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de
Simon Longman
Tradução de Pedro Marques
Personagens
Kate
Sam
Pete
Dave
Alex
Will
Liv
A peça passa-se numa cidade no meio do campo. Uma cidade suficientemente grande
para ter uma estrada de circunvalação à sua volta, mas onde não se passa muita
coisa no meio.
Kate é representada por uma pessoa. Sam, Alex e Liv são representadas por uma
pessoa. Pete, Dave e Will por outra.
Um
Kate Acho que não vão querer saber de mim quando isto acabar. Se eu vos contar
o que fiz. Não vão querer saber mais de mim. Ou gostar de mim. Mas aqui. Aqui à
vossa frente. Nesta cidade morta em que cresci. Não consigo pensar em mais nada.
Anda tudo em círculos dentro da minha cabeça. Não me larga. Por isso, se vos contar,
talvez me consiga libertar. Se disser tudo em voz alta outra vez, talvez me solte.
Portanto, acho que vou fazer isso.
Provavelmente não vão gostar de mim. Mas, talvez gostem. Seja como for, não me
interessa. Eu só quero libertar-me disto.
Dois
Pete De onde?
Kate Sim.
Sam Porquê?
(---)
Kate O quê?
Kate Sim?
Sam Conta-lhe.
Kate O quê?
Kate O quê?
Pete É, sim.
Kate Porquê?
Kate Por que é que te excitas com a avó dela, o que é que se passa meu?
Pete Não sei. Só quis ver como é que era.
Kate Imagina-te a excitares-te com uma pessoa, mas torna essa pessoa mais velha,
é assim que se faz, meu.
Sam Pergunta-lhe.
Pete Não.
Sam Vi.
Sam Já te disse.
Kate O quê?
Kate Não és tu. Ele. Na verdade, tu e todos por o deixarem fazer isso.
Sam Foi tão engraçado. Ele era tipo, vou? E eu tipo, vai, por que não?
Sam O quê?
Sam Estava.
Kate Por que é que estavam os dois bêbados perto da tua avó?
Kate Porquê?
Kate E eu?
Sam Ele nunca está ocupado, não é? E é diferente, não é, por causa da tua -
Kate Engraçado?
Sam Sim.
Kate Só isso?
Sam Ele diz, e se fosse meter-me com a tua avó? E eu, sim, vai lá. E ele, ela até
está muito bem, não está, para avó, e depois -
Pete Vou ter com ela e tipo, tou bem, e como é que está, ainda não a
cumprimentei, e ela tipo, olha para mim, e eu dou-lhe um beijo à antiga, na boca, e
depois meti a língua, foi um bocado estranho, mas continuei e quando parei, tipo, tudo
bem? Ela ainda está a olhar para mim e diz, quem és tu, então, e eu tipo, sou o Pete,
prazer em conhecê-la, e ela tipo, és muito simpático e eu, muito obrigado, e pronto,
foi assim. Foi de primeira qualidade. Um beijo de classe.
Kate Sim, parece-me de qualidade.
Pete Estou preparado para a próxima, para alguém da minha idade com os dentes
um bocadinho mais firmes e no lugar.
Kate Meu deus. Ela sabe que tu só tens quinze anos, certo?
Kate Não sei, isso não a torna tipo - não sei. Pedófila?
Sam Saberíamos.
Sam Não.
Kate O quê?
Kate E depois?
Pete Achei que me ia refrescar. Era Verão e isso, não é? Estava cheio de calor. E
tinha bebido muito uísque do pai dela e isso.
Sam Ele de pé no lago a dizer, estou com calor, estou com calor, só me quero
refrescar, acho que estou a morrer, acho que vou morrer.
Pete Um bocado dramático, mas resultou e isso, porque não morri e até fiquei
mais fresquinho. Mas o pai ficou mesmo passado e disse, tirem-me esse escarro do
lago já, e eu digo, os peixes estão a mexer-se debaixo de mim, estão a mexer-se, e
digo, pisei um Sam, pisei um peixe e pego no peixe morto, não é, e vou e digo, olha
Sam, uma tragédia, fui eu que causei esta tragédia, o pai dela passa-se completamente,
vem direito a mim, não é, e eu ainda estou nu, no meio do lago, com um peixe na
mão, ele pega em mim, leva-me até ao portão e atira-me para o meio da rua, e eu fico
no passeio que está a ferver e me queima o cu e isso, depois fui para casa.
Pete Ainda tinha o peixe e tudo. Levei-o para casa e meti-o na frigideira. Pensei
que o podia ressuscitar, mas não se consegue ressuscitar.
Sam Sim, está bem. Já te disse que pensava que estavas ocupada.
Kate Porquê?
--
Kate Em casa.
Kate Adivinha?
Kate Não.
Kate Fala e anda um bocadinho. Às vezes come, às vezes bebe, e depois vai à casa
de banho.
Pete Isso já é muita coisa.
Pete Até parecia que estavas a falar de uma batata ou coisa do género.
Pete Quem me dera que o meu irmão fosse uma batata. E a namorada dele.
Kate O quê?
Kate Quem?
Sam Está?
(...)
dois
Kate De onde?
Sam Quem?
Kate Não sei, faço sempre qualquer coisa que o irrita, não é? Como é que está a
tua mãe e o teu pai?
Sam Na merda.
Sam É?
Kate Porquê?
Sam Um bocado.
Sam É?
Kate Não sei. Pais à porrada um com o outro. Acho que é engraçado.
(...)
Kate Porquê?
Pete O meu irmão andava aos pontapés à casa como se fosse um atrasado mental.
Sam Porquê?
Sam O quê?
Pete Não. Ninguém estaria. Meu deus. Já viste o estado em que a namorada dele
está? Imagina ficares preso àquilo. E depois a uma versão mais pequena daquilo.
Pete O quê?
Pete Só pensas nisso? Acabei de dizer que vou ser tio e tu só estás interessada em
beber.
Kate Exato, pois, parabéns e isso tudo, mas a falar a sério, onde é que -
Pete Já te disse.
Pete Está bem, meu, eu tenho umas coisas, estava só a brincar, não é? Estás tão
zangada.
Kate Tens?
Kate De onde é?
Pete Do quarto do meu irmão. Guarda debaixo da cama. Fui lá num instante
enquanto ele estava a mijar. Que loucura. Estava na sanita a gritar como se mijasse
lava da picha ou coisa do género.
Pete Vai.
Pete Não vai ser diferente, não é? É o homem mais zangado do mundo. Imagina
se vocês os dois tivessem ficado juntos?
Kate Porquê?
Pete Porque se isso acontecesse e tivessem um filho, seria um Satanás ainda mais
violento.
Pete Pois, provavelmente é uma boa ideia, dado o estado atual das coisas, ele
ainda está lixado contigo e tudo.
Sam Porquê?
Kate Porquê?
Pete Porquê?
Kate Ah, isso. Cum caraças. Foi há que tempos. E foi só na jante, não?
Sam O quê?
Pete Acabou de as pôr novas. Falou-me delas. Alguma vez ouviste alguém a falar
de jantes de carros? Foda-se que é chato. Quer dizer. São como as antigas, mas ao que
parece são diferentes. E ele adora-as.
Pete Mas não vai passar, pois não? Todos conhecemos o meu irmão. Ele não
ultrapassa nada. Pois não? Está cheio de raiva. É o homem mais raivoso do mundo.
Devias tê-lo visto quando eu quase deitei fogo à casa.
Sam O quê?
Pete O quê?
Pete Sim.
Sam O quê?
Pete O quê?
Kate Pois.
Sam Não.
Pete Ah pois, desculpa, esqueci-me. Sim, quase deitei fogo à minha casa.
Kate Como?
Pete Sim.
Pete Sim.
Sam Porquê?
Sam Porquê?
Pete Já não me lembro. Mas senti-me culpado e decidi cremá-lo, sabes? Só para
que ele fosse lá para o paraíso dos peixes, ou lá o que é. E fiz isso, mas fiz com
petróleo, o que foi um bocado violento para um peixe de aquário, não sabia quanto é
que devia usar, provavelmente usei demais e o peixe explodiu.
Pete Sim, explodiu. Explodiu. O peixe explodiu. Depois o meu irmão olhou pela
janela e disse, tipo, estás a brincar com quê, caralho? E eu disse, acabei de cremar um
peixe, mas depois tivemos de chamar os bombeiros porque a mesa do jardim estava a
arder bastante.
Sam Bastante?
Pete Bom, estava em chamas, de tal maneira que a casa também ardeu um bocado.
Sam Um bocado?
Pete Só um bocado. Mas quando tens a casa a arder um bocado, isso significa que
está simplesmente a arder, provavelmente não é o que se quer, achei que chamar um
carro de bombeiros foi um bocadinho demais, mas com o fogo é preciso ter sempre
cuidado, não é?
Kate Tu pegaste fogo à tua casa porque estavas a tentar cremar um peixe?
Pete Sim. Um bocado louco, não é? Seja como for, eles vieram, apagaram o fogo
e eu pedi para pegar um bocado na mangueira, mas disseram que não, porque estavam
ocupados a impedir que a minha casa ardesse, foi o que fizeram, e depois ficou tudo
bem e nunca mais se viu o peixe, tal como a mesa, o que não deixou o meu irmão
nada contente, mas valeu a pena, o peixe é, neste momento, fumo a flutuar na brisa,
como se o céu fosse agora o seu novo oceano ou coisa assim. O meu irmão estava
furioso. Deu-me porrada depois. É por isso que tenho a cara toda negra. E o lábio
aberto. Partiu-me um dente. Acho que mereci, não? Mas sim. Espero que ter um filho
o acalme. Mas não vai acontecer. Posso dizer-vos uma coisa? Estou com muitos
ciúmes que ele vá ter um filho. Eu ia adorar.
(...)
Sam À vontade.
Kate De quem é que são?
Kate Gamaste?
Sam Não propriamente. Estavam ali. Ela tinha saído. Sabem a merda.
Sam Tenho.
Kate Porquê?
Sam Os meus pais estavam pegados. Parecia que o meu pai ia arrancar a cabeça da
minha mãe.
Sam Adivinha.
Kate O quê?
Sam Para trazer a cadeirinha tinha de passar pelo meu pai e pela minha mãe. Ela
está bem.
Sam Por pôr um bebé num saco? Não me parece. Não é que ela esteja morta e
venha num saco de supermercado. Ela está bem. Eu tornei a coisa confortável.
Kate Foi?
Kate Não?
(...)
Pete Adivinha.
Kate Passou?
Pete Quando terminarmos a escola? O que é que fazes quando já não tens
ninguém para te dizer o que tens de fazer?
Pete É?
Kate É.
Pete Está bem. E o que é que eu faço agora? Vamos pensar. Está bem, acho que
vou tentar fazer sexo com alguém.
Kate É?
Pete É. Já tenho dezasseis anos. Já estou legal. Cuidado com o Pete. É bom, não
é? Nunca fiz. Por isso. É uma coisa que tenho de tentar, não é? É normal, não?
Pete Pois pois pois pois. Tenho de resolver isso. Como é que eu faço?
Sam Não te vou explicar como -
Sam Uma?
Pete Ela é fixe. Estou sempre a tentar falar. Ela talvez sirva.
Pete Sim, tento com ela. Estou sempre a comprar coisas, mas ela não se incomoda
nada.
Pete Quando?
Pete Porquê?
Kate Porque é assim que as coisas resultam, meu, não é? Porque se estiveres só a
comprar coisas, sem lhe falar, não estás a dar em cima ou começar nada, estás apenas.
Às compras.
Sam Como?
Pete Sugestivas.
Sam Sugestivas?
Pete Sim.
Kate De quê?
Pete Tu sabes.
Kate Achaste que comprar uma embalagem de seis salsichas seria sugestivo
porque as salsichas são parecidas com pilas?
Pete Está bem, está bem, não sei. Eu não sei o que faço, não é? É tudo difícil, não
é? Por que é que é tudo tão difícil? Preso a esta cidade sem saber o que fazer. É tudo
muito mais difícil do que devia ser, não é?
Sam O quê?
Sam O quê?
Pete Fazemos um pacto onde acordamos que ao atingir uma determinada idade
nós podemos -
Kate Não fales disso. Ninguém faz coisas dessas. Tu pensas que se faz porque és
um idiota. Mas ninguém faz.
Pete Mas e se estivermos sozinhos -
Kate Não, meu. Pára de falar. Isso não vai acontecer nunca. Dormir contigo? Acho
que não consigo pensar em coisa pior. Não te quero desrespeitar e és o meu melhor
amigo e isso, eu adoro-te, mas ter sexo contigo. Quer dizer. Acho que isso ia. Tipo.
Não sei. Acho que se fizesse isso, ia-me tornar. Tipo. Violenta. Tipo, isso acontecia e
no dia seguinte eu ia estar tipo, tenho de matar qualquer coisa. Preciso de matar.
Qualquer coisa. Que seja. Tenho de matar qualquer coisa. E começava por coisas
pequenas, tipo formigas e moscas e isso. Matava bastantes. Mas depois apercebia-me
de que não estava a satisfazer esta violenta urgência e passava para os ratos e isso.
Depois gatos e cães. Depois. Não sei. Um porco? Depois uma vaca e depois um
cavalo ou coisa parecida. Mas não ia ser suficiente. E então passava para seres
humanos. Matava seres humanos violentamente. E miúdos. E bebés. Num dia. Essa
matança toda num só dia, que por acaso era o dia seguinte a termos sexo.
Sam Eu ia querer cometer atos horríveis de violência porque tinha visto o teu pé -
Pete Está bem, calem-se, era só uma ideia. Não sou assim tão mau, ou sou?
Pete Está bem, cala-te. Mas fora de brincadeiras, é só isso que precisamos, não é?
Kate O quê?
Pete Sim, a minha vai ser. Vai ser a melhor família que vais ver. Vamo-nos estar
sempre a rir. Trinta filhos a andar de um lado para o outro. Vai ser extraordinário.
Nunca te aborrecias, pois não? Ias andar sempre de um lado para o outro atrás deles.
Ia ser tipo, o que é que aquele está ali a fazer em cima do forno? E por que é que o
outro está a ligar o grelhador? É melhor desligar aquilo, mas não posso porque há um
a matar o cão com a faca da cozinha. Ah, o que é que se passa ali, por que é que
aquele está com um. Tipo. Um chapéu? Ou coisa parecida. De onde é que aquilo veio?
Nunca vi aquele chapéu. Quer dizer. Nunca te irias aborrecer. É esse o meu sonho.
Kate Em quê?
Pete Estou a dizer que se alguma vez tiveres um filho, coitado do miúdo.
Kate Tem?
Kate Sandra.
Sam Sandra?
Kate Sim.
Sam Sandra?
Sam Não. Nem sequer é parecido. Onde é que foste arranjar a Sandra? A minha
irmã não se chama Sandra. Ninguém se chama Sandra.
Pete Vês.
Kate O quê?
Pete Serias horrível. Ias esquecer os nomes deles, acabavas por te esquecer dos
nomes deles para sempre.
Pete Os tomates é que ias. Ias estar bêbada a toda a hora. Serias daquelas clássicas
mães bêbadas.
Pete Tu sabes e eu sei e a Sam sabe que isso não é verdade. Eu seria fantástico. O
melhor. Só preciso de uma pessoa.
Sam Podes sair com a minha avó? Ela deve ser um bocadinho velha para produzir
filhos fisicamente. Mas. Tu sabes. Vale a pena tentar?
Pete Acho que não quero sair com a tua avó, obrigado.
Pete É só o que eu quero. Estou sempre a pensar nisso. Tenho ciúmes do meu
irmão.
Kate Porquê?
Pete Oh meu deus, estás a brincar meu? Estás muito bêbada? Já te disse muitas
vezes. Estou sempre a falar disto, não estou? Ele vai ter um filho, não é? Já te disse
umas trezentas vezes, não? Estou sempre a falar disso. A namorada dele está grávida e
vai fabricar um bebé muito feio e eu vou ser tio porque sabes, é assim que a vida é,
não é? Estás-te a passar? Não te lembras das coisas? É o primeiro caso de sempre de
uma adolescente que fica demente.
Sam O quê?
Pete Ele e o miúdo e isso tudo. Ele tem isso tudo e eu não tenho nada.
Pete Leva?
Sam O quê?
Pete Mas eu sei, não é? Só o pensamento de alguém a fazer isso. Mesmo alguém
que cheira tão mal a ovo como ela deve estar alguns furos acima do estatuto do meu
irmão. É uma loucura. Mas também já estou convencido com o facto de que vou ser
tio. Tenho um plano.
Kate E qual é?
Pete Vou dar ao miúdo tanto amor que ele vai olhar para mim um dia e vai dizer,
tio Pete, gostava que fosses o meu pai verdadeiro.
Kate E depois?
Pete Não sei. Gamava-o e levava-o para um sítio qualquer. Garantia que ele
crescia cheio de esperança e isso.
Pete Exatamente.
Kate Não esperes nada de famílias. E não esperes nada de cidades como esta.
Encontra tu a tua própria esperança.
Pete Claro.
Sam O quê?
Kate Vou sair daqui. Desta cidade. É uma prisão. Não vou arranjar uma família e
ficar aqui. Vou-me embora. Vou. Meto-me num carro e conduzo durante quilómetros e
quilómetros e quilómetros. Não vou parar.
Kate E porquê?
Pete Tens dezasseis anos, não tens? Tens de ter dezassete para conduzires. O que é
que vais fazer? Compras um carro agora e ficas um ano a olhar para ele. Para além de
que é uma chatice ter carro.
Kate Cinco canecas e estás bem. Aqui toda a gente se embebeda e conduz. Que
outra merda é que se pode fazer por aqui?
Kate O quê?
Sam Estamos numa ilha pequena, não é? Se não parares de conduzir, vais dar ao
mar. E depois?
--
Kate Como é que isso vai acontecer? Não me parece que alguém vá dizer, tipo,
temos de acabar com as pessoas que tomam conta das pessoas que estão a morrer na
suas casas para poupar dinheiro. Isso não vai acontecer, pois não?
Kate O quê?
Pete Nesta cidade. Temo-nos uns aos outros, não é? É isso que quer dizer casa.
Acho que, pelo menos. Não são os edifícios nem os parques nem as estradas ou outra
coisa qualquer. São as pessoas, não é?
Pete O quê?
Kate Casa pode ser em qualquer lado, não é? Então por que é que estamos nesta
merda? Preciso de beber.
Pete Matava-me.
Kate E tu?
(...)
Pete Arranjaste?
Kate Arranjei.
Sam Quanto?
Kate Troco? Não se recebe troco de um dealer, pois não? Já viste algum com uma
caixa registadora debaixo do braço? A perguntar se precisas de recibo e isso?
Pete O que é?
Kate Para quê o quê para quê? Por que é que andas com uma merda de uma
abóbora?
Pete És parva? Para lhe desenhar uma cara. Vai ficar mesmo assustadora.
Pete Vou esculpir uma cara, não é, e depois vou pendurá-la à porta de casa,
quando o meu irmão abrir a porta, ela vai aparecer mesmo na cara dele e ele, tipo, oh
foda-se, o que é isto, vai assustá-lo tanto que vai cair para trás, abre a cabeça no
degrau da entrada, o cérebro vai escorrer para fora da cabeça e ele morre.
Kate É um bom plano.
Pete Pois, bem me parecia. Assim desaparecia e eu não era acusado de crime e
essa merda.
Kate Não.
Sam O quê?
Pete A abóbora?
Sam Quando?
Pete Agora.
Sam Cortas a parte de cima, esvazias o miolo, fazes uma cara e pões uma vela
acesa lá dentro e depois tornas a pôr a tampa.
Pete Ah, foda-se, isso dá muito trabalho. E precisas de vela? Nunca ninguém me
disse essa. E para que é que é, para as caras se iluminarem ou assim?
Pete Esse esforço todo numa abóbora? Que loucura. Por que é que é tudo tão
difícil?
Sam É, pois.
Pete Sim.
Sam Não.
Pete Ah, que se foda. Nem valeu a pena gamá-la, não foi?
Kate Gamaste-a?
Pete Gamei.
Kate De onde?
Pete Da loja.
Kate Qual?
Pete Da pequenina.
Pete Sim.
Pete E depois?
Pete Quer dizer que não posso gamar coisas porque trabalhas lá? Não faz sentido
nenhum, pois não?
Pete Apanhado?
Pete O caraças que vais dentro por roubares uma abóbora. O que é que vão fazer,
mandam para a cadeia?
Kate Talvez.
Pete Ah pois, claro. Até imagino. Eu preso, sentado e um tipo diz, estou aqui
porque matei os meus filhos todos com um tijolo, e tu, o que é que fizeste? Eu gamei
uma abóbora, meu, vamos desabafar os dois.
Kate Ia ser engraçado se fizessem isso. Passavas o resto da vida sem emprego
porque tinhas registo criminal por gamares uma abóbora. Acabavas por ficar sem
dinheiro, não conseguias comprar nada e acabavas por te matares.
Kate Óbvio.
Pete Nã, isso está tudo atrás do balcão, isto estava à frente da loja, era mais fácil
roubar. Dá aí um bocado disso.
Sam E eu também.
Pete Ah é, sim? Então devíamos ir a um bar, não era? Está um gelo, hoje.
Pete É porreiro.
Kate Qual?
Pete O Carvalho.
Pete Melhor que o parque, não? Três adolescentes de dezasseis anos num parque a
partilhar uma garrafa de cidra. Isto está a correr bem, não está?
Pete Pois, e não te perguntas porquê? Ah pois, porque bebeste uns três litros de
cidra sozinha.
Pete O caraças que não estás. Eu estou derreado e só dei dois goles.
Kate O quê?
Pete Ah, pois, sou muito velho, não é? Não há nada mais para fazer, não é? Saí da
escola há uns meses. Não fiz mais nada senão beber.
Sam O quê?
(...)
Sam Eu importo.
Kate Porquê?
Kate Quem?
Kate E depois?
Sam Por que é que estás a gritar comigo? As pessoas normais costumam bater à
porta.
Sam E depois?
Kate Porquê?
Kate O Pete disse que o irmão dele disse que agora estava lá todas as noites.
Kate Até está a lidar bem com o facto de a tua mãe vos ter deixado.
Sam E depois?
Kate Ah, sim? Então por que é que andavas com ela num saco?
Sam Porque era de noite e ela estava a dor - por que é que eu estou a explicar isto?
Eu não posso sair, não é?
Sam E depois?
Kate Ele não saiu, não abre a porta porque está a bater uma.
Sam Ah pois, provavelmente. Sabias que acende velas quando faz isso?
Kate O quê?
Sam Já te disse -
Kate Está bem, foda-se, isto não devia estar a acontecer, sabias?
Sam O quê?
Kate Os teus pais é que deviam de estar a fazer o que tu estás a fazer agora, e nós
devíamos estar a fazer o que eles estão a fazer provavelmente. Que é: nos copos.
Kate Sozinha?
Sam Sim.
Kate Aborreço-me.
Sam Então, não sei. Vai fazer o que o Pete está a fazer.
Sam Isso, não quero saber, deixa-me me paz, tenho de tomar conta dela. Eu saio
amanhã ou assim.
Kate Está bem, como quiseres. Diverte-te quando o teu pai chegar a casa e decidir
gritar contigo. Eu apareço para a semana. Preciso de uma nota de dez.
(...)
Kate Pois é, bater punhetas treze vezes por dia talvez tenha esse efeito.
Sam O quê?
Pete Não sei o que hei-de fazer. Preciso de qualquer coisa para passar o tempo.
Preciso de dinheiro.
Sam Eu arranjei.
Kate Ah sim, que bom trabalho esse, não é? Como é que está a promoção para o
quiosque?
Sam Melhor do que nada. É mais do que o que tu fazes agora, não é?
Kate O quê?
Pete Ah não?
Pete Ah é?
Kate Não andámos na escola e fizemos uma data de exames de merda e passámos
por uma data de coisas para agora trabalharmos num supermercado, não é?
Pete Seja como for, o supermercado não está a aceitar. Eu perguntei. Teria sido
perfeito. Eu e a rapariga da máquina registadora. Salsichas por todo o lado.
Kate Salsichas
Pete Está bem, estava só a brincar. Mas a sério. Estamos um bocado presos.
Quando se pensa nisso.
Kate Pois.
Pete Gostava de ser bombeiro, acho. Fiquei inspirado quando apagaram o fogo na
minha casa, naquela altura.
Pete E depois?
Kate E depois, se tens medo do escuro como é que te vais arranjar num incêndio?
Kate Acho.
Pete Porquê?
Pete É uma loucura, não é? Imagina que a minha casa tinha ardido completamente
só porque demoraram que tempos a lá chegar. A culpa não seria minha, pois não?
Sam O quê?
Pete Mais um ano que quase passou. Sinto-me como se tivéssemos acabado de
sair da escola há uns minutos. Não faço ideia do que devo fazer com os trabalhos e
isso. Mas se calhar não me importo. Agora que penso. Acho que não me importo.
Porque acho que só quero ser pai.
Pete Pai.
(...)
Kate Um tipo que estava no Carvalho. Não sei. Fiquei um bocado cá fora. Eu só
queria um bocadinho de erva, mas ele era, tipo, a erva é aborrecida, toma um
bocadinho de ketamina.
Pete Quem?
Pete Não reparaste se o tipo com quem estiveste a falar só tinha um olho?
Sam Eu conheço-o. Vai lá à loja. Estou sempre a pensar que me está a piscar o
olho, mas depois fica fechado.
Pete Nã, não te está a piscar o olho. Ele só tem um olho. Não se pode piscar
quando só se tem um olho.
Pete O quê? Porque não há olho para, tipo, a pálpebra se fechar, então -
Kate Não queria dizer isso, não é? Estava a perguntar como é que o conhecias.
Pete Ah, sim, porque conheço. O meu irmão conhece-o. Vou contar-vos uma coisa
e assim.
Kate O quê?
Kate Sim?
Pete Exato, pois, o meu irmão disse que perdeu o olho porque alguém lhe deu um
murro uma vez e o olho caiu, e o tipo que lhe deu o murro fugiu, não é, mas o Estêvão
conhecia o primo do gajo ou coisa parecida e tipo, pensou, eu apanho-o para a
semana, eu sei onde ele vive ou coisa parecida, com o olho pendurado da cara, não é -
Kate Treta.
Pete Nã, nã, é verdade. Ao que parece, estava tão bêbado que simplesmente o
tornou a meter para dentro e continuou a beber e era toda a gente, Estêvão, meu, o teu
olho não está muito bom, meu, e ele tipo, estou fixe, foi só um arranhão, meu, e
depois alguém, tipo, não parece um arranhão Estêvão, meu, o teu olho não está onde
devia estar. Ele não estava preocupado, não é, continuou a beber e foi para casa, mas
depois, ao que parece, acordou na manhã seguinte, ainda lhe doía, e ele puxou-o
simplesmente, não é. E depois, não é, mandou-o pelo correio ao outro tipo com um
bilhete a dizer, estou de olho em ti. Aposto que o gajo se cagou todo aí. É assim o
Estêvão Zarolho. Loucura, não é? Ele agora é passador de droga, portanto parece que
se está a sair bem na vida e a tomar todas as decisões corretas, não é?
Pete Ah, digo merda? Tanto como tu. A única diferença é que tudo o que digo é
verdade. Podia escrever um livro.
Pete Esta cidade. Sobre todas as história que se passam nela. Ia para o top de
vendas. Fazia uma fortuna. Lia-o aos meus filhos antes de irem para a cama.
Sam Ou escrever.
Pete Eu sei escrever, não é? Fiz aquele exame há que tempos, não foi?
Pete Exatamente.
Kate É só que se chegares a uma palavra com mais de três letras as coisas
começam a ficar um bocado difíceis, não é?
Pete Eu sei soletrar uma palavra com mais de três letras, não sei? O meu nome
tem seis, não é?
Pete Sim.
Pete Ah, que se foda, não é esse o assunto, pois não? O assunto é que eu tenho
histórias. E as pessoas adoram histórias, não é?
Kate Ninguém quer saber de cidades rodeadas de campos, pois não? Ou das
pessoas que lá vivem. Como nós. Ninguém está interessado nas cidades que ficam
paradas como ilhas no meio dos campos. Nunca estiveram. E nunca estarão.
(...)
Kate Por que é que as tuas coisas estão todas aqui espalhadas?
Kate Porquê?
Pete Voltou para casa bêbado e pensou que eu tinha escondido o controlo remoto.
Pete Sim, trancou-se. Estou congelado. E o que é que tu estás aqui a fazer?
Kate O meu pai estava a tossir. Não queria ouvir mais. Queres vir dar uma volta?
Kate E depois?
Kate Porquê?
Kate O quê?
Kate Porquê?
Pete Está sempre a meter-se comigo, que eu não levo dinheiro para casa.
Pete Eu sei, mas não se cala. Vou ver se consigo inscrever-me no subsídio de
desemprego e isso. Faz-me sentir um bocado vazio. Não sei porquê. Não devia, pois
não? Existem para ajudar, não é? Não é para nos fazerem sentir que não valemos
nada.
Pete E levar um ensaio de porrada outra vez? Não, muito obrigado. Tu devias era
ir-te embora e isso. Se ele aparece e te vê também levas. Tu precisas mesmo de deixar
de vomitar no carro dele, sabes?
Kate Não aguento. É o carro mais feio que eu já vi. Tenho de lhe vomitar em cima.
Kate Sim, eu sei. Não quero saber. Só quero é ir-me embora daqui.
Kate Talvez? Definitivamente. O meu pai. O pai da Sam. O teu irmão. Não estão
bem, pois não?
Pete Não, não é connosco. Com o filho do meu irmão. Sinto que preciso de tomar
conta dele. Sabes? Porque. Porque acho que o meu irmão não sabe nada sobre isso.
(...)
Pete Esqueci-me.
Kate Foda-se meu, a única coisa que eu pedi que me trouxesses. O que é que eu
disse? Pete, compra mortalhas porque não se pode fumar um charro sem mortalhas e
eu é que tenho o resto, não é? Uma coisa. Só uma coisa de merda.
Kate Vocês são uns inúteis. Nem sei por que é que ando com vocês.
Kate Quero lá saber. Gamei uns analgésicos, posso apanhar uma pedrada com eles.
Sam De quem?
Pete É o melhor que há. E até estou com um bocado de dor de cabeça e tudo, por
isso são dois coelhos de uma só cajadada, não é? Fazem parar a dor de cabeça, não
fazem?
Sam Sim, provavelmente, se forem para aquilo que o pai dela tem.
Pete Chegas a casa bêbada como sempre e descobres o teu pai morto. Quer dizer.
Isso vai tirar um bocado da tua euforia, não vai?
Kate Porquê?
Sam E depois?
Pete E depois, quando ele morrer, podes praticar o sofrimento para quando o teu
pai morrer.
Sam O quê?
Pete Vende todo o tipo. Roedores e isso, é onde se especializou. Adora. Cria-os e
vende-os. Baratos e tudo. Cinco euros ou lá o que é. Cinco euros por um pequenino
hamster, é um bom negócio, não? Se tiveres dez euros, podes comprar dois. É
matemática.
Sam Que génio.
Pete Tudo bem, sem problemas, não estou nada preocupado, quer dizer que não
vou ter de ir a casa dele, cheira mal.
Pete Pois, porque tem uma data de roedores a cagar por todo o lado. Ah, estavas a
ser sarcástica. Tu és difícil.
Kate O quê?
Kate Não interessa para nada, não tens nada para fazer. É melhor dormirmos
todos.
Pete Por mim, tudo bem, eu adorava dormir. Mas aqui não. Ia morrer congelado,
não é? E depois morríamos. O que não era ideal. Ah, por falar em roedores. No outro
dia comprei à rapariga um rato. Ainda não se tinha habituado.
Sam Quem?
Pete Ando.
Kate Há quanto tempo?
Pete Não, vou continuar a tentar. Mas foi chato ela não ter gostado do rato.
Pete Não.
Pete Porque são queridos. Era só um presente, tipo. Uma amostra do meu amor
por ela.
Pete Estou. É só isso que estou. Eu amo-a, ok? Estou apaixonado. Estou
literalmente apaixonado. Quero fazer amor com ela. Muito devagar. Muito
delicadamente.
Kate As putas das velas. O que é que se passa com ele e com as velas? Porquê as
velas? Para que é que são as velas?
Kate Não.
Pete Já fizeste?
Kate Não.
Pete Oh, porque nunca foste cortejada. Mas eu. Eu sou romântico. Por isso, sou
todo velas e essas merdas. Sim? Já tenho dezassete anos. Está na altura de deixar de
sermos putos com esta merda do amor. Subir um nível.
Pete Seja como for. Agora tenho um rato. Não o quero. Vou soltá-lo. Libertá-lo. Ia
ser bom. Vou dizer uma coisa.
Sam O quê?
Kate Não?
Sam Seguiste-a?
Pete Segui. Não, tipo, diretamente atrás dela. Só tipo. Uns metros atrás.
Pete Não queria fazer isso, não é? Não queria. Não sabia o que havia de dizer, por
isso segui-a. Não a queria seguir. Queria falar com ela. Mas. Não conseguia. É sempre
assim que se faz, não é?
Sam O quê?
Pete Mentes sobre o que pensas que podias dizer. Todas estas coisas magníficas
dentro da cabeça. A dizê-las dentro da tua própria mente. Depois quando chega a hora
da verdade, soa tudo mal e nem sequer consegues falar. Por que é que isso acontece?
Pete Pois. Que não te aconteça. Acho que não vou conseguir não fazer isso. Ser só
eu. Pensar coisas. E é só isso que existe, não é? A vida é só pensar. E depois morres. E
é só isso que existe. Não é? Só isso. Que existe. Pensar em fazer e dizer coisas. E
algumas pessoas podem. Mas eu não posso. E isso. E isso não é bom, não é? Quer
dizer. Sonhar e nunca fazer realmente. Isso é. Por que é que não posso fazer isso?
Meu deus, estes analgésicos são um bocado estranhos, não são? De que é que eu estou
a falar? Sinto que podia flutuar. Flutuar e ir à deriva. Ir à deriva até ao horizonte e ver
o que está do outro lado.
(...)
Sam Não é assim tão mau.
Sam O meu pai voltou bêbado para casa e bateu-me. Tudo bem. É só um olho
negro, mais nada.
Kate Só?
Sam Estava a gritar. Deixei que me batesse. É mais fácil assim. A minha irmã
acordou por causa do barulho. Ele caiu para o lado e eu passei o resto da noite a
adormecê-la.
Kate Levá-lo.
Sam E depois?
Kate O quê?
Sam O que é que eu faço depois? O pai dentro e a mãe não interessada em voltar.
Eu e a minha irmã fazíamos o quê? Ela era levada para algum lado e não tinha sítio
onde ficar. É melhor aguentar.
Sam Poupei dinheiro da loja. No ano que vem, quando fizer dezoito, alugo um
apartamento pequenino na cidade. E vou lá viver com a minha irmã.
Sam Porquê?
Sam Foste?
Kate Fui. Para praticar. É uma cagada. Andei pela cidade e depois pela estrada de
circunvalação à volta da cidade. Andei às voltas. Foi fantástico. Orbitei a cidade como
se estivesse numa nave espacial ou coisa do género. A cidade à minha esquerda. O
horizonte à minha direita. Foi fantástico. Andei a vaguear. Nunca me senti tão livre. É
só escolheres uma direção e vamos embora.
Kate Sabes que se trepares aos baloiços e te sentares na barra de cima consegues
ver o horizonte por entre um intervalo das árvores. Uma linha curva. É só isso. Uma
linha curva que repousa em cima da terra. Mas ao olhar para ela. Parece frágil. Como
se pudesse mudar de sítio. E deixasse um espaço atrás. E acho que se não tivermos
cuidado é onde nós vamos acabar. Por isso, manda o teu pai foder-se e vem comigo.
Kate Porquê?
Sam Porque preciso de proteger a minha irmã. Não a quero deixar sozinha. É
estranho isto, não é? Estar aqui. Sentir o mundo a girar à minha volta. Sinto que a
cidade não nos deixa sair. Mesmo que eu quisesse fugir. Acho que nunca conseguiria.
(...)
Pete Um bocado menos de sessenta. Desisti de falar com eles porque descobri que
o comboio iria custar tanto que não valia a pena dar-me ao trabalho de o apanhar. E
como já não há autocarros na estação, acabei com tudo aí. Desliguei o telefone.
Pete Para pôr o meu irmão feliz. Ou lá o que ele pensa que é.
Sam Não reparei que isso tinha acontecido. Não te pode levar de carro?
Sam Mas também vai ter de ir, não é? Não quer um emprego?
Pete Não quer. Diz que as pessoas que vivem do subsídio são uma merda.
Pete Quer.
Pete Eu sei.
Sam É uma estupidez que não possas receber subsídio apenas por causa da
geografia, não é?
Pete Acho que sim. Se tivesse carro, ia lá. Mas como não tenho, não vou. E
também não sei conduzir. Sabes, o que me ia ajudar bastante aqui era uma merda de
um transporte público.
Kate Meteres-te num autocarro a cheirar a mijo só para ires assinar uma coisa. Até
me dá vontade de rir.
Kate Já te disse.
Pete Ah, claro, aquela coisa sobre ti e o carro do teu pai. Ela contou-te?
Kate Contei.
Kate Engraçado?
Pete Estás bêbada sempre, não é? Se te metesses num carro enfiavas-te contra
uma avózinha qualquer ou assim. Era logo. Metias a chave na ignição, carregavas no
acelerador e dizias, tipo, merda, matei uma avó.
Kate Por que é que eu ia mentir? Não estou a fazer isto só por mim. É por todos
nós. Estou sempre a sonhar com isso.
Kate Conduzir apenas. Sair de uma estrada que não anda só em círculos. Uma que
seja uma linha direita que leva realmente a algum lugar. Depois do horizonte. E
depois do próximo horizonte. Nem sequer sei o que quero fazer. Mas sei que tenho de
fazer isto, sabes?
Kate Porquê?
Pete Porque, para começar, não tens dinheiro. E sabes que precisas disso para que
um carro se mexa, não é? E, seja como for, o que é que eu vou fazer fora desta
cidade? Não consigo fazer nada aqui. Eu sou estúpido que nem uma porta, não é?
Qual é o problema de não conseguir fazer nada noutro sítio. Eu só quero encontrar
alguém que não ache que eu cheiro mal e construir uma família grande e -
Kate Então vai fazer isso noutro sítio. Talvez encontres alguém que não tenhas que
seguir e a quem não tenhas de comprar ratos. E que fale contigo realmente.
Sam Fala?
Pete Fala.
Pete Olá.
Sam E que mais?
Pete Adeus.
Pete Oh, melhor do que nada, não? E agora vou convidá-la para sair. Não tenho
nada a perder, não é? O que é que pode acontecer ainda pior? Fico como estou. A
melhor coisa. Ela diz que sim. E eu, tipo, quando, vamos a isso. E encontro-me com
ela. E eu, tipo, então, o que é que tens feito, e ela tipo, oh meu deus, tudo o que ouvi
dizer de ti é verdade, és uma lenda e eu tipo, pois, eu sei, sou muito muito muito
especial e depois, andamos de mão dada ao luar e depois, tipo, apaixonamo-nos. À luz
das velas. E depois comemo-nos um ao outro. E temos trinta filhos.
Sam Adivinha.
Pete Não?
Pete Porquê?
Pete Porquê?
Kate E há um ano e meio que a andas a perseguir. Ela não vai sair com um
rebarbado, não é, meu?
Sam Convida-a.
Pete Convido?
Sam Sim, pergunta, só para não ter de te ouvir a falar mais sobre isso.
Kate Já a vi lá. Anda para lá a passear. Enjoada como tudo. Parece um fantasma.
Seria como foder um fantasma. Aposto que nem sequer bebe.
Pete Então é isso, é? Olhaste para ela e decidiste que era vulgar.
Sam O quê?
Pete Uma noite destas, pronto. Estou em casa na cama. Ali sozinho com os meus
pensamentos e isso.
Pete E ouço um som vindo de fora como se alguém se estivesse a rir mas se
esforçasse para não o fazer, sabes. E depois olho, e é ela. Eufórica. Completamente
maluca da cabeça. Aos saltos em cima do carro do meu irmão.
Sam Sozinha?
Kate Sim.
Pete E eu estou tipo, isto não é nada bom, vou lá abaixo a correr, tiro-a de cima do
carro exatamente quando o meu irmão sai de casa de cuecas aos berros, não é?
Completamente fodido.
Pete Não, graças a deus, mas vê-a deitada no meio da estrada com uma garrafa de
vodka -
Kate Gin -
Pete Exato, gin. Desculpa, mas é importante. E, pronto, o meu irmão está aos
berros para ela se pôr na alheta, ela levanta-se e grita apenas. Não foi?
Pete Grita tão alto que acorda os vizinhos todos, acorda o meu sobrinho e agora
estão todos a gritar, o meu irmão de cuecas a gritar com ela, ela cambaleia um bocado
e deixa cair a vodka -
Kate Gin.
Pete Foda-se. Gin. Quero lá saber. Deixa cair o gin. E é gin por todo lado. E
depois. E depois começa a lambê-lo. Vidros e tudo. Sangue na boca. Depois levanta-
se. Vomita em cima do carro dele e vai-se embora
Kate O quê?
Kate Não?
Sam Não.
Kate Porquê?
Kate E depois?
Sam Pensa.
Kate O quê?
Kate Nada.
Sam É.
Kate O quê?
Sam Nada.
Kate Diz-me -
Sam Disse que não é nada. Tudo bem. Está tudo bem.
(...)
Sam Não.
Kate O quê?
Kate Não sei. Nunca pensei nisso. Acho que sim. E tu?
Sam Não.
Kate Não?
Sam Sinto que sou velha. Sinto que já vivi mais do que aquilo que vivi de facto. E
é estranho porque sinto que todos tínhamos quinze anos há cerca de meia hora atrás.
Sabes?
Sam O que é que andamos a fazer, Kate? Sinto-me como se estivéssemos à deriva,
não é? A beber e à deriva. Tudo isto. Não se sente que existe mundo para além
daquela estrada de circunvalação, não é?
Sam Existe.
Kate Onde?
Sam Até ao limite da cidade. Fui a andar. O meu pai tinha caído para o lado. A
televisão ligada. Olhei para ele um bocado e depois pensei na minha irmã. Peguei nela
e levei-a. Levei-a ao colo. Fui até ao limite da cidade. Com ela nos braços. Fui até à
estrada de circunvalação. Pensei atravessá-la e caminhar pelos campos. Continuar a
andar. Sempre a andar até chegar ao mar. Só para olhar para um horizonte azul em vez
de verde e castanho. Era só o que eu queria. Mas cheguei ao limiar da cidade e não
consegui dar um passo. Não sei porquê. Como se os pés estivessem presos à cidade.
Não me conseguia mexer. Sentia-me como um fantasma. Vazia apenas. Não consegui
dar um passo para a frente. Por isso, dei meia volta e voltei para casa. Tornei a pôr a
minha irmã na cama. Desci as escadas. Sentei-me a olhar para o peito do meu pai a
subir e a descer. Acho que conseguia ver o ar a sair e a entrar da sua boca iluminada
pela luz da televisão. Lembro-me de pensar, podia apunhalá-lo na garganta. Várias
vezes. Observar o sangue a escorrer. Depois pegava na minha irmã outra vez, voltava
à estrada da circunvalação e já a conseguia atravessar. Mas não fiz isso. Fui para a
cama, levantei-me no outro dia de manhã, fiz o pequeno-almoço à minha irmã e levei-
a à escola. Já quase passou mais um ano. Quase uma adulta. Um horizonte para tu
atravessares. Não faço ideia em relação a nada disto. Sinto que sou velha há anos.
Posso dizer-te outra coisa e isso?
Kate O quê?
(...)
Pete Queria comprar ketamina. Não tinha dinheiro. Disse que lhe passava um
cheque. Ele não gostou. Deu-me um pontapé nos tomates.
Pete Com quanta força é que têm de te bater nos tomates para deixares de poder
ter filhos?
Pete Foi com força. Parecia que os tomates me iam sair pela boca. Ficavam aqui,
pendurados, eu a olhar para eles, a ver como são provavelmente inúteis. Lá se vão as
minhas hipóteses de ter filhos.
Sam O quê?
Pete Os meus tomates. Se não trabalharem, não faço ideia do que devo fazer, não
é? O que é que sou então? Ter montes de filhos é o meu plano número um, não é? Se
isso desaparecer, fico sem nada. Só eu. Eu gajo chamado Pete. E pronto, caralho.
Sam O que é que aconteceu àquela cena da família gigante cheia de esperança?
Pete Estou mesmo a começar a pensar que não, meu. Quer dizer, há quanto tempo
é que estou vivo? Parece que é desde sempre. Quanto?
Pete Vivo nesta cidade há dezoito anos? Quer dizer que tenho dezoito anos agora?
Pete Quero.
Sam Não?
Pete Não, não fodi. Nem sequer beijei uma pessoa. Desde a tua avó. Cum caraças,
não pode ser, pois não? Acho que pode. E isso foi há anos e anos. Meu deus. O que é
que eu tenho andado a fazer?
Pete Estou a falar a sério. Chega de piadas. O que é que eu estou a fazer?
Kate Acalma-te.
Pete Sim.
Pete Não estou. A minha mente. Aqui dentro. A minha estúpida cabeça. Está a
enlouquecer a toda a força.
Kate De certeza que não foi dos comprimidos todos que tomaste?
Pete Não. Bom. Em parte. Mas isso só está a abrir os meus olhos e mente para ver
como sou estúpido. O que é que vamos fazer?
Kate Eu já te disse.
Pete Exato, pois, não me parece que roubar o carro ao teu pai e fugir seja
realmente a resposta para todos os nossos problemas, não é?
Kate Porquê?
Pete Porque é.
Kate Só isso?
Pete Porque não acredito em ti. Fugir no carro do teu pai. Estás a dizer disparates,
meu.
Sam O quê?
Kate O quê?
Kate O quê?
Pete Acho que não me vou acalmar, Kate. Acho mesmo que não. Sinto-me tão
vazio. Não posso fazer nada. Nem sequer consigo convidar uma miúda para sair.
Foda-se. É suposto eu ser um adulto, não é? Não é o que te dizem? Não dizem?
Pete Então por que é que eu me sinto um puto? Um puto de dezoito anos? Mas é
suposto os miúdos voltarem a pôr-se de pé quando caem, não é? Mas sinto que se cair
me estilhaço num milhão de bocadinhos.
(...)
Kate Vejo.
Sam Porquê?
Kate Eu não sou estúpida. Se não me deixas fazer, então a outra coisa que podes
fazer é vir comigo. Porque pensar em ti sentada naquele apartamento. Dezoito anos a
ver a tinta a escorrer das paredes mesmo à tua frente. Isso não vai manter a tua irmã
em segurança, sabias? Não vai. E eu não vou deixar que faças isso. Vem comigo,
apenas. Para outro sítio qualquer. Para qualquer lado e -
Sam Viste-o?
Kate Não.
Sam Nada?
Kate Não?
Sam De nada?
Kate Nada. Tenho a certeza que está bem. Estou a falar a sério, Sam. Mete-te no
carro comigo. Levo-te para um sítio onde não tens de te preocupar mais. Está bem?
Por favor. Por mim. Por ti.
(...)
Kate De todo.
Pete Não. Pensava em sair todas as manhãs e depois não conseguia. Como se
estivesse preso lá dentro. A ouvir o meu irmão a gritar com o filho. Foi horrível.
Queria pegar nele e fugir, sabes? Desculpa lá ter-me passado, tipo.
Kate Quem?
Pete Foi hoje de manhã. Foi tipo. Que se foda. Não vou ficar mais assim. Fico
maluco. Deitado na cama. Dezoito anos. Preciso de fazer qualquer coisa. Qualquer
coisa. Por isso, convidei. E ela disse que sim. Eu sei que pensas que sou um anormal,
mas gosto mesmo dela, sabes? Espero que ela não pense que sou um idiota. Já foste
ao apartamento para onde a Sam se vai mudar?
Kate Já.
Kate Não.
Pete Porquê?
Kate Porque se parece com o tipo de sítio onde irias viver se quisesses ser
esquecido. E eu não vou deixar que isso aconteça.
(...)
Kate Não.
Sam Pedrada?
Kate Porquê?
Kate O que é que é então? A tua irmã? Estás preocupada com ela? Isso é só uma
desculpa.
Kate Para não seres corajosa e fazeres qualquer coisa com a tua vida. Eu já te disse
isto tantas vezes. Essa problema de merda não é teu. E o filho do teu irmão também
não é teu problema. O filho não é teu, pois não, meu?
Kate Mas o quê? O que é que vocês vão fazer? Vocês os dois? Vão ficar por aqui a
preocuparem-se com eles até eles terem idade suficiente para tomarem conta de si
próprios? O que é que vocês têm? Quase trinta anos na mesma cidade a pensar, que
merda é que eu fiz? Não é maneira de se viver, pois não? As cidades assim são para
serem deixadas. E depois voltarmos para nos lembramos por que nos fomos embora.
Kate De existir.
Kate Quase nada. Tudo o que vocês fazem é queixar-se. Imaginar que dão facadas
nos vossos pais. Isso é saudável, não é, meu?
Kate Por que é que não fazem isso? Vão lá dar-lhe uma facada. Vão lá. Aí ficava
tudo bem, não era?
Kate O quê?
Sam Vai sozinha. Se queres assim tanto. Por que é que precisas de nós?
Kate Porque não faço isto por mim. Faço isto por todos nós. Preciso que venham
comigo, não ia conseguir viver com o pensamento de que vocês ainda estariam a viver
assim. Tu naquele apartamento de merda e tu a levares porrada do teu irmão, atrás de
uma rapariga de que nem sequer gostas.
Kate Não?
Pete Não.
Kate Então, pronto, aí tens. Já nem sequer tens isso. Já não tens nada, não é? Tal
como toda a gente nesta cidade.
Sam Porque há muitas pessoas que pensam que só dizes merda. Porque há montes
de pessoas que provavelmente iriam ficar fartas, por falares assim. Sobre a cidade
delas. Está bem? E o teu pai?
Sam Não?
Pete O quê?
Kate Não é justo, pois não?
Sam O quê?
Kate Como é que eu vou saber, caralho? Para poupar dinheiro? Ou outra coisa?
Terminaram, tal como terminam outra coisa qualquer. Há semanas. E agora ninguém
aparece. E é tudo comigo. Tenho de ir buscar os comprimidos e levá-los. Tenho de lhe
dar de comer. Tenho de o levar à casa de banho. É o meu trabalho? Limpar a merda e
o mijo dele, ouvir os ossos dele a apodrecerem lentamente? Que se foda, obrigada. Eu
não devia estar a fazer isso. Ele devia ter alguém como deve ser a tomar conta dele. E
o pior é que. Querem saber o que é pior? Acho que o odeio.
Pete Odeias?
Pete Isso é -
Kate E não é por causa daquilo que ele tem. Mas por causa daquilo que me faz a
mim. E se eu disser isto, as pessoas vão simplesmente pensar que eu não presto, não
é?
Kate Mas não me importo, sabes? Eu não presto. E estou-me a cagar. Porque eu
mereço melhor que isto. Toda a gente merece, não é? Esta cidade. Dentro desta cidade
que morre. Esta cidade nunca nos vai dar o que merecemos. Quer dizer. Olha para ti.
Kate Porque o quê? Não conseguias. Desapareceu dentro de ti. Essa luta.
Desapareceu.
Sam Não -
Kate Desapareceu.
Sam O quê?
Sam O quê?
Sam Não -
Kate Não faço o quê? Eu não me importo. Prova-me que ainda tens alguma coisa
dentro de ti. Que o teu pai não te tirou isso daí de dentro.
Kate Não bebi nem uma gota. Vamos. Bate-me. Mostra-me que ainda tens alguma
coisa dentro de ti.
Sam Isto é -
Kate Mostra-me. O que é que vais fazer? Trabalhar num quiosque até a tua irmã
tomar conta de si própria? Soa bem, não soa?
Sam Tenho de -
Kate Não tens, não. Tens medo porque estás vazia, por isso, bate-me. Mostra-me
qualquer coisa.
Sam Eu não -
Kate Vamos.
Sam Pára.
Sam Não.
Kate Bate-me.
Pete Digo-lhe o qu -
Sam Eu não -
Sam Não.
Kate Dá.
Sam Não.
Kate Bate-me.
Sam Cala -
Kate Bate-me.
Sam Eu não -
Kate Bate.
Sam Não.
Kate Bate.
Sam Não.
Kate Bate-me.
Sam Só -
Sam Pára -
Kate Bate bate bate bate, bate-me, está bem, bate-me como o teu pai gosta de te
bater a ti e à tua irmã -
Pete Foda-se -
Kate Foda-se. Isso, meu. Isso mesmo. É assim mesmo. Isso, meu. Era o que eu
queria. Foda-se, senti-me mesmo bem.
Kate Ah pois, podias ter tirado o anel, não? Mas não está nada mal. Era o que
precisava. Queres experimentar?
Kate Vês?
Sam Vejo o quê?
Kate Sim, isso e o resto. Tudo o resto. Ouve, Sam. Agora ouve. Estás a ouvir?
Agora vou dizer uma coisa, está bem? Vou dizer-te uma coisa.
Sam O quê?
Kate Eu amo-te, está bem? Amo-te tanto que até dói. E não tens de resolver nada
daquilo que se passa contigo, com o teu pai e com a tua irmã. Se ficares aqui, acabas
como o teu pai, sabias? Cheia de raiva a gritar com o nada. Por isso, olha para mim.
Olha-me nos olhos e vê que faço isto porque te amo mais do que alguma pessoa
alguma vez pôde amar e não consigo pensar em mais nada senão nisso. Não consigo
pensar em ir embora sem ti, porque ele sempre teve razão desde que disse o mesmo há
anos e anos atrás. Casa é onde vocês os dois estão. Não são os tijolos e os parques e
estradas e as lojas. É onde estamos juntos. Está bem? O sangue que me escorre pela
cara. Pertence-te. E amo-te ainda mais por teres feito isso. Sabes? Porque mostra que
não és um fantasma. És real. E amo-te tanto que acho que vou explodir. Podia. Podia
explodir com o amor que tenho por vocês os dois. Sinto que me podia preencher.
Encher-me até ficar enjoada. Até ficar enjoada com isso. Até vomitar todo o amor pela
boca e ele ficar espalhado por todos nós. Nadar no meio dele. Nadar no meio de todo
o amor que nos rodeia. Só eu e tu e tu como pequenas ilhas no meio dele. Acho que
nós nos devíamos meter dentro do carro e ir a qualquer lado. Bem longe do teu pai e
do teu irmão e de tudo o resto. Está bem? Vamos. A qualquer lado. Não me interessa.
Só ir ao horizonte e ver o que há depois, porque, seja o que for, deve ser melhor do
que isto aqui, não é? Não é? Não é? Por isso, vamos. Vamos agora, só -
Kate Vamos só -
Kate E vêem isto? Entre o céu e a terra. O horizonte. É só um espaço sem nada lá
dentro.
Três
Longa pausa.
Pausa.
Dave Fizeste um convite a ti própria para vir beber um copo?
Kate Não.
Dave Não?
Dave Exato.
Pausa.
Dave Não pareces muito mais velha. Estás com má cara só.
Kate Tu pareces -
Longa pausa.
Dave Quem?
Tempo.
Dave Vires aqui? Sabes que eu venho aqui beber, não sabes?
(...)
Alex Não.
Kate Pensei que alguma coisa mudasse. Mas não mudou. A cidade parece. Parece
na mesma.
Alex Queres alguma coisa? Normalmente, as pessoas compram uma coisa e depois
vão-se embora, sabias? É o que se faz quando se vai às compras, não é?
Kate Ando à procura de trabalho.
Alex Mesmo?
Pausa.
Alex O quê?
Kate Tu -
Tempo.
Estás a fingir?
(...)
Dave O quê?
Kate Sim.
Dave Não.
Kate Porquê?
Dave Sabia que andavas por aqui. Vi-te a andar na estrada da circunvalação.
Parecias um fantasma.
Pausa.
Kate Voltei.
Dave Mas deve ser fixe, acho. Já não tens de ouvir o teu pai a morrer. Não que isso
te preocupasse muito antigamente.
Kate Porquê?
(...)
Alex Estou a fingir?
Kate Sim.
Alex Não.
Pausa.
Tu - estás -
Tempo.
Alex Sim.
Kate Preciso de qualquer coisa que impeça que a minha cabeça ande às voltas,
sabes? E eu - eu só -
Kate Pois, eu sei, mas eu conheço-me e tu sabes como eu também sou, eu podia
simplesmente gamar e quando me tentasses impedir eu explodia simplesmente. Mas
não devia pedir. Porque não bebo desde. E eu sou - Há. Há algum tempo que estou
sóbria, mas são só os teus olhos.
Quando olho para os teus olhos, pele e cabelo e para o modo como estás aí parada, és
muito parecida com ela.
(...)
Kate Ah é?
Kate Só isso?
Dave Não sei o que queres mais. Foi há que tempos. A maior parte das pessoas já
se esqueceu. Continuou com a tua vida. Ninguém ficou à espera de um pedaço de
merda como tu.
Dave O quê?
Kate Não presto? É isso? Sempre pensaste isso sobre mim, não foi? O que é que
eu sou mais?
Kate O quê?
Kate De que é?
Dave Estás a tentar irritar-me. Como costumavas fazer. Vomitar no meu carro.
Lamber o chão. Acordar o meu filho. Tentar irritar-me como costumavas fazer quando
vinhas cá bater à porta à procura do meu irmão. Eu sei o que tu queres.
Dave Queres que eu te bata. Eu sei. Mas não vou fazer isso. Não vou fazer isso.
Dave Sabes?
Kate Acho que queres. E até acho que devias e tudo. Dar-me um murro na cara.
Arrancar-me uns dentes. Fazer-me sangrar. Acho que me queres fazer isso por causa
do que eu fiz.
Kate Porquê?
Dave Porque queres que eu faça isso para sentires alguma coisa. E eu não te vou
dar isso.
Kate Porquê?
(...)
Kate O quê?
Alex A falar com um fantasma. Eu não sou ela. Eu sou eu. E estou viva. E ela
morreu. Porque tu a mataste num acidente de carro, porque estavas bêbada e
completamente fodida da cabeça com as drogas.
Kate Odeias-me?
Alex Não.
Longa pausa.
Kate Ela costumava andar contigo num saco desportivo. Cheio de coisas fofinhas.
Para ficares confortável. Queria manter-te em segurança. Não queria que ouvisses os
teus pais a gritar um com o outro. Lembras-te disso?
Alex Não.
Pausa. Kate faz que sim com a cabeça. Não consegue olhar para mais lado nenhum a
não ser os seus pés. Está tensa.
Kate Acho que preciso que me digas que me odeias. Fazes isso por mim?
Alex Não.
Kate Perdoas-me?
Alex Não.
Alex Não.
Kate Então?
Alex Não sinto nada por ti. Só isso. Não te vou ajudar. Sabes? Não vou fazer isso
por ti.
(...)
Dave Seja o que for que esteja dentro dessa tua mente toda fodida por um acidente
de carro. Seja o que for que esteja às voltas aí dentro. É o que tu mereces. Ser
constantemente assombrada pelo fantasma do meu irmão e da outra que mataste.
Como é que ela se chamava?
Tempo.
Kate Sam.
Dave Isso mesmo, Sam. Samantha. A irmã dela trabalha na loja, não é? É igual a
ela. Na verdade, até é engraçado.
Kate O quê?
Tempo.
Dave Ah sim? Por que é que ele iria querer fazer isso?
Dave Até eu o odiava. Era um zero à esquerda. Para pessoa, era mesmo uma
desculpa inútil. Ainda bem que o mataste, libertou bastante espaço lá em casa. Queres
tentar outra vez?
Pausa. Kate olha para Dave. Olham um para o outro durante um bocado.
Kate De onde é que isso veio?
Dave O quê?
Kate Essa. Essa raiva. Esse vazio dentro de ti. Dentro de todos nós. Dentro de
mim.
Kate É só aqui? Está nos tijolos de cidades iguais a esta? Nas rachas das ruas e
passeios? Na ferrugem dos reclames de lojas fechadas? Nas ervas daninhas que
crescem nas ruínas dos bares? É aí que está? Cresce nessas coisas todas e depois entra
nas nossas cabeças? Porque está dentro de ti, não está? E de mim. E eu só queria fugir
dela. E levá-los comigo também. Mas estraguei tudo. Só isso. Não quis fazer aquilo
que fiz. Fui estúpida. Eu sei disso. Sei. Mas agora é isto. Agora só tenho este vazio. E
não quero sentir mais isto. Não me quero sentir vazia. Por isso, bate-me.
Dave Não.
Dave Não.
Kate Então é só -
Só -
(...)
Alex Não.
Estou só -
Estou -
Estou só.
Cansada.
E não sei como fazer para impedir que a minha cabeça pare de andar à roda. É o que
acontece. Por causa do que fiz. Gira à volta deles. Deles e das esperanças que eles
tinham dentro das suas cabeças. O Pete e a sua família. A Sam e o seu apartamento.
Essas esperanças simples. Onde é que elas estão agora? Consegues dizer-me? Ainda
estão suspensas no ar, na estrada onde morreram? Aquelas pequenas esperanças que
se derramam da tua cabeça. Tudo por causa de mim. Porque tinha medo de ficar
sozinha. Porque não conseguia tomar conta do meu pai. E não tinha coragem
suficiente. Essas esperanças. Onde -
Kate abre os olhos. Está muito próximo de começar a chorar mas contém-se. Tenta
olhar para Alex.
Kate Como é que se faz? Como é que nos reconstruimos? É que eu não sei fazer
isso.
Tu és parecida com ela. E ele também. É como se fosse assombrada por eles. É como
se andasse às voltas, sempre ao lado dos fantasmas dentro da minha cabeça. Como é
que te reconstróis? Quando bocados de ti próprio se espalham dentro da tua cabeça?
Gostava que alguém me dissesse como fazer. E eu não páro de fazer isto. De andar às
voltas. E é sempre a mesma coisa. Ninguém me vai dizer como é que vou parar.
É estranho, não é? Como pensas que as coisas se vão passar como tu pensas. E depois
basta um instante. Só um. Um instante tirado de todos os instantes que há no universo
que te acontece a ti. E depois desaparece. E agora ando em círculos à volta desse
instante. Ele não me larga.
Kate olha para Alex. Desvia o olhar. As lágrimas estão mesmo ali atrás dos seus
olhos.
Pausa.
Kate olha para baixo. Fecha os olhos com força. E mantém-nos fechados.
(...)
Quatro
Will Quem és tu? Nunca te vi por aqui. É um bocado marado estares aqui sentada
no parque a meio da noite. Quase me caguei todo quando te vi. Pensava que eras um
fantasma. Quase me caguei nas cuecas. Ainda bem que não caguei. Sempre achei que
me aconteceria isso se visse um fantasma. Via um e era tipo, caguei-me. E depois caía
para o lado. Mas não és. És?
Kate O quê?
Will Estava só a perguntar se eras um fantasma e isso? Por favor, diz-me que não
és, eu estava a brincar quando disse que me cagava todo, se fosses um fantasma a
sério, não seria piada nenhuma, eu ia literalmente cagar-me todo, e é uma coisa que eu
não quero.
Liv Ignora-o, ele está na merda. O que é que andas aqui a fazer? Os baloiços
estão ferrugentos. Não funcionam.
Will E o que é que estás aqui a fazer? Se me tivesse ido embora, não voltava. Um
buraco de merda.
Will Há montes de outros sítios para se estar, não? Com a tua idade e tudo. Vai a
qualquer sítio. Vai para o mar, meu. Isso é que era mesmo bom. Vai para o mar. Rema
um bocado. Ia ser o máximo. Estou mortinho para dar uma remadela no mar. Nada
bate isso, não é?
Kate O quê?
Liv Como é que. Te. Chamas? Não é uma pergunta difícil, pois não, meu?
Tempo.
Kate Kate.
Liv Kate?
Tempo.
Liv Não vás ao Carvalho, está cheio de anormais. Aquele sítio é mesmo uma
caverna de anormais. Onde é que tens andado ?
Kate O quê?
Liv Não disseste que voltaste? Quer dizer que estiveste noutro sítio?
Tempo.
Kate Na prisão.
Will Na prisão?
Will Por que sim? Não se vai para a prisão porque sim, não é? Tens de ter feito
alguma coisa, não é?
Tempo.
Will Ah sim?
Tempo.
Tempo.
Kate O quê?
Will Perguntei-te se estavas bem. Isso é mesmo triste. Tens saudades deles?
Kate faz que sim com a cabeça.
Liv Pois, pouca sorte. Como é aquela coisa que as pessoas dizem? Cinc’ándar? É
o que acontece todos os anos na minha escola. Ouço falar nisso. Uns miúdos que
morreram num acidente de carro. E desaparecem a seguir. É triste. Mas mesmo assim.
Toda a gente se embebeda e se põe a conduzir aqui. Para cidades destas. Não há
muitos outros sítios, a não ser olhar para um horizonte que não fica muito longe. É
realmente uma pena. Eu acho que eles só precisam de um bocado de atenção. Como
todos nós, às vezes. Mas o que é que há mais para se fazer? Foi nessa altura que
ficaste com essa cicatriz na cara?
Liv estende a mão e toca na cicatriz na cara de Kate. Kate olha apenas para os
olhos de Liv. Olham uma para o outro por um bocado.
Kate Não.
Pausa.
Kate faz que sim com a cabeça. Liv larga a mão dela. Will e Liv olham um para o
outro. Uma pausa.
Kate O quê?
Liv Tudo? Já que estás sentada num parque a meio da noite e isso. Não me
parece lá muito divertido. Quer dizer, só temos quinze anos. Não nos importamos de
ouvir. E estamos sem nada para fazer, aborrecidos.
Will Não sei. Se quiseres. Eu ia contar-lhe agora a história do que aconteceu com
a avó de um amigo meu, mas a tua parece mais interessante.
Tempo.
Liv Talvez queiramos. Não nos importamos. Por que é que havíamos de não
querer ouvir?
Longa pausa.
Kate Acho que não vão querer saber de mim quando isto acabar. Se eu vos contar
o que fiz. Não vão querer saber mais de mim. Ou gostar de mim. Mas aqui. Aqui à
vossa frente. Nesta cidade morta em que cresci. Não consigo pensar em mais nada.
Anda tudo em círculos dentro da minha cabeça. Não me larga. Por isso, se vos contar,
talvez me consiga libertar. Se disser tudo em voz alta outra vez, talvez me solte.
Portanto, acho que vou fazer isso.
Provavelmente não vão gostar de mim. Mas, talvez gostem. Seja como for, não me
interessa.
Cinco
Pete De onde?
Fim.