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RRaeS Dacio Antonio de Castro Genwi Resa . Roteiro de leitura i XI — ‘0 espelho"” XII — “Nada e a nossa condicao” XII — “0 cavalo que bebia cerveja? XIV — “Um mogo muito branco” XV — “Luas-de-mel”” XVI — “Partida do audaz navegante” XVII — “A benfazeja” XVIIL— “Darandina” XIX — “Substancia” XX — “Taranto, meu patrao”” XXI — “Os cimos"* 4. Andlise da estoria “A terceira margem do tio” Apresentacao Sfntese do enredo Interpretagdo ‘Uma outra leitura, Andlise 5. Ficha de leitura 6. Vocabulério critica 7. Bibliografia comentada mn 1 Introducao © Autor e o Modernismo Desde sua estréia, com 0s contos de Sagarana (1946), Guimaraes Rosa foi saudado pela critica como um revolu- ciondrio da linguagem pelo cardter experimental de sua rosa, que revelava um trago regionalista mais amplo ¢ maiz eonhador, se comparado com dos cactitores que hhaviam anteriormente explorade 0 fildo sertanejo. © con traste se realea quando se coteja, por exemplo, esta obra com Fogo morto (1943). © romance de José Lins do Rego, de certo modo, encerrara o ciclo do regionalismo nordes- tino, cujo folego vinha mostrando sinais de esgotamento, depois de ter constituide, ao longo da dévada de 30, uma das tendéncias mais marcantes da nossa literatura. Essa ten- déncia se caracterizou sobretudo pela pteocipagao em imprimir & literatura um sentido de demtincia social, retra- tando a dramatica condigéo de abandono da regio norte- nordestina. Com a postura de engajamento dos modernis- tas nordestinos, retomava-se 0 propésito da contestagtio artistica, que j orientara a literatura da segunda metade do século passado ¢ das primeiras décadas,do nosso. Dai, a consagraco do rétulo neo-realismo para identificar os autores afinados com eséas diretrizes. Além de José Lins do Rego, destacaram-se também como escritores neo-realistas, Graciliano Ramos, Forge Amado, Rachel de Queiroz ¢ José Américo de Almeida, Este tiltimo & autor de A bagaceira (1928), romance que se constituiu no marco inicial dessa corrente. Coincidentemente, também em 1928, era langado Macunaima, que diferia do neo-reatismo, documenta ¢ linear, caracteristico da prosa regionalista nordestina. Miizio de Andrade publicara seu romance-rapsédia em sintonia com uma proposta de prosa Iragmentiria e experimental. Esta tenovagao se anunciara com Memdrias sentimentats de Jodo Miramar (1924), de Oswald de Andrade, conside- rad primeiro romance modernista brasileiro. Neste romance caleidoscépico, Oswald de Andrade registrou, em 163 flashes de sugestéo cinematografica, a trajetéria de um brasileiro rico na década de 20. Guimaraes Rosa da um novo alento & prosa moder- nista, jd miima terceira fase do movimento, porque retoma ¢ modifica as propastas anteriores, Dos autores do primeira tempo, ele recupera o trago experimental, sobretudo no plano da expresso, da inovacdo da linguagem. Dos neo- realistas, Rosa aproveita, de modo muito pessoal, a suges- to regionalista, dando-Ihe novas dimensdes e direvdes: cria um serto imaginério, inventando-o através da linguagem. Em sua prosa poética, Guimardes Rosa associa preocupa- ‘95es filos6ficas & ousadia formal, imprimindo-the um sen tido de universalidade, na medida em que focaliza 0 serta- nejo em suas perplexidades metafisicas. Esta preocupayio ‘com a esséncia fntima da realidade, com o sentido tltimo da existéncia, indo além do que mostram as aparéncias, toma sua obra de interesse universal, pots a focalizacso de tais aspectos sempre atraird o ser humano, independen- temente do tempo ou da geografia em que viva. 1 Filtrando eclética informacio mistico filoséfiea, Rosa incorpora em seus livros as mais variadas tradigdes: © pensa- mento de Plato, Plotino ¢ Heraclito, 0g Upanishads (parte filosbfica dos Vedas, livros sagradas da india), 0 espiritismo de Alian Kardec, Jesus Cristo ¢ os seus apdstolos, Henri Bergson ¢ seu intuicionismo!, Lao-tse (fildsofo chinés do século VI ou V a.C., que deu a base para 0 taofsmo%), 0 misticisemo de base racionalista? de Ernest Renan e artigos publicados em The Christian Science Journal. Aglutina, assim, um desconcertante sincretismo*, que se manifesta no espisito e no estilo de seu trabalho como escritor. Guimardes Rosa partia dessas leituras espirituais para ultrapassé-las através da criagao centrada na invens&o ver- bal, Produziu, com esse método, narrativas epifanicas, que condensam em sua simbologia aspectos esotéricos, préprios de doutrinas secretas. Epifania € revelacao magica: as per- sonagens ascendem espiritualmente, iluminadas pela revela- cdo das mais surpreendentes e estranhas verdades. Essa per- cepelio se transfere para 0 leitor, envolvido que é pela magia do relato. A propésito desse processo, em carta 20 seu tradutor para o alemao, Curt Meyer-Clason, Rosa assim se expressou: Todos 08 meus livros so simples tentativa de rodear ¢ devassar um pouguinho 9 mistério cosmico, esta coisa movento Impossivel, porturbante, robokle 2 quatcuer ldgica, que 6 chamada realidade, que é a gente mesmo, © mundo, a vide. Antes 0 Sbvio, que 9 frouxo. Toda légica contem ine vitével dose de mistificacdo. Toda mistificagéo contém boa dose de inevtével verdade. Preclsamos também do cbscuro. " Segundo H. Bergson, 56 a intugfo consegue penstcar 29 eu profundo, Sele extcsindo imagens que nfo couseguer ser capcadas pela intetigénela, pols esta 6 parece operar através de esquetmns. ? Relgido popular chinese, que redne o eulto dos espiiios da natureza © dos anccatra, as douteiaas de Lao-se e ciengas diversas. 2 Emmest Renan (1823-1892, seu crador, desviou-se ce sua wocaplo ecesis- sca para pesquisar 05 Fundamentos rasionallstas da clighes ‘ Fusio de varias doutrinas filasdficas e ralipioss diferontes Perfil biografico Jofo Guimardes Rosa uasceu a 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, pequena cidade a 120 quilémetros de Belo Horizonte, na direcdo noroeste. Sem o releve das cidades barrocas, Cordisburgo é rota de passagem para quem visita a Gruta de Maquiné ¢ ponto de referéncia na emogéo do escritor: Cordisburgo era pequenina terra sertaniea, tras montanhas, no meio de Minas Gerais. $6 quace tugar, mas de repente bonito: ld se desencarra a Grute de Maquing, Milmaravilha, 2 das fadas; 0 prGprio campo, com vaqueltos, cochos de ‘sal a0 gaco bravo, entre gentie morros ou sob o demas das estrolas falavaise antes: o8 pastos da viste-elegre. (Discurso. de posse na Academia Brasileira de Letras: “O verbo ¢ 0 toges”. Apud Em meméria de Jodo Guimaraes Rosa. Rio de Janeiro, José Olympio, 1968. p. 57.) Depois dos estudos primdrios em sua terra ¢ em Sio Joao del Rei, fez 0 secundério no Colégio Arnaldo de Belo Horizonte. 14 cursow a Faculdade de Medicina, formando- se em 1930, Nesse ano, casa-se com Lygia Cabral Pena Snicia sua carreira médica em Itaguara, no interior de Mines. Ingressou yoluntariamente na Forga Puiblica durante a Revolugdo Constitucionalista de 1932, servindo sob as ordens do coronel-médico Juscelino Kubitschek, futuro pre- sidente da Repdblica’e fraterno amigo desde a Faculdade de Medicina. Mais tarde, Juscelino seria evocado indireta- mente auma das Primeiras est6rias. Terminado 0 conflito, Guimaraes Rosa ingressou oficialmente naquela instituigdo, indo para Barbacena como oficial médico do IX Batalho de Infantaria. Relembrando esses tempos, disse: Ful médice, rebelde, soldado |_| Como médico, conheci o valor 'mistico do sofrimento; como rebelde, o valor da conselénciat ‘como soldado, valor da proximidade da morte... (Diélogo de W. Lorenz com Guimarios Ross. Apud Arte em Revista; anos 160, So Paulo, CEAG, 112: 7, maiotago. 1978) fina época, Rosa adquiriu o habito de se levantar de [pada ¢ tomar um banho gelado para estudar lingues ‘Migerlu-lhe a catreira diplomatica, Assim, em 1934, ‘eoncurso para o Instituto Rio Branco, do Itamarati. ipfcando-se em segundo lugar. Quatro anos depois, foi do cOnsul-adjumo em Hamburgo, na Alemanha, Eig ncabou surpreendido pela eclosio da Segunda Guerra dint. Permancceu internado com outros diplomatas oii-Brden, até ser trocado por funcionatios do governo Data dese periodo uma curiosa carta-telegrama, , respondendo a uma amavel admoestacéo do amigo K. Cabral, Guimaraes Rosa pode demonstrar seu vir~ Imo verbal, com refinado humor: {Consul Caro Colega Cabral — Comparego, contirmando che- (98dK cordial carta. Contestando, concosdo, contente, com Gamblamento comunicagéos ccnjunto colegas, contorme Epp. ltda Consolidacdo Confraria Camaradagem Consular. Conte ‘eomigo! [J Goruseam céleres corisoos coloridos.[-}Cannbes “gaspem cometas com cauda carmesim. Csern coisas clindro- HS -qOnioes, calibrosas, compacias, cor carga certuituga, contet “do oapaz convener casas cascallo, corpas competa, crgnics @anfon. Cavamse cielépicas crateras (cultura cowve-colos 0.), Cacos cépsulas contraaéieas completam carnificina ‘asome com cho, cautelosaments. Credo! (Come com {loguir echocar-me chdo carioca — Confeltaria Colombo, CC, Copacabana, Catumbi272..) Cubigo, como creme capitoso, ‘s0ngulados Calcuté, Gobilal..Caime, calma! Consequlrernos onservar carcacas. J Caso cutticagso continue, consegui femoe conhscer coxas, calcas?... Gaspte! [..] Com cordial, ‘omovido: Colega, constante camareda, + a)d. Quimardes Rosa (Cénsul, Capitdo, Clinico Gonceltuado) {(Apud Anadso, Heloisa Vilhena de. Guimardes Rosa: alplomaca Braciia, Minisiério das Relagces Exteriores/Fundacao Alexan- dra de Gusmao, 1967. p. 1602) A brutalidade da guerra foi amenizada pelo envolvi Jento com Aracy de Carvalho Moebius, funciondria da 1» documentos falsos para judeus fugirem do nazismo. Ela se tornaria, dois anos depois, sua segunda esposa, em casa- mento realizado no consulado do México. Libertado, transferiu-se para a secretaria da embai- xada brasileira na Colémbia, permanecendo em Bogoti até 1944, Retornando ao Brasil, foi nomeado chefe de gabinete do ministro Joao Neves da Fontoura. Nessa fungao, parti- cipou da-delegagio brasileira Conferéncia de Paz em Paris ¢ de iniuneros congressos internacionais. Em 1949, assou para primeiro-secretério ¢ conselheiro da embalxada brasileira na Franca, permanecendo em Paris até 1951. Em 1952, retornou ao Brasil, reassumindo a chefia de gabinete do ministro Joao Neves. Nas férias desse ano realizou um de seus maiores ¢ melhores sonhos: conduzir uma boiada, rustica e autenticamente, como se fosse um velho vaqueito. Durante nove dias viajou por 40 Iéguas em lombo de cavalo, atravessando as veredas do sertiio mineiro. Os companheiros dessa viagem contam que Rosa Tevava um cademo espiral pendurado ao pescogo, anotando temente nomes de plantas ¢ de bichos, observando P atentamente as diferengas entre as varias ragas de gado. A partir de 1953 fixou-se definitivamente no Brasil, como chefe da Divisio de Orcamento do Itamarati. Foi promovido por Juscelino a ministro de primeira classe em 1958, cargo correspondente a embaixador, Em 1962, assu- miu a chefia do Servigo de Demarcagao de Fronteiras, ‘Guimaraes Rosa tornou-se uma lenda viva no Instituto Rio Branco por sua versatilidade come poliglota: falava fluentemente espanhol, francés, inglés, alemdo e italiano, além de possuir conhecimentos suficientes para ler em latim, _grego cldssico moderna, sueco, dinamarqués, servo-croata, russo, hingaro, persa, chins. japonés, arabe e malaio, con- forme nota referida na obra de Gunter W. Lorenz, Didlogo com a América Latina (Sio Paulo, EPU, 1973)..issa vasta cultura lingiiistica serviu também de base para as ousadias n formais de seu personalissimo estilo, marcado no conjunto de uma obra que surpreende por sua original visio de mundo, simultaneamente sertaneja e transcendente. Candidatou-se em 1963 & Academia Brasileira de Letras. Eleito, durante quatro anos protelou a posse, porque tinha a premonigia de que a esta se seguiria sua morte, De fato, foi fulminado por um ataque cardiaco em 19 de novembro de 1967, trés dias apés a solenidade académica. Guimaries Rosa costumava dizer que, por catarse’ reflexdo, desdobrava-se em. seus personagens. O estranho pedido para que fosse sepultado de éculos faz lembrar 0 menino Miguilim, miope protagonista da novela Campo geral, Com os dculos que recebeu de presente do Dr. José Lourengo, Miguilim passou a perceber que tudo era uma claridade, tudo novo ¢ lindo ¢ diferente. Rosa parecia pre- parar-se, assim, para a travessia de sua terceira margem do rio, uma das Primeiras estorlas que criou, entre tantas ¢ tio bonitas! Panorama da obra literaria Guimaraes Rosa comegou a escrever ainda quando estudante de medicina. Entre 1929 e 1930, enviou alguns contos para a revista O Cruzeiro. Embora tivesse ficado bastante satisfeito com os cem mil-réis que Ihe foram pagos como direitos autorais, nao pensava ainda numa atividade literaria regular. Estimulado pela esposa, em 1936 escreve Magma, livro de poemas premiado pela Academia Brasileira, de Letras, mas que permanece inédito, embora ja tenha sido até objeto de uma tese (“Jodo Guimaraes Rosa: as sete sereias do longe”’, realizada pela professora Hygia T. Calmon Ferreira, da Unesp). As saudades de Minas Gerais, quando estava em Hamburgo, levaram-no a produzir a primeita versio de 5 Dessjo de purificapo. 2 ‘Sagarana, em 1937. Insereveu a obra num concurso promo- vido pela Livraria José Olympio, obtendo o segundo lugar. Em 1945, reelaborou o livro, etiminando alguns contos da versio inicial ¢ reescrevendo outros, para publicagdo no ano seguinte. Numa carta a Jodo Condé, publicada no Jor- nal de Letras (setembro de 1950}, Guimaraes Rosa contou como foi a gestagio de Sagarana: Esta obra conetitul uma série de Histérias adultes da Caro- chinha, focalizadas ro pedaco de Minas Gerais que era mals cconnecia um poueo melhor a terra, a gente, bichos 8 Arvores, Porque 0 povo co interior — sem convencdes, Poses — da melhores personagens de pardbolas: Mé se veers ‘bem as reagdes humanas @ a ago do destino: Id ge vb bem ‘um rio ¢alr na cachosira ou contornar a montanna, @ as gran- dos aivores escaterem sob 0 ralo, 9 cada talo do capim humana rebrotar com a chuva ou se estarricar com a seca. Entéo, passei horas ce diss, fechado no quarto, cantando ‘cantigas sertanejas, diaiogando com vaqueiras de velha lem- branga, ravendo palsagens da minha terra ® aboiando para lum gado imenso. (Apud Rosa, Vilma Guimardes. Relembra- -mentos: Jodo Guimaraes Rosa, meu pei. p. 391-3) lanigamento de Corpo de baile (novelas atualmente aesdobradas em trés volumes: “Manuelzio ¢ Miguilim”, “No Urubuquaqua, no Pinhém’* ¢ “Noites do. sertio”) e do romance Gronde sertéo: veredas, respectivamente em ineiro € maio de 1956, confirma a originalidade do escri- tor, definitivamente fesponsavel pela instauiragio de um novo estilo em nossa literatura € pela elevagio da ficao regionalista brasileira a um plano de invengdo literdzia inter- nacional, Reconhecida a sua maestria na arte do conto, do tomance e da novela, preparou durante seis anos syias Pri- meiras estérias. Publicado em 1962, 9 livro demonstraria que o escritor também dominava o género do conto curto, Na década de 60, sua obra despertou o interesse de Varios cineastas e diretores de teatro, que adaptaram alguns de seus trabalhos. Destacou-se, entre todos, Roberto San- 1B tos pela feliz realizagdo de. hora e ver de Augusto Matraga irado do conto final de Sagarane) — filme hoje conside- rado um dos marcos do Cinema Novo, Atuaknente, Nelson Pereira dos Santos (0 mesmo diretor de Vidas secas) esta filmando “A terceira margem do rio”, um dos contos mais densos de Primeiras estérias, que recebeu também uma talentosa vers4o musical (cuja letra pode ser lida no capi- tulo 4 deste livro) realizada pela dupla Caetano Veloso/ Mitton Nascimento, Em meados de 1967, publicou Tutaméia, maravilhoso livre que comeca surpreendendo com os seus quatro prefé- ios, preparadores de um ritual de Ieitura consciente con- centrada de seus quarenta densos © curtissimos contos. Em hidica ironia, essa obra traz dois indices: um no inicio, para a Jeitura, ¢ outro no final, paraa releitura. A experiéa- cia de um novo contato com os textos de Guimardes Rosa sempre acrescenta algo: sentidos que passaram em branco pela sutileza com que foram formulados, combinacdes sonoras diferentes, frases com ritmo estranho, sobretuco para o ouvido do leitor urbano que desconhece as minticias € 0 fascinio das gentes, das plantas ¢ dos animais do uni- verso rural. Postumamente, foram publicados Estas estérias (1969), volume que reine nove narrativas longas, ¢ Ave, palavra (1970), obra que redine contos, crOnicas ¢ poesia em prosa e verso, i 4 i 2 Primeiras estérias Apresentacao O titulo Primetras estérias jd sinaliza o processo usedo pelo autor na organiza¢o da obra: foi a primeira em que experimentou a es/dria, género assim definido num dos pre- facios de Tutaméi A estéria ndo quer ser histéria, A estéria, em rigor, deve sor contra a Historia. A estérla, 83 vezes, quer-se parecida ane- dole. (1. ed. Alo de Janeiro, José Olympio, 1967. p. 3) A condi¢ao de primeiras pode ser atribuida enquanto inicidticas, fundamentadoras de todas as ontras estérias possiveis. E de se notar também a circularidade original ‘obtida com a amarracdo do primeiro com o ultimo conto. AS duas estérias extremas do livro tem 0 mesmo protago- nista: um “Menino”, que parece constituir a alegoria de ‘um novo tempo para o Pais, anunciado pela inauguracto de Brasilia (21 de abril de 1960), que com sua revoluciona- ria arquitetura pode ser vista como simbolo da descoberta de um outro Brasil. Importante registrar que a fundacéo da nova capital foi empreendida por Juscelino Kubitschek, ee amigo de Guimardes Rosa desde a Faculdade de Medicina de Belo Horizonte. Realmente, “As margens da alegria” © “Os cimos” parecem abracar o livo, pois spresentam come ponto de intersecc4o o destumbramento por um espase magico: o lugar onde se construfa uma grande cidade, num planelto, cujos altos vales da aurora so vislumbrados a janelina do avido, de onde o Menino percebe o “mé- vel mundo”. A aventura vivida pelo protagonista sugere uum rite de iniciacio para a vida, experimentado através do axtase com que descobre a alegria e 0 amor. Primetras estOrias traz. 21 nartativas curtas. Tradicio- nais casos minciros, metamorfoseados pela intervengio ctiativa do autor, constituem os mais variados enredos, ‘em tom lirico, épico ou especulativo. A harmonia do con- junto se apresenta de forma labirintica, tal a variedade de erspectiva ¢ de temperatura emociondl registradas na suces- so dos contos. © que 0s aptoxima € o experimentalismo do estilo: cada frase ou palavra exige um detido exame ara que 0 leitor se aperceba do processo de montagem ¢ de seu significado postico, Para quem comeva a ler Guimaraes Rosa via Prime ras estorias, & recomendavel estar com o esplrito alertado para a apreensdo do significado esotérico e das multiplas experiéncias lingiifsticas realizadas nesses contos. A tarefa ndo ¢ facil: as paginas devem ser lidas em voz alta, para que o leitor possa perceber a sonoridade das palavras e deci- frar o hertaetismo de varias passagens. Os arranjos das intrigas Todas as estorias desse livro tm como mécleo um acontecimento, intuido pelos protagonistas. Dai que eles se transformem em videntes, adivinhos. Sao guiados pela paixdo ot pelo devaneio; até mesmo seus atos ¢ palavras mais simples vém imspregnados de uma carga simbdlica. “ Os relatos trazem tanto acontecimentos intimos como cenas da mais eletrizante aco, que se caracterizam como uma espécie de faroeste sertanejo. Guimarges Rosa traba- Ina seus contos como se fosse um diretor de cinema: mesmo sabendo que somente uma parte da cena serd percebida pelos espectadores/leitores, nem por isso deixa de trabalhar 05 efeitos de detalhe. Em varios contos, a nartagdo é encaminhada através de engenhosos suspenses, criando uma expectativa de calds- trofe que nfo se confirma, porque o autor explora o recurso. do antictimax, que, de modo algum, decepciona o leitor. Os conflitos se esvaziam sem perder o tom sublime, nem afundar no sidiculo. Esse proceso fica bem marcado em contos como “Famigerado”, “‘Os irmaos Dagobé””, ““Luas- de-mel” ¢ “Tarantdo, meu patrao’”, Os temas fundamentais Confarme a organizacéo dos enredos e dos micleos tematioos, as estérias podem ser classificadas em einen cate- gorias. Cumpre advertir, porém, que em Guimaries Rosa ha verdadeiras migragdes de um tema para outro (sem pre- juizo do tema central), criando-se uma verdadeira constela- ‘so mitopoética, pela interseccdo de situagdes préximas, como, por exemplo, no caso de est6rias que envolvem mis- ticismo ¢ loucura. As categorias distribuem-se assim: Ml — "Ser6c0*, sue mae, sua filha” Xll — “Nada @ a nossa condlgao” Loucura Xill — "0 cavale que bebia cerveja”” XVII — “A bentezeja” XVIII = “Darandina™ XX — “Taranto, meu patrso" 0 ¥ 1 = “"”As margens da alegria’ IY — "A monina de 1” Infanela vil — “Pirlimpsiquice” XVI — “Partida do audaz navegante” XXx1 = “Os cimes” Ul — “Famigerado” Violnei ¥ = “0s irmndos Dagobé" 1 = “Fatalidade” Vi — “A terceira margem do rio" Vill = "Nenhurn, nenhuma’* ‘isticiemo XI — "0 espelno” XIV — “Um mogo muito branco” X — "Sequéncia” Amor XV — “Luas-de-met" X0X — “Substancia” * im todos a8 seus exert, Gulmardes Rose iz questo do ust eregeatia prt: Da, awergente ae crprana oil, Note: Os numeres que antecedem o titulo de cada conta inaleam & urdem fem que vem pubicadoe ao Ineo. ‘Como observou o critico portugués Oscar Lopes (in Ler e depois, Porto, Editorial Inova, 1970), ‘a idéia mais insistente nas obras de Guimariies Rosa parece ser 2 de que @ vida s6 vale a pena como oportunidade de nos fazermos @ nds prdprios |...] nds nascemos para nos acabarmos a nds mesmos” (grifo nosso). Esse comentario traduz com propriedade a nogo de que, para Rosa, 0 homem é, antes de tudo, um ser mutante € 0 existir 56 adquire significado enguanto permanente processo de aperfeigoamento espiri- tual. Riobaldo Tatarana (os nomes das personagens rosia- ‘nas constituem um dos aspectos mais pitoreseos de sua cria- 8 40), © matuto protagonista de Grande serti ‘especula em seu monélogo: veredas, Mire vela, o mals importante e bonito, do mundo, & isto: que ‘88 pessoas ndo estdo sempre iguais, ainda nfo foram termi- hadas — mas que elas vo sempre mudando. (5. ed. Ric de Janeiro, José Olympio, 1967. p. 20-1) E ainda: ‘Todos estéo louces, neste mundo? Porque a cabeca da gente 6 uma 36, ¢ a5 coisas que hé @ que estéo para haver $40 demais de multas, muito maiores diferentes, ¢ a gente tem de necessitar de aumenter a Gabepa, para.o total bidem, p. 236.) Essas reflexdes dao uma dimensfo do quanto ¢ revolu- ciondrio ¢ progressista o pensamento de Guimaraes Rosa: le reivindica para a dignidade do homem uma permanente evolugdo césmica. A respeito da necessidade de uma perma- nente mutagio, para se evitar a petrificagao dos valores, Rosa. assim se pronunciou: Pengo, desta forma: cada homem tem seu lugar no mundo & ‘ho teripo que Ihe concedido. Sua tarefa nunca é malar qu sua capacivade para poder cumpibla, Bla consists win preet ‘cher seu lugar, em servir a vordade @ acs homens. (Diélogo ‘de W. Lorenz com Guimaraes Rosa. Apud Arte om Revista; anos 60. p. 7.) Outro tema de fteqiiente recorréncia em sua obra ¢ 0 da transcendéncia, a busca das essénicias por trés das coisas. Como diz uma personagem das Primeiras estdrias: “‘queria apenas os arquetipos, platonizava”’. A mais olimpica meta do homem é a de procurar incansavelmente reger sua vida pela busca da Beleza, do Bem e da Verdade. Daf, entender-se a freqiiéncia com que Rosa trabalha com personagens que se apresentam como seres incompletos, como os protagonistas dos contos “Fa- migerado”, “Os irmios Dagobé” e “Fatalidade’’. Os per- versos, 0s malvados, os criminosos so figuras que apresen- 19 tam areas de sombra que necessitam de iluminacio (veja, no “*Vocabulirio critic”, Plato e platonismo). Guimartes Rosa retoma o pensamento de Platdio para projetar o universo moral de suas personagens em dois pia- nos: 0 senstvel, em que o homem explora suas capacidades de energia, do valor do saber e da necessidade da realiza- Go, e; acima desse, © inteligtvel, onde vishumbra as mais elevadas finalidades da consciéncia, visando alcanear a paz interior, a bondade, a liberdade ¢ a fraternidade perfeitas, ‘Algumas de suas grandes personagens so criancas, como Nhinhinha, de “A menina de la”, e Brejeirinha, de “Partida do audaz navegante”, protagonistas de contos das Primetras estdrias. Elas vivem instintivamente, s80 seres autiintelectuais, portadores de uma vocagdo magica, Isto hes dé plena liberdade de criar seus mundos, transfor- mando-0s em espacos de revelacdes profundas, pois perce- bem o que esta além do que € possivel alcangar através do racionalismo. A infncia, para Guimaraes Rosa, é trago de grandeza divina: Deus é menino em mi sertoes, © chove em todas as cabeceiras. © estilo rosiano Na entrevista mais completa, das poucas que deu, Rosa é instado pelo critico Gunter W. Lorenz a opinar sobre a intrincada questo em que se debate a ctitica, a0 discutir seu personalissimo estilo, Diz ele: (© bom escritor ¢ um descobridor; [..] Consicero a lingua ‘como meu elemento metatisico: eecrevo para me aproximar de Deus, estou sempre buscando 0 Impasaivel,o infinit. [J] ‘Sou mistico: posso permanacer Iméval durante Longo tempo, ppensanido em algurn problema e esperar. [..) NOs, sertanejos, ‘somos tipos espeaulativos, 2 quem 0 simples fato de medi tar causa prazer.(..1 08 liros nascem quando a peseea pencs; © alo de escrever ja é a téanica e 2 alegria do jogo com as palawras.[..] Fago do idioma um eepelho de minha personal dade para viver: como a vida 6 uma corrente continua, a ‘guagam também deve evoluir conetantemente. [.] Escra- vende, descubro sampre um novo pedaco de infinito. Vivo Infinito, o momento ndo conta, [.] Existem elementos da lingua que 980 podem ser captados pela razio; para oles si0 necessarlas outras antenas. [..] Meus tlvros 8&0 escritos ‘em um idioma préprio, um Idioma meu (|; nao ire submete A tirania da gramética @ dos dicionérioe dos outros. (Dialog ce W. Lorenz com Guimardes Rosa, Apud Arts em Revista; ‘anos 80, p. 10:2) Sua prosa — pottica, sedutora, diversa ¢ estranhia — exige do leitor cuidadosa aproximacdo. Para desvendar 0 Iabirinto de suas acrobacias verbais, a fim de que se possam dlecifrar 0s significados ocultos em seu texto, & preciso tato, paciéncia, sensibilidade ¢ determinagao. Tal preparacdo é necesséria, porque Guimardes Rosa dedicou-se & pesquisa pura da palavra, explorando-a em miliplas possibilidades, Em Primeiras estérias, conforme a pesquisa levantada por Paulo Rénai (publicada na introdugéo da obra, quando esta era editada pela José Olympio) ¢ a de Mary Lou Daniel (em Jodo Guimardes Rosa: travessia literdria), destacam- Se 05 seguintes processos de invengiio verbal: © aglutinagdo de palavras: “equiparado” (= equus, em latim, cavalo + parado}; “‘sussurruido”” (= sussurro + ruido); “descrevivendo” descrever + escrever + vivendo); ““beladormeceu”” bela + adormeceu); “tutdnico” (= tutano + titini- 00); “tersivorosos” (= tertiveis + vorazes + horroro- 808); “personagente”’ (= persona, mascara, em latima + personagem + gente); “pensamor” (= pensamento + amor); “enxadachim” (= enxeda + espadachim). © palavras que permutam de classes gramaticais: “Desco em pulos pasos” (substantive usado como advérbio) PN “A gente pensava num logo Tuar”” (advérbio usado comno adjetivo) + Gufase através de repetigdio de palavra: “Inflneia ¢ coisa, coisa?” “Porque eu desconheci meus Pais — eran-me tio estra- nhos; jamais poderia verdadteiramente conhecé-fos, eu, ev?" + permutagio de tempo e modo verbals: “Nem, olhasse mais @ paisagem’* (olhasse, imperteito do subjuntivo usado como futuro do pretérito, olharia) “$6 ele conhecesse, a palmos, a escuridio daquele bre- iio" (conhecesse, imperfeito do subjuntivo usado como presente do indicativo, conhece) * uso do artigo definido antes de pronomes indefinidos: “as muitas pessoas”; “a alguma alegria”; “o parente nenhum”” associagéo entre som e sentido — aliteragGes ¢ assonfincias: “Mio, moido...”"; “leigos, fedos, lépidos” “chiquetichique”” * desarticulacdes ou desvios sintiticos: “A gente fica quase presos, alojados na cozinha'” (silepse de ntimero, 0 predicativo concorda com a idéia de plural contida, pressuposta no sujeito) + uso do snacoluto: “Tia Liduina, que durante anos de amor tinham-na visto sortir sobre softer [...]. Tia Liduina, que ja fina misica imagem.”” * desdobramento de palavras através de sufixos pomposos: “furibunddncia’'; “circunspectancia”; “blasfemifero™ * palavras de efclto grandilogiiente ¢ pedante: * “86 vivo no supracitado”; “Aquele senhor provisoria~ ‘mente impoluto™ * inversio de Iugares-comuns on frases feltas: “a menos nao poder”; ‘‘com nenhum titubeio”; ‘corm cara de nenhum amigo”; “E era 0 impasse ca magica’; “Um deu-nos-sacuda” (deus-nos-acuda); “‘prevenido ‘para veler por quatro”; “o feio estd ficando coisa...” + citagio ou eriagdo de provérbios sertanejos: “De pobre ndo me sujo, de rico nfo me emporcelho.”” “Bu ponho a mesa e pago a despesa.”” “«Aroeira de mato virgem nao alisa.”” “‘Heréi é no que déi.” “Para 0 pobre, os lugares sao mais longe. “Quem sou eu, quati, para cachorro me latir?"* + prosa rimada na forma de pares justapostos: “ entrou — de peito feito"; “Mogo esporte de forte.” ‘+ repetigdes mmiltiptas para provocar intensidade emocional: ele me pareceu vir: da parte do além. F estou pedindo, pedindo, pedindo um petdao.” “Mato 0 Magrinho, & hoje, mato © mato, mato, mato ‘+ mistura de vacabulério coloquial ¢ erudito: “«Nosso homem, ignaro, escalara dela o fim, ¢ fino. Sus- teve-se, [/..] a0 tono se encarapitava, safado, sabié, no pdramo empireo. Paravam os de seu perséquito, nto menos que eu surpresos, detidos, aqui em nivel térreo, ante a infinita palmeira.”” ‘ cringtio de novos substantives abstratas: ‘eu ja declinava para ndoezas?”” (derivado do advérbio nfo) “De roda, na vishambranga, 0 que dos vales ¢ serros vem. 0 que o horizoate ¢ — tudo em tudo.” (derivado do verbo vislumbrar = ver indistintamente, ao longe) “Mas tucano, sem falta, tinha sua soéncia de sobre- vir... no pintar da aurora.”” (derivado do verbo soer = costumar, ter por habito) * flexio de palavras invaridvels: “Ah... @ quase, quasinho. de horrir-me 0 pélo.” quasesinho, quase... Era * verbos formades a partir de adjetivos: “‘Cabisbaixara-se. Tio Man’ Ant6njo, no dizer essas pala- vras...”” “« — ‘Palsa a beatinha € tu!” — Brejeirinha se malcriou.” abrasilelramento de palavras estrangeiras “Eu, Reivalino Belarmino, capisquet.”” (do italiano capire compreender) “La se ia, se fugia, 0 meu esnarte patrao.” (do inglés smart = astuto, esperto, sagaz, ladino) i i 3 Os enredos das estdrias' Para se ter uma visio de conjunto do livro, delineia- se, neste capitulo, o enredo de todas as suas estérias. A apresentago dos enredos vem acompanada de uma breve sintese interpretativa, cuja fungéo € localizar no espirito do leitor algumas possibilidades de decifracdo dos princi- pais aspecios simbélicos de cada conto. 1 — “As margens da alegria” Esta estéria desdobra-se em cinco movimentos que alternam ciclos de alegria/tristeza, deslumbramento/ depressio, estabelecendo um tito de iniciacdo, uma cerimé- nia de preparagio para a vida de um Menino, como € cha- mado © protagonista. © movimento inicial coloca-o a bordo de um avido, rumo a uma “grande cidade” que se construia no planalto brasileiro. O convite dos tios concretizava um sonho: 0 de viajar. “Alegre de se rir para si”, 0 Menino cresce intima- Todas as citardes aqui Lansetias procedem da 16? edicdo do Primeirus cestéras, publicada no Rio de Janeiro, pela Nova Fronteira, em 1985, 25 mente, nesse aprendizado inicial dos mistérios da vida. Ao perceber da janelinha do avifio o “‘mével mundo”, sente- se satisfeito consigo mesmo, ‘© segundo movimento, com a chegada a0 destino, amplia essa relagdo de prazer com o mundo, propiciada agora pela visdo exdtica de um peru. A imponéneia de sua “colorida empatfia”” traz-lhe um deslumbramento instantneo. © terceiro movimento da continuidade a onda de ale- aria: ao passear de jipe pelo Sitio do Ipé, 0 Menino extasia- se com as flores, cobra-verde, papagaios, pitangas, veados- campeiros do rabo branco, perdizes, siriemas, garcas e com © buriti, “2 beira do corguinho”. Tudo Ihe trazia ““aumen- tos de amor”. De volta & casa, almoga pensando sé um pouquinho no peru (“para ndo gastar fora de hora o quente daquela lembranga’”?) e na grande cidade que “ia ser a mais levantada do mundo”. Sai para o terreiro € vé ‘sé umas penas, restos, no cho”: haviam matado o peru para o almogo comemorativo do aniversirio do “doutor””. A sen- sagdo de beleza imperial que a ave Ihe propiciara se esvazia €.0 Menino cai em depresséo, amargurado. No quarto movimento, levado para conhecer o lago, seepage de lazer da futura cidade, 0 Menino udv cousegue fixar sua atengéo em nada, dominado que esté pela “‘eircun- tristeza”. Quando um tratorista derruba uma grande drvore, ‘© barulho da queda amplia sua tristeza. No limo movimento, com “seu pensamentozinho ainda na fase hieroglifica”’, o Menino volta ao terreiro ¢ descobre outro peru, fato que temporariamente atenua sua decepedo. No entanto, ao vé-lo bicar ‘com édio” a cabeca degolada do outro peru, apreende com dissabor a dimensio do mal ¢ da crueldade. A chegada da noite livra-o da anguis- tia, deslumbrado que fica com o brilho fosforescente do “primeiro vaga-lume”’: a alegria e © fascinio se produzem na forma de tevelacdo da Beleza. © percurso dos cinee movimentos pareve estar em sintonia com as idéias platnicas sobre a ascese (= aperfeigoamento, eevacSo) expirtual, 6 A percepgdo da natureze imperfeita do mundo tensive é¢ fator que con- dduz 0 homem. a necessidade de superd-lo, para aleangar a plenitude do siuado inteligvel. A sjetiria de ascensio do Menino lembra tambéin a rope de harmonia supertativa entre os contrésios: aa atma do protego- rista, 08 opestos se concilam, trazendo o equilibric que possiblita a con- ‘inuidade da vida | — “Famigerado” Um grupo de cavaleiros invade um arraial, disigindo- se a farmécia do lugarejo. © chefe do bando, “‘com cara de nenhum amigo”, parecendo ser “um brabo sertanejo, Jagunco até na escuma do bofe”, se apreseita como “Da- mizio, dos Siqueiras..." O farmacéutico, narrador deste conto, imediatamente associa-o a0 “feroz de estérias de léguas, com dezenas de carregadas mortes’. Apavorado intrigado, o farmacéutico ouve © lider dizer que ndo viera ara receita ou consulta: viajara “seis léguas, expresso direto pea mor de the preguntar a pregunta: © que signifi ‘cava fasinisgerado,.. fuz-me-gerado... falmisgeraldo... fami- Ihas-gerado?” Aliviado, o farmacéutico responde aue fami- gerado queria dizer “‘indxio”, “célebre”, “‘notério", “n0- tavel””, Damazio, “em trégua de pamera”, conta-lhe que ‘ouvira 0 termo de um ‘moco do Governo” e queria saber se era “nome de ofense”’, solicitando ao farmacéutico que Ihe respondesse “em fala de pobre, linguagem de em dia- de-semana’’. E 0 interlocutor reforca que a palavra signifi- cava “importante”, “que merece louvor, respeito””. Tran- attilizando-se com o esciarecimento, Damdzio pede-Ihe wm copo d’sgua ¢ diz: — “Nao hd como que as grandezas machas duma pessoa instruida!” Agradeceu, apertando a mao do farmacBatico, e “esporou o ala74o”, indo embora Findo-se do “famoso assunto”. A sucesso dos esdgios de ignordncia ¢ exclarecimento, vivenciados pelo chefe do bando, possivelmente ¢ uma alusio, em: ambiente sertansjo, 2 a0 Smite da caverna” (rela, no “Vocabuliie aitico", platonisma). A natratva é intiramente dedicada a traduzir 9 significado de uma palavra = femigerado —, revelando uma ovrra dimeasto de estéria, proposta pelo autor num dos pretécios de Turamefe: “anedota de abstragio”. Isto fe evidencia, neste conto, pela harmonioga sintese ent linguagem e fabu- lagio. Note-e também 0 Tio de cabelo que governa 2 acas0: por i triz, © que cermina em coméiia teria terminado em desgraga. Eo mals fantés: Uico: quem decide tudo é a nogdo de uma s6 palavr — “Soréco, sua mae, sua filha” Um vagdo especial, estacionado no desvio de uma esta- so ferrovidria de interior, aguarda duas mulheres para levis até 0 hospicio de Barbacena, Vestindo sua melhor roupa, 0 vidwo Soréco, braco dado com sua mae e sua filha, sustenta com dignidade estéica o ritual de despedida de suas Gnicas parentas. A popula¢ao da cidadezinha acompa- nha o triste acontecimento, guardando sespeitosamente 0 iso ao ver as roupas extravagantes da moca. O espanto se acentua quando ela, no trajeto para a estacdo, comega a cantar, alto e desafinado. Ao chegarem a estagao, a velha desgarra-se do filho ¢ vai calmamente sentar-se no estribo do vagao, pasando a cantar em dueto com a neta. As 12:45, chega 0 trem do sertdo ¢ o vagio é engatado nele. Apés 0 embarque, Sordco no consegue nem olhar para trés, para ndio assistir A partida de suas parentas. Volta para casa, arrebentado pela tristeza da irreversivel separagaio, repenti- namente, Sordco passa a entoar com tal emogao a cantiga de suas mulheres, que os presentes se contagiam, mobil zando um tosco mas belo coral: “A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga””. Retomada do mito isblico de 56, simbolo da peciéacia e do despoja rmento. Deus quis pér & prove as virtdes de J6, permitinds que Setanss 0 sujeitasse a uma série de paderimentos e vexamcs: destituiv-o de suas eras e colocou-o num monte de esterco, sob o eseéraio de sua mulber « de seus emigos. Apesar de todas as provagdes, 36 munca deixa de Jouvar 1a Deus. Soro lembra J6 pela intensidade do sofrimento que experimen ta, ao ser privado da companhia da mie © da filha, nas eircunstinsias fem que se deu c fata. final embra zambém o mito de Orfen,cuja avis liberava un som to belo que conseguia aquietar até as feras. O canto de Sordco parece possuir 0 dom de sensibilizar, muliplicando 0 efeko dla compaisao. Enfim, ¢ uma estoria em que Rosa procura resgstar 2 rnogio de que a nobreza da solidariedade & um valor que também passa pelo tertGrio da Beleza, IV — “A menina de la” No isolamento da roga, num higar chamado “Temor- de-Deus", localizado atras da “Serra do Mim”, vivia uma estranha menina chamada Nhinhinha. E notével como os topon{micos iniciais j4 conferem ao conto uma aura de mis- ticismo, que ser progressivamente mesclada com um pro- cesso de sondagem do inconsciente. Nhinhinha inventava estérias absyrdas, como a de “abelha que se voou para uma nuvem’” ou da necessidade “de se fazer uma lista das coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo”. Intercalava suas brincadeiras com frases do tipo “A. gente ndo vé como o vento acaba"’, ou “Eu quero ic para ld”, Quando @ familia falava dos patentes mortos, ela se ria dizendo: — “Vou visitar eles...” TiantOnia foi a primeira a perceber os dotes paranormais da menina: certa manha ouviu-a dizer que queria um spo; instantes depois, entra pela sala uma “rf verdissima’’, indo direto para os pés de Nhinhiaha. Muitos prodigios se sucederam: 0 que ela ‘“fa- lava, stibito acontecia”. Quando a mae adoece, suas dores sdo aliviadas pelo abrago ¢ beijo quentes da filha. Todos resolvem guardar segredo, temerosos de que Nhinhinha fosse levada para um “sétio convento”. Como as terras do rogado estavam seeas, anunciando perda total da colheita, © pai manifesta seu desespero ¢ procura convene8-la a pedir chuva. Dois dias depois, Nhinhinha “quis” um arco-iris: choveu 2, logo depois, um “vivo cor-de-rosa” desenhou- se no eéul Nesse dia, os pais ndo entenderam 0 motivo da menina ter sido duramente repreendida pela tia, Dissimula- ram sua revolta, contentes com a perspectiva tisonha que ‘0 futuro Ihes acenava, alimentando projetos de desfrutarem economicamente a paranormalidade da filha. Foi ai que Nhinhinha adoeceu ¢ morreu, Abatidos pela tristeza, 05 pais, ao tomarcm as primeiras providéncias para um enterro com “acompanhamento de virgens e anjos”, so interrom- pidos por Tianténia, que Ihes conta o motive da repreenséo em Nhinhinha: no dia do arco-itis, a menina dissera que queria um “caixdozinho cor-de-rosa, com enfeites brilhan- tes..." Diante do derradeiro milagre, os pais como que & beatificam: © conto se encerra com a expressdo “Santa, Nhinhinba’”? ‘Nhinhinba € uma personagem ategérica, que simboliza 0 lirismo pro da migica inocéncia infant. Elz sepreseta o estégho cong to ‘ato da sabedoria, numa fase iracional, anterior & const embra wauitipa® da “erica primordial”, decenv do por Cen. Jang; segundo esse nucdo, a crianea possui um sentido de totaidade ou de integridade no conhecinvento das coisas, que se manifesta apenas antes «do aparecimento do ego consciente itrempendo sob a forma do misticisme da itopicidade, — “Os irm&os Dagobé”” Tudo comera no veldrio de Damastor, 0 mais vetho dos quatro itmaos Dagobé, que fora morto por ‘um lagae Ihé pacifico © honesto, chamado Liajorge””. Todos passa- ram a temer pela sorte do “‘capiau”’, considerando a fama de facinoras que cercava os irméos. Essa imagem se fi mara pela lideranca do “recém-finado, [...], 6 grande pior, 2 Modelo original das formas, das quate as coisas concretassio cépins. © cabega, ferrabrés ¢ mesire”, que obrigava os mais noves a seguir com a sina da famflia. Agora, ali estava ele, esten- dido, com o “queixo de piranha” atestando seu “inventé- rio de maldades’’. © tempo passa ¢ 0s comentarios no veld- rio sempre girando enrtorno do tiro de garrucha despejado no centro dos peitos”” do recente defunto, Fora um ato de legitima defesa, pois Damastor, sem nenhum motivo, ameagara cortar as orelhas de Liojorge, que s6 fez se pre- servar. “Até af”, diz o narrador parodiando pelo avesso um conhecido provérbio, “viveu o Telles”. No arraial, todos se espantavam com a dedicago com que os irmaos sobreviventes se empenharam nos detalhes do enterro de Damastor, cuidando para que no faltasse “café, cachaca- queimada, pipocas”. E a revanche, para quando seria? B © veldrio continvava em tom cerimonioso, com freqtientes manifestagdes de afeto a0 motto pelos Dagobés mais novos. © povo achava que essas manifestagdes de carinho eram tética de despiste: “‘aquilo era quando as oncas”. E aguar- davam ansigsamente o acontecimento fatal, que certamente dar-se-ia apds 0 enterro, lamentando pelo destino do “quieto rapar””. Os Dagabés, Dismundo, Derval, Dorieéo, sempre préximos uns dos outros, bebiam e confabulavam em voz Daixa, Nisso, chegou a noticia: Liojorge, dizendo que “ma- tara com respeito”’, se propunha a vir a0 veldrio para pro- var a honestidade do seu gesto. Todos ficaram pasmos: “Liojorge doidara?”” Novas tratativas entre os irmaos, que acabam conseatindo. Enquanto isso, mais chuva cafa, mais eachaga rolava. Cutros embaixadores chegaram, trazendo agora uma inacreditavel proposta de coneiliagao: Liojorge se oferecia para carregar o caixto, Doric&o, mudo até entio, concorda com o pedido, desde que Liojorge viesse “depois do caixio fechado", © dia amanheceu o moco apareceu, ‘cumprimentando com firmeza os tr@s, dizendo: — “Com Jesus!”” A resposta foi o gesto de que cle deveria pegar a alga dianteira do caixdo, “da banda esquerda’”. Quando o EN cottejo saia rumo ao cemitério, caiu mais chuva, deixando todos ensopados, Os Dagobés, armados, davam a impres- sdo de que, “baixado o caixio na cova”, dali a pouco hiave- via necessidade de abrir mais uma... Foi quando Doricéo, “em baixo € mau-som”, disse: — “Moso, o senhor vé, se recolha. Sucede que 0 meu saudoso Inméo é que era um diabo de danado...”" Agradecendo sinceramente a todos pela presenga, os Dagobés se retiraram, dizendo que iam ‘morar na cidade grande. © enredo desta estdria sugere que a vida possiblite, & quelquer tempo, a aquisigto da csilidace: 0 impacto da morte de Damastor foi o sdetonador desta epfania que eavolveu os izmdos sobreviventes, pois desen- sadeia neles a reflexd0 do que tinkam sido aié entao e do muito que podiam fazer pata resgatar sua urbaniade, Pode-te associat tematicn- ‘mente ete conto, que aburda o fendmeno da evolucdo do esprito, aalgu- ‘mas falas de personagens famosas de Guimarirs Rose, como a do menizo Dito, ca covela Campo geral: “e mole judiado vai ficando forte, mae ‘muito forte, Trastempo, 0 brute vai ficando mole, mole’. Comparece, ‘em Liojorge, a marca daquela personagem que Aristtees chamou Eivon (raiz da palaveaironiz) cuja forga nacrativa etd justamente em ndo alar~ dear orga necbuma. ‘VI — “A terceira margem do rio” (Veja, no capitulo 4, a sintese do enredo ¢ a anilise desta estéria.) VIl.— “Pirtimpsiquice”” Relato da insdlita experigneia teatral vivida por um grupo de adolescentes, estudantes em um internato. Sob a diregdo do Dr. Perdigao, professor de Geografia e Histéria do Brasil, doze rapazes ensaiam “Os fithos do doutor Famoso”, drama em cinco atos que tepresentariam num. | | domingo, em cardter beneficente, Paralelamente, num “pacto de puro entusiasmo”, o grupo de amigos inventa outre est6- ria para despistar os colegas que nao foram escoThidos para © teatrinho por serem ‘“mal-comportados incorrigiveis” € que, por isso mesmo, pretendiam anarquizar 0 espetéculo. ‘A est6ria inventada deixava-os cada vez. mais exeitados, pelos “singulares-emm-extraordinétios epis6dios” de ago ¢ aven- tura que néo existiam na “estéria de verdade””. © natrador (gue relata em flashback), escolhido para “‘ponto”, via-se Obrigado, pela responsabilidade da fungao, a saber todas as, falas de todas as personagens do drama. Os ensaios do Dr. Perdigio entremeavam exortapdes a seriedade da arte de representar com citacdes de conhecidas provérbios latinos. No dia do espetéculo, quando tudo jd estava preparado, sobrevém inesperado contratempo: 9 pai de um dos atores “estava & morte, no Rio de Janeiro”. O aviso fora dado por um tio, que © esperava para leva-lo ao Rio. E assim que 0 narcador, até entEo trangiilo em sua fungdo de ponto, se vé obrigado a entrar em cena, vestindo 0 fraque destinado a0 amigo. Quando da por si, jd est4 14 no meio do paleo, de pé, encaxando a platéia lotada. Dew o maior branco, por- due nay cipaiara alguns versus em homenagem a Virgem Padroeira ¢ a Patria, que s6 0 titular do papel decorara. As pernas bambas, 9 “‘suor frio ¢ quente” deixam-no gago'e imével. E © que basta para a platéia irromper em ensurdece- dora vaia, levando ad desespero 9 ator em cetia € 0$ outros ue se encontravam nos bastidores. Ouve-se um grito trému- lo: — “Viva @ Virgem ¢ viva a Pétrial”, que arranca enor- ‘mes aplausos da platéia, Os atores que deveriam sair do palco, para que fosse representada a cena inicial do drama, perma- necem ali, feito estatuas, misturando-se aos que entravam para interpreta a tal cena, Nova ¢ estrondosa vaia, seguida de “‘mios, zurros, urtos, assovies: pateada”. Foi ai que um dos atores, 0 “Zé Boné”, comesou a representar a sobrepeca, a “outra’” estéria que tinham inventado para despistar os colegas. Para desespero do Dr. Perdigéo ¢ do Padre, diretor B 0 Colégio, a receptividade ¢ enorme: improvisando falas, estos ¢ marcagbes, os atores envolvem completamente a pla- téia com a magia ¢ a loucura (= Pirlimpsiquice) de suas fan+ tasias, transpostas para o palco! Diz o narrador: “Cada um de nds se esquecera de seu mesmo, e estivamos transvivendo, sobrecrentes, disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito — 0 milmaravilhoso — a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros ¢ no nosso préprio falar’’. A epifania desses mégicos e intensos momien- ‘08 sucede o encerramenta abrupto da peca, provoeado pelo narrador, que dé uma cambalhota e despenca do palco. sta estria,estrategicamente posicionada apds a tensto mistica de "A erecica margem do rio", funciona como wma pausa para descontra- clo na leiura do livro, Simuttaneamente, 0 Autor desenvolve um estudo sobre a psicologia juvenil, enquanto faz um comentario metelingist co sobre o provesso da crspio artstica, especialmente aquela que assarae tum cariter magico, geradz pelo improviso. Com a iereveréncia e alegria préprias da dade, um grupo de rapazas descobre como a emosdo de inven- tar pode treduzic, com maior fidelidade, suas nevessidades € suas aspica- s8es. Ao comtrério da escola, evja ciglder petrificada se personifica na ‘igurato sisudo Dr. Perdigdo,~"de stria barbas™, aoostumado a citagdes de clichés culturas ede desgastados proverbios latinos. O conto nao deixa também de render sua hiomenazem 4 célebre teoia aristotélica do teatro ( a poesia em geral} como mimésis, isto é, imitacto recriadore. vi — “Nenhum, nenhuma’ 0 cenatio desta estéria é impreciso: tudo parece acon- ‘tecer numa misteriosa mansao, localizada_possivelmente numa fazenda, ‘no indescoberto rumo”. E ali que vive, transitoriamente, um Menino que procura evocar um deter minado episédio de sua infancia, num processo de reminis- ccéncia sistematicamente entrecortado por lapsos de memé- ia, quando nio mesmo por absoluto esquecimento. Os estinmulos que desencadeiam suas lembrancas s4o sempre sinestésicos (= percepedo através das sensagdes): um eheiro de revistas velhas, uma escrivaninha vermelha, uma hiz mara- vilhosa que envolve a imagem de uma Moga, como se ela possuisse uma: aura. Desejaso de clarear a neblinenta lem- branca, para libertar-se da escuridao, esse Menino teria ido assar uma temporada naquela estranha mansao, de tios ‘0u de conhecidos, ele nao sabe bem a ligago que tinha com aquele lugar. Lé moravam um Homer triste, sua filha (que parecia uma princesa vivendo no que poderia ser um caste- Jo), um Moco, apaixonade pela “iluminada”, ¢ uma *velhi- nha velhissima”, de quem a Moca cuidava, Por nao poder afastar-se dessa senhora — uma “‘tresbisavo" de incelculé- vel idade —, a Moca se viu obrigada a afastar-se da rapaz, apesar de amé-lo. Ele parte, levando consigo 0 Menino, para devolvé-lo a seus pais. Como se estivesse voltando & realidade, apés um longo sonho, 0 Menino, a0 reencontrar © Pai e a Mae, sente-se diante de estranhos que perderam a chama do amor. Por néo reconhecé-los, explode aos gritos: — ‘Voots ntio sabem de nada, de nada, ouviram?! Vacés ji se esqueberam de tudo 0 que, algum dia, sabiam!...” Fata 4, a0 lado de “O espetha”, uma das etérias mais hernéticas do tio. © que soniribui para sua obscuridade & a atmosfera de sonho fem que tudo se dé, stuando nom plano simbélico a concepyio platGnica dos dois mundos aplicada a vida de um Menino, O mando inteligive! vem tepresentado pele mansio onde o Menino deseabre © Amor, na figura 4a Mora iluminade. A esfeca do sensivel se concrtiza no reierno a casa dos pais, vista pelo Menino come uma espécie de condenacto 2 vida imper- ‘eta © defeitose. A peroepgio desses aspectos feva-o @ explosdo de seu descontentamento, rejeitando o relacionamento fio de seus pais, cost ‘mados a um casamento que havia perdido sua chama. 1X — “Fatalidade”’ ‘Esta terceira e titima estéria de western brasileiro se pola- riza na figura eclética de um homem de “‘vasto saber e pen- sar, poeta, professor, ex-sargento de cavalaria”’ e agora dele- gado de policia numa cidadezinha de interior. Ali passava 8 dias a exercitar a habilidade de sua pontaria, enquanto citava pensamentos gregos, hindus ¢ os do apéstolo So Paulo. Aparece na delegacia, para registrar uma queixa, umn tal de “Zé Centeralfe”, caboclo de “‘vinte-c-muitos trinta anos”, tipo ‘“mitido, mofdo”, atarracado, “‘concreto como urna anta’’, morador do arraial do ““Pai-do-Padre””. Tenso, esfregava suas “‘miios calosas, de enxadachim’ viera “dar parte” de “Herculindo Socs"*, um desordeiro que se engragara com sua esposa, ficando o tempo todo de “olho quente” para ela. A coitada ndo podia pér os pés para fora de casa, que o homem surgia para desaford-la com propostas desonestas... O “Zé Centeralfe”” tentara resolver @ coisa na paciéncia, chegando até a se humilhar, “a menos ndo poder”. Nao adiantara nada: 0 “rufigo tre”’ continuava incomodando a moca. A situago se tor- nara tdo insuportavel que o casal resolveu se mudar para © “arraial do Amparo”. Mais uma vez, 0 “‘nominoso”” os descobrit, continuando seu “malfazer”. Cansado de fugit, resolvera apresentar queixa: “Aqui é cidade, dizse que um pode puxar pelos seus direitos. Sou pobre, no particu- lar. Mas cu quero é a lei...” Enquanto ouvia paciente ¢ atentamente a reclamagdo do rapaz, 0 “Meu Amigo” como o natrador se refere ao delegado) dis das paredes da sala, repleta de rifles, pistolas e espingardas, e escolheu uma carabina, dizendo “‘um tanto malignamen- te”: — “Esta leva longe...” Saiu dali, para buscar o dito cnjo. Ao encontré-lo, atirou com ‘rapide angélica: € 0 falecido Herculingo, trapuz, jé arriado I4, ja com algo entre 98 proprios e infra-humanos olhos [...]. Nao ha como o curso de uma bala; e— como és bela e fugaz, vida!” Foram dois os tiros que acertaram o bandido: 0 outro saira da arma do “Zé Centeralfe™ direto para 0 coragao do “iscario- tes""}, Diz 0 delegado: — “Tudo néo é escrito ¢ previsto? > Sobrenome do apheolo Judes, que trait Jesus Cristo, Fed Hoje, o deste homem. Os gregos [...] a necessidade tem nos de bronze..." Completa, afirmando: — “Resistencia 4 prisio, constatada...’” F vai-se embora, convidando os amigos para almocar, principalmente o “Zé Centeralfe”” vingado. O exctntrice delegado poticiona se como justieiro, ap afirmar que: = “*A vida de um ser kumato, entze outros sees humanos,& impossvel. © que vemos, & apenas iilagte: salvo melhor raciocinio”, O “karma” do bandido ¢ que teria induzido o delegado a elimini-lo, om aome do res- ‘ubelecimento do equilibrio e da ordem wniverssis. Direito de cidedania necessrio liberdade do homem, que estava send negado ao Zé Cente- calfe, 0 marido ofendide. O-termo sfnscrto karma, ctado por Rosa, cot ‘eritua, no plano ético, a relagdo de eausalidade que se estabelece ene os tos humans ¢ suas conseqlénclas. Bstas ccasionam situagées decorren tes de atos, cajos autores foram tesponsiveis, nesta ou em vidas anterio- 185. 0 desfecho do comto ¢ iréuico: ¢ que acontece com Herculine Socd tinka sido desidido por ele mesmo. Estavs escrito nas estrelas, 0 que iria The acontecer... X — “Sequéncia’ De madrugada, uma vaquinha foge da fazenda da Pedra, propriedade do ‘‘seo Rigério”, em busca de sua antiga “queréncia”*; a fazenda do Paodolhfo, de onde viera bd algum tempo. Os vaqueiros da Pedra lembraram- se da marca gravada em sua pemna e informaram ao fazen- deiro 0 possivel rumo que ela tomara. “Diaba”, diz ele, insinuando para todos a vontade de recuperd-la. Um dos fithas, “senhor-moco™, cheio de brio, afirma sua disposi- ‘clo de ir arribé-ta, resgatando-a. Na rota de retorno, “de ‘este para leste”’, a vaquinha pitanga enfrenta muitas cer- cas, transpostas ora seguindo seu contorno até chegar num corrego, ora simplesmente saltando-as. Embora tivesse per- “Lugar onde 0 gado fol criado: & umn termo regional anicho, ai neem, dido seu rastro, quando ela, “trés vezes esperta’’, entrara ho riacho para despistar, 0 filho do fazendeiro nao esmore- cia, Na viagem, meditava: “‘Aonde um animal 0 levava?” Montado em seu bom cavalo, continuava a perseguigio, que “transcendia ao que se destinava”... Mesmo durante ‘noite, o vaqueiro “obeego"” (= obcecado + cego) apro- veitava o brilho das estrelas para seguir adiante, empenhado em reconguistar 0 animal. Ao chegar ao seu destino, a vaca reconhece a fazenda, “por amor desses Iugares”, A fazenda do Paodolhao era propriedade do Major Quitério, pai de quatro filhas mogas. Ao transpor a porteira da fazenda, o vaqueiro perseguidor entende o verdadeiro motivo de sua busca: @ segunda filha do fazendeiro, Presen- teia-a com a vaquinha e Ihe oferece 0 ““anel dos maraviliza- dos. Amavam-se””, © ceminho da fberdade & 0 vaminho da nocsidade: essa mixima pode ser aplicaca ao conto, cas se considera felicidnde como manifess- #0 da liberdade, Para consegui-la, tanto a vaca como o rapar tém que franspor muitos ¢ dite obsidculos: ela, para reiornar & sua “‘querén- cia” ele, ats do aparentecesgae, para ir em busca de um casamento ‘A trajetéria de ambos exercta a nog de ae n diteita do fvreacbitrin, possiel para o animal, &imprescindivel pare o bomem, pois “quem el seu a busca do pode recusar a travesia”,comenta Alfedo Rosi, em sev ensaio sobre Guimardes Rosa, publicado em Cu, inferno. © empenho com que o filo do ‘seo Rigéio” se dedica em anribar a vace s6 pode ser explicado pela forca do Destino, O imponderivel Fado que the deca @ determinagdo de ir eté onde fosse necessirio para sleangar a felicidad, ave 86 pode ser ating se muito perseguida, XI — “O espetho” . Guimarfes Rosa monta, neste conto, um jogo de espelhos, que se reflete ja na exploragdo dos recursos gré- ficos: quando aparece o tipo normal, € para registrar 0 acontecimento que serve de nicleo & narrativa; quando explora 0 tipo italico, abre espago para as digressdes, as reflexdes do personagem-narrador. © jogo de espelhos também se estabelece na relagdo entre a personagem © 0 Icitor: o natrador nao se identifica nominalmente, ¢ 0 le tor é aferuosamente chamado de “‘senhor’”, retomando © expediente jé aplicado em Grande sertéo: veredas. O didlogo entre os **jogadores” desenvolve-se num processo gradativo de énvolvimento, sempre estimolado pelo per- sonagem-narrador: com uma suave adverténcia inicial, ele'comesa dizendo ao leitor que o que vai ser relatado no é ima anedota de “‘aventuras’”, como tantas que se dlstribufram saborosamente ao longo do livro. Assim, 0 leitor ¢ desafiado a participar de uma “‘experiéncia” insd- lita: acompanhar o narrador numa devassa de sua alma. Aqui, © “sua’” intencionalmente ambiguo, pois pode se referir tanto & personagem como ao leitor, que parti- cipa do jogo em duas posicdes: a de um ouvinte privile- giado ¢ a de alguém que se auto-analisa, atendendo ao convite formulado pelo narrador. Com isso, 0 Ieitor acaba se transformando em doublé de si mesmo, tirando as méscaras com que se protege no cotidiano, para partici- par desse estranho jogo da verdade. A palavra espelho, que da titulo ao conto, vem do latim speculum, termo de onde se derivou também especulacdo, que represen- tava para os antigos o hébito de olitar as estrelas com o auxilio de um espelho. Esta operacao, altamente intelec- tual, deu origem a uina outra atividade espiritual: a con- sideragdo, termo também derivado do latim (sidus-sideris = esirela) € que significa, etimologicamente, “‘olhar © conjunto das estrelas’”. Ora, 0 jogo que 0 conto propde & justamente esse: desenvolver-se uma abstracio, aproxi- mando o leitor daquilo que o narrador ironieamente cha- ma de “hiperfisica’” ou “transfisica”, nomeando com estes neologismos 0 que a filosofia chama de mezafisica. Considera 0 nurrador que “o espelho inspirava receio supersticioso aos primitives, agueles povos com a idéia de que o reflexo de uma pessoa fosse a alma. Via de regra, Agta ti sabe-o 0 senhor, € a supersticéo fecumdo ponto de partida para a pesquisa, A alma do espelho — anote-a —, esplén- ida metéfora’””. Com essas digressées, 0 narrador passa a relatar a “‘experiéncia’” que viveu, dizendo que tudo come- sara “‘num lavatério de edificio piiblico, por acsso. Eu era moco, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei.,. Explico-Ihe: dois espelhos — um de parede, o outro de porta lateral, aberta em angulo propicio — faziam jogo. E o gue enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradavel ao derradeiro grau, repulsive sendo hediondo. Deu-me nausea, aquele homem, causava-me dio € susto, ericamento, espavor’. E era — logo descobri... era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelagio?”’ Essa descoberta, a de que existe um Outro, Tevou o personagem-narrador & pesquisa de se procurar, ten- tando achar ‘ao eu por detrés de mim”, transformando- se ele mesmo em “‘cacador de meu proprio aspecto for- mal”. Afirmando ter levado meses nesse trabalho, desen- volveu varias préticas de se mirar no espelho: “o rapidis- simo relance, os golpes de esguelha, a longa obligiidade apurada, as contra-surpresas, a finta® de palpebras, a tocaia com a luz de-repente acesa, os angulos variados imcessante- mente”. Constata que “os olhos da gente no tém fim", or isso se dispde a treinar “bloqueios visuais” para apa- gar ‘as diversas componentes no distarce do rosto exter~ 0”. Com isso, pretendia anular sua méscara, retirando Progressivamente de seu rosto os varios elementos que a constituiam. Sua imagem se esfacelava, desfazia-se cada vez mais, até que, um dia, ao se mirar no espela, nio se vé. Diz ele: “partindo para uma figura gradualinente sim- plificada, despojara-me, ao termo, até a total desfigura””. A conclusdo a que chegou foi terrivel: “seria en um...des- almado?” © narrador aflsma que assim permaneceu por 5 Pavor, terror. * Dahle, muitos anos e, apés uma fase de “‘sofrimentos grandes’, ao olhar-se no espelho, a principio nada enxergou: depois notou que apareceu algo, uma luz fraca que o deixou intri- gado: ‘Que luzinha, aquela, que de se emitia (...)?”” Pavlatinamente, vé que vai emergindo do espelho, “qual ‘uma flor pelagica’’’, “um rostinho de menino, de menos- que-menino”’. E, mais uma vez, duvida da capacidade de entendimento do leitor quanto & compreensio do fendmeno acontecido com ele, narrador. E o desafia, formulando a questZo-chiave para © entendimento da proposigéo em debate: “Sera este nosso desengongo ¢ mundo o plano — interseego de planos -- onde se completam de fazer as almas?” Afirma que, se a resposta fot positiva, a “vida consisté em experiéncia extrema ¢ séria”. E conclui pro- pondo ao leitor um dltimo ¢ inquietante problema: “Voce chegou a existir?” © tema da alma como espelho constituiy, desde sempre, motive de espeoulagio entre grandes escrtores c fUdeofos. Machado de Assis, por exeut- 1510, tem uni.conto bombnimo; Plotino, pensador ncoplaténico, considera que @alma'possui duns faces: inferior, volada para 0 corpo, ea superior, voltada para a inteliggnca. Retomando metaforcamente esta nocko, Guima- tes Rose submete sua personage a una “experiéncia que se desdobra ‘em dois movimentes: no primelr, ele apsea sus imagem fisca; no segundo, possibilitada a revelagdo da alma, sugere que, quanto mais esa face supe- tor do espelho for pala, através de permanente aperfeigoumente esiti- tual, mais ela secd capar‘de reflir a Bssdaca, revelando a verdade pura ddos aspectos fundamentals da vida. O tema do espelho 4 tho rico e veiado ue jd se disse deieconstitir o sinbolo do préprio Simbotismo... Xi — “Nada @ a nossa condigdo” Esta é mais uma estéria em que Guimaraes Rosa explora © probiema do ténue limite que se estabelece entre sanidade ‘Aquea que nasee no fundo do ocean. sociation ea i rn mental ¢ deméncia: “Tio Man’Anténio™, fazendeiro rico ¢ bondoso, apés a morte da esposa, “Tia Liduina’”’ (“de 4rdua imemorial cordura’"9), torna-se uma pessoa ainda mais estranha do que jé era. Derruba o mato da fazenda, deixando apenas algumas poucas arvores de que sua mulher gostava, Interpelado pelas trés fihas, “‘singelas, sérias, cul- dosas”, resporde sempre com evasivas. Amando-o e respei- ‘tando-o em sua dor, as filhas se assustam quando, no ano seguinte, o pai propée uma festa para comemorar o aniver- sdrio da falecida. Acabaram concordando, pois “estavaa crescidas © esclarecidas”. A festa vieram primos, mogos com “belas imaginagSes”, que com clas noivaram, casaram € se mudaram. $6, mas “nao triste”, Tio Man’Anténio decide doar ¢ distribuir suas terras aos seus muitos empre- gados: “tudo procedido A quieta [...], com o industrio® de siléncios”. O dinheiro que acumulara a0 longo da vida envia para as filhas e gentos que, distantes, n&o queriam nada ‘com aquela a-pique!? dificil fazenda, do Torto- Alto”. Nosso protagonista resolve conservar apenas a casa- ‘grande da fazenda, acompanhando de perto 0 destino que os ex-empregados, agora proprietarios, davam as suas ter- vas. Estes continuavam servindo-o, acatando suas sugestdes, “mas, decerto, milenar ¢ animalmente, o odiavam”. Para que ninguém tivesse problemas no futuro, quanto & legall- dade de seu gesto, Tio Man’Ant6nio deixa judo docurnen- tado, ‘por escrito, da prépria e ainda firme mao exarado”. Deixa também uma “declaragéo‘@ tinta””, com recomenda- clo expressa de que s6 fosse aberta quando morresse. E ‘morreu, ‘‘como se por um furo de agulha um fio”. Os ex- capatazes “acharam-no, na rede, no quarto menor, sozinho de amigo ou amex — transitoriador — principe e $6, eria- 4 Sensater, prudéncia, 3 Habilidade, espertera Ta via de desruigao, de encerramenco de ativideds, " Neologiono resultante do adjetivo transiério + sufixo -dor (aqusle ‘que faz 2 ago de). O termo parece sugerir que & personagem preparou se para morte. } 2 tura do mundo”. Vestiram-no, com um “duro terne de sarja cor de ameixa ¢ em pretas botas achadas, colocado longo na mesa, na maior sala da Casa, j4 requiescamte!?”, Avisa- ram os vizinhos, comunicaram aos “‘parentes ¢ ausentes”” e, enfim, cumpriram 0 pedido expresso em documento: 0 de que se incendiasse a casa, com o corpo dele estendido na mesa da sala. “Consumiuse a cinzas — ¢, por elas, apés, ainda encaminhou-se, senhor, para a terra, gleba tumular, so”. Parédia, um tauto trigicae por isso mesmo bem ao gosto do imsagi- nro cabaclo, de contos de fads, especialmente daqueles que falam de nobzes desprendidos de intereses materiis. Esta sugestéo & dada logo 80 inicio do conto, quando 0 protagorist2 & apresentado come “um dhomem, de mais excelcia que presenga, que podia ter sido a velho re} ‘ou 0 pritcipe mais moro, nas futuras estorias de fads”. Essa inversio ‘emporal, com sua sugestio paroditica, estabeloze-se por conta da dimen ‘io esotérica que Guimardes Rosa confere a sva Iiteratura, sugerindo a cexpectative de que, no futuro, suas estrias se transformem em contes: de fads, Esta est6ria cestaura também olementor da fabula tradicional, ‘na medida em que trensmute nopées de moraldade, valores cada vez rais fescassos om nosso tempo. Assim, tudo o que 0 fazendsito scuraulon durante sua ptéspera existéncia era nada; a persepydo da nulidade da posse certamente consttu-se em fator decisive para que se entenda o core Jos0 gesto de despojamento assimido ao tinal da wila. A estoria proble- ‘etizs, enfim, o que muitos estabelecem como meta de vida: o aciimulo de bens materas. Seré que a aventura de viver se esgota nesta finalidade? XII — “O cavalo que bebia cerveja” Um italiano chamado Giovénio, morador de uma ché- cara isolaca, intrigava a todos os vizinkos com seus habi- tos estrangeiros: “‘comia a quanta imundicie: caramujo, até 13, com as bragadas de alfaces”, Gostava e gastava muito com cerveja: vivia pedindo para Reivalino Belarmino, seu ‘casciro e narrador desta estéria, comprar, na cidade, caixas ‘Tecmo derivado de réquiem, que se refere no defunto que vai se velago, e mais caiias da bebida. Giovénio vivia como um ermitdo, ‘numa casa escondida entre muitas arvores; protegia-se com ‘muitos cachorros gratidos, um dos quais se chamava “Mus- sulino” (0 mais magco ¢ triste...). Reivalino trabalhava para o italiano contragosto: enojava-se com os costumes do carcamano, que “parava pitando, uns charutos peque- nos, catinguentos, muito mascados ¢ babados”. Nem quando 0 pairdo Ihe dé dinheiro para comprar remédios para a mié doente, Reivalino diminui seu édio. A descon- janga crescia, & medida que 0 italiano Ihe pedia para com prar mais © mais cervejas, justificando que cra para con- sumo do cavalo... Foi quando o delegado do local, "seo Priscilio”, 0 intimou para um depoimento. Ressabiado, 0 caboclo estranhou as perguntas feitas pelo delegado ¢ por ‘duas pessoas “de fora", que queriam saber tudo sobre a vida do italiano. Cismado, Reivalino respondeu dissiraula- damente, meditando consigo mesmo: “Quem sou eu, quati, para cachotro me latir?”” Informado da presenga desses estrangeiros no lugarejo, seo Giovanio perguntou a Reiva- Tino se sabia 0 motivo da vinda deles. Reivalino, jogando dupio, desconversou. Meio ressabiado, o carcainano resol- vveu abrir-the a casa: Reivalino entrou pela sala vazia, andou por varios eBmodos, todos sem nenhuma mobilia, até que ganhou coragem € perguniou o que haveria nos quartos. Foi a vez do italiano desconversar. Intrigado, Reivalino, 20 ser novamente convocado pelo delegado, resolve contar- The tudo 0 que sabia a respeito do italiano, O delegado decide, ento, fazer uma visita & chécara para interrogar 0 proprietario: “que estérias seriam aquelas, de um cavalo beber cerveja?”” Nervoso, 0 italiano pediu ao emprogado que fosse buscar 0 “alazdo canela-clara”; enquanto isso, despejou numa gamela varias garrafas de cerveja. Ao Ihe ser oferecida a bebida, 0 cavalo bebe tudo, deisando a impressio de que ainda ndo estava satisfeito... Pasmo ¢ decepcionado, 0 delegado se retira, deixando 0 carcemano preocupado. Espontaneamente, Reivalino vai a delegacia a comunicar que “‘alguma outta razio devia de haver, nos quaitos da casa’’. Intrigado com a deniincia, o delegado retorna a chécara, desta vez acompanhado por um soldado, para revistar toda a casa. “Em pé de paz”, seo Giovinio ‘05 recebeu, fumnando seu cachimbo fedorento; abriu toda asa, indo direto para um quarto, cuja porta estava tran- cada. Ao ser aberta, a cena com que todos se depararam deixou-os boquiabertos: no quarto havia ali um cavalo branco, empalhado! Dando-se por satisfeitos com a decifra- ¢o do enigma, as autoridades se retiraram. Mas Reivalino continuou intrigado: ¢ nos outros-quartos, o que haveria? Ao mesmo tempo, cansado do jogo duplo, comunica a0 delegado que afugentaria qualquer estranho que aparecesse tna chécara. Ao retornar a casa do patréio, que Ihe parecia agora mais simpiitico, Reivalino surpreende-se com outra revelaciio: © patriio abre-Jhe a porta de sala, em que se encontrava um corpo, envolto num lengol! Embargado pela emogto, Glovanio explica a Reivalino que 0 defunto que estava na mortalha era 0 de seu iro Josepe. Decidiu libe- rat este segredo, pois queria que o empregado avisasse 0 padre, para que o irmdo fosse enterrado, conforme o rigor do cetimonial catélico, Sabedor do fato, 0 delegado vai até a chacara, para examinar 0 corpo do defunto. A cena que se viu deixon a todos horrorizados: “o morto nio tinha cara, a bem dizer — s6 um buracio, enorme, cicatrizado antigo, medonho, seri nariz, sem faces”. O italiano explica, “com boca de bobo, que seu itmo fora mutilado na guerra. Assustado com esta tltima revelagio, Reivalino comvnica ao patrdo que decidira se demitir. Envelhecido e trespassado pela dot, o italiano diz. que compreende seu gesto ¢ Ihe faz um derradeiro pedido: que levasse junto 0 cavalo bebedor ¢ 0 cachorro Mussulino. Para comemorar a conquista do agora amigo, convida-o a tomar cervejal Pouco tempo depois, Reivalino fica sabendo da morte do italiano e de seu iltimo gesto: em testamento, deixara-the a chacara, Reivalino manda rezar missa.pela alma do ex- op sh te sla i 4 patra ¢ decide vender a propriedade; antes, cartou todas as drvores ¢ enterrou o cavalo de Sto Jorge. A estéria ter- mina com a seguinte declaracao: “Eu, Reivalino Belarmino, capisquei!?. Vim bebendo as garrafas todas, que restavam, fago que fui eu que tomei consumida a cerveja toda daqucla casa, para fecho de engano”’. ‘A progressiva mudanca de mentalidade do empregado em relacto 20 pair ¢ algumas falas esporidicas do italiano desiacam-se como os ‘lementos fundamentais desta estria. Em: brilhanie andise, Suzi F. Sper- ber (Cans cosmos — Leituras de Guimardes Rosa) comenta a frase-chave para se deslindar o conto: ” — Irvalini, evo, a vida ¢ bruta, 08 homens so catives,..” Tal frase, dir a ensasta, produz um efeito de ambigiida- de, anunciado pela mescla entre o italiano e o portugués. Tradusid, fica- tia assim: “Reivaline, vein so, a vida € feia, 05 homens sé0 muaus...” O cefeito resulta 140 mais estranho poc haver, na lingua portuguesa, as pala- ‘ras “eco”, “ruta” e “cata”: vida brota afigura-se-nos como informe, arosseira, Assim, of homens cativos seriam prisioneiros de seu embruteci+ mento, de sua ignoréacia, E 0 conjunto de tudo isso forma eo, apenas 20, Eco de qué? Da realidade: a vida seria, assim, o arremedo ds Vidas homers, farsa de Homens. Tuda, enfim, no passat de eco, reflexo, sombra de uma realidade superior, como considera Plaldo em, sew mito da caverna, a que 0 homem deve procurar ascender. XIV — "Um mago muito branco” Um ser estranho, “figutando ter dentro da pele uma segunda claridade”’, apareceu na comarca do Serro Frio (MG), apés um terremoto ocorrido na noite de 11/11/1872, antevedido por “‘um fendmeno Iuninoso [que] se projetou ‘no espaco”” (um disco voados?), Vindo no se sabe de ‘onde ¢ envolto apenas numa “manta de cobrir cavalos”, © rapaz foi visto perambulando pelo patio da fazenda de Hilitio Cordeiro, cuja sede ficava “quase dentro do Arraial do Oratétio". © fazendeiro, conhecido pela religiosidade "5 Abrasieiramento do verbo italiano eapire = compreender. ¢ cordialidade, acolheu o visitante, que a todos surpreendia por scu mutismo ¢ pela impressdo de que estaria com aranésia. ‘Como se fosse um anjo, 0 maco desperta em todos imediata afeicdo, especialmente em José Kakende, “escravo meio alfor- riado de um misico sem juiz0”. Levado & missa, 0 moco acompanha-a atentamente: seu semblante “se apurava numa maior alegtia — corag&o de cdo com done”, identificado com © ambiente da igrcja. O hospitaiciro fazendciro, da noite para 6 dia, saiu da maré de azar em que se achava: seus negécios prosperaram, a satide melhorou, pasando a desfrutar de uma sorte que nunca tivera. Um fato chamou a atencao de todos: na saida da missa, o mogo branco oferecera 4 um cego uma semente. Este, furioso com a csmola ridicula, guardoua, depois de ter tentado, em véo, comé-la. Para surpresa de Hilé- io Cordeiro, apareceu na fazenda um tal de Duarte Dias, Unico sujeito a néo se engragar com © mogo branco. Prepo- tente, Duarte era daquelas pessoas em cujo “corago ndo caia nunca uma chuvinha’.. Agora, reivindicando parentesco com ‘© moo, manifestava desejo de levé-lo para sua fazenda. Quin- cas Mendainha, “notavel aa politica ¢ provedor da Irmanda- de”, foi o juiz da contenda que se travou entre os dois fazen- deiros, dando parecer favordvel a0 bom Hilério. Assim, o ‘mogo branco continuou ma fazenda em que morava; embora tivesse mos de “homem-de-palicio”, era dotado de extraor- dindria hobilidade para consertar méquinas, manipular ferta- ‘mentas, além de muito inventas. Certa vez, acompanhado do pteto José Kakende, o rapaz encantado visitou Duarte Dias, pai de uma bela moga chamada Viviana, “Gentil ¢ espantoso, Ihe pés a palma da mao no seio, delicadamente.”” Duarte, que a tudo assistia, sau gritando que 0 rapaz teria ‘que se casar com sua filha, pois “a infamara”. Foi preciso padre Bayo intervir para serenar a ftiria do pai ofendido. Este, passaco algum tempo, aparece na fazenda de Hilério Cordeiro, suplicando que o deixassem Ievar 0 moo, porque descobrira que sentia por ele “fortissima estima de afcigao”. © mogo, “claro como 0 ofno do sal”, pegou-o pela mao ¢ 0 conduziu até a tapera de uma olaria; ali, pediu. para que cavasse 0 chao, descobrindo uma “grupiaral de diamantes; ou um panello de dinheiro, segundo diversa tradigao”. Desse ia em diante, Duarte Dias mudou: tornou-se “homem sucin- to, virtuoso © bondoso". Na véspera do dia de Santa Brigida, ‘© mogo branco saiu passeando pelo campo, sempre acompa- nhado por Jost Kakende, a quem pediu que 0 ajudasse a acender nove fogueiras. ““Com 2 primeira luz do sol, o mogo se fora, tidas asas"’. Plantada a semente com que 0 rapaz pre- senteara 0 cego, a érvore. dela nascida surpreendeu a todos, Por apresentar flores com varias ¢ diferentes cores, “desconke- cidas no século”. ‘Um ano baixando a tera: a candura do mogo Danco desperta em todos extraordinéria referéacia Ge confianga, O brane, vale lembar, éa cor da cransfiguragio, simboliza a weofania 1, reveladora da graga trans- cendente. A estria, a0 promover a mistura de OVNI com religdo, sugere uma hipétese intergretativa, bem ao gosto do “espirituaisma ovulista”: 8 de que 08 “discos voadores” seria tripulscios por “‘anjos”, ou seres vindos de ura plano espirtual superior, de wm astral mes elevado, Curioso comparar esta teofania com a que se encontra no filme Teorema, de Pier Paolo Pasolini, em que 2s revelagdes desencadeadas por un anj na forma e ura bonito adolescente, se déo através do sexo e da quebra da ordem. ‘Ao instaunar a anarquia co seo de uma fennfiatipicamente burguea, dé 4 todos os seus componentes a possibtidade de se ver 9 mundo além do limite da mediocridade em que dispersam suas vidas XV — “‘Luas-de-mel”” ‘Um velho fazendeiro, por nome Joaquim Norberto, hospeda um joven casal que decidira fugir porque © pai da donzela, o Major Dioclécio, nfo apreciava: 0 rapar de quem ela se enamorara: este € 0 n6 do primeiro enredo desta estéria. Joaquim Norberto fora escolhido pelo “Seo “Deno stieatiio diamanier, normalenteIclirado a ist " Manifesiasio de Deus, aparisdo divina i 8 Seotaziano”, para dar guarida 20s noivos fugidos, pela cer~ teza da lealdade, fruto de antiga amizade. A delicadeza da situagdo exige do fazendeiro que se multipliquem os cuida- dos de precaugdo: os capangas do Major Dioclécio, “duro e rico, forte em fato”, podiam chegar a qualquer momenio para resgatar a donzela. Ein meio a tensAo decorrente dessa ‘expectativa, realiza-se o casamento dos noivos.-ftigitivos, sob a forte protecdo dos capatazes de Joagniiin Norberto € do outras fazendas vizinhas, que para ali vieram, atendendo a compromissos de amizade. O e2s6tio dos jovens desperta no castl veterano, Joaquim Norberto e Sa-Maria Andreza, a antiga chama do amoj: “‘peguei na mao dela, meio afe- ‘tuoso. Repensei en todas as minhas annas. Ai, ai, a longe mocidade”. ( fazendeiro, narrador desta estoria, suspira “mal em pensando. Eu descia dos vales para os moutes””. Feliz, o fazendeiro recorda-se de scu casamento e manifesta disposigdo de percorrer novamente os “acidentes geogrsti- eos" do corpo de sua esposa: este é 0 niicleo do segundo enredo do. conto. A pluralizagao do titulo se justifica com ‘os acontecimentos daquela noite: enquanto © jovem casal se retira para o quarto, Joaquim Norberto olha, todo feliz, para a esposa ¢... ‘fogo de amor, verbigracia'®. Mio na mao, eu Ihe dizendo — na outra, o rifle empunbado —: “Vamos dormir abragados...’ As coisas que estéo para a aurora, so antes noite confiadas’’. No dia seguinte as “fuas-de-mel””, aparece na fazenda o irmao da noiva, avi- sando que © pai, diante do fato consumado, finalmente concordara com a nova situagdo ¢ aproveitava 0 ensejo para convidar a todos para uma festa “de tornaboda’?!”. Satisfeito com o desfecho, o velho fazendeiro abraga a ‘esposa ‘“‘com olhos desnublados’’, para desfrutar a serena felicidade das ‘‘passageiras consolagées: fazer-de-conta-de- amor, 0 que era o meu cestinho de cartegar dgua’’, 36 Palavras sedutoras para envolver amorosamente a esposa. 1 Festa de comemocagdo da cerimBala do casamento 0 A Adimura que envolve © velho casal em sva Iua-de-mel tempora ¢ frtio do mesmo desafio que Ievou os jovens enamorados & devisio de fuga: a explosdo de Eros, deus do amor € principio fundamental da vida. No jovem casal, a descoberta; no velho, a restauracdo da fonte essencial de energia, Outta valor que o conto apregoa ¢ 0 da amizade, que eniaga ‘as pessoas de tal modo que, para se preservar a ética deste sentimento, ‘eas se disper & Juta, com riseo da propria vida. XVI'— “Partita do audaz navegante” ‘Numa manbi de bruma e chuva, quatro criangas brin- ‘cam préximas a um fogao de lenha, numa cena rural tipica das casas de fazenda, cujas cozinhas costumam ser um espaco aquecido fisica e afetivamente. Trés delas, Pele, Ciganinha e Brejeirinha, sao irmas; Zito ¢ 0 primo que viera passar férias na casa dos tios. Pele, a mais velha, é “‘diligen- ti?” e beatinha; Ciganinha, a do meio, vive em estado de graca, embalada pelo namoro com o primo Zito; a cagula, Brejeirinha, menina levada e esperiissima, ¢ a protagonista, desta estéria, Imaginosa, surpreende a todos com a estéria que inventara sobre um “audaz navegante”. Quando a chuva cessa, grayas aus “‘dez responsos'* a Santo Anténio”” que Pele rezara, as criangas pedem & mde para “‘ir espiar 9 riachinho cheio””. Muitos animais pastavam as margens do ribeirdo e, naturalmente, liberavam ali seus exerementos. Brejeisinha, observando ‘ta coisa vacum, atamanhada, embatumada, semi-ressequida’’, nota que crescera em cima do “monte” um *cogumelo de haste fina ¢ flexuosa, muito Jonga’”. Num pique de pura abstragio, a menina magica- ‘mente transforma ‘‘aquilo"” no “‘audaz navegante”. Acres- centa ao cogumelo “florinhas amarelas[...], folhas de bam- bu, raminhos, gravetos”, O extravagante objeto recebe ainda yeti forma rete aepet de ate (= slo ie) + 9 Gragtes que se ditge a Semto Ani0nlo, para recuperar objetos perdidos. No conta, ¢ pedido que Pele faz # para cessa a chuva. ‘outros elementos: “Zito poe uma moeda. Ciganinha, um grampo. Pele, um chicle, Brejeirinha — um cuspinho” Estava concluida a colagem! Assim, o “audaz navegante” pode partir, rio abaixo. Mas no vai sozinho: “ele embar- cou com a moca que ele amavam-se [...]. O mar foi indo com eles, estético. Eles iam sem sozinhos, no navio, que ficando cada vez mais bonito, mais bonito, 0 navio.. pronto: e virou vaga-lumes...” Nesse ponto de sua est6i Brejeirinha € interrompida por um.trevad,” que a deixa muizo-assustada: As irmnis eo primo correm para acudi-la, imas no ¢ necessério: “‘outra, fada, inesperada, surgia, ali, de contra-flor”, Era a mde que chegava, aparando-Ihe a cabecinha, “como um esquilo pega uma noz”. Ainda deu tempo de Brejeirinha apontar para a mae o intrépido “na- vegante” em sua insélita embarcagao: desciam rio abaixo “mo pinéculo de uma trampa seca de vaca”. Uma estéria dentro de outra estria: es a estrutura deste conto, fem que Guimardes Rosa cria mais uma persorager-mirim inesquecivel: Breleirinba. Bla ja foi chamada até de “protagonist téxico-maniaca", ‘por sua extradrdindria capacidade de livre associa de idéias/imagens, de brinear com as palavras, concresicando-as em objetos, num processe laventwo préximo do Surrealiauo. Numa frase, colocad no texto como conselho de mae péra flho, condeasa-se wma das msiximas Jo pensamento tesianot as criangas “preciscvam de ter: coragem com jutzo?” (grifo nos 30). A metamorfoss da ‘“bosta” de vaca & de ume audicia exeordinéria, sspecialmente pelo arrojo sm tornar um material to a-poétieo em Fonte de onde se faz jorzr a Beleza! Como o mitico sei Micas, que transfor- ‘mava era cure tude quanto tocava, GuimarSes Rose perece possur © dom ‘magico de transformar tudo em poesia, até mesmo este material, aparente- ‘mente surdo ¢ reftatdrio& vibragdo da arte. XVIL — “A benfazeja” Num lugarejo, perdide num fim de mundo qualquer, vivia Mula-Marmela, velha e feia, “furibunda de magra””. Essa mulher era guia de um cego chamado Retrupé, que tt pedis suas esmolas rudemente, xingando todes os que nao correspondiam a seus pedidos, formulacs sempre em tom “‘blasfemifero”, brandindo um facko. O povo do lugar atribua & Mula Marmela a pecha de criminosa: ela matara © pai de Retrupé, um tal de Mumbungo, tido por 4 como “homem de gostar do sabor de sangue, monstro de perver~ sins”. Diziamn que ele costumava esfaguear rasgado, “sé pelo ancho” de ver a vitima ‘caretear”, No entanto, amava sua mulher: “Talver. pressentisse que sé ela seria capaz de destrut-io, de cortar, com um ato de ‘ado’, sua existencia cele- rada””, Agradeciam-the por tal gesto: todos “bendisseram a Deus” quando ela o matou, porque finalmente poderiam viver sossegados. Mas nunca fizeram nada para tiré-la da amargura e da miséria em que vivia. Apds a morte do marido, Mula-Marmela passou a cuidar de Retrupé. Bem antes de ficar cego, 0 filho do “cao” também atemorizava a todos, pois apreciava o sangue das pessoas e costumava escolher as vitimas mais faceis, mais frescas. “Ele precisava de matar [J]. Sabe que é de outra raga, que vem do ainda horrore- 60." Para reftear 0 vampiro (ou lobisomem?) s6 havia uma maneira: cegi-lo. E 0 qué 0 povo acha que Mula-Marmela fez, usando “leites e pés, de plantas” para fechar ““olhos que ‘ado devem ver’. E justificam: “para ele, gragas & cegucira, este nosso mundo ja é algum além”. Cetta feita, Retrupé ten- ‘tou malar sua guia: “sacou 0 facia, tocava-o, avancava as doidas, as mesmo cegas, tentando golped-la, em seu desati- nado furor”. Mula-Marmela permaneceu onde estava, “no se intimidava? Olhava na direc do nao”. Pouco tempo depois, 0 cego falece. No lugarejo, disseram que foi a velha quem the apressou a morte, estrangulando-s.:.. Motivo de escérnio no lugarejo, Mula-Marmela decidiu partir, para expiar sua culpa (ou desfrutar sua inocéncia?) noutro lugar... “Elz ia para qualquer longe, ia longamente, ardente, a s6 6, tinha finas pernas de andar, andar.” > Largo, amplo (prazer. , 2 “A benfaeja” (= aquele que pratica o Ber) € a eséra rigica de ‘Mla-Maracela: um ser que patee tr viodo ao mundo para purifcél. © conto uta elementos do imaginéio popular, fundidos com o mist- smo tradicional de lendas do mundo intero, De eerta mancia,iaterpce- {ando 0 conto com expresdo de plaonisme, Mumbango e Retrup pte- sentam o etigio da cavern, de que se ibertarm aragas 8 “benfazaj”. A ‘comunigade nfo & comprernde, porque as pessoas ndo estavam prepara- das para essa revel: este 60 detatio que o nacrador prope pare le tor, tratado como se fosse um dos moradores de Ingare Com esta tés+ nica orginal, 0 leor€ provoeado continua e dir-amente, como 9 nota no pardgrafo seguine, qué registra a reagdo de Mula-Marmela apés 0 assasnato do marido:"Voes, 3 que nfo a ouvir nfo it, nem super. ‘am se lembrardirezo do delitio*" daquelssisada’’. Importane destacar 4ve 0 pronome de tatamento usado pelo narrador & vocés, n80 mais senor, como ens outros cants ¢ em outzas obras. O natrador parece sge- tir que a comunidade (em que trol o leltor..)escarmece da benfazeja, pea incapacidede de compreender 0 alcance dos alos da “fetieira”. E interesante comentar este aspecto, porque o narrador termina a extra, convidango © Ieitor, perdzo, os “moradores” do hugatejo a maditarem? or que Mali-Marmels € objeto de zombacia? Uma resposia posivel para ¢sta dlcada questo: os habitames daquele lugar também estevam a “ca- verna, mergulhados ainda no “escuro” de sias mente, Da, a poten: cia ea inapacidade de muitos em peceber as titudes de uma pessoa it- mitada, Em dado momento da esti, o navrador parece até se enervar com ete sto de obccnraatien em que ae psoas oo asomedam: “Divo, ‘oct ndo quererko saber, so emdiabas confuses, disso vost ao saben, E, se, ara qu? Se ningném entende ninguém; e ninguém entender nada, jams esta €a prdtica verdad”, XVII — “Darandina” Partindo de uma sugestao aneddtica, calcada no coti- diano urbano, Guimaraes Rosa mais uma vez tematiza a loucura, focalizando-a agora sob um viés tragicémico. 0 narrador, permanentemente irénico e mordaz, apresenta- se como médico-residente, plantonista num “Instituto”, uum hospicio, de importante significado nesta estéria: o jar- 2 Neologism Formado por deliio + viso + alarido. 53 ‘fo da psiquiatria ¢ varias vezes aplicado ¢ ridicularizado. Um sujeito bem vestido, acusado de roubar uma caneta, € perseguido por algumas pessoas, atravessa correndo a praca vai refugiat-se no alto de uma palmeita-real, escalada com assombrosa facilidade, Em seu “paramo empireo” ( nome dado, na mitologia grega, a parte mais clevada do monte Olimpo, moradia dos deuses), é observado pelos fun- cionérios do hospicio, empenhados em reconhecer no ‘‘em- palmeirado”’ um possivel héspede da instituicso. Um outro plantonista segreda ao narrador que © lardpio seria 0 “Se- cretdrio das Finaneas Publicas...”” Para sossegar a multidao, cada vez mais inquieta, divulgam essa informagao, 0 que deixa a turba perplexa a principio, indignada depois, para por fim aceité-la com naturalidade, dada a coeréncia de tal constatacao... Felizmente, para 0 verdadeiro secretério, tudo ngo passara de um lamentdvel equivoco. O diretor, sempre acompanhado pela corte bajuladora dos altos fun- ciondrios do Instituto, tenta uma aproximacio e uma explicagio para o gesto tresloucado do sujeito. Enquanto isso, chegam a policia, 0 corpo de bombeiros, 0 capeldo, enfermeiros, padioleiros, enfim, todas as autoridades e ser- vigos que costumam atender casos do gener, O professor Dartanha (com nome'e atitude de mosqueteiro.. vém, aproveitando a situagio para contestar a autoridade- do diretor, e diagnostica implacavelmente: “Psicose pata- ndide hebefrénica, dementia praecox, se vejo~ claro”. Enquanto tudo isso acontece, 0 “excelso homem” gritava .” frases aparentemente desconexas: ‘'—0'feio est fieands coisa...” ou ainda: “— Querem comer-me ainda v Enquanto isso, deixa cair um sapato, depois 0 fim se despoja de toda a roupa: corna-se w ort paradoxo com ‘franciseano" que renincia matedal. © paradono se aplica personager, refugiada no alto da palmeira, 9 amiecece © que sugere Dela expasipdo da nud ss 14 de cima, enquanto “‘apalpava seus membros corporais”. Toda a seqtiéneia era devidamente registrada por jornalis- tas, fotégrafos € cameramen: 0 ‘‘misantropdide gracioso”” resolveu se balangar no alto da palmeira, para testar sua capacidade de equilibrio, acompanhada por aplausos dos circunstantes. Desesperado, 0 diretor solicitou entdo os prés- timos do plantonista-narrador. Com 0 auxitio dos bombei- ros, 0 narrador comeca a subir pela escada, dizendo: “‘su- bia eu descendo, feito Dante atrés de Virgilio". O para- doxo conrido nesta afirmacdo se explica pelo fato de que Dante, 0 autor de A divina comédia, viajou para o Inferno, © para sair daquela angustiosa conjurtura, a fim de reen- contrar o bom caminho, seguiu a trienjagao de Virgo, modelo a quem procurava {mitar na poesia, Um brado de “Sovorrel...”” ento se ouviu: 0 sujeito recuperara inespera- damente 0 equilibrio, “pior que licido, relucidado; com a cabeca comportada’’. A assisténcia ndo aceita 0 retorne do individuo ao estégio da sanidade mental: “vesdnicos, = loucos], queriam linché-lo””, Quando j4 se esperava pelo pior..do alto da escada ouviu-se um grito: “Viva a luta! Viva 4 liberdade!” Foi o bastante para reverter a opi: nigo publica: a0 chegar ao chao, o homem “nu, adao, nado, psiquiartista’” foi colocado nos ombros do “popula- cho” ¢ carregado em passeata! ‘Neste precioso estudo de psicoiogia social, Guimaraes Rasa empe- aha-se em comeutar, ionicamente, © comportamenta coletive. Registra, as vias personagens, os mals variads graus de insanidade que os cida- dios, ditos cosmopolitas,costumam apresentar. A grande indagardo lan- ‘da pelo autor: quem: € mais lonca? Seria o “empalmeiraco” que pare-

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