Você está na página 1de 183

SAULO GOMES THIMÓTEO

VALDIR PRIGOL N

(ORGS.)

AS BAGAGENS
DOS VIAJANTES
COMPARTILHANDO LEITURAS
As bagagens dos viajantes
Compartilhando leituras
Perspectivas

Livro editado com recursos do PROAP/CAPES do Programa


de Pós-Graduação de Estudos Linguísticos (PPGEL)
da Universidade Federal da Fronteira Sul
Saulo Gomes Thimóteo
Valdir Prigol
(Orgs.)

As bagagens dos viajantes


Compartilhando leituras

Chapecó, 2022
Reitoria

Reitor: Claudio Alcides Jacoski


Pró-Reitora de Graduação e Vice-Reitora: Silvana Muraro Wildner
Pró-Reitora de Pesquisa, Extensão, Inovação e Pós-Graduação: Andréa de Almeida Leite Marocco
Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Márcio da Paixão Rodrigues
Pró-Reitor de Administração: José Alexandre de Toni

Diretor de Pesquisa e Pós-Graduação Stricto Sensu: Vanessa da Silva Corralo

Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem autorização
escrita do Editor.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


B144 / [recurso eletrônico] / Saulo Gomes Thimóteo e Valdir
Prigol (Orgs.). – Chapecó, SC: Argos, 2022.
180 p.: PDF [e-Book]. – (Perspectivas; 62) –

Inclui bibliografias
ISBN 978-65-88029-64-0

1. Estudos literários. 2. Literatura. 3. Leitura.


I. Thimóteo, Saulo Gomes. II. Prigol, Valdir. III. Título.

CDD: Ed. 23 -- 807

Catalogação elaborada por Roseli A. Teixeira CRB 14/631


Biblioteca Central da Unochapecó

Todos os direitos reservados à Argos Editora da Unochapecó

Servidão Anjo da Guarda, 295-D – Bairro Efapi – Chapecó (SC) – 89809-900 – Caixa Postal 1141
(49) 3321 8218 – argos@unochapeco.edu.br – www.unochapeco.edu.br/argos

Coordenadora: Rosane Natalina Meneghetti

Conselho Editorial
Titulares: Clodoaldo Antônio de Sá (presidente), Cristian Bau Dal Magro (vice-presidente),
Rosane Natalina Meneghetti, Andréa de Almeira Leite Marocco, Cleunice Zanella,
Hilario Junior dos Santos, Vanessa da Silva Corralo, Rodrigo Barichello, André Luiz Onghero,
Circe Mara Marques, Gustavo Lopes Colpani, Odisséia Aparecida Paludo Fontana,
Andrea Díaz Genis (Uruguai), José Mario Méndez Méndez (Costa Rica), Suelen Carls (Alemanha).
Suplentes: Maria Assunta Busato, Rodrigo Oliveira de Oliveira, Josiane Maria Muneron de Mello,
Reginaldo Pereira, Idir Canzi, Márcia Luiza Pit Dal Magro.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

“Procura da poesia”
Carlos Drummond de Andrade
Sumário
| clique no título para acessar o texto |

“Trouxeste a chave?”:
exercícios de leitura e de expressão crítica
[Apresentação]
Saulo Gomes Thimóteo e Valdir Prigol

Uma viagem que embrulha o estômago


[1869 – Navio negreiro – Antônio Frederico de Castro Alves]
Charliane Tedesco de Camargo

Do niilismo à ressignificação da existência


[1877 – O sonho de um homem ridículo – Fiódor Dostoiévski]
Jéssica Caroline de Góis

Enredo labiríntico
[1941 – O jardim dos caminhos que se bifurcam – Jorge Luis Borges]
Jozilaine de Oliveira

O fantástico da literatura fantástica


[1947 – A noiva da casa azul – Murilo Rubião]
Mayara Bruna Saugo

Dançando sob os pés do outro


[1958 – A aventura de um esposo e uma esposa – Italo Calvino]
Adriana Hoffmann
Sumário
| clique no título para acessar o texto |

Um encontro com o enigmático


[1960 – Amor – Clarice Lispector]
Aline Majolo

Uma galinha e a existência feminina projetada


[1960 – Uma galinha – Clarice Lispector]
Helen Cristina Núbias Pereira

A caça pelo passarinho que não se vê


[1965 – Menino caçando passarinho – Dalton Trevisan]
Moara Fernanda Lima Elger

Entre o amor de alma e o amor de corpo


[1967 – Reminisção – João Guimarães Rosa]
Liliane Sousa

A morte sempre lhe cai bem?


[1970 – Venha ver o pôr-do-sol – Lygia Fagundes Telles]
André Marchon

Brilho de uma estrela


[1977 – A hora da estrela – Clarice Lispector]
Vanessa Kist
Sumário
| clique no título para acessar o texto |

A banalização da indiferença
[1979 – Uma vela para Dario – Dalton Trevisan]
Francine Mendes

Experiência literária através de crônicas: uma


(re)leitura de “A última crônica”
[1984 – A última crônica – Fernando Sabino]
Estela Aparecida Damião

Viajando por uma história de índio


[1996 – Nunca gostei de ser índio – Daniel Munduruku]
Karina da Costa Santos

Sair de si para encontrar a si


[1997 – O conto da ilha desconhecida – José Saramago]
Gustavo Von Ah

O modo como a tesoura muda as coisas...


[2003 – A cabeleireira – Inês Pedrosa]
Carolina Aita Flores

Feliz em morrer
[2004 – Lorde – João Gilberto Noll]
Ariel de Morais
Sumário
| clique no título para acessar o texto |

A performance do leitor en la frontera: leitura de um soneto


[2005 – Uma flor na solapa da miséria – Douglas Diegues]
Roselaine de Lima Cordeiro

Só sabe o que é alegria quem conhece a tristeza


[2012 – Ensinando a tristeza – Rubem Alves]
Ana Cristina Sander

Das escrevivências das vozes da periferia


[2016 – Ana Davenga – Conceição Evaristo]
Leandro Ribeiro Nunes

Maternidade da menina Natalina


[2016 – Quantos filhos Natalina teve? – Conceição Evaristo]
Albate Yurna

Contemplação do infraordinário extraordinário


[2016 – Tem país na paisagem? – Marília Garcia]
Tatiana Percio

Para escrever uma nova história


[2017 – O meu amigo faz iiiii – Andréa Werner]
Juliana Vinhas
Sumário
| clique no título para acessar o texto |

Algumas impressões sobre um poema popular


[2018 – Redes sociais – Bráulio Bessa]
Bruna Schaefer

Sobre os autores
“Trouxeste a chave?”:
os exercícios de leitura e de expressão

Saulo Gomes Thimóteo


Valdir Prigol

Uma dimensão pouco estudada dos estudos literários, e


especialmente da crítica, é o potencial que eles possuem de aproximar
os leitores aos textos literários não lidos e aos já conhecidos, já que a
apresentação de uma obra pode motivar a leitura ou a retomada do
texto pelo leitor.
Historicamente, e talvez pela centralidade da Teoria da literatura
na segunda metade do século XX, nosso olhar tem se detido com muita
frequência nos modos de ler de disciplinas e práticas como História da
Literatura, Literatura Comparada, Crítica Literária, Teoria da Literatura
e Estudos Culturais. Essa é uma dimensão importante e decisiva, pois os
modos de ler são posições diante dos textos e da vida, e talvez por isso
tenham gerado (e ainda geram) tanto interesse nas pesquisas e nas aulas.
Mesmo na Graduação e Pós-Graduação em Letras, a leitura de
literatura encontra-se, em boa medida, atrelada não apenas ao próprio
ato de ler o texto literário, mas também aos textos críticos, numa
dinâmica de, em casos extremados, os acadêmicos acabarem não
lendo o texto, mas somente sobre o texto. Justamente o que se percebe
nos modos de ler em disputa em cada disciplina é a atenção a dois
fatos em relação ao sentido: ou ele está em algum a priori (histórico
ou teórico) ou está no texto. O interesse por essas questões colocou em
segundo plano debates em torno da leitura, da apresentação de textos
e da formação de leitores.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Por certo que há muitos textos que, como a floresta tenebrosa de
Dante, nós sozinhos teríamos dificuldades várias de enfrentar. Participar
dos banquetes rabelaisianos de Gargântua e Pantagruel, singrar os
mares nunca dantes navegados de Luís de Camões, perambular por
algum lugar de La Mancha, de cujo nome não queremos nos lembrar,
atrás de um Dom Quixote cervantino, ser ou não ser Hamlet, deitar-se
nas folhas de relva de Walt Whitman, percorrer os jardins borgianos
dos caminhos que se bifurcam, desvendar os mistérios e as veredas de
um grande sertão, de um ser tão rosiano, escutar os cecilianos ecos da
Inconfidência Mineira em um Romanceiro, todas essas ações demandam
esforços de Hércules, ou Sansão, ou outro personagem forte da literatura
e da cultura. Do mesmo modo, no oceano de textos contemporâneos, é
a crítica literária dos suplementos literários, dos youtubers e dos clubes
de leitura que vão apresentando aos novos leitores mergulhos possíveis
e descobertas proveitosas.
Podemos observar, então, que muitas das leituras de textos
clássicos e contemporâneas que vão formando nossa “biblioteca pessoal”
devem-se, em boa medida, por alguma resenha, algum texto teórico ou
algum texto crítico que nos levou até a obra. Ou ainda, de modo muito
mais comum, por algum professor.
No livro Para ler literatura como um professor, do professor
estadunidense Thomas C. Foster, elencam-se três elementos que se
tornam imprescindíveis a esse professor-leitor, e que também parecem
nortear todo crítico literário, ao apresentar e comentar sobre um
texto. O primeiro elemento é a Memória, que nada mais é do que
o acesso a toda a mencionada “biblioteca pessoal”, percebendo que,
na verdade, todo texto literário (ampliando-se também para filmes,
séries, músicas, etc.) aciona associações, muitas delas imprevistas, no
leitor que carrega essa rede de fios que interagem. O segundo elemento
é o Símbolo, ou então, a metáfora entretecida e sugerida pelo texto,

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


sendo a compreensão de que toda imagem construída, seja o José
drummondiano, seja João Grilo e Chicó no Auto da compadecida, tende
a significar algo no contexto da obra literária, mas também projeta-se
como símbolo para cada leitor, que traduzirá essa leitura por meio
da decifração desse símbolo, conforme as suas associações. O terceiro
elemento, como a combinação dos dois anteriores, é o Padrão, isto é,
o reconhecimento de que existem estruturas que se repetem, e que são
conscientemente evocadas pelos escritores, por exemplo, na série de
livros do Senhor dos anéis ou nas Crônicas de gelo e fogo, na construção
de um soneto clássico, ou na desconstrução da epopeia homérica que
James Joyce faz em Ulysses. Um professor lê a partir da articulação
desses três, da mesma forma que um crítico transmite sua leitura na
fusão entre o que e como interpretou o texto e a conexão possível com
o leitor a que se destina a crítica feita.
Com tudo isso, acreditamos que os exercícios de leitura presentes
neste livro podem se tornar estopim, leitor, para muitas das obras
apresentadas aqui, nesta pequena história da literatura construída
por leitores (boa parte deles, professores também) que também foram
tocados em suas trajetórias por alguma forma de apresentação.
A compreensão de que modos de ler também são modos de
apresentação, que podem mover um não-leitor a um texto, passa por
algumas questões importantes que gostaríamos de elencar aqui, para o
entendimento do livro que ora apresentamos e para ampliar questões
que outros autores tão generosamente nos tem oferecido. Pensamos que
estas questões referem-se especialmente ao público, à leitura, ao desejo
de ler e à metáfora.
A discussão sobre público na crítica literária, por mais que
pareça evidente a sua importância se levarmos em conta os locais de
publicação, não tem sido muito frequente. Por isso, o trabalho de João
Cezar de Castro Rocha reveste-se de uma grande importância. Para

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


o objetivo desta apresentação, podemos mencionar a introdução que
o autor escreve para o livro Por uma esquizofrenia produtiva, em que
justamente apresenta quase uma centena de textos literários a partir de
críticas curtas, publicadas originalmente em jornais e revistas. O autor
inicia abordando a distância entre os estudantes de letras e os textos
literários e propondo que esta distância foi criada em um contexto no
qual a formação de leitores deixou de ser um tema importante para boa
parte de professores e pesquisadores de literatura. É neste sentido que
Castro Rocha propõe que o professor de literatura deva ser “bilíngue em
seu próprio idioma”. Como diz o autor:

Cada vez mais se trata de exercitar uma espécie de es-


quizofrenia produtiva, ou seja, o desafio contemporâneo
é tornar-se bilíngue em seu próprio idioma – por assim
dizer. Em palavras direitas, como na arte retórica, deve-se
adequar o discurso a diferentes situações e expectativas.
(CASTRO ROCHA, 2015, p. 42).

A proposição de Castro Rocha reveste-se de um alto grau de


ineditismo (e polêmica) ao dar visibilidade ao trabalho do professor e
do crítico como apresentadores de textos. Nesta perspectiva, o público
é fundamental, afinal, para mover os não-leitores até os textos, é preciso
“adequar o discurso”. O autor tem exercitado esta proposição em
cadernos culturais, revistas de ampla circulação e textos acadêmicos,
e é possível perceber a sua produtividade, especialmente em atingir
diferentes públicos.
Ainda na introdução, Castro Rocha justifica a necessidade de
levar em conta os públicos para os quais apresentamos os textos pelo
potencial transformador da leitura. Como ele diz:

Tal processo, ou seja, o ato de leitura de textos literários não


supõe uma identificação simples, banal – bem entendido,
claro está. Esse ato antes destaca a força da literatura como

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


laboratório de experiências sobre os múltiplos sentidos
do humano, descortinados através da riqueza criadora da
linguagem. Precisamos recuperar a experiência radical de
descentramento à volta da biblioteca. Ou à roda do quarto,
nas memórias póstumas do texto que terminamos de ler.
Rimbaud traduziu a força desse gesto: “Eu é um outro” –
definição precisa da experiência renovada a cada leitura. E
é preciso assinalar a força de sua intuição: o leitor é um su-
jeito que assimila um outro modo de ser, transformando-se
no processo de assimilação, ampliando assim seu horizonte
existencial. Mas, repita-se, não se trata de identificação pura
e simples, pois, sem deixar de ser quem é, o leitor tempora-
riamente vivencia outras formas de compreender o mundo.
Desse modo, ele é sempre um “eu” enriquecido pelo verbo
que, a contrapelo da norma, se descobre feliz exceção: “Eu
é um outro”. (CASTRO ROCHA, 2015, p. 40-41).

A citação é longa, mas reforça a importância da apresentação de


textos, já que a leitura de um texto pode mudar a vida de um leitor.
Neste sentido, os trabalhos de Michèle Petit sobre a mediação de leitura
são fundamentais para a nossa discussão, especialmente em relação ao
desejo de ler e escrever que os mediadores provocam. Em um texto
como “Sentir y transmitir. El arte de los mediadores de lectura en
contextos de crisis”, podemos ver como o desejo de ler tem relação
com o outro. Como ela diz: “Al principio fue, pues, la experiencia
lectora del Otro.” É a partir da visão de seus pais lendo que a jovem
Petit sente o desejo de ler:

Tengo quizá ocho o nueve años y veo a mi madre sumer-


gida en un libro, o en hojas que cubre de palabras. Menos
precisa es la imagen de mi padre, cautivado también por
el soporte impreso que tiene entre las manos. Los dos fue-
ron grandes lectores, curiosos de todo; y mi madre lo sigue
siendo, a los 87 años. En mi memoria, de vez en cuando
levanta la cabeza del libro que está leyendo, o del que está
escribiendo, con la mirada perdida a lo lejos, muy lejos de
mí. Esa obra a la que parece estar tan íntimamente ligada

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


tiene el poder de llevarla a un sitio donde intensamente
está viviendo algo que no sé qué es. Sus pensamientos y
sus sensaciones son casi palpables, pero unos y otras me
escapan. Estoy a las puertas de un mundo a cuya entrada
no tengo acceso. (PETIT, 2021, p. 19).

A partir desta cena, Petit retoma experiências suas, de escritores


e de professores, para mostrar como, na base do desejo de ler, está o
outro. Parece um pouco o que René Girard (2009) propõe em Mentira
romântica e verdade romanesca ao dizer que desejamos o desejo de
outro. Talvez pudéssemos modificar um pouco esta frase e, inspirados
em Pêcheux, dizer que desejamos a metáfora do outro.
Neste sentido, podemos começar com um trecho de Semântica e
discurso, em que o linguista francês parece falar diretamente do trabalho
da crítica literária ao propor:

A concepção do processo de metáfora como processo só-


cio-histórico que serve como fundamento da ‘apresenta-
ção’ [...] de objetos para sujeitos, e não como uma simples
forma de falar que viria secundariamente a se desenvolver
com base em um sentido primeiro, não metafórico, para o
qual o objeto seria um dado ‘natural’, literalmente pré-so-
cial e pré-histórico. (PÊCHEUX, 2009, p. 122).

Acreditamos que a noção de metáfora de Pêcheux complementa


as proposições de Castro Rocha e Petit, pois é a metáfora que pode fazer
sentido para determinado público e é ela que parece ter a capacidade,
em uma apresentação (como diz Pêcheux), de mover um não-leitor até
um texto literário. E se pensarmos que para o autor a noção de metáfora
passa pela ideia de relação, veremos o quanto ela é dependente da ideia
de público:

[...] o sentido é sempre uma palavra, uma expressão ou


uma proposição por uma outra palavra, uma outra expres-
são ou proposição; e esse relacionamento, essa superposi-

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


ção, essa transferência (meta-phora), pela qual elementos
significantes passam a se confrontar, de que modo que “se
revestem de um sentido”, não poderia ser predeterminada
por propriedades da língua (por exemplo, ligações “lin-
guísticas” entre sintaxe e léxico); isso seria justamente ad-
mitir que os elementos significantes já estão, enquanto tais,
dotados de sentido. De fato, o sentido existe exclusivamen-
te nas relações de metáfora (realizadas em efeitos de substi-
tuição, paráfrases, formações de sinônimos). (PÊCHEUX,
2009, p. 239-240).

Nesta perspectiva, podemos dizer que é na relação entre crítico e


leitor que uma metáfora é produzida e que pode ou não fazer sentido
para o leitor. Se fizer sentido, ela terá a potência de movê-lo até o texto. E
esse movimento, para além dos críticos já mencionados, se pode estender
para todo e qualquer texto teórico lido. Afinal de contas, mesmo os
grandes autores teóricos só se estruturam enquanto tal a partir de suas
escritas críticas, que vão fundamentando o seu pensamento.
Mikhail Bakhtin, nome de frente do pensamento russo do século
XX e que ainda influencia muitos estudos da linguagem, aponta para
questões da interdiscursividade, da linguagem como prática discursiva
passível de ser compreendida, mas os seus principais estudos centram-se
nas leituras de escritores como Fiódor Dostoiévski, François Rabelais
ou Johann von Goethe. Walter Benjamin, intelectual alemão, integrante
da Escola de Frankfurt, traz em seus estudos a perspectiva dialética da
história e da cultura, mas tudo isso aflora a partir de suas leituras de
escritores como Marcel Proust, Franz Kafka ou Nikolai Leskov. Roland
Barthes, professor e pensador francês, com pesquisas em torno da
semiologia, ou o estudo dos sistemas de signos, volta-se sempre aos
padrões e belezas encontrados nos textos literários de Honoré de Balzac,
São Inácio de Loyola ou Jean Racine. Antonio Candido, professor
brasileiro, figura incontornável dos estudos de literatura e sociedade,
articulando o texto literário como elemento de conscientização e crítica,

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


e pesquisando a formação da literatura brasileira, vai guiando o leitor
pelas suas leituras feitas de Machado de Assis, Oswald de Andrade ou
Murilo Mendes.
Vê-se, então, o grande potencial de difusão de leitura que os
textos críticos acabam por ter, pois se os textos dos intelectuais acima
se vão lendo e discutindo nas aulas de graduação e pós-graduação,
também se vão abrindo portas para a descoberta desses autores por eles
mencionados. É assim que muitos acabam por descobrir Dostoiévski,
Leskov, Balzac ou Oswald, como socialização dos pensamentos dos
leitores que vieram antes.
Como se nota, é pela leitura que um crítico e um professor se vão
formando. E assim como Barthes diria em seu texto: “Escrever a leitura”,
é preciso que se leia “levantando a cabeça” (BARTHES, 1988, p. 40),
isto é, sendo tomado, durante a leitura, de uma série de pensamentos,
associações e imagens que vão compondo caminhos que se ampliam e se
duplicam. E colocar tais ideias em palavras escritas, em texto sobre um
texto, é uma forma de partilhar conhecimento. É o que norteia os textos
desse livro, como se cada um deles dissesse: “Li esse texto e considero
que você, leitor, merece conhecê-lo, e se já o conhece, compartilho de
minha leitura, como uma forma de você revisitá-lo.”
Feitos pelos acadêmicos da disciplina de “Discurso e Leitura”, do
Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, algo que salta
aos olhos nesses exercícios de leitura é a diversidade tanto temporal e
geográfica, quanto temática e estilística. Indo de Castro Alves a Marília
Garcia, de Clarice Lispector a Rubem Alves, algumas palavras vão se
destacando e agem como sintetizações da própria literatura e de toda
troca realizada entre o livro e o leitor. A primeira delas é a Identidade,
funcionando no mergulho às profundezas da própria existência em
associação com a relação interpessoal e na coletividade. A segunda é a
noção de Viagem, como sendo o deslocamento que se faz a cada texto

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


literário, na noção de se propor ser um Outro, ou permitir ter contato
com uma outra vivência, a partir de um contexto entretecido nas palavras.
E tudo isso culmina na terceira palavra, que é Ruptura, pois toda leitura
pressupõe uma momentânea quebra e reconstrução, logicamente que
tal conexão varia de leitor para leitor (e até de leitura para leitura de um
mesmo texto), mas permitir-se romper com o repertório já conhecido e
ampliar as visões para outros horizontes é experiência sempre necessária.
Para finalizar, sugerimos dois modos possíveis de se ler esse livro:
ou se lê a crítica antes e depois vai-se ao texto, para desvendá-lo; ou se
lê o texto e depois a crítica, para construção de um diálogo de leituras.
De qualquer forma, boas leituras!

Referências

BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.

CASTRO ROCHA, João Cezar de. Por uma esquizofrenia produtiva


(Da prática à teoria). Organização de Valdir Prigol. Chapecó: Argos,
2015.

GIRARD, René. Mentira romântica e verdade romanesca. São Paulo: É,


2009.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. 4. ed. Campinas: Editora da


Unicamp, 2009.

PETIT, Michèle. Sentir y transmitir. El arte de los mediadores de lec-


tura em contextos de crisis. Fragmentum, Santa Maria, n. 57, p. 17-38,
jan./jun. 2021.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Uma viagem que embrulha o estômago
[1869 – Navio Negreiro – Antônio Frederico de Castro Alves]

Charliane Tedesco de Camargo

Um poema de força. Uma mistura de castigo e coragem entre


palavras ritmadas com rimas e metáforas. Assim, “Navio Negreiro”
divide-se em 6 diferentes partes que se enlaçam em uma construção
quase novelesca, em que o leitor sente-se parte do enredo que inicia como
uma forma de deslumbrar o ambiente e vai nos envolvendo mais e mais.
São versos duros, uma narrativa ritmada de horror, um horror
que assombrou as obras de Castro Alves e o nomeou como: poeta dos
escravos. Um escritor de coragem que em 1869, antes da abolição da
escravidão, teve coragem de olhar para os excluídos, os marginalizados.
Fato que destaca a ousadia e lucidez de quem conseguia perceber o
absurdo considerado normal para época.
Escravidão é uma palavra bastante mencionada, mas para
mim, até o primeiro contato com esta obra, era algo materializado
em livros referenciando um contexto histórico. Como a escravidão é
banalizada! E aqui nos direcionamos ao poder da palavra: “A palavra
não é apenas o mais representativo e puro dos signos, mas também um
signo neutro.” como citado na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem
(VOLÓCHINOV, 2018, p. 99). É o poder da palavra significando no
contexto social, estabelecendo valor.
Fica claro que a escravidão foi um regime socioeconômico que
protagonizou o contexto histórico mundial por cerca de quatro séculos.
O tráfico por meio das navegações no atlântico foi a maior migração

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


forçada da história da humanidade, números que assustam, mas talvez a
grande beleza na obra Castro Alves, tenha sido nos embarcar no navio,
nos conduzir à cena, nos humanizar através da percepção daquele
momento, nos tornar escravos... mesmo que apenas em versos.
Assim, vamos começar nossa viagem pelos versos eternizados
pela melodia e pela denúncia. Um Romantismo que beirava o Realismo.
A chamada Geração Condoreira tinha uma visão mais ampla do que
a cercava. Iniciando o poema, o autor nos convida a adentrar ao navio
que já navega entre o infinito azul dos mares. Articulando os versos
através de paralelismo enfatizando o local “Stamos em pelo mar”
(ALVES, 1869, p. 01), paralelismo que se repete iniciando os quatro
primeiros versos da obra. “Caro leitor, é aqui, este é o cenário.” Um
diálogo intrínseco, como uma forma de escancarar o horror que se
esconde entre um cenário épico.
Quero apenas fazer uma pausa para falar da obra de Yaa Gyasi,
“O caminho de casa”. É impossível ver o navio do mesmo jeito depois
de seu enredo. Uma obra que resgata o início do processo de escravidão
e nos convida a passar por gerações e mais gerações de escravizados,
suas particularidades, suas histórias, suas lutas. Em determinado
momento da obra, uma das personagens será passageira do navio e será
transportada para a América do Norte. Fiquei marcada pelo desespero
dela ao ser arrastada para a embarcação, separada de tudo que conhecia
e acreditava. Uma cena que certamente enlaça com o poema de Alves,
mas sobre pontos de vistas distintos.
“Por que foges assim, barco ligeiro? Por que foges do pávido
poeta?” (ALVES, 1869, p. 02). Quem dera, poeta, que seus versos
mudassem a história e que as palavras fossem mais ligeiras que o
barco, mas você chegou a mim e desde esse instante me volto para ti,
passado que ultrapassa as linhas do tempo e me faz entender o hoje,
porque conheço o ontem. Suas palavras trouxeram história, trouxeram

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


denúncia e incomodaram mentes. O poder de sua palavra deu voz a
tantos calados e nos permite voltar no tempo para que esta história
jamais volte a acontecer.
Quem são eles, que assim não se vestem mais? E o poeta traz
coragem em seus versos que iniciam a segunda parte do poema.
“Que importa do nauta o berço, donde é filho, qual seu lar?” (ALVES,
1869, p. 02). Pergunto-me qual a força desse poeta que frente ao seu
tempo declama que não há cultura – ou nação – que possa justificar
tal barbárie. Na obra O negro no Brasil, destacam-se os brasileiros,
ingleses, holandeses, franceses e portugueses como organizadores da
maior parte dos navios negreiros; (DANTAS, 2012, p. 16) fator que
evidencia a pergunta de Alves ao tentar entender o que faz acreditar
que esse processo é natural.
Neste instante, poderíamos discorrer sobre toda a história que
origina cada um dos versos e cada uma das referências que o autor
destaca, mas fixo-me sobre a palavra “canto” e suas diferentes conjugações
que deslizam no 5º verso da primeira estrofe, no 6º verso da segunda
estrofe, no 9a verso da 3a e no 6a verso da 4a estrofe, estando presente em
todo o segundo trecho da obra. Algo interessante também ocorre por
esse uso de uma mesma palavra, que enfatiza a capacidade do autor em
brincar com os diferentes sentidos. Destaco essa, pois a exploração da
linguagem figurada acontece em toda obra, com uso, aliás, de diferentes
figuras de linguagem, mostrando a riqueza da obra. Além do mais, nas
entrelinhas há um questionamento que ressoa nas linhas das crenças e
enfatiza a hipocrisia que imagina justificar tais atos.
Diferente dos outros trechos, neste terceiro temos apenas uma
estrofe. Talvez porque não fosse necessário mais, assim lemos:

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!


Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d’amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!
(ALVES, 1869, p. 03).

Pego-me a deslumbrar o olhar personificado pela ave oceânica


albatroz. Uma cena cinematográfica forma-se em minha mente, onde
a câmera aproxima-se lentamente e o observador, albatroz, é a única
testemunha. E novamente a palavra “canto”, desta vez acrescida de
“funeral”. E a assombração do autor o faz clamar a Deus, procurar
aos céus – ao espiritual – uma resposta para tudo aquilo que não há
explicação. Seu clamor é meu, seu horror é meu e a força de suas palavras
ultrapassam o tempo, cruzam as fronteiras e me tomam.
Interrompo mais uma vez nossa apreciação do poema para falar
da pesquisa e obra de Laurentino Gomes que, dentre tantas magníficas
obras que me encantaram e encantaram meus alunos, em 2019 lançou
Escravidão. Diria que maturidade e pesquisa é o que definem, mas entre
tantas possíveis citações gostaria de tocar novamente na palavra funeral,
mencionada no paragrafo anterior. Uma das informações que mais
marcou-me de Gomes é quanto à rota dos navios negreiros. Segundo
pesquisas realizadas pelo autor, teriam mudado a migração de cardumes
de tubarões devido aos corpos jogados ao mar. Morreram na travessia
cerca de 1 milhão e 800 mil pessoas, tendo uma média de 14 pessoas
mortas por dia, durante os quase 4 séculos de escravidão.
São mais do que números, são histórias jogadas ao mar. São
famílias separadas, amores perdidos, são filhos sem pais e também pais
sem filhos. Deste montante, vieram para o Brasil mais de 5 milhões
de escravos que hoje constituem a base formativa de nossa população.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Só entendemos o Brasil do presente quando aprendemos o Brasil do
passado, um povo de explorados.
Quanto ao povo brasileiro, Darci Ribeiro, em sua obra O povo
brasileiro, afirma que a sociedade brasileira local se enriqueceu através
das contribuições maciças dos contingentes africanos; ainda destaca a
degradação da corte portuguesa com nascimento de mestiços, tanto de
etnias indígenas quanto africanas. “Esses mulatos ou eram brasileiros ou
não eram nada, já que a identificação com o índio, com o africano ou
com o brasilíndio era impossível.” (RIBEIRO, 2015, p. 97). E assim surge
o nosso povo, o povo do Brasil.
Retomando o poema, iniciamos a consagrada IV parte. E o poeta
inicia falando sobre esse sonho pavoroso, como quem não consegue
acreditar na realidade, como quem prefere pensar que se trata de algo
ficcional, próprio da fantasia humana. Mas, não há como escapar. Ele
nos conduz ao tombadilho do navio. Olhe esse chão, é sangue, é dor! E
como se estivéssemos assistindo uma encenação, o poeta vislumbra o
palco e apresenta seus personagens.
Composta por versos decassílabos e sextilhas, a linguagem torna-se
mais impactante, o ritmo, antes com rimas não tão definidas, assume
uma melodia de força e nos conduz em ritmo de fluidez, direcionando
nosso olhar ao cenário central, ao navio, que mais do que meio de
condução é visto como um espaço de tortura.
A narrativa representa o início de um ciclo de vida, o desconhecido
homem branco e suas culturas que invadem e desrespeitam, não ouvem,
tomam para si tudo que veem. Um processo que não respeita qualquer
detalhe em relação à vida humana, nem mesmo mulheres e crianças são
deixadas. Laurentino, em sua obra, mostra a divisão dos navios negreiros,
como todos os escravos eram entulhados em condições precárias, assim
como Ana Maria Gonçalves, que em sua obra Um defeito de cor nos
conduz a viver esses momentos junto com a personagem Kehinde,

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


O calor e o cheiro forte de suor e de excrementos mistura-
dos ao cheiro da morte, não ainda o do corpo morto, mas
da morte em si, fazia tudo ficar mais quieto, como se o ar
ganhasse peso, fazendo pressão sobre nós. (GONÇALVES,
2017, p. 51).

Um processo de separação doloroso, são tantas perdas! Choros,


gritos e maldições... tortura emocional, psicológica e física. Homens,
mulheres e crianças tratados como mercadoria, entendidos como seres
sem vontade, sem perspectivas, sem corpo, sem terra, sem alma.

Mas a pior de todas as sensações, mesmo não sabendo di-


reito o que significava, era a de ser um navio perdido no
mar, e não a de estar dentro de um. Não estava mais na
minha terra, não tinha mais minha família, estava indo pra
um lugar que não conhecia... (GONÇALVES, 2017, p. 61).

E novamente direciono-me para a palavra dança, semeando


outro sentido, enfatizando a capacidade do autor em explorar a
palavra. Assim, no último verso da quinta estrofe temos: “Vibrai
rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar!...” (ALVES, 2021,
[s.p.]) destacando a tortura e o movimento do corpo com o toque da
ferramenta de tortura.
Para concluir essa parte, citamos o último verso da sexta estrofe: “...
preces ressoam! E ri-se Satanás!...” (ALVES, 2021, [s.p.]). A religiosidade,
a hipocrisia dos que rezam a Cristo, profetizam suas palavras e não
praticam suas ações. Cabe ressaltar que o povo africano, não cristão,
ainda hoje sente o menosprezo com relação as suas crenças. Em Um
defeito de cor, a autora destaca o processo de bênção aos escravos, que
recebiam as graças da igreja e um novo nome. Mas chamo atenção para
a expressão “ri-se satanás”, enfatizando o quão pecaminoso era tudo o

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


que acontecia, o quão longe de qualquer perdão. Um agrado ao mal, ao
profano, um agrado ao ser que representa o pior de todos os castigos
humanos.
Para a quinta parte, o poeta inicia ressaltando o poder da fé,
questionando aos céus como algo tão grotesco pode estar acontecendo.
Um clamor que através dos versos se direciona para os sujeitos que estão
sofrendo este processo. Há muitos detalhes nesta parte, detalhes da terra,
localizando o povo e seu espaço, sua cultura. Eles não nasceram nos
navios! São as vítimas de um processo mercantil que os viu como uma
forma de aumentar os faturamentos e enriquecer a burguesia Europeia
e Americana. Não há um só verso no poema de Castro Alves que não
emita opinião e ressalte a força de um povo que lutou como pôde.
Para a última parte, o poeta volta-se para os praticantes da
escravidão. Ele dedica três estrofes a ressaltar a bandeira, ao referir-se
aos homens e à crença de que tudo pode ser justificado em nome da
pátria. Para encerrar, o poeta clama a Colombo para que feche a porta
de seus mares, referindo-se à cultura de exploração e conquistas de
territórios, em nosso país iniciada pelos portugueses.
Logo, a escolha do texto relaciona-se a um diálogo com diferentes
leituras e por ser uma temática de meu grande interesse. Laurentino
Gomes, em uma entrevista ao programa do Pedro Bial, ressaltou o
quanto é importante falarmos da escravidão, ela é mais do que um fato
histórico, relaciona-se à formação de nosso povo, somos consequência
desse processo e precisamos entendê-lo e não o esquecer.
Portanto, todos fizemos parte disso, brancos, negros, pardos...
todos nós formamos o povo brasileiro, o povo dos mestiços. Precisamos
lutar por políticas de inclusão, políticas que valorizem os sujeitos, suas
histórias e suas culturas. É imprescindível que as diferenças sejam
valorizadas e que o processo de exploração e minimização de povos seja
apenas como disse Alves: Um borrão em nossa história. Não há como

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


mudar o passado, mas há como planejar o futuro. Precisamos falar de
opressão, falar de impunidade, falar de racismo, falar de desigualdade
social. Conhecimento não pode ser visto como algo supérfluo,
conhecimento transforma o mundo, transforma vidas e muda histórias.

Referências

ALVES, Antonio Frederico de Castro. Navio Negreiro. 1869. Disponível


em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000068.pdf.
Acesso em: 11 nov. 2021.

GYASI, Yaa. O Caminho de Casa. São Paulo: Rocco, 2017.

GOMES, Laurentino. Escravidão: do primeiro leilão de cativos em


Portugal à morte de Zumbi dos Palmares. Rio de Janeiro: Globo Livros,
2019. v. 1.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil.


São Paulo: Global, 2015.

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. 16. ed. Rio de Janeiro:


Record, 2017.

GOMES, Laurentino. Pedro Bial recebe os escritores Eliana Alves Cruz


e Laurentino Gomes. Globo Play. Pedro Bial. Disponível em: https://
globoplay.globo.com/v/8097928/?s=0s. Acesso em: 18 nov. 2019.

DANTAS, Carolina Vianna; MATTOS, Hebe; ABREU, Martha. O negro


no Brasil: trajetórias e lutas em dez aulas de história. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2012.

VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem. 2. ed.


São Paulo: 34, 2018.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Do niilismo à ressignificação
da existência
[1887 – O sonho de um homem ridículo – Fiódor Dostoiévski]

Jéssica Caroline de Góis

Uma narrativa fantástica repleta de solidão e mistério, produzida


em 1887 por Dostoiévski intitulada: O sonho de um homem ridículo,
apresenta em seu enredo uma amálgama1 de temas atemporais, como:
niilismo, redenção2, fé, depressão, dentre outros. Em seu contexto
inicial, um homem que vaga durante uma noite pelas ruas decide tirar
sua própria vida por não encontrar significado algum em nada ao seu
redor. Dentro de suas concepções, afirma ser um homem ridículo3 pois
todos riem dele e ainda assim ele não consegue se importar, a tal ponto
que, para ele, o universo é despido por completo de qualquer sentido, ou
seja, não possui expectativa de vida alguma nem tão pouco valor algum
de pertencimento humano.
Várias conclusões podem ser tiradas a partir do termo “ridículo”
empregado pelo personagem, no entanto, o autor abre um leque de
possibilidades de interpretação ao leitor. A proposta de reflexão deste
texto gira em torno da miséria humana e do niilismo em oposição à
ressignificação humana e da redenção espiritual.

1 Mistura, combinação, mescla.


2 Sugiro ler sobre niilismo e redenção na perspectiva de Friedrich Nietzsche em
Crepúsculo dos ídolos.
3 Definição: que provoca riso, zombaria, um ser insignificante.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


No decorrer do enredo, o personagem, ao vagar pelas ruas, em
uma noite vazia, gélida e solitária, olha para o céu e avista uma estrela,
e ao contemplá-la decide que, ao chegar em casa, dará um tiro em sua
cabeça com um revólver que havia comprado para este propósito, no
entanto lhe faltava uma motivação. Neste exato momento da tomada
de decisão, uma pobre menininha se aproxima e clama por ajuda, se
referindo à sua mãe, mas o homem ridículo a ignora totalmente e se
recusa a ver o que lhe acontece, dando as costas para ela. Após despachar
a garota e continuar seu trajeto para o fim, percebeu-se inquieto ao ficar
com a garotinha em sua mente, pois se sentia um tanto quanto cruel por
não a ter ajudado, mas se o fizesse, sabia que qualquer passo fora do que
havia decidido iria atrapalhar seu plano de suicídio.
Ao chegar em casa, pega sua arma e a aponta para a cabeça na
intenção de cumprir seu propósito – acabar com a vida desse homem
ridículo e insignificante. Nesse momento, a presença da menina não sai
de sua memória ao lembrar-se do quão desumano foi. Aqui encontra-se
a primeira contradição da narrativa na qual o protagonista divaga: a que
ponto um ser humano que apresenta todas as características de um niilista
pode ser inquietado ao ponto de sentir pena e ao mesmo tempo dúvida
sobre se deveria ter ajudado o próximo ou não? Aqui voltamos ao conceito
do niilismo4. Em meio a suas divagações sobre o quão perigoso e dúbio
era se compadecer do próximo sendo um niilista, inicia um processo de
questionamento sobre sua descrença nos sentidos da existência. Fato que
o incomoda tanto – diante da decisão que havia tomado – por iniciar
um questionamento logo quando decidiu que tudo acabaria, mas antes
mesmo de apertar o gatilho, adormece em meio aos pensamentos.
Na segunda parte da narrativa, o autor discorre acerca do sonho
que o personagem teve ao adormecer. O homem ridículo com sua

4 Negação, indiferença, artificialidade, insignificação.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


miserável condição de insignificância humana se suicidou em sonho e
acaba por conhecer um outro planeta parecido com o qual vivia em sua
vida terrena, porém, várias coisas que ele via o deixavam cismado. Ao ser
resgatado por uma entidade sobrenatural, esse planeta era como se fosse
uma representação do Éden5, todos os habitantes se amavam, exalavam
felicidade e completude, a tal ponto que nem precisavam conversar
uns com os outros. O mundo não era cinza como aquele no qual ele
estava acostumado. Lá, não existia a ciência, mas todos eram completos
e despidos de bens materiais. Ao se deparar com essa exorbitante
felicidade e visão do paraíso, o homem começa a questionar os sujeitos
desse mundo sobre os motivos de conseguirem viver daquela forma, pois
tudo lhe parecia uma utopia, não encontrava sinais da idiotia6 vivenciada
anteriormente. Ao questioná-los, acaba compartilhando a verdade sobre
o mundo em que viveu – fora do sonho – mas depois de um tempo,
percebe que acabou corrompendo o outro mundo instaurando coisas e
conhecimentos com os quais as pessoas ainda não haviam tido contato.
Eles conheceram, então, as mazelas humanas como a inveja, a mentira, a
violência e todas as vicissitudes que podem levar à autodestruição.
Inconformado com a destruição do paraíso, e de se perceber como
o autor dessa ruína, o homem tentou de todas as formas convencê-los a
não se perderem nessas falsas verdades, mas ninguém lhe dava ouvidos.
Aqui, pode-se considerar que ele novamente era um homem ridículo,
pois ao contrário da vida terrena, ele era o modelo de sujeito “careta”
defensor da boa conduta humana que não queria que os habitantes do
“paraíso” caíssem no pecado. Mas agora, ele estava sendo novamente
ridículo, pois todos zombavam dele mais uma vez, mas ao desacreditar
que poderiam novamente ser bons e que deveriam se amar, já que o

5 Lugar chamado paraíso em que Adão e Eva viveram, segundo a crença cristã.
6 Indiferença em relação aos padrões morais estabelecidos (BITTENCOURT, 2010).

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


homem estava sendo ridículo ao se recusar em ver tudo o que de
maravilhoso7 estavam vivendo. “Sentindo-se” completamente ridículo
por mais uma vez ser insignificante e ser zombado pelos demais, acaba
despertando do sonho transcendental. Ao despertar, vem-lhe à mente
a menina que, mais uma vez, acaba o influenciando – mesmo que
indiretamente – a desistir de seu suicídio, de forma tão profunda que
ele começa a pregar sobre a vida e sobre a verdade a qual viu em sua
experiência transcendental.
Após essa breve contextualização da narrativa, percebe-se que
Dostoiévski busca, nesta obra, abordar as mazelas humanas e como o
ser humano é pequeno diante das adversidades da vida. Aqui, apesar de
se referir ao Éden, ao pecado e ao outro mundo como se fosse o umbral8,
o autor busca falar sobre a verdade, pois mesmo com o referencial
religioso, não é sobre Deus que o conto fala. A verdade com a qual o
homem ridículo teve contato pode ser interpretada de várias formas a
depender da perspectiva e experiência de cada leitor. Nesse sentido, a
verdade tanto pode ser interpretada como uma apologia à redenção e
ao Cristianismo através da experiência de quase morte, bem como ser a
desvalorização da vida, em meio a tantas possibilidades de inferências.
Ao ler o conto, o leitor vivencia a insignificância e ausência de
pertencimento do personagem nos dois mundos aos quais ele não se
encaixava e era zombado por todos. Talvez porque ele não havia visto
ainda a Verdade a qual o autor deseja nos revelar. Após passar pelo lodo,
ao se sentir no fundo do poço, experienciar o processo de reconhecer suas
limitações como ser humano para adquirir uma nova consciência moral,
o homem, através desse insight, desperta a consciência. O ego que antes
poderia estar presente já não fazia mais sentido, pois acaba percebendo que

7 No sentido de ser pecado, maldade, vícios, desumanidade.


8 Segundo a doutrina Espírita: lugar que as pessoas que não evoluíram na Terra
passam para refletir sobre o que precisam melhorar.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


o outro faz parte de sua configuração como humano. A verdade proposta
nesta obra, pela perspectiva aqui adotada, faz referência à redenção. Após
o velho homem passar por todas as misérias humanas e atingir o ápice do
niilismo, passa por uma experiência de nova vida, a qual o faz questionar
sua crença sobre a ausência de sentidos na vida. A verdade reconhecida
através da compreensão e reconstrução do self 9 acaba sendo libertadora,
pois o homem que antes se considerava ridículo e insignificante percebe
que é responsável por seus defeitos e produz novos sentidos sobre as
atitudes que ainda pode ter para contribuir para a sua vida e a dos outros.
Produção de novos sentidos do eu e do outro que o torna interessado
em pregar sobre a verdade e ir atrás da menininha, pois o conhecimento
que adquiriu no sonho é algo que ele deseja que todos saibam: existe a
possibilidade de um mundo melhor.
Um fato muito interessante na obra, também, é que noutro planeta
vivido em sonho, o personagem percebe que as pessoas não conversam
entre si, pois já são completas de amor e felicidade. Ou seja, não buscam
sentido para a vida e nem a ficam questionando, pois vida e significado
são unos. Nesse sentido, no mundo real as pessoas só conversam e falam
em demasia por não encontrarem um significado de valor sobre a vida,
por serem carentes e desprovidas de felicidade, não sendo capazes de
suportar o silêncio de sua própria existência. A intenção da obra não
é motivar um paraíso em terra e a redenção de todos os seres a serem
perfeitos. Mais que isso, Dostoiévski, ao abordar temas que hoje ainda
são tão presentes na humanidade, busca mostrar dialeticamente o quão
mísero o ser humano pode ser quando não encontra sua significação na
existência, necessitando constantemente encontrar uma motivação para
suas ações.

9 Consciência de ser um ser único diferente dos demais.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Apesar da pequenez de cada ser humano, este ainda pode causar um
enorme impacto na vida de outras pessoas e seres, independentemente
de suas intenções, afetando positivamente ou negativamente o seu
redor. A capacidade humana de se moldar a novas realidades pode
ser conflituosa pois todos possuem dificuldades em se adaptar a novas
situações, ainda mais quando estas não são condizentes com aquilo que o
indivíduo acredita ou desacredita. Todavia, essa capacidade transcende
aquilo que sabemos e desejamos, pois como no conto, a menininha
causou um impacto na vida do homem, e este, posteriormente em seu
sonho, impactou a vida de todo um planeta, ao questionar a perfeição e
instaurar todos os distúrbios humanos.
Do niilismo à ressignificação da existência, O sonho de um
homem ridículo aborda questões contemporâneas a serem discutidas
e questionadas. Apesar do niilismo apresentar em sua teoria uma
percepção de mundo totalmente pessimista, negacionista e cética
sobre tudo, Dostoiévski apresenta o homem ridículo para confrontar
as convicções niilistas. Pois como pode um ser tão cético e descrente
de qualquer valor sobre a existência se este fato o faz o maior crente
da sua descrença? Sendo assim, cabe aqui ainda mais questionamentos
intrigantes. Em contrapartida, apesar da derradeira redenção do
protagonista ao conhecer a verdade de um mundo que para ele era
impossível de existir, teria ele se compadecido e desistido do suicídio
caso quem tivesse lhe abordado naquela noite fosse algum velho
moribundo ou bêbado? Crianças são dotadas de uma personalidade
inocente e pura, desprovidas da perversidade dos adultos, assim sendo
profusos são os sentidos que podem ser atribuídos à interpretação da
transformação da existência do protagonista, caso quem lhe tivesse
parado na rua não fosse uma criança, os sentimentos (ou ausência deles)
teriam sido diferentes?

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Nessa perspectiva, encerro aqui com o eco semântico produzido
através da leitura do conto: toda a verdade, por mais dolorosa que
seja, pode ser revelada em algum momento a priori ou posteriori da
existência humana. A produção de sentidos sobre a dolorosa redenção
e o final, que seria trágico sendo totalmente inesperado, mostram a
possibilidade da ressignificação do indivíduo como um todo, espelha
o quanto o ser humano emerge em águas rasas de sentidos sobre a
existência. Ao despertar e ressignificar sua existência fora dos padrões
niilistas, o personagem inicia um processo de transformação existencial
em que é possível encarar a vida por outra perspectiva, ou seja, há
outras possibilidades de existência além da primeira a qual ele estava
“subordinadamente” vivendo.
Assim como a vida, todos os sentidos não vistos pelo niilismo
necessitam de uma profunda experiência – seja ela qual for – para que
essa explosão de sentidos possa provocar algum efeito de ressignificação
no indivíduo. Desejo a todos que leiam O sonho de um homem ridículo
que fiquem com suas mentes repletas de inquietudes pelas inúmeras
possibilidades de sentidos produzidos através dessa leitura provocativa
e fantástica.

Referências

BITTENCOURT, Renato N. A psicologia da idiotia em Dostoiévski e


Nietzsche. Revista Digital AdVerbum, Limeira, v. 6, n. 1, p. 103-120,
jan./jul. 2011.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Duas narrativas fantásticas: A dócil e O


sonho de um homem ridículo. Tradução de Vadim Nikitin. 3. ed. São
Paulo: 34, 2011. p. 91-123.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Tradução de Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Enredo labiríntico
[1941 – O jardim de caminhos que se bifurcam – Jorge Luis Borges]

Jozilaine de Oliveira

Se fôssemos dar ao tempo uma imagem, de que forma o


representaríamos? Talvez, se pensarmos sob a perspectiva da realidade
tal qual nós a entendemos socialmente, seria uma figura linear, em que
o passado, o presente e o futuro estivessem alinhados. A noção temporal
que nos rege parece ser exatamente essa, de que tudo se dá na sucessão.
Se algo já aconteceu, portanto, pertence ao passado. Aquilo que ainda
está por vir se vincula ao futuro. O que está acontecendo agora é o
presente. Tudo parece coerentemente conectado.
Seria possível admitirmos a possibilidade de um tempo repleto de
entrelaçamentos? Se déssemos ao tempo a aparência de um labirinto,
estaríamos viabilizando a possibilidade de que em algum momento,
num destes percursos intrincados, o passado pudesse visitar o presente,
ou de um futuro sucedido no passado. Deslocando as noções de tempo
e até mesmo de realidade.
É no espaço utópico da literatura que podemos apreciar o tempo
nesta configuração labiríntica. Durante a leitura de um conto do escritor
argentino Jorge Luis Borges, vejo-me interpelada por esta temática. “O
jardim de caminhos que se bifurcam”, publicado pela primeira vez em
1941, faz parte do conjunto de contos da obra Ficções (1944). Trata-se
de um conto cuja temática é, aparentemente, um relato de guerra, o
primeiro parágrafo se encarrega de transmitir esta informação ao leitor.
O personagem e o (suposto) tema do enredo nos são apresentados, as

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


datas localizam o leitor historicamente, os acontecimentos se passam
durante a Primeira Guerra Mundial. No entanto, considerando a autoria
desta narrativa, não seria surpresa se esta situação inicial fosse o pilar
sobre o qual o eixo da trama está assentado.
A narrativa inicia com o protagonista, Yu Tsun, um agente do
império alemão, descobrindo que seu companheiro, Viktor Runeberg,
havia sido localizado e possivelmente assassinado. Resignado ao futuro
que lhe espera, Yu Tsun menciona “Antes que declinasse o sol desse
dia, eu enfrentaria a mesma sorte.” (BORGES, 2000, p. 98, tradução
nossa). Mas antes de sua morte precisava cumprir uma missão para a
qual havia sido designado por seus oficiais alemães, e repassar ao seu
superior uma mensagem vital. A partir de então, o leitor é exposto
a uma narrativa repleta de bifurcações, e a sensação é de estarmos
dentro de um labirinto narrativo, incertos se os caminhos de leitura
que estamos fazendo nos levarão à compreensão do conto, ou se nos
perceberemos perdidos nesta trama labiríntica.
O que temos na sequência é a voz de Yu Tsun. O leitor passa a
ser guiado pela narração do protagonista. Que se percebe diante de
uma corrida contra o tempo. Com o inimigo, Richard Madden, em seu
encalço, o agente precisa ser certeiro para indicar ao seu superior sobre
a cidade que o exército alemão precisaria bombardear. “Como fazê-la
chegar ao ouvido do chefe?” (BORGES, 2000, p. 99, tradução nossa),
era o que pensava o espião, empenhado em enviar a mensagem. Mesmo
diante dos recursos escassos, é em dez minutos que ele traça seu plano.
Sem muitas informações, o que o leitor sabe é que é através de uma
lista telefônica que Yu Tsun encontra o nome da única pessoa capaz
de ajudá-lo a transmitir a informação. Com o endereço desta pessoa
incógnita ao leitor em mãos, ele parte rumo a um subúrbio de Fenton,
que felizmente ficava a menos de meia hora de trem do local onde estava.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Nas linhas que seguem, Yu Tsun revela ao leitor que a sua motivação
não está em ser útil à Alemanha, mesmo porque rejeitava o seu papel de
espião, fazia-o para provar “que um amarelo podia salvar seus exércitos”
(BORGES, 2000, p. 100, tradução nossa). Quando por fim está no trem
rumo a Ashgrove, no mesmo instante em que a comitiva entra em
movimento, o protagonista avista seu inimigo correndo na plataforma
da estação. Por questão de poucos minutos não é capturado antes de
executar seu engenhoso e imprevisto plano. O tempo o salvara.
Tempo, essa é a palavra cerne desta narrativa borgeana, pois a
forma como nos é apresentado transgride o que entendemos por ordem
natural do tempo. Este enredo apresenta circularidade, superposição e
concomitância temporal. O que propicia uma multiplicidade de sentidos.
E uma dúvida constante, pois na literatura não existe comprovação, o
que existe são suposições que nós, leitores, fazemos.
“Sou um homem covarde.” (BORGES, 2000, p. 99, tradução nossa),
esta afirmação, feita pelo protagonista, é intrigante, como é possível um
homem que arrisca a própria vida em prol de uma nação ser covarde? O
leitor só compreenderá esta declaração nos parágrafos finais, quando se
vê diante da execução do plano do protagonista. Embora aparentemente
trivial, esta confissão feita pelo personagem revela como tudo neste
enredo está vinculado. Algo dito no início que será evidenciado apenas
no final.
A sensação no decorrer da leitura é de constante movimento, e
a imagem do trem vem muito a calhar, pois a narrativa nos coloca em
um constante sacolejar, a viagem é agradável, embora os sobressaltos
sejam frequentes. Quando Yu Tsun diz: “O executor de uma tarefa
atroz deve imaginar que já a realizou, deve impor-se um futuro que seja
irrevogável como o passado.” (BORGES, 2000, p. 101, tradução nossa).
Como se deixasse o leitor à deriva, aguardando uma comprovação
temporal. Pois a sensação é de que o personagem já viveu o presente, e

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


está resignado ao que virá, uma vez que não se pode mudar o passado.
Não estamos diante de uma marcação acertada do tempo, em que
sabemos o que é passado, presente e futuro. O conto nos coloca diante
da possibilidade de um tempo em que o presente traz acontecimentos
do passado, e o futuro não é incerto, pois já aconteceu em algum
momento do passado.
Esta percepção é reforçada quando Yu Tsun deixa o vagão e dirige-
-se a Ashgrove, os meninos que encontra no caminho questionam-lhe:
“O senhor vai à casa do doutor Stephen Albert?” (BORGES, 2000,
p. 101, tradução nossa). Como poderiam ter conhecimento da vinda do
descendente de Ts’ui Pên? Saberiam eles do plano do agente do Império
Alemão? Definitivamente, não seria uma possibilidade, pois mesmo o
atento leitor desconhece o plano de Yu Tsun. No entanto, tratando-se
de uma narrativa literária mobilizada pelo tempo, esta possibilidade
torna-se plausível. Como se, ao entrar no trem, um novo rasgo temporal
passasse a vigorar naquele instante.
Sendo Yu Tsun o detentor do “segredo” – que pode estar
relacionado ao seu plano de transmitir a mensagem ao seu superior, ou
ao fato de que era conhecedor das possibilidades temporais –, sua fuga
não era apenas espacial, em sua caminhada rumo a um subúrbio de
Fenton, as bifurcações eram temporais, e seu inimigo Richard Madden
não poderia penetrar no seu propósito, o que tranquiliza o protagonista,
que expressa: “Logo compreendi que isso era impossível” (BORGES,
2000, p. 102, tradução nossa). Diante da impossibilidade de Madden
penetrar nesta prega no tempo em que se encontrava, Yu Tsun seguia
confiante de que a realização de seu plano seria bem-sucedida.
Mais adiante, ficamos a par de uma relevante informação, Yu
Tsun é bisneto de Ts’ui Pên, “[...] que foi governador de Yunnan e que
renunciou ao poder temporal para escrever um romance que fosse ainda
mais popular que Hung Lu Meng e para construir um labirinto no qual

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


todos os homens se perdessem.” (BORGES, 2000, p. 102, tradução nossa).
Jorge Luis Borges constrói o enredo com tamanha perspicácia, que o leitor
constantemente se depara com enunciados que só farão sentido mais à
frente. As bifurcações deixam-nos diante de dúvidas constantes, que
talvez nunca serão sanadas, pois os caminhos deste labirinto borgeano
são infinitos.
Yu Tsu revela ao leitor sobre o trágico destino do bisavô, “[...] a mão
de um forasteiro o assassinou e seu romance era insensato e ninguém
encontrou o labirinto.” (BORGES, 2000, p. 102, tradução nossa). Este
trecho parece predizer uma fala de Albert, este fora o nome encontrado
pelo protagonista na lista telefônica, quando menciona sobre a concepção
de universo de Ts’ui Pên. Para o antepassado do agente do exército
alemão, “o tempo se bifurca perpetuamente para inumeráveis futuros”
(BORGES, 2000, p. 109, tradução nossa). Isso resultaria na possibilidade
de que em diferentes pregas temporais, pudéssemos ser distintas versões
de nós mesmos. Consequentemente, existiria um tempo em que Ts’ui
Pên estaria personificado em Albert e fosse assassinado pelo próprio
bisneto? Perguntas constantes mobilizam a leitura deste conto. O leitor
compartilha do sentimento de Yu Tsun, quando este sente-se “em um
tempo indeterminado, percebedor abstrato do mundo” (BORGES, 2000,
p. 102, tradução nossa).
Quando, por fim, o protagonista chega ao endereço onde executará
seu incisivo plano, após passar pelo caminho que se bifurcava, depara-se
com um portão enferrujado. A descrição feita por ele do local em que
chegara, dá-nos a impressão de que já estivera ali antes. Como se já
esperasse a visita, Albert abre o portão e convida-o para entrar. E o que
vem a seguir é expectativa, posto que, o plano de Yu Tsun tinha por
destino este local, o leitor curioso espera a consumação de algo que sequer
sabe o que é.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Os próximos diálogos parecem ser guiados pelo ritmo do
anfitrião, inclusive Yu Tsun parece estar paciente, de tal modo que a sua
“determinação irrevogável poderia esperar” (BORGES, 2000, p. 104,
tradução nossa). Albert, calmamente, relata a história do antepassado do
protagonista, que surpreendeu a todos ao proferir: “Me retiro para escrever
um livro. E outra: Me retiro para construir um labirinto.” (BORGES, 2000,
p. 105, tradução nossa). E que por infelicidade fora mal compreendido.
Após anos estudando, Stephen Albert decifrara o enigma, o que Ts’ui Pên
almejara não era um livro e um labirinto, mas sim um livro. O sinólogo
chegara a esta conclusão após ter contato com um fragmento de uma carta:
“Deixo aos vários futuros (não para todos) meu jardim de caminhos que
se bifurcam.” (BORGES, 2000, p. 106, tradução nossa). O que significaria
aos vários futuros, não a todos? Se o labirinto se bifurca sucessivamente
em inúmeras possibilidades, estamos diante da chance de que esta cena,
que nos parece tão pertencente ao presente, seja fragmento do passado.
E que Yu Tsun já vivera este presente. Isto explicaria a tranquilidade e a
resignação de Albert, conhecedor das peripécias temporais.
Diante dos inúmeros desenlaces possíveis, entre vários pontos de
bifurcações, Yu Tsun estava convicto de que este sulco temporal em que
estava, demandava a concretização de seu plano. E sua vítima parecia
estar ciente de que esta alternativa era apenas uma das possibilidades:
“Algumas vezes, os caminhos desse labirinto convergem: por exemplo,
o senhor chega a esta casa, mas em um dos passados possíveis é meu
inimigo, em outro meu amigo.” (BORGES, 2000, p. 107, tradução
nossa). Esta frase novamente remete a resignação de Albert, visto que, o
estudioso sabia que essa alternativa não era definitiva, era apenas mais
uma diante da multiplicidade. Assim como Ts’ui Pên:

Acreditava em infinitas séries de tempos, em uma rede cres-


cente e vertiginosa de tempos, divergentes, convergentes e
paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifur-

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


cam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abarca to-
das as possibilidades. Não existimos na maioria desses tem-
pos; em alguns você existe e eu não; em outros, eu, não você;
em outros, os dois. (BORGES, 2000, p. 109, tradução nossa).

O mais intrigante neste conto é que as possibilidades metafísicas


propostas pelo romance labiríntico parecem estar presentes na própria
narrativa. Ao final, o leitor permanece incerto sobre a morte de Yu Tsun,
pois assim como Ts’ui Pên apresenta a possibilidade de um universo de
tempos paralelos e sobrepostos, em que personagens que morrem em
determinada cena reaparecem em outros capítulos, Borges parece tecer
o enredo de forma que o protagonista morre naquele tempo presente,
porém esta é só uma das possibilidades temporais.
O conto encerra com a exitosa transmissão da mensagem de Yu
Tsun. Seu engenhoso plano era um enigma, que o seu chefe decifrara. O
agente matara Albert, e assim, conseguiu comunicar ao exército alemão
o nome da cidade em que o parque de artilharia dos ingleses estava, para
que pudessem bombardeá-la, “[...] a cidade que se chama Albert e que
não encontrei outro meio a não ser matar uma pessoa com esse nome.”
(BORGES, 2000, p. 110, tradução nossa). Este desfecho é fruto de um
caminho, mas a trama deixa claro que os caminhos que se bifurcam
são infinitos. A literatura é assim, repleta de bifurcações. A leitura que
apresento aqui é apenas uma das possibilidades, dentre as várias leituras
possíveis. 

Referência

BORGES, Jorge Luis. El jardín de senderos que se bifurcan. In: BORGES,


Jorge Luis. Ficciones. España: La Nación, 2000. p. 97-110.
As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras
O fantástico da literatura fantástica
[1947 – A noiva da casa azul – Murilo Rubião]

Mayara Bruna Saugo

Nos estudos literários – mesmo atuais – somos apresentados


aos textos através de seus autores, suas características e sua história,
de modo que a interpretação acaba sendo “canalizada” através destes
caminhos que levam o leitor a compreender o texto intrinsecamente
relacionado ao autor. Ou seja, o leitor fica submetido a esta interpretação
premeditada, como se esta fosse a única verdade sobre o texto.
No entanto, o texto literário vai muito além de seu autor ou
do contexto de produção. Esse tipo de texto pode ser visto como um
bem cultural que contribui para o desenvolvimento da educação, da
sensibilidade, da concentração, dos aspectos cognitivos e linguísticos e
do exercício da imaginação. Ou seja, ele é cheio de elementos e imagens
diversas, capazes de chamar a atenção de cada leitor de uma maneira
diferente. Nesse sentido, podemos pensar que é mais interessante olhar
para a relação que nasce do texto e do leitor, pois é no ato da leitura que
o leitor é levado para o espaço da imaginação e da fantasia e é dali que
nascem as críticas, tais como essa que será apresentada neste ensaio.
A proposta de leitura apresentada a seguir é decorrente de uma
experiência de leitura realizada com uma turma do 9° ano do ensino
fundamental a partir de um conto de Murilo Rubião. Iniciamos a leitura
do conto com o objetivo de discutir o tema “conto fantástico e seus
elementos”, todavia, ao final da leitura, nos vimos pesquisando sobre
esquizofrenia e outros tipos de delírios pós-traumáticos.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


O conto selecionado para esta análise, “A Noiva da Casa Azul”
(2010) possui quatro páginas e foi publicado originalmente em 1947,
na coletânea O ex-mágico. Esse é um dos contos de Rubião que nos
faz lembrar do fantástico tradicional, em que podemos observar a
estagnação entre o passado que não quer ir embora e o futuro que não
quer chegar. O título nos faz imaginar, em um primeiro momento, que
o espaço em que ocorrerá a história é a “casa azul”, todavia, o elemento
central da narrativa é a cidade fictícia de Juparassu, encravada no alto
da serra.
O pontapé inicial para o desenrolar do conto é uma carta enviada
por Dalila ao seu namorado, o narrador-personagem, que não recebe
nome. Na carta, a jovem conta que havia dançado com o ex-noivo em
um baile e ao ler este relato, o namorado viaja a Juparassu para encontrar
Dalila, impulsionado por uma “raiva incontrolável” (RUBIÃO, 2010,
p. 113). Nesse momento, podemos pensar que essa raiva de que fala o
personagem seja decorrente do ciúme que sentiu ao ler – e imaginar – a
amada nos braços de outro.
Apesar de o próprio personagem não se considerar ciumento, ele
mesmo afirma que a imagem de Dalila dançando com o ex-noivo “[...]
bulia com os meus nervos. Fazia com que, a todo instante, eu cerrasse
os dentes ou soltasse uma praga.” (RUBIÃO, 2010, p. 113). É interessante
mencionar que o conto já inicia com o narrador-personagem dentro
do ônibus, onde em um primeiro momento está tomado pela raiva
mencionada anteriormente, mas que logo se altera ao se deparar com
uma mudança de paisagem que o fez perceber que em breve chegaria
a Juparassu. Essa nova imagem levou-o a imaginar como seria bom
reencontrar Dalila e poder beijá-la.
No decorrer da história, o narrador-personagem é levado pela
memória e fica imerso em um devaneio lembrando de como se apaixonou
por Dalila e como a memória de Juparassu se tornou doce depois que

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


começou a namorar com a menina, de tal maneira que passou a associar
a cor da casa de Dalila (azul) com a cor das serras. É possível ter um
vislumbre dessa relação a partir do trecho a seguir:

Sim, ao encontro de Dalila. De Dalila que, em menina, ti-


nha o rosto sardento e era uma garota implicante, rusguen-
ta. Não a tolerava e os nossos pais se odiavam. [...]
Mas, no verão passado, por ocasião da morte de meu pai,
os moradores da Casa Azul, assim como os ingleses das
duas casas de campo restantes, foram levar-me suas con-
dolências, e tive dupla surpresa: Dalila perdera as sardas,
e seus pais, ao contrário do que pensava, eram ótimas
pessoas. Trocamos visitas e, uma noite, beijei Dalila. (RU-
BIÃO, 2010, p. 114).

Ao chegar na estação de Juparassu, o narrador-personagem


é questionado pelo agente da estação sobre sua estadia na cidade.
Inicialmente ele é confundido com o engenheiro que supostamente
estaria para chegar, mas nega ser essa pessoa e isso causa certa
inquietação no agente. O homem não conseguia entender o que o
narrador-personagem estaria fazendo na cidade, pois segundo ele “nada
há de interesse para ver nos arredores” (RUBIÃO, 2010, p. 114) e as
casas de campo estavam em ruínas.
As informações que o agente da estação expôs ao narrador-
-personagem o deixaram perplexo e até chateado, pensando se tratar de
uma brincadeira de mau gosto do outro homem. Mas ao perceber que
era sério o que o homem falava sobre Juparassu, o narrador-personagem
prefere não alongar muito a conversa e resolve caminhar sozinho até
sua antiga casa, pois, segundo ele: “Necessitava da solidão a fim de
refazer-me do impacto sofrido por acontecimentos tão desnorteantes.”
(RUBIÃO, 2010, p. 115).

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


É interessante notar que é somente vendo com os próprios olhos
que o narrador-personagem consegue encontrar a possibilidade de
regressão e verificação de que o seu passado havia sido destruído. Nesse
momento, percebemos como a memória e a realidade se confundem,
revelando o elemento fantástico que os leitores não conseguem explicar
e que gera inquietação. E o narrador-personagem é conduzido por esse
fantástico até essa espectrante – talvez até impactante – interpretação.
Ao chegar em sua casa, após alguns minutos de caminhada, o
narrador-personagem se depara com a temida realidade: encontra a casa
em ruínas e tomada pelo mato. Pelo seu relato, percebemos que apesar de
ter sido avisado do que encontraria, manteve uma esperança de que aquilo
não fosse verdade, já que mesmo estando diante das ruínas das casas de
campo, resistia em aceitar, como ele mesmo diz em: “Apesar das coisas me
aparecerem com extrema nitidez, espelhando uma realidade impossível
de ser negada, resistia à sua aceitação.” (RUBIÃO, 2010, p. 115).
O narrador-personagem anda pela propriedade em busca de
respostas que vão contra a realidade irrefutável sobre a cidade ter sido
abandonada. Nos fundos, encontra um colono roçando a terra, para
quem aproveita para fazer perguntas direcionadas à realidade em que
quer acreditar, como: “O que houve? Foi um tremor de terra? – insisti, à
espera de uma palavra salvadora que desfizesse o pesadelo.” (RUBIÃO,
2010, p. 115).
No final do conto, esse possível delírio do narrador-personagem,
que o levou até Juparassu, vai ficando mais evidente à medida que
sabemos o que realmente aconteceu na região. O morador com quem
o narrador-personagem conversa relata que a evasão local se deu pela
epidemia da febre amarela e que o jovem que morava naquela casa
havia sido levado para Minas por conta da doença, mas diz não saber se
ele resistiu. O narrador então imediatamente direciona uma pergunta

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


sobre quem mais lhe interessava saber: “– E Dalila? – perguntei ansioso.”
(RUBIÃO, 2010, p. 115).
Nesse momento, nos são revelados os elementos mais impactantes
do fantástico do conto de Rubião. O primeiro é decorrente da pergunta
que o narrador-personagem faz sobre Dalila, sobre a qual o morador
local nos revela que a moça era noiva do rapaz que morava na casa que,
aparentemente, era do narrador-personagem. O segundo elemento
importante para o fantástico no conto surge quando o morador
revela que Dalila havia morrido. Essas duas revelações – a segunda,
principalmente – levam o narrador-personagem à ruína mental, como
ele mesmo afirma em: “Fiquei siderado ao ver ruir a tênue esperança que
ainda alimentava.” (RUBIÃO, 2010, p. 115). Julgamos ser esses os dois
elementos-chave para explicar o fantástico no conto, pois a partir desse
momento, ficamos tão atordoados quanto o narrador-personagem.
Desnorteado, o homem busca a casa de Dalila. A Casa Azul, lugar
das doces memórias e do desejo, é feita de fragmentos. De igual maneira,
a estrutura psíquica do narrador-personagem também começa se
fragmentar. A casa é descrita por ele com expressões como “Em ruínas”,
“escombros”, “descolorida”, “destroços”, “semidestruída”, “esburacado”.
O narrador ainda tenta se prender à ideia de que sua amada está viva
dentro da casa em pedaços e novamente temos uma pista de um possível
transtorno mental do homem, que diz que “[...] de lá de dentro dos
escombros eu iria retirar minha amada.” (RUBIÃO, 2010, p. 115).
Ele entra na casa, andando aflito entre seus destroços em busca de
Dalila, mas tudo o que encontra é “Vazio” ao passo que sua aflição vai
aumentando: “Grito: Dalila, Dalila! Nada” e o delírio aparece novamente
“Abraça-me e não sinto seus braços”. E por fim, a eterna busca pelo lugar
originário leva-o a render-se totalmente à loucura: “Corta-me a agonia.
Corro desvairado.” (RUBIÃO, 2010, p. 116).

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


No texto, nos deparamos com pistas sobre a possibilidade de o
narrador estar totalmente imerso em um delírio ou possuir alguma
afecção mental, desmontando assim as fronteiras entre loucura e
sanidade, o que poderia ser uma explicação para tamanho espanto
ao saber da realidade. Essas pistas podem ser verificadas em trechos
como “O chefe do trem arrancou-me bruscamente do meu devaneio.”
(RUBIÃO, 2010, p. 114) ou relatos como quando diz que teme que o
tomem por “neurastênico ou débil mental” (RUBIÃO, 2010, p. 113) e
quando percebe “estar sob suspeita de loucura” (RUBIÃO, 2010, p. 114)
ao falar com o agente da estação.
Assim como em outras histórias escritas pelo autor, “A noiva
da casa azul” é marcado pelo fantástico tradicional e pelo aberto
que geram as perguntas sem respostas. Este conto, particularmente,
implementa o seu mistério com a indefinição da real situação mental do
narrador-personagem. E como a trama se encerra com o trecho citado
anteriormente, não se tem a possibilidade de saber o seu desfecho, de
modo que perguntas como “Para onde ele correu?” e “O que realmente
aconteceu com Dalila?” surgem automaticamente para o leitor.
Um fato interessante para se mencionar sobre o conto é que no
decorrer de toda a história nos são apresentadas expressões relacionadas
à loucura, tais como “neurastênico ou débil mental”, “meu devaneio”,
“loucura”, “paranoico”, “desvairado”. Por conta dessas expressões e do
fantástico que não conseguimos explicar, outra questão que nos surge
é se esse narrador estaria sob alguma condição psicológica alterada ou
teria mesmo recebido uma carta de Dalila. Podemos supor que talvez
esses sejam realmente indícios de um possível transtorno psicótico, o
que explicaria a forma como a história se desenrola.
Outro fato interessante é uma característica estética do conto,
nitidamente dividido em quatro partes. Mas o que realmente chama
atenção nessa divisão, é que ao passo que o elemento fantástico vai se

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


revelando na história, percebemos a ruína psicológica do narrador-
-personagem. Na primeira parte, ele descreve uma realidade que,
aparentemente, é bastante concreta, sem vestígios de loucura ou
devaneio. Ou seja, temos apenas um rapaz que, por conta do ciúme,
resolve viajar para encontrar sua amada e relata sua história já a caminho
do destino, Juparassu. Já na segunda parte, ele não parece totalmente
lúcido, pois está descrevendo sua relação com a amada no passado e se
encontra imerso em suas lembranças.
Na terceira parte, que acontece quando o rapaz chega à Juparassu,
começam as revelações de que a história apresentada até então pelo
narrador-personagem não é totalmente verdadeira. Na quarta e última
parte, a história que ele nos conta já está em ruínas, juntamente com sua
sanidade mental. Nesse sentido, constatamos que a memória do rapaz
se fragmenta juntamente com a história.
Assim, colocamos em evidência o fantástico no conto de Murilo
Rubião e uma possível leitura dele. Entendemos que esse fantástico
cria lacunas na história e que essas lacunas possuem os elementos
de ocultação e desvelamento, já que ao ler um texto assim, o leitor se
depara com questões sem resposta e sente o desejo de desvendá-las. O
fantástico abordado neste conto é uma das possibilidades de explorar o
imaginário dos leitores, fazendo-os sair da zona de conforto.
A imaginação é capaz de levar o leitor a viver experiências únicas e
pode provocar sensações como diversão, tristeza, repúdio, entre outras.
Através dela, o leitor consegue produzir imagens, ideias, concepções,
visões de mundo e de indivíduos. Por essa razão, propomos aqui o
fantástico como uma das possibilidades de despertar o imaginário
do leitor. A realidade em que vivemos atualmente está, sem querer,
atrofiando as capacidades imaginárias dos indivíduos, visto que é muito
fácil ter acesso a respostas para qualquer coisa.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Tendo em vista que a imaginação é uma propriedade humana
de representação de imagens, é possível pensar no fantástico como a
oportunidade de o leitor evocar e atribuir sentido ao inexplicável,
criando concepções e imagens. Nesta perspectiva, percebemos que
o texto literário é de grande importância para a sociedade, já que
sua leitura, além de ser prazerosa, contribui para o enriquecimento
intelectual e cultural de cada leitor, desenvolvendo seu senso crítico e
despertando-o para novas experiências.

Referências

BAUDELAIRE, Charles. Prefácio: Outras anotações sobre Edgar Poe.


In: POE, Edgar Allan. Contos de imaginação e mistério. São Paulo:
Tordesilhas, 2013. p. 07-19.

CESERANI, Remo. O Fantástico. Tradução de Nilton Tridapalli.


Londrina: Ed. UFPR, 2006.

RUBIÃO, Murilo. A noiva da casa azul. In: RUBIÃO, Murilo. Obra


Completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 113-116.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Dançando sob os pés do outro
[1958 – A aventura de um esposo e uma esposa – Italo Calvino]

Adriana Hoffmann

De acordo com Barthes, o título de um texto é a sua marca. Essa


marca tem como função anunciar a mercadoria que vem a seguir, já
que a sociedade tem necessidade de assimilar o texto a um produto
comercial. “Esse anúncio metalinguístico tem uma função aperitiva:
trata-se de pôr o leitor em apetite.” (BARTHES, 2001, p. 311).
O título do conto de Italo Calvino traz a palavra “aventura” como
sua grande marca. O leitor, acostumado a relacionar essa palavra a
situações de perigo, pensa imediatamente nas façanhas de um herói
no desenrolar de acontecimentos inesperados e arriscados. É preciso
observar que as palavras “esposo” e “esposa” trazem um código social à
tona: o matrimônio. Dessa forma, o leitor também pode ver na palavra
“aventura” o anúncio de um relato sobre um caso amoroso passageiro.
Não há nomes próprios no título e o fato de “esposo” e “esposa” virem
acompanhados de artigo indefinido reforça a ideia de que os eventos
relatados no texto são inespecíficos, podem acontecer a qualquer um.
No conto, o esposo é o “operário Arturo Massolari”, casado com
Elide, a esposa. Ele tem nome, sobrenome e função; ela, apenas nome.
Para Barthes (2001), um nome próprio deve sempre ser interrogado
cuidadosamente, pois suas conotações são ricas, sociais e simbólicas.
O sobrenome Massolari é italiano, já Elide, pelo contrato social, é de
Arturo, não precisa mais especificar sua origem.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Não há relatos de como os personagens se conheceram ou as
circunstâncias do matrimônio. O foco está na dinâmica da vida deste
casal. Nas primeiras linhas do conto, o leitor é informado sobre o
trabalho de Arturo e seus horários. Ele é operário e faz o turno da noite,
que termina às seis. Chega em casa entre seis e quarenta e cinco e sete
horas da manhã. Mas poderia chegar antes se o trajeto (que ele faz de
bonde ou de bicicleta) não fosse tão longo. Há um motivo para o leitor
saber deste horário com exatidão: no caso deste conto, as horas e os
minutos são de extrema importância. Elide sai para trabalhar na fábrica
pouco depois de o marido chegar e, quando volta, é Arturo quem logo
deve sair. Assim, a vida do casal é toda cronometrada, como uma dança
coreografada em que os movimentos são controlados pelos limites do
tempo e do espaço.
Os limites do tempo sempre ficam bem claros ao leitor, pois até o
narrador, onisciente neutro, tem pressa. Há uma predileção pela cena,
pela ação, por isso um texto em que predominam os verbos sobre as
outras palavras. Os fatos mentais e os acontecimentos são narrados
indiretamente, é o narrador quem descreve o que acontece e explica ao
leitor o que pensam os personagens, sem emitir opiniões ou julgá-los.
A escolha pelo uso dos verbos no pretérito imperfeito localiza as ações
em momento anterior ao da fala e esse aspecto de evento não finalizado,
próprio desse tempo verbal, é imprescindível para que o leitor construa
a noção de que a vida de Arturo e Elide é sempre assim, combinações de
movimentos que se repetem.
Nesta dança, a diferença de 15 minutos que pode existir para o
retorno de Arturo determina se ele chegará antes de a esposa acordar ou
um pouco depois, interferindo nos movimentos que vem a seguir. Elide
prefere que o esposo chegue antes do despertador tocar, para acordá-la
suavemente e os dois, então, se abraçarem. Neste momento, mesmo que
Elide conseguisse adivinhar o clima que fazia lá fora pela jaqueta do

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


esposo, às vezes com resquícios da chuva ou da neve, ela se perguntava
o tempo que fazia lá fora. Esse era o sinal para Arturo começar a relatar
os incômodos que havia passado e como fora o serviço.
Agora, se Arturo chega mais tarde, os minutos de atraso não
permitem que esse momento aconteça. O encontro do casal, então, é
na cozinha e Arturo mal olha para a esposa, absorto em suas tarefas:
esvaziar a bolsa, acender o fogo, preparar o café.
Os limites do espaço proporcionam o momento de maior
intimidade do conto. No banheiro muito pequeno, que os dois precisam
dividir pela manhã, o toque é inevitável (e desejado). Meio nus, eles se
ajudam, trocam objetos, conversam, ensaiam carícias. Até Elide se dar
conta de que já está na hora de sair e termina apressada seu ritual.
Já a cama, espaço onde normalmente os casais se encontram,
marca a ausência do outro. Quando Arturo se deita, após Elide sair para
o trabalho, a cama está como ela a deixara. Para sentir o calor da mulher,
ele pouco a pouco se desloca para o lado em que ela dorme e ainda
encontra a forma do seu corpo desenhada e o seu perfume. Quando
Elide vai deitar-se à noite, percebe que o marido dormira no seu lugar e
isso lhe desperta grande ternura. Apesar da ausência física, o encontro
não deixa de existir.
Como a dança precisa da música, os sons que dão ritmo aos
movimentos do casal são muito importantes e ganham detalhes do
narrador. O despertador, o barulho dos saltos de Elide descendo
correndo as escadas, o som do bonde saindo. Arturo só se deita quando
ouve o bonde da esposa sair. Os passos da esposa são diferentes na volta,
são pesados e lentos, pois agora ela sobe cansada e está carregada de
compras. Mesmo que eles não se vejam mais ou os sons não sejam mais
audíveis, o casal os tem gravado no pensamento e sabe exatamente o que
está acontecendo.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Nos poucos momentos em que o narrador deixa a cena de lado
para relatar como se sentem os personagens, é o ponto de vista de Elide
que aparece, ou seja, o ponto de vista feminino. Os momentos que
Arturo está com o pensamento nela, mesmo no pouco tempo em que
passam juntos, são muito breves. O foco de Arturo, quando nela, logo
foge para alguma tarefa que precisa ser feita. Ela quer ser mais olhada
pelo marido, ser consolada, quer o marido mais perto. Também quer
que Arturo se dedique mais, seja mais atento ao momento.
Na hora do jantar, o encontro à mesa parece ser o mais angustiante.
Com tudo pronto e organizado, sentados juntos pela primeira vez,
parece enfim o momento de estarem finalmente um para o outro, mas
só pensam no pouco tempo que eles têm. Até quando estão finalmente
próximos só conseguem pensar no momento da separação.
Arturo sai para trabalhar logo após o jantar. É a vez de Elide
acompanhá-lo em pensamento e só depois de imaginá-lo longe vai
para cama. Não sem antes ficar um pouco decepcionada com as tarefas
domésticas feitas pelo marido antes de ela chegar.
As últimas palavras do conto remetem o leitor à grande ternura
que Elide sente ao perceber que o marido dormira no lugar dela. A
palavra amor não é mencionada no conto, como algo impossível de se
realizar. Entretanto, apesar dos problemas, é a ternura que atravessa
e arremata o texto. Esse sentimento tão análogo aos acontecimentos
corriqueiros encerra a narrativa de um dia na vida deste esposo e desta
esposa.
E assim, o leitor se pergunta: por que usar a palavra aventura
para descrever acontecimentos tão banais? Porque sobreviver e manter
a ternura é uma aventura. A ausência, o desencontro, o peso da rotina
que aprisiona são desafios verdadeiramente perigosos. E diante de
todo individualismo, ainda considerar o outro.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Referências

BARTHES, Roland. A Aventura Semiológica. Tradução de Mario


Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 106-109.

CALVINO, Italo. Os Amores Difíceis. São Paulo: Companhia das


Letras, 2013.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Um encontro com o enigmático
[1960 – Amor – Clarice Lispector]

Aline Majolo

Publicado em 1960, mas escrito na década de 50, o conto “Amor”,


de Clarice Lispector, faz parte do livro Laços de Família, obra que reúne
13 contos voltados à vida cotidiana, envolvendo laços familiares. Não
se sabe ao certo a data em que foi escrito, mas tratando-se de literatura,
o texto continua abrindo lacunas para que leitores de diferentes épocas
possam preenchê-las. De acordo com Jauss, essas são as grandes obras,
“[...] aquelas que conseguem provocar o leitor de todas as épocas,
permitindo novas leituras em cada momento histórico.” (JAUSS, 1994,
p. 31 apud COSTA, [s.d.], p. 04). Iser também afirma algo em relação a
isso, apoiando-se em Jauss:

[...] os textos não se comunicam apenas com os leitores


contemporâneos, mas, ao longo do tempo, dialogam com
outros públicos sem perder seu aspecto inovador, assumin-
do formas diferentes conforme o repertório desse novo pú-
blico. (ISER, 1996, p. 75 apud COSTA, [s.d.], p. 08).

O conto “Amor”, narrado em 3ª pessoa do singular, conta a


história de Ana, mulher casada, mãe, que tem uma vida rotineira. A
narrativa passa-se em um dia, do amanhecer ao anoitecer. Assim como
em tantos outros, Ana, ao voltar para casa, sobe em um bonde que
passa por um ponto, onde ela vê um cego mascando chicletes. Este

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


acontecimento muda sua rotina, causando desordem e perturbação em
sua consciência, fazendo-a esquecer seu ponto de descida. Andou um
pouco mais e acabou parando no Jardim Botânico, ficando lá por algum
tempo. Quando voltou à “realidade”, foi para casa e tentou voltar à sua
rotina, mas algo a marcou para sempre, já não era a mesma.
O texto é rico em imagens e tem sempre o retorno do reflexo do
cego mascando chicletes, uma imagem enigmática que dá sustentação
ao texto, pois é a figura do cego que provoca algo em Ana: “Alguma coisa
intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicletes...
Um cego mascava chicletes” (LISPECTOR, 1990, p. 21). O que o cego
provocou em Ana? Será que o mesmo que a barata provocou em G.H., no
livro Paixão Segundo GH? Os textos não trazem respostas e sim infinitas
possibilidades de leitura, espaços em branco, “hiatos”. Vejamos aqui a
importância do leitor para que esses espaços em branco, vazios sejam
preenchidos: “Ingarden conceitua os espaços vazios em hiatos, lacunas
deixadas propositalmente pelo autor e que devem ser preenchidas pelo
leitor.” (ISER, 1999, p. 126).
O que a imagem do cego faz em Ana não é possível responder,
mas pode-se chegar à ideia de que Ana já não é mais a mesma, como
se houvesse um desdobramento do eu (Ana) em outro para explicar o
próprio eu, ou seja, Ana vê no cego mascando chicletes sua própria vida.
É a imagem do cego mascando chicletes que revela um olhar do eu para
o próprio eu, ou seja, “[...] revela-se um olhar que nem sempre vem
de fora – do outro – mas é provocado por um deslocamento interno,
um desdobramento, onde o eu desfocado é que produz o olhar.” (CURI,
2001, p. 156, grifos do autor).
Ana é muito semelhante à GH. Tanto em “Amor” quanto em Paixão
Segundo GH, as personagens transformam-se no momento em que
veem algo inexpressivo, Ana vê o cego mascando chicletes, GH vê uma
barata; as duas imagens neutras. É a partir desses acontecimentos que

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


as personagens passam a pensar, refletir sobre elas mesmas, como um
mergulho na consciência. É por meio do neutro que Ana e GH passam
a observar pequenas coisas que antes eram despercebidas. Ana é uma
dona de casa, sempre com os mesmos afazeres. Há algo mais expressivo
do que levar uma vida mecânica, como se fosse uma máquina que repete
os mesmos movimentos todos os dias? Quem é o cego? Aquele que Ana
vê mascando chicletes ao passar por um ponto, ou aquela que nem vê
o que se passa ao seu redor? GH também é marcada por uma vida de
rotina. Está tomando café como todos os dias, quando vai ao quarto da
empregada que deixou o emprego e lá ela vê a barata que provoca algo
que a deixa desconcertada (fora do lugar); assim como Ana, GH não é
mais a mesma, “O que vi arrebenta a minha vida diária” (LISPECTOR,
1998, p. 17).
Ana e GH pareciam estar presas a algo que se quebrou ao
encontrarem-se com o neutro (cego e a barata): elas deixam de ser
expressivas e passam a pensar/ver, “Sabia que estava fadada a pensar
pouco, raciocinar me restringia dentro da minha pele. Como, pois,
inaugurar em mim o pensamento?” (LISPECTOR, 1998, p. 19). As
personagens ao encontrarem com o cego e a barata, respectivamente,
encontram o enigmático e sentem-se incomodadas como se estivessem
em outro lugar, “[...] que nova terra era essa?” (LISPECTOR, 1990,
p. 136). As próprias personagens buscam respostas para os enigmas, “O
que faria se seguisse o chamado do cego?” (LISPECTOR, 1990, p. 136):

Terá sido o amor o que vi? Mas que amor é esse tão cego
como o de uma célulaovo? Foi isso? Aquele horror, isso era
amor? Amor tão neutro que – não, não quero ainda me
falar, falar agora seria precipitar um sentido como quem
depressa se imobiliza na segurança paralisadora de uma
terceira perna. (LISPECTOR, 1998, p. 19-20).

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Ana e GH tiveram um encontro com o enigmático, embora
encontros um tanto “banais”, é o que move a literatura de Clarice
Lispector em Amor e Paixão Segundo GH. O texto nos convida para
leituras “inexpressivas”, a ter um verdadeiro encontro com a literatura.
Como diz G.H.: “Às vezes – às vezes nós mesmos manifestamos o
inexpressivo – em arte se faz isso, em amor de corpo também – manifestar
o inexpressivo é criar.” (LISPECTOR, 1998, p. 142). O encontro com o
cego e com a barata pode ser visto como um encontro com a literatura,
a literatura inexpressiva (sem expressão), pois ela trabalha com as
pequenas coisas que passam despercebidas, o enigmático, para o qual
não há respostas definitivas, mas que nos faz pensar e tem sempre
um conhecimento novo a nos apresentar. O texto faz isso, apresenta
inúmeras possibilidades de leitura, segundo Barthes:

Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de


palavras, libertando um sentido único, de certo modo teo-
lógico (que seria a “mensagem” do Autor-Deus), mas um
espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contes-
tam escritas variadas, nenhuma das quais é original: o tex-
to é um tecido de citações, saldas dos mil focos da cultura.
(BARTHES, 2004, p. 06).

Uma outra obra que dialoga com os escritos de Lispector foi escrita
em 1918, mas publicada em 1923. Se trata de Bliss (ou Êxtase, na tradução
de Ana Cristina Cesar), não só por se tratar de uma personagem feminina,
mãe, Bertha Young, mas também o que acontecia à personagem, algo que
de repente a inquietava, assim como a Ana e a G.H.:

O que fazer se aos trinta anos, de repente, ao dobrar uma


esquina, você é invadida por uma sensação de êxtase – ab-
soluto êxtase! – como se você tivesse de repente engolido

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


o sol de fim de tarde e ele queimasse dentro do seu peito,
irradiando centelhas para cada partícula, para cada extre-
midade do seu corpo? (MANSFIELD, 1996, p. 23).

Bertha parece não compreender o que acontece com ela, assim


como ocorre com Ana e G.H. Assim como elas, Bertha tinha uma vida
aparentemente tranquila, o que a incomodava, pois tinha medo de
renunciar a isto:

Era verdade – ela tinha tudo. Era jovem. Harry e ela se


amavam como nunca, davam-se esplendidamente bem,
eram realmente bons companheiros. Ela tinha um bebê
adorável. Não havia que se preocupar com dinheiro. A
casa e o jardim eram absolutamente satisfatórios. (MANS-
FIELD, 1996, p. 27).

Como em Amor e Paixão Segundo G.H., também há algo que


perturba Bertha e a faz perceber e observar antes coisas não percebidas
por ela, o conto termina após o texto dar a entender que Harry, o marido,
estaria traindo Bertha, levando a perceber a dura realidade, porém não
afirma concretamente, deixando aí a dúvida ao leitor:

Enquanto Eddie folheava o livro, Bertha virou a cabeça


em direção ao vestíbulo. E ela viu... Harry com o casaco de
Miss Fulton nos braços e Miss Fulton de costas para ele, a
cabeça inclinada para o lado. Harry afastou bruscamente o
casaco, pôs as mãos nos ombros dela e a virou com violên-
cia. Seus lábios diziam: “Eu te adoro”, e Miss Fulton pousou
seus dedos cor de luar no rosto dele e sorriu seu sorriso
sonolento. As narinas de Harry tremeram; seus lábios se
crisparam num esgar horrível ao sussurrarem: “Amanhã”, e
com um bater de olhos Miss Fulton disse: “Sim”. (MANS-
FIELD, 1996, p. 34-35).

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Em relação ao momento histórico, a obra foi escrita no início
do século XX, época de fortes manifestações por parte das mulheres
por direitos iguais em relação aos homens, manifestações essas que
ocorreram também no Brasil, principalmente entre a década de 60 e
70, período em que Clarice publicou suas obras. Percebe-se, nisso, a
importância que o meio oferece para a produção literária, não tirando
o valor da obra independente do período que ela for lida. Êxtase, assim
como as obras de Lispector, também traz uma das características da
Literatura, o poder de propor enigmas, o próprio final do conto é um
enigma: “Bertha correu para as janelas largas do jardim. ‘Deus! O que
vai acontecer agora?’” (MANSFIELD, 1996, p. 33).
Voltando à reação que o cego provocou em Ana, assim como o
que tenha provocado a inquietação em Bertha ou o incômodo que a
barata provocou em G.H., isso nos lembra a reação que um texto pode
provocar no leitor, a qual Aristóteles denominou Catarse, a sensação
de incômodo, emoção forte, mas que faz refletir. Jauss reflete sobre isso
em sua terceira tese, ao falar do que o texto pode provocar no leitor:
“[...] o texto pode satisfazer o horizonte de expectativas do leitor ou
provocar o estranhamento e o rompimento desse horizonte, em maior
ou menor grau, levando-o a uma nova percepção da realidade.” (JAUSS,
1994, p. 31 apud COSTA, [s.d.], p. 04). Sendo assim, o texto literário tem
esse poder de nos fazer pensar ou até mesmo repensar sobre algo que
acreditávamos estar “definido”. Isso também é discutido por Iser (1999)
ao afirmar que o texto pode levar o leitor a rever suas concepções de
vida e mudar sua visão de mundo, isso ele chama de diálogo entre obra e
leitor, ou seja, uma comunicação entre ambos. Nisso entra a importância
discutida por Iser (1999), a de que o leitor precisa estar sempre aberto a
novas leituras, ser flexível e preparado para questionar suas crenças e, se
necessário, modificá-las.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Podemos perceber, nessa análise, a importância do leitor em
manter uma entrega ao talento literário, leitores de senso comum não
veriam a originalidade de um clássico em cada um dos textos: “Os
clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer,
quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.”
(CALVINO, 1993, p. 12). Esses textos não se revelam novos só em sua
produção, mas a cada leitura.
Que não somente esses, mas muitos textos literários possam
provocar nos leitores o que o cego provocou em Ana, pois só assim ela
pôde ver o que havia ao seu redor, pôde refletir sobre sua vida. Ana
escolheu voltar à “realidade”, mas algo o cego provocou nela. Que a
Catarse possa fazer parte da vida de leitores, que segundo Jauss1 é
uma atividade primordial a ser provocada no leitor, ou seja, o prazer
proveniente da recepção e que ocasiona, tanto a liberação, quanto a
transformação das convicções do leitor, mobilizando-o para novas
maneiras de pensar e agir sobre o mundo. Que a leitura possa provocar
em nós leitores o que levou Clarice, Mansfield entre outros escritores a
escreverem verdadeiros clássicos literários.

Referências

BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O Rumor


da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.

1 O artigo intitula-se “O prazer estético e as experiências fundamentais da: Poíesis,


Aísthesis e Kartharsis” e está incluso em uma coletânea de ensaios de vários
membros da escola de Constança e organizados por Luiz Costa Lima.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


COSTA, Márcia Hávila Mocci da Silva. Estética da Recepção e Teoria
do Efeito. Maringá, [s.d.]. Disponível em: http://www.educadores.
diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/LinguaPortuguesa/
artigos/EST_RECEP_TEORIA_EFEITO.pdf. Acesso em: 06 dez. 2021.

CURI, Simone. A escritura nômade em Clarice Lispector. Chapecó:


Argos, 2001.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução


de Johannes Kretschmer. São Paulo: 34, 1999. v. 2.

JAUSS, Hans Robert. O prazer estético e as Experiências Fundamentais


da Poiesis, Aesthesis e Katharsis. In: LIMA, Luis (org.). A literatura e o
leitor: textos de Estética da Recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Rocco,


1998.

LISPECTOR, Clarice. Amor. In: LISPECTOR, Clarice. Laços de Família.


Rio de Janeiro: Rocco, 1990. p. 19‐29.

MANSFIELD, Katherine. Diário e cartas: Katherine Mansfield.


Tradução de Julieta Cupertino. Rio de Janeiro: Revan, 1996.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Uma galinha e a existência
feminina projetada
[1960 – Uma galinha – Clarice Lispector]

Helen Cristina Núbias Pereira

“O homem em sua arrogância se crê uma obra prima, digna


de intervenção de um deus. É mais humilde e, a meu ver, mais
verdadeiro, considerá-lo como criado a partir dos animais.” 
(Charles Darwin, Carnets, 1838).

O conto “Uma Galinha” nos convida a uma reflexão. A autora


traz em seus contos, em especial neste, uma relação entre o que está
explícito e aquilo que a obra representa dentro do contexto. A principal
característica desta obra é a percepção de informações que estão
implícitas. O leitor precisa relacionar o contexto com a realidade que
o cerca. Lispector permite, através da leitura, que façamos um paralelo
com conflitos existentes na sociedade. A forma de linguagem que cita
eventos comuns é que torna a leitura interessante e instigante.
No conto, é representado um evento familiar, um almoço de
domingo. Conforme o conto vai evoluindo, percebemos um espetáculo
familiar. Este espetáculo nos faz repensar muitos conceitos presentes
em nossa sociedade: ideal de família, representação de conflitos,
representatividade feminina, além de outros eventos implícitos.
A primeira percepção que temos está relacionada à liberdade,
quando a galinha foge, está tentando ser livre, ou seja, sobreviver. O que
demonstra que ela deseja fugir da sua realidade.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


O texto é um convite à leitura e o título, por sua aparente
simplicidade, chama atenção e provoca curiosidade, pois nos remete a um
acontecimento normal, um almoço de domingo. Conforme os episódios
vão acontecendo, a leitura nos envolve por ser dinâmica e de fácil
compreensão. A forma implícita de reflexão que o conto nos proporciona
é genial, com muitas metáforas, entre outras figuras de linguagem.
Uma das mais importantes figuras presentes no texto é a personificação
da galinha, que é tratada como ser humano pela família. Uma forma
importante é a atribuição de características de ser humano representadas
na galinha. Percebemos na frase “a galinha parecia calma” (LISPECTOR,
1998, p. 31), o fato de ela parecer tranquila fez tanto sentido, que talvez
nem nos provoque estranhamento.  Posteriormente, veremos como os
adjetivos cumprem o papel de humanizar a galinha.
Já no início do texto, fica clara a submissão do animal em relação
ao seu futuro, “encolhida no canto”, a primeira metáfora que podemos
inferir, a submissão da mulher perante algumas situações, fato muito
comum em nossa sociedade.
A partir do quarto parágrafo a galinha já começa a se confundir
com o ser humano, vários adjetivos são destinados a ela: estúpida, tímida,
afobada. Então, a riqueza de detalhes da fuga espetacular impressiona e
envolve o leitor. A perseguição ao animal tornou-se intensa. A galinha
é comparada ao galo, como se ela não tivesse a mesma vida vantajosa
de um ser do sexo masculino, nem a mesma força, seria mais frágil, e
menos vitoriosa. A autora deixa implícito para o leitor como o macho é
reconhecido como ser superior, e o discurso dela propõe uma discussão
sobre os nossos conceitos sociais. 
A superioridade masculina é posta em dúvida, a galinha tem a
superioridade perante o galo, ela é capaz de pôr ovos, de dar vida a um
novo ser. 
Surgem vários personagens, a figura da mãe, do pai, da menina, a
família se completa. E a dúvida perante o que fazer com o animal, que
As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras
é humanizado pela família, além de envolto em afeto por ter colocado
um ovo. 
O diálogo entre as muitas vozes destaca o destino da galinha. Clarice
Lispector utiliza a figura do animal como representação do feminino na
obra, a noção das mulheres em aceitar a figura doméstica como ideal social.
A autora escreve destacando a representatividade feminina, as incertezas
femininas, a vontade de fuga, a mudança de realidade, o sentimento de
maternidade, todos os elementos representando as dúvidas das mulheres. 
A dicotomia que Lispector destaca é o ideal de rainha do lar, ou
uma mulher destemida que foge do conservadorismo imposto pela
sociedade. O ambiente familiar é o contexto escolhido pela autora, e
fugir deste contexto é para as mulheres enfrentarem o sistema. A figura
masculina na obra não tem papel de destaque, mas o animal é o centro
da história, entendido como representação da feminilidade. Já o galo é
dominador, forte e vitorioso.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo


em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela
um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia
contar com ela para nada. Nem ela própria contava con-
sigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem
é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria
no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
(LISPECTOR, 1998, p. 31). 

O galo é caracterizado como útil, sendo tratado como mais


importante que a figura da galinha. Como bem citam as autoras Pinter e
Silva, o “galo” é alegoria utilizada pela escritora para o homem dominador,
“sexo forte, enquanto a ‘galinha’ é a alegoria do(a) dominado(a), do sexo
frágil” (PINTER; SILVA, 2013, p. 114). Além disso, a figura feminina
é tratada com imagem de indecisão, rebeldia, um ser que foge das

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


responsabilidades, todas essas características percebidas na figura da
galinha.
Vale destacar que, logo após ser comparada com o galo, a galinha
ressurge com um papel, o mais importante na sociedade: o de mãe, de
progenitora, abafando completamente a superioridade do galo. Sabemos
que a condição de mãe é a mais importante da sociedade, responsável
pelo sucesso das outras representações. E a galinha foi aceita pela família,
agora puderam perceber a importância do animal para a continuidade
da espécie. O simples fato de a galinha pôr um ovo muda a concepção
da sua relevância. 

-Mamãe, mamãe não mate mais a galinha, ela pôs um ovo!


Ela quer o nosso bem! Todos correram de novo à cozinha
e renderam mudos à jovem parturiente. Esquentando seu
filho, esta não era suave nem arisca, nem alegre, nem triste,
não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum
sentimento especial. (LISPECTOR, 1998, p. 32). 

Depois do fato, a família reconhece a importância da galinha na


vida deles, e até pensam que quando ela está procriando é um presente,
um querer bem, na verdade é apenas a natureza dando continuidade à
espécie. O animal é aceito e volta a pertencer ao ideal da família. 
A escrita do conto mostra como a sociedade reconhece a figura
feminina, e a reflexão nos mostra que precisamos mudar e lutar por
uma sociedade igualitária, em que homens e mulheres sejam vistos
como seres humanos em direitos e deveres na prática, e não apenas na
Constituição da República. 
A autora finaliza o conto reconhecendo que a galinha finalmente
perdeu a voz, e foi abatida como um animal indefeso. E tudo segue
normal, a família revela então o verdadeiro fim da galinha. Segundo
Pinter e Silva (2013, p. 118):
As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras
Esta ‘galinha’ é somente a alegoria de um indivíduo, segui-
do por outro igualmente sonhador, mas ao mesmo tempo
manipulado por um sistema regulador que divide a socie-
dade brasileira em polos hierárquicos e complementares.

É necessário, portanto, uma mudança de pensamento, e um


debate constante, demonstrando a fragilidade de valorização da figura
masculina. Ressaltamos também como o leitor pode ler o conto, e fazer
parte dele, estabelecendo uma relação familiar entre si e os personagens. 
Desta forma, concluímos que a autora usou a figura da galinha
para representar a mulher, e descrever como o conto mostra muito mais
que um simples almoço em família. Ele permite uma reflexão sobre a
sociedade e formação dos nossos ideais familiares e femininos. 

Referências

BRAGA, Larissa Adams. Um olhar sobre a mulher a parir do conto


“Uma galinha”, de Clarice Lispector. Revista Espaço Aadêmico, n. 189,
fev. 2017.

LISPECTOR, Clarice. Laços de família. São Paulo: Rocco, 1998.

PINTER, Kayanna; SILVA, Regina Coeli Machado. A alegorização da


condição da mulher no conto uma galinha de Clarice Lispector. Revista
Trama, v. 9, p. 109-120, jan./jun. 2013.

Revista Nova Escola. Disponível em: https://novaescola.org.br/


conteudo/5849/contouma-galinha-de-clarice-lispector. Acesso em: 07
dez. 2021.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


A caça pelo passarinho que não se vê
[1965 – Menino caçando passarinho – Dalton Trevisan]

Moara Fernanda Lima Elger

A obra O vampiro de Curitiba, de Dalton Trevisan, traz o conto


“Menino caçando passarinho”, o qual se passa em uma época que a
desconfiança era e ainda é muito evidente. Além disso, mostra a vivência
das mulheres na sociedade naquela época.
Muito se discute sobre a mulher na sociedade. E, no conto, fica
evidente a posse que o esposo tem em relação a sua esposa. Também, é
importante salientar que as suspeitas apontadas pelo seu companheiro
no conto refletem na vida que Olga tinha em família.
Vale ressaltar, também, que ela tinha dois filhos e acabara de
perder o seu terceiro filho, que ainda estava em seu ventre. Essa perda
fez com que as desconfianças de seu companheiro aumentassem ainda
mais a seu respeito, pois, em seu resguardo, Olga passou na casa de sua
mãe. Em vista disso, ao retornar para sua casa, foi acusada de adultério.
Neste contexto, é notável a posse e a desconfiança que o marido
tem de sua esposa. E, desta forma, Olga procura um advogado para
defendê-la, pois sente-se ameaçada por algo que ela afirma não ter
cometido. Nesta escrita de Dalton Trevisan, é visível o vampirismo
retratado em seus discursos, o qual busca apresentar também as cenas
eróticas, com sons e toques no discorrer do conto.
No desenlace da obra, Olga demonstra a preocupação em relação
ao que falam de sua vida, pois ela preza pela sua índole e capacidade em
ser honesta consigo mesma.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Assim, observando o cenário em que estava inserida, a personagem
luta contra um sentimento que não pretende abrir mão, bem como,
relutando contra os encantos do doutor, tentando de várias formas não
ceder aos atributos do advogado. Porém, houve o momento em que
Olga desconhecia a maneira mais fácil de despistar esse homem.
Com receio de que alguém como seu pai ou até mesmo seus filhos
aparecessem, ela, ainda com desejos à flor da pele de momentos de
loucura, tenta fugir do doutor que tanto a auxiliou para melhor resolver
sua vida.
Ainda que se tratando de desejos compartilhados pelas duas
partes, Olga se entregou aos encantos do advogado, no entanto, revelou
o medo de ser vista e um dos motivos mais evidentes foi a preocupação
em relação a um menino que caçava passarinhos em uma árvore.
Ao fazer esta análise, a personagem ficou pensativa, pois teria ele
visto algo além do passarinho na árvore, ou apenas avistou o pássaro ao
qual ele tentava caçar?
Os contos de Dalton se encontram no presente ou num passado
recente, em que se elenca a caça como um dos principais assuntos
comentados em suas obras, no entanto, no conto do menino caçando
passarinho, a caça representa um ar de inocência e repressão ao
lê-lo, mas também traça a trajetória de uma mulher que sofria com a
desconfiança do seu companheiro.
Tendo em vista os aspectos apresentados, conclui-se que o título
do conto só fará sentido no momento final, em que Dalton evidencia a
seguinte fala:
“– Menino caçando passarinho é cego para o que não for
passarinho.”

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Entre o amor de alma
e o amor de corpo
[1967 – Reminisção – João Guimarães Rosa]

Liliane Camargo Sousa

O título “Reminisção” é uma palavra que alude a “recordar-se


/ memória”. E posterior à leitura do texto, este significado veio mais
forte na nossa mente. Além dessa primeira impressão, encontramos
inicialmente uma síntese do que será abordado ao longo do texto, talvez
um spoiler? “Vai-se falar da vida de um homem; de cuja morte, portanto.”
(ROSA, 1985, p. 93).
Iniciando a análise, no trecho a seguir encontramos características
que sinalizam especificidades do casal, um fato. Particularizando
o apelido (a representação), no momento em que é utilizada a
denominação Pintaxa, remetendo à lembrança de pinta, que
especificamente é mais escura que o tom da pele natural.
No entanto, além das observações anteriores, o autor evidencia
o “ímpar o par”, associando a um casal sem igual, mas nos indagamos:
em que sentido o autor utiliza essa expressão? No bom sentido (uma
relação feliz) ou no sentido negativo (uma relação infeliz)? Um casal
raro! “Romão — esposo de Nhemaria, mais propriamente a Drá, dita
também a Pintaxa — ímpar o par, uma e outro de extraordem.” (ROSA,
1985, p. 93).
Seguindo a descrição, a posterior no texto, há uma forte tendência
à apresentação de caracterização, quando o autor fala do “mal universal”

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


“um céu azul do qual emergir a Virgem” (ROSA, 1985, p. 93), esse lugar
trata de um ambiente onde a maldade não entra, a “Virgem” significa a
pureza, a bondade, a escolhida. E também entendemos um viés cristão,
tendo como premissa de pureza a Virgem Maria (mãe de Jesus).
“Escolheram-se, no Cunhãberá, destinado lugar, onde o mal universal
cochila e dá o céu um azul do qual emergir a Virgem.” (ROSA, 1985,
p. 93).
Logo em seguida, o autor refere-se à memória, ao recordar, ao
lembrar histórias de vida. Além disso, é discutido o amor, mas, que amor
é este que tem assunto? É o amor da alma, singelo, puro e verdadeiro, ou
ele quer dizer que este amor tem situações difíceis, de reconquista, ou
de abdicação? Um dentre vários momentos da narrativa em que ficamos
nos indagando.

Sua história recordada foi longa: de tigela e meia, a peso de


horror. O fundo, todavia, de consolo. Esse é um amor que
tem assunto. Mas o assunto enriquecido – como do ama-
relo extraem-se ideias sem matéria. São casos de caipira.
(ROSA, 1985, p. 93).

Sob um prisma geral, a narrativa enfatiza o “amor”, o autor traz,


na sua explanação, especificidades sobre o amor de Romão e Pintaxa.
Ele diz que este amor está repleto de histórias, que até este momento
não temos certeza do que se trata os mistérios entorno dessa relação.
Será um amor verdadeiro, amor de alma ou um amor cheio de conflitos
e contradições?
A primeira contradição inicia-se quando a narrativa enfoca o
sujeito feminino de uma maneira peculiar. Esta citação nos traz muito
da representação, “moço e moça”, entendemos a intenção de abordar
a juventude, ambos eram muito novos nesse início de relacionamento.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Símbolos que também representam as características físicas de Drá:
“folha seca escura”, imaginamos uma pele manchada, sem viço,
descamada; “feia feito fritura queimada” (ROSA, 1985, p. 93), também
lembra o ruim, gosto amargo; “primeiro sinisgra de magra, depois gorda
de odre” (ROSA, 1985, p. 93), esta referência reflete que é feia magra
e é pior ainda, gorda. Além destas características físicas, o autor traz
elementos que alude ao caráter de Drá, sua aparência traz algo sobre
sua maneira de ser: “Medonha e má”, “Olhar muito para uma ponta de
faca...” (ROSA, 1985, p. 93):

Foi desde. Parece até que iam odiar-se, moço e moça, no


então. Divulgue-se a Drá: cor de folha seca escura, estafer-
miça, abexigada, feia feito fritura queimada, ximbé-ximbe-
va; primeiro sinisga de magra, depois gorda de odre, sem-
pre própria a figura do feio fora-da-lei. Medonha e má; não
enganava pela cara. Olhar muito para uma ponta de faca,
faz mal. Dizia-se: – “Indicada.” (ROSA, 1985, p. 93).

Texto que traz elementos com certa negatividade, características


muito enfatizadas ao longo da narrativa. A imagem que nos vem à mente,
é uma mulher com aspectos físicos muito desagradáveis; aparência
física e de personalidade que instiga o sentimento de repulsa por essa
personagem.
Visto que, mesmo diante da repulsa descrita pelo narrador por
Drá, Romão não se importou com essas particularidades, como consta
no texto, existem coisas dentro da gente que não são passíveis de
explicação. Acreditamos, nesse caso, que o autor fala de amor. Um amor
que não se importa com os defeitos do outro, um amor verdadeiro,
mesmo sabendo que poderia reconstruir sua vida de outra maneira.
Nesta parte do texto, o autor refere-se a saberes populares, “Inexplica-o
a natureza, em seus efeitos e visíveis objeto” (ROSA, 1985, p. 93) ou “Mas

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


ele tinha em si uma certa matemática” ou “E há os súbitos, encobertos
acontecimentos, dentro da gente”.

Romão, hem, gostou dela, audaz descobridor. Pois – por


querer também os avessos, conforme quem aceita e não
confere? Inexplica-o a natureza, em seus efeitos e visíveis
objetos; ou como o principal de qualquer pergunta nela
quase nunca se contém. Romão, meão, condiçoado, nor-
malote, pudesse achar negócio melhor. Mas ele tinha em si
uma certa matemática. E há os súbitos, encobertos aconte-
cimentos, dentro da gente. (ROSA, 1985, p. 93).

Enquanto Drá é degradada na narrativa, sendo caracterizada


de maneira grotesca, Romão é apresentado para o leitor com uma
imagem afetiva e com traços de personalidade positiva. “Romão é
um bom sapateiro, audaz descobridor” (ROSA, 1985, p. 93), é aquela
pessoa que busca o melhor das coisas e das pessoas. Sendo assim, a
narrativa apresenta Romão como o oposto de Drá. Mas por quê? Além
das características físicas descritas, o que mais Drá tem de ruim? Isso
instiga o leitor a devorar o texto para descobrir! Romão acredita que
há algo de bom no interior de sua amada.
Logo a seguir, constatamos que o casal Romão e Drá eram
pessoas discretas desde o início do seu relacionamento. Inclusive pelas
características da cerimônia de casamento, onde o autor cita a frase,
“sem-graça”; e que apenas Romão teve padrinhos de casamento e que
Drá não levou padrinhos.

De namoro e noivado, soube-se pouco. Também da sem-


-graça cerimônia ou maneira, de que se casaram, padri-
nhos Iô Evo e Iá Ó e quiçá os de Romão e Drá anjos entes.
Àquilo o povo assistiu com condolência? Tais vezes, a gen-
te ao alheio se acomoda – preto no branco, café na xícara.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Cunhãberá via-os não via, sem pensar em poder entender:
anotava-os. Mas o casal morou na Rua-dos-Altos, onde o
Romão estava bom sapateiro. Para fora, deviam de ser mo-
derados habitantes. Era um silêncio quase calado. Compa-
rem-se: o vagalume, sua luzinha química; fatos misteriosos
– a garça e oninho por ela feito. Iam, consortes, para os
anos que tendo de passar. (ROSA, 1985, p. 93-94).

Um casal discreto e que a vizinhança quase não via. Esta parte da


narrativa propõe pensarmos nos costumes culturais, “a gente ao alheio
se acomoda”, “preto no branco, café na xícara”; simbolizando o, “bom
sapateiro”, “silêncio quase calado” (ROSA, 1985, p. 94).
Posterior na narrativa, é relatado a situação da traição, que cai no
conhecimento da comunidade. Apresentando características de uma
pessoa que quer se esconder a qualquer custo, se cobrindo, disfarçando.
Inclusive, a madrinha e padrinho do casamento se sentiram culpados
por presenciar tal ato de traição. E o que mais incomodava as pessoas
(vizinhança) era a atitude de Drá de não deixar Romão ter amigos ou
se divertir. Ela brigava com ele e com os amigos. Mesmo diante dessas
situações cotidianas, Romão ainda amava essa mulher.

Se como o nem faro e cão – mas num estado de não e sim,


rodavam tantas voltas – juntos, pois. A Drá contra a oca-
sião de querer-bem se tapava, cobreando pelos cabelos,
nas mãos um pedaço de pedra. Ela não perdoava a Deus.
– “Padece o que é...” – deduzia Iá Ó. Da dor de feiura, de
partir espelho. Iô Evo disse: que tomava culpa, de ter teste-
munhado. Romão, hem, se botava de nada? Não o deixava
ela, enxerente, trabalhar nem lazer; ralhava a brados sur-
dos; afugentou os de sua amizade. Romão amava. Decerto
ela também, se sabe hoje, segundo a luz de todos e as som-
bras individuais. O estudo do mundo. (ROSA, 1985, p. 94).

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Esse trecho também apresenta um outro spoiler, quando diz que
Drá também amava Romão, mesmo que nessa época ela não soubesse.
Narrativa que trata de representações simbólicas, como: “Da dor de
feiura, de partir espelho”; e a denotação de significados, “Iô Evo disse:
que tomava culpa, de ter testemunhado.” (ROSA, 1985, p. 94).
O trecho a seguir reforça a ideia de que Drá era uma mulher muito
brava, muito irritada e vivia brigando com Romão. O autor aponta que
Romão e Drá não conseguiram ter filhos. E que Romão era um homem
quieto e calmo, no entanto, ele sabia das coisas, ele se fingia de cego para
as situações que ocorriam, e acreditava que o futuro reservava grandes
surpresas para as dificuldades.
Este texto foi construído com muitos sentidos para se decifrar,
“Todo o tempo o atanazava, demais de cenhosa, caveirosa, dele, aquela
mulher mandibular” (ROSA, 1985, p. 94) – a mulher brava, que não dava
sossego, sempre estava arrumando confusão. O personagem principal
medita sobre: “Seus filhos não quiseram nascer” (ROSA, 1985, p. 94),
sobre os filhos que não conseguiram ter; “Ou num fundo guardasse
memória pré-antiquíssima. Tudo vem a outro tempo.” (ROSA, 1985,
p. 94), também é um momento de reflexão de Romão.

Todo o tempo o atanazava, demais de cenhosa, caveirosa,


dele, aquela mulher mandibular. Vês tu, ou vê você? Ro-
mão punha-lhe devoção, com pelejos de poeta, ou coisa
ou outra, um gostar sentido e aprendido, preciso, sincero
como o alecrim. Tinhava-se, a Drá. Seus filhos não qui-
seram nascer. Romão imutava-se coitado. Disso ninguém
dava razão: o atamento, o fusco de sua tanta cegueira?
Sapateiro sempre sabe. Ou num fundo guardasse memó-
ria pré-antiquíssima. Tudo vem a outro tempo. (ROSA,
1985, p. 94).

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Romão era um homem que amava sua esposa, mesmo Drá
o traindo e fugindo com outro homem, o marido foi fiel à esposa.
Demonstrando um amor além do natural, um amor que transcende
o sentimento carnal. Um sentimento inexplicável para os olhos das
pessoas. No entanto, Romão não se deixou abater, e esperou seu
amor, sem ter a certeza de que ela iria voltar. Nesta parte do texto,
encontramos diversas figuras simbólicas, “Sortiu-se a Drá, o diabo
às artes, égua aluada, e com formigas no umbigo” (ROSA, 1985, p. 94),
reforçando a aparência e o temperamento difícil de Drá. No próximo
trecho, encontramos descrição de sentimentos das pessoas que
presenciavam aquela história, as pessoas sentiam o sofrimento de
Romão, imaginava-se o seu sentimento de tristeza.

Então, quando deles no diário ninguém mais se espantava,


de vez, houve. Sortiu-se a Drá, o diabo às artes, égua alua-
da, e com formigas no umbigo. Em malefaturas, se perdeu,
por outro, homem vindiço, mais moço. O povo, vendo,
condenava-a; de pena do Romão – a tragar borras. Ele,
não, a quem o caso de mais perto tocava. E a Iô Evo disse:
que bom era ela crer, que valia, que dela gostavam... Ro-
mão olhava em ponto, pisava curto, tinham receio de sua
responsabilidade. Nem o moço de fora a quis mais. Des-
razoável, mesmo assim, a Drá de casa se sumiu, com seus
dentes de morder. Romão esperou, sem prazo. Se esforça-
va, nesse eixar-se, trincafiava, batia sola. Seguro que, por
meio de Iá Ó, pediu que ela tornasse. (ROSA, 1985, p. 94).

Romão não perdeu a esperança da volta de Drá, tinha a certeza do


retorno do seu amor. E logo a seguir, seu desejo se realizou, Drá voltou
de sua “aventura amorosa”. Retornou com as mesmas características de
personalidade que tinha anteriormente. O autor reforça a personalidade
e o sentimento que Romão tinha por essa mulher.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Depois desse retorno, ele cuidou carinhosamente da esposa,
demonstrando todo o amor que sentia por ela. A narrativa faz com
que acreditemos que Drá adoeceu pela decepção que tinha passado, e
mesmo assim, independente dos motivos, foi muito bem cuidada por
seu marido. Nesta parte do texto, encontramos várias situações com
grandes indícios de representações da sua personalidade:

Drá voltou, empeçonhada, trombuda, feia como os trovões


da montanha. Romão respeitava-a, sem ralar-se nem ma-
zelar-se, trocando pesares por prazeres, fazendo-lhe muita
fidelidade. Fez-lhe muita festa. De por aí, embora, seresma
ela se aquietou, em desleixo e relaxo. Nem fazia nada, de
cabeça que dói. Só empestava. Vivia e gemia – paralela-
mente. Chamou-a então Pintaxa o bufo do povo. Foi, e teve
ela uma grande doença, real, de que escapou pelo Romão,
com seus carinhos e tratos. Sarou e engordou, desestraga-
damente, saco de carnes e banhas, caindo-lhe os cabelos da
cabeça, nos beiços criado grosso buço, de quase barba. Era
bem a Pintaxa, a esta só consideração. Cunhãberá jurou-a
por castigada. Romão queria vê-la chupar laranjas, trivial,
e se enfeitar sem ira nem desgosto. Ele envelhecia também.
Os dois, à tarde, passeavam. Quem espera, está vivendo.
(ROSA, 1985, p. 95).

Ao longo da costura do texto, o autor revela que Romão ficou


doente, e uma situação do romance que conjecturamos é a informação
de que o casal estavam envelhecendo.
A mudança de postura diante da personagem mais “odiada” da
história, Drá se desespera com o problema de saúde do marido. Seria
a possibilidade da descoberta do seu amor por Romão? Entendemos
que sim.
De acordo com a narrativa, a doença de Romão era grave, pois ele
parecia se enfraquecer a cada momento. No entanto, mesmo sofrendo

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


as consequências da doença, ele ainda busca com os olhos a sua amada.
A narrativa descreve mais símbolos e/ou situações que tangem ao
cotidiano desses personagens nessa fase crítica, “…ele se enfermou,
à-toa, de mal de não matar.” ou “o Romão onde se prostrava, decente,
chocho, emafogo, na cama.”; “Iô Evo mandou-o ter coragem, somente.”

Depois, ele se enfermou, à-toa, de mal de não matar. A Drá


alvoroçou o lugar. Ela chorava, adolorada: teve, de de em
si, notícia, das que não se dão. Pedia socorro. O povo e o
padre no quarto, o Romão onde se prostrava, decente, cho-
cho, emafogo, na cama. Ele estava tão cansado; buscava a
Drá com os olhos. Que quis falar, quis, pôde é que foi não.
Iá Ó passava um lenço, limpava-lhe a cara, a boca. Iô Evo
mandou-o ter coragem, somente. (ROSA, 1985, p. 95).

Logo em seguida na história, Romão vê que Pintaxa se transformou


em uma bela e maravilhosa imagem para ele. Uma mulher cheia de
características físicas desagradáveis, se torna um “anjo”, uma bela e
bondosa mulher.

Dando-se, no Cunhãberá, o fato, de inaudimento.


Romão por derradeiro se soergueu, olhou e viu e sorriu, o
sorriso mais verossímil. Os outros, otusos, imaginânimes,
com olhos emprestados viam também, pedacinho de ins-
tante: o esboçoso, vislumbrança ou transparecência, o afla-
to! Da Drá, num estalar de claridade, nela se assumia toda
a luminosidade, alva, belíssima, futuramente... o rosto de
Nhemaria. (ROSA, 1985, p. 95).

A mudança de Drá acontece de maneira mágica aos olhos de


Romão. Um amor cheio de significados, um amor além dessa vida.
Antes dele falecer, o texto apresenta uma luz, uma claridade, que talvez

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


signifique a “verdade”, a realidade. Romão em toda sua vida lutou
para trazer o amor dela ao patamar mais puro e verdadeiro, tentando
apresentar uma esposa de aparência feia, mas com um coração belo,
encontrando nela a companheira para a vida toda, mesmo que ela tenha
demorado para descobrir. Talvez neste momento do texto, Romão
conseguiu mostrar para todos a beleza de sua companheira; com a luz,
ela se mostrou aos outros a mulher que ele sempre idealizou.
O personagem morreu “rompido das amarras”, acreditamos que
o autor toca nos sentimentos que ele amargurou solitário durante a
vida com Drá, por mais que ele a amasse, e não se deixava abater para
os outros, ele deveria ter mágoas e feridas, que foram perdoadas, no
entanto, ele sentiu todas essas emoções, ao viver este amor intensamente.
Como o autor afirma “Deu tudo por tudo”’, significando que ele deu sua
vida por esse amor. E o que nos surpreende é a reviravolta de Drá, “… se
abraçou com o quente cadáver”, a narrativa mostra o sofrimento de Drá
ao perder o seu grande amor, mesmo que tenha vivido isso tardiamente.

Romão dormido caiu, digo, hem, inteiro como um triân-


gulo, rompido das amarras. Ele era a morte rodeada de
ilhas por todos os lados. Mentiu que morreu. Deu tudo por
tudo. A Drá esperançada se abraçou com o quente cadáver,
se afinava, chorando pela vida inteira. Todo fim é exato. Só
ficaram as flores. (ROSA, 1985, p. 95-96).

“Reminisção”, um conto que tem características de um amor


“escrito nas estrelas”, o destino levou esse homem e mulher se unirem.
Uma união com sentimentos distintos por ambos os envolvidos.
Uma relação permeada de irrealidades e imposições. O personagem
Romão idealizava o melhor de sua amada, enquanto buscava um amor

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


“perfeito”. Drá, por outro lado, é levada pela paixão, não percebendo que
seu verdadeiro amor estava a todo momento do seu lado.

Referência

ROSA, João Guimarães. Tutaméia (Terceiras Estórias). 9. ed. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


A morte sempre lhe cai bem?
[1970 – Venha ver o pôr-do-sol – Lygia Fagundes Telles]

André Marchon

A morte sempre foi inserida como um elemento chave para a


construção de algumas histórias; seja por meio dos grandes dramas
aos moldes das tragédias gregas, seja por meio das grandes batalhas ou
paredões de fuzilamento e até mesmo de causa natural nos romances da
Literatura.
Nos contos, pode ser o mote que, dentro do enredo, ela poderá
surgir como uma espécie de desfecho, pelo fato de que vez ou outra será
a explicação para todos os fatos narrados. E o próprio leitor espera, em
certa medida, que uma surpresa possa vir alcançá-lo se considerarmos
o que explica Benjamim “[...] como estes personagens anunciam que
a morte já está à sua espera, uma morte determinada, num lugar
determinado?” (BENJAMIN, 1987, p. 14).
Sabe-se que os contos são tipos de textos com poucos personagens,
espaço limitado; o tempo, de modo geral, se passa em apenas um dia ou
noite, quiçá alguns dias e o tipo de linguagem pode ser visto pelo discurso
direto ou indireto. De qualquer modo, um conto necessariamente
precisa ser bem construído para que prenda a atenção do leitor,
justamente pelo fato de ser curto. Assim, a receita parece simples, mas
para a realização deste gênero textual espera-se uma boa história e para
esta, é fundamental que haja pistas, informações que, de certo modo,
possam confundir o inocente ou o despreparado leitor. Então, aquilo
que parece ser não é. Explico.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


É o que ocorre nos contos O barril de Amontillado (1846), de
Edgar Alan Poe e Venha ver o pôr do sol (1988), de Lygia Fagundes Teles
que, mesmo com um distanciamento cronológico e teores diferentes,
as semelhanças que ocorrem entre si são levemente tênues. Mas, a
verdadeira temática das histórias é a vingança. Por este motivo, a
combinação das duas nos levam a perceber a presença de nuances de
similaridade.
O conto do escritor norte-americano se passa na Itália. “Poucos
italianos têm o verdadeiro espírito do virtuoso [...] eu mesmo era
entendido em boas safras italianas [...]” (POE, 1965, p. 365). Já o da
escritora brasileira, poderia arriscar que se passa num ambiente
tipicamente brasileiro. Pode-se fazer alguma inferência pelas pistas que
a história, inicialmente, nos apresenta: “[...] tortuosa ladeira, modestas
casas espalhadas sem simetria, terrenos baldios, rua sem calçamento,
coberta por um mato rasteiro [...]” (TELLES, 2021, p. 111), ou seja, a
cara do Brasil. Mas, os espaços geográficos têm o intuito de nos situar
neste contexto descritivo. O primeiro foi citado de forma genérica,
enquanto que o segundo, mais específico, por se tratar de ser próximo
ao espaço central da narrativa. No entanto, à medida que as histórias
se desenrolam, percebe-se, nitidamente, que os ambientes passam
a causar ao leitor uma certa desconfiança do que poderá ocorrer nos
acontecimentos diante dos elementos textuais. Veremos.
Ambas apresentam dois personagens. No caso d’O barril
de Amontillado, o discurso ocorre por meio das falas do narrador
em primeira pessoa – este sem nome – e seu desafeto, na figura de
Fortunato que, no enredo, mostra-se embriagado porque abordou o
amigo “com vivacidade excessiva, pois bebera demais” (POE, 1965,
p. 365). Em relação a Venha ver o pôr-do-sol, temos as presenças de
Ricardo e Raquel. Ele, “[...] esguio e magro, metido num largo blusão
azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


estudante.” (TELLES, 2021, p. 111). Ela, elegante. Os indícios que se tem,
a priori, é de que o narrador do conto obscuro de Poe encontra-se numa
situação de desavença com seu algoz, ao passo que no conto brasileiro
Ricardo recebe Raquel com toda a amabilidade possível. A diferença
entre um e o outro é de que no primeiro o narrador, logo no início das
primeiras linhas, diz que iria se vingar: “mas quando ele passou destas
ao insulto, jurei vingança” (POE, 1965, p. 365). Já no segundo não se
tem informações sólidas para que o leitor possa imaginar o que venha
ocorrer. Pelo contrário, ao receber Raquel, que reclama por ter sujado
seus sapatos de lama, “ele riu entre malicioso e ingênuo” (TELLES, 2021,
p. 111). Então, temos até aqui o benefício da dúvida.
Outro elemento importante nos contos é o tempo. Nesse,
reconhece-se nitidamente que as duas histórias ocorrem em apenas um
dia. A diferença está no quando. O suspense de O Barril de Amontillado
desenvolve-se no período do carnaval e tudo leva a crer que se passa
à noite, porque “[...] não havia nenhum criado em casa; todos tinham
escapado para festejar, em louvor à época. Eu lhes dissera que não voltaria
até a manhã seguinte.” (POE, 1965, p. 366). Por outro lado, em Venha ver o
pôr-do-sol, pode-se considerar que se passa num dia qualquer na
“quietude da tarde” (TELLES, 2021, p. 111). Destarte, somos conduzidos
a perceber até aqui as similaridades e diferenças de cada texto.
É mister destacar outro ponto importante das narrativas: a forma
em que os personagens conduzem a história. Eles são uma espécie de
“lobo em pele de cordeiro” ou usando do exemplo da cobra que seduz
o sapo em O cururu, de Jorge de Carvalho, que usa a artimanha de sua
natureza para abocanhar o pequeno anfíbio: “Daí a pouco, da bruta
escuridão, surgiram dois olhos luminosos, fosforescentes, como dois
vagalumes. Um sapo cururu grelou-os e ficou deslumbrado, com os
olhos esbugalhados, presos naquela boniteza luminosa [...]”. Ou como
diz Platão & Fiorin que

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


[...] na sociedade existem muitas formas de dominação
que poderiam ser contadas por uma história: dominação
da mulher pelo homem, dominação da criança pelo adulto,
dominação dos subordinados pelos chefes, etc. (PLATÃO e
FIORIN, 1991, p. 77).

A citação serviu como apoio de figurar uma sedução como


forma de atrair sua presa. No caso dos personagens dos contos, ambos
masculinos, usam da tática da cordialidade, amizade, amabilidade.
Neste sentido, há uma estratégia de persuadir o leitor em continuar
a leitura até o fim, porque o suspense é o que está em foco, é o que
chama a atenção, que é a proposta central do escrito neste contexto a
que se referem as análises. Logo, usando da máxima de que a vingança
é um prato que se come frio cujo significado diz que para se vingar
plenamente de alguém que nos fez mal, nós não podemos revidar de
imediato, temos que planejar nossa reação para que ela seja realmente
efetiva, por isso, o narrador-personagem em Poe e Ricardo em Lygia
usam deste método: o planejamento.
O primeiro encontra-se com Fortunato. Convence-o de que
ele seja a pessoa mais preparada para opinar sobre os vinhos em sua
adega, lugar este um tanto lúgubre, úmido, escuro que poderia causar
desconfiança a qualquer um, mas como Fortunato estava embriagado,
facilitou a condução deste para a possível armadilha: a cripta. Local este
que o pobre bêbado foi emparedado vivo com fileiras e fileiras de pedras,
colocando em uma situação que o inocente homem jamais poderia
ser ouvido. Em se tratando de Ricardo, o rapaz marca um encontro
com sua ex-namorada próximo ao cemitério. Aqui já podemos inferir
que não se trata de um lugar agradável para um passeio. De qualquer
modo, convence a elegante Raquel a visitar um jazigo que diz ser de
sua família. Com sua argumentação de pobre-coitado, leva a inocente

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


jovem, embora desconfiada, ao obscuro lugar que apreciariam juntos
o espetáculo da natureza. Ledo engano. O rapaz engana sua vítima e a
prende num jazigo. Local pelo qual ela veria o que Ricardo prometeu:
“– Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na
porta. Depois vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá
o pôr-do-sol mais belo do mundo.” (TELLES, 2021, p. 117).
No conto de Edgar Alan Poe, podemos crer que Fortunato,
coitado, morreu gradativamente, visto que “por meio século, nenhum
mortal veio perturbá-los. In pace requiescat! (Descanse em paz!)” (POE,
1965, p. 371). Em relação a Raquel, não se sabe se morreu, pois o texto
não anuncia esta informação, mas no conto, para sempre ela está lá,
gritando, mas ninguém a ouve, porque “nenhum ouvido humano
escutaria agora, qualquer chamado” (TELLES, 2021, p. 118).
A conclusão que se chega dos dois contos é de que apesar das
diferenças entre eles, há também as semelhanças, pelo fato de que são
dois personagens na narrativa, os ambientes não são acolhedores, os
tons de fala dos personagens masculinos (poderíamos dizer vilões?)
servem para iludir o leitor, e o tema central é a vingança em que as
vítimas são acometidas. No primeiro conto foi pelas mil afrontas de
Fortunato, já no segundo, pode-se dizer que porque Ricardo ficou mais
pobre ainda, conforme ele menciona na história quando a encontra
e, entre frivolidades, deixa escapar uma possível pista do que seria o
motivo para pôr em prática seu desejo de desforra: “Você sabe que eu
gostaria de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda,
[...]” (TELLES, 2021, p. 112). Ela, por sua vez, recusa-se. Isso pode
significar que o fato de ela ter ascendido socialmente revela que, sua
condição, agora, não permite se relacionar com um pobre rapaz. Antes,
porém, ele já anunciava ao se dirigir a Raquel assim que ela chega ao
encontro: “Quando você andava comigo, usava uns sapatões sete léguas,
lembra?” (TELLES, 2021, p. 111).

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Uma curiosidade. Talvez duas. Quando li pela primeira vez o
conto de Edgar Alan Poe, estava cursando a graduação. Não lembro
da impressão que tive acerca do texto, possivelmente foi de surpresa
devido ao desfecho. Já lecionando, aplicando o fragmento do conto de
Lygia Fagundes Telles com os alunos para análise, não descobri qual
seria seu término até que um dia resolvi lê-lo na íntegra para saber do
que se tratava. Fiquei pasmo ao saber do final. Dando um salto, ao rever
o enredo de O barril de Amontillado, minha memória resgatou não
sei qual grau, o conto Venha ver o pôr-do-sol. Pode ser que haja outros
textos com a temática da vingança, mas o interessante é que, para mim,
esses dois vieram como num passe de mágica pela associação que fiz
das semelhanças que neles coexistem. Passaram-se alguns anos para que
essa descoberta fosse concretizada.
Por fim, o que se pode tirar das histórias contadas é de que não
devemos mexer no brio de ninguém, porque a morte vem a cavalo e ela
pode lhe cair bem.

Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre


literatura e história da cultura. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas.
São Paulo: Brasiliense, 1987. v. 1.

FIORIN, José Luiz; PLATÃO, Francisco Savioli. Para entender o texto:


leitura e Redação. 4. ed. São Paulo: Ática, 1991.

POE, Edgar Alan. Ficção completa, poesia e ensaios. Rio de Janeiro:


Nova Aguilar, 1965.

TELLES, Lygia Fagundes. Os contos. 3. reimp. São Paulo: Companhia


das Letras, 2021.
As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras
Brilho de uma estrela
[1977 – A hora da estrela – Clarice Lispector]

Vanessa Kist

Pouco antes de morrer, em 1977, a autora Clarice Lispector


decide se afastar da inflexão intimista que caracteriza sua escrita para
desafiar a realidade. O resultado dessa mudança na extroversão é o livro
A Hora da Estrela, a obra mais surpreendente que ela escreveu. Vamos
conhecer essa fascinante história.
A autora da obra A Hora da Estrela, Clarice Lispector, nasceu na
cidade de Tchetchelnik, uma pequena cidade da Ucrânia. Chegou ao
Brasil muito cedo, com apenas dois anos de idade, viveu sua infância em
Maceió e Recife, foi para o Rio de Janeiro quando tinha seus 12 anos, se
formou em direito, trabalhou como jornalista e depois iniciou sua vida
literária, teve dois filhos e faleceu em dezembro de 1977.
Os principais personagens desta obra são: Rodrigo S.M., que é o
narrador da história e a representação da própria escritora. Ao longo
da obra ele faz reflexões sobre o ato de escrever, que é sua preocupação
principal; Macabéa, personagem protagonista da obra, uma moça de
19 anos, alagoana, pobre e desleixada, segundo o narrador, ela é tão
ignorante que nem reconhece que é infeliz; Olímpico de Jesus, namorado
de Macabéa, também nordestino, mas da Paraíba, é muito ambicioso;
Glória, filha do açougueiro e colega de Macabéa, não é bonita, mas
é muito sensual, Olímpio larga Macabéa para ficar com Glória; Há
também a personagem Madame Carlota, uma cartomante.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Vamos iniciar nossa conversa. Logo nas primeiras linhas da história
se percebe a presença de um autor, o escritor Rodrigo S. M., tentando dar
início à narrativa da história da alagoana Macabéa em sua vida diária no
Rio de Janeiro. A obra é cheia de reflexões e sentimentos registrados pelo
escritor, mas que fazem parte da narrativa. Rodrigo S.M. declara “Deus
é o mundo”. A verdade é sempre um contato interior e inexplicável. “A
minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior
e não tem uma só palavra que a signifique.” (LISPECTOR, 1999, p. 17).
Frases como essa podem ser entendidas como uma apresentação da obra.
A personagem protagonista, Macabéa, é introduzida aos poucos
na narrativa, o narrador encontra-a em uma rua no Rio de Janeiro,
trocam alguns olhares, o autor sente uma perdição no rosto daquela
moça nordestina, e ele diz conhecer o Nordeste, pois lá se criou. Aos
poucos a vida daquela moça de 19 anos vai sendo revelada. Macabéa,
uma moça muito humilde, perdeu seus pais ainda quando era criança,
foi criada por uma tia, que ao invés de criá-la com carinho, espancava
a menina constantemente. Ela frequentou a escola somente até o
terceiro ano e por isso escreve muito mal, mas a sua tia conseguiu
dar a ela um curso de datilografia e, Macabéa, por ser ignorante, era
obrigada a copiar letra por letra lentamente, “mas a moça era enfim
datilógrafa” (LISPECTOR, 1999, p. 24).
Mais tarde, a tia se muda para o Rio de Janeiro e Macabéa a
acompanha, arruma um emprego como datilógrafa. Na sequência,
sua mãe de criação acaba falecendo, e então a moça alagoana passa a
dividir um quarto com quatro moças que trabalham como balconistas
no comércio da cidade do Rio de Janeiro, pouco tempo elas têm para
ficarem juntas, chegam em casa tarde da noite e logo dormem, enquanto
Macabéa passa horas da madrugada ouvindo a Rádio Relógio.
Num certo dia, Macabéa, a moça nordestina, resolve faltar ao
trabalho e sair para passear pela cidade maravilhosa, encontra-se então

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


com Olímpio de Jesus, metalúrgico, também nordestino, ele a chama
por um apelido carinhoso, “senhorinha”, e a convida para passear. Para a
pobre moça, isso é o início de um namoro. Em suas conversas, ela exibe
seu conhecimento adquirido com a Rádio Relógio, enquanto ele afirma
sua ambição em querer crescer e se dar bem na vida.
Na obra A hora da estrela, seguem-se algumas referências, como
por exemplo, no diálogo entre a moça e seu namorado Olímpico:

– Você sabia que na Rádio Relógio disseram que um ho-


mem escreveu um livro chamado “Alice no País das Mara-
vilhas” e que era também um matemático? Falaram tam-
bém em “élgebra”. O que é que quer dizer “élgebra”?
– Saber disso é coisa de fresco, de homem que vira mulher.
Desculpe a palavra de eu ter dito fresco porque isso é pala-
vrão para moça direita.
– Nessa rádio eles dizem essa coisa de “cultura” e palavras
difíceis, por exemplo: o que quer dizer “eletrônico”? (LIS-
PECTOR, 1999, p. 55).

Macabéa tem uma necessidade muito grande de compreender


o que é essa coisa de “cultura”. Ela, no entanto, é uma jovem que não
tem muita cultura, pois decora informações inúteis, recorta anúncios de
jornais e revistas antigas, mas de uma maneira ou outra ela vai tentando
se aproximar de objetos que muito provavelmente não vai usufruir.
Em uma visita a Macabéa em seu local de trabalho, Olímpio
conhece Glória, uma colega da namorada com quem troca olhares, se
interessa pela moça e acaba abandonando Macabéa, sem ter muita noção
de que ela sofreria muito com isso. A moça se esconde no banheiro do
escritório, nesse momento pega um batom vermelho, lindíssimo, passa
em seus lábios, pois nesse momento se sentirá uma verdadeira estrela
de cinema.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Glória, sua colega de trabalho, sente-se muito constrangida por lhe
ter roubado o namorado e aí nesse momento se sente extremamente na
obrigação de ajudá-la, oferece dinheiro e aconselha Macabéa a procurar
uma cartomante. Macabéa aceita a ideia e vai até Madama Carlota.
Nesse momento, a cartomante faz uma fantástica previsão para ela,
prevê um futuro brilhante, ganharia muito dinheiro e conheceria um
estrangeiro loiro. Em nenhum momento a moça duvida ou questiona
sobre as previsões, e sai da consulta se sentindo muito feliz.
Ao sair da visita à cartomante, Macabéa é atropelada por um
automóvel e morre. Ela vira o centro das atenções e conhece a sua “Hora
da Estrela”. De um lado, é tarde demais para ela, de outro, é a sua única
chance de viver essa experiência. Vive-a com um brilho super intenso
de uma estrela, mas também com a mesma simplicidade.
O romance A Hora da Estrela aborda um tema tradicional de
nossa literatura, Macabéa simboliza um deslocamento do sujeito, que
vai para um outro ambiente (a cidade grande), mas que a afasta e não a
integra. A busca pela identidade da personagem se dá a todo momento
que ela não se percebe como pessoa, apenas sobrevive. O enfoque no
psicológico complexo da protagonista e as questões existenciais são
recorrentes na obra de Clarice Lispector.

Referência

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


A banalização da indiferença
[1979 – Uma vela para Dario – Dalton Trevisan]

Francine Mendes

Há quem diga que se mede o valor de uma obra por sua


atemporalidade, outros ainda argumentam que o poder de identificação
que o texto traz para o leitor é o que o torna um clássico, mas e quando
o texto tem em si ambas as coisas? Dalton Trevisan, escritor paranaense
de 96 anos, vencedor do Prêmio Camões em 2012, especializou-se em
escrever contos, a maioria deles, de teor sombrio, tratando de temas
como a morte, abusos e a indiferença humana diante da barbárie. No
conto “Uma vela para Dario”, o autor segue a mesma temática. O texto
faz parte de um dos maiores sucessos do escritor, o livro Novelas nada
exemplares, publicado pela primeira vez em 1979. A história se passa,
muito provavelmente, nas ruas de Curitiba – ou é isso que um leitor que
conhece a história de Trevisan imagina –, um homem de meia-idade
caminha pela rua apressado, quando começa a se sentir mal, um enfarte?
Talvez. As pessoas o observam, primeiro curiosas, depois preocupadas,
mas em um curto espaço de tempo, indiferentes à situação, tentando
tirar proveito daquilo que podem, saqueando o homem, que já sem
vida, tem o corpo deixado em uma calçada molhada pela chuva.
A primeira vez que tive contato com o texto de Trevisan, foi em
uma aula na graduação, em meio a tantas leituras, esta passou quase
despercebida, mas a sensação de desconforto causada por ela, não.
Tempos depois, já ministrando aulas, remotamente, devido à pandemia,
estava em busca de uma atividade para uma turma do 3º ano do ensino

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


médio, a ideia era trazer algo que dialogasse com o cotidiano dos alunos,
que os fizesse refletir e se identificar. O desconforto sentido durante a
pandemia fez com que eu me recordasse do conto, e fez também com
que eu me perguntasse: O que causa esse desconforto?
Dario, que não sabemos qual a profissão, qual a idade, se tem filhos
ou não, se gosta de cerveja ou prefere whisky, se torce para o Coritiba ou
para o Atlético Paranaense, se chama o período no qual vive de Ditadura
Militar ou Revolução, se é católico, protestante ou ateu, não sabemos nada
de Dario, além de que é um homem casado, que está apressado e tem um
guarda-chuva. Está andando pela rua e imaginamos ser um homem de
meia-idade, talvez um pouco acima do peso? O pescoço suado, embora
esteja nublado, a respiração ofegante, embora nem esteja fazendo esforço
além de caminhar, passa mal, na rua, não sozinho, não no banheiro de
casa, não em um local isolado, na rua, não em qualquer rua, em uma rua
movimentada, cheia de transeuntes, cheia de pessoas, de pessoas como
Dario. Por pior que seja a situação de Dario, em uma primeira leitura,
temos a esperança de que ele pode ter uma chance, ele pode, pelo menos,
ter a chance de morrer dentro de uma ambulância, com a pressão sendo
aferida, com alguém identificando-o pelos documentos na carteira,
tentando falar com a esposa que sabemos que ele tem, pela aliança que
não é tirada do dedo há anos. Ledo engano, Dario não teve chance, e não
foi seu coração que decidiu isso, foi o público, que fez da morte de Dario
um espetáculo, e tirou todo o proveito que poderia tirar disto.
A impessoalidade em torno do personagem, talvez justificaria a
falta de empatia das pessoas, mas o fato de se tratar de um ser humano
parece passar despercebido pelos que presenciam a cena, além é claro,
do agravante de saquearem os poucos bens do homem em seu leito de
morte. A história parece absurda, como uma pessoa morre no meio da
rua e ninguém ajuda? E ainda roubam o moribundo e depois o cadáver?
Sim, parece absurdo, e quando trocamos de gênero? Quando saímos

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


do conto e vamos para as páginas de notícias? Em julho de 2019, um
motoboy trabalhava de forma terceirizada entregando comida, passou
mal durante uma entrega, posteriormente constatou-se que ele havia
sofrido um acidente vascular cerebral. A cliente, que viu o estado do
rapaz, reportou à empresa, que respondeu a ela que confirmasse o
recebimento do pedido para não causar maiores problemas, ignorando o
pedido de ajuda. A moça chamou a ambulância, estava longe, atendendo
outra emergência, chamou um motorista de aplicativo, que se negou
a levar o homem, que à beira da morte já não controlava mais seu
esfíncter, ela então, chamou um amigo, porém, já era tarde, o homem
morreu em frente à casa da cliente. Em agosto de 2020, uma famosa
rede de supermercados, propriedade de umas das famílias mais ricas
do mundo, escondeu o corpo de um funcionário com guarda-sóis, até o
expediente acabar, para não “atrapalhar o fluxo” de clientes. O homem,
que era representante comercial, sofreu um mal súbito, ao confirmarem
o óbito, os responsáveis pela loja julgaram que o melhor seria esconder
o corpo, pois assim, não precisariam interromper o expediente.
Refletindo sobre todas essas tristes “coincidências”, propus aos
alunos que, após lerem o conto, escrevessem sobre eventos com os quais
eles se acostumaram, mas não deveriam ter banalizado. As respostas para
essa questão foram muitas, de ficar muito no celular, a não demonstrar
os sentimentos para as pessoas queridas, mas nenhum texto falou sobre
a banalização da indiferença. Talvez o maior mistério da humanidade
seja a morte, a religião, a filosofia, todas buscam uma resposta, o homem
não pode ser tão insignificante a ponto de um dia simplesmente deixar
de existir. A questão que o conto e que as mortes do motoboy e do
funcionário que teve o corpo escondido com guarda-sóis levanta não é
sobre morte, ou luto, é sobre o ser humano banalizando a barbárie.
Uma pandemia era algo impensável para nossa geração, até março
de 2020, quando nos vimos fechados em casa, vendo pela televisão

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


hospitais lotados, pessoas morrendo por falta de leito, de oxigênio,
famílias se desfazendo devido às mortes. Vimos pela televisão também
um chefe de Estado, eleito pela maioria do povo, visto que vivemos
em uma democracia representativa, dizendo, em rede nacional, que
não poderia fazer nada em relação às mortes, “pois não era coveiro”,
vimos festas clandestinas com centenas de pessoas serem fechadas,
vimos tantas outras se negando a usar máscara, e agora, vemos muitas
mais se negando a tomar a vacina. A banalização da barbárie está mais
enraizada na nossa sociedade do que percebemos, porque não basta não
participar, nós também paramos de nos chocar. Uma vela para Dario
não nos causa mais desconforto, não nos choca, é trivial, é rotineiro,
afinal, pessoas morrem todos os dias, não é mesmo? A roda não pode
parar de girar por causa disso, as entregas não podem parar de serem
feitas, a avaliação no aplicativo não pode baixar, o mercado não pode
fechar, a economia não pode parar, é só um “enfartezinho”, é só uma
“gripezinha”.
Não sabemos qual foi a inspiração para a escrita do conto, lá nos
idos de 1970, mas hoje, não faltaria inspiração para Trevisan. Uma vela
para Dario é tristemente atemporal, e quando o leitor levanta a cabeça
do texto, e olha ao seu redor, percebe que essa atemporalidade parece
longe de acabar. Se um clássico é aquele que perpassa o tempo, pois
é sempre atual, temos aqui, um ótimo exemplo, não só por mérito do
autor, mas pela falta de mérito das pessoas.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Experiência literária através
de crônicas: uma (re)leitura
de “A última crônica”
[1984 – A última crônica – Fernando Sabino]

Estela Aparecida Damião

Inicio considerando que esta não deveria, nem de longe, ser a


última crônica lida por alguém, pelo contrário, deve ser a primeira.
Por que a primeira? Para mostrar a pureza desse gênero textual tão
merecedor de ser lido: a crônica.
Primeiramente, farei a análise do gênero a que me limito neste
ensaio, em seguida, tecerei minhas leituras e análises à crônica em si.
A crônica, como se sabe, é um gênero, por vezes tido como jornalístico
e outras literário (que me parece muito mais seu campo), que reflete
e expõe questões corriqueiras, diferentes olhares aos acontecimentos
cotidianos. Parece-me que a crônica consegue expressar todas as coisas
pequenas e simples que há na vida. As crônicas demonstram a imensidão
que há nas coisas que às vezes nos escapam aos olhos. Sinceramente,
acho que todo mundo devia ler uma crônica na vida, principalmente
essas que engrandecem os detalhes que nos passam despercebidos, essas
sim merecem nossa leitura.
A leitura de crônicas proporciona experiências interessantes.
Através dela percebemos mais beleza no mundo, fatos corriqueiros se
transformam em humor, a crítica ganha um ar mais leve com um tom de
ironia. “A última crônica”, então, enche os olhos e o coração, nos faz ver

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


a literatura como algo realmente necessário à vida humana. Sempre quis
expressar essa minha relação com o texto crônica e vejo essa como uma
oportunidade de analisar mais de perto essa minha relação da leitura.
Fernando Sabino escreveu a crônica analisada, contudo, vale
lembrar que ele foi um jornalista e escritor com maior ênfase na escrita
de contos. Em 1941, publicou seus contos no livro Os Grilos não Cantam
Mais. Em 1956, Sabino publicou seu livro de romance intitulado Encontro
Marcado, que teve grande repercussão e publicação fora do país. O livro
fala sobre um rapaz que busca se encontrar na vida, encontrar o sentido
das coisas, e parece que a crônica escolhida para este texto poderia
auxiliar nessa busca de sentidos.
O escritor de “A última crônica” queria encontrar algo que fosse
possível de ser visto na convivência humana, que a fizesse ser digna de ser
vivida, que merecesse uma crônica. E foi num lugar tão pacato, em um
botequim, que ele encontrou sua inspiração. Até não avistar aquela cena
que ele procurava, não se sentia inspirado, inclusive admite querer adiar
o momento de escrever. É ao avistar uma família tão tímida e contida,
mostrando a humildade em cada ato, que ele consegue se concentrar em
algo e apreciar aquela convivência digna que ele buscava, aquele assunto
que merecia uma crônica.
Um pai conta seu dinheiro, provavelmente para confirmar se
poderá comprar um pequeno e simples pedaço de bolo, chama a atenção
do cronista. A mãe olhando para verificar se eles passam despercebidos
parece ser a incorporação da humildade. A menina que se contenta com
um simples e pequeno pedaço de bolo, sem nem sequer uma cobertura.
Esses momentos encontrados no texto criam imagens na mente do
leitor, é quase possível fazer um retrato da humildade e simplicidade
expostas na crônica. É válido ressaltar que aqui uso o significado real de
humildade: “que não é vaidoso, tem ou manifesta a virtude de conhecer
suas próprias limitações; modesto”.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Um gesto simples, que nunca nos damos conta no dia a dia,
torna-se merecedor de uma crônica. Um pai e uma mãe, que
aparentemente não têm condições financeiras para fazer algo maior,
decidem fazer do momento do aniversário da filha algo especial, mesmo
que em condições tão modestas. O reconhecimento de sua humildade
não está no valor material, apenas, mas também em seus gestos contidos,
o cuidado em não chamarem a atenção. Essa leitura de algo que parece
tão insignificante, e na verdade é extremamente expressivo, proporciona
uma reinterpretação dos valores. Em uma sociedade tão capitalista, tão
dependente da aparência, essa tentativa de não aparecer e não chamar
atenção faz o momento do aniversário da menina parecer muito mais
valorizado por essa família, que dentro de suas condições escassas,
possibilitou um momento de felicidade a sua filha.
Assim, utilizando da pergunta que Borges fez e Daniel Link (2002)
expõe em sua obra, a parafraseamos “Como se lê a última crônica em
2021?” Eu a leio como um reflexo de uma humildade necessária ao ser
humano, de um destaque a valores realmente importantes. Valorizar o
simples com as pessoas que amamos. O que importa não é o quanto você
tem, mas sim o que se faz com o que tem, e quem são as pessoas que
estão ao seu lado. Esse é um modo possível de compreender a leitura. O
texto faz refletir o quanto uma leitura é capaz de mudar um pensamento.
Ou o quanto um texto pode se relacionar e fazer sentido ao leitor. Afinal,
na luta de classes observada pelo Marxismo, se vê um jogo de valores
de classes sociais, na qual a classe dominante se sobressai, enquanto o
assalariado deve se contentar com o que recebe. O pai de família citado
na crônica provavelmente se vê na classe dominada, pois mal consegue
comprar um bolo a sua filha [sem cobertura]. Entretanto, fica perceptível
o amor e a dedicação da família ao momento, valorizando o dia especial,
sem mostrar preocupação com o bem material.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Essa humildade que a família representa em seu ato transcende na
crônica de Fernando Sabino. A pureza e a simplicidade da crônica (como
gênero textual) se mesclam com a pureza e simplicidade do momento.
Tudo isso fica mais concreto na medida em que lemos a crônica, talvez
esta já seja a vigésima vez que a leio, e a cada nova leitura ela me provoca
a mesma emoção, e talvez até mais profunda. Aquela sensação de que a
vida é sim digna de ser vivida, de que o ser humano tem um lado bom e
que o cotidiano tem coisas que merecem ser percebidas e olhadas com
outro olhar, com uma leitura diferente.
Para Daniel Link (2002), a leitura precisa fazer sentido e para que
este sentido exista é necessária a relação do sujeito (leitor) e do objeto
(texto). A leitura como relação nos proporciona algo significativo, algo
que faz sentido para nós. E a leitura de “A última crônica” me proporciona
isso, faz sentido para mim e para a vida. Quem sabe se cada momento
simples virasse uma crônica, poderíamos valorizar mais os momentos
do dia a dia.

Referências

BIOGRAFIA de Fernando Sabino. Disponível em: https://www.


ebiografia.com/fernando_sabino/. Acesso em: 10 jul. 2021.

LINK, Daniel. Como se lê e outras intervenções críticas. Tradução de


Jorge Wolff. Chapecó: Argos, 2002.

SABINO, Fernando. A última crônica. Disponível em: https://www.


escrevendoofuturo.org.br/caderno_virtual/texto/a-ultima-cronica/
index.html. Acesso em: 07 jul. 2021.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Viajando por uma história de índio
[1996 – Nunca gostei de ser índio – Daniel Munduruku]

Karina da Costa Santos

Antes de iniciarmos nosso passeio pela crônica “Nunca gostei de


ser índio”, apresento, ao leitor-viajante, o escritor Daniel Munduruku,
aquele que, quer por reminiscências, quer por inspiração, ou estratégia
literária, é como se fosse a canoa a nos conduzir e nos mostrar o percurso
do imenso rio.
Daniel Munduruku é paraense, natural de Belém, escritor indígena
com grande notoriedade no cenário literário nacional e internacional.
Autor de obras como: Histórias de índio; Crônicas de São Paulo; Coisas de
índio; As serpentes que roubaram a noite; os dois últimos, premiados com
a Menção de livro Altamente Recomendável pela Fundação Nacional do
Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).
É autor de mais de 50 obras publicadas. Com a obra Meu avô
Apolinário, recebeu menção honrosa no Prêmio Literatura para crianças
e Jovens na questão da tolerância. Já foi premiado com o Jabuti, o maior
prêmio literário do país. A escrita de Daniel perpassa fronteiras e alguns
de seus livros foram traduzidos para o inglês, o espanhol, o alemão e o
coreano. No ano de 2021, concorreu à cadeira número 12 da Academia
Brasileira de Letras.
Como intelectual indígena, é considerado uma importante voz
para a preservação da cultura nacional. Sua escrita é, pois, um incentivo
constante ao conhecimento das tradições, bem como a promoção e
valorização da cultura dos povos originários. É contador de histórias

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


nato, participante atuante em palestras e seminários colocando em
lugar de destaque nacional o papel da cultura dos povos originários na
formação da sociedade.
É graduado em filosofia, história e psicologia pelo Centro
Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL). Fez mestrado
e doutorado em educação pela Universidade de São Paulo e
pós-doutorado em linguística pela Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar). Atualmente, é diretor-presidente do Instituto Uk’a – Casa
dos Saberes Ancestrais.
Conhecendo nossa embarcação e certos de que todos já estão
acomodados, desamarremos as cordas que nos prendem às margens e
aproveitemos este passeio.
“Nunca gostei de ser índio” é um texto publicado em Memória de
Índio; uma quase autobiografia lançado em 2016 pela editora Edelbra.
Munduruku utiliza-se de uma linguagem coloquial comum à crônica,
que, aliada à crítica e ao bom humor, dão a conhecer, através do
narrador-personagem, suas experiências no “mundo dos brancos”. A
experiência narrada torna-se plural e chama à reflexão questões como:
diversidade étnica, respeito às diferenças, bullying, consciência ecológica
e educação.
Numa construção afetuosa, informações gerais sobre costumes,
cultura e modo de vida das populações indígenas também são
contemplados em “Nunca gostei de ser índio”. O escritor usa do bom
senso para que, pela narrativa, não só o leitor indígena se reconheça,
como também, de maneira sutil, propõe que o leitor não-indígena
conheça e respeite uma cultura diferente da sua. Sua linguagem simples
serve como artifício para contrapor-se ao discurso hegemônico,
aos povos indígenas. É possível evidenciar uma nova configuração
identitária.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Seguindo o parâmetro da maioria das crônicas, é um texto
narrado em primeira pessoa. São lembranças que um indígena revive
quando tinha seus nove anos de idade. Os cenários se alternam entre a
escola e a aldeia. A escola, lugar onde a personagem revive descobertas
traumatizantes, e a aldeia, sinônimo de segurança, aprendizado e
construção de valores.
O título, a priori, apresenta-se contraditório, se o leitor ainda
estiver afetado por informações ultrapassadas sobre as populações
indígenas. Poderá divagar por horas, procurando entender por que um
índio nunca gostou de ser índio? Tal tessitura serve como estratégia pelo
autor para flechar o leitor curioso. Peixe flechado dificilmente escapa.
A estratégia de Daniel continua na primeira linha do texto, quando o
narrador afirma: “Nasci com cara de índio, dizem. Mas, só soube disso
depois.” (MUNDURUKU, 2016, p. 38). Novas ideias surgem como
inferência sobre o narrador-personagem. Seria ele um índio ou apenas
se parece com um? Foi adotado?
Relatando sua chegada à escola, o narrador divide com o leitor
a experiência traumatizante imposta pela lógica dominante que
exclui, humilha e ridiculariza o diferente que não se integra a elas. É
um menino de nove anos que se vê diante da dolorosa experiência: a
vivência escolar. A escola é apresentada como algo desconfortante para
o menino e, até certo ponto, para o leitor. A personagem, como espécie
de refúgio, desloca suas memórias da escola às lembranças vividas na
aldeia. A aldeia é descrita sob a perspectiva edênica, como o paraíso
terreal e as experiências e aprendizados harmoniosos e positivos.

É que eu cresci em uma pequena comunidade no interior


do Pará. Era uma aldeia, mas lá ninguém se apelidava de
índio. Todos tínhamos nome, sobrenome, parentesco,
amigos e animais de estimação [...] Aprendi, com isso, a
respeitar a natureza desde que era menino. Aprendi a olhar

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


para o tempo e reconhecer suas mensagens: chuva, sol
quente, tempestade, frio, lua cheia ou minguante. Apren-
di a respeitar os passos dos outros seres e a não fazer xixi
no igarapé. Aprendi caçar calangos usando armadilhas ou
tacape e a flechar pequenos animais a uma distância segu-
ra. Também aprendi a tomar banho de chuva, nadar com
desenvoltura, esculpir meus brinquedos nas taquaras e ca-
roços de manga e andar na mata sempre atento aos sinais
de perigo. (MUNDURUKU, 2016, p. 38).

É como se o narrador-personagem, tomado por uma elegante


indignação, quisesse gritar que ninguém o havia conhecido ou
valorizado o que ele sabia. O excerto é todo voltado para a consciência
ecológica e ambiental. Há, por detrás dessa ilustração que surge na
memória do indígena, a intenção do autor de fazer cair por terra a ideia
de que as populações indígenas são vazias de conhecimento, isso pode
ser percebido na repetição intensa do verbo aprender (5 vezes). Essa
intenção se mostra mais nítida no período seguinte: “Apesar de tudo o
que sabia, de escola e de amizade confusa nada sabia.” (MUNDURUKU,
2016, p. 38).
Outro ponto importante percebido na crônica são os conceitos
prévios que a família do indígena carrega sobre a escola:

– É para você aprender coisas novas – ela disse.


– É para você crescer inteligente – meu pai disse.
– É para você saber mais que nós – meu tio disse.
– É para você ficar civilizado – meu irmão mais velho iro-
nizou.
Quem não disse nada foi meu avô, que ficou olhando de
longe um tanto desconfiado. Observou tudo o que estava
acontecendo e depois riu da roupa que eu estava usando.
Não foi um riso de deboche, mas eu senti como se fosse.
Depois compreendi o que se passou na cabeça dele. Ele sa-
bia o que eu iria passar. (MUNDURUKU, 1996, p. 38).

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Nota-se aqui que o autor, pelo uso do discurso direto, traz à
narrativa, duas ideologias sobre o que vem a ser a escola. São cinco
indígenas que apresentam suas concepções sobre a escola. Os três
primeiros trazem consigo a ideologia dos colonizadores que viam os
nativos como seres animalizados chamados de “gente bestial e de pouco
saber”.
Na verdade, Munduruku chama atenção para o fato de que
ainda hoje há outros parentes1 que se acomodam sob os ditames das
ideologias dominantes que veem as populações nativas como gente de
pouca importância e que somente pela entrada à “cultura dos brancos”
é que se torna menos pior.
A outra ideologia vem diluída na fala do irmão mais velho “É para
você ficar civilizado meu irmão”. A expressão também muito comum
aos discursos de ótica colonizadora traz a ideia de que só se “civilizando”
o indígena deixa de ser animalesco. No entanto, a frase se apresenta com
ironia. Aqui há um enfoque interessante, o discurso da desconstrução
ideológica sobre as populações indígenas.
Na mesma perspectiva, as atitudes do avô “ficou olhando de longe
um tanto desconfiado”, “sorriu da roupa que eu estava usando” apresenta
um conhecimento prévio da cultura da cidade. A assinatura do escritor
representa uma nova consciência de classe fundada na convivência
harmoniosa entre as culturas e na ideologia da decolonização.
O texto apresenta narrativa não-linear, há idas e vindas,
antecipação e retrospectivas aos mesmos cenários temporais diversas
vezes. A sequência cronológica se desenvolve descontinuamente, pois
depende das lembranças do narrador.

1 Expressão usada pelas populações indígenas que significa que compartilham de


alguns interesses comuns como direitos coletivos, luta pela autonomia sociocultural
de seus povos diante da sociedade global.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


As temáticas principais são espalhadas pelos cinco últimos
parágrafos da crônica e podem ser identificadas a partir de pequenas
citações como; “Olha o índio que chegou na nossa escola!!! Olha o
índio!”, “Quando eles viram que eu não sabia do que falavam, começaram
a rir de mim”. “Eles acharam que eu era burro ou coisa parecida. Só
depois é que me dei conta de que eles falavam de mim”. “Pode parecer
estranho, mas aquela palavra índio eu não conhecia”. “Eu não sabia que
existia alguém que se chamava índio”, “Percebi que meu apelido era
motivo de piada e minha origem era motivo de chacota. Isso me deixava
muito triste”, “O engraçado é que eles se pareciam comigo”, “– Eles se
acham civilizados, meu filho. Acham que por estarem mais tempo na
cidade, já aprenderam tudo e podem fazer mal para as outras pessoas”
(MUNDURUKU, 1996, p. 39-40).
Retirei estas citações, mas o leitor curioso pode ir muito além,
indo in loco garimpar informações mais robustas. Após o consolo e
explicação da mãe, o autor encerra com a frase que dá título a crônica:
“Eu nunca gostei de ser índio”. Só depois de conhecermos as experiências
do menino de nove anos é que vamos saber o motivo de o nativo nunca
ter gostado de ser índio.
Este discurso de resistência e luta por afirmação cultural é a
bandeira principal da escrita de Daniel Munduruku. Fiel à literatura
de caráter político, a crônica em atenção é um dos primeiros escritos
do autor, que preconizava novos olhares sobre as populações nativas a
partir deles próprios. Nessa perspectiva, não vigora os estereótipos da
barbárie, da preguiça e do atraso cultural.
Mais que uma leitura de fruição ou deleite, a obra de Daniel é um
verdadeiro passeio pela cultura nativa. Leitura leve que a cada revisitação
tem sempre algo de novo a contribuir, ensinar e compartilhar. Caso o
leitor se interesse por tal viagem, já saberá qual canoa pegar.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Referência

MUNDURUKU, Daniel. Histórias de índio. São Paulo: Companhia das


Letras, 1996.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Sair de si para encontrar a si
[1997 – O conto da ilha desconhecida – José Saramago)

Gustavo Von Ah

[...] mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram


pintar na proa do barco, de um lado e do outro, em letras
brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora
do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim
ao mar, à procura de si mesma.
(José Saramago).

Estimulados desde muito cedo a sermos leitores, não me parece


inusitado, com o perdão da obviedade, que escolhamos ao menos um
autor ou obra prediletos. Ainda assim, prefiro dizer que, durante nossas
vidas, e me incluo nessa colocação, teremos inúmeros autores e autoras
favoritos, a depender somente do momento em que nós, leitores, nos
encontramos. A verdade é que a leitura sempre será uma grande amiga
de quem dela desfruta.
A considerar esse ponto de vista, sinto que nenhum outro traga
tanto significado, para mim, atualmente, quanto José Saramago. Não é
só por sua escrita singular e pelas histórias carregadas de simbologia,
ou pela maneira única de caracterizar seus personagens, mas também
porque vejo em suas obras uma marcante atemporalidade, o que,
decerto, nos prende a atenção. Se há tanta particularidade no estilo do
escritor português, penso como o leitor o lê, e retomo uma colocação
de Wolfgang Iser, elucidando que essas especificidades influenciam

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


a leitura, “[...] a qual permite o acesso a possíveis experiências num
mundo não-familiar.” (ISER, 1999, p. 85).
Se Saramago traz esses significativos aspectos em suas narrativas
mais longas, não poderia ser diferente nas menos extensas. O Conto da
Ilha Desconhecida é um exemplo de como ler as obras do autor português
pode motivar grande reflexão por parte do leitor. Por se tratar de um
conto, não tardamos muito a nos depararmos com situações que nos
fazem perceber seu estilo crítico de escrita. Aos poucos, as mensagens
ocultas, que de costume estão presentes nas obras do escritor, começam
a tomar posse dos diálogos das personagens. Estes, a propósito,
agarram-se na característica própria de Saramago, preterindo o uso do
discurso direto, o que pode, ou não, causar espanto aos leitores de primeira
viagem.
A história se inicia com a primeira representação simbólica1 de
O Conto da Ilha Desconhecida, e uma das mais presentes. Há um reino
governado por um Rei pouco preocupado com seu povo. O descaso é
nítido devido ao fato de ele se esconder atrás de portas, mais precisamente,
atrás da porta dos obséquios. Ao todo, somos apresentados a três dessas
portas. A primeira, então já citada, é onde o Rei recebia suas cortesias
e gentilezas. Além dessa, sabemos da porta das decisões, e da porta das
petições. Assim, precisamos saber que o significado simbólico de porta
se refere, a princípio, a “um local de passagem entre [...] o tesouro e
a pobreza extrema” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001, p. 734). Se
assim posso relacionar, não me parece despropositado que o Rei se
esconda atrás de bajulações, fugindo de seu povo necessitado, trancado
à frente de petições que nunca são atendidas.
Um barco, solicitou o Homem ao Rei. Com percebida imposição,
ele aguarda à porta até que fale diretamente à majestade que, ao cabo

1 Todas as simbologias citadas direta e indiretamente no texto são retiradas da obra


de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2001).

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


de poucos dias, pessoalmente, e somente por benefício próprio, decide
falar àquele que o aguardava. Neste momento, percebo o encontro
possibilitado pela porta. Ademais, o pedido do Homem simboliza sua
história. Um barco, símbolo de deslocamento, movimento, viagem. A ele,
então, o Rei concedeu um barco. Mas não sem antes questioná-lo de seus
motivos. O Homem manteve a postura firme, sua característica durante
a narrativa, e respondeu aos questionamentos do Rei, mesmo que não
o tenha convencido. O destino da navegação seria a Ilha Desconhecida,
uma ilha que o Homem desejava encontrar. Embora também ele não a
conhecesse, acreditava não ser possível não haver uma ilha que ainda
não fosse conhecida.
Por se tratar de um personagem determinado, a se dizer
inicialmente, os problemas de não saber navegar ou possuir uma
tripulação não impediram o Homem de seguir adiante com seu desejo.
A esse ponto, ao menos uma tripulante ele obteria. A Mulher da limpeza,
que trabalhara para o Rei e fora responsável por informá-lo da petição do
Homem, se voluntaria a participar da viagem à Ilha Desconhecida. Se a
esta última não cabe, ainda, seu significado simbólico, podemos atribuir
uma importante simbolização à viagem. De acordo com o Dicionário
de Símbolos de Chevalier e Gheerbrant (2001, p. 951), viagem remete
à “busca da verdade, da paz, [...] a busca das ilhas”. Ora, se pensarmos
que, simbolicamente, navegação também irá remeter à busca da paz, já
podemos imaginar o que pretende encontrar o Homem.
A essa altura da história, começamos a ver o primeiro contato
de conversas entre o Homem e a Mulher da limpeza. Foi quando ele
próprio partiu ao porto para receber sua caravela que ela se apresentou.
Neste ponto também, já não conseguimos mais nos desvencilhar da
curiosidade e ansiedade em descobrir, junto do casal, essa misteriosa
ilha, que até então, é desconhecida. Não há como não se questionar sobre
o que poderia haver naquele lugar, e, ao mesmo tempo que a pergunta

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


nos parece pertinente, lembramos que a ilha pode nem sequer existir.
Não podemos saber se, realmente, existe a esperada Ilha Desconhecida.
Contudo, ao passo do desenrolar da história, um exercício passa a ocorrer
simultaneamente com a minha leitura. Percebo que tento me colocar
no lugar do personagem, procuro compreender por quais pensamentos
ele é interpelado para que, então, conclua suas falas ou ações. A esse
exercício, acredito eu, posso atribuir a uma importante colocação de
Iser (1999). A leitura nos transforma “em sujeito desses pensamentos”
(p. 85), isso é certo. Assim, “ao pensar os pensamentos de um outro”
(p. 88) abandonamos nossas individualidades para viver este e neste
outro.
A verdade é que, a partir deste ponto, passamos a torcer para que
o Homem e a Mulher da limpeza cumpram com seu objetivo. Havia
muito a ser feito. A caravela precisava ser organizada, ser limpa, pois
já havia muito que não era utilizada e, embora seus fins outrora fossem
outros, precisava estar pronta para a viagem. Os dois únicos tripulantes
do barco rumo à Ilha Desconhecida, visto que nenhum outro apareceu
para juntar-se a eles, passam a se aproximar. E isso ocorre através de
diálogos que mais parecem ser filosofias trazidas às características dos
personagens, o que representa mais um aspecto da escrita de Saramago.
Enquanto o Homem se comporta ainda de forma dura, determinada, a
Mulher da limpeza se coloca no lugar de conselheira, e é dela algumas
passagens importantes do conto. A ver, em uma conversa, em que ela, de
maneira muito certeira, parafraseia o filósofo do Rei, dizendo que todo
homem, então, é uma ilha.
Esta declaração não vem à toa. A Mulher da Limpeza havia,
como boa ouvinte e conselheira, como dito, procurado compreender
aquele homem com quem embarcara. A certeza da existência de uma
ilha que ainda não seja conhecida despertou a curiosidade da mulher,
e, ao Homem, falou sobre esse assunto. Neste momento, torna-se

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


oportuno trazer o significado de porta novamente. Dessa vez, podemos
destacar o que afirma ser “o local de passagem [...] entre o conhecido
e o desconhecido” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001, p. 734). Ora,
não haveria de ser momento mais apropriado para esse diálogo. A
simbologia que se apresenta conforme os personagens se interagem e
conforme os passos rumo ao objetivo são dados, mostra o que, para
mim, torna o conto formidável.
Se todo homem é uma ilha, pois o que haveria de buscar aquele
Homem? Antes de dar sequência à narrativa, acredito ser importante
trazer o significado simbológico mais relevante da obra. A ilha carrega
todo o cerne da história. A busca, a certeza, o desejo pelo desconhecido,
pelo refúgio são marcas da simbologia que a ilha traz à leitura. Para ser
mais direto, é bastante ilustrativo encontrar seu significado como “[...]
um lugar de eleição, de silêncio e de paz [...] a busca da ilha deserta,
ou da ilha desconhecida, ou da ilha rica em surpresas, é um dos temas
fundamentais da literatura dos sonhos, dos desejos.” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2001, p. 501-502) quando se assemelha quase que por
completo ao que anseia o Homem. O ápice da história, então, se inicia.
Ao relacionarmos a busca do Homem, e agora também da Mulher da
limpeza, com todo esse aparato simbólico, somente nos resta levantar
inúmeros outros questionamentos paralelos a o que haveria de buscar
aquele Homem?
Saramago, sempre preciso, escolhe o momento certo para trazer a
reflexão que desde o início da leitura esperamos por chegar. A resposta
do Homem à Mulher da limpeza é impactante e se desdobra no que
a simbologia representara pouco anteriormente. O Homem desejava
encontrar-se e, para isso, é necessário sair-se de si. Essa passagem da
narrativa nos toma maior atenção. Por, a essa altura, fazermos parte do
personagem e ao caminharmos com ele por suas ambições, sentimos
juntos e começamos a fazer relação dos pensamentos do Homem com

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


os nossos próprios. A incrível mensagem que segue, e digo aqui incrível
pois foi a palavra que pensei alto quando li o trecho, é a que está presente
desde o primeiro acontecimento do conto, e estará com ele ao chegar ao
fim: “[...] é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se
não saímos de nós.” (SARAMAGO, 1997, p. 41). Aqui parece evidente
que precisamos nos deixar para que possamos nos encontrar. Se isso é
de todo verdade, por que estamos sempre nos procurando? Aí está o que
podemos tirar de todo homem ser a representação de uma ilha.
Mesmo que possa parecer que a simbologia que abraça o enredo do
conto esteja prestes a se findar, vale incluir agora uma nova representação.
Se com um barco o Homem e sua tripulação, isto é, a Mulher da limpeza
somente, pretendem chegar à ilha desconhecida, podemos reconhecer
indiretamente que ambos se sujeitarão a navegar pelos mares. Enquanto
a navegação remete à maneira de se chegar à tão antes citada e desejada
paz, a simbologia por trás da palavra mar é um pouco mais interessante,
claro, neste ponto, isso por se tratar de já estarmos próximos ao final da
história. Portanto, o mar simboliza a vida, é “[...] lugar dos nascimentos,
das transformações e dos renascimentos [...] um estado transitório entre
as possibilidades.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001, p. 592) é sinal
de dúvidas, de incertezas, de indecisões.
Para fazer um elo com a maneira como pensei minha leitura deste
conto até aqui, não poderia deixar de me levar por pensar, ainda, os
pensamentos de um outro. Acredito que seja para isso que a leitura
vai nos carregando, pois “[...] a literatura oferece a oportunidade de
formularmo-nos a nós mesmos [...]” (ISER, 1999, p. 93) e isso não
pude deixar de notar com o desdobrar da narrativa do Homem em
busca da ilha, ou melhor, de seu eu, de si mesmo. E é neste momento da
história que chegamos ao sonho cujo Homem se ocupou a noite inteira.
Foi neste sonho que ele obteve tudo que almejou por todo o tempo.
Lá estava sua tripulação, que ao fim se mostrou alheia aos interesses

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


do Homem, lá estava a caravela a navegar em alto mar, com todos os
subsídios que necessitara recolher e armazenar para a viagem, lá estava
também inúmeros animais, desses do dia a dia. Neste sonho, contudo, só
não haviam ilhas desconhecidas. Havia ilha, sim, mas não desconhecida,
pois talvez essa fosse apenas ideia da cabeça do Homem, como alertam
os marinheiros.
Não havia outra interpretação senão a que se sucedeu após a
negativa dos marinheiros em acreditar na ilha desconhecida do Homem,
que dessa vez deve ser o do leme. Sua tripulação o deixou na primeira
ilha encontrada, a primeira que era habitada, levando todos os animais
consigo. A partida dos homens e mulheres que o acompanharam não
fez manifestar reação alguma o Homem do leme. Ao contrário, passou a
perceber o que daquilo poderia tirar de bom, e foi observando o que ali
restara que passamos a compreender a imaginação do Homem. Ficaram
em seu barco as árvores, os trigos, as flores e as terras, que, agora, estavam
esparramadas pelo solo da caravela, transformando a embarcação numa
verdadeira floresta, uma ilha. Ao acordar do sonho, homem e mulher,
os verdadeiros tripulantes daquela caravela, encontravam-se juntos,
unidos pelo abraço do acaso.
O desfecho desta história não poderia ser mais emblemático. No
sonho, percebemos o que havia sucedido ao Homem. Finalmente, pode
sair de si mesmo para encontrar a ilha desconhecida. Deu por si que essa
ilha era a que ele já se pertencia, era a que ele já fazia morada. Foi saindo
de si próprio que ele pode encontrar-se. Foi o sonho quem empurrou
o personagem ao seu objetivo, mas foi somente saindo da ilha que ele
pode ver a ilha. Curioso refletir que este homem, tão determinado em
chegar ao desconhecido, sempre esteve a procura de si, mas jamais
poderia ver-se se não tivesse se libertado de si mesmo. É assim que o
conto se finaliza, com a reflexão que se propôs desde o início. O Homem

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


partira ao mar com a Mulher da limpeza, dando o nome que faltara à
caravela, dando-a o nome de Ilha Desconhecida.

Referências

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos:


mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números.
Tradução de Vera da Costa e Silva et al. 16. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2001.

ISER, Wolfgang. O Ato da Leitura: uma teoria do efeito estético. São


Paulo: 34, 1999. v. 2.

SARAMAGO, José. O Conto da Ilha Desconhecida. São Paulo:


Companhia das Letras, 1998.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


O modo como as tesouras
mudam as coisas...
[2003 – A cabeleireira – Inês Pedrosa]

Carolina Aita Flores

“A cabeleireira” faz parte do livro Fica comigo esta noite, que reúne
catorze contos sobre “[...] homens e mulheres perdidos na infinita
noite do desejo, histórias de traições e cumplicidades sem fronteiras.”
(PEDROSA, 2014, [s.p.]). Os contos são “[...] intimistas, histórias
do silêncio, de quem não consegue expressar o que tem para dizer.”
(AMAZON, 2021, [s.p.]).
A história me prendeu do início ao fim, mas precisei de mais de
uma leitura para conseguir concatenar as ideias e pensar sobre o que
dizer sobre o texto. Logo após o título “A cabeleireira”, a autora cita o
versículo “Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a Terra”, do
Evangelho segundo São Mateus. Essa menção se relaciona a outros
trechos do conto, que demonstram como as crenças religiosas e também
a noção dos “mansos” guiaram o pensamento e as atitudes da família da
narradora, influenciando na forma como ela foi criada.
A história é narrada em primeira pessoa e, aparentemente, se
passa em um salão de beleza: “Faz bem em cortar o cabelo” (PEDROSA,
2007, p. 41), inicia a narradora. “Pelo corte do cabelo vê-se quem é a
pessoa” (PEDROSA, 2007, p. 41), continua. Por meio de sua relação
com cabelos, primeiro com os próprios, é que passamos a conhecer
nossa personagem principal.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


A narradora conta que, quando criança, cortou curto seus cabelos
e o gesto desagradou tanto o pai, que ele ficou sem lhe falar por um mês.
Ela, então, passou a cortar o cabelo escondido toda semana. Quando
o pai perguntava se seu cabelo não crescia mais, ela dizia que deveria
ser doença, ao que ele respondia que deveria ser castigo divino: irritara
Deus ao tentar se livrar da beleza que lhe havia sido concedida. Logo ela,
que nunca queria irritar ninguém.
A personagem foi criada para ser boazinha, mansa. Em sua
família, todos falavam baixo. A delicadeza era o maior dote que alguém
poderia ter. A mãe dizia: “Se fizeres felizes os outros, serás feliz também”
(PEDROSA, 2007, p. 42). E assim o fez, inclusive quando o tio passou
a beijá-la às escondidas. Entre outros ensinamentos maternos estavam:
“Meninas pequenas não têm opinião” e “Há coisas que fazem doer mas
fazem bem aos meninos. Os crescidos é que sabem” (PEDROSA, 2007,
p. 43). Lembrou-se desses ensinamentos e calou sua opinião quando
o tio passou a lhe provocar dor. Essas mensagens familiares foram
forjando sua personalidade.
Identifico a presença da emoção “culpa” em alguns momentos
da história. Culpava-se por despertar algo no tio, que deveria ter visto
maldade nela; culpava-se por não ter dosado as lágrimas e chorado em
excesso; culpava-se por não ter conseguido salvar seu bebê; culpava-se
por não ter levado seu pai ao médico; compreendia que o marido não
tinha culpa por ser tão bonito. É possível que a culpa esteja associada à
criação religiosa que recebeu da família.
Um contraste entre beleza e feiura também me salta aos olhos. A
família a considerava bonita quando criança, antes de cortar os cabelos;
sua beleza continuou a chamar a atenção do tio. Já na escola, era chamada
de “cara de cavalo”. Quando adulta, apesar de não gostar de seu corpo
“monótono”, era admirada pelo marido. Esse sim, lindo, apresentador
de TV, com cabelos negros e olhos que pareciam lagos, um verde, outro

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


azul. “Só quando se enfurecia é que ficavam os dois da mesma cor, de
um azul quase transparente.” (PEDROSA, 2007, p. 43).
Um símbolo presente ao longo do conto é a “água”. Aparece através
do choro, algo que faz por hábito e, ao que parece, também por prazer.
Gosta da sensação de segurar as lágrimas até o último segundo. Sente
vontade de chorar quando a raiva está por cegá-la. Testa os limites de
seu autocontrole. Segura o choro até o fim, até que a raiva se dissolva
pelas lágrimas, que contém até quase desmaiar, mas por elas é vencida,
que se libertam – suas joias mais preciosas – as lágrimas a rejuvenescem
e provocam comoção. O problema é não saber dosá-las. Apesar de que
essas mesmas lágrimas a levaram aos braços do marido.
A água aparece também em sonho. A personagem conta que
sonhou com a morte do pai e não percebeu. Quando estava grávida, um
mês antes do pai morrer, sonhou que ele nadava “num lago azul escuro
no meio das montanhas” e que “havia uma paz excessiva naquela beleza”
(PEDROSA, 2007, p. 49). O pai, aliás, parecia ter engravidado com ela, de
tão feliz que ficou por saber que seria avô. Apesar de ele não acreditar
no sobrenatural, atreveu-se, dessa única vez, a prever que nasceria uma
menina – estava certo. Esse mesmo pai, homem saudável, sofreu um
ataque cardíaco fulminante. Me questiono se essa foi mesmo a causa de
sua morte. Quando a narradora sonha com o pai, ela parece falar de um
sonho premonitório com sua morte: no sonho, o pai nada em um lago
azul. Essa descrição do lago se assemelha bastante à descrição dos olhos
do marido: “olhos que pareciam lagos”. Essa semelhança e a menção à
fúria do marido me fazem pensar se o pai, apoiador da gravidez da filha,
não teria “se afogado” nos lagos azuis, quase transparentes, do olhar do
genro. Teria o genro assassinado o sogro por apoiar algo que ele não
queria?
Volto um pouco no conto, para lembrar que quando a personagem
flagrou o marido com outra, decidiu engravidar. Essa parece ter sido

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


uma das poucas decisões que tomou em sua vida. Relatava que as
coisas simplesmente aconteciam com ela, porque as pessoas à sua
volta avançavam no sentido desse acontecer. Nem ser cabeleireira ela
conseguiu, pois não poderia dar esse desgosto à família, afinal, era a
primeira a cursar ensino superior. Sua vontade não poderia ser mais
importante do que satisfazer o que os outros esperavam dela, que fosse
mansa, submetida aos desejos alheios, sem voz. Cursou, então, História,
por gostar dos penteados que via nos livros que tinha em casa. “Há
muitas maneiras de escolher o mesmo destino” (PEDROSA, 2007, p. 55)
– e nesse ponto é possível perceber que a construção narrativa vai se
abrindo aos poucos...
Passou a gravidez acalmando o marido. É evidente o contraste
entre eles: ele, irascível, ela apaziguadora. Ele gritava, berrava, xingava, a
diminuía. Ela se mantinha passiva, submissa, abnegada. Foi criada para
disfarçar conflitos, pois em família é a harmonia que deve reinar. Certo
dia, não aguentando mais a saliência da barriga, o marido lhe espancou.
Derrubou-a no chão e chutou aquela barriga que o afrontava. Em meio
à surra, ela se pegou pensando no pai e pediu que ele a salvasse, “mas
as regras do jogo de Deus são outras” (PEDROSA, 2007, p. 50), então
imaginou os anjos rindo da “absoluta previsibilidade da violência, do
infinito tédio da violência” (PEDROSA, 2007, p. 50). Se deu conta de
que só ela poderia se salvar.
Essa sutil percepção da violência como tédio deveria nos preparar
para o que vem pela frente, mas não nos prepara. A violência ainda nos
surpreenderá, chocará. Quando acordou no hospital, com o marido a
lhe acariciar os cabelos, ele soprou em seus ouvidos a ameaça: “tu caíste
da escada, se dizes outra coisa mato-te” (PEDROSA, 2007, p. 51). A
filha não sobreviveu. Ela, obediente como sempre, aquiesceu e guardou
o segredo: “Não podia dizer à minha mãe que era ele a escada por onde

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


eu tinha caído” (PEDROSA, 2007, p. 51). Lagos que afogam, escadas em
que se cai...
No conto o perigo é velado, a tensão predomina, mas a raiva
é contida, não expressa, reprimida. Afinal, ela é uma boa rapariga,
discreta, criada para agradar. E ela sabe como é seu jeito. Puxou ao pai,
que “preferia não ter gostos para não ter desgostos” (PEDROSA, 2007,
p. 54). Ela também “não se ajeitava com a palavra não, nem era enfática
no sim” (PEDROSA, 2007, p. 54). Ela reconhece sua incapacidade
de reação, mas a atribui a outra vida, como se nada estivesse ao seu
alcance ou sob seu controle nesta. “É como se nada valesse realmente a
pena, como se as labaredas da morte rodeassem a minha vida inteira.”
(PEDROSA, 2007, p. 57).
Depois da surra, comprou um cachorro para se sentir segura
e o batizou “Leão”. Disse ser em homenagem ao seu signo, acreditava
em astrologia. Identificava-se com o nome do cão, mas nem tanto:
“Eu sempre fui um Leão muito esquisito, orgulhoso mas sem rugido”
(PEDROSA, 2007, p. 57). Aqui surge outro símbolo: o leão – rei da selva,
o mais temido dos animais. Ela não se vê leoa, não salvou a sua cria. Ela
é leão: foi a primeira se formar na faculdade, conseguiu um emprego na
TV, sustentava a casa. Por outro lado, o leão sabe atacar e se defender, ela
não. Ela cortou sua juba, e com seus cabelos foi-se embora seu rugido.
Ela poderia ser independente, mas não consegue rugir, ela é leão manso,
domesticado (a princípio).
O conto me parece repleto de contrastes, de opostos, de
ambivalência: a beleza e a feiura; a fúria e a calma; o leão e a mansidão;
a religião e o sobrenatural; a água que acalma e as labaredas que ardem;
uma voz que grita e uma voz que cala; o poder da mulher de gerar a vida
e a mulher sem poder que submete sua vida a um homem. Os segredos
também estão presentes, as coisas não acontecem às claras: os cortes de

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


cabelo às escondidas; o abuso do tio; o golpe discreto que o tio dá na
mãe; a ideia da gravidez sem o consentimento do marido.
Mas vamos nos lembrar que nossa personagem, apagada, que nem
nome tem, está num salão. Ela apara cabelos, faz mechas, enquanto nos
conta sua história. Ela divide conosco: “Cortar é um dos meus maiores
prazeres” (ROSA, 1985, p. 94). Ela sempre quis ser cabeleireira, gosta
“do tic-tac da tesoura”, “do rigor do corte” e “da rapidez com que ela (a
tesoura) muda as coisas, suavemente, como se nada fosse” (PEDROSA,
2007, p. 55). Suave como ela. Mas este não é o salão de cabeleireiro
com que ela sonhava, seu destino se cumpriu, mas não da forma como
almejava. E eis que, faltando cinco parágrafos para o final do conto,
descobrimos que ela corta cabelos na prisão.
Certa noite, estava embrulhando os presentes de Natal, coisa de
mulher, quando o marido chegou em casa. O jantar dele estava pronto,
ao lado do micro-ondas. Ele passou por ela, foi direto à cozinha,
pegou uma colher de pau e analisou o purê de batata: aguado (água
novamente?). Só podia ser de propósito. Ele avançou em sua direção,
colher de pau na mão, “com os olhos a faiscar de ódio”. “Naquela noite,
de repente e por uma única vez” (PEDROSA, 2007, p. 57), ela decidiu
lutar contra as labaredas da morte que rodearam a sua vida até aqui. Ela
conta: “[...] o meu sentido de justiça ergueu-se e foi mais forte do que
a aceitação da dor, a delicadeza a que eu estava habituada.” (PEDROSA,
2007, p. 57-58). A delicadeza e a passividade evanesceram.
De repente, a raiva acumulada, mas reprimida, veio à tona: “[...]
lembro-me de sentir o sangue todo do meu corpo a correr furiosamente
para o meu cérebro, e uma coragem estranha, uma vontade de ação
imperiosa a tomar conta de mim.” (PEDROSA, 2007, p. 59). A raiva não
fez mais transbordar água, mas sangue. O leão finalmente rugiu, seu
instinto assumiu o comando e ele atacou (ou se defendeu?): a tesoura,

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


sua velha amiga, que muda tudo num instante, perfurou o corpo do
marido vinte e nove vezes. E tudo mudou.
Após esse evento, nossa personagem, que não se lembrava de
nada, achou graça quando o policial lhe revelou o número de golpes que
desferiu no marido: vinte e nove, exatamente a sua idade – e isso que
ela não contou! Este número, por sinal, acabou por agravar sua pena:
“[...] parece que se tivesse espetado só uma ou duas vezes no coração
dele isso quereria dizer que eu não era uma pessoa má. [...] Assim,
parece que foi um ato calculado, uma coisa propositadamente cruel.”
(PEDROSA, 2007, p. 59). Logo ela, que nunca foi “pessoa de fazer as
coisas com intenção ou maldade” (PEDROSA, 2007, p. 59). Ela, que
aprendeu que “a ira não leva a lado nenhum” (PEDROSA, 2007, p. 59) –
exceto talvez à prisão, na única vez que esta ira não foi contida, engolida
ou transformada em lágrimas.

Referências

PEDROSA, Inês. A cabeleireira. In: PEDROSA, Inês. Fica comigo esta


noite. São Paulo: Planeta, 2007.

PEDROSA, Inês. Fica comigo esta noite. 2014. Disponível em: http://
www.inespedrosa.com/livros/ficacomigoestanoite.html. Acesso em: 07
jul. 2021.

AMAZON. Fica comigo esta noite. Sinopse do livro. 2021. Disponível


em: https://www.amazon.com.br/Fica-Comigo-Esta-Noite-Pedrosa/
dp/8576652595. Acesso em: 07 jul. 2021.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Feliz em morrer
[2004 – Lorde – João Gilberto Noll]

Ariel de Morais

Tinha vindo para Londres para ser vários – isso que eu


precisava entender de vez. Um só não me bastava agora –
como aquele que eu era no Brasil... Estava pronto, sim, e
precisava então voltar para o meu apartamento, ganhar a
minha rotina para merecer.
(NOLL, 2004, p. 28).

Se há qualquer tipo de censura ou simples considerações contrárias


à leitura de Lorde, romance de João Gilberto Noll, deve-se, possivelmente,
unicamente, suponho, ao desconforto natural que a narrativa, ora
onírica, ora factual, impõe ao leitor. Esse desconforto, todavia, veremos,
está assimilado à forma com que o personagem principal, o qual não é
nomeado, abre-se escancaradamente, em pouco mais de cem páginas,
em metamorfose impulsionada pelo descontentamento com a sua
própria imagem durante uma viagem quase metafísica a Londres. Essa
montanha russa de explosões e calmarias rítmicas da narrativa, na
verdade, faz com que Lorde tenha sua importância destacada e, aquém
das rejeições devido ao seu estilo extravagantemente intimista, uma
obra digna de ser explorada e “vivida”.
Nesse sentido, em Lorde, romance de João Gilberto Noll, somos
convidados a embarcar nessa viagem com destino a Londres na
companhia de um professor e escritor brasileiro cuja obra, de tamanha
importância, conferiu-lhe a oportunidade e o convite para apresentar

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


as suas, constantemente enfatizadas, sete publicações em uma espécie
de congresso internacional de literatura. Diante desse enredo, não
é difícil imaginar que o romance seguirá um roteiro descritivo que o
próprio autor percorreu, visto que Noll e seu personagem quase solúvel
desfrutaram da mesma experiência profissional, isto é, dirigir-se à
capital da Inglaterra pelo mérito de sua escrita. Essa semelhança, no
entanto, conforme explica Noll em entrevistas posteriores à publicação
de Lorde, param por aí.
Com efeito, nós, leitores, ao embarcarmos na viagem em
companhia do escritor, começamos a perceber interrogações e uma certa
desordem em quesitos práticos em relação à organização da estadia no
velho continente e é a partir dessa instabilidade que somos empurrados
à primeira fila de um espetáculo de autodestruição de certo modo
contra a vontade, pois o espanto diante das imagens que se projetam,
principalmente durante a efusão sexual do personagem, faz com que
passemos por uma experiência vexatória e indiscreta.
Já alçado voo, todavia, não nos sobra chances para voltar atrás, a
nós e muito menos ao personagem que, agora paranoico, quase febril
e impulsionado pela incerteza em seu próprio ser, demonstra indícios
de que cobiça e flerta com o abismo do desconhecido, ou seja, deseja
mergulhar em sombras para emergir como outro, ou, em outras palavras,
deseja esquecer do que já foi para vir-a-ser outro.
Nessa perspectiva de apresentação da aversão do personagem
consigo mesmo e de introdução ao diagnóstico In Vitro, ou seja,
da análise de uma doença em manifestação constante numa mente
em decomposição forçada, que quer apagar-se, verificaremos que
o personagem paciente – do qual seguramos-lhe a mão durante seus
espasmos convulsivos e o seguimos pela cidade de Londres como
turistas virgens e curiosos – é tão inconstante que o mais simples ato de
possuir um nome não lhe foi concedido ou propositalmente negado por

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Noll para que a sua múltipla personalidade pudesse fazer sentido e não
dependesse de uma âncora que fixasse imagem ilustrativa vinculada a
qualquer memória do leitor.
Da mesma maneira, o principal antagonista, herói ou carrasco
do romance, é chamado unicamente de Lorde. A este personagem, o
qual conhecemos através das especulações e no fluxo de consciência
paranoica do escritor brasileiro, é atribuída a função de cuidar de toda
a passagem do estrangeiro literato à terra da rainha, mas tudo que se
relaciona a ele não nos chega de maneira limpa e de fácil interpretação,
nos chega, pelo contrário, sob uma atmosfera de desconfiança misturada
com desejos carnais e sentimentais. Esse choque confuso entre dois
espíritos distintos resultará, por consequência, no ápice do romance ou,
talvez, pelo menos, no desenrolar dele.
Agora que já fomos brevemente apresentados ao que deveria ser o
cuidador do nosso personagem paciente, olhemos, então, para uma das
salas de expiação de que dispõe o enfermo, isto é, um pequeno quarto
no bairro de Hackney, no subúrbio de Londres, onde o disposto leitor
“ouvirá” confissões, testemunhará o soluço e o ranger de dentes de uma
mente melancólica e paranoica e, também, presenciará, com máximos
detalhes, o visceral frenesi sexual do personagem:

Andei nu pela casa para ver se encontrava alguém. [...] En-


costei-me na pia da cozinha. O meu pau se exibindo. Era
a primeira vez depois de muito tempo que eu sentia um
tesão incontrolável. Ali mesmo me aliviei em três, quatro
socadas. Com o esperma jorrado no ladrilho, caí. (NOLL,
2004, p. 42).

Desse modo, entre sussurros, gritos e gozos, vamos acompanhando


a autossabotagem do escritor, ou seja lá que postulação ele queira
assumir, até uma possível redenção através da projeção da sua morte ou,
As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras
em outras palavras, transfiguração. Nesse sentido, nosso personagem
paciente seguiu o conselho dado ao palhaço Pagliacci e transformou
em metamorfose o soluço e a dor. Transformava-se em pensamento e
atitudes, ora querendo ser um, ora querendo ser outro e o espelho que
tanto fez questão de instalar em seu quarto para confirmar se ainda era
o mesmo e se as mudanças persistiriam, logo foi coberto, pois, uma
vez encarnado em outro ser, somente viveria naquela transmutação
enquanto não visse a sua imagem real projetada no espelho, ou seja, não
quer ser tentado ou interrogado pela imagem refletida de um ser que ele
mesmo não reconhece ou não quer se reconhecer.

Farei um pacto com o espelho [...] Eu não me olho mais


nele [...] Eu não teria mais face, evitaria qualquer reflexo
dos meus traços. Cego de mim eu me aliviaria com quem
não se importasse com a minha cara. (NOLL, 2004, p. 44).

Por consequência desse pacto e dos questionamentos que


surgem a partir da sua fraqueza, a imagem de Ápis, o deus touro, que
projetou em confissão apenas conosco, leitores, não durou por muito
tempo, assim como outras personalidades apresentadas durante o
romance, pois estamos diante, supõem-se em diagnóstico preliminar,
de um personagem paciente que aspira à morte, que prefere o êxtase da
destruição individual ao delírio da vida em equilíbrio.
Nesse eterno ciclo de autodestruição e libido, presenciamos a
transformação ou a especulação da transformação em diversos outros
seres, como, por exemplo, em um paralítico quando se refere não à
dependência motora como convencionalmente conhecemos, e sim em
relação a deixar-se à disposição vulnerável e luxuriosa das vontades
do inglês. Também o acompanhamos em uma investida dionisíaca ao
sobrepujar o status de palestrante e se misturar aos mendigos, pois

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


queria ser um ser natural entre seres naturais. Não mais um escritor de
renome, não mais reconhecido entre as pessoas, nem que para tornar-se
isso precisasse fingir, vestir a fantasia e pintar a cara.
Das suas pequenas mortes e renascimentos também se destacam
a fase paciente de hospital e, por fim, a de um professor de língua
portuguesa em uma universidade estrangeira. Para cada rosto, uma nova
memória. Para cada rosto, um novo esquecimento. Para cada rosto, um
novo regozijo que, curto, impele a uma nova urgência dionisíaca, isto é,
à paixão pela morte, o renascer para morrer. Em relação a isso, segundo
Bataille (1957), há um movimento de divina embriaguez que o mundo
racional dos cálculos não pode suportar e é nesse movimento que a
mente do nosso personagem paciente se decompõe diante da nossa
leitura ao preferir o caos à bela organização linear prevista e programada
para sua visita à Inglaterra.
Diante dessa inquietação e excesso de si mesmo, pode-se dizer
que nosso personagem aprendeu a morrer e viciou-se no erotismo
que implica a morte e a cada desfalecimento era, literalmente, um
gozo a mais. A ânsia convulsiva pelo apagamento da sua individuação
é repugnante e ao mesmo tempo deslumbrante e atrativa. Todo seu
percurso em Londres, das esquinas e pontos turísticos que conheceu,
serviram para que o romance se posicionasse geograficamente e não se
perdesse consequentemente, qual esse texto, em divagações oníricas e
infinitamente abstratas.
Nessas circunstâncias, é possível visualizar e traçar um paralelo
com um outro personagem famoso da literatura cujo acometimento
paranoico se assemelha ao nosso paciente. Raskolnikov, do romance
Crime e Castigo, em São Petersburgo e nosso personagem em Londres.
Ambos abatidos sob uma atmosfera delirante e sufocante, ambos em
constante desligamento interpessoal e presos a uma consciência que se
autossabota. Raskolnikov e o escritor-mendigo-paciente cambaleiam

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


pela cidade com o peso das suas implicações para retornar ao seus
quartos/confinamentos e se destruírem um com grande pesar e
tormento psicológico e o outro em dissolução sob seus próprios
excrementos.
Ainda assim, resta destacar que o ponto crucial da obra de Noll se
deve ao Lorde, o suposto cuidador do nosso personagem paciente. Cheio
de si, e desprovido de válvulas de escape, conforme nos descreveu a voz
narrativa, deu a vida pela redenção de seu cuidado. Jogou-se às águas do
rio em suicídio para servir, involuntariamente, como símbolo de salvação.
Ao visualizar substancial ato, nosso intrépido paciente confessa-se,
sorrindo: “Eu sorri largamente para as águas cinzentas do rio: eu era um
sobrevivente em flor.” (NOLL, 2004, p. 87). Lorde precisou morrer para
que o “outro” renascesse e assim se desse início ao novo ciclo de latência
dionisíaca.
Diante de tudo isso, é preciso finalizar o diagnóstico de nosso
personagem paciente que nos levou em sua consciência e nos fez ver seu
vômito escorrendo pela cama, o suor misturado com seu esperma no
chão da sala, e tentou nos mostrar um mundo conforme a sua vontade,
em desequilíbrio e real, em constante mudança. A ideia irresistível
de destruir-se e o prazer orgiástico que a quebra da sua individuação
proporciona faz com que o nosso personagem esteja viciado pelo
erotismo que a morte implica em seu entorno. A vida como escritor não
lhe parece concebível e muito menos real e por isso anseia pela morte
de si mesmo, pois só a morte é verdadeira. Só o apagamento total de si
mesmo restaurará o prazer. Uma dádiva concedida aos mortais. Feliz,
feliz até à morte.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Referências

BATAILLE, George. A literatura e o mal. Belo Horizonte: Autêntica,


2017.

NOLL, João Gilberto. Lorde. São Paulo: Francis, 2004.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


A performance do leitor en la frontera:
leitura de um soneto
[2005 – Uma flor na solapa da miséria – Douglas Diegues]

Roselaine de Lima Cordeiro

Nos nossos percursos de leitura, várias descobertas e experiências


com as palavras são possíveis. Nesse sentido, estamos diante de um
encontro singular entre texto e leitor, pelo qual podemos vivenciar e
enxergar o mundo por diferentes perspectivas. Nessa direção, mostramos
a seguir um dos vinte sonetos da obra Uma flor na solapa da miséria, de
Douglas Diegues, publicada em 2005, pela editora Eloísa Cartonera:

le gustaba escalar la planície com su muleta de alumínio


parecia un idiota cruzando la tarde sin sentido
bebia de la imundície sin problemas
porque desde crianza estaba acostumado a beber de la imundície terrena

sabia como convivir com la imundicie que produce el hombre.


había ainda en sus ojos un resto de brilho feliz de infância perdida
escalando la planicie de los dias
com su muleta de alumínio non precisaba más nin nombre

parecia que había salido de algun libro de Manoel de Barros


un personagem de carne gosma esperma escama sangre osso mystério
escalar una montanha del lado brasileiro era escalar una planície del
lado paraguayo
escalar una montanha del lado paraguayo era escalar una planície del
lado brasileiro

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


em ambos los lados de la frontera que implacabelmente apodrece
ninguém consigue escalar planícies tan bién como ele

De imediato, nesse soneto, o leitor se vê diante de um certo modo


de dizer. Um jogo com as palavras que, num primeiro momento, pode
causar estranhamento. Desse cenário, passamos a assinalar algumas
questões que chamam nossa atenção na leitura desse poema.
A primeira delas é sobre a palavra frontera, a partir da qual os
mais variados elementos funcionam no poema. Poderíamos concebê-la
como um eixo estruturante em que as percepções dos leitores estarão
em constante diálogo com o que é e está na frontera do soneto. Nesse
caminho, não se trata apenas de um espaço geográfico, delimitado pelo
fronteiriço, mas as fronteras que constituem essa voz do eu lírico que
trata de um sujeito em frontera.
Dessa reflexão, um dos elementos relacionados à frontera é a
presença de mais de uma língua nessa construção de Diegues. Somos
tomados por esse jogo linguístico que oscila ora para o espanhol, ora
para o português. Há um deslizamento entre línguas que vai compondo
esse jeito de lidar com as palavras, algumas inclusive podem ser lidas em
ambas as línguas, pois são escritas de forma idêntica. Nesse percurso, o
leitor hesita, pois se vê na frontera entre uma língua e outra, conforme
mostramos a partir da primeira estrofe do soneto:

le (esp.) gustaba (esp.) escalar (port. e esp.) la (esp.) planície (port.) com
(port.) su (esp.) muleta (port. e esp.) de (port. e esp.) alumínio (port.)

parecia (port.) un (esp.) idiota (port. e esp.) cruzando (port. e esp.) la


(esp.) tarde (port. e esp.) sin (esp.) sentido (port. e esp.)

bebia (port.) de (port. e esp.) la (esp.) imundície (port.) sin (esp.)


problemas (port. e esp.)

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


porque (port. e esp.) desde (port. e esp.) crianza (esp.) estaba (esp.)
acostumado (port.) a (port. e esp.) beber (port. e esp.) de (port. e esp.)
la (esp.) imundície (port.) terrena (port. e esp.)

Observamos, nesses versos, que não há uma regra ou uma


sequência, simplesmente as palavras vão mudando ou não de uma
língua a outra. Os vocábulos “escalar” e “cruzando”, por exemplo,
podem ser lidos tanto em espanhol quanto em português; o primeiro
sem nenhuma alteração, e o segundo com pronúncia diferente em
cada língua. O escalar e o cruzar marcam este andar pela frontera,
caracterizada por limites tanto territoriais quanto linguísticos. Para
nós, leitores, também é preciso escalar e cruzar esse espaço entre a
língua portuguesa e a língua espanhola, pois, acostumados a ler um
texto em uma única língua, nos vemos deslocados diante de ambas as
possibilidades de leitura. Esse deslocamento ocorre de forma que nos
sentimos na frontera entre um modo ou outro de ler, já que algumas
palavras escritas da mesma maneira, mas pronunciadas de modos
distintos, exigem uma escolha na leitura, gesto que sempre tem como
efeito uma hesitação ou uma pausa.
Esse escalar e cruzar a frontera das línguas caracteriza também
o tema deste soneto; portanto, como leitores, dividimos esse espaço
fronteiriço com o sujeito do poema, no qual algumas palavras e
alguns versos parecem nos guiar, conforme as impressões de leitura
apresentadas na sequência.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Le gustaba escalar la planície com su muleta de alumínio

Já no primeiro verso do soneto, somos colocados diante de um


sujeito que gostava de escalar a planície com a sua muleta de alumínio.
Portanto, com um andar lento, como na escalada, seguia apoiado em
um objeto artificial. Trata-se de um percurso por um espaço plano e de
grande extensão territorial. Desse modo, nessa frontera, colocada pelo
soneto, a planície, ora em espanhol, ora em português, exige esforço.
Além disso, ela se transforma em montanha no cruzar de um lado ao
outro do território. Nesse jogo linguístico, lembramos que a escalada
de montanhas exige equipamentos de proteção apropriados e, nesse
espaço da frontera, na escalada, o sujeito conta apenas com uma muleta
de apoio. Nesse percurso, temos uma planície que exige escalada e o
sujeito, amparado por um objeto de alumínio, que percorre um longo
caminho.

Parecia un idiota cruzando la tarde sin


sentido / escalando la planicie de los dias

De acordo com a voz do poema, o sujeito cruza a tarde sem


sentido, parecendo um idiota. Talvez isso se dê pelo próprio espaço
que exige tanto desse ser, que acaba por parecer um tolo. Observamos
que a planície se transforma numa tarde; portanto, o cruzar e o escalar
também têm relação com o tempo. Logo, na sequência, o eu lírico nos
fala que o sujeito escala também a planície dos dias. Mais uma vez nessa
relação com o tempo, no cruzar de um dia ao outro.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Com su muleta de alumínio non
precisaba más nim nombre

Quem é este sujeito de que nos fala a voz do poema? Segundo as


marcas do soneto, ele nem nome precisa mais, pois a muleta já basta.
Sabemos pelo eu lírico que ele é um ser acostumado a esse ambiente de
dificuldades: “bebia de la imundície sin problemas” (DIEGUES, 2005,
p. 10). Tão adaptado que com uma muleta podia escalar, “porque desde
crianza estaba acostumado a beber de la imundície terrena” (DIEGUES,
2005, p. 10). Podemos inferir que esse sujeito nasceu nesse lugar, pois
desde a infância transita por ali, convivendo, segundo a voz do poema,
com esse espaço de imundície produzida pelo próprio homem. Porém,
ainda tinha um brilho de felicidade nos olhos, lá de seus primeiros
anos de vida, que estava presente na escalada de todos os dias. Era mais
um, embora sem identificação, capaz de seguir adiante. Parecia saído
de um livro de Manoel de Barros, um personagem real, pois de “carne
gosma esperma escama sangre osso mystério” (DIEGUES, 2005, p. 10).
Sua pele transformada, escamosa, portanto, resistente e protegida dos
percalços da escalada. Além disso, é um sujeito do “mystério”, palavra
que não está em nenhum lado da frontera linguística, mas está em
frontera. O que nos permite perguntar: qual o lugar desse sujeito?
Ele faz parte de um dos lados da frontera? Ou se, como o “mystério”,
cruza de lá e cá, encontrando-se entre. Que lugar é o entre? Que lugar
é o em frontera? São questões que o soneto nos desperta enquanto
leitores. Vale ressaltar que a alusão ao poeta Manoel de Barros nos
remete à seguinte reflexão acerca dos poemas de Diegues: “Nada de
sua admiração pela simplicidade e pela redescoberta das coisas em
Manoel de Barros transparece em sua poesia. Seu mundo é o das

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


coisas transformadas pela ação dos processos industriais e sociais [...]”
(ÁVILA, 2012, p. 16-17). Portanto, temos esse sujeito que parecia ter
saído de um dos poemas de Barros, com um quê de brilho em seus
olhos lá da infância perdida, mas que carrega em si as características
deste ser em frontera.

Escalar una montanha del lado brasileiro era escalar una


planície del lado paraguayo / escalar una montanha del
lado paraguayo era escalar una planície del lado brasileiro

Esse sujeito escala uma montanha do lado brasileiro, que é uma


planície do lado paraguaio. Ao mesmo tempo, escala uma montanha
do lado paraguaio, que é uma planície do lado brasileiro. Disso,
compreendemos que as dificuldades são iguais, mas diferentes de um
lado e outro. Em ambos os lados da frontera, há montanhas e planícies,
mas em cada uma há singularidades e obstáculos para esse ser que não
está nem lá, nem cá. Ele está em frontera, cruzando tardes e dias. E
sobre esse cruzar de um lado ao outro, o eu lírico arremata afirmando
que ambos os lados apodrecem implacavelmente, mas esse sujeito sabe,
como ninguém, escalar planícies. Sobre isso, podemos destacar que:
“A fronteira em Diegues não exige passaporte: nenhum compromisso
com a nacionalidade. Essa fronteira apodrece inevitavelmente fazendo
da travessia um jogo de espelhos em que os dois lados se confundem.”
(ÁVILA, 2012, p. 33).
Todos esses aspectos compõem a frontera do soneto aqui
apresentado; escrito no modelo inglês/Shakespeariano, ou seja, em três
estrofes de quatro versos, seguidas de um dístico. Uma forma clássica

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


subvertida pelo poeta Diegues, que usa as mais variadas rimas, jogando
com a métrica. Ademais, ao longo de sua produção, passa a escrever
também em formato livre, sem a marca do modelo fixo a ser seguido.
Nesse soneto, temos então a frontera vista, inicialmente, pela
questão linguística, isto é, está funcionando aí o que o autor chama de
portunhol selvagem: “[...] la língua falada en la frontera du Brasil com u
Paraguai [...]” (DIEGUES, 2005, p. 3). Desse modo,

Era o portunhol que ouvira desde criança, mas em versão


selvagem – ou seja, nascido da necessidade de se fazer en-
tender e sobreviver na fronteira geográfica e linguística do
centro-oeste brasileiro. Essa localização estratégica salpi-
cava no portunhol inúmeros vocábulos guaranis e permi-
tia o contrabando de outras línguas, com destaque para o
inglês. (ÁVILA, 2012, p. 10).

Isso pode ser observado em outros escritos do poeta em que o


guarani e o inglês também estão presentes, compondo esse mosaico
de línguas em um mesmo texto, sem nos esquecermos das palavras
que não conseguimos classificar em nenhuma língua, por exemplo,
“mystério”, “non”, “implacabelmente”, “tan bién” e “imundicie”.
Segundo o poeta,

[...] non existe portunhol selvagem único. Cada um tem


suo proprio portunhol selvagem. Mio portunhol selvagem
pode incorporar palabras de todos los idiomas que exis-
tem, indigenas, aliens, civilizados. El portunhol selvagem
non tem limites! (DIEGUES, 2012, p. 160).

Além da frontera linguística, nos escritos de Diegues, estamos


diante de temas que colocam em evidência o sujeito da/em frontera

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


que lida com a língua e com o espaço geográfico. Há, dessa forma, uma
efervescência de questões tratadas pelo poeta que destacam também a
frontera do tempo.
Lá no início deste texto, mencionávamos a possibilidade de
experiências na leitura e de perspectivas diversas a partir da palavra.
No soneto aqui analisado, o leitor experiencia esse estar em frontera, e
um dos efeitos disso é que o soneto da e na frontera exige performance
do leitor. Isso porque há um deslocamento do leitor para o entre
línguas. Como o sujeito do soneto, é preciso cruzar de uma língua a
outra, escalando esse espaço do desconhecido, pois o leitor não está
ali desde sempre; pode ser a sua primeira vez escalando e cruzando la
frontera. Com isso, hesitamos, paramos por breves segundos, lemos de
um jeito e depois de outro, nos inquietamos, especialmente se a leitura for
realizada em voz alta. Como o sujeito do soneto, estamos na leitura em
um não lugar, cruzando de lá e cá, desterritorializados, adaptando-nos a
esse jeito de dizer que joga com a língua, com o espaço e com o tempo.
E isso nos remete à revista modo de usar & co., na qual aparece
a seguinte afirmação: “O trabalho de Augusto de Campos, no entanto,
por sua complexidade linguística, pede uma voz treinada, que possa ir
muito além de uma simples ‘leitura’. Seus poemas pedem performance.”
(DOMENECK, 2009, [s.p.], grifos do autor). Os sonetos de Diegues
também necessitam de uma voz treinada que, na leitura, sinta o espaço
da frontera. Vejamos um dos poemas de Augusto de Campos:

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


com can
som tem

con ten tam


tem são bem

tom sem
bem som

Fonte: Augusto de Campos (1956).

Esse poema subverte a forma clássica, pois aparece ao leitor como


imagem. Além disso, de imediato, hesitamos em qual direção iniciamos
a leitura. Testamos todas as possibilidades, mesclando uma e outra,
jogando com as combinações: com som can tem... con ten são tam
bem... can tem con ten são tam bem... com som ten são sem som... tam
bem sem som tom bem... tom bem ten são can tem... Cada forma produz
sentidos diversos e exige, do leitor, performance – ação, interpretação,
entrega, ritmo.
No soneto aqui apresentado, performaticamente andamos junto
ao sujeito de muleta de alumínio, compreendendo que o seu lugar é um
não lugar ao mesmo tempo, o que faz com que o leitor viva intensamente
essa experiência linguística, geográfica e temporal en la frontera.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Referências

AUGUSTO DE CAMPOS. Poemas. 1956. Disponível em: http://www.


augustodecampos.com.br/poemas.htm. Acesso em: 30 nov. 2021.

ÁVILA, Myriam. Douglas Diegues. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012.


(Ciranda da Poesia).

DOMENECK, Ricardo. Augusto de Campos. modo de usar & co.: revista


de poesia e outras textualidades conscientes, jan. 2009. Disponível em:
http://revistamododeusar.blogspot.com/2009/01/augusto-de-campos.
html?view=classic. Acesso em: 30 nov. 2021.

DOUGLAS, Diegues. “Corregirlo sería matarlo”: Entrevista a Douglas


Diegues, poeta em “portunhol selvagem miri michi”. [Concedida a Pablo
Gasparini, Ana Cecilia Olmos e Maite Celada (USP)]. Abeache: Revista
da Associação Brasileira de Hispanistas, v. 1, n. 2, p. 159-166, 2012.
Disponível em: https://revistaabehache.com/ojs/index.php/abehache/
issue/view/9. Acesso em: 30 nov. 2021.

DOUGLAS, Diegues. Uma flor na solapa da miséria. Buenos Aires:


Eloísa Cartonera, 2005.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Só sabe o que é alegria
quem conhece a tristeza
[2012 – Ensinando a tristeza – Rubem Alves]

Ana Cristina Sander

“Ensinando a tristeza” é um conto de Rubem Alves, publicado em


seu livro de contos intitulado Pimentas: para provocar um incêndio, não
é preciso fogo e disponibilizado digitalmente pela revista Prosa, Verso e
Arte. O conto gira em torno de uma suposta “pedagogia da tristeza” e da
virtude da compaixão, compreendida pelo autor como uma faculdade
de sofrer junto ao outro ou de se entristecer a partir da tristeza do outro,
que não precisa, necessariamente, existir de fato, ou seja, mesmo que
aquele com quem se sofre junto seja um personagem fictício.
No início do conto, o autor dirige-se aos seus amigos, ao mesmo
tempo em que se queixa deles aos seus leitores. O motivo da queixa é que
seus amigos não estavam contentes com a tristeza que o autor projetava
em seus contos. Ele confessa que essa observação, vinda de seus amigos,
mexeu com ele e o fez lembrar-se dos poemas “triste-alegres” da poetisa
paranaense e descendente de ucranianos, Helena Kolody. Dentre os
poemas de Kolody, o autor destaca: “Buscas ouro nativo entre a ganga
da vida. Que esperança infinita no ilusório trabalho... Para cada pepita,
quanto cascalho.”
Esse pequeno poema da poetisa dá o ensejo para que Rubem
Alves possa citar as Escrituras Sagradas e adentrar no assunto-tema do
conto: a compaixão. O autor afirma que gosta de ler as Escrituras, mas

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


que, traçando um paralelo com o texto da Helena Kolody, ao ler a Bíblia,
há que se desconsiderar as passagens ruins para encontrar as boas ou,
como ele coloca: “para encontrar uma pequena pepita, quanto cascalho
há de se jogar fora!”
Essa atitude de garimpeiro, que o autor assume perante a leitura
das Escrituras, parece se referir mais às passagens bíblicas que são
ruins de um ponto de vista literário, do que às passagens que evocam
sentimentos negativos. Nesse sentido, em tom satírico, o autor afirma
que a existência de “cascalhos”, ou passagens bíblicas literariamente mal
escritas, poderia ser uma espécie de prova que a Providência inseriu
nas Escrituras com o intuito de separar os bons dos maus leitores, pois:
“Os maus leitores não sabem separar as pepitas do cascalho...” (ALVES,
2012, p. 144).
A pepita em forma de passagem bíblica que Rubem Alves encontrou
em suas garimpagens pelas Escrituras Sagradas foi: “[...] melhor é a tristeza
que o riso. Porque com a tristeza do rosto se faz melhor o coração.” Tal
passagem, de Eclesiastes 7:3, é importante para o autor, pois ela se refere
à compaixão, e é por meio dessa virtude que “se faz melhor o coração” e
também porque sem tristeza não se pode sentir compaixão.
Relacionado à passagem bíblica, o autor narra um evento de sua
vida pessoal, no qual enquanto ele se perguntava se seria possível ensinar
a compaixão, sua neta levantou-se subitamente da mesa do almoço e se
dirigiu até outro cômodo para chorar. Ao ir atrás da menina para saber a
razão do choro, ela lhe disse: “Vô, quando eu vejo uma pessoa chorando,
o meu coração fica triste junto ao coração dela...” (ALVES, 2012, p. 144).
Posto isso, o autor afirma que sua neta, instintivamente, havia dado a
definição de compaixão. Na frase seguinte, o autor dá a entender que
não avisou à neta que ela havia chegado a uma definição da compaixão,
mas a isso ele emenda uma citação da poetisa mineira Adélia Prado: “a
poesia é pura compaixão” (ALVES, 2012, p. 144).

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


No parágrafo que se segue, ele afirma que todos os terapeutas travam,
em última instância, uma batalha contra a tristeza, independentemente
de qual “seita” eles façam parte. Nessa passagem, a palavra “seita” evoca
certa desconfiança do autor em relação aos terapeutas e até mesmo
em relação à saúde mental enquanto sinônimo de ajuste social, como
podemos inferir de outros contos de Rubem Alves. Prosseguindo com
esse pensamento, não obstante a batalha dos terapeutas contra a tristeza,
o autor defende que ela deve ser ensinada, pois, como diz Eclesiates, “faz
melhor ao coração”.
Além de ser boa para o coração, na opinião do autor, a poesia nasce
da tristeza e para reforçar tal ideia, ele cita Alberto Caeiro, heterônimo
de inspiração naturalista do poeta Fernando Pessoa, uma das principais
influências de Rubem Alves (2012, p. 144):

Mas eu fico triste como um pôr de sol quando esfria no


fundo da planície e se sente a noite entrada como uma bor-
boleta pela janela’. E concluiu: ‘Mas minha tristeza é sosse-
go porque é natural e justa e é o que deve estar na alma...’.
Num outro lugar, Fernando Pessoa escreveu algo mais ou
menos assim: ‘Ah! A imensa felicidade de não precisar de
estar alegre .....

Afirmando que a tristeza é natural e que, assim como Alberto


Caeiro, devemos fazer as pazes com a tristeza da alma, Rubem Alves
retoma sua opinião de que a tristeza não deve ser combatida, mas
ensinada. Entretanto, a tristeza que o autor evoca não é qualquer tristeza,
mas aquela capaz de gerar compaixão, de sossegar a alma perante as
pressões sociais de se estar sempre alegre.
Nesse sentido, Rubem Alves inverte, nesse momento do conto, a
ordem das perturbações psicológicas. Não é mais a tristeza que deve ser
encarada como algo a ser combatido pela terapêutica moderna, mas a

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


alegria, ou melhor, o “tipinho” alegre, ou o “alegrinho”. De acordo com o
autor, o alegrinho é aquele tipo de pessoa que está o tempo todo alegre,
que busca sempre ser engraçado e exije que todos riam de suas piadas.
A efusividade alegre do alegrinho é um verdadeiro flagelo para ele. Esse
tipo de pessoa não é capaz de ouvir a beleza das melodias tristes dos
noturnos de Chopin, tampouco sentir as sutilezas da poesia de Cecília
Meireles, nem mesmo apreciar o silêncio triste da beleza do crepúsculo,
como faz Alberto Caeiro. Em suma, por estar sempre alegre, o alegrinho
não é capaz de sentir compaixão, pois para isso é necessário que exista
tristeza na alma, haja vista que, como revelou a neta do autor, “[...]
compaixão é sentir a tristeza de um outro.”
Nesse momento do conto, Rubem Alves levanta a questão da
possibilidade de sentir compaixão por personagens fictícios. Para tal,
ele narra uma situação que ocorreu com ele. De acordo com o autor,
um menino chorou ao ler seu livro O patinho que não aprendeu a voar.
O pai do garoto havia comprado o livro, imaginando que Rubem Alves
fosse um desses “alegrinhos” e que a história faria seu filho dar risadas.
Ao perceber que o efeito havia sido contrário, ou seja, que o menino
havia chorado ao chegar ao final da história, o pai foi retornar o livro ao
autor, zangado.
Rubem Alves afirma que, apesar de ser de fato uma história triste,
o garoto não tinha razões para chorar, a não ser que estivesse sofrendo
“o sofrimento do patinho”, um patinho que o menino sabia que não
existia. Algo semelhante ocorreu quando o autor levou sua filha para
assistir ao filme E.T. Ao final do filme, ela estava em prantos, mas o E.T,
assim como o patinho, não existe.
Ao final do conto, há um retorno à questão inicial: “Haverá uma
pedagogia da tristeza?” Como resposta a essa pergunta, Alves (2012,
p. 147) chega à conclusão que o

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


caminho para se ensinar compaixão, que é o mesmo cami-
nho para se ensinar a tristeza, são as artes que trazem à
existência as coisas que não existem: a literatura, o cinema,
o teatro. As artes produzem a beleza. E a beleza enche os
olhos d’água...

Alves finaliza seu conto tranquilizando seus amigos, afirmando


que embora ele seja triste, sua tristeza é “natural e justa” como a de
Alberto Caeiro e sua “pedagogia da tristeza” busca “melhorar os
corações” de seus pupilos, um pouco confuso em Eclesiastes.

Referência

ALVES, Rubem. Ensinando a tristeza. In: ALVES, Rubem. Pimentas:


para provocar um incêndio, não é preciso fogo. São Paulo: Planeta,
2012. Disponível em: https://www.revistaprosaversoearte.com/
ensinando-a-tristeza-um-fabuloso-conto-de-rubem-alves/.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Das escrevivências
das vozes da periferia
[2014 – Ana Davenga – Conceição Evaristo]

Leandro Machado Ribeiro Nunes

O barraco de Davenga era uma espécie de quartel-general, e


ele, o chefe. Ali se decidia tudo. No princípio, os companhei-
ros de Davenga olharam Ana com ciúme, cobiça e descon-
fiança. O homem morava sozinho. Ali armava e confabulava
com os outros todas as proezas. E de repente, sem consultar
os companheiros, mete ali dentro uma mulher.
(Conceição Evaristo).

Aspectos gerais sobre o conto

A mulher a qual a epígrafe se refere é Ana Davenga, a personagem


principal de um dos contos da obra Olhos d’água da escritora
afro-brasileira Maria da Conceição Evaristo de Brito. Da epígrafe ainda
se consegue tirar sentidos que nos levam a reconhecer algumas das
principais características da literatura de Evaristo: armava e confabulava
são termos que depreendem sentidos de intriga; ciúme nos remete a
algum relacionamento difícil e cheio de peripécias; sem consultar os
companheiros pode ser uma frase que tende a evidenciar uma sociedade
machista; e barraco nos leva a um contexto humilde onde a maioria

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


dos brasileiros consegue se identificar e se ver. Mas, afinal, quem é Ana
Davenga? Bem, ela com certeza poderia e pode ser muitas mulheres
afro-brasileiras, e o conto que carrega seu nome, ao qual esta crítica se
refere, permite ao leitor participar através de seu imaginário da peleja
cotidiana da personagem.
Apesar da narrativa se passar em torno de Ana, é impressionante
como a voz da personagem, por meio da narrativa, assume uma posição
de submissão frente a uma realidade violenta e governada por homens.
É como se o silêncio e o medo estivessem sempre presentes em volta
das personagens negras e femininas moradoras de uma comunidade ou
favela dominada pelo tráfico cujo chefe ou líder é justamente o homem
de Ana, cujo nome é Davenga, ou seja, a personagem tem como marca
o nome de seu companheiro, pois assim, ali na periferia, ninguém se
meteria a besta com ela. “Ana Davenga reconhecera a batida. Ela não
havia confundido a senha. O toque prenúncio de samba ou de macumba
estava a dizer que tudo estava bem.” (EVARISTO, 2014, p. 21).
A importância da figura de Ana se estabelece logo no princípio
do conto, pois seu homem, Davenga, era temido e respeitado por todos
que ali viviam. A narradora deixa isso bem explícito ao descrever a
casa onde Davenga e Ana viviam; assim, “[...] o barraco de Davenga
era uma espécie de quartel-general, e ele era o chefe. Ali se decidia
tudo.” (EVARISTO, 2014, p. 22). A aceitação de Ana na vida do chefe
do pedaço foi um processo difícil, “[...] e de repente, sem consultar seus
companheiros, mete ali dentro uma mulher.” (EVARISTO, 2014, p. 22).
A narradora descreve a situação de tal sorte que é totalmente possível
identificarmos uma microssociedade periférica governada por homens,
ou seja, machista e patriarcal, onde as mulheres são reféns da dominação
de seus homens. Atenção especial ao trecho paradoxal veiculado do
sentido da frase anterior: são reféns da dominação de seus homens. Se
eles pertencem às mulheres, quem governa quem, afinal?

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Tudo isso é narrado a partir da voz feminina da narrativa
evaristiana que toma conta da história em um triplo empoderamento
narrativo, ou seja, a emancipação da voz negra, da voz da mulher e da
voz da periferia, assim, é quase uma relação paradoxal. Ler e reconhecer
por meio de uma análise da narrativa da autora, a existência dessas três
vozes: a voz da periferia, descrita e narrada ao entrarmos em contato com
um microuniverso dominado pela violência urbana e pelo machismo
descrito nas relações sociais do conto assim como a violência oriunda
do tráfico de drogas que domina a região habitada pelas personagens;
a narrativa feminina, todo o empoderamento narrativo é direcionado
à personagem Ana Davenga, pois o leitor acompanha o desenrolar
do conto por meio dos pensamentos e indagações da personagem.
Há uma escrita um tanto quanto matriarcal na narrativa, pois, apesar
de tanta violência, há amor e bem-querer no conto; e, finalmente, a
voz afro-brasileira que pode ser identificada já no início do conto ao
reconhecermos as metáforas relacionadas ao samba (o ritmo das batidas
à porta da personagem) e as referências às religiões afro-brasileiras com
o termo “macumba”, por exemplo.

Escrevivências da voz da periferia

Desde o início do conto, o cotidiano vivido por Ana é marcado por


uma narrativa que evidencia dor, sofrimento e angústia: “[...] estariam
guardando uma dor profunda e apenas mascarando o sofrimento para
que ela não sofresse?” (EVARISTO, 2014, p. 23). A narrativa traz sempre
o tom do perigo, do incerto, do medo, do crime, e da probabilidade
de a morte acontecer ali, a qualquer momento: “[...] naqueles dias,
ele andava com temor no peito. Era preciso cuidado. Os homens

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


estavam atrás dele.” (EVARISTO, 2014, p. 24). A violência da periferia
também se manifesta nas mais singelas nuances comportamentais, até
mesmo o que deveria ser uma brincadeira é mostrado com violência,
pois esta é imersa no contexto das personagens, como no trecho:
“Davenga não era homem de tais modos! Ele até brincava, porém, só
com os companheiros. Assim mesmo de uma brincadeira bruta. Socos,
pontapés, safanões, tapas, ‘seus filhos da puta’... Mais parecia briga.”
(EVARISTO, 2014, p. 23). A realidade periférica e exposta em todos os
seus aspectos na narrativa evaristiana, que não nos poupa das tragédias,
dos pormenores, dos perigos, ou seja, da realidade na qual milhares de
brasileiros, principalmente afro-descendentes, se encontram.

Escrevivências de uma voz feminina

A narrativa do conto é primordialmente feminina, pois a


narradora se detém sobre os pensamentos e a vida de uma mulher, Ana
Davenga, cercada por um universo machista e submetida à vida de seu
companheiro. No que tange à participação de Ana na vida de Davenga,
seu companheiro, o machismo fica explícito no seguinte trecho: “ela era
cega, surda e muda no que se referia a assuntos deles” (EVARISTO, 2014,
p. 22). A voz feminina da narrativa evaristiana trabalha quase que de
maneira a expor as injustiças e pelejas cotidianas da vida da personagem
principal, negra e moradora da periferia, constantemente vivendo à
sombra do companheiro, como o leitor consegue perceber pelo trecho
“[...] e as mulheres, como se estivessem formando pares para uma dança,
rodeavam seus companheiros, parando atrás de seu homem certo
[...]” (EVARISTO, 2014, p. 22), além de serem vítimas conscientes da
criminalidade circunstanciada por um sistema excludente, contexto esse

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


do qual todas as personagens tiram seu sustento. Essa vida às sombras é
denunciada pela voz da narradora que expõe essa prisão circunstancial
na qual se encontram Ana Davenga e suas companheiras, pois suas vidas
se limitam às vidas dos seus “(homens)”. O feminino também se revela
na narrativa matriarcal que expõe alguns pensamentos de Ana. Ao se
preocupar com o paradeiro de seu companheiro no início do conto a
narradora expõe esse aspecto particular da escrita de Evaristo, assim,
quando se lê: “[...] onde estava Davenga? Teria se metido em alguma
confusão? Sim, seu homem só tinha tamanho. No mais era criança em
tudo [...]” (EVARISTO, 2014, p. 23) o leitor consegue identificar esses
aspectos da voz feminina na narrativa.

Escrevivências de uma voz afro-brasileira

Nem é preciso dizer que o samba é um signo cultural dotado


de negritude, principalmente por suas origens: sabe-se que por volta
da década de 1930, diferentes estilos de samba surgiram na cidade do
Rio de Janeiro, no que concerne ao samba-de-roda, que nos remete à
roda de capoeira, é visto por muitos como a raiz do samba brasileiro
e tem suas origens nos escravos da Bahia por volta de 18601. Nesse
conto, a narrativa evaristiana já lança mão bem no início dessa marca
cultural da afro-brasilidade: “[...] [a]s batidas na porta ecoaram como
um prenúncio de samba. O coração de Ana Davenga naquela quase
meia-noite, tão aflito, apaziguou um pouco. Tudo era paz então, uma
relativa paz.” (EVARISTO, 2014, p. 21). Logicamente que de samba,

1 Para maiores informações a respeito, consultar o portal da Super Interessante.


Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-surgiu-o-
samba/. Acesso em: 01 dez. 2021.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


ritmo e alegria, o conto não tem muita coisa, pois a palavra aí é utilizada
enquanto linguagem metafórica em referência às batidas na porta da
casa de Ana. As religiões africanas também são mencionadas ainda
que em um único momento, também como linguagem metafórica, em
“[...] o toque prenúncio de samba ou de macumba estava a dizer que
tudo estava bem [...]” (EVARISTO, 2014, p. 21) também no início do
conto, encontra-se mais esta marca de negritude na narrativa que logo
já evidencia sua identidade afro-brasileira.

Considerações finais

No que tange à escrita do conto, ou melhor, uma narrativa “[...]


dentro da escrevivência… pode atuar como mecanismo emancipatório
da voz negra.” (MELO; GODOY, 2016, p. 1). É por isso que a obra Olhos
d’água traz em sua escrita uma narrativa viva, que relata experiências
e dá vida às suas personagens, pois estas já possuem vida. No que diz
respeito a essa narrativa, e na escrita crítica de Ana Davenga, pode-se
pontuar a respeito da escrevivência, com base nas palavras da própria
autora do conto que, nesse processo, “[...] surge a fala de um corpo que
não é apenas descrito, mas antes de tudo vivido. A escre(vivência) das
mulheres negras explicita as aventuras e as desventuras de quem conhece
uma dupla condição [...]” que, nas palavras da autora, “[...] a sociedade
teima em querer inferiorizada, mulher e negra.” Ainda, nesse mesmo
fio discursivo, Conceição aponta que “[...] pode-se dizer que os textos
femininos negros, para além de um sentido estético, buscam semantizar
um outro movimento, aquele que abriga toda as suas lutas.” Assim, “[...]
na escrevivência, toma-se o lugar da escrita, como direito, assim como
se toma o lugar da vida.” (EVARISTO, 2005, p. 205-206).

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


É preciso pontuar que, mesmo em meio a tanta violência e
realidade, há também a poesia, a beleza. O amor e o bem-querer se
fazem presentes na escrevivência, pois isso está explícito desde o
início na narrativa. Outro fato interessante que também vem a calhar
nestas considerações finais é que a relação de dominação não se dá
unilateralmente, ou seja, do homem tendo posse de sua mulher, pois já
no início do conto, lemos o seguinte trecho exposto pela narradora “[...]
onde andava o seu, já que os das outras estavam ali? Por onde andava
o seu homem? Por que Davenga não estava ali?” (EVARISTO, 2014,
p. 22). E assim, termina-se esta crítica com a seguinte indagação, nessa
escrevivência: quem possui quem afinal?

Referências

EVARISTO, Conceição. Ana Davenga. In: EVARISTO, Conceição.


Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional,
2014.

EVARISTO, Conceição. Gênero e Etnia: uma escre(vivência) de dupla


face. In: MOREIRA, Nadilza Martins de Barros; SCHNEIDER, Liane
(org.). Mulheres no Mundo: etnia, marginalidade e diáspora. João
Pessoa: Ideia, 2005. p. 201-224.

MELO, Henrique; GODOY, Maria C. Escrevivência e produção de


subjetividades: reflexão em torno de olhos d’água de Conceição Evaristo.
Signótica, Goiânia, v. 28, n. 1, p. 23-42, jan./jun. 2016.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Maternidade da menina Natalina
[2016 – Quantos filhos Natalina teve? – Conceição Evaristo]

Albate Yurna

“Quantos filhos Natalina teve?” é um dos contos do livro Olhos


D’água, de Conceição Evaristo. No conto, a narração inicia na quarta
gravidez da Natalina, porém de seu primeiro filho. Conceição Evaristo
conta a história em terceira pessoa, com a característica de um narrador
omnisciente. Ela é uma das relevantes escritoras afro-brasileiras da
atualidade, uma figura de destaque na literatura contemporânea, na
qual segue publicando contos, romances e poemas.
Logo na parte inicial do conto, Conceição Evaristo apresenta uma
breve síntese dos pontos relevantes que pode despertar a curiosidade do
leitor para conhecer o final da história. Aliás, neste conto, ela chama logo
atenção através do título interrogatório “Quantos filhos Natalina teve?”,
depois seguindo com uma quebra de expectativa da quarta gravidez de
Natalina, que seria, no entanto, de seu primeiro filho, tendo homem
algum e pessoa alguma.
A construção narrativa é impressionante, pois nos leva juntos
nessa viagem de arte. A história com a personagem protagonista
feminina, Natalina. O convite para viajar nesse oceano de reflexão
sobre a maternidade, violência física e psicológica representada nessa
empreitada narrativa. Afinal, todos fomos convidados para mergulhar
nesse rio das palavras, para contemplar os detalhes deste pequeno
mundo composto de significados, horizontes de reflexões.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Conceição Evaristo quer que o leitor reflita sobre a realidade social
da família que vive na periferia, através da personagem protagonista.
Uma menina negra que mora com os pais e irmãos. Ela teve sua primeira
gravidez antes de completar 14 anos de idade, num envolvimento de
“pique-esconde” com o colega de infância, Bilico, na qual a menina-mãe
dá o filho a um enfermeiro. Na segunda gravidez, ela rejeita a proposta
de casamento de Tonho, namorado, e o rapaz leva a criança para sua
terra natal, pois ela não queria família alguma e nem filho. Na terceira
gravidez, em que foi contratada pelo casal para “fazer um filho para o
patrão” (EVARISTO, 2016, p. 47), por motivo da esterilidade da patroa.
A “criança nasceu fraca e bela, porém sobreviveu” (EVARISTO, 2016,
p. 48). Natalina foi, nessa ocasião, esquecida pelo casal, o que se tornou
um alívio. Apenas a sua quarta gravidez é que não lhe deixa em dívida
com pessoa alguma. Pois, na primeira, deve ao namoradinho, Bilico,
“o prazer da descoberta ao iniciar-se mulher” (EVARISTO, 2016,
p. 48); na segunda, ficou “devedora diante da inteireza de Tonho”
(EVARISTO, 2016, p. 48), esperava que um dia vivesse junto com ele.
Na terceira, condoeu-se da mulher “que almejava sentir o útero se abrir
em movimento de flor-criança”, razão pela qual, “doou sua fertilidade
para que outro pudesse inventar uma criança” (EVARISTO, 2016,
p. 48). Na quarta gravidez, ela teria um filho que “[...] seria só seu, sem
ameaça de pai, de mãe, de Sá Praxedes, de companheiro algum ou do
casal.” (EVARISTO, 2016, p. 49). Pois, foi o resultado de estupro de um
sequestrador desconhecido.
Conceição Evaristo traz uma construção narrativa com a
personagem feminina para representar a situação de família que vive
em uma comunidade. Logo no início do conto, a primeira gravidez de
Natalina aconteceu sem intenção por falta de orientação da família.
Ao descobrir-se grávida, sua razão de ódio e de vergonha, ela teria
de esconder do pai e do namorado para que não soubessem, pedindo

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


segredo à mãe. Porém, a mãe, por sua vez, queria levá-la a Sá Praxedes
(a velha parteira) para livrar-se da criança. “A mãe devia estar mesmo
com muita mágoa dela” (EVARISTO, 2016, p. 49). Conceição Evaristo
mostrou comportamentos das personagens para que nós entendêssemos
qual contexto social está sendo representado na narrativa.
Autora, narradora omnisciente, conhece pensamentos e
sentimentos das personagens, pois sabe da mágoa e da indignação da
mãe de Natalina, do questionamento de “como haveria de criar mais
uma criança?” (EVARISTO, 2016, p. 44), pois já havia muita gente – ela,
o marido e os sete filhos. “E agora teria filho da filha”? (EVARISTO,
2016, p. 44). Diante disso “o que fazer quando o filho da menina
nascesse”? (EVARISTO, 2016, p. 44). Além disso, a autora narra na
terceira pessoa por ter conhecimento total das personagens, ou seja,
tem conhecimento total dos fatos. Constrói a narração da melhor forma
que possa chegar ao leitor. Para representar o mundo criado por ela por
meio das personagens que permitisse ao leitor ampliar o seu horizonte
de reflexão. O tipo de comportamento representado nas personagens
mostra quão onisciente é o narrador, descrevendo minuciosamente os
comportamentos das personagens e as linguagens para elas atribuídas.
A menina-protagonista, quando descobriu que a mãe queria levá-la
à velha parteira para abortar, fugiu para longe da família com intenção
de salvar a criança, mesmo com a vergonha e o ódio que ela tinha da
gravidez. Pela sua personalidade, mesmo com a pressão psicológica da
mãe, não se sentiu fracassada e encarou firmemente os desafios. Longe
dos pais, com novos vínculos da amizade, não “descuidando” de tomar
os seus “chazinhos”. Nessa altura, ela já estava consciente de tudo. No
entanto, chegou a sua nova “vergonha”: engravidou. Foi ali e assim que a
segunda gravidez chegou. Tonho (o rapaz), ao saber, abraçou-a e repetia,
feliz, que ia ter um filho, e que formariam uma família (EVARISTO,
2016, p. 46). Com propósitos distintos, só poderia resultar num choro.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Pois Tonho chorou amargamente porque seu maior desejo, depois da
gravidez da menina, era formar uma família com Natalina.
Na terceira gravidez, o casal para quem Natalina trabalhava tem um
plano, pois a mulher tinha vergonha de ser estéril. “Um filho do marido
com Natalina (empregada) poderia passar como seu.” (EVARISTO,
2016, p. 47), já que a patroa e Natalina são parecidas, ambas de pele
negra. Uma alegria plena, observada quando “[...] a patroa pegou a mão
do marido e pousou-a lentamente sobre a barriga de Natalina. A criança
mexeu, os dois se abraçaram felizes.” (EVARISTO, 2016, p. 48). A cena
narrada faz referência aos “três grávidos”, a ilustração proferida pelo
narrador, à medida que ambos estão numa teia de maternidade.
Natalina, na quarta gravidez, “sorriu feliz” e “[...] alisou
carinhosamente a barriga. O filho pulou lá de dentro respondendo
ao carinho.” (EVARISTO, 2016, p. 43). A construção narrativa de
Conceição Evaristo convida o leitor a inferir o ponto central da história,
é parte introdutória do conto. E, durante a gravidez, Natalina “[...] estava
ansiosa para olhar aquele filho e não ver a marca de ninguém, talvez nem
dela. Estava feliz e só consigo mesma. O filho estava para arrebentar
no mundo a qualquer hora.” (EVARISTO, 2016, p. 50). Esta é a parte
final do conto e, para não ficar vago, mais uma vez, Conceição Evaristo
retomou as informações anteriores sobre o primeiro filho que seria só
dela, sem homem algum e sem pessoa alguma. Portanto, nesta parte,
na qual envolve a violência física, Natalina teria de sair de outra cidade
“[...] fugindo do comparsa de um homem que ela havia matado. Sabia
que o perigo existia, mas estava feliz. Brevemente iria parir um filho.
Um filho que fora concebido nos frágeis limites da vida e da morte.”
(EVARISTO, 2016, p. 50). As retomadas das construções anteriores para
desfecho do enredo aparecem nas partes finais do conto.
Na introdução do conto, além da autora trazer as informações
condutoras para o leitor, ela nos coloca as partes-chave da história logo

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


ao iniciar que “[...] aquele filho ela queria, os outros não. Os outros eram
como se tivessem morrido pelo meio do caminho. Foram dados logo
após e antes até do nascimento.” (EVARISTO, 2016, p. 43).
Durante o enredo, a autora apresenta uma síntese chamativa, ao
começar a narrativa logo na quarta gravidez, que poderia ficar no final
da história. Além disso, faz uma introdução que ilustra o foco central do
conto, a parte principal. Com isso, o leitor pode perceber a situação da
maternidade, assim como o título já nos convida a inferir.
Quanto à construção deste enredo, da quarta gravidez, para
mostrar uma violência física, a voz narrativa faz a representação da
cena introduzindo novas personagens figurantes, grupos de pessoas
desconhecidas. Os “[...] homens que chegaram de repente no barraco
de Natalina e a dominaram com força, perguntando-lhe pelo seu
irmão. Ela não sabia o que responder.” (EVARISTO, 2016, p. 49).
São personagens que apareceram apenas nesta cena de estupro,
para simbolizar uma violência física ou ilustrar uma cena de estupro
cometido à personagem-protagonista, Natalina. Um desconhecido, que
a sequestrou. “O carro seguiu em frente. Ela calculou que deveria ser
umas três horas da madrugada, eles haviam chegado em seu barraco
por volta da meia-noite. Estava fazendo muito frio.” (EVARISTO, 2016,
p. 49). Conceição, sendo narradora omnisciente, deixou implicitamente
o espaço do acontecimento para que o leitor faça inferência através
de alguns termos usados, como barraco, para referir-se ao contexto e
espaço o qual se trata o conto.
Pois o conto traz consigo a imagem implícita referente ao contexto
e ao espaço do enredo. Estes são demostrados através das expressões
proferidas pelo narrador, como aquele troço, aquela coisa mexendo
dentro dela (gravidez de Natalina) (EVARISTO, 2016, p. 43) e dos
comportamentos das personagens e suas ações. Caso da velha parteira
(era o dizer) que espantava crianças que não ficavam quietas. Outro

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


comportamento é a ingestão de chás, conforme acontece na primeira
gravidez de Natalina, quando a mãe decidiu “[...] tentar mais um pouco
de beberagens, se não desse certo, levaria a menina a Sá Praxedes. A velha
parteira cobraria um pouco, mas ficariam livres de tudo.” (EVARISTO,
2016, p. 44).
Para desconstruir o pensamento social da maternidade, Conceição
Evaristo criou no conto a nova visão de olhar a mãe como um ser
imperfeito, simbolizado na personagem Natalina para representar o
rompimento dessa visão social. Pois Natalina não queria outros filhos,
“[...] eram como se tivessem morrido pelo meio do caminho, foram
dados logo após e antes até do nascimento.” (EVARISTO, 2016, p. 43). Um
comportamento que rompe o padrão da mãe idealizada pela sociedade:
pessoa protetora cheia de amor e carinho pelos filhos; pessoa de
maioridade. Ao contrário, Natalina engravidou quando “ia fazer catorze
anos” (EVARISTO, 2016, p. 44). A relação mãe-filho é marcada pelo
ódio e vergonha, somente na quarta gravidez, a protagonista mostra
sentimento de uma mãe para o filho, ao mostrar carinho materno por
ele, o amor materno incondicional.
A construção narrativa proferida por Conceição Evaristo não
coloca a protagonista como a vítima, contudo evidencia as violências
psicológicas e físicas por ela sofridas. Mas trata-a como vergonha, culpa,
medo e dor, quando foi estuprada pelo assassino. Portanto, ela simboliza
a força e a resistência. Uma personalidade feminina forte e inabalável.
Além disso, simboliza a superação de menina e negra, por passar
pela pressão psicológica. O comportamento da própria mãe, por mostrar
o sentimento de mágoa pela gravidez dela. Na situação, ela teria de
fugir para longe da família, para livrar-se da velha parteira que matava
crianças.
Portanto, a questão da maternidade abordada no conto leva o
leitor a refletir sobre a mãe idealiza pela sociedade. A mãe ideal, pessoa

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


protetora e cheia de amor e carinho pelos filhos. A pessoa de maioridade
e casada na perspectiva da família tradicional. Aquela mãe perfeita que
daria a vida pelo filho, a pessoa de amor incondicional pelo filho, um
sentimento inexplicável. Ao contrário, Conceição Evaristo traz outra
mãe imperfeita, que já engravidou antes de completar 14 anos de idade,
uma adolescente. A mãe que odiou seus filhos, que nem sequer casou
com homem algum, doou seus filhos para outras pessoas. Porém, amou
seu quarto filho, fruto de estupro. Em suma, Natalina foi a mãe.
Este foi o convite ofertado pela autora, para viajarmos neste
mundo pequeno cheio de significados e reflexões. Esse descolamento de
escrevivência que tem por contribuição nos levar nesse universo infinito
de pensamento e sentido, que o leitor constrói a partir da relação com
o texto.

Referência

EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2016.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Contemplação do infraordinário
extraordinário
[2016 – Tem país na paisagem? – Marília Garcia]

Tatiana Percio

se a gente começa a escrever anotar e nomear o que acontece 


será que consegue fazer as coisas existirem de outro modo?
(GARCIA, 2016, p. 05).

Com este exercício de leitura, queremos instigar você, leitor,


a encontrar-se no mundo visto pelos olhos de Marília Garcia no
poema “tem país na paisagem?” que expande os sentidos e enriquece
as definições do que é poema. Nesta obra, a autora narra situações em
forma de um relato, um poema para além de ser lido, para ser visto. É
impressionante como uma obra literária (a mesma obra inclusive) nos
interpela em determinados detalhes, a cada leitura que fazemos focamos
naquilo que fala diretamente ao que estamos vivendo eminentemente,
Marília Garcia evidencia em seu poema o banal, o corriqueiro, o
“infraordinário” que neste poema narrado torna-se extraordinário.

gostaria de começar
contando o que aconteceu
no dia em que comecei a preparar esse texto, (GARCIA, 2016,
p. 02).

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Quando pensamos em uma viagem, elaboramos um roteiro para
definir lugares os quais queremos desfrutar e experienciar, usando
desse mesmo recurso ao relatarmos algo do cotidiano também vamos
discorrendo, narrando, reconstruindo as rotas, lugares por onde
passamos. A autora constrói muito mais que simplesmente um roteiro,
um atlas físico, esse atlas esboçado por ela reflete o tempo e os caminhos
do pensamento humano. Marília Garcia nos oferece a experiência de
percorrer o mapa traçado por seus pensamentos, emoções e vivências.
Esse movimento realizado por ela não é incomum, é algo inclusive
frequente, é costumeiro conectarmos ideias, emoções, histórias e
descobertas, ligando uma a outra com um fio invisível, construindo
interminavelmente o nosso atlas. Mas “como fazer para ver o que está
ali?” (GARCIA, 2016, p. 11).
O poema faz parte de um depoimento dado na Casa de Rui
Barbosa, no dia 06/04/17, na série Cultura Brasileira Hoje: Diálogos, ao
iniciar com uma epígrafe, Garcia cita o trabalho da artista americana
Rose-Lynn Fisher chamado “topografia das lágrimas”, a partir disso
constrói um atlas, um mapa com os caminhos percorridos por ela
desde o momento em que iniciou a escrita de “tem país na paisagem?”,
iniciando com sua visita a uma exposição de Debret em um museu
chamado “Chácara do céu” e a sua busca por um café no prédio ao lado
“Parque das ruínas” (o que posteriormente nomeou seu livro).

e fiquei pensando nesses dois nomes


*chácara do céu*
e *parque das ruínas* (GARCIA, 2016, p. 02).

Marília Garcia reflete sobre a antítese, a passarela tão tênue que


conecta o “céu” e a “ruína”. Em meio a esta observação recebe um e-mail
do professor da UERJ a convidando para participar de um evento (no

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


qual leu esta obra), neste momento percebe edificada a relação efêmera
entre “ruína” e “céu” racionalizando sobre a Universidade que viveu e foi
o “céu” e no momento, por falta de repasses, estava passando pela fase
de ruir. (Como é difícil encarar a ruína).

é difícil olhar as coisas diretamente,


ainda mais quando estão destruídas. (GARCIA, 2016, p. 03).

(E como são rápidas as conexões do pensamento) A reflexão sobre


o que define ruína a regressou para a exposição do Debret, e como o
olhar pode modificar o objeto, Marília  Garcia discute sobre como o
pintor teria sua visita embasada em pintar o ordinário, porém aos olhos
dele não tinham nada de costumeiro, neste instante há a consideração
sobre o olhar e ver.

perec fala da capacidade de olhar para o cotidiano, e para


os gestos mais simples como, por exemplo,
acordar, abrir os olhos lentamente
e ver. (GARCIA, 2016, p. 07).

Marília Garcia expõe no seu poema o trabalho [diário sentimental


da pont marie] que consiste em um diário fotográfico, todos os dias às
10h a autora faz uma foto do mesmo ângulo da Pont Marie (localizada
na França, onde residia), em busca de elucidar a questão “é possível
ver este lugar?” (GARCIA, 2016, p. 06), e o que ver neste lugar? Como
capturar por meio das fotografias o tempo “– seria possível ver a
‘passagem do tempo nessa repetição?’” (GARCIA, 2016, p. 08), sendo
assim, esse registro diário, esse ver despretensiosamente o corriqueiro,
teria o poder de eternizar o extraordinário do banal, algo que de uma

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


forma análoga foi feita por Debret em suas pinturas, uma jornada pelo
infraordinário. 

o extraordinário comove, é fácil de ser visto


a guerra, os acidentes, a morte
mas como ver o infraordinário? (GARCIA, 2016, p. 07).

O que nos impele a pensar sobre o tempo, uma imagem parada


no tempo quando recebe um olhar de outros tempos passa a ser
reescrita, reinterpretada partindo da experiência de quem a lê. No
poema, há a reflexão sobre esse movimento do tomar distância, uma
distância temporal. Para ler/ver com outros olhos precisamos por vezes
nos aproximarmos do objeto analisado, e por outros momentos, nos
distanciarmos, tendo em vista esse movimento, esse olhar transforma o
que parecia corriqueiro tornando-o extraordinário.

algo que já estava ali,


mas precisa de um olhar de fora para ser tornar
acontecimento extraordinário. (GARCIA, 2016, p. 11-12).

O extraordinário da obra em questão é como Marília Garcia, ao


escrever, torna visual concedendo concretude à fluidez do pensamento,
colocando um marco temporal no momento de sua reflexão, marco
temporal este que não é estável, pois, assim como o elemento observado
no texto, reflete a interpretação da autora,  este texto reflete a minha
interpretação e você que está lendo este texto e será leitor do poema
de Marília construirá outra interpretação, nos anexando a esta obra e
assim nós, leitores, construímos outro atlas agora de interpretações,
colocamos em movimento o tempo, parando diante do poema e das

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


imagens descritas por Marília Garcia, movimentamos e agregamos
novos sentidos a tudo que ela admiravelmente escreveu.

vocês também estão vendo?


ela caminha no meio dos carros
em plena luz do dia
e some. (GARCIA, 2016, p. 17).

Referência

GARCIA, Marília. Parque das ruínas. São Paulo: Luna Parque, 2018.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Para escrever uma nova história
[2017 – Meu amigo faz iiiii – Andréa Werner]

Juliana Vinhas

A minha história é de alguém que só passou a olhar de verdade


para as pessoas com deficiência depois dos 30 anos de idade. A da Bia,
não. Durante a minha infância e juventude, eu não convivi com pessoas
com deficiência. A Bia, sim. Eu não fui ensinada a lidar com as diferenças
e abraçar a diversidade. A Bia, foi. A minha reação ao me deparar com a
deficiência da minha filha foi de dor e rejeição. Acredito que a Bia teria
uma reação mais serena e de entendimento, porque ela olhou, conviveu
e observou. E é por isso que a Bia, uma criança, me ensinou tanto!
Sutileza, naturalidade e afeto. É isso o que encontramos na história
do Nil e da Bia, personagens do livro Meu amigo faz iiiii, da jornalista
Andréa Werner, mãe do Theo. Um livro com design atrativo ao público
infantil: colorido, bonito, chamativo ao mesmo tempo que delicado, sem
a presença de abstrações ou subjetividades nas figuras – o que poderia
dificultar o entendimento infantil, principalmente por parte do público
com algum tipo de deficiência intelectual – e praticamente todo escrito
em “caixa alta” (letras maiúsculas) – o que facilita para as crianças
em fase inicial de alfabetização, bem como crianças com dificuldade
de leitura de letras minúsculas ou cursivas. Apenas em alguns pontos
específicos a autora utiliza outro formato de letra para fins de destaque.
Além disso, a obra – mesmo sem falar a palavra “autismo” uma
única vez! – é uma fonte de conhecimento a respeito do autismo, não só
para as crianças, mas também para os adultos – nós, que não sabemos

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


lidar com as diferenças, que não fomos acostumados a interagir com a
diversidade, nós que, no fundo, somos os que mais precisamos aprender,
inclusive para ensinar aos pequenos.
Nós, que provavelmente não saberíamos lidar com alguém que
responde um “oi” com um “iiiii” e que sai logo em seguida, podemos
nos impressionar com a reação da pequena Bia:

Eu tenho um amigo chamado Nil. Ele é da minha sala


na escola. Logo que ele chegou, eu falei “oi”. Mas Nil não
respondeu “oi”. Ele passou a mão no meu cabelo, cheirou e
saiu falando... iiiiii. Fiquei curiosa. O que significava “iiiii”?
Será que ele falava outra língua? Fui até a professora e per-
guntei: – Tia, por que o Nil só fala iiiiii? – Porque ele ainda
está aprendendo a falar – ela respondeu. – Mas como va-
mos poder brincar se ele só fala iiiii? – Bia, se você me vir
sorrindo, o que vai pensar? – Que você está feliz! – Viu só
como basta observar? As pessoas falam de várias formas,
até sem usar as palavras! (WERNER, 2017, p. 4-8).

Li apenas este começo do livro e já levantei a cabeça. Escrevi um


texto mental – “[...] simplesmente um texto, o texto que escrevemos na
nossa cabeça quando a levantamos [...]”, nos diria Barthes (2012, p. 27)
– e todo ele falava sobre a forma como fomos criados e como criamos as
nossas crianças. Meio redundante. Fomos criados para não olhar, para
não questionar, para não “incomodar”, mas, no fim, nos tornamos um
incômodo: agentes da exclusão de uma diversidade que, envergonhada
e excluída, precisou se fazer invisível. Aí vem a Bia. Pura e curiosa. Ela
pergunta. Ao perguntar, rompe uma barreira, a do desconhecido. E mais
uma, a da ignorância. Agora, Bia sabe. Possui informações. Que inveja
de ti, Bia! Quisera eu tivesse perguntado; quisera eu tivesse aprendido
a observar!

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Se o desconhecido é o lar dos temores, o conhecimento é a
libertação. De posse de uma das coisas mais importantes que podemos
ter – a qual a humanidade vem distorcendo e, assim, retirando o seu
valor –, a informação, Bia seguiu em frente e começou a observar
o colega e fazer anotações. Descobriu muitas coisas sobre o menino,
como, por exemplo, que ele acha tudo gostoso e lambe até a borracha.
Achou estranho, mas percebeu que ela própria não gosta de borracha,
mas gosta de jiló, sendo que muita gente fala “eca” quando a vê comendo.
Ela percebeu que quando está feliz o Nil pula, mexe as mãos e faz muito
mais iiiii e lembrou que ela também faz barulhos quando está feliz e que
gosta de enrolar o cabelo nos dedos, assim como o Nil balança as mãos.
A menina também se chateou com algumas atitudes do Nil, mas
observando acabou por compreender:

Às vezes, quando falo com ele, parece que ele não me es-
cuta. Isso me deixava triste. Aí, um dia, eu notei que ele
observava as coisas quase como um cientista, todo concen-
trado. Acho que os ouvidos dele se fecham nessas horas.
(WERNER, 2017, p. 14-15).

Com tantas descobertas e com um entendimento mais vasto e


mais lindo do que ela mesmo pode compreender e imaginar, Bia toma
uma importante decisão:

Decidi me aproximar dele na hora do recreio. Ele estava


agachado brincando com a areia do play. Me abaixei perto,
enchi a mão de areia, comecei a soltar devagarinho e fiz...
iiiiii. E o incrível aconteceu: ele parou, me olhou e sorriu!
(WERNER, 2017, p. 22-23).

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Bia ganhou um amigo. Ao longo de todo o livro, ela não falou
e nem ouviu a palavra “autismo”. O Nil é autista, mas para Bia isso é
irrelevante. As diferenças importam; as semelhanças, também; mas as
brincadeiras, importam ainda mais. E, tudo isso, é muito natural.

Eu e o Nil somos diferentes em algumas coisas. Mas te-


mos muito mais coisas em comum: gostamos de brincar,
de passear, de subir nos brinquedos do play, de brigadeiro.
Também ficamos felizes e tristes. A professora tinha razão.
Basta observar!!! (WERNER, 2017, p. 26-27).

Impactada, levanto novamente a cabeça. Dessa vez, disposta a


escrever uma nova história, não só no papel, mas na vida, alimentada
pelo texto que interrompi tantas vezes ao levantar a cabeça, mas que
ao mesmo tempo retomei com tanto respeito após cada pausa. Posso
dizer, mais uma vez com a ajuda de Barthes, que “[...] foi essa leitura,
simultaneamente desrespeitadora, pois corta o texto, e enamorada, pois
volta a ele e dele se alimenta, que tentei escrever.” (BARTHES, 2012, p. 26).
Ao levantar a cabeça, pensei nas mães, como eu, que com uma
notícia, com um diagnóstico, podem perder o centro, o rumo, o chão.
De uma hora para outra, parece que a vida vira uma bagunça. E lá
está ela, a mãe, desestruturada, preocupada e cheia de preconcepções
e preconceitos, juntando os pedaços para ter força, ter coragem e,
sobretudo, ter amor. Ah, o amor... talvez nesse momento ele seja testado,
afinal todos os sentimentos estão emaranhados e confusos.
Já adianto: os desafios serão muitos; as conquistas serão motivo de
celebração; as lágrimas serão de tristeza e de alegria, mas, afinal, maternar
se trata disso. E maternar atipicamente, também. Há um longo caminho
pela frente que precisa ser percorrido com amor e coragem. No decorrer
desse caminho, entre pedras e tropeços, surgirão motivos, respostas e

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


sorrisos. E, em algum momento, vai surgir também a pergunta, interna
e intimista: se maternar é, obviamente, gerar um ser diferente de nós,
porque não nos preparamos para a diversidade?
Ao longo da existência humana, a pessoa com deficiência foi
tratada de várias formas – nenhuma delas positiva. A história nos
apresenta um legado de exclusão. Incluir ainda é algo bastante novo,
especialmente para gerações que não foram acostumadas a conviver
com as diferenças. Na infância das décadas de 80 e 90, por exemplo, as
crianças com deficiência não estavam nos parques e praças, nas ruas e
restaurantes, não estavam nas escolas. A invisibilidade gera a sensação
de inexistência. A sensação de inexistência gera o estranhamento ao se
deparar com alguém com uma (ou mais) deficiência(s). Entretanto, esse
alguém existe e tem o direito de estar inserido na sociedade, por ele e
pela própria sociedade, em nome do reconhecimento do quão diversos
somos. Se esse indivíduo estivesse inserido na sociedade antes, talvez
o choque de uma mãe ao se reconhecer atípica não fosse tão grande.
Então, a resposta é: não nos preparamos para o maternar diverso, porque
desconhecemos a pluralidade do mundo, presente em cada singularidade.
Por isso, a Bia, a Andréa e tantas outras pessoas e personagens podem
ser agentes de transformação, uma mudança interna, em cada um de
nós, e externa também, que “evolucione” a sociedade, ao mostrar que
é possível descomplicar o convívio com o que costumamos chamar de
‘diferente’. Naturalizar é incluir; incluir é natural.
Em dezembro de 2021, o Centro de Controle e Prevenção de
Doenças (CDC-EUA) atualizou os dados a respeito do Transtorno do
Espectro Autista. Segundo o documento, a prevalência é de uma pessoa
com autismo para cada 44 crianças na faixa etária dos oito anos de
idade nos Estados Unidos – um aumento de 22% em relação ao estudo
anterior, divulgado em março de 2020, o qual apontava um caso em
cada 54. É um número surpreendente (e estamos falando apenas de

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


um tipo de deficiência, vale lembrar que existem muitas outras). E, por
trás desse número, há seres humanos. Indivíduos a serem respeitados e
incluídos: por mim, por ti, por nós. Ainda bem que a Bia dividiu com
os leitores um entendimento tão grande sobre a vida, o ser humano e a
diversidade e que agora temos mais informações e sabemos ao menos
um pouquinho sobre inclusão, observação e, principalmente, afeto. “Ele
me ensinou sobre como é legal ver a areia cair e eu o ensinei a brincar de
pega-pega. Quando ele fica triste, chora e se deita no chão, eu me deito
ao lado dele e digo: ‘eu estou aqui, já vai passar’.” (WERNER, 2017, p. 24).

Referências

BARTHES, Roland. Escrever a leitura. In: BARTHES, Roland. O rumor


da língua. Tradução de Mario Laranjeira. 3. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2012.

WERNER, Andrea. Meu amigo faz iiiii. São Paulo: CR8 Editora, 2017.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Algumas impressões sobre
um poema popular
[2018 – Redes sociais – Bráulio Bessa]

Bruna Schaefer

O poema inicia afirmando: “Lá nas redes sociais, o mundo é bem


diferente” e então passa a apresentar diferentes argumentos negativos para
as redes: a solidão, falsidade, necessidade doentia de likes, o discurso que
não condiz com a realidade... enfim, inúmeros... – somente no final da
penúltima estrofe um ponto positivo e bastante peculiar é mencionado:
que as redes sociais têm uma garantia: poder receber um cordel do Bráulio
Bessa (curioso, né?) – e ao finalizar o poema o eu lírico aconselha que o
leitor/ouvinte escute esse clamor, que “viva a vida e o real”.
Para esse texto eu escolho o adjetivo “leve”. É um poema leve, de
fácil entendimento e identificação... quem nunca postou e esperou likes?
Quem nunca se perdeu no tempo usando uma rede social? Ou passou
minutos (se não horas) tirando uma foto bonita para postar? Enfim.
É um tema envolvente, com menções simples e que finaliza com um
toque especial: um pedido para que as pessoas passem a valorizar mais
sua “vida real”. Quem nunca pensou nisso? Quem nunca colocou um
objetivo novo na vida de usar menos as redes sociais? Todos sabemos
que isso é importante. O texto do Bráulio fala aquilo que a gente sabe,
apesar de fingir que não.
Afinal quem é esse autor? Bráulio Bessa Uchoa é um poeta
brasileiro que escreve e declama poemas populares em mídias digitais

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


e em livros. Primeiro, Bessa engajou um grande número de seguidores
e fãs de seus textos na internet e, posteriormente, passou a realizar
palestras sobre seu conteúdo e também a publicar livros.
O poeta denomina seus textos como “cordéis” e enfatiza a origem
relativa à cultura nordestina, mas não demora muito para que leitores
dos poemas de Bessa percebam que não são exatamente cordéis, ao
menos não fiéis ao gênero enquanto tal. Na verdade, o que o escritor faz
é misturar elementos do cordel com influências modernas da atualidade,
adaptando para uma versão compacta, simplificada e prática, chegando
a perder sua estrutura original para adequar-se ao gosto popular. Néstor
García Canclini chamaria esse processo de “híbridação” – “[...] processos
socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam
de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e
práticas.” (CANCLINI, 2011, p. XIX, grifo do autor).
E é isso. Hoje, alguns anos depois de conhecer os textos de Bráulio
Bessa compreendo ainda mais o quanto existe o conceito de cultura
híbrida e também como esses textos são (inevitavelmente) relativos à
cultura de massa. Eu conheci esse poeta através dos meus pais:

[...] um dia, inesperadamente, meu pai relatou-me que tinha


um ídolo poeta. Ele disse: “Eu e a sua mãe esperamos toda
sexta-feira um poema novo na TV e, de vez em quando,
também assistimos eles no Youtube”. Essa notícia fez meus
olhos brilharem, e eu precisava descobrir quem era aquele
sujeito, ou qual foi o meio, que apresentou poemas para os
meus pais, cumprindo uma tarefa que eu, estudante de Le-
tras, ainda não tinha alcançado. (SCHAEFER, 2019, p. 1).

Veja só como até a forma com que eu conheci esse autor está
extremamente ligada com a cultura de massa: os poemas atingiram meus
pais (não leitores, até então) através de um programa do horário nobre da

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


emissora Rede Globo e a plataforma de vídeos Youtube. Meus pais nunca
haviam se interessado em ler, em poesia, ou em gastar dinheiro com
livros. Mas foi a relação com esse autor e seu conteúdo que mudou tudo.
A partir disso passei a estudar os textos de Bráulio Bessa e para
isso realizei trabalhos de campo pessoais mesmo, queria ver com meus
olhos a reação do público diante desse poeta. Estive em duas palestras
em cidades diferentes: ambas com preço alto de entrada e extremamente
lotadas. Cerca de duas mil pessoas num ginásio na cidade de Carazinho
(RS), por exemplo. Filas inacreditavelmente longas para conseguir uma
foto e um abraço do poeta. Aplausos... muitos comentários como: “ele
mudou minha vida”; “parece que estes poemas estão falando por mim”
ou “esses poemas expressam aquilo que eu sinto, mas não costumo/
consigo dizer” sendo proclamados por pessoas aleatórias.
Não foram só os meus pais que esses textos impactaram. E tem um
porquê: são os discursos populares, as estratégias relativas à literatura de
massa e a performance presente. O sujeito lírico não é o Bráulio Bessa
Uchoa em si, mas sim um sujeito marcado por um enlaçamento de
discursos populares, como discursos religiosos, populares e relativos à
cultura de massa. Esse sujeito lírico “clama” e, assim como em peças de
mensagem, os temas apresentados, as súplicas feitas não são referentes
a informações ou conteúdos “novos”, ao contrário, são coisas que os
leitores/ouvintes já sabem, estão cansados de saber.
Diante disso, nos poemas de Bessa, o sujeito lírico é marcado pelo
clamor por atitudes e comportamentos que seus receptores já conhecem,
já sabem e já concordam. São poemas que apresentam temas comuns do
cotidiano, os quais estabelecem sentimentos, costumes, padrões morais
e comportamentos que se inserem no terreno de um sujeito “do bem”,
que vive uma vida, de certa forma, conservadora. Essas características,
comuns na formação social brasileira, são estabelecidas pelos indivíduos
que leem ou ouvem os poemas de Bessa.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


A leitura do poema “Redes sociais” me comprova, a cada releitura,
o quanto esses textos possuem conteúdo a ser estudado. Além disso me
reapresenta o poder da cultura de massa, que é descrita por Umberto
Eco como:

h) Os mass media oferecem um acervo de informações e


dados acerca do universo sem sugerir critérios de discri-
minação; mas, indiscutivelmente, sensibilizam o homem
contemporâneo face ao mundo; e na realidade, as massas
submetidas a esse tipo de informação parecem-nos bem
mais sensíveis e participantes, no bem e no mal, da vida
associada, do que as massas da antiguidade, propensas a
reverências tradicionais face a sistemas de valores estáveis
e indiscutíveis. (ECO, 2004, p. 44-48).

Bessa atrai e conquista muitos leitores com o poder da literatura


de massa. São inúmeras as pessoas (estudantes de graduação em Letras)
que me falaram, depois de conhecer o poeta por mim: “Bruna, os textos
do Bráulio me fizeram voltar a gostar de poema”, bem como é grandioso
o número de pessoas que vejo afirmando nas redes sociais que só passou
a ler pois os poemas do Bráulio Besso foram a motivação inicial.
Da mesma forma, dentro da academia também já recebi
comentários de colegas de estudos dizendo que isso não é poema,
mostrando que também existe uma visão conservadora que ainda
define a noção do valor de textos literários a partir de aspectos que não
valorizam a cultura popular.
O texto Redes Sociais me instiga a pesquisar mais sobre a noção de
valor de textos literários, sobre a significância da literatura popular/de
massa e sobre os discursos presentes ao longo do poema. Esses estudos
me levam a querer entender mais coisas: o gênero cordel, a relação entre

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


leitores e textos como esse poema e a literatura de massa como porta de
entrada para o mundo da leitura.
Eu já li tantas vezes que sei o poema de cor. Eu consigo ler e ouvir
na minha cabeça a voz do Bessa declamando o poema no Encontro da
Fátima Bernardes. Esse poema já me causou inúmeras sensações, já o
considerei engraçado, impactante, sem graça, incrível... enfim, desde
meados de 2018 foram muitas as fases e impressões. Hoje, agora, ele me
motiva a estudar mais sobre essas questões e é a impressão que prevalece
nessa fase da minha vida.

Referências

BESSA, Bráulio. Poesia que transforma. Rio de Janeiro: Sextante, 2018.

CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e


sair da modernidade. 3. ed. São Paulo: Edusp, 2011.

ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 4. ed. São Paulo:


Perspectiva, 2004.

SCHAEFER, Bruna. Poesia como Clamor: uma leitura de poemas de


Bráulio Bessa Uchoa. Chapecó: UFFS, 2019. Disponível em: https://
rd.uffs.edu.br/handle/prefix/3256.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Sobre os autores

Adriana Hoffmann – Mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade


Federal da Fronteira Sul (UFFS), doutoranda em Estudos Linguísticos
pela mesma universidade. Professora de Língua Portuguesa e Espanhol
no Ensino, Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal
Catarinense – Campus Videira.

Albate Yurna – Nasceu em Bigene, no interior da Guiné-Bissau, região


de Cacheu no norte do país, onde começou seus anos iniciais do ensino
fundamental, do 1º ao 5º ano. Em 2003, mudou-se para capital do país,
Bissau, ao pedido do seu tio para continuar seu estudo. Em 2012, concluiu
o ensino médio, no qual ficou por muito tempo sem condição financeira
para bancar um curso superior. Em 2014, passou no processo seletivo da
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(UNILAB), onde cursou Letras-Português. Atualmente, mestrando em
Estudos Linguísticos pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS).

Aline Majolo – Mestranda em Estudos Linguísticos na linha de Práticas


Discursivas e Subjetividades pela Universidade Federal da Fronteira
Sul. Especialista em Literaturas do Cone Sul pela Universidade Federal
da Fronteira Sul (2013). Especialista em Gestão Escolar pelo Centro
Universitário Leonardo da Vinci (2018). Licenciada em Letras

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Português-Espanhol e respectivas literaturas pela Universidade do
Oeste de Santa Catarina (Unoesc) – Campus de São Miguel do Oeste
(2010). Professora efetiva da rede estadual de Santa Catarina na Escola
de Educação Básica Professor Patrício João de Oliveira de Cunha Porã/
SC, atendendo nas disciplinas de Língua Portuguesa e Literatura e
Língua Estrangeira Espanhol; professora da disciplina de Fundamentos
da Comunicação Oral e Escrita, no SENAI/SC.

Ana Cristina Sander – Mestranda no Programa de Pós-Graduação


em Estudos Linguísticos (PPGEL), na Linha de Pesquisa Práticas
Discursivas e Subjetividades, pela Universidade Federal da Fronteira
Sul; Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES); Especialista em Ensino de Língua Inglesa,
pelo Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) e em Geração e
Operação de Negócios Internacionais, pela Universidade do Oeste
de Santa Catarina (Unoesc). Graduada em Letras Português/Inglês
e respectivas Literaturas, pela Unoesc; Cursou English Phonetics and
Phonology, na University of South Florida (USF); Bolsista do Rotary
Internacional, do Intercâmbio de Grupo de Estudos (IGE, 2001), na
Indonésia; Possui Experiência em docência nas disciplinas de Literatura
Inglesa (no ensino superior), Língua Inglesa (no ensino fundamental,
médio, superior, escolas de idiomas, pré-vestibular, aulas particulares e
cursos de extensão), e Sociolinguística (no ensino superior); No meio
corporativo, em empresa de tecnologia, atuou como revisora, tradutora
e gerente da área de marketing e comunicação.

André Marchon – Fluminense, aos 7 anos descobriu as letras e que


gostava muito de ler, indo, com frequência, à Biblioteca Infantil da
cidade de Nova Friburgo no Estado do Rio de Janeiro. Com alguma
dificuldade terminou seu nível médio em 1995 com 21 anos. Formou-se
em Técnico em Contabilidade. Aos 36 entrou na Universidade com a

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


ideia de que “aquele ambiente era só para os inteligentes”. Aos 39, em
2013 se forma em Letras. Possui Especialização em Língua Portuguesa.
No ano de 2014 começa a exercer a profissão de Professor de Português
na cidade de Londrina, no Paraná. De lá para cá não parou mais. Hoje,
2021 está prestes a concluir seu curso de Mestrado e com 47 anos, André
continua lecionando. Só que agora dá aula para os jovens de uma escola
chamada André Antônio Marafon, que se localiza na cidade de Chapecó
no oeste de Santa Catarina.

Ariel de Morais – Licenciado em Letras Português-Espanhol pela


Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), com início em
2016.1. Integrante de 2016 a 2018, como voluntário, do grupo de
pesquisas “Trânsitos literários” com linha de pesquisa em “Diálogos
transatlânticos”. Mestrando em Estudos Linguísticos com ênfase na
linha de pesquisa 1, Práticas discursivas e subjetividades, no PPGEL
(Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos), da Universidade
Federal da Fronteira Sul.

Bruna Schaefer – Mestranda no Programa de Pós-graduação em


Estudos Linguísticos da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS),
Campus Chapecó. Licenciada em Letras Português e Espanhol pela
Universidade Federal da Fronteira Sul. Pós-graduada em Educação
com ênfase em ensino fundamental II e Médio pela Universidade
Anhanguera (UNIDERP), Brasil.

Carolina Aita Flores – Psicóloga e Mestranda em Estudos Linguísticos


da Universidade Federal da Fronteira Sul.

Charliane Carla Tedesco de Camargo – Nascida e moradora de Seara,


professora efetiva do componente curricular de Língua Portuguesa na
rede estatual de ensino de Santa Catarina atua com turmas de Ensino
Fundamental II e Ensino Médio. Formada em Letras pela Universidade

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Paulista (UNIP) e pós-graduada em Educação de Jovens e adultos
pelo Instituto Federal Catarinense (IFC), cursa Mestrado em Estudos
Linguísticos pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS).

Estela Aparecida Damião – Atua como bibliotecária-Documentalista


na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Setor Palotina. Mestra em
História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE),
na linha de pesquisa Estado e Poder. Especialista em Gestão de Biblioteca
Escolar pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). É Bacharel
em Biblioteconomia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL);
e Licenciada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Maringá
(UEM).

Francine Mendes – Graduada em Letras Português e Espanhol, pela


Universidade Federal da Fronteira Sul – Campus Chapecó, atualmente é
mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos na
mesma instituição, além de atuar como professora de Língua Portuguesa
na rede pública de ensino.

Gustavo Von Ah – Nascido em Campinas-SP e há alguns anos se


aventura pelos lados sulistas do Brasil. Atualmente, é mestrando em
Estudos Linguísticos pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS).
Embora suas atenções profissionais, hoje, estejam todas voltadas à
linguística, tem na literatura um mundo novo, de descobertas e refúgios,
e a leva como companheira nas melhores horas.

Helen Cristina Núbias Pereira – Nasceu em 1982 em Caçapava do Sul,


no Rio Grande do Sul. Graduou-se em Letras pela Universidade Federal
do Pampa em 2011. Em 2016 mudou-se para Santa Catarina, onde
reside atualmente, na cidade de Quilombo. No ano de 2020 ingressou no
mestrado em estudos linguísticos da Universidade Federal da Fronteira

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Sul, onde atualmente é aluna do curso. Profissionalmente, é professora
da educação básica no estado de Santa Catarina.

Jéssica Caroline de Góis – Nascida em 1992 na cidade de Toledo, estado


do Paraná. Professora há 11 anos, graduada em Pedagogia e Letras
Português e Inglês, graduanda em Bacharelado em Psicopedagogia e
Mestranda em Estudos Linguísticos. Atua da educação infantil ao ensino
médio, é pesquisadora e aplicadora de jogos pedagógicos, auxiliando
indivíduos com dificuldades e transtornos de aprendizagem na fase
escolar.

Jozilaine de Oliveira – Mestranda no Programa de Pós-graduação em


Estudos Linguísticos da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS),
Campus Chapecó. Licenciada em Letras Português e Espanhol pela
Universidade Federal da Fronteira Sul.

Juliana Vinhas – Mestranda em Estudos Linguísticos (UFFS/2021),


especialista em Letras – Língua e Literatura (Unochapecó/2009),
graduada em Comunicação Social – Jornalismo (Unochapecó/2004),
escritora, palestrante e mãe atípica. Dedicada ao estudo e às práticas da
inclusão e acessibilidade. Autora do livro Mais Que Dois – o singular e o
plural em uma maternidade não típica (2018) e do site www.maisquedois.
com.br (2020).

Liliane Cristina Soares Sousa – Formada em Letras pela Universidade


Federal da Fronteira Sul (UFFS). No ano de 2016, foi professora de
Literatura, quando se encantou mais pela leitura de crônicas e textos
literários. Atualmente, é professora de Língua Portuguesa e mestranda
no curso de Pós-graduação em Estudos Linguísticos da UFFS.

Karina da Costa Santos – Estudante do Programa de Pós-Graduação


em Estudos Linguísticos, pertence ao povo Omágua/Kambeba do

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Alto Solimões – AM. E-mail: karina.csantos@estudante.uffs.edu.br /
karinamaony@gmail.com.br.

Leandro Machado Ribeiro Nunes – Mestrando em Estudos


Linguísticos, na linha de Práticas discursivas e subjetividades, no
programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos da Universidade
Federal da Fronteira Sul, campus Chapecó. Possui Licenciatura Plena
em Letras com habilitação em língua portuguesa e língua inglesa
pela Universidade Federal de Minas Gerais; é Bacharel em Relações
Internacionais pela Universidade Vila Velha e Especialista em Ensino
de Inglês pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais. Foi bolsista CNPq de Iniciação Científica em Linguística
Aplicada pela Universidade Federal de Minas Gerais. Possui experiência
na área de Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: Ensino
e aprendizagem de línguas, Análise de Discurso, Representações sobre
línguas e Identidades.

Mayara Bruna Saugo – Graduada em Letras Português e Espanhol


(Licenciatura) pela Universidade Federal da Fronteira Sul (2018), possui
pós-graduação em Língua Portuguesa pela Faculdade São Luís (2020).
Atualmente é mestranda em estudos linguísticos pela Universidade
Federal da Fronteira Sul e acadêmica do curso de Licenciatura em Letras
Inglês pela Uniasselvi. Atua como professora de Língua Portuguesa e
Literatura da rede estadual de ensino regular de Santa Catarina.

Moara Fernanda Lima Elger – Formada em Letras Português/inglês,


pela Unoesc Xanxerê. Pós-graduada em especialização do Ensino
da Língua Portuguesa pela UNOPAR. Atualmente, professora de
língua Portuguesa e Língua estrangeira/inglês. Também mestranda de
disciplina isolada na UFFS de Chapecó. Atua como professora desde
2012 em escola pública.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Roselaine de Lima Cordeiro – Doutoranda e Mestra em Estudos
Linguísticos pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) –
Campus Chapecó. Licenciada em Letras – Português e Espanhol pela
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Chapecó.
E-mail: roselainelcordeiro@gmail.com.

Saulo Gomes Thimóteo – Professor de Teoria Literária e Literaturas de


Língua Portuguesa desde 2011 e do Programa de Pós-Graduação em
Estudos Linguísticos desde 2020 na Universidade Federal da Fronteira
Sul (UFFS), lê e pesquisa o jogo literário como exercícios de linguagem
e significação múltipla. Articulando visões teóricas de Mikhail Bakhtin,
Walter Benjamin e Roland Barthes, vê, na literatura, as formas e as
máscaras que transitam deste mundo ao outro.

Tatiana Percio – Estudante egressa da Universidade Federal da Fronteira


Sul, cursando a disciplina isolada Discurso e leitura. Professora de
Língua Portuguesa na Rede Municipal de Ensino de Chapecó e Língua
Espanhola na Rede Estadual de Santa Catarina.

Valdir Prigol – Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul


(UFFS). Atua na graduação em Letras e no programa de pós-graduação
em Estudos Linguísticos. Tem doutorado em Teoria Literária pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Coordena o projeto de
pesquisa Nas malhas da leitura. Publicou os livros Leituras do presente
e Como encontrar-se e outras experiências através da leitura de textos
literários e organizou Por uma Esquizofrenia produtiva: da prática à
teoria, Leituras desauratizadas: tempos precários, ensaios provisórios (os
dois livros com textos de João Cezar de Castro Rocha) e Literatura e
Ciências Sociais: exercício de diálogos e contrastes (com Silvana Oliveira
e João Cezar de Castro Rocha). Em conjunto com Silvana Oliveira e
Evanir Pavloski, coordena a coleção Literatura Brasileira: identidades
em movimento pela Editora UFFS.

As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras


Argos Editora da Unochapecó
www.unochapeco.edu.br/argos
www.facebook.com/EditoraArgos

Título: As bagagens dos viajantes: compartilhando leituras

Organizadores: Saulo Gomes Thimóteo e Valdir Prigol

Coleção: Perspectivas, n. 62

Coordenadora: Rosane Natalina Meneghetti

Assistente editorial: Caroline Kirschner

Assistente comercial: Luana Paula Biazus

Editor de textos: Carlos Pace Dori

Divulgação: Amanda Guindani Hunttmann

Distribuição e vendas: Luana Paula Biazus

Projeto gráfico: Caroline Kirschner

Capa: Caroline Kirschner

Diagramação: Caroline Kirschner

Formato: PDF

Publicação: 2022
Perspectivas

www.unochapeco.edu.br/argos

Você também pode gostar