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DESENVOLVIMENTO ORIENTADO AO TRANSPORTE SUSTENTÁVEL -

DOTS NA ANÁLISE DA INSERÇÃO URBANA DOS


EMPREENDIMENTOS DO PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA -
MCMV FAIXA 1

ISABEL CRISTINA NUNES DE SOUSA1


ROBETO BRAGA2

RESUMO
Reforçado pelo programa Minha Casa Minha Vida - MCMV Faixa 1, o padrão disperso de urbanização
extensiva aliado à atuação do capital imobiliário, em que a expansão é intercalada por extensos vazios,
contribui para a segregação socioespacial. Em vista dos danosos efeitos socioambientais da urbanização
espraiada, refletidos no avanço sobre áreas naturais, as questões ligadas às consequências dos diferentes
arranjos espaciais urbanos têm papel central nas discussões atuais sobre a sustentabilidade nas cidades.
Nesse sentido, o Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável – DOTS, estratégia de
planejamento urbano que, ao reunir em um mesmo conceito diversas concepções desagregadas que já
indicavam a necessidade do planejamento integrado entre transporte e uso do solo, adota o discurso da
sustentabilidade urbana. Com utilização de parâmetros e indicadores de ordenamento territorial para
nortear o desenvolvimento urbano, o DOTS parte da prerrogativa do desenho urbano integrado ao
planejamento territorial, impulsionando uma visão de crescimento urbano mais compacto, denso e
destacado pela mistura de usos, em que a forma urbana privilegia o uso do transporte ativo e público
coletivo. A partir de tais pressupostos, por meio de uma revisão qualitativa e integrativa da literatura e do
método descritivo-analítico, examinou-se o programa MCMV como política habitacional sob o prisma da
mobilidade urbana, discutindo-o à luz do contexto em que foi formulado. Posteriormente, questionou-se a
pertinência da utilização dos indicadores DOTS na avaliação da localização, integração com o entorno
(inserção urbana) e desenho urbano dos empreendimentos do programa MCMV Faixa 1, discutindo a
adequação de seus critérios e métricas para uma avaliação pragmática da realidade. Assim sendo,
estudou-se como a incorporação dos princípios da mobilidade urbana poderia influenciar na avaliação de
empreendimentos habitacionais, de modo a contribuir para a reflexão sobre os impactos da maior política
pública de habitação de interesse social no Brasil, e para a compreensão do papel do Estado e do setor
privado na alteração das dinâmicas espaciais urbanas, notadamente no que concerne à produção desigual
do espaço urbano. Embora a questão habitacional tenha sido historicamente equacionada via provisão de
habitações populares subsidiadas, o acesso à cidade e suas oportunidades não tem sido contemplada em
sua totalidade. Desta forma, é comum verificar a construção de conjuntos habitacionais desconsiderando
a dimensão urbana, em locais afastados das áreas centrais, dificultando o acesso aos equipamentos e
serviços públicos, além das oportunidades de emprego, educação, lazer e cultura da cidade. Após a
avaliação do PMCMV Faixa 1 à luz do DOTS, torna-se evidente que os efeitos negativos do programa
poderiam ter sido minimizados, caso preceitos amplamente discutidos na literatura, e sintetizados no
DOTS, tivessem conduzido a escolha do local de implantação dos empreendimentos, visto que o mesmo
preconiza a integração com o entorno (inserção urbana).

1
Acadêmico do programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual de São Paulo. E-mail
de contato: sousa.isabelnunes@gmail.com
2
Docente do programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual de São Paulo. E-mail
de contato: roberto.braga@unesp.br
Palavras-chave: Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável – DOTS; Programa Minha
Casa Minha Vida – MCMV; Sustentabilidade Urbana; Mobilidade Urbana; Habitação de Interesse Social.
ABSTRACT
Reinforced by the Minha Casa Minha Vida program - MCMV Track 1, the dispersed pattern of extensive
urbanization combined with real estate capital, where expansion is interspersed by large voids, contributes
to socio-spatial segregation. Given the detrimental socio-environmental effects of urban sprawl, reflected in
the reaching of natural areas, the issues related to the consequences of different urban spatial
arrangements play a central role in the current discussions on sustainability in cities. In this sense, Transit
Oriented Development – TOD, an urban planning strategy that, by bringing together in a single concept
several disaggregated conceptions that already indicated the need for integrated planning between
transport and land use, adopts the discourse of urban sustainability. With use of territorial planning
parameters and indicators to guide urban development, DOTS starts from the prerogative of urban design
integrated with territorial planning, fostering a vision of urban growth more compact, dense and highlighted
by the mix of uses, in which the urban form privileges the use of public and active transportation. Based on
these assumptions, through a qualitative and integrative literature review and the descriptive-analytical
method, the MCMV program was examined as a housing policy under the prism of urban mobility, discussing
it in light of the context in which it was formulated. Subsequently, the pertinence of the use of DOTS
indicators in the assessment of location, integration with the environment (urban insertion) and urban design
of the MCMV Track 1 program was questioned, discussing the adequacy of its criteria and metrics for a
pragmatic assessment of reality. Therefore, it was studied how the incorporation of urban mobility principles
could influence the evaluation of housing developments, in order to contribute to the reflection on the
impacts of the greater public policy of social interest housing in Brazil, and to the understanding of the role
of State and private sector in the alteration of the urban space dynamics, especially with regard to the
unequal production of urban space. Although the housing issue has historically been addressed through the
provision of subsidized housing, access to the city and its opportunities has not been fully contemplated. In
this way, it is common to verify the construction of housing complexes disregarding the urban dimension, in
places far from the central areas, making access to public equipment and services difficult, as well as
employment, education, leisure and culture opportunities in the city. After the evaluation of PMCMV Track
1 in light of the DOTS, it becomes evident that the negative effects of the program could have been
minimized, if precepts widely discussed in the literature and synthesized in the DOTS, had led to the choice
of the place of implantation of the projects, since it advocates integration with the environment (urban
insertion).

Keywords: Transit Oriented Development – TOD; Minha Casa Minha Vida Program – MCMV; Urban
Sustainability; Urban Mobility; Housing of Social Interest.

1 – Introdução
Até o surgimento e popularização dos automóveis, as cidades costumavam ser
mais compactas, com “tamanhos limitados por tempos e distâncias compatíveis com
deslocamentos a pé” (SILVA; COSTA; MACÊDO, 2016, p. 81).
Com a atual preponderância do transporte individual motorizado, que acarreta em
maiores velocidades de deslocamento e possibilita percorrer distâncias mais extensas
sem necessariamente aumentar o tempo de viagem (RODE et al., 2014), o espraiamento
urbano (urban sprawl) passa a ser comum (UN-HABITAT, 2017).
No Brasil, tal fenômeno de crescimento horizontal das cidades se coaduna às
políticas públicas habitacionais voltadas à provisão de moradia para populações de baixa
renda, em que a periferização residencial é recorrente. Nessa conjuntura, em diversas
políticas públicas direcionadas ao financiamento habitacional para aquisição subsidiada
da casa própria, tem-se a proliferação de conjuntos habitacionais em zonas periféricas
de expansão urbana, onde o preço dos terrenos é menor, sobretudo devido à ausência
de infraestruturas e serviços urbanos.
A iniciativa mais recente e expressiva nesse sentido seria o programa Minha Casa
Minha Vida – PMCMV, regulamentado pela Lei nº 11.977/2009 (BRASIL, 2009), com seus
loteamentos longínquos, que impõem a seus moradores dispêndio excessivo de tempo
em longos deslocamentos motorizados.
Essa realidade se perpetua pela ausência de diretrizes específicas que
condicionem a construção de empreendimentos habitacionais em áreas urbanas
consolidadas. O que se contrapõe à permanência de espaços vazios em áreas bem
localizadas no interior do perímetro urbano - apesar da existência de diversos
instrumentos do Estatuto da Cidade voltados para o combate à especulação imobiliária
(BRASIL, 2001).
Assim sendo, aprofunda-se a tendência ao espraiamento da mancha urbana em
direção à novas fronteiras periféricas, com gradual substituição de áreas vegetadas/rurais
por transformações decorrentes da urbanização ambientalmente predatória, com perda
de terra produtiva e de ecossistemas frágeis e relevantes. Em vista dos danosos efeitos
socioambientais da urbanização espraiada, refletidos no avanço sobre áreas naturais, as
questões ligadas às consequências dos diferentes arranjos espaciais urbanos têm papel
central nas discussões atuais sobre a sustentabilidade nas cidades.
Nesse sentido, o Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável – DOTS,
estratégia de planejamento urbano que, ao reunir em um mesmo conceito diversas
concepções desagregadas que já indicavam a necessidade do planejamento integrado
entre transporte e uso do solo, adota o discurso da sustentabilidade urbana.
O DOTS (Transit Oriented Development – TOD, na expressão original em inglês,
cunhada em 1993 por Peter Calthorpe no livro “The New American Metropolis”) surgiu
como uma estratégia para minimizar a ocorrência do urban sprawl e mitigar os impactos
negativos da dependência do automóvel, tendo sido influenciado por movimentos como
Smart Growth, Compact City, e New Urbanism (HESS; LOMBARDI, 2004; WEY, ZHANG
e CHANG, 2016).
Ao incorporar o DOTS, objetiva-se direcionar a urbanização para áreas próximas
a estações ou corredores de transporte público, de modo a reduzir os deslocamentos via
automóveis e, simultaneamente, desestimular a conversão de áreas rurais/naturais
periféricas em urbanas, por meio da contenção da expansão física (CURTIS, 2012;
PADEIRO, 2014). Consequentemente, cria-se um ambiente propício ao incremento das
viagens por transporte ativo (não motorizado) e à maior geração de passageiros para os
sistemas de transporte coletivo, em razão do incentivo ao uso misto do solo e à
compacidade urbana, que diminuem a necessidade de longos deslocamentos diários
(FELIX; RIONDET-COSTA; PALMA-LIMA, 2019).
De maneira geral, as premissas do DOTS podem ser sintetizadas em 8 princípios,
mensuráveis por meio de métricas quantitativas específicas que funcionam como
indicadores, sendo deles: caminhar, pedalar, conectar, usar o transporte público,
misturar, adensar, compactar e mudar (ITDP, 2017b). Tais critérios refletem princípios
que já existiam anteriormente à criação do DOTS, tendo sido influenciados por expoentes
do pensamento urbano contemporâneo e difundidos, por exemplo, nas obras de Jane
Jacobs (2000) e Jan Gehl (2014).
A partir de tais pressupostos, por meio de uma revisão qualitativa e integrativa da
literatura (PAUTASSO, 2013) e do método descritivo-analítico, examinou-se o programa
MCMV como política habitacional sob o prisma da mobilidade urbana, discutindo-o à luz
do contexto em que foi formulado. Posteriormente, questionou-se a pertinência da
utilização dos indicadores DOTS na avaliação da localização, integração com o entorno
(inserção urbana) e desenho urbano dos empreendimentos do PMCMV Faixa 1,
discutindo a adequação de seus critérios e métricas para uma avaliação pragmática da
realidade.
2 - O programa habitacional MCMV sob o prisma da mobilidade urbana
Embora a questão habitacional tenha sido historicamente equacionada via
provisão de habitações populares subsidiadas, o acesso à cidade e suas oportunidades
não tem sido contemplada em sua totalidade. Desta forma, é comum verificar a
construção de conjuntos habitacionais desconsiderando a dimensão urbana, em locais
afastados das áreas centrais, dificultando o acesso aos equipamentos e serviços
públicos, além das oportunidades de emprego, educação, lazer e cultura da cidade.
Reforçado pelo programa MCMV, o padrão disperso de urbanização extensiva
aliado à atuação do capital imobiliário, em que a expansão é intercalada por extensos
vazios (SANTOS, 1994), contribui para a segregação socioespacial (UN-HABITAT,
2017), reforçando as contradições previamente estabelecidas no Brasil (LIMA, 2016).
Desta forma, o PMCMV estaria colaborando para levar a população de menor
renda para locais com baixa aptidão à urbanização, especialmente nos empreendimentos
Faixa 1. Tais empreendimentos, destinados à população com renda entre 0 e 3 salários
mínimos, apesar de concentrarem o maior percentual do déficit habitacional, estão mais
distantes dos centros urbanos consolidados.
Em um esforço para garantir que os terrenos destinados às moradias do PMCMV
estejam em regiões melhor inseridas, próximas ao centro da cidade e/ou bem servidas
por transporte coletivo, a Secretaria Nacional de Habitação – SNH lançou em 2018 a
Coleção “Minha Casa + Sustentável”, para auxiliar na escolha de áreas adequadas à
implantação de empreendimentos do PMCMV.
Essencial para uma melhor qualificação da inserção urbana e sustentabilidade do
projeto de novos empreendimentos habitacionais, esta iniciativa é orientada por
similaridades com os preceitos do DOTS. Isto porque incorpora princípios como
conectividade, mobilidade, acessibilidade, e diversidade de usos, visando aproximar as
áreas residenciais das origens e destinos dos deslocamentos, inserindo as unidades
habitacionais no tecido urbano consolidado. Um indicativo da provável relação entre a
incorporação do DOTS e a melhoria nas condições de habitabilidade, visto a relevância
dos aspectos de integração das unidades habitacionais na trama urbana, além do grau
de atendimento a serviços de infraestrutura e equipamentos sociais (PASTERNAK,
2016).
3 - Indicadores DOTS na avaliação dos empreendimentos do PMCMV Faixa 1
Com o DOTS, a destinação de novas infraestruturas públicas é impulsionada,
prioritariamente, para áreas mais conectadas às ofertas de serviços, empregos e
residências, restringindo o desenvolvimento urbano em áreas menos adequadas
(SALAT; OLLIVIER, 2017), além de proporcionar a racionalização dos gastos públicos
pela otimização no uso das infraestruturas já existentes (THOMAS et al., 2018). Tais
medidas são particularmente relevantes para inclusão dos estratos de menor renda na
cidade.
Dentre os oito princípios supracitados, os três diretamente ligados à mobilidade
urbana (caminhar, pedalar e usar o transporte público) nem sempre estão facilmente
disponíveis para os moradores dos conjuntos habitacionais do PMCMV Faixa 1. Por se
localizarem em áreas de expansão limítrofes à mancha urbana ou fora dela (ainda que
inseridas no perímetro urbano), muitos destes empreendimentos situam-se em locais
com uma oferta de transporte público coletivo incapaz de atender eficientemente a
demanda.
Ademais, esta opção por fixar os empreendimentos MCMV Faixa 1 em locais mais
afastados “gera externalidades atreladas à mobilidade urbana, como: maior tempo
despendido no deslocamento, elevação da emissão de poluentes locais, potencial
aumento do número de acidentes viários, etc.” (BRASIL, 2017a, p. 43). As longas
distâncias até as áreas centrais consolidadas também impossibilitam a adesão ao
transporte ativo (caminhada e ciclismo), e a crescente quantidade de viagens
motorizadas intensifica os congestionamentos.
Com territórios cada vez mais extensos em função desse crescimento disperso, a
forma urbana se altera com a expansão da macha urbana. Assim, os princípios da
compacidade e do adensamento não são contemplados, convergindo para uma
ocupação espacial menos eficiente. No entanto, sobre este aspecto cabe ressalva de que
seria prudente não reduzir um problema político e econômico a um problema de eficiência
alocativa de recursos.
A interferência do capital imobiliário muitas vezes é mais influente nos padrões de
uso e ocupação do solo do que planos e políticas públicas - que regularmente apresentam
descompassos com a realidade e ausência de pragmatismo. No caso do PMCMV Faixa
1, tal influência se notabiliza pelo fato de que, a aconselhável melhoria na localização
implicaria, consequentemente, na diminuição da quantidade de unidades construídas
com o mesmo orçamento, e “todos os interesses caminham no sentido de minimizar o
valor do terreno e maximizar a quantidade de unidades produzidas” (BIDERMAN et al.,
2019, p. 94).
Ademais, em função do caráter estritamente residencial dos empreendimentos,
tem-se um incremento nas distâncias entre origens e destinos, manifestando-se a
necessidade de investimentos públicos adicionais para provimento de serviços básicos,
ampliação, operação e manutenção de redes de equipamentos comunitários e
infraestruturas, de modo a suprir a nova demanda gerada.
Essa ausência de diversidade de usos poderia ser parcialmente resolvida com a
conectividade dos empreendimentos habitacionais com seu entorno e a cidade,
compreendendo a articulação com a malha viária existente ou prevista, e possibilitando
a ligação com as “redes de circulação, transporte, infraestrutura, lazer, trabalho e serviços
públicos” (BRASIL, 2017b, p. 19).
As conexões viárias com bairros vizinhos e o restante da cidade, que englobem
todos os modos de transporte (BRASIL, 2017b), caracterizam algumas das dimensões
da conectividade dos conjuntos habitacionais que favorecem os deslocamentos urbanos
e o acesso físico aos serviços públicos, mas que são constantemente negligenciados na
escolha do local de implantação destes empreendimentos, visto a necessidade de
adequar o acesso viário (pavimentação, calçadas, extensão de vias, etc.).
Entretanto, mesmo com a provisão de redes de transporte e a viabilização da
conectividade dos conjuntos habitacionais, as distâncias destes até as áreas centrais
consolidadas dificultam a adesão ao transporte ativo. Além disso, com o automóvel sendo
a opção mais atrativa pela crescente precarização do transporte público coletivo, aliado
à elevação de seus custos, o atendimento ao último dos oito princípios mencionados
(mudar) é prejudicando. Isto porque a alteração da priorização dos modos de transporte
individuais motorizados pelos meios considerados mais sustentáveis (transporte ativo e
público coletivo) é o intento do mencionado princípio.
4 – Incorporação do DOTS no contexto brasileiro
O âmbito municipal (ou regional em contextos metropolitanos) é o mais notório
para a implementação do DOTS. Os gestores públicos locais possuem a competência
constitucional para influenciar o desenvolvimento das funções sociais da cidade por meio
do plano diretor (BRASIL, 1988, art. 182, § 1º). É recomendável, portanto, a incorporação
do DOTS como uma estratégia de planejamento nessa instância, visto que a política
urbana funciona como “a principal articuladora das agendas setoriais no processo de
desenvolvimento das cidades” (ITDP, 2017a, p. 27). Embora planos diretores sejam
constantemente alvo de disputas políticas, nem sempre sendo integralmente aplicados e
com diferenciados graus de participação popular e assimetrias de poder.
Nesse sentido, em razão da necessária e ainda infrequente consistência entre os
planos diretores e os planos setoriais (UN-HABITAT, 2017), medidas interventivas que
se ampliem para além da esfera do desenho urbano e adentrem o contexto das políticas
públicas, têm mais chances de sucesso para que o DOTS seja incorporado como uma
visão estratégica de planejamento urbano.
Uma outra forma de regulamentação do DOTS seria pela elaboração do plano de
mobilidade urbana municipal, em consonância com o que estabelece a Política Nacional
de Mobilidade Urbana - PNMU, instituída pela Lei Federal nº 12.587/2012, e que
determina como uma de suas diretrizes a “integração com a política de desenvolvimento
urbano e respectivas políticas setoriais de habitação, saneamento básico, planejamento
e gestão do uso do solo [...]” (BRASIL, 2012, art. 6º, inciso I).
Complementarmente, no âmbito da governança metropolitana, o Estatuto da
Metrópole (Lei Federal nº 13.089/2015) é um importante marco normativo firmado, que
estabelece a obrigatoriedade da elaboração do Plano de Desenvolvimento Urbano
Integrado - PDUI (BRASIL, 2015).
No entanto, diversas barreiras existentes podem dificultar a integração entre
transporte e planejamento urbano, especialmente no que concerne a questões de
financiamento, quando, por exemplo, as restrições ao crescimento urbano são
desestimuladas em épocas de crise econômica (PADEIRO, 2014). Além de que podem
ocorrer expansões urbanas atreladas à especulação imobiliária que dificultam o
planejamento das redes de transporte, tais como as relativas à formação de grandes
bancos de terrenos pelas incorporadoras e construtoras, em virtude da financeirização
da moradia (SANFELICI, 2013; ROLNIK, 2015; SHIMBO, 2016).
Complementarmente, tem-se a percepção de que os mecanismos norteadores do
DOTS, expressos por meio de seus princípios, poderiam espelhar valores socioculturais,
políticos e econômicos de quem os determinou, seja sociedade, instituições ou grupos
específicos, dificilmente estabelecendo-se uma neutralidade. Entretanto, tal visão
desconsidera que a sustentabilidade, ao ir além da questão ambiental e incorporar o
contexto histórico e as condições da estrutura social em que se insere, é uma ferramenta
conceitual importante para nortear políticas públicas socialmente inclusivas e
ambientalmente adequadas.
Assim sendo, ainda que os princípios do DOTS sejam incapazes de abarcar todo
o espectro político dos interesses envolvidos, seus conceitos podem orientar a melhoria
de práticas vigentes, podendo embasar, por exemplo, diretrizes e critérios técnicos que
auxiliem na decisão sobre onde alocar conjuntos habitacionais de interesse social.
Nessa vertente, em um país em que falta o básico, notadamente para populações
de menor renda, uma estratégia de planejamento urbano que facilite o acesso à cidade
e às suas oportunidades, possui um inerente componente de inclusão social. Desta
forma, segmentos de menor renda seriam os mais favorecidos pela aproximação dos
empregos, serviços, infraestruturas e oportunidades da cidade, devido à economia com
transporte e aos benefícios da proximidade, já que muitas vezes a caminhada é a única
alternativa viável de transporte para os mais pobres, sendo que muitos são “pedestres
cativos” (CERVERO, 2013).
5 - Considerações finais
Neste estudo, objetivou-se compreender como a incorporação dos princípios da
mobilidade urbana poderia influenciar na avaliação de empreendimentos habitacionais,
de modo a contribuir para a reflexão sobre os impactos da maior política pública de
habitação de interesse social no Brasil, e para a compreensão do papel do Estado e do
setor privado na alteração das dinâmicas espaciais urbanas, notadamente no que
concerne à produção desigual do espaço urbano.
Foi possível perceber que a legislação urbana nacional oportuniza a aplicação do
DOTS de modo abrangente, o que seria um diferencial para sua inclusão nos demais
níveis de governança, pois o suporte governamental alinhado entre os três níveis pode
contribuir para o êxito das iniciativas de incorporação deste conceito.
Ainda assim, a aplicabilidade do DOTS condiciona-se às diferenças locais, em que
fatores como herança e valores culturais, bem como resistência política e contexto
institucional, padrões físicos de crescimento urbano, legislação urbanística e recursos
financeiros podem se apresentar como empecilhos à transferência indiscriminada de
seus princípios. Situação que fortalece a necessidade de um planejamento efetivamente
participativo, em que interesses de diversos segmentos populacionais sejam incluídos e
viabilizados, e os benefícios do DOTS sejam consolidados pela transparência e equidade
social.
Após a avaliação do PMCMV Faixa 1 à luz do DOTS, torna-se evidente que os
efeitos negativos do programa poderiam ter sido minimizados, caso preceitos
amplamente discutidos na literatura, e sintetizados no DOTS, tivessem conduzido a
escolha do local de implantação dos empreendimentos, visto que o mesmo preconiza a
integração com o entorno (inserção urbana).
Por fim, embora o padrão de urbanização brasileiro diferencie-se do encontrado
em países em que o DOTS vem sendo aplicado, a incorporação de seus princípios
poderia alcançar diversos problemas urbanos do país. A disparidade entre a manutenção
de vazios urbanos para fins especulativos e o crescimento horizontal da mancha urbanas
seria um deles. Por conseguinte, tendo em vista a ausência de diretrizes específicas que
condicionem a construção de empreendimentos habitacionais em áreas urbanas
consolidadas, os critérios elencados no DOTS poderiam funcionar como norteadores
preliminares para utilização adaptada ao contexto urbano brasileiro.

6 – Referências

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