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HISTÓRIA DA ETERNIDADE A MET ÁFORA
noite, porque a noite em que foi gerado por Zeus pareceu valho e com as flores da giesta e com as flores da olmeira". Na
três; a frase é memorável, vai além da interpretação dos glo- quinta "aventura" do Nibelungenlied, Sigfrid vê Kriemhild para
sadares, mas não exerce a função prescrita par Aristóteles.I não mais esquecê-Ia e a primeira coisa que nos diz é que sua tez
No I Ching, um dos nomes do universo é os Dez Mil Seres. brilha com a cor das rosas. Ariosto, inspirado por Catulo, com-
Há talvez trinta anos, minha geração se surpreendeu com o para a donzela a uma flor secreta (Orlando,I, 42); no jardim de
fato de os poetas terem desprezado as múltiplas combinações Armida, um pássaro de bico purpúreo exorta os amantes a não
que esse elenco possibilita e, de modo maníaco, se limitado a deixar que essa flor murche (Gerusalemme,XVI, 13-15). No final
uns poucos grupos famosos: as estrelas e os olhos, a mulher e do século XVI, Malherbe quer consolar um amigo pela morte de
a flor, o tempo e a água, a velhice e o entardecer, o sono e a sua filha, e nesse consolo estão as famosas palavras: "Et, rose,eIle
morte. Assim enunciados ou despojados, esses grupos são a vécucequeviventlesrases".Shakespeare,num jardim, admira o
meras trivialidades, mas vejamos alguns exemplos concretos. vermelho profundo das rosas e a brancura dos lírios, mas para
Lê-se no Antigo Testamento (I Reis 2, 10): "E Davi dormiu ele esses esplendores não passam de sombras de seu amor
com seus pais, e foi sepultado na cidade de Davi". Nos naufrá- ausente (Sonnets, XCVIII). "Deus, ao fazer as rosas, fez meu
gios, ao afundar-se o navio, os marinheiros do Danúbio rosto", diz a rainha de Samotrácia numa página de Swinbume.
rezavam: "Durmo, lpgo voltarei a remar".2 Homero, na llíada, Este levantamento poderia não ter fim;3 basta lembrar aquela
chamou o Sono de Irmão da Morte; desta irmandade, segundo cena de Weir ofHermiston - o último livro de Stevenson - na qual
Lessing, são testemunhos vários monumentos funerários. Maca- o herói quer saber se há uma alma em Cristina "ou se não é mais
co da Morte (Affe desTodes)chamou-o Wilhelm Klemm, que que um animal da cor das flores".
escreveu também: "A morte é a primeira noite tranqüila". Antes, Juntei dez exemplos do primeiro grupo e nove do segundo;
Heine escrevera: "A morte é a noite amena; a vida, o dia tor- às vezes a unidade essencial é menos aparente que os traços
mentoso..." Sono da terra foi como Vigny chamou a morte; velha diferenciais.Quem, apriori, suspeitaria que" cadeira de balanço"
cadeira de balanço (old rocking~chair)a chamam nos blues:ela e "Davi dormiu com seus pais" procedem de lllesma raiz?
vem a ser o último sono, a última sesta, dos negros. Schopen- O primeiro monumento das literaturas ocidentais, a Ilíada,
hauer repete em sua obra a equação morte-sono; basta-me foi composto há cerca de três mil anos; é plausível supor que
copiar estas linhas: "O que o sono é para o indivíduo, é a morte nesse enorme transcurso de tempo todas as afinidades íntimas,
para a espécie" (WeltaIs Wille,li, 41).O leitorjá terá lembrado as necessárias (sonho-vida, sono-morte, rios e vidas que transcor-
palavras de Harnlet: "Morrer, dormir, talvez sonhar", e seu rem, etc.), foram alguma vez percebidas e escritas. Isso não sig-
temor de que sejam atrozes os sonhos do sono da morte. nifica, naturalmente, que se tenha esgotado o número de metá-
Igualar mulheres a flores é outra eternidade ou trivialidade; foras; as maneiras de indicar ou insinuar essas secretas simpatias
tenho aqui alguns exemplos. "Eu sou a rosa de Saron e o lírio dos dos conceitos resultam, de fato, ilimitadas. Sua virtude ou
vales", diz a sulamita no Cântico dos Cânticos. Na história de fraqueza estão nas palavras, no curioso verso em que Dante (Pur-
Math, que é o quarto "ramo" dos Mabinogion de Gales, certo gatório, I, 13), para definir o céu oriental, invoca uma pedra
príncipe exige uma mulher que não seja deste mundo, e um feiti- oriental, uma pedra límpida em cujo nome está, por feliz acaso,
ceiro "por meio de conjuras e de ilusão a faz com as flores do car- o Oriente: "Dolcecolord'orientalzaftiro" é, fora de qualquer dúvi-
3 A imagem também aparece delicadamente nos famosos versos de Milton (P. L IV,
1 Digo o mesmo de "águia de três asas", que é nome metafórico da flecha, na lite- 268-271) sobre o rapto de Prosérpina, e nestes de Daria:
ratura persa (Browne: A Literary History of Persia, m, 262).
Mas apesardo tempo implacável
2 Também se conserva a ladainha final dos marinheiros fenícios: "Mãe de Cartago, minha sedede amor não temfim;
devolvo o remo". A julgar por moedas do século Il a.c., por Mãe de Cartago deve- com o cabelogrisalho me aproximo
mos entender Sídon. das roseirasdo jardim.
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