de
compreensão/interpretação, subsídios que auxiliem ao professor no
desenvolvimento das habilidades de leitura dos alunos (cf. MARCUSCHI, 2008;
SANTOS; SILVA, 2015, entre outros).
Dessa maneira, muitos alunos chegam ao final do Ensino Básico sem
desenvolver as habilidades de leitura e escrita necessárias para o acesso ao Ensino
Superior, apresentando muitas dificuldades de interpretação e produção textual.
Logo, a compreensão de uma proposta de redação torna-se uma atividade
complexa e a elaboração de um texto mais complicada ainda, no que diz respeito,
principalmente, ao eixo temático e à construção da argumentação, uma vez que é
imprescindível ter uma bagagem de conhecimento, um repertório sociocultural
produtivo, o que geralmente é adquirido por intermédio de muita leitura.
Em outras palavras, as dificuldades concernentes às habilidades de leitura
podem ocasionar a má interpretação da proposta de redação e,
consequentemente, a fuga ao tema. É sobre os casos de fuga ao tema no Enem,
da edição 2014, que trataremos a seguir.

2 A redação no Enem e a fuga ao tema na edição 2014

De acordo com o Guia do Participante: A redação no Enem 2013


(versão mais recente), disponibilizado no portal do Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a prova de redação solicita “a
produção de um texto em prosa, do tipo dissertativo-argumentativo, sobre um
tema de ordem social, científica, cultural ou política” (Guia do participante).
A fuga ao tema, foco deste capítulo, é uma das razões para se atribuir
nota zero a uma redação. Vale ressaltar que a fuga ao tema ocorre quando o texto
não trata do tema proposto nem do assunto mais amplo vinculado ao eixo
54
temático. O Guia do participante de 2013 esclarece esse aspecto da Matriz de
Avaliação do Enem, utilizando como exemplo o tema da redação do Enem de
2012: “O movimento imigratório para o Brasil no século XXI”.
Nesse tema, o assunto mais amplo é a imigração. Logo, segundo as
explicações do Guia do participante, não fogem ao tema o direcionamento
temático que trate sobre a imigração para o Brasil em geral sem focar no século
XXI, e abordagens a respeito da presença do estrangeiro sem tocar no fenômeno
imigratório para o Brasil. Por apresentarem uma abordagem parcial, nos limites
do assunto mais amplo, essas orientações temáticas configuraram-se como casos
de tangenciamento ao tema, conferindo nota mínima na competência 2 (40
pontos).
De acordo com o Guia, foram consideradas fuga ao tema as redações
que enfocaram apenas acerca de fluxos migratórios dos brasileiros de uma região
para outra, de emigração de brasileiros para o exterior e de êxodo rural e urbano.

Figura 1: Balanço das redações dos participantes (Fonte: Coletiva do Enem 2014)

Os dados divulgados pelo Inep referentes aos resultados da edição 2012


não especificam a quantidade de textos anulados por fuga ao tema. O mesmo
ocorre na edição 2013, cujos dados publicados só mostram o número geral de
textos anulados, sem especificação ou detalhamento da motivação para a nota
zero na redação. Na edição de 2014, os dados não só explicitam a quantidade de
55
textos por razão de anulação, como também ressaltam que a fuga ao tema foi o
maior motivo para a atribuição de nota zero.
Vejamos, inicialmente, o balanço das redações dos participantes
apresentado na coletiva de imprensa do Enem 2014, realizada pelo então Ministro
de Estado da Educação, Cid Gomes, em janeiro de 2015.
A partir dos dados da figura 1, podemos constatar que 8,5% dos
candidatos obtiveram nota zero e somente 0,004% atingiram a nota máxima.
Predominaram notas entre 501 e 600 pontos, demonstrando que maior parte dos
participantes atingiram níveis medianos. Se comparado ao resultado da edição
2013, nota-se uma queda de 9,7% na nota média da redação, como pode ser
observado na figura 2:

Figura 2: Desempenho dos concluintes em 2013 e 2014 (Fonte: Coletiva do Enem 2014).

Ainda que se trate de uma prova que afere as habilidades concernentes a


uma produção textual, o resultado negativo na nota da redação do Enem 2014, em
relação à edição anterior, chamou a atenção de especialistas, mais uma vez, para
o baixo desempenho das habilidades de leitura. Isso porque, dentre os casos que
receberam nota zero, destacou-se o número de fuga ao tema. Para corroborar
essa afirmação, destacamos a tabela da figura 3:
56
Figura 3: Casos de anulação. (Fonte: Coletiva do Enem 2014)

Ao analisarmos a tabela da figura 3, constatamos que o número de


redações com nota zero apresentadas na figura 1 não condiz com o número total
apresentado na tabela que especifica os casos de anulação. Enquanto na figura 1 o
número é 529.374, a soma da tabela da figura 3 é 248.471. Com o intuito de
encontrar o possível equívoco, buscamos analisar outras tabelas da apresentação
da coletiva e pesquisamos nos sites que trazem matérias decorrentes dessa
coletiva, mas não desvendamos a razão dessa diferença, que pode ser um mero
erro de digitação, ou a falta de algum dado. Em virtude disso, optamos por
mostrar apenas o cálculo da porcentagem de cada motivo de anulação.
Por meio desse cálculo, verificamos que, das redações anuladas, 87,47%
são de redações que fugiram ao tema, denotando que há um problema
relacionado à compreensão do tema proposto e, consequentemente, à
interpretação dos textos motivadores, que devem servir de base para o candidato
articular suas ideias e construir sua argumentação.
O Ministro da Educação, em coletiva, afirmou que o tema proposto para a
redação em 2014 não teve uma discussão nacional como o tema de 2013, mas
também ressaltou a necessidade de analisar as causas para a queda do
desempenho, reconhecendo as deficiências do ensino público e a falta do hábito
de leitura dos estudantes.
57
Para um melhor entendimento de como se configurou a na edição 2014,
observemos a proposta de redação:

Figura 4: Proposta de redação Enem 2014.

58
O tema proposto foi “Publicidade Infantil em questão no Brasil”. Logo, a
argumentação deveria girar em torno dos aspectos da publicidade infantil dentro
do contexto brasileiro e da perspectiva apresentada nos textos motivadores.
A proposta é composta por três textos motivadores. O primeiro indica em
que contexto se deve desenvolver a argumentação, ao abordar sobre a resolução,
emitida pelo Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente
(Conanda), que determina como abusiva toda propaganda que, com o propósito
de levar crianças ao consumismo, recorre a aspectos apelativos. O texto também
toca nas controvérsias relacionadas à implementação da resolução, expondo as
opiniões das ONGs de defesa dos direitos das crianças e os setores contrários,
como as empresas e os profissionais do mercado publicitário.
O segundo texto consiste em um infográfico com informações referentes
à publicidade infantil em alguns países do mundo, mostrando as diferentes
maneiras de controlar a publicidade voltada às crianças, indo da
autorregulamentação à proibição. Esse texto acrescenta informações relevantes
para a construção da argumentação, e até mesmo para a elaboração de uma
proposta de intervenção.
O terceiro texto, fragmento do livro intitulado A Criança e o marketing,
também traz subsídios para a elaboração de um ponto de vista e de uma proposta
de intervenção pautada na necessidade de formar consumidores conscientes.
Nesse âmbito, a partir da leitura dos textos motivadores, é possível
depreender que o assunto mais amplo da proposta de redação da edição 2014 é a
publicidade infantil. Por conseguinte, de acordo com o exposto pelos textos
motivadores, o eixo temático se direciona para as propagandas destinadas ao
público infantil, ou seja, para a publicidade que, com o intuito de persuadir as
crianças, apela com a utilização de desenhos animados, bonecos, linguagem e
trilhas sonoras infantis, oferta de prêmios, brindes ou artigos colecionáveis.
Desse modo, fazendo uma analogia com o que foi considerado no
exemplo da edição 2012, citado anteriormente, podemos inferir que se caracteriza
como fuga ao tema: i) o direcionamento temático limitado à publicidade em
geral, sem ligação com o mundo infantil; ii) tratar somente da infância sem
estabelecer uma relação com a publicidade; iii) discutir somente a respeito de
problemas ligados à infância, entre outros enfoques que não relacionem
publicidade e infância.
Diante dessa perspectiva, é aceitável que se encaixem no grupo de
tangenciamento ao tema o direcionamento temático voltado para participação de
crianças no ramo da publicidade, como a exposição de crianças em propagandas,
ou até mesmo a conscientização de crianças com relação ao consumismo.
59
A par do entendimento de que o Enem exige do participante, na
competência 2, a compreensão da proposta temática e a aplicação de um
repertório sociocultural produtivo, isto é, uma argumentação fundamentada em
várias áreas do conhecimento, torna-se imprescindível que, na leitura da proposta,
sejam acionados conhecimentos linguísticos e conhecimentos denominados de
mundo, aqueles interligados com a experiência, adquiridos a partir de interações
sociais, o que demonstra aptidão em adequar o contexto à produção textual
requerida, construindo sentidos.
Todavia, o que ainda se observa é uma grande falha nesse processo de
ensino de leitura e produção textual nas escolas, muitas vezes, enraizado num
ensino descontextualizado, o que pode estar gerando a falta compreensão dos
textos motivadores por parte dos participantes do Enem. Dessa maneira, os
fracassos podem estar relacionados a diversos fatores, desde o processo de ensino-
aprendizagem, especificamente a metodologia adotada na escola, até a própria
falta de interesse dos alunos.
Neste âmbito, é possível citar algumas hipóteses para o alto índice de
redações zeradas por fuga ao tema. Uma delas diz respeito aos problemas no
ensino de leitura, que está intrinsecamente atrelado à escrita. Muitas vezes, a
escola forma o cidadão como um leitor mecânico, não abre o leque de
possibilidades interpretativas, não apresenta estratégias e/ou adota materiais
didáticos que não favorecem a prática de leitura.
Nas séries iniciais, a leitura é colocada como critério de avaliação,
contudo, só costuma levar em consideração o processo de decodificação. Nas
séries posteriores, quando o aluno já domina o código escrito, a leitura é
trabalhada com atividades de compreensão/interpretação textual, no entanto, o
esquema seguido por tais atividades é crítico, destacando-se o uso constante de
perguntas e respostas vazias, seguindo uma literalidade e, igualmente, uma
temporalidade condicionada, mantendo uma regularidade discursiva, afetando no
desenvolvimento da criticidade do aluno que, por vezes, fica preso à prática da
cópia de informações explícitas do texto.
Assim, comumente, desde os primeiros anos de alfabetização, o aluno é
“ensinado” a decodificar, ao invés de ser orientado a interpretar e a fazer conexões
com seus conhecimentos de mundo. Deste modo, fica um estudo restrito à
superficialidade do texto, gerando falhas no processo de ensino-aprendizagem e
ocasionando o não desenvolvimento das habilidades leitoras. Em decorrência
disso, surgem problemas de leitura, como a má interpretação/compreensão da
proposta de redação e de seus respectivos textos motivadores. Sem falar que o

60
candidato acaba se colocando como leitor passivo, ao invés de se posicionar na
construção dos sentidos do texto.
A partir do momento que um participante não tem em sua bagagem
conhecimento sobre o assunto, não consegue interpretar a proposta e não traça
uma linha de conhecimento com os textos motivadores, a probabilidade de fugir
ao tema aumenta. Por esse viés, o participante deve fazer pontes com outras
construções de sentidos e sua bagagem sociocultural deve se fazer presente.
Portanto, como a leitura encabeça a escrita, precisa-se de um participante leitor
para que se tenha uma boa produção textual.

Considerações finais

A prática de produção textual é um dos meios com que o indivíduo utiliza


a linguagem para exercer seu papel de cidadão e está estreitamente ligada à
prática de leitura e compreensão textual. Apesar disso, as metodologias
empregadas em sala de aula nem sempre são suficientes para desenvolver as
habilidades de leitura e de escrita.
Ao observarmos como se constitui a proposta de redação do Enem,
constata-se que a concepção de leitura como atividade de produção de sentido
adotada está vinculada a propostas de outros documentos oficiais da educação,
como os PCN, que servem de base metodológica para o ensino brasileiro. Assim
como os PCN, o Enem não foca nas concepções de língua como representação do
pensamento ou língua como estrutura, nas quais o sujeito se coloca como passivo
desse processo, mas sim na concepção interacional da língua, pois nesta o leitor
se coloca como sujeito ativo, que constrói os sentidos do texto, não somente pela
superfície textual, como também pelos seus conhecimentos adquiridos além dela.
A falta de compreensão da proposta de redação se dá justamente pelo
insucesso no desenvolvimento dessas habilidades de leitura, além da insuficiência
em estabelecer conexões com outras áreas de conhecimento, ou mesmo o menor
grau de bagagem, seja linguística, cognitiva, cultural, de valores, entre outras, que
o participante possui.
Claro que a compreensão do texto se interliga num conjunto, sendo
fatores relativos e individuais que influenciam e interferem na compreensão
global do texto. Se o participante não fizer nenhuma ponte, ou mesmo associar os
textos aos conjuntos de saberes que possui, logicamente, haverá uma implicatura
no resultado, no caso do Enem, a fuga ao tema.

61
A leitura adequada da proposta de redação e a interpretação dos textos
motivadores são essenciais para a subsequente escrita. Por isso, se há uma falha
no processo de leitura, a sua escrita estará, evidentemente, comprometida. E para
que isso não ocorra, é necessário que a escola insira o aluno no mundo dos textos
de maneira real e significativa.
Em vista disso, a escola, o professor e o livro didático devem estar
intrinsecamente aplicados num projeto que trabalhe na perspectiva interacional:
vise o aluno como leitor-interacional, ensine ou proporcione ao aluno o
conhecimento das diversas estratégias de leitura para que se possa fazer uso delas
e tornar-se um leitor eficiente e autônomo. Dentro desta perspectiva de ensino-
aprendizagem, a leitura trabalhada de forma real e significativa, o aluno perceberá
desde a sala de aula, a ampliação de suas visões, o aprofundamento dos saberes,
verá o texto como um campo o qual o leitor atribui sentidos.

Referências
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília: MEC/SEMTEC, 2000.
BRASIL. PCN+ Ensino Médio: Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros
Curriculares Nacionais: Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEMTEC, 2002.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: primeiro e
segundo ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Secretaria de Educação Fundamental.
Brasília: MEC, 1997.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e
quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Secretaria de Educação Fundamental.
Brasília: MEC/SEF, 1998.
KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender os sentidos do texto. São
Paulo: Contexto, 2006.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo:
Parábola Editorial, 2008.
SANTOS, Solange dos; SILVA, Leilane Ramos da. Tipologia de perguntas nas atividades de mediação
para leitura em livros didáticos. In: FREITAG, Raquel Meister Ko.; DAMACENO, Taysa Mércia Souza
Santos. Livro didático – gramática, leitura e ensino de língua portuguesa contribuições para a
prática docente. São Cristóvão: Editora UFS, 2015.
SOLÉ, Isabel. Estratégias de Leitura. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.

62
Argumentação e matriz de
referência do Enem: o espaço da
competência III no livro
didático em Sergipe
Leilane Ramos da Silva
Danillo da Conceição Pereira Silva
Layane Mayara Dantas da Cruz
Nathalia da Silva Paixão

Introdução

À luz de estudos realizados pela Pragmática e, em sentido amplo, pela


Linguística de Texto, buscamos evidenciar a relação entre a matriz para a avaliação
da redação, notadamente a da competência III, relativa à habilidade de o
estudante “selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos,
opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista”, e o modo como o livro
didático mais adotado no Ensino Médio da rede estadual de Sergipe – Coleção
Novas Palavras – tem tratado esta feição argumentativa no Enem.
Para tanto, fez-se uma mescla entre conceitos caros a estudos
pragmáticos, como os que reportam à feição deôntica dos enunciados e aqueles
que tomam a argumentação em seu caráter cognitivo-textual, para dar-se vez ao
estudo da caracterização da competência III da matriz de referência da avaliação
da redação do Enem, entendendo-se esta como a orientação que o candidato deve
seguir para validar seus conhecimentos conteudísticos, linguísticos e interativos
no texto argumentativo para atingir o nível máximo de pontuação, numa escala
mensurável de 0 a 5, na habilidade defender um ponto de vista coerente.
Nesse sentido, o trabalho volta-se para a análise do espaço dedicado ao
estudo da argumentação e para os tipos de atividades relativas ao trabalho com
esse expediente linguístico, nos termos da competência III, e para o modo como
63
tais atividades alicerçam a produção do texto dissertativo-argumentativo do aluno.
A proposta põe em evidência discussões sobre o diálogo (ou não) existente entre o
que preveem os documentos governamentais que legitimam o Enem, o currículo
de língua portuguesa considerado nesse tipo avaliação dos concludentes da
Educação Básica e a concepção de linguagem fortalecida no livro didático em
estudo, a partir do trabalho sobre a argumentação. Apresentado o propósito de
nosso estudo, seguimos com a perspectiva teórica adotada.

1 Linguagem e cognição: argumentação em foco

Tomando a língua como uma instância eminentemente social e, por isso,


interacional, pode-se afirmar que é recorrente a necessidade de elaborar, receber,
avaliar, julgar e posicionar-se ante as diversas ideologias (entendida aqui no seu
sentido lato, como ideia construída) materializadas nos múltiplos
posicionamentos veiculados através de uma infinidade de textos, gêneros e
discursos engendrados nas mais diversas práticas sociais.
“O ato de argumentar, isto é, de orientar o discurso no sentido de
determinadas conclusões constitui o ato linguístico fundamental” (KOCH, 2011, p.
6), uma vez que nenhum uso da língua é isento de ideologia, pois é marcado por
uma intencionalidade. Mesmo aqueles discursos que se propõem não-ideológicos
ou gratuitos estão atravessados pela ideia da sua própria neutralidade que, por sua
vez, é construída com vistas a um determinado objetivo ou intenção. Nesse
sentido, pode-se entrever que a propriedade argumentativa não está estrita
àqueles gêneros do discurso que canonicamente estão ligados às práticas sociais
em que há o intuito expresso de convencimento de uma das partes envolvidas
(locutor/ouvinte), lançando-se mão de uma engenharia textual constituída de
expedientes linguístico-discursivos apropriados para esse fim.
Um dos marcos teóricos que posicionaram os estudos relativos à
argumentação num lugar de destaque na área dos estudos linguísticos foi o
advento da Pragmática, mais especificamente da Teoria dos Atos de Fala, proposta
por Austin (1962) e divulgada por Searle (2002). Tal teoria busca compreender o
que fazemos (atos) quando falamos, entendendo a língua como forma de ação
sobre o mundo, sobre o outro e sobre o próprio discurso. Nessa mesma direção,
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) definem que a argumentação tem como
objetivo produzir ou intensificar a “adesão dos espíritos” às teses (proposições)
apresentadas para apreciação do seu auditório (interlocutor), sendo caracterizada,
portanto, como um ato de persuasão.
64
Para além dos férteis estudos desenvolvidos acerca da argumentação no
campo do conhecimento linguístico, muitos trabalhos têm evidenciado a
amplitude desse processo, como aqueles que têm revelado a relevante
contribuição da argumentação na construção do conhecimento em sala de aula, a
exemplo dos estudos realizados por Leitão (2011), fundamentados numa
compreensão mais ampla dos mecanismos e processos mentais que operam
nesse tipo de atividade e na relevância fundamental destes para a consolidação das
aprendizagens e do exercício da reflexão.
A argumentação é um processo que permeia as mais diversas atividades
que fazem parte da vida humana, seja nas situações mais corriqueiras do
cotidiano, nas interações de caráter profissional ou institucional. Ela não é apenas
uma atividade discursiva da qual os sujeitos eventualmente participam, mas,
sobretudo, uma forma básica de pensamento que permeia a vida cotidiana. Urge
dizer, também, que o engajamento em argumentação desencadeia nos indivíduos
processos cognitivo-discursivos vistos como essências à construção do
conhecimento e exercício da reflexão (cf. LEITÃO, 2011).
Ao envolver-se em atividades argumentativas, graças ao próprio
funcionamento desse tipo de expediente linguístico-discursivo (ARGUMENTO –
CONTRA-ARGUMENTO – RESPOSTA), o indivíduo é conduzido a formular e
estruturar claramente seus pontos de vista, além de ter que responder
coerentemente às oposições postas a eles, partindo de uma revisão de suas
próprias proposições. São esses movimentos cognitivo-discursivos que conferem à
argumentação uma dimensão epistêmica, fazendo dela um mecanismo de
produção/apropriação reflexiva do conhecimento na construção de sentidos.
É justamente durante o momento da “revisão de perspectiva”, que o
indivíduo engajado em argumentação é levado a refletir sobre suas próprias
proposições ante o conteúdo da contra-argumentação. É aí que o trabalho
argumentativo passa de um nível linguístico/cognitivo para um nível
metalinguístico/metacognitivo, uma vez que, além de revisar o conteúdo
proposicional de sua tese inicial (relativa ao objeto da argumentação), faz uma
revisão do próprio ato de linguagem de que lançou mão na situação de interação
em questão. Nesse sentido, o indivíduo, no caso, o aluno, é conduzido a pensar
sobre o tema e a pensar sobre seu próprio pensamento, suas bases, limitações e
estruturação, inclusive linguística (cf. LEITÃO, 2011).
Desse trabalho de revisão do ponto de vista inicial podem resultar quatro
formas de resposta à confrontação produzida por um contra-argumento. Em cada
uma delas operam mecanismos diversos, inclusive no modo como produzem
aprendizagem. De acordo com Leitão (2011), são elas:
65
POSSIBILIDADES DE RESPOSTAS A UM CONTRA-ARGUMENTO
Rejeição
1 direta do contra-argumento por julgá-lo improcedente, preservando seu
ponto de vista inicial.
Apesar
2 de considerar o contra-argumento irrelevante e de manter sua proposição
inicial, o argumentador apresenta novos elementos que reforçam e/ou justificam
a manutenção de sua tese inicial.
Reconhecimento
3 da pertinência (ao menos em parte) do contra-argumento e
integração alguns de seus elementos ao ponto de vista inicial, mantendo-o.
Aceitação
4 integral do contra-argumento e na retirada completa da tese inicial por
parte do proponente.
Quadro 1: Possibilidades de resposta a um contra-argumento (LEITÃO, 2011, p. 27)

Está compreendido à elaboração de qualquer uma das possibilidades de


resposta acima apresentadas o processo em que o argumentador toma seu
próprio argumento (conhecimento) como objeto de reflexão e revisão. Com base
nessa ideia, “mesmo a reafirmação literal de um ponto de vista, em resposta a
uma contra-argumentação, gera aprendizagem e indica um novo estado de
apropriação/entendimento do tema em questão” (LEITÃO, 2011, p. 28).

2 A matriz de avaliação da redação do Enem

O critério de avaliação da redação abrange cinco competências expressas


na matriz do Enem, com o intuito de possibilitar que os participantes realizem
uma reflexão escrita sobre um tema de ordem política, social ou cultural,
produzindo um texto dissertativo-argumentativo em prosa. São as competências:

I. Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da língua


portuguesa.
II. Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das
várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro
dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo em
prosa.
III. Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações,
fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista.
IV. Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos
necessários para a construção da argumentação.

66
V. Elaborar proposta de intervenção para o problema abordado,
respeitando os direitos humanos. (BRASIL, 2014, p.77).

Para análise do corpus toma-se como referência a competência III,


observando de que maneira a condição argumentativa exigida vem sendo
abordada no livro didático em observação.
Para a prova de redação do Enem, o candidato precisa desenvolver um
texto argumentativo que seja coerente. Esta coerência é apresentada num sentido
amplo, diferente dos conceitos tradicionais que apresentam a ideia de ligação de
um conjunto de opiniões ou de fatos cujo resultado é lógico. Em largo sentido, o
termo possui duas funções primordiais: unir elementos formais e informais com
o intuito de construir uma unidade de comunicação; e uma relação com o
contexto no qual o texto foi produzido.
Para dar conta dessas exigências, não basta apresentar os dados,
informações, ou mesmo expor a opinião pessoal, se o candidato não for capaz de
selecionar, dentre estes, aquele que de fato apresenta pertinência com o tema
proposto. Além de uma seleção criteriosa de dados, informações e argumentos, é
primordial saber organizar as ideias a partir do que foi proposto e expor sua
interpretação para a situação-problema em questão, estabelecendo relações
lógicas e coerentes, fazendo a leitura da realidade, a fim de demonstrar seu ponto
de vista.
Diante de tais apontamentos, convém realçar as semelhanças existentes
nas competências II e III da matriz de avaliação do Enem, no que se refere a esta
atividade argumentativa. Enquanto a competência II analisa o aspecto
composicional do texto argumentativo, confere à competência III as estratégias
utilizadas para um ponto de vista persuasivo. Assim, ao utilizar recursos
argumentativos com o objetivo de tornar mais persuasivas as informações e
opiniões acrescidas do próprio tema, o texto elaborado pelo candidato se insere na
terceira competência.
É preciso cuidado para não confundir tais conceitos durante a análise do
corpus, pois ao avaliar os tipos de textos e gêneros textuais que compreendem o
estudo da argumentação, busca-se observar de que maneira o livro didático
trabalha (ou não) a condição argumentativa presente na competência III. É mister
lembrar que o importante nesta competência é a capacidade de compreensão e
interpretação acerca do tema apresentado, e da habilidade de argumentar com
posicionamento persuasivo.
Uma vez caracterizada a competência III da matriz de referência e,
igualmente, delineado o propósito deste estudo, eis a análise realizada.
67
3 O espaço da argumentação no ensino de língua portuguesa:
desbravando a Coleção “Novas Palavras”

Desde a década de noventa do século XX, o ensino de língua portuguesa


no Brasil tem passado por diversas transformações, sobretudo no tocante à
criação e à consolidação de políticas públicas, documentos e outros dispositivos
oficiais que visam caracterizar, estruturar e abalizar as atividades desenvolvidas
nesse âmbito da educação pública. Nessa mesma direção, uma das grandes
preocupações nesse campo é oferecer às escolas e professores um parâmetro
teórico e pedagógico claro para o ensino de língua portuguesa em todo território
nacional.
No tocante ao Ensino Médio, segmento da educação básica no qual se
inscreve o objeto da pesquisa aqui relatada, desde a publicação Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, 1998), uma série de outras
publicações oficiais – Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio –
PCNEM (BRASIL, 2000), as Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio (BRASIL, 2006) e os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio + (BRASIL, 2007) – têm buscado dar conta, dentre outros aspectos, do
sentido, dos objetivos e do currículo do campo, integrante da grande área
“Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”, compreendendo Língua Portuguesa,
Língua Estrangeira Moderna, Artes e Educação Física.
Com o objetivo de aperfeiçoar as habilidades linguísticas dos alunos, que
vêm sendo desenvolvidas desde os anos iniciais do ensino fundamental, é notória
a posição dos documentos relativos ao Ensino Médio acerca da necessidade de se
desenvolver nos estudantes competências linguístico-discursivas relativas à
argumentação. Tais orientações aparecem explicitadas em excertos como o que
destacamos abaixo, presente nos PCNEM. Vejamos:

O confronto de opiniões e pontos de vista fundamentados faz


parte da necessidade de entendimento e superação do achismo.
Procurar a herança do agora, discutindo as diferentes
perspectivas em jogo faz com que professores e alunos
conquistem a possibilidade de rearticular o conhecimento de
forma organizada, sem a imposição de uma única resposta,
sempre imparcial. O debate e o diálogo, as perguntas que
desmontam as frases feitas, a pesquisa, entre outros, seriam
formas de auxiliar o aluno a construir um ponto de vista
articulado sobre o objeto de estudo (BRASIL, 2000, p. 9)

68
Tendo em vista que o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) –
instituído pelo Decreto nº 91.542, de 19 de agosto de 1985 – tem como função
avaliar, indicar, comprar e distribuir livros didáticos para as escolas públicas,
partimos da premissa de que os livros didáticos de Língua Portuguesa que chegam
às escolas e que, na maioria dos contextos de ensino, funcionam como principal
elemento norteador das práticas docentes, devem estar alinhados com o que
preconizam as orientações governamentais para a área.
Destarte, um dos objetivos específicos foi analisar a adequação das
diretrizes adotadas pelos livros didáticos ao conjunto de exigências previstas na
competência III. Para tanto, a primeira atividade desenvolvida foi escolher uma
coleção que contemplasse o plano de trabalho desenvolvido.
A coleção escolhida é “Novas Palavras (Manual do Professor)”, volumes 1,
2 e 3 do Ensino Médio, escrito pelos autores Emília Amaral, Mauro Ferreira,
Ricardo Leite e Severino Antônio. Sendo a segunda edição da FTD Editora, é um
material de divulgação para os professores de língua portuguesa, apresentando
PNLD 2015. Tal livro é, atualmente, o mais adotado pelas escolas da rede pública
de ensino em Sergipe, mediante o constatado em levantamento realizado junto à
seção de distribuição de livros didáticos no sítio do Fundo Nacional de
Desenvolvimento Educacional na internet.
Os volumes possuem uma estrutura tripartida, ou seja, são divididos
em: Literatura, Gramática e Redação e leitura, ocupando espaços separados;
essa divisão é tão marcada que cada disciplina possui uma cor distinta.

3.1 A análise realizada

Para dar início à investigação, fez-se todo o levantamento das questões e


propostas de produção presentes na terceira parte de cada livro didático, intitulada
Redação e leitura.
Nota-se, no volume 1, o trabalho com os gêneros textuais, principalmente
a tirinha de jornal, o anúncio publicitário, as ilustrações (para o ensino da
linguagem verbal e não-verbal), os poemas, a charge, e os gêneros orais, como a
discussão, o debate e a apresentação. Dos dez capítulos existentes, vê-se a
preeminência de tais gêneros presentes nos capítulos 1, 2 e 5 do material; todos
estes trabalhando com gêneros orais (discussão e debate); ressalte-se que o
quinto capítulo, além de abordar a discussão, também apresenta a compreensão
de resumo.

69
Já no capítulo 4 do mesmo exemplar, intitulado “As modalidades
clássicas: descrever, narrar, dissertar”, encontram-se os conceitos básicos da
categoria de produção textual, exemplos através de textos contemporâneos,
literários, e até um trecho de depoimento jornalístico, sem falar nas atividades e
propostas de produção. A abordagem de algumas atividades visa o ponto de vista
do aluno, como no excerto (1):

(1) Qual é a sua opinião sobre o texto lido? Você concorda com
a tese nele defendida? Por quais razões? Dê o seu ponto de
vista sobre o tema, por meio de um texto argumentativo de 15
linhas. Em seguida, leia-o para os colegas e ouça aqueles
produzidos por eles, de modo a:
 Expor e defender seu ponto de vista;
 Conhecer as posições alheias, a fim de reafirmar
e/ou rever suas opiniões, enriquecendo-as o
máximo possível;
 E quanto a este texto? Qual a sua estrutura, o seu
tema e o ponto de vista que defende? (AMARAL et
al., 2013, p. 343).

O texto que precede a proposta (1) discute a relação entre ciência e


espiritualidade, defendendo o ponto de vista de que o ser humano tem
necessidade de ambas. Com isto, o aluno precisa elaborar um texto que tenha
posicionamento crítico e um possível contra-argumento, uma vez que a
dissertação baseia-se numa tese já apresentada. Em relação às habilidades
exigidas na competência III da matriz de avaliação, pode-se dizer que a atividade
concorre para o trabalho argumentativo, pois apresenta informações a serem
selecionadas e argumentadas pelo candidato que, por sua vez, precisa expor um
ponto de vista.
Ainda no capítulo 4, tem-se mais um exemplo do trabalho com as
competências expressas na matriz de avaliação do Enem. A atividade propõe o
trabalho com gêneros orais e escritos, com o objetivo de desenvolver uma
argumentação consistente através da interação em grupo. Tal exercício comporta
exigências concernentes à competência II, pois o aluno é instruído a elaborar um
resumo com a finalidade de convencer a classe sobre o tema proposto.
Destarte, há uma retomada pelos conceitos apresentados no próprio
capítulo, mesclando o uso dos gêneros (textuais e orais) com os tipos de texto
descritivo, narrativo e dissertativo, pois é preciso desenvolver o trabalho em grupo
para elaborar um resumo contendo características das três modalidades estudadas

70
e, através deste, convencer os demais colegas de que o filme apresentado na
atividade está de acordo com o tema exposto, “a ideia de ética”.
Encontra-se no volume 1 uma gradação de conteúdo voltado ao primeiro
ano do ensino médio; exemplo disso está no capítulo 7. Sendo uma continuação
do capítulo anterior, o capítulo 7, “Descrição: subjetiva e objetiva/estática e
dinâmica”, traz os elementos textuais e seus conceitos; apresenta textos literários
e uma reportagem para explicar os tipos de texto descritivo.
As atividades foram elaboradas conforme as competências II e III da
matriz de avaliação do Enem, pois exigem do estudante a aplicação de conceitos
das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites
estruturais do texto dissertativo-argumentativo (competência II), ao passo que
também pede a seleção, interpretação de fatos, opiniões e argumentos em defesa
de um ponto de vista (competência III). Exemplo disso ocorre em (2):

(2) Produção de currículo


Agora, um desafio cuja realização envolve descrição objetiva,
descrição técnica, capacidade de relacionar texto e elementos
contextuais, além de habilidade para convencer e persuadir o
interlocutor, utilizando tanto a linguagem escrita quanto a
oral.
Pense na profissão que gostaria de ter e, em função dela e do
universo em que se insere, elabore um currículo, com o
objetivo de ser aceito como estagiário e qualificar-se para
exercê-la.
Reúna-se com um grupo de colegas e discuta com eles os
currículos elaborados, procurando trocar sugestões e
aperfeiçoar os trabalhos. Em seguida, o grupo deve eleger o
currículo mais interessante, [...](AMARAL et al., 2013, p. 366).

A produção (2) mostra o trabalho desenvolvido com a questão


argumentativa, pois o estudante precisa produzir um texto, o seu próprio
currículo, contendo a aplicação dos conceitos apreendidos em sala e demonstrar
sua capacidade persuasiva através do discurso, com o intuito de ser escolhido
como o mais qualificado.
Ao analisar questões como esta, vê-se que apesar de o volume ensaiar um
trabalho de incitação à reflexão crítica do aluno, com a utilização dos gêneros
textuais escritos e orais, propostas de elaboração de textos dissertativo-
argumentativos, ainda precisa ajustar-se ao que dispõem os documentos
governamentais.
71
Não distante dessa realidade, o volume 2 apresenta uma multiplicidade
de gêneros textuais, classificados em “orais” e “escritos”, sendo perceptível a
preocupação do material em caracterizar cada uma dessas modalidades de uso da
língua em suas especificidades. Nesse intento, tem-se como finalidade desenvolver
no aluno habilidades relativas à apropriação da norma padrão escrita da língua
portuguesa, utilizando-se, sobretudo, de expedientes como a retextualização
escrita de produções orais, provocando no aluno reflexão acerca dos elementos
característicos de cada um desses modos de realização da língua.
Alinhada a essa opção metodológica do manual analisado, figura como
preocupação recorrente a apresentação do clássico modelo de tipologias textuais
(narração, descrição e dissertação), bem como a análise da composição estrutural
de cada um desses tipos e dos diversos gêneros textuais que nele se realizam.
No tocante ao trabalho com o expediente argumentativo da língua e às
competências/habilidades relacionadas a esse processo linguístico-cognitivo, o
livro reitera o que fora constatado no volume 1 da coleção, o enfoque prioritário
sobre os expedientes estruturais-formais do texto, bem como sobre aqueles
situados na superfície textual, a exemplo da seleção lexical e da própria adequação
do registro do texto à norma padrão da língua, como visto em (3):
(3) Reescreva os parágrafos a seguir, procurando adequá-los
ao contexto dissertativo, por meio dos seguintes procedimentos:
 Evitar repetições desnecessárias;
 Substituir palavras ou expressões típicas da oralidade por
recursos linguísticos da variedade padrão;
 Fazer uma revisão gramatical e propor uma recolocação dos
pontos de vista e argumentos apresentados, tendo em vista a
clareza, a coesão e a coerência do texto. (AMARAL et al., 2013,
p. 391)

Diante de tais asserções, é notória a ausência de um diálogo profícuo


entre o que preconiza a matriz curricular da qual emerge o Enem e o volume 2 da
coleção “Novas Palavras”, em especial, no que diz respeito ao trabalho com a
argumentação nos termos da competência III. Em detrimento do engajamento na
abordagem desse tópico, constatou-se a priorização do manejo com habilidades
linguísticas contempladas por outras competências, o que, de todo, não vem a ser
um aspecto negativo do manual, muito embora a carência de uma articulação
destes elementos, com vistas ao desenvolvimento da referida competência, sugira
a ausência de um trabalho sistemático com a produção escrita e a prevalência de
uma visão fragmentária do texto e do próprio engajamento em argumentação.
72
No volume 3 da coleção, destinado à série final do Ensino Médio,
constatou-se que o enfoque do trabalho didático empreendido nas questões gira
em torno de atividades de como levar o aluno a identificar elementos estruturais
do texto dado, que sejam relativos aos aspectos mais estruturais-formais que
perpassam o trabalho com a argumentação, mais especificamente os itens
relativos ao reconhecimento e à construção dos elementos constitutivos da
engenharia dos textos dissertativo-argumentativos (INTRODUÇÃO –
DESENVOLVIMENTO – CONCLUSÃO), alinhando-se ao que prevê a Competência II,
em detrimento do trabalho efetivo com os aspectos pragmático-retóricos do texto
argumentativo, que lhe conferem um potencial persuasivo, graças ao tratamento
linguístico específico de dados, informações, opiniões, construindo assim a
orientação argumentativa do texto. Um exemplo disso é o delineamento adotado
em (4).

(4)
2. Leia atentamente o texto e, em seguida, faça o que se pede.
Pensar já é sustentar-se no vazio. É como nadar ou equilibrar-
se. É um exercício que deve ser aprendido. Uma prática a qual
é necessário iniciar-se por certo, mas sobretudo ser iniciado.
Para pensar é preciso ter aprendido a se sustentar no vazio.
Em outras palavras, é preciso ter podido tomar apoio, pelo
menos uma vez, num outro que já se sustentava no vazio, um
outro que tinha aprendido isso de um outro ainda. É para isso
que serve – vamos ter que dizer no imperfeito? – os mestres.
Fazer o aprendizado de pensar não é, portanto, muito simples.
Trata-se não só de aprender, mas também e sobretudo de
aprender a aprender. Não só de conhecer o que foi aprendido,
mas de deixar o apoio no que foi aprendido do outro. Pois
continuar a se apoiar não seria realmente pensar, já que
pensar é manter-se sem apoio. Ou, em todo caso, unicamente
com a memória do apoio. Logo, é preciso largar esse apoio e, a
partir dali, manter-se. É isso pensar: sustentar-se no vazio,
enquanto a vida durar.
LEBRUN, Jen-Pierre. A perversão comum: viver junto sem o
outro.Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2008.
a) Identifique os trechos que correspondem ao
desenvolvimento e à conclusão, justificando sua resposta.
Escreva uma introdução para esse texto (AMARAL et al., 2013,
p. 312).

Tal constatação sugere uma dificuldade, por parte do material didático, de


estabelecer a devida compreensão dos distanciamentos e aproximações entre
73
dissertação e argumentação, conforme explorado no referencial teórico desta
pesquisa. Embora a “argumentatividade” (KOCH, 2011) seja uma propriedade
inerente a todos os atos linguísticos, visto que nenhum deles é desprovido de
intenção e ideologia, a argumentação é um ato linguístico específico, de caráter
eminentemente cognitivo-discursivo (LEITÃO, 2011, p. 15) e, por isso, carece de
um tratamento didático particular, que vise desenvolver no aluno as competências
e habilidades que lhe permitam produzir um texto persuasivo com eficácia.
No processo de análise dos enunciados e das estruturas das questões
classificadas como relativas ao trabalho com a competência III (19,4%),
constatou-se, ainda, que a maior parte delas estava engajada em solicitar do aluno
ações do tipo “localizar”, “identificar”, “copiar” aspectos argumentativos
presentes nos textos envolvidos nessas questões. Tais ações alinham-se, ainda, a
um tipo de trabalho didático distanciado das perspectivas que preconizam os
documentos oficiais, centrados na tríade uso-reflexão-uso. Vejamos em (5).

(5)
2. Observe que, no terceiro parágrafo, a autora mantém as
estratégias argumentativas presentes no primeiro: o tom
interrogativo e o uso de elementos descritivos.
a) Selecione dois trechos desse parágrafo que retomam o
sentido da expressão “circo midiático”, utilizada no
primeiro parágrafo para caracterizar o ambiente em que
ocorrem os desfiles de moda.
b) Que palavras são utilizadas para contrapor os “perfis
esguios, de longas pernas e ventres torneados” dos
modelos ao mundo das pessoas comuns? (AMARAL et al.,
2013, p. 320).

No que tange à abordagem da Competência III, espera-se que o material


didático centre seus esforços em munir os alunos de estratégias linguístico-
discursivas que confiram às informações disponíveis a ele (seja por meio de textos
motivadores, seja na sua experiência de mundo e repertório sociocultural) um
caráter retórico e persuasivo, tais como os recursos de construção de ideias por
meio de associação ou dissociação, as estratégias de definição, inclusão de partes
no todo, cálculos de probabilidade, ilustrações, analogias, dentre outros artifícios
dessa mesma natureza.
As opções de abordagem didático-metodológicas tomadas pelo material
pedagógico refletem, ainda, uma concepção de língua e, consequentemente, de
texto, um tanto distanciadas do caráter acional e sociointeracional que tais
instâncias têm recebido tanto nos estudos linguísticos mais atuais, quanto nas
74
noções que os documentos oficiais norteadores da educação pública têm adotado.
Desse modo, o livro alinha-se a uma concepção estrutural-formal do texto
argumentativo, o que se reflete, e até certo ponto justifica, sua ênfase nos
expedientes demandados pela competência II e certa confusão de ordem
conceitual e didática ao propor questões de trato mais específico destinado à
argumentação na perspectiva da competência III.
Ao invés de buscar desenvolver no aluno as competências linguísticas que
lhe confeririam habilidades para transformar ideias, fatos, informações e opiniões
em argumentos engajados na defesa de um ponto de vista, o material analisado
reforça procedimentos sem qualquer caráter reflexivo sobre processo
argumentativo, alinhando-se a um tipo de trabalho didático distanciado das
perspectivas que preconizam os Parâmetros Nacionais, centrados na tríade uso-
reflexão-uso.
O gráfico 1 dispõe acerca do espaço dedicado à competência III nas
atividades propostas pelo material analisado ao longo de toda a coleção.

Gráfico 1: Espaço das questões dedicadas à competência III.

Pensando-se numa abordagem pedagogicamente coerente e no que


preconizam os documentos oficiais norteadores do ensino de língua portuguesa,
esperava-se que, numa visão geral da coleção analisada, fosse possível constatar
uma progressão gradativa do trabalho com a argumentação nos volumes,
partindo-se do desenvolvimento de competências e habilidades mais gerais ou
estruturais do texto dissertativo-argumentativo até chegar-se ao manejo de
expedientes relativos à natureza mais profunda do texto, como por exemplo, uma
abordagem que capacitasse o aluno a lançar mão de estratégias argumentativas
centradas no tratamento pragmático, eminentemente cognitivo, dos elementos
75
textuais, articulando “informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um
ponto de vista” (BRASIL, 2014, p. 77).
À revelia de tal expectativa, as análises sugeriram que não há uma
linearidade ou mesmo uma sistematização no que tange ao desenvolvimento das
competências relativas à argumentação nas séries do Ensino Médio, conforme
indica o gráfico. Percebe-se que, entre o volume 1 e 2, há uma discrepância
significativa na prevalência de questões que lidam, especificamente, com a
competência III. Ao invés de uma introdução gradativa e progressiva da
abordagem desse fenômeno linguístico, o que ocorre é uma quebra nessa
dinâmica, tornando-a uma prática assistemática, ao menos no que concerne à sua
disposição no material didático analisado.
O volume 3, destinado à série final da Educação Básica, no tocante ao tipo
de trabalho linguístico implementado, deveria, em tese, ser aquele cujos esforços
didáticos centrassem-se no desenvolvimento de habilidades tidas como mais
complexas, para aquelas que requereriam uma gama de outras habilidades
previamente desenvolvidas nas séries anteriores, como por exemplo,
conhecimentos de ordem pragmática que contribuíssem na engenharia textual
profunda de um gênero argumentativo. A despeita de tais expectativas, o que se
pôde constatar foi uma involução abrupta no nível de trabalho linguístico, em
relação ao volume 2, e uma estagnação nesse mesmo nível, se tomarmos como
parâmetro o volume 1.

Considerações finais

Compreendendo a linguagem como uma realidade acional, por meio da


qual os sujeitos interagem em suas múltiplas relações e práticas sociais, através de
enunciados e textos, sendo-lhes solicitado a todo instante a se posicionar, a julgar,
a avaliar, a confrontar as ideologias veiculadas em enunciados, que se realizam
nos diversos gêneros textuais, torna-se clara a noção de que a argumentação é o
ato de linguagem fundamental, uma vez que todo dizer é dotado de ideologia e
intencionalidade.
Nessa direção, os estudos da Pragmática, que compreendem o uso
linguístico como forma de ação, trouxeram grandes contribuições ao campo de
estudos da argumentação, pondo-o no centro dos estudos linguísticos. A esse fato
soma-se uma gama de trabalhos que visam revelar aspectos ainda mais amplos
desse tipo de expediente linguístico, configurando-o como atividade
eminentemente cognitiva, por isso, forma de pensamento básica e elemento
76
indispensável na consolidação dos processos de aprendizagem, inclusive aqueles
relacionados às competências linguísticas, graças à constante necessidade de
reflexão que sua estrutura demanda.
Contemplada no currículo de língua portuguesa e nos documentos
oficiais que norteiam a educação básica do país, a argumentação figura ainda na
Matriz de Referência para a avaliação da redação do Enem e deveria ter um espaço
substancioso nos livros didáticos de língua portuguesa adotados pelas escolas
públicas, uma vez que estes são avaliados e selecionados, no tocante à sua
adequação aos parâmetros governamentais para o ensino desse componente
curricular, pela Comissão Nacional de Avaliação do Livro Didático do PNLD.
Dentre as cinco competências que formam a Matriz de Referência do
Enem, duas lidam diretamente com argumentação, as competências II e III, tendo
a primeira delas um enfoque mais estrutural-formal na construção do texto
dissertativo-argumentativo, enquanto a segunda alinha-se aos aspectos
pragmático-retóricos do texto, ao tratamento dado às diversas informações ali
presentes e a estratégias várias na construção da orientação argumentativa
enunciado e seu potencial persuasivo.
Diante do que fora exposto na análise do corpus, pudemos entrever alguns
desalinhamentos entre o que preconizam as orientações da matriz de referência,
abalizada pelos documentos oficiais, e o material didático de língua portuguesa
mais adotado na Grande Aracaju. Tais desalinhamentos repercutem de forma
incisiva sobre a formação dos alunos em língua portuguesa, uma vez que
enviesam a compreensão do expediente linguístico relativo à argumentação, bem
como criam um desajuste em relação às perspectivas exigidas no Enem, o que
pode contribuir para o fracasso dos alunos advindos da educação pública em tal
exame, replicando, assim, as discrepâncias sociais que caracterizam a sociedade
brasileira.

Referências

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AMARAL, Emília [et al.]. Novas Palavras: 2º ano. 2. Ed. São Paulo: FTD, 2013b.
AMARAL, Emília [et al.]. Novas Palavras: 3º ano. 2. Ed. São Paulo: FTD, 2013c.
AUSTIN, J. L. Howto do thingswithwords. Oxford: Clarendon Press, 1962.

77
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros
Curriculares Nacionais do Ensino Médio: Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília:
MEC/SEF, 1998.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto.PCN+ Ensino Médio: Orientações
Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais: Linguagens,
códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEMTEC, 2002.
BRASIL, Ministério da Educação. Instituto de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.Exame
Nacional do Ensino Médio 2014 – manual do candidato. Brasília: MEC/Inep, 2014.
BRASIL, Ministério da Educação. Instituto de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.Guia do
Participante: A redação no Enem 2014. Brasília: MEC, 2014.
KOCH, Ingedore G. Villaça. Argumentação e linguagem. 4 ed. São Paulo: Cortez Editora, 2011.
LEITÃO, Selma. O lugar da argumentação na construção do conhecimento em sala de aula. In:
LEITÃO, Selma; DAMIANOVIC, Maria Cristina (orgs.). Argumentação na escola: o conhecimento
em construção. Campinas, SP: Pontes Editores, 2011. pp. 13 – 46.
SEARLE, John. Expressão e significado: estudos da teoria dos atos de fala. (Tradução de Ana
Cecília G. A. de Camargo e Ana Luiza Marcondes Garcia). 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica.
(Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão). 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

78
A produção escrita em processos
seletivos e o desenvolvimento de
competências e capacidades
Aline Malaquias da Silva
Regina Celi Mendes Pereira

Introdução

Costumamos dizer que o contexto de produção escrita dos candidatos ao


Enem e de outros processos seletivos, nos quais é solicitada a elaboração de uma
redação, é o mais desfavorável possível para o sujeito-autor. A compreensão da
escrita como um processo, associada às concepções teórico-metodológicas dos
gêneros textuais e letramentos têm influenciado diretamente nas práticas de
ensino-aprendizagem da produção textual e, exatamente por isso, destacamos a
precariedade das condições de produção onde o candidato é surpreendido por um
tema que, não raro, pode lhe parecer pouco familiar, e sobre o qual tem de
desenvolver, em um tempo cronometrado, um texto coerente, com bom nível de
argumentatividade e de informatividade, e bem estruturado do ponto de vista
linguístico-discursivo.
Neste capítulo, apresentamos a análise da produção textual sob a
perspectiva dos eixos avaliativos propostos pela matriz do Enem, especificamente
os relacionados à Competência IV, referente ao conhecimento dos mecanismos
linguísticos necessários à construção da argumentação. O nosso corpus é
constituído por 22 redações elaboradas por candidatos inscritos no Processo
Seletivo Seriado 2012 da Universidade Federal da Paraíba.1
As reflexões e análises se pautam nos aportes teórico-metodológicos do
Interacionismo Sociodiscursivo (ISD), proposto por Bronckart (1999, 2006, 2008)
e Schneuwly e Dolz (2004), com base nos quais fundamentamos a concepção de

1
Nos limites desse capítulo, selecionamos apenas as ocorrências que focalizam estratégias argumentativas acionadas pelos candidatos
no momento da elaboração.
79
língua(gem) e, particularmente, as noções de folhado textual e das capacidades de
linguagem como eixos estruturantes da análise.
O capítulo encontra-se organizado em duas seções. Na primeira,
discorreremos sobre o conhecimento e ensino de língua(gem) e a sua estreita
relação com o processo de textualização. Sobre esse aspecto, fazemos um paralelo
entre o conhecimento do funcionamento linguístico e o desenvolvimento de
capacidades discursivas e linguístico-discursivas, por estarem mais relacionadas às
estratégias argumentativas postas em funcionamento nas redações dos candidatos.
Nessa perspectiva, o trabalho com o texto em sala de aula implica, entre outras
coisas, o conhecimento e o uso dos elementos gramaticais responsáveis pela
estruturação do texto e seus efeitos de sentido. Na segunda seção, analisamos, à
luz desses pressupostos, as ocorrências localizadas nas redações dos candidatos
evidenciando que o uso eficaz de recursos argumentativos no texto está vinculado
ao desenvolvimento das capacidades linguístico-discursivas, viabilizadas por meio
de um ensino de língua contextualizado. Como conclusão, apontamos algumas
possibilidades de abordagens que podem ser implementadas em sala de aula.

1 Ensino de língua e o desenvolvimento de capacidades

Após cerca de dezesseis anos da publicação dos Parâmetros Curriculares


Nacionais – PCN (BRASIL, 1999), podemos dizer que estamos vivenciando um
período de transição no ensino de Língua Portuguesa, marcado principalmente
pela contradição teórica e metodológica no que se refere à articulação entre as
aulas de produção textual, prioritariamente na perspectiva dos gêneros de texto, e
as aulas de gramática, em um prisma essencialmente classificatório e
prescritivista.
Os PCN, ainda vistos como principal documento direcionador do ensino
de língua tomam, como unidade de ensino, o texto e, como instrumento, o gênero
textual, visando apontar para a formação do aluno-cidadão capaz de reconhecer e
produzir os mais diversos discursos em contextos específicos e adequados de
interação. Dessa forma, as aulas de Língua Portuguesa destinadas à produção
textual já incorporam, considerando as especificidades metodológicas e de
formação de cada professor, a noção de gênero textual e o conhecimento de sua
diversidade como necessários à formação do aluno.
No tocante aos conhecimentos linguísticos, à gramática da língua (ao
longo deste capítulo os tomaremos, por vezes, como sinônimos), há uma
realidade bastante diferente e mesmo sintomática. Embora haja nos PCN também
80
concepções e discussões acerca de um ensino de gramática de base mais reflexiva,
as aulas destinadas a esse enfoque, em sua grande maioria, ainda continuam
fincadas no tradicionalismo, na classificação, na categorização, na gramática
apenas normativa e/ou, essencialmente, teórica (TRAVAGLIA, 2011) e em seus
manuais que legitimam, em muitos casos, o trabalho do professor, devido ao
prestígio e “apreciação” social que há tempos conquistou a variante padrão.
Na perspectiva do ISD, e do próprio uso linguístico, tanto a linguagem
como a língua são compreendidas no quadro de uma socialização da atividade
linguageira humana. Em outras palavras, nesse arcabouço teórico-metodológico,
cada situação de interação linguística revela uma ação de linguagem, na qual
várias diferentes capacidades são mobilizadas para que se materialize um texto.
Bronckart argumenta a necessidade de outros conceitos para o entendimento
desse tipo de agir, sintetizados na citação abaixo:
Chamamos de texto toda a unidade de produção de linguagem
situada, acabada e auto-suficiente (do ponto de vista da ação ou
da comunicação). Na medida em que todo texto se inscreve,
necessariamente, em um conjunto de textos ou em um gênero,
adotamos a expressão gênero de texto em vez de gênero de
discurso (BRONCKART, 2007, p.75. Grifos do autor).

Antes de prosseguirmos, levantando outros pontos para a compreensão


do fenômeno linguageiro que norteia as análises e propostas deste capítulo,
fazemos aqui uma pausa, pela necessidade visível de esclarecer a relação entre a
noção, especificamente, de gênero de texto que estamos expondo e o corpus que
compõe nossa investigação, sob pena de sermos incoerentes às vistas do leitor.
Mesmo sabendo que as produções textuais que fizeram parte de nossas análises, a
saber, textos de candidatos ao Processo Seletivo Seriado 2012 para os cursos de
Letras, Medicina, Administração e Engenharia Civil da Universidade Federal da
Paraíba, surgem de propostas não embasadas na concepção explícita dos gêneros
textuais que fazem parte da esfera social cotidiana, como cartas, editoriais, artigos
de opinião, colunas, entre outros, consideramos a espécie de texto que
manejamos como um gênero textual do domínio escolar: a referida redação.
Chegamos a esse entendimento na medida em que concordamos com o
pensamento de Schneuwly (2004, p. 24), segundo o qual “uma situação só pode
ser concebida, conhecida como situação [...] de ação de linguagem de um certo
tipo, na medida em que um gênero está disponível”. Poderíamos dizer que os
textos desses processos seletivos não constituem uma ação de linguagem? Pelo
contrário, reconhecemos que temos, a partir dos textos investigados, a
81
materialização legítima de uma situação de ação de linguagem a que todo
estudante é exposto e na qual é inserido socialmente se quiser ingressar em
alguma instituição de ensino superior. O candidato protagoniza uma ação, porque
tem para executá-la um motivo (passar no vestibular), uma intenção (falar sobre
a proposta indicada) e as capacidades e representações de que se apropriou sócio-
historicamente acerca do que é produzir um texto para uma comissão avaliadora
de vestibular e do que necessita para isso: normas linguísticas, regras da prova etc.
Assim, as condições de produção interferem diretamente nos elementos da
materialidade textual, que vão demandar, da parte do ISD, uma abordagem
particular e, em alguns aspectos, diferenciada dos parâmetros utilizados pelos
estudiosos da Linguística Textual-Discursiva a exemplo de Jean-Michel Adam,
Ingedore Koch, Luiz Antônio Marcuschi, dentre outros.
A respeito da organização intratextual, Bronckart (1999) propõe a noção
de folhado que consiste na composição textual formada por três camadas inter-
relacionadas e também hierarquicamente dispostas: os mecanismos enunciativos,
na superfície textual; os mecanismos de textualização, fazendo a mediação entre
os níveis das extremidades; e a infraestrutura geral, se situando numa camada
mais profunda, como esclarece o excerto a seguir:
Os mecanismos de textualização, em particular as séries
isotópicas de organizadores e de retomadas nominais,
contribuem para marcar ou “tornar mais visível” a estruturação
do conteúdo temático (plano geral que combina tipos de
discursos e, eventualmente, seqüências); portanto, pressupõem
essa organização mais profunda que chamamos de infra-
estrutura. Quanto aos mecanismos enunciativos, na medida em
que parecem pouco dependentes da linearidade do texto (a
distribuição das modalizações, por exemplo, é quase
independente da progressão do plano de texto), podem ser
considerados como sendo do domínio do nível mais “superficial”,
no sentido de serem mais diretamente relacionados ao tipo de
interação que se estabelece entre o agente-produtor e seus
destinatários. (BRONCKART, 1999, p.119-120. Grifos do autor).

A identificação e reconhecimento dos elementos constitutivos do folhado


vão ajudar no aspecto que é central no quadro teórico do ISD: as mediações
formativas, o desenvolvimento humano e a ênfase em processos didáticos. Nesse
sentido, o conceito referente às capacidades de linguagem ganha destaque na
proposta, uma vez que consegue agregar tanto as condições que antecedem, como
os níveis de organização textual (os discursivos e linguístico-discursivos), sempre

82
procurando mobilizar as capacidades envolvidas na produção textual, ao mesmo
tempo em que procura avaliar aquelas que precisam ser aperfeiçoadas.
Cristovão (2007) enfatiza a importância da noção de capacidades de
linguagem na teoria sociointeracionista, mais precisamente quanto a contextos de
ensino de língua: “No quadro do ISD, considera-se que, em relação à linguagem,
aprender a ler e a produzir textos demanda a aprendizagem de capacidades de
linguagem” (CRISTOVÃO, 2007, p. 262). Estas seriam, basicamente, de três
espécies: as capacidades de ação, as capacidades discursivas e as capacidades
linguístico-discursivas. Vejamos a explicação detalhada da autora sobre essas
noções.
As capacidades de ação possibilitam ao sujeito adaptar sua
produção de linguagem ao contexto de produção, ou melhor, às
representações do ambiente físico, do estatuto social dos
participantes e do lugar social onde se passa a interação.
As capacidades discursivas possibilitam ao sujeito escolher a
infra-estrutura geral de um texto, ou seja, a escolha dos tipos de
discurso e de seqüências textuais, bem como a escolha e
elaboração de conteúdos, que surgem como efeito de um texto já
existente e estímulo para outro que será produzido.
As capacidades lingüístico-discursivas possibilitam ao sujeito
realizar as operações implicadas na produção textual, sendo elas
de quatro tipos: (i) as operações de textualização, que incluem a
conexão, a coesão nominal e a verbal; (ii) os mecanismos
enunciativos de gerenciamento de vozes e modalização; (iii) a
construção de enunciados, oração e período; (iv) e, finalmente, a
escolha de itens lexicais (CRISTOVÃO, 2007, p.263, grifos do
original).

Entende-se, portanto, que, para a consecução de uma ação de linguagem,


o agente teria que mobilizar todas essas diferentes capacidades, íntima e
estreitamente inter-relacionadas. Em outras palavras, ele teria que concretizar as
diversas competências exigidas no Enem.
O que ainda consideramos e gostaríamos de frisar é que estaria no nível
das capacidades linguístico-discursivas (referente à competência IV da prova
nacional), ou seja, de mobilizações de mecanismos linguísticos, a
responsabilidade de dar visibilidade a essa ação. Seria a partir dessa capacidade
em específico que poderia ocorrer a materialização de todo o agir comunicativo ao
outro agente da interação.
Nos limites do que abordamos neste capítulo, tematizaremos apenas as
capacidades discursivas e linguístico-discursivas por estarem mais relacionadas
83
com os indicadores linguísticos que ajudam na construção argumentativa do texto.
Em seguida à delimitação do tema, sobre o qual não vamos nos deter aqui,
apresenta-se como direcionamento aos candidatos a indicação da planificação do
texto e a natureza das sequências tipológicas que entram em sua constituição.
Nesse sentido, o texto dissertativo-argumentativo é o mais solicitado nos exames
seletivos, correspondendo ao modo de organização textual-discursiva do gênero
redação escolar.
Bronckart (1999), com base em Adam (1992), classifica as sequências
em narrativa, argumentativa, descritiva, explicativa e dialogal; a essas acrescenta a
injuntiva, e as descreve de acordo com suas respectivas estruturas típicas. As
sequências argumentativas, as quais são predominantes no gênero redação, são
estruturadas por Bronckart em quatro fases: premissa, apresentação de
argumentos, apresentação de contra-argumentos e a fase de conclusão ou de nova
fase.
O uso das operações de linguagem correspondentes às tipologias localiza-
se no domínio das capacidades discursivas e, a essas, incorporam-se os elementos
de natureza linguístico-discursivas responsáveis pelo estabelecimento da coerência
temática, pragmática e pelo encadeamento hierárquico e linear no nível da
textualização propriamente dita.
Na figura 1, procuramos evidenciar a relação entre as capacidades e os
elementos do folhado textual, que nos ajudarão a perceber a relação evidente
entre uma produção textual e os conhecimentos linguísticos a ela vinculados.

Figura 1: Relação entre as capacidades de linguagem e os níveis do folhado.

84
Percebemos que os mecanismos de textualização abarcam, como um
todo, o nível do folhado textual que tanto nos instiga na leitura de textos com
dificuldades de textualização, as quais, por sua vez, acarretam problemas de
organização argumentativa. Os processos de coesão e coerência, progressão
argumentativa se intercalam a todo o momento indicando uma das capacidades
linguístico-discursivas implicadas no processo de produção textual e que, em
nosso entendimento, claramente se interligam à competência IV avaliada pelo
Enem.
Nesse sentido, selecionamos apenas as ocorrências mais relacionadas ao
desenvolvimento dessas capacidades, focalizando as operações que possibilitam a
planificação do texto e a instauração das relações de conexão, continuidade e/ou
de ruptura entre as fases da sequência argumentativa.

2 Leitura e análise das ocorrências do corpus

As produções textuais aqui analisadas foram elaboradas durante o


Processo Seletivo Seriado 2012 da Universidade Federal da Paraíba e tiveram como
parâmetros para a ação de linguagem as seguintes diretrizes: um texto de opinião
em prosa entre doze e quinze linhas, o uso da norma-padrão escrita e fidelidade
ao tema e gênero propostos. Tratava-se de um texto dissertativo-argumentativo
sobre “a questão ética do cumprimento da palavra dada”.
As produções de diferentes cursos (especificamente Letras e Medicina, os
quais evidenciaram a temática empreendida aqui) estão identificada por letras e
números para que possamos ter mais facilidade de referenciá-los. Por exemplo:
M1 será utilizado para a primeira produção textual analisada do curso de
Medicina; L2 para a segunda produção textual analisada do curso de Letras, e
assim sucessivamente.

2.1 Ocorrências de demarcação/balizamento

Nesta subcategoria, elencamos a produção textual de um candidato ao


curso de Letras para evidenciar as marcas de textualização que foram utilizadas
para indicar ou não a passagem entre as fases da sequência argumentativa.
Observamos como foi organizado o plano geral e a planificação dele em
premissas, argumentações, contra-argumentações e conclusões.

85
PRODUÇÃO TEXTUAL REFERENTE AO CURSO DE LETRAS – L2

Percebemos, ao longo do segundo e do terceiro parágrafo, que fica clara a


necessidade do candidato de deixar bem demarcadas as fases da sequência
argumentativa. No entanto, o léxico utilizado para marcar as operações de
demarcação e balizamento, principalmente no segundo parágrafo, gerou uma
certa incoerência na organização argumentativa do texto: “em termos de
conversas”; “Em contorno de tudo”; “Ao finalizar tudo isso”.
A partir de Antunes (2012), onde encontramos um estudo sobre o léxico
e sua função de propiciar coesão, coerência, expressão e estética em textos,
reconhecemos a intenção que tem o candidato no uso desses vocábulos2 iniciando
as fases. As marcas de textualização “em contorno de tudo” e “ao finalizar tudo
isso”, por exemplo, procuram indicar o término do texto, o que prejudica a
demarcação porque acontece duas vezes, mas em fases diferentes. Se pensarmos
nisso em relação ao que é avaliado referente à competência IV, temos inadequação
vocabular e até mesmo dificuldade em articular as fases de uma sequência
argumentativa. A demarcação esteve, como dissemos, fortemente enfatizada, mas
recuperando vocábulos que podem não se adequar à situação de ação e, mais
especificamente, à textualização empreendida. Como ainda pontua Antunes,

2
Antunes (2012) estabelece uma distinção entre os termos e . Já que mencionamos o estudo e ele, de alguma
maneira, não vai de encontro com o suporte teórico que adotamos, decidimos manter a designação da autora a fim de sermos
coerentes com a sua contribuição aqui. “Uma das distinções refere-se, primeiro, à palavra enquanto da
língua – designada com o termo – e, segundo, à palavra – designada com o termo
” (ANTUNES, 2012, p.51). A autora esclarece, mais adiante, um outro aspecto com o qual concordamos: “Meu interesse (...)
é deter-me, mais especificamente, em questões relacionadas aos vocábulos, ou seja, às palavras que entram na composição de
determinado texto. As funções dessas palavras na arquitetura do texto são, pois, o foco deste trabalho, com o intuito maior de trazer
outras perspectivas para as atividades de ensino da língua”. (ANTUNES, 2012, p.52)
86
as palavras que ocorrem em um texto não cumprem apenas a
função de “significar”; elas não são relevantes, apenas, porque
carregam um determinado significado. São parte constitutiva de
uma armação que dá sustentação à unidade do texto e, portanto,
interferem em sua coerência. (ANTUNES, 2012, p.66. Grifo da
autora)

2.2 Ocorrências de empacotamento

No caso a seguir, advindo também de um candidato ao curso de Letras,


observamos que o organizador textual em foco estava funcionando (ou deixando
de funcionar) para marcar a integração de frases sintáticas dentro de uma mesma
fase da sequência argumentativa (a premissa, por exemplo). Vejamos a adequação
ou a inadequação desse uso, tendo como referência o plano geral implementado
pelo candidato.
PRODUÇÃO TEXTUAL REFERENTE AO CURSO DE LETRAS – L1

Com relação ao organizador textual “por isso”, em destaque, no segundo


parágrafo, duas questões: primeiro, ele está indicando uma integração sintático-
semântica entre o período anterior e o que contém a conjunção; segundo, ele está
em um novo parágrafo. Entendamos que não há regra que diga quantos
parágrafos devem ser reservados para a premissa, quantos para a argumentação e
quantos para as outras fases de uma sequência argumentativa. Entretanto, levan-
do em conta o pouco espaço que o candidato tem à disposição para a realização de
sua produção e o fato de ele ter como “traje” linguístico o “gênero escolar”,
percebe-se que ele fez uso de três parágrafos que equivaleriam às seguintes fases:
premissa, argumentação e conclusão. Nesse raciocínio, entendemos que o “por
isso” inicia a nova fase da sequência, a argumentação, ao mesmo tempo em que
estabelece estreita ligação com o período anterior, a premissa.
87
Essas duas funcionalidades ficaram marcadas no organizador textual,
promovendo uma inadequação na progressão temática e uma quebra na
textualização. Embora entendamos que o candidato ainda esteja falando sobre o
período anterior, a textualização com novo parágrafo causou uma espécie de
ruído, já que a fase anterior da sequência argumentativa não havia sido
terminada. Em outras palavras, enquanto a infraestrutura (parágrafos) indica o
aparecimento de uma nova informação, uma nova fase na sequência (o que seria
caso de demarcação), o que se tem, em contradição, é uma segmentação da
continuidade temática. Considerando, portanto, que a proposta pede ao candidato
que construa um texto de opinião que se constitui em uma sequência
argumentativa, a ação do candidato foi realizada sim, na medida em que ele criou
um plano geral sob o qual pôde dissertar sobre o assunto, mas com algumas
quebras na organização, na conexão escrita.
Outro destaque feito na produção foi sobre a conjunção “porém” e a
vírgula que a antecede. A partir do mesmo entendimento construído na análise
acima, observamos que a vírgula está indicando um caso que o ISD chama de
ligação, ou seja, uma articulação sintática por coordenação entre as duas frases –
a que começa com “por isso” e a que começa com “porém”. A questão que
levantamos aqui é o que o candidato parece realizar não essa ligação, mas um
empacotamento mesmo, ou seja, apenas a integração de frases sintáticas na
argumentação. Vejamos, primeiramente, que essa nova frase sintática é iniciada
por essa conjunção adversativa, indicando uma relação de oposição com algum
segmento antecedente. Em segundo lugar, cabe perceber que o candidato coloca,
nessa segunda frase, e, em específico, com a retomada “esse pacto”, uma
informação que não se contrapõe exatamente à frase anterior de que as pessoas
preferem não prometer, mas sim à primeira que traz a assertiva de que “quando
se promete algo é como assinar uma sentença”, ou seja, é como ter um
compromisso com uma outra pessoa.
Dessa forma, há ruídos de textualização ocasionados pela tentativa de
ligar segmentos textuais que, na verdade, sintaticamente não necessitam desse
tipo de organização próxima ou, ao contrário, tentativa de desconectar segmentos
que se encontram vinculados.

2.3 Ocorrências de encaixamento

Paralelamente ao caso de ligação, nesta subcategoria, exemplificamos o


texto de um candidato ao curso de Medicina, em que se cria uma integração por

88
subordinação entre frases sintáticas de uma mesma frase gráfica complexa3,
aspecto também avaliado frente à competência IV requerida no Enem.
Verificaremos, portanto, os mecanismos que são utilizados ou que deixam de ser
utilizados para marcar esse tipo de articulação, em textos, chamada de
encaixamento.

PRODUÇÃO TEXTUAL REFERENTE AO CURSO DE MEDICINA – M2

Vejamos, na penúltima linha, que há uma oração reduzida de gerúndio


ao final do texto “Ajudando para a sociedade através de pequenos atos” isolada
pelo ponto final, ou seja, que perdeu a conexão que deveria manter com a frase
sintática anterior de quem é subordinada “isso é algo que cada um constrói”.
Segundo Bechara (2009, p.523-524), na Língua Portuguesa, a oração
reduzida de gerúndio pode denotar “causa”, “consecução”, “concessão”,
“condição”, “modo, meio, instrumento” e “tempo”. No destaque da redação
acima, por exemplo, a reduzida dá à estrutura complexa uma circunstância de
tempo (“quando ajuda para a sociedade através de pequenos atos”) ou de modo
(“ao ajudar para a sociedade através de pequenos atos”), uma equivalência
adverbial que não poderia se estabelecer sozinha, independente como frase gráfica
simples.
Essa ocorrência, então, permite que observemos e comprovemos um dos
grandes truncamentos sintáticos, organizacionais de textos de candidatos, de
alunos egressos do Ensino Médio. Se, por um lado, isso nos aponta uma
dificuldade, exige-nos, por outro, propostas didáticas para melhor auxiliá-los na
construção argumentativa de suas próprias ações de linguagem.

3
Termo utilizado pelo próprio autor em seu livro “Atividade de linguagem, textos e discursos”: “d) as subordinativas ou conjunções de
subordinação ( etc.), que encaixam frases sintáticas em uma frase gráfica complexa” (BRONCKART,
1999, p.266). Seriam as orações e os períodos, respectivamente, segundo a gramática teórica.
89
2.4 Ocorrências de ligação

Nesta subcategoria, veremos na redação de um candidato ao curso de


Medicina, como foram implementados os mecanismos linguísticos de uma
integração sintática por coordenação, entre frases de um mesmo período (frase
gráfica, segundo Bronckart). No entanto, ampliando a definição da subcategoria
pelo ISD, observaremos as relações de ligação também em um nível intrafrasal,
pois, de alguma maneira, casos dessa natureza demonstraram formas de
textualização mesmo na microssintaxe. Bronckart (1999, p.264) nos permite essa
reorganização a partir do momento em que revela que “os mecanismos de
conexão explicitam, portanto, as relações existentes entre os diferentes níveis de
organização de um texto [...] da estrutura textual global às estruturas frasais
singulares”. Vejamos, abaixo, como esse acréscimo teórico, por exemplo, foi
vivenciado como mecanismo de ligação. Analisaremos, ainda, como a pontuação
foi implementada pelo candidato em seu texto, funcionando ou não como recurso
de conexão entre as frases sintáticas no período.
Atentando agora para os casos originais da subcategoria, observamos que
o uso das vírgulas destacadas para iniciar frases, como “promessas ditas eram
promessas feitas e cumpridas”, “a sociedade não questiona os valores...”, “creio
que se o país...”, apresenta dois aspectos importantes: o primeiro, a percepção de
que ele, em momentos, dá ao texto um fluxo contínuo de progressão temática, o
que pode prejudicar o plano geral; o segundo, o fato de poder funcionar como
substituto de uma conjunção, na textualidade, estabelecendo sim uma ligação
entre as frases sintáticas, porém sem explicitação do sentido colocado
(adversidade, adição, conclusão, explicação, alternância, entre outros). É
exatamente isso que observamos nesta produção: o candidato insere informações
que se relacionam com as dos segmentos anteriores e insere a vírgula como
organizador textual dessa relação, mas sem explicitar as ideias de explicação
(“pois as promessas ditas...”; “pois a sociedade...”) e adição (“e creio...”),
implícitas na integração.
Não há, aqui, uma dificuldade aparente, pelo contrário, houve conexão
coerente entre as frases sintáticas, mas fica perceptível, por exemplo, que as
conjunções nesta redação têm pouco espaço, sendo elas, por natureza, de forte
poder argumentativo. Por também imprimirmos neste trabalho um olhar
propositivo, chamamos atenção para o fato de que, em ocorrências como essa, há
um momento bastante propício para se discutir, por exemplo, a diferença entre
uma conexão feita por vírgulas e uma conexão feita por conjunções explícitas,

90
analisando os efeitos de sentido decorrentes desse uso. Há a oportunidade,
portanto, de um trabalho com uma gramática reflexiva.

PRODUÇÃO TEXTUAL REFERENTE AO CURSO DE MEDICINA – M1

Aqui, por exemplo, conseguimos recuperar o sentido impresso na ligação,


mas, em outros casos, poderia haver ambiguidade na leitura, pelo fato do agente
não proporcionar instruções de sentido mais direcionadas. Casos como esse são
muito evidentes e comuns nos vestibulares e mesmo entre alunos de ensino
regular. Encontrá-los no nosso corpus nos permite tanto um tratamento
propositivo desses dados quanto uma discussão sobre como realmente os
candidatos buscar marcar argumentativamente seus textos.

Considerações finais: algumas propostas

Comecemos propondo uma intervenção à ocorrência da redação M1,


última analisada na ordem da conexão por ligação, realizada apenas por vírgula
sem remissão a nenhuma conjunção. Uma atividade viável a ser desenvolvida, a
partir de uma produção textual como essa em que não há muito espaço para
conectivos, seria a que promovesse uma reflexão sobre esses diversos tipos de
conexão possíveis e seus diferentes efeitos de sentido, de ênfase e de intenção nas
ações de linguagem.
91
As questões que elaboramos, tendo por base a própria redação M1, e que
tem como atividade final sua possível reescrita, buscam promover a observação
dos efeitos de sentido que cada possível recurso linguístico pode imprimir na
argumentação.

QUESTÕES DA ATIVIDADE 3

Percebemos que uma atividade dessa natureza não exige conhecimentos


da gramática teórica ortodoxa. A metalinguagem utilizada até aqui serviu apenas
de suporte para o que a questão precisava veicular.
A fim de trabalhar os diversos recursos de que a língua dispõe para
estabelecer a conexão, pensamos em uma primeira questão que chamasse
atenção do aluno para vínculos semânticos que existem entre estruturas; uma
segunda questão que o fizesse refletir que cada recurso de conexão textual tem
força argumentativa e ressonância na estrutura textual diferentes; e, por fim, uma
última questão que o fizesse perceber que a escolha precisa estar relacionada com
o contexto de produção e mesmo com a intenção do agente.
Passamos agora a uma proposta de atividade que também focaliza
mecanismos linguísticos na ordem da conexão, mas por encaixamento
(subordinação), já na macrossintaxe, quando, por exemplo, são utilizadas
reduzidas de gerúndio, de infinitivo ou mesmo as subordinadas condicionais.
Verificamos, na análise, que o candidato quebra a articulação sintática de períodos
formados por orações desse tipo pelo uso de um ponto final. Não sabendo ao certo
qual motivo leva a essa inadequação, entendemos que ele perde a ideia de
conexão semântica que há entre as estruturas e é nesse viés que buscaremos
desenvolver as atividades de cunho epilinguístico.
Vejamos uma situação de ação de linguagem comum que poderia iniciar
a abordagem.
92
TEXTO DA ATIVIDADE 7

O que pretendemos com esse tipo de texto é fomentar a percepção do


aluno de que há uma instrução de sentido que a primeira oração imprime na
manchete como um todo. Para tanto, compreendemos que as questões que
poderiam ser trabalhadas em grupo, individualmente ou partilhadas na sala
deveriam focalizar a gramática reflexiva, para que fossem percebidos os
diferentes efeitos de sentido das estruturas, a gramática teórica, a fim de se
chegar à inferência da regra, mas também a gramática normativa, para se
perceber a necessidade de utilização da norma em determinadas circunstâncias e
com que força de sentido. Temos, abaixo, sugestões de perguntas que poderiam
ser construídas.

QUESTÕES DA ATIVIDADE 7

Tivemos três objetivos em mente para abordar a dificuldade do candidato.


Assim, a primeira questão visou promover o reconhecimento de que as orações
reduzidas e mesmo as adverbiais são tipos de recursos utilizados para marcar
circunstância nos textos. A segunda, por sua vez, buscou desenvolver a
93
compreensão das diferentes instruções de sentido que essas orações podem
imputar aos textos. E a terceira permite que os alunos de Ensino Médio percebam
que há conexão entre as duas orações e que ela é marcada linguisticamente pela
vírgula.
Após esse exercício, o interessante é que o aluno seja direcionado a voltar
à própria produção e observar o mesmo fenômeno, justificando a necessidade ou
não de reescrita.
Conforme apresentamos na introdução deste capítulo, estas seriam
algumas possibilidades de abordagens a serem implementadas em sala de aula.
Não pretendemos ser exaustivas nem propor modelos de atividades, mas provocar
a reflexão sobre problemas enfrentados por alunos egressos do nível médio na
elaboração de textos em processos seletivos. Certamente, são questões que não se
limitam a esses contextos de avaliação e dizem respeito ao ensino de língua de
modo mais geral. Reconhecemos que o desenvolvimento das competências
avaliadas no Enem, em especial aquela de que tratamos aqui, seja viabilizado por
práticas de produção textual que contemplem o estreito entrelaçamento entre
ensino de língua e desenvolvimento de capacidades de linguagem (ação,
discursiva e linguístico-discursiva).

Referências
ANTUNES, I. Território das palavras: estudo do léxico em sala de aula. São Paulo: Parábola
Editorial, 2012.
BRASIL, Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN – terceiro e quarto
ciclos do ensino fundamental: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1999.
BECHARA, I. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
BRONCKART, Jean-Paul. Atividades de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo
sócio-discursivo. 2. ed. São Paulo: EDUC, 1999.
BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano.
Organizado por Anna Raquel Machado e Maria de Lourdes M. Matencio. Campinas, SP: Mercado de
Letras, 2006.
BRONCKART, Jean-Paul. O agir nos discursos: das concepções teóricas às concepções dos
trabalhadores. São Campinas: Mercado de Letras, 2008.
CRISTOVÃO, Vera Lúcia L. Procedimentos de análise e interpretação em textos de avaliação. In:
GUIMARÃES, Ana Maria de Mattos; MACHADO, Anna Rachel; COUTINHO, Antónia (Orgs.). O
Interacionismo sociodiscursivo: questões epistemológicas e metodológicas. Campinas: Mercado
de Letras, 2007, p. 77-97.
LEITÃO, Poliana Dayse Vasconcelos; PEREIRA, Regina Celi Mendes. Como as diferentes áreas de
conhecimento concebem o fazer científico. In: PEREIRA, R.C. M. (Org.). Ateliê de Gêneros
Acadêmicos: didatização e construção de saberes. João Pessoa: Ideia, 2014, p.17-88.
94
PEREIRA, R.C. M. (Org.) Nas Trilhas do ISD: práticas de ensino-aprendizagem da escrita.
Campinas: Pontes, 2012.
SCHNEUWLY, Bernard e DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. [Tradução e
organização de Roxane Rojo e Glaís S. Cordeiro]. Campinas: Mercado de Letras, 2004.
TRAVAGLIA, L. Gramática ensino plural. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2011 [2003].

95
96
Exercício da cidadania e
direitos humanos: as funções da
competência V na redação do
Enem
Ricardo Nascimento Abreu

Introdução

O Enem, não somente como parte de uma política pública de avaliação da


Educação Básica no Brasil, mas também como porta de acesso ao Ensino Superior
da maioria das universidades públicas, possui, inquestionavelmente, o mérito de
fazer convergir políticas e práticas educacionais em torno dos principais
documentos norteadores da Educação brasileira. Assim, vivenciamos um tempo
no qual os discursos contidos nos documentos, tais quais a Constituição Federal
de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e nos instrumentos de
caráter não-vinculante, a exemplo dos Parâmetros Curriculares Nacionais e das
Orientações Curriculares para o Ensino Médio, têm sido revisitados com o fito de
alinhar os currículos e programas das disciplinas ministradas nas escolas públicas
e privadas do país.
A redação do Enem, vista como outro aspecto digno de destaque no bojo
desta política, tem se apresentado como um novo paradigma de concepção do
gênero redação escolar, impactando diretamente nos modos de conceber o ensino
da produção e da recepção textual e na avaliação dos textos produzidos não
somente pelos alunos, ao longo da jornada escolar, mas também pelos candidatos
que se submetem ao exame.
A formulação de uma matriz de competências para fins de avaliação dos
textos do Enem, a despeito de quaisquer limitações que possua, figura, por um
lado, como um instrumento que tem o condão de, a um só tempo, dar conta das
demandas exigíveis pelas concepções linguísticas contidas nos documentos oficiais
que regulam a Educação e o ensino de língua portuguesa – competências I a IV.
Por outro lado, através da exigência de elaboração de uma proposta de intervenção
97
sobre uma problemática contemporânea da realidade brasileira ou internacional,
constitui-se como um eficaz modelo de verificação de um dos maiores objetivos da
Educação Nacional, expressamente contido na Constituição Federal de 1988, qual
seja, a preparação do indivíduo para o exercício da cidadania – competência V.
Sobre esta questão, não nos custa relembrar o que nos diz o texto do diploma
magno.
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da
família, será promovida e incentivada com a colaboração da
sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para
o trabalho. (Grifos nossos) (BRASIL, 1988, 94).

Ao recepcionarmos a noção moderna de cidadania, não há como


desvincularmos o alcance deste conceito de pelo menos três aspectos cruciais da
sua materialização no indivíduo: a percepção de ser, ele mesmo, um sujeito de
direitos; a consciência de possuir responsabilidades junto ao tecido social e, por
fim, o respeito à existência do outro, ou seja, o reconhecimento da dignidade da
pessoa humana e a existência dos Direitos Humanos. Na redação do Enem, o
respeito aos Direitos Humanos é item de observação obrigatória, estando passível
de eliminação o candidato que elaborar proposta de intervenção que contenha,
em seu bojo, ideias que firam ou desrespeitem tais direitos.
Neste texto, discorremos acerca das peculiaridades da competência V,
constante na matriz de avaliação das redações do Enem, elucidando a necessária
relação que há entre esta competência, a formação do cidadão como um dos
objetivos fulcrais da Educação Nacional e a responsabilidade da escola na
formação de um indivíduo capaz de se enxergar como parte de uma sociedade
multicultural e multiétnica que tem como um dos seus princípios fundamentais a
dignidade da pessoa humana e que objetiva promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.

1 Os paradigmas da conclusão-solução e da avaliação da


competência V na redação do Enem
Não há como negar que o advento da prova de redação do Enem gerou
uma intensa movimentação nos modos de avaliar e conceber a produção do
gênero redação escolar. Especialmente no que diz respeito ao paradigma da
avaliação, a elaboração de uma matriz de competências que serve de referência
98
trouxe critérios mais objetivos para os candidatos e para os avaliadores envolvidos
num processo subjetivo de avaliação de textos em massa que precisa contar com o
máximo de precisão e transparência em sua execução.
A redação do Enem tem o mérito, dessa forma, de elaborar um
instrumento que unificou nacionalmente o olhar avaliativo sobre este tipo de
texto, bem como serviu de guia para que os professores possam executar um
planejamento de preparação dos seus alunos para esta decisiva etapa de suas
vidas.
Quando falamos em mudança de paradigmas, não podemos deixar de
apontar para uma das maiores revoluções neste sentido, em relação à redação do
Enem, que foi a exigência de elaboração de uma proposta de intervenção para o
problema abordado, respeitando os Direitos Humanos. Esta forma de concluir, a
qual Viana (2011) chama de conclusão-solução, veio acabar com o longevo
reinado do paradigma da chamada conclusão-síntese, na qual alguns elementos
utilizados durante a tessitura do processo argumentativo eram retomados como
forma de reafirmar os argumentos do autor.

A proposta de intervenção precisa ser detalhada de modo a


permitir ao leitor o julgamento sobre sua exequibilidade,
portanto, deve conter a exposição da intervenção sugerida e o
detalhamento dos meios para realizá-la. A proposta deve, ainda,
refletir os conhecimentos de mundo de quem a redige, e a
coerência da argumentação será um dos aspectos decisivos no
processo de avaliação. É necessário que ela respeite os direitos
humanos, que não rompa com valores como cidadania,
liberdade, solidariedade e diversidade cultural. (BRASIL, 2013, p.
22)

A conclusão-solução exige que o candidato extrapole a simples


reordenação de argumentos já elaborados ao longo do texto e que, diante de um
quadro socialmente complexo, seja capaz de propor uma intervenção que
demonstre não apenas criatividade, mas principalmente engajamento social e
respeito aos valores humanos.
Passaremos a discutir como estes aspectos de importância crucial para o
bom enfrentamento da competência V da redação do Enem são concebidos no
bojo do processo educacional brasileiro, bem como quais são as fontes através das
quais o Ministério da Educação, através do INEP, baliza o seu entendimento acerca
do que pode ser considerado respeito aos direitos humanos. Por estes vieses, a
competência V da redação do Enem agiganta-se em importância, pois revela-se
um instrumento de aferição do processo escolar em um dos seus princípios
99
fundamentais, qual seja, a formação do cidadão socialmente engajado com os
problemas que afetam o Estado e os seus semelhantes.

2 A competência V e o exercício da cidadania

A Lei 9.394/96, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação


Nacional, logo no seu primeiro artigo, define a educação como resultado dos
processos formativos que se desenvolvem em múltiplas esferas, tais quais a
família, as organizações da sociedade civil, nas mais variadas manifestações
culturais e nas instituições de ensino e pesquisa. Aponta também para o fato de
que seu alcance regulatório se dará no âmbito da educação escolar desenvolvida
em instituições próprias.
Vista como um processo complexo e que se materializa em várias esferas
da sociedade, a educação tem por finalidade o desenvolvimento pleno do
educando, seu preparo para o exercício da cidadania e a sua qualificação para o
trabalho. Estes objetivos devem ser perseguidos pela família e pelo Estado em
colaboração com a sociedade.
Nesta moldura, o Estado figura como responsável por ofertar ensino em
estabelecimentos próprios para tal fim e deve, também, avaliar a educação escolar
para verificar se os seus objetivos, definidos na Constituição Federal e na LDB,
estão sendo efetivamente concretizados.
Se o objetivo precípuo deste texto fosse exclusivamente nos debruçarmos
sobre aspectos da avaliação da Educação Básica no Brasil, seríamos capazes de
elencar diversos instrumentos aplicados pelo Estado para verificação da qualidade
do ensino no país. Perceberíamos que a maioria destes instrumentos é bastante
eficaz em avaliar o desenvolvimento de competências e habilidades intimamente
relacionadas com os conhecimentos ministrados aos alunos nas disciplinas
escolares. A redação do Enem, entretanto, figura como um instrumento avaliativo
que transcende a mera aferição de conteúdos adquiridos em uma ou outra
disciplina escolar de forma compartimentada. Através da exigência de que o
candidato elabore, em seu texto, uma proposta de intervenção para o problema
abordado, que respeite os Direitos Humanos, a redação do Enem passa a ser vista
como o único instrumento avaliativo capaz de aferir, de forma direta, o quão bem
sucedidos foram a família, o Estado e a sociedade na consecução do objetivo
constitucional de formar pessoas preparadas para o exercício pleno da cidadania.
Longe de almejar ser unicamente um texto que será avaliado apenas
pelos aspectos da coesão e da coerência textuais, o formato do gênero redação
100
para o Enem exige que o candidato coloque-se diante de uma situação complexa
da realidade brasileira ou internacional e apresente uma proposta que contenha
minimamente o binômio agentividade e factibilidade, ou seja, quem são os
agentes mais indicados para a solução do problema – Estado, família, sociedade
ou mesmo o indivíduo - e o quão factível esta intervenção se apresenta. Uma
factibilidade telúrica, ou ainda eivada de radicalismo que a torne
contraproducente ou impossível de ser materializada, apresenta-se como um forte
indício de que o processo educacional não foi deveras suficiente para inserir esta
pessoa num conjunto de práticas vistas como cidadãs.
A noção de cidadania, que é historicamente constituída, ampliou-se
modernamente e não comporta mais apenas um perfil passivo de um conjunto de
direitos garantidos pelo Estado. Para além disso, exige-se um perfil ativo que
requer engajamento direto dos indivíduos nas questões deste Estado. Desse modo,
transcendendo a dimensão civil e política, a cidadania, na visão de Guerra (2012),
apresenta-se agora em pelo menos 4 dimensões, quais sejam, a social, econômica,
educacional e existencial.
O que se nota, não obstante as várias direções possíveis de
tratamento da questão da cidadania, é que a participação, o atuar,
o agir para construir o seu próprio destino é inerente à sua ideia.
O que muda, ao longo dos tempos, são os graus e as formas de
participação e sua abrangência. Portanto, a cidadania demanda
ação permanente dos cidadãos na coletividade, no
acompanhamento e na própria direção dada às políticas públicas.
(GUERRA, 2012, p. 63).

Analisando-se por este prisma, no momento em que elabora sua proposta


de intervenção na redação, o candidato demonstra que é capaz de interligar um
conjunto de conteúdos conceituais e procedimentais adquiridos em todos os
processos formativos pelos quais passou, escolares ou não, em uma postura de
conteúdo atitudinal que pode ser traduzida como a sua ação cidadã perante a
realidade na qual vive.
O termo conteúdos atitudinais engloba uma série de conteúdos
que, por sua vez, podemos agrupar em valores, atitudes e
normas. Cada um destes grupos tem uma natureza
suficientemente diferenciada que necessitará, em dado momento,
de uma aproximação específica.
 Entendemos por valores os princípios ou as ideias éticas que
permitem às pessoas emitir um juízo sobre as condutas e seu

101
sentido. São valores: a solidariedade, o respeito aos outros, a
responsabilidade, a liberdade, etc.
 As atitudes são as tendências ou predisposições relativamente
estáveis das pessoas para atuar de certa maneira. São a forma
como cada pessoa realiza sua conduta de acordo com valores
determinados. Assim, são exemplos de atitudes: cooperar com o
grupo, ajudar os colegas, respeitar o meio ambiente, etc.
 As normas são padrões ou regras de comportamento que
devemos seguir em determinadas situações que obrigam a todos
os membros de um grupo social. As normas constituem a forma
pactuada de realizar certos valores compartilhados por uma
coletividade e indicam o que se pode fazer e o que não se pode
fazer neste grupo. (ZABALA, 2010, p. 46).

Impossível, pois, pensar o conceito de cidadania através de um viés


dissociado da noção de Direitos Humanos, não apenas porque estes conceitos se
encontram na gênese da participação do indivíduo como membro integrante do
tecido social, mas por conta de que, com o passar dos anos e com a aproximação
dos Estados Nacionais nos tratados internacionais dos Direitos Humanos, estas
noções foram incorporadas às constituições destes Estados, positivando-se sob a
forma do princípio da dignidade da pessoa humana e dos demais Direitos
Fundamentais.
Os direitos humanos pressupõem a cidadania como princípio
pois a privação da mesma repercute na condição humana, posto
que o ser humano privado de proteção conferida por um estatuto
político esvazia-se da sua substância de ser tratado pelos outros
como semelhante, isto é, como igual. Disso conclui que o
primeiro direito humano é o direito a ter direitos, o que só é
possível, mediante o pertencimento, pelo vínculo da cidadania, a
algum tipo de comunidade juridicamente organizada e ser tratado
dentro dos parâmetros definidos pelo princípio da legalidade.
(GUERRA, 2012, p. 65).

Extrapolando a questão da escrita de uma proposta de intervenção para


fins de avaliação no Enem, pode-se também pensar em uma análise mais voltada
para fins de pesquisa, na qual a competência V também constitui um riquíssimo
arquivo para que pesquisadores possam conhecer, dentre outros aspectos, como a
cidadania é percebida por aqueles que se submetem ao exame e que são,
majoritariamente, integrantes de uma faixa de idade que se localiza nas fronteiras
do ingresso na vida adulta. Torna-se viável, desse modo, apreender nas propostas
de intervenção como a própria noção de cidadania, que é fluida, historicamente
102
concebida e íntima da noção de Direitos Humanos, está sendo vivenciada pelas
novas gerações que almejam ingressar no ensino superior.
A seguir, passamos a discutir algumas noções acerca dos Direitos
Humanos e da importância destes na elaboração de uma proposta de intervenção
calcada em valores cidadãos, conforme se exige na competência V da matriz do
Enem.

3 O respeito aos Direitos Humanos na redação do Enem

Os Direitos Humanos possuem uma definição que enseja um certo grau


de polêmica. De forma bastante resumida, parte desta polêmica situa-se no fato
de que aquilo se convencionou chamar internacionalmente de Direitos Humanos
choca-se frontalmente com a forma como algumas comunidades se articulam
culturalmente. Traços culturais vistos com certo grau de naturalidade em certas
sociedades podem se configurar como uma verdadeira afronta à dignidade da
pessoa humana e, como consequência, aos próprios Direitos Humanos.
Atualmente, entretanto, a noção que se difunde entre os Estados que se alinharam
com a maioria dos tratados internacionais dos Direitos Humanos aproxima a
concepção de Direitos Humanos com a dignidade humana, que tem um aspecto
ligado a uma dimensão individual, mas também deve ser vista como um valor
intrínseco da coletividade. Por esta lógica, uma afronta à dignidade da pessoa
humana atinge, com um só golpe, a pessoa e a coletividade, pois constitui-se
como um ato que nos afasta da nossa própria humanidade1.
Conforme pontuamos acima, o respeito aos Direitos Humanos na prova
de redação do Enem goza de um estatuto de importância tamanha que a sua
inobservância pode acarretar a eliminação sumária do candidato do certame.
Diante deste quadro, não é incomum nos depararmos com pessoas envolvidas
direta ou indiretamente no exame (professores, candidatos e avaliadores das
redações) questionando-se acerca dos critérios de abordagem dos Direitos

1
Sobre esta dupla abordagem acerca da dignidade da pessoa humana, Schier (2007) relembra uma história bastante ilustrativa
ocorrida numa cidade francesa chamada Morsang-sur-Orge, na qual se praticava em uma taberna, após certo horário, um “esporte”
chamado arremesso de anão, que consistia em permitir que os clientes arremessassem o mais distante possível, um anão devidamente
contratado para tal fim. Ao tomar conhecimento do fato, o prefeito da cidade proibiu que a prática fosse repetida sob o argumento de
que afrontava a dignidade humana. Diante da proibição, o estabelecimento e o próprio anão decidiram ingressar com um recurso em
desfavor da decisão do gestor municipal. O tribunal administrativo francês, compreendendo que a dignidade da pessoa humana é
valor universal e que a agressão à dignidade de uma pessoa importa na agressão da dignidade de todos, proibiu definitivamente a
prática do arremesso, para a frustração do estabelecimento, dos clientes e do próprio anão.
103
Humanos na redação do Enem. Não raro, ouve-se a pergunta: “São os Direitos
Humanos um conteúdo a ser observado na formação inicial e continuada dos
docentes de todas as áreas do saber e na trajetória da escolarização básica dos
brasileiros?” A resposta não poderia ser mais cristalina que um “claro que sim!”.
Passemos agora a discutir os porquês.
A Resolução CNE/CP, n. 1, de 30 de maio de 2012, que estabelece as
Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, apesar de ser o
principal documento regulatório da aproximação das instituições de ensino para
com a questão dos Direitos Humanos no Brasil, ainda está em fase de
implementação nos cursos de formação de professores e é deveras desconhecida
por parte dos docentes das mais diversas áreas do conhecimento que já estão em
atividade nas escolas do país. Pelo caráter recente da Resolução, a absorção da
temática nos currículos da Educação Básica ainda está em um estágio
embrionário, não obstante se percebe que as Secretarias Estaduais de Educação
têm feito um trabalho que renderá bons frutos dentro em breve.
As Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos baseiam-
se em uma série de instrumentos internacionais de Direitos Humanos, a exemplo
da própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; da Declaração
das Nações Unidas sobre a Educação e Formação em Direitos Humanos
(Resolução A/66/137/2011) e do Programa Mundial de Educação em Direitos
Humanos (PMEDH 2005/2014), mas também se inspiram em um repertório
nacional de documentos que tratam da temática, quais sejam, a Constituição
Federal de 1988, o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3/ Decreto nº
7.037/2014) e o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos
(PNEDH/2006).
De forma a sintetizar estes documentos em eixos que possam ser
incorporados nos Projetos Político Pedagógicos das escolas, bem como nos
Projetos Pedagógicos dos Cursos Superiores de Graduação, a Educação em
Direitos Humanos, tendo como objetivo central a formação para a vida e para a
convivência, fomentando o respeito à diversidade e a coexistência baseada na
tolerância, alicerça-se nos seguintes princípios: I – dignidade da pessoa
humana; II – igualdade de direitos; III – reconhecimento e valorização
das diferenças e das diversidades; IV – laicidade do Estado; V –
democracia na Educação; VI – transversalidade, vivência e globalidade e,
por fim, VII – sustentabilidade socioambiental.
Estes princípios que norteiam a Educação em Direitos Humanos devem
ser observados em conformidade com as características fundantes dos Direitos
Humanos, as quais passamos a destacar:
104
a. Universalidade: Toda e qualquer pessoa é titular de Direitos Humanos sem exceção.
Assim, pelo simples fato de existir faz com que qualquer indivíduo tenha resguardados
seus direitos, independente de sexo, raça, cor, origem, etnia, nacionalidade, idade,
religião, língua, orientação sexual etc.
b. Inerência: trata-se de um atributo imanente à própria noção de Direitos Humanos.
Basta então a condição de ser humano para que a pessoa possa reclamar para si a
titularidade desse conjunto de direitos.
c. Historicidade e proibição do retrocesso: diz respeito ao fato de que os Direitos Humanos
são frutos de conquistas da humanidade ao longo da sua história. O rol de direitos
humanos apresenta-se, dessa forma, como um catálogo aberto para que novos direitos
possam ser incorporados com o transcurso do tempo. Por outro lado, o princípio da
vedação ao retrocesso determina que uma determinada norma de Direitos Humanos
somente poderá ser substituída por outra que ofereça mais proteção à dignidade
humana.
d. Os Direitos Humanos são inalienáveis, irrenunciáveis e indisponíveis, não podendo ser
vendidos ou negociados ou doados, mesmo que assim queira o seu titular.

Quando nos referimos à questão dos Direitos Humanos na redação do


Enem, entendemos que estes princípios e estas características servem como
parâmetros e limites para fins de avaliação dos candidatos na competência V. O
respeito aos Direitos Humanos na redação do Enem é, desse modo, o momento
no qual o candidato deve comprovar que ao longo do seu percurso formativo, o
qual não ocorre exclusivamente em instituições de ensino, mas, conforme
relatamos acima, desenvolve-se também “na vida familiar, na convivência
humana, no trabalho, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e
nas manifestações culturais”, transformou-se em alguém capaz de compreender a
si mesmo como membro integrante do tecido social. Para tal, devem ser
garantidos, ao menos no ambiente escolar, os seguintes aspectos:

I – apreensão de conhecimentos historicamente construídos


sobre os direitos humanos e a sua relação com os contextos
internacional, nacional e local;
II – afirmação de valores, atitudes e práticas sociais que
expressem a cultura dos direitos humanos em todos os espaços
da sociedade;
III – formação de uma consciência cidadã capaz de se fazer
presente em níveis cognitivos, social, cultural e político;
IV – desenvolvimento de processos metodológicos participativos e
de construção coletiva, utilizando linguagens e materiais didáticos
contextualizados;
V – fortalecimento de práticas individuais e sociais que gerem
ações e instrumentos em favor da promoção, da proteção e da

105
defesa dos direitos humanos, bem como da reparação das
diferentes formas de violação de direitos. (BRASIL, 2012, p. 2).

A Educação em Direitos Humanos é vista como parte imanente do direito


à educação e diz respeito, segundo o texto da Resolução que estabelece as suas
diretrizes, ao uso de concepções e práticas educativas fundadas nos Direitos
Humanos e em seus processos de promoção, proteção, defesa e aplicação na
vida cotidiana e cidadã de sujeitos de direitos e responsabilidades individuais e
coletivas. Para fins de balizamento dos trabalhos das instituições de ensino, são os
Direitos Humanos assim conceituados:

Os Direitos Humanos, internacionalmente reconhecidos como


um conjunto de direitos civis, políticos, sociais, econômicos,
culturais e ambientais, sejam eles individuais, coletivos,
transindividuais ou difusos, referem-se à necessidade de
igualdade e de defesa da dignidade da pessoa humana. (BRASIL,
2012, p. 1).

Não restam dúvidas de que o Enem, na sua prova de redação, ao solicitar


que o candidato elabore proposta de intervenção que respeite os Direitos
Humanos, faz referência direta a estas diretrizes que são de observação obrigatória
na Educação Básica e no Ensino Superior. Senão, vejamos:
Art. 7º A inserção dos conhecimentos concernentes à Educação
em Direitos Humanos na organização dos currículos da Educação
Básica e da Educação Superior poderá ocorrer das seguintes
formas:
I - pela transversalidade, por meio de temas relacionados aos
Direitos Humanos e tratados interdisciplinarmente;
II - como um conteúdo específico de uma das disciplinas já
existentes no currículo escolar;
III - de maneira mista, ou seja, combinando transversalidade e
disciplinaridade. (BRASIL, 2012, p. 2).

Urge que as Diretrizes Nacionais sejam incorporadas nos currículos das


instituições de ensino de Educação Básica, que possam estar presentes nos cursos
de formação inicial e continuada dos professores e que, não nos esqueçamos,
façam parte do processo de capacitação daqueles que se encarregarão de corrigir
milhares de textos produzidos pelos candidatos por ocasião das provas do Enem.
Outro aspecto que merece destaque é que a competência V da matriz de
avaliação das redações do Enem exige que não apenas os professores de
106
linguagens estejam na linha de frente na preparação dos alunos. A competência V
não avalia uma disciplina específica do currículo escolar, mas sim o sucesso ou o
fracasso da escola vista de forma integrada.
Desvenda-se, então, o mistério que gira em torno da temida questão dos
Direitos Humanos na redação do Enem. O grau de distanciamento que os
professores de todas as áreas e os alunos da Educação Básica tiverem para com as
Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos será diretamente
proporcional às lacunas acerca desta matéria que os alunos levarão consigo para a
prova de redação do Enem e para a vida.

Considerações finais

Buscamos, ainda que de forma bastante sucinta, revelar quais as funções


da competência V constante na matriz de competências utilizada como referência
para as correções das redações do Enem.
Se não perdermos de foco o fato de o Enem ser também um instrumento
de avaliação do final do ciclo da Educação Básica, momento no qual os indivíduos
podem escolher entre ingressar imediatamente no mercado de trabalho ou buscar
dar continuidade aos seus estudos no Ensino Superior, temos uma visão cristalina
da importância das funções da competência V da prova de redação do Enem, quais
sejam, aferir se a escola entregará para a sociedade uma pessoa ciente dos seus
direitos e obrigações como cidadão e, sobretudo, alguém que compreenda o valor
do princípio da dignidade humana e que, por este motivo, será capaz conviver em
uma sociedade multicultural e multiétnica.
Por outro lado, quando se trata da redação do Enem, a nossa sociedade
vive um verdadeiro paradoxo linguístico – moral. Há um imenso barulho social
quando alguns candidatos são flagrados incorrendo em pequenos deslizes de
cunho linguístico-ortográfico que podem ser frutos de nervosismo ou até mesmo
de problemas de formação que não foram sanados ao longo da trajetória escolar.
Neste momento, fala-se de fracasso da escola, a mídia alardeia para todos os
cantos, a sociedade critica o processo. Tal alvoroço deveria se dar quando a
sociedade tivesse conhecimento de algum candidato eliminado do processo por
formular uma proposta de intervenção que afronta diretamente os Direitos
Humanos. Isto porque, num caso como este, falhamos todos nós. Falhou o
Estado, falhou a família e falhou a sociedade em cumprir o compromisso
constitucional de formar o indivíduo para o exercício pleno da cidadania.

107
Não é algo que anime a qualquer educador testemunhar anualmente o
comportamento de uma sociedade que se diz mais escandalizada com a
ocorrência de um “trousse” escrito com “ss” do que com uma proposta de
fuzilamento de imigrantes haitianos; que se estarrece mais com desvios
linguístico-ortográficos “plantados” por pessoas que se inscrevem no exame com
o único intuito de tentar desacreditar o processo, que com alguém que propõe o
linchamento público ou mesmo a pena de morte para motoristas flagrados
dirigindo em estado de embriaguez. Este paradoxo linguístico – moral só pode
mesmo nos levar a apenas uma consideração final:
Há ainda muito por ser feito.

Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.
BRASIL. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional.
GUERRA, Sidney. Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo: Atlas, 2012.
BRASIL. A redação no Enem 2013: guia do participante. Brasília: INEP/DAEB, 2013.
BRASIL. Resolução Nº 1, de 30 de maio de 2012. Estabelece as Diretrizes Nacionais para a
Educação em Direitos Humanos. Diário Oficial da União, Brasília, 31 mai. 2012.
SCHIER, Paulo Ricardo. Novos desafios da filtragem constitucional no momento do
Neoconstitucionalismo. In: SOUZA NETO, Claudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. (Coords.). A
Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007, p.251-269.
VIANA, Antonio Carlos. Guia de Redação: escreva melhor. São Paulo: Scipione, 2011.
ZABALA, Antony. A prática educativa: como ensinar. São Paulo: Artmed, 2010.

108
Seção II

A PROVA DE LINGUAGENS,
CÓDIGOS E SUAS TECNOLOGIAS

109
110
O estatuto da variação
linguística nas provas do Enem
Sammela Rejane de Jesus Andrade

Introdução

Por ser um instrumento criado com o intuito de averiguar os resultados


de eficiência da última etapa da educação básica, como consta no PNE (2014-
2024), é impossível discutir as proposituras do Enem sem atrelar ao que
apregoam os documentos norteadores das políticas públicas educacionais do país,
a exemplo dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e do Programa Nacional
do Livro Didático (PNLD).
Os PCN são diretrizes elaboradas pelo governo federal em conjunto com a
sociedade civil, professores e especialistas na área educacional, cujo objetivo é
orientar os educadores por meio da normatização de alguns aspectos
fundamentais de cada disciplina prevista no currículo escolar. Sem caráter
obrigatório, visa subsidiar as discussões em torno dos processos educacionais do
país, e se caracteriza por apresentar um tratamento específico para cada área de
conhecimento (disciplinas curriculares) que o aluno tem que cursar no ensino
básico. No que se refere ao currículo de Língua Portuguesa (BRASIL, 2000, p. 5), a
primeira orientação parte da concepção de linguagem: “a linguagem é uma
herança social, uma “realidade primeira”, que, uma vez assimilada, envolve os
indivíduos e faz com que as estruturas mentais, emocionais e perceptivas sejam
reguladas pelo seu simbolismo”. E, ainda,

Toda linguagem carrega dentro de si uma visão de mundo,


prenha de significados e significações e vão além do seu aspecto
formal. O estudo apenas do aspecto formal, desconsiderando a
inter-relação contextual, semântica e gramatical própria da
natureza e função da linguagem, desvincula o caráter
intrasubjetivo, intersubjetivo e social da linguagem. (BRASIL,
2000b, p. 5-6)

111
A partir das orientações dos PCN, os currículos escolares, os livros
didáticos e exames em larga escala devem ser constituídos a partir de uma
perspectiva de ensino de língua materna voltado para o contexto variável da língua,
não se prendendo à perpetuação dos dogmas da gramática normativa.
A Sociolinguística é uma área da linguística cujas bases teóricas permitem
discutir realidades linguísticas antes ignoradas, como questões relacionadas ao
ensino e fatores sociais, e principalmente o mito da língua homogênea. Nessa
perspectiva, a diversidade de formas de expressão é vista como variação
linguística, partindo do princípio de que, em uma comunidade de fala, coexistem
formas distintas em diferentes contextos de uso.
É importante apreciar o que os materiais que norteiam a educação básica
consideram a respeito das habilidades exigidas no Enem, já que o ensino nas
escolas – pelo menos na rede pública – segue essas diretrizes através dos livros
didáticos, selecionados e distribuídos pelo Programa Nacional do Livro Didático
aos alunos da educação básica. A escolha desses é feita pelo programa em ciclos
trienais a partir de critérios estabelecidos pelo Ministério da Educação. Na medida
em que os documentos norteadores tratam a língua a partir do pluralismo
linguístico, a contribuição da Sociolinguística torna-se indispensável, por
possibilitar o diálogo entre os parâmetros educacionais, sua aplicação em sala de
aula e em avaliações como o Enem.
Partindo do princípio de que o Enem tem como função primeira de
avaliar e, consequentemente, auxiliar na elaboração de políticas públicas
destinadas à última etapa da educação básica, o exame torna-se ferramenta
importante na investigação das competências linguísticas. Observamos as
competências exigidas na prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias do
Enem com ênfase nos aspectos sociolinguísticos, observando a aderência às
diretrizes dos PCN e do PNLD e da matriz de competências de avaliação da própria
prova do Enem.

1 Sociolinguística na sala de aula

A noção de variação linguística está nos documentos voltados para as


políticas públicas de ensino/aprendizagem da Língua Portuguesa. Se presentes
nesses documentos, como será que está sendo abordada no Enem? Voltamos
nossa abordagem para o que Bortoni-Ricardo (2005, p. 128) denomina de
“Sociolinguística Educacional, de forma um pouco genérica, são todas as
propostas e pesquisas sociolinguísticas que tenham por objeto contribuir para o
112
aperfeiçoamento do processo educacional, principalmente na área de ensino de
língua materna”. Sua proposta é observar as contribuições da Sociolinguística,
partindo do princípio de que a escola deve propor ao aluno a compreensão da
realidade, inclusive no que se refere à língua como instrumento de comunicação.
Diante de todas as preocupações em torno da educação, a Sociolinguística
também sempre demonstrou, através dos estudos que foram realizados, uma
preocupação com o desempenho escolar, principalmente atrelado a questões
étnicas e de rede sociais, como apontado por Bortoni-Ricardo e Freitas (2009).

Desde o seu berço a Sociolinguística, tanto na sua vertente


variacionista quanto na sua vertente qualitativa, demonstrou
preocupação com o desempenho escolar de crianças provenientes
de diferentes grupos étnicos ou redes sociais. Desde então muito
tem contribuído para os avanços na pesquisa das questões
educacionais em diversos países do mundo, principalmente nas
últimas quatro décadas. O objetivo tem sido o de construir novas
metodologias que auxiliem professores a desenvolver em seus
alunos as habilidades cognitivas necessárias a uma aprendizagem
mais ampla. [...] Entretanto, essa não é uma missão fácil porque
tratar de problemas educacionais é uma ação que envolve
questões mais abrangentes e não apenas aquelas restritas ao
ambiente escolar. (BORTONI-RICARDO; FREITAS, 2009, p. 218).

Para discutir as contribuições da Sociolinguística no contexto educacional,


é preciso considerar o conceito de competência comunicativa, de Dell Hymes
(1972), em reformulação ao termo competência linguística, proposto por
Chomsky (1952), uma vez que esse não comportava a dimensão da variação
linguística, em virtude da compreensão chomskiana de falante ideal em uma
comunidade de língua homogênea. A proposição de Dell Hymes parte da
afirmação de que a competência comunicativa de um falante lhe permite saber o
que falar e como falar de acordo com as circunstâncias, considerando assim, a
ideia de adequação.

A principal novidade proposta por Dell Hymes foi, portanto, ter


incluído a noção de adequação no âmbito da competência.
Quando faz uso da língua, o falante não só aplica as regras para
obter sentenças bem formadas, mas também faz uso de normas
de adequação definidas em sua cultura. (BORTONI-RICARDO,
2004b, p. 73)

113
A adequação ajuda a explicar o fato dos indivíduos adquirirem recursos
comunicativos diante das experiências vividas e dos papéis sociais assumidos,
sendo a escola um dos agentes mais importantes no processo dessas experiências,
uma vez que, ao ingressar no ambiente escolar, todo individuo já traz uma
bagagem comunicativa, e cabe a ela ampliar esses recursos comunicativos.
Segundo Bortoni-Ricardo (2004a, p. 73), “é papel da escola facilitar a ampliação
da competência comunicativa dos alunos, permitindo-lhes apropriar-se dos
recursos comunicativos necessários para desempenharem bem, e com segurança,
nas mais distintas tarefas linguísticas”.
Contemporâneo ao período inicial dos estudos linguísticos de Chomsky e
Dell Hymes, entre as décadas de 1960 e 1970, Labov levanta a discussão a respeito
do inglês afro-americano em Language in the inner city (1972), defendendo que
não se caracterizava como uma gíria, mas como um dialeto oriundo de processos
de mudanças linguísticas nos contextos histórico e social e, por isso, não deveria
ser ignorado.
A contribuição desse estudo ganha relevância no contexto educacional
americano, na medida em que Labov levanta a discussão de que o fracasso escolar
das crianças negras em escolas da periferia de Nova York seria a consequência de
um déficit cultural e cognitivo decorrente da privação verbal no
ambiente doméstico. O estudo realizado por Labov, segundo Zaidan (2013, p. 34),
“atribui o mau desempenho escolar das crianças à incompetência do próprio
sistema para lidar com a diversidade, para avaliar as crianças e para efetuar os
ajustes sociais necessários na interação entre professores e alunos”. O estudo do
inglês afro-americano leva Labov a criticar a ideia prostrada no ambiente
educacional de que obter sucesso escolar significava adquirir os hábitos
linguísticos e retóricos da classe média.
No Brasil, na década de 1980, Soares (1986) também levanta questões
sobre o fracasso escolar, ao defender que a linguagem é também o fator de maior
relevância nas explicações do fracasso escolar das camadas populares, uma vez
que a escola usa e quer ver usada a variante padrão socialmente prestigiada.
Partindo da concepção de que a linguagem é um produto da cultura, a
autora aponta a eleição de uma única variante da língua no processo de
aprendizagem como responsável pela ineficiência do método de ensino utilizado
no país, modelo educacional ao qual a autora denomina de “contra o povo”,
partindo da constatação de que a educação praticada parte de uma falsa
democratização do ensino pautada em três ideologias: a ideologia do dom,
a ideologia da deficiência cultural e a ideologia das diferenças culturais.

114
A primeira ideologia se sustenta pela ideia de que o fracasso do aluno não
seria responsabilidade da escola, mas de si mesmo, por ele não ter as
características necessárias ao bom aproveitamento dos recursos da escola. A
segunda postula que as desigualdades sociais seriam responsáveis pelas diferenças
de rendimento dos alunos na escola, sendo o meio em que o aluno vive
responsável pela sua má formação escolar. E a última, marcada pela visão
deturpada do que seria cultura, haja vista que o que se entende por cultura é o
que a elite define como tal.
Para Soares (1986, p. 78), é “inadmissível deixar de vincular o ensino da
língua materna às condições sociais e econômicas de uma sociedade”, uma vez
que a falsa democratização se materializa em nomenclaturas como a deficiência
linguística, em que se pratica um ideal de uma cultura como superior às outras
e, consequentemente, de que uma língua é mais importante que a outra. Somente
com a adoção da relação sociedade e linguagem é possível superar o fracasso no
ensino de língua materna de Língua Portuguesa.
Abordagens como as de Labov (1972) e Soares (1986) evidenciam que o
fracasso escolar está relacionado às diferenças entre a linguagem e as experiências
que as crianças trazem de casa e a linguagem e experiências demandadas pela
escola, sendo essa premissa a que norteia a teoria da Sociolinguística Educacional,
focada em analisar a influência do capital cultural no contexto escolar.
No Brasil, as manifestações dessa concepção de capital cultural se
materializam no ensino de língua materna, principalmente no que concerne às
questões de preconceito linguístico.
Segundo Bortoni-Ricardo & Freitas (2009), muitas foram as propostas
educacionais de bases linguísticas, entre essas, as de teoria sociolinguísticas.
Muitos livros foram publicados, com muita expressividade de década de 1980, e
nos anos seguintes, suas influências começaram a se fazer presentes nos livros
didáticos.
À medida que chegavam ao mercado editorial obras com
recomendações importantes para o aprimoramento do ensino da
língua portuguesa nas escolas brasileiras, pôde-se observar a
ocorrência de algumas mudanças de postura, em especial um
esforço dos livros didáticos para substituir a excessiva ênfase na
terminologia gramatical pelo tratamento da língua em uso,
embora ainda haja muito que fazer para tornar mais eficiente o
trabalho pedagógico com a leitura e a escrita nas nossas escolas.
(BORTONI-RICARDO, FREITAS, 2009, p. 221)

115
Com a presença das bases sociolinguísticas na literatura acadêmica, ao
longo dos anos, os currículos dos cursos de Letras e Pedagogia foram acumulando
teorias, porém os espaços para discussão destas não cresceram na mesma
proporção. Como consequência disso, o que existe hoje é o pouco aproveitamento
de suas contribuições em sala de aula.
Essa problemática também pode ser observada no que concerne às
avaliações aplicadas em todas as etapas de ensino da educação básica, haja vista
que têm levado em consideração as concepções sociolinguísticas na elaboração de
suas matrizes e, consequentemente, nas questões aplicadas. Levantar essa questão
ajuda a entender a dificuldade que professores e alunos têm enfrentado diante
dessas avaliações. Como apontam Bagno e Rangel (2005),
Existe, antes de mais nada, uma demanda social por educação
linguística que suscita, da parte das diferentes instâncias
ocupadas com o tema, conjuntos variados de respostas. De um
lado, as diferentes políticas oficiais de ensino (sobretudo as de
âmbito federal) vêm gerando um acervo cada vez mais volumoso
de reflexões teóricas, consubstanciadas em documentos da mais
diversa natureza [...] Do outro lado, todo esse esforço político
oficial de atender às demandas de educação linguística da
sociedade é acompanhado num ritmo muitíssimo mais lento.
(BAGNO; RANGEL, 2005, p. 64)

A necessidade de reconhecimento das especificidades do português


brasileiro tem fomentado a produção de obras teóricas, gramáticas descritivas e
dicionários de uso, e também de obras de cunho pedagógico para o tratamento da
variação em sala de aula. O livro “Sociolinguística na sala de aula: educação em
língua materna” (BORTONI-RICARDO, 2004a, p. 7) foi escrito com a proposta de
auxiliar os docentes nessa tarefa: “Meus interlocutores preferenciais neste livro
são os colegas professores, de ensino fundamental e médio e dos cursos de letras
e pedagogia”. Por apresentar uma linguagem simples e objetiva, além de trazer
orientações de como aplicar as teorias em sala de aula, o livro faz parte do
programa Biblioteca do Professor de Língua Materna. Nesse livro, a fim de trazer
uma contribuição sociolinguística ao ambiente educacional, Bortoni-Ricardo
(2004a) explora um modelo anteriormente apresentado (2004b), em que propõe
três linhas, as quais denomina de contínuos, voltados para o entendimento da
variação do português no Brasil: o contínuo de urbanização, o de oralidade-
letramento e o de monitoração estilística. Dada a sua difusão, assumimos a
proposta de Bortoni-Ricardo (2004a) para orientar a análise das questões da prova
de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias.
116
1.1 O contínuo da urbanização

O contínuo da urbanização é posto com a proposição de uma linha


imaginária, na qual em uma ponta se encontram os falares rurais mais isolados
(com predomínio da cultura da oralidade) e, na outra, os falares urbanos (com
predomínio da cultura de letramento), ambos com influências de codificação
linguística, a exemplo do padrão correto da escrita; é preciso levar em
consideração que esse tipo de influência ocorre com maior força nos falantes da
zona urbana, devido à dificuldade de acesso dos falantes da zona rural. A figura 1
ilustra esse contínuo.

←------------------------------------------------------------------------------------------------------→
Variedades área variedades urbanas
rurais isoladas rurbana padronizadas

Figura 1: Contínuo da urbanização (BORTONI-RICARDO, 2004a, p. 52)

Entre esses dois extremos (rural e urbano), encontra-se o que Bortoni-


Ricardo (2004a, p. 338) denomina de zona rurbana: “Denomino ‘rurbanas’,
valendo-me da terminologia da antropologia social, comunidades urbanas de
periferia, onde predomina forte influência rural na cultura e na língua”. Essa zona
é composta pelos imigrantes da zona rural que preservam os seus antecedentes
culturais, mas que sofrem forte influência através da mídia, por exemplo.
O sentido de propor as três zonas é evidenciar que não existem falares
totalmente isolados, mas sim uma fluidez entre eles, como colocado por Bortoni-
Ricardo (2004a, p. 52), “No contínuo de urbanização, não existem fronteiras
rígidas que separem os falares rurais, rurbanos ou urbanos. As fronteiras são
fluidas e há muita sobreposição entre esses tipos de falares (por isso mesmo
falamos de um contínuo)”.
Como exemplificação desse contínuo, a autora aponta Chico Bento,
personagem de Maurício de Souza, como um “representante legítimo” das
populações que vivem no pólo rural do contínuo, sendo o traço produzido pelo
falar rural denominado traço descontínuo. A estratégia de utilização dos
quadrinhos de Chico Bento se mostra como um caminho a ser seguido pelos
professores para discutir com seus alunos os fenômenos variáveis da língua. A
partir das proposições de Bortoni-Ricardo (2004a), Coan e Freitag (2010, p. 190)
apontam que “observar as tirinhas de Chico Bento permite conhecer as variantes,
bem como tecer hipóteses sociais relacionadas ao seu uso”, ao fazer uma breve
análise de duas tirinhas do personagem, identificam a presença traços linguísticos
117
estigmatizados, como o rotacismo e a não realização da marca de concordância de
número, fenômenos sociolinguísticos que, se discutidos em sala de aula, podem
“propiciar ao aluno a experiência didática com a heterogeneidade”.
A contribuição do contínuo de urbanização no ensino de língua
portuguesa, no que se refere à variação, se mostra muito eficiente, uma vez que
muitos alunos de regiões periféricas e da zona rural são submetidos a um choque
linguístico ao chegar na escola e são obrigados a absorver a variedade padrão, sem
nenhuma transição lógica, que aborde as diferenças dialetais encontradas na
cultura brasileira, a exemplo da rural, que são quase sempre vítimas de
preconceitos.

1.2 O contínuo da oralidade-letramento

O segundo contínuo proposto por Bortoni-Ricardo (2004a) é o de


oralidade-letramento, voltado para os eventos de comunicação mediados pela
língua escrita. Também proposto em uma linha contínua, em um extremo, a
autora coloca o que chama de eventos da oralidade e, no outro, eventos do
letramento, que, assim como o contínuo de urbanização, também é livre de
fronteiras e marcado por sobreposições (figura 2).

←---------------------------------------------------------------------------------------------------→
eventos de eventos
oralidade de letramento

Figura 2: Contínuo da oralidade-letramento (BORTONI-RICARDO, 2004a, p. 60)

Sobre esse contínuo, Freitag e Cyranka (2014, p.261) evidenciam que


“diferentes situações em que recursos linguísticos próprios ora da fala, ora da
escrita são utilizados marcando diferenças de estilo, de gênero textual, de modos
de interação determinantes de variação linguística”. Ainda pode ser dito que o
que diferencia um evento de letramento de um de oralidade é a presença de um
roteiro escrito durante a fala, o que caracteriza um evento de letramento, e a
ausência desse roteiro caracteriza o evento de fala.
Bortoni-Ricardo (2004a) defende que o contato do indivíduo com o
letramento escolar proporciona um maior domínio das variantes de prestígio e,
consequentemente, o seu uso. Partindo do princípio de que o falante está a todo
momento migrando entre situações de oralidade e letramento, a participação em
cada um dos polos do contínuo vai definir predominância destes no indivíduo,
uma vez que, como apontado por Bortoni-Ricardo (2004a, p. 335): “Nos diversos
118
domínios sociais, inclusive na sala de aula, as atividades próprias da oralidade são
conduzidas em variedades informais da língua, enquanto para as atividades de
letramento os falantes reservam um linguajar mais cuidado”.
Apesar disso, a escola tende a perpassar o uso da fala restringido a escrita,
a fala acaba sendo analisada tendo a escrita como parâmetro para todos os usos
orais, desconsiderando os usuários da língua e o contexto em que é utilizada.
Desse modo, os professores precisam estar preparados para trabalhar com as
habilidades orais que o aluno adquiriu no meio social em que vive.

1.3 O contínuo da monitoração estilística

O último contínuo, o de monitoração estilística, divide-se em interação


espontânea [- monitoração] e interação planejada [+ monitoração], conforme a
figura 3, sendo três fatores que levam a monitoração do estilo: o ambiente, o
interlocutor e o tópico da conversa.
←---------------------------------------------------------------------------------------------------→
monitoração + monitoração

Figura 3: Contínuo da monitoração estilística (BORTONI-RICARDO, 2004a, p. 62)

Fortemente correlacionado ao contínuo de urbanização, o contínuo de


monitoramento linguístico apresenta os chamados traços graduais, uma vez que
existe uma gradação à medida que um falante vai migrando do extremo esquerdo
para o direito da linha contínua, ao apresentar um estilo mais monitorado.

À medida que os falantes se deslocam para o extremo direito


desse contínuo, vão se tornando mais frequentes os chamados
traços graduais, por se reconhecer neles uma gradação, desde as
construções menos estigmatizadas, como o objeto direto lexical
(Vi ele na rua), a oração adjetiva cortadora (O livro ø que gosto
mais) até as mais formais, presentes em situações de
monitoração dos chamados falantes cultos. (FREITAG; CYRANKA,
2014, p. 260)

Bortoni-Ricardo (2004a) aponta a importância de se levar em


consideração o grau de atenção e de planejamento conferidos pelo falante na
interação, sendo esses decorrentes de fatores como: acomodação do falante ao seu
interlocutor, apoio contextual da produção dos seus enunciados, complexidade

119
cognitiva envolvida na sua produção linguística e familiaridade do falante com a
tarefa comunicativa que está sendo desenvolvida. E, ainda,
Na produção do estilo monitorado o/a falante presta mais atenção
à sua fala. Este estilo geralmente caracteriza-se pela maior
complexidade cognitiva do tema abordado. Se o/a falante tiver um
maior grau de apoio contextual, bem como maior familiaridade
com a tarefa comunicativa, poderá desempenhar-se no estilo
monitorado com menor pressão comunicativa. A pressão
comunicativa aumenta quando o apoio contextual é menor e a
temática mais complexa. (BORTONI-RICARDO, 2004a, p. 336).

Tendo em vista que o ensino de língua materna tem sido prioritariamente


respaldado em uma variedade padrão, formal e pautado na escrita, como visto nos
dois contínuos anteriores, pouco se espera de diferente em uma abordagem sobre
o contínuo de monitoração estilística em sala de aula. Todavia, os fatores
apontados por Bortoni-Ricardo (2004a), principalmente a complexidade cognitiva
envolvida na sua produção linguística e a familiaridade do falante com a tarefa
comunicativa que está sendo desenvolvida, estão intrinsicamente ligados ao nível
de enquadramento que o indivíduo faz de si quanto ao seu domínio linguístico,
principalmente ao que corresponde à variação, e isso é o que evidencia a pesquisa
realizada por Melo, Cyranka e Silva (2012, p. 3331), que se propõe a analisar o
nível de conscientização dos alunos com relação à variedade linguística.
Os resultados da pesquisa apontaram que os alunos
“não têm consciência da variedade linguística como modos
diferentes de dizer. O que se encontra por detrás das respostas
dos alunos é a noção de que as variedades menos prestigiadas são
formas erradas de falar e a forma correta é aquela que atende aos
preceitos da norma padrão”. (MELO, CYRANKA E SILVA, 2012, p.
3331)

Isso ficou ainda mais latente nos dados quantitativos, uma vez que 71%
dos alunos das séries iniciais se classificaram como bons falantes do português, e
apenas 31% dos informantes das séries finais do ensino fundamental disseram se
identificar do mesmo modo. Ou seja, à medida que são submetidos a uma maior
complexidade cognitiva a partir da produção linguística, os alunos tendem a se
sentir menos eficientes no domínio da língua, reflexo da abordagem unilateral que
existe no processo de ensino da língua.
A abordagem teórica por contínuos é uma estratégia produtiva no ensino
de Língua Portuguesa em sala de aula, uma vez que:
120
Uma pedagogia que é culturalmente sensível aos saberes dos
educandos está atenta às diferenças entre a cultura que eles
representam e da escola, e mostra ao professor como encontrar
formas efetivas de conscientizar o educando sobre essas
diferenças. Na prática, contudo, esse comportamento é ainda
problemático para os professores, que ficam inseguros, sem saber
se devem corrigir ou não, que erros devem corrigir ou até mesmo
se podem falar em erros. (BORTONI-RICARDO 2004a, p. 38)

Dentro dessa perspectiva de dificuldade dos docentes de como propor o


estudo da língua materna em sala de aula, as seções seguintes têm como proposta
trazer a discussão em torno de como a abordagem variacionista se faz presente na
prova do Enem, a fim de observarmos a aderência às prescrições dos documentos
norteadores, além de averiguar a ocorrência dos contínuos no exame.

2 O tratamento da variação nas questões da prova de linguagens do


Enem

Apresentamos a análise das questões da prova de Linguagens, Códigos e


suas Tecnologias do Enem entre 2000 e 2012 à luz dos contínuos propostos por
Bortoni-Ricardo (2004a) para a descrição da variação linguística do português
brasileiro.
As questões foram cotejadas, uma a uma, aos três contínuos, havendo,
em alguns casos, a ocorrência de mais de um contínuo em uma mesma questão.
Todavia, do universo de questões de variação identificadas no exame, nem todas
se enquadraram na proposta de abordagem variacionista da autora; nesse caso,
mesmo que em menor quantidade, também consideramos a ocorrência de outros
fenômenos de variação presentes nessas questões: a variação regional no Brasil,
a variação histórica e a variação entre o português brasileiro x português
europeu.
O texto da questão de número 4 da prova amarela de Linguagens, Códigos
e suas Tecnologias, edição de 2006, na figura 3, apresenta traços descontínuos do
português como: “Sinhô”, “drumi”, “morrê”, “despois”, entre outros, associados
a um falante da zona rural, o que nos levou a classificar a questão como
relacionada ao contínuo da urbanização.

121
Figura 3:
Questão nº4 da prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias.
(Enem, 2006, p. 2)

Figura 5:
Questão nº 99 da prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias.
(Enem, 2012, p. 6)

Na questão de número 99 da prova cinza do Enem de 2012, é


apresentado o relato de uma mulher sobre as suas experiências vividas, como
podemos ver na figura 5. O texto requer a habilidade de identificar um evento de
122
oralidade, no contínuo da oralidade/letramento, no qual a relatante não se
apoia em nenhum roteiro para expor suas lembranças. Outra característica é o
fato do seu grau de escolaridade ser identificado na questão, o que auxilia o leitor
a contextualizar o grau de letramento da informante.

Figura 6: Questão nº 92 da prova azul de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias.


(Enem, 2009, p. 3)

Em um diálogo, a depender do contexto, ambiente e do interlocutor, o


falante vai produzir um estilo mais ou menos monitorado, como mostra a questão
de número 92 da prova azul do Enem de 2009, na figura 6, em que, em uma
conversa telefônica, o falante emprega um estilo mais monitorado ao atender um
telefonema do banco onde trabalha como gerente; ao identificar que o solicitante é
um conhecido, o estilo passa a ser menos monitorado e a tarefa comunicativa
prossegue com a mudança de estilo. Tal questão ilustra o contínuo da
monitoração estilística.
No que se refere às questões nas quais os contínuos não se enquadraram,
temos os exemplos em que foram detectados outros fenômenos de variação. O
primeiro exemplo corresponde a uma abordagem de variação no contexto

123
regional, em que o poema de Mário de Andrade trata das diferenças linguísticas do
falar em algumas regiões do país.

Figura 7: Questão nº 9 da prova amarela, Linguagens, Códigos e suas Tecnologias.


(Enem, 2005, p. 5)

A respeito da variação regional, Bortoni-Ricardo (2004a, p. 34) coloca que


“o dialeto (ou variedade regional) falado em uma região pobre pode vir a ser
considerado um dialeto “ruim”, enquanto o dialeto falado em uma região rica e
poderosa passa a ser visto como um “bom” dialeto”. Nessa perspectiva, não
podemos deixar de discutir o quão é impregnada de estigmas uma abordagem
linguística regional, uma vez que essa carrega intrinsicamente a relação de
variedade de prestígio/variedade de estigma. Entretanto, a questão apenas leva o
candidato a identificar de quais diferenças trata o texto, sem que haja um maior
aprofundamento na temática.
Não diferente do que é encontrado nas questões de variação histórica, a
exemplo da questão de número 9 da edição de 2007, na qual um texto de
Drummond é produzido com o vocabulário contemporâneo ao período em que foi
escrito, na década de 1960, e por isso cheio de palavras utilizadas naquela época,
é acompanhado de uma nova versão, com as palavras da “época passada”
substituídas por palavras da “linguagem atual”.
124
Figura 8: Questão nº 9 da prova amarela de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias.
(Enem, 2007, p. 9)

O léxico do português passou por várias mudanças ao longo do tempo,


tendo em vista que a língua sofre constantemente processos de mudança, é
natural que língua apresente alterações no seu vocabulário. Como evidencia Neves
(2011), a língua portuguesa praticada no Brasil, por ser oriunda do português de
Portugal, carrega resquícios da língua grega e, mais do que isso, ao longo dos
processos de imigração ocorridos no país, a língua foi sendo impregnada por
palavras de outros povos. Esse processo histórico acarretou em muitas mudanças
e fez do português brasileiro e do português europeu línguas carregadas de
diferenças vocabulares, como aborda a questão da figura 9.

125
Figura 9: Questão nº 9 da prova amarela Linguagens, Códigos e suas Tecnologias.
(Enem, 2005, p. 3)

Como foi possível identificar nas três exemplificações dos fenômenos de


variação linguística discutidos, além das questões que aderem aos contínuos, a
abordagem variacionista se restringiu a pontos voltados ao vocabulário, sem a
promoção de uma discussão mais aprofundada a respeito do que caracteriza cada
tipo de variação, o que configura uma abordagem bastante superficial.

Considerações finais

A temática variação linguística vem sendo tratada no Enem, fato


decorrente das orientações dos documentos norteadores, materializando-se em
torno de situações reais de comunicação por intermédio de recursos textuais, a
exemplo das histórias em quadrinhos e diálogos, abordando a oralidade e a
informalidade da língua. No entanto, apesar das orientações dos documentos e da
avaliação, ainda é preciso promover alterações necessárias no ensino de Língua
Portuguesa, em decorrência dos mais variados motivos, entre eles, os aqui
observados pelos estudos da Sociolinguística Educacional, que explicam a pouca
aceitação e adaptação dos alunos com a língua materna como consequência da
maneira como esta é abordada em sala de aula.

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Brasileira de Linguística Aplicada, v. 5, n. 1, p. 63-80, 2005.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de
aula. São Paulo: Parábola, 2004a.
126
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Um modelo para a análise sociolinguística do português do
Brasil. In: BAGNO, Marcos (Orgs.). Linguística da norma. São Paulo: Loyola, p. 333-347, 2004b.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Nóis cheguemo na iscola, e agora? Sociolinguística e
educação. São Paulo: Parábola, 2005.
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In: HORA, D. et alli (Orgs.) Abralin 40 anos em cena. João Pessoa: Editora Universitária (UFPB),
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Curriculares Nacionais (Ensino Médio). Brasília: MEC, 2000.
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metodológicos e propostas de ensino. Domínios de Lingu@gem, v.4, n. 2, p.173-194, 2010.
FREITAG, Raquel Meister Ko. CYRANKA, Lúcia Mendonça. Sociolinguística variacionista e
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linguagem: o fazer científico, v. 2, p. 249-280, 2014.
HYMES, Dell. Foundations in Sociolinguistics: an ethnographic approach. Philadelphia:
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MELO, Terezinha Toledo Melquíades de. CYRANKA, Lucia Furtado de Mendonça. SILVA, Maria
Diomarada. Variação linguística: Um estudo sobre o nível de conscientização dos alunos. In:
Cadernos do CNLF, v. 14, n. 4, t. 4, p. 3321-3332, 2012.
NEVES. Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. 2 ed. São Paulo: Editora da
UNESP, 2011.
SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1986.
ZAIDAN, Junia Claudia Santana De Mattos. Por um inglês menor: a desterritorialização da grande
língua. Tese. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2013.

127
128
Performatividade e modalização
na prova do Enem
Leilane Ramos da Silva
Jaqueline dos Santos Nascimento
Layane Mayara Dantas da Cruz
Nathalia da Silva Paixão

Introdução1

Ao lado das discussões sobre a ideia que a língua é uma forma de ação,
emerge uma noção extremamente importante: a de que, no momento da
enunciação, entendida como “ato individual de utilização da língua” (DUBOIS et
al, 1998, p.218), o locutor pode indicar uma maior ou menor adesão frente ao
enunciado que produz via encadeamento de modalização. Tal indicação pode estar
atrelada ao grau de força ilocucionária projetado nos atos de fala emitidos. Num
gênero como ‘exame/prova de concurso’, ora acentuando, ora suavizando as
instâncias onde se materializam os atos de fala diretivos (e mesmo os assertivos
que os alicerçam), podem-se depreender efeitos modalizadores diversos, que
mantêm acesa a discussão entre performatividade e modalização, bastante em
voga nos dias atuais.
A par dessa perspectiva, neste capítulo, apresenta-se a análise dos atos de
fala veiculados nas questões 96 a 135 do Enem 2011, área de Linguagens,
Códigos e suas Tecnologias, caderno amarelo. O foco da análise recai sobre os
aspectos relativos à construção dos atos de fala nas referidas questões, à expressão
de modalização que atualizam, aos mecanismos de definição dos lugares do
locutor e do interlocutor nesse tipo de situação e, por fim, à própria relação que o
tipo de ato de fala em avaliação mantém com cada uma das questões formuladas
na prova.

1
Este capítulo é um desdobramento das atividades do projeto “Performatividade, Modalização e Prova do Enem em cena: foco nas
questões de língua portuguesa”, desenvolvido entre agosto de 2013 e julho de 2014, sob o apoio do PIBIC/CNPq/UFS.
129
1 O entrelace de teorias: diálogos entre performatividade e modalização

A Teoria dos Atos de Fala (TAF) teve como mentor o filósofo inglês John L.
Austin (1962), que compreendia a linguagem como forma de ação (“todo dizer é
um fazer”). Para a TAF, o texto oral ou escrito consiste na realização de um ato
locucionário, isto é, a emissão do falante de acordo com as regras de uma língua;
de um ato ilocucionário, o falante atribui à emissão uma determinada força, com
o objetivo de influenciar o comportamento do interlocutor; e um ato
perlocucionário, relacionado aos efeitos produzidos no interlocutor.
Austin (1962) estabelece cinco tipos de atos ilocucionários: os
vereditivos, os expositivos, os exercitivos, os comportativos, e os
compromissivos. Searle (2002), observando a classificação de Austin, detectou
algumas lacunas e a partir daí fez uma reclassificação dos atos propondo as
seguintes categorias: i) Assertivos: comprometem o falante com a verdade
expressa; ii) Diretivos: atos cujo propósito ilocucionário consiste na tentativa do
falante de levar o ouvinte a fazer algo; iii) Compromissivos: atos que têm como
propósito ilocucionário comprometer o falante com alguma linha futura de ação;
iv) Expressivos: transmite um estado psicológico; e por fim, v) Declarações: são
os atos que, quando bem sucedidos, apresentam uma correspondência entre o
conteúdo proposicional e a realidade, o “dizer faz existir”.
Ao produzirmos nossos enunciados, não o fazemos de forma neutra,
descompromissada. Há um modo específico para produção do que será proferido,
seja em maior ou menor intensidade. Esse modo indica o nosso grau de
comprometimento com o que dizemos, estabelecendo a relação entre língua e
mundo. Assim, dá-se o fenômeno da modalidade/modalização, codificada
linguisticamente pelos modalizadores:

1. Modalizadores deônticos: os modalizadores deônticos


predicam o conteúdo sentencial, que passa a ser entendido como
um estado de coisas que precisa ocorrer obrigatoriamente. Não é
a natureza do conhecimento expresso na sentença que está em
jogo. Compreende a obrigação, a proibição, a permissão e a
volição.

2. Modalizadores epistêmicos: expressam uma avaliação sobre o


valor de verdade da sentença, cujo conteúdo o falante apresenta
como uma afirmação ou uma negação. A crença que o falante
exterioriza sobre o conteúdo de seu enunciado.

130
Castilho e Castilho (1993) apontam para o fato de a modalização
mobilizar vários tipos de recursos linguísticos, como a prosódia, os modos verbais,
verbos auxiliares (querer e dever), verbos que constituem oração, adjetivos,
advérbios e outros. E da mesma forma como a modalização pode aparecer de
diversas maneiras, diferentes tipos de modalidades podem ser veiculados com um
mesmo item lexical, segundo Koch (2002). Este é o caso do verbo dever, que pode
veicular possibilidade, probabilidade, dúvida, certeza etc.
Um dos fatores que contribuem no direcionamento das respostas em
uma atividade e/ou avaliação é a forma como o enunciado é apresentado (o tipo
de ato de fala, os modalizadores empregados, etc.), pois os enunciados
direcionam a compreensão. A seguir, demostraremos, por meio de exemplos, o
diálogo entre as teorias da performatividade e modalização nas questões de
Linguagens, códigos e suas tecnologias da prova do Enem 2011.

2 Performatividade e modalização na prova do Enem

As questões foram classificadas em três tipos: atos diretivos; atos


assertivo-diretivos; e declarações assertiva-diretivas. Da mesma forma,
percebemos a existência de um efeito modalizador que engloba a maior parte dos
atos diretivos, a modalidade deôntica que, segundo Neves (2002, p.198), “não
está relacionada a uma avaliação do falante, mas a uma ação do próprio falante ou
de outros”. Ao prosseguir com os estudos, encontramos outro tipo de modalidade,
a epistêmica, presente nas questões classificadas como atos assertivo-diretivos.

3.1 Modalizadores deônticos

Identificamos modalizadores deônticos em dois tipos de atos de fala: atos


diretivos e atos assertivo-diretivos. Com a predominância dos atos diretivos, ou
seja, aqueles que são proferidos objetivando levar o ouvinte a realizar determinada
ação. Segundo a classificação de Searle (2002), os diretivos apresentam as
perguntas como sendo uma subclasse, pois ao se fazer uma pergunta espera-se
uma resposta por parte de quem ouve.
Constatamos que a maior parte das questões avaliadas possui uma
modalidade deôntica, pois a principal característica desses modalizadores é que
estão ligados diretamente aos atos diretivos. Como exemplo, apresentamos uma
questão da prova que apresenta característica de atos diretivos e a modalização
deôntica. Vejamos a questão do excerto (1):

131
(1) Considerando a reflexão trazida no texto a respeito da
multiplicidade do discurso, verifica-se que
a) estudantes que não conhecem as diferenças entre língua
escrita e língua falada empregam, indistintamente, usos aceitos
na conversa com amigos quando vão elaborar um texto escrito.
b) falantes que dominam a variedade padrão do português do
Brasil demonstram usos que confirmam a diferença entre a
norma idealizada e a efetivamente praticada, mesmo por falantes
mais escolarizados.
c) moradores de diversas regiões do país que enfrentam
dificuldades ao se expressar na escrita revelam a constante
modificação das regras de emprego de pronomes e os casos
especiais de concordância.
d) pessoas que se julgam no direito de contrariar a gramática
ensinada na escola gastam de apresentar usos não aceitos
socialmente para esconderem seu desconhecimento da norma
padrão.
e) usuários que desvendam os mistérios e sutilezas da língua
portuguesa empregam formas do verbo ter quando, na verdade,
deveriam usar formas do verbo haver, contrariando as regras
gramaticais. (questão 129, p. 17)

Nessa questão, temos no enunciado a precisão que o aluno realize a ação


de completar, a necessidade do fechamento do pensamento expresso,
característica dos atos diretivos. Ao apresentar um texto, o quesito exige que o
leitor reflita sobre a leitura feita, para assim então localizar o item que melhor
completa a sentença. Quanto à direção de ajuste dos atos diretivos temos palavra-
mundo, isto é, pretende-se fazer com que o mundo (responder à questão)
corresponda às palavras (ao enunciado da questão).
Com relação à modalização, a questão (1) faz parte da modalização
deôntica, pois seus modalizadores trazem a ideia de que o falante considera a
sentença como algo que deve ou precisa ser completado, ou seja, a obrigação de
um ato acontecer. A modalização deôntica é então um efeito primordial para
identificação do ato diretivo, pois ele predica o conteúdo sentencial, que passa a
ser entendido como algo que necessita de resposta.
Identificamos o fenômeno da modalização também em questões de atos
assertivo-diretivos, que apresentam duplo caráter de ato de fala (assertivo e
diretivo), e mais uma vez o efeito modalizador deôntico faz-se presente.
Com relação a esse tipo de questão, observamos que elas apresentam
informações por meio de afirmações sobre o texto (personagens, assunto tratado,
contexto social expresso etc.), sobre o autor do texto ou sobre algum assunto
132
relacionado ao texto. Por apresentarem afirmações, consideramos esse tipo de
questão como ato ilocucional assertivo, pois ao afirmarmos estamos nos
comprometendo com a verdade expressa, temos a crença (que p), características
dos atos de fala assertivos. Mas o assertivo não aparece sozinho, ele introduz outro
tipo de ato, o diretivo. Essa introdução não acontece por acaso, mas funciona
como preparação para o diretivo, que, por sua vez, exige uma compreensão e
aceitação do assertivo apresentado. Vamos à análise de uma questão de ato
assertivo-diretivo no excerto (2).

(2) O anúncio publicitário está intimamente ligado ao ideário de


consumo quando sua função é vender um produto. No texto
apresentado, utilizam-se elementos linguísticos e extralinguísticos
para divulgar a atração “Noites do Terror”, de um parque de
diversões. O entendimento da propaganda requer do leitor

a) a identificação com o público-alvo a que se destina o assunto.


b) a avaliação da imagem como uma sátira às atrações de terror.
c) a atenção para a imagem da parte do corpo humano
selecionada aleatoriamente.
d) o reconhecimento do intertexto entre a publicidade e um dito
popular.
e) a percepção do sentido literal da expressão “noites do terror”,
equivalente à expressão “noites de terror”. (questão 102, p. 8).

Em (2), encontramos o ato assertivo no início da questão, nesse caso, o


falante se compromete com o que está sendo dito. Em seguida, rastreamos o ato
diretivo, explicitado no final da sentença, buscando fazer com que o interlocutor
realize uma ação. Diante do ato diretivo, encontramos o modalizador deôntico
atuando novamente com a função de “obrigar” o candidato a se posicionar,
condicionando-o a escolher uma das opções de resposta.
Notamos que os modalizadores deônticos produzem uma força
ilocucionária X, que conduz o candidato à determinada ação. No caso do Enem, a
ação seria responder a uma das sentenças propostas e apenas uma é tida como
verdadeira.

3.2 Modalizadores epistêmicos

Dando continuidade à investigação dos efeitos modalizadores,


identificamos a presença da modalidade epistêmica, compreendendo o
pressuposto de Neves (2002), que classifica este efeito como uma avaliação de
133
verdade da sentença feita pelo falante. Correspondendo a este modalizador está o
excerto (3):

(3) No romance O Cortiço (1890), de Aluízio Azevedo, as


personagens são observadas como elementos coletivos
caracterizados por condicionantes de origem social, sexo e etnia.
Na passagem transcrita, o confronto entre brasileiros e
portugueses revela prevalência do elemento brasileiro, pois
a) destaca o nome de personagens brasileiras e omite o de
personagens portuguesas.
b) exalta a força do cenário natural brasileiro e considera o do
português inexpressivo.
c) mostra o poder envolvente da música brasileira, que cala o
fado português.
d) destaca o sentimentalismo brasileiro, contrário à tristeza dos
portugueses.
e) atribui aos brasileiros uma habilidade maior com
instrumentos musicais. (questão 119, p. 14).

Notamos que o enunciado visa avaliar a crença do leitor (no caso, o


candidato) sobre um determinado assunto, ou seja, seu conhecimento de mundo
sendo avaliado, como ocorre em (3). Ao reportar o leitor ao conhecimento de uma
determinada obra, no caso “O Cortiço”, a questão avaliada tende a instigar o
candidato sobre o perfil dos personagens presentes na obra, pressupondo o
conhecimento deste para responder ao questionamento.
Com isto, nota-se a prevalência de apenas um modalizador, o epistêmico;
que está veiculado por um ato assertivo-diretivo. O epistêmico revela sua
finalidade, que consiste em fazer o falante/leitor exteriorizar seu conhecimento na
área através do conteúdo apresentado. Para um posicionamento crítico a
respeito do enunciado, o estudante precisa ter uma noção do que está sendo
abordado, sendo este o papel da modalidade selecionada.

3.3 Modalizadores deônticos e epistêmicos

Constatou-se, também, a ocorrência de dois modalizadores (deônticos e


epistêmicos) presentes num mesmo enunciado. Este fenômeno ocorre em (4) da
seguinte forma:

(4) A memória é um importante recurso do patrimônio


cultural de uma nação. Ela está presente nas lembranças
134
do passado e no acervo cultural de um povo (grifo nosso). Ao
tratar o fazer poético como uma das maneiras de se guardar o
que se quer, o texto
a) ressalta a importância dos estudos históricos para a construção
da memória social de um povo.
b) valoriza as lembranças individuais em detrimento das
narrativas populares ou coletivas.
c) reforça a capacidade da literatura em promover a subjetividade
e os valores humanos.
d) destaca a importância de reservar o texto literário àqueles que
possuem maior repertório cultural.
e) revela a superioridade da escrita poética como forma ideal de
preservação da memória cultural. (questão 120, p.14)

Classificamos o ato de fala presente no enunciado como declaração


assertivo-diretiva, pois apresenta inicialmente uma definição e, conforme nos
apresenta Mari (2001), estas consistem em um modelo de realização dos
declarativos. Porém, observamos que a questão apresenta uma peculiaridade, isto
é, um proferimento de um assertivo com força de um declarativo. Searle (2002)
nomeia essa categoria como declaração assertiva. As declarações assertivas
“diferentemente das outras declarações, partilham com os assertivos uma
condição de sinceridade”. (SEARLE, 2002, p.30).
Dessa forma, tomando como base essa concepção estabelecida por Searle
(2002), podemos classificar a questão como declaração assertiva, que tem o
propósito ilocucional de proferir um assertivo com a força de uma declaração,
tendo a direção do ajuste assertiva (palavra-mundo) e a direção do ajuste dos
declarativos (direção dupla mundo-palavra e palavra-mundo, pois quando
definimos algo estamos fazendo com que nossas palavras correspondam àquilo
que já existe – mundo-palavra, assim como também estamos fazendo com que o
que já existe ajuste o que vamos proferir – palavra-mundo). Notamos, também,
que essas questões apresentam em seguida um ato diretivo. Dessa forma,
classificamos como uma declaração assertivo-diretiva, porque, além da declaração
assertiva, a questão também apresenta um ato diretivo.
Notamos que o exemplo (4) apresenta dois efeitos modalizadores:
deôntico e epistêmico. No início da questão, a qual foi destacada para facilitar a
compreensão, a intenção é afirmar algo. Logo, tem-se a ideia da atuação de um
modalizador epistêmico. Em seguida, o leitor é condicionado a um julgamento, ou
seja, seus conhecimentos a respeito do conteúdo sentencial que foi apresentado
no início são postos para avaliação negativa ou afirmativa (modalidade deôntica).

135
No primeiro momento, o candidato precisa interpretar o que está escrito
no texto que antecede o enunciado, avaliando seu nível de conhecimento na área;
depois do reconhecimento (ou não) daquilo que foi apresentado, o estudante
tende a formular um pensamento crítico e, consequentemente, apresentar um
juízo de valor escolhendo uma das cinco opções de resposta.
Tendo em vista todas as ocorrências identificadas, a distribuição dos
efeitos modalizadores é apresentada no gráfico 1.

67%

18%
15%

Gráfico 1: Distribuição dos efeitos modalizadores das questões 96 a 135, Enem 2011.

Das 40 questões analisadas e classificadas, obtivemos um percentual de


15% para os modalizadores deônticos e epistêmicos presentes na mesma
sentença, totalizando apenas seis ocorrências. Com percentual um pouco mais
elevado, as questões que apresentaram os modalizadores epistêmicos
compreendem a aproximadamente 18%, resultado encontrado em sete questões.
Em consonância com o gráfico acima, a maior incidência de efeitos modalizadores
foi o do tipo deôntico, correspondendo a aproximadamente 67% das sentenças,
mais precisamente, 27 questões.
Concluímos que a maior incidência da modalização deôntica nos atos
diretivos deve-se ao fato da reciprocidade nesta relação, pois para identificar o ato

136
diretivo na questão, o modalizador predica o conteúdo sentencial, sendo
compreendido como algo que necessita de resposta.

Considerações finais

A análise das questões da prova de Linguagens, Códigos e suas


Tecnologias do Enem 2011 permitiu a identificação de efeitos modalizadores
deônticos e epistêmicos que estão intimamente relacionados aos tipos de atos
diretivos, assertivo-diretivos e declarações assertivo-diretivas. Entre esses efeitos,
destaca-se o deôntico, principalmente nos atos de fala prototipicamente diretivos,
aqueles cujo foco incide numa linha de ação futura pelo candidato ao exame. De
tal modo, o modalizador atua de maneira a predicar o conteúdo sentencial, que
passa a ser entendido como algo que necessita de resposta. Grosso modo, há um
estreito vínculo entre performatividade e modalização.
No que concerne à disposição do conteúdo das/nas questões estudadas,
pode-se afirmar que, ao priorizar a avaliação de competências e habilidades dos
alunos a partir de uma concepção de língua voltada para o funcionamento, a
prova do Enem apresenta uma perspectiva avaliativa peculiar, revelando uma
tentativa de romper com a educação tradicional, marcada pela análise de
categorias e/ou estruturas gramaticais de modo estanque.
Tal afirmação se sustenta na medida em que reconhecemos no exame a
prospectiva de fazer o aluno demonstrar capacidade para interpretar gráficos,
textos, mapas e outras informações em diversas de linguagens. Da mesma forma,
busca verificar se o aluno é capaz de argumentar, solucionar problemas cotidianos
e práticos, elaborar propostas de intervenção social e apresentar ideias bem
estruturadas.

Referências
AUSTIN, J. L. How to do things with words. Oxford: Clarendon Press, 1962.
CASTILHO, Ataliba T. de; CASTILHO, M. M. de. Advérbios modalizadores. In: ILARI, Rodolfo
(org.). Gramática do português falado. 2 ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1993.
KOCH, Ingedore G. Villaça. Argumentação e linguagem. São Paulo: Cortez, 2002.
MARI, Hugo. Atos de fala: notas sobre origens, fundamentos e estrutura. In: MARI, Hugo et alii.
Análise do discurso: fundamentos e práticas. Belo Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso,
FALE/UFMG, 2001, p. 93-131.

137
NEVES, Maria Helena de Moura. A modalidade. In: KOCH (org.). Gramática do português
falado. 2 ed. ver. Campinas: Editora da UNICAMP, 2002, p.171-208.
SEARLE, John. Uma taxinomia dos atos ilocucionários. In: Expressão e significado: estudos da
teoria dos atos de fala. (Tradução de Ana Cecília G. A. de Camargo e Ana Luiza Marcondes Garcia).
2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 01-46.

138
Alternância gênero/texto nas
questões da prova de
Linguagens, códigos e suas
tecnologias do Enem
Denise Porto Cardoso
Fabíola dos Santos Lima
Francielle Santos Araújo

Introdução

A leitura é imprescindível na vida do homem. Ler é entender o que nos


transmitem as palavras, é reconhecer o sujeito e sua ação no texto. Pela leitura o
ser humano interage com o outro e com o mundo, em um processo em que o
outro é sujeito ativo, em uma atitude responsiva. Os estudos acerca da
importância e funcionalidade da leitura e escrita na vida dos sujeitos têm
modificado a compreensão acerca dessas atividades. A leitura e a escrita deixaram
de ser vistas como simples exercícios individuais com objetivos únicos e passaram
a ser entendidas como atividades complexas, que envolvem diferentes sujeitos, os
quais desempenham diferentes papéis, através de uma série de ações de ordem
linguística, cognitiva e social. “Saber ler e escrever é, portanto, muito mais que
dominar uma técnica ou um sistema de sinais: é agir sobre o mundo e defender-
se dele, sempre em situações específicas e concretas, intencionalmente
construídas e com objetivos claros.” (FARACO; TEZZA, 2011, p.128).
Tomando como base as Diretrizes, os PCNEM e os PCN+ (BRASIL, 1999;
2002), o aluno egresso do ensino médio deve ter conhecimento das diversas
manifestações da linguagem verbal, sendo capaz de compreendê-las, transformá-
las, aplicá-las etc.

Isso implica o desenvolvimento de capacidades como saber


avaliar e interpretar os textos representativos das diferentes
139
manifestações de linguagem; saber julgar, confrontar, defender
e explicar as suas ideias, de modo a tomar uma composição
consciente em relação ao ato interlocutivo, que, no contexto do
ensino de leitura, é a situação de leitura do texto (JURATO; ROJO,
2006, p. 39).

Jurato e Rojo (2006) consideram que o aluno deve construir sua


competência investigativa e compreensiva para desenvolver essas capacidades. Ao
lidar com textos o aluno deve analisar os elementos que determinam as formas
de dizer (o contexto, os gêneros discursivos, os interlocutores, os recursos
utilizados por esses para dizer o dito e o não-dito). Além disso, a competência de
contextualizar socioculturalmente o texto lido está relacionada a essas
capacidades. Seguindo essa orientação de leitura, o nosso trabalho,
primeiramente, faz uma breve contextualização sobre os gêneros textuais e
domínios discursivos baseados nos estudos de Marcuschi (2008) e apresenta
análise dos gêneros e dos domínios discursivos como conteúdo avaliativo nas
questões de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias (LCT) da edição de 2013 do
Enem. Temos como finalidade contribuir para o ensino, visando à melhor
eficiência em leitura e minimização do fracasso escolar. Vale ressaltar que não é
nossa intenção avaliar o Enem como instrumento de avaliação e sim identificar
como os gêneros textuais e os domínios discursivos estão inseridos no exame que
avalia as competências e habilidades conquistadas pelo alunado durante sua vida
escolar.

1 Gêneros e domínios discursivos

O uso de uma língua é realizado através de enunciados, sejam estes orais


ou escritos. Os enunciados, segundo Bakhtin (2003), são relativamente estáveis e
ele os denomina de gêneros do discurso. Só há interação verbal, comunicação
com o outro, a partir de algum gênero, isto é, tudo que produzirmos
linguisticamente só pode ser efetuado através dos gêneros, por tal motivo há uma
infinidade deles.1
O gênero textual está relacionado à diversidade de estruturas textuais com
características, marcas e funções específicas. Uma bula de remédio, um e-mail,
uma receita, uma história em quadrinho, cada um desses textos possui as suas
próprias características e funções específicas, ou seja, cada um exerce um papel

1
Gêneros textuais e gêneros discursivos, neste capítulo, são usados indistintamente.
140
diferente e representa um gênero textual. Assim, a escolha do gênero X ou Y é
determinada a partir da intenção do sujeito e da situacionalidade em que este está
inserido e não de forma aleatória. Os gêneros possuem identidades e essas
condicionam as escolhas visando, principalmente, quem escreve, para quem se
escreve, para que se escreve Acerca disso, Bakhtin diz que

Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial,


cotidiana) e dadas condições, específicas para cada uma das
esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja,
um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de
vista temático, composicional e estilístico. (BAKHTIN, 2003,
p.284).

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) estimulam a


presença dos gêneros, sejam eles orais ou escritos, no livro didático, com o
objetivo de tornar os alunos proficientes leitores e produtores de textos. Para
Bakhtin (2003), gênero se define como “tipos relativamente estáveis de
enunciados”, pois podem sofrer modificações de acordo com a necessidade do
interlocutor, e são caracterizados por três elementos básicos: conteúdo temático,
estilo e construção composicional. Ainda para Bakhtin, os gêneros são ricos e com
infinitas variedades, uma vez que a multiplicidade de comunicação humana é
inesgotável. De acordo com o autor, os gêneros do discurso se dividem em
primário e secundário. O primeiro apresenta uma elaboração mais simples e é
representado por situações de comunicação espontânea e não elaboradas, são os
diálogos, bilhetes etc. Já os secundários são mais complexos e são,
principalmente, textos escritos, ou seja, precisam de uma elaboração maior:
resenhas, artigos, romances etc.
O que não se pode confundir são os gêneros com os tipos de texto ou,
ainda, construir uma oposição/dicotomia entre eles. Não existem gêneros versus
tipos, há na verdade uma complementação, integração. Falar de tipos é referir-se a
“modos” e características finitas de textos, são elas: Narração, Argumentação,
Exposição, Descrição e Injunção. Tratar da junção de gênero e tipos é afirmar que
todo gênero possui um ou mais tipo de texto. Assim, existem poemas (gênero)
descritivos (tipo), é natural que uma carta pessoal (gênero) contenha narração,
descrição e injunção (tipos) por isso há uma complementaridade e não uma
oposição como muitos pensam.
Por falar em gêneros e tipos, é relevante abordar sobre os domínios
discursivos. É a partir destes que se constituem as práticas discursivas em que
podemos identificar conglomerados de gêneros textuais. Os domínios produzem,
141
segundo Marcuschi (2008), “modelos de ação comunicativa que se estabilizam e
se transmitem de geração para geração com propósitos e efeitos definidos e
claros”. Marcuschi demarca os domínios em: Instrucional (textos científicos,
acadêmicos e educacional), Jornalístico, Religioso, Saúde, Comercial, Industrial,
Jurídico, Publicitário, Lazer, Interpessoal, Militar e Ficcional. São esses domínios
que fazem com que numa missa não usemos o gênero piada e sim o gênero
oração, por exemplo, ou vice-versa, pois não é sofisticado que num momento de
alta descontração usemos o gênero oração. Além disso, os domínios organizam as
relações de poder. É, portanto, natural que juízes e advogados utilizem, de forma
eficaz, o domínio Jurídico (este possui gêneros como: leis, regimento, boletim de
ocorrência) e não de forma tão eficaz o domínio Saúde (receita médica, parecer
médico, bula de remédio) esse é de domínio, principalmente, de um farmacêutico
ou de um médico.
Dessa forma, cada indivíduo faz uso do poder que lhe é imposto na
sociedade. O aluno, por sua vez, precisa conhecer os gêneros, os tipos e seus
respectivos domínios discursivos de maneira parcial não só para que possa ter
boas práticas textuais como também para ampliar sua compreensão da realidade.

2 Enem: a aplicação dos gêneros e seus respectivos domínios


discursivos

O Enem tem por intuito avaliar através da leitura/interpretação e soluções


de problemas, as competências e habilidades dos alunos. Busca-se discentes
polivalentes, isto é, que apliquem /possuam várias competências e habilidades.

Competências são as modalidades estruturais da inteligência, ou


melhor, ações e operações que utilizamos para estabelecer
relações com e entre objetos, situações, fenômenos e pessoas que
desejamos conhecer. As habilidades decorrem das competências
adquiridas e referem-se ao plano imediato do “saber fazer”. Por
meio das ações e operações, as habilidades aperfeiçoam-se e
articulam-se possibilitando nova reorganização das competências.
(BRASIL, 2002, p. 5)

Em outras palavras, as competências referem-se às capacidades de


aprendizagem e estão fundadas em habilidades que permitem a construção

142
contínua de conhecimento. Já as habilidades correspondem ao desenvolvimento
das aptidões intrínsecas ao ser humano.
O que de fato nos interessa é observar e analisar como o Enem nomeia os
Gêneros Textuais e como estes estão aplicados na prova de Linguagens, Códigos e
suas Tecnologias. Nela se faz presente uma enorme variação de gêneros.
Entendemos que o exame busca trabalhar com a diversidade de Gêneros, pois é
através deles que as interações nas atividades sociais são realizadas. Além disso,
reflete a perspectiva pedagógica que defende a necessidade das escolas
trabalharem de forma diversificada o ensino de língua portuguesa. Há na prova
gêneros simples e complexos, entre eles charges, piadas, cartas, gráficos, artigos
de opinião, fragmentos de romance etc. Além disso, os gêneros escritos estão mais
presentes que os gêneros orais. Mas o que de fato nos chamou atenção é a
maneira como os gêneros avaliados são identificados por meio de alguma
denominação ao longo da questão na prova LCT em 2013. Percebemos que há
uma multiplicidade de denominação. Na questão 119, da prova amarela,
encontramos uma denominação de senso comum, vejamos na figura 1.
A charge é um tipo de cartum, “cujo objetivo é a crítica humorística de
um fato ou acontecimento específico, em geral de natureza política” (RABAÇA,
2002, p.89). Uma boa charge deve procurar um assunto atual e ir direto onde
estão centradas a atenção e o interesse do público leitor. A charge é um tipo de
texto atraente aos olhos do leitor; afinal, enquanto imagem é de rápida leitura e
transmite múltiplas informações de uma só vez. No entanto, o leitor da charge
tem que estar sempre bem informado acerca do tema abordado, para que possa
compreender e captar seu teor crítico. Afinal, ali está focalizada e sintetizada uma
certa realidade. E somente os que conhecem essa realidade efetivamente
entendem a charge. A charge é temporal, relata um fato ocorrido em uma época
definida, dentro de um determinado contexto cultural, econômico e social
específico. Além disso, a charge é humor em toda a sua essência. Por isso mesmo,
é um instrumento de persuasão, sempre intervém no processo de definições
políticas e ideológicas do receptor, através da sedução pelo humor.
Por todos esses motivos, é importante utilizar a charge nas provas do
Enem e denominá-la no enunciado, como na questão 119, facilitará que o aluno
perceba qual será a “intenção” do exame, pois é comum as charges abordarem
sobre a realidade e mais natural ainda que questões como as da prova do Enem
indaguem sobre qual o humor da charge ou tira, assim o examinado buscará no
próprio gênero ou fará inferência para alcançar a resposta correta.

143
Figura 1: Gênero denominado. (Prova amarela, questão 119, Enem 2013)

Mas o texto do Enem não traz apenas o gênero, como também se utiliza
da denominação do domínio discursivo, ou seja, “com formações históricas e
sociais que originam os discursos” (MARCUSCHI, 2008, p.158) sem especificar o
gênero em si. Ora, um domínio discursivo engloba vários gêneros e não é fácil
determinar para cada domínio discursivo suas coordenadas. Vejamos a questão
112, prova amarela, figura 2.

Figura 2: Gênero denominado pelo Domínio Discursivo (prova amarela, questão 112,
Enem 2013)
144
Também foram encontradas questões em que o gênero é
denominado/tratado apenas como texto. Sabemos com Marcuschi (2008, p. 160)
que “todos os textos realizam um gênero”, por isso, é muito comum essa
denominação, como na questão 103, da prova amarela, na figura 3.

Figura 3: Gênero tratado como texto (prova amarela, questão 103, Enem 2013).

E, por fim, foram encontradas questões que não apresentam nenhuma


denominação e que se depreende o gênero apenas ao verificar as referências do
texto, que nem sempre garante o reconhecimento, pois nomes de autores e obras
não são suficientes para que o estudante reconheça o gênero, como na figura 4.

Figura 4. Gênero não denominado no enunciado (prova amarela, questão 107, Enem
2013)
145
É importante ressaltar que, ao apresentar o gênero ao examinando, o
enunciado pode auxiliá-lo e situá-lo a respeito da competência e habilidade a
serem avaliadas pela questão. Na LCT de 2013, das 45 questões, apenas 18
denominam o gênero por seu nome. Outras 17 chamam-no apenas de “ texto” e
as outras 06 não fazem referência a nenhuma denominação, as 04 questões
restantes são da Língua Estrangeira escolhida pelo candidato e não nos detivemos
em observá-las. Dessas 18 questões, notou-se que aparecem os seguintes
domínios: Instrucional (textos acadêmicos, como trechos de artigos científicos),
Jornalístico (discurso de repórter, charges), Ficcional (poemas, trechos de
romances), Lazer (piadas, histórias em quadrinhos), Interpessoal (cartas),
Publicitário (cartaz). Sobre o olhar da tipologia textual não se encontrou uma
questão que se dirigisse diretamente a algum tipo de texto e sim de forma indireta
como na questão 117, da prova amarela: “A elaboração de uma voz narrativa
peculiar acompanha a trajetória literária de Clarice Lispector, culminada com a
obra A hora da estrela, de 1977, ano da morte da escritora. A leitura é algo
imprescindível na vida do homem. Ler é entender o que nos transmitem as
palavras, é reconhecer o sujeito e sua ação no texto. Pela leitura o ser humano
interage com o outro e com o mundo, em um processo em que o outro é sujeito
ativo, em uma atitude responsiva”. Da maioria das questões foi cobrada a
intrepretação; seis questões cobraram sobre gramática abordando sobre escolhas
morfossintáticas, pontuação e concordância e três indagaram sobre características
do gênero trabalhado na questão.

Considerações finais

Através das observações, percebemos, ainda, que são cobradas, em


grande parte das questões, a interpretação sobre diferentes manifestações da
linguagem. Dos gêneros são abordados a interpretação e pouquíssimas questões
tratam sobre o tema, composição ou estilo em si. Assim, as dimensões estilísticas
não são abordadas, evitando, então, que o aluno em sua vida escolar decore as
características de gênero X ou Y. Para que o alunado tenha êxito na prova, é
necessário que tenha uma capacidade leitora e a prática de leitura se faça presente
em seu cotidiano, porque ser leitor envolve o domínio dos códigos verbal e não-
verbal. O aluno não deve ser um receptor passivo, mas um sujeito no processo da
aprendizagem, revelando autonomia na construção do conhecimento. Ao
considerar a leitura como produção de sentido, os PCN afirmam que:

146
A leitura é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo
de compreensão e interpretação do texto, a partir de seus
objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de
tudo o que sabe sobre a linguagem etc.[...] Trata-se de uma
atividade que implica estratégias de seleção, antecipação,
inferência e verificação, sem as quais não é possível proficiência.
É o uso desses procedimentos que possibilita controlar o que vai
sendo lido, permitindo tomar decisões diante de dificuldades de
compreensão, avançar na busca de esclarecimentos, validar no
texto posições feitas (BRASIL, 1998, p. 69-70).

Corroborando com os documentos oficiais, Marcuschi (2006) afirma que


a língua não é apenas um código, porque as atividades de leitura vão além da
decodificação. O texto não é produto, mas processo que ocorre na relação
interativa e na sua situacionalidade; os efeitos de sentido se dão pela relação
mútua entre produtor e leitor em situações de uso. Deste modo, a leitura deve
estar associada à compreensão, entendida como processo de construção de
sentidos, produção de conhecimento baseada em atividades inferenciais, ou seja,
uma relação entre conhecimentos pessoais confrontados com conhecimentos
textuais. Assim, com uma boa bagagem de leitura e conhecimentos extra-textuais,
o aluno estará habilitado para ingressar no ensino superior.

Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo:Martins Fontes, 2003.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de educação fundamental. Parâmetros
curriculares nacionais terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa.
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curriculares ensino médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEF, 1999.
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MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo:
Parábola, 2008

147
RABAÇA, Carlos Alberto e Barbosa, Gustavo Campos. Dicionário de comunicação. Rio de Janeiro:
Editora Campus, 2002.

148
Seção III

IMPACTOS E PERCEPÇÕES DO
ENEM

149
150
O Enem enquanto política
pública
Marlucy Mary Gama Bispo

Introdução

Os sistemas de avaliações em larga escala, nas duas últimas décadas, têm


ocupado um espaço privilegiado no cenário da educação brasileira, fato que não
pode ser entendido fora do contexto que envolve políticas públicas nacionais e
organismos internacionais de gestão, ressaltando-se o Banco Mundial, Fundo
Monetário Internacional e a Organização para as Nações Unidas para a Educação,
Ciência e Cultura.
Na década de 1990, o Estado avaliador esteve em destaque, ancorado na
promulgação da Lei de Diretrizes e Bases nº 9.394/1996, que determina que o
Estado deve assegurar o processo nacional de avaliação de rendimento escolar, em
todos os níveis de ensino com o objetivo de definir prioridades e melhorias no
tocante à qualidade de ensino (BRASIL, 1996). Acrescente-se ao advento da Lei a
consolidação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), a
criação do Exame Nacional de Cursos (ENC – doravante, SINAES – Sistema
Nacional de Avaliação da Educação Superior, do qual o ENADE – Exame Nacional
de Desempenho de Estudantes é parte integrante) e a instituição do Exame
Nacional do Ensino Médio (Enem), este último objeto deste estudo.
Dado o seu atual status – forma de ingresso nas universidades públicas
federais – o Enem, como significativo modelo de avaliação em larga escala, tem
sido responsável por condicionar o currículo do Ensino Médio da escola brasileira.
Daí a justificativa e a relevância deste estudo, que tem como objetivo principal
analisar de que forma esta política educacional tem sido implementada,
considerando os fenômenos que envolvem conceitos técnicos do modelo teórico
de avaliação da policy cicle.
Para tanto, tem-se como ponto de partida o questionamento: como o
Enem, dentro do modelo de avaliação da policy cicle, tem se configurado,
enquanto política pública educacional para o Ensino Médio?

151
1 Reformas no Ensino Médio

A primeira reforma oficial do sistema educacional brasileiro, Reforma


Francisco Campos, ocorrida em 1931, no governo provisório de Getúlio Vargas,
torna-se marco significativo, na história da educação secundária, considerando
que foi nessa ocasião que foram dados os primeiros passos para organização de
um nível de ensino que sequenciasse o ensino primário e antecedesse o ensino
superior, embora o Colégio Pedro II, fundado em 1837, já oferecesse ensino
secundário a um grupo seleto da elite brasileira. Tais reformas, ainda que não
tenham atingido todos os ramos de ensino, puderam dar organicidade ao ensino
secundário, comercial e superior (SHIROMA et al.2007).
O Ensino Secundário foi instituído através do decreto nº 19.890 de
18/04/1931, a partir de então, além do Pedro II, o ensino era ministrado,
também, em outros espaços institucionais. Dividido em dois ciclos, fundamental e
complementar, perfazia um total de sete anos. A natureza fundamental era de
formação geral básica, enquanto a do curso complementar (dois anos) era de
preparação para o acesso aos cursos superiores, com ensino sistemático de grego
e latim.
Já o Ensino Comercial, instituído no mesmo ano do Secundário, através
do decreto nº 20.158, de 30/06/1931, era formado por cursos de duração e carga
horárias menores que a do seu congênere, três anos para o ensino propedêutico e
dois a três anos para o curso técnico. Não se ensinava grego nem latim, e, sim, as
línguas do comércio, inglês e francês.
Constata-se que a implantação do ensino secundário se deu, num
contexto específico, para atender a uma demanda político-social, de um momento
histórico, notadamente marcado pela modernização da sociedade e aceleramento
industrial. “Essas necessidades prementes mobilizaram as elites sociais e
dirigentes políticos a reivindicar por reforma e a expansão do sistema educacional
brasileiro”. (NASCIMENTO, 2007, p.80). E essa lógica perpassa por toda história
do Ensino Médio brasileiro, consolidada por leis e decretos.
Com a promulgação da última LDB, a 9394/96, em consonância com os
fundamentos filosóficos da Constituição de 1988, tem-se inaugurado o Estado
avaliador, em todos os níveis da educação brasileira.
No ano de 1998, o Enem se estabelece enquanto política pública
educacional para o Ensino Médio, responsável pela avaliação do desempenho de
estudantes concluintes dessa modalidade de ensino.
As propostas e reformas dessa política serão analisadas, dentro do modelo
de avaliação do policy cicle.
152
2 O modelo de avaliação do Policy cicle

A concepção de policy cicle apresenta a resolução ou avaliação de um


problema numa sequência de fases. Souza (2006) partilha deste pensamento
quando afirma que “esta tipologia vê a política pública como um ciclo deliberativo,
formado por vários estágios e constituindo um processo dinâmico e de
aprendizado” (SOUZA, 2006, p.29).
Inicialmente, convém dar visibilidade a alguns conceitos que permeiam
os caminhos da avaliação de políticas. Saliente-se o pensamento de Schmitz e
Almeida no que se refere à diferença entre avaliação de políticas e políticas de
avaliação: “Enquanto a política de avaliação tem como objeto determinado serviço
ou setor, neste caso a educação, a avaliação de políticas tem como objeto as
próprias políticas, inclusive a política de avaliação” (SCHMITZ; ALMEIDA, 2011, p.
32).
Partindo desse entendimento, outro conceito que merece destaque nesta
abordagem diz respeito ao termo política. Para tanto se enuncia a distinção do
fenômeno da política, em três dimensões, ainda segundo as autoras, de acordo
com Druwe (1994): a estrutura do sistema político (politics), os processos
internos do sistema político (polity) e o conteúdo político (policy), dimensões que
estão operacionalmente interligadas. No caso deste estudo, a ênfase está na
dimensão da policy, isto é, na dimensão do conteúdo em fase de
operacionalização,

dimensão complexa que não pode fechar seu olhar para as


dimensões politics e polity, porque a percepção, a formulação, a
implementação e os resultados de determinada política não são
independentes da estrutura e dos processos políticos [...] o foco
desta dimensão policy é a operacionalização da política.
(SCHMITZ; ALMEIDA, 2011, p. 32).

Ressalte-se que, para Azevedo (2004), citado por Parente, Peres e Matos
(2011) “ a política educacional definida como policy – é um fenômeno que se
reproduz no contexto das relações de poder expressas nas politics.” (PARENTE;
PERES; MATOS, 2011, p. 18).
É a partir dessa compreensão teórica do Enem enquanto política
educacional, enquanto policy, enquanto conteúdo político e operacionalização da
política que será sistematizada uma análise tendo como matriz o modelo do
policy cicle.
153
Ademais, num olhar metalinguístico, o código explicando o próprio
código, a expressão policy cicle se anuncia apresentando a ideia de ciclo da
política, o que, para Baptista e Rezende,

[...] talvez seja a perspectiva mais corrente e compartilhada nos


estudos atuais de política, com grande parte dos estudos fazendo
uma análise por momentos ou fases do processo político. Apesar
das críticas ao modelo (caráter funcionalista, racional e que tenta
manter o controle sobre o processo político), este persiste no
debate acadêmico como referência. (BAPTISTA; REZENDE, 2011,
p.132).

Este pensamento é muito próximo do de Frey (2000), quando afirma que


quando se subdivide o agir público em fases parciais do processo político-
administrativo para resolução de problemas, o policy cicle se revela como um
modelo heurístico importante para a análise de uma política pública. Esta
tipologia vê a política pública como um ciclo deliberativo, formado por vários
estágios e constituindo um processo dinâmico e de aprendizado.
Em suma, este modelo de gestão, de forma dinâmica e ética, busca aliar
planejamento, comunicação e avaliação. (SCHMITZ; ARGOLLO; TENÓRIO, 2009).

3 O Enem enquanto política pública e o Policy cicle

Para analisar a configuração do Enem, enquanto política pública de


avaliação do Ensino Médio, do período da sua criação a 2014, seguiremos o
modelo do diagrama de Bussmann, Klöti e Knoepfel (1997), traduzido e adaptado
por Schmitz, Argollo e Tenório (2009). Para estes autores, o modelo “aponta para
a realização sistemática e continuada da avaliação, que numa perspectiva
formativa produzirá informações em todas as fases do policy-cicle e numa
perspectiva somativa produzirá informações necessárias à avaliação de impacto e
de resultados” (SCHMITZ; ARGOLLO; TENÓRIO, 2009, p.31).
O modelo, conforme diagrama, está organizado em seis fases: Fase 1 -
Definição do problema; Fase 2 - Agenda setting; Fase 3 - Formulação de
uma política; Fase 3.1 - Conceito do projeto, Fase 3.2 - Desenho administrativo;
Fase 4 - Implantação da política projeto, Fase 4.1 - Planos de Ação, Fase 4.2 -
Arranjo administrativo; Fase 5 - Avaliação Final, Fase 5.1 - Outcome, Fase 5.2 -
Impacto, Fase 5.3 - Output; Fase 6 - Reformulação do projeto.

154
Figura1: Policy cicle. Adaptada de Bussmann, Klöti e Knoepfel (1997)

3.1 Fase 1: Definição do problema: avaliação do Ensino Médio

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional- LDB 9394/96


determina a obrigatoriedade do Ensino Médio bem como que o Estado organize
seu processo de nacional avaliação do rendimento escolar, no sentido de garantir
prioridades e melhorias na qualidade do ensino (BRASIL, 1996).
Dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB)
apresentam resultados do rendimento escolar no Ensino Médio aquém às tímidas
metas estipuladas pelo Governo. Para o ano de 2013, a meta de melhoria para
esse nível de ensino, estipulada pelo MEC, era de 3,9 pontos, entretanto, o
número registrado foi de 3,7. Somente os estados de Amazonas, Pernambuco, Rio
de Janeiro e Goiás corresponderam a tais expectativas.

155
Este é um indicativo que, certamente entre outros, denuncia que o
Ensino Médio no Brasil apresenta sérios entraves, consequentemente, a avaliação
dessa modalidade de ensino configura-se como um problema. Dentro do modelo
de análise proposto a identificação do problema se configura como a primeira
fase do processo.

3.2 Fase 2: Agenda setting

Segundo Parente, Perez e Mattos, a construção ou elaboração da agenda


se dá quando o governo inclui ou não determinado problema ou assunto na
relação de suas prioridades. Para estes autores, “de maneira geral a agenda é
composta pelos problemas que se constituem na preocupação do país, dos
cidadãos e que necessitam de atenção dos governos ou soluções urgentes”
(PARENTE; PEREZ; MATTOS, 2011, p.20).
A avaliação do Ensino Médio compõe a agenda do governo brasileiro,
mesmo antes da criação do Enem, em 1998. A seguir são elencados documentos
oficiais que comprovam histórica e legalmente tal inserção.

 LDB 9394/96: Art. 7º: O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes
condições: I - autorização de funcionamento e avaliação de qualidade pelo Poder
Público. Art. 36: estabelece as diretrizes para o currículo do ensino médio.
 PNE 1996: em vigor de 2001 a 2010, vigeu como meta “expandir a oferta e
melhoria da qualidade do Ensino Médio” e alertava para a necessidade de “correção
do fluxo de alunos na escola básica, hoje com índices de distorção idade-série
inaceitáveis” (BRASIL, 2001).
 PNE 2011 a 2020: a preocupação com a taxa líquida de matrícula é explicitada na
meta 3: “universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de
quinze a dezessete anos e elevar, até o final do período de vigência deste PNE, a taxa
líquida de matrículas no ensino médio para oitenta e cinco por cento” (BRASIL,
2010).
 Resolução CNE/CEB nº 2, de 30 de janeiro de 2012: define as Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. O art. 21º trata do Sistema de Avaliação
da Educação Básica - Saeb e prevê que o Exame Nacional do Ensino Médio - Enem
assuma, progressivamente, as funções de: I - avaliação sistêmica; II - avaliação
certificadora; III - avaliação classificatória (BRASIL, 2012).
 PNE 2014 a 2024 - Meta 7, estratégia 7.7 : “aprimorar continuamente os
instrumentos de avaliação da qualidade do ensino fundamental e médio, de forma a
englobar o ensino de ciências nos exames aplicados nos anos finais do ensino
fundamental, e incorporar o Exame Nacional do Ensino Médio, assegurada a sua
universalização, ao sistema de avaliação da educação básica, bem como apoiar o uso
dos resultados das avaliações nacionais pelas escolas e redes de ensino para a
melhoria de seus processos e práticas pedagógicas” (BRASIL, 2014).
156
3.3 Fase 3: Formulação da política

A formulação é caracterizada como “a fase de elaboração do projeto


propriamente dito, ou seja, o momento em que um conjunto de dados, de
informações relevantes, combinados com valores, ideais e princípios podem
resultar ou produzir um conhecimento, uma ação orientada” (PARENTE, PEREZ;
MATTOS, 2011, p.20). Cabe a esta fase apresentar documentos – editais e
portarias – que formularam o Enem, o caracterizando como política de Estado. Na
matriz do policy cicle, são delineados o conceito e o desenho administrativo do
projeto.

3.3.1 Fase 3.1: Conceito do projeto

O Exame Nacional do Ensino Médio foi criado no governo de Fernando


Henrique Cardoso, através da Portaria Ministerial nº 438 de 28 de maio de 1998,
como procedimento de avaliação do desempenho do aluno. O objetivo principal da
referida Portaria, resume-se na finalidade de proporcionar, aos concludentes do
Ensino Médio, uma avaliação de desempenho, obedecendo a uma estrutura de
competências relacionadas aos conteúdos das disciplinas escolares, apreendidos
durante a escolaridade básica, constituindo-se como modalidade de acesso a
cursos profissionalizantes pós-médio (BRASIL, 1998).
Dada a sua forma de criação, instituição através de Portaria, em
consonância com a LDB 9394/96, pode-se afirmar que o Enem é uma política de
Estado, uma vez que se efetiva por meio de leis, possuindo maiores possibilidades
de legitimação e continuidade (PARENTE; PEREZ; MATTOS, 2011, p.18).
A partir da LDB 9394/96, o governo, por intermédio do Ministério da
Educação, desenvolveu documentos específicos à regulamentação do Ensino
Médio, como as Diretrizes Curriculares do Ensino Médio (1997), a Matriz
Curricular Nacional do Ensino Médio (1998), os Parâmetros Curriculares
Nacionais do Ensino Médio (1999) e os Parâmetros Curriculares Nacionais +
Ensino Médio - PCN+ (2002). Tais documentos visam estabelecer normas que
possam nortear técnica e pedagogicamente, os currículos escolares das escolas,
redes e sistemas de ensino ao tempo em que se configuram como elementos que
estabelecem o Enem enquanto política pública educacional para o Ensino Médio.
O Enem está regulamentado, do ano de sua criação a 2014, por dez
editais, dezoito portarias e duas notas técnicas.

157
3.3.2 Fase 3.2: Desenho administrativo

A configuração de desenho administrativo do Enem é a seguinte:

 Política de Estado – consolidado pela LDB 9493/96; criado pela Portaria Ministerial
438/1998 e reafirmado pela Lei 13.005/2014 (PNE 2014-2024).
 Avaliação de sistemas educacionais – “visa diagnosticar a qualidade do ensino
oferecido pelos sistemas educacionais nacional, estaduais e municipais”, (ALMEIDA,
2010, p.18).
 Avaliação externa e de larga escala – promovida por órgãos oficiais de educação.
 Uma avaliação pontual aplicada anualmente, em todo o território nacional, no
período de dois dias.
 Uma avaliação de desempenho, identificando as habilidades que foram
desenvolvidas pelos alunos, considerando matrizes de referências.
 Uma avaliação macro, aplicada nacionalmente, porém, apresentando resultados
individuais e por escola participante. Cabe ressaltar que, por se tratar de uma
avaliação voluntária, diferentemente da Prova Brasil, os resultados do Enem por
escolas são parciais.
 Provas com 180 itens de múltipla escolha, com cinco opções e uma redação.
 Áreas do conhecimento: Matemática e suas Tecnologias, Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias e Redação; Ciências da Natureza e suas Tecnologias; Ciências Humanas
e suas Tecnologias.

3.4 Fase 4: Implantação

A fase da implantação ou implementação de uma política “pode ser


considerada aquela fase do policy cycle cuja encomenda de ação é estipulada na
fase precedente à formulação das políticas e a qual, por sua vez, produz do
mesmo modo determinados resultados e impactos de policy” (WINDHOFF-
HÉRITIER, 1987 apud FREY, 2000, p.228). Tal pensamento ratifica a ideia de
ligação entre as fases de uma política e que estas não podem ser entendidas
separadamente, a política não se limita à formulação de uma ação específica; ela
compreende, sobretudo, todos os processos que envolvem cada fase (PARENTE;
PEREZ; MATTOS, 2011, p.19).

3.4.1 Fase 4.1: Arranjo administrativo

Considerando que o Arranjo Administrativo depreende os atores


envolvidos para cada etapa, frise-se que cabe ao INEP a responsabilidade da
operacionalização de toda estrutura de pessoal, principalmente, para

158
desenvolvimento de atividades de ordem didático-pedagógico, visando à eficácia e
eficiência de todo processo, disposto em planos de ação.

3.4.2 Fase 4.2: Planos de ação

Os planos de ação são elaborados de maneira a atender,


fundamentalmente, às seguintes demandas: criação do Banco Nacional de Itens –
BNI; a elaboração do pré-teste/Teoria de Resposta ao Item – TRI; montagem das
provas e avaliação das redações.

3.5 Fase 5: Avaliação

A fase de avaliação da política é “um processo que permite estabelecer


uma relação de causalidade entre programa e resultados, ou seja, uma relação
causal entre determinada modalidade política pública e o sucesso ou fracasso na
realização de seus propósitos” (PARENTE; PEREZ; MATTOS, 2011, p.22). Ainda
para os autores, a efetividade, eficácia e eficiência, não podem ser desconsideradas
nessa fase, uma vez que servem para estabelecer um diálogo entre objetivos,
resultados e impactos dos programas e/ou projetos. Portanto esta fase da política é
complexa e indispensável, notadamente uma vez que se refere ao trato de ações
públicas e governamentais.

3.5.1 Fase 5.1: Outcome

O outcome foca os resultados da política, de que forma o público-alvo é


contemplado com os resultados imediatos, aqueles perceptíveis em curto prazo.
São considerados como outcome do Enem:

 Certificado de conclusão do Ensino Médio;


 Acesso às vagas oferecidas por Instituições Federais de Ensino Superior (IFES);
 Programa Universidade para Todos – ProUni;
 O Fundo de Financiamento Estudantil – FIES;
 Sistema de Seleção Unificada Educação Profissional e Tecnológica – SISUTEC;
 Ciências Sem Fronteiras;
 A utilização como mecanismo de acesso à Educação Superior ou em processos de
seleção nos diferentes setores do mundo do trabalho.

159
3.5.2 Fase 5.2: Impacto

A abordagem sobre impacto no modelo do policy cicle reporta-se à


avaliação de efetividade, entendida como o estudo
da relação entre a implementação de um determinado programa
e seus impactos e/ou resultados, isto é, seu sucesso ou seu
fracasso em termos de uma efetiva mudança nas condições
sociais prévias da vida das populações atingidas pelo programa
sob avaliação (FIGUERIREDO; FIGUEIRDO 1986, ARRETCHE,
2009, p. 32)

Como impacto do Enem, evidenciam-se o ranking das escolas; os


mecanismos de acesso ao Ensino Superior e a redução no número de vestibulares
elaborados pelas próprias IES.

3.5.3 Fase 5.3: Output

Neste desdobramento da avaliação a ênfase está na forma de como se dá


eficácia do processo, o que envolve averiguar se a meta proposta foi alcançada e a
satisfação dos atores envolvidos. Pode-se perceber o output considerando a
variável número de inscritos no Enem, tendo como referência os anos 1988
(início da política) – 157 mil inscritos; 2009 (Novo Enem/ mudanças mais
significativas) 4,1 milhões de inscritos; 2014 (último ano de aplicação) 8,7
milhões de inscritos.

3.6 Fase 6: Reformulação do projeto

Esta etapa compreende a reflexão a partir da proposta cíclica do modelo,


considerando a contínua necessidade de reformular o projeto para dirimir o
problema, isto é, são evidenciados problemas sobre a operacionalização do Enem,
enquanto política pública de avaliação do Ensino Médio, que sinalizam para uma
reformulação do projeto dessa política.

Considerações finais

Iniciemos retomando a pergunta norteadora deste estudo: como o Enem,


dentro do modelo de avaliação da policy cicle, tem se configurado, enquanto
política pública educacional para o Ensino Médio?
160
Analisar tal configuração a partir do modelo teórico escolhido, para além
de visualização do conteúdo do Enem distribuído em fases, é permitir-se refletir,
de forma sistemática, sobre essa “ascendente” política pública de avaliação
educacional, vislumbrando seus desdobramentos político-pedagógicos e como eles
estão inseridos no contexto histórico-social.
Para tanto, à guisa de conclusão, julgamos oportuno retomarmos os
objetivos de Enem: avaliar o desempenho do estudante ao fim da educação básica;
servir como mecanismo de seleção para o ingresso no ensino superior;
democratizar as oportunidades de acesso às vagas oferecidas por Instituições
Federais de Ensino Superior, otimizando a mobilidade acadêmica e induzir a
reestruturação dos currículos do Ensino Médio.
Nossa primeira reflexão considera o fato de que sendo o Enem uma
avaliação individual e facultativa a todos os egressos do Ensino Médio, até que
ponto o quantitativo de participantes do Exame é representativo desse nível de
ensino.
Segundo, merece uma observação acurada a realidade do ranking entre
escolas da mesma rede, escolas de redes públicas e privadas bem como seus reais
beneficiados.
Terceira e última ponderação é até que ponto as questões que envolvem
reestruturação dos currículos do ensino Médio foram e estão sendo discutidas no
contexto do espaço escolar.
Dentro da proposta da análise desta abordagem, tais ponderações,
conforme já observamos, dispõem elementos para a reformulação do projeto, no
caso a reformulação do Enem.

Referências
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tomada de decisão pela equipe gestora de Teodoro Sampaio-BA: Um estudo de
caso.2010.96p. Monografia (Curso de Pedagogia) Faculdade de Educação, Universidade Federal da
Bahia, Salvador, 2010.
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Estudos Especiais, 2009.
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BRASIL. Ministério da Educação. Instituto de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Portaria
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161
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162
O desempenho na prova de
redação do Enem da rede
estadual de Sergipe
Raquel Meister Ko. Freitag
Fernando da Cunha Mendonça
José Júnior de Santana Sá

Introdução1

A fim de contribuir com dados acerca dos impactos e reflexos das


avaliações externas do INEP no currículo da rede escolar, analisamos resultados
de desempenho dos estudantes da rede pública estadual de Sergipe na prova de
Redação do Enem no exame do ano de 2012 e as percepções e avaliações do corpo
discente e docente da rede estadual acerca deste desempenho.
Enquanto as provas objetivas do Enem são avaliadas pela metodologia da
Teoria de Resposta ao Item, de modo que duas provas, ainda que tendo o mesmo
quantitativo de acertos, não obterão a mesma nota, a prova de redação apresenta
critério objetivo e aplicado do mesmo modo a todos os participantes (VIGIANNO;
MATTOS, 2013). Por conta deste fator, os ranqueamentos das instituições
participantes consideram paritariamente o peso da nota de redação.
O levantamento estatístico considerou as bases do INEP, a fim de
identificar as médias relativas à edição 2012 do Enem. As entrevistas foram
realizadas a partir de instrumento semi-dirigido, a fim de captar as percepções
discentes e docentes.2 A triangulação dos dados provenientes destas etapas
possibilita uma visão mais abrangente e menos parcial do fenômeno.
1
Este capítulo é resultado do desenvolvimento dos planos de trabalho “Impacto da prova de redação do Enem no currículo escolar da
rede estadual de Sergipe: DRE Estância, Itabaiana e Lagarto” (SÁ, 2014) e “Impacto da prova de redação do Enem no currículo
escolar da rede estadual de Sergipe: DRE Aracaju, Carmópolis, Propriá e São Cristóvão” (CUNHA, 2014), vinculados ao projeto
“Impacto da prova de redação do Enem no currículo escolar da rede estadual de Sergipe” e financiados, no âmbito da Universidade
Federal de Sergipe, pelo Programa Institucional de Iniciação Científica (PIBIC/UFS/2014).
2
A maior dificuldade enfrentada foi relacionada à etapa das entrevistas: os sujeitos, ao serem informados do objetivo da entrevista,
não se mostravam disponíveis para colaborar com a pesquisa. No total, somente 93 sujeitos (47 docentes e 46 discentes) nas 10 DRE
163
Introdução3

Todo o ano, a sociedade espera ansiosamente pela divulgação dos


resultados da prova do Enem: embora não seja esta a finalidade da avaliação,
rankings de piores e melhores escolas são estabelecidos em função destes
resultados, influenciando a escolha de escolas e o julgamento de alunos e
professores.
A fim de desvelar reflexos das avaliações externas do INEP no currículo da
rede escolar, analisamos o resultado do desempenho dos estudantes da rede
pública estadual de Sergipe na prova de Redação do Enem no exame do ano de
2012.
Enquanto as provas objetivas do Enem são avaliadas pela metodologia da
Teoria de Resposta ao Item, de modo que duas provas, ainda que tendo o mesmo
quantitativo de acertos, não obterão a mesma nota, a prova de redação apresenta
critério objetivo e aplicado do mesmo modo a todos os participantes (VIGIANNO;
MATTOS, 2013). O levantamento estatístico considerou as bases do INEP, a fim de
identificar as médias relativas à edição 2012 do Enem.
Após o levantamento, realizamos entrevistas, partir de instrumento semi-
dirigido, a fim de captar as percepções discentes e docentes.4 A triangulação dos
dados provenientes destas etapas possibilita uma visão mais abrangente e menos
parcial do fenômeno.

do estado de Sergipe, em seu espaço de atuação, se dispuseram a colaborar com a pesquisa; cada sujeito foi apresentado ao TLC,
contendo o objetivo da pesquisa e a garantia de sigilo e preservação do anonimato. As entrevistas duraram de 4 a 37 minutos, tendo
uma média de 16 minutos). Após a gravação das entrevistas, procedemos ao processo de transcrição e validação. No processo de
validação, reduzimos a amostra para 20 entrevistas (8 docentes e 12 discentes), por identificarmos a baixa adesão na colaboração
(respostas polares “sim/não” e estratégias de descomprometimento “não sei”).
3
Este capítulo é resultado do desenvolvimento dos planos de trabalho “Impacto da prova de redação do Enem no currículo escolar da
rede estadual de Sergipe: DRE Estância, Itabaiana e Lagarto” (SÁ, 2014) e “Impacto da prova de redação do Enem no currículo
escolar da rede estadual de Sergipe: DRE Aracaju, Carmópolis, Propriá e São Cristóvão” (CUNHA, 2014), vinculados ao projeto
“Impacto da prova de redação do Enem no currículo escolar da rede estadual de Sergipe” e financiados, no âmbito da Universidade
Federal de Sergipe, pelo Programa Institucional de Iniciação Científica (PIBIC/UFS/2014).
4
A maior dificuldade enfrentada foi relacionada à etapa das entrevistas: os sujeitos, ao serem informados do objetivo da entrevista,
não se mostravam disponíveis para colaborar com a pesquisa. No total, somente 93 sujeitos (47 docentes e 46 discentes) nas 10 DRE
do estado de Sergipe, em seu espaço de atuação, se dispuseram a colaborar com a pesquisa; cada sujeito foi apresentado ao TLC,
contendo o objetivo da pesquisa e a garantia de sigilo e preservação do anonimato. As entrevistas duraram de 4 a 37 minutos, tendo
uma média de 16 minutos). Após a gravação das entrevistas, procedemos ao processo de transcrição e validação. No processo de
validação, reduzimos a amostra para 20 entrevistas (8 docentes e 12 discentes), por identificarmos a baixa adesão na colaboração
(respostas polares “sim/não” e estratégias de descomprometimento “não sei”).
164
1 As notas da prova de redação do Enem

O desenho da avaliação do Enem considera o desempenho individual do


aluno, e não o desempenho de uma unidade escolar ou de uma turma específica,
por exemplo. Ademais, é preciso considerar que o Enem não é um exame de
caráter amostral, como a Prova Brasil, inscrevendo-se no exame apenas aqueles
alunos que assim o desejarem. Também, até este momento, não há qualquer
espécie de punição ou restrição para aqueles que se inscrevem e deixam de
realizar a prova (embora os índices de abstenção sinalizem a necessidade da
implantação de medidas desta natureza). Face essas especificidades, o INEP
ranqueia apenas as escolas com mais de 15 alunos do 3º ano em curso inscritos
no Enem.
Feitas estas considerações, foram computadas as notas de 79 escolas da
rede escolar. Em nenhuma das escolas, a média da prova de redação, ou a média
aritmética das provas, foi igual ou superior a 600 pontos, média necessária para
pleitear acesso ao programa Ciências Sem Fronteiras. Das 7 escolas com nota
acima de 500 pontos na redação e mais de 100 alunos inscritos (há duas escolas
com menos de 100 alunos e média inferior a 520 pontos), quatro são de Aracaju,
duas de Itabaiana.
Note-se que a nota mínima em redação exigida para a certificação de
ensino médio é de 500 pontos; isso significa que, em termos de média, os alunos
concludentes do ensino médio da rede estadual de Sergipe, à exceção de 9 escolas,
não atingem a nota mínima para a certificação. Apenas para contraponto, na rede
federal, o Colégio de Aplicação da UFS, em São Cristóvão, teve média de 680,24; e
o IFS, em Lagarto, teve 608,8.
Estudantes
concluintes do
Participantes Taxa de
Município Escola Ensino Médio Redação
Enem 2012 Participação
matriculados
em 2012
Aracaju Colégio Estadual Atheneu Sergipense 243 238 97% 527,06
Aracaju Colégio Estadual Dom Luciano Jose 264 248 93% 524,52
Cabral Duarte
Itabaiana Colégio Estadual Professor Nestor 105 86 81% 520,93
Carvalho Lima
Itabaiana Colégio Estadual Murilo Braga 226 134 59% 519,85
Aracaju Colégio Estadual Prof. Gonçalo 156 112 71% 509,82
Rollemberg Leite
Aracaju Colégio Estadual Tobias Barreto 231 175 75% 504,11
Poço Verde Colégio Estadual Professor Joao de 179 123 68% 504,07
Oliveira
Aquidabã Colégio Estadual Nações Unidas 69 46 66% 358,26
Maruim Colégio Estadual Felipe Tiago Gomes 72 55 76% 365,82
165
Porto da Colégio Estadual Pedro Alves De Souza 51 30 58% 370
Folha
Santo Colégio Estadual Prof. Rogaciano M 116 64 55% 382,19
Amaro das Leão Brasil
Brotas
Nossa Colégio Estadual Alfredo Montes 46 23 50% 383,48
Senhora do
Socorro
Porto da Colégio Estadual Governador Lourival 105 60 57% 387
Folha Baptista
Lagarto Colégio Estadual Luiz Alves de Oliveira 225 115 51% 393,04
Santa Rosa Colégio Estadual Dr. Edélzio Vieira de 55 51 92% 394,9
de Lima Melo
Gracho Colégio Estadual Manoel Alcino do 53 38 71% 395,58
Cardoso Nascimento
Feira Nova Colégio Estadual Maria Montessori 67 37 55% 395,68
Porto da Colégio Estadual Quilombola 27 de 27 18 66% 398
Folha Maio
Capela Colégio Estadual Irmã Maria 127 88 69% 399,77
Clemencia
Tabela 1: Maiores e menores notas na prova de redação do Enem 2012 da rede estadual
de Sergipe.

Por outro lado, todas as médias abaixo de 400 pontos são das escolas
localizadas no interior do estado. Diante deste cenário, a entrevista com os
professores de Língua Portuguesa e Redação e com os alunos do 3º ano pode
auxiliar no desvelamento dos motivos que levam a um desempenho abaixo do
esperado para a certificação mínima de ensino médio.

2 A visão dos professores

Para entender estes resultados, trazemos a voz dos professores que


concordaram em participar da entrevista sobre o Enem. Inicialmente, elencamos
o conceito dos professores a respeito da prática escrita; este foi o primeiro
questionamento e torna-se imprescindível, visto que o alvo de nossa pesquisa é a
prova de redação do Enem. Diversificadas foram as respostas, teóricas, simples,
contextualizadas, como podemos verificar nos excertos (1) e (2)
(1) “Para escrever bem é necessário saber ler e compreender
né? a leitura ela é essencial uma leitura assim várias leituras
sobre determinado você conhecer você ler você saber sobre é
essencial para a escrita para escrever bem” (Gravação 1 – DEA)

166
(2)“ Na minha concepção é de extrema importância não só
pela questão do exercício da cidadania ou seja através da
escrita e da leitura em primeiro plano o aluno se apropria de
habilidades e competências que possibilitarão que ele tenha
um bom desempenho no âmbito escolar mas na vida social
como um todo.” (Gravação 31 – DRE 08)

Em seguida, buscamos informações sobre como o ato de escrever é


desenvolvido nas aulas de língua portuguesa. Com o auxílio dos gêneros textuais,
que são trabalhos com frequência, os professores afirmaram instigar os alunos a
uma prática constante, uma vez que a desenvoltura nesta habilidade requer
dedicação. De maneira geral, o processo utilizado na sala de aula inicia pela
escolha de um determinado tema, seguido de um debate, leitura de textos
informativos e da produção escrita e da refacção para o aprimoramento, em linhas
gerais: Tema => Leitura => Problemática => Produção => Refacção.
Vejamos excertos dos relatos em (3) e (4):
(3) “Produções mas antes das produções leitura um
questionamento sempre na oralidade pra que o aluno se sinta
a vontade na conversação depois a proposta da leitura e por
último a produção” (Gravação 24 – DRE 06)

(4) “Eu trabalho muito com os gêneros textuais então por


turma eu trabalho um gênero diferente ... no terceiro ano eu
trabalho muito com o Enem desde o segundo segundo terceiro
ano é texto dissertativo argumentativo ensino como
desenvolver um parágrafo como você começar uma introdução
técnicas pra eles desenvolverem uma redação ... a gente debate
sobre um tema trago textos pra sala de aula discutimos coloco
um tema que seja similar uma problemática para eles
desenvolverem redação semanal” (Gravação 21 – DRE 04)

Após os questionamentos introdutórios, partimos para as perguntas


relacionadas ao escopo da pesquisa, buscando saber se os professores tinham
conhecimento das cinco competências exigidas dos participantes do Enem para a
prova de redação, a qual tratamos na subseção 1.5. As respostas foram
majoritariamente positivas, os professores demonstraram-se cientes do que se
tratam essas competências e alguns relatos ocorreram a respeito do trabalho
desenvolvido durante o ano letivo, como em (5) e (6).
(5) Sim conheço as cinco competências e é com base nelas
inclusive nas aulas nas salas de ensino médio as minhas
167
primeiras aulas do ano são justamente eu separo para falar eu
elejo para falar sobre essas competências as cinco
competências avaliadas.” (Gravação 28 – DRE 06)

(6) Tenho trabalhado a cada bimestre uma competência junto


com coesão coerência... (Gravação 26 – DRE 06)

Os professores relataram que boa parte dos seus alunos não estão
preparados para obterem resultados satisfatórios na prova de redação do Enem. A
partir dos relatos, sumarizamos as principais dificuldades dos alunos da rede
estadual, na visão dos docentes que colaboraram com a investigação.
A maior dificuldade está relacionada com a organização das ideias. Os
professores apontam que os alunos sentem dificuldades em apresentar
argumentos convincentes que respaldem ao entendimento e conhecimento sobre
o assunto proposto para a produção escrita, mais precisamente o texto dissertativo
argumentativo, como podemos ver em (7) e (8).

(7) “O mais difícil na minha concepção não é levar o aluno a


compreensão dos elementos gramaticais o mais difícil mesmo
é a questão do raciocínio do desenvolvimento das ideias da
argumentação” (Gravação 31 – DRE 08)

(8)“... O que é que o aluno está escrevendo um conteúdo


pasteurizado que todos nós já sabemos consensual ou é um
conteúdo mais profundo será que ele aborda no texto uma
questão que não foi abordada na maioria dos textos
geralmente eles não abordam eles geralmente constroem textos
que comungam das ideias que todos nós já conhecemos das
ideias consensuais...” (Gravação 28 – DRE 06)

Outro problema relatado pelos professores está na falta de leitura. Como


relatado anteriormente por eles, a leitura está intrinsicamente ligada à produção
escrita, portanto a deficiência nas produções textuais são consequências da pouca
prática desta destreza seja por falta de interesse do aluno, estímulos na família ou
até mesmo da própria escola, ou, ainda, pelas dificuldades que as regiões mais
interioranas enfrentam, como podemos perceber nos excertos (9), (10) e (11).

(9)“Os alunos não têm acesso a leitura né também não tem


acesso muito amplo a internet porque a maioria dos meus
alunos são alunos do povoado ... nós tentamos viabilizar a
leitura ... a escola que eu ensino particularmente ela é muito

168
precária ... a gente só tem acesso ao livro didático
praticamente...” (Gravação 27 – DRE 06)

(10)“O aluno de hoje ele não quer ler então por ele não ler
consequentemente ele não tem o que escrever a gente sabe que
precisa ter argumentos para escrever...” (Gravação 23 – DRE
04)

(11)“O nosso aluno nós temos que instigá-lo a ler porque ler
você sabe o brasileiro não gosta não e ele não tem a cultura na
casa dele e a escola sozinha não consegue é difícil porque se
você não ler se você não se atualiza das situações né da
sociedade como é que você vai fazer uma boa redação ah deu
um branco branco é a falta de vocabulário né é a falta de
conhecimento o problema de uma redação ruim é a falta de
conhecimento que tá ali ... desde o sexto ano desde o
fundamental essa preparação tem’ que existir sempre o aluno
do sexto ano é o alicerce o fundamental tem que ser a base...
(Gravação 21 – DRE 04)

Na visão dos professores, a ausência de um trabalho interdisciplinar tem


contribuído para esses resultados negativos, como podemos ver nos excertos (12)
e (13).

(12) “A gente precisa trabalhar muito a escrita na escola muito


a escrita na escola e eu as vezes o professor de português fica
tachado como o único que tem essa obrigação de trabalhar a
escrita a leitura fluentemente” (Gravação 23 – DRE 04)

(13) “Os professores das outras disciplinas ainda não


entenderam pelo que eu vejo pelo que eu percebo na minha
prática eles ainda não entenderam que a língua portuguesa
ela deve ser trabalhada em todas as disciplinas o aluno tem
que ser leitor de todas as disciplinas ele tem que ser um bom
leitor em biologia em química em história em geografia não se
restringe apenas a língua portuguesa a área da língua
portuguesa” (Gravação 28 – DRE 06)

Em relação à matriz curricular, ainda existem muitas lacunas. Não houve


uma adaptação coerente que de fato atenda às competências e às habilidades
pedidas para a prova do Enem. Algumas escolas têm se empenhado em
desenvolver trabalhos durante todo o ano letivo, através dos sábados letivos,
reforços em horários opostos ao ensino regular; no entanto, outras, apenas às
169
vésperas da prova, algo ineficaz, uma vez que tais competências e habilidades
requerem prática e disciplina e outras instituições permanecem sem nenhuma
adaptação ou criação de recursos, como observamos nos excertos (14), (15) e
(16).

(14) “O que a escola hoje propõe é reforço fazem grupos de


estudos algum professor desde matemática a português se
propõe a dar uma aula extra em horário oposto grupos de
estudo com alunos e alguns sábados letivos que a gente só fala
sobre o Enem resolver questões do Enem e desenvolver
redações” (Gravação 21 – DRE 04)

(15) “A gente esse ano vai dedicar as três últimas semanas que
antecede o Enem para fazer revisão” (Gravação 26 – DRE 06)

(16) “Tá começando né pelo que eu entendi esse ano vai


começar a se adaptar mas não vejo muita coisa não quase
nada agora esse ano pelo que vieram já me falar têm algumas
que podem modificar mas em relação ao Enem não é bem
direcionado não a parte de língua portuguesa é o tradicional
mesmo” (Gravação 20 – DRE 04)

Os professores também relatam que em algumas escolas não há um


trabalho desenvolvido em conjunto para traçarem metas, fazerem adaptações,
mas apenas cobranças por parte dos superiores, como evidenciado no excerto
(17).

(17) “... Os professores não sentam para pensar justamente na


matriz curricular do Enem, vocês estão cobrando do aluno da
gente um ensino voltado para o Enem mas sim mas que ensino
não existe ninguém sentou justamente para ver a questão da
matriz curricular” (Gravação 1 – DEA)

A redução da carga horária, de cinco aulas semanais para três ou quatro,


conforme cada instituição, tem dificultado a realização de um trabalho mais eficaz
por parte dos professores, como evidencia o excerto (18).
(18)“De língua portuguesa na verdade são três aulas e fica a
critério do professor conforme seu planejamento fazer a
divisão dos conteúdos a serem trabalhados durante essas três
aulas semanais então é muito pouco na minha concepção
para trabalhar os conteúdos gramaticais os conteúdos de

170
literatura e os conteúdos relacionados à redação mesmo que
associados ... o estudo não se restringe à sala de aula à escola
ele tem que ter um cotidiano uma disciplina para estudar em
casa mas isso nem sempre ocorre na prática então é um
desafio realmente com o número reduzido de aulas e com as
condições de trabalho que nós temos fazer um trabalho como
se deve relacionado à leitura produção de texto análise
linguística e os conhecimentos literários” (Gravação 31–DRE
08)

Os professores assinalam que os alunos chegam ao Ensino Médio, de


modo geral, defasados, “sem saber o que deveriam saber”. A cultura de
valorização a cursos preparatórios reverbera, também, nas falas dos estudantes,
que têm a percepção de que a escola pública não prepara para o Enem, sendo
necessária a complementação de estudos caso almejem o ingresso no ensino
superior. Os alunos também destacam que a escola pouco cobra redação, pelo
menos nos moldes do que é exigido pelo Enem.

3 Acesso à educação superior

Seguindo a Resolução nº 21/2009/CONEPE, que regulamentou que o


processo seletivo da Universidade Federal de Sergipe passaria a utilizar as notas do
Enem para classificar os candidatos ao ingresso nos cursos de graduação, a nota
do Enem 2012 foi utilizada para ingresso na Universidade Federal de Sergipe para
ingresso via VESTIBULAR 2013. A comparação das médias das escolas da rede
pública estadual com as notas máximas e mínimas de ingresso nos grupos para
estudantes da rede pública ilustra o fosso de defasagem existente: a maior nota de
ingresso em 2013 foi para o curso de Medicina – Campus da Saúde (integral),
Grupo D, com 844,10. Já as menores notas de ingresso foram em Letras
Português – Francês Licenciatura (matutino), Grupo G, 343,80 e Museologia
Bacharelado (matutino), Grupo F, 332,98. Da oferta total, 19 cursos apresentaram
média máxima para ingresso abaixo de 600 pontos, dos quais 6 são cursos
noturnos e 7 são licenciaturas (3 licenciaturas noturnas). Em suma, as médias
obtidas pelas escolas públicas estaduais estão abaixo das notas mínimas de
entrada na maioria dos cursos, sugerindo uma janela temporal para o aluno entre
a educação básica e a superior. O cenário delineado é que o aluno acaba o Ensino
Médio, mas não entra na universidade: faz cursinho, estuda por conta por mais
tempo e só então entra na Universidade, por cotas. Em termos de políticas

171
públicas, é de se questionar se o investimento para a formação dos alunos face às
exigências do Enem deve se dar Pré-SEED ou no ensino regular.
É preciso considerar que o não ingresso no ensino superior
imediatamente após o ensino médio tem implicações na economia, além do que,
atualmente, apresenta um cenário de desvantagem ao egresso da rede pública,
que fica restrito em termos de acesso a programas governamentais que
consideram a nota no exame, como o Ciência Sem Fronteiras (e mais
recentemente o FIES).

Considerações finais

O cenário apresentado a partir do exame dos resultados da prova de


redação do Enem, em conjunto à análise do referencial curricular e à percepção
dos alunos e professores da rede pública estadual de Sergipe requer medidas
urgentes, a fim de franquear o acesso dos estudantes não só à educação superior,
mas aos programas federais circunscritos à educação superior cujos resultados
são dependentes de um desempenho mínimo no exame em questão.
É importante destacar que foram consideradas as médias; casos pontuais
de alunos que tiveram desempenho excepcional reverberam, inclusive na mídia.
No entanto, estamos tratando da média na medida que o desenho do exame prevê
o estudante médio.
Embora utilizados como parâmetro, os resultados da rede federal não
devem ser tomados como modelares na medida em que, diferentemente da rede
estadual, os estudantes que realizaram o Enem em 2012 ingressaram nesta rede
após a aprovação em teste seletivo. Por fim, ações pedagógicas que visem
sensibilizar o docente quanto à estrutura do Enem são necessárias para diminuir
as assimetrias identificadas.

Referências

MENDONÇA, Fernando da Cunha. Impacto da prova de redação do Enem no currículo escolar da


rede estadual de Sergipe: DRE Aracaju, Carmópolis, Propriá e São Cristóvão. Relatório final de
pesquisa. Programa Institucional de Iniciação Científica. Universidade Federal de Sergipe, 2014.
SÁ, José Júnior de Santana. Impacto da prova de redação do Enem no currículo escolar da rede
estadual de Sergipe: DRE Estância, Itabaiana e Lagarto. Relatório final de pesquisa. Programa
Institucional de Iniciação Científica. Universidade Federal de Sergipe, 2014.
VIGIANNO, E.; MATTOS, Cristiano. O desempenho de estudantes no Enem 2010 em diferentes
regiões brasileiras. Revista brasileira de estudos pedagógicos, v. 94, n. 237, p. 417-438, 2013.

172
Impactos do Enem sobre o
Colégio de Aplicação da
Universidade Federal de Sergipe
Maria Josefa de Menezes Almeida

Indagações diversas circundam a escola básica em contexto atual. Um


exemplo disso são as discussões, ano a ano, acerca do Enem, suas exigências, as
preocupações estudantis que o envolvem especialmente. Eventuais influências que
esta avaliação provoque no desenvolvimento dos currículos escolares são
decorrentes das finalidades e contornos de que possa se revestir a escola. Efeitos
negativos ou positivos devem ser analisados a partir de um exemplo escolar.
O Enem, desde a sua criação, em 1998, possibilita ao contexto da
educação básica uma reflexão e revisão de proposituras, especialmente no que se
refere às competências e habilidades requeridas e/ou apresentadas ao estudante
do ensino médio ao final dos estudos conclusivos da educação básica.
Inicialmente, a adesão ao exame ocorria voluntariamente, mas aos poucos, se
consolidou como um dos mais importantes instrumentos de avaliação desta fase
escolar.
Um papel que lhe é inequivocamente atribuído é o de promover, através
desta participação, o ingresso na maior parte das Instituições de Ensino Superior
(IES) do país, inclusive nas de âmbito federal. Outro papel é o de induzir a
existência de um novo perfil para o currículo da Escola Básica e, em especial do
Ensino Médio, nas escolas brasileiras, hipótese, inclusive, utilizada pelo Ministério
da Educação para justificar o aumento das notas no exame.
Refletir sobre a existência deste e de outros impactos nas escolas que
trabalham com o Ensino Médio destaca-se como um elemento de preponderante
significado na atualidade. Para tanto, neste trabalho, discorre-se sobre a reflexão
acerca deste instrumento de avaliação do ensino médio atuando ou não como
agente de mudança da organização curricular do Colégio de Aplicação (Codap) da
Universidade Federal de Sergipe (UFS).
173
Desde a sua gênese, em 1959, o Codap/UFS assume perante a sociedade
sergipana a apresentação de um perfil escolar diferenciado a considerar diversos
fatores entre os quais se cita o êxito escolar dos seus egressos e consequente
ingresso em IES do estado e de todo o país. Neste contexto, citam-se as constantes
colocações em nível local e nacional em resultados do Enem.
Do momento da sua criação aos dias de hoje, destaca-se a sua
incorporação à UFS a partir de 1967, bem como sua dependência financeira e
subordinação administrativa e pedagógica. Sua vinculação administrativa à
Reitoria complementa-se com a pedagógica à Pró-Reitoria de Graduação. Deste
vínculo origina-se para o Codap/UFS uma estreita relação de responsabilidade com
a formação docente dos alunos de licenciaturas da UFS, por isso, também lhe
serve como laboratório de ensino, pesquisa e extensão.
É ao longo desta história que se constrói a sua identidade e isto se testifica
em sua produção científica gestada a partir da qualificação profissional de seu
quadro funcional hoje constituído de 30 professores efetivos, entre os quais se
encontram: 10 doutores, 8 mestres e 12 especialistas, atuando na luta e promoção
de uma educação básica de qualidade, mesmo diante da ambiguidade de produzir
capital social, bem como um imediato êxito escolar dos seus alunos. Ao tempo em
que se lhe exigem um número cada vez maior de egressos dentro das Instituições
de Ensino Superior do país sob a égide do Enem, também se lhe solicitam
formação social crítica e atuante para estes egressos.
Neste contexto de referências e indagações se insere este texto cujo
objetivo é refletir sobre possíveis influências da prova do Enem sobre a orientação
pedagógica e a organização curricular do Codap/UFS para responder a
questionamentos como: Impulsionado pelas exigências conceituais e
organizacionais deste instrumento de avaliação, o que muda no Colégio de
Aplicação? Existe uma preocupação em aderir à filosofia da prova do Enem a fim
de contribuir com o ingresso dos seus egressos no Ensino Superior e em especial
nas Instituições de Ensino Superior Federais? Desta reflexão, espera-se apontar
possíveis indicadores do impacto deste mecanismo de avaliação do ensino médio
sobre o dia a dia escolar dos que atuam no Codap/UFS no ensino médio
(professores e alunos).
O Codap/UFS foi criado em 30 de junho de 1959 com o objetivo de ser
campo de estágio para a antiga Faculdade de Filosofia de Sergipe. Inicialmente
como Ginásio de Aplicação, responsabilizando-se pela oferta das séries finais do
que hoje se denomina ensino fundamental. A partir de dezembro de 1965, passa a
ofertar o antigo 2º grau, hoje ensino médio, com opções para o que se designavam

174
Clássico e Científico, passando a identificar-se como Colégio de Aplicação da
Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe (NUNES, 2013).
É no interior das faculdades de Filosofia que nasce a ideia de tantos
Colégios de Aplicação espalhados por todo o país. Em linhas gerais, são criados
para contribuir para melhorar o ensino, incentivar práticas pedagógicas
inovadoras, servindo de campo de estágio para futuros professores. Neste contexto,
o Colégio de Aplicação da UFS nasce à luz de um movimento de organização do
país que incluía a modernização do sistema educacional (UFS/CONEP 10/96).
Percebe-se que a história dos Colégios de Aplicação, bem como a do
Codap/UFS relaciona-se à história das práticas de ensino. Foram criados a partir
da preocupação com a formação do professor, servindo como campo de estágio
para os futuros professores. Segundo Evangelista (1999, p.1):
Tais escolas nasceram no bojo de um programa político no qual a
formação do professor era central, pois dele dependeria a
formação da “mentalidade brasileira”, das elites condutoras e das
“massas ignaras”. Para constituir a nação tais escolas foram
vocacionadas a funcionar como laboratórios para experimentação
em seus alunos do que seria desejável ao trabalhador.

No final da década de 1960, mais precisamente em 1968, é criada a


Universidade Federal de Sergipe a partir das várias faculdades existentes e, entre
elas, a Faculdade de Filosofia, a que se encontra, até então, vinculado o
Colégio de Aplicação. Na ocasião, sua estrutura administrativa e pedagógica passa a
ser de responsabilidade da então recente UFS. Mas, somente a partir de 1981, o
Colégio de Aplicação transfere-se para o Campus, passando a identificar-se dentro
da conjuntura administrativa da UFS como Órgão Suplementar, diretamente
ligado à Reitoria, permanecendo assim até os dias de hoje, apenas com o
acréscimo de um vínculo pedagógico com a Pró-Reitoria de Graduação (NUNES,
2013).
Somente em 1994 passa a funcionar em sede própria dentro do Campus
de São Cristóvão da UFS e, no quadro evolutivo de sua configuração, assume, além
das funções do Ensino Fundamental e Médio e Campo de Estágio das várias
licenciaturas da UFS, as atividades de Pesquisa e Extensão, servindo assim como
espaço difusor de novas práticas pedagógicas e tecnologias educacionais da
Educação Básica. Seu reconhecimento dentro da Instituição vai sendo aos poucos
objeto de conquista política e se consolida em 2006, quando o Codap passa a ter
seus respectivos pares como representantes nos Conselhos Superiores da UFS
(NUNES, 2013).
175
Nesta conjuntura, os Colégios de Aplicação destacam sobre a sua
natureza:

Com o tempo, as finalidades dos colégios de aplicação foram se


alterando, acompanhando mudanças políticas, econômicas,
sociais e culturais da sociedade e, dessa forma, construíram
novas concepções sobre ensino-aprendizagem, pautados pela
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. (CUNHA;
CUNHA, 1994, p. 326)

Em 1996, à luz do escopo de várias reformas educacionais, o Colégio de


Aplicação promove uma mudança no seu regulamento e estabelece como
objetivos para a sua existência, dentre outros: “servir de campo de observação,
pesquisa, experimentação, desenvolvimento e aplicação de métodos e técnicas de
ensino aos cursos de 3º grau da UFS” e “proporcionar a prática de ensino aos
alunos dos Cursos de Licenciaturas e aos Estágios Supervisionados dos demais
Cursos de Graduação da UFS” (UFS/CONEP 10/96).
Atualmente, assume perante a sociedade sergipana os objetivos de: a)
servir de campo de observação, pesquisa, experimentação, demonstração,
desenvolvimento e aplicação de métodos e técnicas de ensino; b) proporcionar a
prática de ensino aos alunos dos Cursos de Licenciaturas através da orientação
pedagógica aos vários estágios supervisionados da UFS e outras Instituições de
Ensino Superior do estado; c) desenvolver a pesquisa científica e produzir
conhecimentos, visando ao aperfeiçoamento dos profissionais da Educação
Básica; d) instrumentalizar o educando para uma atuação crítica e produtiva
baseada numa visão de justiça social; e) atuar na formação e desenvolvimento
psicológico, social, cultural e afetivo do educando, proporcionando-lhe
conhecimentos e habilidades que lhe permitam prosseguir os estudos (NUNES,
2013).
É nesta contextualização histórica que ainda se destaca a concepção
subjetivamente difundida para um Colégio de Aplicação, a qual traz consigo vários
elementos de uma carga de responsabilidade social.
Desde o final da década de 1990, com a inserção de novos paradigmas
educacionais, curriculares e pedagógicos, a exemplo dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (1998), Parâmetros Curriculares para o Ensino Médio (2000) e, mais
recentemente, Orientações Curriculares para a Educação Básica (2010), o
Codap/UFS vive momentos de antagonismo, avançar ou não, modificar ou não,
para quê, atendendo a quê ou a quem?
176
Tais indagações expressam-se na qualidade dos resultados dos seus
serviços educacionais, atestada pela sociedade sergipana. De um lado, a exigência
institucional e social do êxito escolar a partir da apresentação de resultados
imediatos para seus serviços expressos no maior número de ingresso dos seus
egressos em cursos de instituições de ensino superior, especialmente na UFS. De
outro, a qualidade do seu trabalho pedagógico sinalizada por um conjunto de
fatores como: companheirismo entre os egressos, sentimento de pertencimento a
uma comunidade escolar, expressão de preparação para a consciência e
participação social. Esta última sempre e continuamente lembrada pelos seus
egressos como a principal marca da formação recebida no Codap/UFS.
Dentro deste contexto de ambivalência, neste processo de construção
histórica, aparece o exame do Enem com novas orientações a repercutirem sobre
a estrutura curricular e pedagógica da Educação Básica e, em especial, do Ensino
Médio. Mas, especificamente, a partir de 2010, é possível identificar alguns
elementos marcadores desta influência sobre a organização escolar do Codap/UFS,
mudanças que se caracterizam como impactos inovadores motivados pelas novas
orientações curriculares para a Educação Básica (2010). Possivelmente, este novo
documento orientador da escola básica encontra em sua gênese uma consonância
com alterações por que passa também o Enem (BRASIL, 2009).
Neste ínterim, no Codap/UFS, fazem-se refletir algumas alterações:
inserção de disciplinas escolares para a abordagem de ciências sociais, tais como
Sociologia e Filosofia no Ensino Fundamental e Médio. A inserção curricular de
Língua Espanhola dentro do leque de disciplinas obrigatórias. A disciplina Língua
Portuguesa passa a ser admitida como um único componente curricular, antes
representada separadamente por respectivos estudos de língua, redação e
literatura. Estas são algumas das incursões inovadoras que se podem identificar
na trajetória do Codap/UFS em se tratando de reflexão sobre a condução curricular
e/ou adesão a novos paradigmas educacionais. Neste contexto, ainda se
vislumbram alterações na concepção de avaliação testadas e, posteriormente,
aprovadas (UFS/CONEPE, 2014).
Exemplificamos indicadores que apontam a presença de efeitos ou
impactos da prova do Enem sobre o dia a dia escolar dos componentes
curriculares que o compõe: a) privilégio atribuído desde os sextos anos para o
desenvolvimento da escrita; b) leitura do texto a partir de uma perspectiva
comunicativa; c) enfoque às competências para a redação do Enem de forma
detalhada e com um acompanhamento pontual pelo professor de Português,
inclusive com a proposição de Oficina de Redação com este direcionamento; d)
leitura contextualizada do texto literário dentre as expressões de arte, priorizando
177
não a referência ao estilo, mas os aspectos de construção textual e sua
importância no cenário histórico-social, dentre outros elementos; e) aulas de
informática educativa para refletirem sobre o papel das tecnologias de informação
e comunicação nos diversos contextos sociais.
Apesar disso, ainda se impõe como um grande desafio educacional nas
circunstâncias atuais nas quais se insere o Colégio de Aplicação o desenvolvimento
da capacidade de ler e produzir textos. “O acesso a este aprendizado ainda se
apresenta como o mais valorizado e exigido pela sociedade.” (BRASIL, 2002, p.
192). Toda escola que se preze deve ater-se a este objetivo como prioridade.
Ainda se aguarda como impactos da presença do Enem na Escola Básica:
reflexões em torno da qualidade de ensino no ensino médio, construção e
evidências de currículos que atendam às expectativas do jovem, um
direcionamento em relação aos paradigmas das competências e habilidades,
contribuições para que se insiram no contexto da Educação Básica exemplos
claros, viáveis e expressivos da perspectiva interdisciplinar e/ou transdisciplinar
efetivamente. Mas enquanto estes efeitos não são reconhecidos por todos, admite-
se que já se identifica a adoção de novas construções cognitivas geradas para
atender a uma expectativa social, cultural suscitada e despertada pela proposição
da prova do Enem.
Por fim, não se pode negar que a preocupação em corresponder com as
diretrizes traçadas pela Prova do Enem para o ensino médio está inegavelmente
mexendo com a estrutura organizacional do currículo no Colégio de Aplicação da
Universidade Federal de Sergipe, despertando o interesse por um novo perfil
curricular e pedagógico para o ensino médio, se negativamente ou positivamente,
só o futuro dirá.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais – ensino fundamental.


Brasília, 1998.
BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais – ensino médio. Brasília,
2000.
BRASIL. Ministério da Educação. Orientações Curriculares para a Educação Básica, Brasília,
2010.
CUNHA, Celio da. Plano decenal de educação para todos 1993-2003. Brasília: MEC/SEF, 1994.
CUNHA, Edite de P.; CUNHA, Eleonora. S.M. Políticas públicas e sociais. In: CARVALHO, A; SALES, F.
(Orgs.) Políticas públicas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p.11-26.
EVANGELISTA, Olinda. A supressão dos Colégios de Aplicação. Florianópolis/SC. 1999. Mimeo.
NUNES, Martha Suzana Cabral. Colégio de Aplicação da UFS – Memórias de um Ginásio de
Ouro. Editora UFS, 2013.
178
O Enem: mal estar
contemporâneo
Onireves Monteiro de Castro

Introdução

Tecer comentários sobre o Enem requer um elemento norteador


referencial a partir do qual seja possível estabelecer paradigmas justificadores para
as nossas considerações e, de certo, sobre competências e habilidades requeridas
no Ensino Médio, desejadas na universidade, sonhadas por jovens e adultos em
busca de profissionalização.
Nosso objetivo neste ensaio é tecer considerações sobre as especificidades
do Enem e o seu impacto formal no processo de ingresso de estudantes no Centro
de Formação de Professores (CFP), na Universidade Federal de Campina Grande,
em Cajazeiras, Paraíba. Por seu turno, reclamamos, para o atendimento ao
objetivo das nossas ideias, aspectos do que se tem considerado suficiente (ou
insuficiente) aos princípios seletivos da contemporaneidade.
Atualmente, o Enem é uma referência para o currículo escolar no Ensino
Médio em todo o território nacional, o que, por si, sugere o desenvolvimento de
competências e habilidades, indicando a necessidade de mudanças nos
paradigmas da instrução. Ao nosso entender, também representa uma
demonstração de que existe um elemento lacunar nos processos de ensino e de
aprendizagem ou, quem sabe, na formação do profissional que atua com o
desenvolvimento e a aderência curricular, que não parece estar atendendo aos
princípios de formação dos jovens em face do novo século.
Estes problemas serão, neste ensaio, considerados a partir de um
enfoque discursivo e, portanto, no seio da Análise de Discurso, em sentido amplo.
Assim, o que chamamos de objeto de estudo, ou a referência impactante do Enem
no CFP, frente à contemporaneidade, compõe-se de uma série de mecanismos
discursivos que existem (independentemente da nossa percepção pessoal sobre
eles) nos enunciados (ou em qualquer produção discursiva), que contemple a
discussão na atualidade.

179
Por sua ordem, adotamos, também, uma perspectiva discursiva que
inclui a figuração do ethos. A noção aqui tomada de empréstimo servirá para
justificar a abordagem oficial do Enem, para a qual o texto que o orienta tende a
ter a manifestação constitutiva de um ethos, ou uma boa impressão, ou ainda,
uma pragmática para convencer, orientar a confiança pelo instrumental aplicável.
Assim, implicações institucionalizadas do discurso (caso dos documentos oficiais)
estão nos documentos oficiais que tratam do Enem como que para autenticar, dar
fé ou instituir um orador (ou uma Lei) digno de fé (discurso de propriedade).
Começamos o nosso dizer por falar do óbvio ou dar a conhecer a nossa
impressão sobre o Enem e suas fases vivenciais como instrumental de avaliação.
Na sequência, tentamos situar a abordagem congregando a discussão sobre as
implicações pedagógicas e teóricas com os elementos éticos no entorno do Enem
para, então, falar sobre representações dele no CFP. Por fim, damos a conhecer a
nossa opinião pessoal sobre o que aqui pode ser constitutivo de uma dentre
muitas opiniões sobre o Enem.

1 O que é e qual a serventia do Enem

O Enem foi pensado como ferramenta múltipla. Em princípio, para


diagnosticar a qualidade do ensino médio em território nacional e, igualmente,
para avaliar o desempenho escolar dos estudantes ao final do ensino médio. Por
seu turno, é um paradigma para o acesso às vagas disponíveis no ensino superior.
Tais funções são aqui postas como essenciais ao fator de composição de
um quadro ideal de conhecimentos e habilidades exigidos para o estudante e
aprendiz, criado pelo Governo Federal. De certo, o Enem não figura sozinho.
Existe uma série de outros programas complementares ao seu princípio formador,
a exemplo do Programa Ensino Médio Inovador (PROEMI), Programa
Universidade para Todos (PROUNI), Sistema de Seleção Unificada (SISU), Ciências
sem Fronteiras, dentre outros.
Mas, via de regra, o que é, de fato, tornado operativo a partir do Enem?
Como o Enem pode ser compreendido no panorama do que podemos denominar
paradigma compensatório? A pertinência do questionamento nos remete ao fato
da existência de um discurso segundo o qual a formação escolar dos aprendizes,
de um modo geral, parece deficitária frente aos novos paradigmas da pós-
modernidade (BAUMAN, 2003).
Pensado a partir do início dos anos de 1990 e, efetivamente, oficializado
em 1998, o Enem, com a suposta finalidade de servir de instrumental avaliador
180
anual da aprendizagem dos alunos dessa faixa de instrução, foi um instrumento
diagnóstico (ou de comprovação?), para o Ministério da Educação, sobre o que já
se suspeitava há muito tempo: que o ensino nas escolas públicas brasileiras
necessitava de novos processos regimentais de formação e qualificação frente à
modernidade. O Enem foi, sem sombra de dúvida, a primeira manifestação
avaliativa geral aplicada diretamente aos estudantes, por meio de prova de
conhecimentos gerais e especiais, que serviu ao poder institucional governamental
de “retrato falado” do que se chama ensino brasileiro de base.
Parece existir um discurso institucional que determinou, a partir de
estudos, pesquisas ou o que for e que mereceu respaldo para a sua existência, que
a instituição de ensino nacional precisava mudar. Na verdade, os processos de
ensino e aprendizagem sofreram mudanças significativas, sugeridas por força da
Lei (e aqui nos referimos aos instituintes legais, tais quais as Leis de Diretrizes e
Bases, leis orgânicas estaduais e municipais, dentre outras), para atender a algo
que não se sabe o que é de fato, mas que é preciso compensar para tornar “a
falta” menos aguda. Desse ponto de vista, o Enem começa a ser entendido não
apenas como um instrumento de acesso ao ensino superior; antes, é um
instrumento de detecção de qualidade da educação (e do ensino médio) no país.
As melhorias pensadas para o ensino em geral começaram, em tal
conjuntura, com a consequente implantação dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) para o Ensino Fundamental, inicialmente e, posteriormente, do
Ensino Médio. Com raras exceções, nem todos os envolvidos nos processos de
ensino e de aprendizagem estudaram adequadamente os elementos estabelecidos
como parâmetros teóricos, metodológicos e mesmo filosóficos contidos nos PCN
para o ensino nacional.

1.1 Um fato: esvaziamento nos cursos superiores

A nossa realidade no Centro de Formação de Professores, sobretudo em


termos de ocupação de vagas reais nas décadas de 1980 e 1990, demonstrava
disparidades entre o número de vagas na instituição superior de ensino e a
quantidade de ingressantes aos cursos superiores das áreas de humanidades. A
ordem institucional, grosso modo, manifestou diferentes discursos sobre a nossa
identidade, enquanto formadores de profissionais para o ensino e, por certo, a
identificação de um princípio de influência necessária à regulação atrativa para os
cursos superiores: o que é tal curso, como está e como queremos que seja. No
Curso de Letras, do qual partilhamos a identidade socioeducativa e com o qual

181
mantemos laços de alteridade, a pergunta norteadora foi “Curso de Letras: o quê e
para quê?”.
Assim, pensar em mudanças (aderindo aos anseios nacionais de
mudança) sem perder a identidade pareceu ser o princípio do trabalho com o jogo
de experiências e expectativas e, seguramente, administrar o conflito dos saberes e
seus efeitos: saber fazer; saber fazer o saber crível e adequado, etc. O processo
conduziu a todos ao desejo de elaboração de novas propostas para ensinar e
aprender. E os projetos pedagógicos começaram a ser esboçados em todos os
níveis e segmentos da educação nacional.
O nosso questionamento sobre as atividades pensadas para as ‘mudanças
de paradigmas de ensino e aprendizagem’ pode ser aqui denominado como um
jogo de expectativas para o que se reconhece como passível de compensação e as
reais finalidades impostas por exigência da legislação institucional (aqui
denominado discurso da instituição ou, simplesmente, discurso de propriedade).
Tal discurso, ao nosso princípio de consideração, parece ter seguido uma
orientação para criar uma série de estratégias consideradas necessárias ao novo
curso: uma espécie de espaço a ser preenchido por uma ideia ou uma proposta
complexa e com dados e condições de produção e trocas em termos de efeitos
visados pela nova ordem.
Flexibilizados os princípios e habilidades, programas e currículos, agora
seria necessário atrair candidatos para os cursos de humanas... O Enem foi um
dos parâmetros, mas antes as vagas poderiam ser preenchidas com um processo
de exame (vestibular) diferenciado e direcionado para o quadro de profissionais
da educação formal (e atuantes nas sérias do Ensino Fundamental), interessados
em garantir a sua formação em nível superior.
Ensinar a realizar algo é a consideração mais significativa para o que pode
ser sinônimo de prescrever. Por seu turno, prescrever pode ser entendido,
dependendo do ponto de vista (ou lugar, na comunidade linguística), como norma
para a realização de algo, forma autorizada de pensar e agir, modo adequado de
usar os discursos escritos e orais. Ensinar implica instruir, usando práticas
diversificadas. Importa aqui relembrar as considerações de Garcia (2004) sobre as
necessidades humanas em termos do saber, do poder e das limitações humanas
em termos de sua liberdade de escolha, frente ao totalitarismo científico.
A administração de tais práticas de formação ou lugares de interações
sociais organizados em função de uma atividade social definida a partir de um ou
mais objeto de estudo, que vai de uma disciplina (e conjuntos delas) a um
conjunto de práticas e situações ativas. A respeito de tais constituintes, Bourdieu
(1982) nos alerta para o fato da existência de campos das práticas sociais e,
182
consequentemente, da inexistência de um domínio de tais práticas como
pertencente a uma ou outra disciplina. Assim, quase sem saber como
operacionalizar as mudanças, elas foram postas em prol das pretensões
semânticas...

1.2 Implicações pedagógicas e éticas transparentes

Desde o período da chamada Revolução Industrial que as ações ditas


compensatórias são usadas por governos como representação de um conjunto de
medidas políticas e pedagógicas, visando, quase sempre, compensar deficiências
escolares das classes minoritárias.
Para o Ministério da Educação, o resultado do processo serve de indicador
para o princípio de avaliação da qualidade do Ensino Médio no Brasil, claro,
consideradas apenas as instituições que aderiram ao exame.
Do suposto vazamento das provas em 2009 (cadernos furtados na gráfica)
e divulgação de gabaritos incorretos ao vazamento de informações dos inscritos,
em 2010, e sua suspensão por medida judicial (caso do Ceará), o Enem é o
instrumento de acesso dos estudantes aos cursos universitários. É um fato.
Divergências nas correções das redações, desconfiança na forma de
avaliação por parte dos alunos, dentre outros pressupostos complicadores do
processo, importa considerar que o exame é diferente dos vestibulares
tradicionalmente conhecidos.
Um implicador pedagógico especial reside na noção de
transdisciplinaridade, ou seja, a formulação de perguntas que envolvem áreas de
conhecimento e disciplinas do currículo escolar para uma resposta. O participante
do exame tende a ser compelido em empregar diferentes capacidades e
habilidades para a resolução de um ou mais problemas.
A prova tende a buscar o estabelecimento de um princípio avaliativo que
se pauta pela demonstração de competências e não pela figuração específica da
informação como um dado.
Ao que parece, continua a oscilação entre os paradigmas avaliativos que
têm bases na capacidade de raciocínio do aluno e suas ideias próprias sobre o
conhecimento partilhado ao longo do Ensino Médio. A formação integral a que o
alunado tem direito nem sempre é ofertada pela escola, ao nosso ver, para que
sejam capazes de demonstrarem raciocínio lógico na satisfatória resolução de
problemas, como postulados no Enem.
Mas quais os reais significados de tais postulados (demonstração de
raciocínio lógico, conhecimento partilhado, formação integral) se, ao que se
183
aparenta no real, alunos das diversas escolas, via Enem, demonstram grandes
dificuldades no trato do conhecimento nos cursos de formação de professores?
Estamos lidando com processos perigosos. Entre razão comunicativa,
instrumental e os simulacros e o real, de fato, as práticas pedagógicas devem (ou
deveriam) ser questionadas. Ou as funções de ensino e de aprendizagem estariam
melhores com especialistas e professores em patamares diversos? Ou caberia aqui
averiguar qual seria a função do professor em todo o processo?
Tardif (2002) tenta demonstrar as diferentes modalidades em que os
espaços escolares (e as suas reais funções) têm se transformado, muito embora o
espaço da sala de aula ainda seja a referência para as trocas de saberes. O saber
do professor, segundo a concepção de Tardif (2002), é próprio de cada
profissional do ensino e, por isso, está intimamente relacionado com esse sujeito
de saber e com as suas experiências de vida, assim como com as relações
mantidas com os alunos e com todos que compõem o espaço escolar de
instrução.
Como trabalhar produtivamente com o desenvolvimento de competências
e habilidade dos alunos do Ensino Médio sem subverter o currículo, isto é, sem
que os educadores tenham em mente satisfazer aos alunos no acesso ao Enem e,
para tanto, trabalhar os elementos formais curriculares para a prova em si, ainda
é um processo a ser melhor compreendido. O princípio ético atributivo para essa
questão vai além do exame e reclama para o processo a função professor.

2 Enem em dias de CFP: representações e seu ambiente

O Enem deve aqui ser entendido a partir de um princípio de autoridade,


correspondendo à reflexão epistêmica (verdade ou não, aceitação ou negação) da
influência social (o poder atribuído/próprio do discurso) e interpessoal (interação
dos possíveis interactantes de forma positiva ou negativa). O Enem é um
instrumental norteador de acesso à universidade e dele integram e dependem
outros programas e subprogramas, em níveis. Assim, o exame é a manifestação
injuntiva institucional do Ministério da Educação e, em seu nome (autoridade
citada), devem as instituições de ensino superior, dentre elas o CFP, aceitá-lo
como norma.
Do ponto de vista epistêmico, o impositivo do exame pelo Ministério da
Educação é uma problemática de autoridade e, grosso modo, substituir a
necessidade de prova, deveria bastar por si ao princípio de ser necessário para o
sujeito ingressar em um curso superior.
184
Na perspectiva discursiva do ethos, o Enem mantém um discurso
persuasivo manifesto por uma retórica atributiva nos seus determinantes das leis,
que autorizam a disseminação de uma ação (o exame em si) a ser realizada em
caráter definitivo em todo o território nacional (MAINGUENEAU, 2008). Acreditar e
obedecer sem que o exercício do livre arbítrio seja manifestado parece ser a
condição do exame em si.
Assim, as funções de professor e de especialista, antes inerentes aos
processos de ingresso dos alunos, via vestibular, foram transferidas a um instituto
delegado pelo Governo, pela sua força da autoridade, da Lei.
Pelo Enem, o CFP tem recebido estudantes de ambientes diversos e
formações discursivas as mais peculiares, observáveis. O problema da escolha
para o ingresso na universidade está além do sexo/gênero e da raça: constitui uma
ética (ou seria uma bioética, nos moldes foucaultianos?) segundo a qual o arbítrio
para o ingresso em um determinado curso seja uma ilusão confortante. Em
outros termos, convém observar que o Exame Nacional de Cursos reconhece para
o aluno uma vaga, mas não a vaga, pois está no condicionante de uma nota
(pontuação mínima).
No ambiente de estudo que o CFP congrega cursos das mais diferentes
especificidades e ramos de saber, sujeitos diferentes que se manifestam em seus
atos de enunciação (ou nos seus processos de acontecimento, manifestação do
dizer), como estudantes que se percebem em um curso, mas que não se
reconhecem como cursando o que escolheram. Donas de casa, comerciantes,
professores sem curso superior, trabalhadores do comércio, policiais, artesãos,
artistas, dentre outros, compõem o quadro formal dos estudantes universitários
ingressantes no sistema universitário, pelo Enem.

3 O não familiar que se converte em familiar: a representação

Todas as ações ditas estritamente humanas e, de certo, estabelecidas no


âmbito social, isto é, que implicam contato com pessoas e processos acontecem
por meio de uma interação. No caso dos estudantes, com o Enem, a interação é
marcada por um processo de representação.
A gama de conhecimentos geradas nos processos de interação será motivo
para a transmissão por muitas gerações como dado de certeza. Por tal razão,
Durkheim (1978), a partir de uma concepção eminentemente sociológica de
representação, dá aos processos de interação um caráter coletivo. Em tal caso, está
a não familiaridade anterior dos estudantes com o estabelecido com e pelo Enem,
185
a condição segundo a qual as gerações tendem a acumular experiências e saberes.
Mas, em quais níveis as experiências e saberes estarão sendo respaldadas nos
processos de seleção instaurados com o Enem? Seria possível dar cabo de
conhecer todas as manifestações inerentes aos princípios das representações
coletivas de alunos ingressantes no CFP na via da escolha específica? Ou a
representação dos alunos atuais (que não escolheram o curso que fazem) estaria
no limiar do senso comum, seguindo um pensamento de que é melhor estar na
universidade em um curso que não escolhido, mas para o qual os pontos
permitiram-lhe o ingresso, do que não fazer curso algum?
Não é o nosso intento esclarecer todos os pressupostos aqui reclamados a
partir dos questionamentos proferidos, mas corroborar com a ideia segundo a
qual é perceptível a influência do programa do governo (Enem) frente a uma
representação instaurada no contexto acadêmico. O Enem é a principal via de
acesso ao mundo universitário e aceitar as suas condições é uma representação
limitante.
Para Moscovici (1990), as representações devem ser consideradas sociais
(e não coletivas) e, assim, reduzidas a um percentual de conhecimento específico,
que elabora comportamentos e determina as principais vias de comunicação entre
os indivíduos. Em se tratando do Enem, podemos dizer que o processo de seleção
instituído como não familiar passou a ser um constitutivo familiar aos alunos
ingressantes nos diversos cursos de formação no CFP/Cajazeiras.
Independentemente do grupo social ou da profissão, ou da referência econômica
ou de qual seja a ordem, o Enem é o parâmetro inquestionável ao qual a
universidade aderiu.
Os implicadores dessa representação de adesão têm gerado um espaço
entre os cursos de humanidades e saúde, ou seria uma representação natural a
“nota de corte” ser menor para o ingresso em cursos da área de humanas e maior
para os das áreas médicas, por exemplo? Grosso modo, os cursos de humanidades
estão com uma função representativa latente, distinta dos seus objetivos
fundamentais, mas receptivas ao ponto de tornar professores donas de casa,
empregados do comércio local ou quaisquer profissionais liberais. Via de regra,
tornar proficientes pessoas distintas para o trabalho futuro com as disciplinas do
currículo escolar básico.
Quem dera seja o princípio constitutivo do Enem e dos que ingressam na
universidade por suas vias um modo inquietante de condução do humano para o
desconhecido, a inquietar-se na procura dos novos paradigmas do conhecimento
e, ao sabor do tempo, desvendá-lo e conhecer-lhes os mistérios de quem se
percebe em ethos de saber.
186
É o fim

A nossa função de representação social presentifica uma ínfima parte da


identidade coletiva de outros educadores do CFP/Cajazeiras sobre o objeto Enem.
São, pois, as nossas imagens peculiares que aqui colocamos em crivo para
apreciação e contestação. Não basta opinar contra ou a favor, mas observar o
paradigma segundo o qual o instrumental de formação não está sendo suficiente
para instruir adequadamente. Consideramos existente uma lacuna observável na
demonstração necessária de saber por parte de quem chega na universidade e
requerida para o espaço do saber. É um fato.
Tardif (2002), ao tratar da problemática do saber e, igualmente, dos
papéis dos educadores diante de suas funções de saber, estabelece uma
interlocução entre aspectos formais do saber essencial e do processo educativo. As
nossas considerações têm relação com tais saberes.
Do ponto de vista do professor, consideramos essencial que o saber por
ele partilhado deve ser fruto de um processo de construções coletivas e próprias
de trabalho laboral e de estudo, pois é sua função formar, e formar bem.
Corroboramos com Tardif (2002), para quem a profissão docente se
constitui em torno da formação profissional (das ciências da educação e da
ideologia pedagógica), dos saberes específicos de cada disciplina e,
consequentemente, os saberes curriculares e, finalmente, dos determinantes
advindos dos chamados saberes experienciais.
Com base nas nossas experiências, supomos (e podemos estar
equivocados) que estamos recebendo alunos ingressantes com pouca
demonstração de habilidade (e tempo!) para a construção de um processo
formador em nível superior. Pode ser que os anos de profissão, de fato,
estabeleçam as mudanças, inclusive, em nossa identidade profissional e,
inconscientemente, nos modos como trabalhamos com a formação de professores
e nos conhecimentos partilhados.
Somos da opinião de que as ações humanas têm um custo e requerem
corresponsabilidades, direitos e deveres. Em tempos de inteligências múltiplas e,
consequentemente, múltiplas habilidades, formar professores, médicos,
engenheiros, dentre outros, não deve se constituir em atividade fácil, no mundo
universitário. Somente a amizade advém da gratuidade... Tudo tem um preço.

187
Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar,
2003.
BOURDIEU, P. Ce que parle veut dire. Paris: Fayard, 1982.
DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1978.
MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da enunciação. São Paulo: Parábola, 2008.
MOSCOVICI, Serge. A máquina de fazer deuses. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e Formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.

188
OS AUTORES

Aline Malaquias da Silva – mestre em Letras/Linguística (UFPB, 2013), é


integrante do Grupo de Estudos em Letramentos, Interação e Trabalho – GELIT.

Danillo da Conceição Pereira Silva – graduando em Letras (UFS), é integrante


do Grupo de Estudos em Linguagem, Interação e Sociedade – Gelins.

Débora Reis Aguiar – mestranda em Letras (PPGL-UFS), é integrante do Grupo


de Estudos em Linguagem, Interação e Sociedade – Gelins.

Denise Porto Cardoso – doutora em Letras (PUC/RJ, 1989), professora do


Departamento de Letras Vernáculas – DLEV, do Programa de Mestrado
Profissional em Letras – PROFLETRAS/ UFS, é integrante do Grupo de Estudos em
Linguagem, Interação e Sociedade – Gelins.

Fabíola dos Santos Lima – graduanda em Letras (UFS), é integrante do Grupo


de Estudos em Linguagem, Interação e Sociedade – Gelins.

Fernando da Cunha Mendonça – graduado em Letras (UFS, 2005), é integrante


do Grupo de Estudos em Linguagem, Interação e Sociedade – Gelins.

Francielle Santos Araújo – graduanda em Letras (UFS), é integrante do Grupo


de Estudos em Linguagem, Interação e Sociedade – Gelins.

Isabel Cristina Michelan de Azevedo – doutora em Letras (USP, 2009),


professora do Departamento de Letras Vernáculas – DLEV, do Programa de
Mestrado Profissional em Letras – PROFLETRAS/ UFS, é integrante do Grupo de
Estudos em Linguagem, Interação e Sociedade – Gelins.

Jaqueline dos Santos Nascimento – mestranda em Letras (PPGL-UFS), é


integrante do Grupo de Estudos em Linguagem, Interação e Sociedade – Gelins.

José Júnior de Santana Sá – graduado em Letras (UFS, 2015), é integrante do


Grupo de Estudos em Linguagem, Interação e Sociedade – Gelins.

189

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