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Marcelo Barros Jobim 11

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Expressão utilizada por Luciano Oliveira em seu já consagrado ensaio com o
sugestivo título “Não Fale no Código de Hamurabi”, In: Sua Excelência o Comissário e
outros ensaios de Sociologia Jurídica, Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004, pp. 137-167.
No entanto, o professor não faz uma crítica direta aos manuais de Direito, mas à
tendência de se escrever nas monografias jurídicas “verdadeiros capítulos de manual”,
tratando de forma redundante sobre aspectos já exaustivamente conhecidos, como
princípios, conceitos, evolução histórica etc., sem uma abordagem diferenciada.
2
O mais grave é quando a autoridade acadêmica é, ao mesmo tempo, autoridade
institucional, que não só constrói teorias como também forma a jurisprudência que
conduz o Judiciário brasileiro.
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O “reverencialismo” é outro problema criticado por Luciano Oliveira em seu ensaio.
12 Existem Omissões Constitucionais?
Marcelo Barros Jobim 13
14 Existem Omissões Constitucionais?
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Marcelo Barros Jobim 19

Introdução

Dizer que algo é constitucional envolve mais de uma


compreensão. Tome-se como exemplo a pergunta título da obra de Otto
Bachof: Normas Constitucionais Inconstitucionais?4. Ela remete, na
primeira parte (normas constitucionais), ao status jurídico de uma
norma dentro de uma ordem normativa. Nos Estados de Constituição
escrita, por exemplo, tais normas são as que se encontram previstas em
um respectivo texto formal, oriundo de sua aprovação pelo Poder
Constituinte. Na segunda parte (inconstitucionais), o título da obra do
jurista alemão quer significar, diferentemente, o aspecto da invalidade
da norma em confronto com a Constituição.
Seguindo essa observação, falar de omissões constitucionais
pode refletir, por exemplo, tanto o aspecto da falta de previsão
normativa da Constituição, quando esta deixa de tratar sobre algum
tema, quanto a questão mesma da validade de uma omissão, se esta for
avaliada a partir dos preceitos constitucionais. No primeiro caso, a
expressão teria o mesmo sentido de quando se fala de omissões
legislativas, querendo significar a inexistência de lei sobre determinado
fato.
Mas o que interessa aqui é a segunda percepção, ou seja, a
que indica a validade constitucional, quando, no caso de omissão do
poder público, seria mais adequado falar de legitimidade ou
ilegitimidade da não atuação do poder competente em matéria que lhe
caberia agir, por expressa determinação constitucional. A ocorrência
dessa inação política ou administrativa, em setores muitas vezes
essenciais na |rea social, é comumente definida por “omiss~o
inconstitucional”,
o que provoca o questionamento sobre se existiria a versão
validamente constitucional dessa leniência dos órgãos encarregados da
adoção de políticas públicas eficientes.

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Publicado pela Editora Almedina Brasil, em 2009.
20 Existem Omissões Constitucionais?

Desde a Emenda Constitucional n.º 19/1998, a Administração


Pública passou a contar com mais um importante princípio,
oportunamente acrescentado no caput do artigo 37 da Constituição: o
princípio da eficiência. Embora a motivação política da inclusão deste
princípio tenha sido a de livrar o Estado dos entraves burocráticos e dar
à Administração Pública uma dinâmica de gerenciamento típica do setor
privado, o que se viu, na verdade, foi o efeito prático e inconfessável de
se retirar do sistema administrativo do Estado as necessárias amarras e
controles inerentes a um regime jurídico de direito público.
Pois bem. Discussões ideológicas à parte, o que se percebe é
que o princípio da eficiência, ao informar a atuação da Administração
Pública, não tem como alvo apenas as funções administrativas
subordinadas, mas também as funções constitucionais representadas
pela própria instrumentalização dos poderes da República. À guisa de
exemplo, não é só o fiscal de um órgão de proteção ao meio ambiente
que tem o dever de exercer o poder de polícia para, eficientemente,
sancionar o responsável por um desmatamento. O poder legislativo, por
sua vez, também tem o dever de elaborar leis que regulem
suficientemente a matéria, visando a uma mais ampla efetividade da
Constituição naquilo que ela prevê em termos de defesa do meio
ambiente.
Transfira-se essa questão para as áreas de saúde, educação,
habitação, saneamento básico, segurança pública etc., e compare com a
realidade brasileira: o que se verifica é que existe toda uma dimensão
social da Constituição que clama por efetividade. Até que ponto a
omissão do poder público, em cada um desses setores, pode ser
compreendida como coerente com toda essa normatividade
constitucional nitidamente imperativa?
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Ao se reconhecer a omissão como uma afronta aos


imperativos constitucionais, identificando o grau de comprometimento
dessa espécie de inconstitucionalidade, outro questionamento que
surge é quanto aos mecanismos institucionais que podem ser
empregados para se exigir do poder ou órgão omisso a adoção das
medidas necessárias. Nesse ponto é que entra a discussão sobre o papel
do Judiciário frente às omissões políticas e administrativas, buscando
identificar um viés político razoável da função jurisdicional.
Para isso, utilizam-se neste ensaio quatro capítulos que
procuram desenvolver uma sequência de ideias. Assim, logo no
primeiro capítulo, discutem-se as origens e os aspectos do absenteísmo
estatal, ou seja, da ideologia política liberal que sustentava a não
intervenção do Estado na ordem econômica e social. O que se procura
demonstrar, de forma sucinta, é como essa ideia teve seus reflexos no
Brasil e as implicações sociopolíticas que se formaram na atualidade.
No segundo capítulo, a noç~o discutível de um “Estado social”
é encarada a partir da formação de um conceito de prestações positivas,
no sentido de uma nova configuração política, idealizada pela noção de
um Estado de “bem-estar”.
Procura-se destacar como conceitos clássicos passam por um
processo de revisão, superando-se a própria noção de separação de
poderes e suas implicações no campo da política e da configuração das
funções estatais.
O terceiro capítulo analisa o impacto das omissões do poder
público em um Estado constitucional e as formas de solução desse
magno problema. Algumas distorções funcionais são apresentadas, a
título de conscientização sobre a necessidade de uma atuação razoável e
equilibrada da função jurisdicional, a qual não pode exceder o seu papel
constitucional no afã de intervir nos órgãos responsáveis pelas demais
funções estatais.
22 Existem Omissões Constitucionais?

Por fim, no quarto e último capítulo, o que se tenta


demonstrar é a importância da função jurisdicional para o controle das
omissões. Visto como uma questão de justiça constitucional, tal controle
será analisado a partir do entendimento de como se pode dar uma
conotação política ao direito de acesso à justiça, por meio,
principalmente, da promoção de ações constitucionais que visam à
proteção de tutelas difusas e coletivas.
O formato de ensaio usado para a este estudo se dá em razão
da apresentação um tanto sucinta de um tema tão relevante e muitas
vezes polemizado no meio acadêmico. Embora os ensaios teóricos
costumem ser uma abordagem mais livre do autor, sem os aprumos
metodológicos em termos de desenvolvimento de pesquisa, optou-se
aqui por um maior rigor na apresentação de referências bibliográficas,
até por uma questão de honestidade acadêmica com os autores citados.
Mas, como todo ensaio teórico, não se deve dispensar o rigor
lógico e a coerência dos argumentos, aspecto sob o qual o trabalho ora
submetido à apreciação do leitor certamente será avaliado com toda
acuidade. O objetivo principal é apenas o de levantar algumas questões
e contribuir modestamente com o debate, sempre comprometido com a
seriedade inerente ao tema abordado.
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Capítulo 1
Origens e aspectos do absenteísmo estatal e suas influências no
Brasil

Em primeiro lugar, é preciso observar que a palavra estado


é de origem latina e vem de status, que significa a situação ou a condição
de alguma coisa em um momento específico, e está diretamente
relacionada ao conceito de “est|tico”. Nesse ponto, é curioso observar
que uma das principais críticas ao Estado moderno se dirige exatamente
à formação de forças políticas que se encastelam no poder e que fazem
de tudo para ali se manter. Num viés formal e teórico, outra alusão ao
sentido estático de Estado político é a sua correlação com o conceito
moderno de Direito Positivo, enquanto direito juridicamente posto; a
existência de uma ordem jurídica de uma determinada época, que se
caracterizaria como pretensamente autossuficiente e completa.
Para Nelson Saldanha, que faz uma curiosa correlação entre
as três funções do Estado com as tríades teológicas, essa estabilidade se
apresenta em regimes monárquicos e aristocráticos, mas com a
democracia, surge a instabilidade:

Com democracia vêm os questionamentos:


discutem-se os fundamentos da autoridade,
reformula-se o papel dos militares,
problematiza-se a função econômica. Tudo
se problematiza, e o destino das sociedades
afasta-se cada vez mais do estável.
Entretanto, o fundamento da democracia,
ainda hoje, permanece vinculado ao ideal
iluminista do autogoverno (SALDANHA,
2003, p. 15).

A partir da lição acima, poder-se-ia vislumbrar uma espécie


de paradoxo do Estado democrático, representado no aparente conflito
entre a dinamicidade inerente à noção de problematização, iniciada pela
democracia e seus questionamentos, e estabilidade, presente no sentido
etimológico da palavra estado.
24 Existem Omissões Constitucionais?

Nas traduções de A República, de Platão, é comum


encontrarmos a palavra estado como uma referência a organização
política. Nas análises sobre uma das mais importantes obras do filósofo
grego, costuma-se dizer que Platão busca identificar a formação de um
“Estado ideal”. Porém, aquilo que é traduzido por estado, da obra
platônica, não é, originalmente, o status, do latim, mas, sim, a polis, do
grego. E mais: mesmo no latim, a palavra que se refere a uma
determinada organização social é civitas, e não status, e se hoje as ideias
de Estado e política estão associadas é devido ao antigo conceito de
polis, originado da Grécia.
Assim, o que se pode dizer, seguindo as observações de
Werner Jaeger, é que “as palavras ‘política’ e ‘político’, derivadas de
polis, ainda se mantêm vivas entre nós e lembra-nos que foi com a polis
grega que apareceu, pela primeira vez, o que nós denominamos Estado”
(JAEGUER, 2003, p. 106). Ainda segundo Jaeger, o referido termo grego
pode ser traduzido tanto por Estado como por cidade, mas é preciso ver
que a tradução da expressão grega especificamente para Estado se dá
não exatamente pela correspondência com a etimologia da palavra
latina, que vem de status, mas, sim, pela sua relação com o fenômeno
político que aí é representado, tanto hoje como na antiguidade,
guardadas as respectivas diferenças históricas.
O que se quer dizer é que quando se traduz polis por Estado,
dos escritos antigos, a exemplo de “A República”, de Platão, não se está
levando em consideraç~o a característica de “est|tico” (status), mas o
que se torna relevante é a referência a uma sociedade politicamente
organizada, fenômeno que aproxima o conceito de polis da Grécia antiga
e o de Estado da Era moderna.
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Percebe-se que a express~o “sociedade politicamente


organizada” traz implicitamente a conjunç~o dos fenômenos Poder e
Direito. Estes possuem dois pontos de vista diferentes, como tenta
demonstrar Bobbio (2003, p. 169), que, no entanto, não eliminam o
nexo indissolúvel entre seus conceitos. Mas o sentido da relação entre
Estado (poder) e Direito (organização), e seus respectivos conceitos,
não importa tanto para a caracterização de estabilidade ou de
instabilidade do processo político.
E aqui o paradoxo mencionado mais acima se resolve com a
própria lição de Nelson Saldanha. Como visto, para o autor, a
estabilidade estaria nos regimes mon|rquicos e aristocr|ticos, mas “o
destino das sociedades afasta-se cada vez mais do est|vel” quando
surgem os questionamentos da democracia. Ou seja, a questão se
resolve colocando o problema em termos de regime político e não
necessariamente de conceito de Estado ou de Direito.
Tanto isso é verdade que o professor da Faculdade de Direito
do Recife conclui com uma eloquente adversativa, ao observar a
manutenção do vínculo que o fundamento da democracia possui com o
ideal iluminista do autogoverno.
Dá a entender, o professor, que mesmo sendo a democracia
um regime político que permite o questionamento, quebrando a
estabilidade das monarquias e das aristocracias e inaugurando um
processo dialético de formação do interesse coletivo, ela foi
contaminada por
essa versão nociva do estável, pois ainda hoje seu fundamento
permanece vinculado ao ideal iluminista do autogoverno.

Democracia social x neutralidade política


26 Existem Omissões Constitucionais?

Não se compadecendo com uma expressão estática de


democracia, o princípio democr|tico “é um processo de continuidade
transpessoal, irredutível a qualquer vinculação do processo político a
determinadas pessoas” (CANOTILHO, 1998, p. 283) Dentro de uma
vis~o ampla do Direito, “a democracia é um processo din}mico inerente
a uma sociedade aberta e activa, oferecendo aos cidadãos a
possibilidade de desenvolvimento integral, liberdade de participação
crítica no processo político, condições de igualdade econômica, política
e social” (CANOTILHO, idem).
Ora, essa abertura política envolve não apenas uma
responsabilidade por parte dos integrantes da sociedade, mas cria
ainda uma perspectiva de comprometimento institucional com a
realidade do fenômeno social, em contraste com uma visão estreita
proposta pelo formalismo positivista. O que se quer dizer é que, neste
ponto, sociedade solidária se combina com Estado justo, formado por
instituições cujos agentes, políticos ou administrativos, devem estar
cientes (e conscientes) da realidade sobre a qual exercem suas funções.
Essa superação dos modelos formalista (de poder) e
individualista (de sociedade), ambos marcados, respectivamente, pela
neutralidade e pela indiferença com o “mundo da vida”, faz ressurgirem
ideias de atuação política analisadas pela perspectiva do problema a
ser solucionado, o que parece ter agora outra base de ideal político-
social: a solidariedade.
O que se pretende demonstrar é que o Direito já esteve
associado { formaç~o do sentido cl|ssico de “jurisprudência”, cuja
expressão parecia representar uma forma de conhecimento do
fenômeno jurídico que enaltece o seu caráter contingente e prático.
Mas esta noção pragmática e prudente deu lugar, a partir da
consagração dos ideais do Estado de Direito, e principalmente com o
surgimento do positivismo jurídico, a um modelo de ciência do direito
cujos aprumos metodológicos conservaram, um tanto paradoxalmente,
as características de abordagens teológicas do pensamento medieval
(SALDANHA, 1993), onde o método (a liturgia ou o ritual) se sobrepõe
ao conteúdo.
Marcelo Barros Jobim 27

Ao lado desse cientificismo, e como resultado dele em termos


políticos, o que se percebe é a construção de uma ordem jurídica
extremamente formalista e pretensamente neutra, e, ainda, de uma
concepção individualista de sociedade, cujos ideais modernos de
liberdade foram bastante distintos daqueles vivenciados pelos “antigos”,
na precisa análise de Constant (1997).
A origem do positivismo jurídico está representada,
historicamente, em precisos contextos políticos e sociais, como foi
sucintamente demonstrado por Bobbio. Como uma de suas principais
características, tem-se que o “processo de monopolizaç~o da produç~o
jurídica é estreitamente conexo { formaç~o do Estado absoluto”
(BOBBIO, 2006, p. 32). Mas essa monopolização se mostrava necessária
como forma de superar o modelo político medieval de fragmentação
política e de pluralidade de ordens jurídicas da era feudal.
E isto se repetiu, de certa forma, na consolidação do Estado
de Direito, ante a necessidade de se promover a uniformização do
direito, como superação, desta feita, ao modelo jurídico fragmentado da
sociedade estamental do ultrapassado Estado Absoluto, agora
denominado de Ancien Régime.
Entretanto, fazendo um paralelo entre o sentido de
pluralidade, que precedeu e impulsionou os modelos monopolizadores e
uniformes do Estado e do Direito modernos, e o de pluralismo que
caracteriza a sociedade contemporânea, verifica-se que são situações
completamente distintas. Saliente-se, ainda, que o principal fator que
impulsionou a criação de um modelo positivista do direito não foi tanto,
ou apenas, o receio da subjetividade do labor judicial, mas o caos
normativo que o precedeu. E isso foi bem observado por Bobbio, ao
afirmar que “Também os juristas alem~es, como os franceses e os
ingleses, eram premidos pela quantidade de material jurídico confuso e
disperso, mas sustentavam que a obrigação de trazer ordem ao caos
cabia a eles mesmos e n~o a um legislador mais ou menos sagaz”
(BOBBIO, 2006, p. 123).
28 Existem Omissões Constitucionais?

Assim, por exemplo, na Alemanha, a alternativa para o caos


foi um direito científico; tanto quanto o foi um direito codificado, para os
franceses; e um direito judiciário, para os ingleses, mas todos
conservando um caráter formalista, muito caro à perspectiva do
racionalismo jurídico em formação.
O que se percebe é que essa concepção formal do fenômeno
jurídico combinava com a fórmula política da igualdade perante a lei,
onde o Estado de Polícia se limitava aos serviços de segurança e Justiça,
visando à manutenção da ordem pública, e deixando para a sociedade os
ideais da autonomia da vontade e da liberdade contratual,
pavimentando a via do individualismo que caracterizaria o liberalismo
econômico.
Mas, qual era de fato o mote da liberdade política no período
da formação do Estado de Direito? E por que ela combinou um Estado
ausente com um Direito formal? Estas questões podem ser respondidas
a partir de uma breve análise das principais doutrinas filosóficas que
forjaram a evolução do pensamento político liberal.

A liberdade política

No ensaio Sobre a Liberdade, publicado em 1859, no qual


discutia a natureza e os limites do poder que legitimamente pode ser
exercido pela sociedade sobre o indivíduo, John Stuart Mill já observava
que o elemento mais marcante dos momentos da história com que “logo
ficamos familiarizados” é a luta entre a liberdade e a autoridade (MILL,
1985, p. 59). O filósofo inglês apresentava uma fórmula bastante
peculiar de limitação do poder estatal ao sustentar que o Estado
deveria se abster de intervir nas relações sociais, salvo quando fosse
para proteger direitos de terceiros.
Marcelo Barros Jobim 29

Para Stuart Mill, a única liberdade que merece este nome é


aquela de perseguir seus próprios bens por seus próprios meios,
enquanto não tentamos privar os outros do que é seu ou impedir seus
esforços para obtê-lo, pois cada um é o guardião de sua própria saúde
corporal, mental e espiritual (MILL, 1985, p. 72). Ainda influenciado por
questões referentes à separação entre política e religião, de certa forma
muito presentes ainda em sua época, Mill faz a seguinte observação:
No mundo moderno, a maior medida das
comunidades políticas e, acima de tudo, a
separação entre autoridade espiritual e
temporal (que colocou a direção da
consciência dos homens em outras mãos em
vez daquelas que controlavam seus assuntos
mundanos) evitou bastante uma
interferência da lei nos detalhes da vida
privada; mas os mecanismos da repressão
moral foram exercidos mais tenazmente
contra a divergência da opinião reinante
sobre a auto-estima do que mesmo sobre as
questões sociais; a religião, o mais poderoso
dos elementos que entraram na formação do
sentimento moral, tendo quase sempre sido
governado também pela ambição de uma
hierarquia, que visa controlar cada
departamento da conduta humana, ou pelo
espírito do Puritanismo (MILL, 1985, p. 72,
tradução livre).

O que parece sugerir, das palavras de Mill, é que a maior


preocupaç~o dos detentores do “poder espiritual” era com as
implicações internas da consciência individual, mais do que com as
questões externas referentes aos problemas sociais. Assim, a separação
entre a autoridade espiritual e a temporal tinha o propósito de libertar o
homem dessa interferência moralizante, de cunho muitas vezes
metafísico, para permitir o autocontrole individual. Ora, uma vez
formando-se um poder político com esse ideal “libertador”, nada mais
justo do que compreender a necessidade de o Estado se abster de
intervir nas relações sociais, bem como, e menos ainda, no universo
íntimo dos indivíduos.
30 Existem Omissões Constitucionais?

Muito antes de Mill apresentar a tese de que o Estado se


limitaria a intervir apenas quando as condutas dos indivíduos
atingissem de forma prejudicial o interesse de terceiros, a Doutrina do
Direito, de Emmanuel Kant, já anunciava, no ano de 1797, e como um
imperativo categórico, que se devia agir exteriormente “de modo que o
livre uso do teu arbítrio possa se conciliar com a liberdade de todos,
segundo uma lei universal” (KANT, 1993, p. 46).
Fazendo-se ainda uma viagem no tempo, vai-se encontrar o
pensamento do filósofo holandês Spinoza, que, já no século XVII,
entendia que apenas se poderia chamar de livre a um homem na medida
em que este vivesse sob a conduta da raz~o, pois assim “é determinado
a agir por causas que podem ser adequadamente conhecidas através de
sua natureza” (SPINOZA, 1994, p. 35), o que j| sugeria uma ideia de
liberdade no sentido de um agir sem interferências de um poder
externo.

Exercício aristocrático do poder

Abre-se um parêntese aqui para aproveitar outro


pensamento de Spinoza que será importante para a compreensão de
um tema mais adiante. Para o autor do Tratado Teológico-Político5, a
ideia da unidade do poder já estava presente na noção problemática de
sua concentração em um único homem, como ocorria nos modelos
mon|rquicos cl|ssicos. Implica dizer que “o poder de um só homem é
completamente incapaz de sustentar um tal encargo” (SPINOZA, 1994,
p. 63). E assim conclui o filósofo político holandês:
Daí provém que se a massa elege um rei,
este escolhe homens investidos de poder,
conselheiros ou amigos, aos quais entrega o
bem-estar comum e o seu próprio; de tal
maneira que o Estado que nós cremos ser
monárquico absolutamente, é na realidade
aristocrático; isto não de uma forma aberta,
mas oculta e, por isso mesmo, muito má
(SPINOZA, idem).

5
Existe mais de uma edição brasileira desta importante obra de Spinoza, dentre todas, cf. SPINOSA,
Bento de. Tratado Teológico-Político. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Apenas por curiosidade,
observe-se, ainda, que as edições trazem diferentes referências ao nome do filósofo, indicando Bento
de, Baruch de, ou Benedictus de, e ainda a grafia Spinoza com “z” ou Spinosa, com “s”.
Marcelo Barros Jobim 31

Como se percebe, Spinoza já abria espaço para uma


importante distinção entre titularidade e exercício do Poder, ao dizer
que, se nas monarquias o poder era de um só (no caso, o rei), este poder
não seria exercido unicamente por ele, mas por seus escolhidos, o que
dava à monarquia um caráter de aristocracia. Veja-se aí o embrião da
ideia de que o exercício do poder (uno em si mesmo, e em todas as
formas de governo) só vai ser mais precisamente compreendido no
sentido de uma distribuição de funções em diferentes cargos ou órgãos.
Nestes últimos, para a investidura de “poder”6 enquanto função, são
escolhidos amigos ou conselheiros, nas monarquias clássicas; ou, nas
Repúblicas, em tese, são nomeados ou eleitos cidadãos, em observância
à forma prevista na ordem jurídica.
Sendo assim, mesmo na República, o exercício do poder
político sempre seria também aristocrático, pois, como o povo, titular do
poder, não o pode exercer diretamente, as diferentes funções ou cargos
estariam distribuídos em grupos determinados, quando não
privilegiados, por serem oriundos de uma classe social cujos membros
teriam mais oportunidades de participar, de forma mais eficaz, das
disputas aos respectivos cargos, sejam eletivos ou por certames
públicos.
Sim, porque, na realidade brasileira, basta olhar as caríssimas
eleições e seus patrocinadores ocultos, bem como os concursos públicos
para carreiras de Estado, uma peneira quase sempre elitista, e o rico
mercado editorial de livros de Direito esquematizados e
descomplicados, a exemplo dos livros classificados como Aide-mémoire
franceses, sem falar nos respectivos “cursinhos” preparatórios e suas
mensalidades seletivas.

6
Como se verá mais adiante, na concepção moderna, o “poder” aqui deve ser entendido
no sentido de “poder de exercício” e não exatamente de titularidade mesma do Poder
político, a qual caberia sempre aos reis, nas monarquias, e ao povo, nas repúblicas,
ocorrendo, em ambos os casos, um exercício aristocrático do Poder.
32 Existem Omissões Constitucionais?

O fator econômico na formação do Estado Moderno

Pois bem, o que se pode concluir das


especulações filosóficas mais acima
analisadas é que a ideia central do
modelo liberal de Estado sempre
apresentou, pelo menos em tese, a
preocupação de se evitarem os
conflitos em sociedade, sendo a
intervenção estatal limitada apenas a
um imperativo de pacificação social,
não podendo haver essa intervenção
em outras áreas, principalmente a
econômica.

O “espírito do puritanismo”, que corrompia a liberdade de


consciência, foi substituído por um liberalismo que se expressava não só
na liberdade de crença como também na liberdade política, cujo maior
representante filosófico foi John Locke; e na liberdade econômica, tendo
em Adam Smith o seu maior ícone. A mais significativa representação da
separação entre autoridade e liberdade se deu quando o Estado se
separou da Sociedade, cujos membros se abstrativizavam em conceitos
fluidos como cidadãos, indivíduos etc. Daí para a formação de ideais que
lutavam por direitos individuais negativos foi um passo estreito, pois, ao
mesmo tempo em que a nova configuração de poder político libertava o
indivíduo das pressões de um Absolutismo, em conluio com uma Igreja
onipresente, o próprio poder no Estado de Direito deveria ser contido
para não ultrapassar as fronteiras da individualidade.
Mas toda essa transformação teve um protagonista
principal: o comerciante burguês. Detentor de um considerável poder
econômico, a burguesia necessitava associar esta condição a uma forma
de poder político mais compatível com seus interesses, os quais eram
limitados por uma ordem estabelecida em privilégios. Ao lado do clero e
da nobreza, era óbvio que nenhum outro estamento, ou estado, tinha
maiores condições para promover a oposiç~o { “ordem privilegiada”
absolutista do que a burguesia, ou “Terceiro estado” (Le Tiers état). Nas
precisas lições de Sieyés
Marcelo Barros Jobim 33

Quem então ousaria dizer que o Terceiro


estado não tinha nele tudo aquilo que
precisava para formar uma nação completa?
Ele é o homem forte e robusto com um
braço ainda acorrentado. Se lhe tirássemos a
ordem privilegiada, a nação não seria
alguma coisa de menos, mas alguma coisa de
mais. Então, o que é o Terceiro? Tudo, mas
um tudo obstruído e oprimido. Que seria ele
sem a ordem privilegiada? Tudo, mas um
tudo livre e próspero. Nada pode seguir sem
ele; tudo iria infinitamente melhor sem os
outros (SIEYÉS, 2002, p. 4, tradução livre).

Por essa razão, tendo o processo revolucionário de feição


liberal um móvel nitidamente econômico, é forçoso concluir que a
bandeira da luta burguesa, embora flamejasse com os ideais iluministas
da liberdade, igualdade e fraternidade, escondia em seus fios um valor
muito mais preponderante: a propriedade. O direito de propriedade já
tinha sido considerado como inato e sagrado por Locke, em seu
Segundo Tratado Sobre o Governo Civil, obra surgida no século XVII e
que está diretamente relacionada à Revolução Gloriosa, na Inglaterra,
em 1688.
É preciso observar que o conceito de propriedade em Locke
vai muito além de objetos materiais, pois significava, dentre outras
coisas, a propriedade de si mesmo, numa alusão à ideia de autonomia
individual.
Então, pode-se dizer que o aspecto absenteísta de Estado
esteve sempre atrelado a um conceito econômico de propriedade
privada, o que predominou em todos os modelos políticos liberais.
Desde as ainda salutares trocas de produtos e mercadorias
até o nocivo capital especulativo financeiro da época atual, o modelo
econômico capitalista é o grande crupié nessa imensa mesa de jogos de
azar que às vezes se torna o mercado, cuja mão invisível não esconde as
carícias ao poder político, e vice-versa.
34 Existem Omissões Constitucionais?

Na ideia de positivismo relacionada ao fenômeno jurídico


está incubado um viés, de natureza mais ideológica do que científica,
referente à noção de monopolização do poder e uniformização do direito.
Para que tudo e todos estivessem vinculados a uma mesma substância
que condicionasse o exercício do poder, bastava agregar essa substância
a um critério de uniformidade e monopólio. O exercício do poder
condicionado a essa substância foi traduzido na regra básica de
“limitaç~o do poder”, que tanto tem, por um lado, um sentido de libertar
o indivíduo, como, por outro, tem também um sentido de afastar as
barreiras políticas do caminho, para justamente permitir a passagem na
consolidação dos novos ideais.
Mas, quem define essa nova substância? Nessa química da
política, o grande manipulador dos elementos só poderia ser a facção
vitoriosa em uma revolução romantizada por valores que
proporcionassem a adesão do maior número, embora escondendo o
metal que representava o verdadeiro elemento de manipulação. Para se
conseguir essa adesão, valia tudo, inclusive anunciar ideias abstratas de
igualdade natural de todos, o que veio a ser mais tarde questionado por
correntes que sustentavam a desigualdade real em face de um evidente
aspecto pluralista da sociedade.

A conveniência da neutralidade política

Mas o que hoje se chama de pluralismo já existia na formação


do Estado de Direito de feição liberal. A única diferença é que a classe
burguesa, ao sair vitoriosa nas revoluções, forjou um ideal de
uniformidade ou de igualdade perante a lei que, na verdade, era a
difusão de seus próprios valores. Basta ver que a representação da
sociedade era condicionada, no início, a critérios censitários. Só os que
detinham propriedade e certa formação cultural, o que só se podia
encontrar entre a burguesia, é que podiam votar e ser votados. Tanto
isso é verdade que a luta por um processo eleitoral mais legítimo se
baseava na questão do sufrágio universal e na fórmula igualitária do
“one man, one vote” (SILVA, 2012, p. 353).
Marcelo Barros Jobim 35

Isso significava que todos estavam vinculados aos ideais


burgueses e não que todos eram iguais de fato, pois os demais setores
da sociedade não estavam incluídos, mas cooptados, enlatados numa
mesma lógica formal de igualdade. Assim, fica fácil entender porque o
Estado liberal não intervinha.
Ora, se a nova engrenagem política funcionava de acordo com
a própria lógica do sistema, ent~o nada mais conveniente do que “laisser
faire, laisser passer”. Quando o Estado liberal atuava ou atua de alguma
forma no mercado, n~o est| “intervindo”, mas apenas gerindo o
interesse de um patrão sempre vigilante. Daí o acerto do ditado popular:
“O que engorda o gado é o olho do dono”.
Em termos de Brasil, são oportunas e contundentes as lições
de Raymundo Faoro, ao demonstrar o viés patrimonialista do poder
político em vários momentos da história brasileira. Nesse sentido, assim
se expressa o autor de Os Donos do Poder:

O comércio dá o caráter à expansão,


expansão em linha estabilizadora, do
patrimonialismo, forma mais flexível do que
o patriarcalismo e menos arbitrária do que o
sultanismo. No molde comercial da
atividade econômica se desenvolveu a
lavoura de exportação, da colônia à
República, como a indústria, seja no
manufaturismo pombalino, no delírio do
encilhamento, quer nas estufas criadas
depois de 1930 (FAORO, 2000, p. 363).

A combinação entre a mão invisível e a dissimulada


neutralidade do poder político resultou numa ordem social
extremamente injusta, palco de um embate quase sempre desigual entre
capital e trabalho.
A formação de um conceito de Estado de Bem-Estar (Welfare
State) não só traz a identificação de novas e mais abrangentes
atividades estatais, como sinaliza a transformação dos ideais da
denominada primeira dimensão dos direitos, de índole negativa, para
uma segunda dimensão, que prima por uma igualdade material,
propugnando uma atuação mais positiva do Estado e criando o seu
modelo intervencionista.
36 Existem Omissões Constitucionais?

No início, a urgência de um “Estado Social” teve tanto suas


versões em uma espécie de “capitalismo moderado”, na forma de uma
social democracia, quanto de um socialismo extremista, de feições
totalitárias. Assim, o pós-Segunda Guerra mundial fez surgir uma nova
dimensão de direitos, denominados de direitos da fraternidade, que se
caracterizam pela proteção do gênero humano, cujos valores foram
impressos na Declaração Universal dos Direitos dos Homens, de 1948, a
qual é considerada por Bobbio o fundamento histórico dos direitos
fundamentais contemporâneos:

A Declaração Universal contém em germe a


síntese de um movimento dialético, que
começa pela universalidade abstrata dos
direitos naturais, transfigura-se na
particularidade concreta dos direitos
positivos, e termina na universalidade não
mais abstrata, mas também ela concreta, dos
direitos positivos universais (BOBBIO, 1992,
p. 30).

O esforço de efetividade desses “direitos positivos


universais”, o que, para Bobbio, deveria ser a principal preocupaç~o do
jurista, se configura tanto na criação de documentos jurídicos
internacionais, a exemplo dos tratados e convenções, quanto na inclusão
desses valores universais na sistemática constitucional dos Estados.

Administração burocrática: dois pesos e duas medidas

Na era contemporânea, principalmente após a dissolução das


antigas Repúblicas Socialistas Soviéticas, precedida da Queda do Muro
de Berlim, em 1989, um dos pontos ideológicos mais criticados era o da
irreversibilidade de um processo neoliberal como um dos fatores
inerentes à nova onda da globalização e seu viés exclusivamente
econonômico.
Marcelo Barros Jobim 37

Mas, hoje, a necessidade de um agir estatal não está


relacionada apenas à garantia de pleno emprego e à valorização do
trabalho humano, dois valores sociais que, em boa hora, vieram orientar
a regulamentação constitucional da Ordem Econômica no Brasil (Cf. art.
170 da Constituição).
A ordem econômica disciplinada na Constituição de 1988 não
possui um caráter de socialização, mas se reveste de uma forma
eminentemente capitalista, pois se apoia na apropriação privada dos
meios de produção e na livre iniciativa. Entretanto, como a estabelecer
um equilíbrio entre forças ideológicas, o dispositivo constitucional
contempla valores sociais como o trabalho humano e a busca do pleno
emprego, sem falar da disposição específica da ordem social, posta no
título VIII da Constituição.
Dessa forma, a presença do Estado se mostra cada vez mais
complexa quanto mais se avolumam as necessidades de uma sociedade
pluralista, exigindo não só uma variedade como uma especialidade dos
distintos setores da Administração Pública. No entanto, na década de
1990, ideias como a flexibilização do direito do trabalho e até a
desconstitucionalização dos direitos sociais foram aventadas como uma
das bandeiras da política neoliberal, numa forma cínica de agregar essa
ideologia às ideias inovadoras de modernidade.
Não bastasse isso, no ano de 1998, por meio da Emenda
Constitucional 19, foi acrescido à Constituição o princípio da eficiência,
no rol dos princípios da Administração Pública. À primeira vista,
visando superar os entraves burocráticos do sistema administrativo, tal
princípio procura dar ao setor público uma forma de gerenciamento
típica das empresas privadas.
Entretanto, a EC 19/98 esconde uma tentativa sub-reptícia de
se retirar da Administração Pública os indispensáveis mecanismos de
controle inerentes ao regime de Direito Público.
38 Existem Omissões Constitucionais?

Mesmo quando se fala hoje em “declínio do Estado”, observa-


se, como faz Martin Van Creveld, que até nos Estados desenvolvidos, a
exemplo dos Estados Unidos, a promessa de superar um aparato
burocrático é flagrantemente dissimulada, pois, em vez disso, o que se
vê é mais presença do Estado com seu fardo tribut|rio, “apesar de todos
os cortes que ocorreram na previdência social a
partir da posse dos republicanos em 1981” (VAN CREVELD, 2004, p.
587):
Assim, fica provado que tanto às claras e
descaradamente quanto às escondidas, a
maioria dos Estados modernos está exigindo
mais e mais, embora ofereça cada vez
menos. Na melhor das hipóteses, compensa
com o desenvolvimento da infra-instrutura
e oferecendo condições para um vigoroso
crescimento econômico [...] (VAN CREVELD,
idem).

O que o professor de História da Universidade Hebraica de


Jerusalém aponta no sentido da ideia de declínio do Estado está
relacionado, principalmente, à análise da quebra de braço entre o poder
político, que se apresenta como legítimo, e as forças terroristas, que
desafiam a estrutura tradicional do Estado. Tal fenômeno ocorre,
principalmente, nos países centrais da cultura ocidental, os quais vivem
ameaçados por um fundamentalismo religioso forjado no seio de uma
teocracia árabe, mas tais conflitos trazem em sua base divergências de
natureza econômica, como em todos os conflitos entre nações, acrescida
apenas de uma insuspeita dominação cultural por parte das grandes
potências do Ocidente.
Mas, quanto ao Brasil, a análise de Van Creveld que cai como
uma luva é a de que a maioria dos Estados modernos está exigindo mais
e mais, embora ofereça cada vez menos. Com uma das cargas tributárias
mais injustas do mundo, em contrapartida, o poder público brasileiro,
nas três esferas federativas, ainda oferece aos contribuintes, à guisa de
exemplo, o sucateamento das rodovias, em matéria de infraestrutura, e
a precariedade dos serviços públicos de saúde e de educação, em
matéria de direitos sociais.
Marcelo Barros Jobim 39

Sem contar o poço sem fundo da corrupção, o brasileiro


precisa pagar duas vezes se quiser ter acesso a um serviço público
eficiente: de um lado, os impostos; de outro,
os planos de saúde e as instituições privadas de ensino que, embora
público, é explorado pela iniciativa privada com o permissivo
constitucional (art. 209).
Nesse meio termo, o governo recebe multiplicado, pois aufere
renda dos tributos pagos tanto pelas pessoas físicas quanto pelas
pessoas jurídicas que fornecem os respectivos serviços públicos, os
quais, em tese, deveriam estar sendo ofertados, pelo menos de forma
mais democrática, pelo próprio poder público, em razão justamente dos
tributos pagos pelos cidadãos.
Do absenteísmo à negligência, o Estado brasileiro acompanha
o ritmo evolutivo da grande maioria de seus parceiros mundiais, sob a
batuta de uma faceira ideologia neoliberal, que prega a ausência estatal
na distribuição dos lucros, mas uma presença incontinenti na
socialização dos prejuízos. Um ritmo que segue promovendo, ainda,
uma paradoxal combinação entre uma presença forte e exigência cada
vez maior, no campo político, e uma reduzida ou quase nenhuma
contrapartida, no campo social.
Marcelo Barros Jobim 41

Capítulo 2
O “Estado social”, seus afazeres domésticos
e os instrumentos judiciais de controle

A cada vez maior presença do Estado representa, na


pertinente observaç~o de Ivo Dantas, “uma segunda fase na evoluç~o
dos direitos individuais que passa de uma visão clássica absenteísta,
para uma visão positivista, de aç~o” (DANTAS, 2007, p. 51). Essa
presença estatal, típica do constitucionalismo contemporâneo, inaugura
uma integração entre o econômico e a “Ideologia do Direito
Constitucional enquanto processo” (DANTAS, ibidem – itálicos do autor).
Isso significa dizer que o Direito Constitucional não vê na
Constituição um mero objeto de aplicação, mas de concretização, o que,
em razão da dimensão programática (e pragmática) do
constitucionalismo social, implica um verdadeiro processo de
conformação político-jurídica.
Nesse contexto, a posição dos destinatários das decisões
políticas é de uma expectativa quanto à atuação do Estado, de quem se
espera que cumpra seus deveres e funções, utilizando-se do poder como
um instrumento para se atingir os respectivos fins, e não
necessariamente como um fim em si mesmo. Por essa razão, as inações
estatais vão ser encaradas sempre sobre uma perspectiva negativa,
sempre como um desvalor político, demonstrando os vícios
institucionais na sua forma mais clara: a omissão.
Para que se entenda melhor o sentido negativo de omissão,
consulte-se, mesmo, o dicionário, onde se pode encontrar a seguinte
definiç~o a partir do correspondente verbo no infinitivo: “Omitir v.t.d.
1. Deixar de fazer, dizer ou prescrever; não mencionar: omitir um fato.
2. Descuidar-se de fazer: Não omitiu nenhuma providência. 3. Deixar em
esquecimento. 4. N~o agir quando se esperaria que o fizesse”
(FERREIRA, 2008, p.592).
42 Existem Omissões Constitucionais?

Assim, como bem observado por Nelson Saldanha, embora


passível de diversas acepções, o termo omissão, principalmente quando
relacionado às prementes atividades estatais, funciona num sentido
específico: “[...] à ideia de omitir-se, ou não fazer, agrega-se outro
componente. Ou seja, trata-se de deixar de fazer algo devido, algo
constitucionalmente prefigurado como exigível” (SALDANHA, 2011).
Visando à superação do formalismo do Estado liberal, o
Estado social promoveu a substituição de uma concepção neutra pela de
um intervencionismo estatal, o que resultou, como já salientado, não só
em uma suspeita concepç~o de “capitalismo moderado”, mas também
em alguns modelos políticos totalitários. Os totalitarismos stalinista e
hitlerista, nas precisas análises, como a de Hannah Arendt e a de Eric
Hobsbawm7, proporcionaram um encontro entre os extremismos tanto
de esquerda quanto de direita na curva realizada pelo peso dos opostos.
Em reação principalmente a estes últimos, começaram a surgir no
pensamento político os discursos humanista e solidarista, o que se
refletiu em teorias jurídicas de feições menos formais e mais próximas
da realidade social. Assim, a perspectiva de um Estado democrático e
pluralista, a partir de uma visão substancial da igualdade e da
solidariedade, exige uma reformulação dos conceitos clássicos do
positivismo jurídico.
A abordagem tradicional sobre a passagem do Estado liberal
para um modelo de Estado dito “social” geralmente identifica alguns
contrastes, não só com relação ao papel do Estado frente à ordem
econômica e social, mas também com relação à própria sociedade
frente aos problemas surgidos em seu meio. Os ideais de igualdade e
liberdade, variando, respectivamente, nos seus sentidos formal e
material, bem como de indiferença e de participação política,
delinearam uma posterior e definitiva compreensão da necessidade
de participação de todos para a consecução de objetivos comuns.

7
Cf. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989;
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
Marcelo Barros Jobim 43

Neste ponto, é importante destacar que a participação da


sociedade, representada num conceito de responsabilidade social, não
retira, por óbvio, a noção de dever do Estado em cumprir suas metas
políticas.

O esforço de realização da Constituição

O constitucionalismo social se caracteriza, em termos


normativos, pela inclusão nas Constituições de normas ditas
programáticas relacionadas principalmente aos direitos sociais. Tais
normas, na maioria das vezes, se apresentam na forma de princípios,
cuja abrangência e maior grau de generalidade, fizeram com que, no
início, não fossem consideradas como normas propriamente jurídicas.
Atrelado a uma perspectiva tradicional do Direito, de feição privatista e
patrimonialista, o pensamento jurídico, em meados do século XX, ainda
não conseguia de desvencilhar de uma ideia de direito positivo
vinculada a regras jurídicas com uma definição um tanto quanto
precisa de seu suporte fático.
Mas ninguém pode deixar de reconhecer que foi o
surgimento dos princípios na sistemática constitucional que fez o
Direito Constitucional dar uma verdadeira guinada epistemológica.
A combinação de elementos jurídicos e políticos, a
positivação de valores humanos, o estabelecimento de metas para o
Estado etc., como características de uma nova ordem, de base
constitucional, impulsionaram a ciência jurídica para descoberta de
métodos cada vez mais arrojados de interpretação e aplicação do
direito.
Em que pesem as discordâncias de boa parte da doutrina
com a intromissão dos princípios na sistemática jurídica, muitas delas
pertinentes, em face dos abusos mesmos provocados por um modismo
principiológico, o que se observa é que a aplicação dos valores e
objetivos constitucionais não parece prescindir de uma análise do
alcance dos princípios.
44 Existem Omissões Constitucionais?

Mesmo numa crítica ao que chama de “fascínio pelos


princípios constitucionais e a ponderaç~o entre eles”, Marcelo Neves
observa que mesmo juristas que não aceitam ser rotulados de
“neoconstitucionalistas” têm destacado o papel dos princípios e do
sopesamento (NEVES, 2013, p. 175).
É que o objetivo principal de se interpretar uma Constituição
é buscar o máximo de sua efetividade. A maioria das normas
constitucionais não pode ser vista pela óptica de um formalismo que
limite o seu campo de compreensão, o que pode vir a comprometer os
esforços de uma realização eficaz da Constituição.
Diz bem Canotilho (1998, p. 1126) que realizar a
Constituição significa tornar juridicamente eficazes as normas
constitucionais, uma vez que toda Constituição tem uma pretensão de
eficácia. Mais ainda quando essas normas trazem matérias
consideradas imutáveis pelo Poder Constituinte ou que exigem a
adoção de medidas que instrumentalizem essa eficácia.
Para uma melhor compreensão do problema, pode-se fazer
uma distinç~o entre “realizar” e “concretizar” a Constituiç~o.
A primeira expressão indica a noção proposta pelo jurista
português, acima mencionada, de adotar providências que tornem
efetivas ou juridicamente eficazes as normas constitucionais. Nesse
caso, é de se reconhecer que os preceitos da Constituição estão
carentes tanto de complementação legal quanto administrativa, sendo
exigível do poder competente a adoção das providências necessárias.
Marcelo Barros Jobim 45

A segunda expressão implica a ideia de aplicação da


Constituição naquilo que ela já traz como possibilidade jurídica de
eficácia, ou seja, quando as matérias ali previstas possuem em si
mesmas a força de produzir efeitos. E mais: é importante observar que,
dentre estas normas com possibilidade jurídica de eficácia, estão as
normas constitucionais que receberam as devidas complementações
por meio das medidas prontamente adotadas pelo poder público. Uma
vez realizada a Constituição por meio, por exemplo, de uma lei
elaborada pelo Legislativo que complementa o sentido da norma
constitucional, é vez agora de concretizar a respectiva matéria. Veja
que a ideia de concretização relacionada à aplicação da Constituição
envolve o nível de abstração e a alta carga axiológica de suas normas,
que se apresentam na forma de princípios e regras.
No âmbito de uma eficácia jurídica reforçada, no plano da
normatividade constitucional, os direitos fundamentais possuem uma
posição privilegiada frente às demais normas constitucionais, pois se
alargam os sentidos da norma, buscando não só a harmonização com os
valores do sistema, como também a realização fática dos preceitos e
ideais nela descobertos.

A superação de um modelo de Estado

Pois bem. Como dito linhas atrás, a responsabilidade social,


ideia que pode, inclusive, ser extra-
ída do princípio constitucional da solidariedade, não exime o Estado de
cumprir seus deveres, principalmente na sistemática de um
constitucionalismo social. É aqui que surge a necessidade de se observar
a relação entre poderes, funções e deveres estatais. Se a
desconcentração do poder político foi a marca registrada do surgimento
do Estado de Direito, a transformação desse poder em meras funções ou
mesmo deveres pode ser nitidamente observada a partir do
reconhecimento da necessidade de o Estado cumprir determinadas
tarefas e alcançar certos objetivos.
46 Existem Omissões Constitucionais?

Tanto essas tarefas quanto esses objetivos vêm agora


previstos na Constituição, por meio, principalmente, de normas-
princípios que delineiam toda a dimensão social do processo político. A
injunção do Estado, ou do poder político, a uma perspectiva
intervencionista e provedora, no sentido de realizar os anseios de uma
sociedade plural, o que sempre caracterizou uma ideologia socialista, é
que justifica a express~o, um tanto quanto inapropriada, “Estado social”.
Paradoxalmente, a perspectiva marxista de superação do
Estado para a consolidação de um socialismo futuro vem sendo
desafiada por seu extremo oposto, ou seja, cada vez mais Estado que,
agora, em contraste com sua versão absenteísta liberal, se apresenta
como um aliado poderoso das questões sociais. Não que esse pretenso
“socialismo de Estado” se equipare {s teses de Marx. Longe disso. Mas o
que se impõe nesta fase do constitucionalismo contemporâneo é não
exatamente a superação do Estado, mas, sim, ante o reconhecimento da
irreversibilidade do fenômeno, a busca de mecanismos que
incrementem as metas estatais por meio de uma maior participação
popular e de uma revisão do conceito de “poderes” aplicado ao universo
político democrático.
O que se questiona é se a superação do Estado pelas vias
revolucionárias, como a proposta por um marxismo mais ortodoxo, iria
conseguir superar também os deslizes éticos próprios da natureza
humana. Aquilo que se convencionou chamar de “pessimismo
antropológico” est| expresso na precisa e sempre atual leitura de
Montesquieu:

A liberdade política só se encontra nos


governos moderados. Mas ela nem sempre
existe nos Estados moderados; só existe
quando não se abusa do poder; mas trata-se
de uma experiência eterna que todo homem
que possui poder é levado a dele abusar; ele
vai até onde encontra limites. Quem diria!
Até a virtude precisa de limites.
(MONTESQUIEU, 2000, p. 166).
Marcelo Barros Jobim 47

A lição de Montesquieu, no sentido de que “tudo estaria


perdido se o mesmo homem exercesse os três poderes”
(MONTESQUIEU, 2000, p. 168), não pode ser desconsiderada. Ela sugere
que todos os problemas do poder político têm origem no homem e sua
tendência ao abuso do poder, o que lança a discussão para o terreno
árido das teorias psicológicas, ou mesmo antropológicas, que
eventualmente possam trazer subsídios para a compreensão do ato de
governar.
Assim, quando o pensamento marxista parte da tese de que a
comunidade solidária primitiva, onde não existia a ideia de propriedade
privada, foi suplantada pelo egoísmo capitalista, que é a base do Estado
moderno, parece esquecer as fases pré-capitalistas que, mesmo muito
além de uma comunidade primitiva, já apresentava a noção de certo
“egoísmo político”. Basta citar os senhores feudais da Idade Média, a
nobreza indiferente das monarquias absolutas etc.
O que se quer dizer é que o capitalismo não criou o egoísmo,
embora tenha proporcionado um campo de manifestação mais evidente
ante as investidas em busca do lucro pelo lucro ou a exploração do
homem pelo homem, o individualismo e até o consumismo estéril da
época contemporânea.
Na experiência brasileira, e recordando mais uma vez Faoro,
é preciso observar que sempre o patrimonialismo estatal esteve
incentivando o setor especulativo da economia, predominantemente
voltado ao lucro como jogo e aventura. Sempre, este nosso
patrimonialismo esteve interessado no desenvolvimento econômico
sob o comando político, satisfazendo imperativos ditados pelo quadro
administrativo, com seu componente civil e militar (FAORO, 2000, p.
363 e 364).
Mas, quando se trata especificamente das críticas marxistas
ao “Estado burguês capitalista”, o que se observa, algumas vezes, é que
elas tendem a apresentar elementos que não demonstram com clareza
como esses vícios seriam superados com a mera extinção do Estado,
ideia que corre o risco de se tornar uma espécie de dogma ideológico,
olvidando a natureza dialética do pensamento desenvolvido, de forma
48 Existem Omissões Constitucionais?

insuperável, pelo próprio filósofo e economista alemão. Uma questão


difícil de resolver é se o sistema de controle adotado num modelo
socialista, inspirado numa leitura talvez apressada de Marx, após uma
eventual extinção do Estado, seria diferente do modelo político até
então existente, e como, ainda, esse modelo suplantaria os deslizes
éticos da classe dirigente e mesmo dos membros da comunidade.
Na verdade, as teses de Marx devem ser encaradas mais pelo
seu preciso olhar crítico sobre o processo político, o que é
diametralmente oposto a dogmatismos. Em sua Carta a Arnold Ruge,
Marx mostra explicitamente que sua ideia era no sentido de uma
“reforma da consciência”, mas sem qualquer espírito doutrin|rio:

Nada nos impede, portanto, de vincular


nossa crítica à crítica da política, ao ato de
tomar partido na política, ou seja, às lutas
reais, e de identificar-se com elas. Nesse
caso, não vamos ao encontro do mundo de
modo doutrinário com um novo princípio:
“Aqui est| a verdade, todos de joelhos!”
Desenvolvemos novos princípios para o
mundo a partir dos princípios do mundo.
N~o dizemos a ele: “Deixa de lado essas tuas
batalhas, pois é tudo bobagem; nós é que
proferiremos o verdadeiro mote para a
luta”. Nós apenas lhe mostramos o porquê
de ele estar lutando, e a consciência é algo
de que ele terá de apropriar-se, mesmo que
não queira (MARX, 2010, p. 72).

Da citação acima, pode-se sugerir que Marx não criou o


marxismo, não pelo menos o que este se tornou na pena de algumas
mentes mais “inovadoras”. Na perspectiva de um marxismo dogmático,
a superação do Estado e a vinda do Reino se confundem numa lógica
abstrata que combina ideologia com utopia, comprometendo o
desenvolvimento de novos princípios para o mundo a partir dos
princípios do mundo. Na atualidade, dentre as “luta reais” com as quais
devemos nos identificar, como sugere Marx, está a luta pela
consolidação de um Estado legítimo, onde a legitimidade se caracteriza
não apenas pelo respaldo popular do poder político, mas também pela
participação ativa da sociedade nas várias formas de decisão de caráter
geral.
Marcelo Barros Jobim 49

Como esboçado mais acima, o que se impõe nesta fase do


constitucionalismo contemporâneo, ante o reconhecimento da
irreversibilidade do fenômeno da presença cada vez maior do Estado, é
a busca de mecanismos que incrementem as metas estatais, num
esforço de torná-las não só legítimas, mas, sobretudo, exequíveis. O que
se sugere é uma maior participação popular e uma revisão do
conceito de “poderes” na perspectiva de um Estado constitucional
assoberbado de afazeres domésticos, numa sociedade pluralista e,
acima de tudo, carente, como a brasileira.

A “superação” dos poderes

Talvez a melhor releitura da ideia de “separaç~o dos


poderes”, típica do Estado de Direito liberal, atualizando-a para a
realidade do Estado (social) constitucional, deva partir da tese
elaborada por Karl Loewenstein. Para o constitucionalista alemão, a
revisão do conceito deve iniciar com a substituição da expressão
separação dos poderes por separação das funções do Estado,
identificando um critério funcional para a organização do poder estatal.
Transcreve-se abaixo um trecho da importante obra de
Loewenstein, de grande interesse para o presente trabalho, e que traz
uma perspectiva bastante discutida, embora muitas vezes não fielmente
creditada ao seu autor:

Lo que en realidad significa la así llamada


“separación de poderes” no es, ni m|s ni
menos, que el reconocimiento de que por
una parte el Estado tiene que cumplir
determinadas funciones – el problema
técnico de la división del trabajo – y que, por
otra, los destinatarios del poder salen
beneficiados si estas funciones son
realizadas por diferentes órganos: la
libertad es el telos ideológico de la teoría de
la separación de poderes. La separación de
poderes no es sino la forma clásica de
expresar la necesidad de distribuir y
controlar respectivamente el ejercicio del
poder político.
50 Existem Omissões Constitucionais?

Lo que corrientemente, aunque


erróneamente, se suele designar como la
separación de los poderes estatales, es en
realidad la distribución de determinadas
funciones estatales a diferentes órganos del
Estado. El concepto de “poderes”, pese a
lo profundamente enraizado que está,
debe ser entendido en este contexto de
una manera meramente figurativa. En la
siguiente exposición se preferirá la
expresión “separación de funciones” a la
“separación de poderes” (LOEWENSTEIN,
1979, p. 55 – negritos nossos).

A noç~o de que o conceito de “poderes” deve ser entendido de


uma maneira “meramente figurativa” parece combinar com a
perspectiva do processo constitucional como uma ficção jurídica, nas
lições de Serra Rad, citado por Ivo Dantas, uma vez que “todas
manifestaciones especialmente de los órganos constitucionales, son
manifestaciones de um único, em esencia inseparable, poder del Estado”
(DANTAS, 2012, p. 60). A ideia de processo constitucional como ficção
jurídica parte do pressuposto de que “n~o é possível um conflito do
Estado consigo mesmo”, o que leva ao entendimento de que o exercício
da função jurisdicional em matéria que envolve a aplicação da
Constituição nada mais é do que um mero efeito instrumental referente
à atuação do próprio Estado em uma de suas respectivas manifestações.
Essa atuação ocorre como se existissem diversos titulares
com direitos próprios e como se estas “partes” estivessem frente ao
Estado enquanto titular da jurisdiç~o, “pero en realidad es la única
persona jurídica Estado y el único poder del Estado que demanda, es
demandada y juzga” (Serra Rad apud DANTAS, idem).
Essa múltipla face do Estado não significa que exista mais de
um poder, muito menos que exista mais de um Estado numa mesma
organização política, o que seria uma aberração teórica, mas apenas
representa um mecanismo de ordenação das atribuições do poder
político em um modelo democrático, com pretensões de legitimidade.
Marcelo Barros Jobim 51

O modelo clássico de separação dos poderes, inspirado em


Montesquieu, já não se ajusta à realidade atual, pois na configuração do
processo político em um Estado constitucional, do qual se exigem
prestações positivas, nem há separação nem há poderes. Não há
separação, pois a relação entre os órgãos que exercem os deveres
políticos é de colaboração (SILVA, 2012, p. 109), implicando uma
combinação entre independência e harmonia entre eles. Não há
poderes, pois, na esteira do pensamento de Loewenstein, a ordenação
do poder político, em sua unidade, se dá pela distribuição de
determinadas funções estatais a diferentes órgãos do Estado.
A primeira concepção, representada no conceito de
separação, teve inicialmente um papel relevante de desconcentração do
poder político, em oposição ao modelo do denominado Ancien Régime
que se caracterizava não só pela concentração do poder nas mãos de um
monarca absoluto, como também pela personificação deste poder na
figura do soberano8. Entretanto, em Estados ainda presos a uma
vertente patrimonialista de poder como o Brasil, essa ideia de
“separaç~o” resultou hoje na construç~o de suntuosas fortalezas
institucionais, onde a ideia de “poder” se cristaliza em cada um dos
órgãos encarregados das funções estatais.
Essas verdadeiras trincheiras, travestidas de poderes
políticos, podem ser observadas pela forma algumas vezes hostis na
relação entre as instituições ou, e o que é mais grave, pela completa falta
de sintonia entre as funções estatais. Em matéria de política criminal,
por exemplo, os “poderes” Executivo e Judici|rio atuam como se
vivessem em mundos apartados: de um lado, as decisões judiciais
determinando medidas privativas de liberdade, cuja demanda atropela,
de outro lado, os órgãos administrativos encarregados de executar e
gerenciar tais medidas. Resultado: uma superlotação carcerária que
transforma os presídios brasileiros em verdadeiros depósitos de seres
humanos, pessoas que não foram incluídas no sistema de políticas

8
Atente-se para o fato de que soberano não era exatamente o monarca, mas a qualidade do poder que
ele detinha, ou seja, um poder super omnes, que quer dizer sobre todos. Tal característica de poder
soberano, que surgiu com o Estado Moderno, poderia ter a representação em um monarca, como
queria Hobbes, ou em uma assembleia, como sustentava Locke.
52 Existem Omissões Constitucionais?

sociais, inexistentes de fato, e terminaram colhidas pelo sistema


repressivo. Uma forma grotesca de marginalização oficial que veio
acrescer-se ao já preocupante processo de marginalização social,
causado pelas crônicas omissões do poder público.
A perspectiva ativa (e proativa) do Estado constitucional
atual exige a colaboração entre os órgãos políticos para uma maior
otimização quando do exercício de suas respectivas funções, todas elas,
em última análise, provenientes de uma mesma fonte de poder legítimo,
objetivada na Constituição e subjetivada na soberania popular.
Por outro lado, e quanto à segunda concepção, a ideia de
poderes associada a cada um dos órgãos encarregados da função
política, cria uma autoimagem aristocrática ou elitista dos
representantes da sociedade. Essa representação, seja por meio de
escolha pelo voto, seja por nomeação, tem de ser encarada sempre sob o
prisma democrático, devendo ser vista com reservas a tese de que o
aspecto “contramajorit|rio” inerente ao processo de investidura de
membros de tribunais, por exemplo, comprometeria a legitimidade
democrática destes órgãos
(BARROSO, 2009, p. 384). Em todo caso, se o processo segue os critérios
estabelecidos constitucionalmente, a forma de investidura é
democrática, e a função exercida sempre estará condicionada à
titularidade do poder político definida na figura normativa do “todo
poder emana do povo”.

Muito além de um direito de escolher representantes

Como bem observado por Luís Roberto Barroso, expressões


concretas da atuação da função judicial no Brasil já têm sido objeto de
debate mais profundo nos últimos anos, a exemplo do próprio controle
de constitucionalidade e a possibilidade de invalidação de leis e atos
emanados do legislativo. O professor da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro completa, ainda, afirmando:
Marcelo Barros Jobim 53

Outro domínio polêmico, relacionado ao


controle de políticas públicas – i.e., o exame
de adequação e suficiência de determinadas
ações administrativas e o suprimento de
omissões – vem ganhando atenção
crescente. São amplos os espaços de
intersecção e fricção entre o Judiciário e os
outros dois Poderes, potencializando a
necessidade de se demarcar o âmbito de
atuação legítima de cada um. Como
intuitivo, não existem fronteiras fixas e
rígidas, havendo uma dinâmica própria e
pendular nessas interações (BARROSO,
2009, p. 385).

O que se evidencia é que o caráter democrático da


representação não está exclusivamente na sua origem, mas também, e
principalmente, no processo da representação ou na forma como os
agentes políticos exercem suas respectivas funções.
De que adianta, por exemplo, reconhecer a representação
política como democrática apenas nos agentes eleitos diretamente pelo
povo, se estes agem distanciados dos anseios da coletividade, quando
não visando apenas aos próprios interesses?
Um dos grandes intelectuais brasileiros na passagem do
século XIX para o século XX, Oliveira Viana, já possuía uma concepção
bastante crítica do modelo democrático exclusivamente vinculado ao
fenômeno eleitoral:

O principal numa democracia [...] é a


existência de uma opinião organizada, de
que o voto seja apenas uma manifestação
espaçada: periódica e não principal. O modo
principal, mais significativo, mais efficiente,
de manifestação da opinião organizada é
essa sorte de pressão moral exercida pelas
agitações populares, quando racionalmente
conduzidas, como no caso da campanha
abolicionista, em que vemos a opinião do
povo dominar a opinião do Parlamento
recalcitrante pela força exclusiva de uma
pressão moral – e não por meio de qualquer
manifestação eleitoral (VIANNA, 1927, p. 93
e 94).
54 Existem Omissões Constitucionais?

O autor de O Idealismo da Constituição era, na visão de


Francisco Weffort, “um conservador, mas também um inovador”
(WEFFORT, 2006, p. 257), pois, ao mesmo tempo em que tinha um
pensamento progressista como o expressado na citação acima, era a
favor de uma centralização do poder, muito próxima da teoria do
“elitismo democr|tico”, que pretendeu sustentar teoricamente a
ditadura de 1964-1985.
Assim como para esta teoria, o poder, para Oliveira Viana,
ainda segundo Weffort, era visto “mais como um meio necessário para
que o povo fosse educado e organizado para o exercício da democracia”
(WEFFORT, 2006, p. 259).
Para Francisco Wefort, esse “autoritarismo instrumental”,
que se propunha como provisório, desaparecendo quando atingisse seu
objetivo, sobreviveu n~o apenas ao Império, mas “também { Primeira e
à Segunda Repúblicas, estabelecendo-se como parte da cultura política
brasileira” (WEFFORT, 2006, p. 259).
De qualquer forma, o foco da representação democrática
especificamente na escolha popular de seus representantes, de uma
maneira ou de outra, reflete a doutrina da duplicidade, “alicerce do
antigo sistema representativo na época liberal” (BONAVIDES, 2007, p.
219). Desta doutrina, como bem leciona Paulo Bonavides, “se extraem
com invejável perfeição lógica todos os corolários do sistema
representativo que tem acompanhado as formas políticas consagradas
ou chanceladas pelo velho constitucionalismo liberal”, dentre eles “a
total independência do representante” (BONAVIDES, 2007, p. 218). Sim,
porque, se por um lado, enaltece-se o caráter democrático da escolha,
por outro lado, negligencia-se a responsabilidade do representante para
com os interesses dos representados, o que se observa por meio do
exercício mesmo da função política.
Marcelo Barros Jobim 55

Em contraste com essa doutrina da duplicidade, surgiram no


século XX tendências que “têm apoio teórico nos fundamentos da
representaç~o concebida segundo a regra da ‘identidade’, que em boa
lógica retira ao representante todo o poder próprio da intervenção
política animada pelos estímulos de sua vontade autônoma”
(BONAVIDES, 2007, p. 218). Este modelo seria caracterizado pela
reprodução fiel da vontade dos mandantes pela vontade do
representante, “como se fora fita magnética ou simples folha de papel
carbono”.
Embora reconhecendo a impossibilidade dessa “identidade”,
Paulo Bonavides, com apoio teórico em Rousseau, observa que ela
todavia pode ser tomada como um símbolo ou juízo de valor, “j| para
autorizar e autenticar e legitimar as mudanças que se vão operando no
âmago das instituições representativas, desde a sua implementaç~o”
(BONAVIDES, 2007, p. 219).
Como um dos elementos plausíveis dessas mudanças, pode-se
apontar a ideia de que a legitimidade de um cargo político não está
apenas na forma de investidura, mas também na forma de seu exercício.
O condicionamento da natureza democrática de um cargo político ao
primeiro aspecto parece ser uma distorção ainda bastante arraigada no
próprio meio acadêmico. Tal compreensão entrava a formação de um
conceito mais amplo de representação democrática, relacionando-a
sempre ao processo de conduç~o de alguém ao “poder”, mas
esquecendo de vincular o elemento democrático também ao exercício
das funções políticas.

O “contramajoritário” pode ser democrático


É neste ponto que, mesmo um órgão de representação
democrática, em termos eletivos, como o Legislativo, se torna
antidemocrático quando, por exemplo, se encontra numa situação de
inconstitucionalidade por omissão. O caráter ilegítimo da omissão de
um órgão legitima por sua vez a atuação de outro órgão no sentido de
compeli-lo à ação, sempre na forma constitucionalmente prevista, tudo
em nome da efetividade da própria Constituição, o que jamais
56 Existem Omissões Constitucionais?

caracterizaria qualquer ofensa a ela. Se o Estado constitucional é


marcado pelo intervencionismo que atinge as relações sociais, visando
superar os desequilíbrios socioeconômicos, como deixar de reconhecer
a legitimidade de uma intervenção entre os órgãos estatais para
controlar as próprias distorções institucionais?
Ainda mais quando essa intervenção esteja prevista na
própria Constituição, criando mecanismos legítimos de relação entre os
órgãos políticos, no aspecto da responsabilidade de atuação judicial,
executiva ou legislativa, para fins de conformação das metas
constitucionais. Tal intervenção não pode ser minada por uma pretensa
observância a um ideal ultrapassado de separação de poderes, o que se
caracteriza mais como uma tibieza institucional, travestida
plasticamente de um processo hermenêutico realizado em nome da
“defesa” da Constituiç~o, mas que, na verdade, apenas perverte toda a
sistemática nela mesma prevista no sentido de sua própria efetividade.
O respeito ao clássico princípio da separação de poderes não
pode se converter em uma espécie de indiferença institucionalizada,
típica das ideologias liberais baseadas numa perspectiva de
neutralidade política9.
A tese de que o ativismo judicial é incompatível com o regime
democrático, sob o argumento de que aqueles que não foram escolhidos
pelo voto não têm legitimidade, tem uma consistência apenas aparente.
É que, embora os juízes não tenham legitimidade de origem, “de certa
maneira tem-na adquirida com a aprovação social de seu
comportamento” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2002, p. 95 – itálicos no
original). Mais do que uma mera “aprovação social”, é preciso
reconhecer o papel do Judiciário numa época em que o princípio da
separação de poderes tem de se adaptar às exigências de uma sociedade
aberta, a qual é marcada por uma participação social ativa no processo
político.

9
Curiosamente, a ideia de neutralidade política do liberalismo só tem validade para as questões
sociais, mas não para “salvar” uma instituição bancária com dificuldades financeiras. A regra, nesses
casos, é simplesmente de socialização dos prejuízos.
Marcelo Barros Jobim 57

Noutras palavras, impõe-se re-interpretar


esse velho dogma para adaptá-lo ao
moderno Estado constitucional, que sem
deixar de ser liberal, tornou-se igualmente
social e democrático, e isso não apenas pela
ação legislativa dos Parlamentos, ou pelo
intervencionismo igualitarista do Poder
Executivo, mas também pela atuação do
Poder Judiciário e das Cortes
Constitucionais, politicamente engajadas no
alargamento da cidadania e na realização
dos direitos fundamentais (MENDES;
COELHO; BRANCO, 2002, p. 95 – itálicos no
original).

Em matéria de função judicial, a ideia de neutralidade é


compartilhada com a de neutralidade que caracterizou, em sua origem,
o Estado (Liberal) de Direito, o qual se baseou no princípio da igualdade
formal de todos perante a lei. Tal perspectiva de poder político
inaugurou um modelo de sociedade extremamente individualista e
patrimonialista, culminando na ênfase de uma sociedade de consumo
combinada com as fragilidades ideológicas do mundo “pós-moderno”.
Essa indiferença institucional em face da realidade e a
própria gênese formalista do direito moderno se refletem na
construção de mentalidades sobre o papel da função jurisdicional, que
v~o desde a definiç~o de Montesquieu, que vê o juiz como a “boca da
lei”, até a noç~o do juiz como “escravo da lei”, dentre outros limitados
pontos de vista.
Por sua vez, o Estado social visou superar essa neutralidade
conservada ainda hoje no modelo político-econômico neoliberal,
substituindo-a por uma igualdade material ou substancial, onde a deusa
Justiça tira as vendas dos olhos para enxergar as flagrantes
desigualdades sociais. Assim, o individualismo é substituído por um
estímulo político a um ainda novel conceito de solidarismo social, o
qual se reflete na própria atuação dos poderes, principalmente o
Judiciário, fazendo surgir correntes que sustentam teses mais
condizentes com um realismo jurídico, desde o direito alternativo até os
mais recentes conceitos de ativismo judicial. Tais correntes, na precisa
observaç~o de Adeodato, “propugnam exatamente por uma politizaç~o
do poder judiciário, entendendo-o como criador de direito e realizador
de demandas sociais em defesa dos cidadãos e minorias menos
58 Existem Omissões Constitucionais?

privilegiadas economicamente” (ADEODATO, 2010, p. 214).


No Estado constitucional, evidencia-se a relevância da função
jurisdicional em uma sociedade pluralista e, ao mesmo tempo, carente
de representações democráticas genuinamente legítimas, pelo menos
no aspecto do exercício mesmo das atividades estatais. No fim, a maior
dificuldade está não só em representar o pluralismo, o que já
compromete as concepções clássicas de democracia, mas também em
intervir de forma legítima nos problemas sociais, visando a uma solução
justa e adequada aos casos concretos. De longe, a função legislativa
perdeu aquela proeminência em matéria de processo político do Estado
de Direito, passando a exigir, o Estado constitucional contemporâneo,
uma noç~o de equilíbrio entre os “poderes”, ou melhor, entre as funções
estatais, para uma melhor desincumbência de suas tarefas internas.
Analisando a questão sob o prisma da função executiva,
Andreas Krell observa que “o princípio da separaç~o dos poderes deve
se adequar ao Estado Social moderno”, para “assumir uma ‘noç~o menos
mitificadora e mais pragm|tica’, pois convive com outros princípios com
os quais pode colidir” (KRELL, 2008, p. 72). Para o autor, que atribui
essa nova configuraç~o da funç~o executiva ao “aumento da legitimidade
democrática do Executivo pelo voto popular”, o poder regulamentar n~o
deve ser visto como um mal em si. E, ao ressaltar que “sempre devem
ser respeitados os seus limites e efetivadas as formas de seu controle”
(KRELL, idem), parece já sugerir que a tão desejada legitimidade
democrática n~o se limita ao “voto popular”, mas se vincula também, e
principalmente, aos mecanismos institucionais que permitam um maior
controle democrático do exercício da respectiva função, inclusive por
meios que instrumentalizem a participação da sociedade.
Marcelo Barros Jobim 59

Relevância sem preponderância

O equilíbrio entre as funções não é afetado pela interferência


de um órgão no outro, desde que seja para garantir o cumprimento das
obrigações constitucionalmente previstas. Não há que se falar, aqui, em
preponder}ncia de um “poder” em detrimento dos demais, mas, sim,
numa otimização das deficiências institucionais pelas próprias
instituições que, constitucionalmente, estejam legitimadas a exercer
esse papel ou essa função. Não existindo fronteiras fixas e rígidas, como
na observação de Barroso, anteriormente citada, apenas se potencializa
“a necessidade de se demarcar o }mbito de atuação legítima de cada
um”.
Num certo nível de maturidade democrática, o patrimônio
político mais importante é a abertura, pois é isso que possibilita o
controle externo do ato de decidir (AARNIO, 1997, p. 193).

A independência das cortes de justiça não


significa que elas estão completamente fora
do controle democrático. A divisão de poder
garante a independências das cortes apenas
em relação aos outros centros de poder,
especialmente do poder executivo. Por
outro lado, as cortes de justiça são uma
parte da sociedade e de sua ordem
democrática. Além disso, as cortes de justiça
devem, portanto, em uma sociedade aberta,
estar sob um controle social realizado pelo
povo (AARNIO, idem).
60 Existem Omissões Constitucionais?

Em alguns Estados 10, a figura do Tribunal Constitucional se


apresenta como que exercendo um papel de realização da justiça
constitucional, de forma a “controlar atos e normas oriundas do
Legislativo, do Executivo e do Judici|rio” (DANTAS, 2007, p. 223),
principalmente no que toca ao controle de constitucionalidade. Para
poder realizar esse papel, o órgão da justiça constitucional precisa estar
acima dos demais “poderes” políticos. Sendo assim, nesses Estados, a
figura do Tribunal Constitucional se assemelha um tanto quanto ao
Poder Moderador, inspirado em Benjamim Constant, pois se apresenta
como um órgão distinto dos três poderes, mas com uma função de
exercer um controle sobre eles. Em vez da perspectiva de Montesquieu,
onde a ideia do poder limitar o poder se dava com uma fiscalização
recíproca, na proposta de Constant, o Poder Moderador é que exercia
essa funç~o de “órg~o censor”, estando mesmo acima dos demais
poderes.
No Brasil, a figura do Poder Moderador foi usada (e abusada)
no início da história constitucional brasileira, quando a Constituição
Política do Império do Brasil, de 1824, previa, em seu art. 98, que o
Poder Moderador era “a chave de toda a organizaç~o política” e era
delegado privativamente ao imperador, “Chefe Supremo da Naç~o”.
Ainda na sistemática da Constituição do Brasil Império, ao Poder
Moderador cabia velar “sobre a manutenç~o da independência,
equilíbrio e harmonia dos mais Poderes Políticos”.

10
Ivo Dantas apresenta em seu livro uma citação de Pérez Royo onde o autor espanhol informa que
“el Tribunal Constitucional no existe em todos los países europeus, sino unicamente en aquellos que
tuvieron excepcionales dificultades para transitar del Estado Liberal del siglo XIX al Estado
Democrático del siglo XX: Austria, Alemanha, Itália, Portugal y España” (DANTAS, 2007, p. 228).
Marcelo Barros Jobim 61

Pois bem. Mas, no Brasil República, sob a vigência da


Constituição de 1988, não existe tal Poder nem a figura de um Tribunal
Constitucional como órgão à parte dos três poderes. O Supremo Tribunal
Federal, que exerce uma função mais próxima desta justiça
constitucional, está entre os órgãos do Judiciário, e o sistema de controle
entre os poderes se aproxima mais da doutrina de Montesquieu e seu
conceito de “freios e contrapesos”. Assim, ao mesmo tempo em que ao
STF n~o cabe uma postura de “chave de toda a organizaç~o política”,
também não se lhe permite uma posição de neutralidade diante das
ofensas à Constituição, eventualmente praticadas pelos demais órgãos
políticos, seja por meio de ações ou omissões.
Após analisar algumas teses sobre a natureza do Tribunal
Constitucional, Ivo Dantas apresenta uma síntese conclusiva, no sentido
de que “em relaç~o ao Legislativo como intérprete final da Constituição,
ficamos à mercê de uma momentânea maioria parlamentar, o que já
ocorre, ali|s, no exercício do Poder de Reforma” (DANTAS, 2007, p.
229). Dantas observa, ainda, que

em não havendo um órgão próprio


encarregado do Controle e Defesa da
Constituição, independentemente dos
demais poderes (Legislativo, Executivo e
Judiciário), qualquer deles que seja
competente para fazê-lo ocupará um
posição de superioridade frente aos demais,
o que se torna mais negativo ainda, em
relação ao próprio Judiciário que passa a ser
o julgador de seus próprios atos decisórios
(DANTAS, 2007, p. 230 – itálico do autor).

A preocupação do professor da Faculdade de Direito de Recife


é bastante pertinente, principalmente quando o assunto é a defesa da
Constituição. Colocando-se esse importante papel nas mãos do
Legislativo, corre-se o risco de submetê-lo a uma fragilidade
democrática, inerente aos sabores de uma mera técnica de decisão, que
é a regra da maioria (SILVA, 2012, p. 144), e aos inconvenientes de uma
onda político-partidária. Por outro lado, ao passar para o Judiciário esse
mister constitucional, pode-se levar à formação de uma ideia
equivocada de superioridade da função jurisdicional, ainda mais forte
quando se trata de seu órgão de cúpula.
62 Existem Omissões Constitucionais?

Entretanto, como já foi observado, tal papel, atribuído


precipuamente ao Supremo Tribunal Federal, não dá a esse órgão a
condiç~o de um “chefe supremo da naç~o”, mas apenas delimita o seu
específico grau de relevância em comparação com a importância,
também, das demais funções estatais, em suas respectivas áreas de
atuação. Em matéria de defesa da Constituição, foi evidente a intenção
do Poder Constituinte de supri-la com instrumentos judiciais com esse
objetivo. Não só as garantias fundamentais, tais como a ação popular, o
mandado de segurança, habeas corpus etc, como também as ações de
controle de constitucionalidade e a arguição de descumprimento de
preceito fundamental (ADPF). Principalmente no que toca à criação de
mecanismos

que possibilitem a sua efetividade, superando-se as inércias ilegítimas


do poder público, deve-se destacar a garantia fundamental do mandado
de injunção e ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
Em todo caso, os instrumentos acima se dirigem aos órgãos
do Judiciário, tanto inferiores quanto superiores, demonstrando o
objetivo de se efetivar os esforço de realização da Constituição por meio
da função jurisdicional ou, mais precisamente, do alcance da eficácia ou
dos efeitos práticos das decisões judiciais.
É nesse ponto que os afazeres domésticos do “Estado social”,
uma vez não consolidados de forma espontânea por um processo
político eficiente, devem ser exigidos não pelo Judiciário propriamente
dito, mas pelos cidadãos brasileiros, por meio da função jurisdicional. É
que o cumprimento de metas políticas ou programas sociais a serem
efetivados através de políticas públicas, conforme exigência
constitucional, quando determinado por decisões judiciais nesse
sentido, não é, a rigor, uma resposta do poder competente omisso ao
poder exigente, mas uma resposta do órgão omisso ao próprio cidadão
que, numa atitude cívica, busca, por meio do Judiciário, os seus legítimos
direitos.
Marcelo Barros Jobim 63

As reservas à reserva do possível

Tanto a quest~o da “reserva do possível”, que porventura


possa comprometer, muitas vezes de forma compreensível, a adoção
das metas e programas já estabelecidos pelo Executivo, quanto, e o que
é pior, o mais grave problema da inexistência de qualquer projeto
político, podem e devem ser debatidos judicialmente, visando a soluções
concretas.
O que é preciso levar em conta é que tal debate judicial é
promovido pelo jurisdicionado, que se encontra prejudicado pelas
omissões do poder público e vê nas ações
judiciais, previstas na própria Constituição, eficientes meca-
nismos de pressão política. Não uma pressão política arriscada e
clandestina, mas uma forma legítima de resistência a um exercício
ilegítimo do poder, tendo na função jurisdicional um instrumento
institucional de cobrança da efetividade constitucional.
Mesmo nas ações de controle de constitucionalidade, a
reposta do poder competente no sentido de adotar as medidas
necessárias não se dirige, necessariamente, ao Supremo Tribunal, nem
mesmo a quaisquer de seus legitimados que tenham, eventualmente,
ajuizado a ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Também
nesses casos, a resposta é endereçada a toda a sociedade, de forma a se
promover um processo de transformação democrática que se baseia em
uma democracia social, participativa e pluralista, para a qual os
constituintes optaram por um modelo de democracia representativa
“com temperos de princípios e institutos de participaç~o direta dos
cidad~os no processo decisório governamental” (SILVA, 2012, p. 145).
Na era do “neoprocessualismo” (CAMBI, 2011) ou do
“formalismo-valorativo” (MITIDIERO, 2011), essa participação dos
cidadãos no processo decisório governamental inclui a interferência no
próprio processo judicial, permitindo um diálogo entre a autoridade
jurisdicional e os destinatários da decisão, num modelo de processo
cooperativo.
64 Existem Omissões Constitucionais?

Assim, outra não deve ser a concepção senão a de que os


instrumentos judiciais de controle das ilegitimidades do poder público,
com destaque para a defesa da Constituição, na qual se inclui o controle
das omissões estatais, são verdadeiros mecanismos democráticos de
produção de decisão governamental. E a participação cada vez mais
ativa da sociedade civil organizada na busca de uma prestação
jurisdicional mais efetiva vem pôr em xeque as críticas ao caráter
“contramajorit|rio” dos órg~os encarregados dessa relevante funç~o
estatal.
No Estado Democrático de Direito, em termos de efetividade
de direitos fundamentais, deve-se promover ao máximo a sistemática do
sim, em oposição aos modelos políticos autoritários, ou mesmo os
democráticos de feição neoliberal, os quais parecem sempre governar
com a técnica do não. A “reserva do possível”, por exemplo, {s vezes se
apresenta como um eufemismo para se dizer que “n~o é possível”,
visando talvez desestimular a democratização de todas as ferramentas
jurídico-institucionais que já podem ser vistas com uma verdadeira
versão social do importante princípio do acesso à Justiça.
Observe-se, ainda, que a própria express~o “defesa da
Constituiç~o” guarda também um eufemismo que esconde, em si, a ideia
final de defesa da própria sociedade, visando, em última análise, à
superação das deficiências e vulnerabilidades, principalmente dos
grupos e setores sociais mais desprivilegiados.
Tem-se consciência de que a promoção dessa defesa da
sociedade, via defesa da Constituição, não se traduz numa estéril
programaticidade constitucional reduzida a uma mera “narratividade
emancipatória” (CANOTILHO, 2008, p. 31). Como reconhecido pelo
próprio autor, J. J. Gomes Canotilho, seu principal teórico, “a
Constituição dirigente pressupunha uma indiscutida autossuficiência
normativa, parecendo indicar que bastavam as suas imposições
legiferantes e as suas ordens de legislar para que os seus comandos
programáticos adquirissem automaticamente força normativa”
(CANOTILHO, 2008, p. 31 e 32 – itálicos no original).
Marcelo Barros Jobim 65

Entretanto, o constitucionalista português não perdeu de vez


o encanto “com o dirigismo normativo-constitucional”, continuando a
defender a “Constituiç~o como lei-quadro fundamental condensadora
de premissas materialmente políticas, econômicas e sociais”
(CANOTILHO, 2008, p. 35). Em tempos de revisionismo da teoria de
uma Constituição-programa, promovendo-se a formação teórica de uma
Constituição-processo, ainda segundo o autor, “é
razoável admitir que o conhecimento emancipatório do Estado auxilie a
articulação do pensamento de realidade com o pensamento de
possibilidade” (CANOTILHO, 2008, p. 35 – sem itálicos no original).
Como bem observou Bruno Galindo, embora tenha realizado
uma mudança no pensamento sobre a ideia de “constituiç~o dirigente”,
o que Canotilho “tem afirmado é a insuficiência dos esquemas
meramente normativos em relação à necessidade de transformações
que realizem o constitucionalismo social” (GALINDO, 2006, p. 4). No
entanto, o constitucionalista português continua a defender, ainda
segundo Galindo, a “permanência de muitos dos postulados dirigistas
que, no espaço normativo da União Europeia, tem se deslocado do
direito constitucional para o direito comunit|rio”.
Concretamente, o que Canotilho propõe é uma espécie de
“constitucionalismo moralmente reflexivo”, que traz como desafio a
“substituiç~o de um direito autoritariamente dirigente, mas ineficaz,
através de outras fórmulas que permitam completar o projeto da
modernidade” (CANOTILHO, 2008, p. 127). É preciso que o direito possa
se adequar {s “condições complexas da pós-modernidade”, que,
partindo da visão de Canotilho, esta inovação parece sinalizar no
sentido da dimensão jurídica do princípio constitucional da
solidariedade, o que implica uma noção de responsabilidade social. Eis a
proposta do mestre português:
66 Existem Omissões Constitucionais?

Nesta perspectiva, certas formas já


apontadas de “efic|cia reflexiva” ou de
“direcç~o indirecta” – subsidiariedade,
neocorporativismo, delegação – podem
apontar para o desenvolvimento de
instrumentos cooperativos que, reforçando a
eficácia, recuperem as dimensões justas do
princípio da responsabilidade, apoiando e
encorajando também a dinâmica da
sociedade civil (CANOTILHO, 2008, p. 128).

Assim, à unilateralidade da atuação institucional, por meio,


principalmente, de medidas administrativas ou legislativas, deve vir
acrescentada uma maior participação da sociedade no processo político
de realização da Constituição, a qual será proporcionada por uma
função jurisdicional mais democrática. Essa participação se dá por
intermédio de um modelo processual que garanta a abertura
procedimental, submetendo os argumentos dos representantes dos
órgãos públicos ao crivo não só da apreciação judicial, mas também, e
principalmente, da análise devidamente qualificada de membros ou de
instituições da comunidade.
Os tradicionais argumentos da reserva do possível, por
exemplo, uma vez sem fundamento, não podem sustentar um atraso
desmedido na elaboração das tarefas estatais, principalmente em
matéria de direitos fundamentais. Instituições da sociedade civil
organizada, com base em estudos sociológicos e afins, e em dados
estatísticos, poderiam, por exemplo, participar do processo judicial para
contra argumentar de forma eficaz e legítima, identificando as eventuais
fragilidades nos posicionamentos dos órgãos públicos. Dessa forma,
estar-se-ia compatibilizando a “din}mica da sociedade civil” com a nova
configuração do direito em uma democracia pluralista.
Marcelo Barros Jobim 67

Capítulo 3
As omissões no Estado constitucional: um fenômeno bem
brasileiro

Em que pesem as revisões ao conceito de Poder vistas no


capítulo anterior, identificando a ideia de sua unidade e a distribuição
de funções, o que se deve observar é que a palavra “poder” sempre vem
empregada na Constituição, geralmente no plural, para indicar as
funções políticas representadas nos poderes constituídos. Isso ocorre,
principalmente, em razão do tradicionalismo da clássica expressão
“separaç~o de poderes”, a exemplo do art. 2.º: “S~o Poderes da União,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o
Judici|rio”.
Interessante, ainda, é observar a express~o “Poder Público”,
utilizada, aparentemente, como sinônimo de Estado, enquanto primeiro
setor da economia nacional. Veja-se o artigo 208: no caput, diz-se que o
“dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de
[...]”; j| o par|grafo terceiro do mesmo artigo dispõe que “compete ao
Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental [...]”. O
artigo 215 dispõe: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos
direitos culturais [...]”, e o par|grafo primeiro do artigo 216 traz o
seguinte preceito: “O Poder Público, com a colaboração da comunidade,
promover| e proteger| o patrimônio cultural brasileiro [...]”. Como se
vê, cada vez que a Constituição aponta uma obrigação política positiva
em benefício da coletividade, ela utiliza a palavra Estado ou a expressão
Poder Público, ambos no singular, como a indicar unidade do poder
estatal. Mas, ao se referir à função política, ou usa a palavra Poderes (no
plural, com o P maiúsculo) ou a especifica com o tipo da função,
precedida de Poder, como Poder Judiciário, por exemplo.
Portanto, opta-se aqui por manter a terminologia
constitucional, mas ressalvando que, sempre que for utilizada a palavra
poder como uma parcela das atribuições do Estado, está-se fazendo a
referência a uma função estatal. Ressalte-se que a Constituição também
traz o termo função, mas sempre no âmbito da organização
administrativa, ao lado de cargos e empregos públicos.
68 Existem Omissões Constitucionais?

Pois bem. A proposta do presente ensaio é enfatizar a ideia de


que, no Estado constitucional, a palavra-chave para caracterizar o
processo político é AÇÃO. É que, como sustentado no capítulo anterior,
na versão contemporânea de poder estatal, a sua natureza dinâmica o
associa sempre ao sentido tradicional de “Estado social”, em raz~o das
emergentes necessidades de uma sociedade pluralista.
Chame-se a isso de Estado-providência, intervencionismo
estatal, estatização etc., com todas as críticas que se pode e deve fazer a
esses termos e à ideia que eles representam, o essencial é que do Estado
constitucional dos tempos atuais exige-se cada vez mais um papel ativo.
O grande desafio é identificar os limites entre uma ação
estatal democrática e um controle político arbitrário, que venha a
sufocar as autonomias e potenciais da personalidade dos membros da
sociedade. Para isso, deve-se recorrer sempre a mecanismos de
democracia participativa, lastreados numa perspectiva de
responsabilidade social. Assim como no exemplo do artigo 216, § 1.º, da
Constituiç~o, acima citado, onde se prevê a “colaboraç~o da
comunidade” para os fins políticos de promover e proteger o
patrimônio cultural brasileiro, outras normas constitucionais,
principalmente em matéria de direitos sociais, fazem referência a essa
importante colaboração ou participação da comunidade (cf. art. 230).

O sentido de poder público omisso

Seria incoerente dizer que os direitos sociais têm


aplicabilidade imediata e, ao mesmo tempo, exigir ação do poder
público para tornar efetiva norma constitucional, principalmente as que
preveem essa categoria de direitos. Ora, a simples necessidade de uma
medida para que direitos sociais previstos na Constituição se efetivem já
retiraria a noção de imediatidade destes direitos. E mais: nada garante,
principalmente no Brasil, que a produção de uma lei e sua possibilidade
de aplicação (eficácia jurídica) resulte em efetividade (eficácia social).
Marcelo Barros Jobim 69

Não se desconhece que, em certos graus, o não-fazer do poder


público é compreensível e mesmo justificável. Uma ideia inovadora
presente numa nova Constituição, ou aquela provocada por alteração do
texto constitucional ou mesmo por um processo de alterações
semânticas, exige um período de adequação social e política. 11 A própria
Ordem Social, prevista num título à parte na Constituição, mas de certa
forma sistematizada em todo o texto constitucional12, requer um
período de maturação política para a definição das diretrizes a serem
adotadas.
Como visto no capítulo anterior, esse período é reconhecido a
partir da ideia do Direito Constitucional enquanto processo, o que se
caracteriza pelo esforço de atuação positiva e concreta dos valores da
Constituição. Tal atuação, ou concretização das normas constitucionais,
não é tão simples quanto a mera subsunção que se operava na óptica do
direito tradicional de índole privatista. O Direito Constitucional, direito
público por excelência, exige uma combinação entre juízos de
ponderação, na sua dimensão jurídica, e apreciações muitas vezes
discricionárias, na sua dimensão política.

11
Não se desconhece que o processo às vezes é invertido, ou seja, a Constituição precisa ser alterada
para se adequar às novas realidades, como no caso das reformas administrativas e da previdência.
Neste ensaio, entretanto, prevalece o primeiro sentido, acima esboçado no texto. Veja-se o caso das
uniões “homoafetivas”, oportuno neologismo criado por Maria Berenice Dias para enquadrar estas
formas de relações afetivas na acepção mais ampla de família ou “entidade familiar” inaugurada pela
Constituição. Uma lei específica que contemplasse essa forma de entidade familiar, não tão “nova”
como se costuma dizer, talvez suprisse uma grave lacuna na ordem jurídica, não só superando as
divergências jurisprudenciais, mas principalmente fortalecendo as bases de cidadania dos
homossexuais.
12
Principalmente, no título da Ordem Econômica que se diz “conforme os ditames da justiça social”
(art. 170, CR)
70 Existem Omissões Constitucionais?

Em se tratando de processo da Constituição13, um dos


referenciais adequados para se avaliar a legitimidade dessa
consolidaç~o do “ideal constitucional” é justamente o fator tempo. Daí,
surgem perguntas como: o que de fato caracteriza uma omissão
(in)constitucional e quais os mecanismos institucionais para sua
superação? Até que momento se poderia admitir o comprometimento
da atuação efetiva da Constituição por razões de oportunidade política?
Sim, porque a indefinição do tempo para a concretização das metas
políticas e sociais estabelecidas na Constituição brasileira pode levar à
conclusão de que o futuro do Brasil é ser sempre o País do futuro.
A partir desse entendimento, pode-se dizer que só existem
omissões quando a inércia do legislador, por exemplo, ultrapassa os
limites da conveniência política ou da razoabilidade jurídica. Antes
disso, a falta de regulamentação da norma constitucional pelo legislador
n~o seria, a rigor, “omiss~o” propriamente dita, pois essa só se configura
ante o abuso da inatividade do dador de leis (ALEXY, 2011, p. 20), ou de
outro órgão do poder público, que, ao se protrair no tempo,
compromete a eficácia da Constituição.
Nessa fase de inércia abusiva, falar de “omiss~o
inconstitucional” é incorrer em uma flagrante redund}ncia,
caracterizada por uma extensão semântica desnecessária. Seria o
mesmo que falar em “delito ilícito”, j| que, assim como todo delito é
caracterizado pela ilicitude, toda omissão carrega em si uma carga de
ilegitimidade. A lei prevê puniç~o do “pai omisso” ao “poder público
omisso”, desde que tal inatividade n~o seja legitimada por uma raz~o
qualquer, juridicamente reconhecida, hipótese em que não se pode falar
em omissão, ainda.

13
Não confundir com processo ou jurisdição constitucional, que se refere, como se verá no capítulo 4,
ao sistema de aplicação jurisdicional do direito material da Constituição, ou seja, as próprias ações
constitucionais, principalmente no que se refere ao controle de constitucionalidade e às garantias
fundamentais.
Marcelo Barros Jobim 71

O que se pretende sustentar é que aquilo que comumente se


chama de “omiss~o inconstitucional” pode ser tratado simplesmente
por omissão, sem o qualificativo inconstitucional, pois esta ideia já está
embutida naquela. Quando o Poder Legislativo retarda, de forma
desarrazoada, a produção de uma lei exigida para tornar efetiva uma
norma constitucional, basta que se indique que esta sua inércia já resta
caracterizada como uma omissão para se inferir a ofensa à Constituição.
Nesse caso, dir-se-ia apenas que se trata de omissão
legislativa. Não é necessário denominar essa omissão de
inconstitucional, pois não existe qualquer versão validamente
constitucional de uma omissão do poder público.
O enunciado do art. 103, § 2.º, da Constituição da República
traz, de forma precisa e mais adequada, a expressão a ser corretamente
utilizada para se referir à ilegitimidade das inércias do poder público.
Assim, ao se declarar a “inconstitucionalidade por omissão de medida
para tornar efetiva norma constitucional”, o Supremo Tribunal Federal
está reconhecendo exatamente a abusividade da inação do legislador ou
do órgão administrativo.
É significativa a dicção do enunciado quando fala em
inconstitucionalidade por omissão e não da omissão. A falta de medida
que tornaria efetiva norma constitucional é um grave vício que pode ser
observado em dois níveis: antes e depois da declaração da omissão.
Quanto à natureza da decisão, em matéria de reconhecimento das
omissões, percebe-se que ela é declarativa, reconhecendo a
ilegitimidade da inércia do poder público em período anterior ao
pronunciamento judicial.

A mera ciência ao poder omisso

Nesse ponto, vale uma crítica ao entendimento de que o papel


do STF seja o de apenas comunicar ao poder omisso a sua inércia, seja
nas próprias ações de controle, seja nas garantias fundamentais.
72 Existem Omissões Constitucionais?

Em matéria de ação direta de inconstitucionalidade por


omissão, deve-se observar que, no julgamento da ADI 1.439/MC, em
maio de 1996, o Supremo Tribunal firmou tal entendimento, no sentido
de que:

A procedência da ação direta de


inconstitucionalidade por omissão,
importando em reconhecimento judicial do
estado de inércia do Poder Público, confere
ao STF, unicamente, o poder de cientificar o
legislador inadimplente, para que este adote
as medidas necessárias à concretização do
texto constitucional. Não assiste ao STF,
contudo, em face dos próprios limites
fixados pela Carta Política em tema de
inconstitucionalidade por omissão (CF, art.
103, § 2º), a prerrogativa de expedir
provimentos normativos com o objetivo de
suprir a inatividade do órgão legislativo
inadimplente (BRASIL, 1996).

Posteriormente, em 2007, no julgamento da ADI 3.682, o


Supremo Tribunal ensaiou um avanço, ao decidir pela imposição de um
prazo razoável14 para que as medidas necessárias fossem adotadas. Na
hipótese, tratava-se de ausência de lei complementar federal, exigida na
forma do artigo 18, § 4.º da Constituição, referente aos requisitos para a
criação de novos municípios. Mesmo assim, a decisão foi bastante
cautelosa, pois entendeu por bem advertir que

Não se trata de impor um prazo


para a atuação legislativa do Congresso
Nacional, mas apenas da fixação de um
parâmetro temporal razoável, tendo em
vista o prazo de 24 meses determinado pelo
Tribunal nas ADI 2.240, 3.316, 3.489 e 3.689
para que as leis estaduais que criam
municípios ou alteram seus limites
territoriais continuem vigendo, até que a lei
complementar federal seja promulgada
contemplando as realidades desses
municípios. (BRASIL, 2007a – sem negritos
no original).

14
A Lei 8.968/99, que regula as ações de controle abstrato de constitucionalidade, foi posteriormente
alterada pela Lei 12.063/2009 para acrescentar o art. 12-H, cujo parágrafo primeiro dispõe que “Em
caso de omissão imputável a órgão administrativo, as providências deverão ser adotadas no prazo de
30 (trinta) dias, ou em prazo razoável a ser estipulado excepcionalmente pelo Tribunal, tendo em
vista as circunstâncias específicas do caso e o interesse público envolvido”.
Marcelo Barros Jobim 73

Já em matéria de garantias fundamentais, aponta-se o


julgamento do MI n.º 107/DF, no qual, embora o Supremo Tribunal
tenha decidido questão de ordem no sentido da autoaplicabilidade do
mandado de injunção, também firmou o entendimento de que esta ação
constitucional visava apenas

a obter do poder judiciário a declaração de


inconstitucionalidade dessa omissão se
estiver caracterizada a mora em
regulamentar por parte do poder, órgão,
entidade ou autoridade de que ela dependa,
com a finalidade de que se lhe dê ciência
dessa declaração, para que adote as
providências necessárias, à semelhanca do
que ocorre com a ação direta de
inconstitucionalidade por omissão (BRASIL,
1989).

Neste julgamento, significativa foi a equiparação dos efeitos


da decisão no mandado de injunção e na ação para o controle da
inconstitucionalidade por omissão, o que, em termos práticos, resultou
em um esvaziamento daquela importante garantia fundamental para
fins de se promover a efetividade constitucional.
Como já demonstrado, o que caracteriza a omissão é o
prolongamento excessivo da inação do poder público, a ponto de
comprometer a efetividade da norma constitucional, fato que se
presume, de forma absoluta, ser do conhecimento do próprio órgão
omisso. Ora, como suportar a ideia de se utilizar toda a estrutura
judiciária do Supremo Tribunal para que este apenas informe a um
órgão sobre algo que este já sabe? Será mesmo necessário o STF dar
ciência ao Congresso Nacional de sua omissão em promulgar a lei
específica sobre greve no serviço público, por exemplo, após mais de 20
anos de Constituição?
Poder-se-ia objetar que, até pela natureza declarativa da
decisão, a relevância da ciência do STF ao poder omisso é demonstrar a
gravidade da inércia, que já havia se configurado em omissão,
demonstrando a premente necessidade da medida. Mas, não teria o
Congresso Nacional a visão política de perceber as consequências
prejudiciais da inexistência de uma medida que tornaria efetiva uma
norma constitucional?
74 Existem Omissões Constitucionais?

Uma medida, por exemplo, cuja falta compromete o exercício


de direitos fundamentais, como o caso do direito de greve no serviço
público.
Analisando o enunciado do § 2.º do art. 103 da Constituição, o
que se pode concluir é que a decisão do STF não deve se limitar a uma
mera ciência inócua ao poder omisso, pois que o constituinte pretendeu,
sim, que a ciência dada pelo tribunal tivesse a força de compelir o poder
competente “para a adoç~o das providências necess|rias”.
Isso é evidente. Senão, vejamos:

Art. 103 omissis.


§ 2.º Declarada a
inconstitucionalidade por omissão de
medida para tornar efetiva norma
constitucional, será dada ciência ao Poder
competente para a adoção das providências
necessárias e, em se tratando de órgão
administrativo, para fazê-lo em trinta dias.

Se assim não fosse, a norma finalizaria na parte em que


dispõe sobre o comando de que será dada ciência ao poder competente.
E ponto final.
Mas, não. Ela continua a se expressar no sentido de um
evidente resultado prático da ciência dada, quando complementa o
enunciado com um eloquente para a adoção das providências
necessárias. Em termos lógicos, pode-se demonstrar o enunciado na
seguinte proposição: Se A, logo B, para que seja C.
É dizer, temos aqui três partes precisamente delimitadas da
norma constitucional em questão: a declaração da inconstitucionalidade
por omissão (A), a ciência ao poder competente (B) e a adoção das
providências necessárias (C). Encaixando as partes na proposição
lógica, tem-se o seguinte preceito: se declarada a inconstitucionalidade
por omissão, logo será dada ciência ao Poder competente para que
sejam adotadas as providências necessárias.
Marcelo Barros Jobim 75

Essa interpretação é reforçada quando se observa a


existência de um elemento elíptico na norma, sutilmente identificado na
parte final do dispositivo em questão, in verbis: “em se tratando de
órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”. Dessa dicção,
percebe-se claramente que ao órgão administrativo está determinada
uma imposição para fazer o que é exigido, prevendo-se, inclusive, prazo
para isso. Por extensão, ou mesmo pelo princípio da correspondência,
de tal ideia se subentende que a norma também compele outro “Poder
competente”, eventualmente declarado omisso, a exemplo do
Legislativo, igualmente para fazer ou adotar as respectivas medidas
necessárias. A inexistência de previsão de prazo, nesse caso, jamais
poderia ser entendida como um permissivo constitucional para a
manutenção da omissão por tempo indeterminado, ainda quando se
sabe que a principal característica da omissão é exatamente a
desarrazoabilidade da inércia ou o excesso abusivo do tempo em que o
órgão vem se omitindo quanto à adoção das medidas que tornariam a
norma constitucional efetiva.
Sendo assim, e com base no entendimento de que a
Constituição não possui expressões inúteis, é de se concluir que a
determinação para que o poder competente adote as providências
necessárias, estabelecendo-se prazo ou não, é uma das partes
integrantes da referida norma constitucional, e que exige o seu devido
cumprimento.

O caráter prescritivo da adoção das medidas

Como sabido, o Direito se expressa por meio de linguagem


prescritiva e não descritiva, o que significa dizer que ele não descreve a
realidade, mas busca nela interferir ou pelo menos condicioná-la.
76 Existem Omissões Constitucionais?

Mesmo diante de expressões como a do caput do art. 5.º da


Constituiç~o, que inicia o enunciado com um retumbante “Todos são
iguais perante a lei”, o que se deve entender não é que todos sejam de
fato iguais, mas que, no modelo de Estado democrático adotado pelo
Brasil, todos devem ser tratados de forma igual, mesmo que isso
comporte a já consagrada fórmula aristotélica de tratar desigualmente
os desiguais e igualmente os iguais. Nesse caso, a desigualdade social
(realidade como é) deve ser compensada com um esforço político de se
promover a igualdade jurídica (como deve ser a realidade).
Pois bem. No caso em questão, a parte do enunciado da
norma constitucional que se refere à “adoç~o das providências
necess|rias” n~o pode ser encarada como uma mera descriç~o do que
irá ou poderá ocorrer após ser dada a ciência da omissão ao poder
competente. O que a norma prescreve é que a ciência será dada
especificamente para a adoção das medidas, ou seja, aquilo é feito para
isso.
A tese de que o poder competente omisso, cuja omissão já foi
declarada pelo STF, não pode ser compelido a adotar as providências
necessárias, resulta numa esdrúxula ideia de constitucionalização da
omissão em razão da suposta impossibilidade de o STF exigir do
Congresso Nacional tais providências, em nome do princípio da
separação dos poderes. Ao contrário, a ideia aqui apresentada, de que
não existem nem podem existir omissões constitucionais, reforça o
entendimento de que nada legitima a manutenção da inércia do poder
omisso, sendo até mais grave a sua omissão após a declaração da
inconstitucionalidade pelo STF.
A partir das ideias lançadas no capítulo anterior, constata-se
que o princípio da “separaç~o de poderes” h| muito vem sendo
revisado, no sentido de que não se pode admitir uma separação
estanque entre os poderes em um Estado democrático, principalmente
quando essa ideia de separação é invocada para legitimar os vícios do
poder público. Em todo Estado democrático, o poder não é um fim em si
mesmo, mas deve ser encarado como uma ferramenta em favor dos
interesses da coletividade.
Marcelo Barros Jobim 77

Corroborando a ideia de poderes como funções, é conhecida a


precisa análise de Celso Antônio Bandeira de Mello sobre a natureza de
dever do poder em um Estado de Direito. Embora sua discussão esteja
no âmbito do poder administrativo discricionário, é elucidativa a tese
do publicista, construída no seguinte sentido:

A ordenação normativa propõe


uma série de finalidades a serem alcançadas,
as quais se apresentam, para quaisquer
agentes estatais, como obrigatórias. A busca
destas finalidades tem o caráter de dever
(antes do que “poder”), caracterizando uma
função, em sentido jurídico.

E arremata, o autor:

Na função, o sujeito exercita um


poder, porém o faz em proveito alheio, e o
exercita não porque acaso queira ou não
queira. Exercita-o porque é um dever. Então,
pode-se dizer que o eixo metodológico do
Direito Público não gira em torno da ideia de
poder, mas gira em torno da ideia de dever
(MELLO: 2001, 13 e 14, itálicos no original).

Para sustentar que esse entendimento também se aplica aos


poderes políticos, basta que se compreenda a estrutura dos poderes,
sejam políticos constitucionais ou administrativos infralegais, na mesma
perspectiva de escalonamento normativo da ordem jurídica, de
inspiração kelseniana. É o que se verá a seguir.

Os graus de relevância das funções políticas

A ideia de uma norma fundamental pressuposta explicita


apenas, conscientemente ou não, a reformulação de uma estratégia
antiga representada na mal disfarçada ideologia mantenedora do status
quo. Em todos os momentos da história política pode-se observar a
presença de um instrumental axiológico que visa exercer um papel
homogeneizante no topo da escala de legitimação do sistema.
78 Existem Omissões Constitucionais?

No passado, a “vontade de Deus” era o argumento último que


fechava a estrutura de argumentos e que tornava válida uma decisão
que pudesse comprometer a lógica do sistema, se este fosse
racionalmente (e corajosamente) questionado. Ora, numa fase histórica
em que o temor a Deus era uma das características elementares do
universo psicológico da quase totalidade dos membros de uma
sociedade, quem poderia discutir o argumento definitivo de uma
autoridade escolástica no sentido de que tal ou qual decisão política era,
em última instância, a vontade de Deus?
Com o surgimento do Estado de Direito, ao se substituir Deus
pela Nação, representada principalmente na figura de um Poder
Constituinte, esse recurso ideológico teve que ser encontrado em
elementos racionalistas secularizados. Sempre com um teor abstrato e
formal, no começo ele se apresentou na forma de doutrinas
jusnaturalistas de igualdade natural de todos, quando se sustentava que
a lei aplicada representava, em essência, o interesse homogêneo da
coletividade.
Depois, passou pela versão positivista pseudocientífica de
completude do ordenamento jurídico, que veio atrelada a concepções
como a de que ninguém se escusa de cumprir a lei alegando que não a
conhece. Por fim, a ideologia se consagrou ao vestir a indumentária do
rigor científico com a exuberante Teoria Pura do Direito, pela qual a
norma pressuposta fundamental quebra a sequência de
questionamentos sobre a validade do sistema.
Da mesma forma que o instrumental ideológico da
escolástica, numa sociedade que agora se pretende iluminada, quem
questionaria o argumento de que o ordenamento jurídico tem como
gancho legitimador a ideia de que todos devem, em última instância,
respeitar a Constituição? Curiosamente, a própria ideia de “vontade de
Deus” teve também sua vers~o contempor}nea na expressão “vontade
de Constituiç~o”, em teorias que sustentam a sua força normativa
(KONRAD HESSE).
Marcelo Barros Jobim 79

Só que agora, a ordem se inverte. A vontade de Deus


representava, ainda, um ideal de poder político encarado do ponto de
vista dos governantes, cuja estrutura ideológica se impunha, de forma
clara, de cima para baixo. Mas, numa perspectiva de legitimidade
popular, desde as concepções revolucionárias que inauguraram um viés
legitimador do poder político de baixo para cima, a vontade que importa
é (pelo menos em tese) a dos governados: todos querem um poder
limitado, o que hodiernamente significa que todos querem a
Constituição e o seu efetivo cumprimento.
Pois bem. A ideia de estrutura escalonada aplicada também
ao poder, suscitada anteriormente, não se apresenta como novidade,
uma vez que Bobbio já chegou a observar a concepção do Direito e do
Estado, respectivamente, “como um sistema de normas ou como um
sistema de poderes dispostos em ordem hierárquica, ou seja, como
sistemas EM v|rios planos ou níveis” (BOBBIO: 2008, p. 210). O que se
propõe aqui é, com base nessa ideia, considerar a sequência de níveis,
no que toca aos poderes, representados agora na forma de funções
políticas, a partir de um aspecto referente a graus de responsabilidade,
caracterizados pela maior ou menor relevância da função.
As normas se vinculam por um grau hierárquico, que vai
desde a norma individual concreta até a Constituição, sendo esta o grau
último de validade que condiciona todas as demais de nível
infraconstitucional. Isso implica uma ideia de supremacia da
Constituição, que dá a esta um caráter de supremacia idealizada numa
espécie de norma fundamental posta, com um sentido de maior
gravidade jurídica.
Da mesma forma, os poderes públicos, tanto os referentes às
funções meramente administrativas quanto os responsáveis pelas
funções políticas constitucionais, estão sistematizados em graus de
relevância em razão dos níveis de atribuições a que são obrigados,
sempre tendo em vista o interesse da coletividade. Para Bobbio, se a
norma fundamental serve como fechamento do sistema, para se evitar a
subida ao infinito na sequência de normas, o poder soberano representa
o limite para a sequência ascendente dos poderes.
80 Existem Omissões Constitucionais?

Daí a melhor forma de se entender o sentido do dispositivo


constitucional, previsto no artigo 1.º, parágrafo único, da Constituição,
normatizando a ideia de que “todo o poder emana do povo”. Só a ideia
de soberania popular pode significar esse limite, embora se reconheça a
barreira ideológica representada por conceitos de “justiça universal”,
oriundos de uma sistemática claudicante de direito internacional.
Emanar do povo significa não apenas a concepção tautológica
de que o poder é exercido em nome do povo, mas que o Poder é uma
mera ferramenta para a consecução dos fins almejados pela
coletividade. É esse caráter meramente instrumental do poder público
que dá a tônica de todo e qualquer exercício do poder, e em todos os
níveis, não só num Estado democrático, mas principalmente no modelo
político da República.
Sendo assim, essa espécie de escalonamento pela relevância
deve resultar em um reconhecimento da cada vez maior
responsabilidade do agente público quanto mais alta seja a categoria de
poder exercido.
Entretanto, no Brasil, é comum confundir-se poder com
prerrogativas. Em vez de, no período republicano, ter-se inaugurado a
mentalidade do “quanto mais poder, maiores são as responsabilidades”,
a tradição brasileira, herdada da fase monárquica, ainda é no sentido do
“quanto mais alto o cargo, maiores são as prerrogativas”.
Marcelo Barros Jobim 81

Essa mentalidade parece se refletir na ideia enviesada do


princípio da separação de poderes. Curiosamente, os institutos políticos
clássicos, de origem principalmente europeia, são pesquisados e
avaliados com base em pensadores europeus, mas a aplicação deles
ainda tem uma marca nitidamente “tupiniquim”15. Não adianta que se
apreenda de autores consagrados, como Loewenstein, que a separação
de poderes possui um critério meramente funcional e que essa ideia de
separação pura e simples, desenvolvida principalmente por
Montesquieiu, serviu apenas para um período da formação do Estado de
Direito, de ideologia liberal.
Ao não se observar os efeitos práticos dessa ideia de
separaç~o de funções, n~o se atinge a percepç~o de que os “poderes”
devem ser vistos a partir de uma nova leitura, qual seja, a de que o ideal
é falar em colaboração de poderes, os quais, embora independentes, são
também harmônicos entre si.
No Brasil, o embate entre os poderes “separados” termina por
desprezar os anseios reais da sociedade. Tal embate aproxima a questão
política do valor honra presente nas monarquias, na já conhecida
análise de Montesquieu, enquanto que nos Estados moderados, como
seriam os de forma republicana, o valor seria a virtude, segundo o autor
de “O Espírito das Leis”.
De fato, a virtude significa “força moral”, o que, aplicando-se
ao poder político, implica ação para fins coletivos, mas ação não como
meras prerrogativas, e sim como dever de agir ou de fazer. A obrigação
de fazer ganha contornos publicistas com grau de fundamentabilidade
no âmbito da sistemática dos direitos sociais. O princípio da inércia
voltado para a função jurisdicional tem um sentido próprio atrelado à
ideia de imparcialidade. Mas a inércia não é condizente com a função
política lato sensu, pois esta requer iniciativa dos poderes públicos,
envolvendo uma espécie de “parcialidade institucional” orientada pela
ideologia constitucional.

15
Cf. o livro de Roberto Gomes, editado pela Criar Edições, com o título Crítica da
Razão Tupiniquim, no qual o autor critica o que denomina de uma “alienação do
pensamento brasileiro”.
82 Existem Omissões Constitucionais?

Os “poderes” e o princípio republicano

No Brasil, a ideia de separação relacionada aos poderes ainda


é forte, criando uma concepção caprichosa de exercício do poder
representada no fato notório de que não se pode exigir dessa verdadeira
nobreza travestida de República, o cumprimento de seus deveres
constitucionais.
Ora, o STF decidir mandar o Congresso adotar as
providências necessárias para tornar efetiva a norma constitucional não
pode jamais ser visto como uma forma de interferência ilegítima de um
poder no outro, mas, sim, como um mecanismo de defesa da
Constituição. Nesse caso, não se trata de uma obediência ao Poder
Judiciário pelo Poder Legislativo. Essa é uma ideia de obediência
meramente indireta ou instrumental, pois, na verdade, o que se verifica
é a imposição de uma obediência à Constituição.
O STF guarda tanto a Constituição que às vezes esquece o
princípio republicano no fundo da gaveta. Acima da “separaç~o de
poderes” est| a República, mas o respeito caprichoso àquele princípio se
desenvolve como se estivéssemos ainda no Brasil Império. Em lugar da
separaç~o, o que se propõe é a “superaç~o” dos poderes para se atingir
o valor maior expresso no ideal republicano.
A derrota da República, na quebra de braço entre princípios
de organização política, pode ser observada ainda com relação ao
princípio federativo. Em matéria de intervenção federal, o STF firmou o
entendimento no sentido de que, se a intervenção visa proteger a
estrutura federativa, comprometendo de forma grave a autonomia dos
entes federativos, a sua decretação só se justifica ante a inércia das
instituições executivas, legislativas e judiciárias locais em face dos atos
ensejadores da intervenção. Do contrário, a medida excepcional se
tornaria mais desastrosa do que os motivos que levaram à sua adoção.
Marcelo Barros Jobim 83

Esse entendimento foi praticamente consolidado no processo


de intervenç~o federal n.º 5179/DF, que ficou conhecido como “o caso
Arruda”. Aparentemente impec|vel em termos de respeito {
organização federativa, o entendimento não leva em consideração
exatamente a forma como as instituições locais se mobilizam para
“resolver” o problema.
Digno de nota é o voto vencido do ministro Carlos Ayres
Britto, que deveria ser consultado, lido e relido por todos os que
pensam o poder político no Brasil. Por falta de espaço, vai aqui um
pequeno trecho:

Eu lembro que o nosso estado


brasileiro não se chama Federação
Republicana. Chama-se República
Federativa, porque, se fosse Federação
Republicana, a ênfase seria no Estado
Federal, mas, como é República Federativa,
a ênfase é na forma de governo. Não é na
forma de Estado. E, de fato, a República é um
valor que se faz muito mais vezes presente
na Constituição. É um valor que se faz muito
mais vezes presente em outros valores da
Constituição do que a própria Federação.
Quando a Constituição, no limite do
antagonismo entre autonomia federada e
autenticidade do regime republicano, opta
pela República, derrui a autonomia dos
Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios em prol da autenticidade da
República enquanto forma de governo.
Porque me parece que, aqui, ao se colocar
forma republicana, sistema representativo e
regime democrático como pressupostos da
intervenção, se violados, a Constituição não
se preocupa tanto em controlar, em sindicar,
em identificar desvios administrativos,
práticas administrativas corrompidas, não
foi bem isso. Isso é sintoma, não é causa da
doença. A causa da corrupção, a causa dos
desvios administrativos, a causa de tantos
conluios espúrios está numa cultura anti-
republicana (BRASIL, 2010).
84 Existem Omissões Constitucionais?

Pode-se acrescentar também a causa das omissões do poder


público como resultado dessa cultura antirrepublicana. Em seu voto
vencido, o ministro utiliza expressões fortes como, por exemplo, ainda
se referindo ao Distrito Federal: “Encontrei um estado de letargia, de
não-funcionamento do Poder legislativo”. [...] “...o Distrito Federal
padece de leucemia ética”. [...] “Para mim, o caso é de hecatombe
institucional” (it|licos nossos).
O verdadeiro libelo do ministro contra o Distrito Federal
pode ser endereçado a todo o Estado brasileiro. Após destacar a
importância específica de Brasília no “cen|rio jurídico, político,
internacional”, em comparaç~o com os Estados da Federaç~o, como a
enfatizar o seu papel simbólico na estrutura federativa brasileira, o
ministro arrematou:

Então o bom exemplo


republicano, representativo, democrático,
ético tem que partir de Brasília. O bom
exemplo vem de cima, e se Brasília se
desnatura, passa a dar as costas ao espírito
republicano de que fala a Constituição, ao
meu sentir justifica com muito mais razão a
intervenção federal.

Em matéria de organização dos poderes, o discurso do


ministro Ayres Britto em seu voto é bastante significativo. Para ele, no
Distrito Federal, o que também se aplica ao Governo Federal, “os dois
Poderes, o Executivo e o Legislativo, turbinaram, tonificaram a mais não
poder a harmonia entre si, a ponto de transformar essa harmonia em
cumplicidade; em enquadrilhamento [...]”.

Dubiedades na defesa da Constituição

Embora a ideia legítima de ativismo judicial tenha surgido


para que fossem criados mecanismos institucionais que exigissem do
Estado a concretização de políticas públicas, é notório que a discussão
nesse campo ainda encontra fortes resistências. Saliente-se que essa
cobrança institucional não é realizada de ofício, determinada
unilateralmente, mas obedece ao princípio dispositivo, desfazendo a
Marcelo Barros Jobim 85

inércia da jurisdição. Sendo assim, é importante lembrar que a


expressão “ativismo judicial” deve sempre ser acompanhada da ideia de
provocação dos jurisdicionados, o que implica uma versão legítima de
democracia participativa.
No entanto, se algumas teses contrárias são sérias,
preocupadas mesmo com os limites dessa interferência do Judiciário no
campo de atuação da função executiva, outras escondem uma visão
conservadora, como se dissessem: “Juízes, respeitem o Poder Executivo,
n~o o force a sair de seu berço esplêndido!”. Se, no }mbito da
organização político-administrativa, o Estado brasileiro firmou um
pacto federativo, visando a um maior respeito recíproco à autonomia
política dos entes da Federação, no plano da organização do poderes o
que parece ter ocorrido foi uma espécie de pacto da inércia entre os
poderes da República.
Em livro publicado na década de 1990, Dalmo de Abreu
Dallari combatia o que denominou de “tradiç~o paralisante” do próprio
Poder Judiciário, enaltecendo a sua importância social e política e
lamentando a estagnação desta relevante função estatal, em
comparação com as demais, Legislativa e Executiva, frente aos objetivos
de interesse público. Para o autor, o Judiciário amargava uma posição
marginal, “num honroso isolamento” (DALLARI, 1996, p. 5).
Dallari entrou na discussão sobre as propostas que visavam a
uma ampla reforma do Judiciário, e já naquele momento o jurista
observava a necessidade de opor firme resistência {s propostas “que
ignoram que o Judiciário deve ser um serviço para todo o povo, e
querem que prevaleçam cúpulas dóceis e submissas que procuram
neutralizar os JUÍZES a fim de que eles não se oponham às investidas
injustas dos poderes político e econômico” (DALLARI, 1996, p. 7).
Seguindo as lições de Dallari, o que se deve concluir é que a natureza
política da função jurisdicional é de uma evidência ímpar,
principalmente quando o tema é a efetivação de direitos fundamentais.
Só no modelo político (neo)liberal, e sua lógica da igualdade formal, é
que o Judiciário tinha uma feição técnica, a partir da tese equivocada de
que o Direito era para ser aplicado por “operadores” autômatos,
Marcelo Barros Jobim 81

Essa mentalidade parece se refletir na ideia enviesada do


princípio da separação de poderes. Curiosamente, os institutos políticos
clássicos, de origem principalmente europeia, são pesquisados e
avaliados com base em pensadores europeus, mas a aplicação deles
ainda tem uma marca nitidamente “tupiniquim”15. Não adianta que se
apreenda de autores consagrados, como Loewenstein, que a separação
de poderes possui um critério meramente funcional e que essa ideia de
separação pura e simples, desenvolvida principalmente por
Montesquieiu, serviu apenas para um período da formação do Estado de
Direito, de ideologia liberal.
Ao não se observar os efeitos práticos dessa ideia de
separaç~o de funções, n~o se atinge a percepç~o de que os “poderes”
devem ser vistos a partir de uma nova leitura, qual seja, a de que o ideal
é falar em colaboração de poderes, os quais, embora independentes, são
também harmônicos entre si.
No Brasil, o embate entre os poderes “separados” termina por
desprezar os anseios reais da sociedade. Tal embate aproxima a questão
política do valor honra presente nas monarquias, na já conhecida
análise de Montesquieu, enquanto que nos Estados moderados, como
seriam os de forma republicana, o valor seria a virtude, segundo o autor
de “O Espírito das Leis”.
De fato, a virtude significa “força moral”, o que, aplicando-se
ao poder político, implica ação para fins coletivos, mas ação não como
meras prerrogativas, e sim como dever de agir ou de fazer. A obrigação
de fazer ganha contornos publicistas com grau de fundamentabilidade
no âmbito da sistemática dos direitos sociais. O princípio da inércia
voltado para a função jurisdicional tem um sentido próprio atrelado à
ideia de imparcialidade. Mas a inércia não é condizente com a função
política lato sensu, pois esta requer iniciativa dos poderes públicos,
envolvendo uma espécie de “parcialidade institucional” orientada pela
ideologia constitucional.

15
Cf. o livro de Roberto Gomes, editado pela Criar Edições, com o título Crítica da
Razão Tupiniquim, no qual o autor critica o que denomina de uma “alienação do
pensamento brasileiro”.
Marcelo Barros Jobim 87

Embora o Supremo Tribunal já tenha reconhecido os efeitos


externos da decisão proferida no controle concreto de
constitucionalidade (BRASIL, 2006), bem como venha dando à decisão,
em sede de mandando de injunção, um efeito que se aproxima da tese
concretista (BRASIL, 2007), a observação de Adeodato é bastante
pertinente. O professor destaca não só a alternância de entendimentos
como a incompatibilidade entre eles, ao que se acrescentam as
inadmissíveis subversões ao próprio texto da norma constitucional.
Caso mais emblemático se deu na consolidação da tendência,
que vinha se formando no STF, no sentido da abstrativização das
decisões proferidas em sede controle incidental de constitucionalidade,
as quais, tradicionalmente, possuíam efeitos apenas entre as partes.
Com a extensão dos efeitos para além do caso concreto, o STF, em
consequência, passou a interpretar a norma do art. 52, X, da
Constituição, de forma extremamente reduzida, limitando a sua
aplicação.
A referida norma constitucional dispõe sobre a competência
privativa do Senado Federal para “suspender a execuç~o, no todo ou em
parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do
Supremo Tribunal Federal”.
Essa norma já havia passado por um exercício hermenêutico
de limitação de seu alcance quando se passou a entender que ela se
referia apenas ao controle incidental de constitucionalidade, pois a
expressão por decisão definitiva implicaria a ideia de uma decisão
última16. É dizer, após as decisões proferidas pelos órgãos judiciários
inferiores, por meio de decisões na via de exceção, submetendo à
sindicância a presunção de constitucionalidade de uma lei, ao STF cabe
a decisão final, ou definitiva. Concluindo-se pela inconstitucionalidade, o
efeito da decisão definitiva do STF seria incidental e inter partes,
cabendo desta feita ao Senado Federal a suspensão erga omnes da
eficácia da lei em questão, em atenção à norma do Art. 52, X, da
Constituição.

16
Cf. ADEODATO: 2002, p. 230, onde o autor faz um breve histórico sobre o assunto.
88 Existem Omissões Constitucionais?

Por outro lado, as decisões proferidas pelo STF no controle


concentrado de constitucionalidade, não sendo reconhecidas no âmbito
das competências privativas do Senado, passaram a ser oponíveis
contra todos pela própria natureza da decisão judicial. Desprezou-se,
assim, a participação daquela Casa do órgão legislativo federal na
configuração do alcance de uma declaração de inconstitucionalidade,
sem que isso fosse visto como uma grave ofensa ao princípio da
separação de poderes.

Ressalte-se que essa atribuição do Senado de suspender a


execução da lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF
já era prevista em norma equivalente da Constituição brasileira de
193417 (art. 91, IV), quando apenas havia o controle difuso18. Significa
dizer que a tradição do direito constitucional brasileiro sempre foi a de
exigir a participação do Senado no controle concreto de
constitucionalidade, por meio de sua atribuição de suspender erga
omnes a execução de uma lei declarada inconstitucional quando de
decisões incidentais do Judiciário. Nesse aspecto, o STF atuava apenas
como órgão último para a decisão definitiva sobre a matéria, em
contraste com os efeitos específicos do controle concentrado, de
competência originária daquele tribunal.

17
A norma da CB de 1934 referia-se a leis e atos declarados inconstitucionais pelo “Poder Judiciário”.
18
Observe-se que já era prevista uma espécie de ação direta de inconstitucionalidade na CF de 1934,
na forma de uma representação interventiva, mas que visava dar eficácia à lei formulada pelo Senado,
quando este órgão exercesse sua competência exclusiva para iniciativa de leis sobre intervenção
federal. Porém, não havia, ainda, um sistema concentrado para o controle de constitucionalidade de
leis estaduais e federais, o que só surgiu com a EC 16/65 à CF de 1946.
Marcelo Barros Jobim 89

Em que pese a inauguração do controle abstrato de leis


estaduais e federais ter ocorrido em 1965, com a promulgação da
Emenda Constitucional n. 16 à Constituição de 1946, toda a sistemática
do controle pela via direta, como a conhecemos hoje, foi desenvolvida
mais especificamente a partir da vigente Constituição de 1988.
Entretanto, quando promulgada, em 5 de outubro de 1988, a atual
Constituição foi silente quanto aos efeitos da decisão em sede de
controle concentrado, lacuna que só veio a ser suprida no plano
constitucional com a Emenda 45/2004, ao dar nova redação ao § 2.º do
artigo 102 do Texto Magno.
Ocorre que, mesmo antes dessa emenda, o STF já aplicava o
entendimento de que o Senado não participava do controle
concentrado, pois, como já observado, a express~o “decis~o definitiva”,
do inciso X do artigo 52 da norma constitucional originária, era
interpretada como última decisão, logo resultado de uma definição final
sobre a constitucionalidade de uma lei discutida em um caso concreto,
promovida incidentalmente em um determinado processo. O que parece
é que essa era uma postura açodada do STF, uma vez que tal aplicação
da Constituição estaria condicionada a uma inovação, nesse sentido, por
parte do Legislativo, no seu papel de constituinte reformador, o que só
ocorreu com a citada EC 45/2004. Não caberia ao STF uma
interpretação da Constituição com base em uma tradição constitucional,
cujos elementos caracterizadores só se transformam em direito
aplicável por meio de uma reprodução legislativa, porém jamais de uma
atividade interpretativa.
De fato, parecia ser mais coerente que uma decisão que
declara inconstitucional uma lei num processo objetivo, sem partes e
sem interesses concretos em jogo, tivesse efeitos gerais. E tal é o caso da
ação direta de inconstitucionalidade. Tanto é assim que a doutrina
pacificou o entendimento do Supremo.
90 Existem Omissões Constitucionais?

Perfeito. Mas a questão era definir qual órgão teria a


legitimidade de consagrar esse efeito. O inciso X do artigo 52,
aparentemente, dava essa legitimidade ao Senado, e a expressão
“decis~o definitiva” contida no dispositivo, que foi interpretada como
“última decis~o”, após os pronunciamentos dos órgãos judiciários
inferiores, também poderia ter o mesmo sentido em um processo de
competência originária do Supremo, em contraposição à precariedade
de uma liminar, por exemplo.
Não parece que a edição da Lei n.º 9.868/99 tenha resolvido
de forma legítima o impasse, quando estabeleceu, no parágrafo único do
artigo 28, que a declaração de constitucionalidade ou de
inconstitucionalidade teria “efic|cia contra todos e efeito vinculante”.
Primeiro, porque, sendo a matéria de origem constitucional, deveria ter
sido tratada pelo poder constituinte reformador; segundo, porque a lei
incorreu em outra ilegitimidade, ao estender tais efeitos à decisão em
sede de ação direta de inconstitucionalidade, quando estes tinham sido
definidos, aí sim, pela EC 3/93, apenas para a ação declaratória de
constitucionalidade, por ela então criada.
Pois bem. Posteriormente, com base no fenômeno
denominado de “mutaç~o constitucional”, a referida norma da
Constituição que dispõe sobre aquela competência privativa do Senado,
já mencionada, passou a ter outra interpretação, não tendo aplicação
efetiva sequer no controle difuso. Veja-se a flagrante distorção: aquilo
que a Constituição definiu como atribuição do Senado, e só deste
(privativa), passou para o STF por um discutível processo de mutação
constitucional, sem qualquer pronunciamento do órgão legislativo na
sua atribuição de constituinte reformador.
Marcelo Barros Jobim 91

O fenômeno da mutação constitucional

Antes de analisar esse verdadeiro efeito Wolverine, vale


explicar, em breves linhas, o legítimo fenômeno da mutação
constitucional. Tal fenômeno ocorre quando o texto da norma
constitucional passa por uma alteração semântica para contemplar os
novos valores e a nova realidade eventualmente surgidos na sociedade,
adequando-se a estes. Diferentemente da reforma constitucional, que é
realizada no órgão legislativo, com quórum qualificado e procedimento
especial, quando se altera o próprio texto da norma constitucional, na
mutação, o texto permanece e só o seu sentido é alterado. Se, na
reforma, corre-se o risco de uma alteração da Constituição sob os
auspícios de uma sazonal maioria parlamentar, quase sempre
indiferente aos reclamos da sociedade, na mutação o problema está na
utilização do fenômeno como fundamento para uma atuação do STF no
papel de um ilegítimo poder constituinte reformador.
É que, na linha de pensamento de Friedrich Müller (2009, p.
32), a alteração do sentido do texto, produzindo nova norma, tem no
próprio texto o seu limite, pois o programa da norma (texto) é apenas
uma porta de entrada para se descobrirem todas as variantes de
aplicação, representadas naquilo que o jurista alemão chama de âmbito
da norma. Ora, assim, o intérprete n~o pode “criar” um preceito
normativo que não tenha por base, pelo menos, um texto pré-definido.
Ele pode até criar direito, mas não pode criar texto de lei, no sentido de
promover uma inovação na ordem jurídica. Nessa sua atuação criativa, o
intérprete está sempre condicionado ao direito objetivo, cuja forma de
exteriorização é a linguagem prescritiva presente nos textos legais, o
que inclui a Constituição19. Veja-se que a própria ideia de valores
“implícitos”

19
Ver mais adiante a análise do julgamento efetivado na Reclamação 6568/SP.
92 Existem Omissões Constitucionais?

só são assim considerados quando “decorrentes do sistema ou dos


princípios” adotados pela ordem normativa constitucional (ver art. 5.º, §
2.º, da Constituição), tendo como principal exemplo o princípio da
proporcionalidade, que, apesar de não se encontrar escrito na
Constituição, foi originariamente reconhecido como direito positivo
decorrente do devido processo legal (art. 5.º, LV), visto na sua dimensão
substantiva (BRASIL, 1994).
Conclui-se, dessa rápida explicação, que a mutação
constitucional ocorre quando a norma constitucional pode ser adaptada
semanticamente às novas realidades políticas e sociais, podendo, por
essa razão, ser efetivada pelo órgão do Judiciário encarregado da defesa
da Constituição, enquanto Poder constituído. Já na reforma
constitucional, o texto do Diploma Magno não aceita mais qualquer
interpretação compatível com essas novas realidades, exigindo-se a
alteração mesma daquilo que o Constituinte elaborou. Daí a figura do
Poder constituinte reformador.
Curiosamente, esse Poder constituinte de reforma, no caso, o
Legislativo ordinário (com um quórum qualificado), é também
constituído, cuja natureza constituinte lhe é reconhecida pela função de
inovar na Constituição, respeitando-se os limites explícitos e implícitos.
Já o Judiciário, por não poder inovar na Constituição, tem sempre a
natureza de Poder constituído e jamais constituinte, sendo-lhe
permitido, apenas, alterações semânticas ao texto constitucional, como
no fenômeno da mutação.
Em síntese, pode-se dizer que, embora se apresente como um
legítimo fenômeno de alteração da Constituição, a mutação
constitucional pode se subverter em uma inconfessável usurpação de
poder por parte do Judiciário, quando este, por meio de seu órgão de
cúpula, investe-se, disfarçadamente, no papel de Poder constituinte, o
que não lhe cabe, em definitivo.
Marcelo Barros Jobim 93

Mais distorções funcionais

No caso acima analisado, a pretensa mutação constitucional


se deu nos efeitos da decisão inter partes, no caso concreto, sobre a
constitucionalidade de uma lei ou ato normativo. Quando o STF declara
a inconstitucionalidade de uma lei no sistema difuso, tal declaração
pode ser definida pela Corte Máxima como tendo efeitos erga ommes, o
que caracteriza a ideia de “abstrativizaç~o” do controle difuso. Mas,
como fica a norma do art. 52, X? Segundo a mais recente jurisprudência
do STF, a norma indica apenas que ao Senado cabe a publicização dos
efeitos da decisão, proferida pelo tribunal, que declarou a
inconstitucionalidade da lei no sistema difuso, mas já oponíveis contra
todos.
É de se estranhar que o Senado tenha se tornado uma espécie
de trombeta que, nas monarquias, anunciava as decisões do príncipe. E
isso por meio de uma construção hermenêutica, pois não há como se
extrair explicitamente essa conclusão a partir da norma em debate.
Porém, neste caso, parece que a ofensa ao princípio da separação de
poderes não está sendo vislumbrada com tanta intensidade como na
ideia de que a decisão do STF, em sede de controle de
inconstitucionalidade por omissão, a partir de expressa disposição
constitucional, tem o evidente e explícito efeito de, além de dar ciência
ao órgão competente de sua omissão, também determinar a adoção das
providências necessárias.
Entender de forma diferente é desconsiderar a força
normativa da Constituição, oportunamente enaltecida por Konrad
Hesse, em oposição aos modelos estéreis de constitucionalismo
existentes até meados do século XX, de ideologia liberal.
94 Existem Omissões Constitucionais?

Para se compreender o sentido de separação dos poderes no


Brasil, não se deve limitar-se a uma análise jurídica asséptica,
geralmente com base em doutrinas estrangeiras, muito distantes da
realidade político-social brasileira. Perspectivas históricas e
sociológicas, como a de Raymundo Faoro em “Os Donos do Poder”, j|
avaliadas acima, e sua leitura de um caráter patrimonialista do poder
político, é que fornecem os contornos mais nítidos da formação da
estrutura de poder no Brasil.
Pobre Constituição brasileira! Estudam-na como se fossem
professores da Sorbonne, mas, às vezes, aplicam-na como se fossem
senhores de engenho.
A preocupação do constituinte com a inefetividade da
Constituição foi tão séria que ele criou um mecanismo de solução de
omissões do poder público a ser manejado pelo próprio cidadão, além
do instrumento político da ação direta de inconstitucionalidade por
omissão (ADO), cujos legitimados estão previstos no art. 103 da
Constituição. Trata-se, como se sabe, do mandado de injunção, garantia
fundamental prevista no art. 5.º, LXXI, da Constituição, o qual deve ser
concedido sempre que a falta de norma regulamentadora “torne
inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das
prerrogativas inerentes { nacionalidade, { soberania e { cidadania”.
Uma das teses contrárias ao efeito concretizador que se deve
dar ao mandado de injunção, o que possibilitaria a definição, pelo
Judiciário, da forma como o impetrante exerceria o direito inviabilizado
pela falta de norma regulamentadora, é a que sustenta que, assim, a
garantia constitucional seria mais ampla do que o instrumento político
da ADO.
Marcelo Barros Jobim 95

Mas, em termos de política de efetividade constitucional,


nada mais salutar que a existência de dois instrumentos processuais
eficazes com o objetivo de impor ao poder omisso o exercício de sua
própria função, constitucionalmente estabelecida. Assim, a questão não
é tornar o mandado de injunção mais amplo que a ADO, mas, sim,
equipará-lo quanto aos seus efeitos, ou seja, que ambos possam ser
utilizados para exigir dos poderes públicos o efetivo cumprimento dos
seus deveres políticos.
Acontece que, embora a referida equiparação tenha de fato
ocorrido, tal se deu de forma negativa, pois a equivocada (conveniente?)
interpretação de que a ADO tem apenas o efeito de dar ciência ao poder
omisso foi transferida para o MI, embora hoje se tenha avançado para
uma postura mais próxima das teses concretistas. Paradoxalmente, a
equiparação de uma garantia constitucional a um instrumento de
controle de constitucionalidade, que, em tese, deveria representar um
incremento na sistemática de efetividade da Constituição e uma
ofensiva às omissões do poder público, resultou na verdade em uma
castração daquela garantia.
Em artigo publicado em 1998, Luís Roberto Barroso já
apontava as frustrações com a aplicação pelo STF do mandado de
injunç~o, aç~o constitucional que, na feliz express~o do autor, “foi sem
nunca ter sido”. Naquela oportunidade, Barroso (2011) chegou a propor
uma emenda constitucional, apresentando a seguinte sugestão para o
texto do § 1.º do art. 5.º da Constituição:
§ 1.º As normas definidoras de
direitos subjetivos constitucionais têm
aplicabilidade direta e imediata. Na falta de
norma regulamentadora necessária ao seu
pleno exercício, formulará o juiz competente
a regra que regerá o caso concreto
submetido à sua apreciação, com base na
analogia, nos costumes e nos princípios
gerais do direito.

Observam-se, na parte final do texto sugerido, ecos de uma


aplicação praeter legem de inspiração em François Geny, o qual já
reconhecia, em pleno século XIX, a incompletude real do ordenamento e
a necessidade de uma livre investigação científica do Direito. Tal
investigação exigiria dados objetivos para o processo de integração da
96 Existem Omissões Constitucionais?

ordem jurídica, baseando-se em estudos científicos seguros.


Utilizando uma metáfora, o que ocorreu foi um verdadeiro
“abraço de afogados” entre o mandado de injunç~o e a ação direita de
inconstitucionalidade por omissão. Coisas do Brasil, mas não no sentido
dos versos da canç~o: “Mais uma vez, amor/ Te abraçar de verdade/ H|
sempre um novo amor/ Uma nova saudade”. N~o. Nos “abraços de
afogados”, tantas vezes realizados no Brasil, há sempre uma nova dor,
uma nova fraude.
Ao contrário, para se incrementar o sistema de controle das
omissões no Brasil, o ideal é reconhecer que o resultado prático das
ações constitucionais em tela é mesmo o de injungir o poder omisso a
agir. Isso mesmo, injungir, de injunção, o que significa impor, obrigar.
Não existem palavras vãs na Constituição. Se o poder constituinte
originário previu um mandado de injunção quando da falta de norma
regulamentadora de direitos constitucionais e, no caso da ADO, que seja
dada ciência ao poder competente para a adoção das providências
necessárias, como sustentar que um poder constituído teria a
legitimidade de reduzir o seu alcance processual?

Entre o definitivo e o exclusivo na função jurisdicional

O art. 102 da Constituição, que prevê a competência precípua


do STF como guardião da ordem constitucional, não pode ser
interpretado de forma enviesada. Também essa competência deve ser
avaliada por seu caráter instrumental, a partir das observações feitas,
linhas atrás, sobre a norma constitucional do parágrafo único do artigo
1.º da Constituiç~o: “Todo poder emana do povo [...]”. Como visto, essa
norma implica o reconhecimento de que o poder estatal é uma mera
ferramenta para a consecução dos fins almejados pelo povo, em
consonância com o ideal republicano.
Marcelo Barros Jobim 97

Ser o STF o guardião da Constituição não retira o caráter


instrumental dessa competência precípua. Ora, guardar a Constituição é,
dentre tantas outras coisas, efetivá-la na forma como vem disciplinado
no Texto Fundamental. Processualmente, é dar às ações constitucionais
o devido sentido e aplicação que lhes é inerente; materialmente, é
concretizar os programas e metas políticas em sede de direitos sociais,
mesmo que isso implique um processo de judicialização política, que,
como todo instituto político, não é um mal em si mesmo, mas que deve
ser realizado com todas as cautelas e critérios.
Veja que não se refere aqui a fins do Estado, mas a fins
almejados pelo povo. É claro que essa ideia pode esbarrar na questão
sobre quem tem a legitimidade para definir quais os fins desejados pelo
povo. Nesse caso, a cláusula do STF como guardião da Constituição vem
novamente a se confrontar com aquela de que todo poder emana do
povo. Isso pode se tornar um círculo vicioso, cuja solução pode estar no
incremento dos mecanismos democráticos de participação popular. Tais
mecanismos podem ser estudados doutrinariamente a partir das teses
de pensadores como Habermas e o seu “agir comunicativo”; Peter
Hberle e a sua “sociedade aberta dos intérpretes da Constituiç~o”; ou
Robert Alexy e a sua democracia argumentativa.

Destaque-se, apenas para ilustração, a proposta de Alexy;

A representação argumentativa
dá bom resultado quando o tribunal
constitucional é aceito como instância de
reflexão do processo político. Isso é o caso,
quando os argumentos do tribunal
encontram uma repercussão no público e
nas instituições políticas, que levam a
reflexões e discussões, que resultam em
convencimentos revisados. Se um processo
de reflexão entre público, dador de leis e
tribunal constitucional estabiliza-se
duradouramente, pode ser falado de uma
institucionalização, que deu bom resultado,
dos direitos do homem no estado
constitucional democrático (ALEXY, 2011, p.
54).
98 Existem Omissões Constitucionais?

Essa tese faz surgir o entendimento de que o grande


problema da democracia contemporânea não é de fato a possível
interferência de um poder contramajoritário (Judiciário) nas atividades
de um poder cujos membros são eleitos democraticamente. Na verdade,
toda a dificuldade está em aceitar que esse poder, formado por
membros não escolhidos por um processo aberto ao público, decida
sozinho, em uma espécie de um questionável poder exclusivo.
A alternância entre o prevalecimento da cláusula do STF como
guardião da Constituição e a do todo poder emana do povo está
relacionada a uma mais ou menos efetiva consolidação dos ideais de um
Estado democrático. Nesse ponto, a Constituição aparece como
“acoplamento estrutural” entre política e direito, buscando uma
conciliação entre as ideias de soberania do Estado e soberania do povo.

O paradoxo da soberania
política e jurídica do Estado, solucionado do
ponto de vista intra-sistêmico mediante a
Constituição como acoplamento estrutural,
vai ser solucionado na perspectiva extra-
sistêmica por meio da referência à
soberania do povo: decisões políticas
(também decisões constituintes) e normas
jurídicas (inclusive normas constitucionais)
baseiam-se, por fim, na soberania do povo
assubjetivada e construída discursivamente
(democracia) (NEVES, 2008, p. 165 – itálico
no original).

A Corte Máxima não pode se arvorar no papel exclusivo de


definir os interesses da coletividade, invocando a sua competência
precípua, embora tenha a grave função de decidir por último, de forma
definitiva, ou até “errar por último”, como sugeriu Rui Barbosa no início
da República brasileira.
Marcelo Barros Jobim 99

Mas definitividade não pode ser confundida com


exclusividade. Decidir por último não impede que a decisão esteja
lastreada em um diálogo institucional ou mesmo com a sociedade civil
organizada, já de certa forma instrumentalizado por meio do amicus
curiae e das audiências públicas. Esse é o grande desafio da democracia
contemporânea, e não se pode fugir dessa nova realidade, debatendo-a e
aprimorando-a, sob pena de se esvaziar todo o conteúdo social da
Constituição, em eternas omissões.
Até para que se possa efetivar um controle efetivo, eis o que
se deve encarar como papel institucional de alta relevância do
Judiciário, quando este é acionado por instrumentos processuais
previstos na Constituição para decidir em face de omissões: tanto a
definição concreta de direitos sociais, ou mesmo de regulamentações
temporárias, quanto a determinação ao poder omisso para o
cumprimento de seus deveres constitucionais.
Não se está enaltecendo o Judiciário em detrimento das
demais funções, pois até foram suscitadas aqui (e mais serão vistas logo
adiante) as hipóteses de desvios também da função jurisdicional,
representadas na forma excessiva como se compreende a cláusula de
ser o STF o guardião da Constituição, bem como as desvantagens de
uma definição exclusiva. Está-se apenas desvelando a relevância da
função jurisdicional, principalmente enquanto órgão de cúpula, pois,
como visto, na compreensão de uma estrutura escalonada de poder, ali
se encontram as maiores responsabilidades, e não inadmissíveis
prerrogativas de cunho aristocrático.
A ideia de o STF ser o guardião da Constituição não pode
tornar o Judici|rio o “superego de uma sociedade órf~” (MAUS, 2000)
nem ser uma nova vers~o da doutrina do “elitismo democr|tico”, que
serviu de base ideológica para o regime militar no Brasil. Tal doutrina
ensinava que o povo precisava ser preparado para a democracia.
Enquanto isso não acontecia, caberia às elites dirigentes a condução do
processo político, sem a participação popular, até que esta fosse
possível, quando o povo tivesse alcançado a almejada maturidade social.
100 Existem Omissões Constitucionais?

Na precisa crítica de José Afonso da Silva, a equivocada


doutrina confundia pressupostos com objetivos da democracia, ao
observar que

A democracia não precisa de


pressupostos especiais. Basta a
existência de uma sociedade. Se seu
governo emana do povo, é
democrática; se não, não o é. A
sociedade primitiva fora democrática.
A sociedade política – estatal – passara
a n~o ser. Por isso, nesta “a democracia
pressupõe luta incessante pela justiça
social”20. Não pressupõe que todos
sejam instruídos, cultos, educados,
perfeitos, mas há de buscar distribuir a
todos instrução, cultura, educação,
aperfeiçoamento, nível de vida digno.

E mais adiante, arremata:

A Constituição estrutura um
regime democrático consubstanciando esses
objetivos de igualização por via dos direitos
sociais e da universalização das prestações
sociais (seguridade, saúde, previdência e
assistência sociais, educação e cultura). A
democratização dessas prestações, ou seja, a
estrutura de modos democráticos
(universalização e participação popular),
constitui fundamento do Estado
Democrático de Direito, instituído no art.
1.º. Resta, evidentemente, esperar que essa
normatividade constitucional se realize na
prática (SILVA, 2012, p. 128).

20
Aqui, Afonso da Silva faz uma referência a Claude Julien, em seu livro O Suicídio das
Democracias.
Marcelo Barros Jobim 101

As responsabilidades mais evidentes do órgão de cúpula,


como o Supremo Tribunal Federal, exigem que o processo de suas
decisões permita uma abertura necessária e adequada, no sentido
luhmanniano de “abertura cognitiva”, mas com fechamento operacional.
Este fechamento serviria para evitar o que Marcelo Neves chama de
“obst|culos { autorreferência”, um dos principais problemas do Estado
democrático na denominada “modernidade periférica”21 (NEVES, 2008,
p. 238).
Para uma melhor compreensão do problema, veja-se a
resumida observação do autor, expressa em interessante livro, ao qual
se remete o leitor:

A partir da sociedade
envolvente, os sistemas jurídicos e políticos
são bloqueados generalizadamente na sua
autoprodução consciente por injunções
heterônomas de outros códigos e critérios
sistêmicos, assim como pelos
particularismos difusos que persistem na
ausência de uma esfera pública pluralista.
No interior do Estado, por sua vez,
verificam-se intrusões destrutivas do poder
na esfera do direito (NEVES, 2008, p. 239).

Explica-se. De acordo com o pensamento de Niklas Luhmann,


o Direito seria um dos sistemas sociais, ao lado de outros sistemas,
como o político e o econômico. Cada um desses sistemas possui um
respectivo código binário, combinado sempre no sentido
positivo/negativo: lícito e ilícito, no sistema jurídico; poder e não poder,
no sistema político; e ter e não ter, no sistema econômico etc. O
importante, nessa teoria, é observar a distinção entre auto-organização
e autopoiese. Para Luhmann, a auto-organizaç~o é a “construç~o de
estruturas próprias dentro do sistema”, enquanto a autopoiese é a
“determinaç~o do estado posterior do sistema, a partir da limitaç~o
anterior { qual a operaç~o chegou” (LUHMANN, 2009, p. 112 e 113).
Assim, cada sistema se reproduz por seus próprios meios (autopoiese),
mas condicionado por estruturas previamente construídas (auto-
organização).

21
O Brasil estaria incluído entre os países da modernidade periférica, em contraste com os países da
“modernidade central”, como os Estados Unidos e as nações europeias, os quais também enfrentariam
outros problemas em seu modelo de Estado democrático.
102 Existem Omissões Constitucionais?

Entretanto, apesar de autônomos, os sistemas sofrem


interferências uns dos outros (comunicação), no sentido da relação
entre sistema e meio (acoplamento estrutural). Mas a influência causal
que se observa nesta
relação sistema/meio se dá apenas no âmbito das estruturas, ou seja, ela
se situa “exclusivamente no plano dos acoplamentos estruturais – o que
significa dizer que estes devem ser compatíveis com a autonomia do
sistema” (LUHMANN, 2009, p. 130).

Nunca se deve perder de vista


que o acoplamento estrutural é compatível
com a autopoiesis, e que, por conseguinte,
há possibilidade de influir no sistema, desde
que não se atente contra a autopoiesis. Isso
pode ser formulado de modo inverso: a
linha de demarcação que divide o meio,
entre aquilo que estimula ao sistema e
aquilo que não o estimula – e que se realiza
mediante o acoplamento estrutural –, tende
a reduzir as relações relevantes entre
sistema e meio a um âmbito estreito de
influência (LUHMANN, 2009, p. 132 –
itálicos no original).

O Direito, por exemplo, é influenciado pelo sistema


econômico, mas, ao reproduzir uma norma, eventualmente provocado
por essa influência, assim o faz de acordo com as regras procedimentais
previstas no próprio ordenamento jurídico, garantindo-se o critério da
legitimidade. Ocorre que, na precisa análise de Marcelo Neves, o modelo
luhmanniano da autopoiese é intransponível para a realidade brasileira,
pois aqui as “sobreposições particularistas do código político e
econômico às questões jurídicas impossibilitam a construção da
identidade do sistema jurídico” (NEVES, 1996).
Ainda segundo Marcelo Neves, no direito brasileiro, caberia
falar-se em alopoiese, em contraste a um sistema autopoiético, pois, no
Brasil,
Marcelo Barros Jobim 103

O intricamento do(s) códigos(s)


jurídico(s) com outros códigos sociais atua
utodestrutivamente e
heterodestrutivamente. O problema não
reside, primariamente, na falta de abertura
cognitiva (heterorreferência ou adaptação),
mas sim no insuficiente fechamento
operacional (autorreferência), que
obstaculiza a construção da própria
identidade do sistema jurídico. [...] Daí
resulta que a própria distinção entre lícito e
ilícito é socialmente obnubilada, seja por
falta de institucionalização (consenso) ou de
identificação do sentido das normas. A
consequência mais grave é a insegurança
destrutiva nas relações de conflitos de
interesses (NEVES, 1996).

É a partir dessa análise de Marcelo Neves, no sentido do


caráter alopoiético do direito no Brasil, que se propugna aqui por uma
maior participação popular no processo constitucional, por meio de um
maior diálogo com a sociedade, promovendo-se uma definitividade sem
exclusividade das decisões do órgão de cúpula.
A grande discussão, que desde já se propõe, é se nesse
diálogo, ou ainda na “abertura cognitiva”, pode-se debater, além de
questões de direito material, questões também de direito processual,
como, por exemplo, o alcance dos efeitos das decisões judiciais que
visam controlar as omissões do poder público. Nesse ponto, surge a
necessidade de uma “intermediaç~o do dissenso conteudístico através
do consenso processual” (NEVES; 2008, p. 136).
O pluralismo da sociedade não pode impedir um consenso em
matéria de procedimento. Na opinião de Marcelo Neves, é preciso
“conviver construtivamente” com um impasse inerente ao Estado
democrático de Direito da sociedade moderna, qual seja, o aparente
paradoxo entre o aumento dos encargos do Estado, em face da
complexidade social, e a redução da capacidade regulatória do direito,
104 Existem Omissões Constitucionais?

O pluralismo da sociedade não pode impedir um consenso em matéria


de procedimento. Na opini~o de Marcelo Neves, é preciso “conviver
construtivamente” com um impasse inerente ao Estado democrático de
Direito da sociedade moderna, qual seja, o aparente paradoxo entre o
aumento dos encargos do Estado, em face da complexidade social, e a
redução da capacidade regulatória do direito, provocada por essa
mesma complexidade de uma sociedade diferenciada funcionalmente
em sistemas autônomos (NEVES, 2008, p. 234).
Ao invés de superar esse impasse, deve-se promover uma
convivência construtiva com ele, “fortificando a capacidade de
aprendizado (abertura cognitiva) dos sistemas político e jurídico não
apenas em relação aos demais sistemas sociais, mas também em relação
aos influxos de informação que emergem criativamente da esfera
pública pluralista e promovem a reciclagem do respectivo sistema”
(NEVES, idem).
A participação da sociedade deve se aliar às cobranças
institucionais no sentido de uma maior efetividade da Constituição,
visando a um controle mais eficaz das omissões do poder público, sendo
inconcebível que essas cobranças esbarrem em um conceito rigoroso de
separação de poderes. No que toca ao papel do Judiciário, ou no sentido
aqui exposto, da função jurisdicional do Estado, o controle das omissões
se dá tanto pela própria atuação dos tribunais e demais órgãos
jurisdicionais, por meio de decisões integradoras que suprem
temporariamente as lacunas legislativas ou definem direitos no caso
concreto para a parte, quanto por decisões de natureza mandamental,
que compelem o poder omisso à adoção das providências necessárias.
Não só na relação do Estado Democrático de Direito com a
“sociedade envolvente”, a quest~o da heterorreferência também diz
respeito ao vínculo complexo entre o jurídico e o político, o que Marcelo
Neves indica metaforicamente com as figuras mitológicas de Têmis e
Marcelo Barros Jobim 105

Leviatã (NEVES, idem). A expansão inadequada do político em


detrimento do funcionamento do jurídico implica a formação de
fenômenos controvertidos, tais como a “judicializaç~o da política” ou a
“politizaç~o da justiça”. Com isso, apresentam-se alguns problemas,
dentre os quais “aponta-se o excesso da atividade jurisdicional de
controle do Legislativo e do governo, acentuado-se que, dessa maneira,
reduz-se o espaço da discussão política e fica prejudicada a legitimação
democr|tica” (NEVES, 2008, p. 235).
Entretanto, o problema não se resolve com a mera redução
das competências da corte constitucional, que tem produzido uma
atividade cada vez mais crescente e vinculante22, nem dos recursos e
remédio constitucionais. Para Marcelo Neves, a força política
majoritária também pode atuar de forma a desrespeitar a Constituição,
comprometendo direitos da minoria, o que “envolve o perigo totalit|rio
das concepções hiperdemocr|ticas do Estado” (NEVES, idem). Assim, no
Estado de Direito atual, torna-se imprescindível o controle judicial da
constitucionalidade dos atos legislativos e governamentais (NEVES,
idem).
Esse ativismo judicial, ou “estado-jurisdiç~o”, que supera o
“estado-dador de leis parlamentar”, faz parte de um processo político
que não pode mais ser detido (ALEXY, 2011, p. 75). Na sistemática
jurídica contemporânea, trata-se de um fenômeno que não deve ser
combatido como um mal em si mesmo, mas, sim, cada vez mais bem
avaliado, para se evitarem possíveis excessos. Tais excessos devem ser
oportunamente identificados, para se permitir uma precisa
diferenciação entre as formas abusivas e as suas versões legítimas.

Excessos da função jurisdicional


Como exemplo desses possíveis excessos, apontam-se aqui
alguns casos de intervenções ilegítimas em outras funções e os de
preenchimentos discutíveis de espaços constitucionais 23.

22
Marcelo Neves dá como o exemplo os tribunais constitucionais da Europa, especialmente o da
Alemanha.
23
Robert Alexy fala de “espaços estruturais” e “espaços epistêmicos” (2011, p. 78-92).
106 Existem Omissões Constitucionais?

Tomemos como exemplo de intervenções ilegítimas as


seguintes situações: a) definição, pelo Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), sobre o prazo de três anos de atividade jurídica, previsto no art.
93, I, da Constituição; b) definição, pelo Tribunal Superior Eleitoral,
sobre o número de vagas a serem disputadas na Câmara dos Deputados,
na forma da Lei Complementar n.º 78/93, que veio dar efetividade ao
art. 45, § 1.º, da Constituição.
Como exemplo de preenchimentos discutíveis de espaços
constitucionais, aponta-se a definição de categorias de servidores
públicos que “n~o podem” exercer o direito de greve, em raz~o de
suposta proibição da própria Constituição.
No primeiro caso (intervenção ilegítima), o CNJ, que, embora
integre o Judiciário, não exerce função jurisdicional, não parece ter
legitimidade para definir o período que caracteriza o prazo de três anos
de atividade jurídica. Se a função do órgão censor é controlar o
Judiciário, quando ele condiciona, pela Resolução n.º 75 (artigo 23, § 1º,
a), o início do prazo para a contagem dos três anos, excluindo as
atividades anteriores à colação de grau, ele está interferindo de forma
restritiva não na atividade de juízes, mas no interesse de cidadãos
candidatos em concurso da magistratura. Nesse ponto, ao que parece, o
CNJ realizou uma restrição ilegítima de direitos políticos (acesso a cargo
público), pois não há previsão constitucional de que aquele órgão do
Judiciário possa interferir em interesses dos cidadãos, pois a ele apenas
compete o “controle da atuação administrativa e financeira do Poder
Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes” (cf. art.
103-B, § 4.º).
Por outro lado, ao TSE também não parece caber legitimidade
para definir o número de vagas para deputados federais em cada
unidade federativa. É que sua atividade restringe-se ao processo
eleitoral, e não pode interferir no tema de representação política
democrática dos Estados-membros. Nesse caso, apresenta-se
flagrantemente inconstitucional a Lei Complementar n.º 78/93, que deu
àquele órgão do Judiciário uma atribuição que exorbita as suas
competências, constitucionalmente estabelecidas.
Marcelo Barros Jobim 107

Em ambos os casos, as matérias são reservada à lei em


sentido formal: tanto a restrição de direitos políticos, representados no
direito de acesso a cargos públicos, quanto o condicionamento da
democracia representativa. As matérias estão carentes de definição
legal, caracterizando-se uma omissão legislativa, mas que não podem,
nesses casos, ser supridas pela função jurisdicional.

Aparente (e ilegítima) atuação constituinte do STF

Na segundo hipótese (preenchimentos discutíveis de espaços


constitucionais), o STF não parece ter legitimidade para dizer além do
que foi definido pelo Poder constituinte, no sentido de indicar quais
categorias de servidores públicos não têm direito à greve. Não há uma
linha sequer na Constituição que permita esse entendimento e o STF
não pode utilizar sua competência de guardião da Constituição para
criar normas constitucionais, pois é um poder constituído e não
constituinte.
Foi o que ocorreu no julgamento da Reclamação 6568/SP. O
processo teve a relatoria do ministro Eros Roberto Grau, que
chegou a recorrer a Santo 24 Tomás de Aquino para fundamentar seu
voto, que concluiu pelo não enquadramento de certas categorias de
servidores públicos no direito de greve previsto no artigo 37, VII, da
Constituição. Adiante, apenas a título de ilustração, transcreve-se trecho
da ementa do julgado:

24
Apenas por curiosidade, é interessante observar que tanto se pode falar de Santo ou São Tomás de
Aquino. Mas, por uma questão de eufonia, dispensa-se a segunda forma, para se evitar justamente a
cacofonia “santo más” (Fonte: site Catolicismo: Revista de Cultura e Atualidades –
www.catolicismo.com.br).
108 Existem Omissões Constitucionais?

3. Doutrina do duplo efeito,


segundo Tomás de Aquino, na Suma
Teológica (II Seção da II Parte, Questão 64,
Artigo 7). Não há dúvida quanto a serem,
os servidores públicos, titulares do
direito de greve. Porém, tal e qual é lícito
matar a outrem em vista do bem comum,
não será ilícita a recusa do direito de
greve a tais e quais servidores públicos
em benefício do bem comum. Não há
mesmo dúvida quanto a serem eles titulares
do direito de greve. A Constituição é,
contudo, uma totalidade. Não um conjunto
de enunciados que se possa ler palavra por
palavra, em experiência de leitura bem
comportada ou esteticamente ordenada.
Dela são extraídos, pelo intérprete, sentidos
normativos, outras coisas que não somente
textos. A força normativa da Constituição é
desprendida da totalidade, totalidade
normativa, que a Constituição é. Os
servidores públicos são, seguramente,
titulares do direito de greve. Essa é a regra.
Ocorre, contudo, que entre os serviços
públicos há alguns que a coesão social
impõe sejam prestados plenamente, em sua
totalidade. Atividades das quais
dependam a manutenção da ordem
pública e a segurança pública, a
administração da Justiça --- onde as
carreiras de Estado, cujos membros
exercem atividades indelegáveis, inclusive
as de exação tributária --- e a saúde pública
não estão inseridos no elenco dos
servidores alcançados por esse direito
[...] (BRASIL, 2009 – sem negritos no
original).

Não é por acaso que o fundamento do julgado acima se baseia


em Tomás de Aquino (1225-1274). Diretamente influenciado por
Aristóteles, o teólogo da Igreja Católica elaborou, no século XIII, uma
filosofia que encarava os problemas do mundo sob um ponto de vista
especialmente teórico. Essa característica do pensamento tomista está
expressa de forma clara na infeliz construção teórica do ministro Eros
Grau: “tal e qual é lícito matar a outrem em vista do bem comum [sic],
não será ilícita a recusa do direito de greve a tais e quais servidores
públicos em benefício do bem comum”.
Marcelo Barros Jobim 109

Embora se reconheça que o direito à vida não é um direito


absoluto, como todos os direitos fundamentais, que podem vir a ser
restringidos quando em conflito com outros valores
constitucionalmente consagrados, a questão é que muito dificilmente se
poderia reconhecer a licitude de “matar a outrem em vista do bem
comum”. Tanto os casos, por exemplo, de legítima defesa, de estrito
cumprimento do dever legal ou de estado de necessidade envolvem uma
situação de perigo iminente que coloca em risco atual a vida do
indivíduo ameaçado. Isto é, a exclusão da ilicitude quando do atentado à
vida de alguém é reconhecida em vista do bem individual, ou seja,
daquele que sofre injusta ameaça, com iminente perigo de ver também a
sua vida ceifada por outrem. Em que situação a ordem jurídica
brasileira legitima tal restriç~o { vida “em vista do bem comum”?
Mesmo a previs~o constitucional da “pena de morte em caso
de guerra declarada” (art. 5.º, XLVII, a), que, em tese, legitimaria a
restrição do direito à vida em nome do bem comum, já vem sendo
questionada pela doutrina, e foi, inclusive, objeto de oportuno
projeto de lei25 (PL 559/2003) que visava excluir a pena de morte do
Código Penal Militar.
Por outro lado, agora com relação à restrição ao direito de
greve do servidor público, a Lei n.º 7.783/89, que foi aplicada por
analogia pelo próprio STF no MI 708/DF, não proíbe a greve nos
denominados serviços essenciais. O art. 11 da lei em tela faz a distinção
entre “serviços ou atividades essenciais” e “serviços indispens|veis ao
atendimento das necessidades inadi|veis da comunidade”, os quais
estão incluídos naqueles. In verbis:

Art. 11. Nos serviços ou


atividades essenciais, os sindicatos, os
empregadores e os trabalhadores ficam
obrigados, de comum acordo, a garantir,
durante a greve, a prestação dos serviços
indispensáveis ao atendimento das
necessidades inadiáveis da comunidade.

25
O Projeto de Lei 559/2003 foi arquivado em 06.03.2008, nos termos do art. 105 do Regimento
Interno da Câmara dos Deputados. Sobre o tema cf. o nosso livro Pena de Morte no Brasil: um
desafio às cláusulas pétreas, publicado pela Nossa Livraria.
110 Existem Omissões Constitucionais?

Parágrafo único. São


necessidades inadiáveis, da comunidade
aquelas que, não atendidas, coloquem em
perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou
a segurança da população.

Ora, se a própria lei utilizada na analogia prevê a greve em


serviços dessa natureza, e a Constituição, por sua vez, não exclui
qualquer categoria de serviço público do referido direito, então a única
e óbvia conclusão a que se pode chegar é que o STF não tem o poder de
afastar tal ou qual categoria deste importante direto social.
Nesse caso, mais uma vez, o STF atropela a competência
exclusiva do Poder constituinte reformador e inova na ordem
constitucional, criando um verdadeiro texto de lei, inexistente na
Constituição. Pior: em vez de exercer a sua capacidade criativa judicial
para criar direito, o tribunal suprimiu, de forma desarrazoada, um
direito fundamental, que, por sinal, em atenção aos limites materiais,
não poderia sequer ser restringido, nem mesmo pelo poder constituinte
reformador.
Diante de flagrantes omissões legislativas, como a ausência de
lei específica sobre greve no serviço público, o STF vem, ao que parece
sugerir, atropelando suas funções. Se, num momento, procura respeitar
o princípio da separação dos poderes, entendendo que apenas deve dar
ciência ao poder competente, por outro lado compromete o princípio
republicano, ao extrapolar suas próprias funções, interferindo em
questões de reserva de lei ou atuando, de forma ilegítima, como poder
constituinte.
São essas distorções da judicialização da política que devem
receber uma maior atenção, mas não o ativismo judicial em si, pois o
reconhecimento da noção política da função jurisdicional é compatível
não só com o aspecto mesmo de função estatal, como também com o
papel do Judiciário em uma sociedade pluralista. Tais distorções do
sistema devem ser enfrentadas com responsabilidade e não servirem
como base para argumentos contrários, pura e simplesmente.
Marcelo Barros Jobim 111

Conflito entre as funções; crise entre os “poderes”

É importante lembrar que, em verdade, existem duas funções


estatais: a de criar a lei e a de aplicá-la. No Estado, a função de aplicar a
lei se apresenta de duas formas: ou pela atuação do direito objetivo na
condição de parte interessada (no caso, a função executiva); ou pela
atuação ainda do direito objetivo como um terceiro imparcial, quando
da resolução de conflitos de interesses no caso concreto (no caso, a
função jurisdicional).
Ocorre que, cada vez mais, o Judiciário decide questões em
abstrato, principalmente no sistema de controle concentrado de
constitucionalidade, que é um processo objetivo sem partes; ou mesmo
no sistema de controle difuso de constitucionalidade, quando vem agora
abstrativizando os efeitos das decisões, como visto alhures.
Curiosamente, o papel político do Judiciário se apresenta não só com
atuações concretas, típicas da função executiva, como também em
atuações de cunho abstrato e com características de generalidade,
típicas da função legislativa.
Essa atuação abrangente da função jurisdicional, combinada
com a omissão das demais funções políticas, típicas de outros “poderes”,
resulta numa fórmula explosiva para a relação entre as instituições.
Como sintoma evidente, cite-se a PEC 33/2011, que visa controlar as
decisões do STF pelo Congresso Nacional, trazendo a seguinte ementa:

Ementa: Altera a quantidade


mínima de votos de membros de tribunais
para declaração de inconstitucionalidade de
leis; condiciona o efeito vinculante de
súmulas aprovadas pelo Supremo Tribunal
Federal à aprovação pelo Poder Legislativo e
submete ao Congresso Nacional a decisão
sobre a inconstitucionalidade de Emendas à
Constituição.26

26
Fonte: Site da Câmara dos Deputados.
Colhido em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=503667
Acesso em 29 de maio de 2013.
112 Existem Omissões Constitucionais?

A PEC 33/2011 é o paroxismo de uma paranoia institucional,


resultante única e exclusivamente da negligência dos órgãos políticos
em cumprir as suas respectivas funções. Na verdade, é uma questão de
desequilíbrio na balança das instituições:
a defasagem na atuação de umas acarreta a exacerbação na atuação de
outras. Chega-se ao ponto em que as instituições omissas, de tanto
serem cobradas por outras, terminam por, numa espécie de resquício de
honra nobiliárquica, exigir respeito de sua posição institucional e
buscam criar mecanismos de restrição e controle dos órgãos
“cobradores”. Uma verdadeira deturpaç~o do sistema de freios e
contrapesos, caracterizando uma odiosa guerra institucional.
O equilíbrio entre os “poderes” se concretiza com a atuaç~o
de cada um deles em suas respectivas funções, cumprindo efetivamente
as exigências constitucionais e fomentando a independência e a
harmonia entre eles. Cada um cumprindo de forma legítima e efetiva as
suas funções, evitando-se as omissões, é que todos poderão superar as
crises institucionais causadas pelas interferências recíprocas, que só se
tornam de fato ilegítimas quando ultrapassam os critérios previstos
objetivamente na própria Constituição.
Marcelo Barros Jobim 113

Capítulo 4
O controle das omissões pela função jurisdicional:
uma questão de justiça constitucional

Em tópico que procura avaliar o papel da jurisdição


constitucional na visão da política liberal, republicana e procedimental,
Habermas se concentra nas teses do constitucionalismo americano, com
base em Frank I. Michelman27, para demonstrar a diferença entre o
paradigma “liberal” e o paradigma “republicano”, duas tradições de
interpretação da Constituição que, segundo o autor, “concorrem entre si
na realidade constitucional” (HABERMAS, 1997, p. 332). Assim, o
filósofo alemão parte do entendimento de que a diferença decisiva
consiste na compreensão do processo democrático, para observar que,
segundo a visão liberal, “o processo democrático desempenha a tarefa
de programar o Estado no interesse da sociedade”, com o Estado
representado na administração pública, e “a sociedade como sistema de
seu trabalho social e do intercâmbio das pessoas privadas, estruturado
conforme a economia de mercado” (HABERMAS, idem).
Nesse contexto, a política, para Habermas, é vista como o
processo de formação política da vontade dos cidadãos, e tem a função
de promover os interesses sociais privados em oposição a todo um
aparelhamento estatal que se “especializa no uso administrativo do
poder político para fins coletivos”.
Em confronto com essa visão liberal, Habermas aponta que,
na “interpretaç~o republicana”, a política n~o tem apenas essa funç~o
mediadora, assumindo, além disso, um papel constitutivo “para o
processo de socializaç~o como um todo”. Ainda segundo Habermas,
nesse novo papel, a “Política” é entendida como forma de reflexão de
um contexto vital ético, ou seja, como um meio no qual os membros de
comunidades solidárias tornam-se conscientes de sua “dependência
recíproca”. E arremata:

27
Professor de Direito Constitucional da Universidade de Havard e autor do livro Brenann and
Democracy, Princenton University, 2011. Nesse livro, Michelman mostra como importantes questões
sociais são consolidadas não pelo Legislativo, mas por decisões judiciais, analisando especificamente
a atuação do Juiz da Suprema Corte americana, William Brennan, que durante décadas foi
considerado modelo de “ativista judicial” nos Estados Unidos.
114 Existem Omissões Constitucionais?

Com isso, a arquitetônica liberal


do Estado e da sociedade é submetida a uma
modificação importante: ao lado da
instância reguladora hierárquica do poder
supremo do Estado e da instância
reguladora descentralizada do mercado,
portanto, ao lado do poder administrativo
e do interesse próprio individual, entram
a solidariedade e a orientação do bem
comum como uma terceira fonte da
integração social. Essa formação política
horizontal da vontade, que depende de
entendimento ou consenso obtido
comunicativamente, deve ter a primazia,
tanto do ponto de vista genético como
normativo (HABERMAS, 1997, p. 333 – sem
negritos no original).

É com base nessa perspectiva republicana de interpretação


constitucional que se propõe aqui uma forma de compreender a noção
de Justiça constitucional. Ela vai além dos conceitos meramente formais,
que colocam o Estado na posição de um intermediador entre os
problemas sociais, e aponta no sentido de uma participação ativa das
instituições, inclusive as judiciárias, no processo de realização da
Constituição ou, mais especificamente, de maximização dos direitos
sociais.
Ela busca superar, ainda, uma abordagem metafísica e
idealista do fenômeno político, o qual não pode ser dissociado de seus
vínculos estruturais com o poder econômico, desmistificando os
conceitos abstratos (ou indeterminados), típicos do pensamento
jurídico tradicional, que tentam, secularmente, construir um ideal vazio
de “vontade coletiva”. A partir de uma proposta marxista, reconhece-se
que, para a compreensão do Estado e da política, é necessário o
entendimento de sua posição relacional, estrutural, histórica, dinâmica
e contraditória dentro da totalidade da reproduç~o social” (MASCARO,
2013, p. 11).
Marcelo Barros Jobim 115

Mas se o marxismo se apresenta, na visão de Alysson


Mascaro, “como a mais alta contribuiç~o para a compreens~o do Estado
e da Política nas sociedades contempor}neas” (MASCARO, idem),
exatamente por ampliar os horizontes tradicionais, atrelando o âmbito
do político e do estatal “{ din}mica da totalidade da reproduç~o social
capitalista”, a reação não se limita nem deve se limitar a essa
compreensão. É preciso que se encontrem respostas imediatas, ainda
que pelas vias institucionais do Estado, pelo menos enquanto este ainda
for condicionado pelas categorias econômicas. Ressalte-se que a
superação desta realidade, ou deste dado apresentado como
irreversível, encontra sérios obstáculos, pois, como ainda observa o
autor, mesmo em momentos de crise capitalista, o poder do capital
cresce e se renova, “justamente pela fraqueza geral e sistem|tica dos
demais agentes sociais e, também, pelo caráter quase sempre reativo ou
meramente reformista das instituições políticas” (MASCARO, 2013, p.
127).
Entretanto, mesmo diante do fato de que “a alteraç~o dos
institutos jurídicos n~o chega { ruptura da forma jurídica”, e mesmo que
o sujeito de direito continue “sendo base para a reproduç~o social,
garantindo assim o circuito mercantil e o capital” (MASCARO, idem), é
necessário encontrar, no seio das sociedades capitalistas, instrumentos
emancipadores, ainda que contingenciais.
Deve ser vista com atenção a advertência do historiador
marxista T. J. Clark, quando este diz que a “esquerda”, enquanto
oposiç~o radical ao capitalismo, “nada tem a ganhar com previsões
arrogantes e irrealistas sobre o fim próximo do capitalismo”. De forma
lúcida e concisa, o historiador sentencia: “A radicalidade é estabelecida
no presente. Quanto mais profundos os esforços preparatórios de um
movimento político, tanto mais o seu foco no aqui, agora” (CLARK,
2013).
116 Existem Omissões Constitucionais?

Não se pode cair no terreno vazio de uma política ideológica


que assume uma plataforma de agitação baseada na mudança do
“sistema” (SHILS, 1958). Edward Shils faz uma dura crítica ao caráter
utópico de algumas ideologias ao alfinetar que os políticos ideológicos
visam sempre arrancar da população a lealdade pelo “sistema”,
tentando destruir a ordem existente para colocar outra ordem no lugar.
Para eles, ainda segundo a crítica de Edward Shils, “esta nova ordem
não teria nenhum dos males que forjam o sistema existente; a nova
ordem estaria plenamente suprida pela crença ideológica que, sozinha,
pode prover a salvaç~o” (SHILS, 1958).
A provocação de Shils precisa ser encarada com lucidez.
Entretanto, o autor comete uma injustiça, típica de seu tempo, ao
associar essa ideologia utopista a uma noção generalizada do marxismo.
Dizer ainda que as aspirações dos antigos elementos humanitários, que
foram absorvidas pelo marxismo, tinham sido mais ou menos
implementadas nos países capitalistas, é uma análise no mínimo
discutível. Por outro lado, Shils não parece reconhecer que uma das
principais propostas do pensamento de Marx era a conscientização da
sociedade, desprendendo-a dos discursos metafísicos, como o de
“igualdade de todos”, por exemplo, e despertando-a para a realidade
concreta, sempre condicionada pelo aspecto econômico.
Nesse ponto, é curioso observar que o processo de
conscientização marxista, que visa superar a forma alienada de pensar o
político, promovida pelo idealismo neoliberal, parece combinar com as
abordagens realistas aplicadas ao universo jurídico, superando o
também abstrato formalismo legalista. É que o Direito vem resgatando o
sentido filosófico clássico de prudência, o qual é construído sobre a
ideia do homem como integrante de um mundo contingente. Nesse
mundo, as regras devem ser maleáveis e adaptadas às circunstâncias,
sem que se possa sustentar uma (pré)determinação das ações humanas
com base em métodos tradicionais de uma cientificidade rígida e formal
(AUBENQUE, 2008).
Marcelo Barros Jobim 117

A nova dinâmica do Judiciário

A necessidade de conciliação entre contingência e segurança


jurídica é o “dilema” (TROPER, 2001, passim), por assim dizer, para o
qual a pós-modernidade encareceu a necessidade de fazer ressurgirem
ideias antigas, pretensamente superadas, desde a consolidação do
Estado de Direito. Essa abordagem circunstancial ou contingencial, pela
qual as regras se tornam mais flexíveis quando de sua aplicação ao caso
concreto, aproxima o direito cada vez mais do universo da política.
Consequentemente, essa aproximação vai resultar na identificação de
uma linha cada vez mais tênue com que se costuma separar as funções
jurisdicional e administrativa.
Mas a identificação entre o Executivo e o Judiciário não é bem
uma novidade. Veja-se que além da função legislativa, que se resume em
criar leis, inovando na ordem jurídica, existiria a função de aplicar as
leis, ou seja, em verdade, existiriam apenas duas principais funções
estatais: a de criar e a de aplicar as leis. Embora, em último caso, a
função legislativa também se caracterize pela aplicação da lei, no caso, a
Lei Fundamental, representada pela Constituição, o certo é que a função
de aplicar o direito objetivo se converte sempre numa dupla função de
natureza política, tanto na composição de conflito de interesses no caso
concreto (Judiciário) quanto na administração de bens e interesses
públicos (Executivo).
Isso também não é uma novidade, pelo fato de que já Kelsen
apontava essa identificação, ao afirmar que a separação entre o poder
executivo e o poder judiciário apenas é possível “num grau
comparativamente limitado”. Assim se expressava o jurista austríaco:

Uma separação estrita dos dois


poderes é impossível, já que os dois tipos de
atividade habitualmente designados por
esses termos não são funções
essencialmente distintas. Na verdade, a
função judiciária é executiva no mesmo
sentido em que a função comumente
descrita por esse termo; a função judiciária
também consiste na execução de normas
gerais (KELSEN, 1998, p. 390 – sem negritos
no original).
118 Existem Omissões Constitucionais?

Não é só a separação entre o executivo e o judiciário que deve


ser feita, como pensava Kelsen, num grau comparativamente limitado.
Além disso, o que se percebe é que a sua própria concepção do aspecto
executivo da função judiciária é bastante restrita, pois se limita a uma
descrição das atividades dos tribunais quando da solução de
controvérsias em matérias cíveis e criminais. Isto é, executar, para o
autor da Teoria Pura do Direito, no âmbito da jurisdição, é aplicar a lei à
controvérsia submetida aos órgãos do Judiciário, pura e simplesmente.
Entretanto, na época contemporânea, a natureza executiva da
função jurisdicional se tornou muito mais complexa, indo mais além de
uma mera atividade subsuntiva dos tribunais na aplicação da norma ao
fato. A aproximação do direito com a política tornou a função
jurisdicional essencialmente mais criativa e atenta aos reflexos sociais
de sua decisão. Não apenas o caso concreto sob análise é objeto de
preocupação do aplicador do direito, mas também todo o contexto
sociológico relacionado ao problema discutido judicialmente.
Nessa nova sistemática, a omissão do poder público em
setores essenciais, quando submetida à apreciação do Judiciário, deve
sempre ser encarada como uma grave ofensa à Constituição. E mais, não
pode apenas ser avaliada sob o ângulo reduzido do caso concreto, mas
exige uma mais ampla compreensão, como a expressão mesma de um
problema que afeta toda sociedade. Daí a necessidade de um Judiciário
mais dinâmico e politizado, exercendo uma função jurisdicional aberta
ao diálogo, espancando de vez o mito da neutralidade, o que não
implica, por óbvio, o comprometimento da imparcialidade.
Por outro lado, é preciso que a sociedade civil organizada
possa ter, por meio de suas instituições, a legitimidade para ações
judiciais coletivas que visem à promoção e defesa de direitos difusos.
É o que deve ocorrer, de lege ferenda, com a ação civil pública,
por exemplo. A Lei da Ação Civil Pública rege as ações de
responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados a, dentre
outros direitos, “qualquer outro interesse difuso e coletivo”.
Marcelo Barros Jobim 119

O problema é que essa lei, quando prevê a legitimidade para


as associações, típicas instituições criadas pela sociedade civil
organizada, apenas contempla aquelas
que incluem entre suas finalidades institucionais, “a proteção ao meio
ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao
patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”. Ou seja, a
lei retira a legitimidade das associações para promover ação civil
pública visando à responsabilidade por danos causados a interesses
difusos, limitando a sua atuação a interesses específicos de seus
associados.
O ideal seria a possibilidade de que instituições dessa
natureza pudessem, por meio de ação civil pública (ACP), promover a
responsabilidade de maus gestores da Administração Pública por,
dentre outros motivos, omissões de medidas essenciais em matéria de
políticas públicas. Veja que a Ação Popular objetiva a anulação de atos
ilegais, mas não tem o alcance da ACP no sentido de responsabilizar os
culpados e obrigá-los a uma conduta positiva ou negativa. Com a atual
redação da lei, nesse caso, apenas o Ministério Público teria tal
legitimidade e, de uma forma mas restrita, a Defensoria Pública, caso se
demonstre a hipossuficiência econômica dos interessados.
A ampliação da legitimidade daria uma maior efetividade aos
mecanismos democráticos de participação popular no processo político,
elevando o cidadão, integrante de uma associação, por exemplo, a um
papel fundamental de fiscal da gestão da coisa pública, seja federal,
estadual ou municipal. Como demonstrado por Andre Vasconcelos
Roque, a experiência americana das class actions “pode servir de fonte
de reflexão para o aperfeiçoamento das ações coletivas no Brasil sob
diversos aspectos” (ROQUE, 2013, p. 640), até para superar a
considerável concentração na propositura dessas espécies de ações por
entes públicos.
120 Existem Omissões Constitucionais?

O direito de acesso à política

Mas, retome-se a avaliação de Alysson Mascaro. Se para o


jurista e filósofo do direito, na crise capitalista, o poder do capital cresce
e se renova “justamente pela fraqueza geral e sistem|tica dos demais
agentes sociais”, bem como pelo car|ter “meramente reformista das
instituições políticas”, ent~o por que n~o se pensar na formaç~o de
agentes sociais fortalecidos e instituições abertas à dinâmica do
pluralismo? O fortalecimento dos agentes sociais se daria mediante uma
maior conscientização do papel da sociedade organizada, promovendo-
se a democracia participativa, na forma como esta vem sendo discutida
atualmente28. Já a abertura das instituições a uma sociedade plural é não
só tema das principais teorias jurídicas contemporâneas, como também,
em termos sociológicos, o próprio resultado da participação popular no
processo democrático.
Para Luiz Guilherme Marinoni, além da participação através
do contraditório e da publicidade dos atos processuais, conferindo à
parte a oportunidade de interferir sobre a formação da decisão
(MARINONI, 2008, p. 455), outras formas de participação, como a do
amicus curiae, apresentam como fundamento a possibilidade de
“propiciar a ouvida dos diversos setores de sociedade que têm interesse
na controvérsia constitucional” (MARINONI, 2008, p. 458).

28
Por todos, cf. BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo:
Malheiros, 2008.
Marcelo Barros Jobim 121

No cenário cultural brasileiro, o que se percebe, no entanto, é


que o povo ainda não se afinou com a democracia participativa, apesar
de todos os institutos e procedimentos previstos na Constituição nesse
sentido. E não se pode chamar o movimento nas ruas de “participaç~o
popular”, pois esta só ocorre quando os membros da sociedade se
utilizam de mecanismos institucionais, e não só os instrumentos de
consulta popular, como também, e principalmente, as ações
constitucionais. Estas ações judiciais transformam o tradicional direito
de acesso à justiça em um verdadeiro processo popular de acesso à
política, pelas vias institucionais.
O movimento nas ruas, ocorrido no mês de junho de 2013 no
Brasil, é sintomático. Ele mostra que, quando o acesso à política é
obstaculizado, isso faz com que o poder (o que de fato emana do povo),
como toda e qualquer força oprimida, venha à tona de uma forma
radical. Imagine-se, de forma bem simplória, uma panela de pressão: ou
o vapor sai aos poucos, fazendo os chiados comuns, ou provoca uma
explosão, com um barulho assustador.
O acesso à política pelas vias institucionais é uma forma de
canalizar a pressão do poder popular por meio da democracia
participativa. Ele não impede, por óbvio, que ocorram, de tempos em
tempos, as explosões que se ouvem das ruas, formas salutares de
manifestação popular, legitimadas pelo consagrado direito de
resistência e de oposição ao poder formal. O que se observa é que o
reconhecido e tradicional direito de acesso à justiça, quando está em
jogo a própria justiça constitucional, apresenta-se na forma de um
legítimo direito de acesso à política.
A justiça constitucional pode ser encarada como sendo
corolário do fenômeno da constitucionalização do Direito, surgido a
partir do segundo pós-guerra no cenário político da ordem
internacional; e a partir da Constituição de 1988, no âmbito da ordem
jurídica interna
122 Existem Omissões Constitucionais?

brasileira. Neste último aspecto, que é o que interessa neste ensaio,


pode-se dizer que todos podem e devem promover a justiça
constitucional, desde a sociedade civil organizada até as instituições
públicas, sem que, como visto, a legitimidade para a propositura se
concentre apenas nestas últimas. Mas é fundamental compreender o
que a Constituição quer significar quando se refere a instituições que
exercem as “funções essenciais { justiça”.
Nesse aspecto, o Ministério Público, a Advocacia Pública, a
Defensoria Pública e também o advogado, este último, inclusive, sendo
definido como “essencial { administraç~o da justiça”, todos promovem a
justiça constitucional, refletindo a ideia de que não há exclusividade na
função específica estatal referente à jurisdição constitucional. Esta, por
sua vez, é a funç~o de “dizer o direito constitucional”, ou simplesmente
“dizer a constituiç~o”, solucionando os conflitos de interesses com
caráter definitivo.
Já o processo constitucional deve ser visto como os
mecanismos para o exercício da função jurisdicional, ou seja, a
regulamentação do percurso para se chegar àquela decisão definitiva de
forma legítima. A necessidade de legitimidade do próprio processo
constitucional exige que este também esteja condicionado aos princípios
constitucionais do processo, representado pelo devido processo legal e
seus desdobramentos. Daí se falar em direito constitucional do
processo.
A conformação da matéria constitucional, por meio de
reiteradas decisões definitivas proferidas pelos órgãos jurisdicionais,
principalmente pelo órgão de cúpula, responsável pela guarda da
Constituição, faz surgir, por sua vez, uma jurisprudência constitucional.
Essa jurisprudência especializada serve como manifestação do direito
constitucional, mas que não se torna indene de críticas, promovendo-se
uma contínua evolução deste importante ramo do direito público.
Marcelo Barros Jobim 123

Como se vê, identificam-se cinco elementos inovadores


resultantes da combinação entre Processo e Constituição, que
viabilizam o direito de acesso à política. São eles: a) Justiça
constitucional; b) Processo constitucional; c) Jurisdição constitucional;
d) Princípios constitucionais do processo; e e) Jurisprudência
constitucional.
O que interessa aqui é identificar com precisão, e ao mesmo
tempo com amplitude, o primeiro conceito, pois os demais são meros
desdobramentos daquilo que se vai entender por justiça constitucional.

Definindo a “justiça constitucional”

Peña de Moraes apresenta uma definição de justiça


constitucional um tanto restrita, ao sustentar que esta se limita à
“atividade desempenhada no âmbito dos tribunais constitucionais, com
destaque para seus elementos e as suas funções estruturais” (PEÑA DE
MORAES, 2012, p. 56). Diferiria, assim, de jurisdição constitucional, a
qual, segundo o autor, seria a “parcela da atividade pela qual se efetua
jurisdicionalmente a proteção da Constituição em todas as suas
dimensões” (Idem).
Não parece acertada a ideia de que a justiça constitucional
esteja afeta apenas às cortes constitucionais, podendo esta ser
promovida não só por todos os órgãos do Judiciário como também, já
adrede salientado, pelas instituições que, segundo a sistemática da
Constituiç~o de 1988, est~o inseridas entre as “funções essenciais {
justiça”. Nesse aspecto, é importante observar a distinç~o entre função
jurisdicional e justiça, uma vez que a Constituição parece tratar esses
institutos de forma diferente.
124 Existem Omissões Constitucionais?

Pelo senso comum, costuma-se ouvir dizer que “a Justiça


bloqueou os bens de fulano” ou que “alguém recorreu a Justiça para
defender seus direitos” etc. Na verdade, o que se sabe é que, nestas
expressões, existe uma sutil confusão entre o valor justiça e a função
estatal representada pela jurisdição. Entretanto, quando a Constituição
dispõe que o Ministério Público, por exemplo, exerce umas das funções
essenciais à justiça, não significa dizer, por óbvio, que o órgão
ministerial exerça atividade jurisdicional. Pelo art. 127 da Constituição,
o Ministério Público é “essencial { funç~o jurisdicional do Estado” e o
mesmo se diz da Defensoria Pública, no art. 134.
O que se percebe é que a função jurisdicional, enquanto
função política que representa uma das manifestações do poder estatal,
deve vir auxiliada por essas instituições. José Afonso da Silva identifica a
justificativa das funções essenciais à justiça exatamente na necessidade
de se provocar a jurisdiç~o, o que é efetivado “por todas aquelas
atividades profissionais públicas ou privadas, sem as quais o Poder
Judici|rio n~o pode funcionar ou funcionar| muito mal” (SILVA, 2012, p.
594).
Pois bem. Com a constitucionalização do Direito, surgiu uma
consequente ideia de capilarização da Constituição em todos os ramos
jurídicos. Assim, a justiça constitucional se apresenta em todas as
situações de conflitos de interesses a serem solucionados no caso
concreto, exigindo de juízes que atuam na área cível, penal, trabalhista
etc. o exercício de uma parcela da jurisdição constitucional. Se
“jurisdiç~o” é a funç~o estatal de dizer o direito, a jurisdição
constitucional se caracteriza pela funç~o de “dizer a Constituiç~o”, a
qual se apresenta em todos os órgãos jurisdicionais, e não apenas nas
cortes constitucionais que, no Brasil, é representado pelo STF.
Marcelo Barros Jobim 125

Tal função de juris-dizer a Constituição é afeta a todos os


órgãos estatais encarregados do exercício da jurisdição, seja
parcialmente naqueles que exercem outras competências materiais,
comuns ou especializadas, seja os de competência específica, naquele
órgão de cúpula (no caso, o STF) que possui, inclusive, a competência
precípua de “guardi~o da Constituiç~o”. Do contrário, como dizer que
um juiz singular, ao julgar um processo de mandado de segurança, não
exerce jurisdição constitucional? Basta que se esteja processando uma
ação inerente a um dos remédios constitucionais para que se reconheça
que o respectivo órgão do Judiciário está, de fato, exercendo jurisdição
constitucional.
Essa amplitude da jurisdição constitucional, uma vez que
exige ainda o auxílio daquelas instituições que fazem parte das funções
essenciais à justiça, leva a formação de um conceito abrangente de
justiça constitucional. Assim, tantos os órgãos do Judiciário, por meio da
função jurisdicional, quanto as instituições que a auxiliam, na forma dos
arts. 127 a 134 da Constituição, promovem a justiça constitucional.
Como se vê, justiça constitucional e jurisdição constitucional não se
confundem, pois a atuação desta, mais o auxílio institucional das
funções essenciais à justiça, formam os mecanismos de promoção
daquela, conceito bem mais amplo dentro da sistemática constitucional.
Quando autores, como Peña de Moraes, reduzem a justiça
constitucional ao estreito limite das atividades das cortes
constitucionais, eles parecem confundir justiça, enquanto instituição
judiciária, e competência. As cortes constitucionais, como o STF na
ordem jurídica brasileira, exercem uma competência específica quando
processam e julgam conflitos que afetam exclusivamente a matéria
constitucional, tendo, inclusive, a prerrogativa da última palavra nesse
campo.
126 Existem Omissões Constitucionais?

Mas estas cortes não exercem mais jurisdição constitucional


do que os demais órgãos do Judiciário, também estes encarregados de
dizer a Constituição, mesmo que no âmbito de suas respectivas
competências, comuns ou especializadas, haja vista o fenômeno da
constitucionalização do direito, como já salientado. Esse fenômeno
provocou a aproximação entre o direito e a política, uma vez que exige
uma postura mais ativa da função jurisdicional, em contraste com a
ultrapassada ideia de neutralidade, frente à premente necessidade de se
promover a justiça social.

Omissão: injustiça e inconstitucionalidade

Impende avaliar o tema das omissões no âmbito de cada um


desses elementos que evidenciam os pontos de intersecção entre
Constituição e Processo. Inicialmente, pode-se observar que, em termos
de justiça constitucional, a questão gira em torno da necessidade de se
suprirem as omissões, haja vista serem estas, sempre e em qualquer
hipótese, inconstitucionais. Nesse ponto, o controle da
inconstitucionalidade por omissão, expressão mais adequada a ser
empregada no lugar do redundante omissão inconstitucional, é matéria
de justiça constitucional concernente à realização da Constituição
naquilo em que ela mesma exige medidas que a tornem efetiva.
Veja-se que não se trata basicamente de falta de aplicação da
Constituição nos pontos em que as matérias já foram previamente
definidas pelo Poder Constituinte, mas, sim, naquela dimensão ainda
obscura, tais como as normas constitucionais de eficácia limitada. Nesse
aspecto, além da perspectiva republicana de interpretação
constitucional, extraída do pensamento de Habermas, outra concepção
de justiça constitucional pode ser analisada a partir das precisas
observações de Pérez Luño.
Marcelo Barros Jobim 127

O jurista espanhol enaltece a necessária harmonia entre as


três dimensões básicas do direito: a social, a axiológica e a normativa,
lembrando bastante a teoria tridimensional de Miguel Reale, para quem
o Direito é formado pelos elementos fato, valor e norma. Mas o
interessante em Pérez Luño é quando o jurista observa a existência de
numerosos exemplos de sistemas de direito positivo afastados da
justiça, mesmo em Estados de direito, de formação legítima. Para ele, é
exatamente a existência de um exercício de racionalidade intersubjetiva,
com tendência ao direito correto, que permite a qualificação dessas
experiências como injustas.

Se não existisse uma experiência


racional paradigmática do direito justo, não
poderiam detectar suas formas turbas,
deficientes ou degradadas. Na ordem
jurídica, os episódios de injustiça são formas
parasitárias de perfeição. Porque, os
exemplos injustos do direito existem graças
a que existe nos homens a convicção
racional de que é possível e desejável
organizar a vida social, não somente em
termos de ordem e coação, mas sim,
segundo regras que salvaguardam as
liberdades e o bem-estar coletivo, ou
melhor, segundo os princípios de um direito
justo (PÉREZ LUÑO, 2012, p. 102).

Essa exigência de complementação do direito material


constitucional por meio de atos legislativos e/ou administrativos deve
ser encarada como imposições relativas à forma e regime de governo,
ou, respectivamente, à República e ao Estado democrático. No primeiro
caso, a forma de governo republicana exige um “agir constitucional”
visando ao tradicional interesse coletivo ou ao clássico Bem-estar social.
No segundo caso, o regime democrático de governo impõe que essa
dinâmica e esse ativismo, no sentido da realização da
Constituição, não se afaste da perspectiva de uma titularidade do poder
político (todo poder emana do povo...), nem da perspectiva de uma
legitimidade do poder (...que o exerce por meio de representantes eleitos
ou diretamente).
128 Existem Omissões Constitucionais?

Mas, como já salientado, essas abordagens trazem


reminiscências de um olhar vago sobre valores abstratos, quando não
metafísicos. O “interesse coletivo” ou o “bem-estar social” devem ser
observados diante da realidade concreta, e a titularidade/legitimidade
do poder só se realiza por mecanismos eficientes de participação
popular no processo político, seja por vias legislativas, administrativas
ou mesmo judiciais.
Pois bem, a omissão de um poder o coloca numa real situação
de ilegitimidade que não permite que seja invocado o princípio da
“separaç~o dos poderes”, por exemplo, para se evitar que a adoção das
providências necessárias seja determinada coercitivamente pela função
jurisdicional. É que o contraste é entre funções, e não entre poderes. É o
mesmo princípio das imposições das decisões judiciais sobre o cidadão,
pois este não pode invocar direitos fundamentais, como o da
propriedade privada, por exemplo, se a decisão que determina a
desapropriação se baseia na inexistência de uma necessária destinação
social do uso da propriedade. O que dizer do direito de liberdade ante as
decisões judiciais em matéria penal, se o apenado tem comprovada a
sua culpabilidade?
Pelo aspecto da inefetividade da Constituição, a omissão do
poder público deve ser vista como uma situação grave de injustiça.
Logo, em sendo assim, é preciso muita cautela ao opor outros valores
como forma de frear os mecanismos institucionais de controle dessas
omissões. É que, no Brasil, a inobservância dos imperativos
constitucionais, principalmente no que concerne à sua dimensão social,
implica, em termos concretos, todos os graves problemas de injustiça
social. Seja por via legislativa ou executiva, as indispensáveis medidas
de efetivação da Constituição, quando não devidamente realizadas,
podem e devem ser impostas pelos mecanismos judiciais.
Desde a soberana decisão do Supremo Tribunal Federal, em
sede de controle de inconstitucionalidade por omissão ou de mandado
de injunção, até outras decisões judiciais de quaisquer dos órgãos do
Judiciário, é perfeitamente legítima a determinação de ações concretas
ou que visem à atuação efetiva dos poderes competentes.
Marcelo Barros Jobim 129

Mas, é a partir de decisões do STF que se pode vislumbrar a


importância desse ativismo judicial, como forma de difundir uma
ideologia constitucional, orientadora da função jurisdicional, no sentido
da imposição de tarefas institucionais. Tal ativismo do Judiciário
brasileiro se apresenta pelos seguintes julgados do STF em três
importantes áreas dos direitos sociais e difusos, a saber:

SAÚDE

Ementa: AGRAVO REGIMENTAL


NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL.
REPERCUSSÃO GERAL PRESUMIDA.
SISTEMA PÚBLICO DE SAÚDE LOCAL.
PODER JUDICIÁRIO. DETERMINAÇÃO DE
ADOÇÃO DE MEDIDAS PARA A MELHORIA
DO SISTEMA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIOS
DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DA
RESERVA DO POSSÍVEL. VIOLAÇÃO.
INOCORRÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL A
QUE SE NEGA PROVIMENTO.
1. A repercussão geral é
presumida quando o recurso versar questão
cuja repercussão já houver sido reconhecida
pelo Tribunal, ou quando impugnar decisão
contrária a súmula ou a jurisprudência
dominante desta Corte (artigo 323, § 1º, do
RISTF ).
2. A controvérsia objeto
destes autos – possibilidade, ou não, de o
Poder Judiciário determinar ao Poder
Executivo a adoção de providências
administrativas visando a melhoria da
qualidade da prestação do serviço de
saúde por hospital da rede pública – foi
submetida à apreciação do Pleno do
Supremo Tribunal Federal na SL 47-AgR,
Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJ de
30.4.10. 3. Naquele julgamento, esta
Corte, ponderando os princípios do
“mínimo existencial” e da “reserva do
possível”, decidiu que, em se tratando de
direito à saúde, a intervenção judicial é
possível em hipóteses como a dos autos,
nas quais o Poder Judiciário não está
inovando na ordem jurídica, mas apenas
determinando que o Poder Executivo
cumpra políticas públicas previamente
estabelecidas.
4. Agravo regimental a que se
nega provimento.
130 Existem Omissões Constitucionais?

(RE 642536 AgR,


Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma,
julgado em 05/02/2013, ACÓRDÃO
ELETRÔNICO DJe-038 DIVULG 26-02-2013
PUBLIC 27-02-2013)

EDUCAÇÃO

EMENTA: AGRAVO
REGIMENTAL NO RECURSO
EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
TRANSPORTE DE ALUNOS DA REDE
ESTADUAL DE ENSINO. OMISSÃO DA
ADMINISTRAÇÃO. EDUCAÇÃO. DIREITO
FUNDAMENTAL INDISPONÍVEL. DEVER DO
ESTADO. 1. A educação é um direito
fundamental e indisponível dos indivíduos.
É dever do Estado propiciar meios que
viabilizem o seu exercício. Dever a ele
imposto pelo preceito veiculado pelo artigo
205 da Constituição do Brasil. A omissão da
Administração importa afronta à
Constituição.
2. O Supremo fixou entendimento no sentido
de que "[a] educação infantil, por qualificar-
se como direito fundamental de toda
criança, não se expõe, em seu processo de
concretização, a avaliações meramente
discricionárias da Administração Pública,
nem se subordina a razões de puro
pragmatismo governamental[...]. Embora
resida, primariamente, nos Poderes
Legislativo e Executivo, a prerrogativa de
formular e executar políticas públicas,
revela-se possível, no entanto, ao Poder
Judiciário determinar, ainda que em
bases excepcionais, especialmente nas
hipóteses de políticas públicas definidas
pela própria Constituição, sejam essas
implementadas pelos órgãos estatais
inadimplentes, cuja omissão - por
importar em descumprimento dos
encargos políticos-jurídicos que sobre
eles incidem em caráter mandatório -
mostra-se apta a comprometer a eficácia
e a integridade de direitos sociais
impregnados de estatura constitucional".
Precedentes. Agravo regimental a que se
nega provimento.
(RE 603575 AgR,
Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda
Turma, julgado em 20/04/2010, DJe-086
DIVULG 13-05-2010 PUBLIC 14-05-2010
EMENT VOL-02401-05 PP-01127 RT v. 99,
n. 898, 2010, p. 146-152)
Marcelo Barros Jobim 131

MEIO-AMBIENTE

EMENTA Agravo regimental no


recurso extraordinário. Constitucional. Ação
civil pública. Defesa do meio ambiente.
Implementação de políticas públicas.
Possibilidade. Violação do princípio da
separação dos poderes.
Não ocorrência. Precedentes. 1.
Esta Corte já firmou a orientação de que é
dever do Poder Público e da sociedade a
defesa de um meio ambiente
ecologicamente equilibrado para a
presente e as
futuras gerações, sendo esse um direito
transindividual garantido pela Constituição
Federal, a qual comete ao Ministério Público
a sua proteção. 2. O Poder Judiciário, em
situações excepcionais, pode determinar
que a Administração pública adote
medidas assecuratórias de direitos
constitucionalmente reconhecidos como
essenciais sem que isso configure
violação do princípio da separação de
poderes. 3. Agravo regimental não provido.
(RE 417408 AgR,
Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira
Turma, julgado em 20/03/2012, ACÓRDÃO
ELETRÔNICO DJe-081 DIVULG 25-04-2012
PUBLIC 26-04-2012)

Como se vê, o Supremo Tribunal, por meio dos julgados


acima, reconhece explicitamente que o Judiciário, em situações
excepcionais, pode determinar aos órgãos responsáveis pelas demais
funções estatais a adoção de medidas que impliquem a efetivação de
políticas públicas.

A formação de um “direito responsivo”

Na seara do direito comparado, uma aproximação do Brasil


com a sistemática jurídica americana, de índole pragmática, parece ser
possível, em confronto com modelos mais reticentes, como o alemão,
por exemplo. Numa abordagem sociojurídica, esta forma pragmática
vem sendo denominada de “direito responsivo”, expressão utilizada
pelos sociólogos americanos Philippe Nonet e Philip Selznick (2010)
132 Existem Omissões Constitucionais?

para indicar já a superação de um modelo de direito autônomo, que se


caracteriza pela figura do Estado de Direito legalista, que surgiu, por sua
vez, para conter os excessos do direito repressivo da fase absolutista.
Como uma fase intermediária entre o direito repressivo e o atual direito
responsivo, o direito autônomo foi resultado de uma “barganha
histórica”, tendo as instituições judici|rias adquirido autonomia
procedimental em troca de uma subordinação substantiva (NONET;
SELZNICK, 2010, p. 105). Para Nonet e Selznick, a separação entre
direito e política faz com que se promova a delegação de uma
autoridade limitada aos juristas, sem que este exerça interferência
política. Para manter esse distanciamento funcional, os magistrados
devem se retirar do processo de formulação de políticas públicas.
A regra do direito autônomo é a despolitização das questões
submetidas ao Judiciário, embora apresente como uma importante
estratégia a de estabelecer como fundamento a subordinação da política
ao direito. Uma segunda estratégia é a busca de autolegitimação dos
juízes, ao enaltecer suas funções jurídicas e apolíticas, insistindo numa
distinção clara entre legislar e julgar (NONET; SELZNICK, 2010, p. 105).

Qualquer coisa que cheire a


produção da lei via decisão judicial
repugna ao espírito do direito
autônomo e ameaça sua autoridade. É
essa ideia, mais que até qualquer
compreensão equivocada sobre o
processo legal, que induz concepções
ingênuas, ou até mesmo pouco
engenhosas, sobre a timidez judicial e
uma aplicação aparentemente
mecânica da jurisprudência.
Para as instituições
judiciárias, a separação entre direito e
política é mais que um princípio de
autolimitação. É um requisito de
autoproteção e uma garantia de
fidelidade à ordem política prevalente
(NONET; SELZNICK, 2010, ps. 106 e
107).
Marcelo Barros Jobim 133

Superando esse direito autônomo, que se identifica muito


mais com o status quo do que com os ideais de liberdade e igualdade
que prometeu proteger, o denominado direito responsivo propugna por
uma visão mais inclusiva da justiça, combinando competência cognitiva,
abertura à mudança e ativismo.
Já na introdução ao livro de Nonet e Selznick, Robert Kagan
observa que “os juristas alem~es parecem crer que seguir o caminho do
direito responsivo através do ativismo litigante e do ativismo judicial, em
lugar dos processos políticos democráticos, é uma estratégia de alto
risco” (Kagan In: NONET; SELZNICK, 2010, p. 23). Mas para os
sociólogos americanos, “As instituições judici|rias foram convocadas a
assumir novos encargos, descobrir novos recursos e examinar seus
próprios fundamentos” (NONET; SELZNICK, 2010, p. 40).
É necessário observar que a tese de um direito responsivo
encontrou resistências também nos Estados Unidos, principalmente a
partir do recuo do modelo político de assistência social naquele país
sempre que chegavam ao poder os representantes do Partido
Republicano, nas décadas de 1980 e 1990. Como salientado ainda por
Kagan (In: NONET; SELZNICK, 2010, p. 30), bem antes disso, o
republicano Richard Nixon, em sua campanha para presidente, em
1968, havia prometido nomear membros da Suprema Corte que
tivessem o perfil de “rígidos intérpretes da lei”. A partir daí, sempre
segundo Kagan, iniciou-se uma verdadeira batalha política: de um lado,
os republicanos, que procuravam derrubar as decisões criativas da
Suprema Corte29 já na década de 1970, contrariando as ideias de “justiça
social”; de outro, os democratas, que queriam juízes mais afinados com
aquela concepção inovadora.

29
O fenômeno parece ter chegado ao Brasil com a polêmica PEC 33/2011 que visa alterar a
Constituição para criar mecanismos de limitação das decisões do Judiciário.
134 Existem Omissões Constitucionais?

Ironicamente, o modelo mais progressista do direito


responsivo, aqui enaltecido, e que tem suas bases ideológicas numa
perspectiva universal do princípio republicano, tem um histórico de
boicote nos Estados Unidos exercido pelo partido denominado
exatamente de “Republicano”. Coisas de política partid|ria: no Brasil, o
partido que na década de 1980 passou a se denominar de “frente
liberal” foi o mesmo que no período da ditadura militar (1964-1985)
trazia em seus quadros fieis escudeiros da base de sustentação política
do ent~o regime de exceç~o. Hoje, o partido se chama “Democratas”,
mas segue uma política mais próxima de seus gurus “Republicanos” da
América do Norte.
Pois bem. Superando-se as questões de política partidária, as
quais levam à suspeita de ilegitimidade do modelo de representação
democrática, o direito responsivo está voltado para uma maior
participação social no processo político, por intermédio de sua
dimensão jurídica, ou mais especificamente pela função jurisdicional do
Estado.

Um dos efeitos do pluralismo é a


multiplicação das oportunidades dentro do
processo jurídico para a participação na
elaboração das leis. Desse modo, a arena
jurídica se torna uma espécie de fórum
jurídico e a simples participação nela
assume uma dimensão política. Em outras
palavras, a ação judicial passa a servir de
canal através do qual grupos e organizações
podem pautar políticas públicas, e deixa de
ser percebida unicamente como uma forma
de defesa de demandas individuais baseadas
em regras (NONET; SELZNICK, 2010, p.
149).
Marcelo Barros Jobim 135

Surge aqui a importância de uma advocacia social, ou aquilo


que nos Estados Unidos é denominado, segundo os sociólogos
americanos, de Public interest law, ou seja, “direito do interesse
público”, em traduç~o livre (NONET; SELZNICK, 2010, p. 149).
Entretanto, cumpre ressaltar que há, ainda, no livro de Nonet e Selznick,
a referência a uma social advocacy. Em nota de rodapé, na página 44, o
tradutor observa que esta se caracteriza pela “iniciativa de operadores
do direito de disponibilizar seus serviços para a defesa de interesses e
direitos de setores sociais desprivilegiados”, diferente do Public interest
Law, que é apontado como um ramo mesmo da advocacia, o qual é
voltada para a promoção de ações coletivas de interesse social.
No direito responsivo, a liga que une o direito e a política não
deve ser mais a noção de força, mas a de responsabilidade social, e a
razão de ser da atividade do juiz não é o conhecimento relativamente
eficaz do direito objetivo e a respectiva competência para aplicá-lo. O
que fundamenta a função jurisdicional é a relação equidistante que o
juiz deve manter entre as partes em litígio, mas combinada com uma
aproximação social do problema, o que lhe permite uma solução
prudente da lide, ou seja, sem a influência dos interesses em jogo e,
acima de tudo, consciente dos efeitos práticos de sua decisão.
Não se pretende sustentar aqui o equívoco, bem demonstrado
por Andreas Krell, com relação à mera reprodução de fórmulas alemãs
para a realidade jurídica brasileira. Já em 1999, o professor da UFAL
mostrava a impossibilidade de uma comparação entre os denominados
“países periféricos” e as nações desenvolvidas da Europa. Não só no
Brasil, como em outros países em desenvolvimento, a questão principal
é analisar “quem possui a legitimidade para definir o que seja ‘o
possível’ na |rea das prestações sociais b|sicas em face da composiç~o
distorcida dos orçamentos das diferentes entidades federativas”
(KRELL, 1999).
136 Existem Omissões Constitucionais?

Ao final, o professor pondera que, em face dos problemas


sociais de um país “periférico” como o Brasil, “o princípio tradicional da
separação dos poderes deve ser entendido sob parâmetros e dimensões
novas e diferentes dos das nações centrais ricas”, para concluir de forma
lapidar:

Ainda não foram aproveitadas


as potencialidades dos modernos
instrumentos processuais do Direito
brasileiro para a correição judicial das
omissões dos Poderes Executivo e
Legislativo na área das políticas públicas
(ação civil pública, ação de
inconstitucionalidade por omissão,
mandado de injunção) (KRELL, 1999).

A ideia não é se espelhar num modelo formal de outras


ordens jurídicas, mas, sim, partir de uma experiência concreta, aquela
que mostra a utilização de mecanismos judiciais de tutela coletiva em
prol da efetivação da Constituição. E é nesse aspecto que se indica a
experiência americana e seu sistema de class actions, promovendo-se as
devidas adaptações às peculiaridades do sistema processual brasileiro,
cujo modelo de ações coletivas vem se aperfeiçoando.
No Congresso Nacional, tramita o projeto de um código
brasileiro de processos coletivos (PL 5139/2009), que deve vir para
superar um modelo jurídico individualista e valorizar a ordem jurídica
em sua dimensão objetiva. O projeto visa ampliar consideravelmente o
alcance da Ação Civil Pública em matéria de tutelas coletivas e difusas,
permitindo uma maior participação popular na defesa destas categorias
de direitos.
O projeto foi rejeitado na Câmara dos Deputados, no dia 17 de
março de 2010, embora tenha recebido parecer favorável do então
relator Deputado Antônio Carlo Biscaia (PT/RJ). Foi acatado o voto em
separado do deputado
José Carlos Aleluia (DEM-BA), concluindo-se pela rejeição do
Marcelo Barros Jobim 137

projeto sob o argumento “de que a sociedade n~o participou de sua


elaboração no Ministério da Justiça”30. Atualmente, o projeto está
aguardando decisão do Plenário da Câmara sobre recurso interposto
contra a decisão da Comissão de Constituição de Justiça daquela Casa
legislativa.
É o fantasma do patrimonialismo brasileiro31 rondando mais
uma vez o Legislativo. Essa tradição mórbida não só atinge a função
legislativa ordinária, mas também sempre se apresentou em todas as
vezes em que o Brasil forjou uma nova Constituição, caracterizando a já
conhecida tese sobre as “crises constituintes” desenvolvida pelo
professor Paulo Bonavides (1998, p. 349).
Assim, como já salientado em outra oportunidade,

A vigente Constituição
brasileira, admirada por seus vibrantes
preceitos fundamentais, bem como por seus
importantes institutos políticos de
democracia participativa, sofre, desde a sua
promulgação, com as causticantes
intempéries ideológicas. As investidas, nem
sempre legítimas, de governos alternados
sempre ameaçaram a pureza dos valores
previstos constitucionalmente, tendo em
vista a adequação à ordem econômica
neoliberal globalizada (JOBIM, 2012).

As ações judiciais que buscam tutelar direitos difusos e


coletivos não se concentram especificamente no objeto da lide proposta,
numa dimensão exclusiva de direitos subjetivos, mas deve ter a visão
periférica para encarar os problemas sociais subjacentes, vistos como
fatores condicionantes do problema concreto a ser decidido.

30
Fonte: Site da Câmara dos Deputados.
31
Em que pese a crítica de Jessé Souza à “tese patrimonialista” sobre as causas dos problemas sociais
no Brasil, como desdobramento das análises culturalistas feitas por Gilberto Freyre (cf. SOUZA,
Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica.
2 ed., Belo Horizonte: UFMG, 2012), é de se reconhecer a sua validade, mesmo que de forma não
totalizante, para explicar a sociedade brasileira. Em matéria de cultura jurídica, são pertinentes as
observações quanto às condicionantes socioeconômicas que contribuíram para a formação, no Brasil,
de uma “tradição patrimonialista do direito civil” (cf. LÔBO, Paulo. Constitucionalização do direito
civil. In: Revista de Informação Legislativa - Secretaria de Edições Técnicas do Senado Federal,
Brasília, v. 36, n. 141, p. 99-109, jan./mar. 1999).
138 Existem Omissões Constitucionais?

O estado de omissão dos poderes públicos não pode se


perpetuar em uma ordem jurídica constitucional, e o controle dessa
espécie de inconstitucionalidade cabe à função jurisdicional, seja pelos
sistemas tradicionais de controle de constitucionalidade, seja pelo
processamento de ações judiciais, individuais ou coletivas, a serem
manejadas pelo cidadão, individualmente ou como membro de alguma
instituição da sociedade civil organizada.
Neste último caso, a omissão é combatida num sistema de
democracia participativa, que transforma o direito de acesso à justiça
num importante elemento de vivência política inspirada nos novos
valores de solidariedade, responsabilidade e participação da sociedade
no processo político.
Marcelo Barros Jobim 139

5. Conclusões na primeira pessoa

A verdade não está em lado nenhum: nem com os que


sustentam a necessidade de um ativismo judicial, nem com os que
criticam essa atuação criativa do Judiciário. Como bem observou Alexy,
“em toda parte algo ou alguma coisa parece ser verdade, mas nada
basta” (2011, p. 76). E isso é exato, porque todas as teses, ideias e
opiniões guardam na sua essência o seu quinhão da verdade, não
podendo ser vistas entre si como adversárias ou contrárias, mas como
complementares.
Curiosamente, as ideias viraram especialidades, frutos das
experiências de cada um, como na par|bola indiana “Os cegos e o
elefante”. É preciso que se conciliem os pontos de vista para que se
chegue, não exatamente ao ideal, mas ao possivelmente aceito por
todos. Enquanto debatemos apegados aos nossos (pre)conceitos, a vida
se esvai numa luta estéril de contradições e vaidades.
Em resumo, numa sociedade pluralista não há espaço para
unilateralidades, nem no plano científico nem no campo da política.
Assim, toda forma de concluir um estudo é um esforço pessoal de
compreensão que deve ser compartilhado com a comunidade, a qual
promove em conjunto a análise de problemas comuns.
Do estudo desenvolvido neste ensaio, o que se pode
evidenciar é que não basta reconhecer que existe toda uma dimensão
social da Constituição que depende da atuação dos poderes públicos
para garantir a sua efetividade. É fundamental que se apontem soluções
institucionais que efetivamente possam, pelo menos, amenizar os
efeitos de uma política injusta promovida em uma sociedade capitalista.
A omissão do poder público, nos principais setores de
serviços essenciais, jamais pode ter coerência com toda a normatividade
constitucional que impõe essas atividades em benefício da sociedade,
em especial para as classes economicamente mais vulneráveis.
140 Existem Omissões Constitucionais?

Assim, nada pode justificar o prolongamento de um estado de


omissão dos poderes públicos, muito menos o argumento de que, em
nome da “separaç~o de poderes”, o Judiciário não deve intervir em
políticas públicas, o que seria pretender legitimar, de forma absurda,
uma inadmissível inconstitucionalidade por omissão. Esta em nada se
assemelha a um período razoável de maturação institucional de novas
metas políticas, pois omissão é sempre sinônimo de ilegitimidade,
principalmente quando torna inefetiva toda dimensão social da
Constituição.
Em termos de legitimidade da intervenção do Estado, não se
deve confundir a obrigação de abster-se de fazer o que é proibido com a
proibição de omitir-se de fazer o que é obrigado. A abstenção estatal está
no plano da efetividade de direitos negativos ou de liberdades,
enquanto que a omissão estatal representa a inefetividade de direitos
positivos, os quais exigem atuação concreta dos poderes públicos.
Sendo assim, toda omissão deve ser encarada como uma
afronta aos imperativos constitucionais, e a função jurisdicional está
entre os mecanismos institucionais com clara previsão, na Constituição
mesma, no sentido de ser o instrumento não só adequado como
indispensável para se exigir do poder ou órgão omisso a adoção das
medidas necessárias. O Judiciário exerce, em face das omissões políticas
e administrativas, uma importante função de promover justiça social,
fruto da insofismável combinação entre direito e política.
Como visto, a ideologia política liberal, que sustentava a não
intervenção do Estado na ordem econômica e social, provocou seus
reflexos no Brasil e, na atualidade, ela vem ensaiando novamente uma
versão renovada de política absenteísta. Dentre outras características,
como a já aventada proposta de desconstitucionalização de direitos
sociais e o processo de despublicização administrativa, a ausência
estatal vem
acompanhada ainda, paradoxalmente, com uma forte presença do poder
político no campo das obrigações tributárias, principalmente.
Marcelo Barros Jobim 141

Entretanto, talvez como resposta a esse processo, uma


revisão teórica e institucional de alguns conceitos clássicos, como o da
própria noção de separação de poderes, vem aos poucos alterando a
formatação das funções estatais e as fronteiras entre elas. Assim, no
Estado constitucional contemporâneo, as omissões do poder público são
graves problemas que precisam ser solucionados por meio do
reconhecimento da legitimidade de imposições institucionais
recíprocas.
No Brasil, o problema das omissões é, muitas vezes,
enfrentado obtusamente, provocando graves distorções funcionais,
principalmente na atuação do Judiciário, capitaneado por um Supremo
Tribunal que mais parece adotar a fórmula lassaliana de “fator real de
poder”. Porém, essas distorções não infirmam a necessidade de uma
atuação razoável e equilibrada da função jurisdicional, que, como se
buscou demonstrar, tem um papel relevante no controle das omissões
estatais.
Encarado como uma questão de justiça constitucional, para
tal controle a participação de todos é fundamental, principalmente por
meio da promoção de ações constitucionais que, provocando a
prestação jurisdicional em matéria de tutelas difusas e coletivas, visam à
efetivação de direitos sociais. Nessa nova configuração da função
jurisdicional, o direito de acesso à justiça passa a ter uma importante
conotação política, pois, por meio de seu exercício, as instituições da
sociedade civil organizada e os entes públicos “essenciais { justiça”
podem exigir uma atuação administrativa que torne efetiva a
Constituição.
Na realidade brasileira, a alegação mais comum dos órgãos
governamentais para sustentar a não conformação de políticas públicas
é, muitas vezes, uma “reserva do possível” em matéria orçamentária,
principalmente. No entanto, no plano federal, diante de gastos
declarados na ordem dos bilhões de reais para a realização da Copa do
Mundo no Brasil, superando gastos com o mesmo evento feitos por
países com mais estabilidade econômica, o que se conclui é que o
problema é mesmo a falta de vontade política.
142 Existem Omissões Constitucionais?

No âmbito estadual, o cenário não é diferente. Em Alagoas,


por exemplo, é considerável o gasto com publicidade de governo,
criando um verdadeiro paradoxo da irresponsabilidade, pois o dinheiro
que não é investido em hospitais e escolas, com graves consequências
na saúde e na educação, termina virando a fortuna despendida pelo
governo para divulgar exatamente os trabalhos que não foram feitos.
Não se pode dizer que esses males são frutos apenas dos
condicionamentos do Estado por fatores econômicos, encarecendo a
necessidade de se “mudar o sistema”, como sustentam,
tradicionalmente, as ideologias de esquerda. No tocante à
superestrutura, podem-se apontar, sim, as condicionantes econômicas
como causa maior dos problemas políticos. Mas, do ponto de vista
institucional, o problema é de falta de iniciativa governamental,
acrescida de um cinismo que não é mais velado, quando assistimos a
patéticas cenas publicitárias que mostram políticos entregando cestas
b|sicas a “m~es nutridas”, em bairros da periferia.
Assim como a impunidade promove a corrupção, essa
hipocrisia que mostra políticas públicas como contos de fadas é o
resultado da falta de reação popular, e não só com manifestações nas
ruas, legitimadas pelo consagrado direito de resistência e de oposição
ao poder formal. O que se exige é uma autêntica democracia
participativa, com destaque para a relevância da função jurisdicional e a
importância da promoção de ações coletivas, como formas ativas e
institucionais de controle da leniência insustentável dos representantes
da sociedade.
Marcelo Barros Jobim 143

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