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Estudar a linguagem é uma atividade fascinante,

pois é por meio dela que conhecemos o mundo,


o outro e nós mesmos. Para o(a) educador(a)
que se propõe a trabalhar com crianças na
educação infantil, quando a língua oral está
em desenvolvimento, e no ensino fundamental,
momento de aprendizagem da leitura e da
escrita, isso se dá de modo especial.
Esta obra visa despertar o interesse pela área da
linguagem e apresentar propostas metodológicas
para o ensino e para a aprendizagem de Língua
Portuguesa, alinhadas às mais recentes
teorias linguísticas, bem como às orientações
curriculares para a educação nacional.

Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-6617-9

59320 9 788538 766179


Metodologia do
ensino de Língua
Portuguesa

Luciana Carolina Santos Zatera

IESDE BRASIL
2020
© 2020 – IESDE BRASIL S/A.
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SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Z44m

Zatera, Luciana Carolina Santos


Metodologia do ensino de língua portuguesa / Luciana Carolina
Santos Zatera. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2020
152 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6617-9

1. Língua portuguesa - Estudo e ensino. 2. Língua portuguesa -


Metodologia. 3. Linguística. I. Título.
CDD: 469.8
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CDU: 811.134.3

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0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Luciana Carolina Mestra em Educação pela Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUCPR). Licenciada em Letras –
Santos Zatera Português pela mesma instituição e em Pedagogia
e História pelo Centro Universitário Internacional
Uninter. Atua como professora em cursos superiores
de Pedagogia e Letras há mais de 10 anos, nas
modalidades presencial e EaD. É professora de Língua
Portuguesa da educação básica há mais de 20 anos.
Publica trabalhos nas áreas de literatura infantil e
metodologias ativas; também escreve livros e materiais
destinados às áreas de metodologias de ensino
e práticas pedagógicas, especialmente voltadas à
aprendizagem da linguagem.
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SUMÁRIO
1 Diferentes concepções de linguagem  9
1.1 Concepções de linguagem ao longo do tempo   10
1.2 Concebendo a linguagem: da Antiguidade ao século XX  12
1.3 Os componentes da língua e os novos estudos linguísticos   16
1.4 As modalidades da língua: a fala e a escrita   20
1.5 Breve história da escrita   24

2 Aquisição da linguagem pela criança  33


2.1 Behaviorismo   34
2.2 Hipótese behaviorista de linguagem   37
2.3 Hipótese inatista de linguagem   40
2.4 Abordagens interacionistas: contribuições de Piaget   44
2.5 Abordagens interacionistas: contribuições de Vygotsky   47

3 Língua e variação linguística  55


3.1 Ensino de Língua Portuguesa no Brasil: breve histórico   56
3.2 Variações linguísticas: sociocultural e geográfica   60
3.3 Variações linguísticas: histórica esituacional  64
3.4 O preconceito linguístico   68
3.5 A língua padrão na escola   71

4 A Língua Portuguesa na escola  76


4.1 Ensinar língua é ensinar gramática?   77
4.2 Letramento: origem e significado   83
4.3 Os PCN e o RCN: orientações para as práticas de linguagem na
escola   85
4.4 BNCC: o componente curricular Língua Portuguesa   89

5 Habilidades linguísticas: ouvir/falar, ler/escrever  96


5.1 Oralidade e escuta   97
5.2 Leitura   101
5.3 Análise linguística/semiótica   106
5.4 Escrita e produção textual   110
6 Práticas discursivas: gêneros textuais e sequências didáticas  119
6.1 Os gêneros textuais   120
6.2 Prática pedagógica com gêneros textuais nos anos iniciais do
EF   124
6.3 Sequências didáticas para a prática com gêneros textuais   127
6.4 O livro didático de Língua Portuguesa   133
6.5 Avaliação em Língua Portuguesa   136

7 Gabarito   144
APRESENTAÇÃO
Estudar a linguagem é uma atividade fascinante, pois é por meio dela
que conhecemos o mundo, o outro e nós mesmos. Para o(a) educador(a)
que se propõe a trabalhar com crianças na educação infantil, quando a
língua oral está em desenvolvimento, e no ensino fundamental, momento
de aprendizagem da leitura e da escrita, isso se dá de modo especial.
Esta obra visa despertar o interesse pela área da linguagem e apresentar
propostas metodológicas para o ensino e para a aprendizagem de Língua
Portuguesa, alinhadas às mais recentes teorias linguísticas, bem como às
orientações curriculares para a educação nacional.
Por essa razão, no primeiro capítulo, tratamos das diferentes concepções
de linguagem ao longo da história. Esse conhecimento permite que o
professor tenha clareza sobre o embasamento teórico adotado para o ensino
e aprendizagem de língua materna na escola. Abordamos, ainda, a fala e a
escrita, contando brevemente suas origens e ressaltando a necessidade da
prática pedagógica com essas duas modalidades da língua, que são diferentes,
porém, complementares.
O segundo capítulo apresenta a interessante e polêmica aquisição
da linguagem pela criança, com base nas hipóteses behaviorista, inatista,
construtivista e interacionista. Dentre essas teorias, destacamos a última,
pois foi propagada por dois grandes estudiosos do desenvolvimento
infantil: Piaget e Vygotsky.
O terceiro capítulo propõe reflexões acerca das mudanças pelas quais
passou o ensino de Língua Portuguesa no Brasil. Além disso, o tema das
variedades linguísticas é exposto com o principal objetivo de esclarecer
as concepções de “certo” e “errado” na língua, de modo a combater o
preconceito linguístico.
Assim, o quarto capítulo, ao discorrer sobre a Língua Portuguesa
na escola, distingue dois posicionamentos em relação ao ensino e à
aprendizagem desse componente curricular: o ensino de gramática e a
educação linguística. É com base na segunda visão que os documentos
nacionais orientam as práticas escolares de linguagem, por meio dos
quatro eixos: leitura, escuta, oralidade e escrita, com vistas a promover o
letramento dos estudantes da educação básica.
Partindo desse contexto, o quinto capítulo versa sobre o encaminhamento
para o ensino e para a aprendizagem de Língua Portuguesa na atualidade,
com base nas quatro habilidades da língua: falar, escutar, ler e escrever. Essas
habilidades são focadas no trabalho com textos em sala de aula, que também
são objetos de reflexão nos momentos de análise linguística.
Por fim, o sexto capítulo aprofunda a análise das práticas discursivas de
uso efetivo da língua, que acontecem por meio do trabalho com gêneros
textuais. Para isso, sugerimos o emprego de sequências didáticas em sala
de aula, buscando proporcionar aos estudantes o domínio das habilidades
necessárias para interagir socialmente com eficácia e adequação a cada
situação comunicativa.
Bons estudos!
1
Diferentes concepções
de linguagem
A capacidade de usarmos a linguagem é tão fantástica e ao mes-
mo tempo parece tão natural, não é mesmo? Talvez, por essa ra-
zão, poucas vezes paramos para refletir sobre como a adquirimos.
Sabemos que, desde bebês, ao entrarmos em contato com falan-
tes mais experientes que nós, vamos aprendendo a falar nossa lín-
gua materna, de um modo geral, sem grandes dificuldades.
No entanto, quando vamos à escola, a fim de aprendermos a ler
e a escrever, as coisas não parecem tão fáceis assim! Provavelmen-
te você não se lembre bem de como decifrou uma palavra escrita
ou conseguiu escrever uma frase pela primeira vez. Tampouco se
recorde qual método foi utilizado para alfabetizá-lo. Depois de do-
minarmos a fala e, mais tarde, a leitura e a escrita, dificilmente pen-
samos em como esse processo ocorreu; qual concepção de língua
fundamentava a prática pedagógica do professor ou da escola;
quais métodos foram usados para o ensino de Língua Portuguesa
ou outras questões que envolvam a linguagem.
Se estamos dispostos a aprender sobre linguagem para de-
pois ensiná-la aos nossos alunos e alunas, precisamos conhecer
as concepções que embasam o ensino e a aprendizagem de língua
materna. Essas concepções não foram sempre as mesmas, ao lon-
go da história dos estudos sobre linguagem. Cada época, com seus
recursos, possibilidades e limites, por meio de estudiosos da área,
traz diferentes formas de compreensão sobre como é o funciona-
mento da linguagem, como ela deve ser estudada e tomada como
objeto de ensino e aprendizagem, principalmente na educação for-
mal, ou seja, na escola.
Neste primeiro capítulo, então, vamos conhecer as diferentes
concepções de linguagem ao longo da história e identificar os com-
ponentes que constituem os estudos da língua, ou seja, como a

Diferentes concepções de linguagem 9


língua é formada: os sons, as palavras, a organização das frases
e os significados que desejamos atribuir aos nossos enunciados.
Vamos, também, conhecer as diferenças e semelhanças entre as
modalidades oral e escrita da língua e, assim, explorar mais deta-
lhadamente a história da escrita, visto que esta é uma das habilida-
des aprendidas na escola. Prontos para começar?

1.1 Concepções de linguagem ao longo do


tempo
Vídeo
Não sabemos exatamente quando o ser humano começou a uti-
lizar a linguagem, pois isso não ocorreu num belo dia em que o
homem pré-histórico decidiu simplesmente começar a falar. Pelo
contrário, esse fantástico mecanismo de comunicação aconteceu
após uma série de processos, separados uns dos outros, provavel-
mente por milhões de anos.

Segundo antropólogos que estudam a evolução humana, os prima-


tas que deram origem aos chimpanzés e aos gorilas habitavam regiões
de florestas onde havia diversidade de alimentos e, por isso, desenvol-
veram um aparelho mastigatório eficaz. Já os ancestrais do ser humano
se desenvolveram na savana e precisavam sair à procura de alimentos.
Além disso, a postura ereta dos seres humanos facilitou o funciona-
mento do aparelho fonador (COMO..., 2016).

Embora os pesquisadores saibam de que forma foi possível ao ser


humano falar, não se sabe ao certo por que ele começou a se comuni-
car, pois a fala não deixa rastros como a escrita. É provável que, com a
postura ereta e com as mãos livres (com o polegar opositor), os Homu
erectus passaram a utilizar objetos para as mais diferentes funções, a
maioria delas relacionadas à alimentação.

Da mesma forma, Everett (2019) afirma que a linguagem surgiu gra-


dualmente de uma cultura e isso prova por que somente o ser huma-
no é capaz de falar: é a combinação entre o cérebro desenvolvido e a
cultura. “A cultura agrega valores, estruturas de conhecimento e papéis
sociais aos humanos e suas criações” (EVERETT, 2019, p. 85).

10 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Contudo, talvez mais importante que saber quando a linguagem foi in- Leitura

ventada pelo ser humano é conhecer como ela vem sendo compreendida O texto O que se entende
por língua e linguagem, do
pelas pessoas que se interessaram em estudá-la. A linguagem sempre foi grande linguista brasileiro
objeto de fascínio humano em todos os tempos, pois está relacionada a o Ataliba de Castilho pode ser
lido no link a seguir e na en-
que e como mulheres e homens pensam; de que modo expressam seus trada do Museu da Língua
desejos; falam sobre si e sobre o mundo; relatam experiências, transmi- Portuguesa, na Estação da
Luz, em São Paulo. O autor,
tindo-as aos seus descendentes; formulam ideias do que poderá existir ou em tom de brincadeira,
até mesmo daquilo que jamais poderá ocorrer. diz que há várias coisas
óbvias sobre a língua, por
Mas antes de continuarmos, vale a pena distinguirmos basicamente exemplo, que ela caracte-
riza o ser humano, que ela
o que é linguagem e o que é língua. Linguagem pode ser definida como serve para a comunicação,
toda maneira de expressão em que haja sinais, por meio dos quais que não seríamos nada
sem ela. Mas a principal
possa haver comunicação. Portanto, as placas de trânsito, as notas mu- característica definidora da
sicais, os gestos, os desenhos, a fala, a escrita e tantos outros sistemas língua é que sem ela não
poderíamos formular o
de comunicação e interação podem ser considerados linguagem. nosso pensamento.

Marcuschi (2005) contribui com essa diferenciação, afirmando Disponível em: http://
museudalinguaportuguesa.org.br/
que a linguagem é a capacidade humana de usar signos com objeti- wp-content/uploads/2017/09/O-
vos cognitivos. A língua, por sua vez, é uma manifestação particular, que-se-entende-por-
li%CC%81ngua-e-linguagem.pdf.
histórica, social e sistemática de comunicação humana. Ela não serve Acesso em: 20 fev. 2020.
apenas para a comunicação, mas é essencialmente uma atividade inte-
rativa (dialógica) de natureza sociocognitiva e histórica.

Além disso, dizemos que existe linguagem verbal e não verbal, como
mostra a Figura 1.
star/Shutt
M a ng o erst
ock

Figura 1
Tipos de linguagem
fizkes
/S hut
te rst
oc
k

Linguagem Pro
sto
ck
-s
verbal tu
dio
/S
hu t
ters
tock

Diz respeito à
fala (língua oral)
e à escrita

(Continua)

Diferentes concepções de linguagem 11


akharchuk/Shutter
katy sto
ck

Rawpixel.com
/Sh
utt
e rst
oc
k

Linguagem
pau
não verbal l ap
h

ot
o/
Sh
ut
ters
tock
É caracterizada
por desenhos,
imagens e
símbolos.

Fonte: Elaborada pela autora.

Para Petter (2010), a linguagem verbal é matéria do pensamento e


veículo de comunicação social. Não há sociedade sem linguagem, nem
sem comunicação. Tudo o que é criado como linguagem ocorre em so-
ciedade para ser dito aos outros e se constitui como uma realidade
material, que se relaciona com o que lhe é exterior, isto é, com o que
existe independentemente da linguagem. Chamamos de realidade ma-
terial, porque a língua é constituída de sons, palavras e frases, ou seja, é
concreta e relativamente autônoma. No entanto, ela é criada de acordo
com a visão de mundo, emoções, ideias, intenções e a realidade histó-
rica, social e cultural dos falantes.

Logo, é essencial traçar, brevemente, de que jeito o fenômeno da


linguagem humana instigou os estudiosos ao longo do tempo até a
compreensão da língua como objeto dos estudos linguísticos mais
atuais. É o que veremos na próxima seção.

1.2 Concebendo a linguagem: da


Antiguidade ao século XX
Vídeo
Segundo Petter (2010), os estudos mais antigos sobre a linguagem são
do século IV a.C., quando os hindus estudaram sua língua, motivados por
questões religiosas, a fim de conservar seus textos sagrados. Na Grécia
Antiga, a preocupação era com a relação entre a palavra e seu significado.

12 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


De acordo com Godoy (2018), essa discussão foi feita por Sócrates e
Platão e registrada pelo último em um diálogo chamado Crátilo. Nesse
diálogo, em que mestre e discípulo discutem a natureza dos nomes,
Sócrates afirma que alguns sons parecem ter relação com característi-
cas do mundo, como os sons das letras “s” e “z”, que seriam adequados
para nomear palavras que envolvem sopro ou respiração.

Leitura

Há uma pesquisa desenvolvida pelo

Tepjinda/Shutterstock
Laboratório de Estudos Experimentais em
Linguagem, da UFRN, sobre o simbolismo
sonoro – que é a relação entre o som e o
sentido da palavra assim como Sócrates
já apontava. Alguns resultados desses es-
tudos indicam que as pessoas associam
sons à noção de tamanho. Com base
nisso, estudiosos fizeram uma pesquisa
com japoneses e brasileiros para verificar
se dariam nomes a Pokémon antes e de-
pois de evoluírem (e se tornarem maiores
e mais fortes) utilizando simbolismos sonoros associados à noção de tamanho. Quer saber o re-
sultado dessa pesquisa? Leia o texto Sócrates, Pokémon e simbolismo sonoro, de Mahayana Godoy,
publicado no blog #Linguística.

Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/linguistica/2018/12/04/socrates-pokemon-e-o-simbolismo-sonoro/.


Acesso em: 20 fev. 2020.

Conforme Dias e Gomes (2015), Aristóteles, diferentemente, chegou


a elaborar teorias gramaticais voltadas à frase e às partes do discurso
e compreendia que o pensamento era anterior à criação das palavras.
Já na Roma Antiga, Petter (2010) afirma que se destacam os estudos de
Varrão, o qual também se dedicou à gramática, entendendo-a como
ciência e arte. Na Idade Média, os modistas postularam que a estrutura
gramatical das línguas era única e universal.

No século XVI, com a Reforma, os livros sagrados foram traduzidos


em várias línguas. Viajantes e comerciantes experienciam diferentes lín-
guas, até então desconhecidas no continente europeu. Nos séculos XVII
e XVIII prosseguiu a ideia de que os estudos gramaticais adequam-se a
todas as línguas e, nessa mesma linha, a Gramática de Port Royal foi es-
crita, visando demonstrar que a linguagem é a imagem do pensamento
e servindo de modelo a muitas gramáticas dessa época (PETTER, 2010).

Diferentes concepções de linguagem 13


No século XIX havia grande número de línguas conhecidas, o que
despertou o interesse em estudos comparativos sobre línguas vivas,
iniciando uma visão menos abstrata de língua. Esse fato evidenciou
que as línguas sofrem transformações com o tempo e influenciou o
pensamento linguístico contemporâneo e surgiu, então, a Linguística
Histórica. Por meio desses estudos comparativos, foi possível desco-
brir, por exemplo, que as mudanças observadas nos textos escritos em
latim e que foram se modificando para o português, espanhol, italiano
e francês, poderiam ser explicadas por transformações ocorridas na
língua falada correspondente (PETTER, 2010).

Entretanto, segundo Petter (2010), a Linguística passa a ser legitima-


da como área de estudos científicos no início do século XX, com base nos
trabalhos de Saussure, que chamou de língua um “sistema de signos”
exterior ao sujeito, não podendo ser transformada. E que denominou
fala os distintos comportamentos linguísticos que ocorrem em uma
mesma comunidade linguística. Enquanto, para Saussure (1997), a língua

Saiba mais possui natureza social, é homogênea e sistemática, a fala é individual,


heterogênea, múltipla e desordenada.
F. Jullien Genève/Wikimedia Commons

Assim, o estudo da linguagem para esse linguista acontece por meio


de várias dicotomias, entre elas: o estudo da língua e o estudo da fala.
Ambas são interdependentes, visto que a produção da fala só ocorre,
porque existe língua e não existe língua se não houver fala. Entretanto,
ele se dedicou especialmente ao estudo da língua, considerando-a como
um produto social depositado no cérebro de cada indivíduo, conforme
cita Petter (2010): um sistema que é imposto ao falante. Surge, por-
Ferdinand de Saussure tanto, o estruturalismo, que compreende a língua como um sistema
(1857-1913)
ou estrutura, isto é, “um conjunto de unidades que obedecem a certos
As dicotomias de Saussure
são muito famosas na área da princípios de funcionamento, constituindo um todo coerente” (COSTA,
Linguística. O termo dicotomia 2008, p. 114), organizado de acordo com leis internas, estabelecidas
significa que um conceito é dentro do próprio sistema.
dividido em dois, “de modo que
se obtenha um par opositivo” Ainda na primeira metade do século XX, surgem ao menos três gru-
(COSTA, 2008, p. 116). Além do
pos de estudos linguísticos embasados de diferentes formas nas ideias
par língua e fala, há ainda outros
conceitos dicotômicos muito es- de Saussure, de acordo com Costa (2008): Escola de Genebra, Escola
tudados na área da linguagem: de Praga e Escola de Copenhague. As duas primeiras foram além do
sincronia e diacronia, paradigma
e sintagma, significado e
aspecto formal da linguagem, mostrando que a língua é também um
significante etc. sistema funcional, pois é utilizada para a comunicação. A Escola de
Copenhague, por sua vez, focalizou o aspecto formal da língua, assim
como a concepção saussureana.

14 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Desse modo, o estruturalismo apresenta-se sob duas vertentes: a Saiba mais
europeia e a norte-americana. A norte-americana, representada pe-

Shakko/Wikimedia Commons
las ideias de Leonard Bloomfield, apoia-se na psicologia behaviorista
de comportamento humano, apresentada principalmente pelo psi-
cólogo Burrhus Frederic Skinner. Segundo essa teoria, a linguagem
decorre da “exposição do indivíduo ao meio e da aplicação de me-
canismos comportamentais como reforço, estímulo e resposta”
(DIAS; GOMES, 2015, p. 170).
Roman Jakobson (1896-1982)
Na segunda metade do século XX, o linguista norte-americano Noam
Um dos principais nomes da
Chomsky postulou que toda língua possui uma estrutura com um nú- Escola de Praga foi o linguista
mero finito de sons ou letras, mesmo que haja uma quantidade infinita russo Roman Jakobson, famoso
de possibilidades para a construção de sentenças. Para o estudioso, por desenvolver um modelo
de comunicação funcionalista,
essa estrutura é demasiadamente complexa, abstrata e específica e, baseado em componentes estru-
por isso, seria improvável ser aprendida “partindo do nada” por uma turais (emissor, receptor, código,
mensagem, canal, referente) e
criança na fase de aquisição da linguagem. Assim, Chomsky acredita
nas funções da linguagem (emo-
que a linguagem é uma capacidade inata, transmitida geneticamente tiva, referencial, poética, fática,
(PETTER, 2010). Essa concepção deu origem ao gerativismo, corrente metalinguística, conativa).
de estudos da linguagem, por meio da qual as línguas passam a ser
analisadas como uma faculdade mental natural, pois, para Chomsky,
a capacidade humana de falar e de entender uma língua (pelo
menos), isto é, o comportamento linguístico dos indivíduos, deve
ser compreendida como o resultado de um dispositivo inato,
uma capacidade genética e, portanto, interna ao organismo
humano [...] a qual deve estar fincada na biologia do cérebro/
mente da espécie e é destinada a construir a competência lin-
guística de um falante. Essa disposição inata para a competência
linguística é o que ficou conhecido como faculdade da linguagem.
(KENEDY, 2008, p. 129, grifo do original)

Essa concepção de língua inata ou geneticamente constituída, postu-


lada por Chomsky, questionou a concepção behaviorista de linguagem,
dominante nos estudos linguísticos e comportamentais até a metade
do século XX e defendida por Bloomfield, citado anteriormente.

As ideias de Chomsky, de fato, foram revolucionárias, pois preo-


cupou-se, além do que os estruturalistas propunham, em descrever
e explicar o conhecimento implícito que falantes da mesma comuni-
dade linguística partilham. Ele chamou de dispositivo de aquisição de
linguagem (em inglês language acquisition device, LAD) ou, mais tarde,
de gramática universal, o que considerou o conjunto de regras gramati-
cais e um número finito de palavras, como se formassem um aparelho

Diferentes concepções de linguagem 15


próprio para aquisição de linguagem, a partir do qual o ser humano é
capaz de criar um número infinito de sentenças (DIAS; GOMES, 2015).
Assim, a competência de um falante refere-se ao seu conhecimento
inato sobre a língua, julgando o que é possível de ser dito ou não em
sua língua, enquanto o desempenho é o uso que ele faz da linguagem.

São muitos os seguidores da linguística gerativista e das ideias


de Chomsky, por outro lado, existem críticos dessa corrente. Uma
das abordagens que opõe-se ao gerativismo é o funcionalismo,
que questiona o caráter chomskyano demasiadamente formalista.
Outras tendências seguiram criticando as ideias gerativistas, prin-
cipalmente a partir da década de 1980, porém, sempre partindo da
teoria desenvolvida por Chomsky.

Como essas teorias são consideradas novos campos de pesqui-


sa de estudo da linguagem, as abordaremos na próxima seção, de-
dicada a isso.

1.3 Os componentes da língua e os


novos estudos linguísticos
Vídeo Já estamos, desde o início deste capítulo, tratando da Linguística
como ciência que estuda a linguagem, mesmo que não tenhamos pa-
rado para defini-la minuciosamente. A Linguística busca explicar como
é o funcionamento da linguagem humana, tanto falada quanto escrita,
e como são as línguas em particular. Há várias áreas de interesse que
podem ser objetos de estudo da Linguística, como a Fonética, Fonolo-
gia, Morfologia, Sintaxe, Semântica, Análise do Discurso, Pragmática,
Sociolinguística, Psicolinguística, Neurolinguística e Linguística Textual.
Vamos, rapidamente, abordar essas áreas, pois com base nelas pode-
mos compreender de que maneira funcionam os componentes da lín-
gua e cada uma dessas “partes” que formam a língua é essencial para
entender um pouco melhor a complexidade da linguagem humana.

A Fonética e a Fonologia são áreas correlatas. A primeira estuda a


organização dos sons na fala, seus mecanismos de produção e audição,
analisando e descrevendo a fala dos sujeitos nas diferentes situações
do dia a dia. Já a segunda trata da organização dos sons da língua, do
ponto de vista da sua função, interpretando os sons.

16 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Mas por que essas duas áreas são importantes para quem vai tra-
balhar com língua materna com as crianças, mesmo sem se ocupar de
estudos linguísticos aprofundados? Primeiramente, para lembrar que
há duas modalidades linguísticas que precisam ser praticadas na esco-
la: a oral e a escrita, que serão abordadas mais adiante neste capítulo.
Sendo assim, a Fonética e a Fonologia, ocupando-se especialmente da
fala, mostram-nos que devemos valorizar a linguagem oral como um
dos objetos de ensino e aprendizagem de língua na escola.

Não podemos esquecer que a criança, ao iniciar o processo de alfa-


betização, já domina a língua falada em diferentes situações de uso. Por
isso, ela utiliza o que já sabe (a língua oral e o conhecimento que tem Glossário
sobre o som das palavras) para desenvolver a consciência fonológica, consciência fonológica: é a
aproximando seus primeiros escritos de suas experiências com a língua capacidade de perceber sons que
formam as palavras.
falada. Então, o que parece ser “erro” de escrita, no início do processo
de escolarização, pode configurar como pista para que o educador
possa mediar a aprendizagem, mostrando possíveis caminhos para o
domínio da norma escrita. Além disso, o conhecimento da estrutura
fonológica da língua portuguesa pode auxiliar o professor a perceber
dificuldades de fala em crianças, que podem refletir na aprendizagem
da escrita, devendo ser encaminhadas a profissionais especializados na
área, como fonoterapeutas.

Outras áreas de interesse da Linguística são a Morfologia e a Sintaxe.


Quando falamos em Morfologia, é comum lembrarmos das classes gra-
maticais, como substantivo, adjetivo, verbo, artigo, preposição, conjun-
ção etc. Isso está correto, pois ela estuda a estrutura, a formação e a
classificação das palavras. Para uma palavra ser formada, ela necessita
de partes menores, chamadas morfemas, que têm significados próprios
e são os objetos de estudo da Morfologia. Por exemplo, na palavra me-
ninas existem três morfemas:

menin + a + s
designa que significa
pertence ao mais de uma
gênero feminino menina

Diferentes concepções de linguagem 17


Portanto, a palavra meninas é um substantivo feminino e está no
plural. O mais interessante de analisarmos essas partes mínimas das
palavras é observar o quanto a língua é flexível, possibilitando a criação
de novos vocábulos a partir de várias combinações.

A Sintaxe tem estreita relação com a Morfologia, pois preocupa-se


com as normas de combinação entre as palavras de uma língua, ao
formar sentenças. Enquanto os estudos morfológicos classificam uma
palavra como substantivo, por exemplo, a sintaxe aponta qual função
esse substantivo exerce na sentença, que pode ser núcleo do sujeito,
do objeto e do agente da passiva. As classes gramaticais e a função
sintática dos termos das orações não serão abordadas nesta obra, pois
são questões específicas da Linguística.

O conhecimento dessas áreas da linguística é importante ao


professor que se propõe a ensinar língua a crianças, não para sa-
ber classificar sintaticamente as palavras em uma frase, nem para
solicitar uma tarefa mecânica, como circular todos os verbos de
um texto, mas principalmente para conhecer a estrutura da língua
e suas regras, a fim de dominar com maior propriedade normas
que o auxiliem a produzir textos, como pontuação, concordância,
coesão, coerência, clareza, ortografia etc.

Semântica é a área que se preocupa com o significado das pala-


vras e sentenças das línguas. Assim, temos o estudo, por exemplo,
dos sinônimos, antônimos e vocábulos polissêmicos (vários signifi-
cados para a mesma palavra).

Pragmática, Análise do Discurso, Linguística Textual,


Sociolinguística, Psicolinguística e Neurolinguística são áreas mais
recentes nas pesquisas linguísticas, pois se ocupam do uso da lin-
guagem pelo falante, indo além da descrição dos sistemas linguís-
ticos e suas estruturas abstratas.

A Pragmática apresenta uma abordagem integrada, estudando


como ocorre a interação das pessoas nos diálogos e como a cultura de
uma sociedade se manifesta com base nos modos de falar. A Análise
do Discurso, por sua vez, considera o discurso um objeto de estudo,
caracterizado por ideologias, relações de poder e determinações cul-
turais. A Linguística Textual privilegia o texto como unidade básica de
comunicação humana e lugar de interação. O texto, nessa visão, apre-

18 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


senta critérios de textualidade, ou seja, fatores responsáveis pela sua
realização. Além disso, essa área de estudos, segundo Dias e Gomes
(2015), considera os interlocutores (quem produz e quem recebe o tex-
to) sujeitos ativos que, de maneira dialógica, constroem-se no texto e
por ele são construídos.

Cagliari (2009) afirma que a Psicolinguística investiga o processo


de aquisição da linguagem pela criança, os processos mentais relacio-
nados à produção da linguagem e o comportamento humano envol-
vido no uso da linguagem.

A Neurolinguística envolve dois campos do conhecimento: a


Neurociência e a Linguística. Sobre a segunda, já conhecemos o foco
de estudo. Sobre a primeira, o interesse está centrado no cérebro e na
mente, e as relações com o comportamento humano. Segundo Dias
e Gomes (2015, p. 156), o objeto de estudo na Neurolinguística é “a
relação entre linguagem e cérebro, buscando relacionar determinadas
estruturas cerebrais com certos distúrbios da linguagem”.

A Sociolinguística mostra a importância de levar em consideração


as variações históricas, geográficas, sociais e estilísticas de uma língua.
Por isso, aborda as relações entre linguagem e sociedade, enfatizando
as variações linguísticas e a norma culta, sem julgar os fatos linguísticos
como certos ou errados. Como toda língua varia, o principal objeto de
estudo dessa área é a variação, especialmente da língua falada, ou seja,
a modalidade oral, que passou a ser valorizada a partir dos anos 1980,
em oposição aos estudos das três décadas anteriores, quando a ora-
lidade e a escrita não eram tratadas como modalidades complemen-
tares, conferindo à escrita maior valor e desconsiderando a oralidade
como prática social (MARCUSCHI, 2003).

Veremos na próxima seção de que maneira é possível considerar


oralidade e escrita como atividades interativas e complementares no
contexto das práticas sociais e culturais, isto é, a partir do uso efetivo
da língua, pois para os novos estudos linguísticos, Marcuschi (2003, p.
16) assegura, “são as formas que se adequam ao uso e não o inverso”.
E qual é o significado disso? Significa que as formas abstratas da língua,
a capacidade linguística que dominamos como faculdade da linguagem,
termo usado por Chomsky, estão a serviço do uso efetivo da língua e
não o contrário. Em outras palavras, as normas só existem porque há
língua sendo utilizada pelas pessoas.

Diferentes concepções de linguagem 19


1.4 As modalidades da língua: a fala e a escrita
Vídeo A fala é anterior à escrita, tanto na história da humanidade
quanto se levarmos em conta a história de cada indivíduo. Já abor-
damos brevemente, no início do capítulo, como provavelmente o
ser humano começou a falar.

Kenski (2007) contribui com esse tema afirmando que a linguagem


oral é uma construção particular de cada agrupamento humano. A ori-
gem dos idiomas ocorreu a partir da estruturação de modos particu-
lares da fala, usadas e compreendidas pelos grupos sociais. Ao usar
regularmente a fala, a cultura foi se definindo nas sociedades orais,
onde a proximidade física das pessoas era fundamental para que elas
pudessem falar, ouvir e ser entendidas, cantando, narrando histórias,
perpetuando a memória, a cultura e a identidade do grupo.

Atualmente, a fala continua aproximando as pessoas, seja face a


face, em videoconferências, programas na TV, vídeos ou áudios compar-
tilhados via smartphones. Mesmo que a escrita esteja muito presente
em nossa sociedade, a fala é (e nunca deixará se ser!) um instrumento
muito eficaz para interação e comunicação.

Marcuschi (2003, p. 17) atesta que, no mundo moderno, a escrita


tornou-se um bem indispensável ao cotidiano. Esse fato elevou sua
prática e avaliação social a um status mais alto, “chegando a simbolizar
educação, desenvolvimento e poder”. De um outro ponto de vista, po-
deríamos dizer que o homem é um ser que fala e não um ser que escre-
ve. No entanto, a fala não é superior à escrita. Nem a escrita pode ser
considerada evoluída, nem a fala pode ser entendida como primária.

É equivocado afirmar, de acordo com Marcuschi (2003), que a es-


crita é representação da fala. Pense nas características da fala e da es-
crita. O que fazemos ao falar que não é possível representar na escrita
(pelo menos, de modo tão fiel)? O tom de voz, os gestos, os movimen-
tos do corpo etc. Por outro lado, a escrita tem elementos particulares
que inexistem na fala, como o tamanho e tipo da letra, as cores, os
tons, os desenhos, a pontuação etc. O melhor de tudo isso é que fala
e escrita permitem que textos coerentes, coesos e claros, raciocínios
abstratos e discursos formais e informais sejam elaborados por nós,
além da possibilidade de utilizar variações estilísticas, sociais e dialetais
por meio das duas modalidades.

20 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Fala e escrita são práticas sociais complementares, que ocorrem
diariamente em vários contextos, como no trabalho, na escola, em casa
e durante o lazer. Pense nas atividades que você realiza em um dia:
em quais delas você faz uso da oralidade e da escrita? Muito provavel-
mente na maioria delas. As línguas oral e escrita se configuram como
atividades interativas e, de acordo com Marcuschi (2005), apresentam
as características expostas na Figura 2.

Figura 2
Características das línguas oral e escrita

Heterogeneidade Historicidade
Variam histórica, social, Modificam-se ao longo do
dialetalmente etc. tempo.

Interatividade
Sistematicidade
As línguas são atividades
Há regras definidas,
interpessoais que ocorrem
mesmo que variáveis.
socialmente.

Situacionalidade Cognoscibilidade
Ocorrem sempre em contextos; São sistemas cognitivos que
os enunciados são sempre servem para construção e
situados. compreensão do mundo mental.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Marcuschi, 2005, p. 23.

Sendo assim, as línguas não são apenas instrumentos de comunica-


ção que funcionam de maneira uniforme e descolada da realidade. São
também altamente complexas, heterogêneas, variáveis e históricas.

Definida cada uma das modalidades e apresentadas suas seme-


lhanças e particularidades, resta questionar: por que, quando falamos
em ensino de língua na escola ou quando abordamos as práticas de
oralidade e escrita na sociedade, a escrita parece ter maior prestígio?
Ou, ainda, por que costumamos ouvir que temos de “tomar cuidado
com as regras” quando vamos escrever, mas dificilmente ouvimos de
uma criança que frequenta a escola frases como “Hoje aprendi a falar”
ou “Hoje produzi um texto oral”?

É equivocado pensar que só a escrita deve obedecer a regras e


que a fala é mais coloquial. Tudo dependerá da situação de fala/
escrita, de quem são e quais são as intenções dos interlocutores, e
de vários outros fatores.

Diferentes concepções de linguagem 21


Fala e escrita apresentam língua padrão (ou língua culta) e varieda-
de não padrão (ou língua coloquial). As ideias de que a escrita é organi-
zada e, por isso, sempre é padrão e de que a fala é caótica e, por isso, é
sempre coloquial, são erradas. Tudo dependerá da situação de comu-
nicação e interação. Por exemplo, ao escrever um e-mail de trabalho,
destinado ao diretor da empresa em que você trabalha, provavelmente
utilizará a língua culta e obedecerá às normas da língua padrão. Mas
em outra situação, se você enviar uma mensagem de texto via telefone
celular para um amigo, pode utilizar língua coloquial. Além disso, fala
e escrita ocorrem em contextos dialógicos, têm coerência, são dinâmi-
cas, exigem envolvimento e negociação.

Voltando à questão das práticas escolares, de quais atividades


você se lembra de ter participado com o objetivo de produzir um
texto oral? Você já produziu, quando frequentava a educação básica,
uma entrevista para rádio ou TV, um debate regrado, uma palestra,
um seminário, um relato oral, uma piada, um recital, um monólogo,
uma peça teatral, um programa de culinária, uma propaganda ou
uma campanha publicitária oral etc.?

Infelizmente, na maioria das vezes, as práticas escolares ficam cen-


tradas na produção de textos escritos, pois acredita-se que a escola é
lugar de ensinar a ler e escrever. Com certeza esse papel é da escola,
mas não se pode achar que crianças e jovens já falam demais e, portan-
to, não é necessário abordar a fala e as práticas orais. De acordo com
Zatera (2008, p. 50):
a linguagem oral é pouco ensinada em salas de aula, pois se parte
do pressuposto que os alunos já sabem falar e por isso não é ne-
cessário ensinar-lhes algo que já dominam. De toda forma, a lingua-
gem que dominam é a familiar, a cotidiana, a informal. O ensino da
oralidade mais formal, que leva em consideração os vários contex-
tos em que ela ocorre, é tarefa da escola.

O espaço escolar democrático afirma a socialização do conhecimen-


to, acolhendo diferentes classes sociais e tomando a diversidade lin-
guística como ponto de partida para a educação. Cada criança aprende
a falar em seu contexto social, na realidade em que está inserida, pois
cresce ouvindo e falando a variedade linguística de sua família por meio
de conversas, cantigas, narrativas, interações informais etc.

22 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Muitas vezes, a escola entende que todos os alunos que nela
ingressam falam da mesma forma, visto que todos “sabem português”.
Dessa forma, supervaloriza a escrita em detrimento da fala, apostando
que a língua “correta” é a escrita e que a fala é desorganizada, espontâ-
nea e caótica (CAGLIARI, 1998).

Por muito tempo, a noção equivocada de trabalhar com a fala na


escola fez com que pensassem que era preciso corrigir “os erros da
fala” das crianças que não dominavam a língua padrão. Isso aumentou
o preconceito contra aqueles que usam uma variedade linguística dife-
rente da variedade prestigiada (BRASIL, 1998).

De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL,


1998), a expressão oral é conquistada em locais oportunos, em que é
possível expressar os pensamentos, sentimentos e opiniões. Assim, a
escola deve ser um ambiente que respeite a voz e a vez de cada um,
ou seja, respeite a variedade linguística, as diferenças e a diversidade
de cada estudante. Acima de tudo, é necessário que a escola ensine os
usos de língua oral (e escrita também) apropriados a variadas situações
comunicativas. Não basta respeitar o aluno como ele é, ela deve “ofere-
cer-lhe instrumentos para enfrentar situações em que não será aceito
se reproduzir as formas de expressão próprias de sua comunidade”
(BRASIL, 1998, p. 38). Diante disso, é necessário ensinar os alunos a
usar adequadamente a linguagem oral em instâncias públicas de modo
competente (BRASIL, 1998).

Em relação à modalidade escrita da língua não é necessário defen- Atenção


der sua importância, visto que desde sua origem ela obteve lugar de Marcuschi usa o termo “socie-
prestígio nas sociedades. E não é para menos, pois a introdução da es- dades ditas letradas”, porque
acredita que não há sociedades
crita no mundo foi um grande feito. Segundo Marcuschi, a escrita “per- letradas e sim grupos de letrados
mitiu tornar a língua um objeto de estudo sistemático” (2003, p. 29), nas sociedades, ou seja, elites
que detêm o poder social, pois
foram criadas novas formas de expressão, surgiram as formas literárias as sociedades não são fenôme-
e, dessa maneira, o ensino formal da língua consolidou-se como obje- nos homogêneos.
tivo básico da formação individual das pessoas, para enfrentar as de-
mandas das sociedades ditas letradas, como atesta Marcuschi (2003).

Para compreender melhor como esse grande feito da humanidade


foi criado, vamos à próxima seção!

Diferentes concepções de linguagem 23


1.5 Breve história da escrita
Diferentemente da língua falada, os estudiosos conseguem, com
Vídeo
maior precisão, saber quando a escrita surgiu. Pelas pistas deixadas,
é possível inferir, de certa forma, quais foram as motivações para essa
invenção humana e como ela evoluiu até chegar à atualidade.

Cagliari (1998) costuma contar uma história que pode ilustrar como
ocorreu a criação da escrita, apesar de ser fictícia, e que, provavelmen-
te, iniciou a partir de situações cotidianas como esta:

Um certo dia, um homem come-


çou a desenhar nas paredes da caver-
na, por meio de imagens de animais,
pessoas, objetos e acontecimentos do
dia a dia. Então, algum amigo foi visitá-lo e
perguntou o que significavam aqueles dese-

Ron Leishman/Shutterstock
nhos. Ele começou a explicar os desenhos,
o que eles significavam e assim por diante.

Depois, refletiu sobre o acontecido e


percebeu que poderia “ler” seus desenhos,
ou seja, eles poderiam não só representar
objetos da vida real, mas também as palavras faladas. Assim, a humanidade descobriu que quan-
do uma forma gráfica representa uma palavra, tem-se a escrita. Então, os seres humanos come-
çaram a criar sistemas gráficos para representar palavras.

Historicamente, a escrita surgiu do sistema de contagem feito com


marcas em cajados ou ossos para contar gado. Além dos registros nu-
méricos, era necessário criar símbolos para os produtos e para os no-
mes dos proprietários dos animais. Nessa época, portanto, era preciso
apenas saber traçar esses símbolos e decifrá-los para ser alfabetizado,
pois a escrita servia unicamente para esse fim. À medida que o sistema
de escrita foi expandindo, as informações necessárias para decifrar os
símbolos foi aumentando. Isso fez com que as pessoas adotassem sím-
bolos para representar os sons da fala ao invés de usar desenhos para
representar as coisas, o que reduz significativamente a quantidade de
símbolos para memorizar (CAGLIARI, 1998).

Kenski (2007) atesta que a escrita surge quando os homens deixam


de ser nômades e passam a ocupar por mais tempo o mesmo espaço

24 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


e, por essa razão, desenvolvem a agricultura. Diferente das sociedades Vídeo
orais, nas quais a repetição e a memorização eram os recursos para a Assista ao vídeo A História
da Palavra - O Nascimento
transmissão de saberes, na sociedade da escrita, é fundamental com- da Escrita, publicado pelo
preender o que está sendo comunicado graficamente. Existe distância canal Rede Catarinense,
para conhecer maiores
física e temporal entre quem escreve e quem lê. detalhes sobre essa
grande invenção da
Os primeiros registros gráficos foram encontrados nas paredes das humanidade.
cavernas, em ossos, pedras e peles de animais. Mais tarde, os egípcios Disponível em: https://www.you-
criaram o papiro, feito de uma planta fibrosa, que nascia às margens tube.com/watch?v=TVxmJoi-DDg.
Acesso em: 6 fev. 2020.
do rio Nilo (Figura 3) e era usado para registrar documentos funerá-
rios, legais, administrativos e literários. O pergaminho, feito de pele de
ovelha, também foi um suporte para a escrita, utilizado por nobres, na
Antiguidade, para registro de seus bens (KENSKI, 2007).

Figura 3
Papiro

Andrey_Kuzmin/Shutterstock
Zinaida Zaiko/Shutterstock

A escrita surgiu aproximadamente em 3300 a.C. na Suméria; no


Egito, em 3000 a.C. e, na China, em 1500 a.C. Nesses três momentos
e lugares, ocorreu de maneira autônoma, ou seja, esses sistemas de
escrita foram criados de modo independente, sem terem outros como
base. É, ainda, provável que a escrita dos povos maias também tenha
se dado de modo autônomo. Os demais povos criaram seu sistema de
escrita tendo outros como parâmetro.

Os sumérios criaram a escrita conhecida por cuneiforme. No início,


o sistema era pictográfico, isto é, eram usados desenhos para repre-
sentar as ideias. Os símbolos eram feitos em tábuas de argila, com uma

Diferentes concepções de linguagem 25


ferramenta chamada cunha, daí o nome dado a esse tipo de escrita
(Figura 4). Mais tarde, a escrita suméria evoluiu para um sistema re-
lacionado aos sons da fala, com base na escrita de sílabas, chamados
silabários (Figura 5).

Figura 4 Figura 5
Escrita cuneiforme Silabário cuneiforme

Alejo Miranda/Shutterstock
Co
up

er
fie
ld
/Sh
ut ters
tock

Atenção Dentre os vários sistemas de escrita, Cagliari (1998) destaca a es-


O termo semita refere-se a vários crita semítica. A língua falada pelos povos fenícios, habitantes da an-
povos, entre eles árabes e he- tiga Fenícia (onde hoje fica o Líbano), muito conhecidos pela criação
breus. Muitas línguas compõem
a família semítica, por exemplo, do primeiro alfabeto de base fonética, pertence à família de línguas
fenício, hebraico, árabe etc. semíticas. Nesse sistema, foi escolhido um conjunto de palavras, sen-
do que cada uma delas iniciava por um som diferente das demais, lem-
brando que eram usadas somente consoantes nesse tipo de escrita.
Glossário
De acordo com Cagliari (1998), para representar as palavras na forma
hieróglifos egípcios: pintu-
escrita, os fenícios escolheram hieróglifos egípcios que lembravam os
ras que representavam objetos,
sons ou ideias. significados dessas palavras. A escrita egípcia é anterior à fenícia, sendo
assim, os fenícios basearam-se nos hieróglifos egípcios (Figura 6).

26 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Como exemplifica Cagliari
(1998), a primeira palavra era
alef (que significava boi) e o
hieróglifo adotado simbolizava
a cabeça de um boi. Então, o
desenho da cabeça do boi pas-
sou a representar o som inicial
da palavra alef. Isso foi feito
com todas as palavras e suas
nimograf/Shutterstock
respectivas consoantes. Logo, essas palavras escolhidas passaram
a ser os nomes das letras que representavam a consoante inicial de Figura 6
cada uma das palavras. Hieróglifos egípcios

Isso é o que chamamos de princípio acrofônico, isto é, “o nome das


letras traz, em seu início, o som mais característico que a letra repre-
senta no sistema de escrita” (MASSINI-CAGLIARI; CAGLIARI, 2004, p. 90).
Desenhos não mais representavam diretamente as coisas; passaram a
representar os sons das palavras usadas para nomear as coisas.

Cagliari (1998) garante que o princípio acrofônico foi uma das me-
lhores ideias que surgiram nos sistemas de escrita, pois reduziu o nú-
mero de letras e simplificou a aprendizagem da leitura e da escrita.

Parte do alfabeto da língua portuguesa também é acrofônico. Va-


mos usar como exemplo a letra B. O nome da letra “bê” coincide com
o som da letra B nas palavras (bala, bela, bicicleta, bola, bula). Mas há
várias outras letras que não funcionam dessa mesma maneira, como é
o caso das letras H, G (ga, go, gu), J, M, N, L etc.

Os gregos adaptaram o sistema de escrita semítica, desenvolvida pe-


los fenícios, incluindo vogais. A letra semítica alef, por exemplo, passou a
representar a vogal A, agora chamada de alfa. Além disso, estabeleceram
a ortografia correta das palavras como norma, para evitar que falantes
de variedades diferentes escrevessem as mesmas palavras de manei-
ra distinta, seguindo a própria fala como parâmetro (CAGLIARI, 1998).
Imagine se cada um de nós escrevesse as palavras de acordo com a ma-
neira que as pronunciamos. Pense como ficaria a escrita das palavras
leite, porta, gente em cada região do Brasil, caso não houvesse ortografia.

Diferentes concepções de linguagem 27


Os romanos assimilaram o alfabeto grego, prosseguindo com o
princípio acrofônico, mas simplificaram os nomes das letras, chaman-
do-as apenas pelo som de cada uma. Então alfa ficou A, beta tornou-se
B (bê) e assim por diante. Observe, na Figura 7, a comparação entre os
alfabetos fenício, grego e romano.

Figura 7
Evolução do alfabeto

AndreyO/Shutterstock
Fenício

AlexTois/Shutterstock
Grego clássico

Niakris6/Shutterstock
Grego atual

Flipser/Shutterstock
Romano

Fonte: Elaborada pela autora.

Você deve ter percebido que as letras do alfabeto romano da Figura


7 são as mesmas do nosso alfabeto, não é mesmo? Isso acontece por-
que a língua portuguesa derivou do latim, língua antigamente falada na
região do Lácio, centro da Itália, onde fica a atual capital, Roma. Vamos,
então, rapidamente, conhecer a origem de nossa língua?

28 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Música

Ouça a música Língua, composta e interpretada por Caetano Veloso, e preste atenção nas palavras
que formam os versos da letra. O refrão diz “Flor do Lácio / Sambódromo / Lusamérica / latim”. Você
sabe o porquê? Porque a língua portuguesa ficou conhecida como “a última flor do Lácio” (região
onde se falava o latim). E como essa denominação chegou até nós? Leia o poema Língua Portugue-
sa, de Olavo Bilac, e descubra!

Última flor do Lácio, inculta e bela,


És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

[...]

Amo o teu viço agreste e o teu aroma


De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

em que da voz materna ouvi: “meu filho!”,


E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

Disponível em: https://genius.com/Caetano-veloso-lingua-lyrics. Acesso em: 6 fev. 2020.

No Império Romano (27 a.C. a 395 d.C.), o idioma oficial era o la-
tim clássico (usado pelas pessoas cultas, da classe dominante) e vulgar
(usado pelo povo). O português originou-se do latim vulgar, levado pe-
los conquistadores romanos à Península Ibérica, região europeia que
compreende principalmente Portugal e Espanha.

Os romanos dominaram por muitos séculos a Península Ibérica.


Consequentemente, sua língua (e toda a cultura, de um modo ge-
ral) misturou-se com falares já existentes na região, dando origem
a vários dialetos, que foram se modificando com o tempo até che-
garem às chamadas línguas neolatinas modernas, que derivaram
do latim vulgar, como o catalão, o castelhano e o galego-português.
Desse último idioma derivou o português.

E como nós, brasileiros, falamos português? Em razão do Brasil


ter sido colônia de exploração de Portugal por séculos. Desse
modo, nossa língua oficial continua sendo o português, muito se-
melhante ao português falado em Portugal, salvo as diferentes pro-
núncias, sotaques e, claro, o dialeto de cada região. Nossa língua

Diferentes concepções de linguagem 29


também sofreu influência (bem menor, evidentemente) das línguas
indígenas brasileiras e de termos africanos trazidos pelos escravos
que vieram ao Brasil. Assim, além de os portugueses trazerem para
o Brasil a língua falada em seu país, da mesma forma herdamos a
língua escrita portuguesa, gramática, regras e usos que, com o tem-
po, sofreu modificações e, hoje, é chamada de português brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo da linguagem é muito amplo, não é mesmo? Vai muito além
do simples fato de caracterizar mulheres e homens como seres huma-
nos. Por meio da linguagem nos comunicamos e interagimos com os ou-
tros e com o mundo: pensamos, contamos histórias, expressamos nossa
cultura e memória, aprendemos, ensinamos, trocamos experiências, de-
fendemos nossos direitos e construímos nosso futuro.
Tudo isso pode ser feito por meio da fala e da escrita, graças aos
nossos antepassados, que desenvolveram tecnologias específicas para
esse fim. E hoje, com a ciência cada vez mais avançada, os estudos sobre
a linguagem humana também avançam, principalmente para auxiliar os
profissionais da educação a buscar novas práticas para o trabalho com
a língua materna na escola.

ATIVIDADES
1. Explique a diferença entre língua e linguagem e defina os dois tipos de
linguagem, apresentando exemplos.

2. Neste capítulo, você acompanhou um breve histórico dos estudos


sobre a língua ao longo do tempo. Complete a linha do tempo a
seguir com as principais informações sobre cada período e cada
acontecimento importante relacionado aos estudos da linguagem.

Século
IV a.C.

Grécia
Antiga

(Continua)

30 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Roma
Antiga

Idade
Média

Século
XVI

Séculos
XVII e
XVIII

Século
XIX

Primeira
metade
do séc.
XX

Segunda
metade
do séc.
XX

3. Apresente ao menos uma contribuição para a área da linguagem de


cada um dos estudiosos a seguir:
a) Saussure
b) Chomsky

Diferentes concepções de linguagem 31


REFERÊNCIAS
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MEC; Secretaria de Educação Fundamental, 1998.
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COMO, quando e por que o ser humano começou a falar? Revista Superinteressante. São
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linguística. São Paulo: Contexto, 2008.
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linguística. São Paulo: Contexto, 2008.
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MARCUSCHI, L. A. Oralidade e ensino de língua: uma questão pouco “falada”. In: DIONÍSIO,
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Objetos teóricos. 6. ed. revista e atualizada. São Paulo: Contexto, 2010.
SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. 20 ed. São Paulo: Cultrix, 1997.
ZATERA, L. C. S. A prática pedagógica com gêneros textuais no segundo ciclo do ensino
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http://www.biblioteca.pucpr.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1163. Acesso
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32 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


2
Aquisição da linguagem
pela criança
Você já pensou em como as crianças aprendem a falar? Você
acha que os adultos são fundamentais para que elas aprendam sua
língua materna? Será que já nascemos com um mecanismo respon-
sável pela linguagem em nossa mente? Como é possível a criança,
sem um ensino sistematizado, aprender a falar tão rapidamente e se
tornar proficiente em sua língua materna com menos de cinco anos?
Isso é espantoso se pensarmos na aquisição de uma segunda língua
na idade adulta, pois sabemos que essa aprendizagem exige muito
esforço, dedicação e anos de estudo.
Essas são algumas das questões que estudiosos das áreas da
biologia, psicologia e linguagem buscam responder já há algum tem-
po. Fazem isso desenvolvendo teorias e observando falantes, a fim
de descobrir como ocorre a aquisição da linguagem pela criança.
São várias as hipóteses desenvolvidas ao longo dos anos, mas
as que se destacam nos estudos da linguagem até hoje são as se-
guintes: behaviorista, inatista, construtivista e interacionista. Cada
uma dessas hipóteses conta com representantes teóricos, conhe-
cidos por suas ideias, que influenciaram outros estudiosos de vá-
rias áreas, em especial, da linguagem e da educação.
Basicamente, há dois entendimentos diferentes que procuram
explicar a origem do conhecimento e a origem da linguagem: a
visão empirista e a racionalista. Levando em consideração essas
duas visões, primeiramente, vamos abordar o behaviorismo, repre-
sentado principalmente por Skinner, e o inatismo, apresentado por
Chomsky. Depois, trataremos das abordagens interacionistas.
Em relação ao interacionismo, há diferentes opiniões a serem
analisadas. Alguns autores consideram Piaget e Vygotsky como
interacionistas; outros utilizam o termo construtivismo para Piaget

Aquisição da linguagem pela criança 33


e interacionismo para Vygotsky. Há os que nomeiam os estu-
dos de Piaget como construtivismo cognitivista e os de Vygotsky
como construtivismo social.
Neste capítulo, vamos considerar tanto Piaget quanto
Vygotsky como interacionistas, pois ambos compreendem a
aquisição da linguagem com base em relações interativas, seja
com o ambiente (no caso de Piaget), seja entre a criança e ou-
tras pessoas (no caso de Vygotsky).

2.1 Behaviorismo
Vídeo O behaviorismo é uma abordagem psicológica, iniciada em 1913, por
Watson (Figura 1), psicólogo americano; todavia, as ideias centrais dessa
vertente são anteriores a esse estudioso. A palavra de origem inglesa
behavior significa comportamento, e essa abordagem empírica propõe o
estudo dos fatos objetivos e observáveis do comportamento.

Figura 1 Sendo assim, seu objeto de estudo deve ser,


John Watson (1878-1958) exclusivamente, o que pode ser visto e descrito
de maneira sistemática e exata. Outra premissa
do behaviorismo, segundo Finger (2007), é que os
princípios que controlam o comportamento huma-
no são idênticos aos dos outros animais.

E o que seria o comportamento para os


behavioristas? “O comportamento é a resposta
dada por um determinado organismo a algum fa-
tor externo que o estimule, sendo que tal resposta
pode sempre ser observada, descrita e quantifica-
da” (FINGER, 2007, p. 9).

Segundo Terra (2003), na teoria de Watson, o ser


humano possui um aparato natural que se adapta
ao ambiente onde vive, por meio da formação de
hábitos. Assim, o comportamento deve ser analisa-
The Johns Hopkins Gazette/Wikimedia Commons do “como função de certas variáveis do meio”, pois
“certos estímulos levam o organismo a dar determinadas respostas”
(TERRA, 2003). Podemos dizer, então, que o behaviorismo considera a

34 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


criança, ao nascer, como uma tábula rasa, isto é, não possui nenhum Saiba mais

tipo de conhecimento prévio. O conceito de tábula rasa foi


apresentado pelo filósofo John
Influenciado por Pavlov, Watson acreditava que os humanos, as- Locke, conhecido como fundador
sim como os outros animais, reagem a estímulos e que é possível do empirismo. Significa que o
ser humano nasce como uma
condicionar a resposta a certo estímulo por meio de mudanças es- “folha de papel em branco”, sem
pecíficas no ambiente (FINGER, 2007). nenhum tipo de conhecimento
prévio, sendo “preenchida” ao ter
Outro importante nome da abordagem behaviorista foi Skinner experiência com o mundo.
(Figura 2), que, em 1945, apresentou o behaviorismo radical, rejeitan-
do, de acordo com Finger (2007), a exclusividade que Watson atribuía
aos reflexos e condicionamentos, por acreditar que, além de os huma- Saiba mais
nos responderem ao seu meio, também agem no ambiente para pro-

The Nobel Prize/Wikimedia Commons


duzirem certas consequências.

Figura 2
B. Frederic Skinner (1904-1990)

Watson foi muito influenciado


por Ivan Pavlov, fisiologista russo
que desenvolveu um estudo
com cachorros, denominado
condicionamento clássico. Nesse
Harvard University/Wikimedia Commons

famoso experimento, constatou


que os cães salivavam não
somente ao ver o alimento,
mas também ao ouvir um sinal
(um estímulo) associado à
entrega da comida. Esse tipo
de comportamento (como a
salivação) ficou conhecido pelo
termo reflexo condicionado ou
Skinner, assim como Pavlov, fez experiência com animais – dessa resposta condicionada, pois é
provocado por um estímulo
vez com ratos e pombos –, a fim de desenvolver uma metodologia que
condicionador. Generalizando
chamou de condicionamento operante. Ele criou uma gaiola que possuía o resultado dessa experiência,
uma alavanca no local onde ficava a comida; ela poderia ser acionada, concluiu que os humanos
também fazem associações entre
sem dificuldades, pelo animal (FINGER, 2007). estímulos e respostas, repetindo
Segundo relatos de Skinner, apresentados por Finger (2007), o pom- os comportamentos em que
tiveram êxito.
bo faminto, enquanto estava na jaula, encostou na alavanca sem inten-
ção, e o alimento ficou disponível para ele. Depois de várias tentativas, o
pombo conseguiu associar que, tocando o dispositivo com o bico, teria

Aquisição da linguagem pela criança 35


Curiosidade comida. Assim, quando sentia fome, acionava a alavanca. Skinner chamou
No comportamento operante o primeiro toque do pássaro de operante livre, pois não foi intencional, e de
(ou operante condicionado),
operante condicionado ou hábito o comportamento do pombo ao repetir a
segundo Maia (2017), a ação
do organismo sobre o meio ação com o objetivo de se alimentar. “Ao estímulo utilizado para produzir
e seu efeito proporcionam a o comportamento desejado, no caso descrito acima, ao alimento, dá-se o
aprendizagem. No nosso dia
nome de reforçador” (FINGER, 2007, p. 11, grifo do original).
a dia, as tarefas realizadas de
maneira intencional, como O reforço, portanto, é um estímulo que proporciona o aumento
realizar uma leitura, escrever um
e-mail, tomar banho, tocar um da probabilidade de certa resposta. Há o reforço positivo, que fa-
instrumento etc., são exemplos vorece um comportamento desejado, e o reforço negativo, quan-
de comportamento operante. do há o objetivo de conter ou banir determinado
comportamento (MAIA, 2017).

Finger (2007) cita exemplos de como a


aprendizagem defendida por Skinner
pode ser usada para retratar várias si-
tuações cotidianas. Sabe aquela crian-
ça que chora, que se joga no chão ou
esperneia em uma loja ou no super-
mercado porque quer um brinquedo
ou um doce? Se os pais compram o que a criança
quer, mesmo que tenham prometido anteriormente não
comprar, ela perceberá que sempre deve ter esse comportamento
Moriz/Shutterstock
para ganhar o desejado. Se não for atendida pelos pais, provavelmente
abandonará esse comportamento e tentará outra estratégia.

Vamos pensar em que outras situações do dia a dia fazemos uso do


reforço positivo ou negativo? Observe os exemplos do Quadro 1, a seguir.

Quadro 1
Reforços positivo e negativo
Vídeo
Assista ao vídeo Exemplos de reforço positivo Exemplos de reforço negativo
Behaviorismo (1):
Metodológico e Radical, Ficar sem jogar videogame se tirar notas
Ganhar presentes se tirar notas boas.
publicado pelo canal baixas.
Didatics, para saber mais
sobre o behaviorismo e Ganhar uma “estrelinha” de bom com- Ficar sentado na “cadeirinha do pensamen-
as principais diferenças portamento. to” se não tiver um bom comportamento.
entre as ideias de Watson
e Skinner. Ter sua foto no quadro de “funcionário
Não ganhar sobremesa se não comer tudo.
do mês”.
Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=ipHFpXAg- Ganhar um carro se passar no vestibular. Perder o recreio porque não fez a tarefa.
jiA. Acesso em: 6 mar. 2020.
Fonte: Elaborado pela autora com base em Maia, 2017, p. 29-30.

36 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Mas como as ideias behavioristas influenciaram a área da lin-
guagem, especialmente o entendimento sobre a aquisição da
linguagem pela criança? Será que ela aprende a falar por meio
de estímulo-resposta-reforço, conforme a hipótese comportamen-
talista propõe? É o que veremos na próxima seção.

2.2 Hipótese behaviorista de linguagem


Vídeo O behaviorismo influenciou fortemente a linguística por muitas dé-
cadas, servindo de base para o ensino de línguas. Para Skinner, a aqui-
sição da linguagem ocorre da mesma forma que todos os outros tipos
de aprendizagem, ou seja, falar é entendido como um comportamento
(no caso específico da linguagem, Skinner chamou de operante verbal)
e, conforme Parot (1978), o condicionamento operante tem papel fun-
damental na aprendizagem da língua.
Saiba mais Para compreender esses conceitos aplicados à aquisição da
O behaviorismo serviu como linguagem, podemos pensar da seguinte forma: por meio de um
base para o estruturalismo ame- estímulo (condicionamento operante), a criança exprime uma res-
ricano, representado pelas ideias
de Leonard Bloomfield. Para ele, posta (comportamento operante), uma palavra, por exemplo, que
a criança herda a capacidade de o ambiente reforça (quando os pais ou outras pessoas dizem “mui-
pronunciar e repetir sons por di-
to bem!” ou “isso mesmo!”) ou não (quando as pessoas não enten-
ferentes estímulos. Isso se torna
um hábito, e ela passa a imitar dem o que a criança diz ou a corrigem).
os sons que escuta. Primeiro, ela
associa os sons às coisas e, de- Grolla e Silva (2014) explicam que, de acordo com a perspectiva
pois, associa as palavras às coisas behaviorista, a criança aprende a falar porque recebe estímulos
que estão ausentes (CEZARIO; positivos quando produz corretamente enunciados e é estimulada
MARTELOTTA, 2008).
negativamente quando comete erros. Assim, para os behavioris-
tas, comportamentos complexos, como a linguagem, dependem
da experiência para serem adquiridos e são condicionados (FIN-
GER, 2007), ou seja, dependem dos estímulos e reforços recebidos
para se tornarem um hábito. A linguagem é um comportamento
Glossário
aprendido; é um hábito e será adquirido conforme a interação da
Input: em se tratando de
criança com o input provido pelo ambiente. Skinner expõe que os
aquisição de línguas, são os
dados linguísticos com os quais “organismos produzem sons e as palavras são reforçadas” (FINGER,
a criança entra em contato, 2007, p. 15), enquanto aquilo que não se constitui como palavra
produzidos no ambiente em que
não é reforçada. Essas palavras são associadas para a formação de
ela vive.
sentenças (FINGER, 2007).

Aquisição da linguagem pela criança 37


Para facilitar a compreensão de como o behaviorismo explica a aqui-
sição da linguagem pela criança, acompanhe o mapa conceitual a seguir.

Figura 3
Perspectiva behaviorista da aquisição da linguagem

A linguagem (a fala)
para o

behaviorismo

segundo
uma
palavra dita são dadas a
por exemplo
Skinner pela criança

respostas
é definida
como condicionadas fatores
o mesmo que (operante condicionado) externos

comportamento
estímulos
operante
condicionados que são
(operante verbal) depende de
(condicionamento
operante)
por exemplo
se realizam por
ocorrem
meio de conforme
enunciados
que
linguísticos
interação
reforço
a criança
com o input ouve

pode ser
promovido
positivo negativo pelo

ambiente
que busca

favorece o banir
como determinado
comportamento
dizer comportamento
desejado

como
“Muito bem!”
corrigir a criança

Fonte: Elaborado pela autora com base em Finger, 2007, p. 12-15.

38 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Com base na leitura do mapa e na contribuição de Finger (2007), pode- Curiosidade
mos afirmar que a aquisição da linguagem para a hipótese behaviorista: Você sabe o que é e para que
serve um mapa conceitual?
É uma ferramenta de repre-
ocorre mediante a experiência da criança sentação gráfica utilizada para
com a língua falada pelos seus pares; evidenciar conceitos acerca de
algum tipo de conhecimento.
Esses conceitos são relacionados
de modo que se possa ter uma
visão geral e resumida do todo;
pode ser um livro, um capítulo,
depende da quantidade e da qualidade de um texto etc.
língua ouvida pela criança; Há um programa gratuito para a
construção de mapas conceituais
chamado CmapTools. Você pode
baixá-lo e construir seus próprios
mapas. É uma ótima estratégia
presume que o ambiente é o único responsável pelo para seus estudos!
conhecimento linguístico que a criança irá adquirir, Disponível em: https://cmap.
por meio dos condicionamentos; ihmc.us/cmaptools/. Acesso em:
5 mar. 2020.

ocorre pela repetição de sons, estímulos, reforços


e formação de hábitos;

é consequência de associações entre estímulos


(palavras ouvidas) e repostas (vocalizações
espontâneas da criança).

Apesar de alguns conceitos behavioristas serem muito próximos de


nosso dia a dia e de usarmos com certa frequência estímulos, reforços
positivos e negativos em nossas ações – ao recompensarmos ou punir-
mos as respostas (ou comportamentos) que obtemos das crianças, por
exemplo –, há algumas críticas em relação a essa teoria, especialmente
no que diz respeito à aquisição de linguagem.

A primeira delas é que a hipótese behaviorista não explica com cla-


reza como a criança é capaz de produzir enunciados novos, que não
foram anteriormente ouvidos. Outra questão é que não há evidências

Aquisição da linguagem pela criança 39


concretas entre o uso correto da gramática e o reforço positivo ofere-
cido pelos adultos, uma vez que eles ficam mais preocupados com o
significado dos enunciados falados pelas crianças do que com a corre-
ção gramatical (FINGER, 2007).
Um problema para esta hipótese é que geralmente se observa
que os pais prestam atenção no que as crianças falam, mas não
em como elas falam: quando os pais de fato corrigem seus filhos,
eles tendem a fazer correções sobre a adequação do conteúdo
da fala das crianças relativamente à situação discursiva, e não
sobre a forma gramatical das expressões (GROLLA; SILVA, 2014,
p. 44, grifos do original).

Grolla e Silva (2014) completam com um exemplo em que a crian-


ça produz um enunciado com a estrutura gramatical comprometida,
mas como está adequado à situação, a mãe responde positivamente.
A criança diz: “Eu fez xixi”. A mãe responde: “Muito bem, meu amor!”.

A ideia de que a criança é passiva em relação ao meio também é


questionada pelos críticos do behaviorismo, pois é atribuída somen-
te aos adultos a responsabilidade pelo que a criança irá ou não falar.
Assim, a corrente behaviorista difere em vários aspectos da abordagem
que iremos tratar agora: o inatismo.

Vídeo
Há uma série de vídeos sobre o behaviorismo, publicados pelo canal Didatics, que apre-
senta o histórico dessa teoria, os principais estudiosos e os conceitos desenvolvidos por
eles. Há, inclusive, trechos de entrevistas com Skinner. São seis vídeos que, com certeza,
complementarão seus estudos.

https://www.youtube.com/watch?v=VW7_24SwG7M
https://www.youtube.com/watch?v=ycN8bqJ7T4k
https://www.youtube.com/watch?v=QO9SSrYZjW0
https://www.youtube.com/watch?v=-19AF7ocYEE
https://www.youtube.com/watch?v=51EuK9kOD_U
https://www.youtube.com/watch?v=3FKjukvcY1o
Acesso em: 5 mar. 2020.

2.3 Hipótese inatista de linguagem


Vídeo Chomsky (Figura 4) é um dos principais nomes quando falamos so-
bre inatismo no processo de aquisição de linguagem. Muitos estudiosos
chamam essa abordagem de gerativista, visto que esse importante lin-
guista é considerado o fundador do gerativismo (MARTELOTTA, 2008).

40 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Figura 4
Segundo Parot (1978), Chomsky combate a teoria behaviorista, pois Noam Chomsky (1928-)
acredita que as crianças nascem com capacidades (especialmen-
te verbais) já programadas. Sendo assim, a criança se desenvolve
em razão de suas estruturas inatas. Além disso, para Chomsky, a
estrutura das linguagens depende das características do cérebro
humano e, por isso, há semelhanças entre as línguas e há ques-
tões que são universais. Um exemplo disso são os tipos de enun-
ciados que as crianças conseguem produzir em diferentes idades,
independentemente da língua que falam. Parot (1978) apresenta

John Soares/Wikimedia Commons


o seguinte exemplo, dado por Chomsky: uma criança de um
ano e meio já possui todas as potencialidades gramaticais,
porém ela não as utiliza porque outros aspectos ainda não
estão prontos, como a memória mais apurada, as questões
de percepção e aquelas relacionadas ao aparelho fonador.

Atenção
Curiosidade
O fato de toda criança normal adquirir uma língua sem esforço e sem instrução explícita é apresentado Além de Chomsky ser
por Grolla e Silva (2014) como conceito de universalidade da linguagem. um dos mais respeita-
dos estudiosos da área
Chomsky não concorda com os princípios do behaviorismo por- da linguística, é ativista
político. No filme Capitão
que considera que a criança não poderia, apenas pelo processo de Fantástico, ele é o herói do
estímulo-resposta-reforço, dado pelo ambiente, tão rapidamente protagonista, que substitui
a comemoração de Natal
aprender a estrutura complexa de uma língua. Além disso, conforme pela data de aniversário
Parot (1978), Chomsky acredita que o fato de as crianças criarem enun- de Chomsky. Para saber
mais, leia a reportagem
ciados totalmente novos, nunca ouvidos, depende de sua capacidade Vai assistir a Capitão Fan-
inata, chamada por ele de competência. tástico? Então você precisa
saber isto antes, escrita por
Outra questão é o fato de que, segundo Quadros (2007), as teorias Ricardo Sabbag.
podem prever um tipo de comportamento, porém, não podem atestar Disponível em: https://www.
de que modo esse comportamento ocorrerá com as pessoas. gazetadopovo.com.br/caderno-g/
cinema/vai-assistir-a-capitao-fan-
Dessa forma, para a abordagem gerativista, baseada na hipótese tasticoentao-voce-precisa-saber-is-
to-antes-epfss0fgqfn1d5oacwmde-
inatista de linguagem: qh1c/. Acesso em: 6 mar. 2020.

a linguagem é constituída por representações mentais;


a aprendizagem da fala é um fenômeno biológico e cognitivo;
os princípios que comandam a estrutura da linguagem são universais;
os seres humanos possuem um mecanismo inato (da mente/
cérebro) responsável pela aquisição da linguagem chamado gra-
mática universal, ou seja, já nascem providos de grande diversi-
dade de conhecimentos linguísticos;

Aquisição da linguagem pela criança 41


ao entrar em contato com as falas de seus pares, a crian-
ça, na idade certa, aciona o conhecimento linguístico prévio,
herdado geneticamente;
há, portanto, em cada indivíduo, um dispositivo exclusivo para a
linguagem que é muito criativo;
o uso criativo da linguagem mostra a capacidade dos falantes de
usarem a língua diariamente com coerência e de modo adequa-
do a cada contexto;
a aquisição da linguagem se dá de maneira uniforme, na medi-
da em que crianças de um mesmo país, mas que têm distintas
realidades sociais, aprendem a falar a mesma língua, mesmo re-
cebendo inputs diferentes.

Grolla e Silva (2014) defendem uma abordagem racionalista de linguagem, conhecida


como Teoria da Gramática Universal, que dialoga com a concepção gerativista apresen-
tada por Chomsky, por negar as teorias de cunho empirista, cujo conceito parte do prin-
cípio de que a linguagem é adquirida apenas por meio da experiência com o ambiente.
Assim, as autoras apresentam estágios de aquisição de linguagem – com base em pesqui-
sas que foram feitas com crianças –, pelos quais todas as crianças passam, independente-
mente de sua língua materna. A figura a seguir apresenta esses estágios.

Figura 5
Estágios de aquisição da linguagem

Em torno de 10 meses

Em torno de 6 meses
Primeiros meses de vida

A criança balbucia somente os sons que ouve,


usando a entonação da língua falada que está
A criança balbucia maior número de sons. Produz sílabas, como adquirindo: pronúncia, entonação, regularidades
A criança emite sons sem significados (balbucios). e restrições dos sons da língua (em português,
“ba, ba, ba”, “bi, bi, bi”, e repete-as muitas vezes. O mesmo tipo
Estudos mostram que os bebês conseguem por exemplo, não há palavra que comece com
de som é produzido por bebês adquirindo diferentes línguas. Até
distinguir sua língua nativa de uma língua os sons “vre”, “nha”, “lha”, embora essas sílabas
bebês surdos fazem esses barulhos, mostrando que isso não
estrangeira, desde que tenham diferentes ritmos. existam em outras posições nas palavras).
corresponde a uma resposta a estímulos externos.

(Continua)
42 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa
Mais de 3 anos

Tem um vocabulário em torno de 1200 palavras. Começa


a usar sentenças com mais de uma oração (mais de um
verbo), como “fui para a escola e chorei”. Depois, já com um
vocabulário aproximado de 1900 palavras, começa a usar
sentenças subordinadas e com ideias temporais, como
“depois, se eu ficar na escola, vou chorar”. Em torno dos
5 anos, demonstra que aprendeu as regras da sua língua
materna, podendo criar enunciados nunca ouvidos antes.

Entre 2 e 3 anos

Produz sentenças simples com mais de duas

k
rstoc
palavras. Tem um vocabulário de 400 palavras,

t te
aproximadamente. No início, não usa artigos (o, a,

/Shu
uma etc.) e preposições (de, para, em etc.), mas
nina assim que o vocabulário aumenta (cerca de 700
Zele

palavras), passa a usá-los. Nessa fase, costuma


alia

apresentar construções como “eu fazi”, mostrando


N at

que se baseia em regularidades da língua (como


:
ões

“eu comi”) e aplica a outras situações, pois ainda


raç
st

desconhece que há verbos irregulares.


Ilu

Ao redor de 1 ano
e 6 meses

Começa a combinar duas palavras, inicialmente,


sem valor de sentença (água... au-au) e, depois, com
valor de sentença (quero mamar).

Ao redor de 1 ano

A habilidade de distinguir sons de línguas estrangeiras diminui.


Inicia a produção das primeiras palavras (que nomeiam pessoas ou
objetos comuns a ela, como mamãe, papai, au-au). Os enunciados
são compostos de uma palavra, mas têm valor de frases. Combina
gestos com palavras (aponta para um pássaro e diz “piu-piu”) e
entende ordens, como “bate palminha”.

s
Fonte: Elaborada pela autora com base em Grolla e Silva, 2014, p. 64-69.

Aquisição da linguagem pela criança 43


Confrontando as hipóteses behaviorista e inatista, evidenciamos as
vertentes empirista e racionalista. Para a empirista, representada aqui
pelo behaviorismo, o conhecimento depende exclusivamente da expe-
riência com o ambiente.

A vertente racionalista entende que há conhecimentos prévios so-


bre a linguagem nos indivíduos, e o contato com o ambiente se faz
necessário para ativar esses conhecimentos.

Essa vertente é a mais aceita atualmente na área dos estudos lin-


guísticos e, segundo Santos (2010), subdivide-se em duas correntes: o
inatismo (a aprendizagem da linguagem ocorre de modo independente
de outras formas de aprendizagem) e o construtivismo ou cognitivismo
(a linguagem é um dos tipos de aprendizagem, ou seja, ela faz parte da
cognição como um todo).

Já apresentamos o inatismo, representado pelo gerativismo de


Chomsky. Vamos, agora, conhecer as demais abordagens de cunho ra-
cionalista, que, nesta obra, chamaremos de interacionistas.

2.4 Abordagens interacionistas:


contribuições de Piaget
Vídeo
Como já mencionado no início deste capítu-
Figura 6
Jean Piaget (1896-1980) lo, os teóricos utilizam diferentes nomenclatu-
ras para tratar dos estudos da aprendizagem
humana numa perspectiva que considera tanto a
cognição quanto a interação com os indivíduos
e o meio responsáveis pela aprendizagem. Para
Palangana (2015), as teorias que concebem o homem
como um ser ativo, cujo conhecimento é gerado
pela sua interação com o ambiente, são cha-
madas de interacionistas.
University of Michigan/Wikimedia Commons

Levando isso em consideração, Piaget


(Figura 6) e Vygotsky, mesmo divergindo
em determinados aspectos teóricos sobre
o desenvolvimento e a aprendizagem hu-
mana, conferem importância à interação.

44 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Contudo, enquanto Piaget atribui ao meio a condição para o desen- Vídeo
volvimento da cognição, preocupando-se em explicar os “mecanismos O vídeo Piaget (2):
Equilibração majorante -
de coordenação entre as ações da criança sobre o mundo, dando pou- assimilação e acomodação,
ca importância à intervenção social”, Vygotsky valoriza o “papel cons- publicado pelo canal
Didatics, pode auxiliá-lo
titutivo da interação social” (SOARES, 2006, p. 2). Parot (1978, p. 119) na compreensão de como
chega a afirmar que, para Piaget, o meio é sempre passivo, “caracteri- ocorre a construção e a
progressão do conheci-
zado ao nível físico, nunca social”. O principal, portanto, para a teoria mento para Piaget. Nele,
piagetiana, são as ações que o sujeito exerce sobre o meio. há a explicação sobre o
processo de equilibração
Em seus estudos, conheceu a epistemologia (área da filosofia e há exemplos.

que estuda o conhecimento). Buscando respostas sobre o que é o Disponível em: https://www.you-
tube.com/watch?v=TL-_LCvtaPg.
conhecimento, Piaget afirma que a epistemologia genética se preo- Acesso em: 5 mar. 2020.
cupa com mecanismos e processos, por meio dos quais é possível
progredir de etapas em que se tem menor conhecimento àquelas
com maior conhecimento (MAIA, 2017).

Ele conceituou a inteligência como uma manifestação da vida, ou


seja, uma forma de adaptação que ocorre nas ações entre o ser hu-
mano e o meio (SOARES, 2006). Piaget considera que as mudanças
nas estruturas mentais do sujeito somente são possíveis por meio do Glossário
mecanismo de adaptação a situações novas. A adaptação compreende assimilação: diz respeito à
dois processos: assimilação e acomodação (PALANGANA, 2015). inclusão de novas informações
ou experiências pelo sujeito, mas
Segundo Piaget, a evolução da inteligência ocorre em razão de sem alteração de suas estruturas
quatro fatores: biológico (crescimento orgânico e maturação do mentais. É como fazer uso do
meio para abastecer os esque-
sistema nervoso); exercício e experiência física (que ocorrem du-
mas hereditários (PALANGANA,
rante a ação sobre os objetos); interações e transmissões sociais 2015).
(que acontecem por meio da linguagem e educação) e equilibração acomodação: consiste na
das ações (PALANGANA, 2015). reorganização dessas estruturas,
a fim de que elas possam
Todo esse processo é contínuo e ocorre por meio da assimilação e agregar novos conhecimentos,
“transformando-os e ajustando-
da acomodação. Assim, o indivíduo, de maneira gradativa, coordena
-os às novas exigências do meio”
suas ações, segundo Soares (2006, p. 3), em um “nível de complexidade (PALANGANA, 2015, p. 20).
estrutural cada vez mais alto”.

Piaget observa, no entanto, que esses processos de construção do


conhecimento e desenvolvimento da inteligência vivenciados pelo su-
jeito ocorrem em etapas, desde o nascimento, as quais ele chamou de
estágios do desenvolvimento cognitivo.

Aquisição da linguagem pela criança 45


2.4.1 Os estágios do desenvolvimento cognitivo e a
aquisição da linguagem para Piaget
Piaget apresenta quatro estágios do desenvolvimento cognitivo.
São eles:

Sensório-motor
(de 0 a 2 anos)

A criança vivencia os fatos no tempo e espaço


em que ocorrem as ações. A noção de passado
e a referência a objetos e situações ausentes
estão por se desenvolver.
Pré-operatório
(de 2 a 7 anos)
É caracterizado pelo desenvolvimento do pensamento
representativo, que diz respeito à “capacidade de evocar
mediante um signo ou uma imagem simbólica o objeto
ausente ou a ação ainda não consumada” (PIAGET, 1982,
Operatório- p. 231 apud PILLAR, 2012, p. 32).
-concreto (de 7
a 12 anos)

Caracteriza-se pelo desenvolvimento da capacidade de pensar de maneira lógica.


A criança necessita da realidade concreta para organizar suas ações. Ela intensifica
as trocas, por isso, passa de uma fase egocêntrica para outra mais socializada. A
criança está mais preparada para seguir regras e busca compreender os outros,
assim como ela mesma, a fim de conseguir argumentar. Além disso, necessita de
comprovação para suas elaborações mentais, deixando de lado o pensamento
fantasioso (PALANGANA, 2015).
Operatório-formal
ou lógico-formal (de
12 anos em diante) O adolescente consegue lidar com a abstração, formular hipóteses e testá-las,
fazendo uso cada vez mais avançado da linguagem. Por isso, a principal característica
dessa etapa é a distinção entre o real e o possível (PALANGANA, 2015), e não mais
simplesmente entre o que existe e o que não existe.

É importante lembrar que as faixas etárias indicadas em cada uma


das etapas não são rígidas, pois existem as diferenças individuais de
cada criança e do ambiente em que vivem. Todavia, todas elas passam
por esses períodos, necessariamente nessa ordem.

Vamos destacar agora a questão da linguagem para Piaget. É entre


o final do estágio sensório-motor e o início do pré-operatório que a
criança começa a falar. Contudo, o interesse de Piaget não está na lin-
guagem em si, pois, para ele, ela é uma consequência “das estruturas
cognitivas que foram desenvolvidas antes e que determinam esse co-
nhecimento” (SANTOS, 2010, p. 222).

46 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Para Piaget, com base em Santos (2010), Pillar (2012) e Soares (2006),
no período sensório-motor, para a criança, os objetos não têm per-
manência. Por exemplo, se a mãe brinca de esconder um brinque-
do, a criança chora, achando que o objeto não existe mais. Isso
acontece porque, para ela, os objetos inexistem sem a atuação do
sujeito. Além disso, o tempo só existe no presente. Então, a criança
vive “o aqui e o agora”. À medida que avança para o próximo es-
tágio e a capacidade de representação se desenvolve, a criança
passa a dominar duas importantes aprendizagens: os objetos con-
tinuam existindo, mesmo que ela não os veja, e é possível se referir
a fatos passados. Assim, ela está preparada para compreender o
signo linguístico. O signo está no lugar de algo. A palavra, então,
não é o objeto, mas está no lugar do objeto.

Sendo assim, para compreender a aquisição da linguagem em


Piaget, é preciso considerar a evolução cognitiva do sujeito, essencial-
mente tomando como base os seguintes fatores, de acordo com Parot
(1978): maturação biológica, experiência de mundo, meio social e
equilíbrio do sujeito com o meio.

2.5 Abordagens interacionistas:


contribuições de Vygotsky
Vídeo Assim como Piaget, Vygotsky (Figura 7) também
Saiba mais
se dedicou à área da Psicologia, estudando especial-
Os processos psicológicos supe-
mente as funções cognitivas. No entanto, o princípio
riores (ou funções superiores),
básico de sua teoria é que os processos psicológicos foco de estudo de Vygotsky, são
superiores são mediados pela linguagem. Além disso, capacidades humanas que têm
a função de organizar a vida
ele procurou responder à seguinte questão: “como a
mental dos sujeitos de modo
maturação física e a aprendizagem sensório-motora adequado, tais como memória
interagem com o ambiente” – histórico e social – de (ativa), atenção (voluntária),
imaginação, pensamento, plane-
modo a “produzir as funções complexas do pensa- jamento e linguagem. Vygotsky
mento humano”? (PALANGANA, 2015, p. 81). não se dedicou a estudar as
funções psicológicas elementa-
De acordo com Vygotsky, a atividade cerebral res, como os comportamentos
é responsável pelas funções psicológicas, no en- de caráter biológico: reflexos,
percepção, associações simples,
tanto, elas só se desenvolvem porque o sujeito se
memória imediata.
relaciona culturalmente com outros, mediado por
sistemas simbólicos.

Aquisição da linguagem pela criança 47


Figura 7
Lev Semenovich Vygotsky E o que seriam esses sistemas simbólicos? Para com-
(1896-1934)
preender esse processo, pensemos na seguinte situação:
um bebê puxa um pano para conseguir um objeto que está
em cima de outro, como exemplifica Soares (2006). Nesse
caso, ele faz uso da inteligência prática para resolver um
problema imediato, sem a necessidade de planejamento,
pois, nessa fase, a linguagem ainda não está desenvolvida.
Assim, ele usa um instrumento para conseguir o que quer.
Esse instrumento é um elemento mediador, assim como
seria uma vara para alcançar a fruta de uma árvore ou um
machado para cortá-la.

Para Soares (2006, p. 10), “à medida que a criança se apro-


pria da linguagem na interação com o outro, ela se torna
capaz de controlar o ambiente, [...] organizando seu compor-
tamento intelectualmente. Nesse estágio, a criança começa a
apropriar-se dos signos”.
The Vigotsky Project/Wikimedia Commons Os signos são como os instrumentos, pois têm função
mediadora, porém, regulam as ações psíquicas, voltadas para o
próprio indivíduo. Enquanto o instrumento é usado para possibili-
tar alterações nos objetos do mundo, externamente, o signo propi-
cia modificação interna no indivíduo.

A linguagem se constitui como um sistema de signos. Assim


como o homem criou instrumentos para modificar a natureza de
modo mais eficaz, usando-os como mediadores de sua ação, a lin-
guagem é uma atividade simbólica e atua como mediadora entre
os sujeitos na interação social.

Pense, por exemplo, como você poderia contar a um amigo so-


bre uma festa em que você esteve ontem. Pelo uso da linguagem,
você será capaz de contar fatos passados sem precisar vivenciá-los
novamente. Seu amigo também, por meio dessa atividade simbóli-
ca, conseguirá imaginar como foi a festa, mesmo sem ter participa-
do dela. Você poderá, inclusive, planejar ir a outra festa que ainda
não aconteceu.

É possível, desse modo, compreender que a linguagem, na con-


dição de sistema simbólico, serve para representar os objetos do
mundo e os acontecimentos vivenciados por nós ou pelos outros.
A nossa relação com os outros e com o ambiente não se dá de ma-
neira direta, mas mediada pela linguagem.

48 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


2.5.1 Aquisição da linguagem e a mediação para
Vygotsky
Você sabe como nos apropriamos da linguagem segundo os estu-
dos de Vygotsky? Primeiramente, é importante lembrar que, para ele,
segundo Palangana (2015, p. 20), “a organização funcional das estrutu-
ras mentais não se transmite hereditariamente: é um mecanismo que
se desenvolve graças à ação do indivíduo sobre o meio e às trocas de-
correntes dessa interação”.

Vygotsky apresenta períodos de desenvolvimento das operações


mentais, em que a fala é elemento principal, pois a “aquisição de um
sistema linguístico organiza todos os processos mentais da criança,
dando forma ao pensamento” (PALANGANA, 2015, p. 84). O Quadro 2,
a seguir, explica esses períodos.

Quadro 2
Estágios de desenvolvimento da linguagem

Períodos das operações mentais Estágios de desenvolvimento da linguagem


Natural ou primitivo
(até 2 anos)

• Fala pré-intelectual (balbucio, choro).


Ilustações: Natalia Zelenina/ Shutterstock

• Pensamento pré-verbal (inteligência prática).

Psicologia ingênua
(a partir dos dois anos)

• Fala social: a fala acompanha as ações práticas da criança (ela fala


enquanto age).

(Continua)

Aquisição da linguagem pela criança 49


Períodos das operações mentais Estágios de desenvolvimento da linguagem
Signos exteriores
(dos 3 aos 6 anos)

• Fala egocêntrica (a criança fala consigo mesma, em voz alta, para


resolver um problema).
• A fala se desloca para o início da ação e, um pouco mais tarde, vem
antes da ação.

Crescimento interior
(após 6 anos)

• A fala egocêntrica vai desaparecendo até se tornar interna.


• A criança passa a controlar suas atividades mentais e seu com-
portamento.
• A fala determina e domina a ação (função planejadora).

Fonte: Elaborado pela autora com base em Vygotsky, 1999, p. 50-51; Palangana, 2015, p. 83-89; Santos, 2010, p. 223-224.

Ao analisarmos as informações do quadro, percebemos que fala e


pensamento, para Vygotsky, são duas atividades distintas no início da
vida da criança (no estágio primitivo). São fases separadas a pré-verbal
do pensamento e a pré-intelectual da fala. Contudo, no segundo está-
gio (após os dois anos), “as curvas de desenvolvimento do pensamento
e da linguagem” se tocam e fundem-se, “dando início a uma nova forma
de comportamento” (VYGOTSKY, 1999, p. 46). Assim, o pensamento se
torna verbal e a linguagem, racional.

É importante ressaltar, contudo, que, em todas essas fases, o papel


do adulto é essencial para o desenvolvimento da linguagem e para o
amadurecimento das funções psicológicas da criança.

50 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Por isso, ao abordar o processo de ensino formal, Vygotsky (2000)
enfatiza a presença do professor como colaborador e orientador, para
que a criança avance daquilo que não consegue fazer sozinha (nível de
desenvolvimento potencial) para aquilo que ela conseguirá fazer sem
ajuda (nível de desenvolvimento real). Para o autor, isso é a base de
todo o desenvolvimento da aprendizagem. Em suas palavras:
É isto o que constitui o conteúdo do conceito de zona de desen-
volvimento imediato [...]. Na escola a criança não aprende o
que sabe fazer sozinha, mas o que ainda não sabe e lhe vem a ser
acessível em colaboração com o professor e sob sua orientação.
O fundamental na aprendizagem é justamente o fato de que a
criança aprende o novo. Por isso a zona de desenvolvimento
imediato, que determina esse campo das transições acessíveis
à criança, é a que representa o momento mais determinante na
relação da aprendizagem com o desenvolvimento. (VYGOTSKY,
2000, p. 331, grifos nossos)

Surge, assim, um dos conceitos mais conhecidos da teoria


vygotskyana, referindo-se ao destaque que o autor dá para as
aprendizagens que ainda estão sendo formadas, ou seja, as que
a criança ainda não domina, mas que, com a mediação do adulto,
poderá dominar. Esse conceito ficou conhecido no Brasil por zona
de desenvolvimento proximal (chamado por Vygotsky de zona de
desenvolvimento imediato).

Sendo assim, a definição mais difundida pelos estudiosos de Livro


Vygotsky para a zona de desenvolvimento proximal é a distância entre Amplie seus estudos
sobre as teorias de
o nível de desenvolvimento real e o nível de desenvolvimento potencial. Piaget e Vygotsky lendo
o livro Piaget, Vigotski e
Para Vygotsky, a zona de desenvolvimento proximal “ativa processos Wallon: teorias psicogené-
de desenvolvimento que se tornam funcionais à medida que a criança ticas em discussão. Cada
autora apresenta um
interage com pessoas em seu ambiente, internalizando [...] o conheci-
dos teóricos, destacan-
mento disponível em seu contexto social” (PALANGANA, 2015, p. 109). do a afetividade como
importante recurso para
Isso se torna ainda mais significativo quando pensamos no a educação.

contexto escolar, já que o educador é capaz de fornecer media- LA TAILLE, Y.; OLIVEIRA, M. K. de.
ção qualitativa aos estudantes, de modo a ativar os processos de DANTAS, H. 28. ed. São Paulo:
Sumus, 2019.
desenvolvimento e as capacidades cognitivas, propiciando a inter-
nalização do conhecimento partilhado socialmente.

Aquisição da linguagem pela criança 51


CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de diferentes hipóteses para compreender a aquisição da
linguagem pela criança, podemos afirmar que cada uma privilegia um
aspecto do desenvolvimento humano, seja o biológico, seja o social. Isso
mostra que a linguagem ainda é um campo aberto de estudos, e desco-
bertas continuam sendo feitas sobre essa incrível capacidade humana.
Apresentamos Piaget e Vygotsky como interacionistas porque ambos
levam em consideração, além dos fatores internos relacionados ao desen-
volvimento das operações mentais, a relação da criança com elementos
externos para a aprendizagem. No caso de Piaget, a criança interage com
o meio físico para a construção da inteligência. Para Vygotsky, essa intera-
ção com o ambiente se dá pela mediação de outros sujeitos, especialmen-
te pela linguagem, atividade simbólica por excelência.
Assim, acreditamos que a abordagem construtivista de Piaget fica mais
completa com a postura social de Vygotsky, quando falamos em aquisição
da linguagem. Para o educador que está em contato com a criança em
processo de aquisição da língua materna e, mais tarde, durante a apren-
dizagem da modalidade escrita, o conhecimento dessas teorias é funda-
mental para que o ensino seja concebido como um processo histórico e
social, em que o objetivo maior seja a efetiva aprendizagem da criança
enquanto sujeito que interage ativamente com o mundo e com os outros
e é capaz de construir seu próprio conhecimento.

ATIVIDADES
1. Complete o quadro-síntese a seguir com as principais informações
sobre a aquisição da linguagem pela criança, considerando as
hipóteses estudadas neste capítulo.

Hipótese Teórico Como ocorre a aquisição da linguagem?

Behaviorismo Skinner

Inatismo Chomsky

(Continua)

52 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Hipótese Teórico Como ocorre a aquisição da linguagem?

Piaget

Interacionismo

Vygotsky

2. Explique o conceito de zona de desenvolvimento proximal para Vygotsky


e aponte a importância dela para a aprendizagem infantil.

3. Neste capítulo, foram apresentados estágios de aquisição da


linguagem com base na Teoria da Gramática Universal. Complete o
quadro a seguir, apresentando uma síntese desses estágios.

Idade O que a criança é capaz de fazer em relação à língua

Primeiros meses de vida

Em torno de 6 meses

Em torno de 10 meses

Ao redor de 1 ano

Ao redor de 1 ano e 6
meses

Entre 2 e 3 anos

Mais de 3 anos

Aquisição da linguagem pela criança 53


REFERÊNCIAS
CEZARIO, M. M.; MARTELOTTA, M. E. Aquisição da linguagem. In: MARTELOTTA, M. E.
Manual de linguística. São Paulo: Contexto, 2008.
FINGER, I. A aquisição da linguagem na perspectiva behaviorista. In: QUADROS, R. M.
de; FINGER I. Teorias de aquisição de linguagem, jun. 2007. Disponível em: https://www.
academia.edu/6357496/1607121182_Teorias_de_aquisi%C3%A7%C3%A3o_da_linguagem.
Acesso em: 9 fev. 2020.
GROLLA, E.; SILVA, M. C. F. Para conhecer aquisição da linguagem. São Paulo: Contexto, 2014.
MAIA, C. M. Psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem. Curitiba: InterSaberes, 2017.
(Série Pedagogia Contemporânea).
MARTELOTTA, M. E. Conceitos de Gramática. In: MARTELOTTA, M. E. Manual de linguística.
São Paulo: Contexto, 2008.
PALANGANA, I. C. Desenvolvimento e aprendizagem em Piaget e Vigotski: a relevância do
social. 6. ed. São Paulo: Summus, 2015.
PAROT, F. Algumas notas sobre as teorias da aquisição da linguagem: Piaget, Chomsky,
Skinner. Análise Psicológica, v. 2, n. 1, p. 115-124, 1978. Disponível em: http://repositorio.
ispa.pt/bitstream/10400.12/1928/1/1978_1_115.pdf. Acesso em: 6 mar. 2020.
PILLAR, A. D. Desenho e escrita como forma de representação. São Paulo: Penso, 2012.
QUADROS, R. M. de. O paradigma gerativista e a aquisição da linguagem. In: QUADROS, R.
M. de; FINGER I. Teorias de aquisição de linguagem, jun. 2007. Disponível em: https://www.
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Acesso em: 6 mar. 2020.
SANTOS, R. A aquisição da linguagem. In: FIORIN, J. L. (org.). Introdução à linguística: I -
Objetos teóricos. 6. ed. revista e atualizada. São Paulo: Contexto, 2010.
SOARES, Aquisição da linguagem segundo a Psicologia Interacionista: três abordagens.
Gatilho, Juiz de Fora, MG, v. 4, 2006. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/
gatilho/article/view/26877. Acesso em: 6 mar. 2020.
TERRA, M. O behaviorismo em discussão. 2003. Disponível em: https://www.unicamp.br/iel/
site/alunos/publicacoes/textos/b00008.htm. Acesso em: 6 mar. 2020.
VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1999
VYGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Trad. de Paulo Bezerra. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.

54 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


3
Língua e variação linguística
Vamos recordar da nossa época de estudantes da educação
básica. Quais lembranças você tem das aulas de Língua Portuguesa,
seja nos anos iniciais ou finais do ensino fundamental, seja no en-
sino médio? Como elas eram? O que você aprendia? Havia muita
leitura em sala? Você produzia textos escritos e orais com frequên-
cia? Usava dicionário ou gramática? Copiava textos? Havia ditado
de palavras? Fazia muitos exercícios gramaticais? Conjugação ver-
bal? Análise sintática?
Se suas maiores lembranças das aulas estão relacionadas à
cópia de textos, muitos exercícios gramaticais, como classificação
de palavras, análise sintática de orações, ditados para fixação da
ortografia correta das palavras, entre outras atividades que privi-
legiavam as normas da língua, você, provavelmente, teve acesso a
um ensino de língua mais tradicional.
Se, ao contrário, na maioria das aulas havia leitura de diversos
materiais, interpretação de textos, produção textual, como cartas,
notícias, contos, poesias, receitas, artigos de opinião, entrevistas
etc., é muito provável que você tenha aprendido a língua escrita
com uma concepção mais inovadora.
Se há pelo menos esses dois jeitos de aprender (ou de ensinar)
língua na escola, é porque o ensino de Língua Portuguesa no Brasil
deve ter sofrido transformações, certo? Esse é um dos assuntos
que trataremos neste capítulo!
Continuando com os questionamentos, em que região do Brasil
ficava a escola onde você estudou? Ou em que estado brasileiro você
mora atualmente? Você já ouviu a expressão de que o Brasil é um país
continental, ou seja, tem praticamente o tamanho de um continente?
Mas o que isso tem a ver com o ensino de língua na escola?

Língua e variação linguística 55


Fazemos essas perguntas para que você reflita sobre qual é a
sua língua e qual língua você aprendeu na escola. Ou ainda: quan-
tas línguas são faladas no Brasil? Você presenciou alguém sendo
discriminado por ter um sotaque característico de alguma região
brasileira ou por falar de um jeito diferente das outras pessoas?
Essas e outras perguntas são importantes para encaminharmos
algumas reflexões acerca das mudanças pelas quais passou o en-
sino de Língua Portuguesa no Brasil ao longo do tempo, desde que
nosso país se tornou colônia de Portugal até a atualidade.
Além disso, em razão das mudanças de concepções meto-
dológicas de ensino de língua, os linguistas passaram a estu-
dar e divulgar trabalhos a respeito das variações linguísticas,
desconsideradas pela pedagogia tradicional. Discutiremos
também, neste capítulo, sobre o que é, afinal, língua padrão
(ou culta) e como ela vem sendo abordada na escola.

3.1 Ensino de Língua Portuguesa


no Brasil: breve histórico
Vídeo Quando os europeus chegaram ao Brasil, em 1500, encontraram milha-
res de indígenas, organizados em diferentes tribos, que se expressavam
em uma grande variedade de línguas, muito além do tupi-guarani e muito
diferente da língua falada em Portugal.

Conhecendo a história da colonização portuguesa no Brasil e saben-


do que a cultura dos índios (assim chamados por Cristóvão Colombo,
pensando ter chegado às Índias) foi negada e considerada primitiva,
compreendemos que com a língua não foi diferente. É muito comum o
colonizador impor a sua língua (e demais elementos culturais, como a
religião) ao colonizado. E assim aconteceu com o nosso país.

No início, era preciso se comunicar com os indígenas, por isso, os pa-


dres jesuítas, vindos de Portugal, em 1549, aprenderam o tupi-guarani,
principalmente, para ensinar aos nativos a Língua Portuguesa e a dou-
trina cristã. Dessa interação, surgiu a língua geral, uma junção dos dia-
letos do tupi com a estrutura do português. Essa língua foi muito usada
no território brasileiro durante o período colonial.

56 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Conforme Piletti e Piletti (2012), além de instruir os in-
dígenas, os jesuítas foram responsáveis pela educação dos
senhores de engenho, colonos (pessoas vindas de Portu-
gal para povoar as terras brasileiras) e escravos africanos.
Nessa época, os padres utilizavam o método Ratio Studiorum,
trazido da Europa, que previa o ensino das primeiras letras
e, também, o nível secundário (cursos de Letras Humanas,
de Filosofia e Ciências e de Teologia), voltado para os filhos
dos senhores ou dos colonos, obviamente. Com isso, foram
fundados colégios jesuítas no Brasil Colônia. E os jovens que

Pedro Aguiar/Wikimedia Commons


pretendiam continuar os estudos deveriam frequentar uni-
versidades na Europa.

De acordo com Piletti e Piletti (2012), o método


Ratium Studiorum era bastante rígido e contava com várias
normas. As que chamam a atenção e nos interessam no mo-
mento são duas: os alunos deveriam recitar as lições apren-
didas de cor e, durante as aulas, de maneira alguma os
autores modernos poderiam ser apresentados aos alunos, Membro da Companhia de Jesus (jesuíta),
século 18.
somente os clássicos.

A educação jesuítica na colônia portuguesa durou até 1759, quan-


do Marquês de Pombal, primeiro-ministro do rei português D. João I,
expulsou os padres e extinguiu as escolas que tinham sido funda-
das por eles. Para a substituição, sem muito sucesso, Pombal de- Glossário
terminou a criação de aulas aulas régias: eram aulas
régias de Latim, Grego e Re- isoladas, sem vínculo com escola
tórica (PILETTI; PILETTI, 2012). e instituição religiosa, dadas por
professores que ficavam res-
Além disso, Pombal decre- ponsáveis por uma unidade de
ensino de uma das disciplinas.
tou a Língua Portuguesa como
Os alunos se matriculavam em
idioma oficial do Brasil e proi- quantas aulas quisessem. Não
biu a língua geral. Entretanto, havia currículo determinado, en-
tão, cada professor desenvolvia
em relação ao ensino, as disci-
as aulas por conta própria.
plinas clássicas, como o Latim,
Vargalanna/Wikimedia Commons

continuavam a ganhar maior


espaço durante as aulas, en-
quanto o Português era pouco
estudado e fragmentado em
três disciplinas: Gramática, Poé-
Plano de Estudos da Companhia de Jesus, 1598-1599. tica e Retórica (PARANÁ, 2008).

Língua e variação linguística 57


Saiba mais Mudanças mais significativas, em relação ao ensino formal
A Retórica é estudada desde a no Brasil Colônia, ocorreram a partir de 1807, de acordo com
Grécia Antiga, sob diferentes
Ghiraldelli Júnior (2009), quando a família real portuguesa veio morar
perspectivas, mas, de um
modo geral, seu objetivo é no Brasil. Assim, o ensino foi reestruturado nos níveis primário, secun-
ensinar a arte da palavra, ou dário e superior e foram criados cursos profissionalizantes e militares.
seja, “falar bem” (de acordo
com a Gramática), argumentar, Com a Independência do Brasil, em 1822, D. Pedro I desejava criar
persuadir. A Poética estuda as um sistema nacional de ensino, porém, o uso do método Lancaster, em
obras literárias, especialmente
seus aspectos teóricos. que alunos mais adiantados eram responsáveis por ensinar aos mais
novos, demonstrou fragilidade no ensino, principalmente em relação à
falta de professores (GHIRALDELLI JÚNIOR, 2009).

Em 1850, o Império se consolidou e, assim, houve importantes


avanços para a educação secundária e superior, mas quase nenhum
investimento no ensino das crianças, segundo Ghiraldelli Júnior (2009).
Além disso, poucas mudanças ocorreram nos currículos, sem que hou-
vesse alteração no ensino de Língua Portuguesa, que permaneceu pra-
ticamente o mesmo em todo o século XIX.

A educação tinha como principal clientela, ainda, as classes mais


abastadas. Sendo assim, a língua culta fazia parte do cotidiano daque-
les que chegavam à escola, e o ensino de normas gramaticais e análi-
se de textos literários, como modelos do “bem escrever”, satisfazia os
anseios de uma classe privilegiada. Essa é uma das explicações que
Soares (2001) dá para o fato de o ensino de Português permanecer por
tanto tempo inalterado.

Nas primeiras décadas do século XX, já no Brasil republicano, o


cenário ainda era esse relatado, muito em razão da inexistência de
específica formação aos professores de Português, que só se inicia
na década de 1930. Desse modo, quem ministrava as aulas, nessa
época, eram estudiosos conhecedores da Gramática e da Literatu-
ra, mas que exerciam outras profissões, como médicos, advoga-
dos, engenheiros e servidores públicos de altos cargos, por isso,
faltava-lhes a didática para ensinar. Além do mais, as gramáticas
traziam apenas a exposição das normas e trechos de obras de au-
tores consagrados. Não havia propostas de atividades, explicações,
comentários. Assim, cabia aos professores interpretar, analisar e
apresentar esse material aos alunos (SOARES, 2001).

Alterações mais significativas em relação à clientela escolar, espe-


cialmente em razão da crescente industrialização e das classes popu-

58 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


lares que passaram a reivindicar acesso à educação formal, ocorreram Curiosidade
somente a partir da década de 1950, segundo Soares (2001). No en- Você sabia que, além
do Brasil e de Portugal,
tanto, o ensino de Português não sofreu alterações profundas, mesmo há outros seis países
que gramática e texto passassem, nesse momento, a ser ensinados que têm o português
como língua oficial?
de modo mais articulado: estudo da gramática a partir do texto ou do São eles: Cabo Verde,
texto a partir dos elementos oferecidos pela gramática. Ainda assim, a Guiné-Bissau, São
Tomé e Príncipe,
língua continuou a ser vista como um sistema, com enfoque estrutura- Angola, Moçambique
lista, e a norma-padrão como única variedade possível. e Timor-Leste. Apesar
de a língua oficial ser
Outro importante fato a ser destacado é que houve, nessa época, a a mesma, há muitas
diferenças dialetais
necessidade de contratação massiva de professores para atender à de- entre o português
manda cada vez maior de alunos. Isso resultou na desvalorização desses brasileiro e o falado
nesses países. No
profissionais, tanto em relação às condições de trabalho quanto à re- site Plataforma do
muneração. A profissão de docente perdeu seu prestígio e os cursos de Letramento, você
encontra o jogo “Falo
Letras passaram a atrair “indivíduos oriundos de contextos pouco letra- daqui que tu falas daí”,
dos, com precárias práticas de leitura e de escrita” (SOARES, 2001, p. 151). cujo objetivo é testar
seu conhecimento
Na década de 1970, o Brasil se encontrava sob regime da ditadura sobre algumas palavras
faladas em Portugal.
militar, que valorizava o ensino tecnicista, com vistas a capacitar as gran- Você pode jogar
des massas para o mercado de trabalho. Assim, os exercícios mecâni- acessando o link a
seguir.
cos, a repetição e a memorização caracterizavam a prática pedagógica
baseada na teoria behaviorista. Nas aulas de português, os estudos de Disponível em: http://www.
plataformadoletramento.org.
teoria da comunicação, apresentada por Roman Jakobson, influencia- br/de-onde-e/. Acesso em: 16
ram até mesmo a mudança do nome da disciplina para Comunicação e mar. 2020.
Expressão. Houve novidade apenas na questão da produção de texto,
vista como transmissão de mensagens e ensinada conforme as técni-
cas de redação (PARANÁ, 2008).

Somente na década de 1980, com a abertura do regime mili-


tar, houve aumento da oferta de pós-graduação e a pesquisa nas
áreas da educação e da linguística se intensificou, inclusive abrindo
espaço para novos estudos da Linguística, como Sociolinguística,
Psicolinguística, Análise do Discurso, Linguística Textual, entre ou-
tros, chegarem às escolas (SOARES, 2001).

Além disso, segundo Martins (2012), passou-se a valorizar a prática


pedagógica como ponto de partida para a transformação social mais
ampla. Desse modo, a pedagogia histórico-crítica e a visão progressis-
ta de educação contribuíram para que o ensino de Língua Portuguesa
ressaltasse os “estudos linguísticos centrados no texto/contexto e na
interação social das práticas discursivas” (PARANÁ, 2008).

Língua e variação linguística 59


A partir desse momento, portanto, com a contribuição de vários
teóricos, tanto estrangeiros quanto brasileiros, a língua passa a ser
concebida como atividade discursiva, histórica, social e interativa, o
que modificou profundamente a visão de ensino e aprendizagem de
língua materna na escola. Ações governamentais e políticas públicas
também foram decisivas para essa transformação, como a produção
dos Parâmetros Curriculares Nacionais, das Diretrizes Curriculares
Nacionais e, mais atualmente, da Base Nacional Comum Curricular.

Todos esses documentos, fundamentados em teorias linguísticas


modernas, apontam para uma concepção de língua como fenômeno
histórico e social, com base na interação entre os falantes, que che-
gam à escola vindos de diferentes realidades. Por isso, é necessário
valorizar suas histórias, culturas e línguas, para que a educação for-
mal seja a garantia de acesso à cultura letrada e às mais diferentes
situações comunicativas de interação.

3.2 Variações linguísticas:


sociocultural e geográfica
Vídeo
Conforme a língua é compreendida como atividade social e históri-
ca, entendemos que ela é um fenômeno mutável, ou seja, sofre trans-
formações ao longo do tempo, devido ao seu uso. E quem usa a língua?
Nós, os falantes, é claro! Com nossa capacidade criativa de adaptação
a diferentes situações, vamos transformando a língua de acordo com
nossas necessidades, nas atividades diárias.

Então, se a língua é resultado de transformações geradas por nós,


que a usamos, ela não se apresentará de uma única forma em todas
as situações de fala ou escrita. Isso porque cada pessoa tem uma his-
tória: nascemos em diferentes épocas e em distintas regiões do Brasil;
convivemos com pessoas das mais variadas origens; temos profissões,
idade, gênero e situação socioeconômica diferentes.

Assim nascem as variações linguísticas, que determinam o modo


como fazemos uso da língua. De maneira geral, os linguistas cos-
tumam tratar de quatro tipos de variação linguística: sociocultural,
geográfica, histórica e situacional.

60 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Saiba mais
Graças à Sociolinguística e, principalmente, aos trabalhos de
Labov, foi possível registrar, descrever, analisar sistematicamen- William Labov (1927-), nascido
nos Estados Unidos, é um dos
te diferentes falares e escolher a variação linguística como objeto principais estudiosos a abordar
dessa área de estudos (PESSOA, 2019). a questão das variedades lin-
guísticas e, por isso, considerado
Variação é, portanto, o fenômeno no qual determinada língua fundador da Sociolinguística.
“não é jamais, numa época, num lugar, num espaço social [...], idênti- Por entender a variação como
necessária para o funciona-
ca ao que ela é noutra época, em outro lugar, em outro grupo social”
mento das línguas, contraria
(DUBOIS et al., 2007, p. 609 apud PESSOA, 2019). Veremos agora, com os conceitos de pesquisadores
mais detalhes, a variação sociocultural e a geográfica. estruturalistas, como Saussure.

Você já ouviu falar em literatura de cordel? Leia o trecho, a seguir, de


um cordel do famoso poeta Patativa do Assaré.

O sabiá e o gavião

Eu nunca falei à toa.


Sou um cabôco rocêro,
Que sempre das coisa boa
Eu tive um certo tempero.
Não falo mal de ninguém,

Ilustrações: bproject7/Shutterstock
Mas vejo que o mundo tem
Gente que não sabe amá,
Não sabe fazê carinho,
Não qué bem a passarinho,
Não gosta dos animá.

Já eu sou bem deferente.


A coisa mió que eu acho
É num dia munto quente
Eu i me sentá debaxo
De um copado juazêro,
Prá escutá prazentêro
Os passarinho cantá,
Pois aquela poesia
Tem a mesma melodia
Dos anjo celestiá
[...]
(ASSARÉ, 1999, p. 226)

Língua e variação linguística 61


Você percebeu que muitas das palavras do poema não foram es-
critas conforme a norma-padrão, ou seja, como consta nos dicionários
de Língua Portuguesa ou de acordo com a gramática normativa. Isso
aconteceu porque Patativa do Assaré, assim como outros cordelistas,
utiliza uma linguagem simples, próxima da fala coloquial, porém poé-
tica, para retratar a vida do povo do sertão. O cordel é um tipo de lite-
ratura popular e, por muito tempo, foi escrito por pessoas com pouca
escolaridade, mas com muita sensibilidade. Hoje, mesmo que o poeta
seja escolarizado, continua a escrever dessa forma, a fim de enaltecer
essa variedade linguística de pouco valor social.

Esse é um exemplo que mostra a variação sociocultural (também


chamada de variação diastrática), pois quem fala dessa maneira ou de
modo semelhante, possivelmente não frequentou a escola ou teve
acesso a uma escolarização precária, em razão da falta de oportunida-
de ou de condições financeiras. Pessoa (2019) atesta que esse tipo de
variação não compromete a compreensão entre os sujeitos.

Outros aspectos que se relacionam a esse tipo de variação, além


do nível de escolaridade e das condições econômicas, são a idade e o
gênero dos falantes. Procure refletir: você fala diferente de seus pais
ou de seus avós, mesmo que vivam no mesmo lugar e pertençam ao
mesmo grupo social? Será que as mulheres falam de modo distinto dos
homens? Com certeza há variações nesses casos também! Note essas
diferenças em seu dia a dia.

Artigo

http://www.letramagna.com/artigos_20/artigo7_20.pdf

Para saber mais a respeito das variações linguísticas entre os gêneros


masculino e feminino, leia o artigo A variação linguística entre gênero/sexo
nas redes sociais: uma breve análise do Facebook, de Érika Ramos de Lima
Aureliano e Josane Moreira de Oliveira, publicado na Revista de Divulgação
Científica em Língua Portuguesa, Linguística e Literatura, em 2017.

Acesso em: 11 mar. 2020.

Agora, vamos refletir sobre outro tipo de variação linguística:


a geográfica (também chamada de diatópica). Para compreendermos como
ocorre esse tipo de variação, precisamos saber que a língua portuguesa no
Brasil foi formada pelo multilinguismo, segundo Ilari e Basso (2009). Quan-
do os portugueses chegaram à região que hoje é nosso país, os indígenas
que aqui habitavam falavam cerca de 340 línguas, bem diferentes entre si.

62 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Também os escravos africanos trazidos para cá se comunicavam na língua de Vídeo
seu país. Sem contar que, além dos portugueses, outros povos, como os holan- A série Sotaques do Brasil,
produzida pelo Jornal
deses, franceses e espanhóis, tentaram estabelecer colônias em várias re- Hoje, por meio da elabo-
giões do Brasil, vivendo por algum período nesses locais. Mais tarde, as ração do Atlas Linguístico
do Brasil, mostra os
imigrações italiana, polonesa, alemã, entre outras, também contribuíram 16.000 km percorridos
para a formação do português brasileiro (ILARI; BASSO, 2009). para desvendar a riqueza
da nossa língua. Os
Principalmente por essa razão, nas diferentes regiões do Brasil, é quatro vídeos apresen-
tam as diferentes formas
possível observar, conforme Patrocínio (2011), variadas formas de uso de falar dos brasileiros
da língua, relacionadas ao vocabulário e ao aspecto fonético (sonoro). e algumas razões pelas
quais a variedade linguís-
Portanto, a variação geográfica, segundo Pessoa (2019), resulta dos fa- tica geográfica é tão rica.
lares de comunidades linguísticas e espaços diferenciados, mas em um No link a seguir, você
pode ler a reportagem
mesmo tempo histórico. ‘Sotaques do Brasil’ desven-
da as diferentes formas de
Como exemplo desse tipo de variedade, observe as palavras a se- falar do brasileiro, de Ana
guir. Quais você usaria para nomear cada uma das imagens? Ou opta- Zimmerman, e assistir
aos vídeos.
ria por uma diferente? Qual?
ska Disponível em: http://g1.globo.
zk a1
98 com/jornal-hoje/noticia/2014/08/
0/
S sotaques-do-brasil-desvenda-dife-
hu

rentes-formas-de-falar-do-brasilei-
tter
s

Mimosa Mexerica
toc

ro.html. Acesso em: 11 mar. 2020.


k

Se quiser saber mais do


Atlas Linguístico do Brasil,
visite: https://alib.ufba.br/..
Acesso em: 16 abr. 2020.

Bergamota Tangerina

Mo
reV
ec
to
r/S
hu
tter
s

Mandioca
toc

Aipim
k

Macaxeira Castelinha

(Continua)

Língua e variação linguística 63


Curiosidade
Pin
k Pe
ng
/S

hu
tter
s
Moleque Menino

toc
k
Piá Guri
Rodolfo Ilari e Renato
Basso, no livro O português
da gente: a língua que
estudamos, a língua que
falamos, apresentam uma
hipótese sobre o fato de Há, ainda, os diferentes sotaques, relacionados aos aspectos so-
os moradores do Rio de
Janeiro pronunciarem o “s” noros da língua, que também caracterizam as variações linguísticas
chiante no final da sílaba. geográficas, interferindo na pronúncia de cada palavra, dependen-
Isso se deve ao grande
número de imigrantes do da região onde o falante vive.
portugueses, ao todo 15
mil, trazidos ao Brasil por A variação sociocultural e a geográfica, portanto, fazem parte do dia
D. João VI, em 1808, ao a dia de todos os falantes de uma determinada língua. Todos nós te-
instalar a Corte portugue-
sa no Rio de Janeiro. mos um jeito de falar próprio da comunidade da qual fazemos parte,
do local onde vivemos e de acordo com nosso grau de escolaridade.
Sendo assim, não há uma variedade melhor do que a outra; o que há
são modos diferentes de uso da língua.

3.3 Variações linguísticas: histórica e


Vídeo situacional
Nesta seção, aprofundaremos os conhecimentos sobre as variações
histórica e situacional. Para tratarmos da histórica, leia o trecho a se-
guir, de um texto de Carlos Drummond de Andrade.

Antigamente, as moças chamavam-se mademoiselles e eram todas mimosas e


muito prendadas. Não faziam anos: completavam primaveras, em geral dezoito. Os jano-
Artur Balytskyi/Shutterstock

tas, mesmo não sendo rapagões, faziam-lhes pé-de-alferes, arrastando a asa, mas ficavam
longos meses debaixo do balaio. E se levavam tábua, o remédio era tirar o cavalo da chuva
e ir pregar em outra freguesia. [...] Os mais jovens, esses iam ao animatógrafo, e mais tarde
ao cinematógrafo, chupando balas de alteia. Ou sonhavam em andar de aeroplano; os
quais, de pouco siso, se metiam em camisa de onze varas, e até em calças pardas; não
admira que dessem com os burros n’água. [...]
(ANDRADE, 2016, p. 86)

64 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Você deve ter percebido que o poeta utilizou termos e expressões
antigas, não mais usadas, para se referir ao que moças e moços
faziam no passado. Algumas passagens do texto, inclusive, são
incompreensíveis a nós, que estamos deslocados temporalmente
dessa época apresentada pelo autor.

Esse exemplo mostra como a língua é dinâmica, mutável, isto é, Livro


modifica-se com o uso e com o passar do tempo. Várias expressões
faladas por nossos avós já não são mais usadas por nós e, com
certeza, nossos netos falarão palavras diferentes daquelas que
empregamos hoje. A variação histórica (conhecida também por
diacrônica) refere-se a essas alterações ocorridas na língua, ao
longo do tempo, segundo Patrocínio (2011).

De acordo com Pessoa (2019), quando uma variante passa a ser usa-
da por um grande grupo é porque, anteriormente, foi empregada por As gírias são utilizadas em
um grupo pequeno. É desse modo que ocorre o processo de mudança, grupos sociais específi-
cos, mas, se forem aceitas
lentamente. Normalmente, a variante antiga continua na fala dos mais pelos falantes de um
idosos e, algum tempo depois, é substituída pela nova, até ser legitima- modo geral, podem ser
incorporadas ao vocabu-
da pela escrita. Pode haver mudança de grafia ou de significado de uma lário de certa língua. Elas
palavra, alteração da estrutura das frases ou criação de novos termos. variam historicamente e
deixam de existir quando
O uso de tecnologias digitais, cada vez mais crescente, fez com não são mais usadas.
Você sabia que as gírias
que incorporássemos palavras novas à nossa língua, chamadas de estão presentes em
neologismos, especialmente emprestadas da língua inglesa, como todas as línguas e exis-
tem até dicionários de
é o caso de deletar, que pode ser encontrada em dicionários de gírias, como o Dicionário
Língua Portuguesa com o significado de eliminar, suprimir, apagar de Gírias Michaelis
Inglês-Português? Esse
(FERREIRA, 2010). Esse fato se configura também como um tipo de dicionário contém mais
variação histórica, pois os estrangeirismos passam a fazer parte do vo- de 2000 gírias do inglês
americano, britânico,
cabulário de determinada comunidade linguística pelo uso frequente australiano e canadense,
que o falante faz deles. assim como traduções e
termos equivalentes do
Em relação à variação situacional (também conhecida por de português, variações de
uso e exemplos.
contexto), vamos pensar no seguinte caso: uma mulher de 40 anos,
NASH, M. G.; FERREIRA, W. R. São
doutora em educação, professora universitária, que vive em um
Paulo: Melhoramentos, 2016.
centro urbano e pertence à classe média, participa de duas situa-
ções de comunicação: na primeira, apresentando um trabalho em
um congresso internacional de educação literária, em um auditório
de uma universidade, para outros professores e pesquisadores da
área; na segunda, conversando com sua família em um almoço no

Língua e variação linguística 65


Música fim de semana, em sua casa. Será que a professora falará da mes-
Você conhece a música ma maneira nessas duas situações distintas? Observe:
Pela internet, de Gilberto
Gil? A primeira versão
foi lançada em 1997 e a
segunda foi atualizada
Prezados colegas pesquisadores e professo-
pelo cantor em 2018, Situação 1 res, o trabalho a ser exposto, nessa manhã,
justamente porque, cujo tema desperta olhares mais atentos para
nesses mais de 20 anos, a questão da literatura como caminho para a
como a língua muda e a
humanização, foi realizado em parceria com o
tecnologia avança, outros
termos estrangeiros
Instituto Nacional de Pesquisas...
foram incorporados à
letra da canção, muito
usados por nós, como
Facebook, WhatsApp,
Itunes, Instagram,
Facetime, Google Maps.
Acompanhe as duas
versões da música nos
QR codes abaixo.
Essa canção entrou para
a história porque foi a
primeira a ser transmitida
ao vivo, para o mundo
todo, pela internet.
Dejan Dundjerski/Shutterstock
Para conhecer a história
completa, acesse os
QRCodes a seguir.
Ontem dei muita aula.
Situação 2
Tô morta de cansada.
Tava precisando duma
festinha pra relaxá!

Matej Kastelic/Shutterstock

66 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Agora, acompanhe o mapa conceitual a seguir.

Figura 1
Fatores envolvidos no processo de variação situacional

Contexto:
situação particular
de comunicação

formado por

elementos elementos não


linguísticos linguísticos

tema
social
como como
interlocutores
tipo de
profissional
relação
o discurso local

pessoal

Fonte: Elaborada pela autora com base em Pessoa, 2019.

Observando o esquema e as duas situações de comunicação dis-


tintas, mas vivenciadas pela mesma pessoa, podemos afirmar que a
situação 1 seria mais formal, em que o grau de reflexão sobre o uso
da língua é muito alto, utilizado em contextos não cotidianos, cujo con-
Curiosidade
teúdo é mais complexo e elaborado, de acordo com Pessoa (2019). A
Em 2019, a Unesco decla-
situação 2, por sua vez, é informal, pois há pouca reflexão do falante
rou o Ano Internacional
sobre as normas linguísticas, segundo Pessoa (2019), já que se tratar de das Línguas Indígenas,
com o objetivo de promo-
uma conversa imediata, do dia a dia, de caráter mais coloquial.
ver ações de conscientiza-
ção sobre a necessidade
Além das variações linguísticas, que se configuram como os di-
de valorizar, promover e
ferentes modos de falar em um mesmo idioma, há a questão do revitalizar as línguas indí-
genas faladas em todo o
multilinguismo no Brasil, pois são várias as línguas faladas no país.
mundo, além de combater
Para tanto, basta pesquisar um pouco mais a fundo para descobrir seu desaparecimento
(UNESCO, 2019).
que há 270 línguas indígenas faladas por aqui, segundo o censo de-
Para saber mais, visite
mográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o site a seguir: https://
do ano de 2010 (BRASIL, 2016). Isso sem contar a Língua Brasileira en.iyil2019.org/. Acesso em: 16
mar. 2020.
de Sinais (LIBRAS) e as línguas faladas por descendentes de imi-
grantes, em comunidades espalhadas pelo país.

Língua e variação linguística 67


Contudo, infelizmente, muitas pessoas sofrem discriminação em ra-
zão da língua ou da variedade que usam. Por isso, é necessário comba-
ter mais esse tipo de preconceito, que não é exclusivamente linguístico;
pelo contrário, está relacionado a outros, como os de classe social, em
razão do desprestígio que toda variedade não padrão carrega. É disso
que vamos tratar na próxima seção!

3.4 O preconceito linguístico


Vídeo De acordo com a Unesco (2019), por meio da língua, o ser humano
é capaz de se comunicar, contar sua história, definir sua identidade,
expressar sua cultura, sua memória e seus modos de pensar, aprender,
defender seus direitos e construir o futuro.

Se a língua é elemento constitutivo da identidade de um povo ou de


Livro uma pessoa, atacar sua língua ou seu modo de falar é ofender ou dis-
criminar o próprio sujeito, como atesta José Luiz Fiorin (D-17..., 2011).

Assim, é preciso combater o preconceito linguístico, nascido da


ideia de um certo e um errado na língua e de que quem fala “errado”,
pensa errado ou não sabe pensar. O que há, na verdade, são formas di-
ferentes de se expressar, devido às variedades linguísticas geográficas,
socioculturais, históricas etc. A norma culta é apenas uma das varieda-
des e tem maior prestígio social, porque é dominada por pessoas que
Para ampliar seus conhe- atingiram níveis mais altos de escolarização.
cimentos sobre o precon-
ceito linguístico, leia o li- Bagno (2000, p. 16) aponta a injustiça social brasileira como princi-
vro Preconceito linguístico: pal causa do grande “abismo linguístico entre os falantes das varieda-
o que é, como se faz, do
linguista Marcos Bagno. des não padrão do português brasileiro [...] e os falantes da (suposta)
Essa obra é indispensável norma culta”. Isso ocorre porque a educação de qualidade ainda é pri-
ao professor que deseja
combater esse tipo de vilégio de pequena parte da população.
preconceito na sala de
aula e na sociedade.
Os que não dominam a variedade padrão ficam à margem da infor-

BAGNO, M. São Paulo: Parábola, 2015.


mação, da cultura letrada e do conhecimento, pois não compreendem
os discursos, as leis e os documentos, em razão da pouca intimidade
Há, também, uma
entrevista com Bagno, com a língua culta (BAGNO, 2000).
publicada pelo canal
PNAIC UFSCar, em 2016. Além da questão social, a fala característica de determinadas regiões
Vale a pena assistir!
do Brasil também é alvo de preconceito, especialmente das regiões
Disponível em: https://www.youtu- Norte e Nordeste. Muitas vezes, a fala do povo nordestino é reprodu-
be.com/watch?v=UbdSNWv9XDQ.
zida em personagens humorísticos que aparecem nas mídias, mas de
Acesso em: 11 mar. 2020.
modo estereotipado e caricato, associada à pobreza, à ignorância, ao

68 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


atraso. Sendo assim, o preconceito, como alerta Bagno (2000), não está
na variante linguística em si, mas nas pessoas que a usam.

O preconceito linguístico, segundo Bagno (2000), está ancorado em


alguns mitos, ou seja, afirmações falsas em torno da língua portuguesa,
propagadas há muito tempo e difíceis de serem vencidas. Acompanhe
na figura a seguir, de um lado, alguns desses mitos e, do outro, consi-
derações verdadeiras, que nos ajudam a combatê-los.
Figura 2
Mitos e verdades sobre a língua portuguesa
Mito Verdade
O ensino do Português na
escola, muitas vezes, não
considera o uso real da língua.

Português é Todo falante nativo


muito difícil. sabe sua língua.

O estudo da gramática de
qualquer língua é complexo.

Nenhuma língua é
falada do mesmo jeito em
todos os lugares.

A escrita não é igual à


O certo é falar assim fala; é uma tentativa de
porque se representação gráfica da fala.
escreve assim.
Muitas gramáticas
baseiam-se exclusivamente na
língua escrita, a partir de formas
consideradas “corretas”.

Os estudos gramaticais
são posteriores à escrita de
grandes obras literárias.

As gramáticas foram escritas


É preciso saber para fixar regras, com base
gramática para falar nas obras de autores clássicos
e escrever bem. da literatura, considerados
“modelos de escrita”.

A produção de bons textos


exige prática constante de
leitura e escrita.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Bagno, 2000, p. 35-39, 52-61 e 62- 68.

Língua e variação linguística 69


A respeito desses mitos, é importante salientar que, ao compreen-
dermos que não têm fundamento, contribuiremos para combater o
preconceito linguístico, em especial no ambiente escolar, que recebe
estudantes de diferentes origens e camadas sociais.

As dificuldades encontradas pelos estudantes para aprender a


língua escrita não estão relacionadas ao fato de o português “ser
difícil”, porque sabemos que todos entram na escola falando sua
língua materna fluentemente. Como afirma Possenti (2000), todas
as línguas são complexas, em relação ao estudo de sua estrutura,
e simples, já que são adquiridas naturalmente pelas crianças, em
seu ambiente familiar.

As crianças advindas de famílias menos favorecidas estranham


a norma-padrão ensinada na escola e, mais ainda, as regras gra-
maticais, pois isso está muito distante de suas realidades. O modo
como se expressam não pode ser considerado um erro, mas
sim uma variedade, pois “saber falar significa saber uma língua”
(POSSENTI, 2000, p. 30).
Glossário Vamos ver um exemplo. O falante que diz “Nóis vai prantá mio”
gramática internalizada: domina a gramática internalizada, segundo Possenti (2000), porque
“Sistema de regras e princípios
universais” (CALLOU, 2009, p. 16) constrói frases compreensíveis por qualquer usuário da língua. Essa
que todo falante nativo domina. mesma pessoa não dirá sequências do tipo “prantá nóis vai mio” ou
gramática normativa: “mio nóis prantá vai”. Se falasse assim, estaria errando, porque a sinta-
“Prescreve normas que são váli-
das em todos os contextos, não xe da Língua Portuguesa não admite essas sequências. O que o falante
levando em conta a variação”. não conhece é a gramática normativa, ensinada na escola, e as regras
“Focaliza a língua como um
modelo ou padrão ideal de com- que ditam a norma-padrão, de maior prestígio social.
portamento [...] em qualquer
Mas se consideramos que falas como essa estão corretas do
situação de fala e de escrita”
(CALLOU, 2009, p. 15-16). ponto de vista linguístico, podemos questionar o seguinte: não de-
vemos, na escola, corrigir os desvios da norma-padrão? Para que
serve, afinal de contas, a língua padrão?

70 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


3.5 A língua padrão na escola
Vídeo Vamos iniciar esta seção com um pouco de literatura infantil? No
livro Reinações de Narizinho, publicado em 1931, Monteiro Lobato, con-
siderado o pai da literatura infantil brasileira, na voz do narrador, co-
menta como Dona Benta contava as histórias para as crianças do Sítio
do Picapau Amarelo. Confira!

“A moda de Dona Benta ler era boa. Lia

Materialscientist/Wikimedia Commons
‘diferente’ dos livros. Como quase todos os
livros para crianças que há no Brasil são
muito sem graça, cheios de termos do
tempo do Onça ou só usados em Portugal,
a boa velha lia traduzindo aquele português
de defunto em língua do Brasil de hoje.
Onde estava, por exemplo, ‘lume’, lia ‘fogo’;
onde estava ‘lareira’, lia ‘varanda’. E sempre
que dava com um ‘botou-o’ ou ‘comeu-o’, lia
‘botou ele’, ‘comeu ele’ – e ficava o dobro mais interessante” (LOBATO, 2007).

Lobato nos dá uma aula de variação linguística,


não é mesmo? E em um tempo em que nem se
falava sobre isso no Brasil! O trecho representa a
variação histórica, mostrando que a língua muda
com o passar do tempo, e a variação geográfica,
já que compara Portugal ao Brasil.

A crítica que o autor faz em relação aos livros


para crianças, que, na época, eram trazidos da Eu-
ropa, é evidente. Lobato inaugurou um novo
jeito de escrever literatura infantil brasilei-
ra, com as histórias incríveis do Sítio, per-
sonagens questionadores, como Emília,
Narizinho e Pedrinho, e muitas aventuras,
fazendo uso de uma linguagem que valori-
zava a inteligência da criança, mas, ao mesmo
tempo, mais próxima da realidade brasileira. André Koehne/Wikimedia Commons

Língua e variação linguística 71


Assim, nesse trecho e em muitos outros, o autor valoriza a lín-
gua mais coloquial, menos padrão. Uma variedade que, mesmo
escrita, em seus livros, aproximava-se mais da fala cotidiana, usa-
da pelas crianças e pelas pessoas comuns. Em outras obras, ele
até critica a gramática normativa.

Portanto, a língua coloquial é aquela do dia a dia, usada em situa-


ções informais, sem exigências normativas. Já a língua padrão obede-
ce a regras, é ensinada na escola, usada em documentos oficiais e em
situações que exigem maior formalidade. Mas não podemos esquecer
que há diferenças significativas quando tratamos de formalidade e in-
formalidade nas modalidades oral e escrita da língua. A escrita não é
espelho da fala e os fatores envolvidos durante a produção de textos
orais e escritos são decisivos para a atividade de interlocução.

Vale lembrar, ainda, que é praticamente impossível atingirmos o ní-


vel mais elevado do padrão da língua, principalmente a falada, pois,
como afirma Callou (2009, p. 21, grifos do original), “existe um abismo
entre a norma idealizada e a norma efetivamente praticada”, mesmo
se considerarmos os falantes com níveis altos de escolarização. Então,
podemos questionar: devemos ensinar a língua padrão na escola?

Possenti (2000, p. 17, grifo nosso) afirma, claramente, que


“o objetivo da escola é ensinar o português padrão” ou “criar
condições para que ele seja aprendido”. Para o autor, dominar o
Vídeo português padrão não significa memorizar regras gramaticais, mas
O vídeo D-17 - Norma sim adquirir “determinado grau de domínio da escrita e da leitura”
culta e variedade (POSSENTI, 2000, p. 19), isto é, ao final da educação básica, o aluno
linguística, publicado pelo
canal UNIVESP, aborda deve saber ler, interpretar e escrever diversos tipos de textos: narra-
as diferenças entre a tivos, argumentativos, informativos etc.
norma-padrão e a língua
coloquial, fundamentadas É possível perceber, portanto, que o domínio do português pa-
nas falas de linguistas
brasileiros renomados, drão não depende essencialmente do ensino da gramática em seus
como José Luiz Fiorin, aspectos normativos, como conhecer o nome das classes grama-
Ataliba Castilho e Sírio
Possenti, e como a escola ticais, analisar sintaticamente as orações ou saber se um perío-
pode lidar com as varie- do é subordinado ou coordenado. Evidentemente, vários aspectos
dades linguísticas.
da língua escrita, como pontuação, concordância, clareza, coesão,
Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=pWvu- coerência, entre outros, são primordiais para a produção de bons
F0U9zv4&t=270s. Acesso em: 11 textos, mas isso se aprende por meio de muita leitura, escrita e
mar. 2020.
reflexão sobre os usos da língua, nas aulas de Português.

72 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Desafio
Possenti (2000) garante que, assim como não aprendemos a língua
Você conhece o poema Aula de
oral por meio de exercícios de separação de sílabas, formação de frases, Português, de Carlos Drummond
cópia e repetição, a língua escrita não pode ser aprendida desse modo. de Andrade? Nesse belo
Aprendemos a ler e a escrever com práticas significativas, efetivas e con- texto, que você pode encontrar
facilmente pesquisando na
textualizadas. Desse modo, os conhecimentos sobre a norma-padrão internet, o poeta nos oferece
“devem ser mobilizados em favor do desenvolvimento das capacidades vários ensinamentos sobre a
língua coloquial, aquela falada
de leitura, produção e tratamento das linguagens” (BRASIL, 2018, p. 67), a
em casa, e sobre a língua padrão,
fim de que o estudante possa participar amplamente de práticas sociais aprendida na escola, especial-
nas mais diversas esferas de atividade humana. mente na modalidade escrita.
Procure analisar cada estrofe do
Callou (2009) sugere que a escola ensine os estudantes a “utilizar poema e relacioná-la à língua
melhor” sua língua em todas as situações de fala e de escrita, conside- padrão e à coloquial. No final do
texto, ao ler o verso “O português
rando os diferentes usos sociais das práticas discursivas. “Essa reflexão são dois; o outro, mistério”,
sobre a língua deve ir além da observação do que é ‘certo’ e ‘errado’” tente descobrir: qual das duas
(CALLOU, 2009, p. 28). Para isso ocorrer, a prática de leitura e escrita variedades é um mistério para o
eu lírico?
é fundamental, pois o aluno poderá observar, segundo a autora, uma
“pluralidade de normas, além da sua própria” (CALLOU, 2009, p. 28). Glossário
Reconhecer as diferenças entre a língua padrão e as demais varie- eu lírico (ou eu poético):
dades linguísticas é essencial para que o estudante saiba qual delas é um termo usado na literatura
para designar o elemento do
empregar em determinada situação comunicativa, a fim de fazer uso
texto poético que expõe seus
competente e eficaz da leitura e da escrita nas práticas sociais. sentimentos ao leitor. É como se
fosse o narrador do texto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
É realmente difícil saber como equilibrar a diversidade com a qual nos
deparamos em sala de aula, levando em conta todos os fatores, em espe-
cial o linguístico, e o ensino da língua padrão na escola.
É possível aceitar todas as variedades como legítimas e, ao mesmo
tempo, ensinar que há uma norma-padrão e que, em algum momento, o
estudante precisará dela para interagir em situações formais?
Respeitar as variedades linguísticas e combater o preconceito em re-
lação a elas é, acima de tudo, permitir o acesso pleno do sujeito à cidada-
nia, pois documentos oficiais, discursos públicos, livros (em sua maioria)
e outros materiais são produzidos no português padrão. Não podemos,
portanto, negar aos alunos que leiam e interpretem esses textos escritos/
orais e saibam se expressar em situações formais de interação.

Língua e variação linguística 73


ATIVIDADES
1. Complete o quadro, a seguir, com o tipo de variação linguística ou com
aspectos aos quais cada tipo de variação se relaciona.

Tipos Aspectos aos quais se relacionam

Variação sociocultural

Região onde o falante vive.

Época em que o falante vive.

Variação situacional

2. É comum ouvirmos as pessoas, de um modo geral, afirmarem que


“português é muito difícil” e que, por essa razão, não sabem escrever
nem falar “direito”. Ouvimos até mesmo que português é a língua mais
difícil que existe, por conta das regras de acentuação, ortografia e
conjugação verbal. Explique por que isso não é verdade.

3. O objetivo da escola, como afirma Sírio Possenti, é ensinar a língua


padrão. O que significa dominar a língua padrão?

REFERÊNCIAS
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74 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


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Língua e variação linguística 75


4
A Língua Portuguesa
na escola
Para iniciarmos este capítulo, vamos fazer uma analogia entre
aprender Língua Portuguesa na escola e aprender a dirigir um au-
tomóvel na autoescola. Se você quiser tirar a carteira de motorista,
terá de, primeiramente, fazer um determinado número de aulas
teóricas, certo? Essas aulas consistem em aprender leis de trânsito,
mecânica básica, primeiros socorros, direção defensiva, cidadania
e meio ambiente. Elas são importantes, principalmente, para que
você compreenda as normas relacionadas ao trânsito, ou seja,
como ele funciona, poderíamos até dizer: sua estrutura.
Mas agora pergunto: somente as aulas teóricas serão sufi-
cientes para que você entre em um carro, sente no banco do
motorista e saia dirigindo? Por melhores que sejam as aulas
teóricas, com ótimos professores, sabemos que esse processo
exige, ainda, a realização de várias aulas práticas para que você
seja capaz de dirigir um automóvel, isto é, possua as habilida-
des necessárias para conseguir guiar bem, sem deixar o carro
“morrer”, dar sinal de luz corretamente, olhar para os dois espe-
lhos e para a frente, evitar acidentes etc.
Assim acontece também com o aprendizado de uma língua, es-
pecialmente na modalidade escrita. O conhecimento da estrutura
da língua é necessário para sabermos suas regras e, ainda, que
existe uma variante denominada padrão, de maior prestígio social,
usada em situações de maior formalidade.
No entanto, esse conhecimento teórico não é suficiente
para que saibamos empregar a língua de modo eficaz. Nós a
usamos sempre por meio de enunciados concretos, ou seja,
em textos falados ou escritos. Não interagimos com as pessoas
por frases ou palavras isoladas.

76 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


O simples domínio teórico das leis de trânsito não nos fará
bons motoristas, assim como conhecer todas as regras da gra-
mática normativa não será suficiente para que saibamos ler,
interpretar e escrever textos de modo competente. Se isso
é verdade, então podemos refletir: como as aulas de Língua
Portuguesa na escola devem ocorrer? Quais são os encami-
nhamentos que os professores seguem atualmente para que
os estudantes dominem habilidades de oralidade, leitura e es-
crita? Vamos conferir?

4.1 Ensinar língua é ensinar gramática?


Vídeo Nas últimas décadas do século XX, estendendo-se para as primei-
ras do século XXI, muito se falou e ainda se tem falado das significa-
tivas mudanças que ocorreram no encaminhamento das práticas de
Língua Portuguesa na escola.

O ensino da gramática tradicional, voltado unicamente para o domí-


nio do código e para a memorização de regras, passou por um “amplo
processo de crítica, revisão e reformulação” (BAGNO, 2002, p. 13–14).

Mas podemos nos perguntar: o que há de tão errado com o en-


sino da gramática normativa, que vem sendo alvo de várias críticas
nos últimos tempos? Quem frequentou a escola há mais tempo,
o que aprendeu? E os professores que foram formados com base
nessa tradição, o que devem fazer?

Monteiro Lobato, em 1934, publicou o livro Emília no país da gramática,


no qual questiona a postura de alguns gramáticos, na voz da persona-
gem Dona Etimologia:

— [...] Há certos gramáticos que querem fazer a língua parar num certo
ponto, e acham que é erro dizermos de modo diferente do que diziam
os clássicos.
— Que vem a ser clássicos? – perguntou a menina.
— Os entendidos chamam clássicos aos escritores antigos [...]. Para
os carranças, quem não escreve como eles está errado. Mas isso é
curteza de vistas. Esses homens foram bons escritores no seu tempo. Se
aparecessem agora seriam os primeiros a mudar ou adotar a língua de
hoje, para serem entendidos.
(LOBATO, 1992, p. 45-46)

A Língua Portuguesa na escola 77


Essa visão de gramática como manual de “falar e escrever bem”,
pautada nos clássicos da literatura portuguesa, foi a base do ensino
do Português por muitos séculos no Brasil. Considerando apenas a
norma-padrão como válida, esse ensino era voltado essencialmen-
te para cópia e ditados (de modo a memorizar a ortografia correta
das palavras) e análise morfológica (reconhecer substantivos, verbos,
adjetivos etc.) e sintática (reconhecer sujeito e predicado, objeto dire-
to e complemento nominal, classificar as orações subordinadas etc.).
Mesmo havendo leitura e redação nas aulas, a gramática era priori-
dade, pois as atividades propostas após a leitura de um texto eram
também gramaticais, ou seja, o texto era usado como pretexto para o
ensino de gramática, como no exemplo a seguir:

Leia o texto:
A cigarra e as formigas

No inverno, as formigas estavam fazendo secar o grão


molhado, quando uma cigarra faminta lhes pediu algo para
comer. As formigas lhes disseram:
— Por que, no verão, não reservaste também o teu
alimento?
A cigarra respondeu:
— Não tinha tempo, pois cantava melodiosamente.
E as formigas, rindo, disseram:
— Pois bem, se cantavas no verão, dança agora no inverno.
[...]

ESOPO. Fábulas completas. Tradução de Neide Smolka.


São Paulo: Moderna, 1994.

Resolva:

1. Circule os verbos que aparecem no texto.


2. Pinte os sinais de pontuação que aparecem no texto.
3. Separe em sílabas as palavras cigarra, inverno, melo-
diosamente e tempo e classifique-as quanto ao número de
sílabas.
4. Retire os substantivos do texto que estão no singular e
passe-os para o plural.
5. Observe o verbo “reservaste”. Conjugue-o no presente,
no pretérito perfeito e no futuro do presente.

Fonte: Elaborado pela autora.

78 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Perceba que não é necessário que o aluno leia nem interprete o tex-
to para resolver os exercícios propostos, pois eles são voltados apenas
à identificação de conteúdos gramaticais. Para o aluno obter sucesso
nas atividades, é preciso que ele tenha memorizado os conceitos de
verbo e de substantivo, saiba separar as palavras em sílabas e com-
preenda o que é singular e plural. Esse tipo de atividade não contribuirá
para que ele reflita sobre a linguagem e muito menos aprenda a inter-
pretar e produzir textos.
Glossário
A crítica que se faz a esse tipo de abordagem é que o texto deixa
de ser explorado em seus aspectos discursivos, a favor de um ensino aspectos discursivos:
referem-se ao funcionamento
mecanicista de gramática, focado em nomenclaturas e no reconheci- da linguagem usada para
mento de determinado conteúdo gramatical, sem propor reflexão so- escrever. Por exemplo, quando
bre a linguagem. escrevemos nos deparamos com
várias opções para organizar
Possenti (2000) lembra que os gregos, latinos, portugueses etc. já nosso discurso, conforme a
situação específica de interação
escreviam muito antes de surgir a primeira gramática de suas línguas,
(BRASIL, 1998). Escolhemos
ou seja, são os gramáticos que consultam os escritores para conhece- o gênero textual conforme
rem as regras que estes seguem, e não o contrário. Por essa razão, “não a intenção comunicativa e o
público-alvo do texto, por isso
faz sentido ensinar nomenclaturas a quem não chegou a dominar ha-
precisamos verificar o nível de
bilidades de utilização corrente [...] da língua” (POSSENTI, 2000, p. 55). linguagem usada, o vocabulário
etc. Questões como coesão,
Concordando com essa postura, os Parâmetros Curriculares Nacionais coerência, sequência lógica e
(BRASIL, 1997, p. 28) acrescentam: clareza de ideias também são
aspectos discursivos.
Não se justifica tratar o ensino gramatical desarticulado das
práticas de linguagem. É o caso, por exemplo, da gramática
que, ensinada de forma descontextualizada tornou-se emble-
mática de um conteúdo estritamente escolar, do tipo que só
serve para ir bem na prova e passar de ano – [...] por meio de
exemplificação, exercícios de reconhecimento e memorização
de terminologia. Em função disso, discute-se se há ou não ne-
cessidade de ensinar gramática. Mas essa é uma falsa ques-
tão: a questão verdadeira é o que, para que e como ensiná-la.

Até as propostas de redação eram descontextualizadas, pois


se costumava solicitar a descrição de um objeto qualquer ou a
narração de uma história com tema livre. Assim, os professores
corrigiam principalmente os erros de ortografia nesses textos.

No entanto, segundo Bagno (2002), as novas áreas de estudo da


Linguística – Sociolinguística, Psicolinguística, Análise do Discurso,
Linguística Textual etc. – muito contribuíram para o processo de
renovação no ensino de Língua Portuguesa. Deixou-se de priorizar

A Língua Portuguesa na escola 79


os aspectos morfológicos, fonéticos e sintáticos da palavra e da
frase, em favor de uma visão mais ampla de linguagem, enfatizan-
do a “compreensão dos fenômenos da interação social por meio
da linguagem, da relação entre língua e sociedade, da aquisição da
linguagem pela criança, dos processos envolvidos no ensino formal
da língua, do controle social exercido pelas ideologias vinculadas
no discurso etc.” (BAGNO, 2002, p. 14).

Além disso, os estudos do teórico russo Bakhtin (Figura 1) e de in-


Saiba mais telectuais de diferentes áreas, todos pertencentes a um grupo conhe-
Bakhtin (2000) nos apresenta cido como Círculo de Bakhtin, colaboraram para o avanço dos estudos
o conceito de dialogismo, que é na área da linguagem, entendendo-a como interação entre sujeitos, ao
muito válido quando tratamos
do processo de interação entre construírem enunciados de modo dialógico (BAKHTIN, 2000).
falantes, por meio da lingua-
gem. A ideia de dialogismo Figura 1
Mikhail Bakhtin (1895-1975)
surge da constatação de que
nossos discursos estão sempre

Primitivojumento/Wikimedia Commons
carregados de diferentes vozes,
ou seja, nunca um enunciado
falado por alguém é comple-
tamente novo; ele é, segundo
Bakhtin (2000, p. 316), um “elo
na cadeia de comunicação verbal
de uma dada esfera [...], está
repleto dos ecos e lembranças de
outros enunciados”. Além disso,
sempre construímos nossos
discursos em vista do outro,
tendo nosso interlocutor como
alvo. Por isso, o ato de interação
verbal é sempre dialógico,
histórico e ideológico.

Bakhtin se dedicou a estudar várias áreas relacionadas à linguagem, literatura e arte e ficou
conhecido por sua notável produção em companhia de outros pesquisadores do Círculo de Bakhtin.

Na área da Linguística, esse grupo de estudiosos contribuiu


para o entendimento de que a língua consiste em um processo in-
terativo entre indivíduos que produzem discursos de acordo com o
contexto social, histórico, cultural e ideológico do qual fazem parte
(PINHEIRO, 2009). Passou-se, então, de uma ideia abstrata de lín-
gua para uma concreta, de acordo com Bagno (2002), resumida na
figura a seguir.

80 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Figura 2
Concepções abstrata e concreta de língua

É autônoma,
Baseia-se em um
estudada de
conjunto de regras
modo isolado.
de boa formação,
previamente
Língua determinadas.
em uma
Trata-se de um
concepção
produto pronto
abstrata Reduz-se à norma
e acabado.
culta e à gramática
(da frase isolada)
É estável, e supervaloriza a
invariável e fixa. escrita.

É atividade
sociocognitiva
É possível estudar e histórica; é
sua estrutura processo e
cientificamente. produto.
Língua
em uma Ocorre na
concepção interação humana,
concreta Não pode ser manifestando-se
estudada de modo em textos orais e
Tem aspectos escritos.
autônomo, e sim
estáveis e
nos contextos de
instáveis, é
uso.
variável e
indeterminada.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Bagno, 2002, p. 24-25.

Podemos, portanto, como professoras e professores comprome-


tidos com a aprendizagem de língua materna na escola, com base
em uma visão de língua como atividade concreta, contribuir para o
aprimoramento da competência linguística dos alunos, por meio de
práticas efetivas de uso da linguagem oral e escrita: leitura e inter-
pretação textual, análise e reflexão sobre a língua e produção de
textos. Os exemplos a seguir são de atividades que se aproximam
dessa proposta. O texto-base utilizado para a elaboração é o mesmo
já apresentado (A cigarra e as formigas).

A Língua Portuguesa na escola 81


1. Você já havia lido alguma fábula? Qual?
Ela tem algumas semelhanças com essa
que você leu agora? Quais? Quais as
características das fábulas?
2. Com quem você relacionaria a formiga
hoje? E a cigarra? Por quê?
3. Você considera importante o trabalho da
formiga? E o da cigarra? Por quê? Você
concorda com as formigas ao negar ajuda
à cigarra? Por quê?
4. Identifique, com cores diferentes, o
discurso do narrador, a fala da formiga e a
fala da cigarra. Qual sinal de pontuação foi
usado para marcar as falas das persona-
gens? Depois, escolha uma das falas do
texto e reescreva-a em discurso indireto.
5. O trecho “As formigas lhes disseram”
poderia ser escrito assim: “As formigas
disseram a ela”. Portanto, o termo desta-
cado foi usado para evitar a repetição de
um nome. Qual?

Fonte: Elaborado pela autora com base em Costa-Hübes, 2007, p. 65-76.

Percebe-se que, nessa proposta, o texto é explorado com base no


conhecimento prévio do aluno sobre fábulas. Além disso, há questões
que abordam aspectos gramaticais, mas são contextualizadas e têm
por objetivo fazer com que o aluno reflita sobre aspectos discursivos
necessários à produção de textos, como o uso de diálogos (discurso
direto), o emprego da pontuação adequada, a utilização de pronomes
para garantia da coesão textual etc.

Sendo assim, ensinar língua e ensinar gramática são duas reali-


dades distintas, se considerarmos que a primeira está ancorada em
uma concepção concreta de língua e a segunda em uma concepção
abstrata. Apesar disso, é possível, como vimos nos exemplos apresen-
tados, ensinar língua de modo contextualizado, explorando os textos
em seus contextos de uso e propondo atividades em que a gramática
sirva como ferramenta para o domínio cada vez mais competente da
linguagem em suas diferentes variedades, dadas as inúmeras situações
de interação entre os falantes.

82 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


4.2 Letramento: origem e significado
Vídeo Dando sequência às mudanças que ocorreram após a década de
1980, em relação às práticas de ensino de Língua Portuguesa na escola,
é imprescindível abordar os estudos sobre letramento, que chegaram
ao Brasil no final dessa década.
Curiosidade
O termo letramento surgiu, não somente no Brasil,
Soares (2014)
mas também em outros países, como França, Portugal,
afirma que a palavra
Estados Unidos, praticamente na mesma época, para letramento surgiu na
nomear práticas sociais de leitura e escrita “mais avan- segunda metade da
década de 1980, no
çadas e complexas que as práticas do ler e do escre- discurso de especialistas
ver”, derivadas da aquisição do sistema de escrita, que da área da linguagem.
ocorrem durante a alfabetização (SOARES, 2004, p. 6). Uma das primeiras
ocorrências consta na
Assim, Soares (2017) distingue os conceitos de obra No mundo da
escrita: uma perspectiva
alfabetização e letramento, embora sejam
psicolinguística, de Mary
processos complementares e que não devem ser Kato, de 1986.
compreendidos de maneira isolada. O termo
alfabetização é definido por Soares (2017, p. 16) como “processo de
aquisição do código escrito, das habilidades de leitura e escrita”.
Desse modo, a alfabetização acontece no início da escolarização e
tem, de certa forma, um fim, assim que o sistema de escrita é domi-
nado pelo aprendiz.

O conceito de letramento é mais amplo e vai além da alfabeti-


zação, porque designa um processo de desenvolvimento da língua
oral e escrita. Etimologicamente falando, letramento origina-se da
palavra literacy, do inglês, e significa “estado ou con-
Vídeo
dição que assume aquele que aprende a ler e es-
Para ampliar seus conhe-
crever” (SOARES, 2014, p. 17). Em outras palavras,
cimentos, assista ao vídeo
a autora expõe que letramento é o “estado ou a Alfabetização e Letramento,
publicado pelo canal
condição que adquire um grupo social ou um indi-
Alfaletrar Cenpec. Nele,
víduo como consequência de ter-se apropriado da a professora Magda
Soares trata dos conhe-
escrita” (SOARES, 2014, p. 18).
cimentos essenciais aos
professores que desejam
É importante lembrar que essas duas práticas – alfa-
“alfabetizar letrando”.
betização e letramento – devem ocorrer desde o início
Disponível em: https://www.
da escolarização, visto que os estudantes, além de se youtube.com/watch?v=k5NFX-
apropriarem da tecnologia da escrita, precisam partici- wghLQ8&t=231s. Acesso em: 19
mar. 2020.
par efetivamente de práticas sociais de uso da leitura e

A Língua Portuguesa na escola 83


da escrita. Isso é possível por meio da leitura e produção de textos orais e
escritos que circulam na sociedade, pois, assim, os discentes estarão en-
volvidos em diversas situações de interação, adequando o discurso a cada
uma delas. Nessas interações, é necessário levar em conta a variedade lin-
guística (padrão ou não padrão), o nível de linguagem, a intenção, o tema,
o local e os interlocutores do ato comunicativo.

Um dos aspectos relacionados ao nível da linguagem usada nos


textos orais e escritos é o grau de formalismo, que se refere, segun-
do Halliday, Mcintosh e Strevens (1974), a uma escala de formali-
dade, compreendida como maior cuidado ao usar os recursos da
língua. Bowen (1972 apud TRAVAGLIA, 2006) aponta variantes de
grau, de modo e de formalismo da língua falada e da língua escrita,
como mostra o quadro a seguir.

Quadro 1
Variantes de grau de formalismo em língua falada e escrita

Variedades de modo

Língua falada Língua escrita

Oratório: muito elaborado; usado por especia- Hiperformal: usado em poemas épicos e textos
listas em situações extremamente formais. literários, como os de Machado de Assis.

Formal (deliberativo): previamente preparado;


Formal: linguagem cuidada, na variedade padrão.
Variantes vocabulário rico; distância entre interlocutores.
de grau de
Semiformal: um pouco mais formal que o colo-
formalismo Coloquial: sem planejamento prévio; ocorre nos
quial (na fala); usado em cartas comerciais e textos
diálogos; palavras de uso frequente.
jornalísticos.
Casual (coloquial distenso): conversas descon- Informal: entre familiares e amigos; construções
traídas; pouco cuidado com a pronúncia; uso de simples; formas abreviadas; sentenças fragmenta-
gírias; proximidade entre os falantes. das.

Íntimo (familiar): particular, pessoal; linguagem Pessoal: escritas para uso próprio: bilhete, lista de
afetiva. compras.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Bowen, 1972 apud Travaglia, 2006, p. 53-55.

Os estudos sobre letramento, desde a origem do termo até a


atualidade, continuam ampliando, tendo em vista o avanço tecno-
lógico e os diferentes modos de ler e escrever, que vão além do
suporte papel e da interação face a face. Como a maneira de nos
relacionarmos por meio da linguagem vem sofrendo alterações, os
letramentos também se modificam.

84 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


4.3 Os PCN e o RCN: orientações para as
Vídeo
práticas de linguagem na escola
Com os avanços em relação aos estudos sobre o letramento e a lin-
guagem enquanto processo dialógico e em busca de um ensino que su-
perasse os altos índices de retenção escolar, especialmente na primeira
série (classes de alfabetização) e na quinta série, quando o processo de
aquisição de leitura e escrita deveria estar consolidado, é que surgem os
Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL, 1997).

Os PCN são um documento produzido por vários estudiosos da


área da educação e de áreas específicas dos conhecimentos, distri-
buído pelo Governo Federal aos professores e às escolas no final
da década de 1990. O volume dos PCN de Língua Portuguesa apre-
senta fundamentação teórica coerente com os estudos recentes
sobre linguagem enquanto interação social e atividade discursiva,
letramento e gêneros textuais.

A ideia que norteia todo o documento voltado ao ensino e à apren-


dizagem de Língua Portuguesa é a de que o domínio da língua pelo
indivíduo tem íntima relação com a oportunidade de plena participação
social, porque, por meio desta, o sujeito “se comunica, tem acesso à
informação, expressa e defende pontos de vista, partilha ou constrói
visões de mundo, produz conhecimento” (BRASIL, 1997, p. 21).

Nessa perspectiva, faz-se necessário que as práticas de en-


sino de Língua Portuguesa privilegiem situações em que o estu-
dante leia, interprete e produza textos constantemente, a fim
de adquirir, de modo progressivo, competências necessárias
para interagir plenamente em uma sociedade letrada. Assim, os
PCN (BRASIL, 1997, p. 33) apresentam objetivos gerais de Língua
Portuguesa para o ensino fundamental, resumidos a seguir:

Produzir textos orais e escritos adequados às


situações de comunicação, fazendo uso de diferentes
registros (na variedade padrão e não padrão).

Conhecer e respeitar as variedades


linguísticas da língua oral.

(Continua)

A Língua Portuguesa na escola 85


Compreender e interpretar textos orais
e escritos, reconhecendo a intenção de
quem os produz.

Valorizar a leitura (inclusive a literária) e saber utilizá-la para


diferentes objetivos.

Utilizar a linguagem como instrumento de


aprendizagem.

Utilizar a linguagem para expressar sentimentos e opiniões,


sabendo considerar as ideias dos outros, contrapondo-os
quando necessário.

Analisar criticamente os usos da língua


como veículo de valores e preconceitos.

É possível notar, ao verificar os objetivos propostos pelos PCN,


que o ensino de Língua Portuguesa é centrado no texto oral e es-
crito, de modo a promover o letramento do sujeito, pois valoriza as
práticas sociais de linguagem, tanto a leitura como a escrita. Para
efetivar essa prática, os PCN estabelecem dois eixos para o ensino
de Língua Portuguesa: o primeiro refere-se ao uso da língua e o
segundo à análise e reflexão sobre a língua.

Assim, os PCN (BRASIL, 1997, p. 35) propõem que todas as práticas


de ensino de língua ocorram com base na tríade:

USO

REFLEXÃO USO

86 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Observando esses três elementos, ressaltamos que as práticas Leitura
de linguagem devem ser iniciadas pelo uso da língua. Isso ocorre Conheça os PCN de
Língua Portuguesa
quando apresentamos textos de origem, função e estrutura varia-
para aprofundar seus
das para serem lidos e interpretados pelos estudantes. Durante conhecimentos! Esse
documento foi e ainda é
esse processo (ao ler, falar, escrever), ocorre o que chamamos de
muito importante para a
reflexão sobre a língua (ou análise linguística), ou seja, atividades compreensão das práticas
de ensino e aprendizagem
orais ou escritas em que aspectos discursivos e linguísticos do(s)
de língua centradas na
texto(s) escolhido(s) são explorados. Ao final dessa sequência, vol- leitura e produção de
textos orais e escritos,
ta-se ao uso da língua, que ocorre por meio da produção de textos,
bem como na análise e
isto é, os alunos devem produzir textos falados ou escritos. reflexão linguística.

Destaca-se que esse processo é cíclico e seu objetivo não é determi- Disponível em: http://portal.mec.
gov.br/seb/arquivos/pdf/livro02.
nar o planejamento do professor, mas propor que em todas as aulas de pdf. Acesso em: 19 mar. 2020.
Língua Portuguesa haja uso da língua e reflexão sobre ela.

Por exemplo, na leitura de uma fábula com a turma (uso), o professor


mostra que algumas expressões foram empregadas para garantir a
coesão do texto (reflexão sobre a língua). A reflexão é imprescindível,
mas só isso não basta. É necessário, em uma atividade, por exemplo,
que o aluno faça uso desses recursos para perceber a importância da
coesão textual, seja resolvendo um exercício (uso), seja produzindo um
texto ou reescrevendo trechos de seu próprio texto em que a coesão
ficou comprometida (uso).

Os PCN ainda apresentam os conteúdos a serem trabalhados no


primeiro e no segundo ciclos – que atualmente se referem aos anos
iniciais (primeiro ao quinto ano) do ensino fundamental –, conside-
rados imprescindíveis para o alcance dos objetivos específicos em
cada etapa de ensino.

Além dos PCN voltados ao ensino fundamental, o Ministério da


Educação publicou o Referencial Curricular Nacional para a Educação
Infantil – RCN (BRASIL, 1998), em três volumes: Introdução; Formação
pessoal e social; Conhecimento de mundo. Esse material foi elabora-
do para auxiliar o trabalho educativo com as crianças pequenas, que
frequentam creches ou pré-escolas, uma vez que a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional – LDB 9.394/1996 (BRASIL, 1996) estabele-
ceu a educação infantil como primeira etapa da educação básica.

O volume do RCN que nos interessa no momento é o terceiro, in-


titulado Conhecimento de mundo, pois trata, além de outros temas, da
Linguagem oral e escrita. Essa área é considerada, pelo documento,

A Língua Portuguesa na escola 87


Leitura como eixo básico na educação infantil, “dada sua importância para a
Conheça a LDB, a mais formação do sujeito, para a interação com as outras pessoas, na orien-
importante lei brasilei-
ra no que se refere à tação das ações das crianças, na construção de muitos conhecimentos
educação. Ela organiza e no desenvolvimento do pensamento” (BRASIL, 1998, p. 117).
e estrutura o ensino
escolar, apresentando A educação infantil atende a crianças de 0 a 6 anos, assim, a preo-
concepções, valores
e finalidades para a
cupação inicial diz respeito ao desenvolvimento da linguagem oral, nos
educação brasileira. Além momentos de interação, como a troca de fraldas, durante a alimenta-
disso, garante o acesso
de todos à educação
ção e as brincadeiras. O RCN (BRASIL, 2018) destaca a fala como ativida-
gratuita, estabelecendo de social, que ocorre gradualmente, por meio da conversa do dia a dia,
o dever da União, dos
estados e municípios com
das canções, das brincadeiras, das situações de escuta e das situações
a educação pública. formais, como durante a leitura de textos.
Disponível em: http://www.planal-
A partir dos dois ou três anos de idade, em ambientes letrados, a
to.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm.
Acesso em: 19 mar. 2020. criança se interessará pela função e pelo significado da linguagem,
questionando os escritos que visualiza. Nesse processo, ela pode
“escrever” e “ler”, mesmo sem ainda fazê-lo convencionalmente. Isso é
importante para que a criança crie hipóteses sobre a escrita, que serão
válidas para o posterior processo de alfabetização (BRASIL, 1998).

Assim como nos PCN de Língua Portuguesa, o RCN propõe o


trabalho com a linguagem segundo três eixos: oralidade, leitura e
escrita, objetivando promover capacidades nas crianças com base
em orientações didáticas. O quadro a seguir apresenta essas capa-
cidades e orientações.

Quadro 2
Práticas de linguagem na educação infantil

Capacidades a serem desenvolvidas


Orientações didáticas ao professor
pela criança
- Ouvir a criança, atribuir sentido à sua fala.
- Responder/comentar com coerência o que a criança diz.
Utilizar a linguagem oral em diferentes situa-
ções, expressar seus sentimentos e desejos, - Ressignificar a fala da criança.
contar suas experiências, ouvir as dos outros, - Conversar constantemente, cantar, ler/contar histórias.
fazer e responder perguntas.
- Permitir que a criança busque materiais, dê recados, peça informações.
- Planejar rodas de conversa para debater diferentes assuntos.
- Dispor de acervo variado de materiais de leitura.
- Conceder empréstimo de livros.
- Ler/contar histórias, declamar poesias, cantar.
Demonstrar interesse pela leitura de histórias
- Promover situações em que a criança reconheça particularidades
e escolher livros para apreciar.
de diferentes textos, como narrar, instruir, explicar etc.
- Oferecer textos que possam ser memorizados pela criança.
- Permitir que a criança reconte as histórias que ouve.
(Continua)

88 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Capacidades a serem desenvolvidas
Orientações didáticas ao professor
pela criança
- Explorar quadrinhas, parlendas, canções, trava-línguas, poemas, de
modo a estabelecer relação entre o falado e o escrito.
Familiarizar-se gradativamente pela escri-
- Apresentar rótulos, embalagens, folhetos, propagandas para a crian-
ta, no contato com materiais de leitura, e
ça descobrir o sentido do texto com base em elementos não verbais.
interessar-se por escrever textos, mesmo que
- Proporcionar situações em que a criança possa ditar textos (oral-
de modo não convencional.
mente) para que o professor os registre por escrito.
- Possibilitar a prática de escrita espontânea da criança.
- Escrever o nome da criança em situações que se fazem necessárias,
Reconhecer seu nome escrito.
como em seus pertences, seus crachás e suas atividades.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Brasil, 1998, p. 131, 133, 135, 137, 138, 139, 142.

Esse encaminhamento pedagógico, proposto pelo RCN, revela


que o aprendizado da linguagem oral ocorre contextualizado, na
interação social, quando as crianças atribuem sentido à fala do
outro e à sua própria. Portanto, quanto mais intensos e diversos
forem os momentos de interação entre as crianças e o professor,
“mais elas poderão desenvolver suas capacidades comunicativas
de maneira significativa” (BRASIL, 1998, p. 121).

Em relação à linguagem escrita, não é objetivo da educação infantil


alfabetizar, mas, sim, propiciar à criança um ambiente alfabetizador, de
contato contínuo com situações em que a escrita seja necessária, bem
como de valorização da leitura como fonte de conhecimento e de pra-
zer. Assim, mesmo sem ainda ter se apropriado convencionalmente do
sistema de escrita, as crianças serão capazes de participar de práticas
sociais que promovem o letramento.

Além dos PCN para o ensino fundamental e o RCN para a edu-


cação infantil, há outro documento, mais recente, que serve como
base para a elaboração de currículos em todo o Brasil. Vamos à
próxima seção para conhecê-lo.

4.4 BNCC: o componente curricular


Língua Portuguesa
Vídeo A Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2018) foi elabo-
rada conforme exigência feita pela LDB de que os currículos da educa-
ção básica deveriam ter “base nacional comum, a ser complementada,
em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma

A Língua Portuguesa na escola 89


Vídeo parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da so-
Assista à série de vídeos ciedade, da cultura, da economia e dos educandos” (BRASIL, 1996).
Base em 1 minuto, pu-
blicada no canal Nova Assim, a Base foi construída por especialistas das áreas do co-
Escola. São oito vídeos
curtos que explicam o
nhecimento e debatida com a sociedade e os educadores, visando
processo de elaboração e garantir o conjunto de aprendizagens fundamentais aos estudan-
implementação da BNCC
e sua importância para a
tes brasileiros e “seu desenvolvimento integral por meio das dez
educação nacional. competências gerais para a Educação Básica” (BRASIL, 2018, p. 5).
Disponível em: https://www. O documento contempla as etapas da educação infantil, do ensino
youtube.com/watch?v=W2fdWsV-
Gzog&list=PLfarCWFbZ2Yacn6Qh-
fundamental e do ensino médio.
qGM2YGLkxmuUDmDk. Acesso em:
Para a educação infantil, a BNCC orienta a organização curricu-
19 mar. 2020.
lar conforme os campos de experiência. Denomina-se Escuta, pen-
samento, fala e imaginação o campo de experiência que diz respeito
ao desenvolvimento da linguagem.

Os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento são organizados


em três etapas: bebês (de 0 a 1 ano e meio), crianças bem pequenas
(1 ano e 7 meses a 3 anos e 11 meses) e crianças pequenas (4 anos a 5
anos e 11 meses). Apresentamos, de forma resumida, esses objetivos
a fim de se ter uma visão geral de como o trabalho com linguagem é
abordado na BNCC para a educação infantil.

Figura 3
Objetivos de aprendizagem e desenvolvimento
da linguagem na educação infantil

Bebês Crianças bem Crianças


pequenas pequenas

Olga1818/Shutterstock

Reconhecer o seu nome Dialogar e expressar desejos, Expressar suas ideias por
e o das pessoas com sentimentos, opiniões. desenhos, escrita espontânea,
quem convive. fotos etc.

(Continua)

90 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Reconhecer rimas, identificar
Interessar-se por poemas, e criar sons; diferenciar escrita
de ilustração, acompanhar a Criar brincadeiras cantadas,
músicas, histórias lidas e
direção da leitura; formular e poemas, canções, ritmos;
contadas; observar ilustrações
responder a perguntas sobre escolher e folhear livros, tentar
dos livros; reconhecer elementos
a história, identificar cenários, identificar palavras conhecidas;
das ilustrações das histórias.
personagens e acontecimentos. recontar histórias ouvidas.

Imitar entonação e gestos


Recontar histórias para o
feitos pelo adulto ao ler Relatar experiências, histórias,
professor escrevê-las; levantar
e cantar; comunicar-se fatos, filmes etc.; criar e contar
hipóteses sobre gêneros
por gestos, movimentos, histórias com base em imagens
textuais; levantar hipóteses
fala; conhecer e manipular ou temas sugeridos; desenhar,
sobre a escrita e realizar escrita
instrumentos e suportes de traçar letras e sinais gráficos.
espontânea.
escrita.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Brasil, 2018, p. 49-50.

Para o ensino fundamental, a BNCC apresenta áreas de conhe-


cimento que abordam componentes curriculares específicos. Por
exemplo, a área de Linguagens, nos anos iniciais do ensino funda-
mental, é composta dos componentes curriculares Arte, Educação
Física e Língua Portuguesa.

Segundo a BNCC (BRASIL, 2018), em relação ao componente


Língua Portuguesa, o referencial teórico dialoga com o conteú-
do das orientações curriculares produzidas nas últimas déca-
das, ampliando as discussões consoantes às pesquisas recentes
na área de Linguagens, principalmente no tocante ao uso das Glossário
Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDICs). semioses: na BNCC
(BRASIL, 2018), são entendidas
Assim como os PCN, a BNCC assume uma postura enunciativo-discursiva como um tipo de linguagem
de linguagem, tomando o texto como objeto de ensino nas aulas de que vai além da verbal (falada e
escrita). Com o advento das TDICs,
Língua Portuguesa, relacionado a seus contextos de produção e visando
passou-se a considerar o texto
ao desenvolvimento de habilidades por meio “do uso significativo da como um elemento híbrido, ou
seja, formado por escrita, sons e
linguagem, em atividades de leitura, escuta e produção de textos em várias
imagens, materializados no papel,
mídias e semioses” (BRASIL, 2018, p. 67). A BNCC afirma, ainda, que: na tela, nas mensagens de áudio
etc. Assim, quando tratamos
ao componente Língua Portuguesa cabe, então, proporcionar
de textos, devemos lembrar
aos estudantes experiências que contribuam para a amplia- que não são formados apenas
ção dos letramentos, de forma a possibilitar a participação por elementos verbais, mas por
significativa e crítica nas diversas práticas sociais permea- outras semioses, por exemplo, um
vídeo, que pode conter imagens,
das/constituídas pela oralidade, pela escrita e por outras lin- movimento, sons, linguagem
guagens. (BRASIL, 2018, p. 67–68) corporal, escrita.

A Língua Portuguesa na escola 91


De acordo com a BNCC (BRASIL, 2018, p. 71), as práticas de lingua-
gem para o ensino fundamental são organizadas pelos seguintes eixos:

mayrum/Shutterstock
Práticas com ou sem
contato face a face.

Oralidade De texto escrito,


imagens estáticas
ou em movimento
Leitura/escuta e som.
Eixos
organizadores
Produção
Escrita e
multissemiótica.
Análise linguística
e semiótica

Sistema de escrita/
Envolve norma-padrão.
conhecimentos
Textuais, discursivos,
linguísticos modos de organização,
elementos de outras
semioses.

Além da organização por eixos, a BNCC (BRASIL, 2018) propõe


outra categoria organizadora do currículo, chamada de campos de
Importante atuação, de modo articulado à leitura/escuta, oralidade, produção
Considerando a cultura digital, e análise linguística/semiótica. Nos anos iniciais do ensino funda-
os estudiosos falam, atualmente,
mental, os campos de atuação são os seguintes: campo da vida
em letramentos, no plural,
ou em multiletramentos, pois cotidiana, campo artístico-literário, campo das práticas de es-
as práticas sociais de uso da tudo e pesquisa e campo da vida pública.
linguagem não se limitam à
leitura e à escrita do texto verbal. Esses eixos, organizados de modo progressivo (dos mais próximos
Há inúmeras possibilidades de
leitura nos meios digitais (na das crianças aos mais institucionalizados), além de contemplarem usos
tela), que se convertem em diferentes da linguagem, contribuem para a definição dos objetos de
multimodalidades: verbal, visual,
conhecimento (conteúdos) e das habilidades (objetivos) a serem de-
áudio, gestual. Assim, os textos
são multissemióticos, isto é, senvolvidos em cada etapa da escolarização. Observe, no quadro a se-
misturam várias semioses.
guir, um exemplo dessa proposta.

92 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Quadro 3
Proposta de organização curricular para o ensino de Língua Portuguesa

Campos do Práticas de Objetos do


Ano Habilidade
conhecimento linguagem conhecimento
Ler e compreender (com
ajuda ou sem) cantigas,
Leitura/escuta letras de canções etc.,
Compreensão em
2º Vida cotidiana (compartilhada e considerando a situação
leitura
autônoma) comunicativa e o tema do
texto, relacionando a for-
ma à intencionalidade.
Conhecimento do al- Localizar palavras no di-
Todos os campos de Análise linguística/ fabeto do português cionário para esclarecer

atuação semiótica do Brasil/ordem alfa- significados, de acordo
bética/polissemia com o contexto.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Brasil, 2018, p. 102-103, p. 114-115.

A BNCC (BRASIL, 2018) valoriza as experiências com a língua desde


a educação infantil e propõe o aprofundamento dessas práticas no en-
sino fundamental, com vistas a ampliar o letramento, relacionado a es-
tratégias de leitura e de escrita, sempre de modo progressivo, cada vez
mais complexas, com o passar dos anos escolares. Além disso, atribui
importância à análise do funcionamento da língua, primeiramente, na
sistematização da escrita, durante a alfabetização, e depois, nos anos
seguintes, à observação das regularidades da língua.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Refletir sobre o encaminhamento do trabalho pedagógico com o compo-
nente curricular Língua Portuguesa, na escola, exige um olhar crítico e inovador.
É necessário repensar antigas práticas voltadas exclusivamente para o en-
sino da gramática, em que a memorização de regras da língua padrão ou a
cópia de palavras, frases ou textos serviam para dominar a ortografia correta.
As orientações para o ensino e a aprendizagem atual de Língua Portuguesa,
dadas pelos documentos nacionais que encaminham a educação escolar no
país, são bem mais amplas e complexas do que há algumas décadas.
Ensinar e aprender língua na escola sob uma perspectiva
discursivo-enunciativa é realmente um desafio, porque exige que deixe-
mos de reproduzir antigos modelos, em que a língua era considerada ob-
jeto abstrato, distante de nós, como uma entidade praticamente inatingível
e que somente os grandes escritores ou gramáticos conseguiam dominar.

A Língua Portuguesa na escola 93


Assim como a língua é dinâmica, variável e histórica, as práticas esco-
lares também são! Ensinar e aprender língua, na atualidade, exige estudo
e coragem para acompanhar as mudanças e fazer com que elas cheguem
até a sala de aula.

ATIVIDADES
1. A alfabetização e o letramento são práticas complementares, no
entanto, possuem conceitos distintos. Discorra sobre cada um
desses termos.

2. Os PCN propõem que as práticas com a linguagem na escola


ocorram a partir da tríade USO REFLEXÃO USO. Explique
como ocorre esse trabalho.

3. Como a BNCC orienta a organização da prática pedagógica de


ensino e aprendizagem da linguagem na educação infantil e no
ensino fundamental?

REFERÊNCIAS
BAGNO, M. Língua materna: letramento, variação e ensino. São Paulo: Parábola
Editorial, 2002.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2018. Disponível
em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=79601-
anexo-texto-bncc-reexportado-pdf-2&category_slug=dezembro-2017-pdf&Itemid=30192.
Acesso em: 19 mar. 2020.
BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Legislativo,
Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.
htm. Acesso em: 19 mar. 2020.
BRASIL. Referencial curricular para a educação infantil. Brasília, DF: Ministério da Educação e
do Desporto; Secretaria de Educação Fundamental, 1998. v. 3. Disponível em: http://portal.
mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/volume3.pdf. Acesso em: 19 mar. 2020.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua
Portuguesa – 1º e 2º ciclos. Brasília, DF: MEC/SEF, 1997. Disponível em: http://portal.mec.
gov.br/seb/arquivos/pdf/livro02.pdf. Acesso em: 19 mar. 2020.
COSTA-HÜBES, T. da C. (coord.) Sequência Didática: uma proposta para o ensino da Língua
Portuguesa nas séries iniciais. Caderno pedagógico 1. Associação dos Municípios do
Estado do Paraná; Departamento de Educação. Cascavel, PR: Assoeste, 2007.
ESOPO. Fábulas completas. Trad. de Neide Smolka. São Paulo: Moderna, 1994.
HALLIDAY, M. K. A; MCINTOSH, A.; STREVENS, P. As ciências linguísticas e o ensino de línguas.
Petrópolis: Vozes, 1974.
LOBATO, J. B. M. Emília no país da gramática. 36. ed. São Paulo: Brasiliense, 1992.

94 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


PINHEIRO, T. Mikhail Bakhtin, o filósofo do diálogo. Nova Escola, 1 ago. 2009.
Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/1621/mikhail-bakhtin-o-filosofo-
do-dialogo. Acesso em: 19 mar. 2020.
POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola. 5. reimp. Campinas, SP: Mercado
de Letras, 2000.
SOARES, M. Alfabetização e letramento. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2017.
SOARES, M. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação,
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SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 3. ed. 2. reimp. Belo Horizonte:
Autêntica, 2014.
TRAVAGLIA, L. C. A variação linguística e o ensino de língua materna. In: TRAVAGLIA,
L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática. 11. ed. São
Paulo: Cortez, 2006.

A Língua Portuguesa na escola 95


5
Habilidades linguísticas:
ouvir/falar, ler/escrever
Os recentes estudos na área de Língua Portuguesa – assim
como os documentos atuais que norteiam o ensino e a aprendi-
zagem de língua materna na escola – elegem o texto como obje-
to central das práticas pedagógicas. Essa escolha não é aleatória,
visto que nossas interações sociais ocorrem sempre por meio de
enunciados concretos, situados historicamente, carregados de in-
tenções, de acordo com a situação de comunicação específica e os
interlocutores nela envolvidos.
Desse modo, podemos questionar: qual o conceito de texto?
Que textos devem ser oferecidos aos estudantes? Como podem
ser explorados? Trabalhar com o texto em sala de aula significa
proporcionar o desenvolvimento de quais habilidades?
Primeiramente, vamos explorar o conceito de texto. Você acha
que texto deve ser compreendido com base em seu tamanho? O
modo de apresentação define o que é texto?
Quando apresentamos às crianças uma imagem, uma obra de
arte, por exemplo, e pedimos para que a leiam, elas costumam
estranhar, pois pensam que só podemos ler textos escritos; ou
quando dizemos que um grito de “Socorro!!!” é um texto, elas per-
guntam: “mas não é só uma palavra?”. Podemos perceber, então,
que não medimos o texto por sua extensão e que ele vai muito
além de palavras escritas.
Textos são enunciados que têm significado e coerência, de
acordo com o contexto em que são usados. Um “bom dia” é um
texto, se falado por alguém em uma situação em que isso faça
sentido, ao passo que uma palavra isolada, como jabuticaba, dita
pelo professor ao entrar em uma classe logo pela manhã, irá soar
estranho e não será considerada um texto.

96 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Além disso, devemos lembrar que os textos podem ser ver-
bais (orais e escritos) ou não verbais (imagens, gestos, sinais etc.).
Atualmente, falamos em multissemioses porque os textos são for-
mados por escritas, sons e imagens estáticas ou em movimento.
Assim, trabalhar com o texto em sala de aula, em toda a edu-
cação básica, significa explorar as habilidades de ouvir, falar, ler
e escrever. Ganha espaço, também, nesse processo, o que cha-
mamos de análise linguística/semiótica ou reflexão sobre a
língua, momento precioso que perpassa o ensino e a aprendiza-
gem das quatro habilidades linguísticas citadas. Vamos aprofundar
o estudo sobre essas habilidades?

5.1 Oralidade e escuta


Vídeo Dentre as habilidades linguísticas que formam os eixos das práticas
de linguagem na escola, a oralidade talvez seja a menos abordada e a
mais difícil de ser compreendida, pelo fato de a escola e de a sociedade,
como um todo, atribuírem maior valor à escrita.

É preciso destacar que o termo oralidade está associado à palavra escu-


ta, uma vez que todo texto é produzido tendo em vista um interlocutor.
Assim, quando tratamos da fala, abordamos também a escuta, que não
deve ser passiva, pois o interlocutor tem, como afirma Bakhtin (2000), uma
atitude responsiva ativa, compreendendo ou não, concordando, discor-
dando, completando e adaptando o discurso daquele que fala.
Niwat singsamarn/Shutterstock

Habilidades linguísticas: ouvir/falar, ler/escrever 97


Mesmo estando presente nas salas de aula, como afirmam Dolz,
Schneuwly e Haller (2004), a linguagem oral não é ensinada, a não
ser por acaso, sem muito planejamento. Os autores justificam o tra-
balho sistemático com o texto oral na escola porque acreditam que
este é tratado de modo mais evidente, como objeto de ensino, no
início da vida escolar e na universidade. Na educação infantil, a inte-
ração ocorre, prioritariamente, por meio da fala; já no ensino supe-
rior, o uso da palavra em público é muito cobrado dos acadêmicos.
Assim, o questionamento é: como valorizar a oralidade nos níveis de
ensino que ficam entre essas duas pontas?

Leal, Brandão e Lima (2012) sugerem definir objetivos didáticos re-


ferentes a quatro dimensões que envolvem a linguagem oral, resumi-
dos no quadro a seguir.

Quadro 1
Dimensões da linguagem oral, objetivos e sugestões de trabalho

Dimensões da
Objetivos/justificativa da abordagem Sugestões de trabalho
linguagem oral
• Pesquisa, na comunidade, de recei-
• A linguagem oral é fundamental na ma- tas culinárias, contos de assombra-
Valorização de tex- nutenção das expressões culturais. ção, brincadeiras, receitas de remé-
tos de tradição oral • Por meio da fala, há transmissão de co- dios caseiros etc.
nhecimentos. • Trabalho com cantigas, parlendas,
trava-línguas etc.
• Desenvolver a fluência da leitura e de
habilidades típicas da comunicação • Leitura em voz alta, recitação de
Oralização do texto
oral, como altura de voz, velocidade, poemas, dramatização de textos,
escrito
pausas, atenção dos ouvintes, uso de teatro, jornal falado (TV, rádio) etc.
gestos, postura, olhar etc.
• Realizar descrições de diferentes for-
mas dialetais e refletir sobre os fatores
responsáveis por essas diferenças.
• Comparar textos orais e escritos,
• Combater o preconceito linguístico. como instruções orais e escritas de
• Compreender que a língua padrão não jogos, contos orais e escritos, recla-
Variação linguística e é a única forma correta de uso da lin- mações orais e cartas de reclama-
relações entre fala e guagem. ção etc.
escrita • Perceber que fala e escrita são impor- • Propor retextualizações, como pro-
tantes e que a primeira também é regi- duzir entrevistas escritas com base
da por regularidades. no registro oral.
• Refletir sobre a utilização de textos
escritos como apoio ao oral; por
exemplo: notas para um debate,
slides para um seminário etc.
(Continua)

98 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Dimensões da
Objetivos/justificativa da abordagem Sugestões de trabalho
linguagem oral
• Estudar e produzir textos orais em ativi-
• Organizar práticas em que haja
dades autênticas.
contato com situações de uso pú-
• Desenvolver habilidades próprias dos blico da linguagem, levando em
Produção e com- gêneros orais, como respeito à fala do conta a situação de produção.
preensão de gêne- outro e escuta atenta; monitoramento
• Propor a produção de gêneros
ros textuais orais do tempo de fala; forma composicional
orais mais complexos, que exijam
de gêneros mais formais (seminário, no-
maior formalidade de linguagem e
tícia, debate regrado); nível de formali-
planejamento.
dade e relação entre os falantes.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Leal; Brandão; Lima, 2012, p. 16-21. Glossário
Os PCN (BRASIL, 1997), ao abordarem a linguagem oral, expõem gêneros textuais: são
qual tipo de fala cabe à escola ensinar, visto que as crianças a apren- manifestações orais, escritas
ou multissemióticas que se
dem em seu ambiente familiar, mesmo as que frequentam muito cedo
materializam como textos
a escola. Assim, o documento aponta a necessidade de considerar as nas práticas sociais, nas mais
variedades linguísticas e combater o preconceito linguístico, já que não variadas formas, como contos,
receitas, conversas, romances,
há uma única forma correta de falar. É importante “saber qual forma
bulas, bilhetes, mensagens via
de fala utilizar, considerando as características do contexto de comuni- celular, e-mail, atestados, rótu-
cação, ou seja, saber adequar o registro às diferentes situações comu- los, anúncios, artigos de opinião,
telefonemas, seminários, his-
nicativas” (BRASIL, 1997, p. 26). Vejamos um exemplo que poderia ser tórias em quadrinhos, manuais
trabalhado em uma turma de 5º ano do ensino fundamental. de instrução, declarações, atas,
resenhas, textos dramáticos,
Figura 1 cartas, podcasts, planos de aula,
Situação comunicativa de produção de texto oral poemas etc.

Para atingir o propósito


comunicativo, devo considerar:

• qual é o produto a ser anunciado,


Intenção/propósito suas características, os benefícios
comunicativo oferecidos, os seus diferenciais frente
aos concorrentes e por que as pessoas
• Convencer o público- devem comprá-lo;
-alvo a consumir • o público-alvo para qual o anúncio
• Anúncio publicitário publicitário será produzido (adultos,
determinado produto/
(vídeo ou áudio) adolescentes, crianças, idosos, homens,
serviço.
mulheres etc.);
• o nível de linguagem e os recursos que
Texto oral devem ser usados;
• em que suporte (TV, rádio, internet) o
texto será publicado (ou irá circular);
• as características composicionais do
gênero (a estrutura dos anúncios
publicitários).
Fonte: Elaborada pela autora.

Habilidades linguísticas: ouvir/falar, ler/escrever 99


Nesse exemplo, ao considerar a produção de um texto oral, como é
o caso de um anúncio publicitário em áudio ou em vídeo, vinculado a
uma propaganda na TV, no rádio ou na internet, é preciso observar os
critérios apresentados para orientar os estudantes a refletirem sobre
qual nível de linguagem oral é mais adequado. Isso vai depender do
produto a ser anunciado, do público-alvo e da intenção. Por exemplo, o
anúncio de um brinquedo será diferente, em vários aspectos, do anún-
cio de um xampu masculino anticaspas.
Ao vivenciar diferentes situações de uso da linguagem oral, as crian-
ças irão aprender que os sujeitos na sociedade, como políticos, repór-
teres, radialistas, feirantes, religiosos, cientistas, alunos, professores
etc., “utilizam diferentes registros em razão das também diferentes ins-
tâncias nas quais essa prática se realiza” (BRASIL, 1997, p. 27).
Como a fala é a modalidade da língua aprendida em casa, cabe à
escola promover o acesso dos alunos aos textos orais mais formais,
que exijam maior planejamento, como “entrevistas, debates, seminá-
rios, diálogos com autoridades, dramatizações” etc. (BRASIL, 1997, p.
27), sem esquecer que devem se aproximar o máximo de situações
reais de uso da língua. Isso quer dizer que devem ir além da atividade
que serve apenas para o professor atribuir nota; devem, pelo contrário,
configurar-se como práticas efetivas de letramento.
Na BNCC, a oralidade é considerada um dos eixos que compõe as
práticas de linguagem. Pode ocorrer com ou sem contato face a face,
por exemplo, em “webconferência, mensagem gravada, spot de campa-
nha, jingle, seminário, debate, programa de rádio, entrevista, declama-
ção de poemas [...], peça teatral, [...] canções, playlist [...], vlog de game,
contação de histórias, [...] podcasts, vídeos” etc. (BRASIL, 2018, p. 78-79).
De modo semelhante aos PCN (BRASIL, 1997) e às quatro dimensões
da linguagem oral, propostas por Leal, Brandão e Lima (2012), a BNCC
(BRASIL, 2018, p. 79) apresenta o tratamento das práticas orais, que
compreende:

Compreensão
dos efeitos
de sentidos
provocados
Condições de
Compreensão Relação entre Produção de pelos usos
produção dos
de textos orais fala e escrita textos orais de recursos
textos orais
linguísticos e
multissemióticos
em textos orais

100 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Desse modo, a BNCC enfatiza a reflexão sobre os diferentes Vídeo
contextos sociais em que os textos orais são produzidos e as diferen- Assista aos vídeos da
série Fala e Escrita (partes
ças linguísticas e semióticas que cada gênero oral apresenta. Também 1, 2 e 3), publicados pelo
aponta para a necessidade de que os estudantes pratiquem a com- canal Ceelufpe. Neles, o
professor Luiz Antônio
preensão e a produção de textos orais, considerando situações de inte- Marcuschi e colaborado-
ração social específicas e efeitos de sentido, como “escolhas de volume, res falam sobre a impor-
tância da oralidade em
timbre, intensidade, pausas, ritmo, efeitos sonoros, sincronização, nossa sociedade e como
expressividade, gestualidade” (BRASIL, 2018, p. 79). ela pode ser abordada na
escola.
As habilidades de falar e ouvir, portanto, configuram-se como Disponíveis em: https://www.you-
objetos de ensino e aprendizagem de língua materna na escola, con- tube.com/watch?v=XOzoVHyiDew;
https://www.youtube.com/
forme apontam os estudos recentes sobre práticas de linguagem e os watch?v=6y9xK-9bbcw;
documentos que norteiam a educação nacional. Se falamos e ouvimos https://www.youtube.com/
watch?v=UqSfGyR1ERA.
muito mais do que lemos e escrevemos, em nosso dia a dia, o trabalho Acesso em: 13 abr. 2020.
com a oralidade não pode ser deixado em segundo plano nas ativi-
dades escolares; pelo contrário, deve ter tanta importância quanto as
práticas de leitura e escrita, que serão abordadas nas próximas seções.

5.2 Leitura
Vídeo Das funções que a escola tem na condição de promotora de conhe-
cimentos, o ensino da leitura talvez seja um de seus compromissos
mais necessários e, ao mesmo tempo, de difícil concretização. Não nos
referimos apenas à aprendizagem da decodificação, ou seja, transfor-
mar letras em sons, que também é um processo complexo, mas sobre-
tudo à leitura como prática permanente, na escola e fora dela.

No senso comum, costumamos ouvir que leitura é sinônimo de


viagem, de prazer, de encontro pessoal, de cultura; mas sabemos
que, para alguém ler de forma autônoma e crítica, há um longo cami-
nho a ser seguido e que a leitura é, antes de tudo, uma atividade que
exige esforço e persistência.
Yuganov Konstantin/Shutterstock

Habilidades linguísticas: ouvir/falar, ler/escrever 101


Essa associação, muitas vezes equivocada, entre leitura e prazer,
ocorre por desconhecermos as diferentes funções da leitura na socieda-
de e os materiais de leitura distintos que temos à nossa disposição. Seria
estranho imaginar que, ao buscar uma receita para preparar um bolo,
encontraremos um texto divertido ou que nos emocione. Do mesmo
modo, quando lemos um poema, não esperamos aprender algum con-
teúdo, porém nos aproximamos de uma função estética, de apreciação
daquilo que é belo e que pode despertar algum tipo de emoção.

Assim, algumas autoras tratam de diferentes objetivos de leitura,


pois sempre lemos por alguma razão ou para satisfazer alguma ne-
cessidade. No quadro a seguir são apresentados de maneira resumida
alguns dos objetivos de leitura.

Quadro 2
Objetivos de leitura

Finalidade do Gêneros textuais e suportes dos


Objetivo de quem produz o texto
texto textos
Textos literários (poemas, romances, con-
tos etc.), histórias em quadrinhos, piadas,
Entreter Diversão, prazer, devaneio.
crônicas, revistas de variedades, obras de
arte, memes etc.
Procura de informações específicas ou
Jornais (notícias, reportagens etc.), ma-
de fatos, leitura de instruções (cozinhar,
Informar nuais, receitas, textos expositivos, verbe-
jogar, montar), confirmar ou refutar um
tes, dicionários, enciclopédias etc.
conhecimento prévio etc.
Convencimento do leitor para aderir
uma ideia, comprar um produto, votar Anúncios publicitários, propagandas, tex-
Persuadir em um candidato, curtir ou comparti- tos variados que visam ao convencimento
lhar uma postagem, deixar um hábito sobre uma ideia etc.
etc.
Expressar opinião Artigos de opinião, posts em redes sociais,
Exposição de opiniões e ideias
ou ideia editorial, carta do leitor etc.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Costa, 2007, p. 25-26; Solé, 1998, p. 22; Lerner, 2002, p. 80.

Independentemente dos objetivos que cada tipo de leitura procure


cumprir, tanto em relação a quem produz o texto quanto a quem o
recebe, esta é um processo de interação entre leitor e texto, conforme
Solé (1998). Nessa perspectiva, o leitor constrói o significado do tex-
to. Ainda que o texto possua sentido ou significado quando o autor o
produziu, é o leitor quem lhe atribuirá sentido no momento da leitura.

102 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Souza e Girotto (2011, p. 9), apoiadas no pensamento de Bakhtin e
de seus seguidores, entendem o ato de ler como:
um processo discursivo em que os sujeitos produtores de sen-
tido, leitor e autor, são ambos ideologicamente constituídos e
sócio-historicamente determinados. A construção dos sentidos
é influenciada por esses elementos constitutivos. O texto, nessa
perspectiva, é considerado um conjunto de signos “amorfos”,
isto é, seu sentido só é construído na situação de enunciação,
de leitura e não possui significado anterior a ela. Dessa forma,
deixa o texto de ser visto como receptáculo fiel do sentido que
pode ser controlado pelo sujeito produtor. Isso não significa que
qualquer leitura será uma leitura aceita para um texto, já que se
entende que a regularidade de um texto e sua intercompreensão
são concebíveis porque existem convenções anônimas e sociais
pautadas em consensos que tornam possíveis pontos comuns
nos textos resultantes de diferentes processos de leitura.

O processo de atribuição de sentido no ato da leitura dependerá


de alguns fatores e vários estudiosos da área os expõem. São eles: co-
nhecimento de mundo, conhecimento de diferentes tipos de texto e
conhecimento em diversas áreas.

O conhecimento de mundo se refere às informações e aos conhe-


cimentos que adquirimos por meio de experiências na sociedade, na
família, nos lugares etc. As crianças têm histórias de vida diferentes e
isso pode influenciar sua compreensão leitora (SOUZA, 2019).

O segundo tipo de conhecimento, conforme Souza (2019), diz res-


peito a conhecer a organização de diferentes tipos de textos. Uma
criança que ouviu em casa, desde pequena, histórias para dormir tem
conhecimentos sobre o que é uma narrativa. Da mesma forma, quan-
do ajuda a mãe a fazer uma lista de compras ou observa o irmão ler
um manual de instruções para montar um brinquedo, sabe distinguir a
função de cada um desses textos. Quando a criança passa a frequentar
a escola, entrará em contato com outros tipos de texto, como os infor-
mativos, que talvez não sejam tão familiares a ela.

O conhecimento em diversas áreas, como nas disciplinas de


História, Ciências, Geografia etc., normalmente advém do ensino for-
mal e é importante para o desenvolvimento da compreensão leitora,
principalmente dos textos informativos, segundo Souza (2019).

Habilidades linguísticas: ouvir/falar, ler/escrever 103


Artigo

http://revistaalabe.com/index/alabe/article/viewFile/87/61

Além dos fatores responsáveis pelo aprendizado da leitura, há o que os


estudiosos costumam chamar de estratégias de leitura, que ajudam o leitor
a compreender melhor os textos. Esse processo de compreensão textual
depende, segundo Souza (2019), do conhecimento prévio e das experiências
do leitor, das características do texto a ser lido, do contexto e dos objetivos da
leitura e das estratégias aplicadas a ela. A autora, apoiada em uma metodolo-
gia norte-americana, com origens nos estudos sobre metacognição, apresenta
sete estratégias de leitura: conhecimento prévio, conexões, inferência,
visualização, perguntas ao texto, sumarização e síntese. Para aprofundar seus
conhecimentos sobre essas estratégias, leia o artigo Estratégias de leitura: uma
alternativa para o início da educação literária, de Renata Junqueira de Souza e
Cyntia Girotto, publicado na Revista Científica Álabe, em 2011.

Acesso em: 13 abr. 2020.

Assim, ao propor tarefas de leitura em sala de aula, é necessário


que esses conhecimentos sejam levados em conta, de modo a ampliar
a compreensão leitora dos estudantes. Os textos oferecidos a eles de-
vem, também, ser diversificados, a fim de atender aos diferentes obje-
tivos de leitura. Para isso, é necessário que, na escola, haja, segundo os
PCN (BRASIL, 1997, p. 44-47):
leitura diária (silenciosa, individual, em grupos, em voz alta, cole-
tiva, feita pelo professor etc.);
biblioteca com acervo diversificado para consulta e empréstimo;
materiais de leitura em sala, como jornais, livros, revistas, gibis,
e acesso à internet;
momentos de leitura livre;
projetos de leitura desenvolvidos entre classes, com a escola
toda, com os pais, na comunidade etc.;
atividades permanentes de leitura, como “hora da história”, “au-
tor do mês”, “poesia do mês”, “partilha de leituras” etc.;
leitura feita pelo professor.

A BNCC (BRASIL, 2018) acrescenta, entre outros encaminhamentos


próprios do eixo leitura, a necessidade de desenvolver estratégias e
procedimentos antes e durante a leitura. Nas atividades anteriores à
leitura, é preciso fazer com que os alunos estabeleçam expectativas
em relação ao texto, apoiando-se nos conhecimentos prévios que têm
sobre o gênero textual, o tema, o título, a estrutura, a capa do livro etc.

104 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Durante a leitura, os principais objetivos a serem desenvolvidos
em relação ao texto são: localizar informações; inferir informações
implícitas e o significado de expressões desconhecidas; apreender o
sentido global; reconhecer o tema; articular o verbal com outras lin-
guagens; “buscar, selecionar, tratar, analisar e usar informações” etc.
(BRASIL, 2018, p. 74).

Vamos ver um exemplo? Imagine que você pretende trabalhar com


notícias em uma turma de 5º ano e apresenta o seguinte texto aos alunos:

TRIBUNA DO VALE
Terça-feira, 14 de fevereiro de 1995

Beijo inoportuno
A bancária Regina Beatriz de Souza, ex-funcionária do
Banco Agrotec, em Salinas do Sul (PR), foi demitida do em-
prego porque, apesar de advertida e alertada pelo gerente, in-
sistiu em beijar o namorado na presença da clientela. Segundo
o gerente, um funcionário não pode constranger os clientes,
obrigando-os a ficar na fila até que termine a sessão de beijos.
Feng Yu/Shutterstock

Um outro funcionário do banco disse que ela tinha sido avisa-


da, mas não acatou a orientação da chefia.

Fonte: LEIA..., 1995.

Antes de ler o texto, é possível explorar com os estudantes alguns


aspectos relacionados ao gênero do texto, como por meio das seguin-
tes questões: Que tipos de texto costumamos ler em jornais? (Notícias,
reportagens, crônicas, anúncios, classificados etc.); Como foi possível
saber que esse é um texto jornalístico? (Pela fonte, ao final do texto.);
Mesmo sem ler o texto, é possível inferir a que gênero ele pertence?
Como? Pelo título (manchete)? Pela extensão do texto?

Habilidades linguísticas: ouvir/falar, ler/escrever 105


Livro
Depois de os alunos sugerirem que se trata de uma notícia ou se
aproximarem dessa conclusão, é possível, ainda, explorar o tema do
texto por meio do título: Qual o significado da palavra inoportuno? Por
que um beijo poderia ser inoportuno? Em que situação ele seria con-
siderado assim? A notícia é de 1995. Por que um beijo poderia ser ino-
portuno nessa época? Em que local um beijo poderia não ser oportuno?
Hoje, você acredita que um título como esse poderia ser a manchete de
uma notícia? Por quê?
Para aprofundar os seus
Durante a leitura da notícia, outras questões podem surgir, prin-
conhecimentos sobre
leitura em sala de aula, cipalmente relacionadas às confirmações ou não das inferências feitas
recomendamos o livro Ler
antes da leitura. Além disso, as características da notícia também po-
e compreender: estratégias
de leitura, que apresenta dem ser exploradas, como a presença do lead, que costuma respon-
o resultado do trabalho
der às questões relacionadas ao fato noticiado: o quê, quem, quando,
desenvolvido por um
grupo de educadores. onde, como e por quê. Também pode ser discutida a relação do título
O objetivo foi trabalhar
com o conteúdo da notícia e se há posicionamento do jornal em rela-
com a literatura infantil
e com as estratégias de ção ao acontecimento.
compreensão leitora em
sala de aula. A atividade de leitura, como objeto de ensino e aprendizagem nas
MENIN, A. M. da C. S.; GIROTTO, C. aulas de Língua Portuguesa, é, portanto, muito ampla e exige prática
G. G. S.; ARENA, D. B.; SOUZA, R. J. constante, mediada pelo professor de forma colaborativa e dialógica,
de. (org.). São Paulo: Mercado de
Letras, 2010. com vistas à formação de leitores.

5.3 Análise linguística/semiótica


Vídeo Uma das propriedades mais incríveis da linguagem é que podemos
usá-la para falar sobre ela mesma! Você já pensou sobre isso? Esse tipo
de atividade tem natureza reflexiva e chama-se análise linguística ou
reflexão sobre a língua, de acordo com os PCN. Esse tipo de reflexão
sobre a língua é essencial para a “expansão da capacidade de produzir
e interpretar textos” (BRASIL, 1997, p. 30).

Geraldi (1997) afirma que, no interior das atividades interativas em


sala de aula, no momento de leitura ou no momento de produção
textual (oral, escrita, multissemiótica), é que ocorre a análise linguística.

As atividades de análise linguística, portanto, devem ocorrer


com frequência nas aulas de Língua Portuguesa, em toda a edu-
cação básica. Acompanhe, no quadro a seguir, alguns aspectos
que podem ser explorados nas atividades de análise linguística, de
acordo com a BNCC (BRASIL, 2018).

106 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Quadro 3
Atividades de análise linguística

Aspectos a serem explorados


Exemplos
nos textos
A
Estilo e efeitos de sentido dos Escolha do léxico (palavras), da variedade linguística, de mecanismos sintá-
N textos ticos e morfológicos etc.
Á Textos escritos: coesão, coerência, clareza, progressão temática, sequên-
L cia lógica de ideias, paragrafação, versos etc.
I Forma de composição dos textos Textos orais: ritmo, altura, intensidade, clareza de articulação, variedade
S (como os diferentes gêneros tex- linguística, postura, expressão facial, gestualidade.
tuais são compostos)
E Textos multissemióticos: plano/ângulo/lado, figura/fundo, profundidade
e foco, cor e intensidade, ritmo, tipo de movimento, duração, distribuição
no espaço, ritmo, melodia, harmonia, timbres, instrumentos etc.
L
Quem produz? Para quem? Em que época? Com que intenção/propósito?
I Situação de produção dos textos
Onde circula (em qual veículo de circulação)?
N Conhecimento das classes de palavras e análise de suas funções e usos
G nos textos.
U Morfossintaxe Percepção do funcionamento das flexões (concordância).
Í Relação das classes de palavras com a função sintática de sujeito e predi-
S cado.
T Reflexão sobre o uso de aumentativo/diminutivo; sinônimos/antônimos;
Semântica
I polissemia, figuras de linguagem etc.

C Reflexão sobre o uso dos sinais de pontuação.


A Aspectos notacionais (textos Conhecimento da acentuação gráfica.
escritos) Conhecimento e análise das regularidades e irregularidades entre fonemas
(sons) e grafemas (letras) da língua.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Brasil, 2018, p. 80, 82,- 83.
Glossário
Percebe-se que a atividade de análise linguística é bem mais ampla
aspectos notacionais:
do que o trabalho com a gramática normativa, pois não se trata apenas
referem-se à compreensão do
de ensinar a estrutura da língua, mas de valorizar os aspectos enun- sistema de escrita, principal-
ciativos dos textos, a fim de compreender como esses são construídos mente ao domínio da escrita
alfabética e às normas ortográfi-
e quais formas são usadas para atingir cada propósito comunicativo.
cas da língua.
É importante destacar que, metodologicamente, na análise linguís-
tica, partimos da observação da situação de uso que se pretende ex-
plorar para tirar conclusões sobre as regularidades ou irregularidades
da língua. Em outras palavras, o aluno deverá ser capaz de induzir re-
gras, com base na observação e reflexão sobre determinados aspectos
do texto. Vamos ver um exemplo.

Em uma turma de 4º ano, a professora está trabalhando o gênero


textual conto popular e, com base na leitura do texto O rei que virou

Habilidades linguísticas: ouvir/falar, ler/escrever 107


Vídeo vaca, quer abordar o uso de artigos definidos e indefinidos. Leia um
Assista ao vídeo BNCC na prática: trecho do texto:
textos multissemióticos na aula
de Língua Portuguesa, publicado
pelo canal Nova Escola. Nele,

RATOCA/Shutterstock
é apresentada a prática peda-
gógica no 4º ano com textos Certa vez, um rei convocou os nobres da corte e declarou que era uma vaca.
multissemióticos. Vale a pena Os nobres ficaram assustados. O soberano disse mais: desejava ser morto e
conferir. ter sua carne cortada e distribuída ao povo.
Disponível em: https://www. Achando que o rei havia enlouquecido, os nobres convocaram os principais
youtube.com/watch?v=kRvtnR- médicos do reino. [...]
Dlh6A. Acesso em: 13 abr. 2020. (AZEVEDO, 2008)

Em qual das situações a seguir a professora propôs aos alunos uma


atividade de análise linguística?

Situação 1 Situação 2

• A professora propôs as seguintes atividades, por escrito:


1. Releia como o conto inicia: “Certa vez, um rei...”. Por que no
início da história, foi usado “um rei” e não “o rei”?
2. Agora leia o segundo parágrafo do texto: “Achando que o
rei havia enlouquecido...”. Por que nesse parágrafo foi usa-
do “o rei” e não mais “um rei”?
• A professora escreveu no quadro para que
3. Ao analisar os dois casos citados, conclua: por que, em
os alunos copiassem o seguinte conceito: “Os
algumas situações usamos “o” e em outras usamos “um”,
artigos antecedem os substantivos, com o
antes de um substantivo (no caso, “rei”)?
objetivo de determiná-los de modo particular
(definidos: o, os, a, as) ou geral (indefinidos: 4. Converse com um colega sobre isso e anotem no caderno
um, uma, uns, umas)”. a conclusão a que chegaram.
• Depois, solicitou: pinte de vermelho os artigos 5. Encontrem em outras passagens do texto situações em
definidos e de azul os indefinidos, no trecho que artigos definidos e indefinidos foram usados. Eles fo-
retirado do texto. ram usados em situações semelhantes a essa que vocês
analisaram? Explique uma delas.
• Cada dupla leu suas respostas, e a professora fez as con-
siderações sobre o uso de artigos definidos e indefinidos,
apontando outras situações (como no trecho “os nobres
da corte”), em que a regra de uso do artigo, primeiramente
observada pelos alunos, não serve para esse caso.

Notamos que, na situação 1, a professora iniciou a atividade com


um conceito pronto, uma regra já estabelecida pela gramática nor-
mativa e que pouco ou nada contribui para a reflexão do aluno so-
bre o uso dos artigos nos textos.

108 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Na situação 2, o processo foi inverso. A proposta de atividade se
inicia pela observação de como alguns artigos definidos e indefini-
dos foram usados no texto. Os alunos foram levados a refletir sobre
o porquê de, no início do texto, o autor ter usado “um rei” e, depois,
no segundo parágrafo, “o rei”. Provavelmente, concluiriam que, na
primeira ocorrência, o leitor não sabia de que rei se falava e na se-
gunda, já sabia, por isso, optou-se pelo uso do artigo indefinido no
primeiro parágrafo e definido no segundo.

Basear-se nessa e em outras reflexões permite que os próprios es-


tudantes formulem regras que podem ser, aos poucos, reelaboradas,
com a mediação da professora e com o amadurecimento das análi-
ses no contato com outros textos. Além disso, atividades como essa
possibilitam maior questionamento e posicionamento crítico dos alu-
nos. Por exemplo, ao perceberem que na primeira frase do texto há a
expressão “os nobres”, poderiam perguntar: Por que, nesse caso, não
usamos “uns nobres”? Isso seria, sem dúvida, uma atividade investiga-
tiva! Seria necessário descobrir, por meio de pesquisa (até mesmo em
gramáticas), que nem sempre é necessário usar primeiramente o arti-
go indefinido para depois usar o definido. Nessa situação, a expressão
“da corte” já está definindo quem são esses nobres, por isso é coerente
usar o artigo definido antes do substantivo “nobres”.

Obviamente, em sala de aula, o trabalho com o conto popular


citado não se restringiria ao conteúdo morfossintático e semân-
tico do uso do artigo. Se assim fosse, nas duas situações, o texto
estaria sendo usado como pretexto para o ensino de gramática.
É necessário abordar questões mais abrangentes, relacionadas ao
gênero textual e aos aspectos discursivos, como as sugeridas no
quadro a seguir.

Quadro 4
Questões relacionadas ao gênero textual conto popular

Não têm uma origem definida, mas se sabe que os povos, em todas as
Função social e condições de épocas, narravam suas histórias anônimas, preservadas pela tradição,
produção: Qual a origem dos mantendo valores e costumes de diferentes regiões.
contos populares? Quem os
São recolhidos e registrados por diversos autores, que os adaptam de
escreve? Com que intenção?
acordo com a época e o público-alvo.
Quem os lê? Por que são li-
dos? A principal finalidade é o divertimento de pessoas de todas as idades
e classes.

(Continua)

Habilidades linguísticas: ouvir/falar, ler/escrever 109


Onde circulam? Onde são pu-
Em livros físicos e na internet.
blicados atualmente?

São narrativos, normalmente escritos em terceira pessoa, com ou sem


diálogos. Podem apresentar discurso direto e indireto.
Quais as principais caracterís- Alguns apresentam linguagem coloquial nas falas das personagens, que
ticas composicionais? normalmente vivem no campo.
O tempo é normalmente indefinido. O espaço geralmente é rural. Ex-
pressões como certa vez, uma vez, um dia marcam o tempo indefinido.

Sequência lógica de ideias, Contém situação inicial, conflito, clímax (pode apresentar) e desfecho.
paragrafação, coesão, pon- Uso de sinônimos, pronomes, elipse, pontuação etc. para garantir a coe-
tuação são.
Questões que abordam compreensão do texto; unidade temática (do
Compreensão textual que trata o texto?); ampliação vocabular (palavras novas, uso de dicio-
nário); inferências; humor do texto etc.

Fonte: Elaborado pela autora.


No quadro foram apresentados alguns aspectos relacionados às
habilidades de leitura e escrita, assim como questões textuais, discursi-
vas, estruturais e normativas que podem ser exploradas nas atividades
de análise linguística. Entretanto, a organização dessas atividades vai
depender do gênero textual escolhido para a prática pedagógica.

É necessário lembrar que os conhecimentos prévios dos alunos de-


vem ser considerados ao elaborarmos as análises linguísticas. Os con-
teúdos de Língua Portuguesa nos anos iniciais do ensino fundamental,
de modo geral, são os mesmos, mas o grau de complexidade dos tex-
tos e a reflexão sobre a língua variam. Estes devem, progressivamente,
ser mais exigentes, de acordo com o amadurecimento linguístico dos
alunos, pois, ao longo dos anos e com a contínua prática de análise
linguística, passam a apresentar maiores condições para analisar os
textos e refletir sobre eles.

5.4 Escrita e produção textual


Vídeo Vamos iniciar esta seção destacando o seguinte pensamento de
Bakhtin (2000, p. 282): “A língua penetra na vida através dos enuncia-
dos concretos que a realizam, e é também através dos enunciados con-
cretos que a vida penetra na língua”.

Os enunciados referidos pelo autor se concretizam em forma de


textos, sejam orais, escritos ou multissemióticos. Como já tratamos

110 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


da oralidade, reservamos esse espaço
para falarmos da escrita, em especial,
da produção de textos.

Contudo, quando pensamos na


aprendizagem da escrita, não po-
demos esquecer que a criança
tem como referência a língua fa-
lada e dela faz uso para produzir
textos orais com muita destre-
za, aproximadamente, a partir
dos três anos. Sabemos que esse
Rido/Shutterstock
aprendizado ocorre por meio da intera-
ção da criança com seus pares, sem a necessidade de ensino siste-
matizado, como na escola.

Do mesmo modo acontece a aprendizagem da escrita, por meio da


experiência contínua com textos, seja na leitura, na análise linguística
ou no momento da produção. A diferença é que, nesse caso, o ensino
formal e sistematizado é necessário para que a criança se aproprie do
sistema de escrita e dele faça uso em suas práticas sociais diárias, ao
ler e escrever textos.

Assim, para além da alfabetização, a produção continuada de tex-


tos como prática escolar está diretamente relacionada ao letramento
dos estudantes. É preciso que as propostas de escrita tenham como
base situações reais de uso de língua para ser possível, no decorrer
da escolarização, desenvolver nos alunos a competência linguística ne-
cessária a um cidadão letrado.

Vamos a um exemplo do que seriam práticas reais de produção


textual, em oposição à escrita exclusivamente escolar, que tem como
único leitor o professor e somente a atribuição de notas como objetivo.
Podemos retomar os dois exemplos apresentados nas seções anterio-
res: os gêneros notícia e conto popular. Acompanhe as propostas de
produção textual, lembrando que, para os estudantes terem condições
de produzir textos nos gêneros solicitados, é necessário que tenham
realizado leituras de textos representantes desses gêneros e refletido
sobre eles, por meio de análise linguística organizada pelo profes-
sor. Assim, será possível que dominem, pelo menos, alguns elementos
constitutivos do gênero textual exigido no momento da produção.

Habilidades linguísticas: ouvir/falar, ler/escrever 111


Notícia
As notícias se estruturam de forma
muito parecida. Em geral, o primeiro pa-
rágrafo traz as informações principais
e responde às seguintes perguntas: O

Sabelskaya/Shutterstock
que aconteceu? Quem estava envolvi-
do? Quando aconteceu? Onde acon-
Características
composicionais do teceu? Por que aconteceu? Como
gênero aconteceu? Releia a notícia Beijo
inoportuno e identifique esses ele-
mentos no texto.
Proposta: prática
real de uso da Agora é sua vez! Escreva uma notícia sobre a Semana de Jogos que
língua
aconteceu na escola este mês, para ser publicada no site da escola, com o Tema do texto
objetivo de divulgar o fato ocorrido. Lembre:

- Seu texto deve apresentar os itens citados acima, essenciais para uma
Propósito
notícia (o quê, quem, por quê, onde, quando e como aconteceu o fato); Características
comunicativo
composicionais do
- Você deve dar um título para a sua notícia;
gênero
- O texto deve ser escrito em terceira pessoa;

- Escolheremos uma das notícias produzidas para ser publicada no


site da escola;
Para quem o texto Situação real de uso
será produzido - Quem são os leitores do site? Alunos, pais, professores e comu- da língua: o texto irá
(público-alvo)? nidade escolar. circular em um veículo de
comunicação existente
Fonte: Elaborado pela autora.

Conto popular
No final do conto, o rei passa a se alimentar e, aos
Anna Yefimenko/Shutterstock

poucos, retoma sua vida normal; assim, esquece que


um dia foi vaca.

Imagine que o autor não tenha gostado do final


dessa história e convidou você para deixá-la mais
Propósito engraçada. Então, mostre suas habilidades. Crie outro
comunicativo
desfecho bem-humorado para o conto O rei que virou
vaca. Para isso, lembre:

- Escreva, ao menos, mais dois parágrafos;

- Continue escrevendo em terceira pessoa e utilize diálogos (discurso direto), se necessário;


Características
- Os novos finais para esse conto serão lidos pelos alunos da outra turma do quarto composicionais
ano, que também estão trabalhando com esse conto; do gênero

Para quem o texto será - Eles escolherão qual novo final ficou mais engraçado ou inusitado. Situação real de
produzido (público-alvo)? uso da língua

Fonte: Elaborado pela autora.

112 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Observando esses exemplos, podemos constatar que a produção
de textos é “ponto de partida (e ponto de chegada) de todo o processo
de ensino/aprendizagem da língua”, como assevera Geraldi (1997, p.
135). Os PCN (BRASIL, 1997), ao tomar como base os estudos desse e
de outros autores, seguidores do pensamento bakhtiniano, também
apresentam essa ideia, ao propor as práticas de Língua Portuguesa na
tríade USO REFLEXÃO USO.

Sendo assim, a produção textual se configura como uso da língua


e, segundo os PCN (BRASIL, 1997), é papel da escola formar sujeitos
que produzam textos de modo competente. Mas o que significa ser
competente linguisticamente na escrita?

Figura 2
Competências linguísticas para a produção de textos

Elaborar o
texto utilizando Observar
linguagem os aspectos
adequada (variedade notacionais, como
linguística, vocabulário, convenções ortográficas,
estilo, recursos da língua, concordância, regência
nível de linguagem etc., quando o
Saber selecionar etc.) ao público-alvo Escrever
contexto exigir uso Revisar e reescrever
o gênero textual e à intenção observando a
da língua padrão. seu texto, observando
adequado ao que se comunicativa. clareza, a coesão, a
o que precisa ser
pretende dizer, de acordo coerência, entre outros
melhorado para garantir a
com o propósito fatores de
compreensão por parte
comunicativo. Recorrer textualidade.
do leitor.
adequadamente a Utilizar pontuação
outros textos quando adequada, conforme
necessitar de fontes para convenções e efeitos de
sua própria produção. sentido desejados.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Brasil, 1997, p. 47-48; 2018, p. 77-78.

Vale a pena aprofundar a compreensão sobre os fatores de tex-


tualidade, citados acima. Segundo Wachowicz (2012), Beaugrande e
Dressler, na década de 1980, postularam a teoria da textualidade. Para
eles, “o texto é uma unidade de significação baseada em sete fatores de
textualidade” (WACHOWICZ, 2012, p. 38).

Para Paladino et al. (2011, p. 2), a textualidade se refere a um


“conjunto de características que fazem com que um texto seja um
texto, e não como um amontoado de frases”. Os fatores de textua-
lidade estão listados a seguir.

Habilidades linguísticas: ouvir/falar, ler/escrever 113


Figura 3
Fatores de textualidade

Informa- Os textos devem dizer algo ao leitor,


tividade nem mais, nem menos do que suas
expectativas.

Objetivo que o autor pretende atingir


Intencio-
ao produzir seu texto, de acordo com
nalidade
o público-alvo.

Ação do leitor/ouvinte em reconhecer


Aceitabili-
o texto como relevante e buscar
dade
atribuir sentido a ele.

Situacio- Contexto de interlocução em que


nalidade o texto é produzido.

Relação de dependência entre os textos.


Intertex- Todo texto faz referência a outros
tualidade textos. Conhecer essas referências é
fundamental para compreendê-los.

Coesão: modo como palavras e frases se


relacionam nos textos.
Coesão e
Coerência: responsável pelo sentido,
coerência
relacionada à interpretação do texto por
parte do leitor/ouvinte.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Hartman; Santarosa, 2012, p. 70-72 e 77.

Esses fatores são responsáveis pela realização de um texto. Os seis


primeiros são de ordem externa, relacionados ao processo socioco-
municativo e interacional do texto; os dois últimos (coesão e coerên-
cia) são de ordem interna, dizem respeito à organização das partes do
texto (HARTMAN; SANTARROSA, 2012).

Os conceitos de coesão e coerência são complexos e não serão es-


gotados neste espaço. No entanto, é relevante destacarmos duas defi-
nições sobre esses termos. Coesão é a:
propriedade pela qual se cria e se sinaliza toda espécie de ligação,

114 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


de laço, que dá ao texto unidade de sentido ou unidade temática.
[...] A função da coesão é criar, estabelecer e sinalizar os laços
que deixam os vários segmentos do texto ligados, articulados,
encadeados [...], das palavras aos parágrafos [...]; promover a
continuidade do texto, a sequência interligada de suas partes,
para que não se perca o fio de unidade que garante a sua inter-
pretabilidade. (ANTUNES, 2005, p. 47)

Coerência, por sua vez, é definida por Koch e Travaglia (1989, p. 11) como:
algo que se estabelece na interação, na interlocução, numa si-
tuação comunicativa entre dois usuários. Ela é o que faz com que
o texto faça sentido para os usuários, devendo ser vista, pois,
como um princípio de interpretabilidade do texto. Assim, ela
pode ser vista também como ligada à inteligibilidade do texto
numa situação de comunicação e à capacidade que o receptor
do texto (que o interpreta para compreendê-lo) tem para calcular
o seu sentido. A coerência seria a possibilidade de estabelecer,
no texto, alguma forma de unidade ou relação. Essa unidade é
sempre apresentada como uma unidade de sentido no texto,
o que caracteriza a coerência como global, isto é, referente ao
texto como um todo.

Podemos ilustrar esses conceitos, que estão presentes nos textos


de modo interdependente, por meio do exemplo a seguir.

“Chinelo, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova, creme dental, água, [...] toalha. Creme para cabelo,
pente. Cueca, camisa, [...] calça, meias, sapatos, gravata, paletó. Carteira, [...] chaves [...]. Jornal. Mesa,
cadeiras, xícara e pires, prato [...]. Pasta, carro. Mesa e poltrona, cadeira, papéis, telefone, agenda [...].”
(RAMOS, 1978, p. 21)

Com base na definição de coesão apresentada, você considera esse


trecho do curioso conto de Ricardo Ramos coeso? Há elementos coe-
sivos (preposições, conjunções, pronomes etc.) que ligam ou amarram
as palavras e as frases? Então, como ocorre a ligação entre as partes do
texto? O texto tem progressão de ideias? Conseguimos interpretá-lo?
Podemos considerar que seja um texto narrativo? Como conseguimos
perceber a passagem do tempo, o espaço e presença de personagem?

Esse texto, inicialmente, nos causa estranheza porque nele não há


verbos, adjetivos ou elementos de ligação, como preposições e conjun-
ções. Por isso, pode parecer que as palavras ou frases não têm coe-
rência porque falta coesão entre as ideias. Contudo, ao lermos o texto
com mais atenção, percebemos que sua coerência é construída de um

Habilidades linguísticas: ouvir/falar, ler/escrever 115


modo pouco comum. Como se trata de um texto literário, o autor criou
um jeito diferente para narrar o dia de alguém, desde a hora que acor-
da até o momento em que dorme.

Para atingir seu propósito comunicativo, o autor garantiu a coesão


e, consequentemente, a coerência de modo inusitado. Para que o texto
tivesse unidade de sentido e interpretabilidade, o autor utilizou outros
recursos: os substantivos não foram colocados aleatoriamente, eles
seguem uma sequência temporal que nos permite identificar a narra-
ção de uma sequência de fatos, mesmo sem a presença de verbos. Os
espaços ocupados pelo personagem da narrativa são conhecidos tam-
bém pelos substantivos escolhidos, que possuem carga semântica su-
ficiente para indicar para onde o personagem vai ou onde ele está, por
exemplo, na sequência “Pasta, carro. Mesa e poltrona, cadeira, papéis,
telefone, agenda”, que indica a saída de casa e a chegada no escritório.

Esse exemplo revela o quanto os contextos de produção determi-


nam a compreensão dos textos por parte dos interlocutores. É necessá-
rio considerar os vários fatores apresentados aqui, para que possamos
auxiliar os estudantes a produzirem textos com competência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
É importante compreender que os eixos/práticas aqui apresentados
(oralidade, leitura, análise linguística/semiótica e escrita) não ocorrem de
modo separado no ensino e na aprendizagem de língua. Foram assim
organizados neste capítulo somente por uma questão didática, mas são
complementares. Do mesmo modo, os fatores de textualidade não de-
vem ser compreendidos isoladamente.
Para que se tenha uma noção do todo, é pertinente recorrer nova-
mente aos PCN, em razão de sua proposta de USO REFLEXÃO
USO. Nessas três etapas estão presentes leitura, oralidade e escrita de
textos, configurando-se como uso da língua. A reflexão, também deno-
minada análise linguística, permeia as práticas de uso, pois ler, falar/ouvir
e produzir textos só serão práticas efetivas se forem objeto de reflexão.

116 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


ATIVIDADES
1. As crianças chegam à escola, especialmente ao ensino fundamental, já
sabendo falar. Com base nesse fato, os PCN (BRASIL, 1997) abordam
que cabe à escola ensinar a fala. Sabendo disso, de acordo com esse
documento, qual deve ser a postura da escola em relação ao ensino
da oralidade?

2. As atividades de análise linguística devem ocorrer nos momentos de


leitura e produção textual, durante as aulas de Língua Portuguesa,
em toda a educação básica. Elas são muito mais abrangentes do
que o trabalho com a gramática normativa, pois, além de abordarem
aspectos relacionados à estrutura da língua, são valorizados os
aspectos enunciativos dos textos. Sabendo disso, explique como
deve ocorrer a análise linguística, tendo como base a observação das
situações de uso da língua.

3. As antigas práticas de redação, exclusivamente escolares, ou seja,


que só circulavam na escola (como aquela típica redação “As minhas
férias”, solicitada aos alunos) serviam apenas para que o professor as
corrigisse e, a elas, atribuísse nota. Os recentes encaminhamentos
para ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa orientam que
essas práticas sejam abandonadas em favor de outras que visem a
situações reais de uso da língua. Explique como isso pode ocorrer em
sala de aula, no momento da produção de textos.

REFERÊNCIAS
ANTUNES, I. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola, 2005.
AZEVEDO, R. O rei que virou vaca. In: AZEVEDO, R. Papagaio come milho, periquito leva fama.
São Paulo: Moderna, 2008.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua
Portuguesa - 1º e 2º ciclos. Brasília: MEC/SEF, 1997. Disponível em: http://portal.mec.gov.
br/seb/arquivos/pdf/livro02.pdf. Acesso em: 13 abr. 2020.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.
mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 13 abr. 2020.
COSTA, M. M. da. Metodologia do ensino da literatura infantil. Curitiba: Ibpex, 2007.
DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B.; HALLER, S. O oral como texto: como construir um objeto de
ensino. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Trad. de Roxane Rojo
e Glaís Sales Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.

Habilidades linguísticas: ouvir/falar, ler/escrever 117


GERALDI, J. W. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
HARTMAN, S. H. de G.; SANTARROSA, S. D. Práticas de escrita para o letramento no ensino
superior. Curitiba: InterSaberes, 2012.
KOCH, I. G. V.; TRAVAGLIA, L. Texto e coerência. São Paulo: Cortez, 1989.
LEAL, T. F.; BRANDÃO, A. C. P.; LIMA, J. de M. A oralidade como objeto de ensino na escola:
o que sugerem os livros didáticos. In: LEAL, T. F.; GOIS, S. (org.) A oralidade na escola: a
investigação do trabalho docente como foco de reflexão. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
LEIA e informe-se. 1995. Disponível em http://www.cienciamao.usp.br/dados/t2k/_
portugues_1p3_59b.arquivo.pdf. Acesso em: 13 abr. 2020.
LERNER, D. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Trad. de Ernani Rosa.
Porto Alegre: Artmed, 2002.
PALADINO, V. da C. et al. Coesão e coerência: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 2011.
RAMOS, R. Circuito fechado. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1978.
SOLÉ, I. Estratégias de leitura. Trad. de Cláudia Schilling. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.
SOUZA, R. J. de; GIROTTO, C. G. G. S. Estratégias de leitura: uma alternativa para o início da
educação literária. Álabe, n. 4, p. 1- 21, jul./dez. 2011. Disponível em: http://revistaalabe.
com/index/alabe/article/viewFile/87/61. Acesso em: 13 abr. 2020.
SOUZA, R. J. de. Ler e ensinar: estratégias de leitura. Tubarão, SC: Copiart, 2019.
WACHOWSKI, T. C. Análise linguística nos gêneros textuais. Curitiba: InterSaberes, 2012.

118 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


6
Práticas discursivas: gêneros
textuais e sequências didáticas
Você já parou para pensar que tudo o que aprendemos, desde
nosso nascimento, nos chega pelos outros? Assim também ocorre
com a linguagem. Ao escrevermos ou falarmos, sempre produzi-
mos discursos caracterizados por serem dialógicos, ou seja, elabo-
rados em um processo constante de interlocução e constituídos
pelos discursos dos outros.
A compreensão desse fenômeno é muito útil quando atribuímos
valor ao processo de letramento, também promovido pela escola,
pois para dominar a linguagem em várias situações comunicativas,
é necessário compreender que os discursos são formados por dife-
rentes vozes, que revelam modos variados de interpretar o mundo.
Cada criança que chega à escola traz consigo seu modo par-
ticular, ainda em formação, de compreender o mundo, expresso
em seu discurso. Contudo, a diversidade de textos a ela oferecida
contribuirá para a elaboração de seus próprios discursos, na pro-
dução de enunciados orais e escritos, por meio de escuta, leitura e
interação com as diferentes vozes presentes nos textos.
Por isso, falamos em práticas discursivas, que ocorrem com
base no uso efetivo de textos na sociedade, chamados de gêneros
textuais. Todo o processo de ensino e aprendizagem de linguagem
será permeado pelo trabalho com gêneros textuais.
E como podemos organizar metodologicamente essas práticas?
O uso de sequências didáticas é um bom caminho! Com base
nesse procedimento, é possível concretizar o que propõe os PCN,
ao sugerirem que a prática pedagógica seja pautada em USO
REFLEXÃO USO da língua. Vamos refletir também, neste capítulo,
sobre como ocorre o processo avaliativo em Língua Portuguesa. É
possível avaliar leitura, oralidade e escrita? Prontos para conferir?

Práticas discursivas: gêneros textuais e sequências didáticas 119


6.1 Os gêneros textuais
Vídeo Quando falamos que o objeto de ensino e aprendizagem nas au-
las de Língua Portuguesa em toda a educação básica deve ser o texto,
podemos nos perguntar: Quais textos? Qualquer texto? Sobre quais te-
mas? Há textos específicos para cada faixa etária?

Os textos que circulam na sociedade, escritos ou falados por nós e


por todas as pessoas, são muito diversificados, porque são produzidos
tendo em vista diferentes intenções, a fim de atingir diferentes públicos.

Para aprofundar os estudos sobre esse tema, vamos pensar nos jor-
nais escritos que, atualmente, circulam na internet. Em um jornal pode
haver notícias, reportagens, crônicas, anúncios publicitários, entrevis-
tas, tiras (história em quadrinhos), charges, sinopses etc.

O jornal é um veículo de comunicação e serve como suporte para


Glossário
vários textos com funções e públicos distintos. Pense nas diferenças
domínios discursivos: po-
entre uma notícia e uma charge. Ou entre um anúncio publicitário e
dem também ser chamados de
estâncias ou esferas discursivas. uma entrevista. São muito diferentes, não é? Tanto em relação à estru-
Conforme Marcuschi (2002), tura, ou seja, como são formados cada um desses textos, quanto em
os domínios não se configuram
como textos, porém oportuni- seu objetivo ou propósito comunicativo.
zam a manifestação de discursos São gêneros textuais a crônica, a entrevista, a notícia, a repor-
específicos, como o discurso
jurídico, jornalístico, religioso etc. tagem, a sinopse etc. Cada um deles e tantos outros exemplos que
A esfera jurídica, por exemplo, poderíamos citar, inclusive os orais (conversa telefônica, seminário,
dá origem a vários gêneros,
entrevista, palestra, podcast, mensagem de áudio etc.), são “tipos rela-
como leis, ofícios, requerimen-
tos, regimentos, regulamentos, tivamente estáveis de enunciados”, como afirma Bakhtin (2000, p. 279).
contratos, boletim de ocorrência, Marcuschi (2002, p. 25) acrescenta que são “formas verbais de ação
discurso de acusação e de
social [...] realizadas em textos situados em comunidades de práticas
defesa etc.
sociais e em domínios discursivos específicos”.
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120 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Mas por que Bakhtin afirma que os gêneros são relativamente está-
veis? Assim como a língua é viva, sofre alterações históricas, geográficas
e sociais, com os gêneros textuais ocorre o mesmo. São os seres huma-
nos quem elaboram os gêneros textuais, conforme a necessidade que
vão encontrando em suas relações sociais. Segundo Zatera (2008, p. 18),
os gêneros textuais são “realizações linguísticas” e semióticas “concretas,
construídas historicamente pelo ser humano”. Do mesmo modo que eles
surgem, podem também deixar de existir, assevera Marcuschi (2002).

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A carta pessoal, por exemplo, foi criada e muito utilizada
quando a comunicação a distância era difícil. Hoje, praticamente
não fazemos uso desse gênero, nem mesmo da carta comercial;
ela precisou sofrer alterações para atender às necessidades de um
mundo globalizado e tecnológico. Foram criados outros gêneros
com funções semelhantes à da antiga carta, como e-mail, chats,
mensagens via smartphone, via rede sociais etc.

Os gêneros são relativamente estáveis também pelo fato de a estrutura

ShadeDesign/
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de cada um deles poder variar, mesmo sendo específica. Mas o que seria
essa estrutura ou, como Bakhtin (2000) nomeia, construção composicio-
nal dos gêneros? Para facilitar a compreensão, vamos observar o texto a
seguir e tentar descobrir de que gênero se trata.

Avocade-Sauce

Kategorie: Gattung: Saucen


Anzahl: 1 Portionen
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1 große Avocado
1 Essl Meerrettich (gerieben)
4 Essl Schlagsahne
1 Teel sherry
Salz
frisch gemahlener Pfeffer

Avocado halbieren, entkernen, Fruchtfleisch herauslösen


und zerdrücken Zitronensaft hinzugeben, um Braunwerden zu
verhindern. Mit Meerrettich und Schlagsahne verrühren. Mit Salz,
Pfeffer und Sherry abschmecken.

Fonte: Rezepterang, 2020.

Práticas discursivas: gêneros textuais e sequências didáticas 121


Livro Se você não é proficiente em alemão, provavelmente teve dificul-
dades para compreender o que está escrito no texto, não é? Contudo,
deve ter sido fácil identificar o gênero dele, certo? Percebemos com
facilidade que se trata de uma receita culinária porque há uma cons-
trução composicional própria, ou seja, a organização geral do texto,
o seu modo de dizer o que diz. Essa característica faz com que as
pessoas não precisem criar um gênero novo a cada vez que forem se
comunicar, em uma dada situação de interação. Já pensou o trabalhão?
A construção posicional dos gêneros está “disponível em circulação so-
O livro Comédias para
cial”, como lembra Barbosa (2000, p. 153).
se ler na escola, de Luis
Fernando Veríssimo, é Assim, há gêneros mais maleáveis e outros mais rígidos. A recei-
uma ótima sugestão para
trabalhar com crônicas ta, por exemplo, segue essa estrutura praticamente fixa: título, rendi-
em sala de aula. Trata-se mento, modo de preparo. No entanto, há gêneros que permitem maior
de uma obra com várias
crônicas do autor, sele- variação, embora algo em sua estrutura permaneça para que ele seja
cionadas por Ana Maria reconhecido pelo leitor como pertencente àquele gênero. Seria estra-
Machado, grande nome
da literatura infantil bra- nho, por exemplo, se abríssemos um gibi infantil e nos deparássemos
sileira. A maior qualidade com uma história com poucos ou nenhum recurso visual e muito texto
desse livro é despertar
nas crianças e nos verbal, ou então, se a narrativa tivesse a estrutura de um poema (em
adolescentes o gosto pela versos e estrofes) ou de um manual de instruções. Isso nos deixaria
leitura, com textos curtos,
originais e engraçados. confusos, porque esperamos que um gênero conhecido por nós tenha
Vale a pena conferir! a construção composicional com a qual estamos acostumados.
VERÍSSIMO, L. F. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001. O mesmo ocorre com os gêneros orais. Se entramos na internet
para assistirmos a um show de stand-up comedy, esperamos um humo-
rista no palco, geralmente em pé, contando piadas rápidas, muito rela-
cionadas à atualidade. Se encontramos, porém, uma pessoa contando
histórias em um discurso mais lento, como quem conta um “causo” po-
pular, rapidamente reconhecemos que não se trata de um stand-up.

Além da construção composicional,


há mais duas características dos gêne-
ros textuais, destacadas por Bakhtin
(2000): o conteúdo temático e o esti-
lo. Segundo Zatera (2008), o primeiro
se refere àquilo que pode ser dizível
em um determinado gênero. O se-
gundo diz respeito à seleção que o
autor do texto faz dos recursos dis-
ponibilizados pela língua para
compor seu texto.
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122 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Vamos acompanhar um exemplo? O texto a seguir é um trecho da Curiosidade
crônica Todo o poder ao beijo, de Moacyr Scliar. A crônica é um gênero textual
que transita entre a esfera jor-
A notícia de que uma comerciária tinha sido demitida nalística e a literária. Os autores
por beijar o namorado na loja em que trabalhava logo se que optam por escrevê-la como
espalhou pelo país e provocou comoção generalizada. gênero literário, “recriam os
fatos que relatam e escrevem
Muitas pessoas ficaram consternadas, entre elas uma
de um ponto de vista pessoal,
senhora que estava no estabelecimento no exato momento
buscando atingir a sensibili-
do incidente [...]. “Foi uma coisa tão bonita”, disse ela às
dade de seus leitores”. Mesmo
amigas [...].
apresentando características
[...] Por toda a parte, enamorados protestavam; e [...] literárias, elas também possuem
o protesto ganhou as ruas, [...] as manchetes de jornal. aspectos jornalísticos, pois
Julieta não pode mais beijar Romeu, dizia uma delas [...]. relatam o cotidiano de modo
O caso inspirou poemas, canções, peças de teatro. Um novo ProStockStudio/Shutterstock
sucinto, são publicadas em
perfume, chamado Amor Frustrado, foi lançado com grande sucesso [...]. jornais e “têm existência breve,
(SCLIAR, 1995) isto é, interessam aos leitores
que podem partilhar esses
fatos com os autores por terem
vivido experiências semelhantes”
O conteúdo temático das crônicas é, de modo geral, acontecimen-
(AMARAL, 2008, s/p).
tos do dia a dia, assim como nesse texto de Scliar. Era, originalmen-
te, uma notícia banal, alguém que foi demitido em razão de um beijo,
como exposto no primeiro parágrafo. Contudo, o cronista trata esse
Saiba mais
tema com a “grandiosidade e a singularidade dos acontecimentos miú-
Moacyr Scliar (1937-2011) foi
dos do cotidiano” (AMARAL, 2008).
um renomado cronista gaúcho
O estilo peculiar do gênero crônica pode ser observado no que costumava escrever crônicas
semanalmente, inspirando-se
modo com que o autor faz uso da linguagem. A impressão que te- em notícias que haviam sido
mos, ao ler a crônica apresentada e tantas outras, é que estamos publicadas em jornais. Suas
lendo um caso, em um tom intimista, que aproxima autor e leitor crônicas contam fatos cotidianos,
relatos históricos e lembranças
como se fosse uma conversa. familiares. O olhar atento e
detalhista do autor cativa o leitor
Scliar envolveu os leitores, em Todo o poder ao beijo, de modo leve-
de seus textos, que são leves,
mente engraçado, assim como costumam fazer os cronistas, de acordo delicados e bem-humorados.
com Amaral (2008), com base em “reflexões sobre a vida social, política,
econômica, por vezes de forma humorística, outras de modo mais sé-
rio, outras com um jeito poético e mágico”.

É possível, ainda, atentar para outras características da crônica,


relativas a sua construção composicional e que podem ser explo-
radas quando se elege esse gênero para a sala de aula, a partir do 5º
ano, por exemplo: narrativa em prosa, feita em primeira ou terceira
pessoa, uso de expressões cotidianas, próximas da oralidade; fre-
quente presença de diálogos etc.

Práticas discursivas: gêneros textuais e sequências didáticas 123


Na prática com textos em sala de aula, é necessário explorar esses
três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional)
que caracterizam os gêneros textuais no momento da leitura, análise
linguística e produção de textos. Todavia, é importante lembrar que,
como ressalta Marcuschi (2002), os gêneros caracterizam-se por suas
funções comunicativas e devem ser estudados nas práticas discursivas,
ou seja, em seus usos. Por isso, vamos refletir sobre as práticas escola-
res com gêneros textuais na próxima seção.

6.2 Prática pedagógica com gêneros


textuais nos anos iniciais do EF
Vídeo
Antes de vislumbrarmos a prática pedagógica com gêneros textuais
nos anos iniciais do ensino fundamental, faz-se necessário esclarecer
uma dúvida comum entre os professores: a distinção entre gênero e
tipo textual. A definição de gênero já foi apresentada e exemplificada
na seção anterior. Resta, agora, conceituar tipo textual.

Quando falamos em tipo textual, não estamos nos referindo à


materialização de um texto que circula socialmente. Não costumamos
dizer, por exemplo, “hoje eu li uma narração para o meu filho dormir”
ou “vou procurar uma injunção para fazer um bolo” ou, ainda, “preci-
so escrever uma argumentação para um trabalho da faculdade”. Pelo
contrário, é comum dizermos “vou ler um conto”, “vou procurar uma re-
Glossário
ceita”, “vou escrever um artigo científico”. Esses são exemplos que nos
injunção: tipo textual em ajudam a diferenciar gênero de tipo de texto. Na primeira situação, as
que predominam sequências
formadas por ordens, conselhos, palavras narração, injunção e argumentação configuram-se como tipos
pedidos, normalmente expressas textuais, enquanto conto, receita e artigo científico são gêneros.
por verbos no modo imperativo.
Os gêneros receita culinária
e manual de instrução são
exemplos de textos em que se Marcuschi (2002) contribui com essa distinção ao afirmar que, enquanto
observam sequências injuntivas, não se pode determinar exatamente o número existente de gêneros
por exemplo, “Coloque o trigo, textuais, os tipos, pelo contrário, têm quantidade bem reduzida, como a
mexa, unte a forma etc.”. narração, a argumentação, a exposição, a descrição e a injunção. Vamos
observar um trecho da obra Memórias de Emília, de Monteiro Lobato.

124 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Emília resolve escrever suas Memórias. As dificuldades do começo.
Narração De tanto Emília falar em “minhas Memórias” que uma vez Dona Benta
perguntou:

— Mas, afinal de contas, bobinha, que é que você entende por


memórias?

— Memórias são a história da vida da gente, com tudo o que aconte- Exposição
ce desde o dia do nascimento até o dia da morte. [...]

Injunção — Visconde – disse ela –, venha ser meu secretário. Veja papel, pena
e tinta. Vou começar as minhas Memórias. [...]

— A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é,


começa a piscar. Quem para de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é Argumentação

abrir e fechar os olhos - viver é isso. É um dorme-e-acorda, dorme-e-a-


corda, até que dorme e não acorda mais. É, portanto, um pisca-pisca. [...]

(LOBATO, 2007)

Podemos notar que em um único texto pode haver mais de um tipo


textual. Dependendo do gênero textual, há predominância de uma ou
outra sequência textual. Conforme Marcuschi (2002), nas sequências
narrativas predominam os elementos temporais e de espaço, indican-
do ações. Nas expositivas, há o predomínio de sequências explicativas,
enquanto nas injuntivas aparecem verbos no imperativo, indicando or-
dens a serem seguidas. Assim, os tipos textuais caracterizam-se “por
seus traços linguísticos predominantes” (MARCUSCHI, 2002, p. 20).

Os gêneros textuais, por sua vez, conforme Marcuschi (2002), cons-


tituem-se como textos que cumprem funções em situações comuni-
cativas. Assim, os RCN (BRASIL, 1998), os PCN (BRASIL, 1997) e a BNCC
(BRASIL, 2018) indicam que o ensino e a aprendizagem de Língua Por-
tuguesa, em todas as etapas da educação básica, deve ser centrado em
práticas de leitura, oralidade e escrita de gêneros textuais. Observe, na
figura a seguir, os gêneros listados.

Práticas discursivas: gêneros textuais e sequências didáticas 125


Figura 1
Gêneros textuais sugeridos para a educação infantil e ensino fundamental I

• Conto
• Poema
• Parlenda
• Trava-língua
• Expositivo
• Notícia Na educação infantil, a
• HQ oralidade/escuta e a leitura
• Bilhete ganham maior atenção,
RCN • Carta embora as crianças tenham
• Canção contato com a escrita, em
• Cantiga ambientes letrados.
• Rótulo
• Anúncio
• Lenda
• Fábula
• Adivinhas

• Parlendas, canções, poemas,


quadrinhas, trava-línguas
• Contos, mitos, lendas, HQ,
textos teatrais
• Entrevistas, notícias
• Anúncios, classificados Os PCN apresentam os gêneros
• Listas, rótulos agrupados em primeiro e segundo
• Receitas, manuais ciclos do ensino fundamental I, pois há
• Calendário gêneros textuais mais adequados para
PCN • Cartas, bilhetes as crianças menores e outros para as
• Cartões, convites maiores. Sugerem, ainda, gêneros mais
• Diários, relatos apropriados para leitura, outros para
• Cartazes, folhetos produção oral/escrita.
• Piadas, adivinhas
• Textos expositivos, verbetes
• Debates
• Textos normativos (estatutos,
declarações de direitos etc.)

(Continua)

126 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


• Campo da vida cotidiana: agendas, listas,
bilhetes, recados, avisos, convites, cartas,
cardápios, diários, receitas, regras de
jogos/brincadeiras etc. A BNCC destaca o trabalho com gêneros
• Campo artístico-literário: lendas, mitos, mutissemióticos em suportes digitais, como
fábulas, contos, crônicas, canção, poemas, produzir e publicar fotos, vídeos diversos,
poemas visuais, HQ, tiras, charges, cartuns podcasts, infográficos, enciclopédias
etc. colaborativas, revistas e livros digitais,
• Campo da vida pública: notas, notícias, comentários, carta de leitor, post em rede
BNCC reportagens, carta do leitor, comentários social, gif, meme, fanfic, vlogs variados,
em sites, campanhas de conscientização, charge digital, paródias de diferentes
abaixo-assinados, cartas de reclamação, tipos, vídeos-minuto, fanzine, fanvideo,
regras, regulamentos etc. gameplay, trailers, playlists comentadas,
• Campos das práticas de estudo e webconferência, mensagem gravada, spot
pesquisa: enunciados de tarefas escolares, de campanha, jingle, seminário, debate,
relatos de experimentos, quadros, programa de rádio, entrevista etc.
gráficos, tabelas, infográficos, diagramas,
entrevistas, notas de divulgação científica,
verbetes de enciclopédia etc.

Fonte: BRASIL, 1997, p. 72 e 82; 1998, p. 140, 154, 157; 2018, p. 68, 73, 78, 79, 108, 110, 118, 122.

É possível observar, portanto, que os documentos oficiais que nor-


teiam a educação nacional indicam a prática contínua com gêneros
textuais nas aulas de Língua Portuguesa, em toda a educação básica.
Procuraremos responder, na próxima seção, à seguinte questão: Como
essa proposta pode ser viabilizada em sala de aula, especialmente nos
anos iniciais do ensino fundamental?

6.3 Sequências didáticas para a


prática com gêneros textuais
Vídeo Com base na seleção de gêneros para o trabalho em sala de aula,
vamos propor o uso de sequências didáticas, especialmente para os
anos iniciais do ensino fundamental.

Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 97) apresentam a ideia de


sequências didáticas para a prática com gêneros orais e escritos.
Para os autores, uma sequência didática é “um conjunto de ati-
vidades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno

Práticas discursivas: gêneros textuais e sequências didáticas 127


de um gênero textual oral ou escrito” com o objetivo de “ajudar o
aluno a dominar melhor um gênero de texto”. Os gêneros escolhi-
dos devem ser aqueles menos conhecidos pelos alunos, ou pouco
acessíveis a eles, como os gêneros públicos.

Originalmente, os autores propõem a sequência apresentação


produção inicial módulos produção final, mas, de acordo
com a realidade de classes de primeiros anos do ensino fundamental e
com base em Costa-Hübes (2007), adaptamos o encaminhamento pro-
posto pelos autores.

Figura 2
Sequência didática com gêneros textuais

Apresentação Reconhecimento
da situação do gênero

Produção
textual

Fonte: Elaborada pela autora com base em Dolz, Noverraz e Schneuwly, 2004, p. 98 e Costa-Hübes, 2007, p. 17.

A apresentação da situação consiste em descrever com detalhes


a atividade que deverá ser realizada pela turma, expondo o “projeto de
comunicação que será realizado verdadeiramente na produção” textual
(DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 99, grifo do original). Nesse
momento, é necessário apresentar aos alunos um motivo para a pro-
dução textual, destacando o que se quer dizer, para quem, quando e
em que local irá circular o texto. Ao apresentar essa situação, eviden-
cia-se o gênero textual que atenda à necessidade de interação.

Em um segundo momento, os alunos irão realizar o reconhecimento


do gênero selecionado, antes de produzi-lo, por meio da leitura/escuta
de textos e da análise linguística. Então, é importante ressaltar a função
social do gênero (por que é produzido; por quem; quando; onde; para
que público; com qual intenção etc.); o conteúdo temático (o que é dito
em textos desse gênero); a construção composicional (como o gênero

128 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


costuma ser organizado, em sua estrutura, suas características internas)
e o estilo (conforme Costa-Hübes (2007, p. 17) trata-se das “marcas lin-
guísticas [...], ou seja, recursos gramaticais empregados, tais como: sinais
de pontuação, estrutura das frases, seleção do léxico” etc.).

Na última etapa da sequência didática, denominada produção


textual, os estudantes realizarão a produção propriamente dita, “ten-
do em vista a necessidade apresentada inicialmente” (COSTA-HÜBES,
2007, p. 17), no início da sequência. Após os apontamentos do pro-
fessor, haverá, ainda, a reescrita de texto, conforme Dolz, Noverraz e
Schneuwly (2004), descrito por Zatera (2008, p. 34-35):
Os autores [...] apontam [...] a importância da revisão de texto como
trabalho a ser desenvolvido no ensino da escrita. Preocupam-
-se [...] em abordar questões de gramática, sintaxe e ortografia:
como podem ser trabalhadas na perspectiva textual apresentada?
Afirmam que o trabalho apresentado por eles está centrado no
aperfeiçoamento das práticas de escrita e que atividades de es-
truturação da língua aparecem naturalmente nesse processo. Por
exemplo, os problemas de sintaxe, como frases incompletas, falta
de variedade na construção de frases, uso excessivo de coordena-
ção e desuso de subordinação; falta de pontuação etc.

A reescrita é uma atividade essencial nesse processo, pois um texto


dificilmente estará pronto em sua primeira versão; é necessário revisá-
-lo e adequá-lo, tanto em relação aos aspectos discursivos como aos
aspectos notacionais. O atendimento à proposta, unidade temática,
paragrafação, sequência lógica de ideias, coerência, coesão, pontuação,
concordância verbal e nominal e ortografia são alguns dos aspectos a
serem revistos pelos alunos, com base nas orientações do professor.

Vamos a um exemplo de sequência didática que poderia ser apre-


sentada ao 4º ou 5º ano.

Quadro 1
Sequência didática – gênero fábula

Motivar os estudantes para a elaboração de uma coletânea de fábulas contemporâneas.


Apresentação Com base em uma fábula tradicional, os alunos deverão produzir uma versão moderna do
da situação texto. As fábulas podem ser escritas/digitadas e disponibilizadas na biblioteca da escola
ou no site da escola para os demais alunos do ensino fundamental I lerem e comentarem.
(Continua)

Práticas discursivas: gêneros textuais e sequências didáticas 129


- Pesquisa na biblioteca de livros que contenham fábulas. Leitura de diversas fábulas, em
grupos.
- Conversa em sala sobre as fábulas que encontraram ou leram: se já conheciam algumas
delas; de quais gostaram, o porquê etc.
- Leitura/escuta de duas versões da fábula A cigarra e a formiga: A formiga boa e A formiga
má, ambas de Monteiro Lobato.
a) As fábulas são textos muito antigos, por isso, muitas
vezes não é possível saber quem as criou. Contudo,
temos a informação dos primeiros fabulistas, que
registraram essas narrativas, como Fedro, Esopo e La
Fontaine. Monteiro Lobato recontou fábulas desses
escritores antigos e escreveu outras novas. Elas têm
sempre uma lição, uma moral. Então, vêm sendo
- Destacar: contadas, especialmente para crianças, com o objetivo
Função social do gênero: Quan- de passar-lhes um ensinamento. São publicadas em
do as fábulas surgiram? Por que livros e hoje circulam também na internet.
Reconhecimento
foram criadas? Quem as escreve? b) As fábulas são narrativas curtas em que, geral-
do gênero
Quem as lê atualmente? Por quê? mente, animais com características humanas são
Onde elas são publicadas/onde personagens.
circulam?
c) As fábulas são narrativas curtas, cujas personagens
Conteúdo temático: o que as fá- são, geralmente, animais, que apresentam
bulas costumam dizer? características opostas ente si. Por exemplo: o fraco
Construção composicional: qual é e o forte; o esperto e o ingênuo; o bom e o mau etc.
a estrutura das fábulas? Normalmente, há diálogo entre as personagens;
narrador em terceira pessoa; tempo indeterminado
Estilo: questões que envolvam
(certa vez, um dia...); título composto do nome das
análise linguística.
personagens; presença de moral (explícita ou implícita).
d) Uso de elementos coesivos, como pronomes;
uso de adjetivos para descrição das personagens;
ampliação vocabular (palavras desconhecidas pe-
los alunos); uso de pontuação própria dos diálogos
(dois-pontos e travessão); uso de discurso direto e
indireto; uso de diminutivo etc.
Que tal criar uma versão moderna para a fábula A
cigarra e a formiga? Sua fábula será lida pelos colegas
das outras turmas de 4º e 5º anos do colégio. Siga as
orientações:
- crie um título para a fábula;
- utilize narrador em terceira pessoa (narrador-
Detalhar a proposta de produção -observador);
Produção de texto, conforme apresentada - faça uso de falas (discurso direto) para as persona-
textual no início da sequência didática. gens, não se esquecendo da pontuação adequada;
- você deve colocar novos elementos, como: mudar a
época em que ocorre a narrativa e o cenário dos acon-
tecimentos, adaptando a história para a atualidade etc.;
- não se esqueça de que o leitor precisa identificar
que seu texto é uma adaptação da fábula A cigarra
e a formiga.
(Continua)

130 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


Reescrita de Após a correção dos textos, propor a reescrita das fábulas, conforme orientações do
texto professor.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Costa-Hübes, 2007, p. 65-69.

Ainda a título de exemplo, acompanhe algumas atividades de leitura,


compreensão textual e análise linguística que poderiam ser propostas
aos estudantes na etapa de reconhecimento do gênero, considerando
o texto 1 como sendo A formiga má e o texto 2, A formiga boa.

Artigo

https://revistas.ufpr.br/letras/article/download/19338/12634

Para aprofundar seus conhecimentos sobre o gênero fábula, leia o artigo A


fábula, de Oswaldo Portela, publicado na Revista Letras, da UFPR. O artigo
traz informações relevantes sobre origem, estrutura e linguagem das fábulas.
Essas informações podem ajudá-lo no estudo sobre esse gênero e na prepa-
ração de sequências didáticas para aulas de Língua Portuguesa.

Acesso em: 9 abr. 2020.

1. Qual pedido a cigarra faz à formiga no texto 1? E no texto 2?

2. Releia o texto 2 e copie a pergunta que a formiga fez à cigarra,


depois de observá-la da cabeça aos pés.

3. Qual é a imagem da cigarra que o autor nos passa no texto 2?


Quais palavras reforçam essa imagem?

4. Na época em que foi escrita a fábula A cigarra e a formiga, o traba-


lho artístico não era visto como profissão, e sim como sinônimo
de “ficar à toa” ou “não fazer nada”. Você considera que hoje as
pessoas mudaram de opinião? Comente.

5. Que profissão você considera mais desvalorizada hoje? Por quê?

6. Das profissões que você conhece, qual é a mais valorizada pela


sociedade atualmente? Justifique sua resposta.

7. Monteiro Lobato criou duas versões para a fábula A cigarra e a


formiga. No entanto, conclui os dois textos da mesma forma:
“Os artistas – poetas, pintores, escritores, músicos – são as ci-
garras da humanidade”.

(Continua)

Práticas discursivas: gêneros textuais e sequências didáticas 131


a. Sendo assim, qual é a opinião do autor em relação ao trabalho
da cigarra, que fica evidente tanto no texto 1 quanto no texto 2?
b. Conhecendo a biografia de Monteiro Lobato, por que você con-
sidera que ele tinha essa opinião?
8. Como a formiga é considerada pelo narrador no texto 1? Apre-
sente, ao menos, três características dela.
9. Observe o trecho a seguir: “Mas se a usurária morresse, quem da-
ria pela falta dela? Resultado: a cigarra ali morreu entanguidinha...”
a. Verifique no dicionário o significado da palavra entanguida.
b. Por que o autor escreveu essa palavra no grau diminutivo?
10. Releia os trechos seguintes e depois responda aos itens a e b:
I. A cigarra, como de costume, havia cantado sem parar o estio
inteiro, e o inverno veio encontrá-la desprovida de tudo, sem
casa onde abrigar-se, nem folhinhas que comesse.
II. Como não soubesse cantar, tinha ódio à cigarra por vê-la que-
rida de todos os seres.
III. As palavras em destaque foram empregadas no texto para evi-
tar a repetição de um nome. Qual?
11. Agora, reescreva as frases a seguir, substituindo as palavras des-
tacadas por pronomes, de acordo com a norma-padrão da língua.
a. A formiga olhou a cigarra de alto a baixo.
b. A cigarra pediu à formiga um abrigo.
c. A formiga decidiu levar a cigarra ao formigueiro.
12. No texto 2, pinte os trechos do narrador de azul, a fala da cigarra
de verde e a da formiga de marrom. Depois responda: em que
situações o travessão foi utilizado no texto?
13. No trecho a seguir, o autor usou o discurso direto, ou seja,
aparece a fala da personagem, a qual é demonstrada com o uso
do travessão. Reescreva esse trecho usando o discurso indireto:
somente o narrador contando os fatos sem a fala da personagem.
“— Que quer? – perguntou, examinando a triste mendiga suja de lama
e a tossir.
— Venho em busca de agasalho. O mau tempo não cessa e eu...”

Fonte: Elaborado pela autora com base em Costa-Hübes, 2007, p. 74-77.

132 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


O uso de sequências didáticas para a prática de ensino e apren-
dizagem de Língua Portuguesa exige conhecimento sobre o gênero
selecionado. Por isso, é necessário pesquisa e estudo por parte de
professores e alunos. Contudo, é um trabalho que gera resulta-
dos concretos, como o progresso dos alunos no domínio de leitura,
oralidade e escrita dos mais diversos gêneros.

A organização de sequências didáticas é uma possibilidade para


o professor que se propõe a trabalhar com as quatro habilidades de
língua: oralidade, leitura, escuta e escrita. Muitos livros didáticos de
Língua Portuguesa apresentam a organização dos conteúdos em se-
quências didáticas, o que será explorado na próxima seção.

6.4 O livro didático de Língua Portuguesa


Vídeo A história do livro didático (LD) é bastante antiga. Comenius, na
Europa do século XVII, escreveu um livro cujos capítulos eram formados
por conteúdos a serem ensinados. Desde essa época, ou seja, quando
a escola ganhou a configuração semelhante à que temos hoje, o LD faz
parte da cultura escolar (MUNAKATA, 2002).

Mesmo sofrendo transformações ao longo do tempo, como a orga-


nização por disciplinas, o LD, desde sua origem, muito contribuiu para
o ensino, uma vez que permite, de acordo com Munakata (2002), o
acompanhamento dos conteúdos por parte dos alunos, todos ao mes-
mo tempo, de modo coletivo.

No Brasil, a indústria do livro didático ganhou força com a expansão da


escola pública, no período republicano e, como afirma Zatera (2008, p. 40),
esse gênero “permanece na atualidade; para alguns, como manual a ser
seguido; para outros, como fonte de conhecimento e pesquisa”.

Contudo, apenas em 1996, o Ministério da Educação (MEC), por meio


do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), passou a avaliar a qua-
lidade dos livros didáticos, antes que esses chegassem às escolas para
a escolha dos professores. Essa necessidade surgiu em razão da baixa
qualidade de livros que eram ofertados aos alunos, gratuitamente, na
escola pública. Os problemas eram de várias ordens, como erros con-
ceituais, preconceitos, problemas metodológicos etc. (BATISTA, 2003).

Práticas discursivas: gêneros textuais e sequências didáticas 133


Saiba mais A qualidade dos livros tornou-se preocupante, segundo Batista
Quer saber mais sobre (2003), na medida em que esse material era (e ainda é), muitas vezes,
como funciona o PNLD?
Acesse o site do Fundo o único recurso didático utilizado pelos professores, seja por falhas em
Nacional de Desenvolvi- sua formação, seja pela precariedade de recursos da escola pública.
mento da Educação do
Ministério da Educação, O PNLD foi implementado para elevar os padrões de qualidade
e abra a aba “Programas
do livro”. Nesse espaço,
do livro didático no Brasil, já que esse material influencia a prática
você encontrará várias in- pedagógica, organiza a rotina da escola e, muitas vezes, determina
formações sobre o PNLD,
por exemplo, a legislação
o currículo escolar. Por isso, os autores e editoras desses livros de-
que o regulamenta, o seu vem atualizar-se constantemente quanto às orientações nacionais
funcionamento, guias dos
livros didáticos que fazem
para a educação brasileira.
parte do programa etc.
Acesse o link a seguir.
O livro didático de Língua Portuguesa (LDP), assim como os das
demais áreas, também sofreu transformações, ao longo do tempo,
Disponível em: https://www.fnde.
gov.br/index.php/programas/ acompanhando a evolução dos estudos sobre a linguagem. A partir da
programas-do-livro. Acesso em: 16
década de 1990, os LDP passaram a encaminhar práticas centradas no
abr. 2020.
letramento e no uso da língua, como leitura, escuta, oralidade e escrita,
e a publicação dos PCN intensificou o trabalho com gêneros textuais.

De acordo com Zatera (2008, p. 47), “os LDP vêm apresentando,


de uma maneira geral, grande diversidade de textos”, o que asse-
gura aos estudantes “o contato com o maior número possível de
gêneros textuais que circulam na sociedade”, devido às exigências,
por parte do MEC, para que estejam alinhados com os encaminha-
mentos atuais, relacionados ao ensino e aprendizagem de Língua
Portuguesa, como a BNCC.

Mesmo que os livros didáticos passem pela avaliação de especia-


listas ligados ao MEC e sejam recomendados por esse órgão para sua
adoção pelos sistemas de ensino e escolas, o professor deve dominar
sua área de atuação para realizar a melhor escolha e usar o livro didáti-
Vídeo co com criticidade, evitando fazer dele o único recurso para suas aulas.
Assista ao programa
Conexão Futura com o
Assim, é necessário que o professor analise criteriosamente os li-
tema “O uso adequado vros didáticos que chegam à escola para escolha. Além do mais, mesmo
dos livros didáticos”, pro-
duzido pelo Canal Futura.
com o livro escolhido e recebido, cabe ao professor e à equipe peda-
Especialistas no assunto gógica avaliarem a pertinência dos textos e das atividades propostas,
abordam as vantagens e
os limites do uso do livro
modificando, suprimindo ou acrescentando o que julgar necessário, a
didático na escola. favor da aprendizagem dos alunos.
Disponível em: https://www.you-
Como auxílio a esse processo, apresentamos o quadro a seguir, de
tube.com/watch?v=2E0rFK73pyI.
Acesso em: 15 abr. 2020. modo a orientar os professores na escolha e no uso do LDP, lembrando
que deve estar a serviço da prática pedagógica do professor e não de-
terminar o currículo da escola ou o planejamento das aulas.
134 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa
Quadro 2
Critérios para análise do LDP

Em relação Apresenta diversidade de textos em relação ao gênero e tipo textuais?


aos gêneros Aborda o gênero textual em sua função social, conteúdo temático, construção compo-
textuais sicional e estilo?
Prevê atividades de leitura que buscam desenvolver competências adequadas ao grau
Em relação à de proficiência que propõe atingir?
leitura
Prioriza questões de compreensão textual que exijam reflexão e raciocínio crítico?
Contempla os aspectos envolvidos nas condições de produção e nos procedimentos e
estrutura próprios da textualização, em suas propostas de produção textual?
Em relação Considera o uso efetivo da língua em suas propostas de produção textual, aproximando-
à produção -se da real circulação dos gêneros nas práticas sociais?
textual
Sugere a reescrita de texto como possibilidade de melhoria da produção, nos aspectos
discursivos e notacionais?
Aborda a língua oral a favor da expansão da capacidade de falar e ouvir e as diferenças
Em relação à entre oralidade e escrita?
oralidade Valoriza as variedades linguísticas e as explora em seus vários aspectos, por exemplo,
dialetal, social, de registro, lexical, situacional etc.?
Valoriza a reflexão nas atividades de análise linguística, levando o aluno, com base na
Em relação observação dos textos, a tirar conclusões sobre as regularidades e irregularidades da
à análise língua?
linguística Propõe atividades de análise linguística de modo articulado com as demais atividades
(de leitura e compreensão textual)?

Fonte: Elaborado pela autora com base em Rangel, 2005, p. 19; Marcuschi 2005a, p. 57; Marcuschi 2005b, p. 32; Reinaldo, 2005, p. 100.

É importante acrescentar que muitos autores organizam as unida-


des dos LDP, de modo geral, de duas formas distintas. Alguns as orga-
nizam por gêneros, ou seja, em uma unidade é abordado um gênero
textual, apresentando dois ou mais textos de temas diferentes, mas
do mesmo gênero. Outros o fazem por temas, isto é, elegem um tema
norteador da unidade, por exemplo, medos, folclore, preservação da na-
tureza etc., apresentando, assim, em cada unidade, textos de vários gê-
neros sobre um mesmo tema.

A princípio, os dois modos de organização são válidos. No en-


tanto, faz-se necessário observar se, no momento da produção de
texto, solicita-se a produção de um gênero que foi suficientemente
explorado na unidade.

Para essa e demais situações em que o LDP possa apresentar la-


cunas, é imprescindível que o professor tenha conhecimento para
interferir nas atividades propostas pelo material, com vistas a ade-
quá-las à realidade e à necessidade de seus alunos, de acordo com
o currículo da escola e seu planejamento.

Práticas discursivas: gêneros textuais e sequências didáticas 135


6.5 Avaliação em Língua Portuguesa
Vídeo Diante das possibilidades de encaminhamento metodológico para
a prática pedagógica de Língua Portuguesa apresentados até aqui, nos
resta perguntar: o que e como avaliar em Língua Portuguesa?

A avaliação, na qualidade de elemento didático, ocorre durante o


processo de ensino e aprendizagem e não apenas ao final deste, como
ocorria na educação tradicional, que a utilizava para controlar a disci-
plina do aluno e para medir o conhecimento acumulado, por meio de
Leitura
memorização e repetição.
Há um ótimo material
sobre avaliação em Em uma abordagem mais inovadora, a avaliação tem sido vista
Língua Portuguesa,
composto de um como instrumento de caráter formativo, em que o papel da escola
livro, Avaliação em é ensinar e oportunizar a aprendizagem, avaliando se as estratégias
Língua Portuguesa:
contribuições para a adotadas estão gerando resultados, conforme explicam Ferreira e Leal
prática pedagógica, e (2007, p. 16):
uma série de vídeos,
intitulada Avaliação Assim, aluno, professor, escola e família são avaliados (o aluno:
em língua portuguesa, se está se engajando no processo, se está se esforçando para
publicada pelo canal
participar das atividades, se está fazendo as tarefas propos-
Ceelufpe, elaborada
por professoras da tas; o professor: se está adotando boas estratégias didáticas,
Universidade Federal se utiliza recursos didáticos adequados, se mantém boa re-
do Pernambuco. Esse
lação com os alunos, se está adotando formas de avaliação
material faz parte de um
projeto do Centro de coerentes com a proposta pedagógica da escola; a escola: se
Estudos em Educação dispõe de espaço adequado, se administra adequadamente
e Linguagem da UFPE, os conflitos, se dá apoio ao professor para resolver os proble-
cujo objetivo é contribuir
com os debates acerca
mas de ensino e de aprendizagem, se oferece oportunidades
do tema avaliação, para os professores discutirem sobre as dificuldades; a famí-
especificamente na lia: se garante a frequência escolar dos alunos, se incentiva
área de linguagem,
os alunos a participar das atividades escolares; dentre outras
destacando o
letramento como tarefa dimensões) e os resultados são repensados globalmente, de
política e direito de modo a envolver toda a comunidade na decisão sobre o que
todos.
fazer para que a aprendizagem ocorra.
Disponíveis em: http://www.
serdigital.com.br/gerenciador/ Desse modo, o baixo rendimento do aluno não é um problema ape-
clientes/ceel/arquivos/8.pdf;
nas dele. Deve ser analisado na totalidade, com base em uma avaliação
https://www.youtube.com/
watch?v=4drEhGNJmJU; que sirva não somente para detectar os problemas de aprendizagem,
https://www.youtube.com/
mas, acima de tudo, como reflexão sobre a prática pedagógica do pro-
watch?v=kVZjEQO5A34;
https://www.youtube.com/ fessor e da escola, com vistas a adequar o planejamento, as estratégias
watch?v=yTHY3mrzgrw;
de ensino e a própria forma de avaliar.
https://www.youtube.com/
watch?v=MP96IJtn8IQ. Acesso Marcuschi (2007, p. 66) ressalta que avaliar em uma perspectiva for-
em: 15 abr. 2020.
mativa significa considerar “todo o processo de aprendizagem e não

136 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


apenas o produto; envolve ações investigativas e de retomada e não
apenas a mensuração e a classificação de resultados”.

Ademais, a avaliação da aprendizagem, nessa perspectiva, em pri-


meiro lugar, deve ser coerente com todo o processo de ensino. Se,
durante as aulas, o trabalho está focado na leitura/escuta, oralidade
e escrita, a avaliação deve tomar como base essas habilidades e não
outras, que não foram ensinadas.

Os critérios de avaliação variam para cada ano ou ciclo, conforme indi-


cam os PCN (BRASIL, 1997) e a BNCC (BRASIL, 2018). Contudo, de modo ge-
ral, ao final do ensino fundamental I, espera-se que o aluno, em relação à
linguagem, adquira algumas habilidades, apresentadas na figura a seguir.

Figura 3
Critérios para avaliação em Língua Portuguesa

Leitura/escuta Oralidade Escrita

- Leia de modo - Reconte histórias e narre - Escreva utilizando pontuação


independente. acontecimentos que ouviu, leu ou e ortografia convencional,
- Compreenda o sentido dos quais participou, procurando ainda que não domine todas
global dos textos lidos. obedecer à ordem temporal dos as convenções.
- Realize por escrito ou fatos e à relação entre eles, levando - Utilize o dicionário e outras
oralmente resumos dos em consideração a situação de fontes de pesquisa para
textos lidos ou ouvidos, comunicação e a adequação do resolver dúvidas relacionadas
preservando as ideias registro. às convenções da língua.
principais. - Escute com atenção a fala do - Segmente o texto em frases
- Utilize estratégias de outro, formulando perguntas e use pontuação adequada
compreensão leitora que pertinentes ao tema. em diálogos.
ultrapassem a decodificação, - Utilize, durante a conversação, - Escreva textos considerando
como antecipação, inferência formas de tratamento adequado, características do gênero,
e verificação. de acordo com a situação e a aspectos discursivos e
- Leia para alcançar posição do interlocutor. recursos coesivos básicos.
diferentes objetivos: estudar, - Atribua significado a aspectos - Revise e reescreva seus
escrever, revisar etc. não linguísticos observados na textos, buscando aprimorá-los.
fala (gestos, tom de voz etc.).
- Identifique finalidades da
interação oral em diferentes
contextos comunicativos.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Brasil, 1997, p. 85-86; 2018, p. 95.

Os critérios de avaliação apresentados estão diretamente relaciona-


dos aos objetivos de aprendizagem, pautados nas quatro habilidades a
serem desenvolvidas durante as aulas e no efetivo trabalho com textos
dos mais variados gêneros. Sendo assim, “avaliação é também ensino e,

Práticas discursivas: gêneros textuais e sequências didáticas 137


Livro se ensino é diário, a avaliação não pode ser eventual” (FERREIRA; LEAL,
2007, p. 59). A avaliação deve estar a serviço da aprendizagem, então deve
acontecer durante as práticas de leitura, oralidade e escrita.

A avaliação não tem um fim em si mesma e tampouco designa a última


etapa do processo de ensino e aprendizagem. Ela deve ser contínua, pois,
por meio dela, segundo Marcuschi (2007, p. 67), busca-se “determinar
até que ponto cada educando alcançou as competências definidas como
básicas para aquela etapa da escolarização, oferecendo-se para isso as
O livro Fábulas, de Mon- oportunidades que se fizerem necessárias”.
teiro Lobato, da Editora
Globo, reúne fábulas de
Vale destacar, no processo avaliativo em Língua Portuguesa, a práti-
Esopo e La Fontaine, re- ca de reescrita de texto, uma vez que a produção oral ou escrita pode
contadas pelo autor bra-
sileiro, e outras criadas
sempre ser melhorada, principalmente se houver orientação qualita-
por ele. Dentre elas, você tiva por parte do professor, mostrando ao estudante caminhos que o
irá encontrar as versões
A formiga má e A formiga
levem a produzir textos em diferentes gêneros com clareza, coesão e
boa. Ao final de muitas coerência e que atendam às condições de produção.
delas, as crianças do
Sítio do Picapau Amarelo A título de exemplo, vamos observar um texto escrito por um aluno
concordam ou não com
do 5º ano do ensino fundamental, que o produziu com base na propos-
seu conteúdo, mostrando
que o leitor/ouvinte cons- ta apresentada na seção anterior: uma versão moderna para a fábula
trói o sentido do texto e
A cigarra e a formiga.
participa criticamente da
história.

LOBATO, M. Globinho, 2017. A Lamborguine e o Fusca

Era uma vez um carro que se chama Jeckie e ele tinha uma
carrera muito bonbada, ele era modelo ele era uma Lamborguine
vermelha.
O Jeckie ele tinha um amigo que se chama Crow é ele é uber
e ele não para de levar gente para lá e para cá ele cansa muito
ele é um fusca.
Em dia era encontro dos carros do bairro, e nenhum carro
pudia chegar atrasado e só o Crow chegou e chegou suando muito,
e dai no dia seguinte o Jackie chegou na casa do Crow e falou -
bora da uma volta - e o Crow respondeu - não posso, daqui 15
min tenho que buscar uma pessoa - há - disse o Jackie - então a
gente combina outro dia - não posso nenhum dia disse ele.

3 anos depois os dois se aposentaram e dai o Jackie disse


bora dar uma volta dai o Crow disse vamo lá e eles viveram felises
para sempre.
Fonte: Arquivo pessoal da autora.

138 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


É notável que o aluno atendeu a grande parte das orientações para
a produção: escrever uma versão moderna da fábula, alterando os
elementos da narrativa. Além disso, é possível perceber que o aluno
compreendeu a fábula original, pois conseguiu relacionar a figura
da formiga trabalhadora, ao construir a imagem do “fusca Crow”,
e a representação da cigarra, que se diverte cantando, à imagem da
“lamborguine Jeckie”. Ele descreve a personagem Jeckie como um carro
de luxo, que era modelo e tinha uma carreira “bombada” e, por isso,
conseguia aproveitar a vida. A personagem Crow é um carro simples
e trabalha como motorista de aplicativo, chega atrasado ao encontro
de carros do bairro e não tem tempo para passear, somente para
trabalhar. Apenas no final da narrativa, quando se aposenta, consegue
desfrutar de algum prazer/lazer.

O texto é muito criativo e o aluno conseguiu realizar ótimas asso-


ciações em relação às características das personagens, acrescentan-
do elementos que fazem parte da modernidade. No entanto, alguns
pontos podem ser revistos, no momento da reescrita, de modo a ter
maior domínio de sequências narrativas e do gênero fábula. Para
melhor visualização dessas intervenções por parte do professor,
apresentamos o quadro a seguir.

Quadro 3
Encaminhamento para reescrita de texto

Trechos do texto Comentários Orientações para a reescrita


- Sugerir a troca da expressão inicial por
“certo dia”, “um dia” etc., que são mais co-
O aluno utilizou expressões co- muns às fábulas.
“Era uma vez um carro [...]
muns a contos de fada, provavel- - Quanto ao final, é preciso mostrar que a
Viveram felises para sempre”.
mente por ter ouvido e produzido fábula não costuma terminar dessa forma,
(início e final da fábula) textos desse gênero. mas com algum acontecimento (resolução
do conflito) que leve a uma moral/ensina-
mento.
“[...] que se chama Jeckie e ele ti- - É comum que os alunos nos
nha uma carrera muito bonbada, anos iniciais escrevam como se
ele era modelo ele era uma Lam- estivessem falando, repetindo - Atentar para o uso de verbos no passado,
borguine vermelha. expressões que na fala seriam evitando oscilar os tempos verbais.
O Jeckie ele tinha um amigo que naturais, como “o Jackie ele tinha”. - Eliminar repetições desnecessárias e apon-
se chama Crow e ele é uber e ele - Em narrativas, também é tar o uso de elementos coesivos e pontua-
não para de levar gente para lá e recorrente que os alunos misturem ção para garantir coesão ao texto.
para cá [...]” tempos verbais, como em “que se
(primeiro e segundo parágrafos) chama [...] e ele tinha”.
(Continua)

Práticas discursivas: gêneros textuais e sequências didáticas 139


Trechos do texto Comentários Orientações para a reescrita
- O aluno agrupou em um único
- Sugerir a divisão do parágrafo em dois, pois
parágrafo dois momentos distin-
há dois fatos distintos: o dia do encontro
tos da narrativa e apresentou difi-
dos carros e o dia seguinte, quando Jeckie
culdades em organizar os diálogos,
convida Crow para passear.
como uso de parágrafos para cada
- Retomar a organização dos diálogos (dis-
uma das falas das personagens e
“Em um dia era encontro dos curso direto), pontuação e uso de maiúscu-
uso de maiúsculas no início das
carros do bairro [...] não posso las no início das frases.
frases.
nenhum dia disse ele”.
- Nessa parte do texto, é necessário suge-
- O aluno apresenta um conflito
(terceiro parágrafo) rir a escrita de um ou mais parágrafos para
para a narrativa: enquanto Jeckie
desenvolver melhor o conflito, questionan-
aproveitava a vida, pois “era mode-
do: qual é o problema a ser resolvido? Há
lo”, possivelmente bem remunera-
alguma consequência para o fato de Jeckie
do, Crow só trabalhava. Porém, fal-
“ser modelo”? Ele não trabalhava? Você con-
tou desenvolvimento e clareza das
sidera “ser modelo” uma profissão?
ideias nessa parte do texto.
No final do texto, o aluno apre-
Sugerir a reestruturação do último parágra-
senta a resolução para o conflito:
fo, preservando a ideia, mas procurando se-
Crow se aposenta e pode passear
guir a construção composicional do gênero
“3 anos depois [...] felises para com Jeckie, mesmo utilizando o fi-
fábula, retirando o trecho “felizes para sem-
sempre”. nal clássico dos contos de fada e
pre” e apresentando uma moral, algo como
(último parágrafo) demonstrando alguns problemas
“Deus ajuda quem cedo madruga” ou outro
como falta de pontuação, dificul-
provérbio semelhante, dependendo das al-
dades na estrutura dos diálogos e
terações que o aluno fizer no texto.
marcas de oralidade (“e daí”).

Fonte: Elaborado pela autora.


O texto apresentado mostra como as produções textuais das crian-
ças são ricas e podem ser exploradas no momento da reescrita, que
pode ser coletiva, quando se coloca no quadro o texto do aluno para
toda a turma auxiliar na reestruturação. Esse também é um momento
de análise e reflexão sobre a língua, que auxilia os alunos a pensarem
sobre sua escrita e como fazer para aprimorá-la. Vale ressaltar que o
texto tem poucos problemas em relação à ortografia correta das pa-
lavras, o que pode ser facilmente revisto pelo aluno, com auxílio do
professor e de um dicionário.

Portanto, a avaliação em Língua Portuguesa faz parte do processo


de ensino e aprendizagem e ocorre nos momentos de leitura, oralidade
e escrita, em que é possível avaliar o desenvolvimento dos alunos em
relação a essas habilidades, observando o que já conquistaram e em
que ainda podem avançar.

140 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


CONSIDERAÇÕES FINAIS
O uso de sequências didáticas para as práticas com gêneros textuais
se mostra eficaz à medida que contempla momentos fundamentais para
o desenvolvimento das competências discursivas de ler/escutar, falar e
escrever. Pode ser considerada também como um modo de transpor di-
daticamente a proposta dos PCN de USO REFLEXÃO USO, no tra-
tamento dessas quatro habilidades.
Nessa perspectiva, ao avaliar a aprendizagem em Língua Portuguesa,
o progresso dos alunos é visível, no decorrer dos bimestres e de um ano
para o outro. Eles produzem textos cada vez mais adequados às diversas
situações de interação.
Assim, a sala de aula, com o uso de sequências didáticas, torna-se um
espaço de letramento, onde práticas discursivas são valorizadas a favor da
aprendizagem dos alunos. A escola, por sua vez, mostra-se comprometida
com a formação de sujeitos leitores e que se expressem oralmente ou por
escrito com competência, criticidade e autonomia.

ATIVIDADES
1. Complete o quadro a seguir com as informações sobre os gêneros
textuais.
O que são? Como se caracterizam? Exemplos

Práticas discursivas: gêneros textuais e sequências didáticas 141


2. Explique o que são sequências didáticas para as práticas com gêneros
textuais.

3. Partindo de uma concepção formativa de avaliação, explique como


avaliar em Língua Portuguesa.

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Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_
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142 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


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ZATERA, L. C. S. A prática pedagógica com gêneros textuais no segundo ciclo do ensino
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e Ciências Humanas, PUC-PR. Disponível em: http://www.biblioteca.pucpr.br/tede/tde_
busca/arquivo.php?codArquivo=1163. Acesso em: 15 abr. 2020.

Práticas discursivas: gêneros textuais e sequências didáticas 143


GABARITO
1 Diferentes concepções de linguagem
1. Linguagem é um termo mais genérico, significa toda forma de expressão
em que exista algum tipo de sinal com o objetivo de comunicar algo
a alguém. Já língua é o mesmo que idioma, ou seja, é uma maneira
particular de cada comunidade se expressar. Há dois tipos de
linguagem: verbal e não verbal. A verbal remete à fala e à escrita e a
não verbal é caracterizada por símbolos, desenhos e imagens, como
figuras, emojis, placas de trânsito etc.

2.
• Século IV a.C. – os primeiros registros de estudos sobre a língua
são dos hindus.
• Grécia Antiga – Platão e Sócrates procuravam a razão para
o nome das coisas. Aristóteles dizia que o pensamento era
anterior à criação das palavras.
• Roma Antiga – Varrão considerava a gramática como ciência e arte.
• Idade Média – os modistas acreditavam que a estrutura
gramatical das línguas era única e universal.
• Século XVI – na época da Reforma, os livros sagrados foram
traduzidos em várias línguas. Os viajantes e comerciantes
conheceram línguas até então desconhecidas pelos europeus.
• Séculos XVII e XVIII – acreditava-se ainda que os estudos
gramaticais serviam para todas as línguas. A Gramática de Port
Royal foi escrita com a ideia de que a linguagem é a imagem do
pensamento, influenciando outras gramáticas da época.
• Século XIX – iniciam-se os estudos comparativos sobre as línguas
vivas, o que influenciou os estudos contemporâneos. Surgiu a
Linguística Histórica.
• Primeira metade do século XX – a Linguística passou a ser
reconhecida como campo de estudo científico, a partir
de Saussure. Surgiu o estruturalismo: europeu e norte-
americano. No segundo, destacou-se Bloomfield, que se
baseava no behaviorismo.

144 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


• Segunda metade século XX – Chomsky postulou que a linguagem
é inata, transmitida geneticamente. Surgiu o gerativismo.
3.
a) Saussure: foi o estudioso que levou a Linguística a ser
reconhecida como campo de estudo científico. Apresentou
vários conceitos importantes para o estudo da linguagem, como
a definição de língua e fala. Foi o fundador do estruturalismo.
Com base em suas ideias, outros estudiosos deram sequência
aos estudos da língua, como as Escolas de Genebra, de Praga e
de Copenhague. A partir disso, sugiram as vertentes europeia e
norte-americana de estruturalismo.
b) Chomsky: importante linguista fundador do gerativismo,
influenciou os estudos contemporâneos da Linguística.
Postulou que a linguagem é inata, transmitida geneticamente.
Para ele, as pessoas possuem competência linguística, que
é o conhecimento inato da língua, e, ao usarem a linguagem,
demostram desempenho linguístico.

2 Aquisição da linguagem pela criança


1.

Hipótese Teórico Como ocorre a aquisição da linguagem?


• Por meio de aprendizagem de comporta-
mentos ou formação de hábitos.
• Depende da experiência com o meio
(input).
Behaviorismo Skinner
• Com estímulos do meio (condicionamento),
a criança exprime um comportamento (res-
posta condicionada).
• Depende de reforços positivos e negativos.

• Por meio de um fenômeno biológico e


cognitivo.
• Por meio de um mecanismo inato (da men-
te/cérebro) presente em todos os seres
Inatismo Chomsky
humanos.
• Acionando o conhecimento linguístico pré-
vio, quando em contato com a língua falada
pelos seus pares.

(Continua)

Gabarito 145
Hipótese Teórico Como ocorre a aquisição da linguagem?
• Faz parte do desenvolvimento da inteligência.
• As estruturas cognitivas se desenvolvem
antes da linguagem (elas preparam a crian-
ça para a fala).
• Por meio de processos contínuos de assi-
Piaget milação e acomodação, que levam à equili-
bração.
• Entre o estágio sensório-motor e
pré-operatório.
• Com o desenvolvimento do pensamento re-
presentativo; dá permanência do objeto.

• Por meio da interação com outras pessoas


que falam (adultos, professor, crianças
Interacionismo mais experientes), mediada por sistemas
simbólicos, o que favorecerá o desenvolvi-
mento das funções superiores da criança.
• No processo de evolução, ao sair do uso
de instrumentos para o uso de signos (ou
da inteligência prática para o pensamento
Vygotsky
verbal e a linguagem racional).
• Por estágios, em que ficam evidentes:
• fala pré-intelectual e pensamento pré-
-verbal;
• fala social;
• fala egocêntrica;
• fala interior.

2. Zona de desenvolvimento proximal é a distância entre o nível de


desenvolvimento real (aquilo que a criança já sabe, as aprendizagens
consolidadas) e o nível de desenvolvimento potencial (as aprendizagens
que estão em processo de consolidação pela criança – por isso elas
precisam da ajuda do adulto –, mas que podem ser dominadas por
ela). Essa distância é importante porque, com a ajuda do mediador,
os processos de desenvolvimento e capacidades cognitivas serão
ativados, propiciando a internalização do conhecimento disponível
em seu contexto social.

146 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


3.

O que a criança é capaz de fazer em


Idade
relação à língua
Primeiros meses de vida Balbucios (sons sem significado).

Pronúncia de maior número de sons e repeti-


Em torno de 6 meses
ção de sílabas.

Balbucios somente dos sons que ouve com en-


Em torno de 10 meses tonação da língua. Início da relação entre som
e significado.

Primeiras palavras para nomear objetos (com


Ao redor de 1 ano
valor de frases). Entende ordens.

Ao redor de 1 ano e 6 meses Combinação de duas palavras.

Produz sentenças simples com mais de duas


Entre 2 e 3 anos palavras. Generaliza regularidades da língua
(“eu fazi”).

O vocabulário aumenta. Usa sentenças com


Mais de 3 anos mais de uma oração (primeiro, coordenadas;
depois, subordinadas).

3 Língua e variação linguística


1.

Tipos Aspectos aos quais se relacionam


Faixa etária, gênero, grau de escolaridade, situação econômica do
Variação sociocultural
falante e grupo social ao qual pertence.

Variação geográfica Região onde o falante vive.

Variação histórica Época em que o falante vive.

Situação particular em que a comunicação é realizada. Tema, fa-


Variação situacional lantes envolvidos, local e tipo de relação são fatores presentes no
ato de interlocução.

Gabarito 147
2. Costumamos reproduzir a frase “português é difícil” porque as aulas
de Língua Portuguesa, normalmente, não levam em consideração
as práticas reais de uso da língua. O ensino é, em grande parte das
vezes, focado na gramática, por isso achamos difícil. Essa afirmação
não é verdade, porque todas as línguas são fáceis e, ao mesmo tempo,
complexas. São fáceis porque são adquiridas naturalmente pelas
crianças em fase de aquisição da linguagem, sem muito esforço e sem
necessitar de ensino sistematizado. Então, todo falante nativo sabe sua
língua. Por outro lado, todas as línguas são complexas no que se refere
ao estudo de sua estrutura gramatical, e não somente o português.

O domínio da leitura, interpretação e escrita de textos variados em


diferentes situações de comunicação revela que o sujeito conhece e
sabe usar a língua padrão, assim como outras variantes linguísticas.
A memorização de regras gramaticais não garante ao indivíduo o
domínio da língua padrão, pois é possível sabê-las de cor, mas não
conseguir produzir um texto com propriedade.

Desafio:
A gramática, para o eu lírico, nas aulas de Português, era “esquipática”
(esquisita e antipática, neologismo criado pelo autor) e deixava-o
confuso, porque a língua ensinada na escola (em sua forma padrão)
era muito diferente da língua usada em casa (a não padrão). O eu lírico
chega a esquecer a língua usada em casa, em razão da imposição da
língua padrão como variante “correta”, que deveria ser dominada por
ele. O poema finaliza com o verso “O português são dois”; o primeiro é
o coloquial, o que o eu lírico domina; o segundo se refere ao português
padrão, tão diferente e distante da língua que o sujeito já conhecia,
portanto, um mistério.

4 A Língua Portuguesa na escola


1. Enquanto o termo alfabetização se refere à aquisição do sistema de
escrita, o termo letramento diz respeito a práticas mais elaboradas de
leitura e escrita, ou seja, ao desenvolvimento dessas duas habilidades.
A alfabetização como processo de aprendizagem de uma tecnologia,
ou seja, aprender a codificar (transformar som em letra) e decodificar
(transformar letra em som) deve ter um início e um fim. É desejável que
as crianças até o final do ensino fundamental I tenham se alfabetizado.
O letramento, diferentemente, ocorre durante toda a vida, pois designa
as práticas de uso efetivo da linguagem (leitura e escrita) na sociedade.

148 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


2. Os termos USO REFLEXÃO USO, apresentados nos PCN de
Língua Portuguesa, referem-se a uma prática cíclica de linguagem. O
trabalho deve sempre iniciar e finalizar com o uso da linguagem. Usar
a linguagem significa ler, interpretar e produzir textos orais e escritos.
A reflexão sobre a língua deve ocorrer durante todo esse processo, ou
seja, nas atividades orais, de leitura e de escrita.

3. Para a educação infantil, a BNCC orienta que a prática pedagógica


aconteça com base nos campos de experiência. O campo de experiência
referente à linguagem se chama Escuta, pensamento, fala e imaginação.
Os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento são organizados em
três etapas: bebês, crianças bem pequenas e crianças pequenas. De
um modo geral, os objetivos relacionados à oralidade, leitura e escrita
são: dialogar, relatar experiências, expressar opiniões, ouvir e apreciar
histórias, canções e poemas, identificar rimas, responder a perguntas
sobre as histórias contadas, folhear livros, observar ilustrações,
diferenciar desenho de escrita, acompanhar a direção da leitura, criar
e contar histórias, desenhar, traçar letras e sinais gráficos, levantar
hipóteses sobre gêneros textuais, recontar histórias ao professor e
escrevê-las. No ensino fundamental, o componente curricular Língua
Portuguesa centra-se numa concepção enunciativo-discursiva de
linguagem, ou seja, de uso da linguagem, considerando o texto como
objeto de ensino e seus contextos de produção, de modo a ampliar
os letramentos, por meio dos eixos: oralidade, leitura/escuta, análise
linguística/semiótica e produção escrita e multissemiótica. Há, ainda,
os campos de atuação como categoria de organização do currículo:
campo da vida cotidiana, campo artístico-literário, práticas de estudo e
pesquisa e campo da vida pública.

5 Habilidades linguísticas: ouvir/falar, ler/escrever


1. Em relação à linguagem oral, os PCN (BRASIL, 1997) afirmam que
não há uma única forma correta de falar, mas diferentes modos, de
acordo com situação de comunicação. Por isso, é necessário valorizar
as variedades linguísticas e combater o preconceito linguístico. Cabe
à escola, ainda, oferecer às crianças o contato com textos orais mais
formais, que exijam maior planejamento, e, normalmente, não são
conhecidos ou dominados por elas no ambiente familiar. Isso se faz
necessário para que aprendam que há diferentes registros de uso de
língua oral, dependendo da instância em que essa prática ocorre.

Gabarito 149
2. As atividades de análise linguística devem ser planejadas por meio da
observação da situação de uso da língua que se pretende explorar,
abordando aspectos discursivos e gramaticais. Os primeiros se
relacionam às condições de produção dos textos, como função social
e características composicionais dos gêneros textuais; já os aspectos
gramaticais se diferem do ensino tradicional da gramática normativa
porque favorecem a reflexão sobre as regularidades ou irregularidades
da língua, por meio da indução de regras. Por exemplo, se o professor
estiver trabalhando com um conto em que há uso recorrente de
adjetivos para a descrição das personagens, deve alertar os alunos a
observarem esse fato no contexto em questão, levando-os a perceber a
importância do uso dessa classe gramatical nas sequências descritivas.

3. As atividades de produção de texto são o ponto de partida e o de


chegada das práticas de linguagem na escola. Por isso, primeiramente,
é necessário que os alunos leiam textos representantes de determinado
gênero com o qual se queira trabalhar e reflitam sobre eles (no momento
da análise linguística). Após esse momento, é possível apresentar
propostas de produção de texto bem contextualizadas, que ressaltem
as características composicionais do gênero e que se aproximem o
máximo possível de situações reais de uso da língua, observando o
propósito comunicativo, o tema do texto, o público-alvo etc. Além disso,
as propostas de produção textual devem exigir alguns conteúdos,
à medida que são trabalhados com as crianças, durante as análises
linguísticas. Por exemplo: uso de linguagem adequada à situação
comunicativa, clareza, coerência, coesão, sequência lógica de ideias,
convenções ortográficas, concordância, regência, pontuação etc.

6 Práticas discursivas: gêneros textuais e


sequências didáticas
1.

O que são? Como se caracterizam? Exemplos


São enunciados concretos, que cir-
Caracterizam-se, de acordo com
culam na sociedade em forma de
Bakhtin, por seu conteúdo temá- Carta, bilhete, e-mail, seminá-
textos. Bakhtin define-os como “tipos
tico (o que costumam dizer), sua rio, fórum, chat, conversa fami-
relativamente estáveis de enuncia-
construção posicional (estrutura liar, romance, resenha, crônica,
dos”, porque possuem uma forma
do gênero, mais ou menos fixa, conto, mensagem via celular,
mais ou menos fixa. São elaborados
o modo de organização do tex- palestra, história em quadri-
pelo ser humano de acordo com a
to) e estilo (escolha dos recursos nhos, bula, receita culinária, ar-
necessidade de interlocução, varian-
linguísticos usados na produção tigo científico etc.
do historicamente e de acordo com
do texto).
cada situação comunicativa.

150 Metodologia do ensino de Língua Portuguesa


2. Uma sequência didática é um modo sistemático de organizar atividades
em torno de um gênero textual para que os alunos o dominem melhor.
Inicia-se com a apresentação da situação para a turma, deixando
claro qual gênero será trabalhado e o porquê, ou seja, a necessidade
real de estudar aquele gênero. Por exemplo, um caderno de receitas
para ser enviado às famílias. Com base nisso, é preciso reconhecer o
gênero, por meio de atividades de leitura e análise linguística de textos
representantes do gênero, a fim de explorar a função social, o conteúdo,
a construção composicional e o estilo do gênero. Por fim, há a produção
textual do gênero selecionado e a reescrita de texto.

3. Avaliar, em uma perspectiva formativa, significa considerar todo o


processo de ensino e aprendizagem, investigando o que é preciso
melhorar e ajustando as estratégias utilizadas, a favor da aprendizagem
dos alunos. Desse modo, em Língua Portuguesa, os momentos de
leitura, oralidade e escrita devem ser avaliados, observando até que
ponto cada aluno atingiu as competências traçadas para aquela etapa,
de acordo com o que foi oferecido a ele.

Gabarito 151
Estudar a linguagem é uma atividade fascinante,
pois é por meio dela que conhecemos o mundo,
o outro e nós mesmos. Para o(a) educador(a)
que se propõe a trabalhar com crianças na
educação infantil, quando a língua oral está
em desenvolvimento, e no ensino fundamental,
momento de aprendizagem da leitura e da
escrita, isso se dá de modo especial.
Esta obra visa despertar o interesse pela área da
linguagem e apresentar propostas metodológicas
para o ensino e para a aprendizagem de Língua
Portuguesa, alinhadas às mais recentes
teorias linguísticas, bem como às orientações
curriculares para a educação nacional.

Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-6617-9

59320 9 788538 766179

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