As festas também são de domínio de investigação dos historiadores, e, portanto,
pertencem à História e devem ser colocadas como centro das atenções para o exercício do trabalho historiográfico, ainda que em nenhum tempo, as festas alcançaram unanimidade, e tudo o que apresentam e representam tampouco tiveram um período único de esplendor, em algum local maravilhoso do passado. Decerto, as memórias sobre as festas indicam mudanças e negociações para continuarem existindo – mesmo reunindo em torno de si muitos adeptos e festeiros –, conflitos ocasionados por críticos, opositores, perseguidores ou nostálgicos de outros tempos (ABREU; MATOS, 2018). Distante da imagem harmoniosa que têm os bois-bumbás no Amazonas, nas primeiras décadas do século XX, eles estavam constantemente sob o jugo da polícia, tanto para ensaiar quanto para sair às ruas. Os registros produzidos pelos jornalistas, folcloristas e intelectuais foram primordiais para o trabalho do historiador em compreender como os bois-bumbás promoviam cidadania em seu curral e nos “subúrbios” da cidade, cujos organizadores e brincantes, grupos de homens negros e populares, tornaram-se alvos da polícia e da imprensa, entre outros motivos, devido às “touradas” que, com seus cordões de bois, vadiavam pelas ruas e causavam desordem na cidade. Como meio de evitar tais conflitos, na década de 1950, os jornais locais (Diário da Tarde e o Jornal) institucionalizaram essas disputas de bois-bumbás em forma de Festival Folclórico do Amazonas (ANDRADE, 1978; COSTA, 2002; ASSUNÇÃO, 2008). É sobre esse período que se há mais registros iconográficos sobre os bumbás. A seguir, baseado nas análises de Ulpiano Meneses (2002, p. 148), sobre a “fotografia como documento”, para quem “trabalhar historicamente com imagens obriga a percorrer o ciclo completo de sua produção, circulação, consumo e ação”, analiso uma imagem produzida por Moacir Andrade, registrada em seu livro “Alguns aspectos da Antropologia cultural do Amazonas”, de 1978, sobre o boi Mina de Ouro, bumbá que apresentou durante os primeiros anos do Festival Folclórico do Amazonas (1956). Moacir Couto de Andrade foi
1 Doutorando em História pela Universidade Federal do Amazonas. Professor da Secretaria de Estado de Educação do Amazonas. E-mail: juninhobentes@hotmail.com
um pintor e desenhista manauara, que integrou o Clube da Madrugada, fundado oficialmente em 1954, na cidade de Manaus, época em que despontou em sua carreira artística, pois, juntamente com outros jovens intelectuais, participou de exposições culturais e artísticas, sob a concepção de arte moderna. Assim, o clube tornou-se um movimento de manifestação cultural, política e educativa amazonense, notoriedade que pode ser evidenciada por meio de sua presença ao escrever para jornais locais (LOPES, 2018).
Figura 01: Boi Mina de Ouro e seus padrinhos.
Fonte: Moacir Andrade (1978)
Sob o título “Padrinhos do boi Mina de Ouro do Boulevard Amazonas”, o título
da obra, da década de 1960, já revela a identificação dos bois com seus respectivos bairros de Manaus, com suas sedes onde aconteciam os ensaios dos bois, entre batismo e matança, mas principalmente, destaca a presença dos padrinhos do referido boi. Vislumbra-se que o autor da imagem fotográfica – para além do próprio boi Mina de Ouro, preto e com coração na testa, cor e símbolo que os identifica – dá protagonismo aos seus padrinhos, homens brancos, com roupas e calçados que sugerem seu status social, os quais, com seus gestos, parecem proteger o boi. É histórico que, conscientes dos limites impostos para a continuidade das suas festas, os agentes dos bumbás articularam práticas políticas como meio de enfrentar eventuais medidas de repressão e dificuldade financeiras para a continuidade de seus grupos festivos. Portanto, dentro de uma lógica paternalista, recorrente dos trabalhadores, lançavam mão dessa postura em busca de redes de proteção que pudessem melhorar suas condições de vida, tal qual faziam os escravizados para aumentar seus espaços de liberdade. A fotografia parece evidenciar que o eventual sucesso do bumbá no Festival Folclórico era devido ao boi ter bons padrinhos que colaboravam financeiramente para que o bumbá construísse seus figurinos com beleza e requinte, conforme é possível ver ao fundo “os índios do boi” (ANDRADE, 1978). Esses mesmos personagens eram encenados por homens negros, que formavam a barreira de índios – os protetores do boi – , o que nos permite afirmar a presença de negros como protagonistas nas manifestações folclóricas dos bumbás em Manaus, embora a fotografia procure dar destaque aos padrinhos do boi. Evidencia aí, portanto, os laços de proteção, como meio de garantir seu funcionamento regular, uma bela apresentação no Festival Folclórico e de obter a vitória. Afinal, ao escolher para serem seus padrinhos gente de posse e prestígio social, esperava contar com a ajuda de seus protetores. De igual modo, forjavam um modo de combater os efeitos cotidianos do racismo. Portanto, os organizadores do boi, trabalhadores negros, “afirmavam, com isso, sua própria forma de luta, construída por dentro das redes de paternalismo” (PEREIRA, 2020, p. 254). Embora não seja possível ver o diretor do bumbá, Alvadir Assunção (2008) escreveu que se tratava de Cipriano Moraes Vieira, negro e estivador, conhecido como mestre Cipitiba, o ensaiador do boi Mina de Ouro, fundando em 1925, que sempre portava seu pandeiro. Segundo Lima Junior (2022), antes do Festival Folclórico, eram comuns os conflitos causados pelos encontros de bumbás pelas ruas de Manaus, os quais saiam às ruas com seus brincantes, cantando e dançando pelos subúrbios da cidade, almejando visibilidade para que pudessem ser contratados pelos clubes recreativos, e, por conseguinte, tornavam-se alvos da polícia para dar fim a esses “fuzuês” que geralmente terminavam em tragédias. A fotografia ainda oferece pistas sobre participação de crianças, de igual modo a ausência de mulheres nas festividades do boi-bumbá ainda na década de 1960. Não se pode afirmar que mulheres não participavam, contudo inferir que a presença de homens era hegemônica a brincadeira. Ainda assim, merece importância o trabalho do autor ao registrar a presença do boi Mina de Ouro enquanto manifestação festiva e cultural de Manaus, e, por conseguinte, um importante documento para os historiadores.
Referências
ANDRADE, Moacir Couto de. Alguns aspectos da Antropologia Cultural do Amazonas.
Manaus: Casa Editora Madrugada, 1978. ASSUNÇÃO, Avaldir. O auto do boi-bumbá - Corre Campo e outros Famas. / Manaus: Edições Muiraquitã, 2008. PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. A cidade que dança: clubes e bailes negros no Rio de Janeiro (1881-1933). Leonardo Affonso de Miranda Pereira - Campinas, SP: Editora Unicamp; Rio de Janeiro, RJ: EdUERJ, 2020. ABREU, Martha; MATOS, Hebe. Festas e lutas políticas: das festas do 13 de maio às festas do Quilombo de São José da Serra, RJ, 1888 – 2011. IN Cultura negra - vol. 1: festas, carnavais e patrimônios negros / Organização de Martha Abreu, Giovana Xavier, Lívia Monteiro e Eric Brasil. – Niterói: Eduff, 2018, p. 30-57. LIMA JÚNIOR, Josivaldo Bentes. Negros a bumbar: Boi Caprichoso, sociabilidade e resistência em Manaus (décadas de 1920 a 1940). Revista Aedos, v. 14, n. 31, p. 91-110, 2022. LOPES, Valter Frank de Mesquita. Processos socioartísticos em Moacir Andrade: estilo e artes plásticas na Amazônia. Tese (Doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia) - Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2018. MENESES, Ulpiano T. B. A fotografia como documento. Robert Capa e o miliciano abatido na Espanha: sugestões para um estudo histórico. Tempo, Rio de Janeiro, n 14, p. 131-152, 2002