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CIDADE ILHA

de

Simon Longman
Tradução de Pedro Marques

Primeira versão da tradução: para ser usada exclusivamente na oficina de dramaturgia


do FATAL.

Personagens

Kate

Sam

Pete

Dave

Alex

Will

Liv

A peça passa-se numa cidade no meio do campo. Uma cidade suficientemente grande
para ter uma estrada de circunvalação à sua volta, mas onde não se passa muita
coisa no meio.

Kate é representada por uma pessoa. Sam, Alex e Liv são representadas por uma
pessoa. Pete, Dave e Will por outra.

Um
Kate Acho que não vão querer saber de mim quando isto acabar. Se eu vos contar
o que fiz. Não vão querer saber mais de mim. Ou gostar de mim. Mas aqui. Aqui à
vossa frente. Nesta cidade morta em que cresci. Não consigo pensar em mais nada.
Anda tudo em círculos dentro da minha cabeça. Não me larga. Por isso, se vos contar,
talvez me consiga libertar. Se disser tudo em voz alta outra vez, talvez me solte.
Portanto, acho que vou fazer isso.

Provavelmente não vão gostar de mim. Mas, talvez gostem. Seja como for, não me
interessa. Eu só quero libertar-me disto.

Porque nessa altura.

Porque nessa altura, eu vou - vou poder começar outra vez.

Dois

Pete De onde?

Kate O que é que acabaste de dizer?

Sam Aquilo que ele fez?

Kate Sim.

Pete Não lhe contes, então.

Sam Porquê?

Pete Não sei, porque -

Sam Porque o quê?

Pete Pensando bem, agora, é um bocado estranho.

Sam Pensando bem, agora?


Pete Sim?

Sam Mas, na altura, não?

Pete Sim, nos dois momentos, acho.

Sam Vou contar.

Kate Contar o quê?

(---)

Pete Ah, pois, vá lá, até que foi engraçado.

Kate O quê?

Sam Na semana passada, não foi?

Kate Sim?

Sam Sabes o que é que ele fez?

Kate Não, o quê?

Sam Conta-lhe.

Pete Conta tu.

Sam Ele agarrou na minha avó.

Kate O quê?

Sam Tipo, agarrou mesmo na cara da minha avó e começou a beijá-la.

Kate O quê?

Sam Com língua e tudo.

Kate Isso é verdade?

Pete É, sim.

Sam Foi uma das coisas mais engraçadas que eu já vi na vida.

Kate Estás a dizer merda.

Sam Não estou.

Pete Não está.

Kate Porquê?

Pete Porquê o quê?

Kate Por que é que te excitas com a avó dela, o que é que se passa meu?
Pete Não sei. Só quis ver como é que era.

Kate Não podes imaginar?

Pete Nã, nem por isso.

Kate Nem por isso?

Pete Não. Como é que eu ia fazer ?

Kate Imagina-te a excitares-te com uma pessoa, mas torna essa pessoa mais velha,
é assim que se faz, meu.

Pete Sim, mas.

Kate Mas, o quê?

Pete Não é o mesmo, pois não?

Kate Os tomates é que fizeste isso. Ele está a gozar?

Sam Pergunta-lhe.

Kate Estás a gozar?

Pete Não.

Kate E tu viste acontecer?

Sam Vi.

Kate E não tentaste impedir?

Sam Já te disse.

Kate O quê?

Sam Foi engraçado. Por que é que ia impedir?

Kate És passado da cabeça tu.

Sam Então porquê?

Kate Não és tu. Ele. Na verdade, tu e todos por o deixarem fazer isso.

Sam Foi tão engraçado. Ele era tipo, vou? E eu tipo, vai, por que não?

Kate Foi assim?

Sam O quê?

Kate Não foi uma aposta nem nada?

Pete Não, por que é que tem de ser uma aposta?


Kate Para que possas sair disto um bocadinho melhor do que estás neste momento,
porque, até agora, só agarraste na avó dela porque te apeteceu.

Pete Estava muito bêbado.

Sam Estava.

Kate Por que é que estavam os dois bêbados perto da tua avó?

Sam Um churrasco de família.

Kate Ele não é da tua família.

Sam Não, mas convidei-o.

Kate Porquê?

Sam Não sei.

Kate E eu?

Sam Pensei que estivesses ocupada.

Kate Por que é que pensaste isso?

Sam Não sei, porque -

Kate Como é que sabias que ele não estava ocupado?

Sam Ele nunca está ocupado, não é? E é diferente, não é, por causa da tua -

Kate Como é que aconteceu, então?

Sam Já disse. Achei que ia ser engraçado.

Kate Engraçado?

Sam Sim.

Kate Só isso?

Pete O que é que queres mais?

Sam Ele diz, e se fosse meter-me com a tua avó? E eu, sim, vai lá. E ele, ela até
está muito bem, não está, para avó, e depois -

Pete Vou ter com ela e tipo, tou bem, e como é que está, ainda não a
cumprimentei, e ela tipo, olha para mim, e eu dou-lhe um beijo à antiga, na boca, e
depois meti a língua, foi um bocado estranho, mas continuei e quando parei, tipo, tudo
bem? Ela ainda está a olhar para mim e diz, quem és tu, então, e eu tipo, sou o Pete,
prazer em conhecê-la, e ela tipo, és muito simpático e eu, muito obrigado, e pronto,
foi assim. Foi de primeira qualidade. Um beijo de classe.
Kate Sim, parece-me de qualidade.

Pete Estou preparado para a próxima, para alguém da minha idade com os dentes
um bocadinho mais firmes e no lugar.

Kate Meu deus. Ela sabe que tu só tens quinze anos, certo?

Pete Não sei, porquê?

Kate Não sei, isso não a torna tipo - não sei. Pedófila?

Sam A minha avó não é dessas.

Kate Pode ser, nunca se sabe.

Sam Saberíamos.

Kate Sim, talvez, e ele é que se atirou a ela.

Sam Ela não sabia o que se estava a passar.

Kate Ela pode usar isso em sua defesa.

Sam O meu pai pô-lo fora pouco depois.

Kate Ele viu-te a beijá-la?

Sam Não.

Kate Então por que é que te pôs fora?

Sam Porque ele se despiu e se pôs a chafurdar no lago dos peixes.

Kate O quê?

Pete Na altura, pareceu-me boa ideia.

Sam Também foi engraçado.

Kate Por que é que tu -

Pete Estava um bocado de calor.

Kate E depois?

Pete Achei que me ia refrescar. Era Verão e isso, não é? Estava cheio de calor. E
tinha bebido muito uísque do pai dela e isso.

Sam Ele de pé no lago a dizer, estou com calor, estou com calor, só me quero
refrescar, acho que estou a morrer, acho que vou morrer.

Pete Um bocado dramático, mas resultou e isso, porque não morri e até fiquei
mais fresquinho. Mas o pai ficou mesmo passado e disse, tirem-me esse escarro do
lago já, e eu digo, os peixes estão a mexer-se debaixo de mim, estão a mexer-se, e
digo, pisei um Sam, pisei um peixe e pego no peixe morto, não é, e vou e digo, olha
Sam, uma tragédia, fui eu que causei esta tragédia, o pai dela passa-se completamente,
vem direito a mim, não é, e eu ainda estou nu, no meio do lago, com um peixe na
mão, ele pega em mim, leva-me até ao portão e atira-me para o meio da rua, e eu fico
no passeio que está a ferver e me queima o cu e isso, depois fui para casa.

Kate Cum caraças, isso não é verdade.

Sam Tudo verdade. Foi engraçado.

Kate Os tomates é que é.

Sam Não está a inventar.

Pete Ainda tinha o peixe e tudo. Levei-o para casa e meti-o na frigideira. Pensei
que o podia ressuscitar, mas não se consegue ressuscitar.

Kate Para a próxima convidas-me?

Sam Sim, está bem. Já te disse que pensava que estavas ocupada.

Kate Porquê?

Sam Com o teu pai?

--

Kate Querem beber mais?

Pete Nem por isso. Na verdade, não -

Sam Onde é que arranjas?

Kate Em casa.

Sam Ele não repara?

Kate Adivinha?

Pete Ele não pode beber nem nada?

Kate Não pode fazer nada.

Pete O quê, nada?

Kate Não.

Sam Ele não está mal, pois não?

Kate Fala e anda um bocadinho. Às vezes come, às vezes bebe, e depois vai à casa
de banho.
Pete Isso já é muita coisa.

Sam Está na merda?

Pete Até parecia que estavas a falar de uma batata ou coisa do género.

Kate Sabes o que eu quero dizer.

Sam Ele está bem?

Pete Quem me dera que o meu irmão fosse uma batata. E a namorada dele.

Sam Ela já se mudou?

Pete Já. É horrível. Cheira a ovo.

Sam E ele está bem?

Kate O quê?

Sam Perguntei se ele estava bem.

Kate Quem?

Sam O teu pai? Quem é que havia de ser?

Kate Está fixe.

Sam Está?

Kate Tem de estar, não é? Passa aí a cidra.

Pete Tentei dizer. Já não há.

(...)

dois

Sam Posso arranjar esta semana.

Kate De onde?

Sam Dá aí dinheiro que eu trago da loja.

Kate O quê? Gamas?

Sam Não me está a apetecer perder o emprego, muito obrigado.

Kate Emprego de merda também.

Sam Melhor do que nada, não?

Kate Nem sequer é um emprego a sério, pois não?


Sam Eu trabalho. Por dinheiro. É isso um emprego.

Kate Por quinze. Isso é ordenado de puto.

Sam Dezasseis para o ano.

Kate Ah sim, e depois? Emprego a tempo inteiro no quiosque, é? Deixa-me rir.

Sam Melhor do que nada. Dá para te embebedares, não dá?

Kate Preciso de qualquer coisa, já. (pedido)

Sam Não te posso ajudar.

Kate Vou pedir ao Pete para gamar ao irmão.

Sam Pois, faz isso.

Kate Achas que fica passado comigo?

Sam Quem?

Kate O irmão dele?

Sam Porquê? O que é que fizeste?

Kate Não sei, faço sempre qualquer coisa que o irrita, não é? Como é que está a
tua mãe e o teu pai?

Sam Na merda.

Kate Continuam a dar pontapés um ao outro?

Sam Sim, um bocado.

Kate Isso é engraçado.

Sam É?

Kate Não sei. Mais ou menos.

Sam Estão sempre a acordar a minha irmã.

Kate Porquê?

Sam Passam a noite a gritar um com o outro.

Kate Batem um no outro?

Sam Um bocado.

Kate Isso é engraçado.

Sam É?
Kate Não sei. Pais à porrada um com o outro. Acho que é engraçado.

(...)

Pete Não consegui arranjar.

Kate Porquê?

Pete O meu irmão andava aos pontapés à casa como se fosse um atrasado mental.

Sam Porquê?

Pete Engravidou a namorada.

Sam O quê?

Pete Vai ter um filho.

Sam E não está contente?

Pete Não. Ninguém estaria. Meu deus. Já viste o estado em que a namorada dele
está? Imagina ficares preso àquilo. E depois a uma versão mais pequena daquilo.

Kate Então não trouxeste nada?

Pete O quê?

Kate Não disseste que trazias bebidas?

Pete Só pensas nisso? Acabei de dizer que vou ser tio e tu só estás interessada em
beber.

Kate Exato, pois, parabéns e isso tudo, mas a falar a sério, onde é que -

Pete Já te disse.

Kate Disseste o quê?

Pete Que não consegui arranjar -

Kate Eu disse que ele ia dar cabo de tudo, não disse?

Pete Está bem, meu, eu tenho umas coisas, estava só a brincar, não é? Estás tão
zangada.

Kate Tens?

Pete Tenho, eu disse que arranjava, não disse?

Kate De onde é?
Pete Do quarto do meu irmão. Guarda debaixo da cama. Fui lá num instante
enquanto ele estava a mijar. Que loucura. Estava na sanita a gritar como se mijasse
lava da picha ou coisa do género.

Sam Ela vai ficar com ele?

Pete Vai.

Sam O filho vai fazer-lhe bem para os ataques de raiva, não?

Pete Não vai ser diferente, não é? É o homem mais zangado do mundo. Imagina
se vocês os dois tivessem ficado juntos?

Kate Porquê?

Pete Porque se isso acontecesse e tivessem um filho, seria um Satanás ainda mais
violento.

Kate Já chega de dormir com o teu irmão, obrigada.

Pete Pois, provavelmente é uma boa ideia, dado o estado atual das coisas, ele
ainda está lixado contigo e tudo.

Sam Porquê?

Kate Porquê?

Pete Porquê?

Kate Pois, porquê?

Pete O que é que achas?

Kate Não sei.

Pete Vomitaste no carro, não vomitaste?

Kate Ah, isso. Cum caraças. Foi há que tempos. E foi só na jante, não?

Pete Ele adora jantes em particular.

Sam O quê?

Pete Acabou de as pôr novas. Falou-me delas. Alguma vez ouviste alguém a falar
de jantes de carros? Foda-se que é chato. Quer dizer. São como as antigas, mas ao que
parece são diferentes. E ele adora-as.

Kate Isso passa-lhe.

Pete Mas não vai passar, pois não? Todos conhecemos o meu irmão. Ele não
ultrapassa nada. Pois não? Está cheio de raiva. É o homem mais raivoso do mundo.
Devias tê-lo visto quando eu quase deitei fogo à casa.
Sam O quê?

Pete O quê?

Kate O que é que disseste?

Pete Sobre quê?

Kate Quase deitaste fogo à casa?

Pete Sim.

Sam O quê?

Pete O quê?

Kate Então, como é que foi?

Pete Como é que foi o quê?

Kate Deitaste fogo à casa?

Pete O que é que tem?

Kate Pois.

Pete Não te contei?

Sam Não.

Pete Ah pois, desculpa, esqueci-me. Sim, quase deitei fogo à minha casa.

Kate Como?

Pete A cremar o peixe que matei no lago.

Sam A cremar o peixe?

Pete Sim.

Kate Do lago dela?

Pete Sim.

Sam Ainda o tinhas?

Pete Tinha. Estava no congelador.

Sam Porquê?

Pete Porque o pus lá.

Sam Porquê?

Pete Já não me lembro. Mas senti-me culpado e decidi cremá-lo, sabes? Só para
que ele fosse lá para o paraíso dos peixes, ou lá o que é. E fiz isso, mas fiz com
petróleo, o que foi um bocado violento para um peixe de aquário, não sabia quanto é
que devia usar, provavelmente usei demais e o peixe explodiu.

Kate O quê, explodiu?

Pete Sim, explodiu. Explodiu. O peixe explodiu. Depois o meu irmão olhou pela
janela e disse, tipo, estás a brincar com quê, caralho? E eu disse, acabei de cremar um
peixe, mas depois tivemos de chamar os bombeiros porque a mesa do jardim estava a
arder bastante.

Sam Bastante?

Pete Bom, estava em chamas, de tal maneira que a casa também ardeu um bocado.

Sam Um bocado?

Pete Só um bocado. Mas quando tens a casa a arder um bocado, isso significa que
está simplesmente a arder, provavelmente não é o que se quer, achei que chamar um
carro de bombeiros foi um bocadinho demais, mas com o fogo é preciso ter sempre
cuidado, não é?

Kate Tu pegaste fogo à tua casa porque estavas a tentar cremar um peixe?

Pete Sim. Um bocado louco, não é? Seja como for, eles vieram, apagaram o fogo
e eu pedi para pegar um bocado na mangueira, mas disseram que não, porque estavam
ocupados a impedir que a minha casa ardesse, foi o que fizeram, e depois ficou tudo
bem e nunca mais se viu o peixe, tal como a mesa, o que não deixou o meu irmão
nada contente, mas valeu a pena, o peixe é, neste momento, fumo a flutuar na brisa,
como se o céu fosse agora o seu novo oceano ou coisa assim. O meu irmão estava
furioso. Deu-me porrada depois. É por isso que tenho a cara toda negra. E o lábio
aberto. Partiu-me um dente. Acho que mereci, não? Mas sim. Espero que ter um filho
o acalme. Mas não vai acontecer. Posso dizer-vos uma coisa? Estou com muitos
ciúmes que ele vá ter um filho. Eu ia adorar.

(...)

Kate O que é que estás aqui a fazer?

Sam Nada. Apeteceu-me dar uma volta.

Kate Tens mais?

Sam À vontade.
Kate De quem é que são?

Sam Da minha mãe.

Kate Gamaste?

Sam Não propriamente. Estavam ali. Ela tinha saído. Sabem a merda.

Kate Melhor do que nada, hum? Tens isqueiro?

Sam Tenho.

Kate O que é que se passa contigo?

Sam Nada de especial. Só tinha de sair de casa.

Kate Porquê?

Sam Os meus pais estavam pegados. Parecia que o meu pai ia arrancar a cabeça da
minha mãe.

Kate Tipo a brincar?

Sam Adivinha.

Kate O que é que tens ali dentro?

Sam Dentro de quê?

Kate Daquele saco?

Sam A minha irmã pequenina.

Kate O quê?

Sam Vê. Está a dormir.

Kate Puseste a tua irmã pequenina dentro de um saco?

Sam Para trazer a cadeirinha tinha de passar pelo meu pai e pela minha mãe. Ela
está bem.

Kate Andas às voltas com um bebé num saco a meio da noite?

Sam Não queria que ela ouvisse nada.

Kate Não se vai lembrar.

Sam Não. Mas eu vou.

Kate Mesmo assim. Vais ser presa por isso.

Sam Por pôr um bebé num saco? Não me parece. Não é que ela esteja morta e
venha num saco de supermercado. Ela está bem. Eu tornei a coisa confortável.
Kate Foi?

Sam Eu não me importava se andassem comigo assim.

Kate Não?

Sam Era como estar numa caverna fofinha.

Kate Pois, talvez. Mas já somos grandes demais para isso.

(...)

Kate Como é que foi contigo?

Pete Adivinha.

Kate Uma merda?

Pete Uma merda. Exatamente. Ela passou.

Kate Passou?

Sam Acho. Nem sei. E tu?

Kate Não sei, nem me importo.

Pete O que é que fazemos agora?

Sam O que é que queres dizer?

Pete Quando terminarmos a escola? O que é que fazes quando já não tens
ninguém para te dizer o que tens de fazer?

Kate Não sei. Fazes o que quiseres.

Pete É?

Kate É.

Pete Está bem. E o que é que eu faço agora? Vamos pensar. Está bem, acho que
vou tentar fazer sexo com alguém.

Kate É?

Pete É. Já tenho dezasseis anos. Já estou legal. Cuidado com o Pete. É bom, não
é? Nunca fiz. Por isso. É uma coisa que tenho de tentar, não é? É normal, não?

Kate Para isso precisas de arranjar alguém, para ti é um problema.

Pete Pois pois pois pois. Tenho de resolver isso. Como é que eu faço?
Sam Não te vou explicar como -

Pete Não é isso. Estava a dizer encontrar alguém.

Kate Encontra um hospital de cegos e pára por lá.

Pete Pode ser que ande lá alguém.

Kate Nesta cidade, não.

Pete Há uma no supermercado.

Sam Uma?

Pete Ela é fixe. Estou sempre a tentar falar. Ela talvez sirva.

Sam Miúda sortuda.

Pete Sim, tento com ela. Estou sempre a comprar coisas, mas ela não se incomoda
nada.

Sam Falas com ela?

Pete Quando?

Sam Quando compras coisas?

Pete Não. Porquê?

Sam Porque se calhar era melhor falares.

Pete Porquê?

Kate Porque é assim que as coisas resultam, meu, não é? Porque se estiveres só a
comprar coisas, sem lhe falar, não estás a dar em cima ou começar nada, estás apenas.
Às compras.

Pete Não, estou a ser subtil.

Sam Como?

Pete Com as coisas que compro.

Sam O que é que compras?

Pete Não sei. Coisas e isso. Uma embalagem de seis salsichas.

Kate O quê? Porquê?

Pete Não sabia o que havia de comprar. E pensei. Sabes.

Kate Sabes o quê?

Pete Elas são tipo. Não sei.


Kate Tipo o quê?

Pete Sugestivas.

Sam Sugestivas?

Pete Sim.

Kate De quê?

Pete Tu sabes.

Kate Ele - estou a pensar bem?

Sam Acho que sim.

Kate Achaste que comprar uma embalagem de seis salsichas seria sugestivo
porque as salsichas são parecidas com pilas?

Pete Sim. Mas acho que não resultou.

Kate Pois, não admira. Chegar ao pé de uma pessoa colocando sugestivamente


aquilo que parecem seis pénis cortados embalados em plástico em frente dela para
tentar falar, não resultou?

Pete Está bem, está bem, não sei. Eu não sei o que faço, não é? É tudo difícil, não
é? Por que é que é tudo tão difícil? Preso a esta cidade sem saber o que fazer. É tudo
muito mais difícil do que devia ser, não é?

Sam Se fizeres coisas dessas, então sim, é.

Pete Diz-me, então.

Sam O quê?

Pete O que devo fazer?

Sam Não sei.

Pete Talvez devêssemos nós fazer?

Sam O quê?

Pete Fazemos um pacto onde acordamos que ao atingir uma determinada idade
nós podemos -

Kate Não. Cala-te.

Pete O que foi?

Kate Não fales disso. Ninguém faz coisas dessas. Tu pensas que se faz porque és
um idiota. Mas ninguém faz.
Pete Mas e se estivermos sozinhos -

Kate Não, meu. Pára de falar. Isso não vai acontecer nunca. Dormir contigo? Acho
que não consigo pensar em coisa pior. Não te quero desrespeitar e és o meu melhor
amigo e isso, eu adoro-te, mas ter sexo contigo. Quer dizer. Acho que isso ia. Tipo.
Não sei. Acho que se fizesse isso, ia-me tornar. Tipo. Violenta. Tipo, isso acontecia e
no dia seguinte eu ia estar tipo, tenho de matar qualquer coisa. Preciso de matar.
Qualquer coisa. Que seja. Tenho de matar qualquer coisa. E começava por coisas
pequenas, tipo formigas e moscas e isso. Matava bastantes. Mas depois apercebia-me
de que não estava a satisfazer esta violenta urgência e passava para os ratos e isso.
Depois gatos e cães. Depois. Não sei. Um porco? Depois uma vaca e depois um
cavalo ou coisa parecida. Mas não ia ser suficiente. E então passava para seres
humanos. Matava seres humanos violentamente. E miúdos. E bebés. Num dia. Essa
matança toda num só dia, que por acaso era o dia seguinte a termos sexo.

Pete Pronto, era a injeção de confiança que eu -

Sam Eu também não fazia.

Pete Pois, exato, obrigado.

Sam Eu ia sentir o mesmo -

Pete Pois, está bem -

Sam Eu ia querer cometer atos horríveis de violência porque tinha visto o teu pé -

Pete Está bem, calem-se, era só uma ideia. Não sou assim tão mau, ou sou?

Kate Pareces um bocado um peixe, mas -

Pete Está bem, cala-te. Mas fora de brincadeiras, é só isso que precisamos, não é?

Kate O quê?

Pete Uma família.

Kate Uma família?

Pete Acho que deviam tentar. É só o que precisas, não é?

Kate Uma família decente.

Pete Sim, a minha vai ser. Vai ser a melhor família que vais ver. Vamo-nos estar
sempre a rir. Trinta filhos a andar de um lado para o outro. Vai ser extraordinário.
Nunca te aborrecias, pois não? Ias andar sempre de um lado para o outro atrás deles.
Ia ser tipo, o que é que aquele está ali a fazer em cima do forno? E por que é que o
outro está a ligar o grelhador? É melhor desligar aquilo, mas não posso porque há um
a matar o cão com a faca da cozinha. Ah, o que é que se passa ali, por que é que
aquele está com um. Tipo. Um chapéu? Ou coisa parecida. De onde é que aquilo veio?
Nunca vi aquele chapéu. Quer dizer. Nunca te irias aborrecer. É esse o meu sonho.

Kate Parece-me horrível.

Pete Sim, não admira que te pareça horrível.

Kate Então porquê?

Pete Serias horrível.

Kate Em quê?

Pete A ser mãe.

Kate O que é que estás a dizer?

Pete Estou a dizer que se alguma vez tiveres um filho, coitado do miúdo.

Kate Vai-te foder.

Sam Ele até tem razão.

Kate Tem?

Sam Ainda nem sabes o nome da minha irmã, pois não?

Kate Até sei.

Sam Como é que se chama então?

Kate Sandra.

Sam Sandra?

Kate Sim.

Sam Sandra?

Kate Sim, é o nome dela, não é?

Sam Não. Nem sequer é parecido. Onde é que foste arranjar a Sandra? A minha
irmã não se chama Sandra. Ninguém se chama Sandra.

Pete A não ser. Tipo. Mulheres da limpeza e isso.

Sam Ela chama-se Alex.

Kate Pois, eu sabia, não sabia?

Pete Então por que é que disseste Sandra?

Kate Estava a brincar, não?


Pete Mas não estavas, estavas -

Kate Está bem, estava confusa, agora cala-te com isso.

Pete Vês.

Kate O quê?

Pete Serias horrível. Ias esquecer os nomes deles, acabavas por te esquecer dos
nomes deles para sempre.

Kate Eu ia ser fixe.

Pete Os tomates é que ias. Ias estar bêbada a toda a hora. Serias daquelas clássicas
mães bêbadas.

Sam Ias matar o teu filho num acidente de carro.

Kate Meu deus, que simpático.

Pete Ela até tem razão e isso.

Kate Serias um pai de merda.

Pete Tu sabes e eu sei e a Sam sabe que isso não é verdade. Eu seria fantástico. O
melhor. Só preciso de uma pessoa.

Sam Podes sair com a minha avó? Ela deve ser um bocadinho velha para produzir
filhos fisicamente. Mas. Tu sabes. Vale a pena tentar?

Pete Acho que não quero sair com a tua avó, obrigado.

Sam Ela vai ficar arrasada, mas recupera.

Pete Estou a falar a sério.

Kate A sério o quê?

Pete É só o que eu quero. Estou sempre a pensar nisso. Tenho ciúmes do meu
irmão.

Kate Porquê?

Pete Porquê o quê?

Kate O que é que o teu irmão tem a ver?

Pete Oh meu deus, estás a brincar meu? Estás muito bêbada? Já te disse muitas
vezes. Estou sempre a falar disto, não estou? Ele vai ter um filho, não é? Já te disse
umas trezentas vezes, não? Estou sempre a falar disso. A namorada dele está grávida e
vai fabricar um bebé muito feio e eu vou ser tio porque sabes, é assim que a vida é,
não é? Estás-te a passar? Não te lembras das coisas? É o primeiro caso de sempre de
uma adolescente que fica demente.

Kate Está bem, acalma-te, só -

Pete Não é justo. Nada disto é.

Sam O quê?

Pete Ele e o miúdo e isso tudo. Ele tem isso tudo e eu não tenho nada.

Sam Leva tempo.

Pete Leva?

Sam Acho que sim.

Pete É horrível alguém fazer isso, não é?

Sam O quê?

Pete Foder com o meu irmão. Fico logo mal disposto.

Sam Não tens de ficar.

Pete Mas eu sei, não é? Só o pensamento de alguém a fazer isso. Mesmo alguém
que cheira tão mal a ovo como ela deve estar alguns furos acima do estatuto do meu
irmão. É uma loucura. Mas também já estou convencido com o facto de que vou ser
tio. Tenho um plano.

Kate E qual é?

Pete Vou dar ao miúdo tanto amor que ele vai olhar para mim um dia e vai dizer,
tio Pete, gostava que fosses o meu pai verdadeiro.

Kate E depois?

Pete E depois o quê?

Sam O que é que acontecia se o miúdo dissesse isso.

Pete Não sei. Gamava-o e levava-o para um sítio qualquer. Garantia que ele
crescia cheio de esperança e isso.

Kate Meu deus.

Pete O que foi?

Kate Tu a falares assim.

Pete Que mal é que tem?

Kate Que panhonha.


Pete Está bem -

Kate Cheio de esperança. Estás a dizer merda.

Pete Por que é que dizes isso?

Kate Não é nada de mais.

Pete Exatamente.

Kate Não esperes nada de famílias. E não esperes nada de cidades como esta.
Encontra tu a tua própria esperança.

Pete Claro.

Kate É o que eu vou fazer.

Sam O quê?

Kate Vou sair daqui. Desta cidade. É uma prisão. Não vou arranjar uma família e
ficar aqui. Vou-me embora. Vou. Meto-me num carro e conduzo durante quilómetros e
quilómetros e quilómetros. Não vou parar.

Pete Metes-te num carro? Isso é engraçado.

Kate E porquê?

Pete Tens dezasseis anos, não tens? Tens de ter dezassete para conduzires. O que é
que vais fazer? Compras um carro agora e ficas um ano a olhar para ele. Para além de
que é uma chatice ter carro.

Kate Ah, e porquê?

Pete Não se pode beber, não é?

Kate Podes, sim. Cinc’ándar.

Pete Cinc’ándar? O que é isso?

Kate Cinco canecas e estás bem. Aqui toda a gente se embebeda e conduz. Que
outra merda é que se pode fazer por aqui?

Sam E quando chegares ao mar, o que é que fazes?

Kate O quê?

Sam Estamos numa ilha pequena, não é? Se não parares de conduzir, vais dar ao
mar. E depois?

Kate Vou continuar a andar de alguma maneira. Quando lá chegar, descubro.

Pete É, pois, o teu carro transforma-se num barco e tudo?


Kate Já disse.

Sam Disseste o quê?

Kate Que depois descobria.

Sam E quem é que toma conta do teu pai?

--

Kate Ele tem uma assistente ao domicílio, não é?

Sam E o que é que acontece quando ela desaparecer?

Kate Como é que isso vai acontecer? Não me parece que alguém vá dizer, tipo,
temos de acabar com as pessoas que tomam conta das pessoas que estão a morrer na
suas casas para poupar dinheiro. Isso não vai acontecer, pois não?

Pete Mas pelo menos estás em casa, não?

Kate O quê?

Pete Nesta cidade. Temo-nos uns aos outros, não é? É isso que quer dizer casa.
Acho que, pelo menos. Não são os edifícios nem os parques nem as estradas ou outra
coisa qualquer. São as pessoas, não é?

Kate Então, aí tens.

Pete O quê?

Kate Casa pode ser em qualquer lado, não é? Então por que é que estamos nesta
merda? Preciso de beber.

Pete Não tenho dinheiro.

Kate Não podes gamar ao teu irmão outra vez?

Pete Matava-me.

Kate E tu?

Sam Só recebo para a semana.

Kate Ah, então vou ter de gamar ao meu pai.

Sam Ele não dá por isso?

Kate Provavelmente não. E se der, qual é o problema?

(...)
Pete Arranjaste?

Kate Arranjei.

Sam Quanto?

Kate Trinta mais ou menos.

Pete Sem troco?

Kate Troco? Não se recebe troco de um dealer, pois não? Já viste algum com uma
caixa registadora debaixo do braço? A perguntar se precisas de recibo e isso?

Pete O que é?

Kate Um bocado de erva só isso. E isso o que é?

Pete O que é que te parece?

Kate Uma abóbora.

Pete Pois, é uma abóbora. Bem identificado, meu.

Kate Para quê?

Pete Para quê o quê?

Kate Para quê o quê para quê? Por que é que andas com uma merda de uma
abóbora?

Pete És parva? Para lhe desenhar uma cara. Vai ficar mesmo assustadora.

Kate Quantos anos tens?

Pete Dezasseis, porquê?

Kate Os miúdos é que fazem essas coisas.

Pete Ah, és velha demais, é?

Kate Não sei, é um bocado parvo.

Pete Tu também és um bocado parva. Passa aí a cidra.

Sam Onde é que a vais pôr?

Pete Vou esculpir uma cara, não é, e depois vou pendurá-la à porta de casa,
quando o meu irmão abrir a porta, ela vai aparecer mesmo na cara dele e ele, tipo, oh
foda-se, o que é isto, vai assustá-lo tanto que vai cair para trás, abre a cabeça no
degrau da entrada, o cérebro vai escorrer para fora da cabeça e ele morre.
Kate É um bom plano.

Pete Pois, bem me parecia. Assim desaparecia e eu não era acusado de crime e
essa merda.

Sam O crime perfeito.

Pete Exatamente. Queres ajudar?

Kate Não.

Pete Há uma surpresa. E tu?

Sam O quê?

Pete A abóbora?

Sam Que tem?

Pete Ajuda-me a esculpir uma cara.

Sam Quando?

Pete Agora.

Sam Preciso de uma faca.

Pete Pois, tenho uma aqui. Queres ajudar?

Kate Por que é que andas com uma faca?

Pete Para esculpir abóboras. Ajuda aí, vai ser divertido.

Sam Tu sabes, eu fico a ver.

Pete Como quiseres. De certeza que não queres experimentar?

Kate Não. Passa a cidra.

Pete Como é que se faz?

Sam Faz o quê?

Pete Como é que se faz uma cara e isso.

Sam Cortas a parte de cima, esvazias o miolo, fazes uma cara e pões uma vela
acesa lá dentro e depois tornas a pôr a tampa.

Pete Ah, foda-se, isso dá muito trabalho. E precisas de vela? Nunca ninguém me
disse essa. E para que é que é, para as caras se iluminarem ou assim?

Sam Bem pensado.

Pete Esse esforço todo numa abóbora? Que loucura. Por que é que é tudo tão
difícil?

Sam Não é tão difícil -

Pete Não se pode comê-las?

Sam Se quiseres. Mesmo assim tens de as cortar.

Pete O quê como se fosses também fazer uma cara?

Sam É, pois.

Pete Não se pode comê-las assim?

Sam O quê, como uma maçã?

Pete Sim.

Sam Não.

Pete Ah, que se foda. Nem valeu a pena gamá-la, não foi?

Kate Gamaste-a?

Pete Gamei.

Kate De onde?

Pete Da loja.

Kate Qual?

Pete Da pequenina.

Sam Onde eu trabalho?

Pete Sim.

Sam Mas o que é que se passa contigo?

Pete O que foi?

Sam Eu trabalho lá, não é?

Pete E depois?

Sam E depois o quê?

Pete Quer dizer que não posso gamar coisas porque trabalhas lá? Não faz sentido
nenhum, pois não?

Kate Devias chibá-lo. Era engraçado.

Pete Não faças isso.


Kate Aí ele era apanhado.

Pete Apanhado?

Kate Sim. Ias dentro por isso. Roubo em loja.

Pete O caraças que vais dentro por roubares uma abóbora. O que é que vão fazer,
mandam para a cadeia?

Kate Talvez.

Pete Ah pois, claro. Até imagino. Eu preso, sentado e um tipo diz, estou aqui
porque matei os meus filhos todos com um tijolo, e tu, o que é que fizeste? Eu gamei
uma abóbora, meu, vamos desabafar os dois.

Kate Ia ser engraçado se fizessem isso. Passavas o resto da vida sem emprego
porque tinhas registo criminal por gamares uma abóbora. Acabavas por ficar sem
dinheiro, não conseguias comprar nada e acabavas por te matares.

Pete Ah, linda história, meu, gostei do final feliz.

Kate Não podias ter gamado uma coisa mais útil?

Pete O quê, bebida?

Kate Óbvio.

Pete Nã, isso está tudo atrás do balcão, isto estava à frente da loja, era mais fácil
roubar. Dá aí um bocado disso.

Kate Não há muito.

Pete Vai-te foder, claro que há, dei dois goles.

Sam E eu também.

Pete Não sabes partilhar, meu?

Kate É para aquecer.

Pete Ah é, sim? Então devíamos ir a um bar, não era? Está um gelo, hoje.

Kate O bar é uma merda.

Pete É porreiro.

Kate Qual?

Pete O Carvalho.

Kate O Carvalho é uma merda. Cheio de parvalhões.

Pete Melhor que o parque, não? Três adolescentes de dezasseis anos num parque a
partilhar uma garrafa de cidra. Isto está a correr bem, não está?

Kate Não me estou a queixar.

Pete Pois, e não te perguntas porquê? Ah pois, porque bebeste uns três litros de
cidra sozinha.

Kate Não estou bêbada.

Pete O caraças que não estás. Eu estou derreado e só dei dois goles.

Sam Então as coisas iam correr-te bem no bar, não era?

Pete Sim, iam dar-me na cabeça.

Sam Vais vomitar?

Kate O quê?

Sam Parece que vais?

Kate Sinto-me uma merda. Preocupa-te contigo.

Pete O que é que fazemos a seguir?

Sam Não sei.

Pete Alguém me dá um empurrão no baloiço?

Kate Passa-se qualquer coisa contigo.

Pete Ah, pois, sou muito velho, não é? Não há nada mais para fazer, não é? Saí da
escola há uns meses. Não fiz mais nada senão beber.

Kate Não há mais nada para fazer.

Pete Pois. Ah, esqueci-me de te contar.

Sam O quê?

Pete O meu irmão já teve o filho. Já sou tio.

(...)

Sam Pára de gritar, está bem.

Kate Porquê? Ninguém se importa.

Sam Eu importo.
Kate Porquê?

Sam Porque a vais acordar?

Kate Quem?

Sam A minha irmã.

Kate E depois?

Sam E por que é que estás a fazer isso?

Kate Por que é que estou a fazer o quê?

Sam Por que é que estás a gritar comigo? As pessoas normais costumam bater à
porta.

Kate Estou chateada.

Sam E depois?

Kate Então sai.

Sam Não posso.

Kate Porquê?

Sam Estou a tomar conta da minha irmã, não é?

Kate Onde está o teu pai?

Sam Saiu, ou outra coisa qualquer, não sei.

Kate Deve estar no Carvalho, a beber provavelmente.

Sam Pois, provavelmente.

Kate O Pete disse que o irmão dele disse que agora estava lá todas as noites.

Sam Não é todas as noites, pois não?

Kate Até está a lidar bem com o facto de a tua mãe vos ter deixado.

Sam Pois, e como é que está o teu pai? Já morreu?

Kate Vem sair connosco, bebemos uns copos.

Sam Já disse que não, tenho de tomar conta dela, não é?

Kate Ela fica bem. Até disseste que estava a dormir.

Sam Pois, e o que é que acontece se acordar?

Kate Ela consegue tomar conta de si própria, não?


Sam Tem cinco anos.

Kate Já é muito velha. Mete-a no saco outra vez.

Sam Já é muito pesada.

Kate O quê, não, não é? É pequenina.

Sam Tem-la visto?

Kate Ela já anda, não é?

Sam E depois?

Kate E depois quando os miúdos começam a andar, já são capazes de tomarem


conta de si próprios, não é? Se quisesse podia ir a andar até ao bar e dizer ao teu pai.
Sai daí.

Sam Ela já sabia andar no ano passado.

Kate Ah, sim? Então por que é que andavas com ela num saco?

Sam Porque era de noite e ela estava a dor - por que é que eu estou a explicar isto?
Eu não posso sair, não é?

Kate Gamei vodka.

Sam E depois?

Kate E depois vem beber comigo.

Sam Vai ver onde está o Pete.

Kate Ele não saiu, não abre a porta porque está a bater uma.

Sam Ah pois, provavelmente. Sabias que acende velas quando faz isso?

Kate O quê?

Sam Diz que torna a coisa mais romântica e menos deprimente.

Kate Anda, sai.

Sam Já te disse -

Kate Está bem, foda-se, isto não devia estar a acontecer, sabias?

Sam O quê?

Kate Os teus pais é que deviam de estar a fazer o que tu estás a fazer agora, e nós
devíamos estar a fazer o que eles estão a fazer provavelmente. Que é: nos copos.

Sam Então vai fazer isso.


Kate Fazer o quê?

Sam Vai para os copos. É só isso que sabes fazer.

Kate Sozinha?

Sam Sim.

Kate Aborreço-me.

Sam Então. Vai para casa.

Kate Também não quero.

Sam Então, não sei. Vai fazer o que o Pete está a fazer.

Kate O quê? Bater uma à luz das velas?

Sam Isso, não quero saber, deixa-me me paz, tenho de tomar conta dela. Eu saio
amanhã ou assim.

Kate Estás a dizer-me para eu ir -

Sam Sim, vai. Talvez consigas descarregar alguma dessa raiva.

Kate Está bem, como quiseres. Diverte-te quando o teu pai chegar a casa e decidir
gritar contigo. Eu apareço para a semana. Preciso de uma nota de dez.

Sam Está bem, eu vou buscar.

(...)

Pete Sinto que não estou a alcançar todo o meu potencial.

Kate Pois é, bater punhetas treze vezes por dia talvez tenha esse efeito.

Pete Estou a falar a sério.

Sam O quê?

Pete Não sei o que hei-de fazer. Preciso de qualquer coisa para passar o tempo.
Preciso de dinheiro.

Sam Arranja um trabalho.

Pete Ah pois, arranjo um trabalho e é tudo assim tão fácil, é?

Sam Eu arranjei.

Kate Ah sim, que bom trabalho esse, não é? Como é que está a promoção para o
quiosque?

Sam Melhor do que nada. É mais do que o que tu fazes agora, não é?

Kate O quê?

Sam Disse que era mais do que o que tu fazes.

Kate Com quê?

Pete No trabalho, no emprego, essas coisas.

Kate Nunca pensei nisso.

Pete Ah não?

Kate Não. Primeiro saio desta cidade, depois penso.

Sam Provavelmente precisas de arranjar um trabalho para poderes sair.

Kate Não há trabalho aqui, pois não?

Pete Deve haver alguma coisa? No supermercado?

Kate Melhor do que isso.

Pete Ah é?

Kate Não andámos na escola e fizemos uma data de exames de merda e passámos
por uma data de coisas para agora trabalharmos num supermercado, não é?

Pete Não sei. Algumas pessoas gostam.

Kate Nós não.

Pete Seja como for, o supermercado não está a aceitar. Eu perguntei. Teria sido
perfeito. Eu e a rapariga da máquina registadora. Salsichas por todo o lado.

Kate Salsichas

? O que é que se passa contigo e as putas das salsichas?

Pete Está bem, estava só a brincar. Mas a sério. Estamos um bocado presos.
Quando se pensa nisso.

Kate Pois.

Pete Gostava de ser bombeiro, acho. Fiquei inspirado quando apagaram o fogo na
minha casa, naquela altura.

Sam O quê, tu?

Pete Sim. Ia ser extraordinário.


Kate Ias ser uma grande merda a fazer isso.

Pete O caraças que ia.

Kate Mole como a merda. Tens medo do escuro, não tens?

Pete E depois?

Kate E depois, se tens medo do escuro como é que te vais arranjar num incêndio?

Sam Não ia estar escuro.

Kate Tu sabes o que eu quero dizer.

Pete Achas que eu ia ser uma merda?

Kate Acho.

Pete Ah. Pronto, lá se vai o sonho, então.

Sam Também não podes ser bombeiro aqui.

Pete Porquê?

Sam Não há quartel de bombeiros, ou há?

Pete Ah, não há? Pensei que houvesse um em cada cidade.

Kate Nesta não.

Pete De onde é que eles vêm então?

Sam Quilómetros, acho.

Pete É uma loucura, não é? Imagina que a minha casa tinha ardido completamente
só porque demoraram que tempos a lá chegar. A culpa não seria minha, pois não?

Kate Bom, não.

Pete Pois, acho que sim. Ah pois. Isto é estranho, não é?

Sam O quê?

Pete Mais um ano que quase passou. Sinto-me como se tivéssemos acabado de
sair da escola há uns minutos. Não faço ideia do que devo fazer com os trabalhos e
isso. Mas se calhar não me importo. Agora que penso. Acho que não me importo.
Porque acho que só quero ser pai.

Sam Ser quê?

Pete Pai.

Kate Ser pai?


Pete Sim, foi o que eu disse. Acho que é só isso que eu quero realmente ser. O
filho do meu irmão. Não consigo deixar de pensar nele. Quando está a dormir, estou
sempre a olhar para ele. Um bebezinho ali deitado. Só quero pegar nele. Andar com
ele ao colo um bocadinho. Mas não faço nada. Porque se acorda, o meu irmão
explode. E não vale a pena levar murros. Por isso, fico a olhar para ele a dormir. Faço
isso todas as noites. Olho para o peitinho a subir e a descer. Imagino o que está a
pensar. Tento imaginar que imagens é que tem dentro da cabeça. Como é que eu sou
nas suas pequenas memórias. Não consigo pensar em mais nada.

(...)

Sam Onde é que arranjaste?

Kate Um tipo qualquer no bar.

Pete Quem é que era então?

Kate Um tipo que estava no Carvalho. Não sei. Fiquei um bocado cá fora. Eu só
queria um bocadinho de erva, mas ele era, tipo, a erva é aborrecida, toma um
bocadinho de ketamina.

Sam Parece-me bem

Kate Disse que era boa.

Pete Quem?

Kate Quem o quê?

Pete Quem é que foi?

Kate Não sei, um tipo.

Pete Ele tinha um olho só?

Kate Não sei, não reparei.

Pete Não reparaste?

Kate Não sei.

Pete Não reparaste se o tipo com quem estiveste a falar só tinha um olho?

Kate Bom, um dos olhos estava fechado.

Sam Eu conheço-o. Vai lá à loja. Estou sempre a pensar que me está a piscar o
olho, mas depois fica fechado.
Pete Nã, não te está a piscar o olho. Ele só tem um olho. Não se pode piscar
quando só se tem um olho.

Kate Como é que sabes?

Pete O quê? Porque não há olho para, tipo, a pálpebra se fechar, então -

Kate Não queria dizer isso, não é? Estava a perguntar como é que o conhecias.

Pete Ah, sim, porque conheço. O meu irmão conhece-o. Vou contar-vos uma coisa
e assim.

Kate O quê?

Pete Esse tipo.

Kate O que é que tem?

Pete Que só tem um olho, certo?

Kate Sim?

Pete A alcunha dele.

Kate O que é que tem?

Pete É o Estêvão Zarolho.

Sam Soa bem.

Pete Porque só tem um olho, por isso chama-se -

Sam Sim, eu percebi.

Pete Exato, pois, o meu irmão disse que perdeu o olho porque alguém lhe deu um
murro uma vez e o olho caiu, e o tipo que lhe deu o murro fugiu, não é, mas o Estêvão
conhecia o primo do gajo ou coisa parecida e tipo, pensou, eu apanho-o para a
semana, eu sei onde ele vive ou coisa parecida, com o olho pendurado da cara, não é -

Kate Treta.

Pete Nã, nã, é verdade. Ao que parece, estava tão bêbado que simplesmente o
tornou a meter para dentro e continuou a beber e era toda a gente, Estêvão, meu, o teu
olho não está muito bom, meu, e ele tipo, estou fixe, foi só um arranhão, meu, e
depois alguém, tipo, não parece um arranhão Estêvão, meu, o teu olho não está onde
devia estar. Ele não estava preocupado, não é, continuou a beber e foi para casa, mas
depois, ao que parece, acordou na manhã seguinte, ainda lhe doía, e ele puxou-o
simplesmente, não é. E depois, não é, mandou-o pelo correio ao outro tipo com um
bilhete a dizer, estou de olho em ti. Aposto que o gajo se cagou todo aí. É assim o
Estêvão Zarolho. Loucura, não é? Ele agora é passador de droga, portanto parece que
se está a sair bem na vida e a tomar todas as decisões corretas, não é?

Kate Tu só dizes merda.

Pete Ah, digo merda? Tanto como tu. A única diferença é que tudo o que digo é
verdade. Podia escrever um livro.

Sam Sobre quê?

Pete Esta cidade. Sobre todas as história que se passam nela. Ia para o top de
vendas. Fazia uma fortuna. Lia-o aos meus filhos antes de irem para a cama.

Kate Podias fazer isso se soubesses soletrar ou ler.

Sam Ou escrever.

Pete Eu sei escrever, não é? Fiz aquele exame há que tempos, não foi?

Sam E como é que correu?

Pete Eu sei soletrar um bocado e isso.

Kate Consegues, pois.

Pete Exatamente.

Kate É só que se chegares a uma palavra com mais de três letras as coisas
começam a ficar um bocado difíceis, não é?

Pete Eu sei soletrar uma palavra com mais de três letras, não sei? O meu nome
tem seis, não é?

Sam O quê, Pete?

Pete Sim.

Kate Isso são quatro letras, idiota do caralho.

Pete Estava a falar de Peter, não é?

Sam Isso são cinco.

Pete Ah, que se foda, não é esse o assunto, pois não? O assunto é que eu tenho
histórias. E as pessoas adoram histórias, não é?

Sam Algumas adoram.

Kate Sobre este sítio, não.

Pete Então porquê?

Kate Ninguém quer saber de cidades rodeadas de campos, pois não? Ou das
pessoas que lá vivem. Como nós. Ninguém está interessado nas cidades que ficam
paradas como ilhas no meio dos campos. Nunca estiveram. E nunca estarão.

(...)

Kate Por que é que as tuas coisas estão todas aqui espalhadas?

Pete O meu irmão atirou-as para fora de casa.

Kate Porquê?

Pete Voltou para casa bêbado e pensou que eu tinha escondido o controlo remoto.

Kate E por isso atirou-te as coisas todas fora?

Pete Tudo bem, eu não me importo.

Kate E agora ficas aqui fora?

Pete Sim, trancou-se. Estou congelado. E o que é que tu estás aqui a fazer?

Kate O meu pai estava a tossir. Não queria ouvir mais. Queres vir dar uma volta?

Pete A meio da noite.

Kate E depois?

Pete Não posso.

Kate Porquê?

Pete O meu irmão disse que eu tinha de ficar aqui.

Kate O quê?

Pete Tenho de ficar aqui, se sair daqui, dá cabo de mim.

Kate O teu irmão, meu.

Pete É um cabrão, não é?

Kate Tudo porque pensa que lhe escondeste o controlo da televisão.

Pete Bom, e escondi e isso.

Kate Porquê?

Pete Está sempre a meter-se comigo, que eu não levo dinheiro para casa.

Kate O que é que isso tem a ver com ele?

Pete Diz que tenho de pagar renda.


Kate A casa também é tua, não é?

Pete Eu sei, mas não se cala. Vou ver se consigo inscrever-me no subsídio de
desemprego e isso. Faz-me sentir um bocado vazio. Não sei porquê. Não devia, pois
não? Existem para ajudar, não é? Não é para nos fazerem sentir que não valemos
nada.

Kate E então vais dar o dinheiro do subsídio ao teu irmão?

Pete Não sei que posso fazer mais.

Kate Diz-lhe que se vá foder.

Pete E levar um ensaio de porrada outra vez? Não, muito obrigado. Tu devias era
ir-te embora e isso. Se ele aparece e te vê também levas. Tu precisas mesmo de deixar
de vomitar no carro dele, sabes?

Kate Não aguento. É o carro mais feio que eu já vi. Tenho de lhe vomitar em cima.

Pete Ele odeia-te mesmo, sabias?

Kate Sim, eu sei. Não quero saber. Só quero é ir-me embora daqui.

Pete Pois, talvez.

Kate Talvez? Definitivamente. O meu pai. O pai da Sam. O teu irmão. Não estão
bem, pois não?

Pete Não, acho que não.

Kate Não é justo.

Pete Eu sei, mas –

Kate – Mas o quê?

Pete Só estou preocupado com isso, mais nada.

Kate Preocupado com quê? Nós vamos ficar bem.

Pete Não, não é connosco. Com o filho do meu irmão. Sinto que preciso de tomar
conta dele. Sabes? Porque. Porque acho que o meu irmão não sabe nada sobre isso.

Kate Sobre o quê?

Pete Sobre o amor.

(...)
Pete Esqueci-me.

Kate Foda-se meu, a única coisa que eu pedi que me trouxesses. O que é que eu
disse? Pete, compra mortalhas porque não se pode fumar um charro sem mortalhas e
eu é que tenho o resto, não é? Uma coisa. Só uma coisa de merda.

Pete Está bem, acalma-te -

Kate Vai à loja por nós.

Sam Está fechada, não está?

Kate Vocês são uns inúteis. Nem sei por que é que ando com vocês.

Pete Porque não tens mais ninguém.

Kate Quero lá saber. Gamei uns analgésicos, posso apanhar uma pedrada com eles.

Sam De quem?

Kate Do meu pai, o que é que achas?

Sam Ele não precisa?

Kate Tem montes. E eu preciso mais. Queres um?

Sam Vou ficar na cidra.

Kate Como quiseres. E tu?

Pete Está bem, por que não? O que é que fazem?

Kate Não sei. Ficas com a pedra, acho.

Pete É o melhor que há. E até estou com um bocado de dor de cabeça e tudo, por
isso são dois coelhos de uma só cajadada, não é? Fazem parar a dor de cabeça, não
fazem?

Sam Sim, provavelmente, se forem para aquilo que o pai dela tem.

Kate Para de dizer essas coisas sobre o meu pai.

Sam Está bem, estava só a dizer -

Kate Então, não digas, ele está bem.

Sam Acho que ele não está muito bem, não é?

Kate Já te disse para te calares com isso.

Sam Nunca falas disso.

Kate Por que é que eu tenho de falar?


Sam Não sei. Só acho que devias. Acho que devias estar preparada ou coisa do
género.

Kate Preparada para quê?

Sam Para quando ele morrer.

Pete Sim, vai ser um dia de merda, não é?

Kate Qual dia?

Pete Chegas a casa bêbada como sempre e descobres o teu pai morto. Quer dizer.
Isso vai tirar um bocado da tua euforia, não vai?

Kate Isso não vai acontecer.

Pete Eu acho que vai, meu.

Kate Não vai.

Pete Tenho uma ideia para ti.

Kate Que ideia?

Pete Devias arranjar um hamster ou coisa parecida.

Kate Porquê?

Pete Porque não duram muito, não é?

Sam E depois?

Pete E depois, quando ele morrer, podes praticar o sofrimento para quando o teu
pai morrer.

Sam É a mesma coisa?

Pete É quase o mesmo. Eu posso arranjar-te um se quiseres.

Kate Eu não quero -

Pete Um amigo do meu irmão vende-os.

Sam O quê?

Pete Tem uma pequena loja na sua sala.

Sam Que loja?

Pete Vende todo o tipo. Roedores e isso, é onde se especializou. Adora. Cria-os e
vende-os. Baratos e tudo. Cinco euros ou lá o que é. Cinco euros por um pequenino
hamster, é um bom negócio, não? Se tiveres dez euros, podes comprar dois. É
matemática.
Sam Que génio.

Pete Se tivesses vinte podias comprar cinco.

Sam Meu deus.

Pete Mas avisa-me, seja como for.

Kate Pois, eu estou bem assim, obrigada.

Pete É justo, e tu?

Sam Eu estou bem em relação a roedores.

Pete Tudo bem, sem problemas, não estou nada preocupado, quer dizer que não
vou ter de ir a casa dele, cheira mal.

Sam A sério, e porquê?

Pete Pois, porque tem uma data de roedores a cagar por todo o lado. Ah, estavas a
ser sarcástica. Tu és difícil.

Kate Passa isso.

Pete Não acabes, tipo. Só tenho uma.

Kate O quê?

Pete Foi o que consegui encontrar em casa.

Kate Cum caraças. Uma lata?

Pete Não posso fazer nada.

Kate Ainda durou um bocado, não foi?

Sam Meteste um monte de analgésicos, não foi?

Kate Não interessa para nada, não tens nada para fazer. É melhor dormirmos
todos.

Pete Por mim, tudo bem, eu adorava dormir. Mas aqui não. Ia morrer congelado,
não é? E depois morríamos. O que não era ideal. Ah, por falar em roedores. No outro
dia comprei à rapariga um rato. Ainda não se tinha habituado.

Sam Quem?

Pete A rapariga do supermercado.

Kate Ainda andas a tentar com ela?

Pete Ando.
Kate Há quanto tempo?

Pete Não sei. Mais ou menos um ano e meio?

Kate Não achas que devias deixar a coisa assim?

Pete Não, vou continuar a tentar. Mas foi chato ela não ter gostado do rato.

Sam Isso é engraçado.

Pete Nã, não era daqueles porcos.

Sam Ela tinha falado disso?

Pete Falado de quê?

Sam Gostar de ratos.

Pete Não.

Kate Então por que é que lhe compraste um rato?

Pete Porque são queridos. Era só um presente, tipo. Uma amostra do meu amor
por ela.

Kate Tu não estás apaixonado.

Pete Estou. É só isso que estou. Eu amo-a, ok? Estou apaixonado. Estou
literalmente apaixonado. Quero fazer amor com ela. Muito devagar. Muito
delicadamente.

Sam Que nojo.

Pete À luz das velas.

Kate As putas das velas. O que é que se passa com ele e com as velas? Porquê as
velas? Para que é que são as velas?

Pete É o que as pessoas fazem, não é?

Kate Não.

Pete Já fizeste?

Kate Não.

Pete Oh, porque nunca foste cortejada. Mas eu. Eu sou romântico. Por isso, sou
todo velas e essas merdas. Sim? Já tenho dezassete anos. Está na altura de deixar de
sermos putos com esta merda do amor. Subir um nível.

Kate Ratos e velas então?

Sam Melhor do que salsichas.


Kate Isso é verdade.

Pete Seja como for. Agora tenho um rato. Não o quero. Vou soltá-lo. Libertá-lo. Ia
ser bom. Vou dizer uma coisa.

Sam O quê?

Pete Acho que não foi por causa do rato.

Kate Não?

Pete Acho que foi porque a segui até casa dela.

Kate Pois, isso pode ser.

Sam Seguiste-a?

Pete Segui. Não, tipo, diretamente atrás dela. Só tipo. Uns metros atrás.

Sam Pois, assim não é muito assustador.

Pete Não queria fazer isso, não é? Não queria. Não sabia o que havia de dizer, por
isso segui-a. Não a queria seguir. Queria falar com ela. Mas. Não conseguia. É sempre
assim que se faz, não é?

Sam O quê?

Pete Mentes sobre o que pensas que podias dizer. Todas estas coisas magníficas
dentro da cabeça. A dizê-las dentro da tua própria mente. Depois quando chega a hora
da verdade, soa tudo mal e nem sequer consegues falar. Por que é que isso acontece?

Sam Não sei.

Pete Nem eu. Alguma vez te aconteceu?

Sam Acho que sim.

Pete Pois. Que não te aconteça. Acho que não vou conseguir não fazer isso. Ser só
eu. Pensar coisas. E é só isso que existe, não é? A vida é só pensar. E depois morres. E
é só isso que existe. Não é? Só isso. Que existe. Pensar em fazer e dizer coisas. E
algumas pessoas podem. Mas eu não posso. E isso. E isso não é bom, não é? Quer
dizer. Sonhar e nunca fazer realmente. Isso é. Por que é que não posso fazer isso?
Meu deus, estes analgésicos são um bocado estranhos, não são? De que é que eu estou
a falar? Sinto que podia flutuar. Flutuar e ir à deriva. Ir à deriva até ao horizonte e ver
o que está do outro lado.

(...)
Sam Não é assim tão mau.

Kate Não parece. O que é aconteceu, caralho?

Sam O meu pai voltou bêbado para casa e bateu-me. Tudo bem. É só um olho
negro, mais nada.

Kate Só?

Sam Estava a gritar. Deixei que me batesse. É mais fácil assim. A minha irmã
acordou por causa do barulho. Ele caiu para o lado e eu passei o resto da noite a
adormecê-la.

Kate Chamaste a polícia?

Sam O que é que iam fazer?

Kate Levá-lo.

Sam E depois?

Kate O quê?

Sam O que é que eu faço depois? O pai dentro e a mãe não interessada em voltar.
Eu e a minha irmã fazíamos o quê? Ela era levada para algum lado e não tinha sítio
onde ficar. É melhor aguentar.

Kate Eu não aguentava.

Sam Não tenho escolha, não é?

Kate Bater-lhe também?

Sam Quem me dera. Mas tive uma ideia.

Kate Que ideia?

Sam Poupei dinheiro da loja. No ano que vem, quando fizer dezoito, alugo um
apartamento pequenino na cidade. E vou lá viver com a minha irmã.

Kate Não faças isso.

Sam Porquê?

Kate Porque o problema não é teu.

Sam Mas é, não é?

Kate Não acho que seja. Vou-te contar uma coisa.

Sam O que foi?


Kate Fui sair no carro do meu pai ontem à noite.

Sam Foste?

Kate Fui. Para praticar. É uma cagada. Andei pela cidade e depois pela estrada de
circunvalação à volta da cidade. Andei às voltas. Foi fantástico. Orbitei a cidade como
se estivesse numa nave espacial ou coisa do género. A cidade à minha esquerda. O
horizonte à minha direita. Foi fantástico. Andei a vaguear. Nunca me senti tão livre. É
só escolheres uma direção e vamos embora.

Sam É assim tão fácil?

Kate Sabes que se trepares aos baloiços e te sentares na barra de cima consegues
ver o horizonte por entre um intervalo das árvores. Uma linha curva. É só isso. Uma
linha curva que repousa em cima da terra. Mas ao olhar para ela. Parece frágil. Como
se pudesse mudar de sítio. E deixasse um espaço atrás. E acho que se não tivermos
cuidado é onde nós vamos acabar. Por isso, manda o teu pai foder-se e vem comigo.

Sam Mas não posso fazer isso.

Kate Porquê?

Sam Porque preciso de proteger a minha irmã. Não a quero deixar sozinha. É
estranho isto, não é? Estar aqui. Sentir o mundo a girar à minha volta. Sinto que a
cidade não nos deixa sair. Mesmo que eu quisesse fugir. Acho que nunca conseguiria.

(...)

Pete Disseram que eu tinha de voltar de quinze em quinze dias.

Kate Quanto tempo é que demora?

Pete Que tempos. E custa quase o mesmo.

Sam Quanto é que custa?

Pete Um bocado menos de sessenta. Desisti de falar com eles porque descobri que
o comboio iria custar tanto que não valia a pena dar-me ao trabalho de o apanhar. E
como já não há autocarros na estação, acabei com tudo aí. Desliguei o telefone.

Kate Nem sei por que é que te incomodaste.

Pete Para pôr o meu irmão feliz. Ou lá o que ele pensa que é.

Sam Ele não trabalha em nada?


Pete Ele também não tem trabalho, não é?

Sam O que é que aconteceu?

Pete A fábrica fechou, não foi?

Sam Não reparei que isso tinha acontecido. Não te pode levar de carro?

Pete Não vai fazer isso, não é?

Sam Mas também vai ter de ir, não é? Não quer um emprego?

Pete Não quer. Diz que as pessoas que vivem do subsídio são uma merda.

Sam Mas quer que tu recebas o subsídio?

Pete Quer.

Kate O teu irmão é um anormal.

Pete Eu sei.

Sam É uma estupidez que não possas receber subsídio apenas por causa da
geografia, não é?

Pete Acho que sim. Se tivesse carro, ia lá. Mas como não tenho, não vou. E
também não sei conduzir. Sabes, o que me ia ajudar bastante aqui era uma merda de
um transporte público.

Kate Meteres-te num autocarro a cheirar a mijo só para ires assinar uma coisa. Até
me dá vontade de rir.

Pete O que é que querias então?

Kate Já te disse.

Pete Ah, claro, aquela coisa sobre ti e o carro do teu pai. Ela contou-te?

Kate Contei.

Pete Acreditas nela?

Kate Por que é que eu ia mentir?

Pete Não sei, é só que parece engraçado.

Kate Engraçado?

Pete Estás bêbada sempre, não é? Se te metesses num carro enfiavas-te contra
uma avózinha qualquer ou assim. Era logo. Metias a chave na ignição, carregavas no
acelerador e dizias, tipo, merda, matei uma avó.

Kate Por que é que eu ia mentir? Não estou a fazer isto só por mim. É por todos
nós. Estou sempre a sonhar com isso.

Pete O quê, a sonhar que conduzes o carro de merda do teu pai?

Kate Conduzir apenas. Sair de uma estrada que não anda só em círculos. Uma que
seja uma linha direita que leva realmente a algum lugar. Depois do horizonte. E
depois do próximo horizonte. Nem sequer sei o que quero fazer. Mas sei que tenho de
fazer isto, sabes?

Pete Fazes-me rir tu.

Kate Porquê?

Pete A falar assim.

Kate Assim como?

Pete Como se fosse assim tão fácil.

Kate Foi o que ela disse.

Pete Então tem razão.

Kate Mas por que não?

Pete Porque, para começar, não tens dinheiro. E sabes que precisas disso para que
um carro se mexa, não é? E, seja como for, o que é que eu vou fazer fora desta
cidade? Não consigo fazer nada aqui. Eu sou estúpido que nem uma porta, não é?
Qual é o problema de não conseguir fazer nada noutro sítio. Eu só quero encontrar
alguém que não ache que eu cheiro mal e construir uma família grande e -

Kate Vais falar disso outra vez?

Pete Há algum mal?

Kate É chato como a merda, não? É só isso que queres?

Pete Cem milhões por cento sim.

Kate Então vai fazer isso noutro sítio. Talvez encontres alguém que não tenhas que
seguir e a quem não tenhas de comprar ratos. E que fale contigo realmente.

Pete Ela já fala comigo.

Sam Fala?

Pete Fala.

Sam O que é que ela diz?

Pete Olá.
Sam E que mais?

Pete Adeus.

Sam Estás a fazer progressos, então?

Pete Oh, melhor do que nada, não? E agora vou convidá-la para sair. Não tenho
nada a perder, não é? O que é que pode acontecer ainda pior? Fico como estou. A
melhor coisa. Ela diz que sim. E eu, tipo, quando, vamos a isso. E encontro-me com
ela. E eu, tipo, então, o que é que tens feito, e ela tipo, oh meu deus, tudo o que ouvi
dizer de ti é verdade, és uma lenda e eu tipo, pois, eu sei, sou muito muito muito
especial e depois, andamos de mão dada ao luar e depois, tipo, apaixonamo-nos. À luz
das velas. E depois comemo-nos um ao outro. E temos trinta filhos.

Sam De uma vez só?

Pete Sim. É possível?

Sam Adivinha.

Pete Não?

Sam Não, adivinhaste.

Kate Não a convides.

Pete Porquê?

Kate Porque vai dizer não.

Pete Porquê?

Kate Porquê? Porque pareces um peixe, meu.

Pete Bom, isso é -

Kate E há um ano e meio que a andas a perseguir. Ela não vai sair com um
rebarbado, não é, meu?

Pete Está bem, pois, mas vale a pena tentar, não?

Sam Convida-a.

Pete Convido?

Sam Sim, pergunta, só para não ter de te ouvir a falar mais sobre isso.

Pete Pois, que se foda. Vou convidar.

Kate Não convides.

Sam Por que é que não a pode convidar?


Kate Já passaram anos, não foi? Ela não está interessada. E, seja como for, é
vulgar como o caraças. Trabalhar num supermercado? Que belo partido.

Pete Muito bem, é fácil, como é que tu sabes como ela é?

Kate Já a vi lá. Anda para lá a passear. Enjoada como tudo. Parece um fantasma.
Seria como foder um fantasma. Aposto que nem sequer bebe.

Pete Então é isso, é? Olhaste para ela e decidiste que era vulgar.

Kate Sim. Confia em mim.

Pete O quê, devia ser mais como tu?

Kate O que é que isso quer dizer?

Pete Sempre bêbada.

Kate Divertido, não é?

Pete Ah é, sim? Divertido como na outra noite?

Kate Foi engraçado.

Sam O que foi?

Pete Queres que lhe conte?

Sam O quê?

Pete Uma noite destas, pronto. Estou em casa na cama. Ali sozinho com os meus
pensamentos e isso.

Kate Umas velas acesas.

Pete E ouço um som vindo de fora como se alguém se estivesse a rir mas se
esforçasse para não o fazer, sabes. E depois olho, e é ela. Eufórica. Completamente
maluca da cabeça. Aos saltos em cima do carro do meu irmão.

Sam Sozinha?

Kate Sim.

Pete E eu estou tipo, isto não é nada bom, vou lá abaixo a correr, tiro-a de cima do
carro exatamente quando o meu irmão sai de casa de cuecas aos berros, não é?
Completamente fodido.

Sam Ele viu-te em cima do carro?

Pete Não, graças a deus, mas vê-a deitada no meio da estrada com uma garrafa de
vodka -
Kate Gin -

Pete Exato, gin. Desculpa, mas é importante. E, pronto, o meu irmão está aos
berros para ela se pôr na alheta, ela levanta-se e grita apenas. Não foi?

Kate Acho que sim, não me lembro.

Pete Grita tão alto que acorda os vizinhos todos, acorda o meu sobrinho e agora
estão todos a gritar, o meu irmão de cuecas a gritar com ela, ela cambaleia um bocado
e deixa cair a vodka -

Kate Gin.

Pete Foda-se. Gin. Quero lá saber. Deixa cair o gin. E é gin por todo lado. E
depois. E depois começa a lambê-lo. Vidros e tudo. Sangue na boca. Depois levanta-
se. Vomita em cima do carro dele e vai-se embora

Kate Engraçado, não foi?

Sam Não sei.

Kate O quê?

Sam Não. Nem por isso.

Kate Não?

Sam Não.

Kate Porquê?

Sam Não sei. Não é. Toda a gente te viu?

Kate Não foram muitas pessoas.

Sam Mesmo assim. Devem estar a falar de ti, agora.

Kate E depois?

Sam Pensa.

Kate O quê?

Sam Nada, não interessa.

Kate Nada.

Sam Pois. Tudo bem. Espero que estejas bem e isso.

Kate Estou bem, sim.

Sam Então, é bom.


Kate É?

Sam É.

Kate O quê?

Sam Nada.

Kate Diz-me -

Sam Disse que não é nada. Tudo bem. Está tudo bem.

(...)

Kate Tu achas que eu estou toda fodida, não achas?

Sam Não.

Kate Não estou.

Sam Eu sei. Eu não penso isso.

Kate Então por que é que eu sinto isso?

Sam Não tem nada a ver contigo. É só que. Não sei.

Kate Tens de beber mais, tu. Descontrair.

Sam Pois, talvez.

Kate Estou a falar a sério.

Sam Posso perguntar-te uma coisa?

Kate Qualquer coisa.

Sam Sentes que tens dezassete anos?

Kate O quê?

Sam Sentes que tens?

Kate Não sei. Nunca pensei nisso. Acho que sim. E tu?

Sam Não.

Kate Não?

Sam Sinto que sou velha. Sinto que já vivi mais do que aquilo que vivi de facto. E
é estranho porque sinto que todos tínhamos quinze anos há cerca de meia hora atrás.
Sabes?

Kate Acho que sim.

Sam O que é que andamos a fazer, Kate? Sinto-me como se estivéssemos à deriva,
não é? A beber e à deriva. Tudo isto. Não se sente que existe mundo para além
daquela estrada de circunvalação, não é?

Kate Mas existe.

Sam Existe.

Kate Eu vi-o quando andei às voltas no carro. Está lá. Juro.

Sam Fui lá fora uma noite destas.

Kate Onde?

Sam Até ao limite da cidade. Fui a andar. O meu pai tinha caído para o lado. A
televisão ligada. Olhei para ele um bocado e depois pensei na minha irmã. Peguei nela
e levei-a. Levei-a ao colo. Fui até ao limite da cidade. Com ela nos braços. Fui até à
estrada de circunvalação. Pensei atravessá-la e caminhar pelos campos. Continuar a
andar. Sempre a andar até chegar ao mar. Só para olhar para um horizonte azul em vez
de verde e castanho. Era só o que eu queria. Mas cheguei ao limiar da cidade e não
consegui dar um passo. Não sei porquê. Como se os pés estivessem presos à cidade.
Não me conseguia mexer. Sentia-me como um fantasma. Vazia apenas. Não consegui
dar um passo para a frente. Por isso, dei meia volta e voltei para casa. Tornei a pôr a
minha irmã na cama. Desci as escadas. Sentei-me a olhar para o peito do meu pai a
subir e a descer. Acho que conseguia ver o ar a sair e a entrar da sua boca iluminada
pela luz da televisão. Lembro-me de pensar, podia apunhalá-lo na garganta. Várias
vezes. Observar o sangue a escorrer. Depois pegava na minha irmã outra vez, voltava
à estrada da circunvalação e já a conseguia atravessar. Mas não fiz isso. Fui para a
cama, levantei-me no outro dia de manhã, fiz o pequeno-almoço à minha irmã e levei-
a à escola. Já quase passou mais um ano. Quase uma adulta. Um horizonte para tu
atravessares. Não faço ideia em relação a nada disto. Sinto que sou velha há anos.
Posso dizer-te outra coisa e isso?

Kate O quê?

Sam Acho que já cheguei ao meu horizonte, sabes? É a estrada da circunvalação.

(...)

Pete O Estêvão Zarolho deu-me um pontapé nos tomates.


Kate Porquê?

Pete Queria comprar ketamina. Não tinha dinheiro. Disse que lhe passava um
cheque. Ele não gostou. Deu-me um pontapé nos tomates.

Sam Tens livro de cheques?

Pete Com quanta força é que têm de te bater nos tomates para deixares de poder
ter filhos?

Kate Não sei, não tenho tomates.

Pete Exato, pois. Mas. Adivinha.

Kate Não faço ideia. Com força.

Pete Foi com força. Parecia que os tomates me iam sair pela boca. Ficavam aqui,
pendurados, eu a olhar para eles, a ver como são provavelmente inúteis. Lá se vão as
minhas hipóteses de ter filhos.

Kate Isso até pode ser bom para o mundo.

Pete Vai-te foder. É a única esperança que ainda tenho, ok?

Sam O quê?

Pete Os meus tomates. Se não trabalharem, não faço ideia do que devo fazer, não
é? O que é que sou então? Ter montes de filhos é o meu plano número um, não é? Se
isso desaparecer, fico sem nada. Só eu. Eu gajo chamado Pete. E pronto, caralho.

Sam Estás bem disposto.

Pete Acho que sim.

Sam O que é que aconteceu àquela cena da família gigante cheia de esperança?

Pete É, ainda me agarro a isso se os meus tomates trabalharem.

Sam Vai ficar tudo bem.

Pete Estou mesmo a começar a pensar que não, meu. Quer dizer, há quanto tempo
é que estou vivo? Parece que é desde sempre. Quanto?

Sam O quê, queres que eu to diga?

Pete Sim. Diz-me.

Sam Há já dezoito anos.

Pete Vivo nesta cidade há dezoito anos? Quer dizer que tenho dezoito anos agora?

Sam Isso é matemática.


Pete Meu deus, não tenho dezoito anos, pois não? O que é que eu fiz? Nada. Já
fodi com alguém? Já? Diz-me?

Sam Queres que eu to -

Pete Quero.

Sam Não?

Pete Não, não fodi. Nem sequer beijei uma pessoa. Desde a tua avó. Cum caraças,
não pode ser, pois não? Acho que pode. E isso foi há anos e anos. Meu deus. O que é
que eu tenho andado a fazer?

Kate A oferecer ratos a mulheres.

Pete Estou a falar a sério. Chega de piadas. O que é que eu estou a fazer?

Kate Acalma-te.

Pete Eu não me vou acalmar. Acho que estou a ter um colapso.

Kate O quê, agora?

Pete Sim.

Kate A mim parece-me que estás normal na mesma.

Pete Não estou. A minha mente. Aqui dentro. A minha estúpida cabeça. Está a
enlouquecer a toda a força.

Kate De certeza que não foi dos comprimidos todos que tomaste?

Pete Não. Bom. Em parte. Mas isso só está a abrir os meus olhos e mente para ver
como sou estúpido. O que é que vamos fazer?

Kate Eu já te disse.

Pete Exato, pois, não me parece que roubar o carro ao teu pai e fugir seja
realmente a resposta para todos os nossos problemas, não é?

Kate Por que não?

Pete Porque é estúpido.

Kate Porquê?

Pete Porque é.

Kate Só isso?

Pete Só isso o quê?

Kate Não me vais dizer por que é estúpido?


Pete Porque isso nunca vai acontecer.

Kate Por que não?

Pete Porque não acredito em ti. Fugir no carro do teu pai. Estás a dizer disparates,
meu.

Kate Não estou a inventar. Pergunta-lhe.

Sam O quê?

Kate Não estou a inventar, pois não?

Sam Não sei.

Kate O quê?

Sam Nunca te vi a conduzir.

Kate O quê?

Sam Só estou a dizer.

Kate A dizer o quê? Não acreditam em mim, os dois?

Pete Não. Em nada. A minha cabeça. Anda às voltas e mais voltas.

Kate Está tudo bem, acalma -

Pete Acho que não me vou acalmar, Kate. Acho mesmo que não. Sinto-me tão
vazio. Não posso fazer nada. Nem sequer consigo convidar uma miúda para sair.
Foda-se. É suposto eu ser um adulto, não é? Não é o que te dizem? Não dizem?

Kate Acho que sim.

Pete Então por que é que eu me sinto um puto? Um puto de dezoito anos? Mas é
suposto os miúdos voltarem a pôr-se de pé quando caem, não é? Mas sinto que se cair
me estilhaço num milhão de bocadinhos.

(...)

Kate Não podes viver ali.

Sam Porquê? É barato.

Kate Porque é um buraco de merda.

Sam Melhor do que nada.


Kate As paredes são mais bolor do que tinta.

Sam Só tenho dinheiro para isto, não é?

Kate Juntamos dinheiro as duas e arranjamos um sítio em qualquer lado?

Sam Não tens dinheiro.

Kate Eu sei, mas posso arranjar.

Sam Sim? De onde?

Kate Não podes viver ali.

Sam Olha para mim, Kate.

Kate O que foi?

Sam Vês estas nódoas negras?

Kate Vejo.

Sam Agora diz-me que não posso viver lá.

Kate Eu não te vou deixar fazer isto.

Sam Porquê?

Kate Mudares-te para um apartamento de merda no meio da cidade onde cresceste.


Eu dava qualquer coisa para não fazeres isso. Espetava uma faca no teu pai por ti. É
só dizeres, eu faço isso.

Sam Não sejas estúpida.

Kate Eu não sou estúpida. Se não me deixas fazer, então a outra coisa que podes
fazer é vir comigo. Porque pensar em ti sentada naquele apartamento. Dezoito anos a
ver a tinta a escorrer das paredes mesmo à tua frente. Isso não vai manter a tua irmã
em segurança, sabias? Não vai. E eu não vou deixar que faças isso. Vem comigo,
apenas. Para outro sítio qualquer. Para qualquer lado e -

Sam Viste o Pete?

Kate Não mudes de assunto, meu, eu -

Sam Viste o Pete?

Kate Não podes viver -

Sam Viste-o?

Kate Não.

Sam Passaram duas semanas.


Kate Tentei ligar. Fui lá. Seja como for -

Sam Nada?

Kate Não?

Sam De nada?

Kate Nada. Tenho a certeza que está bem. Estou a falar a sério, Sam. Mete-te no
carro comigo. Levo-te para um sítio onde não tens de te preocupar mais. Está bem?
Por favor. Por mim. Por ti.

(...)

Kate Onde é que tens andado, então? Escondido?

Pete Acho que sim. Estavas preocupada comigo ou assim?

Kate Não. O que é que tens feito?

Pete Deitado na cama só. Não podia sair.

Kate De todo.

Pete Não. Pensava em sair todas as manhãs e depois não conseguia. Como se
estivesse preso lá dentro. A ouvir o meu irmão a gritar com o filho. Foi horrível.
Queria pegar nele e fugir, sabes? Desculpa lá ter-me passado, tipo.

Kate Tudo bem, acontece. A Sam está sempre a fazer isso.

Pete Ela disse, sim, a propósito.

Kate Quem?

Pete Convidei a rapariga para sair?

Kate Pensei que não podias sair da cama?

Pete Foi hoje de manhã. Foi tipo. Que se foda. Não vou ficar mais assim. Fico
maluco. Deitado na cama. Dezoito anos. Preciso de fazer qualquer coisa. Qualquer
coisa. Por isso, convidei. E ela disse que sim. Eu sei que pensas que sou um anormal,
mas gosto mesmo dela, sabes? Espero que ela não pense que sou um idiota. Já foste
ao apartamento para onde a Sam se vai mudar?

Kate Já.

Pete Deve ser bom para ela.


Kate Achas?

Pete Não sei. Pode ser. Tu não achas?

Kate Não.

Pete Porquê?

Kate Porque se parece com o tipo de sítio onde irias viver se quisesses ser
esquecido. E eu não vou deixar que isso aconteça.

(...)

Kate Por isso, vim a conduzir para cá.

Pete Os tomates é que vieste.

Kate Se não acreditas em mim, vai ver.

Pete Onde é que está?

Kate Ali, meu.

Sam Estás bêbada?

Kate Não.

Sam Pedrada?

Kate Não. Já te disse. Achas que estou a gozar ou quê?

Sam Não, é só que -

Kate O que foi?

Sam Não me posso ir simplesmente -

Kate Simplesmente o quê?

Sam Simplesmente ir embora.

Kate Porquê?

Sam Por causa de tudo o que se passa aqui.

Kate O quê? O que é que se passa aqui? Aquele apartamento de merda?

Sam Sim, isso, a minha família e -

Kate Família? Temos cá umas famílias, não é? Um pai que te dá porrada e um


irmão que nem olha para ti. Por que é que dizes que queres isso?

Sam Não é isso, é só que -

Kate O que é que é então? A tua irmã? Estás preocupada com ela? Isso é só uma
desculpa.

Sam Desculpa para quê?

Kate Para não seres corajosa e fazeres qualquer coisa com a tua vida. Eu já te disse
isto tantas vezes. Essa problema de merda não é teu. E o filho do teu irmão também
não é teu problema. O filho não é teu, pois não, meu?

Pete Eu sei, mas -

Kate Mas o quê? O que é que vocês vão fazer? Vocês os dois? Vão ficar por aqui a
preocuparem-se com eles até eles terem idade suficiente para tomarem conta de si
próprios? O que é que vocês têm? Quase trinta anos na mesma cidade a pensar, que
merda é que eu fiz? Não é maneira de se viver, pois não? As cidades assim são para
serem deixadas. E depois voltarmos para nos lembramos por que nos fomos embora.

Sam Já disse que não posso.

Kate E eu disse que não queres porque tens medo.

Sam Não tenho medo.

Kate Então, por que é?

Sam Tenho de ficar cá.

Kate E qual é o objetivo? Diz-me só isso.

Pete Objetivo de quê?

Kate De existir.

Pete Ouve o que estás a dizer.

Kate O que foi?

Pete A falar dessa maneira. Existir. Estamos a existir, não estamos?

Kate Quase nada. Tudo o que vocês fazem é queixar-se. Imaginar que dão facadas
nos vossos pais. Isso é saudável, não é, meu?

Sam Está bem, é que -

Kate Por que é que não fazem isso? Vão lá dar-lhe uma facada. Vão lá. Aí ficava
tudo bem, não era?

Sam Está bem, é que -


Kate É que, o quê?

Sam E tu, por que é que não te vais embora?

Kate O quê?

Sam Vai sozinha. Se queres assim tanto. Por que é que precisas de nós?

Kate Porque não faço isto por mim. Faço isto por todos nós. Preciso que venham
comigo, não ia conseguir viver com o pensamento de que vocês ainda estariam a viver
assim. Tu naquele apartamento de merda e tu a levares porrada do teu irmão, atrás de
uma rapariga de que nem sequer gostas.

Pete Ela também não apareceu.

Kate Não?

Pete Não.

Kate Então, pronto, aí tens. Já nem sequer tens isso. Já não tens nada, não é? Tal
como toda a gente nesta cidade.

Pete Meu deus.

Kate O que foi?

Pete Não admira que a gente não vá ao bar.

Kate O que foi?

Pete A falar assim vais. Levar um enxerto de porrada.

Kate Então, porquê?

Sam Porque há muitas pessoas que pensam que só dizes merda. Porque há montes
de pessoas que provavelmente iriam ficar fartas, por falares assim. Sobre a cidade
delas. Está bem? E o teu pai?

Kate O que é que ele tem?

Sam Como é que ele se ia sentir? Abandonado.

Kate O problema não é meu, pois não?

Sam Não?

Kate Não, não é, está bem.

Sam Então, porquê?

Kate Porque eu quero que ele se foda, é essa a razão.

Pete O quê?
Kate Não é justo, pois não?

Pete Não se escolhe ficar doente, pois não?

Kate Não é para ele. Para mim.

Sam O quê?

Kate Não é justo para mim.

Pete Eu sei, mas -

Kate Terminaram com o assistente ao domicílio, sabias?

Pete O quê? Porquê?

Kate Como é que eu vou saber, caralho? Para poupar dinheiro? Ou outra coisa?
Terminaram, tal como terminam outra coisa qualquer. Há semanas. E agora ninguém
aparece. E é tudo comigo. Tenho de ir buscar os comprimidos e levá-los. Tenho de lhe
dar de comer. Tenho de o levar à casa de banho. É o meu trabalho? Limpar a merda e
o mijo dele, ouvir os ossos dele a apodrecerem lentamente? Que se foda, obrigada. Eu
não devia estar a fazer isso. Ele devia ter alguém como deve ser a tomar conta dele. E
o pior é que. Querem saber o que é pior? Acho que o odeio.

Pete Odeias?

Kate Por estar doente. Acho que o odeio mesmo.

Pete Isso é -

Kate E não é por causa daquilo que ele tem. Mas por causa daquilo que me faz a
mim. E se eu disser isto, as pessoas vão simplesmente pensar que eu não presto, não
é?

Pete Acho que sim.

Kate Mas não me importo, sabes? Eu não presto. E estou-me a cagar. Porque eu
mereço melhor que isto. Toda a gente merece, não é? Esta cidade. Dentro desta cidade
que morre. Esta cidade nunca nos vai dar o que merecemos. Quer dizer. Olha para ti.

Sam O que foi?

Kate É como se tudo o que tu és se desfragmentasse. E tu também. Dois fantasmas


apenas. Vazios. Não consigo mais olhar para vocês assim. Vocês acham que eu só
digo merda, acho. Mas eu é que vos vou levar daqui para fora. Estou a falar a sério.
Vocês ainda não sabem, mas eu sou o vosso anjo da guarda. Um anjo a conduzir uma
merda de um carro do seu pai moribundo. Somos maiores que isto. Somos maiores
que esta cidade. E somos maiores que o horizonte que nos vai deixar aqui bem atrás
se não fizermos merda nenhuma. Toda essa coragem está dentro de vós. Eu sei que
está aí algures. Vocês só estão assustados demais e não a usam. O que queres fazer ao
teu pai. Como gostarias de lhe dar para trás.

Sam Cala-te, está bem -

Kate Porquê? Porque tenho razão.

Sam Não, porque -

Kate Porque o quê? Não conseguias. Desapareceu dentro de ti. Essa luta.
Desapareceu.

Sam Não -

Kate Desapareceu.

Sam Não desapareceu.

Kate Prova, então.

Sam O quê?

Kate Bate-me. Vá lá. Eu não me importo.

Sam O quê?

Kate Dá-me um murro, então. Prova.

Sam Não -

Kate Não o quê?

Sam Não faças -

Kate Não faço o quê? Eu não me importo. Prova-me que ainda tens alguma coisa
dentro de ti. Que o teu pai não te tirou isso daí de dentro.

Pete Bem, isto é divertido.

Kate E tu também. Bate-me se quiseres.

Pete Eu estou bem, obrigado.

Sam Estás muito bêbada?

Kate Não bebi nem uma gota. Vamos. Bate-me. Mostra-me que ainda tens alguma
coisa dentro de ti.

Sam Eu não preciso de provar -

Kate Mostra-me, então.

Sam Isto é -
Kate Mostra-me. O que é que vais fazer? Trabalhar num quiosque até a tua irmã
tomar conta de si própria? Soa bem, não soa?

Sam Tenho de -

Kate Não tens, não. Tens medo porque estás vazia, por isso, bate-me. Mostra-me
qualquer coisa.

Sam Eu não -

Kate Vamos.

Sam Pára.

Kate Vamos. Bate-me.

Sam Não.

Kate Bate-me.

Sam Não vou -

Kate Bate. Vamos. Diz-lhe.

Pete Digo-lhe o qu -

Kate Que me bata.

Sam Eu não -

Kate Dá-me um murro.

Sam Não.

Kate Dá.

Sam Não.

Kate Bate-me.

Sam Cala -

Kate Bate-me.

Sam Acalma-te, está bem, eu não -

Kate Bate-me, vamos.

Sam Eu não vou -

Kate Bate-me, vamos.

Sam Eu não -
Kate Bate.

Sam Não.

Kate Bate.

Sam Não.

Kate Bate, caralho -

Sam Eu não vou -

Kate Bate-me.

Sam Só -

Kate Dá-me um murro na cara, vamos, eu quero que dês.

Sam Já disse que -

Kate Bate bate bate -

Sam Pára -

Kate Bate bate bate bate, bate-me, está bem, bate-me como o teu pai gosta de te
bater a ti e à tua irmã -

Sam dá um murro na cara de Kate. Com força.

Pete Foda-se -

Kate Foda-se. Isso, meu. Isso mesmo. É assim mesmo. Isso, meu. Era o que eu
queria. Foda-se, senti-me mesmo bem.

Pete Meu deus.

Kate Estou a sangrar?

Pete Um bocado, sim -

Kate Obrigada, meu.

Pete Com o anel e tudo.

Kate Ah pois, podias ter tirado o anel, não? Mas não está nada mal. Era o que
precisava. Queres experimentar?

Pete Eu estou bem -

Kate Vês?
Sam Vejo o quê?

Kate Para que servem os amigos, não é?

Pete Para dar murros uns aos outros?

Kate Sim, isso e o resto. Tudo o resto. Ouve, Sam. Agora ouve. Estás a ouvir?
Agora vou dizer uma coisa, está bem? Vou dizer-te uma coisa.

Sam O quê?

Kate Eu amo-te, está bem? Amo-te tanto que até dói. E não tens de resolver nada
daquilo que se passa contigo, com o teu pai e com a tua irmã. Se ficares aqui, acabas
como o teu pai, sabias? Cheia de raiva a gritar com o nada. Por isso, olha para mim.
Olha-me nos olhos e vê que faço isto porque te amo mais do que alguma pessoa
alguma vez pôde amar e não consigo pensar em mais nada senão nisso. Não consigo
pensar em ir embora sem ti, porque ele sempre teve razão desde que disse o mesmo há
anos e anos atrás. Casa é onde vocês os dois estão. Não são os tijolos e os parques e
estradas e as lojas. É onde estamos juntos. Está bem? O sangue que me escorre pela
cara. Pertence-te. E amo-te ainda mais por teres feito isso. Sabes? Porque mostra que
não és um fantasma. És real. E amo-te tanto que acho que vou explodir. Podia. Podia
explodir com o amor que tenho por vocês os dois. Sinto que me podia preencher.
Encher-me até ficar enjoada. Até ficar enjoada com isso. Até vomitar todo o amor pela
boca e ele ficar espalhado por todos nós. Nadar no meio dele. Nadar no meio de todo
o amor que nos rodeia. Só eu e tu e tu como pequenas ilhas no meio dele. Acho que
nós nos devíamos meter dentro do carro e ir a qualquer lado. Bem longe do teu pai e
do teu irmão e de tudo o resto. Está bem? Vamos. A qualquer lado. Não me interessa.
Só ir ao horizonte e ver o que há depois, porque, seja o que for, deve ser melhor do
que isto aqui, não é? Não é? Não é? Por isso, vamos. Vamos agora, só -

Um ano passa por Kate, o horizonte começa a destacar-se da terra.

Kate Vamos só -

Vamos - vocês ainda -

Ainda me estão a ouvir?


Estão - conseguem -

Mais um ano passa por Kate.

Kate Conseguem - Há - Conseguem

Mais um ano passa por Kate.

Kate Conseguem ouvir?

Mais um ano passa por Kate.

Kate Ouviram isto a acontecer? Ainda estão -

Mais um ano passa por Kate.

Kate É - ainda aqui estão e conseguem -

Mais um ano passa por Kate.

Kate Ouvem o que me está a acontecer?

Mais um ano passa por Kate.

Kate Ouvem o tempo -

Mais um ano passa por Kate.


Kate Ouvem o tempo que me atravessa?

Mais um ano passa por Kate.

Kate Ouvem isso?

Mais um ano passa por Kate.

Kate Conseguem - Conseguem ouvir o tempo a atravessar-me e a rasgar-me por


dentro?

Mais um ano passa por Kate e o horizonte deixa de se deslocar.

Kate E vêem isto? Entre o céu e a terra. O horizonte. É só um espaço sem nada lá
dentro.

Três

Dave O que é que estás aqui a fazer, caralho?

Longa pausa.

Kate Vim parar aqui.

Pausa.
Dave Fizeste um convite a ti própria para vir beber um copo?

Kate Não.

Dave Não?

Kate Não bebo.

Dave Os tomates que não bebes.

Kate Não bebo. Não toco numa gota desde.

Dave Exato.

Pausa.

Estás com má cara.

Kate Mais velha. Não estou?

Dave Não pareces muito mais velha. Estás com má cara só.

Olham um para o outro por uns instantes. Kate desvia o olhar.

Kate Tu pareces -

Longa pausa.

Kate O Estêvão está aí?

Dave Quem?

Kate O gajo que só tem um olho?

Dave O Estêvão Zarolho?

Kate faz que sim com a cabeça.

Dave Por que é que queres falar com ele?


Kate Não quero.

Tempo.

É só. Fazer conversa.

Olham um para o outro por um instante. Kate desvia o olhar.

Dave Digo-te uma coisa, tu tens tomates, não tens?

Kate Então porquê?

Dave Vires aqui? Sabes que eu venho aqui beber, não sabes?

Olham um para o outro por um instante. Kate desvia o olhar.

Kate Foi surpresa?

(...)

Alex Não.

Kate Para mim é um bocado.

Alex Então porquê?

Kate Pensei que alguma coisa mudasse. Mas não mudou. A cidade parece. Parece
na mesma.

Olham uma para a outra por um instante. Kate desvia o olhar.

Alex Queres alguma coisa? Normalmente, as pessoas compram uma coisa e depois
vão-se embora, sabias? É o que se faz quando se vai às compras, não é?
Kate Ando à procura de trabalho.

Alex Mesmo?

Kate Acho que sim.

Alex Ok, bom, não te posso ajudar.

Kate O papel que está na janela diz que precisam de pessoas.

Alex Não precisamos.

Pausa.

Kate Está bem.

Olham uma para a outra por um instante. Kate desvia o olhar.

Posso perguntar-te uma coisa?

Alex O quê?

Kate Tu -

Tempo.

Estás a fingir?

(...)

Dave O quê?

Kate Perguntei se era surpresa ou coisa parecida.

Dave O quê, ver-te?

Kate Sim.

Dave Não.
Kate Porquê?

Dave Sabia que andavas por aqui. Vi-te a andar na estrada da circunvalação.
Parecias um fantasma.

Pausa.

Dave Quando é que saíste?

Kate Hoje. Cheguei cá de manhã.

Olham um para o outro por um instante. Kate desvia o olhar.

Dave E voltaste para a tua antiga casa?

Kate Voltei.

Dave Um bocado vazia, não?

Pausa. Kate faz que sim com a cabeça ligeiramente.

Dave Mas deve ser fixe, acho. Já não tens de ouvir o teu pai a morrer. Não que isso
te preocupasse muito antigamente.

Olham um para o outro por um instante. Kate desvia o olhar.

Kate Queres que me vá embora?

Dave Faz o que quiseres, não quero saber.

Kate Porquê?

Dave Porque és um desperdício, só isso.

(...)
Alex Estou a fingir?

Kate Sim.

Alex Estou a fingir o quê?

Kate Não saber quem eu sou?

Alex Não.

Olham uma para a outra por um instante. Kate desvia o olhar.

Kate Estive fora muito tempo, foi?

Alex Acho que sim.

Kate Onze anos.

Pausa.

Onze anos às voltas na minha cabeça.

Olham uma para a outra por um instante. Kate desvia o olhar.

Tu - estás -

Tempo.

Kate Ainda vendem aquela cidra extra-forte?

Alex Sim.

Kate Quero isso.

Alex Se tiveres dinheiro.

Kate Fico-te a dever.


Alex Não posso.

Kate Preciso de qualquer coisa que impeça que a minha cabeça ande às voltas,
sabes? E eu - eu só -

Olham uma para a outra por um instante. Kate desvia o olhar.

Kate Não me dês nada. Ignora-me. Ignora-me apenas.

Alex Também não te podia dar nada.

Kate Pois, eu sei, mas eu conheço-me e tu sabes como eu também sou, eu podia
simplesmente gamar e quando me tentasses impedir eu explodia simplesmente. Mas
não devia pedir. Porque não bebo desde. E eu sou - Há. Há algum tempo que estou
sóbria, mas são só os teus olhos.

Quando olho para os teus olhos, pele e cabelo e para o modo como estás aí parada, és
muito parecida com ela.

É como se estivesse a falar com um fantasma.

(...)

Dave Não és? Lixo.

Kate Ah é?

Dave É. Refugo. Não prestas.

Kate Vim pedir desculpa.

Dave Por quê?

Kate Pelo que fiz. Desculpa.

Dave Está bem.

Kate Só isso?

Dave Só isso o quê?


Kate Só está bem e pronto?

Dave Não sei o que queres mais. Foi há que tempos. A maior parte das pessoas já
se esqueceu. Continuou com a tua vida. Ninguém ficou à espera de um pedaço de
merda como tu.

Kate Pedaço de merda?

Dave O que foi?

Kate É isso que eu sou?

Dave Claro que és.

Kate O que é que eu sou mais?

Dave O quê?

Kate Não presto? É isso? Sempre pensaste isso sobre mim, não foi? O que é que
eu sou mais?

Dave Ah, já percebi.

Kate O quê?

Dave Eu sei de que é que andas atrás.

Kate De que é?

Dave Estás a tentar irritar-me. Como costumavas fazer. Vomitar no meu carro.
Lamber o chão. Acordar o meu filho. Tentar irritar-me como costumavas fazer quando
vinhas cá bater à porta à procura do meu irmão. Eu sei o que tu queres.

Kate O que é que eu quero?

Dave Queres que eu te bata. Eu sei. Mas não vou fazer isso. Não vou fazer isso.

Kate Sei que o queres fazer.

Dave Sabes?

Kate Acho que queres. E até acho que devias e tudo. Dar-me um murro na cara.
Arrancar-me uns dentes. Fazer-me sangrar. Acho que me queres fazer isso por causa
do que eu fiz.

Dave Nã, eu não vou fazer isso.

Kate Porquê?

Dave Porque queres que eu faça isso para sentires alguma coisa. E eu não te vou
dar isso.
Kate Porquê?

Dave Não mereces.

Kate O que é que mereço então?

Dave olha para Kate por um instante. Sorri. Abana a cabeça.

Dave O que tens agora.

Kate Que é o quê?

(...)

Alex Mas não estás, pois não?

Kate O quê?

Alex A falar com um fantasma. Eu não sou ela. Eu sou eu. E estou viva. E ela
morreu. Porque tu a mataste num acidente de carro, porque estavas bêbada e
completamente fodida da cabeça com as drogas.

Pausa. Kate fecha os olhos por um instante. Abre-os.

Kate Eu sei, é só que -

Olham uma para a outra por um instante. Kate desvia o olhar.

Kate Odeias-me?

Alex Não.

Kate Por que não?

Alex Não me importo o suficiente contigo para te odiar.

Kate O que é que pensas de mim então?


Alex Não penso nada de ti. Ninguém devia pensar coisas de ti.

Longa pausa.

Kate Ela costumava andar contigo num saco desportivo. Cheio de coisas fofinhas.
Para ficares confortável. Queria manter-te em segurança. Não queria que ouvisses os
teus pais a gritar um com o outro. Lembras-te disso?

Alex Não.

Pausa. Kate faz que sim com a cabeça. Não consegue olhar para mais lado nenhum a
não ser os seus pés. Está tensa.

Kate Ela fazia isso. Por que é que não te lembras?

Alex Porque não me lembro.

Kate Eu lembro. Lembro-me bem. Lembro-me de tudo. É só o que eu faço.


Lembrar-me de tudo. A minha cabeça. Anda às voltas sem parar. Anda à volta deles os
dois.

Olham um para o outro por um instante. Kate desvia o olhar.

Kate Acho que preciso que me digas que me odeias. Fazes isso por mim?

Alex Não.

Kate Por que não?

Alex Porque não te vou dar nada que tu queiras.

Kate Perdoas-me?

Alex Não.

Kate Então odeias-me mesmo?

Alex Não.

Kate Então?
Alex Não sinto nada por ti. Só isso. Não te vou ajudar. Sabes? Não vou fazer isso
por ti.

(...)

Dave Seja o que for que esteja dentro dessa tua mente toda fodida por um acidente
de carro. Seja o que for que esteja às voltas aí dentro. É o que tu mereces. Ser
constantemente assombrada pelo fantasma do meu irmão e da outra que mataste.
Como é que ela se chamava?

Tempo.

Kate Sam.

Dave Isso mesmo, Sam. Samantha. A irmã dela trabalha na loja, não é? É igual a
ela. Na verdade, até é engraçado.

Kate O quê?

Dave Tudo. Tu voltares e andares por aqui às voltas. À procura de um combate. Ou


de qualquer coisa que te faça sentir qualquer coisa que não seja só ansiedade. Até é
bastante engraçado. Continua a tentar irritar-me. Eu não te vou bater. Podes tentar
outra vez se quiseres. Irrita-me. Vá.

Tempo.

Kate O Pete queria fugir com o teu filho.

Dave Ah sim? Por que é que ele iria querer fazer isso?

Kate Porque te odiava.

Dave Até eu o odiava. Era um zero à esquerda. Para pessoa, era mesmo uma
desculpa inútil. Ainda bem que o mataste, libertou bastante espaço lá em casa. Queres
tentar outra vez?

Pausa. Kate olha para Dave. Olham um para o outro durante um bocado.
Kate De onde é que isso veio?

Dave O quê?

Kate Essa. Essa raiva. Esse vazio dentro de ti. Dentro de todos nós. Dentro de
mim.

Dave Estás a falar de quê?

Kate É só aqui? Está nos tijolos de cidades iguais a esta? Nas rachas das ruas e
passeios? Na ferrugem dos reclames de lojas fechadas? Nas ervas daninhas que
crescem nas ruínas dos bares? É aí que está? Cresce nessas coisas todas e depois entra
nas nossas cabeças? Porque está dentro de ti, não está? E de mim. E eu só queria fugir
dela. E levá-los comigo também. Mas estraguei tudo. Só isso. Não quis fazer aquilo
que fiz. Fui estúpida. Eu sei disso. Sei. Mas agora é isto. Agora só tenho este vazio. E
não quero sentir mais isto. Não me quero sentir vazia. Por isso, bate-me.

Dave Não.

Kate Ele odiava-te. Bate-me.

Dave Podes tentar o que quiseres.

Kate Ele odiava-te. Odiava. Bate-me.

Dave Não.

Kate Então é só -

Só -

(...)

Kate Diz só que me odeias.

Alex Não.

Kate Por favor.

Alex Estás a implorar?

Kate Não, estou só -

Estou só -

Estou -
Estou só.

Cansada.

Kate fecha os olhos com força. Mantém os olhos fechados.

E não sei como fazer para impedir que a minha cabeça pare de andar à roda. É o que
acontece. Por causa do que fiz. Gira à volta deles. Deles e das esperanças que eles
tinham dentro das suas cabeças. O Pete e a sua família. A Sam e o seu apartamento.
Essas esperanças simples. Onde é que elas estão agora? Consegues dizer-me? Ainda
estão suspensas no ar, na estrada onde morreram? Aquelas pequenas esperanças que
se derramam da tua cabeça. Tudo por causa de mim. Porque tinha medo de ficar
sozinha. Porque não conseguia tomar conta do meu pai. E não tinha coragem
suficiente. Essas esperanças. Onde -

Para onde é que elas vão?

Kate abre os olhos. Está muito próximo de começar a chorar mas contém-se. Tenta
olhar para Alex.

Kate Como é que se faz? Como é que nos reconstruimos? É que eu não sei fazer
isso.

Tu és parecida com ela. E ele também. É como se fosse assombrada por eles. É como
se andasse às voltas, sempre ao lado dos fantasmas dentro da minha cabeça. Como é
que te reconstróis? Quando bocados de ti próprio se espalham dentro da tua cabeça?
Gostava que alguém me dissesse como fazer. E eu não páro de fazer isto. De andar às
voltas. E é sempre a mesma coisa. Ninguém me vai dizer como é que vou parar.

É estranho, não é? Como pensas que as coisas se vão passar como tu pensas. E depois
basta um instante. Só um. Um instante tirado de todos os instantes que há no universo
que te acontece a ti. E depois desaparece. E agora ando em círculos à volta desse
instante. Ele não me larga.
Kate olha para Alex. Desvia o olhar. As lágrimas estão mesmo ali atrás dos seus
olhos.

Kate Como é que te rescontróis? Desta vez consegues dizer-me?

Pausa.

Alex Eu tenho de fechar a loja. Portanto podes sair, por favor.

Kate olha para baixo. Fecha os olhos com força. E mantém-nos fechados.

(...)

Quatro

Will Quem és tu? Nunca te vi por aqui. É um bocado marado estares aqui sentada
no parque a meio da noite. Quase me caguei todo quando te vi. Pensava que eras um
fantasma. Quase me caguei nas cuecas. Ainda bem que não caguei. Sempre achei que
me aconteceria isso se visse um fantasma. Via um e era tipo, caguei-me. E depois caía
para o lado. Mas não és. És?

Kate abre os olhos.

Kate O quê?

Will Estava só a perguntar se eras um fantasma e isso? Por favor, diz-me que não
és, eu estava a brincar quando disse que me cagava todo, se fosses um fantasma a
sério, não seria piada nenhuma, eu ia literalmente cagar-me todo, e é uma coisa que eu
não quero.

Kate Não, não sou.


Will Que alívio, porque odeio cagar-me todo. Não é que alguma vez o tenha feito.
Só para esclarecer.

Liv Ignora-o, ele está na merda. O que é que andas aqui a fazer? Os baloiços
estão ferrugentos. Não funcionam.

Kate Cresci aqui.

Liv Cresceste? Nunca te vi.

Kate Estive fora uns tempos.

Will E o que é que estás aqui a fazer? Se me tivesse ido embora, não voltava. Um
buraco de merda.

Kate Não tenho mais nenhum sítio.

Will Há montes de outros sítios para se estar, não? Com a tua idade e tudo. Vai a
qualquer sítio. Vai para o mar, meu. Isso é que era mesmo bom. Vai para o mar. Rema
um bocado. Ia ser o máximo. Estou mortinho para dar uma remadela no mar. Nada
bate isso, não é?

Liv Como é que te chamas?

Kate O quê?

Liv Como é que. Te. Chamas? Não é uma pergunta difícil, pois não, meu?

Tempo.

Kate Kate.

Liv Kate?

Will Tens estado aqui sentada sozinha, Kate?

Tempo.

Kate Não sabia para onde ir.

Will Vai ao bar? Já tens idade, não?

Liv Não vás ao Carvalho, está cheio de anormais. Aquele sítio é mesmo uma
caverna de anormais. Onde é que tens andado ?
Kate O quê?

Liv Não disseste que voltaste? Quer dizer que estiveste noutro sítio?

Tempo.

Kate Na prisão.

Will Na prisão?

Kate faz que sim com a cabeça.

Will Ah sim, porquê?

Kate Porque sim.

Will Por que sim? Não se vai para a prisão porque sim, não é? Tens de ter feito
alguma coisa, não é?

Tempo.

Kate Matei os meus melhores amigos num acidente de carro.

Will Ah sim?

Tempo.

Bom. Isso não é nada divertido. Estás bem?

Tempo.

Kate O quê?

Will Perguntei-te se estavas bem. Isso é mesmo triste. Tens saudades deles?
Kate faz que sim com a cabeça.

Liv Ias tu a conduzir?

Kate faz que sim com a cabeça.

Liv Pois, pouca sorte. Como é aquela coisa que as pessoas dizem? Cinc’ándar? É
o que acontece todos os anos na minha escola. Ouço falar nisso. Uns miúdos que
morreram num acidente de carro. E desaparecem a seguir. É triste. Mas mesmo assim.
Toda a gente se embebeda e se põe a conduzir aqui. Para cidades destas. Não há
muitos outros sítios, a não ser olhar para um horizonte que não fica muito longe. É
realmente uma pena. Eu acho que eles só precisam de um bocado de atenção. Como
todos nós, às vezes. Mas o que é que há mais para se fazer? Foi nessa altura que
ficaste com essa cicatriz na cara?

Liv estende a mão e toca na cicatriz na cara de Kate. Kate olha apenas para os
olhos de Liv. Olham uma para o outro por um bocado.

Kate Não.

Liv Onde é que fizeste isso, então?

Pausa.

Kate Uma amiga. Pedi-lhe para me dar um soco.

Will Pediste? Isso é engraçado.

Kate faz que sim com a cabeça.

Kate É a parte de mim que eu gosto mais, acho.


Tempo.

Liv Ela morreu?

Kate faz que sim com a cabeça. Liv larga a mão dela. Will e Liv olham um para o
outro. Uma pausa.

Liv Queres contar?

Kate O quê?

Liv Tudo? Já que estás sentada num parque a meio da noite e isso. Não me
parece lá muito divertido. Quer dizer, só temos quinze anos. Não nos importamos de
ouvir. E estamos sem nada para fazer, aborrecidos.

Kate Querem que vos conte?

Will Não sei. Se quiseres. Eu ia contar-lhe agora a história do que aconteceu com
a avó de um amigo meu, mas a tua parece mais interessante.

Tempo.

Kate Não vão querer ouvir.

Liv Talvez queiramos. Não nos importamos. Por que é que havíamos de não
querer ouvir?

Kate Porque sim.

Liv Porque sim o quê?

Longa pausa.

Kate Acho que não vão querer saber de mim quando isto acabar. Se eu vos contar
o que fiz. Não vão querer saber mais de mim. Ou gostar de mim. Mas aqui. Aqui à
vossa frente. Nesta cidade morta em que cresci. Não consigo pensar em mais nada.
Anda tudo em círculos dentro da minha cabeça. Não me larga. Por isso, se vos contar,
talvez me consiga libertar. Se disser tudo em voz alta outra vez, talvez me solte.
Portanto, acho que vou fazer isso.

Provavelmente não vão gostar de mim. Mas, talvez gostem. Seja como for, não me
interessa.

Eu só quero libertar-me disto.

Porque nessa altura.

Porque nessa altura eu vou -

Vou poder começar outra vez.

Cinco

Pete De onde?

Fim.

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