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Śūraṅgama Sūtra

Sobre o Respeito aos Textos Sagrados


Na tradição budista, entende-se que os sutras contêm os ensinamentos dos budas e grandes mestres
iluminados. Como guias para o caminho do despertar, os sutras são tratados com reverência. É costume
manter os volumes dos sutras em um local limpo, acima ou separados de obras seculares; manipulá-los
com respeito; e lê-los apenas ao nos sentarmos eretos ou em pé.

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Prefácio
Quando o Mestre do Tripitaka Hsüan Hua se mudou para São Francisco para ensinar o Darma aos
ocidentais, seu primeiro projeto foi explicar o Śūraṅgama Sūtra em detalhes. Durante o verão de
1968, ele ofereceu um retiro de noventa dias focado em meditação, mas com foco também no
Śūraṅgama Sūtra.
Iniciando em 1980, a Sociedade para a Tradução de Textos Budistas publicou as palestras do
Mestre Hua daquela sessão de verão, e pela primeira vez um manual de meditação Mahāyāna
completo foi disponibilizado para os leitores ocidentais. Traduções anteriores em inglês do
Śūraṅgama eram incompletas e frequentemente não tinham explicações. A apresentação do
Mestre Hua colocava o Sutra no coração da vida contemplativa, abrindo desta forma uma estrada
para o verdadeiro cultivo do Darma por aqueles que desejavam seguir o caminho do Buda. Da
perspectiva do Mestre Hua, o Śūraṅgama não é obscuro ou intimidador, nem é algo elevado
demais além do alcance. Ele explicou o texto como um kalyānamītra, um bom e sábio amigo
espiritual. Ao fazer isso, ele não esteve sozinho. Ao longo dos séculos na China, Japão, Coreia e
Vietnã, professores de meditação e monges, como o Mestre Han Shan da dinastia Ming, o Mestre
Yuanying da era da República, e o próprio professor do Mestre Hua, Mestre Xuyun respeitaram e
endossaram as instruções do Śūraṅgama Sūtra e o utilizaram como uma medida para o samādhi
apropriado.
Ao longo dos anos, quando preciso de conselhos para o cultivo, eu me volto ao Śūraṅgama Sūtra
por informações confiáveis. Eu vou para os “Cinquenta Estados Demoníacos da Mente” (Parte 10)
para verificar estados estranhos na meditação. Eu vou para os “Vinte e Cinco Sábios” (Parte 6)
para encontrar encorajamento no caminho através das vozes dos bodisatvas. Eu vou para as
“Quatro Instruções Claras e Definitivas sobre a Pureza” (Parte 7) para clareza sobre a interação
com o mundo; por exemplo, ali eu encontro as razões do Buda para defender uma dieta não
prejudicial, baseada em plantas.
Mantendo a perspectiva do passado, Mestre Hua enfatizou a interação de vida real entre o Buda e
seus alunos. Sou atraída para a voz do Buda como ela aparece no Sutra. Seu tom é tanto sábio
quanto amoroso em todas as situações. Por exemplo, um nobre rei conversa com o Buda sobre
sua infância às margens do rio Ganges. Depois de responder as hábeis perguntas do Buda, o rei
experimenta a serenidade de sua natureza intrínseca e perde seu medo da morte.
O rei ouve o Darma e gradualmente compreende; mas mesmo antes dessa conversa, uma jovem
cortesã encontra o Buda e imediatamente desperta. Ela se apaixonou por Ānanda, mas ao ouvir o
Darma, ela corrige suas prioridades, abandona a busca pelo prazer, e descobre o samādhi e a
sabedoria. Ela se torna uma Arhat imediatamente, antes de Ānanda. Sua história ilustra a ausência
de tendência de gênero ou de classe social no ensinamento do Buda encontrado nos sutras
Mahāyāna.
No diálogo entre o Buda e seu primo Ānanda, encontramos a estrutura da narrativa e a expressão
completa da gama de habilidades de ensino do Buda. O Buda pacientemente guia Ānanda através
da paisagem de sua mente conforme ele progride do aprendizado intelectual para a experiência
efetiva.
O ensinamento do Buda no Sutra se tornou vivo para mim porque como um jovem monge no
monastério da Montanha Dourada, eu observei o Mestre Hua responder com a mesma medida de
bondade infalível à variedade de fiéis devotos chineses, professores de universidade, e hippies
buscadores da verdade que passavam pelas portas do monastério. Cada um recebia a medida
apropriada de água do Darma para nutrir seus brotos de bodhi.

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Cerca de trinta anos se passaram desde que a Sociedade para a Tradução de Textos Budistas
publicou pela primeira vez o Śūraṅgama Sūtra em inglês. Esta nova tradução acrescenta
ferramentas para a investigação escolástica, incluindo notas de rodapé muito úteis, um
tratamento mais sistemático dos termos técnicos, e uma prosa lúcida que se beneficiou de três
décadas de prática. A devoção dos discípulos que trabalharam no Śūraṅgama Sūtra (os quais, devo
pontuar, trabalharam como voluntários não remunerados) se apresenta em cada página. Esses
indivíduos – monásticos e leigos igualmente – seguem o modelo do Mestre Hua ao manterem viva
esta joia de sabedoria e tornando-a disponível para nosso uso. O Darma chegou ao ocidente há
pouco tempo, mas o surgimento desta nova edição mostra o aprofundamento de suas raízes.
Eu congratulo os muitos voluntários da Sociedade para a Tradução de Textos Budistas que
ofereceram tão generosamente seu tempo e esforço. Possam sua sabedoria e virtude ser plenas e
continuar a beneficiar todos os seres sencientes de modo que todos possamos deixar para trás as
limitações dos sentidos e nós do mundo comum, e experienciar a descrição do Buda de como as
coisas são na raiz. Lá, no reino brilhante da Fonte de Tesouros do Tathagata, imbuídos pelo
espírito majestoso do Buda, possamos nós aperfeiçoar as três práticas e cessar as flutuações de
energia e realizar a paciência no estado de mente em que objetos mentais não surgem.
Rev. Heng Sure, Ph.D.
Presidente, Associação Budista do Reino do Darma
Diretor, Monastério Budista de Berkeley
Fevereiro de 2009

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Introdução
1. Visão Geral
Por mais de mil anos o Śūraṅgama Sūtra – o “Sutra do Indestrutível”1 – tem sido preservado com
grande estima nos países budistas Mahāyāna do leste e sudeste asiático. Na China este Sutra tem
sido considerado, em geral, tão popular quanto o Sūtra do Lótus2, o Avataṁsaka Sūtra3, o
Mahāyāna Mahāparinirvāṇa Sūtra4, o Sūtra do Coração5, e o Sūtra do Diamante6. O encanto do
Śūraṅgama Sūtra se encontra no amplo escopo de seus ensinamentos e na profundidade e clareza
de suas prescrições para a prática contemplativa. Devido à sua riqueza de instruções teóricas e
práticas para a vida espiritual, ele era frequentemente o primeiro grande texto a ser estudado
pelos monges recentemente ordenados, especialmente na escola Chan. Muitos mestres
iluminados e ilustres eruditos monásticos escreveram comentários exegéticos sobre ele7. Mesmo
nos tempos atuais, tanto para os clérigos quanto para os leigos na tradição budista chinesa, o
Śūraṅgama Sūtra continua sendo objeto de dedicado estudo, recitação e memorização.
De modo mais específico, o Śūraṅgama Sūtra tem sido considerado tradicionalmente como um
manual completo e prático para a prática espiritual que conduzirá à iluminação. Ele oferece
instruções sobre a correta compreensão da natureza de Buda, que é o potencial em todos os seres
para se tornarem budas. O Sutra explica como e por que esta verdadeira natureza está oculta em
nossa experiência comum de nós mesmos e do mundo, e nos mostra como podemos revelar esta
natureza e reconhecê-la como sendo nossa verdadeira mente. O Sutra também explica que a
integridade pessoal e pureza de conduta são pré-requisitos essenciais para o despertar espiritual.
Ele apresenta os princípios gerais da meditação budista, introduz diversos métodos de meditação
específicos, e recomenda quais métodos são os mais efetivos e fáceis de praticar. Além disso, uma
porção considerável do Sutra foi reservada para orientações sobre o discernimento de quais
entendimentos e práticas são corretos e quais se desviam para aquilo que é errado. Ele explica
como nossas próprias ações intencionais, quer físicas, verbais ou mentais, resultam diretamente
em nossas experiências, incluindo nossos renascimentos futuros nos diversos níveis de existência,
tanto humanos quanto não-humanos. Ele mostra como a ação correta pode também conduzir a
momentos de despertar iniciais e, eventualmente, à iluminação perfeita dos budas.
A maior parte do Sutra está dedicada às instruções do Buda Śākyamuni ao monge Ānanda, cuja
história pessoal oferece um contexto narrativo para todo o discurso. Acompanhado por diversos
de seus discípulos iluminados, o Buda mostra a Ānanda como voltar a atenção de suas faculdades
sensoriais para dentro, de modo a alcançar um estado de meditação profundamente focado

1
O Sutra (T. 945) é geralmente conhecido em chinês como Dafoding shoulengyanjing, 大 佛 頂 首 楞 嚴 經, frequentemente
abreviado para Lengyanjing, 楞 嚴 經; o título completo é Dafoding rulai miyin xiuzheng liaoyi zhu pusa wanheng shoulengyan jing
大 佛 頂 如 來 密 因 修 證 了 義 諸 菩 薩 萬 行 首 楞 嚴 經. A palavra sânscrita śūraṅgama significa de modo aproximado
“indestrutível”; ela combina as palavras śūram (grandemente, absolutamente) e gama (durável, sólido). O texto em chinês
translitera as duas palavras sânscritas como shou leng yan 首 楞 嚴. Este Sutra não deve ser confundido com o Śūraṅgamasamādhi-
sūtra (T. 642), traduzido por Étienne Lamotte como ‘La concentration de la marche h ro que’ (Śūraṃgamasamādhisūtra) (Paris
Institut belge des hautes tudes chinoises, 1 6 ). Esta tradução francesa foi traduzida para o inglês por Sarah Boin-Webb
(Richmond, Reino Unido: Curzon Press, 1998).
2
Sâns.: Saddharmapundarika Sūtra, chinês: Miaofa lianhua jing 妙 法 蓮 華 經.
3
Chinês: Huayan jing 華 嚴 經.
4
Chinês: Da Niepan jing 大 涅 槃 經.
5
Sâns.: Hṛdaya Sūtra, chinês: Xin jing 心 經.
6
Sâns.: Vajracchedikā Sūtra, chinês: Jingang jing 金 剛 經.
7
Entre os comentaristas incluem-se o mestre da dinastia Ming tardia Hanshan Deqing, e mais recentemente os Veneráveis Mestres
Xuyun, Yuanying, e Hsüan Hua (Xuanhua). Pelo menos 127 comentários chineses foram escritos sobre o Sutra entre 767 D.C. e
1968. Uma lista dos comentários está disponível online em
http://www.online.sfsu.edu/%7Erone/Buddhism/Shurangama/Ron%20Epstein%20Diss%201975%20SS%20Commentary%20List.pdf

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conhecido como samādhi8. Ele diz a Ānanda que ao praticar uma forma específica de samādhi, o
Śūraṅgama Samādhi, ele e qualquer outra pessoa que tamb m mantiver a pureza da conduta e
desenvolver a compreensão correta poderão conquistar um despertar igual ao experienciado por
todos os budas.
No coração do Sutra está o Śūraṅgama Mantra. O Sutra promete que a prática da recitação deste
mantra, no contexto de outras práticas ensinadas no Sutra, pode trazer sucesso na eliminação de
quaisquer obstáculos internos ou externos que possam se interpor no caminho do progresso
espiritual. Mesmo hoje, monges e monjas na tradição budista chinesa, assim como muitos
praticantes leigos, recitam o mantra a cada manhã como um aspecto essencial da prática diária.

2. O Estilo Literário do Sutra


Apesar de sua importância na tradição budista, e apesar de seu valor intrínseco como uma obra-
prima da literatura espiritual, o Śūraṅgama Sūtra continua sendo pouco conhecido no ocidente. A
razão para uma relativa obscuridade do Sutra fora da Ásia se deve, em parte, a aspectos do
próprio texto chinês. Em primeiro lugar, nenhum original indiano do Śūraṅgama Sūtra sobreviveu.
Ele está preservado apenas em sua tradução do oitavo século para o chinês 9, e esta tradução,
apesar de ser amplamente apreciada entre os leitores chineses por sua elegância literária,
também é bem conhecida por ser especialmente difícil de compreender. O texto é expresso em
uma sucessão de frases de quatro caracteres10, no que constitui uma prosa metrificada – um
formato que imbui todo o discurso com um ritmo vigoroso e imponente. Mas para manter a
métrica de quatro caracteres os tradutores chineses foram forçados a omitir caracteres
necessários para o significado, e isto resultou com certa frequência em um estilo de expressão
conciso ao extremo. Para essas passagens, a tradição exegética é essencial para a compreensão.
Além disso, os tradutores chineses recorreram frequentemente a caracteres raros, permitiram-se
muitas vezes ambiguidades de gramática e uso de palavras, fizeram alusões a doutrinas sem as
explicarem, e mantiveram muitos termos técnicos em um sânscrito transliterado. O resultado é de
que mesmo eruditos e devotados leitores chineses ficam, às vezes, confusos sobre o significado do
texto. Então, não é surpreendente que relativamente poucas tentativas tenham sido feitas para
produzir mesmo uma tradução parcial para o inglês11.
Ao realizar esta nova tradução para o inglês do texto completo do Śūraṅgama Sūtra, a prioridade
número um dos tradutores foi a de assegurar que as dificuldades do texto fossem reduzidas o

8
Ver abaixo “Uma Breve Explicação de Alguns Termos T cnicos Importantes”.
9
O ano da tradução está registrado no colofão como 705. Uma tradução tibetana completa foi realizada a partir da tradução
chinesa durante a dinastia Qing.
10
O padrão em quatro caracteres é quebrado, ocasionalmente, para acomodar nomes próprios; e três conjuntos de versos são
pronunciados no Sutra, um em linhas de sete caracteres (Parte 3.6 desta tradução) e dois em linhas de cinco caracteres (Partes 5.3
e 6.3).
11
Antes deste volume atual, a única tradução completa para o inglês havia sido a da Sociedade para a Tradução de Textos Budistas,
com o comentário completo do Venerável Mestre Hsüan Hua, publicada pela primeira vez em uma edição em oito volumes entre
1977 e 1986. Uma edição revisada foi publicada entre 2000 e 2005 como ‘The Shurangama Sūtra with Commentary by the
Venerable Master Hsüan Hua’, trand. Buddhist Text Translation Society (Burlingame, CA: Buddhist Text Translation Society, 2000–
05). A primeira tradução para o inglês, de apenas quatro dos dez pergaminhos, foi realizada por Samuel Beal e incluída em ‘A
Catena of Buddhist Scriptures from the Chinese’ (Londres: Trubner, 1871), 284– 369. Uma parte reduzida do primeiro pergaminho
do Sutra foi traduzida pelo Reverendo Joseph Edkins como o primeiro capítulo do seu ‘Chinese Buddhism: A Volume of Sketches,
Historical, Descriptive, and Critical’, 2ª ed. (Londres: Trubner, 1893), 289– 301. Em 1938, junto com o Bhikshu Wai-tao, Dwight
Godard incluiu uma tradução aproximada de cerca de um terço do Sutra em seu ‘A Buddhist Bible’ (Nova Iorque: Dutton, 1938),
108–275. A maior parte do texto foi traduzida por Lu K'uan Yü (Charles Luk), juntamente com uma tradução abreviada do
comentário do mestre Chan Hanshan Deqing, como ‘The Śūraṅgama Sūtra’ (Londres ider, 1 66). Lamentavelmente, ao omitir o
Śūraṅgama Mantra e a seção que descreve a prática adequada do mantra, a edição de Luk deixa de fora o coração do Sutra. (Esta
seção é a parte 8 desta tradução).

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máximo possível para o leitor ocidental. Com esse propósito, nos esforçamos por buscar clareza,
transparência e naturalidade de expressão. Nos dispusemos a sacrificar qualquer tentativa de
emular a complexa elegância literária do chinês sempre que nos pareceu que ela pudesse
interferir na colocação simples do significado em inglês. Nós traduzimos muitos dos termos
técnicos sânscritos que os tradutores chineses deixaram em sânscrito. Também interpolamos
títulos de capítulos e subcapítulos, e em alguns casos inserimos numerações para marcar a
sucessão de tópicos na argumentação do Sutra12. Além do mais, disponibilizamos o comentário
explicativo interlinear sempre que julgamos ser útil para esclarecer o significado do texto. Para
este fim, selecionamos excertos de um comentário que foi redigido a partir de palestras oferecidas
em 1968 pelo Venerável Mestre Hsüan Hua (1918-1995)13, um eminente professor e monge chinês
que foi pioneiro no oferecimento da tradição budista de exegese escritural ao público ocidental.
Por fim, adicionamos notas de rodapé explicativas para suplementar esta introdução e o
comentário. As notas de rodapé também oferecem referências ocasionais a outros comentários.
Na maioria dos casos, sem fazer anotações especiais, seguimos as interpretações oferecidas em
seu comentário pelo Venerável Mestre Hsüan Hua.
Felizmente as dificuldades impostas pelas escolhas retóricas dos tradutores chineses são, em certa
medida, mitigadas pela forma como o Sutra se desenrola. Boa parte da discussão sobre o samādhi
é apresentada na forma de um diálogo dramático entre o Buda Śākyamuni e seu jovem primo e
atendente Ānanda. Para o leitor ocidental o formato dialógico do Sutra sugere a grosso modo uma
similaridade com os diálogos de Platão. Mas a maneira que Platão emprega para revelar a verdade
através dos astutos interrogatórios de Sócrates com seus infelizes interlocutores é, na verdade,
muito diferente do padrão que encontramos no Śūraṅgama Sūtra. Na maior parte da primeira
parte do Sutra tanto o Buda quanto Ānanda fazem uso do silogismo, como ele posteriormente
veio a ser empregado na tradição de argumentação lógica budista14. Ao construir um silogismo o
mero raciocínio não era considerado suficiente. Era necessário estabelecer a verdade de uma
proposição ao citar, como uma situação ou exemplo, alguma evidência da proposição em análise
na experiência ordinária da vida diária. A presença desses exemplos é um aspecto significativo do
estilo distintivo do Sutra. À medida que o argumento progride ponto a ponto, o leitor recebe uma
série de vislumbres sobre as rotinas diárias da comunidade monástica e da vida de cidadãos
comuns da cidade vizinha Śrāvastī15. Podemos ler sobre os monges sentados com suas tigelas de
mendicantes, ocupados comendo o alimento com seus dedos, à maneira indiana. Ouvimos sobre
chefes de família cavando poços para novas habitações e curadores locais segurando tigelas para a
lua cheia para coletar orvalho que misturariam em suas poções herbais. Encontramos um monge
que passou sua vida consertando buracos em estradas públicas, e um rei que se desespera por
estar envelhecendo. Por mais abstrato ou sutil que o discurso possa às vezes parecer, ele é sempre
colorido com um sentido de tempo e lugar, com as visões e sons e pessoas do norte da Índia como
ele era dois mil e quinhentos anos atrás.

3. Uma Sinopse do Sutra


Prólogo: A Ocasião para o Ensinamento
Na abertura do Sutra, Ānanda está sozinho na estrada, fazendo a tradicional ronda de mendicância
monástica. Ao passar sem saber por uma casa de cortesãs, ele é confundido pela recitação de um

12
Edições chinesas do texto também interpolam títulos de seção. Todos os títulos de seção e sub-seção nesta tradução foram
acrescentados ao texto pelos tradutores. Não há títulos de seção no texto original chinês.
13
Ver o apêndice.
14
Para saber mais sobre o silogismo ver a seção 9 da introdução abaixo.
15
A capital do antigo reino de Kosala, na planície do Ganges, onde hoje se encontra Uttar Pradesh.

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encantamento de uma jovem mulher. Ela tenta seduzi-lo e ele logo está prestes a quebrar seu
voto de celibato. O Buda Śākyamuni sente à distância o perigo que seu primo passa. Com isso ele
faz com que um buda apareça sentado sobre sua cabeça, e este buda começa a recitar o
Śūraṅgama Mantra.16 O Buda Śākyamuni envia o Bodisatva Mañjuśrī17 para usar os poderes do
mantra de modo a derrotar o encantamento da jovem cortesã. O Bodisatva Mañjuśrī então
retorna para o monast rio acompanhado por Ānanda e pela cortesã. Em meio à assembleia de
monges e uma multidão de seguidores leigos, Ānanda agora se vê face a face com o Buda.
Profundamente mortificado por seu próprio comportamento, Ānanda solicita instruções para
evitar erros futuros. Esta a “solicitação pelo Darma” com a qual a maior parte dos discursos do
Buda começa.

Parte I: A Natureza e Localização da Mente


Ao responder a solicitação de seu primo, o Buda deixa claro que o erro de Ānanda não se encontra
apenas em colocar em risco sua prática de celibato. Igualmente séria é a frouxidão de sua prática
de meditação e de samādhi. Devido à frouxidão, seu foco mental não foi firme o bastante para
resistir à influência do encantamento da cortesã. É esta falha que o Buda abordará neste
ensinamento. Ele se dedica primeiramente a mostrar a Ānanda o que poderia estar envolvido na
transcendência do mundo condicionado – isto é, na transcendência do fluxo de impressões
sensoriais que tomamos como sendo nosso ambiente externo e o fluxo de pensamentos internos
que cuidamos como se fosse a característica de nossa identidade.
Para abordar esse tópico, o Buda começa pedindo a Ānanda para considerar onde sua mente está
localizada. Ānanda oferece a resposta evidente de que sua mente pode ser encontrada em seu
corpo. O Buda, com seu domínio superior de argumentação lógica, rapidamente derruba esta
suposição largamente presumida e outras seis possibilidades que Ānanda oferece. Ānanda
deixado com a desconcertante conclusão de que sua mente não está nem dentro de seu corpo,
nem fora, nem em algum ponto entre os dois, nem em qualquer outro lugar. Então, o Buda
harmoniza a confusão de seu primo ao afirmar que há, fundamentalmente, dois tipos de mente –
primeiro, a mente comum da qual estamos conscientes e que está emaranhada, vida após vida, na
armadilha de percepções ilusórias e atividade mental deludida; e segundo, a imortal mente
genuína, que é nossa real natureza e que é idêntica à mente completamente desperta de todos os
budas. O Buda afirma que é devido ao fato de os seres terem se afastado de suas próprias mentes
genuínas que eles estão presos ao ciclo de mortes e renascimentos.

Parte II: A Natureza da Consciência Visual


Agora que a existência de uma mente genuína foi estabelecida, o Buda prossegue para explicar em
um diálogo com Ānanda uma forma de praticar o samādhi que conduz a essa mente. O Buda
começa trazendo nossa atenção para o simples fato de que estamos conscientes. Tomando a
consciência visual como o paradigma, ele examina a consciência através de uma série de vinhetas
ilustrativas, diversas das quais envolvem outros interlocutores. Ele demonstra que, apesar de as
coisas se moverem para dentro e para fora do campo de nossa consciência visual, a essência de
nossa consciência em si mesma não se move. Nossa consciência está repleta de objetos, mas ela
mesma não é um objeto. Mesmo a cegueira, falando de forma estrita, não significa que não haja
consciência visual alguma. Pergunte a qualquer pessoa cega o que ela vê, o Buda sugere a Ānanda,

16
O mantra é apresentado de modo completo na parte 8 do texto.
17
Na tradição Mahāyāna o bodisatva Mañjuśrī corporifica a sabedoria.

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e a pessoa cega responderá que vê a escuridão. Em resumo, a essência de nossa consciência visual
é imutável. Ela não surge e desaparece em resposta a objetos visíveis que entram em seu escopo.
O mesmo pode ser dito de nossa consciência dos sons, cheiros, sabores, objetos tangíveis, e
também de nossa consciência dos pensamentos em nossas mentes. O Buda explica
posteriormente que a capacidade essencial de ouvir nunca está ausente, não importando se há
som ou silêncio.18 A implicação lógica é de que, dado que nossas diversas consciências existem de
forma independente de seus objetos, deveria ser possível desentrelaçar essas consciências de seus
objetos. Então estaremos livres para redirecionar nossa atenção para dentro, separando-nos do
mundo condicionado, e estabelecendo-nos no mais elevado nível de samādhi, isto , o Śūraṅgama
Samādhi.

Parte III: A Matriz do Tathagata (Daquele Que Assim Veio)19


A questão permanece: por que desejaríamos parar de prestar atenção ao mundo condicionado? A
resposta é dupla: primeiro, nosso envolvimento com esse mundo está carregado de insatisfação e
sofrimento; e segundo, este mundo não é real. É este segundo ponto que o Buda agora analisa. Ele
começa declarando:
Fundamentalmente tudo que vem e que vai, que surge e que cessa, está dentro da
verdadeira natureza da Matriz do Tathagata, que é a compreensão extraordinária e perene
– a imutável, extraordinária talidade da realidade que tudo permeia.20
Ele, então, se põe a demonstrar a verdade desta proposição através de uma série de silogismos.
Ele demonstra caso a caso que cada um dos elementos do mundo físico e cada um dos elementos
de nosso aparelho sensorial é, fundamentalmente, uma ilusão. Mas ao mesmo tempo essas
entidades ilusórias e experiências surgem daquilo que é real. Essa matriz a partir da qual tudo é
produzido é a Matriz do Tathagata. Ela é idêntica à nossa mente genuína e idêntica também à
natureza fundamental do universo e à mente de todos os budas. Ela está além da concatenação
psicológica que chamamos de eu e além da miragem de dados sensoriais que chamamos de
mundo.

Parte IV: O Surgimento do Mundo da Ilusão


Agora Pūrṇamaitrāyaṇiputra, um discípulo experiente, apresenta suas próprias questões. Se, como
a lógica do Buda acabou de demonstrar, os elementos primários do mundo psicofísico e os
elementos constituintes da percepção são ilusórios na forma como os experimentamos, apesar de
serem fundamentalmente idênticos à Matriz do Tathagata, de que modo eles surgem como
entidades separadas e ilusórias? Como esquecemos nossa base na verdadeira realidade e nos
perdemos no labirinto da ilusão? No diálogo com Pūrṇamaitrāyaṇiputra, o Buda explica que tudo
flui de nosso erro inicial em dividir a realidade em eu e outro. Este processo inicia com aquilo que
o Buda chama de “adicionar compreensão a compreensão”, e conduz a uma divisão daquilo que
originalmente era uma consciência unificada, em um observador que está separado daquilo que é
observado. A nossa unidade fundamental com a Matriz do Tathagata é obscurecida, assim como
um céu brilhante é obscurecido pelas nuvens. Para enfatizar como é desnecessária a divisão entre
eu e outro, o Buda conta uma parábola. Um aldeão chamado Yajñadatta corre por toda a sua vila
procurando por sua cabeça, que ele loucamente pensa que perdeu. Sua cabeça, é claro, esteve

18
Parte 5.3.
19
Tathāgata-garbha.
20
Parte 3.1.

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sobre seus ombros todo o tempo, assim como nossa mente genuína, que esquecemos, está
sempre acessível dentro de nós.

Parte V: Instruções para a Prática


Agora o Buda construiu a base conceitual para a instrução sobre o Śūraṅgama Samādhi. As
faculdades sensoriais – olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo e cognição – são obstáculos que nos
afastam de nosso lar na verdadeira realidade. Mas se a direção da atenção dessas faculdades for
revertida, de forma que elas foquem internamente em vez de externamente, então elas se tornam
o meio para nosso retorno à realidade. O Buda relembra Ānanda de que libertar a mente de seu
envolvimento com os objetos percebidos é possível porque nossa consciência do mundo é
independente do mundo que ela percebe. Mais uma vez ele demonstra essa independência
instruindo seu filho, āhula, a soar um sino. O Buda demonstra que quando o som do sino
desaparece, nossa capacidade de ouvir permanece intacta, visto que estamos conscientes
primeiro do silêncio e depois do som do sino outra vez. O Buda diz:
Tudo que você precisa é não permitir que sua atenção se distraia com os doze atributos
condicionados de som e silêncio, contato e separação, sabor e ausência de sabor, abertura
e obstáculo, surgimento e morte, e luz e escuridão. Em seguida, retire uma faculdade ao
desconectá-la de seus objetos. Redirecione esta faculdade para dentro de modo que ela
possa retornar àquilo que é original e verdadeiro. Então ela irradiará a luz da compreensão
original. Esta luz brilhante brilhará e retirará as outras cinco faculdades até que estejam
completamente livres.21

Parte VI: Vinte e Cinco Sábios


Ānanda agora pede ao Buda para instruí-lo a respeito de qual das faculdades de percepção ele
deveria focar em sua prática. Ele espera que o Buda lhe transmitirá uma resposta privadamente
em uma transmissão mente a mente, mas em vez disso o Buda devolve a questão de Ānanda para
a audiência. Ele pede aos sábios que estão presentes para se voluntariarem na explicação de como
sua prática espiritual lhes permitiu acessar o samādhi e, então, atravessar a ilusão alcançando a
iluminação. Em resposta, vinte e cinco sábios se levantam um por um em meio à assembleia para
relatar suas histórias de iluminação. Dezessete dos sábios falam sobre práticas envolvendo um dos
elementos constituintes da percepção, e sete outros sábios falam de sua iluminação através da
contemplação de um dos elementos primários.
A mais extensa dessas narrativas é oferecida pelo vigésimo quinto sábio, o Bodisatva Que Ouve os
Lamentos do Mundo.22 A prática que levou este bodisatva à iluminação focava na reversão da
atenção da faculdade do ouvido. Tendo relatado sua história, o Bodisatva Que Ouve os Lamentos
do Mundo discute os poderes que sua prática de audição lhe trouxe. Ele especifica como pode
satisfazer os desejos de trinta e dois tipos de seres humanos e não-humanos, como ele protege
pessoas em situações perigosas de forma que não tenham nada a temer, e como ele aparece em
diversas formas para ensinar os seres e protegê-los.
O Buda, então, pede ao Bodhisattva Mañjuśrī que recomende a Ānanda um dos vinte e cinco
caminhos para a iluminação que foram descritos pelos vinte e cinco sábios. Falando em versos,
Mañjuśrī endossa a prática da audição interna como descrita pelo Bodisatva Que Ouve os

21
Parte 5.2.
22
Sâns.: Avalokiteśvara, chinês: Guanshiyin 觀世音. Maiores explicações sobre este nome são dadas na Parte 6, nota 48.

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Lamentos do Mundo. Esta prática, Mañjuśrī conclui, a prática mais adequada para Ānanda e para
os seres do futuro.23

Parte VII: Quatro Instruções Claras e Definitivas sobre a Pureza


Em seguida o Buda descreve um segundo aspecto da prática do samādhi. everter a atenção da
faculdade do ouvido não é o suficiente. Não é possível progredir adequadamente em qualquer
prática espiritual se o comportamento moral não for correto. O Buda insiste na pureza em quatro
esferas de conduta, que na tradição budista são indicadas pelos quatro primeiros dos cinco
preceitos morais: não devemos matar, roubar, manter conduta sexual errônea, ou falar falsidades
ou de uma forma que possa causar sofrimento aos outros.24 Aqui o Buda explica que para praticar
o samādhi da forma correta não o bastante se abster de matar, roubar, conduta sexual errônea e
fala mentirosa; deve-se apagar quaisquer pensamentos de tais ações da mente.

Parte VIII: O Śūraṅgama Mantra


A pedido de Ānanda o Buda explica em grandes detalhes como estabelecer um “local para o
despertar”25 dedicado à pratica do Śūraṅgama Mantra, e então ele recita o mantra para que todos
na assembleia o ouçam. Em seguida ele explica como a recitação do mantra, especialmente de cor,
assim como atos mais simples de devoção ao mantra, podem trazer benefícios para o praticante,
incluindo a proteção de prejuízos e um progresso mais veloz na prática espiritual. No final
numerosos seres na assembleia de ouvintes se levantam para fazer o voto de proteger qualquer
pessoa que se dedique à pratica do Śūraṅgama Mantra.

Parte IX: Níveis de Existência


Nesta seção o Buda atende o desejo de Ānanda de aprender sobre os níveis de existência.
Primeiro o Buda divide os seres em doze classes organizadas segundo a maneira de seu
nascimento. Então, ele brevemente resume sessenta estágios pelos quais os bodisatvas passam
em seu caminho para o despertar completo dos budas. Por fim, ele descreve mais extensamente
os sofrimentos dos seres conscritos aos infernos, e então mais brevemente seis outros destinos:
fantasmas, animais, humanos, mestres ascetas26, deuses em seus vinte e oito níveis celestiais, e
por último os asuras.27 Ao descrever os estágios do bodisatva, o Buda oferece a Ānanda um mapa
para seguir em sua prática futura. Ao descrever os infernos e os outros destinos, ele alerta seus
ouvintes dos perigos de cometer atos intencionais que conduzam a consequências negativas. Aqui
novamente ele se refere às proibições que enfatizou repetidamente neste texto: não matar, não
roubar, não cometer ação sexual errônea, e não falar de forma enganosa.

Parte X: Cinquenta Estados Mentais Demoníacos

23
A passagem sobre os poderes do Bodisatva Que Ouve os Lamentos do Mundo relembra um relato similar no célebre capítulo 25
do Sutra do Lótus, “Sobre o Portão Universal”. O Śūraṅgama Sūtra, ao contrário do Sutra do Lótus, explica como o bodisatva
conquistou esses poderes.
24
O quinto desses princípios budistas fundamentais é abster-se de substâncias intoxicantes.
25
Sâns.: bodhimaṇḍa, chinês: dao chang 道場.
26
Sâns.: ṛṣi, chinês: xian 仙. Ver Parte 9.10.
27
Seres viciados em violência. Ver Parte 9.12.

CEBB 10 / 28
Nesta seção final do sutra o Buda novamente fala sem que o ensinamento tenha sido solicitado,
assim como fez na Parte III. Aqui ele se dedica a alertar os praticantes a manterem a guarda diante
de cinquenta estados mentais demoníacos que podem surgir no período em que o praticante
rompe seus apegos aos cinco agregados.28 Dez estados mentais são descritos para cada um dos
cinco agregados. O Buda explica que se os praticantes desconsiderarem esses estados como sendo
sem importância, os estados desaparecerão por si mesmos. Mas se os praticantes caírem sob a
influência desses estados, eles podem ficar paralisados. Eles podem até mesmo encontrar a
insanidade ou possessão demoníaca, ou simplesmente se desviar do Caminho. O praticante
também pode conduzir outras pessoas para o erro. Ao descrever essas pessoas cuja prática seguiu
um caminho errôneo, esta seção também serve como um alerta contra a influência de charlatões
espirituais e seus cultos. O alerta é tão relevante hoje quanto era quando foi colocado.
Para cada um desses cinquenta estados mentais uma vívida descrição é oferecida sobre os
fenômenos mentais experimentados pelo praticante. Em essência, o que é apresentado é um
método único de catálogo e classificação de experiências espirituais, assim como uma indicação de
quais causas conduzem a tais experiências. Apesar de os cinquenta estados mentais descritos não
serem de modo algum uma lista exaustiva de todos os possíveis estados, o texto oferece uma
estrutura para a classificação de toda a experiência espiritual, tanto budista quanto não budista.
Por fim, em diálogo com Ānanda o Buda descreve a imensa quantidade de mérito que é
conquistada por aqueles que ensinam aos outros o Śūraṅgama Sūtra e o Śūraṅgama Mantra.

4. Significado do Título
Śūraṅgama Sūtra um título abreviado. Um título mais longo, mas ainda parcial em uso difundido
o “Sūtra sobre o Śūraṅgama Mantra Que É Pronunciado acima da Coroa da Cabeça do Grandioso
Buda.” O título completo o “Sūtra sobre o Śūraṅgama Mantra Que É Pronunciado acima da
Coroa da Cabeça do Grandioso Buda, e sobre a Base Oculta das Miríades de Práticas do Bodisatva
dos Tathagatas Que Conduzem à Sua Verificação da Verdade Última.” O título completo mescla
dois dos títulos que o próprio Buda sugere em uma breve passagem perto do final do Sutra.29
Na tradição budista um sutra um discurso que cont m os ensinamentos do Buda Śākyamuni ou
os ensinamentos de outros budas ou seres iluminados.
Um buda é um ser completamente iluminado que desenvolveu perfeita sabedoria e compaixão
universal. O buda específico cujos ensinamentos foram oferecidos para o benefício dos seres deste
planeta e desta era, e que viveu no norte da Índia durante o sexto e quinto séculos A.C. 30, foi o
Príncipe Siddhārtha Gautama, que ao alcançar a iluminação completa se tornou o Buda
Śākyamuni. Ele , às vezes, citado como o “buda histórico”. Foi ele quem ofereceu os
ensinamentos contidos neste Sutra.
“Grandioso” descreve a verdadeira natureza de um buda – não de seu corpo físico, mas de sua
mente completamente desperta, que preenche todo o universo. Este aspecto de um buda é, às
vezes, representado simbolicamente como o Buda Vairocana, que o “Grandioso Buda” referido
no título.
A “Base Oculta das Práticas do Bodisatva” o Śūraṅgama Mantra e o Śūraṅgama Samādhi.

28
Sâns.: skandha, chinês: yun 蘊. Uma explicação sobre os cinco agregados – forma, sensação-percepção, cognição, formações
mentais e consciência – é apresentada abaixo.
29
Parte 9.5.
30
As datas da vida do Buda Śākyamuni são tema de controv rsia entre os estudiosos.

CEBB 11 / 28
“Tathagata” um título honorífico usado para se dirigir a um buda.
A palavra “Bodisatva” pode ser traduzida como “ser que busca o despertar”. Os bodisatvas se
devotam ao despertar de todos os seres, ao mesmo tempo em que se engajam nas “Miríades de
Práticas” que conduzirão ao seu próprio despertar completo.
Quando alguém se torna um buda, que é o objetivo das miríades de práticas do Bodisatva, pode
verificar através da própria experiência a natureza da verdade última.

5. Níveis de Ensinamento
O Buda ensinou em dois níveis diferentes: ele ensinou o Darma imutável e verdadeiro que se
aplica a todas as circunstâncias em todos os tempos, e ele ensinou o Darma provisório, que
modelou às necessidades de sua audiência e adequou ao contexto e às circunstâncias. O
Śūraṅgama Sūtra foi ensinado em resposta ao erro desastroso de julgamento e de
comportamento que Ānanda quase cometeu em sua ronda de mendicância, deixando clara a
necessidade de que ele desenvolvesse o poder do samādhi, conforme relatado no prólogo do
Sutra.
Os ensinamentos provisórios do Buda variam porque suas audiências variavam em suas
aspirações, em seu nível de realização, em sua prática de meditação, e em sua capacidade de
entendimento. Alguns dos registros de seus ensinamentos contêm diversos níveis de instrução no
mesmo documento, enquanto outros registros se limitam a um único tipo de ensinamento. Nem
todos os seus ensinamentos são necessariamente apropriados para cada pessoa em todos os
níveis.
Além do mais, durante uma trajetória de quase cinquenta anos, à medida que as audiências
amadureceram em sua prática, seus ensinamentos progrediram gradualmente de introdutórios a
avançados. Em alguns casos os ensinamentos posteriores criticam substancialmente os anteriores,
substituindo ensinamentos provisórios por definitivos. Tais críticas são uma característica deste
Sutra, assim como críticas de ensinamentos não-budistas que existiam na Índia durante a época do
Buda e antes.
A tradição budista sustenta que depois do nirvana do Buda o nível geral de entendimento e de
prática dos ensinamentos budistas lentamente declinou. O primeiro grande sinal desse declínio
ocorreu cerca de quinhentos anos depois do seu nirvana; este foi o cisma que dividiu o budismo
em Mahāyāna (“Grande Veículo”) ou budismo do norte, que posteriormente se espalhou pela
China, Coreia, Java, Vietnã e Tibete; e o Theravada (“Ensinamentos dos Anciãos”) ou budismo do
sul. Esta forma sulina se espalhou pelo Sri Lanka e sudeste asiático. O próprio Mahāyāna se dividiu
posteriormente em diversas sub-escolas, entre elas a escola da Vacuidade ((Mādhyamaka); a
escola Consciências-Apenas (Yogācāra); os ensinamentos Terra Pura; os ensinamentos da Matriz
do Tathagata (Tathāgatagarbha); e os ensinamentos esotéricos (denominados Vajrayāna no
Tibete). O Śūraṅgama Sūtra apresenta ensinamentos que estão de acordo com todas essas
escolas, mas coloca ênfase especial nos ensinamentos da Matriz do Tathagata e nos ensinamentos
esotéricos, os quais floresciam na Índia antes de serem introduzidos na China no final do sétimo e
oitavo séculos.
Outro enfoque apresentado nos comentários tradicionais para um entendimento dos níveis de
ensinamento no Śūraṅgama Sūtra enumera e explica quatro portais sucessivos de investigação e
compreensão: 1) a investigação intelectual sobre o significado do texto do Sutra; 2) meditação
sobre o surgimento dos fenômenos a partir de nossa própria criação de distinções, conforme
elaborado pela escola Consciência-Apenas; 3) um enfoque numinoso que apreende diretamente a
CEBB 12 / 28
verdadeira natureza dos fenômenos, que é o fato de eles serem vazios de qualquer essência real e
não possuírem existência independente, conforme elaborado pela escola da Vacuidade; 4) a
realização da inter-relação desimpedida entre númeno e fenômeno, conforme os ensinamentos
da Matriz do Tathagata e posteriormente elaborados na escola chinesa Huayan.

6. As Razões para o Ensinamento


Os comentaristas tradicionais identificaram seis motivações que são abordadas pelos
ensinamentos do Buda no Śūraṅgama Sūtra. Elas podem ser sumarizadas da seguinte forma 31
1) A primeira a importância de equilibrar o aprendizado e a prática de meditação. Ānanda era
considerado o discípulo do Buda com a memória mais aguçada de todos. Mas ele fez a suposição
falsa de que poderia confiar apenas em sua inteligência e em sua relação especial com o Buda;
como resultado, negligenciou sua prática. Consequentemente ele não tinha um samādhi suficiente
para rebater o encantamento que a cortesã lançou sobre ele.
2) A segunda é o perigo dos charlatões que posam como professores e cujas visões errôneas são
uma consequência de seu próprio desequilíbrio mental. O Sutra condena aqueles que se
autodenominam professores espirituais e que se gabam de avançadas realizações espirituais, mas
que violam as regras do comportamento moral. O Buda nos alerta sobre essas pessoas em três
pontos do texto: na Parte VII e Parte IX, na qual ele discute a pureza, e na Parte X, na qual ele
descreve os estados demoníacos associados com os cinco agregados.
3) A terceira é a necessidade de uma compreensão adequada da diferença entre a nossa mente
genuína e a consciência discriminativa, visto que esta compreensão é um pré-requisito para a
prática correta. Visto que aquilo que as pessoas geralmente consideram sua mente não é sua
mente genuína, a parte inicial do Sutra sistematicamente explora pressuposições errôneas sobre a
mente de modo a revelar a natureza da mente genuína.
4) A quarta é de que a compreensão correta deve ser seguida pela prática de meditação que está
enraizada na mente genuína. Uma vez que nos comprometemos a seguir um caminho para o
despertar, precisamos aprender a prática necessária para progredir. Isto inclui aprender as
técnicas de meditação adequadas, escolhendo aquelas práticas de meditação que estão
enraizadas em nosso ser mais profundo, e evitando as práticas de meditação que não conduzirão
ao despertar completo. Nas palavras do Venerável Mestre Hsüan Hua:
‘Há muitos portais para o Darma na prática do samādhi, e há outros samādhis não
ensinados no budismo. Mas ao cultivar o samādhi, se você começar em uma direção que é
errônea pela espessura de um cabelo, acabará se afastando da sua meta por mil milhas.
Portanto, é necessário cultivar o samādhi adequado... As pessoas que tomam um caminho
errôneo não desenvolvem o samādhi adequado por trabalharem entre os galhos em vez de
se dedicarem às raízes. Elas trabalham neste corpo, que é uma concha falsa. Elas tomam a
mente pensante ordinária, a sexta consciência, como sendo a verdadeira mente. Como
resultado, sua prática lhes traz um pouco de experiência de imobilidade, mas aquilo que
experienciam não é genuíno. Elas se esforçam para evitar que pensamentos surjam, mas
não arrancaram a raiz do seu pensamento deludido, e assim não conseguem colocar um

31
Esta seção se baseia na discussão sobre esses seis pontos pelo Venerável Mestre Hsüan Hua em sua introdução a The
Shurangama Sūtra, vol. 1, págs. 24–36.

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fim para morte e renascimento. É como tentar evitar que a grama cresça ao colocar uma
pedra sobre ela. Quando a pedra é removida a grama volta a crescer.32’
5) A quinta é de que, de modo a praticar a meditação corretamente, é preciso saber como se livrar
das distorções nos processos mentais. Técnicas de meditação adequadas, uma vez aprendidas,
devem ser usadas para sistematicamente eliminar tanto os processos cognitivos grosseiros quanto
os sutis que são obstáculos para o progresso no Caminho. Essas atividades mentais são
frequentemente comparadas a poeira sobre o espelho de nossa mente genuína. O Sutra nos
exorta a assumir o compromisso de purificar nossas mentes.
6) A sexta é de que, de modo a ensinar os outros, não devemos somente realizar a verdadeira
natureza de nossas mentes, mas também aprender os diversos meios hábeis necessários para
ajudar os outros ao longo do Caminho. Os ensinamentos provisórios se utilizam de meios hábeis
para atrair as pessoas para o Darma.

7. Correspondência de Ensinamentos no Sutra com as Escolas do Budismo Mahāyāna


Diversos ensinamentos essenciais Mahāyāna representados no Śūraṅgama Sūtra foram
posteriormente sistematizados por escolas específicas. O conhecimento sobre essas escolas pode,
portanto, ser útil para alcançar um entendimento mais claro dos ensinamentos do Sutra,
especialmente quando o Sutra faz menção a um ensinamento sem explicá-lo em detalhes. Por esta
razão um breve resumo será oferecido aqui sobre os ensinamentos relevantes da escola
Consciência Apenas (Yogācāra), a escola Matriz do Tathagata (Tathāgata-garbha) e a escola
Esotérica.

A Escola Consciência Apenas


Apesar de a doutrina das oito consciências da escola Consciência Apenas do budismo Mahāyāna
não ser ensinada explicitamente no Śūraṅgama Sūtra, comentaristas tradicionais acharam esta
doutrina útil para explicar o significado do texto.
A escola Consciência Apenas descreve a mente como um sistema de sete consciências ativas
(vijñāna), todas as quais se desenvolvem a partir de uma oitava, a “consciência depósito”. Esta
última passiva e cont m os potenciais, ou “sementes” (bija) para o desenvolvimento e atividade
das primeiras sete consciências. A sétima consciência, ou “consciência da individualidade”
(manas), contém o sentido inato de eu. A sexta consciência contém o sentido aprendido de eu e é
um centro de percepções e processamento cognitivo. Ela faz distinções entre os dados enviados
para ela a partir das cinco primeiras consciências, que são as consciências de percepção dos olhos,
ouvidos, nariz, língua e corpo. A sexta consciência também faz distinções sobre os objetos
cognitivos, tais como pensamentos e emoções.
Quando as primeiras sete consciências foram emanadas a partir da oitava consciência, são
geralmente experienciadas como separadas e distintas, mas fundamentalmente essas faculdades
permanecem como uma só.
As oito consciências respondem pela gama completa de processos mentais. Neste sistema não há
necessidade das noções de uma essência pessoal real, permanente, ou de fenômenos reais e
permanentes externos e internos. Todos os reinos efetivos e potenciais de experiência estão
contidos nas transformações da consciência. Eles aparecem como manifestações da mente

32
The Shurangama Sūtra, vol. 1, págs. 41–2.

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discriminativa. O que realmente existe é a consciência apenas, ou seja, a oitava consciência
purificada.
Apesar disso, devido ao nosso apego e crença na realidade da essência pessoal e na realidade dos
fenômenos que percebemos e entendemos ser o mundo externo, a verdadeira natureza do
mundo e de nós mesmos é obscurecida, de tal forma que estamos totalmente inconscientes dela.

Os Ensinamentos da Matriz do Tathagata


Estes ensinamentos focam a natureza da realidade última e o potencial que todos os seres
possuem para despertar para essa realidade. Através da prática budista correta, podemos
manifestar a partir de nossos úteros espirituais33 o Buda em estado embrionário que pode ser
encontrado em cada ser senciente. As oito consciências descritas na doutrina Yogācāra são
consideradas reais apenas provisoriamente. Em última instância elas são ilusórias, como o Buda
explica na Parte III. Nosso mundo de ilusão surge de Tathāgata-garbha, a Matriz do Tathagata
(outros termos equivalentes incluem natureza búdica, corpo do Darma, e mente genuína). Essa
realidade espiritual essencial é inerente a todos os seres, e o trabalho da prática espiritual é
remover as impurezas ilusórias que a encobrem. A escola da Matriz do Tathagata enfatiza a
presença dessa essência espiritual em todas as criaturas sencientes, e disso surgiu uma ênfase no
vegetarianismo, que aparece neste Sutra na Parte VII. Na parte IV o Buda explica como o mundo
ilusório de fenômenos físicos e mentais – eu, você, e as coisas – vem a surgir a partir da primeira
manifestação de ignorância na mente iluminada. Essa explicação, que está de acordo com os
ensinamentos de Tathāgata-garbha, não pretende ser histórica ou temporal. É mais uma
exposição das camadas de nossa experiência ou consciência. A implicação é de que estamos
vivendo na superfície de nossa consciência. Aquilo de que estamos realmente conscientes é
meramente a superfície de uma mente mais profunda ou consciência potencial. Mesmo que
possamos estar inteiramente satisfeitos em viver nessa superfície, temos o potencial de
aprofundar nossa consciência. A prática budista se relaciona com esse aprofundamento, que
envolve uma reversão da direção de nossa consciência, afastando-a do mundo da ilusão e
dirigindo-a para nossa mente original, que é idêntica à mente de todos os budas.

Ensinamentos Esotéricos
Os ensinamentos esot ricos, tamb m conhecidos como tantra budista ou Vajrayāna, incluem
diversos métodos de meditação e outras práticas que são, normalmente, transmitidas de
professor a aluno em transmissões formais e rituais de iniciação. Eles incluem a recitação de
mantras, às vezes em harmonia com mudras (posições rituais das mãos) e o uso de implementos
rituais, e também ensinamentos sobre visualização de deidades, geração ritual de espaços
sagrados (mandalas), e a realização de oferendas elaboradas. O capítulo central do Śūraṅgama
Sūtra (Part VIII) descreve algumas dessas práticas em detalhes. A pureza moral é um pré-requisito
essencial para todas as práticas esotéricas, como é o caso em todas as práticas budistas, e o Sutra
contém fortes alertas sobre os perigos da impureza moral, que se tornaram muito comuns em
muitos dos círculos budistas indianos iniciais.34 Desde essa época a falha em reconhecer a

33
Tathāgata-garbha significa literalmente “o útero Daquele Que Assim Veio”, a realidade última da qual todas as aparências
surgem. A palavra inglesa “matrix” (matriz) utilizada aqui em seu sentido próprio de “útero” e “aquilo que dá forma, origem ou
fundação a algo envolvido ou inserido nele” (Webster’s New International Dictionary, 2ª ed., 1961).
34
Ver Ronald M. Davidson, Indian Esoteric Buddhism: A Social History of the Tantric Movement (Budismo Indiano Esotérico: Uma
História Social do Movimento Tântrico) (Nova Iorque: Columbia University Press, 2002).

CEBB 15 / 28
necessidade da pureza moral tem sido uma armadilha frequente para um grande número de
professores e alunos dos ensinamentos esotéricos, tanto na Ásia quanto no Ocidente.

8. O Silogismo e o Tetralema
Muitos leitores podem ficar surpresos pela forte presença de argumentações lógicas que
encontrarão na primeira metade do Śūraṅgama Sūtra. De fato, o budismo e outras religiões
indianas desenvolveram sistemas altamente elaborados de lógica formal. Neste Sutra, tanto o
Buda quanto Ānanda fazem uso de silogismos que são colocados como provas de proposições.
Esses silogismos estão de acordo amplamente com o sistema de inferência lógica desenvolvido
pelos lógicos budistas na Índia e conhecido como hetu-vidyā.35 Ocasionalmente também, pode-se
encontrar o exemplo da negação quádrupla (o tetralema).
O Silogismo
Segundo a antiga lógica formal Indiana,36 a verdade de uma proposição pode ser demonstrada
através de um silogismo em cinco passos:
1) Uma proposição (pratijñā) é afirmada;
2) A razão (hetu) pela qual a proposição é defendida como sendo verdadeira é apresentada;
3) Um ou mais exemplos (dṛṣṭānta ou udāharaṇa) da proposição que podem ser encontrados na
vida comum são oferecidos;
4) Esses exemplos são aplicados (upanaya) à proposição, mostrando que eles demonstram a sua
verdade;
5) A conclusão (nigamana) reitera a proposição, agora demonstrada.
Esses cinco passos foram posteriormente reduzidos a três, deixando de lado os últimos dois dos
cinco:
1) Proposição,
2) Razão,
3) Exemplos:
a) exemplo positivo,
b) exemplo negativo.
No Śūraṅgama Sūtra, o Buda usa elementos tanto dos procedimentos em três passos quanto em
cinco passos. O que, talvez, seja mais impressionante para um leitor ocidental é a importância que
é dada aos exemplos. De fato, casos específicos de uma proposição, contanto que eles sejam
aplicados de forma precisa, são considerados demonstrativos da proposição em geral. Portanto, o
debate se concentra na questão de um exemplo ser, de fato, um caso aplicável, ou seja, se a
verdade da proposição pode ser inferida a partir dele.37 Esse padrão de inferência por exemplos é
um element retórico dominante na primeira metade do Sutra. O seguinte exemplo, extraído do
início da Parte II, pode ser útil para entender as muitas ocorrências desse padrão:

35
Chinês: yin ming 因明, esclarecimento das causas.
36
Ver, por exemplo, S. S. Barlingay, A Modern Introduction to Buddhist Logic (Uma Introdução Moderna à Lógica Budista) (Delhi:
National Publishing House, 1965), 107 ff.
37
Ver Barlingay, 144 ff.

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1) Proposição: é a mente que vê, não os olhos (neste texto este passo é implícito em vez de
afirmado);
2) Razão: nossa consciência visual está ativa mesmo se nada é visto;
3) Exemplo extraído da vida comum: Nas palavras do Buda: “Se você perguntasse a um homem
cego na rua, ‘Você vê algo?’, sem dúvidas ele responderia ‘Tudo o que vejo a escuridão.’”
4) Aplicação do exemplo: “ eflita sobre o que isso pode significar. Apesar de o homem cego ver
apenas escuridão, sua consciência visual está intacta.”
5) Conclusão: “Os olhos por si sós simplesmente revelam objetos visíveis; é a mente que vê, não os
olhos.”38

A Negação Quádrupla (Tetralema)


Na lógica da Índia antiga, afirmações podiam ser confirmadas, negadas, nem confirmadas nem
negadas, e tanto confirmadas quanto negadas. O fundador da escola da Vacuidade (Mādhyamaka)
do budismo, o bodisatva Nāgārjuna, popularizou a negação lógica dessas quatro possibilidades
como uma forma de demonstrar a vacuidade de qualquer coisa que possa ser fabricada como um
fenômeno ou essência real e permanente, ou como um atributo de um fenômeno ou essência real
e permanente. Nessa negação quádrupla, às vezes chamada de “tetralema,” (catuṣkoṭi), uma
proposição é determinada como não sendo nem verdadeira, nem não verdadeira, nem tanto
verdadeira quanto não verdadeira, nem nem verdadeira nem não verdadeira. Essa formula pode
servir como um lembrete em nossa prática de que tudo que percebemos é vazio de qualquer
atributo, e assim nada definitivo pode ser afirmado sobre o mundo e os conteúdos da mente. Há
númerosos exemplos do tetralema neste Sutra.

9. Apoios para a Leitura


A Tradição de Comentários
Nas tradições de sabedoria asiáticas, os textos sagrados são geralmente estudados com o apoio de
comentários que foram escritos ou falados por professores espirituais estimados. O padrão usual é
de que cada passagem do texto é seguida por um comentário interpretativo, às vezes bastante
longo. Os Sutras budistas não são exceção. Sobre o Śūraṅgama Sūtra em particular floresceu uma
rica tradição de comentários. Conforme mencionado acima39, uma pesquisa encontrou referência
a 127 comentários chineses sobre este Sutra, incluindo 59 na dinastia Ming apenas, quando o
Sutra foi especialmente popular. Para quem estuda este Sutra com seriedade, as exegeses dos
comentários são essenciais. Os tradutores desta versão consultaram em detalhes dois comentários
recentes em especial: o do Venerável Mestre Hsüan Hua e o do Venerável Mestre Yuanying (1877–
1953)40. Além deles, os tradutores também utilizaram o comentário da dinastia Ming do Venerável
Mestre Jiaoguang Zhenjian (cerca de 1600)41 e em alguns pontos os comentários dos celebrados

38
Parte 2.1.
39
Ver nota 7.
40
Yuanying 圓瑛, Shoulengyan jing jiangyi 大佛頂首楞嚴經講義 (Shanghai: Shanghai shi fo jiao xie hui 上海市佛敎協會, 1933).
41
Zhenjian 眞鑑, Dafoding shoulengyan jing zhengmai shu 大佛頂首楞嚴經正脈疏 (Taipé: Taiwan shang wu yin shu guan 臺灣
商務 印書館, 1968).

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Mestres da dinastia Ming, Hanshan Deqing (1546–1623)42 do Chan, e
da dinastia Qing, Venerável Xufa.43

A Dedicação aos Sutras como Prática Espiritual


Na tradição budista, entende-se que os sutras contêm os ensinamentos dos budas e dos grandes
mestres iluminados. Eles funcionam como guias no Caminho para a iluminação. Por essas razões,
são tratados com reverência. O costume é de manter os sutras em lugares limpos, acima ou
separados de textos seculares; manipulá-los com respeito; e lê-los apenas quando sentados eretos
ou em pé – nunca deitados ou em uma posição desleixada. Os sutras – como os textos sagrados
em outras tradições religiosas – podem ser eles mesmos o foco de uma prática espiritual. Alguns
praticantes leem um texto em particular, tal como o Śūraṅgama Sūtra, por um período de tempo a
cada dia. Outros memorizam um texto e o recitam. Outra forma ainda é a de se prostrar diante
dele; a pessoa se curva diante de cada palavra ou caracter por sua vez até que tenha se curvado ao
longo de todo o texto. Tais práticas podem desenvolver a fé, enfraquecer as amarras à essência
pessoal, e conduzir a transformações pessoais e crescimento espiritual.

Os Sutras como Guias Práticos


O Buda não deveria ser visto como um filósofo que tentou desenvolver um Sistema filosófico
sistemático, completo com sua epistemologia, metafísica e cosmologia. Nem ele se dedicou a um
pensamento científico embrionário. Os seus ensinamentos não especulam sobre a natureza do
que parece para nós ser o mundo externo. Em vez disso, seu objetivo foi o de ensinar os seres a
compreenderem sua experiência de tal forma que fossem capazes de eliminar o sofrimento e a
qualidade fundamentalmente insatisfatória de suas vidas. Ao lermos nos sutras afirmações que
parecem ser proposições filosóficas abstratas ou excursões pela neurociência ou psicologia
cognitiva, deveríamos entender que o propósito e o significado dessas afirmações devem ser
compreendidos e avaliados à luz de sua utilidade para o avanço na prática espiritual. Em uma
celébre passagem dos Discursos de Extensão Intermediária do Buda, ele compara a si mesmo e os
seus ensinamentos a um cirurgião que remove uma flecha envenenada do corpo de um homem
para salvar sua vida. O cirurgião instrui o homem sobre como cuidar de sua ferida para que ela
rapidamente seja curada, mas ele não lhe dá outras informações médicas que não sejam
relevantes para sua cura.
Suponham que um homem estivesse ferido por uma flecha bastante envenenada, e seus
amigos e companheiros, seu clã e parentes, trouxessem um cirurgião. O cirurgião faria uma
incisão ao redor da ferida aberta com uma faca, e então procuraria a flecha com um bisturi,
então ele extrairia a flecha e limparia o líquido venenoso sem deixar qualquer vestígio dele
para trás. Sabendo que nada do veneno havia sido deixado no corpo, ele diria: “Bom
homem, a flecha foi retirada de seu corpo; o líquido venenoso foi limpo sem deixar qualquer
resquício para trás, e agora ele não pode prejudicá-lo. Coma apenas alimentos adequados;
não coma alimentos inadequados ou a ferida poderia supurar. De tempos em tempos lave a
ferida e besunte sua abertura, para que o pus e o sangue não encubram a abertura da

42
Hanshan 憨山, Dafoding shoulengyan jing tongyi (Nanjing: Jinling ke jing chu 金陵刻處, 1894).
43
Xufa 續法, Shoulengyan jing guandingshu 首楞嚴經灌頂疏 (Yangzhou: Yangzhou cang jing yuan 揚州藏經院,1929). Para uma
lista completa de comentários tradicionais, ver nota 7.

CEBB 18 / 28
ferida. Não caminhe sob o sol e ao vento, ou sujeira e poeira podem infectar a abertura da
ferida. Cuide de sua ferida, bom homem, e aja para que a ferida se cure.”
O homem pensaria: “A flecha foi extraída do meu corpo; o líquido venenoso foi eliminado
sem deixar vestígios e é incapaz de me prejudicar.” Ele comeria apenas alimento adequado,
e a ferida não supuraria. De tempos em tempos ele lavaria sua ferida, e de tempos em
tempos ele besuntaria a abertura, e pus e sangue não encobririam a abertura da ferida. Ele
não caminharia ao vento e sob o sol, e poeira e sujeira nõa infectariam a abertura da
ferida. Ele cuidaria da ferida e agiria para que ela fosse curada. Então, como ele fez o que
era adequado e porque o líquido venenoso havia sido expelido sem deixar vestígios, a ferida
seria curada, e como ela estaria curada e recoberta por pele, ele não morreria ou passaria
por sofrimento mortal.
Assim, também, Sunakkhatta, é possível que alguns bhikkhus44 aqui possam pensar assim:
“O desejo intenso foi comparado com uma flecha pelo Recluso; o líquido venenoso da
ignorância é espalhado por desejo, luxúria e má vontade. Essa flecha do desejo intenso foi
extraída do meu corpo; o líquido venenoso da ignorância foi eliminado. Eu sou alguém que
se dedica completamente ao Nibbāna.” Sendo alguém realmente dedicado ao Nibbāna, ele
não perseguiria as coisas inadequadas a alguém completamente dedicado ao Nibbāna. Ele
não perseguiria a visão de formas inadequadas com os olhos, ele não perseguiria sons
inadequados com o ouvido, odores inadequados com o nariz, sabores inadequados com a
língua, objetos tangíveis inadequados com o corpo, ou objetos mentais inadequados com a
mente. Como ele não perseguiria a visão de formas inadequadas com o olho... objetos
mentais inadequados com a mente, a luxúria não invadiria sua mente. Como sua mente
não seria invadida pela luxúria, ele não se aproximaria da morte ou do sofrimento mortal.
Sunakkhatta, eu ofereci este exemplo para transmitir um significado. O significado aqui é
este: “Ferida” é um termo para as seis bases internas.45 “Líquido venenoso” é um termo
para a ignorância. “Flecha” é um termo para o desejo intenso. “Examinar” é um termo para
a atenção plena. “Faca” é um termo para a nobre sabedoria. “Cirurgião” é um termo para o
Tathagāta, o Ser Realizado, o Completamente Iluminado.46
Em seus ensinamentos, o Buda parte das visões de mundo e crenças das pessoas que está
ensinando. Ele apenas as conduz a questionar suas visões e crenças na extensão necessária ao seu
ensinamento, ao grau necessário para sua liberação.

10. A História Original do Sutra e a Questão de Sua Autenticidade

O Śūraṅgama Sūtra na Índia


O período na Índia imediatamente anterior à transmissão do Sutra na China no início do século
oitavo foi de grande tumulto social, fragmentação política e severas tensões sociais. O país foi
dividido em muito reinos feudais, com uma boa proporção de governantes extremamente
violentos e um ressurgimento da influência tribal. O budismo corria o risco de perder seus
tradicionais apoios sociais e estava enfrentando novos desafios do tantrismo hinduísta Śaivita que
estava se disseminando a partir do sul da Índia. Esse foi o contexto do florescimento inicial do

44
O termo em páli para bhikṣu, um monge budista completamente ordenado.
45
Isto é, as seis faculdades.
46
Majjhima Nikāya 10 , “Sunakkhatta Sutta,” em The Middle Length Discourses of the Buddha (Os Discursos de Extensão
Intermediária do Buda), Bhikkhu Nāṇamoli e Bhikkhu Bodhi, trad. (Boston: Wisdom Publications, 1995), págs. 866–7.

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budismo esotérico indiano com suas tradições de siddhas. Desafios morais e confusão surgiram
tanto na sociedade secular quanto nas comunidades budistas. Feiticeiros poderosos — tribais,
Śaivitas, e autodenominados como budistas — exibiam seus poderes psíquicos e tentavam
destruir os preceitos fundamentais da vida monástica47. Considerando este ambiente, deve ter
parecido muito óbvio na época que os ensinamentos do Śūraṅgama Sūtra se dirigiam diretamente
aos problemas que a sociedade indiana estava experienciando. Talvez essa fosse a razão pela qual,
de acordo com os relatos tradicionais, o Sutra era considerado um tesouro de estado.

Preocupações sobre a Autenticidade do Sutra


A autenticidade do Śūraṅgama Sūtra tem sido questionada por alguns estudiosos modernos que
se baseiam no fato de que, uma vez que não há um original indiano existente, o texto não deve ser
uma tradução, mas sim uma composição original em chinês. A data da tradução tem sido
questionada, e anomalias textuais que sugerem a interpolação de elementos culturais puramente
chineses foram identificadas. Há fortes razões para acreditar, entretanto, que o texto original só
pode ser indiano.48 É verdade que, por exemplo, nos séculos inciais do budismo na China, textos
espúrios ou corrompidos circularam; mas pelo ano 705 D.C., quando a tradução do Sutra foi
completada, os eruditos monásticos chineses tinham se tornado suficientemente hábeis para
reconhecer textos inautênticos.49 Além disso, embora alguns detalhes no texto realmente
pareçam advir de um contexto chinês, eles poderiam meramente representar escolhas feitas pelos
tradutores para substituir equivalentes ou analogias chinesas pelos elementos desconhecidos
indianos que estavam presentes no original.50 Um exemplo primário é o aparecimento de mestres
ascéticos na Parte IX, entre as listas de categorias de seres. Os chineses usam o caracter “xian” 仙
para esses mestres ascéticos. Esse “xian,” frequentemente é traduzido como “Imortal”. É o
caracter chinês para os mestres espirituais de longa vida da tradução taoísta chinesa. A presença
de uma palavra tão claramente taoísta levou alguns estudiosos a sugerirem que a passagem é uma
evidência de que o Śūraṅgama Sūtra foi composto na China. Uma explicação muito mais plausível
é também a mais simples: de que o original indiano era “ṛṣi,” que se refere aos santos ascéticos
hinduístas.51 Os tradutores chineses escolheram de forma adequada traduzir “ṛṣi” como “xian,”
supondo que os dois tipos de ascetas, se não precisamente equivalentes, pelo menos ocupavam
posições espirituais similares em suas respectivas sociedades. A presença de dois elementos
indianos inquestionáveis que exercem papéis importantes no texto também apontam para uma
origem indiana. Um deles, já mencionado aqui, é a presença da lógica budista indiana nos muitos
silogismos e o uso da negação quádrupla. O outro é o Śūraṅgama Mantra, que o texto chinês deixa
sem tradução e que está no coração das instruções do Sutra para a prática espiritual. Ao
considerar a autenticidade do Śūraṅgama Sūtra do ponto de vista da crítica histórica de textos
religiosos, é importante considerá-la também do ponto de vista da própria tradição do Sutra.
Independente de qual se prove em definitivo a origem histórica e proveniência deste texto – se as

47
Ver Davidson, Indian Esoteric Buddhism (O Budismo Esotérico Indiano).
48
Um breve sumário das afirmações dos estudiosos modernos de inautenticidade e uma refutação delas podem ser encontrados
em onald Epstein, “The Surangama-Sūtra (T. 4 ) A eappraisal of Its Authenticity,” (O Surangama-Sūtra (T. 4 ) Uma
Reavaliação de Sua Autenticidade), 1976. http://online.sfsu.edu/~rone/Buddhism/authenticity.htm; este é o sumário de uma
monografia não publicada com o mesmo título. (T.S., 223 pp.).
49
Começando com Dao An no quarto século.
50
Por exemplo, as referências a fenômenos solares e outras influências astrológicas malignas, e a menção ao uso por parte de
donas de casa de espelhos de metal para focar a luz sobre a lenha para fazer fogo. Em outros casos, o que pode parecer chinês, sob
investigações mais detalhadas acaba aparecendo como indiano também. Por exemplo, na Parte IX.2 o Buda cita uma coruja que
coloca seus ovos no chão, que pode facilmente ser a coruja da grama, encontrada tanto na Índia quanto na China.
51
De acordo com o Monier Williams Sanskrit-English Dictionary, “Os ṛṣis eram considerados pelas gerações posteriores como sábios
patriarcais ou santos… e constituíam uma classe peculiar de seres no sistema mítico antigo, distintos de deuses, homens e asuras.

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questões sobre ele puderem algum dia ser definitivamente respondidas – um fato não pode ser
questionado: o Śūraṅgama Sūtra tem sido amplamente aceito na China como canônico por mais
de mil anos. Tal aceitação reflete a visão de que a autoridade de um texto religioso deve ser
mensurada por sua efetividade como um guia para a prática moral e espiritual. Deste ponto de
vista pragmático e ortoprático, o Śūraṅgama Sūtra pode ser corretamente considerado como
autêntico simplesmente porque gerações de praticantes avançados e seus alunos e discípulos têm
reverenciado este texto, seguido suas instruções, e o têm explicado aos outros como uma
prescrição confiável para purificação moral e avanço espiritual para a iluminação.52 Nas mentes de
seus muitos admiradores, então, a validade e a importância do Sutra não dependem de o texto
representar um registro literal das palavras ditas pelo Buda Śākyamuni no dialeto de Maghada do
sânscrito onde hoje é Uttar Pradesh, em algum momento no quinto século A.C. Desse ponto de
vista, a incerteza sobre a história textual do Sutra não é uma causa para qualquer incerteza sobre
sua verdade ética e espiritual.

O Relato Tradicional de Sua Transmissão na China


O Venerável Mestre Hsüan Hua resumiu o relato tradicional da transmissão do Sutra da Índia para
a China da seguinte forma: O rei de uma das regiões da Índia havia proclamado o Śūraṅgama Sūtra
como sendo um tesouro nacional porque ele era um dos Sutras que o bodisatva Nāgārjuna havia
trazido do Palácio do Dragão (nāga)53. Após essa proclamação, ninguém tinha a permissão para
tirar o Sutra da Índia para outros países. Naquele tempo, o Bhikṣu Paramiti tinha a intenção de
levar o Sutra da Índia para outros países, especialmente a China. Ele partiu para a China
carregando uma cópia do Sutra, apenas para ser detido pelos oficiais que não o permitiram
carregar o Sutra através da fronteira. Ele voltou para casa para pensar numa forma de retirar o
Sutra do país. Finalmente, encontrou uma maneira. Ele escreveu o Sutra em caracteres minúsculos
em uma seda muito fina, enrolou-o, e o selou com cera. Então fez um corte em seu braço e
colocou o pequeno pergaminho dentro de sua carne. Depois ele passou remédios na ferida e
esperou até ela sarar. (Algumas pessoas dizem que ele colocou o Sutra em sua perna, mas eu acho
que não teria sido respeitoso colocar o texto abaixo da cintura, e por isso ele provavelmente

52
Ver Hanshan Deqing, em sua Autobiografia, no registro de seu trigésimo primeiro ano (1576–7) “Após meu grande despertar,
não tendo ninguém para confirmá-lo e atestá-lo, eu abri o Śūraṅgama Sūtra para verificar minha experiência. Eu não tinha ouvido
anteriormente explicações sobre este Sūtra e, assim, não conhecia seu significado. Agora, aplicando o poder do raciocínio direto da
mente não-discriminativa e sem nem mesmo o menor uso de sua consciência, uma vez que não havia espaço para o pensamento,
eu alcancei após oito meses uma compreensão completa de seu profundo significado sem qualquer dúvida remanescente.”
Traduzido por Charles Luk, em Practical Buddhism (Budismo Prático) (Londres: Rider, 1971), 83.
Martin Verhoeven, em seu artigo “Geada Brilhante e Areia Fervente: Aspectos Inalteráveis de Pureza na Meditação Budista Chan”,
chama a atenção para a importância do Śūraṅgama Sūtra como um guia e padrão para a prática de meditação correta na vida do
famoso mestre iluminado do Chan, Xuyun (1840–1959). Ao discutir o grande despertar desse mestre, Verhoeven comenta “Ele
credita ao Shurangama-sutra ter sido imbuído com a importância da pureza e o consequente desapaixonamento que ela gera. ‘Se
não tivesse permanecido indiferente tanto a situações favoráveis quanto adversas,’ ele refletiu, ‘eu teria passado outra vida sem
propósito, e esta experiência não teria ocorrido.’” Em Purity of Heart and Contemplation: A Monastic Dialogue between Christian
and Asian Traditions (Pureza de Coração e Contemplação: Um Diálogo Monástico entre Tradições Cristãs e Asiáticas) (Nova
Iorque/Londres: Continuum, 2001), 85ff.
Ver também Ven. Hsüan Hua “Onde o Śūraṅgama Sūtra existe, então o Darma Correto existe. Se o Śūraṅgama Sūtra deixar de
existir, então o Darma Correto também desaparecerá. Se o Śūraṅgama Sūtra for inautêntico, então eu faço o voto de cair no
Inferno das Línguas Arrancadas para passar por um sofrimento ininterrupto.” Em “On the Authenticity of the Śūraṅgama Sūtra”
(Sobre a Autenticidade do Śūraṅgama Sūtra)
(http //online.sfsu.edu/~rone/Buddhism/Shurangama/Shurangama%20Sūtra%20Is%20Definitely%20Authentic.htm).
Dōgen, em seu Nihon Shisō Taikei, fala sobre o Sutra, “Mesmo se ele fosse uma fraude, se os budas e bodisatvas o sustentaram,
então é um verdadeiro Sūtra do Buda, um verdadeiro Sūtra dos Patriarcas, um giro tradicional do Darma pelos budas e bodisatvas.”
Traduzido por Carl Bielefeldt, em Terada and Mizono, eds., Dōgen, vol. 2, 229.
53
Segundo a tradição Mahāyāna, muitos dos principais sutras Mahāyāna ficaram inicialmente guardados em um palácio do rei-
dragão no fundo do oceano. A tradição credita ao bodisatva Nāgārjuna a recuperação desses sutras para a Índia.

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escolheu uma parte com carne na parte superior de seu corpo e colocou o Sutra ali.) Quando a
ferida curou, ele novamente partiu para a China e passou pelos guardas sem incidentes. Ele
acabou chegando a Guangdong, onde encontrou o oficial da corte Fang Yong, que o convidou para
residir em um templo em Guangdong enquanto traduzia o Sutra.54

11. Uma Breve Explicação de Alguns Termos Técnicos Importantes


Para aqueles que estão iniciando nos ensinamentos budistas, oferecemos aqui breves explicações
sobre termos importantes e conceitos mencionados no Sutra.

Ausência de Essência Pessoal


O ensinamento da ausência de essência pessoal55 é fundamental no budismo. O Buda não ensinou
que nós não existimos, mas ele ensinou que o sofrimento é causado por nosso apego a uma
essência pessoal, uma individualidade que ilusória e não existe. Qual “essência pessoal” que não
existe? Não é apenas a personalidade, ou ego, que se identifica em termos de papéis sociais e
interações. O budismo nega a existência de uma essência básica que seja identificada com nossa
existência física, incluindo gênero, e também a existência daquilo que chamado de “alma” e
outros níveis de essência espiritual. A existência de uma essência de consciência cósmica que é
identificada com o universo tamb m negada. Todas essas “essências pessoais” são designações
convencionais fabricadas, que apenas contribuem para nosso apego à ilusão. A verdadeira
realidade que efetivamente existe, e que é quem realmente somos, está além de nosso apego a
uma dualidade de essência pessoal e outro, e uma dualidade de existência e inexistência.

Iluminação ou Despertar
Neste texto nós usamos os termos portugueses “iluminação” e “despertar” como sinônimos.
Quando esses termos são usados no budismo em um sentido mais formal, eles não conotam uma
experiência temporária, mas sim uma transformação completa e irreversível do modo
fundamental de existência no mundo. Apenas a iluminação de um buda é perfeita e completa;
Bodisatvas, Sábios Solitários56 e Arhats57 despertaram, mas ainda não aperfeiçoaram o seu
despertar. Todos os seres iluminados possuem três realizações em comum: eles enxergaram
através da ilusão da essência pessoal; eles alcançaram a liberação permanente do ciclo de morte e
renascimento; e como consequência de sua iluminação eles possuem poderes espirituais. O termo

54
The Shurangama Sūtra, vol. 1, 68.
55
Sâns.: anātman. Para explicações sobre este e muitos outros termos ténicos e listas mencionadas no Sutra, o leitor que não está
familiarizado com os ensinamentos budistas pode achar a seguinte publicação útil: Buddhism A to Z (Budismo de A a Z), Ronald B.
Epstein, comp. (Burlingame, CA: Buddhist Text Translation Society, 2003). Muitos excelentes livros introdutórios ao budismo estão
disponíveis e podem oferecer um conhecimento útil para os ensinamentos deste Sutra. Uma pequena seleção deles pode ser
encontrada online sob o título “A Short Introductory eading List on Buddhism” (Uma Pequena Lista de Leitura Introdutória ao
Budismo), http://online.sfsu.edu/~rone/Buddhism/introbuddhistbibiog.htm
56
Sâns.: pratyekabuddha. Sábios solitários são seres que alcançam a iluminação por si mesmos sem o apoio do Darma do Buda ou
que se tornam iluminados através da contemplação do surgimento condicionado em doze etapas (sâns.: pratītyasamutpāda). Ver
Parte 4, nota 18.
57
Arhats se tornam iluminados através da contemplação das Quatro Nobres Verdades. Há quatro estágios de Arhat: o srota-
āpanna (alguém que entrou na corrente dos sábios), o sakṛdāgāmin (aqueles que devem renascer apenas mais uma vez), o
anāgāmin (aquele que não precisa renascer novamente); e o Arhat (aquele que cessou todas as flutuações externas de energia e
que não precisa de instruções adicionais). O termo “Arhat” pode se referir a todos os quatro estágios ou apenas ao quarto estágio.
No contexto deste Sutra, Ānanda é um Arhat no primeiro estágio.

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sânscrito “bodhi,” que traduzimos como “despertar completo”, refere-se neste texto ao despertar
ou iluminação de um buda.

Darma e Darmas
No Budismo, “Darma” não tem mais o significado hinduísta de dever religioso de acordo com a
própria casta. No budismo o uso da palavra tem diversos significados:
1) É um termo geral para os ensinamentos do Buda como um todo (o Darma, o Darma do Buda), e
também pode designar um ensinamento em específico, normalmente um método de prática que
conduz à iluminação.
2) Pode significar a realidade que é realizada ao iluminar-se – isto é, a realidade fundamental que
é imanente a todo o universo (o reino do Darma).58
3) É um termo para os componentes individuais de um ensinamento, geralmente como um item
em uma lista. Entre eles estão as listas das várias divisões do mundo mental e físico. Às vezes
traduzimos “darmas” neste sentido como “fenômenos”.
4) Também é um termo tanto para os dados sensoriais que chegam às nossas mentes através de
nossas faculdades de percepção quanto para os pensamentos e emoções que surgem em nossas
mentes e são identificados pela faculdade da cognição. Traduzimos “darmas” neste sentido como
“objetos mentais” ou “objetos de cognição”.59

Samādhi
Samādhi “é um estado mental e meditação concentrados, autorrecolhidos e direcionados, os
quais, junto com o modo de vida correto, são uma condição necessária para a realização da
sabedoria mais elevada e da emancipação.”60 Há quatro sentidos distintos para o uso da palavra
“samādhi”. Primeiro, ela designa o foco mental correto ou concentração que é uma preliminar
necessária para os estados meditativos mais profundos. Segundo, samādhi
indica os níveis mais profundos de concentração mental e estabilidade que podem ser alcançados
através da prática correta. Esses níveis incluem as quatro dhyānas, que correspondem aos estados
mentais dos deuses nos paraísos do reino da forma, e aos quatro samāpattis, que correspondem
aos estados mentais dos deuses que repousam nos planos da ausência de forma. Terceiro, há
níveis ainda mais profundos de samādhi que são experienciados pelos seres iluminados. Quarto,
“samādhi” também pode se referir especificamente ao Śūraṅgama (Indestrutível) Samādhi, que é
o estado mental de todos os budas e que é discutido extensamente neste Sutra.

Vacuidade
Há pelo menos três formas pelas quais a ideia de vacuidade pode ser compreendida: no nível
intelectual, na prática, e como uma descrição da iluminação. No nível intelectual, pode-se dizer
que vacuidade61 significa que todos os darmas – todos os fenômenos, mentais e físicos – não
possuem uma existência independente própria e existem apenas através da dependência de

58
Dharmadhātu, chinês: fa jie 法界. Em um uso relacionado, “os dez einos do Darma” consistem dos quatro níveis do sábio
(budas, bodisatvas, sábios solitários e Arhats) junto com os seis destinos dos seres não iluminados (deuses, asuras, humanos,
animais, fantasmas e habitantes dos infernos).
59
Nesta tradução colocamos “Darma” em maiúscula quando ele representa o primeiro e o segundo desses significados, e em
minúscula quando ele possui os dois outros significados.
60
T. W. Rhys Davids e William Stede, eds., Pali Text Society’s Pali-English Dictionary (Londres: Pali Text Society, 1972).
61
Sâns.: śūnyatā, chinês: kong 空.

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outros fenômenos. Todos os darmas não possuem atributos reais, permanentes, essenciais, que os
distinguem de todos os outros fenômenos. Em outras palavras, tudo no mundo, tanto físico
quanto mental, é interdependente. Nada existe apenas por si mesmo, separado, e sem relações
causais com qualquer outra coisa. Assim, todos os darmas são vazios de qualquer existência
individual e inerente.62 Uma compreensão intelectual da vacuidade pode ser aplicada a um
m todo de prática e uma forma de vida que esvazia nossa experiência a cada momento. “Esvaziar
nossa experiência” significa, primeiro, remover o “mim” e “meu” de cada pensamento que surge
em nossa consciência. A contemplação sustentada da vacuidade da essência pessoal pode nos
livrar da experiência egocentrada e nos liberar da prisão do egoísmo. Aprendemos a nos ver e
nossas preocupações, nossos desejos e medos, como vazios – como uma miragem ou um sonho,
tão efêmeros como uma bolha ou um relâmpago. O Sūtra do Diamante diz:
Como estrelas, enganos visuais, como uma lâmpada,
Uma farsa, gotas de orvalho ou uma bolha,
Como um sonho, um relâmpago ou uma nuvem,
Assim deveria ser visto aquilo que é condicionado.63

Esvaziar a nós mesmos nos abre para a plenitude do mundo.


Esvaziar a experiência também implica a eliminação das fronteiras que desenhamos para interagir
com o mundo – as paredes que levantamos para nos proteger, os territórios de que nos
apropriamos para controlar, e as fantasias de conquistas futuras que planejamos em nossas
mentes. Esvaziar a nós mesmos deve nos conduzir ao esvaziamento de “outro”, a “ausência de
essência pessoal”, de modo que eu e outro não são mais duais. Então a linha que os divide
apagada, e com isso não há confito, não há mais nada para temer ou para conquistar. Com a
iluminação vem a realização de que a verdadeira vacuidade é idêntica à plenitude da existência
maravilhosa. Ela pode ser alcançada através do grande esforço de tornar-se consciente de cada
pensamento e de esvaziá-los um por um.

Os Cinco Agregados
A palavra “agregado” traduz a palavra sânscrita “skandha,” que significa “monte”, “pilha” ou
“agregação”. (Certa vez o Buda ilustrou seu ensinamento sobre os agregados com cinco pequenas
pilhas de diferentes grãos.) Os cinco agregados - forma, sensação-percepção, cognição, formações
mentais e consciência — são categorias gerais que em conjunto incluem tudo que
experimentamos no mundo psicofísico. Assim, eles podem ser uma ferramenta efetiva para
compreender o ensinamento da ausência de essência peossal. Ao analisarmos todos os aspectos
daquilo que sentimos ser a própria essência pessoal, descobrimos que todos recaem no âmbito
dos cinco agregados. Mais especificamente, o agregado da forma compreende o que percebemos
como nossos corpos e o resto do mundo físico. O agregado da sensação-percepção compreende as
cico primeiras faculdades da percepção – olhos, ouvidos, nariz, língua e corpo – e sua recepção das
cinco categorias correspondentes de dados sensoriais – objetos visíveis, sons, cheiros, sabores e
objetos táteis. Respondemos a essas percepções como agradáveis, desagradáveis ou neutras. O
agregado da cognição inclui a função de identificar os dados sensoriais e fazer distinções em

62
Sâns.: svabhāva, chinês: zixing 自性.
63
“The Diamond Sūtra,” (O Sutra do Diamante) em Edward Conze, Buddhist Wisdom Books (Livros de Sabedoria Budista) (Londres:
George Allen and Unwin, 1956), 68.

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relação a esses dados. Ele também envolve a diferenciação entre os conteúdos mentais; assim, ele
inclui as funções de percepção mais elevadas e processos de pensamento, por exemplo o uso da
linguagem. O agregado das formações mentais se refere tanto às forças volitivas conscientes
quanto não-conscientes, incluindo as intenções conscientes ou atos de vontade; predisposições
inatas resultantes do carma criado durante vidas anteriores; e forças inconscientes associadas a
funções básicas vitais, nutrição e crescimento. O agregado da consciência é a base sutil dos
agregados da sensação-percepção, cognição e formações mentais. Ele consiste de uma consciência
sutil que faz distinções distinguindo a consciência dos objetos de consciência.

Os Dezoito Constituintes
Os dezoito constituintes são as seis faculdades, os seis tipos de objetos percebidos, e as seis
consciências. As seis faculdades são os olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo e mente. Os seis tipos
de objetos percebidos são os objetos visíveis, sons, cheiros, sabores, objetos táteis e objetos
cognitivos. As seis faculdades e os seis tipos de objetos percebidos em conjunto são conhecidos
como os “doze campos”. Eles são os campos para o surgimento das seis consciências. Isto , o
contato entre as faculdades e seus objetos é uma condição necessária para o surgimento da
consciência do olho, consciência do ouvido, consciência do nariz, consciência da língua,
consciência do corpo, e consciência da mente (ver, ouvir, cheirar, saborear, sentir de forma tátil e
conhecer). Como os cinco agregados, os dezoito constituintes proporcionam uma análise de todo
o mundo psicofísico e um auxílio para quebrar os apegos ao mundo. Tudo que experimentamos
pode ser resumido nesses dezoito constituintes. Os cinco primeiros grupos de objetos percebidos
– objetos visíveis, sons, cheiros, sabores e objetos táteis – em conjunto com as cinco primeiras
faculdades que percebem esses objetos compreendem todo o mundo físico. A faculdade da
cognição e os objetos de cognição na mente, junto com as seis consciências, compreendem o
mundo mental. Todas as experiências mentais e todo o mundo físico se encontram nesses dezoito;
portanto, nenhuma noção de uma alma ou essência pessoal permanente é necessária para
descrever e dar conta de qualquer experiência.

Sete Elementos Primários


Os sete elementos primários são terra, que representa a solidez; água, que representa aquilo que
é líquido; fogo, que representa o calor; vento, que representa o movimento; espaço; consciência
visual; e consciência. Esses elementos primários são as qualidades de matéria-energia como são
distinguidas pela mente. Pode ser útil pensar sobre os elementos primários em três diferentes
níveis: primeiro, sua identidade com a Matriz do Tathagata, que é a mente Iluminada e a
verdadeira natureza dos elementos primários; segundo, suas qualidades puras e essenciais, que
normalmente não experimentamos diretamente; e terceiro, os elementos primários como os
experimentamos em seu estado de mistura em várias proporções em nossos corpos e no mundo.

12. Notas sobre Esta Tradução


Nós já mencionamos64 alguns dos desafios envolvidos na tarefa de traduzir para o inglês moderno
o chinês formal do século oitavo do Śūraṅgama Sūtra. Talvez o maior desafio veio das restrições
que os tradutores chineses se colocaram ao escolherem o padrão de frases de quatro caracteres
no qual a maior parte da tradução chinesa está escrita. Para preservar a métrica de quatro

64
Ver pág.

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caracteres, os tradutores acharam necessário com frequência omitir um ou mais caracteres,
mesmo que esses caracteres fossem essenciais para o significado. Um exemplo que o leitor do
texto em chinês frequentemente encontra envolve a lista das seis faculdades da percepção, ou a
lista de seus seis objetos. Apesar de em cada caso todas as seis estarem implícitas, duas são
normalmente omitidas de modo que as outras quatro se encaixem na métrica de quatro
caracteres. (Uma complicação adicional é que nem sempre as mesmas duas que são omitidas). Em
geral, sempre que a concisão pudesse dificultar o entendimento, nós acrescentamos palavras de
esclarecimento, incluímos algum trecho explicativo do comentário do Venerável Mestre Hsüan
Hua, ou identificamos os significados faltantes em uma nota de rodapé.
Segundo, o texto em chinês frequentemente prossegue em parágrafos padronizados, e a repetição
resultante às vezes levou os tradutores chineses a iluminar o texto repetido com uma variedade
de sinônimos. O oposto também é verdadeiro: os tradutores chineses frequentemente usaram um
caracter para indicar significados bastante diferentes – às vezes na mesma sentença ou mesmo na
mesma frase de quatro caracteres. Em ambos os casos preferimos a clareza ao floreio literário.
Diversos caracteres que têm o mesmo significado foram traduzidos, geralmente, por uma mesma
palavra em inglês, e caracteres únicos com múltiplos significados foram traduzidos, em geral, para
diversas palavras inglesas.
Terceiro, a abundância de termos em sânscrito, representados no texto por caracteres de
transliteração especializados, é uma das características mais desafiadoras para o leitor do texto
chinês. Nós decidimos não passar adiante essa dificuldade para os leitores da versão em inglês. Em
geral, deixamos em sânscrito apenas aquelas palavras que já são familiares para os leitores do
inglês (tais como “Darma”, “carma”, “nirvana”, e “bodisatva”) ou aquelas palavras que
acreditamos que se tornarão palavras inglesas à medida que os textos budistas se tornem mais e
mais familiares para os ocidentais. Ao traduzirmos termos em sânscrito que o texto chinês apenas
translitera, anotamos o original em sânscrito nas notas de rodapé.
Quarto, apesar de o texto original em sânscrito não estar mais disponível, quase todos os muitos
termos técnicos e conceitos budistas que aparecem neste Sutra também aparecem em outros
sutras, incluindo muitos dos sutras que sobreviveram em sânscrito. Assim, para esses termos e
conceitos, os originais em sânscrito são bem conhecidos. Em todos esses casos na tradução do
Śūraṅgama Sūtra, nos locais em que pudemos identificar com segurança as palavras em sânscrito
ou frases que estavam por trás das traduções chinesas, nós utilizamos o sânscrito para determinar
uma tradução correta para o inglês.
Na preparação desta obra os tradutores tiveram que decider se incluiriam um comentário na
maneira tradicional asiática. A maioria das traduções ocidentais de textos sagrados, salvo nos
casos em que os textos são curtos, não tem incluído comentários tradicionais. A Buddhist Text
Translation Society (Sociedade para a Tradução de Textos Budistas) tem sido uma exceção, tendo
publicado numerosos textos com os comentários completos oferecidos pelo Venerável Mestre
Hsüan Hua. A extensão desses comentários faz com que as traduções dos sutras mais longos, com
comentários, gerem múltiplos volumes – na edição de 2000-2005 deste Sutra são nove. Uma das
intenções principais desta nova tradução foi a de apresentar o Śūraṅgama para um público leitor
em inglês de forma conveniente e acessível na forma de um único volume. Ainda assim, pareceu
inaceitável para os tradutores omitir qualquer tipo de comentário dada a dificuldade do texto.
Assim, foi decidido preservar o formato tradicional de exegese interlinear e extrair trechos do
comentário do Venerável Mestre Hsüan Hua quando as passagens no texto claramente pediam
por elucidação.

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O comentário ao Sutra do Venerável Mestre Master Hsüan Hua foi oferecido na forma de palestras
proferidas por um período de mais de quatro meses, no verão e outono de 1968 no Salão de
Palestras Budistas, em São Francisco. As palestras foram posteriormente transcritas e editadas. E
foram publicadas na totalidade como parte da edição em nove volumes deste Sutra pela BTTS.
Além de explicar o próprio texto do Sutra, as palestras foram ocasião para muitas lições sobre
conduta pessoal, prática espiritual, disciplina monástica, e a doutrina budista em geral. Essas
lições, frequentemente oferecidas na forma de histórias, são de grande valor para qualquer um
que se dedique a uma prática espiritual, ou que simplesmente deseje uma vida melhor. Incluímos
algumas dessas instruções nesta edição. Na maior parte dos casos, entretanto, e com alguma
relutância, citamos nesta tradução de volume único apenas as passagens do comentário do
Venerável Mestre Hsüan Hua que diretamente apresentam explicações sobre o próprio texto do
Sutra. Assim, o comentário extraído para esta tradução, de forma alguma é um substituto para o
comentário completo, e é apenas parcialmente representativo da amplitude e profundidade do
comentário. Felizmente a gravação completa dessas palestras permanece facilmente disponível na
tradução anterior da BTTS.
Um comentário sobre a neutralidade de gênero da linguagem seria adequado aqui. Sempre que
possível recorremos a pronomes plurais de gênero neutro (em inglês), “they (eles/elas)”, “them
(os/as)” e “their (deles/delas). Mas com grande frequência esse desvio da tendência de gênero
não foi possível. Primeiramente, a maior parte do Sutra consiste em um diálogo entre dois
homens, o Buda Śākyamuni e seu primo Ānanda. Em segundo lugar, como tradutores nos
esforçamos para evitar uma linguagem anacrônica, ou seja, uma linguagem que pudesse
enfraquecer a relação do Sutra com seu tempo e local. Não procuramos representar o Buda
falando de uma forma que nos parecesse que ele não teria usado; assim, não utilizamos palavras
derivadas da ciência moderna ou tecnologia, termos técnicos da filosofia europeia, ou linguagem
coloquial do século vinte e um. Foi nossa intenção encontrar uma voz para esses personagens que
fosse formal, precisa e natural, tanto relacionada ao tempo da época quanto atemporal. Esse foi o
nosso dilema. Os falantes do inglês têm buscado no ultimo quarto de século uma transição para
uma fala neutra no gênero – especialmente com o uso da frase “he or she” (ele ou ela), e pelo
anteriormente gramaticalmente incorreto uso das formas “they” (eles/elas) no singular. Mas ao
traduzir um documento que chegou a nós depois de muitos séculos, achamos que o uso repetido
dessas formas contemporâneas de gênero neutro gera um tom dissonante de anacronismo que
tendia a nos distrair da naturalidade e autoridade das vozes dos falantes. Portanto, nos
resignamos ao uso insatisfatório de pronomes masculinos quando ambos os gêneros são
apontados. Essa decisão nossa foi totalmente editorial, não doutrinária. Tudo isso não significa
que o Śūraṅgama Sūtra sustente que o gênero masculino seja uma vantagem na prática espiritual.
Não há esse ensinamento no Sutra. Na verdade, a cortesã que lança o feitiço sobre Ānanda na
abertura do Sutra e que acompanha Ānanda e o bodisatva Mañjuśrī até a assembleia do Buda se
ilumina durante o andamento do diálogo, alcançando um nível de despertar mais elevado que o
de Ānanda.65 A iluminação de Yaśodarā, que havia sido a esposa do Buda Śākyamuni quando ele
ainda era um príncipie, também é mencionada.66 Por último, algumas poucas palavras sobre nosso
processo de tradução. Assim como em outros textos produzidos por membros da BTTS, esta
tradução foi realizada em quatro passos distintos. Primeiro, uma tradução inicial foi realizada por
um comitê que incluía tanto falantes nativos do chinês quanto do inglês. O segundo passo
consistiu nas revisões do texto completo para verificar a precisão. Em seguida veio o polimento
editorial para assegurar naturalidade e consistência do estilo do inglês, e finalmente, a
ceritificação de que a tradução apresentava fielmente os ensinamentos do Buda. Em todo esse
65
No final da Parte 4.
66
Ibid.

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esforço nos apoiamos no trabalho pioneiro de tradutores anteriores. Sem seus esforços, realizar
esta tradução teria sido muito mais difícil e o resultado poderia conter muitos erros. Contudo,
apesar do esforço de muitas pessoas durante um período de seis anos e meio, reconhecemos que
nossa tradução dificilmente está livre de erros, e pedimos aos estudantes, eruditos, praticantes e
leitores em geral que lerem esta tradução que apontem generosamente quaisquer erros para que
possamos corrigi-los em uma edição futura. Nos juntamos aos nossos colegas na dedicação de
qualquer mérito acumulado na realização desta tradução para a paz mundial e iluminação de
todos os seres.
Ron Epstein e David Rounds,
Co-Presidentes, Comitê de Tradução do Śūraṅgama Sūtra,
Sociedade para a Tradução de Textos Budistas.

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